História da Filosofia Nicola Abbagnano
História da Filosofia Primeiro volume Nicola A bbagnano ~DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO: ÂNGELO MIGUEL ABRANTES HISTÓRIA DA FILOSOFIA 2.a Edição VOLUME I TRADUÇÃO DE: ANTÓNIO BORGES COELHO FRANCO DE SOUSA MANUEL PATRÍCIO EDITORIAL PRESENÇA Título original STORIA DELLA FILOSOFIA PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO Esta História da Filosofia pretende mostrar a essencial humanidade dos filósofos. Ainda hoje perdura o preconceito de que a filosofia se afadiga com problemas que não têm a mínima relação com a existência humana e continua encerrada em uma esfera longínqua e inacessível aonde não chegam as aspirações e necessidades dos homens. E junto a este preconceito vem o outro, que é ser a história da filosofia o panorama desconcertante de opiniões que se sobrepõem -e contrapõem, privada de um fio condutor que sirva de orientação para os problemas da vida. Estes preconceitos são sem dúvida reforçados por aquelas orientações filosóficas que, por amor de um mal entendido tecnicismo, pretenderam reduzir a filosofia a uma disciplina particular acessível a poucos e assim lhe menosprezaram o valor essencialmente humano. Trata-se, todavia, de preconceitos injustos, fundados em falsas aparências e na ignorância do que condenam. Demomstrá-lo é a pretensão desta obra. Parte ela da convicção de que nada do que é humano é alheio à filosofia e de que, ao contrário, esta é o próprio homem, que em si mesmo se faz problema e busca as razões e o fundamento do ser que é o seu. A essencial conexão entre a filosofia e o homem é a primeira base da investigação historiográfica empreendida neste livro. Sobre tal base, esta investigação inclina-se a considerar a pesquisa que há 26 séculos os homens do ocidente conduzem acerca do próprio ser e do próprio destino. Através de lutas e conquistas, dispersões e retornos, esta pesquisa acumulou um tesouro de experiências vitais, que urge redescobrir e fazer reviver para além da indumentária doutrinal que muito frequentemente o oculta, ao invés de revelá-lo. E isto porque a história da filosofia é profundamente diferente da da ciência. As doutrinas passadas e abandonadas já não têm para a ciência significado vital; e as ainda válidas fazem parte do seu corpo vivo e não há necessidade de nos voltarmos para a história para apreendê-las e torná-las nossas. Em filosofia a consideração histórica é, ao invés, fundamental; uma filosofia do passado, se foi verdadeiramente uma filosofia, não é
um erro abandonado e morto, mas uma fonte perene de ensinamento e de vida. Nela se encarnou e exprimiu a pessoa do filósofo, não apenas em o*, que tinha de mais, seu, na singularidade da sua experiência de pensamento e de vida, mas ainda nas suas relações com os outros e com o mundo em que viveu. E à pessoa devemos volver se queremos redescobrir o sentido vital de toda doutrina. Em cada uma de elas devemos estabelecer o centro em torno do qual gravitaram os interesses fundamentais do filósofo, e que é ao mesmo tempo o centro da sua personalidade de homem e de pensador. 'Devemos fazer reviver perante nós o filósofo na sua realidade de pessoa histórica se queremos compreender claramente, através da obscuridade dos séculos desmemorizados ou das tradições deformadoras, a sua palavra autêntica que pode ainda servir-nos de orientação e de guia. Por isso não serão apresentados, em esta obra, sistemas ou problemas, quase substantivados e considerados como realidades autónomas, mas figuras ou pessoas vivas, serão feitas emergir da lógica da pesquisa em que quiseram exprimir-se e consideradas nas suas relações com outras figuras e pessoas. A história da filosofia não é o domínio de doutrinas impessoais que se sucedem desordenadamente ou se concatenam dialecticamente, nem a esfera de acção de problemas eternos, de que cada doutrina é manifestação contingente. É um tecido de relações humanas, que se movem no plano de uma comum disciplina de pesquisa, e que transcendem por isso os aspectos contingentes ou insignificantes, para se fundar nos essenciais e constitutivos. Revela a solidariedade fundamental dos esforços que procuram tornar clara, tanto quanto é possível, a condição e o destino do homem; solidariedade que se exprime na afinidade das doutrinas tanto como na sua oposição, na sua concordância tanto como na sua polémica. A história da filosofia reproduz na táctica das investigações rigorosamente disciplinadas a mesma tentativa que é a base e o móbil de todas as relações humanas: compreender-se e compreender. E reprodu-lo quando colhe êxitos como quando colhe desenganos, nas vicissitudes de ilusões renascidas como nas de clarificações orientadas, e nas de esperanças sempre renascentes. A disparidade e a oposição das doutrinas perdem assim o seu carácter desconcertante. O homem tem ensaiado e ensaia todas as vias para compreender-se a si mesmo, aos outros e ao mundo. Obtém nisso mais ou menos sucesso. Mas deve e deverá renovar a tentativa, da qual depende a sua dignidade de homem. E não pode renová-la senão voltando-se para o passado e extraindo da história a ajuda que os outros podem dar-lhe para o futuro. Eis por que não se encontrarão nesta obra críticas extrínsecas, que pretendem pÔr a claro os erros dos filósofos. A pretensão de atribuir aos filósofos lições de filosofia é ridícula, como a de fazer de uma determinada filosofia o critério e a norma de julgamento das outras. Todo o verdadeiro filósofo é um mestre ou companheiro de pesquisa, cuja voz nos chega enfraquecida através do tempo, mas pode ter para nós, para os problemas que ora nos ocupam, uma importância decisiva. Necessário é que nos disponhamos à pesquisa com sinceridade e humildade. Nós não podemos alcançar, sem a ajuda que nos vem dos filósofos do passado, a solução dos problemas de que depende a nossa existência individual e em sociedade. Devemos, por isso, propor historicamente esses problemas, e na tentativa para compreender a palavra genuína de Platão ou de Aristóteles, de Agostinho ou de Kant e de todos os outros, pequenos ou grandes, que hajam sabido exprimir uma experiência humana fundamental, devemos ver a própria tentativa de formular e solucionar os nossos problemas. O problema de o que nós somos e devemos ser é fundamentalmente idêntico ao problema de o que foram e quiseram ser, na sua substância humana, os filósofos do passado. A separação dos dois problemas tira ao filosofar o seu alimento e à história da filosofia a sua importância vital. A unidade dos dois problemas garante a eficácia e a força do filosofar e fundamenta o valor da historiografia filosófica. A história da filosofia liga simultaneamente o passado e o futuro da filosofia. Esta ligação é a essencial historicidade
da filosofia. Mas justamente Por isso a preocupação da objectividade, a cautela crítica, a investigação paciente dos textos, o apego às intenções expressas dos filóSOfos, não são na historiografia filosófica outros tantos sintomas de renúncia ao Weresse teorético, 10 mas as provas mais seguras da seriedade do empenho teorético. Visto que a quem espera da investigação histórica uma ajuda efectiva, a quem vê nos fIlósofos do passado mestres e companheiros de pesquisa, não interessa falsear-lhes o aspecto, camuflar-lhes a doutrina, mergulhar-lhes na sombra traços fundamentais. Todo o interesse tem, ao invés, em reconhecer-lhes o verdadeiro rosto, assim como quem empreende uma viagem difícil tem interesse em conhecer a verdadeira índole de quem lhe serve de guia. Toda a ilusão ou engano é, neste caso, funesta. A seriedade da investigação condiciona e manifesta o empenho teorético. É evidente, deste ponto de vista, que não se pode esperar encontrar na história da filosofia um progresso contínuo, a formação gradual de um único e universal corpo de verdade. Este progresso, tal como se verifica nas ciências, uma por uma, que uma vez implantadas nas suas bases se acrescentam gradualmente pela soma dos contributos individuais, -não pode encontrar-se em filosofia, uma vez que não há aqui verdades objectivas e impessoais que possam tornar-se e integrar-se em um corpo único, mas pessoas que dialogam acerca do seu destino; e as doutrinas não são mais que expressões deste dialogar ininterrupto, perguntas e respostas que às vezes se respondem e se correspondem através dos séculos. A mais alta personalidade filosófica de todos os tempos, Platão, exprimiu na própria forma literária da sua obra-o diálogo-a verdadeira natureza do filosofar. Por outro lado, na história da filosofia não há, no emtanto, uma mera sucessão desordenada de opiniões que alternadamente se amontoam e destroem. Os problemas em que se verte o dialogar incessante dos filósofos têm uma lógica sua, que é a própria disciplina a que os filósofos livremente sujeitam a sua pesquisa: pelo que certas directivas persistem em dominar um 11 período ou uma época histórica, porque lançam uma luz mais viva sobre um problema fundamental. Adquirem, então, uma impessoalidade aparente, que faz delas o património comum de gerações inteiras de filósofos (pense-se no agostinismo ou no aristotelismo durante a escolástica); mas em seguida declinam e apagam-se, e todavia a verdadeira pessoa do filósofo não mais se apaga, e Todos podem e devem interrogá-lo para dele tirar luz. A história da filosofia apresenta deste modo um estranho paradoxo. Não há, pode dizer-se, doutrina filosófica que não tenha sido criticada, negada, impugnada e destruída pela crítica filosófica. Mas quem quereria sustentar que a obliteração definitiva de um só dos grandes filósofos antigos ou modernos não seria um empobrecimento irremediável para todos os homens? É que o valor de uma filosofia não se mede pelo quantum de verdade objectiva que ela contém, mas tão só pela sua capacidade de servir de ponto de referência (porventura somente polémico) a toda a tentativa de compreender-se a si e ao mundo. Quando Kant reconhece a Hume o mérito de o ter despertado do "sono dogmático" e de o ter encaminhado para o criticismo, formula de maneira mais imediata e evidente a relação de livre interdependência que enlaça conjuntamente todos os filósofos na história. Uma filosofia não tem valor enquanto suscita o acordo formal de UM Certo número de pessoas sob determinada doutrina, mas somente enquanto suscita e inspira nos outros aquela
pesquisa que os conduz a encontrar cada qual o próprio caminho, assim como o autor nela encontrou o seu. O grande exemplo é aqui ainda o de Platão e de Sócrates: durante toda a sua vida procurou Platão realizar o significado da figura e do ensinamento de Sócrates, prosseguindo, quando era necessário, além do invólucro doutrinal em que estavam encerrados,- e 12 desta maneira a mais alta e bela filosofia nasceu de um reiterado acto de fidelidade histórica. Tudo isto exclui que na história da filosofia se possa ver somente desordem e sobreposição de opiniões; mas exclui, não obstante, que se possa ver nela uma ordem necessária dialecticamente concatenada, em que a sucessão cronológica das doutrinas equivalha ao desenvolvimento racional de momentos ideais constituindo uma verdade única que se mostre em sua plenitude no fim do processo. A concepção hegeliana faz da história da filosofia o processo infalível de formação de uma determinada filosofia. E assim suprime a liberdade da pesquisa filosófica, que é condicionada pela realidade histórica da pessoa que indaga; nega a problematicidade da própria história e faz dela um círculo concluso, sem porvir. Os elementos que constituem a vitalidade da filosofia perdem-se deste modo todos. A verdade é que a história da filosofia é história no tempo, logo problemática; e é feita, não de doutrinas, ou de momentos ideais, mas de homens solidamente encadeados pela pesquisa comum. Nem toda a doutrina sucessiva no tempo é, só por isto, mais verdadeira que as precedentes. Há o perigo de se perderem ou esquecerem ensinamentos vitais, como frequentemente aconteceu e acontece; de onde decorre o dever de inquirir incessantemente do seu significado genuíno. Obedece a este dever, dentro dos limites que me são concedidos, a presente obra. Que o leitor queira compreendê-la e julgá-la dentro deste espírito. N. A. 13 PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO A segunda edição desta obra constitui uma actualização da primeira com base em textos ou documentos ultimamente publicados, em novas investigações historiográficas e em novos caminhos da crítica histórica ou metodológica. As partes que sofreram maiores revisões ou ampliamentos são as que concernem ' à lógica e à metodologia das ciências, à ética e à política. As investigações historiográficas contemporâneas voltam-se, de facto, preponderantemente para estes campos, obedecendo aos mesmos interesses que solicitam hoje a pesquisa filosófica. Aqui como ali a exigência de ter em conta os novos dados historiográficos e de apresentar todo o conjunto numa forma ordenada e clara tornou oportunas alterações de extensão ou de colocação dos autores tratados, em conformidade com certas constantes conceptuais que demonstraram ser mais activas, ou verdadeiramente decisivas, na determinação do desenvolvimento ou da eficácia histórica das filosofias. óbviamente, as maiores modificações teve que sofrê-las o desenvolvimento da filosofia contemporânea, no intuito de oferecer um sintético quadro de conjunto da riqueza e da variedade dos caminhos que hoje dis15
putam o campo, e dos problemas em volta dos quais se concentram as discussões polémicas adentro de cada caminho. Mas a estrutura da obra, os seus requisitos essenciais, as inscrições e os critérios interpretativos fundamentais não sofreram modificações substanciais, porque conservaram a sua validade. Às notas bibliográficas, embora acttualizadas, foi conservado o carácter puramente funcional de selecção orientadora para a pesquisa bibliográfica. Agradeço a todos os que fizeram chegar até mim sugestões e conselhos e sobretudo aos amigos com quem discuti alguns pontos fundamentais do trabalho. A três deles, a quem mais frequentemente recorri, Pietro Rossi, Pietro Chiodi e Carlo A. Viano, tenho gosto em exprimir públicamente a minha gratidão. Turim, Setembro de 1963. N. A. 16 PRIMEIRA PARTE FILOSOFIA ANTIGA ORIGENS E CARÁCTER DA FILOSOFIA GREGA § 1. PRETENSA ORIGEM ORIENTAL Uma tradição que remonta aos filósofos judaicos de alexandria (século I a.C.) afirma que a filosofia derivou do Oriente. Os vrincivais filósofos da Grécia teriam extraído da doutrina hebraica, egípcia, babilónica e indiana não somente as descobertas científicas mas também as concepções filosóficas mais pessoais. Esta opinião divulgou-se progressivamente nos séculos seguintes; culminou na opinião do neo-pitagórico Numénio, que chegou a chamar a Platão um "Moisés ateicizante"; e passou dele aos escritores cristãos. Contudo, não encontra ela qualquer fundamento nos testemunhos mais antigos. Fala-se, é verdade, de viagens de vários filósofos ao Oriente, especialmente pela Pérsia teria viajado Pitágoras; Demócrito, pelo Oriente; pelo Egipto, segundo testemunhos mais verosímeis, Platão. Mas o próprio Platão (Rep., IV, 435 e) contrapõe o espírito científico dos Gregos ao amor da utilidade, carac19 terístico dos Egípcios e dos Fenicios; e assim exclui da mesma maneira clara a possibilidade de que se tenha podido e se possa trazer inspiração para a filosofia das concepções daqueles povos. Por outro lado, as indicações cronológicas que se têm sobre as doutrinas filosóficas e religiosas do Oriente são tão vagas, que estabelecer a prioridade cronológica de tais doutrinas sobre as correspondentes doutrinas gregas deve ter-se por impossível. Mais verosímil se apresenta, à primeira vista, a derivação da ciência grega do Oriente. Segundo algumas opiniões, a geometria teria nascido no Egipto da necessidade de medir a terra e distribui-la pelos seus proprietários depois das periódicas inundações do Nilo.
Segundo outras tradições, a astronomia teria nascido com os Babilónios e a aritmética no próprio Egipto, Mas os Babilónios cultivaram a astronomia com vista às suas crenças astrológicas, e a geometria e a aritmética conservaram entre os Egípcios um carácter prático, perfeitamente distinto do carácter especulativo e científico que estas doutrinas revestiram entre os gregos. Na realidade, aquela tradição, nascida tão tarde na história da filosofia grega, foi sugerida, numa época dominada pelo interesse religioso, pela crença que os povos orientais estivessem em poder de uma sabedoria originária e pelo desejo de ligar a tal sabedoria às principais manifestações do pensamento grego. Também entre os historiadores modernos a origem oriental da filosofia grega é defendida com cores que tendem a acentuar o seu carácter religioso e, de aqui, a sua continuidade com as grandes religiões do Oriente. A observação decisiva que cumpre fazer a propósito é que, embora se presuma (pois que provas decisivas não existem) a derivação oriental de esta ou aquela doutrina da Grécia antiga, isto não implica ainda a origem oriental da filosofia grega. 20 ----A -sabedoria oriental é essencialmente religiosa: é ela o património de uma casta sacerdotal cuja única preocupação é a de defendê-la e transmiti-la na sua pureza. O único fundamento da sabedoria oriental é a tradição. A filosofia grega, ao invés, é pesquisa. Esta nasce de um acto fundamental de liberdade frente à tradição, ao costume e a toda a crença aceite como tal. O seu fundamento é que o homem não possui a sabedoria mas deve procurá-la: não é sofia mas filosofia, amor da sabedoria, perseguição directa no encalço da verdade para lá dos costumes, das tradições e das aparências. Com isto, o próprio problema da relação entre filosofia greco-cristã-oriental perde muito da sua importância. Pode admitir-se como possível ou pelo menos verosímil que o povo grego tenha inferido, dos povos orientais, com os quais mantinha desde séculos relações e trocas comerciais, noções e haja encontrado o que esses povos conservaram na sua tradição religiosa ou haviam descoberto por via das necessidades da vida. Mas isto não impede que a filosofia, e em geral a investigação científica, se manifeste nos gregos com características originais, que fazem dela um fenómeno único no mundo antigo e o antecedente histórico da civilização (cultura?) ocidental, de que constitui ainda uma das componentes fundamentais. Em primeiro lugar, a filosofia não é de facto na Grécia o património ou o privilégio de uma casta privilegiada. Todo o homem, segundo os gregos, pode filosofar, porque o homem é "animal racional" e a sua racionalidade significa a possibilidade de procurar, de maneira autónoma, a verdade. As palavras com que inicia a Metafísica de Aristóteles: "Todos os homens tendem, por natureza, para o saber" exprimem bem este conceito, uma vez que "tendem" quer dizer que não só o desejam, mas 21 que podem consegui-lo. Em segundo lugar, e como consequência disto, a filosofia grega é investigação racional, isto é, autónoma, que não assenta numa verdade já manifestada ou revelada, mas somente na força da razão e nesta reconhece o seu guia. O seu limite polémico é habitualmente a opinião corrente, a tradição, o mito, para além dos quais intenta prosseguir; e até quando termina por uma confirmação da tradição, o valor desta confirmação deriva unicamente da força racional do discurso filosófico. § 2. FIlOSOFIA: NOME E CONCEITO
Estas características são próprias de todas as manifestações da filosofia grega e estão inscritas na própria etimologia da palavra, que significa "amor da sabedoria". A própria palavra aparece relativamente tarde. Segundo uma tradição muito conhecida, referida em as Tusculanas de Cícero (V, 9), Pitágoras teria sido o primeiro a usar a palavra filosofia em um significado específico. Comparava ele a vida às grandes festas de Olímpia, aonde uns convergiam por motivo de negócios, outros para participar nas corridas, outros ainda para divertir-se e, por fim, uns somente para ver o que acontece: estes últimos são os filósofos. Aqui está sublinhada a distinção entre a contemplação desinteressada própria dos filósofos e a azáfama interesseira dos outros homens. Mas a narrativa de Cícero provém de um escrito de Heraclides do Ponto (Dióg. L, Proemimm, 12) e pretende simplesmente acentuar o carácter contemplativo que foi considerado pelo próprio Aristóteles essencial à filosofia. Mas, na Grécia, a filosofia teve ainda o valor de uma sageza que deve guiar todas as acções da vida. Em tal sageza se haviam inspirado os Sete 22 Sábios que, no entanto, eram também chamados "sofistas" como "sofista" era chamado Pitágoras. Não no sentido de contemplação, mas no sentido mais genérico de pesquisa desinteressada, usa Heródoto a palavra quando fez o Rei Creso dizer a Sólon. (Heródoto, J, 20); "Tenho ouvido falar das viagens que, filosofando, empreendeste para ver muitos países"; e da mesma forma Tucidides, quando (11, 40) fez dizer a Péricles de si e dos Atenienses: "Nós amamos o belo com simplicidade e filosofamos sem receio". O filosofar sem receio exprime a autonomia da pesquisa racional em que consiste a filosofia. como veremos no tema posterior a palavra filosofia implica dois significados. O primeiro e mais geral é o de pesquisa autónoma ou racional, seja qual for o campo em que se desenvolva; neste sentido, todas as ciências fazem parte da filosofia. o Segundo significado, mais específico, indica uma pesquisa particular que de algum modo é fundamental para as outras mas não as contém. Os dois significados estão ligados nas sentenças de Heraclito (fr., 35 Díels): "É necessário que os homens filósofos sejam bons indagadores (historas) de muitas coisas". Este duplo significado encontra-se claramente em Platão onde o termo vem usado para indicar a geometria, a música e as outras disciplinas do mesmo género, sobretudo na sua função educativa (Teet., 143 d; Tím., 88 c); e por outro lado a filosofia vem contraposta à sofia, à sabedoria que é própria da divindade. e à doxa, à opinião, na qual se detém quem não se preocupa com indagar o verdadeiro ser (Fedr., 278 d; Rep., 480 a). A mesma bivalência se acha em Aristóteles para quem a filosofia é, como filosofia prima, a ciência do ser enquanto ser; mas abrange, também em seguida, as outras ciências teoréticas, a matemática e a física, e até a ética (Ét. Nic., 1, 4, 23 1906 b, ^31). Esta bivalencia de significado revela melhor do que qualquer outra coisa o significado originário e autêntico que os gregos atribuíam à palavra. Este significado está já incluído na etimologia, e é o de pesquisa. Toda a ciência ou disciplina humana, enquanto pesquisa autónoma, é filosofia. Mas é, logo a seguir, filosofia em sentido eminente e próprio a pesquisa que é consciente de si, a pesquisa que põe o próprio problema da pesquisa e esclarece por isso o seu próprio valor nas confrontações feitas pelo homem. Se toda a disciplina é pesquisa e como tal filosofia, em sentido próprio e técnico a filosofia é sómente o problema da pesquisa e do seu valor para o homem. É neste sentido que Platão diz que a filosofia é a ciência pela qual não sómente se sabe, mas se sabe ainda fazer um uso vantajoso do que se sabe (Eutid., 288 c-290 d). Aristóteles, por seu turno, acentua a supremacia da filosofia prima que é a metafisica nas confrontações com a filosofia segunda
e terceira que são a física e a matemática. E num sentido análogo a filosofia é, para os Estóicos, o esforço (cpitedeusis) para a sabedoria (Sexto E. Adv. Math., IX, 13); para os Epicuristas é a actividade (enorgheia) que torna feliz a vida (lb., X1, 1 69). Em qualquer caso, a filosofia é um saber indispensável para o encaminhamento e a felicidade da vida humana. § 3. PRIMóRDIOS DA FILOSOFIA GREGA: OS MITóLOGOS, OS MISTÉRIOS OS SETE SáBIOS, OS POETAS Os primórdios da filosofia grega devem procurar-se na própria Grécia:(nos primeiros sinais, em que a filosofia como tal i, é, como pesquisa), começa a aparecer nas cosmologias míticas dos 24 poetas, nas doutrinas dos mistérios, nos apotDgrnas dos Sete Sábios e sobretudo na reflexão ético-política dos poetas. Odocumento da cosmologia mítica mais antigo entre os gregos é a Teogonia de Hesíodo, na qual decerto confluíram antigas tradições. O próprio Aristóteles (Met., 1, 4; 984 b, 29) diz que Hesíodo foi, provàvelmente, o primeiro a procurar um princípio das coisas quando disse: "primeiro que tudo foi o caos, depois a terra de amplo seio... e o amor, que sobressai entre os deuses imortais" (Teog., 116 sgs.). De natureza filosófica se apresenta aqui o problema do estado originário de que as coisas saíram e da força que as produziu, Mas se o problema é filosófico, a resposta é mítica. O caos ou abismo bocejante, a terra, o amor, etc. são personificados em entidades míticas. Depois de Hesíodo, o primeiro poeta de quem conhecemos a cosmologia é Ferecides de Siros, contemporâneo de Anaximandro, nascido provàvelmente por alturas de 600-596 a.C.. Diz ele que primeiro que todas as coisas e desde sempre havia Zeus, Cronos e Ctonos. Ctonos era a terra, Cronos o tempo, Zeus o céu. Zeus transformado em Eros, ou seja no amor, procede à construção do Mundo. Há neste mito a primeira distinção entre a matéria e a força organizadora do mundo. Observa-se uma ulterior afirmação da exigência filosófica na religião dos mistérios espalhados pela Grécia no dealbar do século VI a.C.. A esta religião pertenciam o culto de Dioniso, que vinha da Trácia, o culto de Deméter, cujos mistérios se celebraram em Elêusis, e sobretudo o orfismo. O orfismo era também dedicado ao culto de Dioniso, mas punha em uma revelação a origem da autoridade religiosa e estava organizado em comunidades. A revelação era atribuída ao trácio ORFEu, que descera ao Hades; e a finalidade dos 25 ritos que a comunidade celebrava era a de purificar a alma do Homem, iniciada para subtraí-la à "roda dos nascimentos", isto é, à transmigração para o corpo de outros seres viventes. O ensinamento fundamental que o orfismo contém- é o conceito da ciência e em geral da actividade do pensamento como um caminho de vida, ou seja como uma pesquisa que conduz à verdadeira vida do homem. Do mesmo modo devia depois conceber a filosofia Platão, que no Fédon se filia explicitamente nas crenças órficas. Ao lado dos primeiros lampejos da filosofia na cosmologia do mito e nos mistérios está a
primeira apresentação da reflexão moral na lenda dos Sete Sábios. São estes diversamente enumerados pelos escritores antigos, mas quatro deles, Tales, Bias, Pítaco e Sólon estão incluídos em todas as listas. Platão, que pela primeira vez os enumerou, acrescenta a estes quatro Cleóbulo, Míson e Chilon (Prot., 343 a). A eles se atribuem breves sentenças morais (de aí terem ainda sido chamados Gnomas), algumas das quais se tornaram famosas. A Tales se atribui a frase "Conhece-te a ti mesmo" (Dióg. L., 1, 40). A Bias a frase "a maioria é perversa" (1b., 1, 88) e esta outra "O cargo revela o homem" (Alist., Ét. Nic., V, 1,1029 b, 1). A Pítaco a frase "Sabe aproveitar a oportunidade" (Dióg. L., 1, 79). A Sólon as frases "Toma a peito as coisas importantes" e "Nada em excesso" (1b., 1, 60,63). A Cleóbulo a frase "A medida é coisa óptima" (1b., 1, 93). A Míson a frase "Indaga as palavras a partir das coisas, não as coisas a partir das palavras" (1b., 1, 108). A Chílon as frases "Cuida de ti mesmo" e "Não desejes o impossível" (1b., I, 70). Como se vê, estas frases são todas de natureza prática ou moral e demonstram que a primeira reflexão filosófica na Grécia foi direita à sageza da vida mais do que à pura contemplação 26 (ao contrário do que preferiu um Aristóteles). Estas frases preludiam uma verdadeira e peculiar investigação sobre a conduta do homem no mundo. E não é por acaso que o primeiro dos Sete Sábios, Tales, é ainda considerado o primeiro autêntico representante da filosofia grega. Mas o clima em que pôde nascer e florescer a poesia e a reflexão filosófica grega foi preparado pela reflexão moral dos poetas que elaborou, na Grécia, conceitos fundamentais que deveriam servir aos filósofos L para a
ceito de uma
P interpretação do mundo
con
ão un lei que dá unidade ao mundo umano encontra-se pela primeira vez em Homero: Toda a Odisseia é dominada pela crença em úha lei de justiça, de que os deuses são guardiões e garantes, lei que determina uma ordem providencial nas vicissitudes humanas, pela qual o justo triunfo e o injusto é punido. Em Hesíodo esta lei vem personificada na Dikê, filha de Zeus, que tem assento junto do pai e vigia para que sejam unidos os homens que praticam a injustiça. A infracção a esta lei aparece no mesmo Hesíodo como arrogância (hybris) devida ao desenfreamento das paixões e em geral às forças irracionais: assim o qualifica o próprio Hesíodo (Os trabalhos e os dias, 252, segs., 267 segs.) e ainda o Arquíloco (fr. 36, 84), Mimnermo (fr. 9, ló) e Teógnis (v. 1. 40, 44, 291, 543, 1103). Sólon afirma com grande energia a infalibilidade da punição que fere aquele que infringe a norma de justiça, sobre que se funda a vida em sociedade: ainda quando o culpado se subtrai à punição, esta atinge infalivelmente os seus descendentes. A aparente desordem das vicissitudes humanas, pela qual a Moira ou fortuna parece ferir os inocentes, justificase, segundo Sólon (fr. 34), pela necessidade de conter dentro dos justos limites os desejos humanos descomedidos e de afastar o homem de qualquer excesso. De maneira que a lei de justiça é 27
também norma de medida; e Sólon exprime num fragmento famoso (fr. 16) a convicção moral mais enraizada nos gregos: "A coisa mais difícil de todas é captar a invisível medida da sageza, a única que traz em si os limites de todas as coisas". Ésquilo é enfim o profeta religioso desta lei universal de justiça de que a sua tragédia quer exprimir o triunfo. Portanto, antes que a filosofia descobrisse e justificasse a unidade da lei por sob a multiplicidade dispersa dos fenómenos naturais, a poesia grega descobriu e justificou a unidade da lei por sob as vicissitudes aparentemente desordenadas e mutáveis da vida humana em sociedade. Veremos que a especulação dos primeiros físicos não fez mais do que procurar no mundo da natureza esta mesma unidade normativa, que os poetas haviam perseguido no mundo dos homens § 4. AS ESCOLAS FILOSóFICAS Desde o início a pesquisa filosófica foi na Grécia uma pesquisa associada. Uma escola não reunia os seus adeptos somente pelas exigências de um ensino regular: não é provável que tal ensino tenha existido nas escolas filosóficas da Grécia antiga senão com Aristóteles. Os alunos de uma escola eram chamados "companheiros (etairoi). Juntavam-se para viver uma "vida comum" e estabeleciam entre si não só uma solidariedade de pensamento mas também de costumes e de vida, numa troca contínua de dúvidas, de dificuldades e de investigações. O caso da escola pitagórica, que foi ao mesmo tempo uma escola filosófica e uma associação religiosa e política, é certamente único; e por outro lado este traço do pitagorismo foi por isso mesmo mais uma fraqueza que uma força. Contudo, todas as grandes personalidades da filosofia grega são os funda28 dores de uma escola que é um centro de investigação; a obra das personalidades menores vem juntar-se à doutrina fundamental e contribui para formar o património comum da escola. Duvidou-se que tivessem formado uma escola os filósofos de Mileto; mas há para eles o testemunho explícito de Teofrasto que fala de Anaximandro como "concidadão e companheiro (etairos)" de Tales. O próprio Platão nos fala dos heraclitianos (Teet., 1792) e dos anaxagóricos (Crát., 409 b); e em o Sofista <242d) o estrangeiro eleata fala da sua escola como ainda existente em Eleia. A Academia platónica teve portanto uma história de nove séculos. Esta característica da filosofia grega não é acidental Já que a pesquisa filosófica não encerrava, segundo os gregos, o indivíduo em si próprio; exigia, bem ao contrário, uma concordância de esforços, uma comunicação incessante entre os homens que dela faziam o objectivo fundamental da vida e determinava por isso uma solidariedade constante e efectiva entre os que a ela se dedicavam,.' De aqui provém o interesse constante dos filósofos gregos pela política, isto é pela vida em sociedade. A tradição conservou-nos, notícia deste interesse mesmo na referência àqueles de cuja vida não nos dá mais que essas informações. Tales, Anaximandro e Pitágoras foram homens políticos. De Parménides se conta que deu as leis à sua cidade e de Zenão que pereceu vítima da tentativa para libertar os seus concidadãos de um tirano. Empédocles restaurou a democracia em Agrigento; Arquitos foi um chefe de estado e Melissos um almirante. O interesse político exercitou portanto, como veremos, uma função dominante na especulação de Platão.
29 § 5. PERÍODOS DA FILOSOFIA GREGA O seu próprio carácter de pesquisa autónoma na qual cada um está igualmente empenhado e da qual pode e deve cada um esperar o cumprimento da sua personalidade, torna difícil dividir em períódos o curso da filosofia grega. Todavia, a organização da pesquisa nas escolas e as relações necessariamente existentes entre escolas contemporâneas, que, mesmo quando são polémicas, se batem em terreno comum, permitem distinguir, no curso da filosofia grega, um certo número de períodos, cada um dos quais determinado pela escolha de POSIÇãO no problema fundamental da pesquisa. Se considerarmos o problema em torno do qual virá sucessivamente gravitar a pesquisa, podem distinguir-se cinco períodos: cosmológico, antropológico, ontológico, ético, religioso. 1. Período cosmolÓgico que compreende a escolas pré-socráticas, com excepção dos sofistas,_ dominado pelo problema de perseguir a unidade que garante a ordem do mundo e a possibilidade do conhecimento humano 2. período antropológico que compreende os sofistas e Sócrates, é dominado pelo problema de perseguir a unidade do homem em si mesmo e com os outros homens, como fundamento e possibilidade da -formação do indivíduo e da harmonia da vida em sociedade 3. período lógico, que compreende Platão e Aristóteles, é dominado pelo problema de perseguir na relação entre o homem e o ser a condição e a possibilidade do valor do homem como tal e da validade do ser como t.Este período, que é o da plena maturidade do pensamento grego, torna a propor na sua síntese os problemas dos dois períodos precedentes. 30 4. O período ético, que compreende o estoicismo, o epicurismo, o cepticismo--C o eclectismo, é dominado pelo problema da conduta do homem e é caracterizado pela diminuta consciência do valor teorético da pesquisa. 5. O período religioso, que compreende as escolas neoplatónicas e suas afins, é dominado pelo problema de encontrar para o homem a via da reunião com Deus, considerada como a única via de salvação. Estes períodos não representam rígidas divisões cronológicas: não servem para outra coisa que não seja para dar um quadro geral e resumido do nascimento, do desenvolvimento e da decadência da pesquisa filosófica na Grécia antiga. § 6. FONTES DA FILOSOFIA GREGA As fontes da filosofia grega são constituídas: I. Pelas obras e fragmentos dos filósofos. Platão é o primeiro de quem -nos ficaram as obras inteiras. Temos muitas obras de Aristóteles. De todos os outros não nos ficaram mais que fragmentos mais ou menos extensos. 111. Pelos testemunhos dos escritores posteriores. As obras fundamentais de que se extraem tais testemunhos são as seguintes: a) No que respeita à filosofia pré-socrática são
precisas alusões conservadas nas obras de Platão e de Aristóteles. Particularmente Aristóteles deu-nos no primeiro livro da Metafísica o primeiro ensaio de historiografia filosófica. Além disso, referências às outras doutrinas são muito frequentes em todos os seus escritos. 31 b) Os doxógrafos, quer dizer, Os escritores pertencentes ao período tardio da filosofia grega, que referiram as opiniões dos vários filósofos. O primeiro destes doxógrafos, que é ainda fonte de quase todos os outros, é Teofrasto, autor das opiniões físicas de que nos resta um capítulo e outros fragmentos em o Comentário de Simplício (séc. VI d.C.) à Física de Aristóteles. São ainda doxografias muito importantes: os Placita Philosophownena atribuídos a Plutarco e as Éclogas físicas de João Estobeu (séc. V d.C.). Provavelmente (como o demonstrou Diels) ambos bebiam na mesma fonte: os Placita de Aécio, que procediam por via indirecta, isto é, em segunda mão, das Opiniões de Teofrasto. Outro doxógrafo é Cícero, que nas suas obras expõe doutrinas de numerosos filósofos gregos, porém todas conhecidas em segunda e terceira mão. Para a biografia dos filósofos a mais importante doxografia é o primeiro livro da Refutação de todas as heresias de Hipólito (séc. III d.C.), que fora em primeiro lugar falsamente atribuída a Diógenes com o título de Philosophonmena. A obra de Diógenes Laércio (séc. III d.C.). Vidas e Doutrinas dos Filósofos, em 10 livros, que chegou inteira até nós, é de importância fundamental para a história do pensamento grego. Trata-se de uma história de cada uma das escolas filosóficas, segundo o método das chamadas Sucessões (Diadochai) que já tinha sido praticado por Socião de Alexandria (séc. II a.C.) e por outros cujas obras têm andado perdidas. A obra de Diógenes Laércio contém duas doxografias distintas: uma biográfica e anedótica, a outra expositiva. A parte biográfica é um amontoado de anedotas e de notícias acumuladas ao acaso; apesar disso contém informações preciosas. 32 No que respeita à cronologia foi fundador desta Eratóstenes de Cirene (séc. III a.C.); mas as suas Cronografias foram suplantadas pela versão em trímetros jâmbicos que delas fez Apolodoro de Atenas (por volta de 140 a.C.) com o título de Crónica. A época de cada filósofo é indicada pela sua acmé ou florescimento que se faz coincidir com 40 anos de idade; e as outras datas são calculadas com referência a esta última. Finalmente, outras indicações se colhem nas obras dos escritores que discutiram criticamente as doutrinas dos filósofos gregos. Assim Plutarco na sua polémica contra o estoicismo e o epicurismo, nos dá uma exposição destas doutrinas. Sexto Empírico assenta o seu cepticismo na critica e na exposição dos sistemas dogmáticos. E os escritores cristãos dos primeiros séculos, combatendo a filosofia pagã, fornecem-nos outras indicações em virtude das quais chegaram às nossas mãos fragmentos e testemunhos preciosos de obras que continuam perdidas. Outras colhem-se nos comentários de Proclo e de Simplício a Platão e a Aristóteles, nas Noites Á ticas. de Affio Gélio (por volta de 150 a.C.), em Ateneu (por volta de 200 a.C.) e em Eliano (ao redor de 200 a.C.). NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 1. Sobre a pretensa origem oriental da filosofia grega: ZELLER, Philosophie der Griochen, cap. 2; GompERz, Griechische Denker, I, cap. 1-3, trad. frane., p. 103 segs.; BuRNET Earty Greek Philosophy, Intr. X-XII, trad. frane. com o título Aurore de Ia Phil. grecque, p. 17 segs. (Neste volume, ZELLER virá citado a 6.1 edição ao cuidado de Nestle; e de GomPERZ e BURNET as traduções francesas acima Indicadas). Para mais Indicações bibliográficas veja-se a longa nota acrescentada por Mondolfo à sua tradução 33 Italiana da cit. ob. de ZELLER, Florença, 132, vol. 1, pág. 63-99. § 3. Os fragmentos dos mitólogos, dos Órficos e dos Sete Sábios ~o reunidos em DIEU, Fragmente der Vor8okratiker, 5.4 edição 1934, vol, I; SNELL, Leben und Meinungen der Sieber Wei8en. MiInchen, 1943. -KERN, Orphicorum fragmenta, Berlim, 1922: OuVHMI, La~lae auroae orphicae, Bona, 1915; ED., Civiltá greca nell'Italia meridionale, Nápoles, 1931; Orphei Hymni, edit. Gullermo Quandt, Berlim, 1941. § 4. Sobre o contributo da poesia para a elaboração dos Conceitos morais fundamentais: MAX WUNT, Gesch. der gricch. Ethik, Leipzig, 1908, vol. I, cap. 1-2; JAEGER, Pa~, tradução Italiana, Florença, 1936, livro I; SNELL, Die Entdeckung des Geistee, trad. ital, La cultura greca e te origini del pe~ro europeo, Turim, 1951. § 5. Sobre a periodização da filosofia grega, vejam-se indicações bibliográficas na nota de Mondolfo a ZELLER, vol. I, pág. 375-384. § 6. Fragmentos: MULLACH, Fragmenta philosophorum graecorum, 3 vol., Paris, 1860, 1867, 1881; DIELS, Poêtarum philosophorum fragmenta, Berlim, 1901. Os fragmentos dos pré-socráticoa: DIELS. Die Fragmente der V<>r8okratiker, 5.1 edição, ao cuidado de KrsÈn , Berlim, 1R34. - DAL PRA, La atoriografia filosofica antica, Milão, 19W. Os doxógrafos foram recolhidos e comentados por DIELS, Doxographi Gracci, Berlim, 1879, que contém as obras, ou os fragmentos de obras, de Aécio (Plutarco-"tobeu) Ario Didimo, Teofrasto, Cícero (livro I do De %atura deorum), FIlodemo, Mpólito, Plutarco, Epifâneo, Galeno, Hermias. Sobre as fontes da fil. grega: UEBERWEG-PRAECHTER, PhiJ. der Altertums, Berlim, 1926, 5 4.; Mondolfo em 7--- , vol. I, p. 25-33. 34 III A ESCOLA JÓNICA 1. CARÁCTER DA FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA A filosofia pré-socrática até aos sofistas é dominada pelo problema cosmológico, mas não exclui o homem da sua consideração; mas no homem vê somente uma parte ou um elemento da natureza, não ainda o centro de um problema específico. Para os présocráticos, os mesmos princípios que explicam a constituição do mundo físico, explicam a construção do homem. O reconhecimento do carácter especifico da existência humana é-
lhes alheio e alheio é, por Isso, o problema do que o homem é na sua subjectividade como princípio autónomo da pesquisa. O escopo da filosofia pré-socrática é o de pedir e reconhecer, para lá das aparências múltiplas e continuamente mutáveis da natureza, a unidade que faz da própria natureza um mundo: a única substância que constitui o seu ser, a única lei que regula o seu devir. A substância é para os pré-socráticos a matéria de que todas as 35 coisas se compõem; mas é, também a força que explica a sua composição, do seu nascimento, a sua morte, e a sua perpétua mudança. 'Ela é princípio não só no sentido de explicar a sua origem mas ainda e sobretudo no sentido que torna inteligível e reconduz à unidade aquela sua multiplicidade e mutabilidade que aparece à primeira observação tão rebelde a toda a consideração unitária. Do que deriva o carácter activo e dinâmico que a natureza, a physis, tem para os pré-socráticos: ela não é a substância na sua imobilidade, mas a substância como princípio de acção e de inteligibilidade de tudo o que é múltiplo e em devir. Do que deriva ainda o chamado hilozoísmo dos pré-socráticos: a convicção implícita de que a substância primordial corpórea tinha em si uma força que a fazia mover e viver. A filosofia pré-socrática, não obstante a simplicidade do seu tema especulativo e o primitivismo materialista de muitas das suas concepções, adquiriu pela primeira vez para a especulação a possibilidade de conceber a natureza como um mundo e pôs como fundamento desta possibilidade a substância, concebida como princípio do ser e do devir. Ora- que estas conquistas respeitem exclusivamente ao mundo físico é um facto indubitável; mas é igualmente indubitável que elas arrastam consigo, pelo menos implicitamente, outras tantas conquistas que concernem ao mundo próprio do homem e à sua vida interior. O homem não pode voltar-se para a investigação do mundo como objectividade, sem tornar-se consciente da sua subjectividade; o reconhecimento do mundo como outro em relação a si é condicionado pelo reconhecimento de si como eu; e reciprocamente. O homem não pode dirigir-se à investigação da unidade dos fenómenos externos, se não sentir o valor da unidade na sua vida e nas suas relações com os outros homens. 36 O homem não pode reconhecer uma substância que constitua o ser e o princípio das coisas externas senão enquanto reconhecer semelhantemente o ser e a substância da sua existência individual ou em sociedade. A investigação dirigida para o mundo objectivo está sempre unida à investigação dirigida para o mundo próprio do homem. Esta conexão torna-se clara em Heraclito. O problema do mundo físico é por ele posto em unidade essencial com o problema do eu; e toda a conquista naquele campo se lhe apresenta condicionada pela investigação dirigida para si mesmo. "Estudei-me a mim mesmo" diz ele (fr. 101, Diels). À excepção de Heraclito, todavia, o problema para que intencionalmente se dirige a pesquisa dos pré-socráticos é o problema cosmológico: tudo o que a pesquisa dirigida para este problema implica no homem e para o homem continua inexprimido e caberá ao período seguinte da filosofia grega trazê-lo à luz. O carácter de uma filosofia é determinado pela natureza do seu problema; e não há dúvida que o problema dominante na filosofia pré-socrática seja o cosmológico. A tese apresentada pelos críticos modernos (em contraposição polémica com a de Zeller, do puro carácter naturalista da filosofia pré-socrática) de uma inspiração mística de tal filosofia, inspiração de que ela teria trazido a sua tendência para considerar
antropomorficamente o universo físico, funda-se em aproximações arbitrárias que não têm base histórica. Esta tese encontra por outro lado as suas origens na última fase da filosofia grega, que, para a sua inspiração religiosa, quer fundar-se numa sabedoria revelada e garantida pela tradição, e precisamente daquela fase recolhe os testemunhos sobre que se funda a pouca, verosimilhança que possui. Mas é sabido que neopitagóricos, neoplatónicos, etc., fabricavam os testemunhos que deviam servir para demonstrar o carácter religioso, tradi37 cional das suas doutrinas. E é impossível basear todo o desenvolvimento da filosofia grega nos seus próprios pressupostos: especialmente quando o mérito mais alto dos primeiros filósofos da Grécia foi o de terem isolado um problema específico e determinado o problema do mundo, saindo da confusão caótica de problemas e de exigências que se entrelaçavam nas primeiras manifestações filosóficas dos poetas e dos profetas mais antigos. ---Os filósofos pré-socráticos realizaram pela primeira vez aquela redução da natureza à objectividade, que é a primeira condição de toda consideração científica da natureza;! e esta redução é exactamente o oposto da confusão entre a natureza e o homem, que é própria do misticismo antigo. Que a pesquisa naturalista implique o sentido da objectividade espiritual ou contribua para o formar, é pois (como se disse) um facto indubitável; mas este facto não é devido a um influxo religioso sobre a filosofia; bem ao contrário é urna conexão que os problemas realizam na própria vida dos filósofos que os debatem. § 8. TALES O fundador da escola jónica é Tales de Mileto, contemporâneo de Sólon e de Creso. A sua acmè, quer dizer o seu nascimento deve remontar a 624-23; a sua morte faz-se cair em 546-45. ,.Tales foi homem político, astrónomo, matemático e físico, além de filósofo-Como homem político, incitou os gregos da Jónia, como narra Heródoto (1, 170), a unirem-se num estado federal com capital em Teo. Como astrónomo, predisse um eclipse solar (provavelmente o de 28 de Maio de 585 a.C.). Como matemático, inventou vários teoremas de geometria. Como físico, descobriu as 38 propriedades do iman. A sua fama de sábio continuamente absorto na especulação é testemunhada pela anedota referida por Platão (Teet., 174 e), que, observando o céu, caiu a um poço, suscitando as risadas de uma criadita trácia. Uma outra anedota referida por Aristóteles (Pol., 1, 11, 1259a) tende, ao invés, a evidenciar a sua habilidade de homem de negócios: prevendo uma belíssima colheita de azeitonas, alugou todos os lagares da região e subalugou-os depois a um preço mais elevado aos próprios donos. Trata-se, provavelmente, de anedotas falsas referidas a Tales mais como a um símbolo e incarnação do sábio que como a uma pessoa. Assim a última (como o próprio Aristóteles observa) procura demonstrar que a ciência não é inútil, mas que em regra os sábios não se servem dela (como poderiam fazê-lo) para enriquecer. Não parece que tenha deixado escritos filosóficos. Devemos a Aristóteles o conhecimento da sua doutrina fundamental (Met., 1, 3, 983b, 20): "Tales diz que o princípio é a água, pelo que --sustentava ainda que a terra está sobre a água; considerava, talvez, prova disso
ver que o alimento de todas as coisas é húmido e que até o quente se gera e vive no húmido; ora aquilo de que tudo se gera é o principio de tudo, Pelo que se ateve a tal conjectura, e ainda por terem os gérmens de todas as coisas uma natureza húmida e ser a água nas coisas húmidas o princípio da sua natureza". Observa Aristóteles que esta crença é antiquíssima. Homero contou que Oceano e Tétis são os princípios da geração. Um só argumento, pois, apresenta Aristóteles como próprio de Tales: que, a terra está sobre a água: e água é aqui substância no seu significado mais simples, como aquilo que está sob (subiectum) e sustém. Um outro argu39 mento (a geração pelo húmido) é adoptado tão só como provável; é talvez conjectura de Aristóteles. Tales imaginava unida à água uma força activa, vivificadora e transformadora: neste sentido, possivelmente, é que ele dizia que "tudo está pleno de Deus" e que o íman tem uma alma porque atrai o ferro. § 9. ANAXIMANDRO Concidadão e contemporâneo de Tales, Anaximandro nasceu em 610-609 (tinha 64 anos quando em 547-46 descobriu a obliquidade do Zodíaco). Foi ainda homem político e astrónomo. É o primeiro autor de escritos filosóficos na Grécia;` a sua obra em prosa Acerca da natureza marca uma etapa notável na especulação cosmológica dos jónicos..Foi ele o primeiro a designar a substância única com o nome de principio (arché e reconhecia este principio não na água ou no ar ou em qualquer outro elemento particular, mas no infinito (ápeiron), isto é, na quantidade infinita da matéria, de que todas as coisas tiram a sua origem e em que todas as coisas se dissolvem quando termina o ciclo que lhe foi estabelecido- por uma lei necessária.' Este princípio infinito engloba, e governa tudo; é por si próprio imortal e indestrutível, divino por conseguinte.' Não o concebe ele como uma amálgama (migma) dos vários elementos corpóreos em que estes estejam compreendidos cada um com as suas qualidades peculiares; mas preferentemente como uma matéria em que os elementos não estão ainda distintos e que por isso, além de infinita, é ainda indefinida (a<)riston) (Diels, Ma). Estas determinações representam já um desenvolvimento e um enriquecimento da cosmologia de Tales. Em primeiro lugar, o carácter indeterminado 40 da substância primordial, que não se identifica com nenhum dos elementos corpóreos, na medida em que permite conceber melhor a derivação destes elementos como outras tantas especificações e determinações dela, imprime na substância todas as características de verdadeira e própria corporeidade, e faz dela uma simples massa quantitativa ou extensa. Sendo a corporeidade de facto ligada à determinação dos elementos particulares, o ápeiron não pode distinguir-se destes senão nos seres privados das determinações que constituem a sua corporeidade sensível e por isso na redução ao infinito espacial. Embora não possa encontrar-se em Anaximandro o conceito de um espaço incorpóreo, a indeterminação do ápeiron, reduzindo-o à espacialidade, faz dele necessariamente um corpo determinado somente pela sua extensão. Ora esta extensão é infinita e como tal englobante e governo do todo (Diels, A15). Estas determinações e sobretudo a primeira fazem da ápeiron uma realidade distinta do mundo e transcendente: aquilo que abraça está sempre fora e para além do que é abraçado, ainda que em relação com ele. " O princípio que Anaximandro estabelece como substância originária -merece pois o nome de "divino". A própria exigência da explicação naturalista Conduz Anaximandro a uma primeira elaboração
filosófica do transcendente e do divino, pela primeira vez subtraído à superstição e ao mito, mas o infinito é ainda aquilo que governa o mundo: é por conseguinte, não só a substância como também a lei do mundo. Primeiro que todos, Anaximandro propôs-se o problema do processo por meio do qual as coisas derivam da substância primordial. Esse processo é a separação. (A substância infinita é animada por um eterno movimento, em virtude do qual se separam dela os contrários: quente e frio, seco e húmido, etc,1 Por meio desta separação geram-se 41 os mundos infinitos, que se sucedem segundo um _,_Ciclo eterno. em todo o mundo, o tempo do nascimento, da duração e da morte está marcado. "Todos os seres têm de pagar uns aos outros o castigo da sua injustiça, segundo a ordem do tempo"] (fr. 1, Diels). Aqui a lei de justiça que Sólon -considerava dominadora do mundo humano, lei que prova a prevaricação e a prepotência, torna-se lei cósmica, lei que regula o nascimento e a morte dos mundos. Mas que injustiça é essa que todos os seres cometem e que todos têm que exprimir? Evidentemente, ela é devida à própria constituição e portanto ao nascimento dos seres, uma vez que nenhum deles pode evitá-la não podendo assim subtrair-se ao castigo. Ora o nascimento é, como se viu, a separação dos seres da substância infinita. Evidentemente, esta separação é a ruptura da unidade, que é própria do infinito; é o suceder da diversidade, e portanto do contraste, lá onde existiam a homogeneidade e a harmonia. É na separação que se determina, pois, a condição própria dos seres finitos: múltiplos diversos e contrastantes entre si, pois que inevitavelmente destinados a pagar com a morte o seu próprio nascimento e a regressar à unidade. Mau grado a distância dos séculos e a escassez das informações remanescentes podemos ainda dar-nos conta, por estes indícios, da grandeza da personalidade filosófica de Anaximandro. Ele fundou a unidade do mundo, não só na unidade da substância, como ainda na unidade da lei que o governa. E viu nesta lei não uma necessidade cega, mas uma forma, de justiça. A unidade do problema cosmológico com o problema humano aflora aqui: Heraclito irá iluminá-la plenamente. Todavia, a própria natureza da substância priinordial conduz Anaximandro a admitir a infinidade dos mundos. Viu-se que infinitos mundos se 42 sucedem segundo um ciclo eterno; mas os mundos são também infinitos contemporaneamente no espaço ou tão só sucessivamente no tempo? Um testemunho de Aécio inclui Anaximandro entre os que admitem mundos inumeráveis que circundam de todos os lados aquele que habitamos; e um testemunho análogo nos dá Simplício, que coloca, ao lado de Anaximandro, Leucipo, Demócrito e Epicuro (Diels, A 17). Cícero (De nat. deor., ]L 10.25), copiando Filodemo, autor de um tratado sobre a religião que se encontrou em Herculano, diz: "A opinião de Anaximandro era que aqueles são divindades que nascem, crescem e morrem a longos intervalos e que estas divindades são mundos inumeráveis". Na realidade é difícil negar que Anaximandro tenha admitido uma infinidade espacial dos mundos pois que se o infinito engloba todos os mundos, deve então ser pensado para além não de um só mundo, mas de outro e ainda de outro.] Só nos confrontos de infinitos mundos pode compreender-se a infinidade da substância primordial, que tudo abraça e transcende. Anaximandro considera de maneira original a forma da terra: esta é um cilindro que paira no meio do mundo sem ser sustentada por coisa alguma, visto que, encontrando-se a igual distância de todas as partes, não é
solicitada por nenhuma destas a mover-se. Quanto aos homens, não são eles os seres originários da natureza. Efectivamente não sabem alimentar-se por si, e não teriam, por isso, podido sobreviver se houvessem nascido da primeira vez como nascem agora. É forçoso que hajam tido origem de outros animais. Nasceram dentro dos peixes e depois de terem sido alimentados, tornados capazes de se protegerem a si mesmos, foram lançados fora e encaminharam-se para terra. Teorias estranhas e primitivas, mas que mostram da 43 maneira mais firme a exigência de procurar uma explicação puramente naturalista do mundo e de se ater aos dados da experiência. § 10. ANAXÍMENES Anaxímenes de Mileto, mais jovem do que Anaximandro e talvez seu discípulo, floresceu por volta de 546-45 e morreu entre 528-25 (63.a Olimpíada).como Tales, reconhece como princípio uma matéria determinada, que é o ar; mas atribui a esta matéria as características do princípio de Anaximandro. Via ainda no ar a origem de todas as coisas: "Assim como a nossa alma, que é ar, nos sustém, assim o sopro e o ar circundam o mundo inteiro" (fr. 2, Diels). O mundo é como um animal gigantesco que respira: e a respiração é a sua vida e a sua alma. Do ar nascem todas as coisas que são, que foram e que Serão, e até os deuses e as coisas divinas. O ar é o princípio do movimento de todas as coisas. Anaxímenes diz-nos ainda o modo como o ar determina a transformação das coisas: este modo é o duplo processo de rarefacção e da condensação: Rarefazendo-se o ar tornase fogo; condensando-se torna-se vento, depois nuvem e, condensando-se mais, água, terra e em seguida pedra. Até o calor e o frio se devem a esse processo: a condensação produz o frio, a rarefacção o calor. Como Anaximandro, Anaximenes admite o devir "Cíclico do mundo; de onde a sua disolução periódica no princípio originário e a sua periódica regeneração a partir dele. Mais tarde a doutrina de Anaxímenes foi defendida por Diógenes de Apolónia, contemporâneo de Anaxágoras. A acção que Anaxágoras atribuía à inteligência, atribuía-a Diógenes ao ar, que tudo 44 invade e, que, com alma e sopro (pneuma) cria nos animais a vida, o movimento e o pensamento. Por conseguinte, o ar é, segundo Diógenes, incriado, iluminado, inteligente e regula e domina tudo. § 11. HERACLITO A especulação dos jónios culmina na doutrina de Heraclito, que pela primeira vez acomete o próprio problema da pesquisa e do homem que a institui. Heraclito de Éfeso pertence à nobreza da sua cidade; foi contemporâneo de Parménides e floresceu como ele por alturas de 504-01 a.C. É autor de uma obra em prosa que foi depois designada com o título habitual Acerca da natureza, constituída por aforismos e sentenças breves e lapidares, nem
sempre claras, donde o apelido de "obscuro". O ponto de partida de Heraclito é a constatação do incessante devir das coisas. O mundo é um fluxo perpétuo: "Não é possível descer duas vezes no mesmo rio nem tocar duas vezes numa substância mortal no mesmo estado, pois que, pela velocidade do movimento, tudo se dissipa e se recompõe de novo, tudo vem e vai" (fr. 91, Diels). A substância, que é o princípio do mundo, deve explicar o devir incessante justamente por meio da extrema mobilidade; Heraclito reconhece-a no fogo. mas pode dizer-se que o fogo perde, na sua doutrina, todo o carácter corpóreo: é um princípio activo, inteligente e criado "Este mundo, que é o mesmo para todos, não foi criado por qualquer dos deuses ou dos homens, mas foi sempre, é e será fogo eternamente vivo que com ordem regular se acende e com ordem regular se extingue" (fr. 30, Diels). A mudança é, por isso, uma saída do fogo ou um regresso ao fogo. "Todas as coisas se trocam pelo 45 fogo e o fogo troca-se por todas, como o ouro se troca pelas mercadorias e as mercadorias pelo ouroi" (fr. 90, Diels). As afirmações de que "este mundo" é eterno e de que a mudança é uma incessante troca pelo fogo excluem evidentemente o conceito. que os Estóicos atribuíram a Heraclito, de uma conflagração universal, em virtude da qual todas as coisas regressariam ao fogo primitivo. De facto, a troca incessante entre as coisas e o fogo não implica que todas se convertam em fogo, tal como a troca entre as mercadorias e o ouro não implica que todas se convertam em ouro. Mas estes fundamentos de uma teoria da natureza são apresentados por Heraclito como o resultado de uma sabedoria difícil de alcançar-se e oculta à maior parte dos homens. Nas palavras que abriam o seu livro, Heraclito, lamentava que os homens não obstante terem escutado o logos, a voz da razão, se esqueçam dele nas palavras e nas acções, pelo que não sabem o que fazem no estado de vigília, como não sabem o que fazem no estado ",de sono (fr. 1, Diels). E ao, longo de toda a obra corria a polémica contra a sageza aparente dos que sabem muitas coisas, mas não têm inteligência de nenhuma: sageza a que se opõe a pesquisa dos filósofos, que essa sim incide sobre objectos múltiplos (fr. 35, Diels), mas recolhe-os todos em unidade (fr. 41, Diels). Héraclito é verdadeiramente o filósofo da pesquisa. Nele, pela primeira vez, a pesquisa filosófica alcança a clareza da sua natureza e dos seus pressupostos. Por alguma razão a própria palavra filosofia é usada eclassificada no seu justo sentido. segundo Heraclito, a própria natureza impõe a pEsquisa: com efeito ela "gosta de ocultarse." (fr. 123, Diels). Ele vê abrir-se à pesquisa o mais vasto horizonte: "Se não esperares, 46 não acharás o inesperado, porque não se Pode achar e é inacessível" (fr. 18, Diels). Mas não se esconde a dificuldade e o risco da pesquisa: "Os que procuram ouro escavam muita terra, mas encontram pouco metal" (fr. 22, Diels)._detémse especialmente nas condições que a tornam possível primeira delas é que o homem examina-se a si mesmo."Procurei-me a mim mesmo", diz ele (fr. 101, Diels). A pesquisa dirigida ao mundo natural é condicionada pela clareza que o homem pode alcançar a respeito do ser que lhe é próprio. A pesquisa interior revela profundidades infinitas: "Tu não encontrarás os confins da alma, caminhes o que caminhares, tão profunda é a sua razão" (fr. 45, Tiels). A pesquisa interior abre ao homem zonas sucessivas de profundidade, que jamais se esgotam: a razão, a lei última do eu, aparece continuamente mais além, em uma profundidade sempre mais
longínqua e ao mesmo tempo sempre mais íntima. Mas esta razão, que é a lei da alma, é ao mesmo tempo lei universal. A segunda e fundamental condição é a comunicação entre os homens: O pensamento é comum a todos segundo Heraclito, (fr. 113, Diels). "É necessário seguir o que é comum a todos porque o que é comum é geral" (fr. 2, Diels). "Quem quiser falar com inteligência deve fortalecer-se com o que é comum a todos, como a cidade se fortalece com a lei, e muito mais. Porque todas as leis humanas se alimentam da única lei divina e esta doutrina tudo o que quer, basta a tudo e tudo supera" (fr. 114 Diels).[O homem deve pois dirigir a pesquisa não só para si mesmo, mas também, e com o mesmo movimento, para aquilo que o liga aos outros, o logos que constitui a mais profunda essência _(;homem individual é ainda o que liga os homens entre si numa comunidade de natureza., Este logos é como a lei para a cidade, mas 47 é ele próprio a lei, lei suprema que tudo rege: o homem individual, a comunidade dos homens e a natureza externa. Ele é, portanto, não só a racionalidade mas o próprio ser do mundo: tal se revela em todos os aspectos da pesquisa. "Heraclito põe constantemente defronte do homem -a alternativa entre o estar acordado e o dormir:! entre o abrir-se, mediante a pesquisa, à comunicação inter-humana, que revela a realidade autêntica do mundo objectivo: e o fechar-se no próprio pensamento isolado, num mundo fictício que não tem comunicação com os outros (fr. 2, 34, 73; 89). O sono é o isolamento do indivíduo, a sua incapacidade de compreender a si mesmo, os outros e o mundo. A vigília é a pesquisa vigilante que não se detém nas aparências, que alcança a realidade da consciência, a comunicação com os outros, e a substância do mundo na única lei (logos) que rege o todo. Esta alternativa estabelece o valor decisivo que a pesquisa possui para o homem. Ela não é só pensamento (noesis) mas também sabedoria da vida (fronesis); ela determina a índole do homem, o ethos, que é o seu próprio destino (fr. 119). Mas Heraclito determinou ainda esta lei de que a pesquisa deve clarificar e aprofundar o significado. Ela é já para os antigos a grande descoberta de Heraclito; isso nos atesta Ffion (Rer. Div. Her., 43): "0 que resulta dos dois contrários é uno, e se o uno se divide, os contrários aparecem. Não é este o princípio que, conforme afirmam os gregos justamente, o seu grande e celebérrimo Heraclito colocava à cabeça da sua filosofia, o princípio que a resume toda e de que ele se gabava como sendo uma nova descoberta?" . A grande descoberta de Heraclito é, pois, que a unidade do princípio criador não é uma unidade idêntica e não exclui a luta, a discórdia, a oposição. Para compreender a lei suprema do ser, o logos que o constitui e 48 governa, é necessário unir o completo e o incompleto, o concorde e o discorde, o harmónico e o dissonante (fr. 10), e dar-se conta de que de todos os opostos brote a unidade e da unidade saem os opostos. "É a mesma coisa o vivo e o morto. o acordado e o dormente, o jovem e o velho: pois que cada um destes opostos transformando-se, é o primeiro" (fr. 88). Como na circunferência todo o ponto é ao mesmo tempo princípio e fim, como o mesmo caminho pode ser percorrido para cima e para baixo (fr. 103, 60), assim todo o contraste supõe uma unidade que constitui o significado vital e racional do próprio
contraste. 00 e é oposto une--se e o que diverge conjuga-se". A luta é a regra do mundo e a guerra é comum geradora e senhora de todas as coisas". Nestas afirmações está contido o ensinamento fundamental de Heraclito, de cujo ensinamento ele deduz que os homens não podem elevar-se senão Por meio de uma longa pesquisa "Os homens não sabem como o que é discorde está em acordo consigo mesmo: harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira" (fr. 51). Como as cordas do arco e as da lira se retesam para reunir e estreitar ao mesmo tempo as extremidades opostas, assim a unidade da substância primordial liga pelo logos os opostos sem os identificar, bem ao contrário opondo-os. A harmonia não é para Heraclito a síntese dos opostos a conciliação e o anulamento das suas oposições; é antes a unidade que submete precisamente as oposições e a torna possível. A Homero, que dissera: "Possa a discórdia desaparecer de entre os deuses e de entre os homens", Heraclito replica: "Homero não se apercebe que pede a destruição do universo; se a sua prece fosse atendida, todas as coisas pereceriam" (Diels, A22): A tensão é uma unidade (isto é, uma relação) que pode 49 encontrar-se somente entre coisas opostas enquanto opostas. A conciliação, a síntese anulá-la-iam. unidade própria do mundo é, segundo Heraclito, uma tensão deste género: não anula nem concilia nem supera o contraste, mas fá-lo existir, e fá-lo compreender, como contraste. Hegel viu em Heraclito o fundador da dialéctica e afirmou que não havia proposição de Heraclito que ele não tivesse acolhido na sua lógica (Geschichte der Phil., ed. Gockler, I. p. 343). Mas Hegel interpretava a doutrina heraclitiana da tensão entre os opostos como conciliação ou harmonia dos próprios opostos. Segundo Heraclito, os opostos estão unidos, é certo, mas nunca conciliados: o seu estado permanente é a guerra. Segundo Hegel, os opostos estão continuamente conciliados e a sua conciliação é também a sua "verdade". Heraclito não é um filósofo optimista que considera (como Hegel) a realidade em paz consigo mesma. É um filósofo por tendência pessimista e amargo (por alguma razão a tradição o representava como "chorão": Hipólito, Refut., 1, 4; Séneca, De Ira, 11, 10, 5, etc.) que considera um sonho ou uma ilusão ignorar a luta e a discórdia de que todas as coisas são constituídas e vivem. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 7. ~re toda a filosofia pré-socrática: RITTER e PRELLER, Historia critica philosophiae gracae, g., edição, 1913, DEvOGEL, Greek philosophy, Leiden, 1950; KAFKA, Die Vorsokratik", Mónaco, 1921; SCHUM, Essai sur ta formation de Ia pensée grecque, Paris; 19a4; CHERNISS, Aristot&s Criticim of Pr"ocratic Philosophy, Baltimore, 1935; REY, La jeunesse de Ia science grecque, Paris, 1933; GOVOTri, I pre-aocratici, Nápoles, IgU; MADDALENA, Sulla cosmoZogia ionica 50 da Tauto ad Bracuto, pdd", 1%0. A &kterp~O ~ca da filosofia, pré~rãUca foi sustentada por C.~ JOEL, Der Ure~g der Naturph~10 gw dom ~to der My&ttk, lena, lgW; M., Ge~cht# der asfikes Phi~Me, J Tubinga, IM. Mo particularmente importantes: STzNzEL, Die M~phyaik doe Altertuino, M6naco, 1931; JAEGER, Pa~, 3 VOL, trad. ltal., Florença; 1936-59, ID., The Theology of the Barly &reek Ph~hera, Oxford, 1947; GIGON, Der
Uroprung der G~hiochen Phfk8~e. Von H~ bis Porme~, Basilela, 1945; G. S. ~-J. E. RAvEN, The Pnesocratic Ph~hem. A Crit~ H~V with a Setec~ of Texts, Cambridge, 1957. § S. Os fragmentos de Talco in Dm^ cap. li. Sobre Talco além das obras citado : D. R. Dims in "Classical Quarterly>, 1950. 9. Oa fragmentos de Anaximandro in DMU, 12.- W-1 -NES=, 1, 270 sego.; GOMPERZ, I, 55 sega.: BURNET, 52 aep.; Dmi, lu "New Ja~ chen, 1923, 6&76; HEIDEL, in "~Ical Philosophy>, 1912; C. ~N, A. and the 011~ of Greek Co~ Jogy, Nova Iorque, 1960. § 10. Os fragmentos de Anaxímenes in DM CaP- 13.-ZELLEP-MSTLE, 1, 315 ~.; Gom~ I, 62 sega.; BuRNET, 76 sega. Os fragmentos de Diõgenes in D=, cap. 64. -zP-T.T -NEMx, 1, 338 segs.; Gom~, 1, 390 seg.; BuRNET, 406 segs. § li. Os fragmentos de Heraclito in DiEu, cap. 22-72ri-Ta -NMix, 1, 783 sego.; -GomPERz, 1, 6 segs.; BuRNzT, 145 sega.; STENzEL, artig:o na Encicl~a Pauly-Wissowa-Kro11; WALzER; Braclito (frag. e trad. ltal.), Florença, 1939. Uma Interpretação em sentido exístencialista-heidegge~o é a de BRECHT, H~it, Heidelber^ 1936. Um Heraclito criatianizante é apresentado por M~NTINI, Braclito, 51 Turim. 1944; KIRK, Irire in the Cos~g" Spoculat" of Heraclitu&, Mlanneapolls, 1940; HeracUtu8: The Coismic Fragments, 1954; RAus=NBERGzR, Parmen~ und Heraklit, Heidelberg, 1941; DnZER, Weltbild und Sprwhe in Reraklitismus, In "Neue lMld der Antike>, 1942; A. JEANNnM, La pensée d'HdracUte d'Ephè6e, Paris, 1959; H. QUIRING, H., Berlim, 1959; P. H. WHEELWRIGHT, H., Princeton, 1959. 52 lu A ESCOLA PITAGÓRICA § 12. PITÁGORAS A tradição complicou com tantos elementos lendários a figura de Pitágoras que se torna difícil delineá-la na sua realidade histórica. Os apontamentos de Aristóteles limitam-se a poucas e simples doutrinas, referidas as mais das vezes não a Pitágoras mas em geral aos pitagóricos; e se a tradição se enriquece à medida que se afasta no tempo do Pitágoras histórico, isto é sinal evidente que se enriquece com elementos lendários e fictícios, que pouco ou nada têm de histórico. Filho de Mnesarco, Pitágoras nasceu em Samos, provavelmente em 571-70, veio para a Itália em 532-31 e morreu em 497-96 a.C.. Diz-se que fora discípulo de Ferecides de Siros e de Anaximandro e que viajou pelo Egipto e pelos países do Oriente. 56 é certo que emigrou de
Samos para a Grande Grécia e arranjou casa em Crotona onde fundou uma escola que foi também uma associação religiosa e política. A lenda representa Pitágoras 53 como profeta e operador de milagres, a sua doutrina ter-lhe-ia sido transmitida directamente do seu deus protector. Apolo, pela boca da sacerdotisa de Delfos Temistocleia Aristósseno in Dióg. L.. VM, 21). É muito provável que Pitágoras não tenha escrito nada. Aristóteles não conhece, com efeito, nenhum escrito seu; e a afirmação de Jâmblico (Vida de Pít., 199) de que os escritos dos primeiros Pitagóricos até Filolau teriam sido conservados como segredo da escola, vale só como uma prova do facto de que ainda mais tarde não se possuíam escritos autênticos de Pitágoras anteriores a Filolau. Pelo que é muito difícil reconhecer no pitagorismo a parte que pertence ao seu fundador. Uma única doutrina pode com toda a certeza ser-lhe atribuída - (a da sobrevivência da alma depois da morte e à sua transmigração para outros corpos) -----"Segundo esta doutrina, de que se apoderou Platão '(Górg., 493a), o corpo é uma prisão para a alma, que aqui foi encerrada pela divindade para seu castigo. Enquanto a alma estiver no corpo, tem necessidade dele porque só por seu intermédio pode sentir; mas quando estiver fora dele vive num mundo superior uma vida incorpórea nu __e se purificou durante a vida corpórea, a alma regressa a esta vida; no caso contrário, retoma depois da morte a cadeia das transmigrações. § 13. A ESCOlA DE PITÁGORAS -- A Escola de Pitágoras foi uma associação religiosa é política além de filosófica; Parece que a admissão na sociedade estava subordinada a provas rigorosas e à observância de um sigilo de vários anos. Era necessário absterem-se de certos alimentos (carne, favas) e observar o celibato. Além disso, 54 nos graus mais elevados os Pitagóricos viviam em plena comunhão de bens. Mas o fundamento histórico de todas estas notícias é bastante inseguro. Muito provavelmente, o pitagorismo foi uma das muitas seitas que celebravam mistérios a cujos iniciados era imposta uma certa disciplina e certas regras de abstinência, que não deviam ser pesadas. O carácter político da seita determinou uma revolução Contra o governo aristocrático, tradicional nas cidades gregas da Itália meridional, a que davam o seu apoio os Pitagóricos, levantou-se um movimento democrático que provocou revoluções e tumultos. Os Pitagóricos transformaram-se em objecto de perseguições: a sede da sua escola foi incendiada, eles mesmos foram massacrados ou fugiram; e só tempos depois os exilados puderam regressar à pátria. É provável que Pitágoras tenha sido forçado a trocar Crotona pelo Metaponto justamente devido a tais movimentos inssurreccionais. Após a dispersão das comunidades itálicas temos conhecimento de filósofos pitagóricos fora da Grande Grécia. O primeiro deles é Filólau. que era contemporâneo de Sócrates e de Demócrito e viveu em Tebas nos últimos decénios do século V. No mesmo período coloca Platão Timeu de Locres, do qual nem sabemos com segurança se se trata de uma personagem histórica. Na segunda metade do século IV o pitagorismo assumiu nova importância política através da obra de Arquitas, senhor de Tarento, de quem foi hóspede Platão durante a sua viagem à Grande Grécia. Depois de Arquitas a filosofia pitagórica parece ter-se extinguido até na Itália. Junta-se ao pitagorismo, embora não tenha sido (como há quem diga) discípulo de Pitágoras, o médico de Crotona Aleméon, que repete algumas das doutrinas típicas do pitagorismo; mas é sobretudo notável por ter considerado
o cérebro o órgão da vida espiritual do homem. 55 A doutrina dos pitagóricos tinha essencialmente carácter religioso. Pitágoras apresenta-se como o depositário de uma sabedoria que lhe foi transmitida pela divindade; a esta sabedoria não podiam os seus discípulos trazer nenhuma modificação, mas deviam permanecer fiéis à palavra do mestre (ipse dixit). Além disso, eram obrigados a conservar o segredo e por esta razão a escola se cobria de mistérios e de símbolos que ocultam o significado da doutrina aos profanos. § 14. A METAFÍSICA DO NÚMERO A doutrina fundamental dos Pitagóricos é que a Substância das coisas é o número. Segundo Aristóteles (Met., I, 5)os Pitagóricos, que haviam sido os primeiros a fazer progredir a matemática, acreditariam que os princípios da matemática eram os -princípios de todas as coisas; e uma vez que os princípios da matemática são, os números, parece-lhes ver nos números, mais do que no fogo, na terra ou no ar, muitas semelhanças com as coisas que são ou que devem. Aristóteles considera, por isso, que os Pitagóricos atribuíram ao número a função de causa material que os jónios atribuíam a um elemento corpóreo: o que é sem dúvida nenhuma uma indicação precisa para compreender o significado do pitagorismo, mas não é ainda suficiente para torná-lo claro. Na realidade, se os jónios recorriam a uma substância corpórea para explicar a ordem do mundo, os Pitagóricos fazem dessa própria ordem a substância do mundo---O número como substância do mundo é a hipótese da ordem mensurável e A grande descoberta dos Pitagóricos, dos fenómenoS a descoberta que lhes determina a importância na história da ciência ocidental, consiste precisamente 56 na função fundamental que eles reconheceram à medida matemática para compreender a ordem e a unidade do mundo. Veremos que a última fase do pensamento platónico é dominada pela mesma preocupação: encontrar a ciência da medida que é simultaneamente o fundamento do ser em si e da existência humana. Primeiro que todos, os Pitagóricos deram expressão técnica à aspiração fundamental do espírito grego para a medida, aspiração que Sólon exprimia dizendo: "A coisa mais difícil de todas é captar a invisível medida da sageza, a única que traz em si os limites de todas as coisas". Como substância do mundo, o número é o modelo originário das coisas (lb., 1, 6, 987 b, 10) pois que constitui, na sua perfeição ideal, a ordem nelas implícita. O conceito de número como ordem mensurável permite eliminar a ambiguidade entre significado aritmético e significado espacial no número pitagórico, ambiguidade que dominou as interpretações antigas e recentes do pitagorismo. Aristóteles diz que os Pitagóricos trataram os números como grandezas espaciais (1b., XIII, 6, 1080b. 18) e alega ainda a opinião de que as figuras geométricas são os elementos substanciais de que consistem os corpos _,Ib., VII, 2, 1028b, 15). "s seus comentadores vão ainda mais longe, sustentando que os Pitagóricos consideraram as figuras geométricas como princípios da realidade corpórea e reduziram estas figuras a um conjunto de pontos, considerando os pontos como unidades extremas (Alexandre, -20r sua vez, co In met., 1, 6, 687b, 33, ed. Bonitz, p. 41). E alguns intérpretes recentes insistem em
conservar o significado geométrico como o único que permite compreender o princípio pitagórico de que, no fim de contas, tudo é composto de números. Na verdade, se por número se entende a ordem mensurável do mundo, o significado aritmético e o 57 significado geométrico aparecem fundidos, uma vez que a medida supõe sempre uma grandeza espacial ordenada, logo geométrica, e ao mesmo tempo um número que a exprime" Pode dizer-se que o verdadeiro significado do número pitagórico está expresso naquela figura sacra, a tetraktys, por que os Pitagóricos tinham o hábito de jurar e que era a seguinte: A tetraktys representa o número 10 como o triângulo que tem o 4 como lado. A figura constitui, portanto, uma disposição geométrica que exprime um número ou um número expresso numa disposição geométrica: o conceito que ela pressupõe é o da ordem mensurável. - Se o número é a substância das coisas, todas as disposições das coisas se reduzem a oposições --,)entre números.' Ora a oposição fundamental das coisas com respeito à ordem mensurável que constitui a sua substância é a de limite e de ilimitado: o limite, que torna possível a medida, e o ilimitado que a exclui. A esta oposição corresponde a oposição fundamental dos números, par e ímpar: o ímpar corresponde ao limite, o par ao ilimitado. E, com efeito, no número ímpar a unidade díspar constitui o limite do processo de numeração, enquanto no número par este limite falta e o processo fica, por conseguinte, inconcluso. A unidade é, pois, o par/ímpar visto que o acrescentamento dela torna par o ímpar e o ímpar o par. À oposição do ímpar e do par, correspondem nove outras oposições fundamentais e resulta daí a lista seguinte: 1.o Limite, ilimitado; 2.<' ímpar, par; 3.O Unidade, multiplicidade, 4.O Direita, esquerda, 5.1> Macho, fêmea; 58 6.o Quietude. movimento; 7.o Recta, curva; 8.o Luz, trevas; 9.o Bem, mal; 10.- Quadrado, rectângulo. O limite, isto é, a ordem, é a perfeição; por isso, tudo o que se encontra do mesmo lado na série dos opostos é bom, o que se encontra do outro lado é mau. Os Pitagóricos pensam, todavia, que a luta entre os opostos se concilia por meio de um princípio de harmonia; e a harmonia, como vínculo dos mesmos opostos, constitui para eles o significado último das coisas Filolau define a harmonia como "a unidade do múltiplo e a concórdia do discorde" (fr. 10, Diels). Como por toda a parte existe a oposição dos elementos, por toda a parte existe a harmonia; e pode dizer-se outro tanto que tudo é número ou que tudo é harmonia porque todo o número é uma harmonia do ímpar e do par. A natureza da harmonia é em seguida revelada pela música: as relações musicais exprimem do modo mais evidente a natureza da harmonia universal; e são por isso assumidas pelos Pitagóricos como modelo de todas as harmonias do universo (Filo]., fr. 6, Diels). § 15. DOUTRINAS COSMOLóGICAS ANTROPOLóGICAS Mais ou menos em conformidade com a doutrina metafísica do número, os Pitagóricos
desenvolveram uma doutrina cosmológica e antropológica de que somente conhecemos uns escassos elementos. Filolau defendeu o princípio de que a diversidade dos elementos corpóreos (água, ar, fogo, terra e éter) dependia da diversidade da forma geométrica das partículas mais pequeninas que os compunham. Esta doutrina que nele se acha apenas referida, foi precisada no Timeu de Platão que atribui a todos os elementos a constituição de um determinado 59 sólido geométrico; mas esta precisão, tornada possível pelo desenvolvimento dado à geometria sólida pelo matemático Teeteto (ao qual é dedicado o diálogo homónimo de Platão) não era possível a Filolau. [Sobre a formação do mundo, os Pitagóricos pensam que no coração do Universo existe um fogo central, a que chamam a mãe dos deuses, porque dele provém a formação dos corpos celesteS. ou ainda Héstia, lar ou altar do universo, . a cidadela ou o trono de Zeus. porque é o centro ,,de onde emana a força que conserva o mundo Por este fogo central são atraídas as partes màIs próximas do ilimitado que o circunda (espaço ou matéria infinita), partes que são limitadas por esta atracção, e a seguir plasmadas na ordem. Este processo repetido mais vezes conduz à formação do -universo inteiro, no qual por conseguinte, como refere Aristóteles (Met., XII, 7, 1072 b, 28), a perfeição não está no princípio, mas no fim. É notável que, em conformidade com esta cosmogonia, os Pitagóricos cheguem a uma doutrina cosmológIca, que os faz contar entre os primeiros predecessores de Copérnico., O. mundo é por eles concebido como uma esfera, no centro da qual está o fogo originário, e em torno desta movem-se, de ocidente para oriente, dez corpos celestes: o céu das estrelas fixas, que é o mais afastado centro, e em seguida, a distâncias sempre menores, os cinco planetas, o sol, que como uma grande lente recebe os raios do fogo central e reflecte-os em redor, a lua, a terra e a antiterra, um planeta hipotético que os Pitagóricos admitem para completar o sagrado número de dez. O limite extremo do universo seria formado por uma esfera envolvente de fogo correspondente ao fogo celeste. As estrelas estão fixas a esferas transparentes em cuja rotação são arrastadas (Aristóteles, De coelo, H, 13). Uma vez que todos os corpos movidos velozmente produzem um som 60 musical, o mesmo acontece com os corpos celestes: o movimento das esferas produz uma série de sons musicais que formam no seu conjunto uma oitava. Os homens não se apercebem destes sons, porque os sentem ininterruptamente desde o nascimento ou ainda porque os seus ouvidos não são adequados para percebê-los. \Como todas as outras coisas, a alma humana é harmonia: a harmonia entre os elementos contrários -)que compõem o corpo. A em doutrina, que é exposta por Simias, discípulo de Filolau, em o Fédon platónico, o próprio Platão objecta que, como harmonia, a alma não poderia ser imortal porque dependeria dos elementos corpóreos, que se desagregam com a morte. E esta objecção pareceu tão séria, que se negou que a doutrina da alma-harmonia fosse concebida pelos Pitagóricos no sentido explicado por Platão e ela foi reportada, ao invés, à interpretação de Claudiano Mamerto (De statu animae, H, 7; V. § 170) de que a harmonia é antes a convergência, quer dizer o vínculo que une a alma e o corpo. Na verdade, se se sustenta o princípio pitagórico de que a harmonia é número e o número é substância, a objecção platónica perde ,-valor- é a harmonia que determina e condiciona a mescla dos elementos corpóreos, e não esta que é ,-,Condição daque!Ü À doutrina da harmonia se liga a ética pitagórica com a sua definição da justiça. A justiça é um número quadrado; consiste no número plano multiplicado pelo número plano, porque
dá o plano pelo plano. Por isto os Pitagóricos designam-se com o quatro, que é o primeiro número quadrado, ou com o nove, que é o primeiro número quadrado ímpar. No resto, a ética pitagórica é de carácter religioso, sendo o seu preceito fundamental o de seguir a divindade e tornar-se semelhante a ela. As máximas e prescrições de carácter prático que cons61 tituem o património ético da Escola não têm um significado filosófico especial senão talvez na medida em que se começa a entrever nelas a subordinação da acção à contemplação, da moral prática à sabedoria, que conseguirá a vitória com o aristotelismo. O pitagorismo colocou a purificação da alma, que as outras seitas viam nos ritos e práticas propiciatórias. na actividade teorética, a única capaz de subtrair a alma à cadeia dos nascimentos e de a reconduzir à divindade. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 12. Os testemunhos sobre Pitágoras em Dw^ cap. 14. As VU" de Pitágorw, de Porfirio e de Jâmblico são úteis para o conhecimento da lenda de Pitágoras e das doutrinas neopitagóricas e neoplatónicas, mas não para a reconstrução do Pitágoras histórico. Sobre Pitágoras: GomPm, 108 sega.; BuRNET, 93 segs.; ROSTAGNI, Il verbo
, 1914. Os fragmentos de Filolau In DiELs, cap. 44; de Arquitas In DIELS, cap. 47; de Alcméon In DIMs, cap. 24. Sobre estes Pitagõricos: OLivmu, Civi;tâ greca negIt~ ~dionale, Nápoles, 1931; VON MTZ, Pythagorcan Politics in Southem Itaiy, Nova-Iorque, 1940. § 14. Sobre a doutrina pitagórica: ZELLM, 1, 361 segs.; GompERz, 1, 180 segs.; BURNET, 317 segs.FRANK, Plato und die Soge~nten Pythag~, Halle, 1923; RAVEN, Pythagoreiam and Ekatím, Cambridge, 1948; STRAINGE UNG, A Study of the Doctrine of Metempsychosis in Greoce from Pythagora8 to Plato, Princeton, 1948. 62 IV A ESCOLA ELEÁTICA § 16. CARÁCTER DO ELEATISMO 1 a escola jónica não aceitara o devir do mundo.' que se manifesta no nascer, perecer e transformar das coisas, como um facto último e definitivo, porque intentara descobrir, para 4 disso, a unidade e a permanência dá substância. Não negara, todavia, a realidade do devir; Tal negação é obra da escola eleática, que reduz o próprio devir a simples aparência e afirma que só a substância é verdadeiramente Pela primeira vez, com a escola eleática, a substância se torna por si mesma princípio -metafísico: pela primeira vez, é ela dkÍ 1da_'_n_àõ como elemento corpóreo ou como número, mas tão só como substância, como permanência e necessidade do ser enquanto ser. O carácter normativo que a substância
revestia na especulação de Anaximandro, que via nela uma lei cósmica de justiça, carácter que fora expresso pelos Pitagóricos no princípio que o número é o modelo das coisas, surge assumido como a própria definição da subs63 tância por Parménides e pelos seus seguidores. Para eles a substância é o ser que é e deve ser: é o ser na sua unidade e imutabilidade, que faz dele o único objecto do pensamento, o único termo da pesquisa filosófica. O princípio_M eleatismo marca uma etapa decisiva na história da filosofia, Ele pressupõe indubitavelmente a pesquisa cosmológica dos jónicos e dos Pitagóricos, mas subtrai-a ao seu pressuposto naturalista e trá-la pela primeira vez ao plano ontológico em que deveriam enraizar-se os sistemas de Platão e de Aristóteles. § 17. XENÓFANES Segundo os testemunhos de Platão (Sof., 242d) e de Aristóteles (Met., 1, 5, 986 b. 2l) a direcção peculiar da escola eleática fora iniciada por XENóFANEs de Colófon, que foi o primeiro a afirmar a unidade do ser. Estes testemunhos têm sido interpretados no sentido de que Xenófanes tinha fundado a escola eleática; mas esta interpretação vai muito além do significado dos testemunhos e é bastante improvável. O próprio Xenófanes nos diz (fr. 8, Diels), numa poesia composta aos 92 anos, que há 67 anos percorria de ponta a ponta os países da Grécia, e esta vida errante concilia-se mal com uma regular estadia em Eleia, onde teria fundado a escola. A única prova da sua permanência em Eleia é uma anedota contada por Aristóteles (Ret., 11, 26, 1400 b, 5): aos Eleatas que lhe perguntavam se deveriam oferecer sacrifícios e lágrimas a Leucoteia, teria ele retorquido: "Se a julgais uma deusa, -não deveis chorá-la, Se a não julgais tal, não deveis oferecer-lhe sacrifícios". Temse, no entanto, conhecimento de um longo poema em hexâmetros que Xenófanes teria escrito acerca da fundação da sua cidade; mas tudo isto não é bas64 tante para provar a sua regular residência e a instituição de uma escola em Eleia. Não é também certo que tenha exercido a profissão de rapsodo. De seguro, sabemos que escreveu em hexâmetros e compôs elegias e jambos (Silloz) contra Homero e Hesíodo. É improvável, finalmente, que Xenófanes tenha escrito um poema filosófico, de que, com efeito, não se tem conhecimento preciso. Os fragmentos teológicos e filosóficos que se costumam considerar como resíduos desse poema podem muito bem fazer parte das suas sátiras, a cujo conteúdo se referem. O ponto de partida de Xenófanes, é uma crítica decidida ao antropomorfismo religioso tal como se apresenta nas crenças comuns dos gregos e ainda como se acha em Homero e em Hesíodo. "Os homens, diz ele, crêem que os deuses tiveram nascimento e possuem uma voz e um corpo semelhantes aos seus" (fr. 14, Diels). Pelo que os Etíopes representam os seus negros e de narizes achatados, os Trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos, e até os bois, os cavalos e os leões imaginariam. se pudessem, os seus deuses à sua semelhança (fr. 16, 15). Os poetas encorajaram esta crença. Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses até aquilo que é objecto de vergonha e de censura entre os homens: roubos, adultérios e enganos recíprocos. Na realidade, há uma só divindade "que não se assemelha aos homens nem pelo corpo nem pelo pensamento" (fr. 23). Esta única divindade identifica-se com o universo, é um deus-tudo, e tem o atributo da eternidade: não nasce e não morre e é sempre a mesma. Com efeito, se nascesse isso significaria que antes não era, ora o que não é, não pode nascer nem fazer nascer coisa alguma. Xenófanes afirma sob forma teológica a unidade e a imutabilidade do universo. Mas
65 medida parece-lhe difícil de compreender e, assim, pode ser entendida depois de longa pesquisa,,, "Os deuses não revelaram tudo aos homens desde o princípio, mas só procurando encontram, passado tempo, o melhor" (fr. 18). É o reconhecimento explícito da filosofia como pesquisa. Em Xenófanes encontram-se ainda assomos de investigações físicas: ele julga que todas as coisas e até o homem são formadas de terra e água (fr. 29, 33); que tudo vem da terra e tudo à terra regressa; mas estes elementos de um tosco materialismo pouca ligação têm com o seu princípio fundamental. Há um aspecto notável na sua obra de poeta: a sua crítica da virtude agonística dos vencedores de jogos, que era tão altamente estimada pelos gregos, e a afirmação da superioridade da sageza. "Não é justo antepor à sabedoria a mera força corpórea" diz ele (fr. 1). Aqui, à virtude fundada na robustez física aparece contraposta a virtude espiritual do sábio. § 18. PARMÉNIDES O fundador do eleatismo é Parménides. A grandeza de Parménides é desde logo evidente pela admiração que suscitou em Platão: este fez dele a personagem principal do diálogo que marca o ponto crítico do seu pensamento e que é dedicado a ele; aponta-o, em outra parte (Teet., 183 e), como "venerando e terrível a um tempo". Parménides era cidadão de Eleia ou Vélia, colónia focense situada na costa da Campânia ao sul de Paestum. Segundo as indicações de Apolodoro, que coloca o seu florescimento na 69.a Olimpíadas, teria nascido em 540-39; mas esta indicação opõe-se ao testemunho de Platão segundo o qual Parménides tinha 65 anos quando, acompanhado por 66 Zenão, veio a Atenas e se encontrou com Sócrates, então muito jovem (Parm., 127b; Teet., 183e; Sot., 217 c). Dada a grande elasticidade das indicações cronológicas de Apolodoro, não há motivo para pôr em dúvida o rebatido testemunho de Platão: daí deduzia-se como provável que Parménides tenha nascido por volta de 516-11. Aristóteles cita dubitativamente a indicação que Parménides tenha sido discípulo de Xenófanes; mas uma vez que é de excluir, como se viu, que Xenófanes tenha fundado uma escola em Eleia, a indicação aristotélica não significa provavelmente outra coisa senão queParménides retomou a direcção de pensamento iniciada com Xenófanes.' Segundo outras tradições (DioG. L., DC, 21; Diels, AI) Parménides foi educado na filosofia do pitagórico Amenias e seguiu "vida pitagórica". É o primeiro a expor a sua filosofia num poema em hexâmetros. Xenófanes também expusera em versos as suas ideias filosóficas mas de forma ocasional, entremeando-as nas suas poesias satíricas. Anaximandro, Anaxímenes e Heraclito haviam escrito em prosa. O exemplo de Parménides será seguido somente por Empédocles. Do poema de Parménides que, provavelmente, só em data posterior foi designado com o título Acerca da natureza, restam-nos 154 versos. O poema dividia-se em duas partes: a doutrina da verdade (alétheia) e a doutrina da opinião (doxa). Nesta última parte, Parménides expunha as crenças do homem comum, propondo-se, porém, realizar sobre elas um trabalho de avaliação e normativo"Também isto aprenderás: como são verosimilmente as coisas aparentes, para quem as examina em tudo e para tudo" (fr. 1, v. 31). Por conseguinte, Parménides apresenta um conjunto de teorias físicas provavelmente de inspiração pitagórica. Ao dualismo do limite e do
ilimitado, faz corresponder o da luz e das trevas que porventura não era des67 conhecido dos mesmos pitagóricos; e considera a realidade física como um produto da mescla e ao mesmo tempo da luta destes dois elementos (fr. 9, Diels). A oposição entre estes dois elementos foi interpretada, a partir de Aristóteles, como oposição entre o quente e o frio. "Parménides, diz Aristóteles, (Fís., 1, S. 188 a 20), toma como principio o quente e o frio que ele chama, por isso, fogo e terra". Sob esta forma, o dualismo parmenídeo foi retomado no Renascimento por Telésio. Mas esta parte do poema de Parménides em que ele se limita a expor " as opiniões dos mortais" limitando-se a corrigi-las conformemente a uma maior verosimilhança, parece ter simplesmente como objectivo uma rectificação das opiniões correntes que, todavia, ficam afastadas da verdade, visto que presistem no domínio das aparências. a sua filosofia é o contraste entre a verdade e a aparência. "Só duas vias de pesquisa se podem conceber. Uma é que o ser é e não pode não ser; e esta é a via de persuasão porque é acompanhada da verdade. A outra, que o ser não é e é necessário que não seja; e isto, digo-te, é um caminho em que ninguém pode persuadir-se de nada" (fr. 4, Diels).: Pois que "um só caminho resta ao discurso: que o ser é" (fr. 8). Mas este caminho não pode ser seguido senão pela razão: uma vez que os sentidos, ao contrário, se detêm na aparência e pretendem testemunhar-nos o nascer, o perecer, o mudar das coisas, ou seja ao mesmo tempo o seu ser e o seu não-ser. - Na via da aparência é como se os homens tivessem duas cabeças, uma que vê o ser, outra que vê o não-ser, e erram por aqui e por ali como estultos e insensatos sem poderem ver claro em coisa nenhuma. Parménides quer afastar o homem do conhecimento sensível, quer desabituá-lo de se deixar dominar pelos olhos, pelos ouvidos e pelas palavras. homem 68 deve julgar com a razão e considerar com ela as coisas distantes como se estivessem diante dele. Ora a razão demonstra facilmente que não se pode nem pensar nem exprimir o não-ser. Não se pode pensar sem pensar alguma coisa; o pensar coisa nenhuma é um não-pensar, o dizer coisa nenhuma é um não-dizer. O pensamento e a expressão devem em todo caso ter um objecto e este objecto é o ser. Parménides determina com toda a clareza o critério fundamental da validade do conhecimento que deveria dominar toda a filosofia grega: o valor de verdade do conhecimento depende da realidade do objecto, o conhecimento verdadeiro não pode ser outra coisa senão o conhecimento do ser. É este o significado das afirmações famosas de Parménides: "A mesma coisa é o pensamento e o ser". (fr. 3, Diels). "A mesma coisa é o pensar e o objecto do pensamento: sem o ser em que o pensamento é expresso não poderás encontrar o pensamento, visto que nada há ou haverá fora do ser". (fr. 8, v. 34-37). Ao ser que é objecto do pensamento, Parménides atribui os mesmos caracteres que Xenófanes reconhecera no deus-tudo. Mas estes caracteres são por ele reconduzidos à modalidade fundamental, que é a da necessidade: O ser é e não pode não ser. (fr. 4, Diels) é a fiLosofia principal de Parménides: tese que exprime o que é para ele o sentido fundamental do ser em geral e constitui o princípio director da investigação racional. A necessidade a respeito do tempo é eternidade, isto é, contemporaneidade, totum simul; a respeito do múltiplo é unidade, a respeito do devir (ou seja do nascer e perecer) é
imutabilidade (fr. 8, 2-4, Diels). Parficularmente a éternidade não é concebida por Parménides como duração temporal infinita mas como negação do tempo. "O ser nunca foi nem 69 nunca será porque é agora todo de uma vez, uno e contínuo". Parménides foi o primeiro que elaborou o conceito da eternidade como presença total. o ser não pode nascer nem perecer, visto que deveria derivar do não-ser ou dissolver-se nele, o que é impossível porque o não-ser não é. O ser é indivisível porque é todo igual e não pode ser em um lugar mais ou menos que em outro; é imóvel porque reside nos limites próprios; é finito porque o infinito é incompleto e ao ser nada falta. O ser é completude e perfeição; e neste sentido é justamente finitude. Como tal é assimilado por Parménides a uma esfera homogénea, imóvel, perfeitamente igual em todos os pontos. "Por conseguinte, visto que não tem um limite extremo, o ser é perfeito em todas as partes. semelhante à massa arredondada de esfera igual do centro para todas as suas partes" (fr. 8). Pelo que o ser é pleno, enquanto é todo presente a si mesmo e em ponto nenhum falta a ou é deficiente de si; ele é auto-suficiência. Algumas destas determinações, por exemplo a da plenitude, e a da assimilação à esfera, fizeram pensar numa corporeidade do ser parmenídeo. De Zeller em diante tem-se afirmado que nem Parménides nem os outros filósofos pré-socráticos se elevaram à distinção entre corpóreo e incorpóreo: como se fosse verosímil que os homens que atingiram tal altura de abstracção especulativa, pudessem não ter realizado a primeira e mais pobre de tais abstracções, a distinção entre o corpóreo e o incorpóreo. Na realidade a plenitude do ser significa a sua auto-suficiência perfeita, pela qual o ser não falta ou não se basta a si em alguma das suas partes; e a esfera não é, como o texto demonstra, senão um termo de comparação de que Parménides se serve para ilustrar a finitude do ser, cujos limites não são negatividade, mas perfeição. No 70 entanto adoptou-se, para provar a corporeidade do ser parmenídeo, uma frase de Aristóteles a qual diz que Parménides e Melissos "não admitiram nada mais que substâncias sensíveis" (De coei., IH, 1, 298b, 21). Mas Aristóteles, que em certo ponto dissera primeiro que estes filósofos não falam das coisas físicas", isto é, não se ocupam das substâncias corpóreas, quer simplesmente dizer, com aquela frase, que eles não admitiram as substâncias intelectuais (as inteligências celestes) a que, ainda segundo ele, se podem referir a ingenerabilidade e a incompatibilidade que os Eleatas afirmam do ser.,Na realidade, Parménides formulou pela primeira vez com absoluto rigor lógico os princípios fundamentais da ciência filosófica que muito mais tarde haverá de chamar-se ontologia.) Com efeito, eles revelaram em ti a a sua-força lógica aquela necessidade intrínseca do ser que já os filósofos jónicos e especialmente Anaximandro haviam expresso no conceito de substância. Repetem-se nele, no entanto, empregados para exprimirem a necessidade do ser, os mesmos termos de que se servira Anaximandro: a lei férrea da justiça (dike) ou do destino (moira). "A justiça não desaperta os seus grilhões e não permite que alguma coisa nasça ou seja destruída, antes mantém com firmeza tudo o que é" (fr. 8, v. 6). Nada há ou haverá fora do ser, uma vez que o destino o agrilhoou de maneira a que ele permaneça inteiro e imóvel" (fr. 8, v. 36). A justiça e o destino não são, aqui, forças míticas: são termos que servem para exprimir com evidência intuitiva e poética a modalidade do ser, que não
pode não ser. Pela vez primeira o problema do ser foi posto por Parménides; como problema metafísicoontológico, quer isto dizer na sua generalidade máxima e não já tão só como problema físico. A pergunta eque coisa é o ser?" a que Parménides quis for71 mular a resposta, não é equivalente à pergunta "que coisa é a natureza?" para que tinham procurado a resposta os filósofos precedentes e o próprio Heraclito. O ser de que fala Parménides não é, em Primeiro lugar, somente o da natureza, mas também o homem, as acções humanas, ou o de qualquer coisa pensável, seja ela qual for; em segundo lugar, não tem relação directa com as aparências naturais ou empíricas porque fica para além de tais aparências e não constituí a estrutura, necessária, somente reconhecível pelo pensamento, A caracterização desta estrutura é dada por Parménides recorrendo àquilo a que hoje chamamos urna categoria de modalidade: a necessidade. O ser verdadeiro ou autêntico, o ser de que não se pode duvidar e a que só o pensamento pode convir é o ser necessário. "O ser é e não pode não ser". (fr. 4). É esta uma resposta que a pesquisa ontológica haveria de dar à mesma pergunta durante muitos e muitos séculos e que, de um certo ponto de vista, é ainda a única resposta que ela pode dar. Uma sua consequência imediata é a negação do possível: visto que o possível é o que pode não ser e, segundo Parménides, o que podo não ser, não é. Com efeito, "não há nada, diz Parménides, que impeça o ser de se alcançar a si mesmo" (fr. 8, 45): quer dizer, que o impeça de realizar-se na sua plenitude e perfeição. Os Megáricos (§ 37) exprimiram a mesma coisa com o teorema "o que é possível realiza-se, o que não se realiza não é possível". A forma poética não é, no pensamento de Parménides, tão inflexível na sua lógica rigorosa, uma vestimenta ocasional. É imposta pelo entusiasmo do filósofo que na pesquisa puramente racional, que nada concede à opinião e à aparência, reconheceu a via da redenção humana. Parménides é verdadeiramente pitagórico-no sentido em que 72 o será Platão -pela sua convicção inabalável que só com a pesquisa rigorosamente conduzida o homem pode chegar a salvo, em companhia da verdade. A imagem, com que abre o poema de Parménides, do sábio que é transportado por cavalos fogosos "intacto (asine) através de todas as coisas, sobre a famosa via da divindade" (fr. 1), manifesta toda a força de uma convicção iniciática, que acredita, não nos ritos ou mistérios mas unicamente no poder da razão indicadora. E assim, pela primeira vez na história da filosofia, se solvem na personalidade de Parménides ao mesmo tempo o rigor lógico da pesquisa e o seu significado existencial. A "terribilidade" de Parménides consiste justamente no extraordinário poder que a pesquisa racional adquire com ele, enraizada como está na fé no seu fundamental valor humano. Vezes houve em que se viu em Parménides o fundador da lógica: mas, é isto demasiado pouco para ele. Se por lógica se entende uma ciência em si, que sirva de instrumento à pesquisa filosófica, nada é mais estranho a Parménides que uma lógica assim entendida. Mas se por lógica se entende a disciplina intrínseca à pesquisa, enquanto se torna independente da opinião e assenta sobre um princípio autónomo próprio, então verdadeiramente Parménides é o fundador da lógica. Por outro lado, a pura técnica da pesquisa poderá tornar-se, com Aristóteles, objecto de -uma ciência particular somente depois que Parménides e Platão mostraram em acto todo o seu valor. § 19. ZENÃO
Discípulo e amigo de Parménides, Zenão de Eleia era (segundo Platão, Parm., 127a) mais novo do que ele 25 anos: o seu nascimento, por conse73 guinte, deve ter ocorrido cerca de 489. Como a maior parte dos primeiros filósofos, Zenão participou na política da sua cidade natal; parece que contribuiu para o bom governo de Eleia e que sucumbiu corajosamente, à tortura por ter conspirado contra um tirano (Diels, A 1). O próprio Platão (Parm., 128 b), nos expõe o carácter e o intento de um escrito, que devia ser a obra mais importante de Zenão. 10 escrito era uma forma de reforço" da argumentação de Parménides, dirigido contra os que procuravam apoucá-la aduzindo que, se a realidade é uma. vemo-los enredados em muitas e ridículas contradições. O escrito pagava-lhes na mesma moeda pois que tendia a demonstrar que a sua hipótese da multiplicidade emaranhava-se, desenvolvida a fundo, em dificuldades ainda maiores. O método de Zenão consistia, por conseguinte, em reduzir ao absurdo a tese dos negadores da unidade do ser, conseguindo deste modo confirmar a tese de Parménides.--4Precisamente em atenção a este método reconheceria Aristóteles em Zenão o inventor da dialéctica (Dióg. L., VIII, 57). E, com efeito, a dialéctica é para Aristóteles o raciocínio que parte não de premissas verdadeiras mas de premissas prováveis ou que parecem prováveis. (Tóp., 1, 1, 100 b, 21 segs.); e as teses de que parte Zenão para as refutar parecem exactamente prováveis em extremo. Hegel, ao invés, opina que a dialéctica de Zenão é uma dialéctica imperfeita porque metafísica, e aproximou-a da dialéctica kantiana das antinomias. Zenão ter-se-ia servido das antinomias para demonstrar a falsidade das aparências sensíveis,'Kant para afirmar a verdade delas; pelo que Zenão seria superior a Kant (Geschichte der Phil., ed. Glockner, I, p. 343 segs.). Os historiadores modernos preocuparam-se com determinar contra quem foram dirigidas as refutações de Zenão; e a maioria vê 74 no pitagorismo o objecto destas refutações, na medida em que ele afirmava a realidade do número, ou seja do múltiplo. Mas é difícil, como se viu 14), supor que o número de que fala o pitagorismo seja um simples múltiplo: ele é antes uma ordem e uma ordem mensurável. Nem é indispensável supor que Zenão teve presentes as teses deste ou daquele filósofo: parece provável que ele tenha esquematizado e fixado os fundamentos típicos de todo o pluralismo de maneira a que a sua refutação valesse tanto contra o modo comum de pensar (a doxa de Parménides), como contra os filósofos que estão de acordo com ele na admissão do pluralismo. Os argumentos de Zenão podem separar-se em dois grupos. O primeiro grupo dirige-se contra a multiplicidade e a divisibilidade das coisas. O segundo grupo dirige-se contra o movimento Se as coisas são inscritas, diz Zenão, o seu número é ao mesmo tempo finito e infinito: finito, porque elas não podem ser mais ou menos do que são; infinito, porque entre duas coisas haverá sempre uma terceira e entre esta e as outras duas haverá ainda outras e assim por diante (fr. 3, Diels). Contra a unidade concebida como elemento real das coisas, Zenão observa que, se a unidade tem uma grandeza, ainda que mínima, visto que em toda a coisa se acham infinitas unidades. toda a coisa será infinitamente grande; ao passo que, se a unidade não tem grandeza, as coisas que resultam dela serão privadas de grandeza e portanto nada (fr. 1 e 2). O argumento vale ainda, evidentemente, contra, a realidade da grandeza. No entanto, o espaço é real. Se tudo está no espaço, o espaço, por sua vez, deverá estar em um outro
espaço e assim até ao infinito: isto é impossível e obriga a deduzir que nada está no espaço (Diels, A 24). Contra a multiplicidade se dirige ainda o outro 75 argumento que se um moio de trigo causar rumor quando cai, todo o grão e toda partícula de um grão deveriam causar um som: o que não acontece (Diels, A 29). A dificuldade está aqui em compreender como é que diversas coisas reunidas juntamente podem produzir um efeito que cada uma delas separadamente não produz. Mas os argumentos mais famosos de Zenão são os dirigidos contra o movimento que nos foram conservados por: Aristóteles (Fís., VI, 9). O primeiro é o argumento chamado da dicotomia: para ir de A a B, um móvel deve primeiro efectuar metade do trajecto A-B, e, primeiro, metade desta metade; e assim por diante até ao infinito; pelo que nunca mais chegará a B. O segundo argumento é o de Aquiles: Aquiles (ou seja o mais veloz) nunca alcançará a tartaruga (ou seja o mais lento), considerando que a tartaruga tem um passo de vantagem. Com efeito, antes de alcançá-la, Aquiles deverá atingir o ponto de que partiu a tartaruga, pelo que a tartaruga estará sempre em vantagem. O terceiro argumento é o da seta. A seta, que parece estar em movimento, na realidade está imóvel; com efeito, em cada instante a seta não pode ocupar senão um espaço vazio igual ao seu comprimento e está imóvel com referência a este espaço; e dado que o tempo é feito de instantes, durante todo o tempo a seta estará imóvel. O quarto argumento é o do estádio. Duas multidões iguais, dotadas de velocidades iguais, deveriam percorrer espaços iguais em tempos iguais. Mas se duas multidões se movem ao encontro uma da outra desde extremidades opostas do estádio, cada uma delas gasta, para percorrer o comprimento da outra, metade do tempo que gastaria se uma delas estivesse parada: do que Zenão extraía a conclusão que a metade do tempo é igual ao dobro. 76 A intenção destes subtis argumentos, que amiúde têm sido chamados sofismas ou cavilações até pelos filósofos que não têm mostrado muita habilidade a refutá-los, é bastante clara. O espaço e o tempo são a condição da pluralidade e da mudança das coisas: pelo que, se eles se revelam contraditórios, revelam que a multiplicidade e a mudança são contraditórias e por isso irreais. Mas eles só são contraditórios se se admitir (como Zenão considera inevitável) a sua infinita divisibilidade: por isso esta infinita divisibilidade é assumida por Zenão como pressuposto tácito dos seus argumentos. Aristóteles procurou, portanto, refutá-lo negando sobretudo a infinita divisibilidade do tempo e afirmando que as partes do tempo nunca são instantes, privados de duração, mas têm sempre uma certa duração, ainda que mínima: assim já não seria impossível, percorrer partes infinitas de espaço em um tempo finito. Esta refutação não vale muito. Os matemáticos modernos, a partir de Russell (Principles of Mathematics, 1903), tendem antes a exaltar Zenão precisamente por ter admitido a possibilidade da divisão até ao infinito, que está na base do cálculo infinitesimal. E pode admitir-se que os argumentos de Zenão, pelas discussões que sempre suscitaram, hajam servido também para isto. Mas Zenão não foi, decerto, um matemático, e aquilo com que se preocupava era muito simplesmente a negação da realidade do espaço, do tempo e da multiplicidade. § 20. MELISSOS Melissos de Samos, porventura discípulo de Parménides, foi o general que destroçou a frota ateniense em 441-40 a.C.. É esta a única notícia que temos da sua vida. (Plutarco, Per., 26), cuja
- 77 acmé é exactamente situada naquela data. Em um escrito em prosa Sobre a natureza ou sobre o ser, Melissos defendia polemicamente a doutrina de Parménides, especialmente contra Empédocles. e Leucipo. A prova da fundamental falsidade do conhecimento sensível é, segundo Melissos, que este nos testemunha ao mesmo tempo a realidade das coisas e a sua mudança. Mas se as coisas fossem reais, não mudariam; e se mudam, não são reais. Não existem, por conseguinte, coisas múltiplas, mas tão -só a unidade (fr. 8, Diels). Como Zenão polemizava de preferência contra o movimento, assim Melissos polemiza de preferência contra a mudança. " Se o ser mudasse ainda só o equivalente a um cabelo em dez mil anos, seria inteiramente destruido na totalidade do tempo" (fr. 7). Em dois pontos todavia, Melissos modifica a doutrina de Parménides. Parménides concebia o ser como uma totalidade finita e intemporal; o ser vive, segundo Parménides, somente no agora, como uma totalidade simultânea, e é finito na sua completude. Melissos concebe a vida do ser como uma duração ilimitada; e afirma por isso a infinidade do ser no espaço e no tempo. Ele compreende a eternidade do ser com infinidade de duração, como "o que sempre foi e sempre será" e não tem, por conseguinte, nem princípio nem fim. Consequentemente, admite a infinidade de grandeza do ser: "Visto que o ser é sempre, deve ser sempre de infinita grandeza" (fr. 3). Esta modificação de uma das teses fundamentais de Parménides e talvez a outra afirmação de Melissos, que o ser é pleno e que o vazio não existe (fr. 7), sugeriram a Aristóteles a observação que " Parménides tratou do uno segundo o conceito, Melissos segundo a matéria" (Met., 1, 5, 986 b, 18). Tanto mais relevo adquire, por isso, a afirmação decidida, feita por Melissos da incorporeidade do ser. "Se é, necessi78 ta-se absolutamente que seja uno; mas se é uno não pode ter corpo, porque se tivesse um corpo teria partes e já não seria uno" (fr. 9). Os críticus modernos, que afirmaram a corporeidade do ser parmenídeo (que é excluída pela própria formulação que os Eleatas dão ao problema), atribuem a negação de Melissos a algum particular elemento, cuja realidade, ao que supõem, Melissos discutisse. Mas mesmo no caso de Melissos ter em mente uma hipótese particular, o significado da sua afirmação não muda: o que é corpo tem partes, portanto não é uno: portanto não é. A negação da realidade corpórea está implícita para Melissos, como para Parménides e para Zenão, na negação da multiplicidade e da mudança e no repúdio da experiência sensível como via de acesso à verdade. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 16. Sobre o carácter do eleatismo: ZELLER-NESTLE, 1 167 segs., que todavia está dominada pela preocupação de atribuir aos Eleatas a doutrina da corporeidade do ser, preocupação que não dá a perceber o valor especulativo do eleatismo e o seu significado histórico como antecedente necessário da ontologia platónica e aristotélica. Os fragmentos e os testemunhos foram traduz. para o ltal. por PILo ALBERTELLI, Os Eleatas, Bari, 1939; ZÁFIROPULO, L' école Mate: Parménide, Zénon, Melissos, Paris, 1950; G. CALOGERO, StUdi sWI'eleatismo, Roma, 1932; La logica del secondo eleatismo, in "Atene e Roma>, 1936, p. 141 segs. Conf. também A. CApizzi, recenti studi sull'eleatismo, in "lrtwsegna di filosofia", 1955, p. 205 segs. § 17. Os fragmentos de Xenófanes em DrELS, cap. 21.-ZELLER-NEsTLE 1, 640 segs.;
GompERz, 1, 667 segs.; BORNET, 126 seg.; HEIDEL, Hecataeus and Xenophanes, In "American Journal of Philology", 1943. § 18. Os fragmentos de Parménides in DIELS, cap. 28. Sobre Parménides é fundamental: REINHARDT, Parménides, Bonn, 1916. Vejam-se ainda as belas pági79 nas dedicadas a Parménides por JAEGm, Paidéia, trad, ltal., 276 segs.. E além disso M. UNTERSTEINER, Parménide. Te8timonta=e e framm-entí, Florença, 1958, com uma larga introdução que refunde e rectifica os precedentes estudos do autor. Os pontos típicos da Interpretação de Understeiner são os seguintes: 1) o ser de Parinénides seria uma totalidade, não uma unidade, uma vez que a unidade (como a continuidade) constituiria uma referência ao plano empírico ou temporal e estaria, por conseguinte, em oposição com a eternidade do ser; 2) Parménides; não diria (fr. 6. Diela). c0 ser, o nko-ser não é"; mas diria"Existe o dizer e o Intuir o ser, e ao Invés não existe o dizer e o intuir o nada": no sentido que o próprio método da pesquisa acabaria por criar o ser. Sobre as dificuldades filo16gicas desta subtil e porventura demaqiado moderna Interpretação efri J. BRUNSCHWIG, in "Revue Philosophique>, 1962, p. 120 sega. Do ponto de vista filosófico tem o inconveniente de descurar completamente o carácter fundamental do ser parmenideo, a necessidade. § 19. Os fragmentos de Zenão In DmU, cap. 29. A discussão de Aristótelos está In Fís., VI, 2-9; ZELLER-NEsTLE, 1, 742 sega.; GoMPERz, 1, 205 segs.; BURNET, 356 segs. Sobre os argumentos contra o movimento: BROCHARD. Études de philos. anc. et de Philos. moderne, Paris, 1912. § 20. Os fragmentos de Melíssos, In cap. 30.-ZELLER-NEsTLE, 1, 775 seg.; Gomp=, I, 198 segs.; BURNET, 368 segs.; ZELLER e BURNET, defensores do carácter materialista do ser parmenídeo, são os autores da interpretação do fragmento 9 de Meilisaos discutida no texto. 80 v OS FISICOS POSTERIORES § 21. EMPÉDOCLES O eleatismo, declarando aparente o mundo do devir e ilusório o conhecimento sensível que lhe concerne, não afastou a filosofia grega da investigação naturalista. Esta continua de acordo com a tradição iniciada pelos Jónicos, mas não pode deixar de ter em conta as conclusões do eleatismo. A afirmação de que a substância do mundo é uma só e que ela é o ser, não permite salvar a realidade dos fenómenos e explicá-los.Se quiser reconhecer-se que o mundo do devir existe em certos limites reais, deve admitir-se que o princípio da realidade não é único mas múltiplo. Nesta via se põem os físicos do século V. buscando a aplicação do devir na acção de uma multiplicidade de elementos, qualitativamente ou quantitativamente diversos. Empédocles, de Agrigento nasceu ao redor de 492 e morreu mais ou menos aos sessenta anos. Filho de Metão, que tinha um lugar
importante no governo democrático da cidade, participou na vida 81 política e foi ao mesmo tempo médico, dramaturgo e homem de ciência. Ele próprio apresenta a sua doutrina como um instrumento eficaz para dominar as forças naturais e até para chamar do Hades a alma dos defuntos (fr. 111, Diels). A sua figura de mago (ou de charlatão) é realçada pelas lendas que se formaram acerca da sua morte. Os seus partidários disseram que tinha subido ao céu durante a noite; os seus adversários, que se precipitara na cratera do Etna para ser julgado um deus (Diels, A 16). Empédocles foi, depois de Parménides, o único filósofo grego que expôs em verso as suas doutrinas filosóficas. O seu exemplo não foi seguido na antiguidade senão por Lucrécio, o qual lhe dedicou um magnífico elogio (De nat. rer., 1, 716 segs.). Restaram dele fragmentos mais abundantes que de qualquer outro filósofo présocrático, pertencentes a dois poemas. Sobre a natureza e Purificações: o primeiro é de carácter cosmológico, o segundo é de carácter teológico e inspira-se no orfismo e no pitagorismo. Empédocles é conhecedor dos limites do conhecimento humano. Os poderes cognoscitivos do homem são limitados; o homem vê só uma pequena parte de uma "vida que não é vida" (porque passa de fulgida) e conhece só aquilo com que por acaso topa. Mas justamente por isto não pode renunciar a nenhum dos seus poderes cognoscitivos: é necessário que se sirva de todos os sentidos e ainda do intelecto, para ver todas as coisas na sua evidência. Como Parménides, Empédocles considera que o ser não pode nascer nem perecer; mas à diferença de Parménides quer explicar a aparência do nascimento e da morte e explica-a recorrendo ao combinar-se e separar-se dos elementos que compõem a coisa.A união dos elementos é o nascimento das coisas, a sua desunião a morte.1 Os elementos são quatro: fogo, água, terra e ar. O nome "elemento" 82 só mais tarde, com Platão, aparece na terminologia filosófica: Empédocles, fala de "quatro raízes de todas as coisas". Estas quatro raízes são animadas por duas forças opostas: o Amor (Philia) que tende a uni-las; a Desavença ou ódio (Neikos) que tende a desuni-las.',O Amor e a Desavença são duas forças cósmicas de natureza divina, cuja acção se alterna no universo, determinando, com tal alternância, as fases do ciclo cósmico. Há uma fase em que o Amor domina completamente e é o Sfero no qual todos os elementos são unificados e enlaçados na mais perfeita harmonia. Mas nesta fase não há nem o sol nem a terra nem o mar, porque não há mais que um todo uniforme, uma divindade que goza da sua soledade (fr. 27, Diels). A acção da Desavença rompe esta unidade e começa a introduzir a separação dos elementos. Mas nesta fase a separação não é destrutiva: até certo ponto, ele determina a formação das coisas que existem no nosso mundo, o qual é produto da acção combinada das duas forças e fica a meio caminho do reino do Amor e do reino do ódio. Continuando o ódio a agir, as próprias coisas se dissolvem e tem-se o reino do caos: o puro domínio do ódio. -Mas então cabe de novo ao Amor recomeçar a reunificação dos elementos: a meio caminho ter-se-á novamente o mundo actual, mesclado de ódio e de amor e finalmente regressar-se-á ao Sfero: no qual recomeçará um novo ciclo. Aristóteles observou (Met., 1. 4, 985 a, 25) Que Empédocles não é coerente porque admite ao mesmo tempo que o Amor crie o mundo numa volta e o destrua na outra; e assim o (dioJ Mas Aristóteles faz esta observação porque identifica o Amor e o ódio respectivamente com o Bem e o Mal (1b., 985 a, 3). Em Empédocles, tal identificação não existe. Empédocles está bem longe de admitir que o Amor, e só o Amor, é
o princípio 83 do Cosmos: como Heraclito está convencido que a divisão dos elementos, o ódio, a luta, têm uma parte importante na constituição do mundo. "Estas duas coisas, escreveu ele, são iguais e igualmente originárias e tem cada uma o seu valor e o seu carácter e predominam alternadamente no volver do tempo" (fr. 17, v. 26, Diels). Os quatro elementos e as duas forças que os movem são ainda as condições do conhecimento humano. O princípio fundamental do conhecimento é que o semelhante se conhece com o semelhante. "Nós conhecemos a terra com a terra, a água com a água, o éter divino com o éter, o fogo destruidor com o fogo, o amor com o amor e o ódio funesto com o ódio" (fr. 109).' O conhecimento realiza-se por meio do encontro entre o elemento que existe no homem e o mesmo elemento que existe no exterior do homem. Os eflúvios que provêm das coisas produzem a sensação quando se aplicam aos poros dos órgãos dos sentidos pela sua grandeza;'de outro modo passam despercebidos (Diels, A 86). Empédocles não faz qualquer distinção entre o conhecimento dos sentidos e o do intelecto; também este último se realiza da mesma maneira por um encontro dos elementos externos e internos. Em as Purificações Empédocles retoma a doutrina órfico-pitagórica da metempsicose. Há uma lei necessária de justiça, que faz expiar aos homens, através de uma série sucessiva de nascimentos e de mortes, os pecados de que se mancharam (fr. 115). Empédocles apresenta esta doutrina como o seu destino pessoal: "Fui em dada época menino e menina, arbusto e pássaro e silencioso peixe do mar" (fr. 117). E lembro saudosamente a felicidade da antiga morada: "De que honras, de que alturas de felicidade eu caí para errar aqui, sobre a terra, entre os mortais" (fr. 119). 84 § 22. ANAXÁGORAS Anaxágoras de Clazómenes, nascido em 499-98 a.C. e falecido em 428-27, é apresentado pela tradição como um homem de ciência absorto nas suas especulações e alheio a toda actividade prática. Para poder ocupar-se das suas investigações cedeu todos os seus haveres aos parentes. Interrogado acerca da finalidade da sua vida respondeu orgulhosamente que era viver "para contemplar o sol, a lua e o céu". Aos que o exprobravam por nada lhe importar a sua pátria respondeu: "A minha pátria importa-me muitíssimo", indicando o céu com a mão (Diels, A 1). Foi o primeiro a introduzir a filosofia em Atenas, que era então governada por Péricles, 1 de quem foi amigo e mestre; mas, acusado de impiedade pelos inimigos de Péricles e forçado a regressar à Jónia, fixou residência em Lampsaco. Restam-nos alguns fragmentos do primeiro livro da sua obra Sobre a natureZa. - > 1 Também Anaxágoras aceita o principio de Parménides da substancial imutabilidade do ser.'!"A respeito do nascer e do perecer, diz ele (fr. 17), os gregos não têm uma opinião exacta.)Nenhuma coisa nasce e nenhuma perece, mas todas se compõem de coisas já existentes ou se decompõem nelas. A E assim se deveria antes chamar reunir-se ao nascer e separar-se ao perecer". Como Empédocles, admite que os elementos são qualitativamente distintos uns dos outros, mas à diferença de Empédocles, considera que esses elementos são partículas invisíveis que denomina sementes.1 Uma consideração filosófica está na base da sua doutrina. Nós utilizamos um alimento simples e de uma só espécie, o pão e a água, e deste alimento formam-se o sangue, a carne, as peles, os ossos, etc. É preciso,
portanto, que no alimento se encontrem as partículas geradoras de todas as partes do nosso 85 corpo, partículas visíveis à mente., Anaxágoras substituiu assim como fundamento da física a consideração cosmológica pela consideração biológica. As partículas elementares, na medida em que são semelhantes ao todo que constituem, foram chamadas por Aristóteles homeomerias, -- - - A primeira característica das sementes ou homeomerias é a sua infinita divisibilidade, a segunda característica é a sua infinita agregabilidade. Por outras palavras não se pode, segundo Anaxágôras, chegar a elementos indivisíveis com a divisão das sementes, como não se pode chegar a um todo máximo com a agregação das sementes, todo tal que não seja possível haver maior. Eis o fragmento famoso em que Anaxágoras exprime este conceito: "Não há um grau mínimo do pequeno mas há sempre um grau menor, sendo impossível que o que é deixe de ser por divisão. Mas também do grande há sempre um maior. E o grande é igual ao pequeno em composição. Considerada em si mesma, toda a coisa é a um tempo pequena e grande" (fr. 3, Diels).'Como se vê, a infinita divisibilidade, que Zenão assumia para negar a realidade . das coisas, é assumida por Anaxágoras como a própria essência da realidade. 1 A importância matemática deste conceito é evidente. Por um lado, a noção que se possa obter sempre por divisão, uma quantidade mais pequena do que toda a quantidade dada, é o conceito fundamental do cálculo infinitesimal. Por outro lado, que toda a coisa possa ser. chamada grande ou pequena conformemente ao processo de divisão ou de composição por que está envolvida, é uma afirmação que implica a relatividade dos conceitos de grande e pequeno. Uma vez que nunca se chega a um elemento último e indivisível, também jamais se alcança, segundo Anaxágoras, um elemento simples, isto é, um elemento qualitativamente homogéneo que seja, 86
por exemplo, somente água ou somente ar. "Em toda a coisa diz ele, há sementes de todas as coisas" (fr. 11). A natureza de uma coisa é deterninada pelas sementes que nela prevalecem: parece ouro aquela em que prevalecem as partículas de ouro, embora haja nela partículas de todas as outras substâncias. No princípio as sementes estavam mescladas entre si desordenadamente e constituíam uma multidão infinita, quer no sentido da grandeza do conjunto, quer no sentido da pequenez de qualquer parte sua. NEsta mistura caótica em imóvel; para nela introduzir o movimento e a ordem interveio o Intelecto (fr. 12). Para Anaxágoras o Intelecto está totalmente separado da matéria constituída pelas sementes. Ele é simples, infinito e dotado de força própria; e serve-se desta força para operar a separação dos elementos. Mas porque as sementes são divisíveis até ao infinito, a separação de partes operada pelo Intelecto não elimina a mescla: e assim agora como no principio "todas as coisas estão juntas" (fr. 6). Pode perguntar-se, a ser assim, em que coisa consiste a ordem que o Intelecto dá ao universo. A resposta de Anaxágoras é que esta ordem consiste na relativa prevalência, que as coisas do mundo mostram, de uma certa espécie de sementes: por exemplo, a água é assim porque contém uma prevalência de sementes de água, embora contenha ainda sementes de todas as outras coisas. Por esta prevalência, que é o efeito da acção ordenadora do Intelecto, se determina ainda a separação e a oposição das
qualidades, por exemplo do raro e do denso, do frio e do quente, do escuro e do lunÍnoso, do húmido e do seco (fr. 12, Diels). ,: 1 Empédocles explicara o conhecimento por meio do princípio da semelhança: Anaxágoras explica-o por meio dos contrários. Nós sentimos o frio pelo quente, o doce pelo amargo e toda a qualidade pela 87 qualidade oposta. Visto que toda a dissenção acarreta dor, toda a sensação é dolorosa e a dor acaba por se sentir com a longa duração ou com o excesso da sensação (Diels, A 29). A própria constituição das coisas introduz um limite no nosso conhecimento; não podemos perceber a multiplicidade das sementes que constituem cada uma delas: pois que Anaxágoras diz que "a fraqueza dos nossos sentidos impede-nos de alcançar a verdade" (fr. 21 a); e, com efeito, os sentidos mostram-nos as sementes que predominam na coisa que está ante nós e fazem-nos perceber a sua constituição interna. A importância de Anaxágoras reside em ter ele afirmado um princípio inteligente como causa da ordem do mundo. Platão (Féd. 97 b) elogia-o por isto e Aristóteles diz dele pelo mesmo motivo: "Aquele que disse: "Também na natureza, como nos seres viventes, há um Intelecto causa da beleza e da ordem do universo", fez figura de homem sensato e os predecessores, em comparação com ele, parecem gente que fala à toa" (Met., 1, 3, 984 b). Mas Platão confessa a sua desilusão ao constatar que Anaxágoras não se serve do intelecto para explicitar a ordem das coisas e recorre aos elementos naturais, e Aristóteles diz de maneira análoga (lb., 1, 4, 985 a, 18) que Anaxágoras utiliza a inteligência como se se tratasse de um deus ex machina todas as vezes que se vê embaraçado para explicar qualquer coisa por meio das causas naturais, ao passo que nos outros casos recorre a tudo, excepto ao Intelecto. Platão e Aristóteles indicaram assim, com toda a justiça, a importância e os limites da concepção de Anaxágoras. Contudo, permanecendo embora preso ao método naturalista da filosofia jónica, Anaxágoras inovou radicalmente a concepção do mundo próprio daquela filosofia, 88 admitindo uma inteligência divina separada do mundo e causa da ordem deste. § 23. OS ATOMISTAS A escola de Mileto não findou com Anaxímenes; de Mileto provém ainda Leucipo (se bem que alguns escrapres antigos afirmem, ser de Eleia ou de Abdera o fundador do atomismo, que pode considerar-se o último e mais maduro fruto da pesquisa naturalista iniciada com a escola de Mileto. Sabe-se tão pouco de Leucipo que até foi possível duvidar da sua existência. Epicuro (Diels, 67, A 2) diz que nunca houve um filósofo com este nome; e esta opinião foi também retomada por historiadores recentes. Segundo testemunhos antigos, foi contemporâneo de Empédocles e de Anaxágoras e discípulo de Parménides. Os seus escritos devem ter-se confundido com os de Demócrito a quem se unira para indicar os dois fundadores do atomismo antigo. Demócrito de Abdera foi o maior naturalista do seu tempo. contemporâneo de Platão, pelo qual, todavia, nunca foi nomeado. Ele próprio nos diz (fr. S. Dieis) que era ainda jovem, quando Anaxágoras era velho; o seu nascimento situa-se em 460-59 a.C.. Das muitas obras que têm o seu nome, e de que temos numerosos fragmentos, O grande ordenamento, O pequeno ordenamento, Sobre a inteligência, Sobre as formas, Sobre a bondade da alma, etc., nem todas são, muito provavelmente, devidas a ele; algumas expõem a doutrina geral
da escola. A fama de Demócrito como homem de ciência fez com que a sua figura fosse estilizada na de um sábio completamente distraído da prática da vida. Horácio (Ep., 1, 12, 12) conta que rebanhos de gado devastavam, pastando, os campos de 89 Demócrito, enquanto a mente do sábio errava por sítios remotos. Na partilha da rica herança paterna quis que a sua parte fosse em dinheiro e assim recebeu menos, tendo gasto tudo nas suas viagens ao Egipto e junto dos Caldeus. Quando o pai ainda era vivo, costumava recolher-se a um casinhoto campestre que servia também de estábulo, e aqui ficou uma vez sem reparar num boi que o pai lá prendera à espera de ele o levar ao sacrifício (Diels, 68, A 1). O espírito levemente zombeteiro desta anedota desenha-o como o tipo do sábio distraído. Parece que Leucipo lançou os fundamentos da doutrina e que Demócrito, desenvolveu depois estes fundamentos quer na pesquisa física quer na pesquisa moral. Os atomistas concordam com o princípio fundamental do eleatismo de que só o ser é mas decidem reportar este principio à experiência sensível e servir-se dela para explicar os fenómenos. Assim é que conceberam o ser como o pleno, o não-ser como o vazio e consideram que o pleno e o vazio são os princípios constitutivos de todas as coisas.! Todavia, o pleno não é um todo compacto: é formado por um número infinito de elementos que são invisíveis pela pequenez da sua massa. Se estes elementos fossem divisíveis até ao infinito, dissolver-seiam no vazio; devem, por conseguinte, ser indivisíveis, e por isso são chamados átomos., Só os átomos são eternamente contínuos, os outros corpos não são contínuos porque resultam do simples contacto dos átomos e podem, por isso, ser divididos. A diferença entre os átomos não é qualitativa como a das sementes de Anaxágoras, mas quantitativa. Os átomos não diferem entre si por natureza mas tão somente por forma e grandeza. Eles determinam o nascimento e a morte das coisas pela união e pela desagregação; determinam a diversidade e a mudança delas pela sua ordem 90 e pela sua posição. 1 Segundo a comparação de Aristóteles (Met., 1, 4, 985 b), são semelhantes às letras do alfabeto; que diferem entre si pela forma e dão origem a palavras e a discursos diversos dispondo-se e combinando-se diversamente. Todas as qualidades dos corpos, dependem, portanto, ou da figura dos átomos ou da ordem e da combinação deles, Pelo que nem, todas as qualidades sensíveis são objectivas, quer dizer não pertencem verdadeiramente às coisas que se provocam em nós. São objectivas as qualidades próprias dos átomos: a forma, a dureza, o número, o movimento; ao contrário o frio, o calor, os sabores, os odores, as cores são simplesmente aparências sensíveis, provocadas, é certo, por especiais figuras ou combinações de átomos, mas não pertencentes aos próprios átomos (fr. 5). Todos os átomos são animados de um movimento espontâneo, pelo qual se chocam e ricocheteiam dando ou em ao nascer, ao perecer e ao mudar de coisas Mas o movimento é determinado por leis imutáveis. "Nenhuma coisa, diz Leucipo (fr. 2), acontece sem razão, antes tudo acontece por uma razão e necessariamente". O movimento originário dos átomos, fazendo-os girar e chocar-se em todas as direcções, produz um vértice, do qual as partes mais pesadas são arrastadas para o centro e as outras são, ao contrário, repelidas para a periferia. O seu peso, que as faz tender para o centro, é portanto um efeito do movimento vertical em que são arrastadas. Desta maneira se formaram infinitos mundos que incessantemente se geram e se dissolvem.
O movimento dos átomos explica também o conhecimento humano. A sensação nasce da imagem (idõla) que as coisas produzem na alma por meio de fluxos ou correntes de átomos que emanam delas. Toda a sensibilidade se reduz por isso ao tacto; 91 porque todas as sensações são produzidas pelo contacto, com o corpo do homem, dos átomos que provêm das coisas. Mas o próprio Demócrito não se satisfaz com este conhecimento, ao qual está necessariamente limitado. "Em verdade, diz ele, nada sabemos de nada, pois a opinião vem de fora para cada qual" (fr. 7). "É preciso conhecer o homem com estes critérios: que a verdade fica longe dele" (fr. 6). E, com efeito, as sensações de que deriva todo o conhecimento humano mudam de homem para homem, mudam até no mesmo homem conforme as circunstâncias, pelo que não fornecem um critério absoluto do verdadeiro e do falso (Diels, 68 A 112). Estas limitações não respeitam, contudo, ao conhecimento intelectual. Ainda que sujeito às condições físicas que se observam no organismo (Diels, 68 A 135), este conhecimento é, todavia, superior à sensibilidade, porque permite captar, para lá das aparências, o ser do mundo: o vazio, os átomos e o seu movimento. Aí onde termina o conhecimento sensível que, quando a realidade se subtiliza e tende a resolver-se nos seus últimos elementos, se torna ineficaz, começa o conhecimento racional, que é um órgão mais subtil e alcança a própria realidade (Demócr., fr. 11). A antítese entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual é assim talhada como a que existe entre o carácter aparente e convencional das qualidades sensíveis e a realidade dos átomos e do vazio. "Por convenção fala-se, diz Demócrito (fr. 125), de cor, de doce, de amargo; na realidade, há só átomos e vazio". Desta maneira, correspondentemente ao contraste entre aparência e realidade, se mantém no atomismo o contraste entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual, não obstante a sua comum redução a factores mecânicos; e ambos estes contrastes são inferidos do eleatismo. 92 O atomismo representa a redução naturalista do eleatismo. Fez sua a proposição fundamental do eleatismo: o ser é necessidade; mas compreendeu esta proposição no sentido da determinação causal. Parménides exprimia praticamente o sentido da necessidade às noções de justiça ou de destino. O atomismo identifica a necessidade com a acção das causas naturais. Do eleatismo, o atomismo infere ainda a antítese entre realidade e aparência; mas esta própria antítese é conduzida ao plano da natureza e a realidade de que se fala é a dos elementos indivisíveis da própria natureza. O resultado destas transformações, que vai além das intenções dos próprios atomistas, é o começo da constituição da pesquisa naturalista como disciplina em si; e da distinção da pesquisa filosófica como tal. A constituição de uma ciência da natureza como disciplina particular, tal como aparece em Aristóteles, é preparada pela obra dos atomistas, que reduziram a natureza a pura objectividade mecânica, com a exclusão de qualquer elemento mítico ou antropomórfico. A prova desta inicial separação da ciência da natureza da ciência do homem temo-la no facto de Demócrito não estabelecer qualquer relação intrínseca entre uma e a outra. A ética de Demócrito não tem, de facto, relação alguma com a sua doutrina física. O mais elevado bem para o homem é a felicidade; e esta não reside nas riquezas, mas somente na alma (fr. 171). Não são os corpos e a riqueza que nos tornam felizes, mas sim a justiça e a razão, e aí onde falta a razão, não se sabe fruir a vida nem superar o terror da morte. Para os homens a alegria nasce da medida do prazer e da proporção da vida: os defeitos e os
excessos tendem a perturbar a alma e a gerar nela movimentos intensos. E as almas que se movimentam de um extremo ao outro, não são constantes nem contentes (fr. 191). 93 A alegria espiritual, a ataymia, não tem por conseguinte nada que ver com o prazer (edoné): "o bem e o verdadeiro-diz Demócrito-são idênticos para todos os homens, o prazer é diferente para cada um deles (fr. 69). Pelo que o prazer não é bem em si mesmo: necessário é que sejha somente o que procede do belo (fr. 207). A ética de Demócrito está, assim, a grande distância da do hedonismo que poderíamos aguardar Como corolário do seu naturalismo teorético. Pelo contrário, ao decidido objectivismo que é a directriz de Demócrito no domínio da pesquisa naturalista corresponde, na ética, um igualmente decidido subjectivismo moral. O guia da acção moral é, segundo Demócrito, o respeito (aidos) para consigo mesmo. "Não deves ter respeito pelos outros homens mais que por ti próprio, nem proceder mal quando ninguém o saiba mais que quando o saibam; mas deves ter por ti mesmo o máximo respeito e impor à tua alma esta lei: não fazer aquilo que não se deve fazer" (fr. 264). Aqui a lei moral está colocada na pura interioridade da pessoa humana, que ao invés se faz lei a si própria mediante o conceito de respeito para consigo mesmo. Este conceito, fundamental para compreender o valor e a dignidade humana, substitui o velho conceito grego do respeito para com a lei da polis, e mostra como a pesquisa moral de Demócrito se move em direcção antitética da sua pesquisa física e como, por isso, se iniciou a diferenciação da ciência natural da filosofia. Um outro traço é notável na ética de Demócrito: o cosmopolitismo. "Para o homem sábio diz ele-toda a terra é utilizável, porque a pátria da alma excelente é todo o mundo" (fr. 247). Reconhece, todavia, o valor do estado e diz que nada é preferível a um bom governo, uma vez que o governo abrange tudo: se ele se mantém, tudo 94 se mantém; se ele cai tudo perece (fr. 252). E declara que é necessário preferir viver pobre e livre numa democracia a viver rico e escravo numa oligarquia (fr. 251). A superioridade que ele atribui à vida exclusivamente dedicada à pesquisa científica torna-se evidente pelas suas ideias sobre o matrimónio. Este é condenado por ele, na medida em que se funda sobre as relações sexuais que diminuem o domínio do homem sobre si mesmo, e na medida em que a educação dos filhos impede a dedicação aos trabalhos mais necessários, enquanto o sucesso da sua educação continua duvidoso. Aqui a preocupação de Demócrito é evidentemente a de salvaguardar a disponibilidade do homem para consigo mesmo que torna possível o empenho na pesquisa científica. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 21. Os fragmentos de Empédocles, in Diels, cap. 31. - ZELLER-NESTLE, 1, 939 segs.; GoMPERZ, I, 241 segs.; BURNET, 229 segs.; BIGNONE, Empédocle ,(estudo, crítico, trad. e comentário dos testemunhos e dos fragmentos), Turim, 1916; G. COLLI, E.; Diza, 1949; W. KRANZ, E.; Zurique, 1949; J. ZAFIRO PAULO, E. de Agrigento. Paris, 1953; G. NÉLOD, E. de Agrigento, Bruxelas, 1959. § 22. Os fragmentos de Anaxágoras, in D=, cap. 59-ZELLER-NESTLE, 1, 1195, segs.; GomPERZ, I, 222 segs.; BURNET 287 segs.; CLEVE, The Philosophy of Anaxagoras. An Attempt at Reconstruction, Nova-lorque, 1949.
§ 23. Os fragmentos dos atomistas, in DIELS, cap. 67 (Lepcipo) e cap. 68 (Demócrito), trad. para o italiano por V. E. ALFIERI, Bafi, 1936. Negou a existência de Leucipo: R.HODE, Meine Schriften, 1, 205, em 1881. Contra ele: DIELS, in "Rhein. Mus." 1887, 1 segs.. Sobre outros desenvolvimentos do problema: HOWALD, Festchrift f. Joel, 1934; A. G. M. V. MELSEN, From Atonws to Atom, Pittsburgh, 1952; V. E. ALI=RI, Atomos idea, Florença, 1953. 95 vi A SOFíSTICA § 24. CAráCTER DA SOfíSTICA Dos meados do século V até aos fins do século IV, Atenas é o centro da cultura grega. A vitória contra os Persas abre o período áureo do poder ateniense. A ordem democrática tornava possível a participação dos cidadãos na vida política e tornava preciosos os dotes oratórios que permitem obter o êxito. Os sofistas vêm ao encontro da necessidade de uma cultura adaptada à educação política das classes. A palavra sofista não tem nenhum valor filosófico determinado e não indica uma escola. Originariamente significou apenas sábio e empregava-se para indicar os Sete Sábios, Pitágoras e quantos se assinalaram por qualquer actividade teorética ou prática. No período e nas condições que indicamos, o termo assume um significado especifico: sofistas eram aqueles que faziam profissão da sabedoria e a ensinavam mediante remuneração. O lugar da sofística na história da filosofia não apresenta por isso 97 analogia com o das escolas filosóficas anteriores ou contemporâneas. Os sofistas influenciaram poderosamente, é certo, o curso da investigação filosófica, mas isto aconteceu por modo inteiramente independente do seu intento, que não era teorético, mas apenas prático-educativo. Os sofistas não podem relacionar-se com as investigações especulativas dos filósofos jónios, mas com a tradição educativa dos poetas, a qual se desenvolvera ininterruptamente de Homero a Hesíodo, a Sólon e a Píndaro, Todos eles orientaram a sua reflexão para o homem, para a virtude e para o seu destino e retiraram, de tais reflexões, conselhos e ensinamentos. Os Sofistas não ignoram esta sua origem ideal porque são os primeiros exegetas das obras dos poetas e vinculam a eles o seu ensinamento. Assim Protágoras, no diálogo homónimo de Platão, expõe a sua doutrina da virtude mediante o comentário a uns versos de Simonides. "Os sofistas foram os primeiros que reconheceram -o valor formativo do saber e elaboraram o conceito de cultura (paideia), que não é soma de noções, nem tão-pouco apenas o processo da sua aquisição, mas formação do homem no seu ser concreto, como membro de um povo ou de um ambiente social.)Os sofistas foram, pois, mestres de cultura. Mas a cultura, objecto da sua ensinança, era a que era útil à classe dirigente da cidade em que tinha lugar o seu ensino: por isso era pago. 'Para que o seu ensino fosse não só permitido, mas ainda requerido e recompensado, os sofistas tinham de inspirá-lo nos valores próprios da comunidade onde o ministravam, sem tentar críticas ou indagações que os colocassem em choque com tais valores.Por outro lado, precisamente por esta situação, estavam em condições de se darem conta da diversidade ou heterogeneidade de tais valores; tal quer dizer, também, das suas limitações. Eles podiam ver
98 que duma cidade a outra, de um povo a outro, muitos dos valores em que assenta a vida do homem sofrem variações radicais e tornam-se incomensuráveis entre si. A natureza relativista das suas teses teóricas não é mais que a expressão duma rendição fundamental da sua ensinança. Por outro lado, consideram-se "sábios" precisamente no sentido antigo e tradicional do termo, isto é, no sentido de tornar os homens hábeis nas suas tarefas, aptos para viver em conjunto, capazes de levar a melhor nas competições civis. Certamente, sob este aspecto, nem todos os sofistas manifestam, na sua personalidade, as mesmas características, Protágoras reivindicava para os sábios e para bons oradores a tarefa de guiar e aconselhar para o melhor a própria comunidade humana (Teet., 167 c). Outros sofistas colocavam explicitamente a sua obra ao serviço dos mais poderosos e dos mais sagazes. Em qualquer dos casos o interesse dos sofistas limitava-se à esfera das ocupações humanas e a própria filosofia considerada por eles como um instrumento para se moverem habilmente nesta esfera. No górgias platónico, Càlicles afirma que se estuda a filosofia unicamente "para a educação própria" e que por isso é conveniente na idade juvenil, mas torna-se inútil e danosa quando cultivada para lá desse limite, pois impede o homem de tornar-se experiente nos negócios públicos e privados e em geral em tudo o que concerne à natureza humana (484 e-485 d). -"-")Por motivo idêntico, O Objecto do ensino sofístico limitava-se a disciplinas formais, como a retórica ou a gramática, ou a noções várias e brilhantes mas desprovidas de solidez científica, como as que podiam revelar-se úteis na carreira de um advogado ou de um homem políticO. a sua criação fundamental foi a retórica, isto é, a arte de persuadir, 99 independentemente da validade das razões adoptadas. com a retórica afirmavam a independência e a omnipotência: a independência de todo o valor absoluto, cognoscitivo ou moral; a omnipotência a respeito de todo o fim a alcançar, Mas pela própria exigência desta arte, o homem guinda-se ao primeiro lugar na atenção dos sofistas. O homem é considerado não já como um fragmento da natureza ou do ser, mas nos seus caracteres específicos: assim, se a primeira fase da filosofia grega fora, prevalentemente, cosmológica ou ontológica, com os sofistas inicia-se uma fase antropológica. PROTÁGORAS Protágoras de Abdera foi o primeiro que se intitulou sofista e mestre de virtude. Segundo Platão, que nos apresenta a sua figura no diálogo que leva o seu nome, era muito mais velho do que Sócrates: o seu apogeu situa-se em 444-40. Ensinou durante 40 anos em todas as cidades da Grécia, deslocando-se de uma para outra. Esteve repetidas vezes em Atenas, mas por fim foi acusado de ateísmo e obrigado a abandonar a cidade. Morreu afogado com 70 anos quando se dirigia para a Sicilia. Platão deixou-nos, no diálogo intitulado com o seu nome, um retrato vivo, ainda que irónico, do sofista. Representa-o como homem do mundo, cheio de anos e de experiências, grandiloquente, vaidoso, mais preocupado, nas discussões, em obter a todo o custo um êxito pessoal do que a alcançar a verdade. A obra principal de Protágoras, RacioCínios demolidores, também citada com o título Sobre a verdade ou sobre o ser. Atribui-se a Protágoras uma obra Sobre os deuses. Dos escritos de Protágoras poucos fragmentos restam. 100
expressou o postulado fundamental do ensino sofistico no famoso princípio com que iniciava a obra Sobre a verdade: "O homem é a medida de todas as coisas (chrémata), das coisas que são enquanto são, das coisas que não são enquanto não são" (fr. 1, Dielsy. ' O significado desta tese famosa foi aclarado pela primeira vez por Platão, cuja interpretação continuou e continua a ter o favor. Segundo Platão, Protágoras pretendia dizer que "tais como as coisas singulares me aparecem, tais são para mim, e quais te aparecem, tais são para ti: dado que homem tu és e homem sou" (Teet., 152 a); e que portanto identificava aparência e sensação, afirmando que aparência e sensação são sempre verdadeiras porque "a sensação é sempre da coisa que é" (1b., 152 c); é, entende-se, para este ou para aquele homem. Aristóteles (Met., IV, 1, 1053 a, 31 segs.) e com ele todas as fontes antigas confirmam substancialmente a interpretação platónica. Esta é aprovada também pela crítica que, segundo um testemunho de Aristóteles (lb., LII, 2, 997 b, 32 segs.). Protágoras dirigia à matemática, observando que nenhuma coisa sensível tem a qualidade que a geometria atribui aos entes geométricos e que, por exemplo, não existe uma tangente que toque a, circunferência num só ponto, como quer a geometria (fr. 7. Diels). Nesta crítica, como é óbvio, Protágoras valia-se das aparências sensíveis para julgar da validade das proposições geométricas. Segundo o mesmo Platão, também aqui seguido quase unanimente pela tradição posterior, o pressuposto da doutrina de Protágoras era o de Heraclito: o incessante fluir das coisas. O Teeteto platónico contém também uma teoria da sensação elaborada segundo este pressuposto: a sensação seria o encontro de dois movimentos, o do agente, isto é do objecto, e o do paciente, isto é do sujeito. 101 Dado que os dois movimentos continuam depois do encontro, nunca serão duas sensações iguais quer para homens diferentes quer para o mesmo homem (Teet., 182 a). Não sabemos se esta doutrina pode referir-se a Protágoras: todavia também ela é uma confirmação da identidade que Protágoras estabelecia entre aparência e sensação. É por isso bastante claro que mundo da doxa (isto é, da opinião), que para o caso compreende as aparências sensíveis e todas as crenças que nelas se fundam, é aceite por Protágoras tal como se apresenta; e que ele, como os outros sofistas se recusa a proceder para lá dele e instituir uma pesquisa que de qualquer modo o transcenda: Esse é o mundo das ocupações humanas em que Protágoras e todos os sofistas entendem mover-se e permanecer. O agnosticismo religioso de Protágoras é uma consequência imediata desta limitação do seu interesse à esfera da experiência humana. Dos deuses -dizia Protágoras -não estou em posição de saber nem se existem nem se não existem nem quais são: efectivamente muitas coisas impedem sabê-lo: não só a obscuridade do problema mas a brevidade da vida humana" (fr. 4, Diels). A "obscuridade" de que fala Protágoras consiste provavelmente no próprio facto de que o divino transcende a esfera daquela experiência humana à qual, segundo Protágoras, é limitado o saber. Todavia, estes esclarecimentos não são suficientes ainda para compreender o alcance do principio protagórico. O interesse de Protágoras, como o de todos os sofistas, não é puramente gnoseológico-teorético. Os problemas que Protágoras toma a peito são os dos tribunais, da vida política e da educação: isto é, os problemas da vida social que surgem no interior dos grupos humanos ou nas relações entre os grupos. O homem que toma em consideração é certamente o indivíduo (e não, 102
como queria Gomperz, o homem em geral ou a natureza humana); mas não o indivíduo isolado, fechado em si como uma mónada, antes o indivíduo que vive juntamente com os outros; por isso deve ser capaz ou tornar-se capaz de afrontar os problemas desta convivência. Seria por isso arbitrário restringir o princípio de Protágoras à relação entre o homem e as coisas naturais: é muito mais correcto entendê-lo no seu alcance mais vasto, como compreendendo todo e qualquer tipo de objecto sobre que recaí uma relação interhumana, compreendidos os objectos que se chamam bons e valorosos. No mesmo significado literal da palavra chrémata usada por Protágoras, os bens e os valores são compreendidos no mesmo título dos corpos ou das qualidades dos corpos. "O homem não é apenas, desse ponto de vista, a 'medida das coisas que se percebem, mas também a do bem, do justo e do belo. Não há dúvida, Protágoras considerava também que tais valores são diferentes de indivíduo para indivíduo porque tais aparecem; e que também neste campo todas as opiniões são igualmente verdadeiras. Na enérgica defesa que o próprio Sócrates faz de Protágoras a meio do Teeteto, diz-se claramente que "as coisas que a cada cidade parecem justas e belas, são também tais para ela, pois que as considera tais" (Teet., 167 e); e esta é uma tese que já pode ser compreendida no princípio de que o homem é a medida de tudo. Os sofistas insistiam de bom grado (como veremos) sobre a diversidade e a heterogeneidade dos valores que regem a convivência humana. Um escrito anónimo, Raciocínios duplos (composto provavelmente na primeira metade do século IV), que se propõe demonstrar que as mesmas coisas podem ser boas e más, belas e feias, justas e injustas, é apresentado pelo seu autor como uma suma do ensino sofístico: "raciocínios duplos (assim se indica no escrito) 103 em torno do bem e do mal são defendidos na Grécia por aqueles que se ocupam da filosofia" (Diels, 90, 1 (1). Pode ser que o autor deste escrito seguisse mais de perto as pisadas de um determinado sofista (por exemplo de Górgias, como alguns estudiosos defendem). mas é difícil imaginar que não se reportasse também a Protágoras que sabemos ter escrito um livro intitulado Antilógia (Diels. 80. fr. 5). A segunda parte do escrito é particularmente interessante pois contém a exposição daquilo que hoje se chama o "relativismo cultural", isto é o reconhecimento da disparidade dos valores que presidem às diferentes civilizações humanas. Eis alguns exemplos: Os Macedónios acham bem que as raparigas sejam amadas e se acasalem com um homem antes de se esposarem, mas censurável depois de casadas; para os Gregos é má tanto uma coisa como a outra... Os Massagetos fazem em pedaços os (cadáveres) dos genitores e comem-nos; e acreditam que é um túmulo belíssimo ser sepultado nos próprios filhos; se ao invés alguém na Grécia fizesse isto, seria expulso e morreria coberto de vergonha por ter cometido uma acção feia e terrível. Os Persas consideram belo que também os homens se adornem como as mulheres e que se juntem com a filha, a mãe e a irmã; ao contrário os Gregos consideram estas acções feias e imorais; etc." (Diels, 90, 2 (12); (14); (15". O autor do escrito conclui a sua exemplificação dizendo que "se alguém ordenasse a todos os homens que agrupassem num só lugar todas as leis (nomoi) que se consideram más e escolhessem depois aquelas que cada um considera boas, nem uma ficaria, mas todos repartiriam tudo" (Diels, 2, 18). Considerações deste género não aparecem isoladas no mundo grego e acorrem frequentemente no ambiente sofístico. Segundo um testemunho de Xenofonte (Mem. IV, 20). Hípias negava que a 104 proibição do incesto fosse lei natural dado que é transgredida por alguns povos vizinhos. oposição entre natureza e lei. característica de Hípias e de outros sofistas (§ 27), não era
mais que uma consequência da concepção relativística que tais sofistas tinham dos valores que presidiam às diferentes civilizações humanas. É-de recordar final,--mente a este propósito que Heródoto -certamente teve ligações com o ambiente sofistico e compartilhou a seu modo a sua direcção iluminística-, depois de ter relatado o costume, referindo-o aos Indianos Callati, de algumas populações darem sepultura no seu estômago aos parentes mortos e depois de ter posto em confronto a repugnância dos Gregos por este costume com a repugnância daqueles Indianos pelo costume dos Gregos de queimar os mortos, concluía com uma afirmação típica do relativismo dos valores: "Se propusessem a todos os homens escolher entre as várias leis e os convidassem a eleger a melhor, cada um, depois de ter reflectido, escolheria (lei) do seu país: tanto a cada um parecem muito melhores as próprias leis". E concluía a sua narrativa comentando: "Assim são estas leis dos antepassados e eu creio que Píndaro tinha razão nos seus versos: "a lei é rainha de todas as coisas" (Hist., IH, 38). Por isso se se tem presente, na interpretação do princípio de Protágoras, a totalidade do ambiente sofístico (que por outro lado o mesmo Protágoras contribui poderosamente para formar), parece óbvio que o princípio se refere a todas as opiniões humanas compreendidas as que se referem às qualidades sensíveis ou às próprias coisas. Mas a heterogeneidade e a equivalência das opiniões não significa a sua imutabilidade: as opiniões humanas são, segundo Protágoras, modificáveis e na realidade modificam-se; e todo o sistema político-educativo que constitui uma comunidade humana (polis) é 105 dirigido precisamente para obter na altura própria modificações nas opiniões dos homens. Em que sentido se tomam estas modificações? Certamente não no sentido da verdade, porque do ponto de vista da verdade todas as opiniões são equivalentes. Tomam-se ao contrário e devem tomar-se no sentido da utilidade privada ou pública. Esta é de facto a tese que vem exposta na defesa que o próprio Sócrates faz de Protágoras no Teeteto (166 a, 168 c). E no Protágoras. diz-se: "Corno os mestres se comportam com os alunos que ainda não sabem escrever, traçando eles mesmos as letras sobre as tabuinhas e obrigando-os a recalcar os traços, assim a comunidade (polis), fazendo valer as leis inventadas pelos grandes legisladores antigos, obriga os cidadãos a segui-las seja no mandar seja no obedecer e pune quem se afasta delas" (Prot., 326 d). Sobre esta mesma possibilidade de rectificação das opiniões humanas no sentido da utilidade privada e pública, se insere, segundo a " defesa" do Teeteto, a obra do sábio que se faz mestre dos indivíduos e da cidade "fazendo parecer justas as coisas boas em lugar das más". Neste sentido, a obra do sábio (ou sofista) é perfeitamente semelhante à do médico ou do agricultor: transforma em boa uma disposição má, faz passar os homens de uma opinião danosa aos indivíduos e à comunidade para uma opinião útil, prescindindo completamente da verdade ou falsidade das opiniões que, a este respeito, são todas iguais para ele (Teet., 167 c-d). $Por isso Protágoras apresentava-se como mestre, não de ciência, mas de "sagacidade nos negócios privados e nos negócios públicos" (Prot., 318 c); e por isso professava a ensinabilidade da virtude, isto é a modificabilidade das opiniões no sentido do útil; e por isso se afirmava (e era considerado) digno de ser recompensado com dinheiro pela sua obra educativa 106 Depois nada há em tudo aquilo que sabemos da doutrina de Protágoras que deixe supor que ele atribuía carácter absoluto às formas que a utilidade reveste na vida pública ou privada do homem. Certamente, segundo Protágoras, "toda a vida do homem tem necessidade de ordem e de adaptação" (Prot., 326 b). Zeus teve de enviar aos homens a arte política, fundada no respeito e na justiça, a fim de que os homens deixassem de
destruir-se reciprocamente e pudessem viver em comunidade (lb., 322 c). Mas nem a arte política é uma ciência nem o respeito e a justiça são objecto da ciência, segundo Protágoras. "Respeito e justiça" são no mito a mesma coisa que '"a ordem e a adaptação" fora do mito: podem assumir inumeráveis formas. Na própria República de Platão o conceito de justiça é introduzido e defendido como condição de qualquer convivência humana, de qualquer actividade que os homens devam desenvolver em comum, compreendida a dum bando de salteadores e de ladrões (Rep., 351 c); e não é por acaso que um testemunho antigo faz depender a República de Platão da Analogia de Protágoras (fr. 5, Diels). Platão não se deteve, é certo, neste conceito formal de justiça: todo o corpo da República é dirigido a delimitá-lo e defini-lo tornando-o objecto de ciência e assim absolutizando-o. Mas para Protágoras ele conservava indubitavelmente o seu carácter formal e assim a sua fluidez; o que significa que, para Protágoras, a própria justiça, isto é, a ordem e o acomodamento recíproco dos homens, alcançáveis através da rectificação que as leis e a educação impõem às suas diferentes opiniões, pode assumir formas diversas, que a sagacidade ou a engenhosidade humana podem descobrir ou fazer valer nas diferentes comunidades humanas. 107 § 26. GóRGIAS Contemporâneo de Protágoras foi Górgias de LentinI, nascido por volta de 484-83; ensinou primeiramente na Sicília e, depois de 427, em Atenas e outras cidades da Grécia. Nos últimos tempos da sua vida estabeleceu-se em Larissa, na Tessália, onde morreu com 109 anos. Foi acima de tudo um retórico, mas escreveu também uma obra filosófica Sobre o não ser ou sobre a natureza, de que Sexto Empírico nos conservou um longo fragmento (Adv. math., VII, 65 sgs.). Temos também fragmentos de alguns dos seus discursos, um Encómío de Helena e uma Defesa de Palamedes. As teses fundamentais de Górgias eram três, concatenadas entre si: I.& Nada existe; 2.a Se algo existe não é cognoscível pelo homem; Ia Ainda que seja cognoscível, é incomunicável aos outros. 1) Sustentava o primeiro ponto demonstrando que não existe nem o ser nem o não-ser. Efectivamente o não-ser não existe porque se existisse seria ao mesmo tempo não-ser e ser, o que é contraditório. E o ser se existisse tinha de ser ou eterno ou gerado ou eterno e gerado ao mesmo tempo. Mas se fosse eterno seria infinito e se infinito não estaria em nenhum lugar, isto é, não existiria de facto. Se é gerado deve ter nascido ou do ser ou do não-ser, mas do não-ser não nasce nada; e se nasceu do ser já existia antes, portanto não é gerado. O ser não pode ser pois nem eterno nem gerado; não pode ser tão-pouco eterno e gerado ao mesmo tempo porque as duas coisas se excluem. Portanto nem o ser nem o nãoser existem. 2) Mas se o ser existe, não pode ser pensado. Efectivamente as coisas pensadas não existem: de outro modo existiriam todas as coisas inverosímeis e absurdas que ao homem ocorra pensar. Mas se é verdade que aquilo que é pensado não existe, será também 108 verdade que aquilo que existe não é pensado e que portanto, o ser. se existe, é incognoscível. 3) Finalmente., ainda que fosse cognoscível, não seria comunicável. Efectivamente, nós expressamo-nos pela palavra. mas a palavra não é o ser; portanto. comunicando palavras, não comunicamos o ser. Górgias, chega assim a um nielismo filosófico total. utilizando as teses eleáticas sobre o ser
e reduzindo-as ao absurdo. Tem-se posto em dúvida se este níilismo representa verdadeiramente uma convicção filosófica de Górgias ou não será antes um simples exercício retórico, uma prova de habilidade oratória. Mas não possuímos elementos para negar o interesse filosófico de Górgias e portanto a seriedade das suas conclusões. Tal conclusão é em certo sentido oposta à da doutrina de Protágoras. Para Protágoras tudo é verdadeiro, para Górgias tudo é falso. Mas na realidade o significado das duas teses é um só: a negação da objectividade do pensamento, portanto da validade que daí deriva na sua referência ao ser. Para o afastamento de tal objectividade, a palavra. particularmente quando é dirigida pela retórica, tem uma força necessitante a que ninguém pode resistir. Na Defesa de Helena, Górgias sustenta que "Helena-seja porque tenha feito o que fez por amor, ou porque persuadida pela palavra. ou porque raptada pela violência, ou porque forçada da constrição divina - em qualquer caso escapa à acusação" (fr. 11, 20). Aqui a força da palavra é posta ao lado da constrição divina ou do poder do amor ou da violência como condição necessitante que elimina a liberdade, portanto a imputabilidade de uma acção. cA força da persuasão diz ainda Górgias-que origina a decisão de Helena, efectivamente enquanto origina por necessidade, não é passível de censura mas possui um 109 poder que se identifica com o desta necessidade" (fr. 12). É claro que, segundo Górgias, a palavra tem força necessitante porque não encontra limites ao seu poder em nenhum critério ou valor objectivo, nalguma ideia no sentido platónico do termo: o homem não pode resistir a ela aferrando-se à verdade ou ao bem e está completamente desprovido de defesa nos seus confrontos. O relativismo teorético e prático da sofística encontra aqui um corolário importante: a omnipotência da palavra e a força necessitante da retórica que a guia com o seu engenho infalível. Quando Platão opõe a Górgias, no diálogo que dele se intitula, que a retórica não pode persuadir se não daquilo que é verdadeiro e justo, parte de um pressuposto que Górgias não partilha: isto é, que existem critérios infalíveis e universais para reconhecer o verdadeiro e o justo (Górgias, 455 a). Aquilo que distingue a retórica de Górgias como arte omnipotente da persuasão, da retórica de Platão como educação da alma para o verdadeiro e o justo, é o pressuposto fundamental do platonismo: a existência de ideias como critérios ou valores absolutos. § 27. OUTROS SOFISTAS Mais jovens que Protágoras e Górgias são os dois contemporâneos de Sócrates, Pródico e Hípias. Pródico de Ceos, conhecido principalmente como autor de um Ensaio de Sinonímica (ridícula-mente consagrado à procura de sinónimos o representa Platão no Protágoras 337 a-c), é também autor de um escrito intitulado Horas, no qual representa o encontro de Hércules com a Virtude e a Depravação. Tanto uma como a outra exortavam o herói a seguir o seu sistema de vida, mas Hércules decidia-se pela Virtude e preferia os suores desta aos prazeres precários da Depravação (fr. 1,Diels). Sabemos também que Pródico afirmava o valor do esforço dirigido para a virtude e considerava a própria virtude como uma condição imposta por um mandado divino para a obtenção dos bens da vida. As Horas deviam conter também partes dedicadas à filosofia da natureza e à antropologia. Em particular. sobre este último tema. sabemos que Pródico aventura sobre a origem da religião 1111na teoria que o fez contar entre os ateus. "Os antigos-dizia ele -consideravam deuses. em virtude da uW~e que deles derivava, o sol. a lua. os raios, as fontes e em geral
todas as coisas que servem para a nossa vida, como, por exemplo, para os Egípcios. o Nilo. E por isto o pão em considerado como Demeter, o vinho como Dionísio, a água como Poseidon. o fogo como Ef~ e a i cada um dos bens que nos é útil" (Sesto E., Adv. math., IX, 18; cir. Cicer, De nw. d~um, ] 37. 118). Hípias de Élide era ao contrário famoso pela sua cultura enciclopédica e pelo vigor da sua memória. N, diálogo platónico Hípias Maior ele próprio declara ser frequentemente enviado pela sua pátria como legado para tratar de negócios com outra cidade; e gaba-se de ter ganho grandes somas com o seu ensino. Compôs elegias e discursos de temas vários, de que possuímos fragmentos escassamente importantes do ponto de vista filosófico. Por um testemunho de Xenofonte (Mem., IV. 4. 5 segs.) que relata uma longa discussão entre ele e Sócrates. sabemos que um dos seus temas preferidos era a oposição entre a natureza (physis) e a lei (nownos). As leis não são uma coisa séria porque não têm uniformidade e estabilidade e aqueles mesmos que as fizeram muitas vezes as revogam. As verdadeiras leis são as que a própria natureza prescreve e que, ainda que não sejam escritas "são válidas em cada país e no mesmo modo". 111 Esta antítese entre as leis e a natureza torna-se o tema favorito da geração mais jovem dos sofistas que muitas vezes se vale dela para defender uma ética aristocrática ou directamente para tecer um elogio da injustiça- Certo é que os sofistas, mostrando (como se disse já no § 25) a relatividade dos valores que regem a convivência humana e recusando-se a proceder à investigação dos valores universais ou absolutos eram levados a ver nas leis nada mais que convenções humanas, mais ou menos úteis mas indignas de um reconhecimento obrigatório. Antifonte, sofista, assegurava que todas as leis são puramente convencionais, por isso contrárias à natureza e que o melhor modo de viver é o de seguir a natureza, isto é de pensar no próprio útil. reservando uma reverência puramente aparente ou formal às leis dos homens (Diels, 87, fr. 44 A, col. 4). Polo e Calicles no Górgias, Trasímaco na República sustentam que a lei da natureza é a lei do mais forte e que as leis que os homens fazem valer na sua convivência são convenções dirigidas a impedir os mais fortes de se valerem do seu direito natural. Segundo a natureza, é justiça que o forte domine o mais fraco e siga em todas as circunstâncias sem freio o talento próprio. e isto acontece de facto quando um homem dotado de natureza capaz rompe as cadeias da convenção e de servo se converte em senhor (Górgias, 484 a; República, 1, 338 b segs.). Outra actividade dos sofistas era a erística, isto é a arte de vencer nas discussões impugnando as afirmações do adversário sem olhar à sua verdade ou falsidade. No Eutidemo platónico, duas figuras menores dos sofistas, Eutidemo e Dionisorodo, são mostrados em acção nalgumas atitudes típicas do seu repertório. Um dos lugares comuns da eurística era o que Platão recorda também no Ménon (80 d) e ao qual opõe a doutrina da anamnesis: isto é, que 112 não se pode indagar nem aquilo que se sabe nem aquilo que não se sabe: porque é inútil indagar sobre aquilo que se sabe e é impossível indagar se não se sabe que coisa indagar. A erística foi certamente a actividade inferior dos sofistas, aquela que mais contribuiu para os desacreditar. Todavia, também essa fazia parte da sua bagagem: quando se nega todo o critério objectivo de indagação e se reconhece a omnipotência da palavra, abre-se o caminho também à possibilidade de usar a própria palavra como puro instrumento de
batalha verbal ou como simples exercício de bravura polémica. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 24. Sobre o nome e conceito de Sofista, os testemunhos antigos em Dieis, cap. 79, e a nota introdutória de M. UNTERSTEINER, Sofisti. Testemunhos e fragmentos, texto grego, trad. -italiana e netag, I-III, 1949-54 (falta ainda o vol. IV). Para a bibliografia ver as notas antepostas aos volumes de Untersteiner ou ainda a obra do mesmo autor, Os Sofistas, Turim, 1949. Sobre o valor da sofística na história da cultura grega. JAEGER, Paideía, 1, livre II, cap. III. Sobre a lógica sofistica: PRANTL, Geschic7ite der Logik, 1, p. 11 segs. § 25. Os fragmentos de Protágoras em DiELs, cap. 80; UNTERSTEINER, cap. 2. Os discursos duplos, em DIELS, cap. 90; UNTERSTEINER, ca-p. 10. Bibliografia sobre Protágoras, em A. CAPUZI, Protágoras, Florença, 1955; S. ZEPPI, Protágoras e a Filosofia do seu tempo, Florença, 1961. § 26. Os fragmentos de G6rgias, em DIELS, cap. 82, e em UNTERSTEINER, cap. 4. Para a bibliografia ver as obras já citadas. § 27. Os fragmentos de Pródico, em DIELS, cap. 84; UNTERSTEINER, cap. 6; de Hipias, em DIELS, cap. 86; UNTERSTEINER, cap. 8; de Antifonte, in DIELS, cap. 87; de Trasímaco, em DiELs, cap. 85; UNTM,SMNER, cap. 7. Sobre todos ver a bibliografia nas obra.s já citadas. 113
ViI SÓCRATES § 28. O PROBLEMA A data do nascimento de Sócrates é determinada pela idade que tinha à data do processo e da condenação. Nessa data (399) tinha setenta anos (Plat., Ap., 175; Crit., 52 e); devia ter nascido portanto em 470 ou nos primeiros meses de 469 a.C.. O pai, Sofronisco, era escultor; a mãe, Fenarete, parteira: ele próprio comparou depois a sua obra de mestre à arte da mãe (Teet., 149 a). Completou em Atenas a sua educação juvenil, estudou provavelmente geometria e astronomia; e se não foi aluno de Anaxágoras (como queria um testemunho antigo), conheceu certamente o escrito deste filósofo, como se depreende do Fédon platónico (97 c). Só se ausentou de Atenas por três vezes para cumprir os seus deveres de soldado e participou nas batalhas de Potideia. Délios e Anfípolis. No Banquete de Platão, Alcibíades fala de Sócrates na guerra como de um homem insensível à fadiga e ao frio, corajoso, modesto e senhor de si mesmo no próprio momento em que o exército era derrotado. 115
Sócrates manteve-se afastado da vida política. A sua vocação, a tarefa a que se dedicou e a que se manteve fiel até ao final, declarando ao próprio tribunal que se preparava para o condenar, que não a abandonaria em caso algum, foi a filosofia; Mas ele entende a investigação filosófica como um exame incessante de si próprio e dos outros; a este exame dedicou todo o seu tempo, sem nenhum ensinamento regular. Por esta tarefa, descurou toda a actividade prática e viveu pobremente com sua mulher Xantipa e os filhos. Todavia, a sua figura não tem nenhum dos traços convencionais de que a tradição se serviu para delinear o carácter de outros sábios, por exemplo, de Anaxágoras ou de Demócrito. A sua personalidade tinha qualquer coisa de estranho (àtopon) e de inquietante que não escapava àqueles que dele se aproximaram e o descreveram. A sua própria aparência física chocava o ideal helénico da alma sábia num corpo belo e harmonioso (kaUagatos): parecia um Sileno e isto estava em estridente contraste com o seu carácter moral e o domínio de si mesmo que conservava em todas as circunstâncias (Banq., 215, 221). Pelo aspecto inquietante da sua personalidade, foi comparado por Platão à tremelga do mar que entorpece quem 'a toca: do mesmo modo provocava a dúvida e a inquietação no ânimo daqueles que dele se aproximavam (Mén., 80).1 Todavia, este homem que dedicou à filosofia a existência inteira e morreu por ela, nada escreveu, É indubitavelmente o maior paradoxo da filosofia grega. Não pode tratar-se dum facto casual. Se Sócrates nada escreveu, foi porque defende que a pesquisa filosófica, tal como ele a entendia e praticava, não podia ser levada por diante ou continuada depois dele, por um escrito. O motivo autêntico da falta de actividade do Sócrates escritor pode ver-se aflorado no Fedro (275 e) plató116 nico, nas palavras que o rei egípcio Thamus dirige a Theut, inventor da escrita: "Tu ofereces aos alunos a aparência, não a verdade da sabedoria; porque quando eles, graças a ti, tiverem lido tantas coisas sem nenhum ensinamento, julgar-se-ão na posse de muitos conhecimentos, apesar de permanecerem fundamentalmente ignorantes e serão insuportáveis para os demais, porque terão não a sabedoria, mas a presunção, da sabedoria". Para Sócrates que entende o filosofar como o exame incessante de si e dos outros, nenhum escrito pode suscitar e dirigir o filosofar. O escrito pode comunicar uma doutrina, não estimular a pesquisa. Se Sócrates renunciou a escrever, isto foi devido ainda à sua própria atitude filosófica e faz parte essencial de tal atitude. § 29. AS FONTES Esta renúncia porém coloca-nos perante o difícil problema de caracterizar a personalidade de Sócrates através de testemunhos indirectos. Possuímos três testemunhos principais: o de Xenofonte nos Ditos memoráveis, de Sócrates, o de Platão que o faz falar como personagem principal na maior parte dos seus diálogos, e o de Aristóteles que lhe dedica breves e precisas alusões. A caricatura que Aristófanes deu de Sócrates nas Nuvems como de um filósofo da natureza que dá dos factos mais simples a explicação mais complicada e como um sofista que converte os discursos mais fracos nos mais fortes e faz triunfar os injustos sobre os justos, quis evidentemente representar no personagem ateniense mais popular o tipo do intelectual inovador, concentrando nele características contraditórias que pertenciam a personagens reais diferentes (Diógenes de Apolónia e Protágoras). Essa caricatura não tem portanto valor histórico. 117 Xenofonte, que era escassamente dotado de espírito filosófico, deu-nos uma imagem extremamente pobre e mesquinha da personalidade de Sócrates; nada no seu retrato
justifica a enorme influência que Sócrates exerceu sobre todo o desenvolvimento do pensamento humano. Por outro lado, a personalidade de Sócrates vive poderosamente nos diálogos de Platão; mas aqui nasce legitimamente a dúvida de que Platão pense e fale ele próprio na figura de Sócrates e que portanto não possa encontrar-se nos seus diálogos o Sócrates, histórico. Finalmente os testemunhos de Aristóteles nada acrescentam a quanto já se encontra em Xenofonte e Platão. Durante um certo tempo, o próprio carácter insuficientemente filosófico da apresentação de Xenofonte e o título da sua obra pareceram uma garantia de fidelidade histórica, frente à evidência da transfiguração a que Platão submeteu a figura do mestre, sobretudo nalguns diálogos. Mas a brevidade das relações de Xenofonte com Sócrates, a ineficácia evidente do ensino socrático sobre o seu carácter e sobre o seu modo de viver (foi substancialmente um aventureiro) e o longo período de tempo, decorrido entre o seu discípulo e a composição do seu escrito, fizeram surgir a suspeita de que este escrito, mais que recolha fiel de recordações socráticas, será uma composição literária, não isenta de intuitos polémicos (sobretudo contra Antístenes, e fundado em boa parte sobre escritos alheios, sem excluir os platónicos. Por outro lado, também os testemunhos de Aristóteles parecem dependentes em boa parte de Platão e talvez mesmo do próprio Xenofonte. De modo que a fonte fundamental para a reconstrução do Sócrates histórico é ainda e sempre Platão. O testemunho de Aristóteles e a representação de Xenofonte (esta última na medida em que é corroborada pela primeira) fornecem antes um critério para discernir e limitar aquilo que na com118 plexa figura que domina a obra de Platão pode efectivamente atribuir-se ao Sócrates histórico. Assim não pode certamente atribuir-se a este último a doutrina das ideias da qual não há indício em Xenofonte e, em Aristóteles; e deve portanto excluir-se a interpretação de um certo estudioso moderno que viu em Platão o historiador de Sócrates e atribuiu, a este último o corpo central do sistema platónico e a Platão apenas a crítica e a correcção de tal sistema, que se iniciam com o Parménides. § 30. O "CONHECE-TE A TI MESMO E A IRONIA "Sócrates chamou a filosofia do céu à terra," Estas palavras de Cícero (Tusc., V, 4, 10) exprimem exactamente o carácter da investigação socrática. Ela tem por objecto exclusivamente o homem e o seu mundo; isto é, a comunidade em que vive. Xenofonte testemunha claramente a atitude negativa de Sócrates frente a toda a pesquisa naturalística e o seu propósito de manter-se no domínio da realidade humana. A sua missão é a de promover no homem a investigação em torno do homem. Esta investigação deve tender a colocar o homem, cada homem individual, a claro consigo mesmo, a levá-lo ao reconhecimento dos seus limites e a torná-lo justo, isto é solidário com os outros; Por isso Sócrates fez sua a divisa délfica "conhece-te a ti mesmo" e fez do filosofar um exame incessante de si próprio e dos outros: de si próprio em relação aos outros, dos outros em relação a si próprio. A primeira condição deste exame é o reconhecimento da própria ignorância. Quando Sócrates conheceu a resposta do oráculo que o proclamava o homem mais sábio de todos, surpreendido andou 119 a interrogar os que pareciam sábios e deu-se conta de que a sabedoria deles era nula.
Compreendeu então o significado do oráculo: nenhum dos homens sabe verdadeiramente nada, mas sábio apenas quem sabe que não sabe, não quem se ilude com saber e ignora assim até a sua própria ignorância. Na realidade só quem sabe que não sabe procurará saber, enquanto os que crêem estar na posse dum saber fictício não são capazes da investigação. não se preocupam consigo mesmos e permanecem irremediàvelmente afastados da verdade e da virtude. Este princípio socrático representa a antítese nítida da sofística. 1 Contra os sofistas que faziam profissão de sabedoria e pretendiam ensiná-la aos outros, Sócrates fez profissão de ignorância: o saber dos sofistas é um não-saber, um saber fictício privado de verdade que dá apenas presunção e jactância e impede de assumir a atitude submissa da investigação, a digna dos homens meio de promoz nos outros essè reconhecimento da própria ignorância, que é a condição da pesquisa, é a ironia. ironia é a interrogação dirigida a descobrir no homem a sua ignorância, a abandoná-lo à dúvida e à inquietação para obrigá-lo à pesquisa.A ironia é o meio de descobrir a nulidade do ar fictício, de pôr a nu a ignorância fundamental que o homem oculta até a si próprio com os ouropéis de um saber feito de palavras e de vazio. A ironia é a arma de Sócrates contra a vaidade do ignorante que não sabe que é tal e por isso se recusa a examinar-se a si mesmo e a reconhecer os limites próprios. Esta é a sacudidela que o torpedo tremelga marinho comunica a quem a toca e sacode pois o homem do torpor e lhe comunica a dúvida que o encaminha para a busca de si mesmo. Mas precisamente por isso é também uma libertação. 120 Sob este aspecto da ironia como libertação do saber fictício, isto é, daquilo que oficialmente ou comummente passa por saber ou por ciência, insistiu justamente Kierkegaard no Conceito da ironia. Trata-se certamente duma função negativa, do aspecto limitante e destrutivo da filosofia socrática, mas precisamente por isso de um aspecto que é indissolúvel da filosofia como investigação e que portanto contribui para fazer de Sócrates o símbolo da filosofia ocidental. 31. A MAIÊUTICA SóCrates não se propõe portanto comunicar uma doutrina ou complexo de doutrinas. Ele não ensina nada: comunica apenas o estímulo e o interesse pela pesquisa] Em tal sentido compara, no Teeteto platónico, a sua arte à da mãe, a parteira Fenarete. A sua arte consiste essencialmente em averiguar por todos os meios se o seu interlocutor tem de parir algo fantástico e falso ou genuíno e verdadeiro. Ele declara-se estéril de sabedoria. Aceita como verdadeira a censura que muitos lhe fazem de saber -interrogar os outros, mas de nada saber responder ele próprio. A divindade que o obriga a fazer de parteiro proíbe-o de dar à luz: E ele não tem nenhuma descoberta a ensinar aos outros e não pode fazer outra coisa senão ajudá-los no seu parto intelectual. E os outros, aqueles que dele se aproximam, a princípio parecem completamente ignorantes, mas depois a sua pesquisa torna-se fecunda, sem que todavia aprendam nada dele. Esta arte maiêutica não é na realidade senão a arte da pesquisa em comum. O homem não pode por si só ver claro em si próprio. A pesquisa que o concerne não pode começar e acabar no recinto 121
fechado da sua individualidade: pelo contrário só pode ser o fruto de um dialogar continuo com os outros, como consigo mesmo. Aqui está verdadeiramente a sua antítese polémica com a sofística. A sofística é um individualismo radical. O sofista não se preocupa com os outros senão para extorquir, a todo o custo e sem preocupar-se com a verdade, o consenso que lhe assegura o sucesso; mas nunca chega à sinceridade consigo próprio e com os outros. No Górgias platónico, Sócrates compara a sofística à arte da cozinha que procura satisfazer o paladar mas não se preocupa se os alimentos são benéficos para o corpo! A maiêutica, é, pelo contrário, semelhante à medicina que não se preocupa se causa dores ao paciente contanto que conserve ou restabeleça a saúde. Ao individualismo sofístico, Sócrates contrapõe, não o conceito de um homem universal, um homem-razão que não tenha já nenhum dos caracteres precisos e diferenciados do indivíduo, mas o vínculo de solidariedade e de justiça entre os homens, pelo qual nenhum deles pode libertar-se ou alcançar qualquer coisa de bom por si só, mas ca um está vinculado aos outros e só pode progredir com a sua ajuda e ajudando-os por sua vez. O universalismo socrático não é a negação do valor dos indivíduos: é o reconhecimento de que o valor do indivíduo não se pode compreender ;nem realizar senão nas relações entre os indivíduos/ Mas a relação entre os indivíduos, se é tal que-garanta a cada um a liberdade da pesquisa de si, é uma relação fundada na virtude e na justiça. E é aqui, portanto, que o interesse de Sócrates, enquanto entende promover em cada homem a investigação de si, se dirige naturalmente ao problema da virtude e da justiça. 122 § 32. Sócrates: CIÊNCIA E VIRTUDE A busca de si é ao mesmo tempo busca de verdade. Por outras palavras : saber e verdade é simultaneamente investigação do saber e da virtude. Saber e virtude identificam-se, segundo Sócrates o homem não pode tender senão para',,-saber aquilo que deve fazer ou aquilo que deve ser: e tal saber é a própria virtude. Este é o princípio fundamental da ética socrática, princípio que vem expresso, na forma mais extrema, no Protágoras de Platão. A maior parte dos homens crêem que sabedoria e virtude são duas coisas diferentes, que o saber não possui nenhum poder directivo sobre o homem, e que o homem, ainda quando sabe o que é o bem, pode -ser vencido pelo prazer e afastar-se da virtude. Mas para Sócrates uma ciência que seja incapaz de dominar o homem e que o abandone à mercê dos impulsos sensíveis, não é tão-pouco uma ciência. Se o homem se entrega a estes impulsos, isto significa que ele sabe ou crê saber que tal seja a coisa mais útil ou mais conveniente para ele. Um erro de juízo, a ignorância portanto, é a base de toda a culpa e de todo o vício. É um mau cálculo o que faz o homem preferir o prazer do momento, não obstante as consequências más ou dolorosas que daí possam derivar; e um cálculo errado é fruto de ignorância. Quem sabe verdadeiramente, faz -bem os seus cálculos, escolhe em cada caso o prazer melhor, aquele que não pode ocasionar-lhe nem dor nem mal; e esse só o prazer da virtude. Portanto, para ser virtuoso, não é necessário que o homem renuncie ao prazer. A virtude não é a negação da vida humana, mas a vida humana perfeita; compreende o prazer e é antes o prazer máximo. A diferença entre o homem virtuoso e o homem que o não é, está em que o primeiro sabe 123 fazer o cálculo dos prazeres e escolher o maior; o segundo não sabe fazer este cálculo e entrega-se ao prazer do momento. O utilitarismo socrático é assim um outro aspecto da
polémica contra os sofistas. A ética dos sofistas oscilava entre um franco hedonismo como o encontramos defendido por Antifonte, por exemplo, e por alguns interlocutores dos diálogos platónicos, e aquela espécie de activismo da virtude que foi a tese de Pródico. Para Sócrates, uma e outra destas duas tendências são insustentáveis. A virtude não é puro prazer nem puro esforço, mas cálculo inteligente. Neste cálculo, a profissão ou a defesa da justiça não pode encontrar lugar porque a injustiça não é mais que um cálculo errado. Contra a identificação socrática de ciência e virtude, já Aristóteles observava que, dessa maneira, Sócrates reconduz a virtude à razão, enquanto que se a virtude não é tal senão com a razão, ela não se identifica, com a própria razão (Et. Nic., 13, 1144 J b). Aceite por Hegel (Geschichte der Phil., I, cap. II, B, 2 a), esta critica tornou-se muito comum na historiografia filosófica e está, entre outras coisas, no fundamento da desvalorização que Nietzsche intentou da figura de Sócrates quando quer entrever nele a tentativa de reduzir o instinto à razão e portanto de empobrecer a vida (Ecee Homo). Mas na verdade tudo aquilo que se pode censurar a Sócrates é o não ter feito as distinções entre as actividades ou faculdades humanas que Platão e Aristóteles introduziram na filosofia. Para Sócrates, o homem é ainda uma unidade indivisa. O seu saber não é apenas a actividade do seu intelecto ou da sua razão, mas um total modo de ser e de comportar-se, o empenhar-se numa investigação que não reconhece limites ou pressupostos fora de si, mas encontra por si a sua disciplina, Segundo Sócrates, a virtude é ciência, em primeiro lugar 124 porque não se pode ser virtuoso conformando-se simplesmente com as opiniões correntes e com as regras de vida já conhecidas. É ciência porque é investigação, investigação autónoma dos valores sobre que deve fundar-se a vida. § 33. A RELIGIÃO DE SóCRATES Para Sócrates o filosofar é uma missão divina, uma -tarefa confiada por um mandato divino (Ap., 29-30). Fala de um demónio, de uma inspiração divina que o aconselha em todos os momentos decisivos da vida. Interpreta-se comummente este demónio como a voz da consciência; na realidade é o sentimento de uma investidura recebida do alto, própria de quem abraçou uma missão com todas as suas forças. Por isso o sentimento da divindade está sempre presente na investigação socrática, como sentimento do transcendente, daquilo que está para lá do homem e é superior ao homem, e do alto o guia e lhe oferece uma garantia providencial. Certamente a divindade de que fala Sócrates não é a da religião popular dos Gregos. Ele considera que o culto religioso tradicional faz parte dos deveres do cidadão e por isso aconselha cada qual a ater-se ao costume da própria cidade e ele próprio se atém a ele. Mas admite os deuses só porque admite a divindade: neles não vê mais que encarnações e expressões do único princípio divino, ao qual se podem pedir não já bens materiais, mas o bem, aquele que só é tal para o homem, a virtude. E na realidade a sua fé religiosa não é outra coisa senão a sua filosofia. Esta religiosidade socrática não tem, óbviamente, nada a ver com o cristianismo de que Sócrates, na velha historiografia, tem sido frequentemente considerado o precursor Não se pode falar 125 de cristianismo se se Prescinde da revelação; e nada é mais estranho ao espírito de Sócrates do que um saber que seja ou pretenda ser de revelação divina. Aquilo que a
divindade ordena, segundo Sócrates é o empenho na investigação e o esforço para a justiça; í' aquilo que ela garante é que "para o homem honesto não existe mal nem na vida nem na morte" (Ap., 41 c). Mas, quanto à verdade e à virtude, o homem deve procurá-la e realizá-la por si. § 34. A INDUÇÃO E O CONCEITO Aristóteles caracterizou a investigação de Sócrates do ponto de vista lógico. "Duas coisasdisse ele - (Met., XIII 4, 1078 b) se podem com boas razões atribuir a Sócrates: os raciocínios indutivos e a definição do universal (katholon), e ambas se referem ao princípio da ciência." O raciocínio indutivo é aquele que, do exame de um certo número de casos ou afirmações particulares, conduz a uma afirmação geral que um conceito exprime. Por exemplo, no Górgias, das afirmações de que quem aprendeu arquitectura é arquitecto, quem aprendeu música é músico, quem aprendeu medicina é médico, Sócrates chega à afirmação geral de que quem aprendeu uma ciência é tal qual foi tornado pela' mesma ciência. O raciocínio indutivo dirige-se, portanto, para a definição do conceito; e o conceito exprime a essência ou a natureza de uma coisa, aquilo que verdadeiramente a coisa é (SEN., Mem., IV, 6, 1). Este procedimento, nota ainda Aristóteles, foi aplicado por Sócrates apenas nos argumentos morais. Efectivamente ele não se ocupa da natureza: nos argumentos morais procurou o universal e assim levou a sua investigação para o terreno da ciência 126 (Met., 1, 6, 987 b 1). Portanto, a Sócrates cabe o mérito de ter sido o primeiro a organizar a investigação segundo um método propriamente cientifico. O saber, de que quer despertar a necessidade e o interesse nos homens, deve ser uma ciência, alcançada segundo um método rigoroso. E efectivamente só uma ciência deste género, com a sua perfeita objectividade, permite aos homens entenderem-se e associarem-se na investigação comum. Só como ciência, a virtude é ensinável (Prot., 361 b). Foi posto em dúvida o valor do testemunho aristotélico sobre o significado lógico da investigação socrática. As afirmações de Aristóteles derivariam das de Xenofonte (Mem., IV, 6) e estas por sua vez das platónicas (Fedro., 262 a-b). Por outro lado, ainda que se atribua todo o valor aos testemunhos de Aristóteles e de Xenofonte, não se seguiria daí que caiba a Sócrates o título de inventor do conceito, pois que investigou apenas conceitos ético-práticos e estes exprimem não aquilo que realmente é, mas aquilo que deve ser: a sua obra científica não apontava para o conhecimento, mas era reflexão crítico-normativa em torno do fazer e do viver do homem. Ora precisamente aquilo que estas considerações têm de verdadeiro revela o mérito indubitável de Sócrates como iniciador da investigação científica e confirma o testemunho de Aristóteles. E, em primeiro lugar, ainda que Xenofonte e Aristóteles tivessem repetido substancialmente os testemunhos de Platão, este próprio facto equivaleria à confirmação dos mesmos por parte de homens que tinham maneira de comprovar a sua exactidão, Xenofonte fora aluno de Sócrates e ainda que os anos decorridos e a sua escassa capacidade filosófica o tornassem pouco apto para compreender a personalidade do mestre, não se pode crer que o tornassem incapaz até de compreender o método da sua investigação. Quanto a Aristóteles 127 é difícil supor que se teria limitado a reproduzir o testemunho de Xenofonte se este estivesse em contradição com uma tradição que, dentro e fora do ambiente platónico, era
viva e operante. Mas a questão fundamental é a do significado que o conceito tem para Sócrates. Indubitavelmente os conceitos que Sócrates elaborou são todos de carácter ético-prático e referem-se ao dever ser e não à realidade de facto. Mas qualquer conceito, teorético ou prático, tem por objecto a essência das coisas, o seu ser permanente ou a sua substância. Que coisa seja a substância ou a essência é depois o problema que Sócrates deixaria em herança aos seus sucessores e que constitui o tema fundamental da investigação de Platão e de Aristóteles. § 35. A MORTE DE SÓCRATES A influência de Sócrates exercera-se já em Atenas sobre toda uma geração, quando três cidadãos, Meleto, Anito e Licone o acusaram de corromper a juventude ensinando crenças contrárias à religião -do estado. A acusação tinha escassa consistência e teria ficado em nada, se Sócrates tivesse feito qualquer concessão aos juízes. Não quis fazer nenhuma. Pelo contrário, a sua defesa foi uma exaltação da tarefa educativa que havia empreendido relativamente aos atenienses. Declarou que em caso algum abandonaria esta tarefa, à qual era chamado por uma ordem divina. Por uma pequena maioria, Sócrates foi reconhecido culpado. Podia ainda partir para o exílio ou propor uma pena que fosse adequada ao veredicto. Em vez disso, ainda que manifestando-se disposto a pagar uma multa de três mil dracmas, declarou orgulhosamente que se sentia merecedor de ser alimentado a expensas públicas no Pritaneu como se fazia aos beneméritos da cidade. Seguiu-se então. com mais forte maioria, a condenação à morte que fora pedida pelos seus acusadores. Entre a condenação e a execução decorreram trinta dias porque uma solenidade sagrada impedia naquele período as execuções capitais. Durante este tempo os amigos organizaram a sua fuga e procuraram convencê-lo; mas recusou. Os motivos desta recusa são expostos no Críton platónico: Sócrates quer dar com a sua morte um testemunho decisivo a favor do seu ensinamento. Vivera até então ensinando a justiça e o respeito pela lei; não podia com a fuga ser injusto para com as leis da sua cidade e desmentir assim, no momento decisivo, toda a sua obra de mestre. Por outro lado, não temia a morte. Ainda que não tivesse uma absoluta certeza da imortalidade da alma. nutria a esperança de uma vida depois da morte que fosse para os homens justos melhor do que para os maus. Tinha setenta anos; sentia que completara a sua missão, que lhe permanecera fiel toda a sua vida e que devia dar-lhe ainda, com a morte, a última prova de fidelidade. As suas últimas palavras aos discípulos foram ainda um incitamento à investigação: "Se tiverdes cuidado com vós próprios, qualquer coisa que façais será grata a mim, aos meus e a vós mesmos, ainda que agora não vos compremetais em nada. Mas se pelo contrário não vos preocupardes com vós próprios e não quiserdes viver de maneira conforme àquilo que agora e no passado vos tenho dito, fazer-me agora muitas e solenes promessas não servirá de nada" (Fed., 115 b). Se a Grécia antiga foi o berço da filosofia porque pela primeira vez realizou a investigação autónoma, Sócrates encarnou na sua pessoa o espírito genuíno da filosofia grega porque realizou no mais alto grau a exigência daquela investigação. No empenho de uma investigação conduzida com 129 método rigoroso e incessantemente continuado, pôs o mais alto valor da personalidade humana: a virtude e o bem. Tal é de facto o significado daquela identificação entre a virtude e a ciência, que foi conhecida tantas vezes por intelectualismo. A ciência
é para Sócrates a investigação racional ente conduzida e a virtude é a forma de vida propriamente humana. a sua identidade é a significado não só da problemas, da própria personalidade de Sócrates. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 28. os restos de uma Vida de Sócrates, escrita por Aristoxerio, discípulo de Aristóteles, encontram-se em MuLhER, Fragm. hist. graec., 11, p. 280 se98Encontram-se outras noticias nos Memoráveis e na Apologia de Xenofonte e nos diálogos de Platão, citados no texto. Existe, além disso, a Vida de DIOGENES LAIÉRCIO, 11, 18 segs.. Para a edição dos escritos de Xenofonte e de Platão, relativos a Sócrates, ver notas bibliográficas dos capitulos 8 e 9. § 29. Atribuiram valor histórico à caricatura de Aristófanes: ClITAPELLI, O naturalismo de Sócrate,9 e as primeiras nuvens de Aristóla~, in "Rend. Ace. Lincei, CI. Seienze morali", 1886, p. 284 segs.; Novas investigações sobre o naturalismo de 3ócrate8, In "Archv. für Gesch. der Phil.", IV, p. 369 sgs.; T-AyLoR, Varia socratíca, Oxford, 1911, p. 129 s,-s.. Seguiu preferentemente Aristóteles para a interPretaçço de Sócrates: K. JOFJ,, Der echte und der xe-nc-fonteus Sokrates, Berlim, 1893-1901, ao passo que seguiu Xenofonte A. DORING, Die Lehre des Sokrates ais soziales Reformsystem, Mónaco, 1895.-J. BURNET, Greek Philosophy, 1, cap. 11, e A. E. TAYLOR, VariO s~atica, Oxford, 1911; ID., Socrates, Londres, 1935, trad. itali., Florença, 1951; ID., Plato, Londres, 1926 (4.* edição, 1937) consideram que Platão foi apena-, * historiador de Sócrates. Seguiram preferenternenU * representação de Xenofonte, servindo-se para valerizÁ-la dos testemunhos de Aristóteles: ZELLER, V01. 11, 2; GompERz, vol. III, p. 46 sgs.; WILLAMOWITZ, Platon, I, p. 94 sgs. e outros historiadores dependentes destes. ENRICO MAIER, Sokrates, sein Werk und seine 130 geachichtUche SteUung, Tubinga, 1913 (,trad. ital., Florença, 1944), nega qualquer valor histórico ao testemunho de Aristóteles que considera dependente em tudo de Pistão e de Xenofonte, reduz a obra deste último a uma pura composição Uter&ria (pelos motivos repetidos no texto) e funda-se sobretudo em Platão pela sua feliz reconstrução da figura de Sócrates. -Sobre as diversas interpretações que têm sido dadaa ao significado filosófico da figura de Sócratea e para a bibliografia relativa: PAOLO ROSSI, Per una storia della 8toríografia &ocratica, in Probemi di atoriografia filo"fioa, ao cuidado de A. BANFI, Milão, 1951. Con~ frontar entre outros: O. GIGON, S., Berna, 1947; V. DE MAGAIMÃESVILHENA, Le problèm-- de S.; Le S. historiqi&e et le S. de Platon, Paris, 1952; A. H. CHROUST, S. Man and Myth, Londres, 1956; J. BRUN, S., Paris, 1960. § 30. Para a missão de Sócrates, ver a Apologia de Platão, especialmente cap. 17. Para o "conhece-te a ti mesmo", o Alcib~ 1, 129 sgs. Para a ironia, Mémm, SO. Para o poder de libertação da ironia, Sofísta, 230. § 31. Sobre a malêutica, especialmente Teeteto, 148, 151, 210. § 32. Sobre a Identidade da ciência e virtude e sobre o utilitarísmo de Sócrates, cfr. o
Protágor", sobre que é fundada a exposição deste parágrafo. % 33. Sobre o demónio socrático, confr. especialmente Apologia, 29, 30. Mas as alusões de Sócrates ao seu demónio são frequentes em todos os diálogos socráticos de Platão. Mais frequentemente, o demónio age negativamente, dissuadindo Sócrates de realizar uma acção qualquer. Mas o demónio principalmente chama-o para a sua tarefa de examinar os outros e a si próprio. Sobre as Ideias religiosas de Sócrates: Xenoffonte, Men~abili, 1, 4; IV, 3. O demónio é compreendido como a voz da consciência por ZELLER e GOMPM, loc. cit.. Ver sobre a insuficiência desta interpretação- MAiER, parte UI, cap. 4. § 34. A critica do valor do testemunho de Aristóteles está in MAiER, op. cit., vol. I, parte I, cap. 3; parte 11, cap. IV. A conclusão que nega a Sócrates o mérito de descobridor do conceito com os argu131 mentos discutidos no texto, estã a p. 283 da traduÇAO Itallana. § 35. As vIciasitudes do processo de Sócrates encontram-se na Apologia de Platão e na de Xenofonte. O Críton expõe a atitude de Sócrates frente ao projecto de fuga preparado pelos amigos. O final do Pé~ narra as últimas horas de S6crates e a sua morte. 132 VIII AS ESCOLAS SOCRÁTICAS § 36. XENOFONTE Nascido em 440-39, e morto com 80-90 anos, Xenofonte não foi um filósofo, mas antes um homem de acção, especialmente competente em assuntos militares e em questões económicas. Conhecido principalmente por ter dirigido a retirada dos dez mil gregos que participavam na expedição de Ciro contra o irmão Artaxerxcs para a conquista do trono da Pérsia, retirada que ele narrou no An~s, Xenofonte pertence à história da filosofia por Os Ditos Memoráveis de Sócrates e por outros escritos menores nos quais se faz sentir a influência do ensinamento de Sócrates. Vimos que os Memoráveis não oferecem um quadro exaustivo da personalidade de Sócrates. A Apologia de Sócrates é a continuação dos Memoráveis e pretende ser a defesa pronunciada por Sócrates ante os juízes. Outros escritos que provam o diletantismo filosófico de Xenofonte são A Ciropedia. uma espécie de romance histórico que tende a desenhar em 133 Ciro o tipo ideal do tirano iluminado; o diálogo intitulado Gerone que tem um intento análogo; e o Banquete, escrito provavelmente à imitação do platónico no qual aparece também a figura de Sócrates. Nenhum enriquecimento ou desenvolvimento original deu Xenofonte à doutrina de Sócrates. Entre os demais discípulos de Sócrates parece que Ésquines escreveu sete diálogos de carácter socrático que não chegaram até nós. Também a Simias e, a Cebes os dois interlocutores do Fédon platónico, se atribuem escritos de que nada se sabe. Quatro discípulos de Sócrates, além de Platão, são fundadores de escolas filosóficas: Euclides da escola de Megara; Fédon da de Elida; Antístenes da Cínica; Aristípo da
Cirenaica. Mas da escola de Fédon, a qual foi devida a Menedemo de Eretria, que sucedeu a Fédon, se chamou Eretríaca, nada sabemos. Cada uma das três outras escolas socráticas acentua um aspecto do ensinamento de Sócrates, descurando ou negando os outros. A escola cínica coloca o bem na virtude e repudia o prazer. A cirenaica situa o bem no prazer e proclama-o como o único fim da vida. A megárica acentua a universalidade do bem até o subtrair à esfera do -homem e a identificá-lo com o ser de Parménides. § 37. A ESCOLA MEGÁRICA Euclides de Megara (não confundir com o matemático Euclides que viveu e ensinou em Alexandria cerca de um século mais tarde), depois da morte de Sócrates, voltou à sua cidade natal e aqui procurou continuar com o seu ensino a obra do mestre. Parece que pertenceu à primeira geração dos discípulos de Sócrates e que não viveu mais de um decénio depois da sua morte. Outros represen134 tantes da escola são Eubulídes, de Mileto, o adversário de Aristóteles; Diodoro Crono (morto em 307 a.C.) e Estilpon que ensinou em Atenas por volta de 320. A característica da escola megárica é a de unir o ensino de Sócrates com a doutrina eleática. Euclides considerava que um só é o Bem e é a virtude que é sempre idêntica a si própria apesar de ser chamada com muitos nomes: Sabedoria, Deus, Intelecto, etc. Ao mesmo tempo negava a realidade de tudo aquilo que é contrário ao bem. E como o conhecimento do bem é a virtude, admitia que não há mais que uma virtude e que as várias virtudes não são mais que diversos nomes da mesma. Para afirmarem a unidade, os Megáricos, seguindo as pisadas dos Eleatas, repudiavam completamente a sensibilidade como meio de conhecimento e prestavam fé exclusivamente à razão. Consequentemente, como os Eleatas, negavam a realidade do múltiplo. do devir e do movimento; e desenvolveram uma dialéctica, semelhante à de Zenão de Eleia, destinada a reduzir ao absurdo toda a afirmação que implicasse a realidade do múltiplo, do devir e do movimento. Contra a multiplicidade, usaram argumentos, desenvolvidos sofisticamente, que se tornaram famosos. Eubulides, usou entre outros o argumento do sorites (ou montão): tirando um grão de um montão, o montão não diminui; nem sequer tirando-os todos um a um (DioG. L., VII, 82). O mesmo argumento se repetia para os cabelos ou para a cauda de um cavalo (argumento do cavalo: Cicer., Acad., 11, 49: Horácio, Ep. II, I). À mesma negação de qualquer multiplicidade se encaminha a crítica dos megáricos sobre a possibilidade do juízo. Segundo Estilpon, é impossível atribuir um predicado ao sujeito e dizer, por exemplo, que "o cavalo corre". Efectivamente o ser do cavalo e o 135 ser do que corre são diferentes e definimo-los diferentemente: não se pode portanto identificá-los como se faz na proposição. Por outro lado, se fossem idênticos. isto é, se o correr fosse idêntico ao cavalo, como se poderia atribuir o mesmo predicado de correr também ao leão e ao cão? Admitida uma multiplicidade qualquer ou como composição de partes (como no argumento do sorites) ou como diversidade de predicados, segue-se daí o absurdo; e assim fica demonstrada a falsidade de tal admissão.
Os Megáricos admitiram também argumentos que não têm em mim a redução ao absurdo do múltiplo mas pertencem ao género daqueles que hoje se chamam antinomias ou paradoxos, isto é argumentos indecidíveis, no sentido de que não se pode decidir sobre a sua verdade ou falsidade. O mais famoso de tais argumentos é o de mentiroso que vem referido assim por Cícero: "Se tu dizes que mentiste, ou dizes a verdade e então mentiste ou dizes o falso e então dizes a verdade" (Acad., IV, 29, 96). Se alguém diz "menti" (sem nenhuma limitação) faz uma asserção que concerne todas as suas asserções compreendida a que enuncia neste momento; mas se mentiu ao dizer "menti" isto significa que diz a verdade; e se diz a verdade quer dizer que mentiu e assim por diante. A base do argumento consiste portanto em fazer asserções desprovidas de limitações que concernem todos os casos, compreendido aquele constituído pela própria asserção: noutros termos, consiste no uso autoreflexivo da noção "todos" considerada inclusiva da própria asserção. Argumentos do género são discutidos também na lógica contemporânea. Na antiguidade, discutiram-nos, além dos Megáricos, os Estóicos: e na Idade Média a discussão deles fez parte integrante da lógica terminística que os chamava insolúveis (Insolubilia). 136 Contra o devir e o movimento, os Megáricos por obra de Diodoro, Crono, negaram que houvesse potência quando não há acto; por exemplo, quem não constrói não tem o poder de construir. Este princípio suprime o movimento e o devir porque (como nota Aristóteles) quem está em pé estará sempre em pé e quem está sentado estará sempre sentado, sendo impossível levantar-se a quem não tem o poder de levantar-se. O argumento de Diodoro Crono (dito o argumento vitorioso) afirma que só aquilo que se verificou era possível, pois que se fosse possível aquilo que nunca se verifica, do possível resultaria o impossível. O argumento leva a admitir que tudo aquilo que acontece deve necessariamente acontecer, e que a própria imutabilidade que existe para os factos passados existe também para os futuros. anda que não pareça. Brincando com este argumento, Cícero escrevia a Varrão: "Saberão que se me fazes uma visita, essa visita é uma necessidade, pois, se não o fosse, contar-se-ia entre as coisas impossíveis." Diodoro retomava pois, reelaborando-os, os argumentos de Zenão contra o movimento. Estilpon colocava o ideal do sábio na impassibilidade (apatheia) e considerava que o sábio se basta a si próprio e por isso não tem necessidade de amigos. § 38. A ESCOLA CINICA. ANTISTENES O fundador da escola cínica é Antístenes de Atenas que foi primeiro discípulo de Górgias, depois de Sócrates e após a morte deste ensinou no Ginásio Cinosargos. O nome da escola deriva do género de vida dos seus sequazes: o epíteto de cães indicava o seu ideal de vida conforme à simplicidade (e à desfaçatez) da vida animal. 137 Antístenes escreveu ao que parece (mas não nos chegou quase nada), um livro Sobre a natureza dos animais, no qual provavelmente tirava dos animais modelos ou exemplos para a vida humana; e compôs escritos sobre personagens homéricos (Ajax, Ulisses) ou mitos (Defesa de Orestes). Mas a figura que Antístenes e os outros cínicos principalmente exaltavam era a de Hércules que é precisamente o título de um outro escrito de Antístenes. Hércules, superando fadigas desmedidas e vencedor de monstros, é o símbolo do sábio cínico que vence prazeres e dores e sobre uns e outros afirma a sua força de ânimo.
Antístenes concordava com os Megáricos ao considerar impossível todo o juízo que não fosse a pura e simples afirmação de uma' identidade. Platão que alude a Antístenes no Sofista (215 b-c), incluindo-o com certo desprezo entre "os, velhos que começaram tarde a aprender", testemunha-nos que ele considerava impossível afirmar, por exemplo, que "o homem é bom" porque isso equivaleria a dizer que o homem é ao mesmo tempo um (homem) e múltiplo (homem e bom); e queria portanto que se dissesse apenas "o homem homem" e "o bom bom". Aristóteles confirma o testemunho de Platão: "Antístenes professava a estulta opinião de que de nenhuma coisa se possa dizer mais que o seu nome próprio e que por isso não pode dizer-se mais que um só nome de cada coisa individual." (Met., V, 29, 1024 b, 32). Disto derivaria -nota Aristóteles-que é impossível contradizer e é impossível até dizer o faise,-, efectivamente ou se fala da própria coisa e não nos podemos servir senão do seu próprio nome e não há contradição ou se fala de duas coisas diferentes e tão-pouco neste caso é possível a contradição. Segundo este ponto de vista, a doutrina platónica das ideias como realidade universal devia parecer inconcebível, dado 138 que para Antístenes a realidade é sempre individual. e até, como veremos de seguida, corpórea; e além dela não há mais que o nome próprio que a indica: não subsiste nenhum universal. De facto teria observado a Platão: "Ó Platão, vejo o cavalo mas não a cavalidade". Ao que Platão teria respondido: "Porque não tens olhos para vê-la" (Simpl., Cat, 66 b, 45). Antístenes foi o primeiro que considerou a definição flogos) como a expressão da essência de uma coisa: "a definição é aquilo que exprime aquilo que é ou era." Mas a definição só é possível das coisas compostas, não dos elementos de que resultam. Cada um destes elementos pode ser unicamente nomeado, mas não caracterizado de outro modo, os compostos, pelo contrário, ao constarem de vários elementos, podem ser definidos entrelaçando entre si os nomes destes elementos (Arist., Met., VIII, 3, 1043 b, 25). A Antístenes parece que se referem também as alusões do Sofista e do Teeteto aos homens "que não acreditam que haja outra coisa senão aquilo que se pode apertar com as mãos todas" isto é, aos materialistas que não admitem que não haja mais realidade que a corpórea. O único fim do homem é a felicidade e a felicidade está no viver segundo a virtude. A virtude é concebida pelos cínicos como inteiramente suficiente por si mesma. Não existe outro bem fora dela. O que os homens chamam bens e em primeiro lugar o prazer, são males porque distraem ou afastam da virtude. "Quisera antes ser louco do que gozar", dizia Antístenes. Por isso o homem deve procurar libertar-se das necessidades que o escravizam. Deve também libertar-se de todo o vínculo ou relação social e bastar-se absolutamente a si próprio. Contra a religião tradicional, Antístenes afirmou que "segundo as leis, os deuses são muitos, 139 mas orientando a natureza há um só deus" (Cícero, De nat. deor., 1. 13, 32); afirmação que provavelmente não tinha o significado monoteístico que seríamos tentados a dar-lhe, mas exprimia apenas a exigência universal e panteística de que a divindade está presente em toda a parte. § 39. DIÓGENES Diógenes de Sinope, que foi discípulo de Antístenes em Atenas e dali passou a Corinto onde morreu muito velho em 323 a.C., foi chamado (talvez por Platão) o Sócrates louco.
Este apelativo revela o carácter do personagem. Ele levou ao extremo o desprezo característico da escola cínica por todo o costume, hábito ou convenção humana e quis realizar integralmente aquele retorno à natureza que é o ideal da escola cínica. Não nos chegou quase nada dos seus sete dramas e dos seus escritos em prosa (entre os quais uma República). A lenda apoderou-se dele, atribuindo-lhe um grande número de anedotas e de características que provavelmente nada têm de histórico. Certamente não habitou sempre num tonel, nem sempre viveu como mendicante. Mas a sua oposição a todos os usos e às convenções humanas era radical. Diz-se que foi o primeiro a usar a capa de tecido grosseiro que servia também de coberta, a sacola onde trazia o alimento e o bordão, que depois se tornaram os distintivos dos Cínicos na sua vida de mendicantes (Diog. L., VI, 22). Diógenes defendia a comunidade das mulheres e até a dos filhos; declarava-se cidadão do mundo e manifestava em todas as circunstâncias da vida aquela desvergonha que se tornou proverbial entre os Cínicos. Aqueles que para afirmar a força de ânimo do homem entendiam reconduzi-lo à naturalidade primitiva da 140 vida animal. pouca conta podiam fazer do saber e da ciência; e verdadeiramente neste ponto, a escola cínica foi gravemente infiel ao ensinamento socrático que na investigação científica reconhecia a verdadeira vida do homem. No numeroso bando dos Cínicos - mostram todos monotonamente os mesmos traços e agitam furiosamente capas e sacolas para exibir uma força de ânimo que Sócrates ensinara dever alcançar-se com a serena e paciente investigação científica -, distingue-se Cratete, um tebano de nobre família que foi seguido na vida de mendicante pela mulher Hiparquias. Compôs poesias satíricas e trágicass onde celebrava o cosmopolitismo e a nobreza. § 40. A ESCOLA CIRENAICA. ARISTIPO O fundador da Escola Cirenaica é Aristipo de Cirena. Nascido por volta de 435, foi para Atenas depois de 416 e aqui conheceu e frequentou Sócrates. Depois da morte dele ensinou em várias cidades da Grécia e foi também a Siracusa junto da corte do primeiro ou segundo Dionísio. São-lhe atribuídas numerosas obras, entre as quais uma História da Líbia, mas a atribuição é insegura e de tais obras nada -ficou. Como para os outros fundadores das escolas socráticas torna-se difícil discernir, no conjunto de doutrinas que foram transmitidas como património dos Cirenaicos, as que pertencem genuinamente ao fundador da Escola. Ademais porque Aristipo teve uma filha Arete que continuou o seu ensinamento e iniciou na doutrina do pai o filho Aristipo, e um escritor antigo atribuiu ao mais jovem Aristipo o desenvolvimento sistemático das ideias da escola. Mas os testemunhos de Platão, de Aristóteles e de Speusipo (autor de um 141 diálogo intitulado Aristípo que andou perdido) convêm em atribuir ao primeiro Aristipo as doutrinas fundamentais da escola. Também para os Cirenaicos, como para os Cínicos e os Megáricos, a investigação teorética passa para segundo plano e é cultivada apenas como um contributo para resolver o problema da felicidade e da conduta moral. Porém, a sua ética compreendia também uma física e uma teoria do conhecimento, pois que (segundo os testemunhos de Sexto Empírico e de Séneca) estava dividida em cinco partes: a primeira em torno das coisas que são de desejar ou de evitar, isto é, em torno do bem e do mal; a segunda em torno das paixões; a terceira em torno das acções; a quarta em torno das causas, isto é, dos fenómenos naturais;
e a quinta em torno da verdade (Sexto E., Adv. math., VH. 11). Evidentemente a quarta e a quinta partes são a física e a lógica. Na teoria do conhecimento, Aristipo inspira-se prevalentemente em Protágoras. Considera que o critério da verdade é a sensação e que esta é sempre verdadeira, mas não diz nada sobre a natureza do objecto que a produz. Podemos afirmar com certeza que vemos o branco ou sentimos o doce; mas que não é possível demonstrar que o objecto que produz a sensação seja branco ou doce. Aquilo que nos aparece, o fenómeno, é apenas a sensação; pois bem, esta é certa, mas para lá dela é impossível afirmar seja o que for (Sesto E., Ad. math., VII, 193, segs.). A doutrina da sensação que o Teeteto (156-7) platónico desenvolve, deduzindo-a do princípio de Protágoras de que o homem é a medida das coisas, parece ser característica de Aristipo, a que Platão alude com a frase: "outros mais requintados". Segundo esta doutrina, há duas formas de movimento, cada uma das quais é depois 142 infinita em número: uma tem potência activa (o objecto), a outra tem potência passiva (o sujeito). Do encontro destes dois movimentos se gera por um lado a sensação, pelo outro o objecto sensível. As sensações têm os seus nomes habituais: vista, ouvido, ete., ou então prazer, dor, desejo, temor, etc.-, os sensíveis têm nomes correlativos às sensações: cores, sons, etc.. Mas nem o objecto sensível, nem a sensação subsistem antes nem depois do encontro dos dois movimentos que lhes dão lugar; e em tal sentido nada é, mas tudo se gera. A sensação é também o fundamento dos estados emotivos do homem. Estes são três: um para quem sente dor, semelhante às tempestades no mar; o outro para quem sente prazer, semelhante às ondas ligeiras, porque o prazer é um movimento leve comparável a uma brisa favorável; o terceiro é o estado intermédio, pelo qual não se sente nem prazer, nem dor, semelhante à calma do mar (Eusébio, Prap. ev., XIV, 18). Segundo Aristipo, o bem consiste apenas nas sensações agradáveis; e a sensação agradável é sempre actual. O fim do homem é portanto o prazer, não a felicidade. A felicidade é o sistema dos prazeres particulares, na qual se somam também os prazeres passados e futuros; mas ela não é desejada por si própria, antes pelos prazeres particulares de que é tecida (Diog. L., 11, 88). O prazer-e o bem portanto-era, por conseguinte, para Aristipo uma coisa precisa que vive só no instante presente. Não dava nenhum valor à recordação dos prazeres passados e à esperança dos futuros, mas apenas ao prazer do instante. Aconselhava pensar no presente, melhor no dia de hoje, no instante em que cada um opera ou pensa, porque, dizia ele, "só o presente é nosso, não o momento passado nem aquele que aguardamos, porque um está destruído e do outro não, sabemos se existirá" (Eliano, Var. hist., XIV, 6). 143 Todavia, precisamente neste viver para o instante e no instante, Aristipo realizava aquela liberdade espiritual que lhe permitia afirmar orgulhosamente: "Possuo, não sou possuído" (Diog. L., H. 75). E efectivamente viver no instante significa para ele não deplorar o passado, nem atormentar-me na espera do futuro, não desejar um prazer maior do que aquele, mesmo modesto, que o instante presente pode oferecer; significava também não se deixar dominar pelos desejos desmedidos, contentar-se mesmo com o pouco. não se preocupar com um futuro que provavelmente não virá. Aceitar o prazer do instante era portanto para ele a vida da virtude. E a tradição apresenta-o de humor constantemente igual e sereno, corajoso frente à dor, indiferente à riqueza (que todavia não desprezava), frio e humano. Aristóteles narra-nos que, a uma observação um pouco alterada de Platão, respondeu apenas: "O nosso companheiro (Sócrates) falava de outra maneira" (Rei., 11, 1398 ib).
§ 41. OUTROS CIRENAICOS Nos sucessores de Aristipo, o princípio do prazer actual entra em contradição com a investigação do prazer guiada pelo intelecto. Teodoro o Ateu afirmou que o fim do homem não é o prazer mas a felicidade, e a felcidade consiste na sabedoria. A sabedoria e a justiça são bens; são males a estultícia e a injustiça. O prazer e a dor nem são bens nem -males. mas são por si indiferentes do todo. Considerava a amizade inútil quer para os tolos quer para os sábios; uns não a sabem usar, os outros não têm necessidade dela porque se bastam a si próprios (Diog. L., 11, 98). Teodoro afirmava que a pátria do sábio é o mundo 144 e negava não só a existência dos deuses populares, mas também da divindade em geral; daqui o seu cognome de Ateu (Cicer., De nat. deor., 1, 2, 63, 117). ' Egesia traz do hedonismo uma conclusão pessimista. Os males da vida são tantos que a felicidade é impossível. A alma sofre e perturba-se juntamente com o corpo e a fortuna impede de alcançar aquilo que se espera. O sábio não deve por isso afadigar-se na vã tentativa de procurar a felicidade, mas deve antes evitar os males, tentar viver isento de dores, dado que isto pode ser conseguido também por quem fica indiferente ao prazer (Diog. L., 11, 94-95). Sustentava que a vida, que é um bem para o tolo, é indiferente para o sábio. Um escrito intitulado O suicida valeu-lhe o epíteto de "advogado da morte" (Peisithanatos); e levou as autoridades de Alexandria a proibir o seu ensino (Diog. L., 11, 86). Em oposição a Egesias, o seu contemporâneo Anícerídes fundava a moral na simpatia para com os outros homens. Perante a impossibilidade de obter da vida a felicidade, Anicerides era de opinião que o homem devia encontrar a sua satisfação na amizade e no altruísmo (Diog. L., 11, 96). Reabilitava, portanto, os laços familiares e o amor da pátria e rompia deste modo o frio individualismo em que se haviam fechado Teodoro e Egesias. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 36. Sobre a vida de Xenortonte: DIMENES LA£Rcio, 11, 48-59. Edições completas das obras socráticas de Xenofonte: DINDORF, SAUPPE, Letpzig, 1867-70; SCHENKL, Berlim, 1869-1876. Sobre Xenofonte v. oa escritos sobre Sócrates e: J. LuccioHi, Les Wes politiques et soci~ de X., Paris, 1947. 145 § 37. Sobre a vida, a doutrina e os escritos dos Megãricos: DIõGENEs LAÉRCIO, 11, 106120. Outras fontes em ZL=, 11, 1, 245, 1 segs. Os escritos não chegaram até nós, os títulos vêm em DIOGENEs LAMCIO.-GOMMM, II, p. 176 segs. Para a doutrina dos Megáricos as fontes sã o constituídas pela exposição de DIóGENES LAÉRCIO. Alguns dos argumentos mais conhecidos contra o movimento foram conservados por S=To-EmpiRico, Contra os matemãticos, VII, 216; X, 85-86. O argumento vitorioso é referido por EPiCTETO, Diss, H, 19, 1. ARISTóTELES combate a negação da ~ncia na Metafisica, IX, 3, 1047; PLATÃO faz referências aos Megáricos no Solista, em vários passos (248, 251 b-c). A frase referida por CICERO está numa carta Ad fam., 9,4. Para uma colecção de fragrientos: W. NESTLE, Die Sokrati7zer in
Answahi, 1922. Discutiu a lógica dos Megáricos e citou as suas fontes: PRANTI, ~chichte der Logik, I, Leipzig, 1855, p. 33 segs -C. MALLET, Histoire de 1'école de M. et des écoles d'Êlis et dSretrie, Paris, 1843, P. M. SCHUM, Le Domi- nateur et les possibles, Paris, 1960, § 38. Sobre a vida, a doutrina e os escritos dos Cínicos: DIóGENES LAÉRCIO, VI. Outras fontes em ZELI,ER, 11, 1, 281, 1 segs. Fragmentos em MuLLAc, Frag. philos. graec., 11, 259-395. PLATÃO alude a Antistenes no Sofista, 251, e ARISTóTELES na Metafí&ica, V, 29. Sobre o materialismo de Antístenes, V, PLATÃO, Tecteto, 201-2z2. DUI)LEV, A History of Cynicism, Londres, 1937; HOISTADT, Cynic Hero and Cynic King. Studies in the Cynic Conceptiwt of Man, Upsala, 1949. § 39. Sobre estes Cínicos v. GwiPERz, II, p. 160 segs.; SAYRE, Diogenes of Sinope, Baltimore, 1938. § 40. Sobre a vida, a doutrina e os escritos de Aristi,po e da sua escola: DIõGENEs LAÉRCIO, 11, 65-104; DIELS, Doxogr. Graec., sob "Aristipo". Outras fontes em ZEIXER, 11, 1, 336, 2 segs. A mais completa colecção de fragmentos e testemunhos é: G. GIANNANTONI, I Cirenaici, Florença, 1958, com trad. ital. e bibliografia. § 41. Não chegaram até nós quaisquer escritos. As sentenças foram recolhidas em MULLACII, Fragmenta philos. graec., 11, 405 segs. - ZELLER, loe. cit.; GomPERZ, II, p. 216 segs.; JOEL, Geschichte der ant. Philos., 1, 925 segs.; STENZEL, artigo na Enciclop. PaulyWissows,-Kro11; ZELLER, loe. cit.; GOMPERZ, II, p. 227. se.gs, 146 Ix PLATÃO § 42. A VIDA E O IDEAL POLÍTICO DE PLATÃO Platão nasceu em Atenas em 428 a.C., proveniente de uma família da antiga nobreza; descendia de Sólon por parte da mãe e do rei Codro por parte do pai. Pouco se sabe da sua educação. Segundo Aristóteles, era ainda jovem quando se familiarizou com Crátilo, discípulo de Heraclito e, por isso, com a doutrina heraclitiana. Segundo Diógenes Laércio, teria escrito composições épicas, líricas e trágicas, que mais tarde queimara; mas esta notícia, embora não seja inverosímil, nada tem de seguro. Aos vinte anos começou a frequentar Sócrates e, até 399, ano da sua morte, contou-se entre os seus discípulos. Este ano, todavia, marca também uma data decisiva na vida de Platão. A Carta VII, depois que lhe foi reconhecida a autenticidade, tornou-se o documento fundamental, não só para a reconstrução da biografia, mas ainda da própria personalidade de Platão. Ela vai per147 mitir-nos deitar uma vista de olhos pelos interesses espirituais que dominaram esta primeira parte da sua vida. Desde jovem que pensava dedicar-se à vida política. O senhorio dos Trinta Tiranos, entre os quais tinha parentes e amigos, convidou-o a participar no
governo. Mas as esperanças que Platão pusera na sua acção frustraram-se: os Trinta fizeram, recordar vivamente, com as suas violências, o velho estado de coisas. Entre outras coisas, ordenaram, a Sócrates que fosse com outros a casa de um cidadão para matarem este, e isto para envolverem Sócrates, quisesse ele ou não, na sua política (Carta VII, 325 a; Ap. 32 c). Após a queda dos Trinta, a restauração da democracia envolveu Platão na vida política; mas acontece então o facto decisivo que para sempre o enojou da política do tempo: o processo e a condenação de Sócrates. Desde esse momento, Platão não deixou de meditar em como se poderia melhorar a condição da vida política e toda a constituição do estado, mas adiou a sua intervenção activa para um momento oportuno. Deu-se conta então que a melhoria somente poderia ser efectuada pela filosofia. "Vi que o género humano não mais seria libertado do mal se antes não fossem ligados ao poder os verdadeiros filósofos, ou os regedores do estado não fossem tornados, por divina sorte, verdadeiramente filósofos" (Carta VII, 325 c). Das experiências políticas da sua juventude, experiências de espectador, não de actor, Platão trouxe, pois, o pensamento que havia de inspirar toda a sua obra: só a filosofia pode realizar uma comunidade humana fundada na justiça. Após a morte de Sócrates, vai junto de Euclides em Mégara, e depois, ao que dizem os seus biógrafos, vai ao Egipto e a Cirene. Nada sabemos destas viagens, de que a Carta VII nada diz; não são, contudo, inverosímeis, e a viagem ao Egipto 148 pode considerar-se provável pelas referências frequentes, que se encontram nos diálogos, à cultura egípcia. A sua primeira viagem de que temos conhecimento seguro e que é também o primeiro acontecimento importante da sua vida exterior, é a que o levou à Itália meridional. Conheceu nesta ocasião as comunidades pitagóricas, sobretudo por intermédio do seu amigo Arquitas, senhor de Tarento; e em Siracusa ligou-se pela amizade a Dião, tio de Dionísio o Jovem. Diz-se que Dionísio o Velho, tirano de Siracusa, suspeitando dos projectos de reforma política ventilados por Platão, o fizera vender como escravo no mercado de Egina. Não sabemos se a responsabilidade do facto se deve atribuir a Dionísio; havia guerra entre Atenas e Egina (durou até 387) e um incidente semelhante podia verificar-se facilmente. É certa, porém, a venda de Platão como escravo e o seu resgate por Anicerides de Cirene. A tradição filia em tal acontecimento a fundação da Academia, para o que teria servido o dinheiro do resgate, que foi recusado quando se soube de quem se tratava. Nada se sabe de certo a este respeito, mas pode dizer-se que, quando do regresso de Platão a Atenas, a "comunidade da educação livre" que Platão tinha em mente recebeu forma jurídica; e, à semelhança das comunidades pitagóricas foi uma associação religiosa, um tiaso. Esta era, por outro lado, a única forma que uma sociedade cultural podia legalmente revestir na Grécia; e em uma forma que não excluía nenhum género de actividade, nem que fosse profana ou recreativa. Quando Dionísio o Jovem sucedeu ao pai no trono de Siracusa (367 a.C.), Platão foi chamado por Dião para dar o seu conselho e a sua ajuda à realizaÇão da reforma política que sempre fora o seu ideal. Após alguma hesitação, Platão decide-se: não queria apresentar-se a si mesmo como "homem de 149 pura teoria". nem queria abandonar ao perigo eventual o amigo e companheiro Dião. Partiu, pois, para Siracusa. Mas aqui a posição de Dião era débil; este incompatibilizou-se com Dionisio e foi por ele exilado. Platão ficou por algum tempo hóspede de Dionisio e procurou iniciá-lo e empenhá-lo na pesquisa filosófica, tal como a concebia. Mas Dionisio era o tipo do diletante presunçoso e estava, além disso, afastado dos cuidados políticos.
Platão voltou a Atenas desiludido com ele. Alguns anos depois, no entanto, Dionisio chamou-o insistentemente à sua corte. Impelido pelo próprio Dião, que estava em Atenas e esperava obter do tirano, pela intercessão de Platão, a revogação do exílio, Platão decide-se a esta terceira viagem e em 361 partiu. Porém, o resultado foi desastroso: não conseguiu exercer influência alguma sobre Dionísio, que não resistiu à prova do seu ensino e acabou por fazê-lo quase prisioneiro, primeiro com pressões morais (ameaçando confiscar os bens de Dião) e depois fazendo cercar o seu palácio por mercenários. Quis, todavia, salvar as aparências, mostrando continuar as suas relações com Platão; e deixou-o partir quando Arquitas de Tarento mandou uma galera com uma embaixada. Platão foi assim libertado. Em seguida, Dião conseguiu expulsar Dionísio, mas caiu no desfavor do povo e foi morto na conjura promovida pelo ateniense Calipo. Este enviou uma carta oficial a Atenas; e Platão respondeu com a Carta VII, dirigida aos "amigos de Dião", em que expõe e justifica os interesses fundamentais pelos quais viveu. Desde então Platão haveria de viver em Atenas exclusivamente dedicado ao ensino. Sabemos, pela Carta VII, que as suas ideias políticas teriam obtido em outra ocasião mais feliz sucesso. Hermias, tirano de Atarneu, na Ntisia, 150 pediu a dois eminentes cidadãos de S~ Erasto e Corisco, discípulos de Platão, para elaborarem uma constituição que desse uma forma mais-branda ao seu governo. Esta constituição foi de -facto realizada e de tal modo granjeou para Hermias as simpatias das populações da costa cólica, que alguns territórios se lhe submeteram espontaneamente. Hermias honrou os seus amigos dando-lhes a cidade de Asso (Didimo, In Demóst., col. 5, 52) e constituiu com os dois platónicos -uma pequena comunidade filosófica, de que Platão era o longínquo nume tutelar. Compreende-se, por isso, que, depois da morte de Platão, Aristóteles se tenha precisamente dirigido a Asso. Platão morreu em 347, aos 81 anos. Um papiro de Herculano descoberto recentemente dános a descrição das últimas horas do filósofo. A última visita que recebeu foi a de um caldeu. Uma mulher trácia tocava e errou o compasso: Platão, que já tinha febre, fez ao hóspede um sinal com o dedo. O caldeu observou cortesmente que não havia como os Gregos para perceber de medicina e de ritmo. Na noite seguinte a febre agravou-se e, talvez nessa mesma noite, Platão morreu. § 43. O PROBLEMA DA AUTENTICIDADE DOS ESCRITOS A tradição conservou-nos de Platão uma Apologia de Sócrates, 34 diálogos e 13 cartas. O gramático Trasilo, que viveu no tempo do imperador Tibério, adoptou e difundiu (parece que já -era conhecida por uma referência de Terêncio Varrão) a ordenação destas obras em 9 tetralogias, nas quais a Apologia e as Cartas ocupam o lugar de dois diálogos. Eis a tetralogia de Trasilo: 1., Eutífron, Apologia, Críton, Fédon; 2.a Crátilo, Teeteto, 151 Sofista, Político; 3 a Parménides, Filebo, Banquete, Fedro, 4.1 Alcibíades 1, Alcibíades 11, Hiparco, Os Amantes; 5.a Teages, Cármides, Laches, Lísis; 6 a Eutidemo, Protágoras, Górgias, Ménon; 7.4 Hípias maior, Hípias -menor, Ion, Menexeno; 8.a Clitofonte, República, Timeu, Crítias; 9.a Mínos, Leis, Epinómias, Cartas.
Alguns outros diálogos e uma colecção de Definições ficaram fora das tetralogias de Trasilo, porque já pelos antigos eram considerados apócrifos. Mas mesmo entre as obras compreendidas nas tetralogias algumas há que são, indubitavelmente, apócrifas: individualizá-las e demonstrar a sua inautenticidade é um aspecto essencial do problema platónico. Já os escritores da antiguidade se propuseram resolver este problema; e da antiguidade até hoje pouquíssimos têm sido os diálogos sobre que não tem caído a suspeita. Especialmente a crítica alemã de 800 lançou-se deliberadamente na via da "atétese" (como se costuma chamar à negação da autenticidade duma obra), até limitar a nove o número dos diálogos autênticos. Uma salutar reacção contra esta tendência, que acabava por atribuir a compiladores anónimos obras que são manifestações altíssimas de pensamento e de arte, afirmou-se na crítica moderna, que só pronuncia a atétese para as obras cujo carácter apócrifo é evidente por elementos materiais ou formais. Os critérios para julgar da autenticidade das obras platónicas são os seguintes: 1.o - A tradição. Que os escritores antigos tenham julgado autêntico um escrito é sempre uma razão fortíssima a favor deste, a menos que haja elementos positivos em contrário. Este critério, porém, não é por si só decisivo. 2.o - Os testemunhos antigos, devido aos escritores que comentaram ou criticaram as obras de 152 Platão. Particular valor probatório têm as citações de Aristóteles, assumidas por todo o historiador moderno (por ex., por Zeller) com valor de prova. Todavia, tão-pouco este critério é decisivo, pois que diálogos, indubitavelmente platónicos, como por exemplo o Protágoras, não são citados por Aristóteles. Por outro lado, tais testemunhos obedecem por vezes a critérios de escola, como é o caso de Proclo, que declarou apócrifas a República, as Leis e as Cartas. 3.o - O conteúdo doutrinal. Este critério é muito duvidoso: uma vez que conhecemos a doutrina de Platão pelas suas obras, julgar da autenticidade das obras baseando-nos na doutrina é um círculo vicioso. Pode, no entanto, ser decisivo, quando se encontram nos escritos platónicos elementos de doutrina que pertencem a escolas posteriores. Tal é o caso do Alcibíades 11 (139 c), onde se diz que todos os que não alcançam a sabedoria são loucos, o que é doutrina própria dos Estóicos. Prova de inautenticidade pode ainda ser uma contradição grosseira: como no caso do Teages (128 d), em que se afirma que o sinal demoníaco é sempre negativo, para dizer na página seguinte (129 e) que ele incita positivamente alguns a andarem com Sócrates. 4.o - o valor artístico. Platão é um artista extraordinário, e qualquer diálogo seu é ao mesmo tempo obra de pensamento e de poesia. Mas, naturalmente, não se pode pretender que todos os diálogos estejam ao mesmo nível artístico. Este critério só é válido no caso de se encontrar uma deficiência gravíssima, como no Teages e nos Amantes. 5.o - A forma linguística. O uso de expressões particulares, palavras, etc. pode fornecer indícios sobre a autenticidade ou inautenticidade dos diálogos: por exemplo, há no Alcibíades II particularidades da linguagem que parecem pertencer a uma 153 época mais tardia do que aquela em que foram compostos os diálogos platónicos.
Todos estes critérios oferecem uma certa segurança apenas se forem controlados uns pelos outros e se se confirmarem reciprocamente. Da sua aplicação resulta que podemos com segurança considerar apócrifos os seguintes diálogos: Alcibíades II, Hiparco, AmaWes,, Teages, Minos; podem subsistir dúvidas sobre o Alcibíades I, o Hípias maior, o lon, o Clitolonte e o Epinómis,- tais dúvidas, contudo, não impedem que alguns deles possam ser utilizados como fontes da doutrina platónica, a qual em nada contradizem. A autenticidade do Menexeno, que é um elogio fúnebre aos mortos na guerra (epitáfio, um género muito em voga na retórica do tempo), parece não poder negar-se devido ao testemunho explícito de Aristóteles (Ret., 1415 b, 30), mas o sarcasmo da apresentação, as incongruências, os anacronismos são de tal ordem, que nos obrigam a considerá-lo como simples paródia de um género literário em voga. Quanto às Cartas, depois de quase unanimemente as haver banido do corpus platónico, a crítica moderna prepara-se para reconstruir a mesma unanimidade em aceitá-las como genuínas. E elas são, de facto, com excepção da primeira, documentos importantíssimos para a vida e o pensamento de Platão. A Carta VII acrescenta-se de ora em diante aos diálogos fundamentais, para a interpretação do platonismo. § 44. O PROBLEMA DA CRONOLOGIA DOS ESCRITOS Outro aspecto fundamental do problema dos escritos platónicos é o que respeita à sua ordem cronológica. Este problema é essencial para a 154 compreensão do platonismo. Platão, por motivos que são inerentes à sua filosofia (e que veremos em breve), nunca quis escrever, nem mesmo na mais avançada idade, uma exposição completa do seu sistema. Os seus diálogos não são mais que fases ou etapas diversas, pontos de chegada provisórios e, por isso, sobretudo pontos de partida, de uma pesquisa que julga não poder fixar-se em nenhum resultado. A ordem cronológica dos seus escritos é a própria ordem desta pesquisa: é a ordem em que ele atingiu os sucessivos aprofundamentos da sua filosofia. Não se pode, pois, compreender o desenvolvimento desta filosofia sem se dar conta da ordem cronológica dos escritos. Infelizmente, as notícias seguras faltam completamente sobre este ponto. Temos uma única indicação indubitável que nos é dada por Aristóteles (Pol., 1264 e, 26): as Leis são posteriores à República. Por outra fonte sabemos que as Leis foram deixadas "sobre cera", tendo sido copiadas após a morte de Platão. É necessário, portanto, recorrer a outros critérios. O primeiro é o confronto dos diálogos entre si. Dele resulta que a República antecede o Timeu, que lhe recapitula o argumento; o Político apresenta-se como a continuação do Sofista, e este, por sua vez, como a continuação do Teeteto. Alusões menos claras, mas suficientemente transparentes permitem ver que o Ménon é anterior ao Fédon e ambos estes diálogos anteriores à República. O Teeteto e o Sofista referem-se depois a um encontro entre o jovem Sócrates e o velho Parménides, que é talvez o que se narra no Parménides. O segundo critério para a ordenação cronológica é o do estilo. Entre a República e as Leis, ou seja entre: os dois diálogos de que conhecemos com plena certeza a ordem da composição, há notáveis 155
diferenças de estilo que têm sido minuciosamente estudadas. Trata-se de partículas conjuntivas, de fórmulas de afirmação ou negação, do uso dos superlativos, giros de frases e de palavras que ocorrem nas Leis e ao invés não se encontram na República. Estas particularidades estilísticas, chamadas estilemas, caracterizam a última fase da obra do Platão escritor. É evidente que os outros diálogos em que ocorrem devem pertencer ao mesmo período; e alguns críticos são unânimes em estabelecer uma ordem dos diálogos segundo a frequência de tais estilemas, atribuindo ao período mais tardio da vida de Platão os diálogos em que eles ocorrem com mais frequência, e aos períodos anteriores os diálogos em que são menos frequentes. Embora uma ordem rigorosa assim fundada seja fictícia, uma vez que outros motivos podem ter influído no estilo do escritor, não há dúvida, no entanto, que este critério serviu para delinear um grupo de diálogos que, pela semelhança do seu estilo com o das Leis, se atribui ao último período da actividade de Platão. Tais são o Parménides, o Teeteto, o Sofista, o Político, o Timeu e o Filebo. Quanto à ordem de composição destes diálogos, decerto nos não podemos fundar, para estabelecêla, apenas na estilometria, mas devemos servir-nos ainda dos outros critérios. Um terceiro critério pode colher-se da forma narrativa ou dramática dos diálogos. Em alguns deles o diálogo é directamente introduzido; em outros, pelo contrário, é narrado, de maneira que a sua exposição é entremeada com as frases: "Sócrates disse", "o outro respondeu", "concordou com ele", etc.. Mas no prólogo do Teeteto (143 c), Euclides, que narra o diálogo, adverte que suprimiu estas frases com vista a uma maior fluência, expondo o diálogo directamente, tal como se teria passado entre Sócrates e os seus interlocutores. Por isso, é 156 natural que não esperemos encontrar o método da narração nos diálogos que se seguem ao Teeteto; e de facto assim acontece para todos os diálogos do último período, excepto para o Parménides, que é, por isso, provavelmente anterior ao Teeteto. Por outro lado, os diálogos mais altamente dramáticos, como o Protágoras, o Banquete, o Fédon, a República, são todos narrados, ao passo que um grupo de diálogos que têm estrutura mais simples e menor valor artístico são em forma directa. Pode supor-se que Platão tenha adoptado a forma directa numa primeira fase, tenha depois recorrido à forma narrativa para dar ao diálogo o maior relevo dramático, e tenha finalmente regressado, por motivos de comodidade e de fluência de estilo, à forma directa. Mas a ordenação que resulta deste critério, se é válida para decidir a situação de um diálogo neste ou naquele período da actividade de Platão, não é suficiente para estabelecer a ordem dos próprios diálogos no âmbito de cada um dos períodos. Aos resultados que possam conseguir-se pelo uso combinado destes três critérios acrescentam-se os que resultam da consideração, de importância fundamental, de que os primeiros diálogos devem ser aqueles em que a doutrina das ideias não está ainda presente, e que se mantêm, por isso, estritamente fiéis à letra do socratismo. Finalmente, é muito difícil imaginar que Platão tenha começado a exaltação da figura de Sócrates ainda em vida do mestre: toda a sua actividade literária deve ser, portanto, posterior a 399. Sobre estes fundamentos afigura-se provável a seguinte ordenação cronológica dos diálogos; porém, se a atribuição de um diálogo a um determinado período é bastante segura nesta ordenação, a ordem de sucessão dos 157 diálogos em cada um dos períodos é problemática e sujeita a caução: 1.º período: escritos de juventude ou socráticos: Apologia, Criton, Ion, Laches, Lísis, Cármides, Eutífron;
2.o período, de transição: Eutidemo, Hípias menor, Crátilo, Hípias maior, Menexeno, Górgias, República 1, Protágoras, Ménon; 3.o período: escritos de maturidade: Fédón, Banquete, República 11-X, Fedro; 4.º período: escritos da senelitude: Parménides, Teeteto, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias Leis. Pode pensar-se, com uma certa verosimilhança, que os escritos do 3.o período são posteriores à primeira viagem à Sicília, de que Platão regressou antes de 387, que os escritos do 4.o período são posteriores à segunda viagem à Sicília (366-65) e alguns, como o Crítias e as Leis, posteriores mesmo à terceira (361-360). As Cartas VII e VIII apresentam-se, pelo seu conteúdo, como posteriores à morte de Dião, e portanto ao ano de 353. § 45. CARÁCTER DO PLATONISMO Por que razão a produção literária de Platão se manteve fiel à forma do diálogo? Citámos, falando de Sócrates (§ 24), a passagem do Fedro em que, a propósito da invenção da escrita, atribuída ao deus egípcio Theut, Platão diz que o discurso escrito comunica, não a sabedoria, mas a presunção da sabedoria. Como as figuras pintadas, os escritos têm a aparência de seres vivos, mas não respondem a quem os interroga. Circulam por toda a parte do mesmo modo, tanto pelas mãos dos 158 que os compreendem como pelas mãos dos que se não interessam de facto por eles; e não sabem defender-se nem sustentar-se por si próprios quando são maltratados ou vilipendiados injustamente (Fedro, 275 d). Platão não via no discurso escrito mais que uma ajuda para a memória; e ele mesmo nos testemunha que do ensino da Academia faziam parte também "doutrinas não escritas" (Carta VII, 341 c). Ora, de entre os discursos escritos, o diálogo é o único que reproduz a forma e a eficácia do discurso falado. Ele é a expressão fiel da pesquisa que, segundo o conceito socrático, é um exame incessante de si mesmo e dos outros, logo um perguntar e responder; Platão considera que o próprio pensamento é tão só um discurso que a alma faz consigo mesma, um dialogar interior, em que a alma pergunta e responde a si mesma (Teet., 189 e, 190 a; Sof., 263 e; Fil., 38 c-d). A expressão verbal ou escrita limita-se, pois, a reproduzir a forma da pesquisa, o diálogo. A mesma convicção que impediu Sócrates de escrever, impediu Platão a adoptar é a manter a forma dialógica nos seus escritos. O que revelou a Platão a incapacidade do jovem Dionisio de se empenhar a sério na pesquisa filosófica, foi a sua pretensão de escrever e difundir como obra própria um "sumário do platonismo". Platão declarou energicamente nesta ocasião: "Meu não há, nem nunca haverá, tratado algum sobre este assunto. Não pode ele ser reduzido a fórmulas, como se faz nas outras ciências; só depois de longamente se haver travado conhecimento com estes problemas e depois do os haver vivido e discutido em comum, o seu verdadeiro significado se acende subitamente na alma, como a luz nasce de uma centelha e cresce depois por si só" (Carta VII, 341 c-d). O diálogo era, pois, para Platão o único meio de exprimir e comunicar aos outros a vida da pes159
quisa filosófica. Ele reproduz o próprio andamento da pesquisa, que avança lenta e dificilmente de etapa em etapa; e sobretudo reproduz-lhe o carácter de sociabilidade e de comunhão, pelo qual torna solidários os esforços dos indivíduos que a cultivam. Assim a forma da actividade literária de Platão é um acto de fidelidade ao silêncio literário de Sócrates; um e outro têm o mesmo fundamento: a convicção de que a filosofia não é um sistema de doutrinas, mas pesquisa que repropõe incessantemente os problemas, para deles tirar o significado e a realidade da vida humana. Conta-se que uma mulher, Axioteia. após a leitura dos escritos platónicos, se apresentou em trajes masculinos a Platão, e que um camponês coríntio, depois da leitura do Górgias, deixou o arado e foi ter com o filósofo (Arist., fr. 69, Rose). Estas anedotas demonstram que os contemporâneos de Platão tinham compreendido o valor humano da sua filosofia. § 46. SÓCRATES E PLATÃO A fidelidade ao magistério e à pessoa de Sócrates é o carácter dominante de toda a actividade filosófica de Platão. Nem todas as doutrinas filosóficas de Platão podem, decerto, ser atribuídas a Sócrates; bem ao contrário, as doutrinas típicas e fundamentais do platonismo não têm nada que ver com a letra do ensino socrático. Todavia, o esforço constante de Platão é o de captar o significado vital da obra e da pessoa de Sócrates; e para captá -lo e exprimi-lo não hesita em ir além do modesto património doutrinal do ensino socrático, formulando princípios e doutrinas que Sócrates, em verdade, nunca ensinam, mas que exprimem o que a sua própria pessoa incarnava. 160 Frente a esta fidelidade, que nada tem a ver com uma concordância de fórmulas doutrinais, mas que se manifesta na tentativa sempre renovadora de aprofundar uma figura de homem que, aos olhos de Platão, personifica a filosofia como pesquisa, parece muito estreito o esquema em que se tornou habitual resumir a relação entre Sócrates e Platão. Inicialmente fiel a Sócrates nos diálogos da sua juventude, Platão ter-se-ia depois afastado progressivamente do mestre para formular a sua doutrina fundamental, a doutrina das ideias; e, por fim, até a si mesmo teria sido infiel, criticando e negando esta doutrina. Em breve veremos que Platão jamais foi infiel a si mesmo ou à sua doutrina das ideias; e que, nesta doutrina como em todo o seu pensamento, foi, ao mesmo tempo, fiel a Sócrates. Nada mais quis fazer senão captar os pressupostos remotos do magistério socrático, os princípios últimos que explicam a força da personalidade do mestre e podem, por isso, iluminar a via na qual ele consegue possuir-se e realizar-se a si mesmo. Platão, escrupulosamente, não faz intervir Sócrates como interlocutor principal nos diálogos que se afastam demasiado do esquema doutrinal socrático ou que debatem problemas que não haviam suscitado o interesse do mestre (Parménides, Sofista, Político, Timeu). Não obstante, toda a pesquisa platónica se pode definir como a interpretação da personalidade filosófica de Sócrates. § 47. ILUSTRAÇÃO E DEFESA DO ENSINO DE SóCRATES Na primeira fase, a pesquisa platónica mantém-se no âmbito do ensino socrático e, se não visa ilustrar o significado desta ou daquela atitude fundamental do Sócrates histórico (Apologia, Críton), visa captar 161 e esclarecer os conceitos fundamentais que estavam na base do seu ensino (Alcibíades, Ion, Hípias menor, Laches, Cármides, Eutífron, Hipiw maior, Lísis).
O conteúdo da Apologia e do Críton foi utilizado a propósito de Sócrates (§ 26, 31). A Apologia é, em substância, uma exaltação do dever que Sócrates assumiu ante si próprio e ante os outros e é, por isso, a exaltação da vida consagrada à pesquisa filosófica. Pode dizer-se que o significado integral do escrito está contido na frase: "Uma vida sem pesquisa não é digna de ser vivida pelo homem" (Apolog., 38). Sócrates declara aos juízes que jamais deixará de cumprir a obrigação que lhe foi confiada pela divindade: o exame de si mesmo e dos outros para alcançar a via do saber e da virtude. Já na apresentação que Platão faz de Sócrates na Apologia se mostra claramente que ele vê incarnada na figura do mestre aquela filosofia como pesquisa a que ele próprio iria dedicar toda a existência. O Críton apresenta-nos Sócrates frente ao dilema: ou aceitar a morte pelo respeito que o homem justo deve às leis do seu país, ou fugir do cárcere, conforme proposta dos amigos, e desmentir assim a substância do seu ensino. A maneira serena como Sócrates aceita o destino a que é condenado é a última prova da seriedade do seu ensino. Ela mostra-nos que a pesquisa é uma missão de uma tal natureza, que o homem que se haja empenhado nela não a deve trair, aceitando compromissos e fugas que a esvaziem de significado. Com estes dois escritos, Platão fixou para sempre as atitudes que fazem de Sócrates o filósofo por excelência, "o homem de todos o mais sábio e o mais justo". Os outros escritos de Platão pertencentes a este mesmo período visam, ao invés, esclarecer os conceitos que estavam na base do 162 ensino socrático. Nestes escritos Platão aparece-nos (assim o disse Gomperz), como o moralista dos conceitos: delineia o procedimento socrático enquanto pesquisa do fundamento da vida moral do homem. E. em primeiro lugar, aclara o pressuposto necessário de toda a pesquisa, ponto em que Sócrates tanto insistira: o reconhecimento da própria ignorância. Sobre o tema da ignorância desenvolve-se um grupo de diálogos: Alcibíades 1, Ion, Hípias menor. O Alcibíades 1 é, não obstante as dúvidas que se aventaram sobre a sua autenticidade, uma espécie de introdução geral à filosofia socrática. A Alcibíades que, dotado e ambicioso, se prepara para participar na vida política, com a pretensão de dirigir e aconselhar o povo ateniense, pergunta Sócrates onde aprendeu a sabedoria necessária a este fim, ele que nunca se reconheceu ignorante e que, por conseguinte, nunca se preocupou com procurála. Alcibíades está ainda na ignorância, na pior das ignorâncias, a ignorância de que não sabe que é ignorante; e só pode sair dela aprendendo a conhecer-se a si mesmo. Só por esta via poderá alcançar o conhecimento da justiça, que é necessária para governar um Estado e sem a qual se não é homem político, mas politiqueiro vulgar que se engana a si próprio e ao povo. Este tema da ignorância não consciente de si é também o do Ion. Ion é um rapsodo que se gaba de saber expor muitos pensamentos belos sobre Homero e de ser, portanto, competente no que respeita a todos os argumentos sobre que versa a poesia homérica. Platão representa nele, provavelmente, um tipo de falso sábio que devia ser frequente no seu tempo: o tipo dos que, recordando Homero de memória e tendo sempre à mão os ditos do poeta, o citavam 163 em todas as circunstâncias com o ar de quem apela para a mais antiga e autêntica sabedoria grega. Platão demonstra que verdadeiramente nem o poeta nem muito menos o rapsodo sabem coisa alguma. Um e outro falam de tantas coisas, não em virtude da
sabedoria, mas em virtude de uma inspiração divina que se transmite da divindade ao poeta, do poeta ao rapsodo, do rapsodo ao ouvinte, como a força de atracção do íman passa de uma argola de ferro a outra e forma uma longuíssima cadeia. Se o saber do poeta ou do rapsodo fosse verdadeiro, aqueles que cantam a guerra podiam comandar os exércitos e ocupar-se assim seriamente de todas as coisas que se limitam a cantar. Uma variação paradoxal do tema da ignorância é apresentada no Hípias menor; este diálogo procura demonstrar que só o homem de bem pode pecar voluntariamente. Efectivamente, pecar voluntariamente significa pecar conscientemente; pecar sabendo qual é o bem e qual é o mal, e escolhendo deliberadamente o mal. Mas quem sabe qual é o bem? O homem de bem; e só ele por conseguinte, pode pecar voluntariamente. O absurdo desta conclusão sugere que é impossível pecar voluntariamente e que somente peca quem não sabe o que é o bem, ou seja o ignorante. O diálogo é uma redução ao absurdo da tese contrária à de Sócrates e é, por isso, uma confirmação indirecta da tese de que a virtude é saber. A demonstração desta tese é o objectivo de um outro grupo de diálogos, mais importantes do que os primeiros. Esta demonstração tem por pressuposto que a virtude é só uma. Portanto, estes diálogos têm em mira reduzir ao absurdo a afirmação de que há diversas virtudes, demonstrando que nenhuma delas, tomada isoladamente, pode ser compreendida e definida. 164 No Laches chega-se a esta conclusão mediante a análise da coragem (andréia). Considerada a coragem como virtude particular, há que defini-la como a ciência do que se deve ou se não deve temer, ou seja, dos bens ou dos males futuros. Mas o bem e o mal são o que são não só com referência ao futuro, mas também ao presente e ao passado; a ciência do bem e do mal não pode por conseguinte, limitar-se ao futuro, mas diz respeito a todo o bem e a todo o mal; esta ciência já não é a coragem como virtude particular, mas a virtude na sua integralidade. A pesquisa que nos impele a determinar a natureza de cada virtude tomada isoladamente consegue assim determinar realmente a natureza de toda a virtude: de tal modo é impossível distinguir nela partes diversas. No Cármides faz-se a mesma investigação a propósito da prudência (sofrosyne) e chega-se à mesma conclusão. A prudência é definida por Crítias, principal interlocutor do diálogo, como conhecimento de si mesmo, quer dizer, do saber e do não saber próprios de cada um e, por isso, como ciência da ciência. Porém, Sócrates opõe a esta definição que uma ciência assim exige um objecto que seja especificamente seu. Como não há um ver que seja um ver coisa nenhuma, mas o ver tem sempre por objecto uma coisa determinada, assim a ciência não pode ter por objecto a própria ciência, antes deve possuir um objecto determinado sem o qual como ciência da ciência falha, definir a prudência como ciência da ciência falha, pois, pela impossibilidade de a ciência se fazer objecto de si mesma. A pesquisa procura sugerir que a prudência, se é ciência, deve ter por objecto o bem; ora se é ciência do bem já não é somente prudência (sofrosyne), mas ao mesmo tempo sabedoria e coragem: virtude na sua integralidade. No Eutífron examina-se a primeira e fundamental virtude do cidadão grego, que é a piedade reli165 giosa ou devoção (osiótes). Parte-se da definição puramente formal dessa virtude, que seria a arte que regula a troca de benefícios entre o homem e a divindade, troca pela qual o homem oferece à divindade culto e sacrifícios para dela obter ajuda e vantagens. Segundo esta definição, as acções piedosas são as que agradam a alguns deuses. não a todos os
deuses, uma vez que frequentemente se acham estes em desacordo. Põe-se então o problema: aquele que é santo é-o porque agrada aos deuses, ou acontece, ao contrário. que agrada aos deuses porque é santo? Frente a esta pergunta. a definição formal da piedade religiosa cai e vemo-nos obrigados a perguntar de novo que coisa é verdadeiramente a devoção. Pode então dizer-se que a devoção é uma parte da justiça, precisamente aquela que se refere ao culto da divindade e que consiste em praticar acções que à divindade agradam, mas eis-nos deste modo regressados à definição que abandonámos. A conclusão negativa do diálogo não só exprime a não aceitação do conceito formal da piedade religiosa, como ainda a impossibilidade de a definir como uma virtude em si, independente das outras, e assim prepara indirectamente o reconhecimento da unidade da virtude. Correlativamente à indagação sobre a virtude, procede Platão à indagação sobre o objecto ou o fim da virtude, sobre os valores que são seu fundamento, Uma acção bela, um belo discurso têm o belo por objecto; mas o que é o belo? É este o problema do Hípias maior. A conclusão é que o belo não pode ser distinto do bem, não podendo considerar-se nem como o que é conveniente nem como o que é útil; dado que o conveniente é a aparência do belo, não o próprio belo, e o útil não é senão o vantajoso, aquilo que produz o bem e é, portanto, causa do próprio bem. Como todas 166 as virtudes tendem, uma vez examinadas, a unificar-se no saber, assim os vários objectos ou fins das acções humanas, o belo, o conveniente, o útil tendem a unificar-se no conceito do bem. O bem é ainda o termo último e o fundamento de todas as relações humanas. Segundo o Lísis, a amizade (filia) não se funda na semelhança nem na dissemelhança entre as pessoas: o semelhante não pode encontrar no semelhante nada que não tenha já e o dissemelhante não pode amar o que é dissemelhante dele (o bom não pode amar o mau nem o mau pode amar o bom). O homem não ama e não deseja senão o bem; e ama e deseja um bem inferior em vista de um bem superior, de maneira que o último e supremo bem é também o primeiro fundamento da amizade. Verdadeiramente só ele é o verdadeiro e único amigo. as outras coisas que desejamos e amamos são simplesmente suas imagens. A amizade dos homens funda-se, portanto, na sua comum relação com o bem. Os resultados das investigações levadas a cabo em todos estes diálogos podem resumir-se como segue: 1.o Não há virtudes particulares, mas a virtude é só uma; 2.O Não há fins ou valores particulares, definíveis cada um de per si, mas o fim ou o valor é só um; o bem. Estas duas conclusões rasgam as perspectivas da investigação platónica ulterior e preparam os problemas que ela viria a debater. 48. A POLÉMICA CONTRA OS SOFISTAS A tese que o precedente grupo de diálogos sugere indirectamente, a unidade da virtude e a sua relação com o saber, põe-se e demonstra-se positivamente no Protágoras em oposição polémica à atitude dos sofistas. A Protágoras, que se intitula mestre de virtude, objecta Sócrates que a virtude 167
de que fala Protágoras não é ciência mas um simples conjunto de habilidades adquiridas acidentalmente por experiência; e é, portanto, um património privado, que não pode transmitir-se aos outros. Protágoras, para quem as virtudes são muitas e a ciência apenas uma delas, não pode afirmar que a virtude é ensinável; pois que somente a ciência se pode ensinar. Do que decorre que a virtude pode transmitir-se e comunicar-se na medida em que é ciência. Viu-se, a propósito de Sócrates (§ 28), que a ciência é aqui entendida como cálculo dos prazeres e o seu conceito continua, portanto, preso à letra do ensino socrático. Porém, já este diálogo mostra que Platão não se limita de ora em diante à frustração dos conceitos que Sócrates colocou na base da vida moral; mas, contrapondo a doutrina de Sócrates à dos sofistas, projecta sobre a figura do mestre a mais viva luz que brota da polémica. O Protágoras recusou ver no ensino sofístico qualquer valor educativo, e formativo e na própria sofística qualquer conteúdo humano. Ante a ruína da sofística.. a doutrina de Sócrates apareceu em todo o seu valor. Mas mantinham-se outros aspectos da sofística; e contra eles dirige Platão três diálogos que formam com o Protágoras um grupo unido. Estes aspectos são a erística, contra a qual se dirige o Eutidemo; o verbalismo, contra o qual se dirige o Crátilo; e a retórica, contra a qual se dirige o Górgias. O Eutidemo é, acima de tudo, uma representação vivíssima e caricatural do método erístico dos sofistas. A eristica é a arte de lutar com palavras e de "refutar tudo o que se vai dizendo, seja falso ou verdadeiro". Os interlocutores do diálogo, os dois irmãos Eutidemo e Dionis'odoro, divertem-se a demonstrar, por exemplo, que só o ignorante pode aprender e, logo a seguir, que contrariamente só o sábio aprende; que só se aprende o que se 168 não sabe e a seguir que só se aprende o que sabe, etc. O fundamento de semelhante exercício é a doutrina (defendida pelos Sofistas, e além destes pelos Megáricos e pelos Cínicos) de que não é possível o erro e que, seja qual for a coisa que se disser, se diz coisa que é, logo verdadeira. Ao que Sócrates objecta que, nesse caso, não haveria nada que ensinar e nada que aprender, pelo que a própria erística seria inútil. Na verdade, nada há que se possa ensinar a não ser a sabedoria; e a sabedoria só pode ensinar-se e aprender-se amando-a, isto é filosofando. E neste ponto o diálogo deixa de ser crítica do procedimento sofístico para se transformar em exortação à filosofia (propreptikon); e, como discurso introdutório ou propréptico tornou-se famoso na antiguidade, tendo sido muitas vezes imitado. Porém, esta parte é importante sobretudo porque contém a ilustração do objecto próprio da filosofia: objecto que Platão define como o uso do saber para utilidade do homem. A filosofia é a única ciência em que o fazer coincide com o saber servir-se do que se faz (Eut., 289 b): ou seja, a única ciência que produz conhecimento ao mesmo tempo que ensina a utilizar o próprio conhecimento para utilidade e felicidade do homem (lb., 288-289). À erística liga-se o verbalismo, contra o qual se dirige o Crátilo. O problema deste diálogo é o de ver se a linguagem é verdadeiramente um meio para ensinar a natureza das coisas, como pensavam Crátilo, os Sofistas e Antístenes. Platão não considera, decerto, que a linguagem seja produto de convenção e que os nomes se implantem arbitrariamente. Como todo o instrumento deve ser adequado ao desígnio para que foi construído, assim a linguagem deve ser adequada a fazer-nos discernir a natureza das coisas. Não há dúvida, pois, que todo o nome deve ter uma certa justeza, isto 169 é, deve imitar e exprimir, na medida do possível, por meio de letras e de sílabas, a natureza
da coisa significada. Mas nem todos os nomes têm este carácter natural; alguns, como por exemplo os nomes dos números, sã o puramente convencionais. De qualquer maneira, não se pode sustentar, como faz Crátilo, que a ciência dos nomes seja também ciência das coisas: que não haja outra via para indagar e descobrir a realidade que não seja a de descobrir-lhes os nomes, e que não se possa ensinar senão os próprios nomes. Dado que os nomes pressupõem o conhecimento das coisas, os primeiros homens que os descobriram deviam conhecer as coisas por outra via, uma vez que não dispunham ainda dos nomes; e nós próprios não podemos apelar para outros nomes para julgar da correcção dos nomes, mas devemos recorrer à realidade de que o nome é a imagem. De modo que o critério para compreender e julgar do valor das palavras leva-nos a procurar, para além das palavras, a própria natureza das coisas. O diálogo contém assim a enunciação das três alternativas fundamentais que posteriormente se iriam apresentar constantemente na história da teoria da linguagem, a saber: 1.º - a tese sustentada pelos Eleatas, pelos Megáricos, pelos Sofistas e por DemócrIto (fr. 26, Diels), de que a linguagem é pura convenção, quer dizer, devida exclusivamente à livre iniciativa dos homens; 2.O a tese sustentada por Crátilo e que pertencia a Heraclito (fr. 23 e, 114, Diels) e aos Cínicos de que a linguagem é naturalmente produto da acção causal das coisas; 3.o a tese, defendida por Platão, de que a linguagem é a escolha inteligente do instrumento que serve para aproximar o homem do conhecimento das coisas. Na ilustração desta última tese Platão refere-se explicitamente às ideias (440 b), a que chama mais frequentemente "substâncias" (338 b, 423 d): por 170 cujo nome compreende: "o que o objecto é" (428 d). Todavia, Platão não atribui a produção da linguagem à própria natureza das coisas: considera-a, com os convencionalistas, uma produção do homem. Mas admite ao mesmo tempo que esta produção não é arbitrária, antes é dirigida, até onde é possível, para o conhecimento das essências, isto é, da natureza das coisas. O teorema fundamental que Platão se propõe defender é que a linguagem pode ser mais ou menos exacta ou mesmo errada ou, por outras palavras, que "se pode dizer o falso": teorema que não cabe nas outras duas concepções da linguagem, ou porque consideram que a linguagem é sempre exacta, ou porque uma convenção vale tanto como outra, ou porque é a natureza das coisas a impô-lo. A defesa deste teorema abre o caminho à ontologia do Sofista. Por fim, Platão ataca no Górgias a arte que constituía a principal criação dos Sofistas e que era a base do seu ensino: a retórica. A retórica pretendia ser uma técnica da persuasão, à qual parecia completamente indiferente a tese a defender ou o assunto tratado. Platão objecta ao conceito desta arte que toda a arte ou ciência só consegue ser verdadeiramente persuasiva a respeito do objecto que lhe é próprio. A retórica não tem um objecto próprio: permite falar de tudo, mas não consegue persuadir senão aqueles que têm um conhecimento inadequado e sumário das coisas de que trata, ou seja os ignorantes. Não é, pois, uma arte, mas tão só uma prática adulatória que oferece a aparência da justiça e está para a política, que é arte da justiça, como a culinária está para a medicina: retórica e culinária excitam o gosto, aquela o da alma, esta o do corpo; política e medicina curam verdadeiramente respectivamente a alma e o corpo. A retórica pode ser útil para defender com discursos a própria injustiça e para evitar sofrer a 171 pena da injustiça cometida. Ora isto não é uma vantagem. O mal, para o homem, não é
sofrer a injustiça, mas cometê-la, porque isso é mancha e corrompe a alma; e subtrair-se à pena da injustiça cometida é um mal ainda pior, porque tira à alma a possibilidade de libertar-se da culpa, expiando-a. Pela sua indiferença para com a justiça da tese a defender, a retórica implica, na realidade, a convicção (exposta no diálogo por Cálicles) de que a justiça é somente uma convenção humana, que é tolice respeitar e de que a lei da natureza é a lei do mais forte. O mais forte segue só o próprio prazer e não cuida da justiça; tende à proeminência sobre os outros e tem como única regra o próprio talento. Contra este imoralismo observa, no entanto, Platão que o intemperante não é o homem melhor do mesmo modo que não é o mais feliz, uma vez que passa de um prazer ao outro insaciavelmente, assemelhando-se a uma pipa rota que nunca mais se enche. O prazer é a satisfação de uma necessidade; e a necessidade é sempre deficiência, isto é, dor: prazer e dor condicionam-se reciprocamente e não há um sem o outro, Ora o bem e o mal não são conjuntos mas separados, não podendo assim identificar-se senão pela virtude; e a virtude é a ordem e a regularidade da vida humana. A alma boa é a alma ordenada; que é a um tempo sábia, temperante e justa. A polémica contra os sofistas, conduzida pelo grupo de Sócrates, faz emergir os problemas que aquele ensino apresentava. A virtude é ciência; pode, portanto, ensinar-se e aprenderse. Mas o que é aprender? Eis o primeiro problema. Cria ele, indubitavelmente, um vínculo entre um homem e outro homem e entre o homem e a ciência: de que natureza é este vínculo? Eis um outro problema. E o que é exactamente a ciência em que consiste a virtude? Qual é o objecto desta ciência, o mundo ou a subs172 tância sobre que ela versa? Eis o último e mais grave problema que brota do ensino socrático. A pesquisa platónica iria debater, no seu desenvolvimento ulterior, estes problemas; quer na sua singularidade, quer nas suas relações recíprocas. § 49. O APRENDER E OS SEUS OBJECTOS (AS IDEIAS) Ao problema do aprender é dedicado o Ménon. Segundo o princípio erístico, não se pode aprender o que se sabe nem o que se não sabe: visto que ninguém busca saber o que sabe, nem pode buscar saber se não sabe que coisa buscar. a este princípio opõe Platão o mito da anamnese. a alma é imortal e nasceu muitas vezes, e viu já todas as coisas, quer neste mundo, quer no Hades: não é, pois, de espantar que possa recordar o que antes sabia. A natureza em si é toda igual: uma vez que a alma aprendeu tudo, nada impede que, quando ela se recorda de uma só coisa - no que consiste precisamente o aprender-, encontre por si tudo o resto, se tiver ânimo e não se cansar da pesquisa; dado que pesquisar e aprender são o mesmo que recordar-se. A doutrina dos sofistas torna-nos preguiçosos, porque nos dissuade da pesquisa; o mito da alma imortal e do aprender como reminiscência torna-nos activos e incita-nos à pesquisa. Platão confirma esta doutrina pelo exemplo famoso do escravo que, habilmente interrogado, consegue compreender por si, ou seja aprender e recordar, o teorema de Pitágoras. O mito da reminiscência exprime aqui o princípio da unidade da natureza: a natureza do mundo é uma só, e é ainda una com a natureza da alma. Pelo que, partindo de uma coisa singular, aprendida num acto singular, o homem pode procurar aprender as outras coisas, 173 que àquela estão unidas, mediante sucessivos actos de aprendizagem ligados ao primeiro no curso da pesquisa (Mén., 81 c). O mito tem aqui, como algures em Platão, um significado precioso: a anamnese exprime, nos termos da crença órfica e pitagórica, da cadeia dos nascimentos, aquela unidade da natureza das coisas e aquela unidade entre a natureza e a alma que torna possível a pesquisa e a aprendizagem. Porém, quer o mito da
anamnese, quer a doutrina da unidade da natureza, são explicitamente apresentadas por Platão como hipóteses semelhantes às de que se servem os geómetras. A hipótese põe-se quando não se conhece ainda a solução de um problema e se antecipa esta solução deduzindo-lhe as consequências que podem depois confirmá-la ou refutá-la (Mén., 8/ a). Como veremos, o uso da hipótese faz parte integrante do que Platão entendia por procedimento dialéctico. Se, pois, se põe a hipótese que a virtude é ciência, deve admitir-se que pode ela ser aprendida e ensinada. Como pode então acontecer que não haja mestres nem discípulos de virtude? Mestres de virtude não o são decerto os sofistas, nem o foram os homens mais eminentes (Aristides, Temístocles, etc.) que a Grécia teve, os quais não souberam transmitir a sua virtude aos filhos. Ora isto aconteceu e acontece porque, para aqueles homens, a virtude não era verdadeiramente sageza (frónesis), mas uma espécie de inspiração divina, como a dos profetas e a dos poetas. A sageza no seu grau mais elevado é ciência, no seu grau mais baixo é opinião verdadeira. A opinião verdadeira distingue-se da ciência por lhe faltar uma garantia de verdade. Platão compara-a às estátuas de Dédalo, que parecem sempre prestes a sumir-se. As opiniões tendem a escapar-se "enquanto não forem ligadas em um discurso causal" (Mén., 98 a). Quando estão ligadas entre si em um discurso causal consolidam-se e 174 tornam-se ciência. A ciência é, por isso, mais preciosa que as opiniões verdadeiras, e distingue-se destas pelo encadeamento racional que estabelece entre os seus objectos. O Ménon esboça as primeiras linhas de uma teoria do aprender que, todavia, deixa em aberto numerosos problemas. Se o aprender é um recordar-se, que valor tem, no que a ele concerne, o conhecimento sensível? E qual é o objecto do aprender? Por outro lado, toda a teoria da anamnese se funda no pressuposto da imortalidade da alma. é possível demonstrar este pressuposto? Tais são os problemas debatidos no Fédon. Mas a própria implantação destes problemas conduz Platão definitivamente além do ponto que Sócrates havia alcançado. A determinação de um objecto da ciência, de um objecto que nada tem que ver com as coisas sensíveis, como a ciência nada tem que ver com o conhecimento sensível, induz Platão à formulação da teoria das ideias. Esta teoria não vem organicamente formulada em o Fédon: é somente pressuposta como algo de já conhecido e aceite pelos interlocutores como hipótese fundamental da investigação. Talvez justamente por ser ela o centro para que convergem as directivas da sua filosofia, se negou Platão, conformemente ao princípio do seu ensino (§ 42), a tratá-la sistematicamente. Era talvez objecto das "doutrinas não escritas" de que fala o próprio Platão em a Carta VI/ (341 c), e que Aristóteles também assinala em várias passagens; doutrinas que constituíam, possivelmente, o património da Academia. Evidenciam-se, todavia, em o Fédon, algumas determinações fundamentais que Platão atribui às ideias. Essas determinações são três: 1.o as ideias são os objectos específicos do conhecimento racional; 2.o as ideias são critérios ou princípios de julgamento 175 das coisas naturais; 3.o as ideias são causas das coisas naturais. 1.º - Como objectos do conhecimento racionaL as ideias são chamadas por Platão entes ou substâncias, e são nitidamente distintas das coisas sensíveis. Pela primeira vez se faz em o Fédon o balanço das críticas que Platão dirigiu contra os sofistas nos diálogos precedentes.
O defeito fundamental dos sofistas é que eles se recusam a ir além das aparências: pelo que ficam seus prisioneiros e, falando com propriedade, não são filósofos. A filosofia consiste no prosseguir para além das aparências e, em primeiro lugar, das aparências sensíveis. A função da filosofia, declara-se em o Fédon, é a de afastar a alma da investigação "feita com os olhos, com os ouvidos e com os outros sentidos", o de recolhê-la e concentrá-la em si mesma de maneira a que ela enxergue "o ser em si"-, e caminha assim da consideração do que é sensível e visível até à consideração do que é inteligível e invisível. Aqui se vem enxertar no tronco da filosofia socrática a oposição, característica do Eleatismo, entre a via da opinião e a via da verdade; e se põe, como objecto próprio da razão, o ser em si, a ideia. Ã antítese eleática vem adjunto, por outro lado, o mito órfico-pita,,órfico, se a sensibilidade está ligada ao corpo e é um impedimento, mais do que um auxílio, para a pesquisa, a pesquisa exige que a alma se separe, tanto quanto possível, do corpo, e viva, por conseguinte, na expectativa e na preparação da morte, com a qual a separação se torna completa. Todavia, as outras determinações das ideias que Platão apresenta, fundadas como são nas conexões entre ideias e coisas, excluem a rigidez eleática da oposição entre a razão e os sentidos. 2.o -As ideias constituem, com efeito, os critérios para julgar as coisas sensíveis. Por exemplo: para 176 julgar se as duas coisas são iguais, servimo-nos da ideia de igual, que é a igualdade perfeita a que só imperfeitamente se adequam os iguais sensíveis. Para julgar do que é bom, justo, santo, belo, o critério é fornecido pelas ideias correspondentes, isto é, pelas entidades a que estes conceitos correspondem. As ideias são, por conseguinte, em o Fédon (75 c-d), critérios de avaliação; são mesmo os próprios valores. 3.o - As ideias são as causas das coisas naturais. Platão apresenta esta doutrina como uma consequência imediata da teoria de Anaxágoras de que o Intelecto é a causa ordenadora de todas as coisas. "Se assim é, se o Intelecto ordena todas as coisas e dispõe cada uma do modo melhor, encontrar a causa por que cada coisa se gera, se destrói ou existe significa encontrar qual é para ela o melhor modo de existir, de modificar-se ou de agir" (Féd., 97 c). Deste ponto de vista, "o óptimo e o excelente" são a única causa possível das coisas e o ú nico objecto da ciência: uma vez que quem sabe reconhecer o melhor pode também reconhecer o pior. Anaxágoras foi, certamente, infiel a este princípio, mas Platão declara que deseja, bem ao contrário, permanecer-lhe fiel, e que não admitirá portanto outras causas das coisas que não sejam as razões (logoi) das próprias coisas: a perfeição ou o fim a que elas se destinam (Ib., 99 e). As ideias são, -por isso, ao mesmo tempo critérios de avaliação e causas das coisas naturais: num caso como no outro as suas funções são de logoi, de razões das coisas. A imortalidade da alma, necessária para justificar a função da filosofia, é demonstrável precisamente fundando-se na doutrina das ideias. Como as ideias, a alma é, com efeito, invisível, e por isso é ainda, presumivelmente, indestrutível. Por outro lado, a reminiscência é uma outra prova da sua imortalidade, na medida em que demonstra a sua 177 pré-existência. Finalmente, se se quiser compreender a natureza da alma, preciso é que busquemos a ideia de que ela participa; e essa ideia é a vida. Porém, dado que participa necessariamente da vida, a alma não pode morrer: e ao avizinhar-se a morte, não fica vítima dela, mas afasta-se sem sofrer qualquer dano e conservando a inteligência. É desta forma que o desenvolvimento da teoria do aprender estabelecida em o Ménon conduz, em o Fédon, a determinar o objecto do aprender como ideia ou valor objectivo, e recebe neste diálogo a demonstração do seu pressuposto fundamental, a imortalidade.
§ 50. O EROS O aprender estabelece entre o homem e o ser em si entre os homens associados na pesquisa comum uma relação que não é puramente intelectual, uma vez que compromete a totalidade do homem, e por isso, também a sua vontade. Esta relação é definida por Platão como amor (eros). À teoria do amor são dedicados dois dos diálogos mais perfeitos, de um ponto de vista artístico, o Banquete e o Fedro. O segundo é, decerto, posterior ao primeiro. O Banquete considera predominantemente o objecto do amor, quer dizer a beleza, e procura determinar os graus hierárquicos dela. O Fedro considera, ao contrário, o amor predominantemente na sua subjectividade, como aspiração para a beleza e elevação progressiva da alma ao mundo do ser, a que a beleza pertence. Os discursos que os interlocutores do Banquete pronunciam um após outro em louvores de eros exprimem as características subordinadas e acessórias do amor, características que a doutrina exposta por Sócrates unifica e justifica. Pausânias distingue do eros vulgar, que se volve para os corpos, o eros 178 celeste, que se volve para as almas. O médico Erixímaco vê no amor uma força cósmica que determina as proporções e a harmonia de todos os fenómenos, assim no homem como na natureza. Aristófanes exprime, com o mito dos seres primitivos compostos de homem e de mulher (andrógenos), divididos pelos deuses em duas metades, para seu castigo, uma das quais caminha no encalço da outra para se unir a ela e reconstituir assim o ser primitivo, exprime, dizíamos, um dos traços fundamentais que o amor manifesta no homem: a insuficiência. É precisamente por este carácter que Sócrates começa: o amor deseja qualquer coisa que não tem, mas de que precisa, e é, portanto, imperfeição. O mito di-lo, com efeito, filho de Pobreza (Penia) e de Conquista (Poros); não é, pois, um deus mas um demónio; pois que não tem a beleza mas a deseja, não tem a sabedoria, mas aspira a possuí-la e é, portanto, filósofo. Os deuses, ao invés, são sapientes. O amor é, por conseguinte, desejo de beleza; e a beleza deseja-se porque é o bem que torna feliz. O homem que é mortal tende a gerar em beleza e daí a perpetuar-se através da geração, deixando após si um ser que se lhe assemelha. A beleza é o fim (telos), o objecto do amor. Mas a beleza tem graus diversos a que o homem somente pode elevar-se por aproximações sucessivas, ao longo de uma lenta caminhada. Em primeiro lugar, é a beleza de um corpo a que atrai e prende o homem. Este apercebe-se em seguida que a beleza é igual em todos os corpos e começa assim a desejar e a amar toda a beleza corpórea. Mas acima dessa há a beleza da alma; ainda mais acima, a beleza das instituições e das leis, além desta a beleza das ciências e, finalmente, acima de tudo, a beleza em si, que é eterna, superior ao devir e à morte, perfeita, sempre igual a si mesma e fonte de toda a outra beleza (210 a -211 a). 179 Como pode a alma humana percorrer os graus desta hierarquia, até alcançar a beleza suprema? Eis o problema do Fedro, que parte, portanto, da consideração da alma e da sua natureza. A alma é imortal enquanto é incriada; efectivamente, move-se por si, pelo que tem em si mesma o princípio da sua vida. Pode exprimir-se a sua natureza "de maneira humana e mais breve" por meio de um mito. É semelhante a uma parelha de cavalos alados, conduzidos por um auriga. Um dos cavalos é excelente, o outro é péssimo; de modo que o trabalho do auriga é difícil e penoso. O auriga procura conduzir ao céu os cavalos, levando-os até à corte dos deuses, lá onde fica a região supra-celeste (hiperurânio) que é a sede do ser. Nesta região está a "verdadeira substância (ousía), sem cor e sem forma,
impalpável, que só pode ser contemplada pelo guia da alma, que é a razão, a substância que é o objecto da verdadeira ciência (Fedr., 247 c). Esta substância é a totalidade das ideias justiça em si, temperança em si, etc.). e só pode ser contemplada pela alma; mesmo assim mal, pois que o cavalo ruim a puxa para baixo. Todas as almas contemplam, por conseguinte, em maior ou menor parte a substância do ser, e quando, por esquecimento ou por culpa, o pesadume a acomete, perde as asas e encarna-se, indo vivificar o corpo de um homem que será exactamente aquilo em que ela o transformar. A alma que viu mais entra para o corpo de um homem que se irá consagrar ao culto da sabedoria ou do amor; as almas que viram menos encarnam-se em homens que cada vez se afastarão mais da pesquisa da verdade e da beleza. Ora a recordação das substâncias ideais é precisamente despertada pela beleza, na alma que caiu e se encarnou. Efectivamente, mal vê a beleza o homem reconhece-a de chofre, pela sua luminosidade. A vista, que é o mais 180 agudo dos sentidos corpóreos, não vê nenhuma das outras substâncias, pode ver, no entanto, a beleza. "Só à beleza coube o privilégio de ser a substância. mais evidente e mais amável". Ela faz de medianeira entre o homem caído e o mundo das ideias; e o homem responde com amor ao seu apelo. É verdade que o amor pode também ficar preso à beleza corpórea e pretender gozar desta somente; mas quando é sentido e realizado na sua verdadeira natureza, o amor torna-se o guia da alma para o mundo do ser. Neste caso já não é tão só desejo, impulso, delírio; os seus caracteres passionais não deixam de existir e manifestar-se, mas subordinam-se e fundem-se na pesquisa rigorosa e lúcida do ser em si, da ideia. O eros torna-se então procedimento racional, dialéctica (156). A dialéctica é a um tempo pesquisa do ser em si e união amorosa da alma no aprender e no ensinar. É, por conseguinte, psicagogia, guia da alma, pela mediação da beleza, em direcção ao verdadeiro destino. É, ainda, a verdadeira arte da persuasão, a verdadeira retórica. Esta não é, como sustentam os sofistas, uma técnica a que seja indiferente a verdade do seu objecto e a natureza da alma que se quer persuadir, mas ciência do ser em si e, ao mesmo tempo, ciência da alma. Nessa qualidade distingue as espécies da alma e acha para cada uma o caminho apropriado para a persuadir e conduzir ao ser. Este conceito da dialéctica, que é o ponto culminante do Fedro e a cúpula da teoria platónica do amor, viria a constituir o centro da especulação platónica nos últimos diálogos. § 51. A JUSTIÇA Todos os temas especulativos e todos os resultados fundamentais dos diálogos precedentes se acham resumidos na obra máxima de Platão, a República, 181 que os ordena e os unes ao redor do motivo central de uma comunidade perfeita, em que o indivíduo encontra a sua perfeita formação. O projecto de uma comunidade tal funda-se no princípio que constitui a directriz de toda a filosofia platónica. "Se os filósofos não governarem a cidade ou se os que agora achamos reis ou governantes, não cultivarem verdadeira e seriamente a filosofia, se o poder político e a filosofia não coincidirem nas mesmas pessoas e a multidão dos que agora se ocupara exclusivamente de uma ou da outra não for rigorosamente impedida de fazê-lo, é impossível que cessem os males da cidade e até os do género humano" (Rep., V., 473 d). Mas neste ponto do desenvolvimento da investigação, a constituição de uma comunidade política governada por filósofos oferece a Platão dois problemas fundamentais: qual é o escopo e o fundamento de uma tal comunidade? Quem são propriamente os filósofos?
À primeira pergunta responde Platão: a justiça. E, com efeito, a República dirige-se explicitamente à determinação da natureza da justiça. Nenhuma comunidade humana pode subsistir sem a justiça. À opinião sofística que queria reduzi-la ao direito do mais forte, objecta Platão que nenhum bando de salteadores ou de ladrões poderia realizar qualquer roubo, se os seus componentes violassem as normas da justiça uns em prejuízo dos outros. A justiça é condição fundamental do nascimento e da vida do estado. Este deve ser constituído por três classes: a dos governantes, a dos guardiões ou guerreiros e a dos cidadãos, que exercem qualquer outra actividade (agricultores, artesãos, comerciantes, etc.). A sageza pertence à primeira destas classes, porque basta que os governantes sejam sábios para que todo o estado seja sábio. A coragem pertence à classe dos guerreiros. A temperança, como acordo entre 182 governantes e governados sobre quem deve comandar o estado, é virtude comum a todas as classes. Mas a justiça compreende em si estas três virtudes: realiza-se ela quando cada cidadão se dedica à tarefa que lhe é própria e tem o que lhe pertence. Com efeito, as tarefas em um estado são muitas e todas necessárias à vida da comunidade: cada qual deve escolher aquela a que se adapta e dedicar-se-lhe. Só assim cada homem será uno e não já múltiplo; e o próprio estado será uno (423 d). A justiça garante a unidade e, consigo, a força do estado. Mas garante igualmente a unidade e a eficiência do indivíduo. Na alma individual Platão distingue, como no estado, três partes: a parte racional, que é aquela pela qual a alma raciocina e domina os impulsos; a parte concupiscível, que é o princípio de todos os impulsos corporais; e a parte irascível, que é o auxiliar do princípio racional e se enfurece e luta por aquilo que a razão considera justo. Ao princípio racional pertencerá a sageza, ao princípio irascível a coragem; ao passo que o acordo de todas as três partes em deixar o comando à alma racional será a temperança. Também no homem individual a justiça se terá quando cada parte da alma exercer somente a função que lhe é própria. Evidentemente que a realização da justiça não pode prosseguir paralelamente no indivíduo e no estado. O estado é justo quando cada indivíduo atende somente à tarefa que lhe é própria; mas o indivíduo que atende só mente à própria tarefa é ele próprio justo. A justiça não é só a unidade do estado em si mesmo e do indivíduo em si mesmo, é, ao mesmo tempo, a unidade do indivíduo e do estado e, por isso, o acordo do indivíduo com a comunidade. Duas condições são necessárias para a realização da justiça no estado. Em primeiro lugar, a eliminação da riqueza e da pobreza; ambas tornam impossí183 vel ao homem atender à sua tarefa. Mas esta eliminação não implica uma organização comunista. Segundo Platão, as duas classes superiores dos governantes e dos guerreiros não devem possuir nada nem ter qualquer retribuição, além dos meios para viver. Mas a classe dos artesãos não é excluída da propriedade; e os meios de produção e de distribuição deixam-se nas mãos dos indivíduos. A segunda condição é a abolição da vida familiar, abolição que deriva da participação das mulheres na vida do estado com base na mais perfeita igualdade com os homens, pondo como única condição a sua capacidade. As uniões entre homens e mulheres são estabelecidas pelo estado com vista à procriação de filhos sãos. E os filhos são criados e educados pelo estado que a todos torna uma única grande família. Estas duas condições tornam impossível um estado segundo a injustiça, todas as vezes, é claro, que se verificar esta outra: que o governo seja entregue aos
filósofos. A natureza da justiça esclarece-se indirectamente pela determinação da injustiça. O estado de que fala Platão é o estado aristocrático, em que o governo pertence aos melhores. Mas esse estado não corresponde a nenhuma das formas de governo existentes. Todas estas são degenerações, do estado perfeito; e os topos de homem correspondentes são degenerações do homem justo, que é uno em si e com a comunidade, pois que é fiel à sua tarefa. São três as degenerações do estado e três as correspondentes degenerações do indivíduo. A primeira é a timocracia, governo fundado na honra, que nasce quando os governantes se apropriam de terras e de casas; corresponde-lhe o homem timocrático, ambicioso e amante do mandato e das honras, mas desconfiado em relação aos sábios. A segunda forma é a oligarquia, governo fundado no património, em que são os ricos quem comanda, corresponde-lhe o 184 homem hávido de riquezas, parco e laborioso. A terceira forma é a democracia, na qual os cidadãos são livres e a cada um é permitido fazer o que quiser; corresponde-lhe o homem democrático, que não é parco como o oligárquico, antes tende a abandonar-se a desejos descomedidos. Finalmente, a mais baixa de todas as formas de governo é a tirania, que nasce frequentemente da excessiva liberdade da democracia. É a forma mais desprezível, porque o tirano, para se proteger do ódio dos cidadãos, é obrigado a rodear-se dos piores indivíduos. O homem tirânico é escravo das suas paixões, às quais se abandona desordenadamente, e é o mais infeliz dos homens. § 52. O FILÓSOFO A parte central da República dedica-se ao delineamento da tarefa própria do filósofo. Filósofo é aquele que ama o conhecimento na sua totalidade e não somente em alguma sua parte singular. Mas que coisa é o conhecimento? Pela vez primeira Platão põe aqui explicitamente o critério fundamental da validade do conhecer: "Aquilo que absolutamente é, é absolutamente cognoscível, aquilo que de nenhum modo é, de nenhum modo é cognoscível" (477 a). Pelo que ao ser corresponde a ciência, que é o conhecimento verdadeiro; ao não-ser, a ignorância; e ao devir, que fica a meio do ser e do não-ser, corresponde a opinião (doxa), que está a meio do conhecimento e da ignorância. Opinião e ciência constituem todo o campo do conhecimento humano. A opinião tem como domínio seu o conhecimento sensível, a ciência o conhecimento racional. Quer o conhecimento sensível quer o conhecimento racional se dividem em duas partes, que se 185 correspondem simetricamente; têm-se, assim, os seguintes graus do conhecer (Rep., VI, 510-11). 1O - A suposição ou conjectura (eikasfa), que tem por objecto sombras e imagem. 2.o - A opinião acreditada, mas não verificada (pistis), que tem por objecto as coisas naturais, os seres vivos, os objectos da arte, etc.. 3.o - A razão científica (diànoia), que procede por meio de hipótese partindo do mundo sensível. Esta tem por objecto os entes matemáticos. 4.o - A inteligência filosófica (nóesis), que procede dialecticamente e tem por objecto o mundo do ser.
Como as sombras, as imagens reflectidas, etc., são cópias das coisas naturais, também as coisas naturais são cópias dos entes matemáticos e estes, por sua vez, cópias das substâncias eternas que constituem o mundo do ser. E, com efeito, o mundo do ser é o mundo da unidade e da ordem absoluta. Os entes da matemática (números, figuras geométricas) reproduzem a ordem e a proporção do mundo do ser. Por sua vez, as coisas naturais reproduzem as relações matemáticas e, assim, quando queremos julgar da realidade das coisas recorremos à medida. Todo o conhecimento tem pois, no seu cume o conhecimento do ser: todo o grau dele recebe o seu valor do grau superior e todos do primeiro. O homem deve caminhar desde a opinião até à ciência educando-se gradualmente; e este processo é descrito por Platão por meio do mito da caverna. No mundo sensível, os homens são como escravos agrilhoados numa caverna e obrigados a ver no fundo dela as sombras dos seres e dos objectos projectadas por um fogo que arde fora. Tomam estas sombras pela realidade, porque não conhecem a realidade verdadeira. Se um escravo se libertasse 186 e conseguisse sair da caverna, não poderia a principio suportar a luz do sol; teria que se habituar a olhar as sombras, depois as imagens dos homens e das coisas reflectidas na água, em seguida as próprias coisas e só no fim de tudo poderia alçar-se à contemplação dos astros e do sol. Só então ele se aperceberia que é justamente o sol que nos dá as estações e os anos e que governa tudo o que existe no mundo visível, e que do sol dependem ainda as coisas que ele e os seus companheiros viam na caverna. Ora a caverna é precisamente o mundo sensível; as sombras projectadas no fundo são os seres naturais; o fogo é o sol. O nosso conhecimento das coisas naturais é como o dos escravos. Se o escravo que primeiro se libertou voltar à caverna, os seus olhos serão ofuscados pela obscuridade e não saberá discernir as sombras; pelo que será escarnecido e desprezado pelos companheiros, que concederão as honras máximas aos que sabem mais agudamente ver as sombras. Mas ele sabe que a verdadeira realidade está fora da caverna, que o verdadeiro conhecimento não é o das sombras e, por isso, não experimentará senão compaixão para com aqueles que se contentam com tal conhecimento e o julgam verdadeiro. A educação consistirá, pois, em volver o homem da consideração do mundo sensível à consideração do mundo do ser; e em conduzi-lo gradualmente a avistar o ponto mais alto do ser, que é o bem. Para preparar o homem para a visão do bem podem servir as ciências que têm por objecto aqueles aspectos do ser que mais se aproximam do bem: a aritmética como arte do cálculo que permite corrigir as aparências dos sentidos; a geometria como ciência dos entes imutáveis; a astronomia como ciência do movimento mais ordenado e perfeito, o dos céus; a música como ciência da harmonia. O bem corresponde no mundo do ser ao 187 que o sol é no mundo sensível. Como o sol não só torna visível as coisas com a sua luz mas as faz nascer, crescer e alimentar-se, assim o bem não só torna cognoscívéis as substâncias que constituem o mundo inteligível, mas lhos dá ainda o ser de que são dotadas. -Por esta sua preeminência o bem não é uma ideia entre as outras, mas a causa das ideias: não é substância, no sentido em que as ideias são substâncias, mas é "superior à substância". Diz Platão: "As coisas cognoscívéis não derivam, do bem somente a sua cognoscibilidade, mas também o ser e a substância, enquanto o bem não seja substância mas, em querer e poder, se situe ainda acima da substância" (Rep., 509 b). O bem é a própria perfeição, ao passo que as ideias são perfeições, isto é, bens; e não é o ser, porque é a causa do ser. Este texto platónico está na base de todas as interpretações religiosas do platonismo que foram iniciadas pelas correntes neoplatónicas da antiguidade (§§ 114 ss.). Estas correntes,
insistindo na causalidade do bem, identificam-no como Deus: mas esta identificação não encontra justificação nos textos platónicos. A tese que Platão defende na passagem citada é a mesma que havia defendido no Fédon: a identificação do poder causal com a perfeição, visto que uma coisa possui tanto mais causalidade quanto mais perfeita é. O neoplatonismo apropriou-se desta tese; mas as implicações teológicas que o neoplatonismo lhe atribui são estranhas ao pensamento platónico. A inspiração fundamental deste pensamento é, como já se disse, a finalidade política da filosofia. Em vista desta finalidade, o ponto mais alto da filosofia não é a contemplação do bem como causa suprema: é a utilização de todos os conhecimentos que o filósofo pôde adquirir para a fundação de uma comunidade justa e feliz. Segundo Platão, com efeito, faz parte da educação do filósofo o regresso 188 à caverna, que consiste na reconsideração e na reavaliação do mundo humano à luz do que se viu fora deste mundo. Regressar à caverna significa, para o homem, pôr o que viu à disposição da comunidade, dar-se conta ele próprio deste mundo que, apesar de inferior, é o mundo humano, portanto o seu mundo, e obedecer ao vinculo de justiça que o liga à humanidade na sua própria pessoa e na dos outros. Deverá, pois, reabituar-se à obscuridade da caverna, e então verá melhor do que os companheiros que ali permaneceram e reconhecerá a natureza e os caracteres de cada imagem, por ter visto o seu verdadeiro exemplar: a beleza, a justiça e o bem. Assim poderá o estado ser constituído e governado por gente desperta e não já, como acontece agora, por gente que sonha e combate entre si por sombras, e disputa o poder como se este fosse um grande bem (VII, 520 c). Só com o regresso à caverna, só comprometendo-se no mundo humano, o homem terá completado a sua educação e será verdadeiramente filósofo. 53. CONDENAÇÃO DA ARTE IMITATIVA A filosofia é uma vida "em vigília", exige o abandono de toda a ilusão sobre a realidade das sombras que nos jungem ao mundo sensível. A arte imitativa, ao invés, está presa a esta ilusão; daqui a condenação que Platão pronuncia sobre ela no livro X da República. Com efeito, a imitação, por exemplo a da pintura, apoia-se na aparência dos objectos; representa-os diversos nas diversas perspectivas enquanto são os mesmos, e não reproduz senão uma pequena parte da própria aparência, pelo que não consegue enganar senão as crianças e os tolos. Isto acontece por prescindir completamente do cálculo e da medida de que nos servimos 189 para corrigir as ilusões dos sentidos. Estes fazem-nos parecer os mesmos objectos ora quebrados, ora direitos, conforme sejam vistos dentro ou fora da água, e côncavos ou convexos, grandes ou pequenos, pesados ou leves, por meio de outras ilusões. Nós superamos estas ilusões recorrendo à parte superior da alma, que intervém para medir, para calcular, para pesar. Mas a imitação, que renuncia a estas operações, volve-se exclusivamente para a parte inferior da alma, que é a mais afastada da sageza. O mesmo faz a poesia. Esta excita a parte emotiva da alma, a que se abandona aos impulsos e ignora a ordem e a medida em que consiste a virtude; e assim vIra as costas à razão. O erro da poesia trágica ou cómica é ainda mais grave; faz-nos comover com as desgraças fictícias que se vêem na cena, leva-nos a rir imoderadamente de atitudes chocarreiras que todos devem na realidade condenar, e deste modo encoraja e fortalece a parte pior do homem. A isto acrescenta-se a observação (já feita no Ion) de que o poeta não sabe verdadeiramente nada, pois de outro modo preferiria realizar os efeitos que canta ou praticar as artes que
descreve; e teremos o quadro completo da condenação que Platão pronuncia sobre a arte imitativa. Nenhum valor pode, por isso, ter a criação em que ela consiste. Se a divindade cria a forma natural das coisas, se o artesão reproduz esta forma nos móveis e nos objectos que cria, o artista não faz mais que reproduzir os móveis ou os objectos criados pelo artesão e ficará, por conseguinte, ainda mais afastado da realidade das coisas naturais. Estas não têm realidade senão enquanto participam das determinações matemáticas (medida, número, peso) que lhes eliminam a desordem e os contrastes; ora a imitação prescinde precisamente destas determinações matemáticas e contraditórias: não pode, pois, 190 aspirar a nenhum grau de validade objectiva, e tende a encerrar o homem naquela ilusão de realidade de que a filosofia deve despertá-lo. § 54. O MITO DO DESTINO Um estado como o delineado por Platão não é historicamente real. Platão diz explicitamente que não importa a sua realidade, mas tão só que o homem aja e viva em conformidade com ele (IX, 592 b). Sócrates foi o cidadão ideal desta ideal comunidade; por ela e nela viveu e morreu. Certamente por isto chama-o Platão "o homem mais justo e melhor". E. a exemplo de Sócrates, quem quiser ser justo deve ter os olhos postos numa tal comunidade. A justiça, como felicidade do homem à tarefa que lhe é própria, dá lugar ao problema do destino. É o problema debatido no mito final da República, e já referido no Fedro (249 b). Platão projecta miticamente a escolha do próprio destino, que cada um faz no mundo do além: mas o significado do mito, como de todos os mitos platónicos, é fundamental. Er, morto em batalha e ressuscitado ao fim de 12 dias, pôde narrar aos homens a sorte que os espera depois da morte. A parte central da narração de Er diz respeito à escolha da vida que as almas são convidadas a fazer no momento da sua reencarnação. A Parca Làchesi, que notifica da escolha, afirma a liberdade desta. "Não é o demónio que escolherá a vossa sorte, sois vós que escolheis o vosso demónio. O primeiro que a sorte designar será o primeiro a escolher o teor de vida a que ficará necessariamente ligado. A virtude é livre em todos, cada um participará dela mais ou menos consoante a estima ou a despreza. Cada um é responsável pelo próprio destino, a divindade não 191 é responsável" (Rep., x, 617 e). As almas escolhem, por conseguinte, segundo a ordem designada pela sorte, um dos modelos de vida que têm ante si em grande número. A sua escolha depende em parte do acaso, uma vez que os primeiros têm maior possibilidade de escolha; mas também os que escolhem no fim, se escolherem judiciosamente, podem obter uma vida feliz. Todo o significado do mito está nos motivos que sugerem à alma a escolha decisiva. Até os que vêm do céu às vezes escolhem mal, "porque não foram experimentados pelos sofrimentos" e deixam-se assim deslumbrar por modelos de vida aparentemente brilhantes, pela riqueza ou pelo poder que encobrem a infelicidade e o mal. Mas as mais das vezes a alma escolhe com base na experiência da vida precedente; e, assim, a alma de Ulisses, lembrada dos antigos trabalhos e despida já de ambição, escolhe a vida mais modesta e obscura, que fora descurada por todos. De maneira que o mito, que parecia negar a liberdade do homem na vida terrena e fazer depender todo o desenvolvimento desta vida da decisão acontecida num momento antecedente, confirma ao contrário a liberdade, porque faz depender a decisão da conduta que a alma teve no mundo: daquilo que o homem quis ser e foi nesta vida. Sócrates pode então pôr o homem em guarda e
adverti-lo a preparar-se para a escolha. "É este o momento mais perigoso do homem e isto porque cada um de nós, descuidando todas as outras ocupações, deve procurar atender somente a isto: descobrir e reconhecer o homem que o porá capaz de discernir o melhor género de vida e de sabê-lo escolher. (618 c). Para isto é necessário calcular que efeitos têm sobre a virtude as condições de vida, que resultados bons ou maus produz a beleza quando se une à pobreza, ou à riqueza, ou às diversas capacidades da alma, ou a quaisquer outras 192 condições da vida; e só considerando tudo isto em relação com a natureza da alma se pode escolher a vida melhor, que é a mais justa. "Em vida ou na morte, esta escolha é a melhor para o homem". Este mito do destino, que afirma a liberdade do homem no decidir da própria vida, fecha dignamente a República, o diálogo sobre a justiça, que é a virtude pela qual todo o homem deve assumir e levar a cabo a tarefa que lhe incumbe. § 55. FASE CRITICA DO PLATONISMO: "PARMéNIDES" E O "TEETETO" Pela primeira vez Sócrates não é, no Parménides, a personagem principal do diálogo. A investigação platónica sobre o verdadeiro significado da personalidade de Sócrates rasgou enfim o invólucro doutrinal, de que estava historicamente revestida. Os resultados que ela alcançou levantam outros problemas, requerem outras determinações, problemas e determinações que não encontram apoio na letra do ensino socrático, mas que são no entanto necessários para compreender plenamente tal ensino e para lhe conferir a sua justificação definitiva. A pesquisa de Platão torna-se cada vez mais técnica, o campo de investigação delimita-se e aprofunda-se. Depois da grande síntese da República, a pesquisa procura atingir outros níveis de profundidade, para o que se devem admitir à partida os ensinamentos de outros mestres e, em primeiro lugar, de PARMéNIDES. O Parménides marca o ponto crítico no desenvolvimento da teoria das ideias. As ideias aparecem neste diálogo definidas (ou redefinidas) e classificadas e são formulados claramente os problemas a que elas dão lugar, quer nas suas relações recíprocas, quer nas suas relações com as coisas, quer ainda nas suas relações com a mente humana. 193 Podem tomar-se as respostas que Sócrates dá a Parménides, na introdução do diálogo, como constituindo, no seu conjunto, uma olhadela critica que o próprio Platão lançou, em dado momento, sobre a doutrina fundamental da sua filosofia. Tais respostas encontram, de facto, confirmações literais nas referências às ideias, que se podem observar nos outros Diálogos de Platão. Em primeiro lugar: o que é a ideia? "Penso eu que -tu julgas-diz Parménides (132 a)-que há uma forma individual em cada caso, por este motivo: quando observas muitas coisas grandes, julgas que há uma única ideia que é a mesma quando se olham todas essas coisas e que, por conseguinte, a grandeza é uma unidade". Por outras palavras, a ideia é a forma única de um múltiplo que aparece como tal a quem abrange este múltiplo com um só golpe de vista intelectual: é esta a definição que melhor se presta para exprimir a noção da ideia, tal como é utilizada em toda a obra de Platão. Em segundo lugar: de que objectos há ideias? A resposta do Parménides (130 b-d) é que: há seguramente ideias de objectos como a semelhança e a dissemelhança, a pluralidade e a unidade, o repouso e o movimento, o um e os muitos, etc.; b) há seguramente ideias do justo, do bem, do belo, e de todas as outras determinações deste género; c) é duvidoso que
haja ideias de objectos como homem, fogo, água, etc.; d) não há, com certeza, ideias de objectos desprezíveis ou ridículos como cabelo, lodo, porcaria, etc.. Estas respostas encontram plena confirmação na obra de Platão. Que haja ideias dos objectos da espécie a), ou seja de objectos matemáticos, é doutrina platónica fundamental. São estas as ideias que, na República, Platão considera objecto da razão científica, por conseguinte das ciências matemáticas (Rep., 510 c). É também doutrina fundamental do platonismo que haja as ideias194 -valores, que são o objecto específico da filosofia em sentido estricto (dialéctica), ou seja da inteligência ou pensamento (noesis) (Rep., 534 a). A dúvida acerca da existência de ideias de coisas sensíveis corresponde a uma conhecida oscilação do pensamento platónico sobre este assunto. As mais das vezes Platão nem sequer fala de ideias do género, limitando a sua exemplificação aos entes matemáticos e aos valores; outras vezes, porém, fala também de ideias de coisas: por exemplo do frio e do calor (Fed., 103 d); de camas e de mesas (Rep., 596 a-b); do homem ou do boi (Fil., 15 a); do fogo e da água (Tim., 51 a-b). Esta oscilação da doutrina platónica pode exprimir-se bastante bem dizendo que Platão se manteve "em dúvida" no que respeita às ideias de objectos sensíveis. Quanto aos objectos da classe d), Platão nunca mais falou de ideias relativamente a eles: de maneira que a exclusão do Parménides corresponde também aqui a uma situação de facto. Todavia, a dúvida a respeito das ideias de objectos sensíveis e a negação das ideias de objectos desprezíveis são abaladas pela observação de Parménides de que Sócrates, neste caso, se deixou influenciar pelas opiniões dos homens e que, quando a filosofia o prender completamente, ele não desprezará coisa alguma por insignificante e miserável que ela seja (Par., 130 e). Esta observação anuncia óbviamente uma noção de ideia de tipo lógico-ontológico mais do que matemático-ético: isto é, uma noção que se firme nos caracteres puramente formais de um múltiplo para ir reconhecer neste unia forma ontológica única, e que se não deixe embaraçar neste procedimento por considerações éticas. Com efeito, é esta a posição que podemos encontrar nos diálogos platónicos posteriores ao Parménides e mais precisamente no Sofista, no Filebo, no Timeu. 195 Em terceiro lugar: qual é a relação entre as ideias e a mente do homem? O Parménides acrescenta dois pontos a este propósito: 1) as ideias não existem somente como pensamentos na mente dos homens: com efeito, seriam neste caso pensamentos de nada (132 b); 2) as ideias não existem fora de toda a relação com o homem: com efeito, seriam neste caso incognoscíveis para o homem, visto que objecto de uma "ciência em si" que não teria nada que ver com a do homem e poderia pertencer somente à divindade (134 a-e). Estas duas determinações são fundamentais: ambas correspondem a pontos de vista constantemente sustentados por Platão em toda a sua obra. Em quarto lugar: quais são as relações das ideias entre si e das ideias com os objectos de que constituem a unidade? Este é o problema fundamental que se discute em todo o resto do diálogo como problema das relações entre o um e os muitos. O um é a ideia: os muitos são os objectos de que a ideia é a unidade. No que respeita a esta relação, a dificuldade consiste em compreender como poderá a ideia ser participada por muitos objectos ou derramada neles sem que resulte com isso multiplicada e, portanto, destruída na sua unidade. Por outro lado, da mesma noção de ideia parece emanar a multiplicação das próprias ideias até ao infinito: uma vez que se tem uma ideia todas as vezes que se considera na sua unidade uma multiplicidade de objectos, ter-se-á também uma ideia quando se considerar a totalidade destes objectos mais a sua ideia. Esta será uma terceira ideia que, se considerada por sua vez conjuntamente com os objectos e a precedente ideia, dará lugar a uma quarta ideia, e assim por diante até ao infinito. É este o
chamado argumento do "terceiro homem", cuja invenção se atribuía ao megárico Polixeno e que Aristóteles refere várias vezes (Met., 990 b, 15; 1038 b, 30; 196 1059 b, 2). Não se escapa a esta dificuldade definindo como "semelhança" a relação entre a ideia e os objectos, e considerando a ideia como arquétipo e os objectos como imagens ou cópias dela: pois que a própria semelhança se torna neste caso uma ideia que se acrescenta como terceiro termo aos objectos e à ideia, dando lugar a uma nova semelhança, etc.. Estas dificuldades são de tal monta que Parménides dirige a Sócrates uma pergunta crucial: "Que farás agora da filosofia?" Com efeito, não se pode abandonar facilmente a noção de ideia, pois que sem ela, quer dizer, sem um ponto fixo no meio da multiplicidade e variabilidade das coisas, não se pode pensar e ainda menos se pode filosofar: sem a ideia, a própria possibilidade de dialogar ficaria destruída (135 c). O único caminho de salvação é o que o próprio Parménides traça: discutir, como hipótese, todos os possíveis modos de relação entre o um e os muitos e levar até ao fundo as consequências que derivam de cada uma das hipóteses. E as hipóteses fundamentais são duas: que o uno seja uno no sentido de ser absolutamente uno; e que o uno seja na sentido de existir. A primeira hipótese refuta-se por si, visto que, excluindo a existência de qualquer multiplicidade, não só se exclui todo o devir mas também o ser do uno e a própria possibilidade de conhecer ou enunciar o uno: pois que o próprio conhecê-lo ou enunciá-lo o multiplica (142 a). Se, ao invés, o uno é , no sentido de que existe, o seu existir, distinguindo-se da sua unidade, introduz prontamente no próprio uno uma dualidade que pode ser multiplicada e incluir a multiplicidade, o devir e, assim, a cognoscibilidade e enunciabilidade do uno (155 d-c). Há, no entanto, um sentido em que o uno não é (e em que, por isso, tão-pouco o múltiplo é): o uno não é no sentido de que não é absolutamente 197 uno, de que não subsiste -fora da sua relação com o múltiplo, de que não exclui o próprio multiplicar-se e articular-se em um múltiplo que, apesar do sujeito ao devir e ao tempo, constitui sempre uma ordem numérica, ou seja uma unidade. E os muitos não são no sentido de que não são pura e absolutamente muitos, ou seja, privados de qualquer unidade, pois que em tal caso se dispersariam e pulverizariam no nada, não podendo constituir um múltiplo. O uno, por conseguinte, é (existe), mas ao mesmo tempo não é absolutamente uno: os muitos são (existem), mas ao mesmo tempo não são absolutamente muitos. O diálogo traça, sob a forma de uma solução puramente lógica, uma conexão vital entre o uno e os muitos, por conseguinte entre o mundo do ser e o mundo do homem. Pela boca de Parménides, que na sua filosofia negara resolutamente o não-ser (§ 14), prepara-se o reconhecimento da realidade do não-ser (do mundo sensível e do homem), mediante a afirmação da estreita relação dos muitos com o uno. Esta reivindicação será feita explicitamente no Sofista; mas ela pressupõe a investigação sobre o processo subjectivo do conhecer, que se realiza no Teeteto. Pode parecer estranho que nesta fase de desenvolvimento da investigação platónica apareça um diálogo abertamente socrático em que a personagem de Sócrates é introduzida para fazer valer em toda a sua força negativa e destruidora a arte maiêutica (§ 27). Mas o Teeteto debate um problema que reentra no âmbito do ensino socrático, o da ciência, e tem um escopo predominantemente crítico, querendo demonstrar como é impossível alcançar qualquer definição da ciência permanecendo no domínio da pura subjectividade cognoscente. A finalidade do Teeteto é complementar e convergente com a do Parménides.
O Parménides pretendeu 198 demonstrar que é impossível considerar o ser no seu isolamento, como unidade absoluta sem relação com o homem e com o seu mundo (com os "muitos"). O Teeteto pretende demonstrar que é impossível considerar o conhecimento verdadeiro, a ciência, como pura subjectividade, sem relação com o mundo do ser (com o " uno"). Nas definições que se dão da ciência e que são refutadas por Sócrates uma por uma, não aparece de facto qualquer referência ao mundo das ideias ou do ser em si; e o diálogo termina negativamente. Parménides, o filósofo do ser, é introduzido no diálogo que tem o seu nome para demonstrar a insuficiência do ser na sua objectividade. Sócrates, o filósofo da subjectividade humana, é introduzido no Teeteto para demonstrar a insuficiência do conhecimento como subjectividade isolada do ser. A tese que no Teeteto primeiro e mais longamente se discute é a tese da extrema subjectividade do conhecer, a de Protágoras: a ciência é a opinião, é o que aparece, logo é sensação. Mas a sensação não fornece qualquer critério de juízo por que a sensação do ignorante equivale à do sábio, a do são à do doente, a do homem à do animal; enquanto a ciência deve possuir um critério, uma medida que permita julgar do valor das coisas inclusivamente para o futuro (de que não há sensação). Pode então dizer-se que a ciência é opinião verdadeira, entendendo por opinião o pensamento. "Pensar é um discurso que a alma faz por si consigo mesma, acerca dos objectos que examina. Parece-me a mim que quando a alma pensa não faz mais que dialogar consigo mesma, interrogando-se e respondendo-se, afirmando e negando" (189 e 190-a). Mas esta nova definição, se reduz a metade a relatividade e a mutabilidade que a primeira punha na ciência, continua encerrada no âmbito da subjectividade. Se a ciência é opinião verdadeira, deve distinguirse 199 da opinião falsa; ora é impossível determinar em que consiste a falsidade de uma opinião. No entanto, a opinião deve ter sempre, como se viu já (§ 49), um objecto real; e se iem um objecto real, é verdadeira. Acrescentar que a ciência consiste na opinião verdadeira acompanhada de razão, não ajuda nada; uma vez que, seja como for que se entenda a razão que deve justificar e apoiar a opinião verdadeira, fica-se no âmbito do pensamento subjectivo e não se garante de nenhum modo a validade objectiva do conhecimento. A conclusão negativa do Teeteto é fecunda em resultados. A tentativa de reduzir a ciência ao pensamento subjectivo, ao colóquio interior da alma consigo mesma, não tem sucesso: como não tem sucesso a tentativa de reduzir o ser à pura objectividade, às ideias, sem nenhuma relação com a inteligência do homem. As indicações do Parménides e do Teeteto são, pois, claras. Se se quer justificar a realidade do ser e a verdade do conhecimento, necessário é que se alcance um ser que não seja puramente objectivo, mas que compreenda em si o conhecimento, ou um conhecimento que não seja puramente subjectivo, mas que compreenda em si o ser. § 56. O SER E AS SUAS FORMAS A esta conclusão se chega explicitamente no Sofista. Contra os "amigos das ideias", quer dizer contra a interpretação objectivista da teoria das ideias, afirma-se resolutamente a impossibilidade de que "o ser perfeito seja privado de movimento, de vida, de alma, de inteligência, e que não viva nem pense". É necessário admitir que o ser compreende em si a inteligência (ou o sujeito) que o conhece; esta, como se viu desde o Parménides, não 200
pode ficar fora do ser, de outro modo o ser permaneceria desconhecido. Mas a inclusão da inteligência no ser modifica radicalmente a natureza do ser. Este não é imóvel, porque a inteligência é vida e por isso movimento: o movimento é pois uma determinação fundamental, uma forma (eidos) do ser. Isto não quer dizer que o ser se mova em todos os sentidos, como sustentam os Heracliteanos; é necessário admitir que o ser é, ao mesmo tempo, movimento e repouso. Mas na medida em que os compreende a ambos não é uma coisa nem a outra, ainda que possa ser ambas: por conseguinte ser. O ser é comum ao movimento e ao repouso; mas nem o movimento nem o repouso são todo o ser. Cada uma destas determinações ou formas é idêntica a si mesma, e diferente da outra: o idêntico e o diferente serão pois outras duas determinações do ser, que assim se elevam a cinco: ser, repouso, movimento, identidade, diversidade. Mas a diversidade de cada uma destas formas da outra significa que cada uma delas não é a outra (o movimento não é o repouso, etc.); pelo que a diversidade é um não-ser e o não-ser de qualquer modo é, porque, como diversidade, é uma das formas fundamentais do ser. Desta maneira completou o estrangeiro eleata, o discípulo de Parménides que é o protagonista do Sofista, o necessário "parricídio" contra Parménides: utilizando a pesquisa eleática, Platão foi além dela, unindo ao ser parmenídeo a subjectividade socrática e fazendo consequentemente viver e mover o ser. Esta determinação das cinco formas (ou géneros) do ser funda (ou funda-se em) uma nova concepção do ser: nova porque diferente da que Platão já via aceite na filosofia sua contemporânea. Em primeiro lugar, ela exclui que o ser se reduza à existência corpórea como sustentam os 201 materialistas: dado que se diz que "são" não só tais coisas corpóreas mas também as incorpóreas, como por exemplo a virtude (247 d). Em segundo lugar, ela exclui que o ser se reduza às formas ideais como sustentam " os amigos das formas", pois que neste caso se excluiria do ser o conhecimento do ser e daí a inteligência e a vida (248 c-249 a). Em terceiro lugar, ela exclui que o ser seja necessariamente imóvel (isto é que "tudo seja imóvel") ou que o ser seja necessariamente em movimento (isto é que "tudo seja em movimento") (249 d). Em quarto lugar, exclui que todas as determinações do ser possam combinar-se entre si ou que todas se excluam reciprocamente (252 a-d). Por outro lado, como se viu, o ser deverá no entanto compreender o não-ser como alteridade. Sobre estas bases, o ser não pode definir-se de outro modo que não seja como possibilidade (dynamis); e deve dizer-se que "é toda a coisa que se ache na posse de uma qualquer possibilidade, seja de agir seja de sofrer, da parte de qualquer outra coisa, ainda que insignificante, uma acção ainda que mínima e ainda que de uma só vez" (247 e). A possibilidade, de que fala Platão, não tem nada a ver com a potência de Aristóteles. Efectivamente a potência é tal, só nas comparações com um acto que, unicamente ele, é o sentido fundamental do ser. Para Platão, porém, o sentido fundamental do ser é precisamente a possibilidade. E é o ser assim concebido que torna possível, segundo Platão, a ciência filosófica por excelência, a dialéctica. § 57. A DIALÉCTICA A dialéctica é a arte do diálogo; mas diálogo é para Platão toda a operação cognoscitiva visto que o próprio pensamento (como se viu, § 45) é 202 um diálogo da alma consigo mesma. A dialéctica é, em geral, o processo próprio da
investigação racional, portanto também a técnica que dá rigor e precisão a esta investigação. Ela é uma técnica de invenção ou de descoberta, não (como a silogística de Aristóteles) de simples demonstração. São dois os momentos que a constituem: 1) O primeiro momento consiste em reduzir a uma única ideia as coisas dispersas e em definir essa a ideia de modo a torná-la comunicável a todos (Fedro, 265 c). Na República Platão diz que, no remontar às ideias, a dialéctica se situa para além das ciências matemáticas porque considera as hipóteses (que as ciências não estão em condições de justificar) como simples hipóteses, quer dizer como pontos de partida para chegar aos princípios de que se pode depois descer até às conclusões últimas (Rep., VI, 511 b-c). Mas nos diálogos posteriores este segundo processo é melhor explicitado como técnica da divisão. 2) O momento da divisão, que consiste "em poder dividir novamente a ideia nas suas espécies segundo as suas articulações naturais e evitando despedaçar-lhe as partes como faria um trinchante inábil" (Fedro, 265 d). Nesta segunda fase, é função da dialéctica "dividir segundo géneros e não tomar por diferente a mesma forma ou por idêntica uma forma diferente" (Sof., 253 d). O resultado deste segundo procedimento não é seguro em todos os casos. Em um passo famoso do Sofista Platão enumera as três alternativas com que pode topar o processo, a saber: 1) que uma única ideia penetre e abranja muitas outras ideias, que no entanto continuam separadas dela e exteriores uma à outra; 2) que uma única ideia reduza à unidade muitas outras ideias na sua totalidade; 3) que muitas ideias fiquem inteiramente distintas entre si 203 (253 d). Estas três alternativas apresentam dois casos extremos: o da unidade de muitas ideias-em uma delas e o da sua heterogeneidade radical; e, por outro lado, uma caso intermédio, que é o de uma ideia que abrange outras ideias sem todavia as fundir em unidade. Qual destes três casos possa verificar-se numa investigação particular, é coisa que só a própria investigação pode decidir. Platão pôs em acção a investigação dialéctica no Fedro, no Sofista e no Político. Nestes diálogos ele procedeu primeiro à definição da ideia, em seguida à divisão da própria ideia em duas partes, chamadas respectivamente a parte esquerda e a parte direita e distintas pela presença ou pela ausência de uma certa propriedade, e assim por diante (Fedro, 266 a-b). O processo pode fechar-se em um certo ponto ou retomar-se, começando por uma outra ideia. Por fim, poderão reunir-se ou recapitular-se as determinações assim obtidas em todo o processo (Sof., 268 c). A natureza da dialéctica neste sentido é, por conseguinte, a possibilidade da escolha, permitida em todos os passos, da característica adequada para determinar a divisão da ideia em direita e esquerda de maneira oportuna, ou seja tal que siga a articulação da ideia e não "rompa" a própria ideia. A escolha constitui a hipótese do procedimento dialéctico; a hipótese que a dialéctica assume como tal, para a pôr à prova e para a justificar, e que por isso se distingue das hipóteses das disciplinas matemáticas que são assumidas como princípios primeiros, em que se não ousa tocar (Rep., VII, 533 c). O mundo em que se move a dialéctica é, portanto, um mundo de formas, quer dizer de géneros ou espécies do ser que podem conectar-se ou não e serem mais ou menos conexos: é um mundo de conexões possíveis, competindo precisamente à dialéctica determinar-lhes a possibilidade. 204 Neste ponto, Platão afastou-se muito da noção das ideias-valores de que tratava a sua primeira especulação. As ideias como géneros e formas do ser são neutras nos confrontos do valor. Platão fez sua a advertência de Parménides de considerar todas as formas do ser
sem tomar em consideração o valor que os homens lhes atribuem. Se na República, punha no cume do ser o Rem e considerava as ideias fundadas neste valor supremo, no Sofistas quis definir somente o ser, na sua estrutura formal, nas suas possibilidades constitutivas. § 58. O BEM Portanto, quando Platão voltar a ocupar-se do bem nesta fase do seu pensamento, como acontece no Filebo, o conceito que terá presente não será o mesmo. O bem já não é a super-substância, mas a forma da vida própria do homem; e a pesquisa do bem é a pesquisa sobre a qual é esta forma de vida. Ora, segundo Platão, a vida do homem não pode ser uma vida fundada no prazer. Uma vida assim, que acabaria por excluir a consciência do prazer, é própria do animal, que não do homem. Por outro lado, não pode ser tão-pouco uma vida de pura inteligência, que seria divina, e não humana. Deve ser, pois, uma vida mista de prazer e de inteligência. O importante é determinar a justa proporção em que o prazer e a inteligência devem mesclar-se conjuntamente para constituir a forma perfeita do bem. O problema do bem torna-se aqui um problema de medida, de proporção, de conveniência: a investigação moral transforma-se numa investigação metafísica de natureza matemática. Platão apoia-se em Pitágoras: e recorre aos conceitos pitagóricos de limite e de ilimitado. 205 Toda a mesclança bem proporcionada é constituída por dois elementos. Um é o ilimitado, como por exemplo o calor o frio, o prazer ou a dor, e em geral tudo o que é susceptível de ser aumentado ou diminuído até ao infinito. O outro é o limite, ou seja a ordem, a medida, o número, que intervêm para determinar e definir o ilimitado. A função do limite é a de reunir e unificar o que está disperso, concentrar o que se espalha, ordenar o que está desordenado, dar número e medida ao que está privado de um e do outro. O limite como número suprime a oposição entre o um e os muitos, porque determinar o número significa reduzi-los à unidade. dado que o número é sempre um conjunto ordenado. Por exemplo, no ilimitado número dos sons a música distingue os três sons fundamentais, o agudo, o médio e o grave, e desta maneira reduz o ilimitado à ordem numérica. Ora a união do ilimitado e do limite é o género misto, a que pertencem todas as coisas que têm proporção e beleza, e a causa do género misto é a inteligência, que vem a ser, portanto, com o ilimitado, o limite e o género misto, o quarto elemento constitutivo do bem. A vida propriamente humana, como mesclança proporcionada de prazer e de inteligência, é um género misto que tem como causa a inteligência. A ela devem pertencer todas as ordens e espécies de conhecimento da mais elevada ordem e espécie, que é a dialéctica, desde as ciências puras, como a matemática, passando pelas ciências aplicadas como a música, a medicina, etc., até à opinião, que tão-pouco pode ser excluída, na medida em que é necessária à conduta prática da vida. No que respeita aos prazeres, só os puros, ao contrário, deverão fazer parte da vida mista, quer dizer os prazeres não ligados à dor da necessidade, como 206 são os prazeres do conhecimento e os estéticos. provenientes da contemplação das belas formas, das belas cores, etc.. Resulta daí que a coisa melhor e mais alta para o homem, o bem supremo, é a ordem, a medida, o justo meio. A este primeiro valor segue-se tudo o que é proporcionado, belo e completo. Na terceira posição fica depois a inteligência como causa da proporção e da beleza; na quarta, as ciências e a opinião; na quinta, os prazeres puros. O Filebo oferece assim ao homem a escala dos valores que resultam da estrutura do ser dilucidada no Sofista. Esta escala coloca no cume o conceito matemático da ordem e da
medida. Platão, chegado ao termo dos aprofundamentos sucessivos da sua pesquisa, considera que a ciência do justo, de que Sócrates afirmam a estrita necessidade como único guia -para a conduta do homem, deve ser substancialmente uma ciência da medida. Um discípulo de Aristóteles, Aristoxeno (Harm., 30) conta que a notícia de uma lição de Platão sobre o bem atraia numerosos ouvintes, mas que aqueles que esperavam que Platão falasse dos bens humanos, como a riqueza, a saúde, a felicidade, ficavam desiludidos mal ele começava a falar de número e de limites e da suprema unidade que para ele era o bem. Para Platão, na verdade, a redução da ciência da conduta humana a ciência de número e de medida, representava a realização rigorosa do projecto socrático de reduzir a virtude a ciência. Estava agora muito afastado dos conceitos que haviam dominado o ensino de Sócrates; no entanto, continuava a seguir de perto a directriz do mestre de reduzir a virtude a uma disciplina rigorosa, que pudesse constituir a base do ensino e da educação colectiva. 207 § 59. A NATUREZA E A HISTÓRIA Precisamente neste ponto perdia a sua razão de ser a recusa de Sócrates em considerar o mundo natural. Pois que tudo o que este mundo possuir de realidade e de valor deve ser explicado; e não pode sê-lo senão integrando-o no mundo do ser. Por outro lado, como se viu, o mundo do ser não subsiste separadamente do mundo da natureza, visto que o uno não subsiste sem o múltiplo, nem a realidade sem a aparência. Se se radicar no mundo do ser o homem com a sua vida e a sua inteligência, deve também radicar-se no ser a natureza que é o mundo do homem. Um estudo do mundo da natureza é, pois, possível: mas isso não significa que ele constitua ciência. Platão reforça aqui o seu conceito de ciência. A ciência incide somente sobre o que é estável e constante, e concebível pela inteligência; sobre a natureza, que não tem constância nem estabilidade, só pode haver conhecimentos prováveis (Tim., 29 c-d). Uma "narração provável" é tudo o que Platão se propõe oferecer como contributo pessoal à investigação natural. O probabilismo da Nova Academia encontrava nestas afirmações de Platão o seu começo ou a sua justificação. Seja como for, a pesquisa platónica assume deliberadamente, neste ponto, a forma do mito. A causa do mundo é um deus artesão ou demiurgo que o produziu pela bondade sem mácula que quer difundir e multiplicar o bem. Ele criou a natureza à semelhança do mundo do ser. E dado que este tem em si alma, inteligência e vida, a natureza foi criada como um todo animado, um gigantesco animal. Mas, uma vez que foi gerada, não podia ser, como o modelo, incorpórea; devia, pois, ser corpórea, logo visível e tangível. Para a tornar mais semelhante ao modelo, que é eterno, o demiurgo criou o tempo, "uma imagem móvel da 208 eternidade": por ele o devir e o movimento da natureza seguem um ritmo ordenado e constante, ritmo que se mostra com evidência nos movimentos periódicos do céu. O demiurgo é, pois, a causa de tudo o que no mundo é ordem, razão e beleza; mas o mundo tem ainda uma outra causa que já não é inteligência, mas necessidade. Com efeito, a inteligência operou no mundo dominando a necessidade, persuadindo-a a conduzir para o bem a maior parte das coisas que se criavam. A necessidade (ananche) é representada como uma terceira natureza, algo assim como a mãe do mundo, do mesmo modo que a ordem racional do mundo inteligível é o pai do mundo. Este elemento primitivo é diferente de todos os elementos visíveis (água, ar, terra e fogo), precisamente porque deve ser o receptáculo e a origem comum deles. Trata-se de uma "espécie invisível e amorfa, capaz de tudo acolher, participe do inteligível e difícil de ser concebida". Evidentemente que este
receptáculo informe, esta matriz originária das coisas, é o princípio que limita a acção inteligente do demiurgo e impede que o mundo natural, que dele resulta, tenha a mesma ordem perfeita do mundo inteligível que é seu modelo. Além deste princípio há depois o espaço (chora), que não admite destruição e é a sede de tudo o que se gera; pelo que os princípios anteriores ao nascimento do inundo natural são três: o ser, o espaço e a mãe de toda a geração. Destes três princípios, por obra do demiurgo ou dos deuses a quem ele confiou a tarefa de continuar a criação, originaram-se todos os seres e todas as coisas naturais: por isso, à acção da inteligência, que é a causa primeira fundamental, se juntam as causas secundárias, nas quais agem, com uma lei de necessidade. os outros 209 princípios da geração, o receptáculo informe e o espaçoComo se vê, não há qualquer apoio, nesta cosmologia platónica, para a identificação da divindade com o bem sobre que se centra a interpretação neoplatónica (quer dizer religiosa) do platonismo. Recordar-se-á 52) que para Platão o bem é causa das ideias (ou substâncias), no das coisas naturais. A divindade, por seu turno, é o artífice das coisas naturais, não já do bem e das ideias. O bem e as ideias entram na criação do mundo natural como critérios directivos ou limites da acção da divindade, juntos às outras condições ou limites que são a necessidade e o espaço. O bem e as ideias constituem, portanto, as estruturas axiológicas que o demiurgo realizou no mundo natural; mas tais estruturas são, segundo Platão, tão independentes da divindade como o são, segundo Aristóteles, as estruturas substanciais ou ontológicas de que o mundo é constituído. Há que sublinhar, por conseguinte, o carácter politeísta do conceito de divindade que Platão nos apresenta no Timeu: a divindade é participada por vários deuses, cada um dos quais tem uma função e domínio próprios, sendo o demiurgo tão só o seu chefe hierárquico. Platão apresenta-nos a cosmologia do Timeu como a continuação e o complemento da República. Ele diz que após ter delineado o estado ideal se tem a mesma impressão que se experimenta ao ver animais belos, mas imóveis: sente "o desejo de vê-los mover-se". Por isso quer dar movimento ao estado que delineou; quer ver como se comportaria ele nas lutas e circunstâncias que deve afrontar. Por isso começa no Timeu a descrever a génese do mundo natural que é teatro da sua história. Em um diálogo posterior, o Crítias, deveria delinear a história hipotética do seu estado ideal; o diálogo interrompe-se bruscamente após os primeiros capí210 tulos, mas nestes já se entrevê como seria a concepção platónica da história. Trata-se de uma concepção que vê na história uma sucessão de idades, em que a seguinte é menos perfeita que a precedente. Hesíodo falara de cinco idades: a do ouro, a da prata, a do bronze, a dos heróis e a dos homens (Trab., 109-79), Platão redu-las a três: 1) a idade dos deuses, que colonizaram a terra criando os homens como os pastores criam hoje os rebanhos; 2) a idade dos heróis, que nasceram na Ática, a região da terra colonizada por Efesto e Atena: 3) a idade dos homens que, por largo tempo dominados pelo aguilhão das necessidades, quase esqueceram a tradição heróica (Crítias, 109 b segs.). Reproduzida por outros escritores da antiguidade, esta divisão foi depois retomada no século XVIII por Vico, que no entanto lhe alterou o significado, considerando como final e perfeita a idade dos homens e dando, por conseguinte, um significado progressivo à sucessão das idades. § 60. O PROBLEMA POLITICO COMO PROBLEMA DAS LEIS
A última actividade de Platão é ainda dedicada ao problema político. No Político, Platão indaga qual deve ser a arte própria do governante dos povos. E a conclusão é que esta arte deve ser a da medida: efectivamente, em tudo é preciso evitar o excesso ou o defeito e encontrar o justo meio. Toda a ciência do homem político consistirá essencialmente em procurar o justo meio, aquilo que é em qualquer caso oportuno ou obrigatório nas acções humanas. A acção política deve "combinar intimamente", no interesse do estado, as duas índoles opostas dos homens corajosos e dos homens prudentes, de modo a que, no estado, se temperem na medida exacta 211 a rapidez de acção e a cordura de juízo. O melhor seria que o homem político não fizesse leis, visto que a lei, sendo geral, não pode prescrever com precisão o que é bom para cada qual. Todavia, as leis são necessárias pela impossibilidade de dar prescrições precisas a cada indivíduo; e elas limitam-se, por isso, a indicar o que genérica e grosseiramente é o melhor para todos. No entanto, uma vez que se estabeleçam da maneira melhor, devem ser conservadas e respeitadas, e a sua ruína implica a ruína do estado. Das três formas de governo historicamente existentes, monarquia, aristocracia e democracia, cada uma distingue-se da correspondente forma degenerada precisamente pela observância das leis. Assim é que o governo de um só é monarquia se é regido pelas leis; é tirania se é governo sem leis. O governo de poucos é aristocrata quando é governado pelas leis, oligarquia quando é governo sem leis. E a democracia pode ser regida por leis ou governada contra as leis. O melhor governo, prescindindo do governo perfeito delineado na República, é o monárquico, e o pior é o tirânico. De entre os governos desordenados (isto é, privados de leis) o melhor é a democracia. Desta maneira o problema político, que na República fora considerado o problema de uma comunidade humana perfeita, por conseguinte no seu aspecto moral, adquire um carácter mais determinado e específico na ú ltima fase da especulação platónica; ei-lo tomado o problema das leis que devem governar os homens e encaminhá-los gradualmente a tornarem-se cidadãos da comunidade ideal. Ao problema das leis é efectivamente dedicada a última obra platónica, que é também a mais extensa de todas, o diálogo em 12 livros intitulado As Leis, publicado por Filipe de Opunto após a morte do mestre. Platão é agora mais vivamente conhecedor da " fragilidade da natureza humana" e considera 212 por isso indispensável haver, até num estado bem ordenado, leis e sanções penais (854 a). Mas a lei deve conservar a sua função educativa; não deve somente comandar, mas também convencer e persuadir pela própria bondade e necessidade: toda a lei deve, portanto, ter um prelúdio educativo, semelhante ao que se antepõe à música e ao canto. Quanto à punição, uma vez que ninguém acolhe de boa vontade na sua alma a injustiça, que é o pior de todos os males, não deve ela ser uma vingança, mas tão só corrigir o culpado, ajudando-o a libertar-se da injustiça e a amar a justiça. Resulta daqui que o fim das leis é o de promover nos cidadãos a virtude, a qual, como já Sócrates ensinava, se identifica com a felicidade. E não devem promover uma só virtude, como, por exemplo, a coragem guerreira, mas todas, porque todas são necessárias à vida do estado; e por isso devem tender à educação dos cidadãos, entendendo por educação "o encaminhamento do homem, desde os seus tenros anos, para a virtude, tornando-o amante e desejoso de se tornar um cidadão perfeito que sabe comandar e obedecer segundo a justiça" (643 e). Mas esta educação tem como seu fundamento a religião, uma religião que deve prescindir da indiferença e da superstição.
Contra os que explicam o universo pela acção de forças puramente físicas, Platão afirma a necessidade de admitir um princípio divino do mundo. Na verdade, se toda a coisa produz transformação em outra, necessário é, remontando de coisa em coisa, que se alcance uma coisa que se move por si. Uma coisa que é movida por outra não pode ser a primeira a mover-se. O primeiro movimento é, pois, aquele que move a -si mesmo, e é o da alma. Há, pois, uma alma, uma inteligência suprema que move e ordena todas as coisas do mundo (896 e). Mas não basta admitir um princípio divino do 213 mundo, é preciso vencer ainda a indiferença dos que pensam que a divindade não se ocupa das coisas humanas, que seriam insignificantes para ela. Ora esta crença equivale a admitir que a divindade é preguiçosa e indolente e a considerá-la inferior ao mais comum dos mortais, que quer sempre tornar perfeita a sua obra, quer esta seja grande ou pequena. Mas, enfim, a pior aberração é a superstição dos que crêem que a divindade possa ser propiciada com dons e ofertas: esses põem a divindade a par dos cães que, amansados com presentes, deixam depredar os rebanhos, e abaixo dos homens comuns, que não atraiçoam a justiça aceitando presentes oferecidos com intenção delituosa. Como se vê, a última especulação platónica tende a delinear uma forma de religião filosófica, que Platão liga explicitamente às crenças religiosas tradicionais. Não há aqui, por conseguinte, qualquer sinal de monoteísmo: na crença da divindade está a crença nos deuses: a divindade é participada igualmente por um número indefinido de entes divinos, dos quais os mais elevados têm nos astros os seus corpos visíveis (Leis, 899 a-b). O caminho que Platão percorreu desde os primeiros Diálogos, que se detinham a ilustrar atitudes e conceitos socráticos, até à tardia especulação das Leis, foi bem longo. No curso deles foram-se acumulando as desilusões que o homem encontrou nas tentativas de realização do seu ideal político, os problemas que nasceram uns dos outros numa pesquisa que jamais quis reconhecer jornadas ou pausas definitivas. Quem confrontar a ú ltima desembocadura desta pesquisa (o cálculo matemático da virtude e o código legislativo) com o seu ponto de partida, pode facilmente descobrir um abismo entre os dois pontos extremos dela. Mas quem considerar que até a estes últimos desenvolvimentos Platão foi conduzido pela exigência de formular como 214 ciência rigorosa (e a matemática é o tipo acabado do rigor científico) a aspiração a uma vida propriamente humana, quer dizer, a um tempo virtuosa e feliz, não pode deixar de reconhecer que Platão se manteve fiel ao espírito da ensinança de Sócrates e nada mais fez, em toda a sua vida, que realizar-lhe o significado. § 61. O FILOSOFAR Fazendo o balanço da sua vida, na Carta VII, Platão volta uma vez mais ao problema que para ,si, como para Sócrates, englobava todos os problemas: o do filosofar. Não se trata do problema da natureza e dos caracteres de uma ciência objectiva, mas do problema que a própria ciência é para o homem. Platão examina-o a propósito da sua tentativa, tão tristemente sucedida, da educação filosófica, as suas dificuldades e o esforço que ela exige. O resultado foi que, ao fim de uma única lição, Dioniso julgou saber dela o bastante e preferiu compor um escrito em que expunha como obra sua aquilo que tinha ouvido a Platão. Outros haviam feito já, com menor impudência, tentativas semelhantes; mas Platão não hesita em condená-los em bloco. "O mesmo posso dizer de todos os que escreveram ou vierem a escrever na pretensão de expor o significado da minha pesquisa, quer a tenham ouvido a mim ou a outros, ou eles próprios o tenham descoberto: pelo menos, em meu
entender, nada compreenderam do assunto como ele verdadeiramente é. De minha autoria não há nem jamais haverá um escrito resumido sobre estes problemas. Dado que eles não podem ser resumidos a fórmulas, como os outros; pois que só depois de nos havermos familiarizado com estes problemas durante muito tempo, e depois de se ter vivido e discutido em comum, 215 o seu verdadeiro significado se acende inesperadamente na alma, como a luz nasce de uma fagulha e cresce depois por si só" (Carta VII, 341 b-d). Platão regressa assim, no fim da vida, ao problema de Sócrates: o problema de encontrar para o homem a via de acesso à ciência e, através da ciência, ao ser em si. A exposição que se segue é a recapitulação do que Platão já disse nos diálogos e especialmente na República. Mas esta recapitulação põe em evidência os motivos fundamentais da pesquisa platónica e demonstra que a inclusão dela se resolve no seu princípio, e como a sua integral totalidade se resolve na ensinança socrática. Por três meios se pode alcançar a ciência: a palavra, a definição e a imagem. Em quarto lugar está o saber, que fica para além dos meios que servem para o conquistar. Para além do próprio saber, em quinto lugar, está o objecto cognoscível, o ser que é verdadeiramente ser (Carta VII, 342 b). Platão esclarece tudo isto por meio do exemplo do círculo. Círculo é, em primeiro lugar, a palavra pronunciada por nós. Em segundo lugar, damos a definição de círculo, definição que é formada por outras palavras, como por exemplo: círculo é o que tem as partes extremas equidistantes do centro. Em terceiro lugar, traçamos a figura do círculo, que é a imagem dele. Mas estes três elementos, por muito que se refiram todos ao círculo em si, não têm nada que ver com ele. Conduzem, no entanto, ao quarto elemento, o qual compreende todas as actividades subjectivas do conhecer: a opinião verdadeira, a ciência e a inteligência. Estes elementos não residem nos sons pronunciados nem nas figuras corpóreas, mas nas almas. Naturalmente que também as actividades subjectivas do conhecer se não identificam com o ser, que é o objecto do próprio conhecer; mas estão sem dúvida mais próximas do ser, e entre elas a inteli216 gência é a mais próxima de todas. O ser em si é o termo último a que os meios e as condições do conhecer tendem a referir-se: ele é indicado pelo primeiro, definido pelo segundo, figurado pelo terceiro, pensado ou compreendido pelo quarto. Porém, dada a insuficiência e a instabilidade de tais elementos, a relação que eles estabelecem com o ser é ainda problemática. Com efeito, o nome é convencional e variável; a definição, que é feita de nomes, não tem maior estabilidade; a imagem (o círculo desenhado, por exemplo, aproxima-se sempre da linha recta quando deveria excluí-la). O próprio saber, condicionado como é por estes elementos, não tem qualquer garantia de certeza. Não resta, portanto, outro remédio senão controlar continuamente estes elementos uns pelos outros percorrendo e repercorrendo a sua cadeia de uns para os outros, e fazendo valer o resultado do seu trabalho de conjunto (Carta VII, 343 e). Mas isto é precisamente o dialogar da alma consigo mesma e com as outras almas, a pesquisa que, desde a palavra, a definição e a imagem se eleva à ciência, para voltar depois a conferir à palavra um novo significado, a corrigir a definição, a julgar o valor da imagem. É a pesquisa colectiva cujo processo os diálogos representaram ao vivo. "Só depois de se haverem arranhado penosamente uns aos outros, nomes e definições, percepções visuais e sensações, só depois de tudo se haver discutido em discussões benévolas, em que a má vontade não dita a pergunta nem a resposta, a sageza e a inteligência salpicam todas as coisas, tão intensamente quanto a força humana o permite" (Carta VII, 344 b). Salpicam todas as coisas a sageza (frónesis) e a inteligência (nous): o mais alto valor da conduta moral e a mais alta validade do conhecimento estão intimamente ligados. E, com efeito,
condicionam-se mutuamente: sem a inteligência o homem não pode alçar-se à virtude que se revela na acção, 217 como sem esta virtude o homem não pode alçar-se à inteligência. Este condicionalismo recíproco da sageza e da inteligência é expresso por Platão por meio de dois conceitos: o parentesco do homem que pesquisa com o ser que é objecto da pesquisa; e a comunidade da livre educação. Em primeiro lugar, o homem não alcança aquela relação com o ser em que consiste o grau mais elevado da ciência, a inteligência, senão em virtude de um seu íntimo e profundo parentesco com o ser. "Nem a facilidade em aprender, nem a memória poderão jamais produzir o parentesco com o objecto, visto que tal parentesco não pode encontrar raízes em disposições heterogéneas. As que são disformes e estranhas ao justo e ao belo, ainda que dotadas de facilidade em aprender e de boa memória, e as que propendem por natureza para o justo e para o belo, mas são avessas a aprender e fracas de memória, nunca poderão alcançar, no que respeita à virtude e à perversidade, toda a verdade que é possível aprender" (344 a). A relação originária com o ser no seu mais alto valor (a justiça e o bem) condiciona e estimula a eficácia e o sucesso da pesquisa. Mas, por outro lado, a pesquisa não pode realizar-se no mundo fechado da individualidade. Ela é produto de homens que "vivem, juntos" e "discutem com benevolência" e sem deixarem que a má vontade influencie as perguntas e as respostas. Quer isto dizer que ela supõe a solidariedade do indivíduo com os outros, o abandono da pretensão de nos julgarmos na posse da verdade e não queremos aprender nada dos outros, a sinceridade consigo mesmo e com os outros e o esforço solidário. O filosofar não é uma actividade que encerre o indivíduo em si mesmo, é antes a vida que abre aos outros e com os outros o harmoniza, Por isso, não é ele somente inteligência, mas também frónesis, sageza de vida. Nem esta solidariedade humana da pesquisa 218 é fruto de uma afinidade de almas e de corpos, é antes o produto da comunidade da livre educação (344 h), na qual a malevolência e a má vontade se reduziram ao mínimo, porque aqueles que dela participam se uniram na comum aspiração ao ser. O ser, o objecto último da pesquisa, fazendo convergir em si como a um único centro os esforços individuais, promove a solidariedade dos indivíduos. O conceito platónico do filosofar é assim o mais alto e o mais amplo que alguma vez foi afirmado na história da filosofia. Nenhuma actividade humana cai fora dele. Platão quer que a pesquisa se estenda "às figuras rectas ou circulares e às cores, ao bem, ao belo e ao justo, a todo o corpo artificial ou natural, ao fogo, à água e a todas as coisas do mesmo género, a toda a espécie de seres vivos, à conduta da alma, às acções e às paixões de toda a sorte" (342 b). E de tudo será preciso conhecer o verdadeiro e o falso porque só pelo seu confronto se pode reconhecer a verdade do ser (344 b). A pesquisa em que o filosofar se realiza não consiste na formulação de uma doutrina: qualquer tarefa humana oferece ao homem a possibilidade de alcançar a verdade e de entrar em relação com o ser. NOTA BIBLIOGRáFICA § 42. Dos numerosíssimos escritos biográficos antigos sobre Platão, de que chegou notícia até nós, temos hoje os seguintes: FILODEMO, Indice dos filósofos acadêmicos, encontrado nos papiros de Herculano; AIPULEIO, Sobre Platdo e a mffl doutrina; DIOGENES LAÊRCIO, Vida, que ocupa os primeiros 45 capítulos do III livro da obra, livro inteiramente dedicado a Platão; PORFIRIO, um fragmento da sua História; OLIMPIODORO, Vida de Platão; urna Vida de Platão anónima encontrada num códice vienense; um artigo do Léxico de SUIDAS; uma Vida em árabe encontrada num
manuscrito espanhol. Encontram-se outras informações na 219 Vida de Dido de PLUTARCO e nos escritos de CICERO, HELIANo e ATENEU. Fundamentais para a biografia são também as Cartas de Platão, especialmente a Carta VII. A. MADDALENA, no Exame analítico apenso à sua tradução Italiana das Cartas (Bari, 1948) voltou a propor a tese da inautenticidade, reforçando os argumentos já antes formulados pela critica alemã de 800 e sobretudo insistindo na diversidade e incongruência da atitude de Platão, como resulta das Cartas, em relação à atitude que o próprio Platão atribuiu a Sócrates na Apologia e nos Diálogos. Porém, estes argumentos não têm na devida conta o facto de que precisamente a prudência de qualquer preocupa" ção ldealizante faz das Cartas um documento autênticamente humano que tem todos os requisitos da veracidade; e que tal ausência elimina mesmo a possibilidade de encontrar os motivos da pretensa falsificação. Já que esta, quando se trata de obras de filosofia, t,m sempre o objectivo de exaltar o fundador de uma escola, como provam as numerosas falsificações da época alexandrina, e de lhe atribuir, anacrónicamente, as doutrinas da própria escola para lhes conferir aquela venerabilidade tradicional que a época alexandrina apreciava como sinal do carácter religioso e divino das suas crenças. Nada de semelhante nas Cartas, que nos mostram Platão nas suas incertezas, nas suas ilusões e nos seus erros; mas também sempre firme e constante nos interesses fundamentais que dominam toda a sua obra de filósofo, e que nas Cartas ganham colorido e vivacidade biográfica. Entre as reconstruções modernas da vida de Platão, ver ZELLER, 11, 1, p. 389 segs.; GomPERZ, II, p. 259 segs.; TAYLOR, Plato, cap. 1; ROBIN, Plat", p. 1 segs.; STEFANINI, Platane, vol. I; WILLAMOWITZ, Platon, Berlim, 1920; STENZEL, Platone educatore, Leipzig, 1928 (trad. ital., Bari 1936), cap. 1. § 43- A edição fundamental das obras de Platão é a de ENRICO STEFANO, 3 vols., Paris, 1578. A paginação desta edição é reproduzida em todas as edições modernas e adoptada para as citações. Entre as edições mais recentes, além de várias edições de Leipzig, é notável a de BURNET, Oxford, 1899-1906, que é a melhor edição crítica, e a publicada na "Colecção da Universidade de França" que traz à cabeça a tradução francesa. 220 Entre as traduções italianas de Platão as de MRAi, AcRi, BONGH1, MARTINI e numerosas traduções parciais. Para uma resenha das obras mais recentes sobre Platão (a partir de cerca de 1930) efr. os fascículos que lhe são dedicados pela "Philosophische Rundschau>, Tubingen, 1961-62. Nestes fascículos se remete para a bibliografia mais recente. Ofr. também P. M. SCHUHL, Études Platoniciennes, Paris, 1960, p. 23 segs.. § 44. Sobre a cronologia dos escritos platónicos: as obras supra-indicadas e, além dessas, as seguintes: RAEDER, Patons philosophische Entwick1ung, Uipzig, 1905; LUTOSLAWSKI, Origin and Growth of Plato's Logic, 1897; PARMENTMR, La chronologie des dialogues de Platon, Bruxelas, 1913; RITTER, Ncue Untersuchungen ueber Platon, M6naco, 1910; BROMMER, Eidos et ~. Étude s~ntique et chronologique des oeuvres de Platon, Assen, 1940. § 45. As duas anedotas referidas no fim do parágrafo foram conservadas por DIÔGENEs LAÉRcio, a primeira, e a segunda por ARisTôTELES no diálogo Merinto (fr. 69, Rose). § 46. Entre oe que pensam que na fase do seu pensamento que se inicia com o Parménides
Platão formula críticas à sua própria doutrina está GOM- =, II, p. 573. Segundo BURNET, Platonism, Berkeley, 1928, p. 58, Sõcrates é pouco mais que um "fantasma" nos diálogos anteriores às Leis. § 47. ZELLER deu-nos numa reconstrução sistemático-escolástica do pensamento de Platão prescindindo da ordem e do desenvolvimento dos diálogos. O resultado por ele obtido é encorajante para qualquer tentativa do mesmo gênero. As melhores exposições da doutrina platónica são as que lhe sugerem o desenvolvimento diálogo por diálogo. Remeto por Isso sobretudo para estes últimos: GompERz II, p. 306 segs.; UEBERWEG-PRAECHTER, p. 222 segs. e as monografias de TAYLOR e STEFANINI (já citadas) e de RITTER. A referência a estas obras está subentendido nos parágrafos seguintes, em que me limito a assinalar algum estudo mais Importante sobre cada diálogo Isolado. No exame do processo dialéctico se funda V. GoLDSCHMIDT, Les dialogues de Platon, Paris, 1947. Cfr. também JAMER, Paideia, II e HI, New-York, 1943. 221 § 48. O Protágoras é habitualmente situado no primeiro grupo de diálogos socráticos juntamente com a Apologia, Críton, Laches, etc., TAYLOR observou justamente que a perfeiçáo artística do diálogo prova o erro desta colocação, e por Isso situa-o com Pédon, o Banqu-ete e a República no período em que Platão atinge a sua máxima excelência como escritor (Plato, p. 20). Na realidade o seu conteúdo demonstra que é anterior a estes diálogos, embora pertença certamente a um segundo período da actividade de Platão. A preocupação polémica anti-sofistica que o domina coloca-o, com Górgi
§ 56. Sobre o Sofista: RiTTER, Platon, II, p. 120 .sega., 185 segs., 642 segs.-, NATORP, op. cit., p. 271 segs., 331 segs.; DIÊS, La définition de I'Être et Ja Nature des Idêes dans le Sophiste de Platon, Paris, 1909; STENZEL, ZahI und Gestalt bei Platon und Aristoteles, Leipzig, 1924, p. 10 segs., 126 se-S.; REIDEMEISTER, Mathematik und Logik bei PZaton, Leipzig, 1942. § 57. Sobre a Dialéctica: STENZEL, StUdien ZUr Entu,ick1ung der Plat. Dialektik, Leipzig, 1931. Nesta última obra é demoradamente discutido o conceito da dialéctica platónica como método da divisão, e este método vem reconhecido como a conquista última da filosofia platónica. § 58. Sobre o Filebo: RiTTER, Platon, II, p. 165 segs., 497 segs, NATORP, p. 296 segs.; ROBIN, Platon, cap. 4: e a minha Introdução à tradução de ~ITINI, Turim, 1942. A anedota de Aristóxeno encontra-se em Harmonia, ed. Marquard, p. 44, 5; R. S. BRuMBAUGH, P.'3 Mathematical Imagination, Bloomington, 1954. § 59- Sobre o Timeu: RiTTER, Platon, II, p. 258 segs.; TAYLOR, A Commentary on PZatoIs Timacus, Oxford, 1928; NATORP, p. 338 segs.; ROBIN, Mudes sur Ia signification et Ia place de Ia physique dans Ia philosophie de Platon, Paris, 1919; ID., Platon, cap. 5; LEVI, Il concetto del tempo nella filosofia di Platone, Turim, s. d: CORNFORD, Platols Cosmology, Londres, 1937; PERLS, Platon. Sa conception du Kosmos, New York, 1945. § 60. Sobre o Político: RITTER, Platon, II, p. 242 segs.. Sobre as Leis: RITTER, op. cit., II, p. 657 segs.; NATORP, p. 358 segs.; ver das Leis, a tradução ltal. de CASSARÁ, 2 vol., Bari, 1931. § 61. Sobre as digressões filosóficas da Carta VII, sobretudo no seu significado educativo: STENZEL, Platone Eduratore, cap. 6. 223 x A ANTIGA ACADEMIA § 62. ESPEUSIPO A escola de Platão tirou o seu nome do "ginásio suburbano muito arborizado dedicado ao herói Academo" (Dióg. L., IV, 7). Segundo a tradição, foi fundada após a primeira viagem de Platão à Sicília com o dinheiro que fora recolhido para o resgate do mesmo Platão (387 a.C., mais ou menos). Poucas notícias temos sobre a organização da própria escola, mas é bastante duvidoso que ela tivesse cursos ou ensinos regulares. Durante a vida de Platão, a história da Academia coincide provavelmente com o próprio desenvolvimento do pensamento platónico, isto é, com a gradual evolução dos seus interesses e dos seus temas especulativos, que foi delineada no capítulo precedente. Mas a vida da Academia continuou, após a morte de Platão, por muitos séculos. O próprio Platão confiara a direcção da Academia ao seu sobrinho Espeusipo, que a conservou durante oito anos (347-339). Espeusipo afastou-se da oposição 225
platónica entre conhecImento sensível e conhecimento racional, admitindo uma "sensação científica" como fundamento do conhecimento dos objectos. Em lugar das ideias platónicas ele admitia, como modelos das coisas, os números matemáticos, que distinguia dos sensíveis. Parece que formulou contra a doutrina das ideias muitas objecções que foram depois expostas por Aristóteles. Negava-se a reconhecer o bem como princípio do processo cósmico, argumentando que os seres individuais, animais e vegetais manifestam na sua existência uma tendência para passarem do imperfeito ao perfeito e que, por conseguinte, o bem está no termo e não no início do devir. Identificou a razão com a divindade e, na sequência do Timeu e das Leis, concebeu a divindade como sendo a alma governadora do mundo. No seu escrito Semelhanças, em dez livros, de que nos restam alguns fragmentos, Espeusipo estudava o reino animal e vegetal, procurando sobretudo classificar-lhes as espécies. A mesma tendência classificatória revela o título de uma outra obra por ora perdida: Acerca dos tipos dos géneros e das espécies. § 63. XENÓCRATES Por morte de Espeusipo os membros da Academia elegeram por leve maioria Xenócrates para a dirigir, ocupando este o seu lugar de director por um período de 25 anos (339-314). De modesta capacidade especulativa, muito estimado pelo seu patriotismo e pelo carácter independente (recusou uma soma considerável oferecida pelo rei Alexandre à Academia, tendo aceitado somente uma pequena parte dela), Xenócrates teve uma certa influência sobre o desenvolvimento da escola. Distinguia entre o saber, a opinião e a sensação: o 226 saber é plenamente verdadeiro, a opinião tem uma verdade inferior e a sensação tem misturadas a um tempo verdade e falsidade. Estas três espécies de conhecimento correspondem a três espécies de objectos: o saber corresponde à substância inteligível, a opinião à substância sensível, a sensação a uma substância mista. A mesma preferência pelo número três mostra a sua divisão da filosofia em dialéctica, física e ética. Com Xenócrates, acentua-se a tendência para o pitagorismo que já caracterizava a derradeira especulação de Platão e a de Espeusipo. Mas Xenócrates interpretou em sentido antropomórfico a teoria dos números como princípios das coisas, dizendo que a unidade é a divindade primordial masculina, a dualidade a divindade primordial feminina. Deificou, portanto, os elementos e imaginou uma imensidade de demónios como intermediários entre a divindade e os homens. É notável a sua definição da alma como "um número que se move por si"; nessa definição, evidentemente, ele entendia por número a ordem ou a proporção que já Platão indicara com a mesma palavra. Segundo parece, deve atribuir-se a Xenócrates a doutrina das ideias-números, referida por Aristóteles como característica dos "platónicos". Segundo essa doutrina, o número constituía a essência do mundo. Distinguiam-se os números ideais daqueles com que se calcula, os números ideais, considerados como os elementos primordiais das coisas, eram dez. Destes, a unidade e a dualidade eram os princípios respectivamente da divisibilidade e da indivisibilidade, da união de que brotava o número propriamente dito. Ao paralelismo pitagórico entre conceitos aritméticos e conceitos geométricos, acrescentava-se um paralelismo semelhante no domínio do conhecimento; a razão era identificada com a unidade-ponto, o conhecimento com a dualidade-linha, a opinião com a tríada-superfície, a percep227 ção sensível com a tétrada-corpo. Não é fácil qual possa ser o significado destas e de
idênticas analogias que Aristóteles expõe e discute em vários passos da Metafísica. Na ética, Xenócrates seguia Platão: colocou a felicidade na "posse da virtude e dos meios para a conseguir. Conta-se a seu respeito um dito de espírito cristão: "o simples desejo equivale já à prática da má acção". § 64. POLÉMON. CRANTOR O sucessor de Xenócrates na direcção da Academia foi Polémon de Atenas (314-270). Depois de uma juventude desordenada, foi radicalmente transformado pelas suas relações com Xenócrates e procurou pôr o seu ideal de vida na calma e na imutabilidade dohumor. A sua ensinança, predominantemente moral, consistia em afirmar a exigência de uma vida conforme à natureza, exigência que o aproximava dos Cínicos. Um seu discípulo, Crantor, conhecido sobretudo como intérprete do Timeu, iniciou a série dos comentadores de Platão. Crantor fundou ainda um género literário que mais tarde haveria de ter fortuna, o das "consolações", com o seu livro Sobre a dor. Um fragmento desta obra trata do papel que a dor física se destina a cumprir como defensora da saúde e a dor moral como libertadora da animalidade. De acordo com um testemunho devido a Sexto Empírico, Cantor imaginava que os Gregos, reunidos numa festa, veriam desfilar ante si os diversos bens que aspiravam ao primeiro prémio e o disputavam; e este cabia à virtude, atrás da qual surgiam a saúde e a riqueza. Cratetes foi quem sucedeu a Polémon, de quem era amicíssimo, na direcção da Academia (270228 -268164). Sucedeu-lhe Arcesilau; mas com este a Academia muda de orientação e termina, por isso, a história da antiga Academia. § 65. HERACLIDES PòNTICO Ao grupo dos discípulos imediatos de Platão pertenceu Heraclides Pôntico que, segundo uma tradição, substituiu Platão na direcção da escola durante a sua última viagem à Sicília. Depois da morte de Espeusipo e da eleição de Xenócrates para a direcção da escola, à qual ele próprio aspirara, fundou por alturas de 399 a.C. uma escola na sua pátria, Heracleia, no Ponto. Não deixava de ser um pouco charlatão e diz-se que corrompeu a Pítia, contra a qual os seus concidadãos se tinham revoltado pelo mau andamento das colheitas, com o desígnio de que a sua cidade lhe conferisse honras divinas. Mas, enquanto os mensageiros anunciavam no teatro o oráculo da Pítia, segundo o qual a cidade devia oferecer uma coroa de ouro a Heraclides se queria melhorar as suas condições, Heraclides morreu de emoção; no que se viu uma sentença divina. Os diálogos de Heraclides estavam cheios de mitos e de fantasias maravilhosas. Num deles fazia descer à terra um homem da lua. Um outro, intitulado Sobre o Hades, narrava uma viagem ao inferno. Heraclides seguiu, modificando-a, a doutrina de Demócrito. No lugar dos átomos pôs os "corpúsculos não coligados", isto é, corpos simples com os quais a inteligência divina teria construído o mundo. Na astronomia admitiu o movimento diurno da terra e opinou que Mercúrio e Vénus giram à volta do Sol. Concebeu a alma como sendo for229
mada de matéria subtilíssima, o éter. E num escrito: Sobre os simulacros contra Demócrito, combateu, como se depreende do título, a doutrina democritiana do conhecimento como procedendo dos fluxos dos átomos. § 66. EUDOXO. O "EPINóMIDES" Pertenceu ainda à escola platónica o famoso astrónomo Eudoxo de Cnidos. Segundo Aristóteles (Met., 1. 991 a, 14), considerou as ideias como estando mescladas com as coisas de que são a causa, "do mesmo modo que a cor branca numa mescla é causa da brancura de um objecto". Parece, desta maneira, que as aproximava das homeomerias de Anaxágoras, que estão todas misturadas umas com as outras. No campo da ética Eudoxo considerava o prazer como o bem-doutrina que se discutiu no Filebo de Platão. A Filipo de Opunto, o discípulo de Platão que transcreveu e publicou as Leis, a última obra do mestre, costuma atribuir-se desde a antiguidade o diálogo pseudo-platónico Epinémides. O escopo deste diálogo é determinar quais os estudos que conduzem à sabedoria. Excluídas as artes e as ciências, que contribuem apenas para o bem-estar material e o divertimento (como a arte da guerra, da medicina, da navegação, da música, etc.), fica a ciência do número, que traz consigo todos os bens. Sem o conhecimento do número, o homem seria imoral e privado de razão, porque onde não há número não há ordem, mas somente confusão e desordem. Ora a ordem mais rigorosa é a dos corpos celestes; e o movimento perfeito desses corpos só pode explicar-se admitindo que eles são vivos e que a divindade lhes deu uma alma. Eles próprios são deuses ou imagens de deuses e como tal devem ser adorados. Até o ar e o éter devem ser divindades, com 230 corpos transparentes e por isso invisíveis; podemos supor que constituem uma hierarquia de demónios intermediários entre os deuses e os homens. O estudo da astronomia é o mais importante de todos para conduzir à piedade religiosa, que é a maior de entre as virtudes. Acompanham-no os estudos auxiliares da aritmética e da geometria plana e do espaço. Somente através destes estudos o homem pode alcançar a sabedoria, por isso, tais estudos devem constituir a preocupação dos governantes. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 60. Sobre a vida, doutrina e escritos dos antigos académicos: DIóGENEs LA£Rcio, IV, cap. VI1] pág. 88 ss. Outras fontes em ULLFR, II, pãg. 982 w. Os testemunhos em DIELS, Doxogr. Grae., e os fragmentos em MULLACH, Fragmenta Phil. Graecor., III, p. 51 ss. Sobre Espeusipo: GoMPERZ, M, pãg. 3 ss. § 61. A polémica da Metafísica de Aristóteles contra as ideias-números (especialmente XIII, cap. 3.* ss e XIV, cap. 3.* ss) parece que vai precisamente contra Xenócrates; GompERz, III, pág. 7 ss. § 62. Sobre Polétnon, e Crantor: GoMPERZ, III, pág. 14 ss. § 65. Sobre Heraclides Pôntico: GOMPERz, III, Pág. 16 SS.; JAEGER, Aristóteles. § 64. Sobre Eudoxo: JAEGER, Op. Cit. Sobre Epinómides e Filipo de Opunto: JAMER, Op. cit. Epinómide,9 considerado diálogo autêntico de Piatão por TAYLOR, Plato, pág. 497 ss. 231 XI
ARISTÓTELES § 67. A VIDA Quando Aristóteles (que nasce em Estagira em 384-83 a. C.) entrou na escola de Platão, contava apenas 17 anos. Nesta escola permaneceu 20 anos, ou seja, até à morte do mestre (348-47). Esta longa permanência, tanto mais notável tratando-se de um homem que possuía excepcionais capacidade especulativa e independência de pensamento, torna impossível dar crédito às anedotas que nos chegaram sobre a ingratidão de Aristóteles relativamente ao mestre. Segundo Diógenes Laércio (V, 2). Platão teria dito: "Aristóteles calcou-me com as patas como os potros calcam a mãe quando os dá à luz." Na realidade, porém, a existência, hoje demonstrada, de um período platónico na especulaÇão aristotélica, a elegia no altar de Platão (§ 71) e o próprio tom que Aristóteles emprega quando O critica, demonstram que a atitude de Aristóteles Para com o mestre foi a da felicidade e do respeito, ainda que dentro da mais resoluta independência de crítica filosófica. 233 Apresentando-se na Ética a Nicómaco (1, 4, 1096 a, 11-16) para criticar a doutrina platónica das ideias, Aristóteles declara quão penosa é para ele a tarefa, dada a amizade que o liga aos homens que a defendem; e acrescenta: "Mas talvez seja melhor, será mesmo um dever, para salvar a verdade, sacrificar os nossos assuntos pessoais, principalmente quando se é filósofo: a amizade e a verdade são ambas estimáveis, mas é coisa santa amar mais a verdade." À morte de Platão, Aristóteles deixou a Academia e não voltou mais à escola que o criara. Para suceder a Platão fora designado, pelo próprio Platão ou pelos condiscípulos Espeusipo; e esta escolha devia imprimir à Academia uma orientação que Aristóteles não podia aprovar. O espírito de Platão abandonava a escola e Aristóteles já não tinha razões para se lhe manter fiel. Acompanhado por Xenócrates transferiu-se então para Asso na Tróade, onde os dois discípulos de Platão, Erasto e Corisco, haviam constituído com Hermias uma comunidade filosófico-política (§ 42), de que temos notícias pela Carta VI de Platão e por outros testemunhos (Didimo, In Demost., col. 5). Aqui provàvelmente exerceu Aristóteles o seu primeiro ensino autónomo. O filho de Corisco, Neleo, converteu-se num dos mais fervorosos sequazes do filósofo; e foi precisamente na casa dos descendentes de Neleo que se encontraram, segundo conta Estrabão (XIII, 54), os manuscritos das obras acromáticas de Aristóteles. Depois de três anos de permanência em Asso, Aristóteles transferiu-se para Mitilene. Segundo Estrabão, Aristóteles teria fugido de Asso depois da morte de Hermias, juntamente com a filha do tirano, Pitia, que depois se torna sua esposa. Mas parece que Aristóteles abandonou Asso antes da morte de Herinias e que o seu matrimónio remonta 234 ao período da permanência em Asso. Seja como for, ao saber-se a notícia do assassinato de Hermias por acção dos persas, Aristóteles compõe uma elegia que exalta a virtude heróica do amigo perdido. Neste primeiro período da sua actividade didáctica em Asso e em Mitilene, deve ter ocorrido o afastamento de Aristóteles da doutrina do mestre. Deve ter composto então o diálogo Sobre a Filosofia, no qual aparece (como sabemos por alguns fragmentos) a crítica das ideias-números.
No ano de 342 Aristóteles foi chamado por Filipe, rei da Macedónia, a Pella, para se encarregar da educação de Alexandre. O pai de Aristóteles, Nicómaco, fora médico na arte da Macedónia uns quarenta anos antes; mas talvez a escolha de Filipe fosse determinada pela amizade de Aristóteles com Hermias que mantinha relações com Filipe. Na obra de conquista e de unificação de todo o mundo grego, para a qual a educação de Aristóteles preparou Alexandre, agiu seguramente a convicção por parte de Aristóteles da superioridade da cultura grega e da sua capacidade de dominar o mundo, se se unisse a ela uma forte unidade política. O afastamento entre o rei e Aristóteles só se produziu quando Alexandre, alargando os seus desígnios de conquista, pensou na unificação dos povos orientais e adoptou as formas orientais de soberania. Quando Alexandre subiu ao trono, Aristóteles regressou a Atenas (335-334). Regressou ali depois de 13 anos de ausência, célebre como mestre de vida espiritual e como filósofo; e a amizade do poderosíssimo rei devia colocar à sua disposição meios de investigação e de estudo excepcionais para aquele tempo. Fundou então a sua escola, o Liceu, que compreendia além dum edifício e do jardim, o passeio Ou Peripato de que tomou o nome. Tal como a Academia, o Liceu praticava a vida em comuni235 dade; mas aqui a ordem das lições estava firmemente estabelecida. Aristóteles dedicava as manhãs aos cursos mais difíceis de argumento filosófico, à tarde dava lições de retórica e de dialéctica a um público mais vasto. Ao lado do mestre, realizavam cursos os escolares mais antigos, como Teofrasto e Eudemo. Quando Alexandre morreu em 323, a insurreição do partido nacionalista contra os partidários do rei pôs em perigo Aristóteles. Para evitar que "os atenienses cometessem um segundo crime contra a filosofia", Aristóteles abandonou Atenas e fugiu para Caleis em Eubeia, pátria de sua mãe, onde possuía uma propriedade que dela herdara. Aqui se manteve durante os meses seguintes até ao dia da morte. Uma doença de estômago, de que padecia, pôs fim à sua vida com 63 anos, em 322-21. Temos o testamento que escreveu em Calcis: fala-se lá em Pitia, sua filha menor, numa mulher Herpilis que tomara em casa depois da morte da esposa e no filho Nicómaco que tivera de Herpilis. Estabelece que os seus restos mortais não sejam separados dos de Pitia, sua mulher, conforme ela também desejara. § 68. O PROBLEMA DOS ESCRITOS As obras que chegaram até nós compreendem somente os escritos que Aristóteles compôs para as necessidades do seu ensino. Além destes escritos que se chamaram acroamáticos por serem destinados a ouvintes, ou esotéricos, isto é que continham uma doutrina secreta, mas que na realidade são apenas os apontamentos de que se servia para o ensino, Aristóteles compôs outros escritos segundo a tradição platónica, em forma dialogada, a que ele mesmo chamou exotéricos, isto é destinados ao 236 público, nos quais empregava mitos e outros ornamentos vivazes e se mostrava tão eloquente quanto enxuto e severo se mostra nos escritos escolares. Mas destes escritos exotéricos não restam mais que poucos fragmentos de cujo valor para compreender a personalidade de Aristóteles a crítica só se deu conta recentemente. Os escritos acroamáticos só vêm a ser conhecidos quando foram publicados, nos tempos de Sila, por Andrónico de Rodes. Segundo o relato de Estrabão, estes escritos foram
encontrados na adega da casa que possuíam os descendentes de Neleo, o filho de Corisco. É um facto que, durante muito tempo, Aristóteles só foi conhecido através dos diálogos e que somente após a publicação dos escritos acroamáticos, é que os diálogos foram pouco a pouco relegados para o olvido pelos tratados escritos para a escola. Assim nasce o problema de saber em que relação se encontram os diálogos com os escritos escolásticos e até que ponto contribuem para a compreensão da personalidade de Aristóteles. Nos tratados escolásticos, o pensamento de Aristóteles aparece inteiramente sistemático e acabado: parece excluir-se, ao menos à primeira vista, que Aristóteles tivesse experimentado oscilações ou dúvidas, que haja sofrido crises ou mudanças. A consideração dos diálogos permite, pelo contrário, dar-se conta de que a doutrina de Aristóteles não nasceu Completa e lograda, que o seu pensamento sofreu crises e mudanças. Os fragmentos que possuímos de tais diálogos mostram-nos, com efeito, um Aristóteles que adere primeiramente ao pensamento platónico para depois se afastar dele e o modificar substancialmente; um Aristóteles que transforma a própria natureza dos seus interesses espirituais, os quais, orientados primeiramente para os problemas filosóficos, se vão depois concentrando em proble237 mas científicos particulares. Pelo estudo da formação do sistema aristotélico foi possível deitar um olhar sobre a formação e o desenvolvimento do homem Aristóteles. § 69. OS ESCRITOS EXOTÉRICOS Nos seus diálogos Aristóteles não só adoptou a forma literária do mestre mas também os temas e algumas vezes os títulos das suas obras. Escreveu com efeito um Banquete, um Político, um Sofista, um Menexeno; e depois o Grillo ou Da Retórica. que correspondia ao Górgias, o Protréptico que correspondia ao Eutidemo, o Eudemo ou Da Alma que correspondia ao Fédon. Este último diálogo parece de franca inspiração platónica. O seu tema chegou até nós graças a um relato de Cícero. (De Div., 1, 25, 35; fr. 37, Rose): Eudemo, doente, tem um sonho profético que lhe anuncia a sua cura, a morte dum tirano e o seu regresso à pátria. Os dois primeiros factos realizam-se; mas enquanto espera o terceiro, Eudemo morre na batalha. Anunciando-lhe o regresso à pátria, a divindade quisera indicar que a verdadeira pátria do homem é a eterna, não a terrena. Aristóteles partia deste relato para demonstrar a imortalidade e combater as concepções que se opunham a ela. Entre estas criticava, como Platão no Fédon, o conceito da alma como harmonia: a harmonia tem alguma coisa que se lhe contrapõe -a desarmonia; pelo contrário, a alma como substância não tem nada que se lhe contraponha; logo a alma não é harmonia (fr. 45, Rose). O diálogo admitia também a doutrina platónica da anamnesis: a alma que desce ao corpo esquece as impressões recebidas no período da sua existência; pelo contrário, a alma que com a morte regressa ao além, recorda o que 238 experimentou cá. Pois que "a vida sem corpo é a condição natural para a alma, a vida no corpo é contra a natureza como uma doença" (fr. 41, Rose). Aristóteles permanece aqui ligado ainda ao pessimismo órfico-pitagórico aceite antes por Platão. "Dado que é impossível para o homem participar da natureza do que é verdadeiramente excelente, seria melhor para ele não ter nascido; e dado que nasceu, o melhor é morrer quanto antes." (fr. 44, Rose). O Protréptico (ou discurso exortatório) era uma exortação à filosofia, dirigida a um
príncipe de Chipre, Temisó n. A exortação tomava a forma de um dilema: "Ou se deve filosofar ou não se deve: mas para decidir não filosofar é ainda e sempre necessário filosofar; assim pois em qualquer caso filosofar é necessário" (fr. 51, Rose). O filosofar é concebido ainda platonicamente como exercício de morte; é a condenação de tudo o que é humano, enquanto aparência enganosa, e até da beleza (fr. 59, Rose). O filósofo como o político deve olhar não à s imitações sensíveis, mas aos modelos eternos. Consequentemente no Protréptico, o conhecimento aparece a Aristóteles como sabedoria moral (frónesis) enquanto mais tarde distinguirá nitidamente o conhecimento, da vida moral. O Protréptico terminava provavelmente com a exaltação da figura e da vida do sage, considerado com um deus mortal, superior ao trágico destino dos homens (fr. 61, Rose); livro que esteve entre os mais lidos e admirados por variadíssimos espíritos: desde o cínico Crates que o leu na oficina de um sapateiro (fr. 50, Rose) a S. Agostinho que, graças à imitação que dele fez Cicero no Hortensio, veio à filosofia e portanto a Deus (§ 157). O afastamento por parte de Aristóteles do platonismo deve iniciar-se durante a permanência de 239 Aristóteles em Asso e o seu primeiro documento é o diálogo Sobre a Filosofia, que foi durante muito tempo, isto é, até à edição da Metafísica por intervenção de Andrónico de Rodes, a fonte principal para o conhecimento da sua filosofia. O diálogo constava de três livros. No primeiro, Aristóteles tratava do desenvolvimento histórico da filosofia, de maneira análoga ao que fez no primeiro livro da Metafísica. Mas aqui não começava em Tales, mas na sabedoria oriental e nos sete sábios. Platão era colocado no cume de toda a evolução filosófica. No segundo livro, criticava-se a doutrina das ideias de Platão. Num fragmento que chegou até nós (fr. 9, Rose), toma-se particularmente em atenção a teoria das ideias-números: "Se as ideias fossem uma outra espécie de números, diferentes dos da matemática, não poderíamos ter delas nenhum entendimento. Com efeito, quem, pelo menos a maior parte de nós, pode entender que coisa seja um número de espécie diferente?" Mas, por um testemunho de Plutarco e de Proelo (fr .8, Rose), sabemos que ele impugnava toda a teoria das ideias, declarando que não podia segui-la mesmo à custa de parecer a alguém demasiado amante da disputa. No terceiro livro do diálogo, Aristóteles apresentava a sua construção cosmológica. Concebia a divindade como o motor imóvel que dirige o mundo enquanto causa final, inspirando às coisas o desejo da sua perfeição. O éter era concebido como o corpo mais nobre e mais próximo da divindade; por baixo do motor imóvel estavam as divindades dos céus e dos astros. A existência de Deus era demonstrada mediante a prova que a Escolástica chamou argumento dos graus. Em qualquer domínio em que haja uma hierarquia de graus e portanto uma maior ou menor perfeição, subsiste necessariamente algo absolutamente perfeito. Ora dado que em tudo o que existe se manifesta uma 240 gradação de coisas mais ou menos perfeitas, subsiste também um ente de absoluta superioridade e perfeição, e este poderia ser Deus (fr. 16, Rose). Adaptando o famoso mito platónico da caverna, Aristóteles tirava dele um argumento para afirmar a existência de Deus. Se existissem homens que tivessem habitado sempre debaixo da terra em esplêndidas moradas adornadas com tudo o que a arte humana pode fazer; se nunca tivessem subido à superfície e só tivessem ouvido falar da divindade, haveriam de estar, apesar disso, imediatamente seguros da sua existência, se, saindo à superfície, pudessem contemplar o espectáculo do mundo natural (fr. 12, Rose). Enquanto o mito da caverna servia a Platão para demonstrar o carácter aparente e ilusório do mundo sensível, serve a Aristóteles para exaltar a perfeição do mesmo mundo sensível e para tirar dessa perfeição um argumento de prova da sua origem divina. A separação entre Platão e Aristóteles não
poderia ser melhor simbolizada do que mediante este mito. § 70. AS OBRAS ACROAMÁTICAS As obras acroamáticas de Aristóteles, levadas a Roma por Sila, foram ordenadas e publicadas por Andrónico de Rodes pelos meados do século 1 a.C.. Estas obras compreendem: 1.o -Escritos de LóGICA, conhecidos globalmente sob o nome de õrganon (ou instrumentos de investigação): Categorias (um livro): sobre os termos ou sobre os predicados. Sobre a Interpretação (um livro): sobre as proposições. Primeiros Analíticos (dois livros): sobre o raciocínio. Segundos Analíticos (dois livros): sobre a prova, a definição, a divisão e o conhecimento dos princípios. Tópicos (oito 241 livros): sobre o discurso dialéctico e sobre a arte da refutação fundada em premissas prováveis. Elencos Sofísticos: refutação dos argumentos sofistas. Esta é a ordem sistemática em que a tradição recolheu os escritos lógicos de Aristóteles. Não é a ordem cronológica da sua composição acerca da qual somente se podem adiantar conjecturas. Admite-se geralmente que as Categorias ou a sua primeira redacção (que compreende os cap. I-VIII) e os livros 11-VII dos Tópicos são os escritos mais antigos, alguns dos quais compostos provavelmente quando Platão era vivo. Os Elencos sofísticos são um apêndice dos Tópicos e pertencem ao mesmo período. Contemporâneo ou pouco posterior deve ser também o livro Sobre a Interpretação. Os Primeiros Analíticos e os Segundos Analíticos pertencem à fase madura do pensamento de Aristóteles. Deve-se recordar também que o uso do vocábulo "lógica" para este género de investigações foi iniciado pelos estóicos e que Aristóteles, ao contrário, as compreendia sob o nome de "ciência analítica" (Ret., I, IV, 359 b, 10). 2.o - A METAFÍSICA, em 14 livros. Livro I: Natureza da ciência. Os quatro princípios metafísicos. Visão crítica das doutrinas dos seus predecessores (cap. IX: Sobre a doutrina platónica das ideias). Livro II: Dificuldade da investigação da verdade. Contra uma infinita série de causas. As diversas espécies de investigação; deve-se partir do conceito de natureza. Livro III - Quinze dúvidas em torno dos princípios e da ciência que se fundamenta neles. Livro IV: Solução de algumas dúvidas. Princípio da contradição. Livro V: Sobre os termos que é costume usar em diferentes significados, como Princípio, causa, elemento, natureza, etc. Livro VI: Determinação do domínio da metafísica em relação ao domínio das outras ciências. Livro VII e VIII: 242 Doutrina da substância. Livro IX: Doutrina da potência e do acto. Livro X: O uno e o múltiplo. Livro XI, cap. I-VIII: análogos aos livros III, IV e VI; caps. 9-12: sobre o movimento, sobre o infinito. Livro XII: As diversas espécies de substância, a sensívelmutável, a sensível-imutável, a supra-sensível; esta última como objecto da metafísica. Livro XIII e XIV: As matemáticas, a teoria das ideias e a teoria dos números (XIII, cap. IV: Contra a doutrina platónica das ideias). Como se vê por este sumário, a Metafísica não é uma obra orgânica mas um conjunto de escritos diferentes, compostos em épocas diferentes. O livro II é o resto de um conjunto de apontamentos tirados por um aluno de Aristóteles. O livro VI, na época alexandrina, subsistia ainda como obra independente. O Livro XII é uma exposição autónoma que oferece um quadro sintético de todo o sistema aristotélico e é em si mesmo completo. Os dois últimos livros não têm nenhuma relação
com o que os precede. Estudos recentes permitem traçar para esta série de escritos uma ordem cronológica e delinear também a direcção da formação do pensamento de Aristóteles. Os livros I e III constituem a redacção mais antiga da obra: com efeito, Aristóteles expõe aí a doutrina das ideias como se fosse sua e inclui-se a si próprio entre os platónicos. Os livros XIII e XIV pertencem ao mesmo período e constituem uma reelaboração dos dois precedentes. O livro XIII devia substituir provavelmente o livro XIV porque oferece uma elaboração mais acabada e sistemática dos mesmos argumentos. O livro XII contém a formulação teológica da metafísica aristotélica, segundo a qual esta constitui urna ciência particular que tem por objecto o ser divino, o primeiro motor. Esta formulação, que está mais próxima do platonismo, é indubitavelmente anterior àquela que faz da filosofia a 243 ciência do ser enquanto tal. Pelo contrário, os livros sobre a substância (VII, VIII e IX), na medida em que consideram a substância em geral e portanto também a substância sensível, realizam o projecto de uma filosofia como ciência do ser enquanto ser (isto é do ser em geral) e portanto apta a servir de fundamento a todas as ciências particulares. Esses livros constituem a formulação mais madura do pensamento aristotélico. 3.o - Escritos de FÍSICA, de PSICOLOGIA.
HISTóRIA NATURAL, de MATEMÁTICA e de
Lições de física em 8 livros. Sobre o céu, em 4 livros. Sobre a geração e a corrupção, em 2 livros. Sobre os meteoros, em 4 livros. História dos animais: anatomia e fisiologia dos animais. À mesma série pertencem os escritos: Sobre as partes dos animais,- Sobre a geração dos animais; Sobre as transmigrações dos animais; Sobre o movimento dos animais. Os escritos: Sobre as linhas indivisíveis e Sobre os mecanismos são apócrifos. A doutrina aristotélica da alma é exposta nos três livros Sobre a Alma e na recolha de escritos intitulada Parva naturalia. O escrito sobre a Fisionómica é apócrifo. A recolha dos Problemas compreende a compilação de um conjunto de problemas, alguns dos quais são certamente aristotélicos. 4.O -Escritos de ÉTICA, POLITICA, ECONOMIA, POÉTICA e RETóRICA. Com o nome de Aristóteles chegaram-nos três tratados de ética: a Ética Nicomaqueia, a Ética Eudemia e a Grande Ética, assim chamada não porque seja a mais vasta (pelo contrário, é a mais breve), mas porque se ocupa de mais assuntos. Mas 244 a Grande Ética, certamente compilação de um aristotélico, não escapa a influências estranhas ao aristotelismo, e provavelmente aos estóicos. A Ética Eudeinia é atribuída por alguns a Eudemo de Rodes, discípulo de Aristóteles; por outros, considerada como obra original de Aristóteles, editada por Eudemo, como foi editada por Nicómaco a Ética Nicomaqueia. Os estudos mais recentes levam a ver na Ética Eudemia a primeira formulação da Ética de Aristóteles que também neste domínio se vai afastando cada vez mais das directrizes do mestre. A Política em 8 livros. Livro I: A natureza da família. Livro II: Consideração crítica das
teorias anteriores do estado. Livro III: Conceitos fundamentais da Política. Natureza dos estados e dos cidadãos. As várias formas de constituição. A monarquia. Livro IV: Ulterior determinação dos caracteres das diversas constituições. Livro V: Mudanças, sedições e revoluções nos estados. Livro VI: A democracia e as suas instituições. Livro VII: a constituiição ideal. Livro VIII: A educação. Aristóteles recolhem 158 constituições estatais que se perderam. Voltoti à luz, nos princípios do século passado, a Constituição dos Atenienses, escrita pessoalmente por Aristóteles como primeiro livro do conjunto da obra. Da Economia, provavelmente o primeiro livro não é aristotélico, o segundo é decididamente apócrifo e pertence ao fim do III século. À Retórica, em 3 livros, trata no I da natureza da retórica, que tem por objecto o verosímil e os problemas que lhe são próprios; no II do modo de suscitar com a palavra afectos e paixões, no III, da expressão e da ordem em que devem ser expostas as partes do discurso. A chama-da Retórica a Alexandre é apócrifa, como o demonstra o próprio facto da dedicatória, 245 costume desconhecido no tempo de Aristóteles; é atribuída ao retórico Anaxímenes de Lampsaco. A Poética chegou-nos incompleta. A parte que nos resta trata apenas da origem e da natureza da tragédia. Perderam-se as obras históricas de Aristóteles sobre os Pitagóricos, Arquitas, Demócrito e outros. O escrito sobre Melisso, Xenófanes e Górgias não é aristotélico. § 71. - DO "FILOSOFAR" PLATÓNICO À "FELOSOFIA" ARISTOTÉLICA Num fragmento da elegia, endereçada a Eudemo, colocada no altar de Platão, Aristóteles exalta assim o mestre: * h&~ que o& maus 4ndo têm sequer permitido para [louvar que sozinho ou o primeiro entre os mortais demonstrou [claramente com o exemplo de ~ vida e com o rigor de seus [argumentos que o homem se torna bom e feliz ao mesmo tempo. A ninguém até agora foi permitido tanto alcançar. O ensinamento fundamental de Platão é, pois, segundo Aristóteles, a relação estreita que existe entre a virtude e a felicidade; e o valor deste ensinamento está no facto de que Platão não se limitou a demonstrá-lo com argumentos lógicos, mas o incorporou na sua vida e para isso viveu. Mas para Platão o homem só pode alcançar o bem que é a própria felicidade, mediante uma pesquisa rigorosamente conduzida e que se dirija para a ciência do ser em si. Platão não estabelecia apenas a identi246 dade entre virtude e felicidade mas também entre virtude e ciência. O que é que pensa Aristóteles desta segunda identidade, para cuja demonstração tende toda a obra de Platão? Encontra-se precisamente aqui a separação entre Platão e Aristóteles. Para Platão a filosofia é procura do ser e ao mesmo tempo realização da verdadeira vida do homem nesta procura: é ciência e, enquanto ciência, virtude e felicidade. Mas para Aristóteles, o saber
não é já a própria vida do homem que procura o ser e o bem, mas uma ciência objectiva que se divide e se articula em numerosas ciências particulares, cada uma das quais alcança a sua autonomia. Por um lado, para Aristóteles, a filosofia tornou-se o sistema total das ciências singulares. Por outro lado, é ela própria uma ciência singular, certamente a "rainha" das outras, mas que não as absorve nem dissolve por si mesma. Por isso, enquanto para Platão a indagação filosófica dá lugar a sucessivos aprofundamentos, ao exame de problemas sempre novos que procuram aprender por todas as partes o mundo do ser e do valor, para Aristóteles ela encaminha-se para a constituição de lima enciclopédia das ciências na qual nenhum aspecto da realidade fica de fora. A própria vida moral do homem torna-se o objecto de uma ciência particular-a ética, que é autónoma, como qualquer outra ciência, frente à filosofia. O conceito da filosofia apresenta-se, pois, em Aristóteles profundamente alterado. Por um lado a filosofia deve constituir-se como ciência em si e reivindicar portanto para si aquela mesma autonomia que as outras ciências reivindicam frente a ela. Por outro lado, diferentemente das outras ciências, deve encontrar razões para o seu fundamento comum e justificar a sua prioridade relativamente a elas. Nestes termos, o problema é propriamente 247 aristotélico e não se encontra nada semelhante na obra de Platão. Para Platão a filosofia não é mais que o filosofar e o filosofar é o homem que procura realizar a sua verdadeira mesmidade, unindo-se ao ser e ao bem que é o princípio do ser. Não há em Platão um problema do que é que seja a filosofia, mas só o problema do que é o filósofo, o homem na sua autêntica e completa realização. Tal é a pesquisa que domina todos os diálogos platónicos, principalmente, a República e o Sofista. Mas para Aristóteles a filosofia, enquanto ciência objectiva, deve constituir-se por analogia com as outras ciências. E como cada ciência é definida e se especifica pelo seu objecto, do mesmo modo a filosofia deve ter um objecto próprio que a caracteriza frente às outras ciências e ao mesmo tempo lhe dê, frente a elas, a superioridade que lhe corresponde. Qual é este objecto? Dois pontos de vista se entrelaçam a este respeito na Metafísica aristotélica, pontos de vista que assinalam duas etapas fundamentais da evolução filosófica de Aristóteles. De acordo com o primeiro, a filosofia é a ciência que tem por objecto o ser imóvel e transcendente, o motor ou os motores dos céus; e é, portanto, propriamente falando, teologia. Como tal, esta é a ciência mais alta porque estuda a realidade mais alta, a divina (Met., VI, 1, 1026 a, 19). Mas assim entendida, falta à filosofia universalidade (e o próprio Aristóteles o advertia: 1026 a, 23) porque se reduz a uma ciência particular com um objecto que, ainda que seja mais alto e mais nobre do que o das outras ciências, não tem nada a ver com elas. Nesta fase, apesar de se ter apartado do conceito platónico do filosofar, Aristóteles permanece fiel ao princípio platónico de que a indagação humana deve exclusiva ou preferentement dirigir-se para 'os objectos mais elevados que constituem os valores supremos. Mas uma filosofia assim com248 premdida não consegue constituir o fundamento da enciclopédia das ciências e fornecer a justificação de qualquer investigação, a respeito de qualquer objecto. Esta exigência leva Aristóteles ao segundo ponto de vista, que é o definitivo, e cuja realização constitui a sua tarefa histórica. De acordo com este segundo ponto de vista, a filosofia tem por objecto, não uma realidade particular (seja embora a mais elevada de todas), mas o aspecto fundamental e próprio de toda a realidade. Todo o domínio do ser -é dividido pelas ciências singulares, cada uma das quais considera um aspecto particular do mesmo; só a filosofia considera o ser enquanto tal, prescindindo das determinações que constituem o
objecto das ciências particulares. Este conceito da filosofia como "ciência do ser enquanto ser, é verdadeiramente a grande descoberta de Aristóteles. Ela permite não só justificar o trabalho das ciências particulares, como dá à filosofia a sua plena autonomia e a sua máxima universalidade, constituindo-a como o pressuposto indispensável de toda a investigação. Neste sentido, a filosofia já não é somente teologia: certamente a teologia é uma das suas partes, mas não a primeira nem a fundamental, pois que a primeira e fundamental é aquela que conduz à busca do princípio em virtude do qual o ser, todo o ser -Deus como a mais ínfima realidade natural é verdadeira e necessariamente tal. § 72. A FILOSOFIA PRIMEIRA: SUA POSSIBILIDADE E SEU PRINCIPIO O primeiro grupo de investigações empreendidas por Aristóteles na Metafísica versa precisamente sobre a possibilidade e sobre o principio de uma ciência do ser. Aristóteles preocupa-se antes de mais em definir o lugar desta ciência no sistema do saber 249 e as suas relações com as outras ciências. Acima de tudo, cada ciência pode ter por objecto ou o possível ou o necessário: o possível é o que pode ser indiferentemente de um modo ou de outro; o necessário é aquilo que não pode ser de modo diferente do que é. O domínio do possível compreende a acção (praxis) que tem o seu fim em si mesma, e a produção (poiesis) que tem o seu fim no objecto produzido. As ciências que têm por objecto o possível, enquanto são normativas ou técnicas, podem também ser consideradas como artes; mas não há arte que concerne aquilo que é necessário (Et. Nic., VI, 3-4). Entre as ciências do possível, a política e a ética têm por objecto as acções e por isso chamam-se práticas; as artes têm por finalidade a produção de coisas e chamam-se poéticas. Destas últimas, há uma que leva no próprio nome o selo do seu carácter produtivo-é a poesia. O domínio do necessário pertence pelo contrário às ciências especulativas ou teóricas. Estas são três: a matemática, a física e a filosofia primeira, que depois de Aristóteles se chamará metafísica. A matemática tem por objecto a quantidade no seu duplo aspecto de quantidade descontínua ou numérica (aritmética) e de quantidade contínua de uma, duas ou três dimensões (geometria) (Met., XI, 3, 1061 a, 28). A física tem por objecto o ser em movimento e, por consequência, aquelas determinações do ser que estão ligadas à matéria que é condição do movimento (1b., VI 1, 1026 a, 3). A filosofia deve constituir-se por analogia com as outras ciências teóricas se quer assumir como objecto de sua consideração o ser enquanto ser. Como a matemática e a física, deve proceder por abstracção. O matemático despoja as coisas de todas as qualidades sensíveis (peso, leveza, dureza, etc.) e redu-las à quantidade descontínua ou contínua; o físico prescinde de todas as determinações do ser que não se 250 reduzem ao movimento. De modo análogo, o filósofo deve despojar o ser de todas as determinações particulares (quantidade, movimento, etc.) e considerá-lo só enquanto ser. Além disso, como a matemática parte de certos princípios fundamentais que concernem o objecto que lhe é próprio, a quantidade em geral (como é por exemplo o axioma: tirando quantidades iguais a quantidades iguais os restos são iguais), assim a filosofia deve partir de um princípio que lhe é próprio e que concerne o objecto que lhe é próprio, o ser enquanto tal. O problema consiste em saber se uma tal ciência é possível. Evidentemente, a primeira condição para a sua possibilidade é que seja possível reduzir os diversos significados do ser a um único significado fundamental. De facto o ser diz-se de muitas maneiras: nós dizemos que são a quantidade, a qualidade, a privação, a corrupção, os acidentes; e até do não ser
dizemos que é não ser. Todos estes modos devem ser reduzidos à unidade, se hão-de ser o objecto de uma única ciência. O ser e o uno devem de algum modo identificar-se, já que é necessário descobrir aquele sentido do ser, pelo qual o ser é uno e é também a unidade mesma do ser (1b., IV, 2, 10003 b). E esta unidade não deve ser acidental. mas intrínseca e necessária a todos os diferentes significados que o ser assume. O que é acidental não pode ser objecto de ciência porque não tem estabilidade ou uniformidade; e a ciência é-o somente do que é sempre, ou quase sempre, de um modo (lb., VI, 2, 1027, a). Se se quer pois determinar o único significado fundamental do ser é necessário reconhecer um princípio que garanta a estabilidade e a necessidade do próprio ser. Tal é o princípio da contradição. Este princípio é considerado por Aristóteles, em primeiro lugar como princípio constitutivo do ser enquanto tal; em segundo lugar, como condição de 251 toda a reflexão sobre o ser. isto é, de todo o pensamento verdadeiro. É portanto simultaneamente um principio ontológico e ló gico; e Aristóteles expressa-o em duas fórmulas que correspondem a duas significações fundamentais: "Ê impossível que uma mesma coisa convenha e ao mesmo tempo não convenha a uma mesma coisa, precisamente enquanto é a mesma"; "É impossível que a mesma coisa seja e simultaneamente não seja"; tais são as duas fórmulas principais em que o princípio ocorre em Aristóteles (por exemplo, Met, IV, 3, 1005 h, 18; 4, 1006 a, 3); e destas fórmulas, evidentemente a primeira refere-se à impossibilidade lógica de predicar o ser e o não ser de um mesmo sujeito; a segunda à impossibilidade ontológica de que o ser seja e não seja. Aristóteles defende polemicamente este princípio contra aqueles que o negam: Megáricos, Cínicos e Sofistas, os quais admitem a possibilidade de afirmar todas as coisas de todas as coisas; Heracliteanos, que admitem a possibilidade de que o ser, no devir, se identifique com o não ser. Na realidade, o princípio só se pode defender e esclarecer polemicamente porque, como fundamento de toda a demonstração, não pode por sua vez ser demonstrado. Certamente pode-se demonstrar que quem o nega nada diz ou suprime a possibilidade de qualquer ciência; e é este, com efeito, o argumento polémico adoptado por Aristóteles contra os que o negam. Mas com isto ainda não resulta evidente o seu valor como axioma fundamental da filosofia primeira, como principio constitutivo da metafísica como ciência do ser enquanto tal. Este valor provém, ao invés, das considerações que Aristóteles desenvolve a propósito do ser determinado (tóde li). Se. por exemplo, o ser do homem se determinou como o de "animal bípede", "necessariamente todo o ser que se reconheça como homem deverá ser reconhecido, como animal bípede". Se a 252 verdade - afirma Aristóteles -tem um significado, necessariamente quem diz homem diz animal bípede: pois que isto significa homem. Mas se isto é necessário, não é possível que o homem não seja animal bípede: de facto a necessidade significa isto mesmo, que é impossível que o ser não seja" (Met., IV, 4, 1006 b, 30). Aqui se descobre claramente o significado do princípio da contradição como fundamento da metafísica: o princípio leva a determinar o fundamento pelo qual o ser é necessariamente. E de facto a fórmula negativa do princípio da contradição: "Ê impossível que o ser não seja" traduz-se positivamente por estoutra: o ser, enquanto tal, é necessariamente. Nesta fórmula, o princípio revela claramente a sua capacidade para fundamentar a metafísica. O ser que é objecto desta ciência, é o ser que não pode não ser, o ser necessário. A necessidade constitui portanto para Aristóteles o sentido primário ou fundamental do
ser, aquele a partir do qual todos os outros (embora não existam), podem ser compreendidos e distinguidos. Era esta a própria tese de Parménides ("o ser é e não pode não ser": fr. 4, Diels) que fora adoptada pelos Megáricos. Todavia Aristóteles não entende esta tese no sentido que só o necessário existe e que o não necessário é nada. Porquanto (como se viu) ele afirma que só o necessário é o objecto da ciência e que portanto a própria ciência é necessidade (apodítica, isto é, demonstrativa); o possível é admitido por ele como objecto de artes ou de disciplinas que têm só imperfeita ou aproximadamente carácter científico. Portanto, aquilo que ele entende afirmar é que o ser necessário é o único objecto da ciência e mais que do que não é necessário somente se pode ter conhecimento na medida em que de qualquer modo se avizinha da necessidade, no sentido de que manifesta uma certa uni253 formidade ou persistência. "Algumas coisas - diz ele - são sempre necessariamente o que são, não no sentido de serem constrangidas, mas no sentido de não poderem ser de outra maneira; pelo contrário, outras são o que são, não por necessidade mas "mais uma vez"; e este é o princípio pelo qual podemos distinguir o acidental, que é tal precisamente porque não é nem sempre, nem o mais das vezes (1026 b, 27). Como se vê, Aristóteles admite ao lado do necessário e do uniforme (o "mais das vezes") também o acidental; mas do acidental não há ciência mas, em todo o caso, tal como com o uniforme não-necessário pode ser distinguido e reconhecido sobre fundamento do necessário. Qual é portanto o ser necessário? A esta pergunta Aristóteles responde com a doutrina fundamental da sua filosofia. O ser necessário é o ser substancial. O ser que o princípio da contradição permite reconhecer e isolar na sua necessidade é a substância. "Esses-diz ele (referindo-se aos que negam o princípio da contradição) -destroem completamente a substância e a essência necessária, pois que se vêm obrigados a dizer que tudo é acidental e não existe nada como o ser-homem ou o ser-animal. Efectivamente se há alguma coisa como o ser-homem, esta não será o ser-não-homem ou o não-ser-homem, mas estes serão negações daquele. De facto, é um só o significado do ser e este é a sua substância. Indicar a substância de uma coisa não é mais que indicar o seu ser próprio" (Met., IV, 4, 1007 a, 21-27). O princípio da contradição, tomado no seu alcance ontológico-lógico, conduz directamente a determinar o ser enquanto tal que é o objecto da metafísica. Este ser é a substância. A substância é o ser por excelência, o ser que é impossível que não seja e portanto é necessariamente, o ser que é primeiro em todos os sentidos. "A substância é primeira-diz Aristóteles (lb., VII, 254 1, 1028 a, 3 1) -por definição, para o conhecimento e para o tempo. Ela é a única, entre todas as categorias, que pode subsistir separadamente. É primeira por definição, pois que a definição da substância está implícita necessariamente na definição de qualquer outra coisa. É primeira para o conhecimento porque acreditamos conhecer uma coisa, por exemplo o homem ou o fogo, quando sabemos que coisa ela é, mais do que quando conhecemos o seu qual, o quanto, o durante; e também só conhece~s cada uma destas determinações quando sabemos que coisa são elas mesmas". O que coisa é a substância. O problema do ser transforma-se portanto no problema da substância e neste último se concretiza e determina o objectivo da metafísica. "Aquilo que desde há tempo e ainda agora e sempre temos buscado, aquilo que será sempre um problema para nós. O que é o ser? significa : O que é a substância?" (Met., VII, 1, 1028 b, 2). § 73. A SUBSTÂNCIA
O que é a substância? Tal é o tema do principal grupo de investigações na Metafísica. Aristóteles enfrenta-o com o seu característico processo analítico e dubitativo, formulando todas as soluções possíveis, desenvolvendo e discutindo cada uma delas e fazendo assim brotar um problema de outro. No emaranhado das investigações que nos vários escritos que compõem a Metafísica se entrelaçam por acaso, voltando amiude ao princípio da discussão ou interrompendo-a antes da conclusão, o livro VII oferece-nos o desenvolvimento mais maduro e concludente deste problema fundamental. O último capítulo do livro, o XVII, apresenta como, conclusão o verdadeiro princípio lógico e especula255 tivo de todo o trabalho. A substância é aqui considerada como o princípio (arché) e a causa (aitia): em consequência, como o que explica e justifica o ser de cada coisa. A substância é a causa primeira e, o ser próprio de toda a realidade determinada. É o que faz de um composto algo que não se resolve na soma dos seus elementos componentes. Como a sílababa não é igual à soma de b e a, mas tem uma natureza que desaparece quando se dissolve nas letras que a acompanham; assim qualquer realidade tem uma natureza que não resulta da adição dos seus elementos componentes e é diferente de cada um e de todos estes elementos. Tal natureza é a substância daquela realidade: o princípio constitutivo do seu ser. A substância é sempre princípio, nunca elemento componente (1041 b, 31). Só ela, portanto, permite responder à pergunta a respeito do porquê de uma coisa. Se se pergunta, por exemplo, o porquê de uma casa ou de um leito, pergunta-se evidentemente qual a finalidade para que a casa ou o leito foram construídos. Se se pergunta o porquê do nascer, do morrer ou em geral da mudança, pergunta-se evidentemente a causa eficiente, o princípio pelo qual o movimento se origina. Mas finalidade e causa eficiente não são outra coisa senão a própria substância da realidade de que se pergunta o porquê (1041 a, 29). Estas observações são a chave para compreender toda a doutrina aristotélica da substância e consequentemente para penetrar no próprio coração da metafísica aristotélica. A expressão de que Aristóteles se serve para definir a substância é: aquilo que o ser era (to ti en einal, quod quid erat esse). Nesta fórmula, a repetição do verbo ser exprime que a substância é o princípio constitutivo do ser como tal; e o imperfeito (era) indica a persistência e a estabilidade do ser, a sua necessidade, A substância é o ser do ser: o princípio pelo qual 256 o ser é tal necessariamente. Mas como ser do ser, a substância tem uma dupla função a que corresponde uma dupla consideração da mesma: é por um lado o ser em quem se determina e limita a necessidade do ser, por outro lado o ser que é necessidade determinante e limitadora. Podemos exprimir a dupla funcionalidade da substância, à qual corresponde dois significados distintos mas necessariamente conjuntos, dizendo que a substância é, por um lado, a essência do ser, pelo outro o ser da essência. Como essência do ser a substância é o ser determinado, a natureza própria do ser necessário: o homem como "animal bípede". Como ser da essência, a substância é o ser determinante, o ser necessário da realidade existente: o animal bípede como este homem individual. Os dois significados podem ser compreendidos sob a expressão essência necessária, a qual dá, o mais exactamente possível, o sentido da fórmula aristótélica. Evidentemente, a essência necessária não é a simples; essência de uma coisa. Nem sempre a essência é a essência necessária: quem diz de um homem que é músico, não diz a sua essência necessária, porque ele -pode ser homem sem ser músico. A essência necessária é aquela que constitui o ser próprio de uma realidade qualquer, aquele ser pelo qual a realidade é necessariamente tal. A substância é portanto não a essência, mas a essência
necessária, não o ser tomado genericamente mas o ser autêntico: é a essência do ser e o ser da essência. Entendida assim, ela revela o aspecto mais íntimo do pensamento aristotélico e ao mesmo tempo a sua relação mais secreta com o pensamento de Platão. Platão explicara a validade intrínseca do ser como tal, a normatividade que o ser apresenta em si próprio e ao homem, referindo o ser aos outros valores e fazendo do bem o princípio do ser. Para Platão, se o ser vale, se possui um valor graças ao 257 qual se põe como norma, isso acontece, não porque é ser, mais porque é bem; aquilo que o constitui enquanto ser é o bem, o próprio valor. A normatividade do ser é, para Platão, estranha ao próprio ser: o ser está no valor, não o valor no ser. Ao contrário, Aristóteles descobriu o valor intrínseco do ser. A validade que o ser possui não lhe vem de um principio extrínseco, do bem, da perfeição ou da ordem, mas do seu principio -intrínseco, da substância. O ser não está no valor, mas. "o valor no ser". Tudo aquilo que é. enquanto é, realiza o valor primordial e único, o ser enquanto tal. A substância, como ser do ser, dá às mais insignificantes e pobres manifestações do ser uma validade necessária, uma absoluta normatividade. Efectivamente, não é privilégio das realidades mais elevadas, mas encontra-se tanto na base como no cimo da hierarquia dos seres e representa o verdadeiro valor metafísico. Com a descoberta da validade do ser enquanto tal, Aristóteles está con condições de adoptar ante o mundo uma atitude completamente distinta da de Platão. -Para ele, tudo aquilo que é, enquanto é, tem um valor intrínseco, é digno de consideração e de estudo e pode ser objecto de ciência. Ao contrário, para Platão só aquilo que encarna um valor diferente do ser pode e deve ser objecto de ciência: o ser enquanto tal não basta, porque não tem em si o seu valor. Com a teoria da substância, Aristóteles elaborou o princípio que justifica a sua atitude frente à natureza, a sua obra de investigador infatigável, o seu interesse científico que não se apaga nem diminui nem sequer ante as mais insignificantes manifestações do ser. A teoria da substância é ao mesmo tempo o centro da metafísica de Aristóteles e o centro da sua personalidade. Ela revela o íntimo valor existencial da sua metafísica. 258 § 74. AS DETERMINAÇÕES DA SUBSTÂNCIA A dupla função da substância aparece continuamente na investigação aristotélica e comunica-lhe uma ambiguidade aparente que só se pode eliminar reconhecendo a distinção e a unidade das duas funções da substância. Quando Aristóteles diz que a substância é expressa pela definição e que só da substância há definição verdadeira (VII, 4, 1030 b, a), entende a substância como essência do ser, como aquilo que a razão pode entender e demonstrar do ser. Quando, ao contrário, declara que a substância se identifica com a realidade determinada (tode ti) e que, por exemplo, a beleza não existe senão naquilo que é belo (VII, 6, 1031 b, 10), entende a substância como ser da essência, como o princípio que dá à natureza própria de uma coisa a sua existência necessária. Como essência do ser, a substância é a forma das coisas compostas, e dá unidade aos elementos que compõem a todo e ao lodo uma natureza própria, diferente daquela dos elementos componentes (VIII, 6 b, 2). A forma das coisas materiais, que Aristóteles chama espécie (VII, 8, 1033 b, 5), é portanto a sua substância. Como ser da essência, a substância é o sujeito (ypokeimenon, subjectum): aquilo de que qualquer outra coisa se predica, mas que não pode ser predicado de nenhuma. E como sujeito é matéria, isto é, realidade privada de qualquer determinação e que só possui essa
determinação em potência (VIII, 1, 1042 a, 26). Como essência do ser, a substância é o conceito ou logos ou razão de ser, de que não há geração nem corrupção (pois que o que devém não é a essência necessária da coisa, mas esta ou aquela coisa). Como ser da essência, a substância é o composto ou sinolo, isto é, a união do conceito (ou forma) com a matéria, a coisa exis259 tente; e em tal sentido a substância nasce e morre (VIII, 15, 1039 b, 20). Como essência do ser, a substância é o princípio de inteligibilidade do próprio ser. É o que a razão pode tomar da realidade enquanto tal; e constitui o elemento estável e necessário, sobre o qual se fundamenta a ciência. De facto não há ciência senão do que é necessário, enquanto que o conhecimento do que pode ser e não ser, é mais opinião que ciência. Precisamente por isto não existe definição ou demonstração das substâncias sensíveis particulares que são dotadas de matéria e não são por consequência necessárias mas corruptíveis: o seu conhecimento obscurece-se apenas deixam de ser percebidas. Todavia permanece íntegro, no sujeito que as conhece, o seu conceito que expressa precisamente a sua natureza substancial, ainda que não na forma rigorosa da definição (Met., VII, 15, 1039 b, 27). A substância é portanto objectivamente e subjectivamente o princípio da necessidade: objectivamente, como ser da essência, enquanto realidade necessária; subjectivamente, como essência do ser, enquanto razão de ser necessitante. Ao considerar a diversidade e disparidade dos significados que a substância toma para Aristóteles, dir-se-ia que Aristóteles se havia limitado a formular dialecticamente todos os significados possíveis da palavra, sem escolher entre eles nem determinar o único significado autêntico e fundamental. Por um lado, como forma ou espécie, a substância é iningendrável e incorruptível, pelo outro, como composto e realidade particular existente, é engendrável e corruptível; por um lado, como sujeito é existência real que não se reduz nunca ao predicado, isto é, à pura determinação lógica; por outro lado, como definição e conceito, é pura entidade lógica. Na realidade, concebida a substância como ser do ser, na sua dupla funcionalidade de ser da 260 essência e essência do ser, Aristóteles podia reconhecer igualmente a substância em todas aquelas diversas determinações e reduzir portanto à unidade a disparidade aparente. Tal era precisamente o objectivo que se propusera ao constituir a metafísica como ciência do ser enquanto tal e ao tomar como seu fundamento o princípio da contradição. A riqueza das determinações ontológicas que o conceito de substância permite justificar a Aristóteles, relacionando-as com um único significado fundamental, é a prova de que alcançou verdadeiramente, com o conceito de substância, o princípio da filosofia primeira, como aquela ciência que deve constituir o fundamento comum e a justificação última de todas as ciências particulares. Aristóteles só devia excluir como ilegítimo um significado da substância: aquele que separa o ser da essência ou a essência do ser, que põe a validade e a necessidade do ser de fora do ser, numa universalidade que não constitui a alma e a vida do próprio ser. Tal era o ponto de vista do platonismo; por isso Aristóteles se serve dele continuamente como termo de confronto polémico na construção da sua metafísica. § 75. A POLÉMICA CONTRA O PLATONISMO A característica do platonismo é, segundo Aristóteles, a de considerar as espécies como substâncias separadas, reais independentemente dos seres individuais de que são forma ou substância. Para Aristóteles a substancialidade (a realidade) da espécie é a mesma do indivíduo de que é espécie. Para Platão as espécies têm uma realidade em si que não se dissolve na dos indivíduos singularmente existentes: e em tal sentido são substâncias
separadas. 261 Ora tais substâncias separadas são impossíveis. segundo Aristóteles. Como espécies deveriam ser universais; mas é impossível que o universal seja substância porque enquanto o universal é comum a muitas coisas, a substância é própria de um ser individual e não pertence a nenhum outro. Se em Sócrates, que é substância, existisse uma outra substância ("homem" ou "ser vivente") teríamos um ser completo de várias substâncias, o que é impossível. Aristóteles insiste portanto várias vezes na Metafísica na crítica dos argumentos que eram seguidos por Platão e pelos Platónicos para estabelecer a realidade da ideia. Tal crítica versa essencialmente quatro pontos. Em primeiro lugar, admitir a ideia que corresponda a cada conceito significa actuar mais ou menos como aquele que, tendo de contar alguns objectos, julgasse que não podia fazê-lo senão acrescentando o seu número. As ideias devem ser efectivamente em número maior que os respectivos objectos sensíveis, porque há de haver não só a ideia de cada substância, mas também a de todos os seus modos ou caracteres que podem concentrar-se num único conceito. São outras tantas realidades que se acrescentam às realidades sensíveis. de modo que o filósofo se encontra no dever de explicar, além destas últimas,, também as primeiras, enfrentando dificuldades maiores do que se se encontrasse apenas perante o mundo sensível. Em segundo lugar, os argumentos com que se demonstra a realidade da ideia conduziriam a admitir ideias que até os Platónicos não consideram que haja; por exemplo, a das negações ou das coisas transitórias, pois que também destas há conceitos. E assim, até para a relação de semelhança entre as ideias e as coisas correspondentes (por exemplo, entre a ideia do homem e cada homem) deveria haver uma ideia (um terceiro homem); e entre esta 262 ideia, por uma parte, e a ideia do homem e cada homem individual, por outra, outras ideias; e assim até ao infinito. Em terceiro lugar, as ideias são inúteis porque não contribuem nada para fazer compreender a realidade do mundo. De facto, não são causa de nenhum movimento e de nenhuma mudança. Dizer que as coisas participam das ideias não quer dizer nada, porque as ideias não são princípios de acção .que determinem a natureza das coisas. Finalmente, é este o argumento mais importante que se liga com a teoria aristotélica da substância: a substância não pode existir separadamente daquilo de que é substância. A afirmação do Fédon de que as ideias são causas das coisas é, segundo Aristóteles, incompreensível, pois ainda que supondo que as ideias existam, delas não derivarão as coisas se não intervir para criá-las um princípio activo. Estes argumentos a que Aristóteles retorna amiúde são simplesmente indicativos, mas não reveladores do verdadeiro ponto de separação entre ele e Platão. Partem do pressuposto de uma realidade das ideias absolutamente separada do mundo sensível e da própria inteligência humana que as apreende: pressuposto que se não verifica no espírito autêntico do platonismo. Para Platão, a ideia é o valor e constitui ao mesmo tempo o dever ser, o melhor, das coisas do mundo e a norma de que o homem deve servir-se para a valoração das próprias coisas. A ideia aparece a Aristóteles como separada do mundo não porque Platão haja negado implicitamente ou explicitamente a relação com o mundo, mas porque
a ideia é incomensurável com o ser do próprio mundo. A ideia é o bem, o belo ou em geral (segundo os últimos diálogos platónicos) a ordem e a medida perfeita do mundo, e constitui um princípio diferente e em consequência estranho e separado do ser' cujo fundamento se 263 pretende que seja. A descoberta da validade intrínseca do ser como tal, o reconhecimento de que o ser, precisamente enquanto ser e não já enquanto perfeição ou valor, possui a validade necessária, leva Aristóteles a rejeitar a doutrina que separa o ser do seu próprio valor e faz deste um mundo ou uma substância separada. Por isso a substância aristotélica, até entendida como forma ou espécie, não pode ser reconduzida à ideia platónica. A substância não é a ideia que abandonando a esfera supraceleste se envolveu no ser e no devir do mundo e readquiriu a sua concreção, mas um princípio de validade intrínseco ao ser como tal: é o ser próprio do devir e do mundo na própria necessidade. Aristóteles realizou a inversão do ponto de vista platónico. Para Platão, os valores fundamentais são os morais que não são puramente humanos, mas cósmicos, e constituem o princípio e o fundamento do ser. Para Aristóteles o valor fundamental é o ontológico, constituído pelo ser enquanto tal, pela substância; e os valores morais circunscrevem-se à esfera puramente humana. Quando Aristóteles nega que o universal seja substância, tem em mente o universal platónico que verdadeiramente está separado do ser, na medida que é um valor distinto do ser. O que ele defende constantemente contra o platonismo é que o valor do ser é intrínseco ao ser: é a doutrina da substância. § 76. A SUBSTÂNCIA COMO CAUSA DO DEVIR Com a indagação sobre a natureza da substância se entrelaça na Metafísica a investigação em torno das substâncias particulares. Nesta segunda investigação, Aristóteles é guiado pelo critério que ilustra 264 num passo famoso do livro VII. É necessário partir das coisas que são mais cognoscíveis ao homem a fim de alcançar aquelas que são mais cognoscíveis em si; do mesmo modo que, no campo da acção, se parte daquilo que é bom para o indivíduo a fim de que consiga fazer seu o bem universal (1020 b, 3). Mais facilmente cognoscíveis para o homem são as substâncias sensíveis; portanto, destas se deve partir na consideração das substâncias determinadas. E dado que estão sujeitas ao devir, trata-se de saber que função desempenha a substância no devir. Tudo aquilo que devém tem uma causa eficiente que é o ponto de partida e o princípio do devir; devém alguma coisa (por exemplo, uma esfera ou um círculo) que é a forma ou ponto de chegada do devir; e devém. de alguma coisa, que não é a simples privação dessa forma, mas a sua possibilidade ou potência e se chama matéria. O artífice que constrói uma esfera de bronze, como não produz o bronze, tão-pouco produz a forma de esfera que infunde no bronze. Não faz mais que dar a uma matéria preexistente, o bronze, uma forma preexistente, a esfericidade. Se tivesse de produzir também a esfericidade, teria de a tirar de alguma outra coisa, como tira do bronze a esfera de bronze; isto é, deveria haver uma matéria da qual tiraria a esfericidade e logo ainda uma matéria desta matéria e assim até ao infinito. É evidente, pois, que a forma ou espécie que se imprime na matéria não devém, pelo contrário, o que devém é o conjunto da matéria e forma (sinolo) que desta toma o
nome. A substância como matéria ou como forma escapa ao devir: ao qual pelo contrário, se submete a substância como sinolo (VII, 8, 1033 b). Isto não quer dizer que haja uma esfera aparte das que vemos ou uma casa fora das construídas com tijolos. Se assim fosse, a espécie não se converteria nunca numa realidade determinada, isto é, esta casa ou 265 esta esfera. A espécie exprime a natureza de uma coisa, não diz que a coisa existe. Quem produz a coisa, tira de algo que existe (a matéria, o bronze) qualquer coisa que existe e tem em si aquela espécie (a esfera de bronze). A realidade determinada é a espécie que já subsiste nestas carnes e nestes ossos que formam Cálias ou Sócrates, os quais certamente são distintos pela matéria, mas idênticos pela espécie, que é indivisível (1b., 1034 a, 5). A substância é portanto a causa não só do ser mas ainda do devir. No primeiro livro da Metafísica, Aristóteles distinguira quatro espécies de causas, repetindo uma doutrina já exposta na Física ffi, 3 e 7). "Das causas-dissera (Met., 1, 3, 983 a, 26)-fala-se de quatro modos. Chamamos causa primeira à substância e à essência necessária, pois que o porquê se reduz em última instância ao conceito (logos) que, sendo o primeiro porquê, é causa e princípio. A segunda causa é a matéria e o substracto. A terceira é a causa eficiente, isto é, o princípio do movimento. A quarta é a causa oposta a esta última, o objectivo e o bem que é o fim (telos) de cada geração e de cada devir. " Mas agora é claro que estas quatro causas são verdadeiramente tais só enquanto se reduzem todas à causa primeira, à substância de que são determinações ou expressões diversas. Naquele primeiro ensaio de história da filosofia, que Aristóteles nos oferece precisamente no primeiro livro da Metafísica, ele põe à prova esta doutrina das quatro causas para se certificar se os seus predecessores haviam descoberto outra espécie de causa, além daquelas enunciadas por ele nos escritos de física. A conclusão da sua análise é que todos se limitaram a tratar de uma ou duas das causas por ele enunciadas: a causa material e a causa eficiente foram admitidas pelos físicos, a causa formal por Platão, enquanto da causa final só Anaxágoras teve um certo indí266 cio. "Mas estes - acrescenta Aristóteles - trataram delas confusamente; e se num sentido se pode afirmar que as causas foram indicadas antes de nós, num outro sentido pode dizer-se que não foram indicadas inteiramente" o Q, 10, 992 b, 13). Aristóteles está assim consciente de inserir-se historicamente na pesquisa estabelecida pelos seus predecessores e de levá-la à sua culminação e clareza. O objectivo que se propôs parece-lhe sugerido pelos resultados históricos que a filosofia conseguiu antes dele. § 77. POTÊNCIA E ACTO A função da substância no devir confere à mesma substância um novo significado. Ela adquire um valor dinâmico, identifica-se com o fim (telos), com a acção criadora que forma a matéria, com a realidade concreta do ser individual no qual o devir se executa. Em tal sentido a substância é acto: actividade, acção, conclusão. Aristóteles identifica a matéria com a potência, a forma com o acto. A potência (dynamis) é em geral a possibilidade de produzir uma mudança ou de sofrê-la. Há a potência activa que consiste na capacidade de produzir uma mudança em si ou noutro (como, por exemplo, no fogo a potência de aquecer e no construtor a de construir); e a potência passiva que consiste na capacidade de sofrer uma mudança (como por exemplo, na madeira a capacidade de inflamar-se, naquilo que é frágil a capacidade de romper-se). A potência passiva é própria da matéria; a potência activa é própria do princípio de acção ou causa
eficiente. O acto (enérgheia) é pelo contrário a própria existência do objecto. Este está relativamente à potência "como o construir para o saber construir, 267 o estar acordado para o dormir, o olhar para os olhos fechados, apesar de ter vista, e como o objecto tirado da matéria e elaborado completamente está para a matéria bruta e para o objecto ainda não acabado" (Met., IX, 6, 1048 b). Alguns actos são movimentos (kinesis), outros são acções (praxis). São acções aqueles movimentos que têm em si próprios o seu fim. Por exemplo, ver é um acto que tem em si próprio o seu fim e do mesmo modo o entender e o pensar, enquanto que o aprender, o caminhar, o construir têm fora de si o seu fim na coisa que se aprende, no ponto a que se pretende chegar, no objecto que se constrói. Aristóteles chamou a estes actos não acções, mas movimentos ou movimentos incompletos. O acto é anterior à potência. É anterior relativamente ao tempo: pois é verdade que a semente (potência) é anterior à planta, a capacidade de ver anterior ao acto de ver; mas a semente não pode ser derivada senão de uma planta e a capacidade de ver não pode ser própria senão de um olho que vê. O acto é anterior também pela substância, pois o que no devir é último, a forma completa, é substancialmente anterior: por exemplo o adulto é anterior ao rapaz e a planta à semente, na medida que um já realizou a forma que o outro não tem. A galinha vem antes do ovo, segundo Aristóteles. A causa eficiente do devir deve preceder o próprio devir e a causa eficiente é acto. Também do ponto de vista do valor o acto é anterior já que a potência é sempre possibilidade de dois contrários; por exemplo, a potência de ser saudável é também potência de ser doente; mas o acto de ser saudável exclui a doença. O acto é portanto melhor que a potência. A acção perfeita que em em si o seu fim é designada por Aristóteles como acto final ou realização final (entelequia). Enquanto o movimento 268 é o processo que leva gradualmente ao acto aquilo que antes estava em potência, a entelequia é o termo final (telas) do movimento, o seu término perfeito. Mas como tal, a enteléquia é também a realização completa e portanto a forma perfeita daquilo que devém; é a espécie e a substância. O acto identifica-se por consequência em cada caso com a forma ou espécie e, quando é acto perfeito ou realização final, identifica-se com a substância. Esta é a própria realidade em acto e o princípio dela. Frente a ela, a matéria considerada em si, isto é, como pura matéria ou matéria prima, absolutamente privada de actualidade ou de forma, é indeterminável e incognoscível e não é substância (Met., VII, 10, 1036 a, 8; IX, 7, 1049 a, 27). A matéria prima é o limite negativo do ser como substância, o ponto em que cessa conjuntamente a inteligibilidade e a realidade do ser. Mas aquilo que se chama comummente matéria, por exemplo o fogo, a água, o bronze não é matéria prima, porque tem já em si em acto uma determinação e portanto uma forma; é matéria, isto é, potência, no que diz respeito às formas que pode assumir, enquanto que é já, como realidade determinada, forma e substância. Se conhecer a realidade e o porquê de uma coisa significa conhecer a sua substância mediante a espécie ou forma (que é precisamente a substância das realidades compostas ou "sinoli"), a matéria representa o resíduo irracional do conhecimento, assim como a substância representa o princípio ou a causa não só do ser, mas também da inteligibil idade do ser como tal. § 78. A SUBSTÂNCIA IMóVEL
À filosofia como teoria da substância compete evidentemente não só a tarefa de considerar a natureza da substância, as suas determinações fun. 269 damentais e a sua função no devir, mas também o de classificar as substâncias determinadas existentes no mundo, que são objecto das ciências particulares e de tomar como objecto de estudo aquela ou aquelas que escapam ao âmbito das demais ciências. Ora todas as substâncias se dividem em duas classes: as substâncias sensíveis e em movimento e as substâncias não sensíveis e imóveis. As substâncias do primeiro género constituem o mundo físico e por sua vez subdividem-se em duas classes: a substância sensível que constitui os corpos celestes e é iningendrável e incorruptível; as substâncias constituídas pelos quatro elementos do mundo sublunar, que são pelo contrário geráveis e corruptíveis. Estas substâncias são o objecto da física. O outro grupo de substâncias, as não sensíveis e imóveis, é objecto de uma ciência diferente, a teologia, à qual Aristóteles dedicou o livro XII da Metafísica. A existência de uma substância imóvel é demonstrada por Aristóteles tanto na Metafísica (XII, 6) como na Física (VIII, 10), mediante a necessidade de explicar a continuidade e a eternidade do movimento celeste. O movimento contínuo, uniforme, eterno do primeiro céu, o qual regula os movimentos dos outros céus, igualmente eternos e contínuos deve ter como sua causa um primeiro motor. Mas este primeiro motor não pode ser por sua vez movido pois de outro modo requereria uma causa do seu movimento e esta causa uma outra ainda e assim até ao infinito; portanto, deve ser imóvel. Ora o primeiro motor imóvel deve ser acto, não potência. Aquilo que só tem a potência de mover, pode também não mover; mas se o movimento do céu é contínuo, o motor deste movimento não só deve ser eternamente activo, mas deve ser pela sua natureza acto, e absolutamente privado de potência. E pois que a potência é matéria, esse 270 acto está também privado de matéria: é acto puro (Met., XII, 6, 1071 b, 22). Este acto puro ou primeiro motor não tem grandeza, portanto não tem partes e é indivisível. Com efeito, uma grandeza finita não poderia mover por um tempo infinito, pois que nenhuma coisa finita tem uma potência infinita; e uma grandeza infinita não pode subsistir. Mas não tendo matéria nem grandeza, a substância imóvel não pode mover como causa eficiente; resta-lhe portanto que mova como causa final, enquanto objecto da vontade e da inteligência. De facto tudo aquilo que é desejável e inteligível move sem ser movido e um e outro se identificam no seu princípio, pois que aquilo que se deseja é aquilo que a inteligência julga bom enquanto é realmente tal. Na hierarquia das realidades inteligíveis, a substância simples e em acto tem o primeiro lugar; na hierarquia dos bens tem o primeiro lugar aquilo que é excelente e desejável por si mesmo. Graças à identidade do inteligível e do desejável, o sumo grau do inteligível, a substância imóvel identifica-se com o sumo grau do desejável: a substância é pois também o grau supremo da excelência, o sumo bem, Como tal, é objecto de amor, move enquanto é amada, e as outras coisas são movidas pelo que ela move dessa maneira, isto é, pelo primeiro céu (Met., XII, 7, 1072 b, 2). À substância imóvel, na medida que é a mais elevada de todas, pertence propriamente a que até para os homens é a vida mais excelente, mas que só lhes é dada por breve tempo: a vida da inteligência. Só a inteligência divina é que não pode ter um objecto diferente de si ou inferior a si própria. Ela pensa-se a si mesma no lugar do inteligível: a inteligência e o inteligível são em Deus um só. Enquanto que no conhecimento humano frequentemente o ser do pensar é distinto do ser
271 do pensado porque este último está ligado à matéria, no conhecimento divino, como em geral em todo o conhecimento que não se dirige à realidade material, o pensar e o pensado identificam-se e fazem um só. "Deus, portanto, se é o mais perfeito que há, pensa-se a si próprio e o seu pensamento é pensamento do pensamento (Met., X, XII, 9, 1074 b, 34). E pois que a actividade do pensamento é o que pode existir de mais excelente e mais doce, a vida divina é a mais perfeita de todas, eterna e feliz (1b., 7, 1072 b, 23). Se na ordem dos movimentos, Deus é o primeiro motor, na ordem das causas Deus é a causa primeira, às quais revertem todas as séries causais, compreendidas as das causas finais (Met., 11, 2). Mesmo no sentido da causa final, Deus é o criador da ordem do universo que é comparado por Aristóteles a uma família ou a uni exército. "Todas as coisas são ordenadas uma relativamente a outra. mas não todas do mesmo modo: os peixes, as aves, as plantas têm ordem diferente. Todavia nenhuma coisa está relativamente a uma outra como se nada tivesse a fazer com a outra; mas todas são coordenadas a um único ser. Isto é, por exemplo, aquilo que acontece numa casa onde os homens livres não podem fazer aquilo que lhes agrada, mas todas ou pelo menos a maior parte das coisas acontecem segundo uma ordem; enquanto que os escravos e os animais só em pouco contribuem para o bem-estar comum e muito fazem casualmente" (lb., XII, 10. 1075 a, 12). Do mesmo modo, o bem de um exército consiste "conjuntamente na sua ordem e no seu comandante, mas especialmente neste último: pois que ele não é o resultado da ordem mas antes a ordem depende dele" (1075 a, 13). Assim Deus é o criador da ordem do mundo mas não do ser do próprio mundo. A estrutura substancial do universo, para Aristóteles como para Platão, está para 272 lá dos limites da criação divina: ela é insusceptível de princípio e de fim. Com efeito só a coisa individual, composta de matéria e forma, tem nascimento e morte, segundo Aristóteles; enquanto que a substância que é forma ou razão de ser ou aquela que é matéria não nasce nem perece (VIII, 1, 1042 a, 30). O próprio Deus participa desta eternidade da substância já que ele é substância (XII, 7, 1073 a, 3) a substância no mesmo sentido em que são tais as outras substâncias (Et. Nic., 1, 6, 1096 a, 24). A superioridade de Deus consiste só na perfeição da sua vida, não na sua realidade ou no seu ser, pois que, diz Aristóteles, "nenhuma substância é mais ou menos substância do que uma outra" (Cat., V. 2b, 25). Como Platão, Aristóteles é politeísta. De facto, em primeiro lugar, Deus não é a única substância imóvel. Ele é o princípio que explica o movimento do primeiro céu; mas como, além deste, existem os movimentos igualmente eternos, das outras esferas celestes, a própria demonstração que vale para a existência do primeiro motor imóvel vale também para a existência de tantos motores quantos são os movimentos das esferas celestes. Aristóteles admite assim numerosas inteligências motoras, cada uma das quais preside ao movimento de uma determinada esfera e é princípio de todo o movimento do universo. Aristóteles obtém o número de tais inteligências motrizes do número das esferas que os astrónomos do tempo haviam admitido para explicar o movimento dos planetas. Estas esferas eram em número superior ao dos planetas, pois que a explicação do movimento aparente dos planetas em volta da terra exigia que cada planeta fosse movido por várias esferas; e isto com o objectivo de justificar as anomalias que o movimento dos planetas apresenta relativamente a um movimento circular perfeito em torno da terra. Aristóteles admitia por
273 consequência 47 ou 55 esferas celestes e portanto 47 ou 55 inteligências motoras; a oscilação do número devia-se aos diferentes números das esferas celestes admitidos por Eudóxio e por Calipo, os dois astrónomos a que Aristóteles se referia (Met., XII, 8). Aliás Aristóteles fala constantemente em "deuses" (Et. Nic., X, 9, 1179 a 24; Met., 1, 2, 983 a, 11; 111. 2. 907 b, 10, etc.); e aludindo à crença popular segundo a qual o divino abraça toda a natureza, considera que este ponto essencial, isto é "que as substâncias primeiras são tradicionalmente consideradas deuses", tem sido "divinamente designado" e é um dos ensinamentos preciosos que a tradição salvou (Met., XII, 8, 1074 a, 38), Noutros termos, a substância divina participou de muitas divindades no que a crença popular e a filosofia coincidem. § 79. A SUBSTÂNCIA FíSICA A palavra metafísica, inventada provavelmente por um peripatético anterior a Andrónico, deriva da ordenação dos escritos aristotélicos, na qual os livros de filosofia se colocaram "depois da física"; mais expressa também o motivo fundamental da "filosofia primeira" de Aristóteles, a qual se ocupa da substância imóvel, partindo das aparências sensíveis e está dominada pela preocupação de "salvar os fenómenos". O estudo do mundo natural que para Platão pertence â esfera da opinião e não ultrapassa os limites dos "raciocínios prováveis" (§ 59), para Aristóteles é ao contrário uma ciência no pleno e rigoroso significado do termo. Para Aristóteles não há na natureza nada tão insignificante, tão omissivel que não valha a pena ser estudado e não seja fonte de satisfação e de alegria para o investigador. "As substâncias interiores-diz ele (Sobre as partes 274 dos animais, 1, 5, 645 a, 1 segs.) -sendo mais e melhor acessíveis ao conhecimento, adquirem superioridade sobre as outras no campo científico; e como estão mais próximas de nós e mais conformes à nossa natureza, a sua ciência acaba por ser equivalente à filosofia que estuda as substâncias divinas... Com efeito até no caso daquelas menos favorecidas do ponto de vista da aparência sensível, a natureza que as produziu dá alegrias inefáveis àqueles que, considerando-as cientificamente, sabem compreender as suas causas e são por sua natureza filósofos... Deve-se, além disso, ter presente que quem discute uma parte qualquer ou elemento da realidade, não considera o seu aspecto material, nem este lhe interessa, antes olha à forma na sua totalidade. O que importa é a casa, não os tijolos, a cal e as traves: assim, no estudo da natureza, aquilo que interessa é a substância total de um ser determinado e não as suas partes que, separadas das substâncias que o constituem, nem sequer existem". Estas palavras, que pode dizer-se traduzem o programa científico de Aristóteles, encontram a sua justificação na teoria da substância que é o centro da sua metafísica. Esta teoria demonstrou com efeito que cada ser possui, na substância que o constitui, o princípio ou a causa da sua necessidade. Cada ser tem, portanto, enquanto tal, o seu próprio valor e se se considera nele aquilo que precisamente o faz ser, isto é, a forma total ou substância, é digno de consideração e de estudo e pode ser objecto de ciência. Por isso Aristóteles adverte na passagem referida que se deve olhar à forma e não à matéria, à totalidade em que se actualiza a substância e não às partes. COnformemente ao programa que as suas últimas e mais maduras investigações metafísicas tinham especulativamente justificado, a actividade científica de Aristóteles
dirige-se cada vez mais para as investigações particulares. Fixou a sua atenção principalmente no mundo animal, como se deduz dos números, os escritos de história natural que nos restam; mas pode afirmar-se que nenhum campo da investigação empírica lhe era estranho, pois que preparava ao mesmo tempo a reunião das 158 constituições políticas e se entregava a outras investigações eruditas, como a compilação do catálogo dos vencedores dos jogos píticos. Mas não é possível ocuparmo-nos de todas as vastas investigações naturalísticas de Aristóteles, que como tais saem do campo da filosofia. Sabemos já que a física é para ele urna ciência teorética, ao lado da matemática e da filosofia primeira. O seu objecto é o ser em movimento, constituído pelas duas substâncias que são dotadas de movimento, a engendrável e corruptível que forma os corpos sublunares e a iningendrável e incorruptível que forma os corpos celestes. Segundo Aristóteles, o movimento é a passagem da potência ao acto e portanto possui sempre um fim (telos). que é a forma ou espécie que ele tende a realizar. Dado que o acto como substância precede sempre a potência, cada movimento pressupõe já em acto a forma que é o seu término final. Aristóteles admite quatro tipos fundamentais de movimento: 1) o movimento substancial, isto é, a geração e a corrupção; 2) o movimento qualitativo, isto é, a mudança ou a alteração-, 3) o movimento quantitativo, isto é, o aumento e a diminuição; 4) o movimento local, isto é, o movimento propriamente dito. Todavia este último é, segundo Aristóteles, o movimento fundamental a que todos os outros se reduzem: com efeito o aumento e a diminuição são devidos ao afluxo ou ao afastamento duma certa matéria; a mudança, a geração e a corrupção supõe o reunirem-se num dado lugar ou o separar-se de determinados elementos. Por isso só o movimento 276 local, isto é, a mudança de lugar, constitui o movimento fundamental que permite distinguir e classificar as várias substâncias físicas. Ora o movimento local é, segundo Aristóteles, de três espécies: 1) movimento circular em torno do centro do inundo; 2) movimento do centro do mundo para o alto, 3) movimento do alto para o centro do mundo. Estes dois últimos movimentos são reciprocamente opostos e podem pertencer às mesmas substâncias, as quais serão sujeitas à mudança, à geração e à corrupção. Efectivamente, os elementos constitutivos destas substâncias, podendo moverem-se quer do alto para o baixo quer do baixo para o alto, provocarão com estes movimentos o nascimento, a mudança e a morte das substâncias compostas. O movimento circular, ao invés, não tem contrários; por isso as substâncias que se movem com esta espécie de movimento são imutáveis necessariamente e iningendráveis e incorruptíveis. Aristóteles sustenta que o éter, o elemento que compõe os corpos celestes, é o único que se move com movimento circular. Esta opinião de que os corpos celestes são formados por um elemento diferente daqueles que compõem o universo e que por isso não estão sujeitos às vicissitudes do nascimento, morte e mudanças das outras coisas, durou longo tempo na cultura ocidental e só foi abandonada no século XV por obra de Nicolau de Cusa. Os movimentos do alto para baixo e do baixo para alto são ao contrário próprios dos quatro elementos que compõem as coisas terrestres ou sublunares: água, ar, terra e fogo. Para explicar O mOviMento destes elementos, Aristóteles estabelece a teoria dos lugares naturais. A cada um destes elementos cabe-lhe no universo um lugar natural. Se a parte de um
elemento está afastada do seu lugar natural (o que não pode acontecer senão dum Modo violento, isto é, contrário à situação natural 277 do elemento) ela tende a retornar com um movimento natural. Ora os lugares naturais dos quatro elementos são determinados pelo seu respectivo peso. Ao centro do mundo está o elemento mais pesado, a terra; à volta da terra, estão as esferas dos outros elementos na ordem do seu peso decrescente: água, ar e fogo. O fogo constitui a esfera extrema do universo sublunar; acima dela está a primeira esfera etérea ou celeste, a da lua. Aristóteles era levado a esta teoria por experiências bastante simples: a pedra imersa na água afunda-se, isto é, tende a situar-se sob a água; uma bolha de ar aberta na água vem à superfície, por isso o ar tende a dispor-se ao cimo da água; o fogo arde sempre para o alto, isto é, tende a juntar-se à sua esfera que está acima do ar. O universo físico, que compreende os céus formados pelo éter e o mundo sublunar formado pelos quatro elementos, é, segundo Aristóteles, perfeito, finito, único e eterno. A perfeição do mundo é demonstrada por Aristóteles com argumentos apriorísticos, que não têm qualquer referência à experiência, Invoca a teoria pitagórica sobre a perfeição do número 3 e afirma que o mundo, possuindo todas e as três dimensões possíveis (altura, largura e profundidade), é perfeito porque não tem falta de nada. Mas se o mundo é perfeito, é também finito. Efectivamente, "infinito" significa, segundo Aristóteles, incompleto: é infinito aquilo que tem falta de qualquer coisa, portanto aquilo a que pode juntar-se sempre alguma coisa nova. O mundo, ao contrário, não tem falta de nada: é portanto finito. Por outro lado, nenhuma coisa real pode ser infinita, segundo Aristóteles. Com efeito, cada coisa existe num espaço e cada espaço tem um centro, um baixo, um alto e um limite extremo. Mas no infinito não pode existir nem um centro nem um 278 alto nem um baixo nem um limite. Portanto nenhuma realidade física é realmente infinita. A ordem das estrelas fixas assinala os limites do universo, limites para lá dos quais não há espaço. Nenhum volume determinado pode ser maior do que o volume desta esfera nenhuma linha pode alongar-se para lá do seu diâmetro. Daqui deriva que não podem existir outros mundos para lá do nosso e não pode existir o vazio. Não podem existir outros mundos, pois que toda a matéria disponível deve já estar disposta ab aeterno neste nosso universo que tem por centro a terra e por limite extremo a esfera das estrelas. Dado que cada elemento tende naturalmente para o seu lugar natural, cada parte de terra tende a juntar-se à terra que está no centro e cada elemento tende a reunir-se à própria esfera. Deste modo o nosso universo tem de recolher toda a matéria possível e fora dele não há matéria: ele é único. Mas fora dele não existe tão-pouco o vazio. Os atomistas haviam sustentado que, sem o vazio, não é possível o movimento, pois que pensavam que, se os átomos (que são semelhantes a pedrinhas pequeníssimas) fossem impelidos ao mesmo tempo sem intervalos vazios entre um e outro, nenhum átomo se poderia mover. Aristóteles, ao contrário, sustenta que o movimento no vazio não seria possível. Efectivamente no vazio não haveria nem um centro, nem um alto, nem um baixo-, por consequência não haveria motivo para um corpo se mover numa direcção em lugar de outra e todos os corpos permaneceriam parados. Nesta argumentação, como se vê, Aristóteles socorre-se continuamente da teoria dos lugares naturais, fundada na classificação dos movimentos. E vai ao ponto de produzir
como argumento contra o vazio aquilo que nós hoje chamaríamos o principio da inércia. No vazio, diz, um corpo ou permanece279 ria em repouso ou continuaria em movimento, enquanto se lhe não opusesse uma força maior. Este, segundo Aristóteles, é um argumento contra o vazio; mas na realidade este argumento demonstra apenas que Aristóteles considera absurdo o que constitui o primeiro princípio da mecânica moderna, o princípio de inércia. Veremos que este princípio encontrará reconhecimento na escolástica do século XIV e será formulado depois exactamente por Leonardo. Finalmente, como totalidade perfeita e finita, o mundo é eterno. Aristóteles define o tempo como "o número do movimento, segundo o antes e o depois" (Fis., IV 11, 219 b, 1): entendendo com isto que ele é a ordem mensurável do movimento. Distingue além disso a duração infinita do tempo, no qual vive tudo o que muda, da eternidade, que é a existência intemporal do imutável. Mas ao mundo na sua totalidade é que atribui verdadeiramente a eternidade neste sentido. Sustenta que o mundo não se gerou nem pode destruir-se e abarca e compreende na sua imobilidade total a infinitude do tempo e também todas as mudanças que acontecem no tempo. Consequentemente, Aristóteles não nos deixou uma cosmogonia, como fizera Platão no Timeu; e não podia deixá-la, dado que, segundo ele, o mundo não nasce. A esta eternidade do mundo é conjunta a eternidade de todos os aspectos fundamentais e de todas as formas substanciais do mundo. São por isso eternas as espécies animais e também a espécie humana, a qual, segundo Aristóteles, pode sofrer vicissitudes várias na sua história sobre a terra, mas é imperecível na medida que é ingerada. A perfeição do mundo que é o pressuposto de toda a física aristotélica, implica a estrutura finalística do próprio mundo: isto é, implica, que no mundo todas as coisas tenham um fim. A consi280 deração do fim é essencial a toda a física aristotélica. Viu-se que para Aristóteles o movimento de um corpo não se explica se não admitindo que tende naturalmente a alcançar o seu lugar natural: a terra tende para o centro e os outros elementos tendem cada um para a sua própria esfera. O lugar natural de um elemento é determinado pela ordem perfeita das partes do universo. Atingir esse lugar e ainda manter e garantir a perfeição de tudo, é o fim de todo o movimento físico. Já na lei fundamental que explica os movimentos da natureza está presente a consideração do fim. Mas o fim é ainda mais evidente no mundo biológico, isto é, nos organismos animais: daqui se explica a preferência de Aristóteles pelas investigações biológicas, às quais dedicou grande parte da sua actividade. "A divindade e a natureza-diz Aristóteles (De coelo, i, 4, 271 a)-não fazem nada que seja inútil". O acaso (autómaton), propriamente falando, não existe. Dizemos que se verificam por acaso os efeitos acidentais de certos acontecimentos que reentram na ordem das coisas. Uma pedra que cai e fere alguém, fere-o por acaso porque não caiu com o objectivo de feri-lo, a sua queda cabe no entanto na ordem das coisas. A fortuna (tyche) é um espécie de acaso que se verifica na ordem das acções humanas, como, por exemplo, vir ao mercado por um motivo completamente diverso e encontrar lá um devedor que restitui a soma devida. A acção deste homem afortunado era feita para um fim mas não para aquele fim: por isso se fala de fortuna (Fis., 11, 5). § 80. A ALMA
Uma parte da física é aquela que estuda a alma. A alma é objecto da física enquanto é forma 281 incorporada na matéria; as formas deste género são precisamente estudadas pela física, enquanto a matemática estuda as formas abstractas ou separadas da matéria. A alma é uma substância que informa e vivifica um determinado corpo. Ela é definida como "O acto (enteléquia) primeiro de um corpo que tem a vida em potência" . A alma está para o corpo como o acto da visão está para o órgão da vista: é a realização final da capacidade que é própria de um corpo orgânico. Como todo o instrumento tem uma função, que é o acto ou actividade do instrumento (como, por exemplo, a função do machado é cortar), assim o corpo enquanto instrumento tem como sua função a de viver e de pensar; e o acto desta função é a alma. Aristóteles distingue três funções fundamentais da alma: a) a função vegetativa, que é a potência nutritiva e reprodutiva e é própria de todos os seres viventes a começar pelas plantas; b) a função sensitiva, que compreende a sensibilidade e o movimento e é própria dos animais e do homem; c) a função intelectiva, que é própria do homem. As funções mais elevadas podem fazer as vezes das funções inferiores, mas não vice-versa; assim no homem a alma intelectiva compreende também as funções que nos animais são desempenhadas pela alma sensitiva e nas plantas pela vegetativa. Além dos cinco sentidos específicos, cada um dos quais fornece sensações particulares (cores, sons, sabores, etc.). há um sentido comum a que Aristóteles atribui uma dupla função: 1) a de constituir a consciência da sensação, isto é, "o sentir do sentir" que não pode pertencer a nenhum sentido particular; 2) a de perceber as determinações sensíveis comuns a vários sentidos como o movimento, o repouso, a figura, a grandeza, o número e a unidade. A sensação em acto coincide com o objecto sensível: por exemplo, o ouvir o som e o próprio 282 som coincidem. Em tal sentido pode dizer-se que se não existissem os sentidos, não conheceriam os objectos sensíveis (se não tivéssemos vista, não conheceríamos as cores). Não conheceríamos em acto: existiriam porém em potência, porque eles só coincidem com a sensibilidade no acto desta. A imaginação distingue-se dos sentidos. Distingue-se também da ciência, que é sempre verdadeira, e da opinião que é acompanhada pela crença na realidade do objecto, porque tal crença falta na imaginação. A imaginação é produzida pela sensação, em acto e as imagens que ela fornece são semelhantes às sensações; podem pois determinar a acção nos homens ou também nos animais quando têm a mente ofuscada pelo sentimento, pelas doenças ou pelo sono. Análoga à da sensibilidade é a função do intelecto. A alma intelectiva recebe as imagens como os sentidos recebem as sensações; o seu objectivo é julgá-las verdadeiras ou falsas, boas ou más; e conforme as julga, aprova-as ou desaprova-as, deseja-as ou afasta-as. O intelecto é pois a capacidade de julgar as imagens fornecidas pelos sentidos. "Ninguém poderia aprender ou compreender nada, se os sentidos nada lhe ensinassem; e tudo quanto se pensa, pensa-se necessariamente com imagens" (De an., 111, 7, 432 a). Todavia, o pensamento não tem nada que ver com a imaginação: é o juízo emitido sobre os objectos da imaginação que os declara verdadeiros ou falsos, bons ou maus.
Como o acto de sentir é idêntico ao objecto inteligível, isto significa que quando o intelecto compreende, o seu acto se identifica com a própria verdade, com o objecto percebido, mais precisamente identifica-se com a essência substancial do próprio objecto (De an., 111, 6, 430 b, 27). Por isso Aristóteles afirma: "a ciência em acto é idêntica ao seu objecto" (lb., 431 a, 1), ou, num sentido 283 mais geral, "a alma é, num certo modo, todos os entes"; com efeito os entes são os sensíveis ou inteligíveis e enquanto a ciência se identifica com os entes inteligíveis, a sensação identifica-se com os sensíveis (1b., 431 b, 20). Todavia esta identidade já não existe quando se considera, não já o conhecimento em acto, mas em potência. Aristóteles insiste na distinção entre intelecto potencial e actual. Este último contém em acto todas as verdades, todos os objectos possíveis da intelecção. Ele age sobre o intelecto potencial como a luz que faz passar a acto as cores que na obscuridade estão em potência: isto é, faz passar a acto as verdades que no intelecto potencial estão apenas em potência. Por isso Aristóteles lhe chama intelecto activo e o considera "separado, impassível, não misturado" (De an., 111, 5). Só ele não morre e dura eternamente, enquanto o intelecto passivo ou potencial se corrompe e sem o primeiro não pode pensar em nada. Se o intelecto activo será do homem, de Deus ou de ambos, em que relações estará com a sensibilidade, qual seja o significado da separação que Aristóteles lhe atribui, são problemas que Aristóteles não estuda e que deverão ser largamente discutidos na escolástica árabe e cristã e no Renascimento. § 81. A ÉTICA Cada arte, cada pesquisa ou como cada acção e cada escolha, são feitas com vista a um fim que nos parece bom e desejável: o fim e o bom coincidem. Os fins das actividades humanas são múltiplos e alguns deles são desejados com vista apenas a fins superiores; por exemplo, desejamos a riqueza, a boa saúde, pela satisfação e os prazeres que podem 284 dar. Mas deve haver um fim supremo, um fim que é desejado por si próprio, e não já enquanto condição ou meio de um fim ulterior. Se os outros fins são bens, este fim será o bem supremo, aquele de que dependem todos os outros. Não há dúvida, segundo Aristóteles, que este fim seja a felicidade. A procura e a determinação desse fim é o objecto primeiro e fundamental da ciência política, porque só no que respeita a ela se pode prescrever aquilo que os homens na sua vida social e como seres individuais, devem fazer ou aprender. Mas em que consiste a felicidade para o homem? Evidentemente só se pode responder a esta pergunta se se determina qual é a missão própria do homem. Cada qual é feliz enquanto faz bem a sua missão: o músico quando toca bem, o construtor quando constrói objectos perfeitos. Mas a missão própria do homem enquanto tal não é a vida vegetativa que ele tem em comum com as plantas, nem a vida dos sentidos que tem em comum com os animais, mas só a vida da razão. Assim o homem só será feliz se viver de acordo com a razão; e esta vida é a virtude. O estudo sobre a felicidade transforma-se também numa indagação sobre a virtude. O prazer está ligado à vida que segue a virtude. Com efeito, ela é a verdadeira actividade do homem; e toda a actividade é acompanhada e coroada pelo prazer (Et. Nic., X 4, 1174 b). Os bens exteriores como a riqueza, o poder ou a beleza, podem, com a sua presença,
facilitar a vida virtuosa ou torná-la mais difícil com a sua ausência: mas não podem determiná-la. A virtude e a maldade só dependem dos homens. Certamente o homem não escolhe o fim, que está nele por natureza, como uma luz que o guia, a julgar rectamente e a escolher o verdadeiro bem (111, 5, 1113 b). Mas a virtude depende precisamente da escolha que se faz dos meios, com vista ao fim supremo. E esta escolha é livre porque 285 depende exclusivamente do homem. Com efeito, Aristóteles chama livre àquele que tem em si o princípio dos seus actos ou é "princípio de si próprio" (111, 3, 1112 b, 15-16). O homem é verdadeiramente livre neste sentido: enquanto é "o princípio e o pai dos seus actos como é dos seus filhos"; e quer a virtude quer o vício são manifestações desta liberdade (111, 5, 1113 b, 10 segs.). Dado que no homem, além da parte racional da alma, há a parte apetitiva que, ainda que carecendo de razão, pode ser dominada e dirigida pela razão, assim há duas virtudes fundamentais: a primeira consiste no próprio exercício da razão e por isso é chamada intelectiva ou racional (dianoetica); a outra consiste no domínio da razão sobre os impulsos sensíveis, determina os bons costumes (ethos-mos), e por isso se chama virtude moral (Ética). A virtude moral consiste na "disposição (hexis, habitatus) de escolher o justo meio (mesótes, mediocritas), adequado à nossa natureza, tal como é determinado pela razão e como poderia determiná-lo o sábio". O justo meio exclui os dois extremos viciosos que pecam um por excesso, o outro por defeito. Esta capacidade de escolha é uma potência (dynamis) que se aperfeiçoa e revigora com o exercício. Os seus diferentes aspectos constituem as várias virtudes éticas. A coragem, que é o justo meio entre a cobardia e a temeridade, gira em torno do que se deve e do que se não deve temer. A temperança, que é o justo meio entre a intemperança e a insensibilidade, diz respeito ao uso moderado dos prazeres. A liberalidade, que é o justo meio entre a avareza e a prodigalidade, diz respeito ao uso prudente das riquezas. A magnanimidade, que é o justo meio entre a vaidade e a humildade, concerne a recta opinião de si próprio. A benignidade, que é o justo meio entre a irascibilidade e a indolência, concerne à ira. 286 A principal entre as virtudes éticas é a justiça, à qual Aristóteles dedica um livro inteiro da Etica (Nicom., V = Eudem., IV). No significado mais gemi, isto é, como conformidade com as leis, a justiça não é uma virtude particular, mas a virtude total e perfeita. Efectivamente, o homem que respeita todas as leis é o homem completamente virtuoso. Mas, além deste significado geral, a justiça tem um significado específico e é então ou distributiva ou comutativa. A justiça distributiva é aquela que preside à distribuição das honras ou do dinheiro ou dos outros bens que Msam dividir-se entre aqueles que pertencem à mesma comunidade. Tais bens devem ser distribuídos segundo os méritos de cada um. Porque a justiça distributiva é semelhante a uma proporção geométrica, na qual as recompensas distribuídas a duas pessoas se relacionam entre si com os seus méritos respectivos. A justiça comutativa, ao contrário, ocupa-se dos contratos, que podem ser voluntários ou involuntários. São contratos voluntários a compra, a venda, o empréstimo, o depósito, o aluguer, etc. Dos contratos involuntários alguns são fraudulentos como o furto, o malefício, a traição, os falsos testemunhos; outros são violentos, como as pancadas, o assassínio, a rapina, a injúria etc. A justiça comutativa é correctiva: procura equilibrar as vantagens e as desvantagens entre os dois contratantes. Nos contratos involuntários, a pena infligida ao réu deve ser proporcionada com o dano por ele provocado. Esta justiça é pois semelhante a uma proporção aritmética (igualdade pura e simples).
O direito funda-se sobre a justiça. Aristóteles distingue o direito privado do direito público, que concerne à vida social dos homens no estado, e divide o direito público em direito legítimo (ou positivo), que é aquele estabelecido nos vários estados, e o direito natural que conserva o seu valor 287 em qualquer lugar, mesmo que não esteja sancionado pelas leis. Distingue do direito a equidade, que é uma correcção da lei mediante o direito natural, necessária pelo facto de que nem sempre, na formulação das leis, é possível determinar todos os casos, pelo que a sua aplicação resultaria às vezes injusta. A virtude intelectiva ou dianoética é a que é própria da alma racional. Ela compreende a ciência, a arte, a prudência, a sabedoria, a inteligência. A ciência é a capacidade demonstrativa (apoditica) que tem por objecto aquilo que não pode acontecer diferentemente do modo que sucede, isto é, o necessário e o eterno. A arte (techne) é a capacidade, acompanhada de razão, de produzir um objecto qualquer; ela concerne portanto à produção (poiesis) que tem sempre um fim fora de si, não à acção (praxis). A prudência (frónesis) é a capacidade unida à razão de agir convenientemente frente aos bens humanos; cabe-lhe determinar o justo meio em que consistem as virtudes morais. A inteligência (nous) é a capacidade de compreender os primeiros princípios de todas as ciências, primeiros princípios que, precisamente como tais, não caem no âmbito das próprias ciências. A sabedoria (sofia) é o grau mais alto da ciência: o sage é aquele que possui ao mesmo tempo ciência e inteligência, que sabe não só deduzir aos princípios, mas julgar da verdade dos mesmos princípios. Enquanto a prudência concerne às coisas humanas e consiste no juízo sobre a sua conveniência, oportunidade e utilidade, a sabedoria refere-se às coisas mais altas e universais. A prudência é sempre prudência humana e não tem valor para seres diferentes ou superiores ao homem; a sabedoria é universal. Por isso é absurdo sustentar que a prudência e a ciência política coincidem com a ciência suprema, pelo menos enquanto não se demonstre que o homem é 288 o ser supremo do universo. Anaxágoras, Tales e outros homens do mesmo tipo eram chamados sages; não prudentes; porque conheciam muitas coisas maravilhosas, difíceis e divinas, mas inúteis aos homens, e se desinteressavam dos bens humanos (Et. Nic., VI, 7, 1141 a). Este contraste entre sabedoria (sofia) e prudência (frónesis) é o reflexo no campo da ética da atitude filosófica fundamental de Aristóteles. Como teoria da substância, a filosofia é uma ciência que não tem nada a ver com a dos valores propriamente humanos; por isso a sabedoria, que consiste na plena posse desta ciência nos seus princípios e nas conclusões, não tem nada que ver com a prudência que é o guia da conduta humana. A sabedoria te... por objecto o necessário que, como tal, nada tem a ver com o homem na medida em que não pode ser modificado por ele: frente ao necessário, é possível uma única atitude, a da pura contemplação (teoria). À amizade dedica Aristóteles os livros VIII e IX da Ética Nicomaqueia. Ela é uma virtude ou pelo menos está estreitamente unida à virtude: em todo o caso é a coisa mais necessária à vida. "Ninguém - diz ele - escolheria viver sem amigos, ainda que estivesse provido em abundância de todos os outros bens". A amizade pode fundar-se sobre o prazer recíproco ou sobre o útil ou sobre o bem. Mas a fundada sobre o útil ou sobre o prazer recíproco é acidental e cai subitamente quando cessa o prazer ou o útil. Ao contrário a amizade que se funda sobre o bem e sobre a virtude é verdadeiramente perfeita porque a sua raiz está na própria natureza das pessoas que a contraem e é portanto estável e firme. "O homem
virtuoso - diz Aristóteles - comporta-se para com o amigo como se comporta consigo mesmo, porque o amigo é um outro ele: decorre daí que, como a cada um a exis289 tência própria é desejável, assim é desejável a do amigo" (Et. Nic. IX, 9, 1170 b, 5). Dado que a virtude como actividade própria do homem é a própria felicidade, a felicidade mais alta consistirá na virtude mais alta e a virtude mais alta é a teorética, que culmina na sabedoria. Com efeito a inteligência é a actividade mais elevada que existe em nós; e o objecto da inteligência é aquele que existe mais alto em nós e fora de nós. O sage basta-se a si mesmo e não tem necessidade, para cultivar e alargar a sua sabedoria, de nada que não tenha em si mesmo. A vida do sábio é feita de serenidade e de paz, pois que não se afadiga por um fim exterior cujo alcance é problemático, mas o fim está na própria actividade da sua inteligência. A vida teorética é portanto uma vida superior à humana: o homem não a vive enquanto é homem, mas enquanto tem em si qualquer coisa de divino. "O homem não deve, como dizem alguns, conhecer enquanto homem as coisas humanas, enquanto mortal as coisas mortais, mas deve tornar-se, na medida do possível, imortal e fazer tudo para viver segundo tudo quanto existe nele de mais elevado: e ainda que isto seja pouco em quantidade, em potência e valor supera todas as outras coisas" (Et. Nic., X, 7, 1177 b). Assim a ética de Aristóteles encerra-se com a afirmação incisiva da superioridade da vida teorética. Este é um ponto em que o afastamento polémico entre Aristóteles e Platão é mais acentuado. Platão não distinguia a sabedoria da prudência: com as duas palavras entendia a mesma coisa, isto é, a conduta racional da vida humana, especialmente da vida social (Rep. 428 b; 433 e). Aristóteles distingue e contrapõe as duas coisas. A prudência tem por objecto os assuntos humanos que são mutáveis e não podem ser incluídos entre as coisas muito elevadas; a sabedoria tem por objecto o ser necessá290 rio. que se liberta de todos os acontecimentos (Et. Nic., VI, 7, 1041 b. 11). Amim a distância que existe entre prudência e sabedoria é a mesma que ocorre entre o homem e o Deus. O que quer dizer que, para Aristóteles, a filosofia tem como objecto fundamental o de levar o homem individual à vida teorética, à pura contemplação do que é necessário; enquanto para Platão tem o objectivo de levar os homens a uma vida em comum, fundada na justiça. § 82. A POLÍTICA Todavia, também segundo Aristóteles, a virtude não é realizável fora da vida social. A origem da vida social está em que o indivíduo não se basta a si próprio: não só no sentido de que não pode por si só prover às suas necessidades, mas também no sentido de que não pode por si, isto é, fora da disciplina imposta pelas leis e pela educação, alcançar a virtude. Por consequência, o estado é uma comunidade que não tem em vista apenas a existência humana, mas a existência materialmente e espiritualmente feliz; e é este motivo pelo qual nenhuma comunidade política não pode ser constituída por escravos ou por animais, os quais não podem participar da felicidade ou de uma vida livremente escolhida (Pol., 111, 9, 1280 a). E a este propósito Aristóteles sustenta que há indivíduos escravos por natureza enquanto incapazes das virtudes mais elevadas e que a distinção entre escravo e livre é tão natural como a que existe entre macho e fêmea e jovem e velho (lb., L, 13, 1p60 a). Entre os que, como Platão, se limitam a delinear um tipo de estado ideal dificilmente realizável e aqueles que, por outro lado, vão em busca de um esquema prático de
constituição e o descobrem em qualquer das constituições já existentes, 291 o problema fundamental é o de encontrar a constituição mais adaptada a todas as cidades: "É necessário ter em mente um governo não só perfeito, mas também realizável e que possa adaptar-se facilmente a todos os povos" (Pal., IV, 1, 1288 b). É necessário portanto propor uma constituição que tenha a sua base nas existentes e vise realizar nela correcções e mudanças que a aproximem da perfeita. Por isso a Política de Aristóteles culmina na teoria da melhor constituição exposta nos dois últimos livros; mas a esta teoria chega ele mediante a consideração crítica das várias constituições existentes e dos problemas a que dão origem. Viu-se que Aristóteles recolheu umas 158 constituições estatais, das quais, no entanto, só uma, a de Atenas, foi encontrada. Evidentemente, deve -ter-se servido deste material para as observações que veio fazendo sobretudo nos livros IV, V, VI, da sua obra, que aparecem compostos mais tarde. Como Platão, Aristóteles distingue três tipos fundamentais de constituições: a monarquia ou governo de um só ; a aristocracia ou governo dos melhores; a democracia ou governo da multidão. Esta última chama-se política, isto é, constituição por antonomásia, quando a multidão governa para o bem de todos. A estes três tipos correspondem outras tantas degenerações quando o governo descuida o bom comum em favor do bem próprio. Com efeito a tirania é uma monarquia que tem por fim o bem do monarca, a oligarquia tem por fim o bem dos possidentes, a democracia o bem dos pobres: nenhuma visa a utilidade comum. Na realidade, pois, cada tipo de constituição pode tomar caracteres distintos. Não existe uma só monarquia e uma só oligarquia, mas estes tipos diversificam-se segundo as instituições nas quais se realizam. Existem também distintas espécies de democracia segundo o governo se funda na igual292 dade absoluta dos cidadãos ou se reserve a cidadão dotados de requisitos especiais. A própria democracia transforma-se numa espécie de tirania quando em detrimento das leis prevalece o arbítrio da multidão. O melhor governo é aquele em que prevalece a classe média, isto é, o dos cidadãos possuidores de uma fortuna modesta. Este tipo de governo é o mais afastado dos excessos que se verificam quando o poder cai nas mãos dos que nada possuem ou daqueles que possuem demasiado. Ao delinear a constituição melhor, em conformidade como o princípio de que todo o tipo de governo é bom, enquanto se adapte à natureza do homem e às condições históricas, Aristóteles não se limita a descrever um governo ideal, mas determina as condições pelas quais um tipo qualquer de governo pode alcançar a sua forma melhor. A primeira e fundamental condição é que a constituição do estado seja tal que proveja à prosperidade material e à vida virtuosa e feliz dos cidadãos. A este propósito têm-se presentes as conclusões da Ética, isto é, que a vida activa não é a única vida Possível para o homem e nem tão-pouco a mais alta e que ao lado dela e acima dela está a vida teorética. Outras condições referem-se ao número dos cidadãos que não deve ser nem demasiado elevado nem demasiado baixo, e às condições geográficas. isto é, ao território do estado. Depois é importante a consideração da índole dos cidadãos que deve ser corajosa e inteligente como a dos Gregos. que são os mais aptos a viver em liberdade e a dominar os outros povos. Também é necessário que na cidade todas as funções estejam bem distribuídas e que se formem as três classes fundamentais, segundo o projecto de Platão, do qual Aristóteles exclui, no entanto, a comunidade da propriedade e das mulheres. É necessário além disso 293 os anciãos, que no estado mandem, pois que ninguém se resigna sem amargura às
condições da obediência se esta não é devida à idade e se não sabe que alcançará, com a idade, a condição superior. Finalmente, o estado deve preocupar-se com a educação dos cidadãos que deve ser uniforme para todos e dirigida não só a adestrar para a guerra mas a preparar para a vida pacífica, para as funções necessárias e úteis e acima de tudo para as acções virtuosas. § 83. A RETóRICA Entre as artes que são necessárias à vida social está a retórica. A retórica é afim da dialéctica: como a dialéctica, não tem um objecto específico porque concerne a todo o tipo e espécie de objecto e todavia é própria de todos os homens porque todos "se ocupam a indagar sobre qualquer tese e a sustê-la, a defender-se e a acusar" (Ret., 1, 1, 1354 a). A função da retórica não é a de persuadir mas de mostrar os meios que são aptos a introduzir à persuasão. A retórica procura descobrir quais são estes meios relativamente a qualquer argumento dado: neste sentido não constitui a técnica própria de um campo especifico. O objecto da retórica é o "verosímil", isto é, o que acontece o mais das vezes (enquanto o objecto da ciência é o necessário, que acontece sempre): o mais, das vezes é o análogo do necessário nas disciplinas cujo objecto é privado de necessidade (lb., 1, 2, 1357 a). Dado que todo o discurso é dirigido a um auditório que é o fim do próprio discurso e o auditório pode ser ou um simples auditor ou um juiz que deve pronunciar-se sobre coisas passadas ou futuras, há três géneros de retórica: a delibe294 rativa, a judicial e a demonstrativa. A retórica deliberativa é a que se volta para coisas futuras e deve persuadir ou dissuadir, demonstrando que qualquer coisa é útil Ou Perniciosa. A retórica judicativa refere-se a factos ocorridos no passado e o seu objectivo é acusar ou defender, persuadindo que tais factos são justos ou injustos. Finalmente, a retórica demonstrativa refere-se a coisas presentes e o seu objectivo é louvá-las ou condená-las como verdadeiras ou falsas, boas ou más. § 84. A POÉTICA A poesia, e em geral a arte, é definida por Aristóteles como imitação. Mas a imitação pode ser feita com meios diferentes e por modos diferentes e dirigir-se a objectos diferentes. Com efeito, pode-se imitar por meio de cores ou de formas como acontece na pintura, ou por meio da voz como ocorre na poesia, ou por meio do som na música. Relativamente ao objecto podem imitar-se ou pessoas superiores ao comum dos homens, como acontece na epopeia e na tragédia, ou pessoas comuns ou inferiores ao comum, como acontece na comédia. Relativamente aos modos da imitação, pode-se imitar narrativamente ou dramaticamente: neste último caso, introduzem-se as diferentes pessoas a agir e a falar directamente, como acontece na tragédia e na comédia. Além destas determinações gerais do conceito da imitação, a Poética de Aristóteles na parte que chegou até nós não contém mais que a teoria da tragédia. Esta define-se como "imitação de uma acção grave e completa em si mesma, que tenha uma certa amplitude, uma linguagem adornada em proporção diferente conforme as diferentes partes; e desenrola-se através de personagens que actuam 295
em cena, não que narrem; e produza finalmente' mediante casos de piedade e de terror, a purificação de tais paixões" (Poet., 6, 1449 b). Aristóteles detém-se especialmente a ilustrar a unidade da acção trágica. Esta deve desenrolar-se com continuidade do princípio ao fim de modo tal que todos os acontecimentos se encadeiem e não seja possível suprimi-los ou mudá-los de lugar, sem mudar e desorganizar a ordem do conjunto. Por isso o objecto da tragédia mais que o verdadeiro é o verosímil, aquilo que pode verificar-se "segundo verosimilhança e necessidade". Por isso, também, ca poesia é mais filosófica e mais elevada que a história: a poesia exprime principalmente o universal, a história o particular (1b., 9, 1451 b). Efectivamente a história narra tudo aquilo que aconteceu a uma dada personagem ou num dado período, segundo a pura e simples sucessão dos acontecimentos; a poesia imita somente o verosímil, o qual como se disse (§ 83) é aquilo que acontece mais geralmente e é portanto o análogo da universalidade (ou da necessidade) própria dos objectos da ciência. Se Platão sustenta que a acção dramática, interessando os espectadores nas paixões violentas agitadas em cena, encoraja neles tais paixões, Aristóteles crê pelo contrário que a tragédia exerce uma função purificadora e liberta a alma do espectador das paixões que a tragédia representa. Aristóteles reconhece o mesmo efeito na música. "Alguns daqueles que são dominados pela piedade, pelo temor ou pelo entusiasmo, quando ouvem cantos orgiáticos como os religiosos, acalmam-se como por efeito duma medicina e de uma catarsis. Por isso é necessário que se submetam a tal acção aqueles que se vêem sujeitos à piedade, ao temor e em geral às paixões, de modo conveniente a cada um, a fim de que se gere em todos uma 296 um alivio aprazível" (Pol., VIII, 7, ris teles vê assim na arte e em particular na poesia e na música um meio potente de educação, e no carácter imitativo da arte já não vê como Platão motivo para considerá-la ilusória. O mundo sensível, que a arte imita, não é para Aristóteles simples aparência, mas é realidade que pode ser objecto de ciência; também a imitação dela através da arte perde portanto o carácter de aparência ilusória. Aristóteles pode assim reconhecer à arte aquela função catártica que lhe dá valor educativo e formativo nos confrontos do homem. Sobre a catarsis, faltam na Poética elementos explícitos que consintam compreender a sua natureza. Intérpretes antigos viram nela um tratamento médico das paixões, uma cura que combate, o semelhante com o semelhante. E não é claro se a catarsis se entende como purificação pelas paixões ou antes como purificação das paixões. Todavia se se considera que a catarsis está ligada ao valor propriamente artístico da tragédia ou da música, pode-se excluir que ela seja, para Aristóteles, apenas uma medicina das paixões. À catarsis está ligado um momento mais alto da vida espiritual, um momento no qual a paixão não está excluída, mas purificada ou exaltada. E efectivamente enquanto a paixão se dirige unicamente ao objecto (coisa ou pessoa) que liga ao homem com o amor ou com o ódio, com o temor ou com a esperança, a arte, apresentando a paixão realizada num complexo ordenado de acontecimentos (como ocorre na tragédia) ou de sons expressivos (como na música), afasta o homem do objecto da paixão para interessá-lo na paixão em si mesma, naquilo que ela é, na sua substância. A paixão tem como seu telos a obtenção do seu objecto, a arte tem como seu telos a paixão na sua realidade representada. Aristóteles inclui isto 297 na sua teoria da catársis. A arte liberta a paixão do seu término natural porque a faz volver à própria paixão, à sua substância realizada na arte.
§ 85. A LÓGICA A organização do saber num sistema de ciências, cada uma das quais se constitui com relativa independência das outras, colocava a Aristóteles o problema da forma geral da ciência. Aristóteles 72) dividia a ciência em três grandes grupos: ciências teóricas, física, matemática e filosofia, que têm por objecto o ser em alguns dos seus aspectos especiais ou o ser em geral (Met., X1, 7, 1064 b); ciências práticas ou normativas, das quais a principal é a política, que têm por objecto a acção; ciências poiéticas que regulam a produção dos objectos. É evidente que estas três espécies de ciências, na medida em que são todas igualmente ciências, têm em comum a forma, isto é, a natureza do seu procedimento. Considerando à parte tal forma. mediante a abstracção de que cada uma das ciências se serve para isolar o seu objecto, obtém-se uma disciplina que descreve o procedimento comum de todas as ciências enquanto tais; e tal disciplina é a lógica, que Aristóteles chama analítica e que ele foi o primeiro a conceber e fundar como uma disciplina em si, utilizando e sistematizando as observações e os resultados dos seus predecessores e especialmente de Platão. Mas, evidentemente, o valor de uma lógica assim entendida depende da legitimidade de distinguir a forma geral das ciências do seu conteúdo, isto é, do objecto particular de cada uma delas: isto depende da legitimidade da abstracção mediante a qual cada ciência singular, incluindo a filosofia, consegue determinar o seu objecto. Por sua vez a legitimi298 dade de abstracção funda-se na teoria da substância. em efeito, considerar a forma separadamente de cada conteúdo particular, só é procedimento legítimo se a forma é, ao mesmo tempo, a substância, isto é, a essência necessária daquilo que se considera. Se a forma não tivesse a validade que lhe vem do ser e não fosse ela só a substância daquilo de que é forma, o considerá-la à parte através da abstracção seria uma falsificação. A abstracção justifica-se portanto apenas como consideração da essência de uma coisa separada das suas particularidades contingentes. A lógica, como procedimento analítico, isto é, resolutivo da forma do pensamento como tal, está portanto fundada sobre a metafísica como teoria da substância e sustém-se e cai com ela. Num passo da Metafísica (IV, 3, 1005 b, 6) em que Aristóteles parece considerar a lógica como a técnica indispensável da investigação, ele tem o cuidado de acrescentar que a consideração dos princípios silogísticos diz respeito ao filósofo e a quem especula sobre a natureza de qualquer substância. A lógica é assim reconduzida por ele próprio ao seu pressuposto indispensável: a teoria da substância. Por outro lado, esta teoria é o fundamento da verdade de todo o conhecimento intelectual. A forma é ao mesmo tempo ratio essendi e ratio cognoscendi do ser: Como ratio essendi é substância, como ratio cognoscendi é conceito ou definição. Ela garante pois a correspondência entre o conceito e a substância e assim a verdade do conhecimento e a racionalidade do ser. Por isso Aristóteles pode dizer que o ser e a verdade estão numa relação recíproca: que, por exemplo, se o homem é, a afirmação que o homem é, é verdadeira; e reciprocamente se é verdadeira a afirmação de que é, o homem é. Mas Aristóteles acrescenta que nesta relação o fundamento é o ser e que o ser não é 299 tal porque a afirmação que o concerne é verdadeira, mas a afirmação é verdadeira porque o ser é tal como ela o expressa (Cat.. 12, 14 b, 21). Noutros termos, a verdade do conceito funda-se na substância e não vice-versa: a metafísica (ou em geral a ciência) precede e fundamenta a lógica.
Não pode pois sustentar-se que Aristóteles tenha querido fundar a lógica como ciência "formal", no sentido mo-demo do termo, isto é, como ciência sem objecto ou sem conteúdo, constituída unicamente por proposições tautológicas. A lógica tem um objecto, segundo Aristóteles, e este objecto é a estrutura da ciência em geral que é também a própria estrutura do ser que é objecto da ciência. Nesta base, Aristóteles afirma que a lógica deve analisar a linguagem apofântica ou declarativa que é característica das ciências teoréticas, na qual têm lugar as determinações; de verdadeiro e falso se a união ou separação dos termos (em que consiste uma proposição) reproduz ou não a união ou a separação das coisas. Aristóteles não nega que existam discursos não apofânticos, por exemplo a oração súplica. Mas privilegiando o discurso apofântico, faz dele a verdadeira linguagem, aquela sobre a qual as outras mais ou menos se modelam ou do ponto de vista da qual devem ser julgadas. Efectivamente a poética e a retórica que se ocupam de linguagens não apofânticas são tratadas por Aristóteles à parte e subordinadamente à analítica. A linguagem apofântica não tem nada de convencional. Segundo Aristóteles, as palavras da linguagem são convencionais: tanto assim é verdade que são diferentes duma língua para outra. Mas elas referem-se a "afecções da alma que são as mesmas para todos e constituem imagens dos objectos que são os mesmos para todos" (De inierpr., 1, 16 a, 3). A combinação das palavras é comandada por isso, através da imagem mental, 300 pela combinação efectiva das coisas que lhes correspondem: assim.. por exemplo, só se podem combinar as palavras "homem" e "corre" na proposição "o homem corre" se na realidade o homem corre. Pode dizer-se portanto que a linguagem é para Aristóteles convencional no seu dicionário, não na sua sintaxe: a lógica deve voltar-se portanto para esta sintaxe para analisar a estrutura fundamental do conhecimento científico e do ser. As partes do Organon aristotélico, na ordem em que chegarem até nós, tratam de objectos que vão do simples ao complexo, começando pelos mais simples, isto é, pelos elementos. Tais elementos são considerados e classificados nas Categorias. "Categorias" significa predicados; mas na realidade Aristóteles trata no livro em questão de todos os termos que "não entram em nenhuma combinação", porque são considerados isoladamente como "homem", "branco", "corre", "vence", etc. Dos termos assim compreendidos, não se pode dizer nem que são verdadeiros nem que são falsos, pois verdadeira ou falsa é apenas uma combinação qualquer dos termos, por exemplo, "o homem corre". Aristóteles classifica-os em dez categorias 1) a substância, por exemplo, homem; 2) a quantidade, por exemplo, de dois côvados-, 3) a qualidade, por exemplo, branco, 4) a relação, por exemplo, maior; 5) o lugar, por exemplo, no liceu; 6) o tempo, por exemplo, o ano passado; 7) a situação, por exemplo, está sentado; 8) o ter, por exemplo, tem os sapatos; 9) o agir, por exemplo, queima; 10) o sofrer, por exemplo, é queimado. obviamente, dado o assentamento geral da lógica aristotélica, a classificação das categorias não visa só os termos elementares da linguagem mas também as coisas a que se referem: mais, visa os primeiros só porque, antes de mais, considera estes últimos. Conformemente à direcção da sua metafísica, Aris301 tóteles considera como categoria fundamental a substância. Um dos pontos mais famosos do escrito é a distinção entre substâncias primeiras e substâncias segundas. A substância primeira é a substância no sentido próprio que não pode nunca ser usada como predicado de um sujeito e nunca pode existir num outro sujeito: por exemplo, este homem ou aquele cavalo. As substâncias segundas são ao contrário as espécies e os géneros: por exemplo a
espécie homem, a que cada homem determinado pertence, e o género animal a que pertence a espécie homem juntamente com as outras espécies. Porquanto considere de algum modo justificado chamar substâncias às espécies e aos géneros que servem para definir as substâncias primeiras, Aristóteles repara que só as substâncias primeiras "são substâncias no sentido mais preciso, na medida em que estão na base de todos os outros objectos" (2 a, 37). No livro Sobre a interpretação, Aristóteles examina as combinações dos termos que se chamam enunciados declarativos (logoi apophantikoi) ou proposições (protaseis), isto é, as frases que constituem asserções e não já súplicas, ordens, exortações, etc. A asserção pode ser afirmativa ou negativa segundo "atribui alguma coisa a alguma coisa" ou "separa alguma coisa de alguma coisa". Por outro lado pode ser universal ou singular: é universal quando o sujeito é universal (entendendo-se por universal "aquilo que por natureza se predica de várias coisas", por exemplo: homem; é singular quando o sujeito é um ente singular, por exemplo Callia. Mas um mesmo termo universal pode ser tomado numa proposição quer na sua universalidade, como quando se afirma "todo o homem é branco", quer na sua particularidade, como quando se afirma "alguns homens são brancos". Aristóteles preocupa-se em estabelecer a relação entre a proposição universal 302 e a proposição particular, cada uma das quais pode por sua vez ser afirmativa ou negativa. Estas relações resultam do esquema seguinte: universal afirmativa (A) todo o homem é branco; Universal negativa (E) Particular afirmativa (i) (por uma questão de apresentação gráfica, o esquema não está igual ao do original) O esquema foi construído desta maneira (que reflecte exactamente a doutrina aristotélica) pelos Lógicos medievais que lhe chamaram "quadrado dos opostos" e que indicaram as várias espécies de proposições com as letras maiúsculas que foram usadas. Como resulta daí, Aristóteles chamou contrária a oposição entre a proposição universal afirmativa e a particular negativa e contraditória a oposição entre a universal afirmativa e a universal negativa. A relação entre a particular afirmativa e a particular negativa foi chamada pelos Lógicos medievais oposição subcontrária. Trata-se de uma oposição para a qual, segundo Aristóteles, não é válido o princípio da contradição. Com efeito, nas duas proposições "alguns homens são brancos", "alguns homens não são brancos", podem ser ambas verdadeiras. Pelo contrário, para as proposições que estão entre si em oposição contrária e contraditória, o princípio de contradição é rigorosamente válido. Uma delas tem de ser falsa e a outra tem de ser verdadeira. Esta segunda existência (isto é, que uma delas deve ser verdadeira) é a expressa pelo princípio que muito mais tarde se chamou do "terceiro excluído" e que Aristóteles, embora sem distingui-lo do princípio da contradição, expressao e defende-o várias vezes (Met., IV, 7. 1011 b, 23; X, 7, 1057 a, 33), afirmando que "entre os opostos contraditórios não há um 303 meio". Todavia Aristóteles considera uma dificuldade que pode surgir do uso deste Princípio quanto aos acontecimentos futuros. Se se afirma "amanhã -haverá uma batalha naval" e "amanhã não haverá uma batalha naval", destas duas proposições contraditórias uma deve ser necessariamente verdadeira. Mas se uma delas é necessariamente verdadeira, por exemplo, aquela que afirma "amanhã não haverá uma batalha naval", isto quer dizer que necessariamente amanhã não haverá uma batalha naval; verdadeiramente porque é necessariamente verdadeiro que "amanhã não haverá uma batalha naval". Em tal
caso do uso do princípio do terceiro excluído, referido aos acontecimentos futuros, surgiria a tese da necessidade de todos os acontecimentos, mesmo daqueles que são devidos à escolha do homem. Aristóteles não afirma que estas consequências sejam legítimas e que todos os acontecimentos aconteçam por necessidade. Uma das duas coisas expressas por uma proposição contraditória necessariamente se verificará no futuro, mas esta necessidade não assume qual das duas coisas é que se verificará. Noutros termos, não é necessário, atendo-se ao princípio do terceiro excluído, nem que amanhã haja nem que amanhã não haja uma batalha naval, qualquer que seja a alternativa que se verificará amanhã. Mas é necessário que amanhã aconteça ou não aconteça uma batalha naval. Noutros termos, a necessidade consiste na impossibilidade de sair da alternativa de uma contradição, não no verificar-se duma ou doutra destas alternativas (19-a, 32). Aristóteles não nota que, se a alternativa é necessária, ela não pode ser senão alternativa, isto é, não pode decidir-se nem num sentido nem no outro: pelo que seria necessária precisamente a sua indeterminação; e amanhã não poderá nem haver nem não haver uma batalha naval. Como quer que seja, a solução de 304 Aristóteles e toda a discussão do caso mostram claramente o primado que ele atribui a uma das duas modalidades fundamentais das proposições, isto é, precisamente à necessidade. A outra modalidade de que fala e que também permaneceu tradicional na lógica é a da possibilidade. Mas a própria possibilidade é definida por Aristóteles como não-impossibilidade, isto é, como simples negação da necessidade negativa ("impossibilidade" significa de facto "necessidade que não seja"). E só na base desta definição do possível, ele pode afirmar que também o necessário é possível porque aquilo que é necessariamente, não deve ser impossível. Mas a redução do possível a "não impossível" demonstra como tem andado completamente esquecido, na lógica de Aristóteles, o significado da possibilidade que Platão tinha esclarecido como fundamento da dialéctica (§ 56). Os Primeiros Analíticos contêm a teoria aristotélica do raciocínio. O raciocínio típico é, segundo Aristóteles, o dedutivo ou silogismo: definido como "um discurso em que, postas tais coisas, outras se derivam delas necessariamente" (24 b, 18). As características fundamentais do silogismo aristotélico são: 1) o seu carácter mediato; 2) a sua necessidade. O carácter mediato do silogismo depende do facto de que silogismo é a contrapartida lógico-linguística do conceito de substância. Em virtude disto, a relação entre duas determinações de uma coisa só se pode estabelecer na base daquilo que a coisa é necessariamente, isto é, da sua substância, por exemplo, se se quer decidir se o homem é mortal, apenas se pode encarar a substância do homem (aquilo que o homem não pode não ser) e raciocinar assim: todo o homem é animal, todo o animal é mortal, portanto todo o homem é mortal. A determinação "animal", necessariamente incluída na substância "homem", permite concluir da mor305 talidade do próprio homem. Neste sentido diz-se que a noção "animal" fez de termo médio do silogismo: ela representa no silogismo a substância, ou a causa ou a razão, e que só ela torna possível a conclusão (94 a, 20): o homem é mortal porque, e só porque, é animal. O silogismo tem portanto três termos: o sujeito e o predicado da conclusão e o termo médio. Mas é a f unção do termo médio que determina a figura (schemata) do silogismo. Na primeira figura, o termo médio faz de predicado na primeira premissa e de sujeito na outra, como no silogismo agora citado. Na segunda figura, o termo médio faz de predicado em ambas as premissas (por exemplo, "Nenhuma pedra é animal, todo o homem é animal, logo nenhum homem é pedra"). Nesta figura, uma das premissas e a conclusão são
negativas. Na terceira figura o termo médio faz de sujeito em ambas as premissas (por exemplo, "Todo o homem é substância, todo o homem é animal, logo alguns animais são substâncias"). Nesta figura a conclusão é sempre particular. Cada uma das três figuras se divide depois numa variedade de modos, segundo as premissas são universais ou particulares, afirmativas ou negativas. Aristóteles levou até a um certo ponto esta casuística dos modos silogísticos que na lógica medieval devia encontrar o seu fecho, mesmo em relação aos desenvolvimentos que a própria lógica sofreu na antiguidade por obra dos Aristotélicos e dos Estoicos. O silogismo é por definição dedução necessária: por isso a sua forma primária e privilegiada é o silogismo necessário, que Aristóteles chama também demonstrativo ou científico. Dos silogismos necessários, a primeira e melhor espécie é a dos silogismos ostensivos que Aristóteles contrapõe aos que partem de uma hipótese. Estes últiMos não são aqueles que se chamarão em seguida "hipotéticos" (nos quais a premissa maior 4 cons306 tituída por uma condicional). mas aqueles cuja Premissa maior não é a conclusão de um Outro silogismo nem é evidente por si, mas é tomada por via de hipótese. Um de tais silogismos é aquele que opera a redução ao absurdo. Entre os silogismos ostensivos mais perfeitos estão os silogismos universais da primeira figura, aos quais é possível reconduzir todas as outras formas do silogismo. Finalmente, do silogismo dedutivo distingue-se o silogismo indutivo ou indução, que é a outra das duas vias fundamentais através das quais o homem alcança as próprias crenças (68 b, 13). A indução, segundo Aristóteles, é uma dedução que, em vez de deduzir um termo do outro mediante o termo médio (por exemplo, a mortalidade do homem mediante o conceito de animal), como faz o silogismo verdadeiro e legítimo, deduz o termo médio de um extremo, valendo-se do outro extremo. Por exemplo, depois de ter verificado que o homem, cavalo e o macho (1.O termo) são animais sem bílis (termo médio) e que o homem, o cavalo e o macho são de longa vida (2.O termo) deduz que todos os animais sem bílis são de longa vida: na qual conclusão compara o termo médio e um extremo. O "ser sem bílis" é, neste caso, o termo médio, porque é a razão ou a causa pela qual o homem, o cavalo e o macho são de longa vida. A indução é válida apenas se se esgotar em todos os casos possíveis; se, no exemplo em exame, o homem, o cavalo e o macho são todos animais sem bílis. Por isso, é de uso limitado e não pode suplantar o silogismo dedutivo, semo se para o homem é um procedimento mais fácil e claro (68 b, 15 segs.). Aristóteles sustenta por isso que pode ser usado não na ciência, mas na dialéctica e na oratória, isto é, como instrumento de exercício ou de persuasão (Ret., 1, 2, 1356 b, 13). 307 Nos Segundos Analíticos, Aristóteles examina as premissas do silogismo e o fundamento da sua validade. Aristóteles parte do princípio de que toda a doutrina ou disciplina deriva de um conhecimento preexistente" (71 a, 1). Para que o silogismo conclua necessariamente, as premissas de que deriva devem por sua vez ser necessárias. E para ser tais, devem ser, em si próprias, princípios verdadeiros, absolutamente primeiros e imediatos; e, no que respeita à conclusão, mais cognoscíveis, anteriores à conclusão e causa dela (71 b, 19). "Imediatos" significa que são indemonstráveis, embora evidentes por si próprios: pois que, se não fossem tais, haveria princípios dos princípios e assim até ao infinito (90 b, 24). Alguns destes princípios são comuns a todas ciências outros são próprios de cada ciência. Comum é, por exemplo, o princípio: se de dois objectos iguais se tiram objectos iguais, os restos são iguais. Especiais são por exemplo os seguintes princípios da geometria: a linha tem a seguinte natureza; a linha recta tem a seguinte natureza, etc. (76 a, 37). Mas os princípios, especialmente os princípios particulares, não são outra coisa, segundo Aristóteles, senão as definições e as definições são possíveis só pela substância ou pela
essência necessária. (90 b, 30). A validade dos princípios em que se funda a ciência consiste por isso em serem eles expressão da substância ou, melhor, do género das substâncias sobre que versa uma ciência particular; e pois que a substância é causa de todas as suas propriedades e determinações como os princípios são causa das conclusões que o silogismo delas deriva, todo o conhecimento é conhecimento de causas. Como dissemos a propósito da ética, Aristóteles admite um órgão específico para a intuição dos primeiros princípios que é o intelecto: uma das virtudes dianoéticas, isto é, dos hábitos superiores 308 racionais do homem (§ 81). Como virtude ou hábito racional, o intelecto não é uma faculdade natural e inata mas, como todas as outras virtudes, forma-se gradualmente através da repetição e do exercício. Em particular, forma-se a partir da sensação. Da sensação deriva a lembrança e da lembrança renovada dum mesmo objecto nasce a experiência. Depois, na base da experiência, se consegue surpreender a substância que é una e idêntica num conjunto de objectos, tem-se então o intelecto, que é o princípio da arte da ciência. Por consequência, o conhecimento sensível condiciona, segundo Aristóteles, a aquisição do intelecto dos primeiros princípios e também de toda a ciência; mas não condiciona a validade da ciência. Tal validade é, segundo Aristóteles, completamente independente das condições que permitem ao homem alcançar a ciência e consiste unicamente na necessidade dos primeiros princípios e na necessidade das demonstrações que daí resultam. Enquanto os Primeiros e Segundos Analíticos têm por objecto a ciência, os Tópicos têm por objecto a dialéctica. A dialéctica distingue-se da ciência pela natureza dos seus princípios: os princípios da ciência são necessários, isto é, absolutamente verdadeiros, os princípios da dialéctica são prováveis, isto é, "parecem aceitáveis a todos ou aos mais ou aos sábios e entre estes ou a todos ou aos mais ou aos mais notáveis e ilustres" (100 b, '21). Fundados em princípios deste género são os raciocínios usados na oratória forense ou política (que Aristóteles estuda na Retórica), quer nas discussões, quer nas que são feitas com o simples objectivo de exercitar-se na arte de raciocinar. A maior parte dos Tópicos, é dedicada ao estudo dos argumentos que se usam nas discussões: como se disse, os Tópicos de Aristóteles são, no seu corpo principal, a primeira formulação da lógica 309 aristotélica, a que ele concebeu debaixo da influência do platonismo, que mantinha a discussão dialógica como o único método de pesquisa. A análise de Aristóteles visa substancialmente isolar, dividir classificar e valorizar no seu valor demonstrativo (isto é, relativamente às formas correspondentes do silogismo científico) os lugares lógicos, isto é, os esquemas argumentativos que podem ser usados na discussão. No âmbito da dialéctica encontram também lugar e reconhecimento os problemas: pois que estes, enquanto são constituídos por uma pergunta que pode ter duas respostas contraditórias, não nascem nem quando se trata de deduzir consequências necessárias de premissas necessárias (como acontece na ciência) nem a propósito daquilo que a ninguém aparece como aceitável, mas sim naquela esfera do provável que é própria da dialéctica. (104 a; 104 b, 3). Assim a que aparecera a Platão como a ciência filosófica por excelência, a dialéctica, é confinada por Aristóteles numa zona marginal da ciência e inferior a ela; e adquire um significado totalmente diverso. Certamente, a dialéctica platónica não tem o carácter de necessidade que Platão atribui à ciência; mas não tem este carácter porque não o tem mesmo o, próprio ser que é seu objecto e que é definido por Platão como possibilidade. Assim a ausência de necessidade que é para Aristóteles a deficiência fundamental da dialéctica
platónica, que ele chama "silogismo fraco" (Pr. An., 1, 31, 46 a, 31), não é tal para Platão que a considera antes como condição indispensável para que o procedimento dialéctico possa submeter a crítica as suas próprias premissas e mudar oportunamente tais premissas segundo a complexidade do objecto. Enfim, nas Refutações (elenchi) sofísticas, Aristóteles examina os raciocínios refutadores ou erísticos dos Sofistas. Ele entende por raciocínios críticos aquele em que as premissas não são nem 310 necessárias (como as premissas da ciência) nem prováveis, (como as da dialéctica), mas só aParentemente prováveis. os argumentos erísticos, a que Aristóteles chama sofismas e que os Latinos indicaram com o termo de falácias, são divididos por Aristóteles em duas grandes classes: os que dependem do modo de exprimir-se e aqueles que são independentes disso. Exemplo dos primeiros é a anjibolia que consiste no uso de expressões que têm um significado duplo e que são tomadas ora num ora noutro destes significados. Por exemplo, quando se diz: "aquilo que deve ser é bem", mas "o mal deve ser; logo é bem", o "deve sem, na primeira premissa é tomado como aquilo que é desejável que seja e na segunda como aquilo que é inevitável. Da segunda espécie de falácias, um exemplo é a petição de princípio que consiste em tomar, de forma dissimulada, como premissa da demonstração, aquilo que se deveria demonstrar. NOTA BIBLIOGRÁFICA 67. Chegaram até nós as seguintes e antigas vidas de Aristóteles: 1.- DIõGENEs LAÊRcio, V. cap. 1 segs.; 2.1 DIONISIO DE ~CARNAsso na carta a Ammeo, cap. 5; 3.* Vida menagiana, assim chamada pelo seu editor Menagio; 4.o Vida neoplatõnlca, que nos chegou em três redacçõ es distintas; SUIDAS, Léxico, na palavra Arlstõteles; 6.* Biografias sirlaco-ãrabes compostas entre os séculos V e VM. ]Entre as reconstruçõ es modernas: ZELLER, 11, 2, u. 1 segs.; GoMPERz, M, p. 20 segs.; JAMER, A~., p. 11 sega., 133 sega., 149 segs.. O testamento de Aristóteles foi-nos conservado por DIõGFNEs LAÉRcio, V, 11. § 68. Sobre o problema dos escritos aristotélicos: JAEGER, Op. Cit.; MORFAU, As listas antigas das ~as de Aristótelw, Lovaina, 1951.-Uma tentativa para revolucionar a atribuição dos escritos aristotélicos encontra-se em ZURCITER, Aristotel~ Werk und Gei8t, Paderbon, 1952. Sobre a cronologia das obras lógicas 311 de Aristõteles: P. GomKE, Die Enatchung der ariBtoteltechen Logik, Berlim, 1936; F. NUYENS, LIéVOIUt" de Ia psychologie d'Aritote, UYvaina, 1948, e os autores do volume colectivo Autour d' Aristote, Lovaina, 1955, negam que o livro XII da Metafí&ica seja uma obra juvenil, segundo a tese de Jaeger, mas sem argumentos válidos. Cfr. M. UNTERSTEINER, In. "Rivista di filologia elassáca>. § 69. Os fragmentos dos escritos exotéricos foram recolhidos por VALENTIN ROSE, Leipzig, 1866. Veja-se também: WALZER, Aristotelis dialogorum fragn~ta, Florença, 1934. Sobre as obras perdidas de Aristóteles: JAMER, Op. Cit.; BIGNONF, L'Aristotele perdudo e Ia formazione filosofica di Epicuro, 2 vols, Florença, s. d.. § 70. A edição fundamental das obras de Aristóteles é a da Academia das Ciências de Berlim ao cuidado de Bekker (1831), a numeração de cujas páginas vem reproduzida em todas as edições e serve para as citações. A e-asa edição foi acrescentada o utilíssimo Indice
de BONITZ. Notável também a edição Firmán-Didot, 4 vols., Pari.3, 1849-69, com tradução latina. Numerosissimas as edições poateriores das obra6 aristotélicas, entre as quaL9 é Importante a que Ross publicou na Oxford University Press. Do próprio Ross é fundamental a edição comentada da Metaf~a, 2 vols., Oxford, 1924; ainda mais a monografia Aristotele, trad. ital., Bari, 1946. Esta é actualmente a melhor obra geral sobre Aristételes. Na historiografia moderna a interpretação da figura de Aristóteles tomou duas direcções simétricas e opostas: a que faz de Aristóteles um naturalista e um empirista; aquela que faz dele um espiritualista. Como exemplo da primeira interpretação: C. PIAT, Aristote, Paris, 1912; J. BURNET, Aristotle, Londres, 1924. A segunda interpretação foi iniciada por F. RAVAISSON, Essai sur Ia métaphy8ique d'Aristote, Paris, 1913, e encontrou a sua melhor expressão na monografia de O. HAMELIN, Le système d'Aristote, Paris, 1920. § 71. Que a elegia se referia a Sócrates é a ~tese de GompERz, II, p. 72, que contradiz os testemunhos antigos e é desmentida pela crítica recente: JAMER, p. 138 segs.; BIGNONE, I, p. 213 segs.-Sobre as duas fases da Metaffsica: JAMER, cap. 4. H 73.-74. A doutrina da substância exposta nos livros VII e VIII da Metafísica é o resultado mais 312 maduro da Investigação "totélica, segundo as coaclusões de Jaeger. § 75. A crítica a Platão repete-se multas vezes na M~1~, I, cap. 9; VII, cap. 13; 14 e 15; XH1, cap. 4 e 5; XIV, cap. 1 o 2. A forma maIs organizada da crítica é a expoeta no livro XII ; CHERNISS, Ari8totWs Criti~ of Plato and the Aca-demy, John HopkIns Univ. Preas, 1944. § 76. A doutrina das quatro causas está na Met., 1, 3, 983 a, e na Fís., 11, 3, 194 b. § 77. A potência e ao acto dedica Aristóteles todo o livro EK da, Met., no qual se fundamentou a exposição do texto. J. OWENS, The Doctrine of Being in the Aristotelian Metaphysic8, Torontoi 1951. § 78. Sobre a substância imóvel, veja-se Met., Xil, 8, 1072 a segs. e Fís., VUT, 5, 256 b, 20. A doutrina das outras inteligências motrizes está no cap. 8 do mesmo livro XII. H. VON ARNIM Die Entstehung der Gotte%1ehre des Aristotele, Viena, 1931. § 79- Sobre a física aristotélica: MANSION, Introduction à Ia physique aristotélicienne, Lovaina, 1913; M. RANQUAT, Aristote naturaliste, Paris, 1932; J. DE TONQUÉDEC, Qu_stion-s de cosmologie e de physique chez Aristote et St. Thomas, Paris, 1950. Uma tentativa para determinar a sucessão cronológica dos escritos recolhidos na Física foi feito por RUNNER, The Develo~nt of Ari-stotIe i11ustrated from the earliest books of the Physics, Kanipden, 1951. A ordem seria esta: livro VI (composto cerca de 361); livro I e parte do II, livro V e VI entre os anos 346 e 337. § SO. Sobre a psicologia: C. W. SHUTE, The Psychology of Aristotle, Nova lorque, 1947. § 81. Sobre a ética: H. VON ARNIM, Die drei Aristotelischen Ethiken, Viena, 1924, e
Eudemische Ethik und Metaphysik, Viena, 1928; WALzER, Magna Moralia und Aristotelische Ethik, Berlim, 1929; HAmBURGER, MoTaIs and Law: the Growth of ArístotWs Lega Theory, New Haven, 1951; J. A. THOMSOM, The Ethics Of Arístotle, Londres, 1953. § 82. Sobre a politica: BARKER, Political Thought Of Plato and Aristotle, Londres, 1906; H. VON ARNIM, Zur Entstehungsge,,,chichte der aristotelischen Politik, Viena, 1954. § 83. Sobre a retórica: ZELLER, 11, 2, p. 754 segs.; GOMPERZ, IIII, cap. 36-38. § 84. Sobre a poética: A. Rostagni, La poetica XAristotele, Turini, 1927; S. H. BUTC=, AristotIeIs 313 Theory of Poetry and Fine Art8, Nova Iorque, 1955; GMALD E. IM , Arl[8tOtW8 P00~ The ArPUM~, Leiden, 1957. § 86. Tradução Italiana de Organon, com introdução e notas de G. 001", Turim, 1955.-P~L, Ge8hichte der Log., I, p. 87 segs.; C~EDO, I jundamenti deUa Logica ari8totelica, Florença; " BLOND, Logique et méthode cheo A~ote, Paria, 1939; C. A. VIANo, La logica di Aristot^ Turim, 1955.-Para uma valoração da lógica aristotélica do ponto de vista da lógica contemporânea: J. LUXASIEWICS, ArtatotWa Syllogiatic fr<"n the Standpoint o/ Modem Pormal Logio, 2.1 ed., Oxford, 1957; W. KNEALE-M. KN~, The Devel~ent of Logic, Oxford, 1962, p 23-112 314 INDICE PRE)FACIO DA PRIMEIRA EDIÇAO EDIÇAO ... ... 15
... ... 7 PRMFACIO DA SEGUNDA
PRDdEIRA PARIT, FILOSOFIA ANTIGA I-ORIGMN8 E CARACTER DA F11,0SOF7A GREGA .. . ... ... ... ... ... 19 II-A ESCOLA MNICA ... ... ... ... ... 35 M-A ESOOLA PITAGORICA ... ... ... 53 rV_A ESOOLA ELEATICA ... ... ... ... 63 V-OS FISICOS POSTERIORES ... ... ... 81 VI - A SOFISTICA. ... ... ... ... ... ... 97 VII - SWRATES ... ... ... ... ... ... ... 115 VM -AS ESCOLAS SOCRATICAS ... ... ... 133 IX - PLATA0 ... ... ... ... ... ... ... 147 X -A ANTIGA ACADE3 225 )CI - ARISTÓTELES ... ... ... ... ... ... 233 Este livro acabou de se imprimir em Julho de 1976 para a EDITORIAL PRESENÇA, LDA. na
. ... ... ... ...
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História da Filosofia Segundo volume Nicola A bbagnano DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO: ÂNGELO MIGUEL ABRANTES HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME II TRADUÇÃO DE: ANTÓNIO BORGES COELHO CAPA DE: J., C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES ,@@0sé Falcão, 57 - Porto EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 1969 TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Cop3right by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. R. Augusto Gil, 2 c@E. - Lisboa XIII A ESCOLA PERIPATÉTICA § 86. TEOFRASTO Assim como a velha Academia continua a última fase do ensinamento platónico, também A escola peripatética apresenta as características do último período da actividade de
Aristóteles, dedicado principalmente à organização do trabalho científico e a investigações particulares. Ã morte de Aristóteles, sucedeu ao mestre na direcção da escola Teofrasto de Eresso, em Lesbos que a dirigiu até à sua morte, ocorrida entre 288 e 286 a.C. A sua actividade científica orientou-se sobretudo para o campo da Botânica. Conservaram-se duas obras: História das Plantas e As Causas das Plantas, que fizeram dele o mestre daquela disciplina durante toda a Antiguidade e até ao final da Idade Média. Foi também autor das Opiniões Físicas, uma espécie de história das doutrinas físicas de Tales a Platão e a Xenócrates, da qual nos restam alguns fragmentos. Também se conservou um escrito moral, Os caracteres. Teofrasto formulou numerosas críticas a pontos concretos da doutrina aristotélica, mas manteve-se fiel aos ensinamentos fundamentais do mestre. Contra a doutrina do intelecto activo objectou que são incompatíveis com a função daquele intelecto o esquecimento e o erro. Contra o universal finalismo das coisas, professado por Aristóteles, notou que, na natureza, muitas coisas não obedecem à tendência para o fim e, se esta tendência é própria dos animais, não se revela nos seres inanimados que são os mais numerosos na natureza. Em compensação defende a doutrina aristotélica da, eternidade do mundo contra as objecções que lhe vinham sendo feitas. Na obra Os caracteres, que provavelmente não nos chegou na sua forma original mas numa redacção retocada, descreve com uma certa- argúcia trinta tipos de caracteres morais (o importuno, o vaidoso, o descontente, o fanfarrão, etc.) Pode dizer-se que Teofrasto aplicou à vida moral, nesta obra, o mesmo método descritivo empregado por ele no estudo da Botânica. § 87. OUTROS DISCíPULOS DE ARISTóTELES Ao lado de Teofrasto, o mais importante dos discípulo imediatos de Aristóteles é Eudemo de Rodes, autor de numerosos escritos de história da ciência. Eudemo é designado como "o mais fiel"> dos discípulos de Aristóteles. Foi o editor da obra moral de Aristóteles que é designada precisamente pelo seu nome (Ética Eudemia) e que alguns consideram como obra sua. Aristóxeno, de Tarento retomou a doutrina pitagórica da alma como harmonia, sustentada por Símias no Fédon platónico. As suas simpatias pelo pitagorismo manifestam-se também no interesse que sentiu pela música, à qual dedicou uma obra intitulada Harmatúa, de que nos restam fragmentos. Foi também autor de biografias de filósofos, em particular de Pitágoras e de Platão. Dicearco de Messina afirmou, em oposição a Aristóteles e a Teofrasto, ia superioridade da vida prática sobre a vida teórica. Na sua obra, Vida da Grécia, de que nos restam poucos fragmentos, delineou uma história da civilização grega. , No Tripolítico sustentou que a melhor constituição é uma mescla de monarquia, aristocracia e democracia como a que se havia desenvolvido em Esparta. § 88. ESTRATÃO A Teofrasto sucedeu na direcção da escola Estratão de Lâmpsaco, que a exerceu durante dezoito anos. O sentido da sua investigação é indicado pelo apodo de "o físico".
De facto procurou conciliar Aristóteles e Demócrito. De Demócrito tomou a doutrina dos átomos e do espaço vazio; mas, diferentemente de Demócrito e conformemente a Aristóteles, considerou que o espaço vazio não se estende até ao infinito, pira lá dos confins do mundo, mas apenas no interior deste entire os átomos. Alé m disso, segundo Estratão, os corpúsculos são dotados de certas qualidades, especialmente de calor e de frio. Na sua doutrina sobre a ordem e a constituição do mundo, Estratão aproximava-se muito mais de Demócrito do que de Aristóteles. Não se servia da divindade para explicar o nascimento do mundo e recorria à necessidade da natureza ou pelo menos identificava com ela a acção de Deus. Estratão afirmou energicamente a unidade da alma. Por causa desta unidade não é possível uma separação nítida entre sensação e pensamento. " Sem o pensamento -dizia ele - não há sensação." Mas, por outro lado, tanto o pensamento como a sensação não são mais que movimento e deste modo voltam a entrar no mecanismo geral da natureza. Depois de Estratão, a escola peripatética continuou o seu trabalho através de numerosos representantes dos quais nos restam escassas notícias e fragmentos. Mas estes dedicaramse todos a investigações naturalistas particulares e assim não trouxeram contributos relevantes à ulterior elaboração da filosofia aristotélica. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 86. Para os escritos da ~Ia aristotélica em geral cfr. a colectânea Die Schule des Aristoteles, Texte und Kommentar, editada por Wehrli em BasEciaFontes para a vida, os escritos e a doutrina de Teofrasto: DióGENEs LAÉRCIO, V, 36 ss.; REGENBOGEN, Theophrastos von Eresos, Stuttgart, 1940. Os escritos que nos ficaram, isto é, as duas obras de botânica, os Caracteres e os fragmentos foram editados por Schneid-er, Leipzig, 1918-21; outra edição, Wimmer, Leipzig, 1854. Sobre Teofrasto: ZELLER 11, 2, p. 806 ss.; GomPERz, III, cap. 39-42. § 87. Os fragmentos de Eudemo, in MULLACH, Fragmenta phil. graec., III, p. 222 ss.. Os fragm-entos da Harmonia de Aristóxeno foram editados por Marquard, Berlim, 1868 e por Macran, Oxford, 1903. Os fragmentos de Dicearco, por Fuhr, Darmstadt, 1841. Sobre estes três discípulos de Aristételes: ZELLER, U, p. 869 ss.. § 88. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Estratão: DIóGENEs LAÉRCIO, V, 58 ss. Sobre Estratã<): ZELLER, 11, 2, p. 897; GomPERz, UT, cap. 43. ]o XIIII O ESTOICISMO § 89. CARACTERíSTICAS DA FILOSOFIA PóS-ARISTOTÉLICA A conquista macEdónia e a consequente mudança da vida política e social do povo grego
encontra expressão no carácter fundamental da filosofia pós-aristotélica. É costume exprimir tal característica dizendo que este período da filosofia é assinalado pela prevalência do problema moral. A investigação filosófica no período que vai de Sócrates a Aristóteles dirigira-se para realização da vida teorética, entendida como unidade da ciência e da virtude, isto é, do pensamento e da vida. Mas destes dois termos, que já Sócrates unificava completamente, o primeiro prevalecia nitidamente sobre o segundo. 'Para Sócrates a virtude é e deve ser ciência e não há virtude fora da ciência. Platão conclui no Filebo os aprofundamentos sucessivos da sua investigação dizendo que a vida humana perfeita é uma vida mista de ciência e de prazer, na qual a ciência prevalece. Aristóteles considera 11 a vida teorética como a mais alta manifestação da vida do homem e ele mesmo encara e defende com a sua obra os interesses desta actividade, levando a sua investigação a todos os ramos do cognoscível. Só a partir dos Cínicos o equilíbrio harmónico entre ciência e virtude se rompe pela primeira vez: eles puseram o acento no peso da virtude em detrimento da ciência e tornaram-se partidários de um ideal moral propagandístico e popularucho, chegando a ser gravemente infiéis aos ensinamentos do seu mestre. Mas a rotura definitiva da harmonia da vida teorética a favor do segundo dos seus termos, a virtude, encontra-se na filosofia pós-aristotélica. A fórmula socrática-a virtude é ciência-é substituída pela fórmula a ciência é virtude. O objectivo imediato e urgente é a busca de urna orientação moral, à qual deve estar subordinada, como ao seu fim, a orientação teorética. O pensamento deve servir a vida, não a vida o pensamento. Na nova fórmula, os termos que na antiga encontravam a sua unidade são opostos um ao outro, de modo que se sente a necessidade de escolher entre eles o termo que mais importa e subordinar-lhe o outro. A filosofia é ainda e sempre procura; mas procura de uma orientação moral, de uma conduta de vida que não tem já o seu centro e a sua unidade na ciência, mas subordina a si a ciência como o meio ao fim. § 90. A ESCOLA ESTOICA Das três grandes escolas pós-aristotélicas, a estoica foi de longe, do ponto de vista histórico, a mais importante. A influência do estoicismo tornou-se decisiva no último período da filosofia grega, quando as correntes neoplatónicas fizeram suas muitas das suas doutrinas fundamentais, e na Patns12 tica, na Escolástica Árabe e Latina, no Renascimento. Esta influência só é comparável à de Aristóteles e exerceu-se muitas vezes sobre a doutrina aristotélica, sugerindo-lhe desenvolvimentos e modificações que foram nela incorporadas e se tornaram assim suas partes integrantes. No próprio seio da filosofia moderna e contemporânea, a acção do estoicismo continua, quer de maneira indirecta quer sob a forma de doutrinas que o senso comum, a sabedoria popular e a tradição filosófica aceitaram e aceitam sem se preocuparem com pô-las em discussão. Aqui podemos apenas indicar algumas destas doutrinas, às quais se terá ocasião de fazer referência mais vezes no decurso desta História. A primeira delas é a da necessidade da ordem cósmica, com as noções que lhe estão inclusas de destino e de providência. Esta doutrina serviu de fundamento a todas as elaborações teológicas que se efectuaram ia partir do neoplatonismo e é válida como
critério interpretativo do próprio aristotelismo. A definição da lógica como dialéctica, a teoria do significado, da proposição e do raciocínio imediato dominaram o desenvolvimento da lógica nos últimos séculos da Idade Média, constituindo uma segunda parte acrescentada à lógica de derivação aristotélica. Os estoicos contribuíram mesmo, a partir dos aristotélicos antigos, para integrar ou interpretar as teorias lógicas aristotélicas. As doutrinas do ciclo cósmico ou do eterno retorno e de Deus como alma do mundo constituíram e constituem ainda um constante ponto de referência das concepções cosmológicas e teológicas. A análise das emoções e a sua condenação, o conceito da autosuficiência e da liberdade do sábio ficaram e permanecem entre as mais típicas formulações da ética tradicional. Pela noção de dever por eles elaborada se renova rigorosamente a ética kantiana. A noção de valor, também por eles encontrada, revelou-se 13 fecundíssima nas discussões éticas. A identificação de liberdade o necessidade, o cosmopolitismo, a teoria do direito natural são doutrinas de que é quase inútil sublinhar a importância e a vitalidade. O fundador da escola foi Zenão de Gtium, em Chipre, de quem se conhece com verosimilhança o ano do nascimento, 336-35 a.C., e o ano da morte, 264-63. Chegado a Atenas com os seus vinte e dois anos, entusiasmou-se, através da leitura dos escritos socráticos (os Memoráveis de Xenofonte e a Apologia de Platão), pela figura de Sócrates e julgou ter encontrado um Sócrates redivivo no cínico Cratete, de quem se fez discípulo. Seguidamente foi também discípulo de Estilpon e de Teodoro Crono. Por volta do ano 300 a.C., fundou a sua escola no Pórtico Pintado (Stoà poikíle), pelo que os seus discípulos se chamaram Estoicos. Morreu de morte voluntária como bastantes outros mestres que lhe sucederam. Dos seus numerosos escritos (República, Sobre a Vida segundo a Natureza, Sobre a Natureza do Homem, Sobre as Paixões, etc.) restam-nos apenas fragmentos. Os seus primeiros discípulos foram Ariston de Quios, Erilo de Cartago, Perseu de Citium e Cleanto de Assos, na Tróade, que lhe sucedeu na direcção da escola. Cleanto, nascido em 304-03, e morto em 223-22 de morte voluntária, foi um homem de poucas necessidades e de vontade férrea, mas pouco dotado para a especulação; parece que o seu contributo para a elaboração do pensamento estoico foi mínimo. A Cleanto sucedeu Crisipo de Soli ou do Tarso na Cilícia, nascido em 281-78, falecido em 208-05, que é o segundo fundador do Estoicismo, tanto que se dizia: "Se não tivesse existido Crisipo não existiria a "Stoa". Foi de uma prodigiosa fecundidade literária. Escrevia todos os dias quinhentas linhas e compôs ao todo 705 livros. Foi também um dialéctico e um estilista de primeira ordem. 14 Seguiram-se a Crisipo dois discípulos seus, primeiro Zenão de Tarso, depois Diógenes de SeMucia, dito o Babilónico. Diógenes foi a Roma, em 156-55, numa embaixada de que faziam parte o académico Carnéades e o peripatético Critolau. A embaixada suscitou muito interesse na juventude de Roma, mas teve a desaprovação de Catão, o qual temia que o interesse filosófico desviasse a juventude romana da vida militar. A Diógenes seguiuse Antipatro de Tarso. A produção literária de todos estes filósofos, que deve ter sido imensa, perdeu-se e dela só nos restam fragmentos. Estes nem sempre são referidos a um autor singular, mas amiúde aos Estoicos em geral, de modo que se torna muito difícil distinguir, na massa das notícias que nos chegaram, a parte que corresponde a cada um dos representantes do Estoicismo.
Por isso se deve expor a doutrina estoica no seu conjunto, mencionando, quando possível, as diferenças ou as divergências entre os vários autores. § 91. CARACTERÍSTICAs DA FILOSOFIA ESTOICA O fundador do Estoicismo, Zenão, teve como mestre e como modelo de vida o cínico Cratete. Isto explica a orientação geral do Estoicismo, o qual se apresenta como a continuação e o complemento da doutrina cínica. Como os Cínicos, os Estoicos procuram não já a ciência, mas a felicidade por meio da virtude. Mas, diferentemente dos Cínicos, consideram que, para alcançar a felicidade e a virtude, é necessária a ciência. Não faltou entre os Estoicos quem, corno Ariston, estivesse ligado estreitamente ao Cinismo e declarasse inútil a Lógica e superior às possibilidades humanas a FÍsica, aban15 donando-se a um desprezo total pela ciência. Mas contra ele, Erilo colocava o sumo bem e o fim último da vida no conhecer, volvendo assim a Aristóteles. O próprio fundador da escola, Zenão, considerava indispensável a ciência para a conduta da vida, e embora não lho reconhecesse um valor autónomo, incluía-a entre as condições fundamentais da virtude. A própria ciência parecia-lhe virtude e as divisões da virtude eram para ele divisões da ciência. Tal foi indubitavelmente a doutrina que prevaleceu no Estoicismo. "A filosofia -diz Séneca- é exercício de virtude (studium virtutis), mas por meio da própria virtude, já que não pode haver virtude sem exercício, nem exercício de virtude sem virtude" (Ep., 89). O conceito da filosofia vinha assim a coincidir com o da virtude. O seu fim é alcançar sageza que é a "ciência das coisas humanas e divinas"; mas a única arte para alcançar a sabedoria é precisamente o exercício da virtude. Ora as virtudes mais gerais são três: a natural, a moral e a racional; também a Filosofia se divide, pois, em três partes: a Física, a Ética e a Lógica. Diferente foi a importância atribuída sucessivamente a cada uma destas três partes; e distinta foi a ordem em que as ensinaram os vários mestres da Stoà. Zenão e Crisipo começavam pela lógica, passavam à Física e terminavam com a Ética. § 92. A LÓGICA estoica Com o termo Lógica, adoptado pela primeira vez por Zenão, os Estoicos expressavam a doutrina que tem por objecto os logoi ou discursos. Como ciência dos discursos contínuos, a lógica é Retórica; como ciência dos discursos divididos por perguntas e respostas, a lógica é dialéctica. Mais precisamente, a 16
Página da obra "Vida e doutrina dos filósofos,,5, de Diógenes Laércio (Códice do século V) 4,, dialéctica é definida como "a ciência daquilo que é verdadeiro e daquilo que é falso e daquilo que não. é nem verdadeiro nem falso." (Diog. L., VII, 42; Séneca, EP., 89). Com a expressão "aquilo que não é nem verdadeiro nem falso", os
Estoicos entendiam provavelmente os sofismas ou os paradoxos, sobre cuja verdade ou falsidade não se pode decidir e cujo tratamento ocupa muito os Estoicos que, neste ponto, seguem as pisadas dos Megáricos. Por sua vez, a dialéctica divide-se em duas partes segundo trata das palavras ou das coisas que as palavras significam: a que trata das palavras é a Gramática, a que trata das coisas significadas é a Lógica em sentido próprio, a qual, portanto, tem por objecto as representações, as preposições, os raciocínios e os sofismas (Diog. L., VII, 43-44). O primeiro problema da lógica estoica é o do critério da verdade. É este o problema mais urgente para toda a filosofia pós-aristotélica que considera o pensamento apenas como guia para a conduta: e ora, se o pensamento não possui por si mesmo um critério de verdade e procede com incerteza e às cegas, não pode servir de guia para a acção. Ora, para todos os Estoicos, o critério da verdade é a representação catalética ou conceptual (phantasia kataleptiké). São possíveis duas interpretações do significado desta expressão e ambas se encontram nas exposições antigas do Estoicismo. Em primeiro lugar, a phantasia kataleptiké pode consistir na acção do intelecto que prende e penetra o objecto. Em segundo lugar, pode ser a representação que é impressa no intelecto pelo objecto, isto é, a acção do objecto sobre o intelecto. Ambos os significados se encontram nas exposições antigas do Estoicismo. Sexto Empírico (Adv. math., VII, 248) diz-nos que, segundo os Estoicos, a representação catalética é aquela que vem de um objecto real e está impressa 17 e marcada por isso em conformidade com ele próprio, de modo que não poderia nascer de um objecto diferente. Por outro lado, Zenão (segundo um testemunho de Cioero, Acad., 11, 144) colocava o significado da representação catalética na sua capacidade de prender ou compreender o objecto. Ele comparava a mão aberta e os dedos estendidos à representação pura e simples; a mão contraída no acto de agarrar, ao assentimento; o punho fechado à compreensão catalética. Finalmente, as duas mãos apertadas uma sobre a outra, com grande força, eram o símbolo da ciência, a qual dá a verdadeira e completa posse do objecto. A representação catalética está, pois, relacionada com o assentimento da parte do sujeito cognoscente, assentimento que os Estoicos consideravam voluntário e livre. Se o receber uma representação determinada, por exemplo, ver uma cor branca, sentir o doce, não está em poder daquele que a recebe porque depende do objecto de que deriva a sensação, o assentir a tal representação é, pelo contrário, sempre um acto livre. O assentimento constitui o juízo, o qual se define precisamente ou como assentimento ou como dissentimento ou como suspensão (epoché), isto é, renúncia provisória para assentir à representação recebida ou a dissentir da mesma. Segundo testemunho de Sexto Empírico (Adv. math., VII, 253), os Estoicos posteriores puseram o critério da verdade, não na simples representação catalética, mas na -representação catalética "que não tenha nada contra si", porque pode dar-se o caso de haver representações cataléticas que não sejam dignas de fé pelas circunstâncias em que são recebidas. Só quando não tem nada contra si, a representação se impõe com força às representações divergentes e constrange o sujeito cognoscente ao assentimento. Disto resulta claramente que a representação catalética é aquela que é dotada de uma 18 evidência não contraditada, tal que solicito com toda a força o assentimento, o qual, no entanto, permanece livre. Consequentemente, definiam a ciência como "uma representação catalética ou um hábito imutável para acolher tais representações,
acompanhadas pelo raciocínio" (Diog. L., VII, 47); e consideravam que não há ciência sem dialéctica, cabendo à dialéctica dirigir o raciocínio. Pelo que respeita ao problema da origem do conhecimento, o Estoicismo é empirismo. Todo o conhecimento humano deriva da experiência e a experiência é passividade porque depende da acção que as coisas externas exercem sobre a alma considerada como uma tabuinha (tabula rasa) e na qual se vêm registar as representações. As representações são marcas ou sinais impressos na alma, segundo Ocanto; segundo Crisipo, são modificações da alma. Em qualquer caso, são recebidas passivamente e produzidas ou pelos objectos externos ou pelos estados internos da alma (como a virtude e a perversidade). Por isso nenhuma diferença existe entre a experiência externa e a experiência interna. Toda a representação, depois do seu desaparecimento, determina a recordação, um conjunto de muitas recordações da mesma espécie constitui a experiência (Aezio, Plac., IV, II). Da experiência nasce, por um procedimento natural, a noção comum ou antecipação; a antecipação é a noção natural do universal (D@og. L., VII, 54). Todavia, segundo eles, os conceitos não têm nenhuma realidade objectiva: o real é sempre individual e o universal subsiste apenas nas antecipações ou nos conceitos. O Estoicismo é, pois, um nominalismo, segundo a expressão que foi usada na Escolástica para designar a doutrina que nega a realidade do universal. Os conceitos mais gerais, aqueles que Aristóteles designara com categorias, são reduzidos pelos Estoicos a quatro: 1.* o sujeito 19 ou substância; 2.* a qualidade; 3.* o modo de ser, 4.O o modo relativo (Plotino, Enn., VI, 1. 202). Estas quatro categorias estão entre si numa relação tal que a seguinte encerra a precedente e a determina. Efectivamente, nada pode ter um carácter relativo se não tem um modo seu de ser; não .pode ter um modo de ser se não possui uma qualidade fundamental que o diferencie dos outros; e só pode possuir esta qualidade se subsiste por si, se é substância. O conceito mais elevado e mais extenso ou, como diziam, o género supremo, é o conceito de ser, porquanto tudo, em certo modo, é, e não existe, portanto, um conceito mais extenso do que este. O conceito mais determinado é, pelo contrário, o de espécie que não tem outra espécie abaixo de si, isto é, o do indivíduo, por exemplo de Sócrates (Diog. L., VII, 61). Outros Estoicos, pretendendo encontrar um conceito ainda mais extenso que o de ser, recorreram ao de alguma coisa (aliquid) que pode compreender também as coisas incorpóreas (Séneca, Ep., 58). A parte da lógica estoica que teve a maior influência no desenvolvimento da lógica medieval e moderna é a que concerne à proposição e ao raciocínio. Como fundamento desta parte da sua doutrina, os Estoicos elaboraram a doutrina do ,significado (lektón) que se manteve de fundamental importância na lógica e na teoria da linguagem. "São três -diziam eles- os elementos que se ligam: o significado, aquilo que significa e aquilo que é. Aquilo que significa é a voz, por exemplo, "Dione". O significado é a coisa indicada pela voz e que nó s tomamos pensando na coisa correspondente. Aquilo que é é o sujeito externo, por exemplo, o próprio "Dione" (Sexto Emp:, Adv. math., VIII, 12). Destes três elementos conhecidos, dois ,são,,c,or,p<>reos, a voz e aquilo que é; um é incor20
pórco, o significado. O significado é, noutros termos, qualquer informação ou representação ou conceito que nos vem à mente quando percebemos uma palavra e que nos permite referir a palavra a uma coisa determinada. Assim, por exemplo, se com a voz <@homem" entendemos um "animal racional", podemos indicar com esta voz todos os animais racionais, isto é, todos os homens. O conceito "animal racional" é o significado que consente a referência da palavra ao objecto existente. Ele é o caminho entre a palavra (ou, em geral, a expressão verbal) e a coisa real ou corpórea: e assim orienta, na -referência ao objecto, as expressões linguísticas que, de outro modo, permaneceriam puros sons, incapazes de qualquer conexão com as coisas. A referência à coisa constitui, portanto, parte integrante do significado ou, pelo menos, é um aspecto que lhe está intimamente ligado, porque a informação em que consiste o significado não tem outra função senão a de tornar possível * a de orientar tal referência. Na lógica medieval * moderna, aquilo que os Estoicos chamavam significado foi frequentemente designado com outros nomes como conotação, intenção, compreensão, interpretante, sentido, enquanto a referência à coisa foi chamada suposição, denotação, extensão, significado. Mas esta diversidade de terminologia. não mudou o conceito de significado nos três elementos fundamentais em que os Estoicos o tinham analisado. Segundo os Estoicos, um significado está completo se pode ser expresso numa frase, por exemplo, "Sócrates escreve". A palavra "escreve" não tem, em contrapartida, significado completo porque deixa sem resposta a pergunta "quem?". Um significado completo é, portanto, só a proposição, a qual é definida também, com Aristóteles, como aquilo que pode ser verdadeiro ou falso. 21 O raciocínio consiste numa conexão entro as proposições simples do tipo seguinte: "se é noite. há trevas; mas é noite, portanto existem trovas." Este tipo de raciocínio não tem, como se vê, nada a ver com o silogismo aristotélico porque lhe faltam as suas características fundamentais: é imediato Neste sentido o raciocínio demonstrativo é designado pelos Estoicos como um sinal indicativo porquanto consente trazer à luz qualquer coisa que antes estava, obscuro. Sinais remwwa22 tivcw sã% pelo contrário, aqueles que, mal se apresentam, tornam evidente a recordação
da coisa que foi primeiramente observada em ligação com ela o agora não é manifesta como é, por exemplo, o fumo a respeito do fogo (Sexto E., Adv. math., VIII, 148 ss.). Evidentemente, os Estoicos confiaram ao raciocínio demonstrativo a construção da sua doutrina; por exemplo, a demonstração da existência da alma ou da alma do mundo (que é Deus), feita a partir dos movimentos ou dos factos que são imediatamente dados pela representação catalética, constitui um sinal indicativo no sentido agora referido. Como se vê, a dialéctica estoica tem em comum com a dialéctica platónica o carácter hipotético das suas Iiwemissas, mas distingue-se desta dialéctica porque a conjunção das premissas entre si e a sua conexão com a conclusão exprime situações de facto ou estados de coisas imediatamente presentes. Aliás, o carácter hipotético do processo dialéctico não é, para os Estoicos como não era para Aristóteles, um defeito da própria dialéctica pelo qual esta seria inferior à ciência. Para eles, a ciência não é, precisamente, outra coisa senão dialéctica (Diog. L., VII, 47). O conceito estoico da lógica como dialéctico difundiu-se, através das obras de Boécio, na Escolástica Latina e foi o fundamento da chamada lógica terninística, característica do último período da Escolástica. § 93. A FíSICA ESTOICA O conceito fundamental da Física estoica é o de uma ordem imutável, racional, perfeita e necessária que governa e sustenta infalivelmente todas as coisas e as faz ser e conservar-se tais como são. Esta ordem é identificada pelos Estoicos com o 23 próprio Deus: assim a sua doutrina é um rigoroso panteísmo. Os Estoicos substituem as quatro causas aristotélicas (matéria, forma, causa eficiente e causa final) por dois princípios: o princípio activo (poioún) e o princípio passivo (páschon) que são ambos materiais e inseparáveis um do outro. O princípio passivo é a substância privada de qualidade, isto é, a matéria; o princípio activo é a razão, isto é, Deus que agindo sobre a matéria produz os seres singulares. A matéria é inerte, e se bem que pronta para tudo, ficaria ociosa se ninguém a movesse. A razão divina forma a matéria, dirige-a para onde quer e produz as suas determinações. A substância de que nascem todas as coisas é a matéria, o princípio passivo; a força pela qual todas as coisas são feitas é a causa ou Deus, o princípio activo (Diog. L., VII, 134). Contudo, a distinção entre princípio activo e princípio passivo não coincide, segundo os Estoicos, com a distinção entre o incorpóreo e o corpóreo. Ambos os princípios, seja a causa, seja a matéria são corpo o nada mais que corpo, dado que só o corpo existe. Um rígido materialismo é defendido pelos Estoicos na base da definição de ser dada por Platão no Sofista (§ 56): existe aquilo que age ou suporta uma acção. Dado que só o corpo pode agir ou sofrer uma acção, só o corpo existe (Diog. L., VII, 56; Plut., Comm. Not., 30, 2, 1073; Stob., Ecl., 1, 636). A alma é, pois, corpo como princípio de acção (Diog. L., VII, 156). É corpo a voz que também opera e age sobre a alma (Aezio, Plac., IV, 20,2). É corpo, enfim, o bem como são corpos as emoções e os vícios. Diz Séneca a este respeito: "0 bem opera porque é útil e aquilo que opera é um corpo. O bem estimula a alma numa certa maneira: modela-a e tem-na sob o freio, acções estas que são próprias de um corpo. Os bens do corpo são corpos; 24 portanto, também os da alma, pois também ela é corpo" (Ep., 106). Os Estoicos só admitiam quatro coisas incorpóreas: o significado, o vazio, o lugar e o tempo (Sexto E.,
Adv. math., X, 218). Como se vê, nem Deus existe entre as coisas incorpóreas. O próprio Deus, como razão cósmica e causa de tudo, é corpo: mais precisamente é fogo. Mas não o fogo de que o homem se serve, que destrói todas as coisas: é antes um sopro cálido (pneuma) e vital que tudo conserva, alimenta, faz crescer e também sustém. Mas este sopro ou espírito vital, este fogo animador é também ele corpo. Chama-se razão seminal (logos spermatikós) do mundo porque contém em si as razões seminais segundo as quais todas as coisas se geram. Como todas as partes de um ser vivo nascem da semente, assim toda a parte do universo nasce de uma mesma semente racional, ou razão seminal. Estas razões seminais são frequentemente misturadas umas com as outras, mas, ao desenvolverem-se, separam-se e dão origem a seres diferentes, e assim todas as coisas nascem da unidade e se incluem na unidade. Contudo, a distinção entre as diferentes coisas é perfeita; não existem no mundo duas coisas semelhantes, nem mesmo duas folhas de erva. O mundo foi gerado quando a matéria originária se diferenciou e se transformou nos vários elementos. Ao condensar-se e tornar-se pesada, converteu-se em terra; ao enrarecer, converteu-se em ar e logo em humidade e água; ao fazer-se mais subtil, deu origem ao fogo. Destes quatro elementos compõem-se todas as coisas: duas delas, o ar e o fogo são activas; as outras duas, terra e água, são passivas. A esfera do fogo está acima da das estrelas fixas. O mundo é finito e tem a forma de esfera. Em torno dele há o vazio, mas dentro não há vazio porque é tudo unido e compacto (Diog. L., VII, 137 ss.). 25 A vida do mundo tem um ciclo próprio. Quando, depois de um longo período de tempo (grande anno), os astros tornam ao mesmo signo e â mesma posição em que se encontravam no princípio, acontece uma conflagração (ekpúrasis) o a destruição de todos os seres; e de novo se forma a mesma ordem cósmica e de novo tomam a verificar-se os acontecimentos ocorridos no ciclo precedente sem nenhuma modificação. Existe de novo Sócrates, de novo Platão e de novo cada um dos homens com os mesmos amigos e concidadãos, as mesmas cirenças, as mesmas esperanças, as mesmas ilusões (Nemésio, De nat. hom., 38, 277). Tal é de facto o destino (eimarmène), a lei necessária que rege as coisas. O destino é a ordem do mundo e a concatenação necessária que tal ordem põe entre todos os seres e, portanto, entre o passado e o porvir do mundo. Todo o facto se segue a um outro e está necessariamente determinado por ele como pela sua causa; e a todo o facto se segue um outro que ele determina como causa. Esta cadeia não se pode quebrar porque com ela seria quebrada a ordem racional do mundo. Se esta ordem, do ponto de vista das coisas que encadeia, é destino, do ponto de vista de Deus, que é o seu autor e garante infalível. é providência que rege e conduz todas as coisas ao seu fim perfeito. Portanto, destino, providência e razão identificam-se entre si, segundo os Estoicos, e identificam-se com Deus, considerado como a natureza intrínseca, presente e operante em todas as coisas (Alexandre Afr., De fato, 22, p. 191). Segundo este ponto de vista, os Estoicos justificavam a adivinhação, definida como a arte de prover o futuro mediante a interpretação da ordem necessária das coisas. Mas só o filósofo pode sei adivinho do futuro porque só elo conhece a ordem n~ia do mundo (Cícero, De divin., 11, 63, 130). 26 Identificando Deus com o cosmos, isto é, com a ordem necessária do mundo, a doutrina estoica é um rigoroso panteísmo. É. ao mesmo tempo, uma justificação do politeísmo
tradicional: os deuses da tradição seriam outros tantos aspectos da acção ordenadora divina. A divindade toma o nome de Júpiter fDià) enquanto tudo existe poT obra (diá) sua, de Zeus enquanto causa de viver (zên), de Atena enquanto governa sobre o éter, de Hera enquanto governa sobre o ar, de Efaístos enquanto fogo-artífice e assim por diante (Diog. L., VII, 147). E se o mundo, na sua ordem necessária, se identifica com a própria razão divina, só pode ser perfeito. Os Estoicos não negavam a existência do mal no mundo, consideravam apenas que ele era necessário para a existência do bem. Os bens são contrários aos males, dizia Crisipo, no seu livro Sobre a Providência. É pois necessário que uns sejam sustentados pelos outros porque sem um contrário não existiria tão-pouco o outro contrário. Não haveria justiça se não houvesse a injustiça, pois que ela não é mais que a libertação da injustiça. Não haveria moderação -se não houvesse a intemperança, nem a prudência se não houvesse a imprudência e assim por diante. Não haveria verdade sem a mentira (Gellio, Noct. att., VII, 1). "Deus harmonizou no mundo todos os bens com todos os males de maneira que nasça dai a razão eterna de tudo", cantava Cleanto no Hino a Júpiter. § 94. A PSICOLOGIA ESTOICA Disse-se já que, segundo os Estoicos, a alma entra no rol das coisas corpóreas com base no princípio de que é corpo aquilo que age e que a alma age, Crisipo servia-se da própria definição platónica da morte como "separação da alma do 27 corpo" para tirar dela a confirmação da corporeidade da alma. "0 incorpóreo não poderia separar-se do corpo nem unir-se com ele; mas a alma une-se ao corpo e não se separa dele, portanto a alma é corpo" (Nemésio, De nat. nom., 2, 81). A Alma humana é uma parte da Alma do mundo, isto é, de Deus; como Deus é fogo ou sopro vivificante; e sobrevive à morte no seio da Alma do Mundo (Diog. L., VII, 156). As partes da alma são quatro: 1.* o princípio directivo ou hegemónico que é a razão; 2.* os cinco sentidos; 3.O o sémen ou o princípio espermático; 4.<' a linguagem (Diog. L., VII, 157; Sexto E., Adv. math., IX, 102). O princípio hegemónico gera e controla as outras partes da alma que se prolonga nelas "como os tentáculos de um polvo". Assim, além de produzir as representações e o assentimento, ele determina também os sentidos e o instinto. Segundo alguns testemunhos, os Estoicos teriam posto o princípio hegemónico na cabeça, comparada àquilo que o sol é no cosmos (Aezio, Plac., IV, 21); mas, segundo outros, tê-la-iam colocado no coração ou no sopro em torno do coração (1b., IV, 5, 6). Os Estoicos partilham o conceito, já defendido por Platão e Aristóteles, de que a liberdade consiste no ser "causa de si" ou dos próprios actos ou movimentos. Eles conheciam também o termo autopraghia, que se pode traduzir por autodeterminação, para indicar a liberdade e diziam que só o sage é livre porque só ele se determina por si (Diog. L., VII, 121). Todavia, a liberdade do sage não consiste noutra coisa senão no seu conformar-se com a ordem do mundo, isto é, com o destino (Diog. L., VII, 88; Stobeo, Flor., VI, 19; Cicer., De fato, 17). Assim, com os Estoicos, apresenta-se pela primeira vez a doutrina que identifica a liberdade com a necessidade, transferindo a própria liberdade da parte para o todo, isto é, do homem 28
para o princípio que opera e age no homem. Não faltou, porém, entre os mestres do Stoa quem quisesse reconhecer a iniciativa do sage uma certa margem de liberdade no confronto com a própria ordem cósmica. Crisipo distinguia entre as causas perfeitas e fundamentais e as concomitantes ou próximas. As primeiras agem com necessidade absoluta; as segundas podem sofrer a nossa influência; e mesmo quando não a sofrem está no nosso poder secundá-las ou não. Assim como quem dá um impulso a um cilindro lhe imprime o começo do movimento mas não a capacidade de rodar, assim os objectos externos imprimem dentro de nós a representação mas não determinam o assentimento que permanece em nosso poder. Nestes limites, a vontade e a índole de cada um podem influir, em conformidade com a ordem do todo, na escolha e na execução das acções (Cícer., De fato, 41-43; Aulo G., Noet. att., VII, 2). § 95. A ÉTICA ESTOICA Deus confiou a realização e a conservação da ordem perfeita do cosmos no mundo animal a duas forças igualmente infalíveis: o instinto e a razão. O instinto (hormé) guia infalivelmente o animal na conservação, na alimentação, na reprodução e em geral a tomar cuidado consigo para os fins da sua sobrevivência (Diog. L., VII, 85). A razão é, por outro lado, a força infalível que garante o acordo do homem consigo próprio e com a natureza em geral. A Ética dos Estoicos é, substancialmente, uma teoria do uso prático da razão, isto é, do uso da razão com o Em de estabelecer o acordo entre a natureza o o homem. Zenão afirmava que o fim do homem é o acordo consigo próprio, isto é, o 29 viver "segundo uma razão única e harmónica". "Ao acordo consigo próprio, Cleanto acrescentou o acordo com a natureza e por isso define o fim do homem como "a vida conforme a natureza". E Crisipo exprimo a mesma coisa dizendo: "viver conforme com a experiência dos acontecimentos naturais" (Stobeo, Ecl., 11, 76, 3). Mas parece que já Zenão tinha adoptado a fórmula do "viver segundo a natureza" (Diog. L., VII, 87). E indubitavelmente esta é a máxima fundamental da doutrina estoica. Por natureza, Cleanto entendia a natureza universal, Crisipo não só a natureza universal mas também a humana que é parte da natureza universal. Para todos os Estoicos, a natureza é a ordem racional, perfeita e necessária que é o destino ou o próprio Deus. Por isso Cleanto orava assim: "Conduz-me, 6 Zeus, e tu, Destino, aonde por vós sou destinado e vos servirei sem hesitação: porque ainda que eu não quisesse, vos deveria seguir igualmente como estulto" (Stobeo, Flor., VI, 19). Ora a acção que se apresenta conforme com a ordem racional é o dever (kathêkon): a ética estoica é, pois, fundamentalmente uma ética do dever e a noção do dever, como conformidade ou conveniência da acção humana com a ordem racional, torna-se, pela primeira vez, nos Estoicos, a noção fundamental da Ética. Efectivamente, nem a Ética platónica nem a Ética aristotélica fazem referência à ordem racional do todo, assumindo como seu fundamento, para a primeira, a noção de justiça, para a segunda, a de felicidade. A noção de dever não surgia no seu âmbito e nelas dominava a noção de virtude como caminho para realizar a justiça ou felicidade. "Os Estoicos chamam dever -diz Diógenes Laércio- (VII, 107-09) àquilo cuja escolha pode ser racionalmente justificada... Das acções realizadas pelo instinto algumas são próprias do 30
dever. outras nem próprias do dever nem contrárias ao dever. Próprias do dever são aquelas que a razão aconselha efectuar, como honrar os pais, os irmãos, a pátria e viver em harmonia com os amigos. Contra o dever são aquelas que a razão aconselha a não fazer... Nem próprias do dever nem contrárias ao dever são aquelas que a razão nem aconselha nem condena, como levantar uma palha, pegar numa pena, etc.". Como nos refere Cícero, (De offi, 111, 14), os Estoicos distinguiam o dever recto, que é perfeito e absoluto e não pode encontrar-se em mais ninguém a não ser no sage, e os deveres "intermédios" que são comuns a todos e muitas vezes só são realizados com a ajuda da boa índole e de uma certa instrução. Esta prevalência da noção do dever levou os Estoicos a uma doutrina típica da sua Ética: a justificação do suced-io. Efectivamente, quando as condições contrárias ao cumprimento do dever prevalecem sobre as favoráveis, o sage tem o dever de abandonar a vida mesmo se está no cume da felicidade (Cicer., De fin., 111, 60). Sabemos que muitos mestres do Stoa seguiram este preceito que é, na realidade, a consequência da sua noção do dever. Todavia, o dever não é o bem. O bem começa a existir quando a escolha aconselhada pelo dever vem repetida e consolidada, mantendo sempre a sua conformidade com a natureza, até tornar-se no homem urna disposição uniforme e constante, isto é, uma virtude (Cicer., De fin., 111, 20, Tusc., IV, 34). A virtude é, efectivamente, o único bem. Mas só é própria do sage, isto é, daquele que é capaz do dever recto e se identifica com a própria sageza porque esta não é possível sem o conhecimento da ordem cósmica à qual o sage se adequa. A virtude pode ter nomes diferentes segundo os domínios a que é referida (a sageza incide sobre os objectivos do homem, a temperança sobre os impulsos, a for31 taleza sobre os obstáculos, a justiça sobre a distribuição dos bens (Stobeo, Ecl., 11, 7, 60). Mas, na realidade, existe uma só virtude e só a possui integralmente aquele que sabe entender e compreender e cumprir o dever, isto é, só o sage (Diog. L., VII, 126). Entre a virtude e o vício não há, portanto, meio termo. Como um pedaço de madeira ou é direito ou curvo sem possibilidade intermédia, assim o homem é justo ou é injusto e não pode ser justo ou injusto só parcialmente. De facto, aquele que tem a recta razão, isto é, o sage, faz tudo bem e virtuosamente, enquanto quem é privado da recta razão, o estulto, faz tudo mal e de maneira viciosa. E pois que o contrário da razão é a loucura, o homem que não é sage é louco. Pode-se certamente progredir para a sabedoria. Mas como quem está submerso pela água, ainda que esteja pouco abaixo da superfície, não pode respirar como se estivesse nas águas profundas, assim aquele que avançou para a virtude, mas não é virtuoso, não está menos na miséria do que aquele que está mais longe dela (Cicer., De fin., 111, 48). A virtude é o único bem em sentido absoluto porque ela constitui a realização no homem da ordem racional do mundo. Este princípio levou os Estoicos a formular uma outra doutrina típica da sua Ética: a das coisas indiferentes (adiaphorá). Se a virtude é o único bem, só devem considerar-se bens propriamente a sabedoria, a justiça, etc., e males os seus contrários; enquanto não são bens nem males as coisas que não constituem virtude, como a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a riqueza, a glória, etc., e todos os seus contrários. Estas coisas são, portanto, indiferentes. Mas, no domínio destas mesmas coisas indiferentes, algumas são dignas de ser preferidas ou escolhidas como, precisamente, a vida, a saúde, a beleza, a riqueza. etc.; 32
outras não, como os seus contrários. Existem, pois, além dos bens (a virtude), outras coisas que não são bens mas que, todavia, são também dignos de ser escolhidos. E para indicar o conjunto dos bens e de tais coisas os Estoicos utilizaram a palavra valor (axia). Valor é, portanto, "todo o contributo para uma vida conforme com a razão" (Diog. L., VII, 105) ou em geral "aquilo que é digno de escolha" (Cicer., De fin., 111, 6, 20). Com esta noção de valor fazia o seu ingresso na Ética um conceito que devia revelar-se de grande importância na história desta disciplina. Faz parte integrante da Ética estoica a negação total do, valor da emoção (pathos). Efectivamente, ela não tem qualquer função na economia geral do cosmos que providenciou de modo perfeito na conservação e no bem dos seres vivos, dando aos animais o instinto e ao homem a razão. Pelo contrário, as emoções não são provocadas por forças ou situações naturais: são opiniões ou juízos ditados pela ligeireza, por isso fenómenos de estultícia e de ignorância que constituem em "julgar saber o que se não sabe" (Cicer., Tuse., IV, 26). Os Estoicos distinguiam quatro emoções fundamentais às quais reduziam todas as outras: duas originadas pelos bens presuntivos: o desejo dos bens futuros e a alegria dos bens presentes; duas originadas pelos males presuntivos: o temor dos males futuros e a aflição dos males presentes. A três destas emoções, e precisamente ao desejo, à alegria e ao temor faziam corresponder três estados normais próprios do sage, isto é, respectivamente a vontade, a alegria e a prudência que são estados de calma e de equilíbrio racional. Nenhum estado normal corresponde, pelo contrário, no sapiente àquilo que é aflição para o estulto: efectivamente, para ele não existem males de que deva doer-se, dado que conhece a perfeição do universo. As emoções são, portanto, 33 verdadeiras e típicas doenças que afectam o estulto mas de que o sage está imune. A condição do sage, é, pois, a indiferença a toda a emoção, a apatia. A ordem racional do mundo, do mesmo modo que dirige a vida de todo o homem singular, dirige o da comunidade humana. Aquilo que se chama justiça é a acção, nesta comunidade, da própria razão divina. A lei que se inspira na razão divina é a lei natural da comunidade humana: uma lei superior à reconhecida pelos diferentes povos da terra, perfeita, portanto não susceptível de correcções ou melhoramentos. Cícero, numa página famosa, exprimia assim o conceito desta lei: "Por certo, existe uma verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao dever e com a sua proibição dissuade do engano... Não será diferente em Roma ou em Atenas ou hoje ou amanhã, mas como única, eterna, imutável lei governará todos os povos e em todos os tempos" "Lactâncio, Div. inst., VI, 8, 6-9; Cicer., De rep., 111, 33). Estes conceitos constituem e constituirão a base da teoria do direito natural que, por muitos séculos, foi um fundamento de toda a doutrina do direito. Se a lei que governa a humanidade é única, una é ia comunidade humana. "0 homem que se conforma com a lei é cidadão do mundo (cosmopolita) e dirige as suas acções segundo o querer da natureza conforme o qual todo o mundo se governa" (Filon, De mundi opif., 3). Por isso, o sage não pertence a esta ou àquela naçã o mas à cidade universal na qual todos os homens são concidadãos. Nesta cidade não existem livres e escravos mas todos são livres. Para os Estoicos a única escravidão natural é a do estulto enquanto não se determina em conformidade com aquela Icí que é 34
a sua própria natureza e do mundo. A escravatura imposta pelo homem sobre o homem, para os Estoicos, nã o passa de malvadez (Diog. L., VII, 121), NOTA BIBLIOGRáFICA § 89. Sobre a filosofia pôs-aristotélica: MELLI, La filosofia greca da Epicuro ai Neoplatonici, Flo~ rença, 1922; SCHMFKEL, For8chungen zur Philosophie des Heltení8mus, Berlim, 1938. § 90. Sobre a vida, os escritos e a doutrina dos antigos Estoicos as fontes principais são: 1.1 DIóGENES LAÉRciO, VII; 2., SEXTO EMPIRICO, Ipotiposi Pirronianas e Contra os -matemáticos (estas obras são em boa parte tecidas com a -exposição e a crítica das doutrinas estoicas); 3.' CICERO, cujas obras filosóficas são Inspiradas inteiramente pelo Estoicismo, que atingiu através dos escritos dos Eclécticos, principalmente de Possidónio, e Panézio; 4., diversos artigos de SUIDAS no Léxico; 5., FILODEMO, os restos do escrito Sobre os Estoicos. Os fragmentos deduzidos destas fontes e de outras menores ou mais ocasionais foram recolhidos por VON ARNIM, Stoicorum Veterum Fragmenta: vol. 1, "Zenão e os discípulos de Zenão", Leipzig, 1905; vol. II, " Os fragmentos lógicos e físicos de Crisipo", Leipzig, 1903; vol. 111, "Os fragmentos morais de Crisipo e os fragmentos dos sucessores de Crisipo", Leipzig, 1903; vol. lV, "Indíce", compilado por AMER, Leipzig, 1924. § 91. Sobre a doutrina estoica em geral: BARTI1, Díe Stoa, Stutgard, 1908; 4.1 ed. 1922; BRÉMER, Chrí- &ippe, Paris, 1910; 2.1 ed. 1951; POFILENZ, Die Stoa, Gottingen, 1948; 2., ed. 1954; J. BRUN, Le stoicisme, Paris, 1958. § 92. Sobre a lógica estóioa: B. MATrS, StoiC Logic, BerkeIey (Cal.), 1953; W KNEALE. e M. KNEALE, The Development of Logic, Oxford, 1962, cap. 3. § 93. Sobre a física: J. MOREAu, LIâme du monde de Platon aux Stoiciens, Paris, 1939; S. SAMBURSKI, The Physies of lhe Stoics, Londres, 1959, § Sobre -a ética: RIETH, Grundbegriffe der stoischen Ethik, B@rlim, 1934; KIRK, The Moral Philosophy of lhe Stoics, New Brunswick, 1951. 35 XIV O EPICURISMO § 96. EPICURO Epicuro, filho de Neocles, nasceu em Janeiro ou Fevereiro de 341 a.C. em Samos, onde passou a sua juventude. Começou a ocupar-se de filosofia aos 14 anos. Em Samos escutou as lições do platónico Panfilo e depois do democritiano Nausífone. Provàvelmente foi este último que o iniciou na doutrina de Demócrito, do qual, por algum tempo, se considerou discípulo. Só mais tarde afirmou a completa independência da sua doutrina da do seu inspirador, a quem julgou então poder designar com o arremedo de Lerocrito (tagarela) (Diog. L., X, 8).
Aos 18 anos, Epicuro dirigiu-se a Atenas. Não está demonstrado que tenha frequentado as lições de Aristóteles e de Xenócrates que era naquele tempo o chefe da Academia. Começou a sua actividade de mestre aos 32 anos, primeiro em Mitilene e em Lâmpsaco, e alguns anos depois em Atenas (307-06 a.C.), onde permaneceu até à sua morte (271-70). 37 A escola tinha a sua sede no jardim (kepos) de Epicuro pelo que os seus sequazes foram chamados "filósofos do jardim". A autoridade de Epicuro sobre os seus discípulos era muito grande. Como as outras escolas, o Epicurismo constituía uma associação de carácter religioso, mas a divindade a que era dedicada esta associação era o próprio fundador da escola. "As grandes almas epicuristas -diz Séneca (Ep., 6) - não as formou a doutrina mas a assídua companhia de Epicuro". Tanto durante a sua vida como depois da sua morte, lhe tributaram os discípulos e os amigos honras quase divinas e procuraram modelar a sua conduta pelo seu exemplo. "Comporta-te sempre como se Epicuro te visse"-era o preceito fundamental da escola (Séneca, Ep., 25). Epicuro foi autor de numerosos escritos, cerca de 300. Restam-nos apenas três cartas conservadas por Diógenes Laércio (livro X): a primeira, a Heródoto, é uma breve exposição de física; a segunda, a Meneceu, é de conteúdo ético; e a terceira, a Pitocles, de atribuição duvidosa, trata de questões metereológicas. Diógenes Laércio conservou-nos também as Máximas capitais e o Testamento. Num manuscrito vaticano foi encontrada uma colecção de Sentenças e nos papiros de Herculano fragmentos da obra Sobre a Natureza. § 97. A ESCOLA EPICURISTA O mais notável dos discípulos imediatos de Epicuro foi Metrodoro de Lâmpsaco cujos escritos foram na sua maior parte de conteúdo polémico. Mas contaram-se numerosíssimos discípulos e amigos de Epicuro e entre eles não faltaram as mulheres como Temistia e a hetaira Leontina que escreveu contra Teofrasto. Com efeito, as mulheres 38 podiam também participar na escola, já que ela se fundava na solidariedade e na amizade dos seus membros o as amizades epicuristas foram famosas em todo o mundo antigo pela sua nobreza. Todavia, nenhum discípulo trouxe uma contribuição original para a doutrina do mestre. Epicuro exigia dos seus sequazes a rigorosa observância dos seus ensinamentos; e a esta observância se manteve fiel a escola durante todo o tempo da sua duração (que foi longuíssima, até ao século IV d.C.). Por isso, entre os seus numerosos discípulos, só recordaremos aqueles por cuja mediação nos chegaram ulteriores notícias acerca da doutrina epicurista. De Filodemo, que viveu no tempo de Cícero, revelaram-nos os papiros de Herculano alguns fragmentos que tratam de numerosos problemas sob o ponto de vista epicurista e nos apresentam as polémicas que se desenvolviam, naquele -tempo, no próprio interior da escola epicurista e entre ela e as outras escolas. Tito Lucrécio Caro deixou-nos no seu De rerum natura não só uma obra de grande valor poético mas também uma exposição fiel do Epicurismo. Pouco se sabe da vida de Lucrécio. Nasceu provavelmente em 96 a.C. e morreu em 55 -a.C.. A notícia de que estava louco, transmitida pelos escritores cristãos, e que havia escrito o seu poema nos intervalos da loucura, ode ser uma invenção devida à
p exigência polémica de desacreditar o máximo representante latino do ateísmo epicurista; em todo o caso, é pouco verosímil pela causa aduzida da loucura do poeta: um filtro amoroso. Os seis livros da obra de Lucrécio (que está incompleta) dividem-se em três partes, dedicadas, respectivamente, à metafísica, à antropologia e à cosmologia, cada uma das quais compreende dois livros. No primeiro e segundo livro trata-se dos princípios de toda a realidade, da matéria, do espaço e da constituição dos 39 corpos sensíveis. No terceiro e quarto livro, trata-se do homem. No quinto e sexto, do universo e dos fenómenos físicos mais -importantes. A obra foi editada por Cícero, que teve que reordená-la um pouco, depois da morte de Lucrécio. O poeta latino vê em Epicuro aquele que libertou os homens do temor do sobrenatural e da morte. Lucrécio considerava tão grande esta tarefa que não hesitou em exaltar Epicuro como uma divindade e em reconhecê-lo como o fundador da verdadeira ciência. Ao século 11 d.C. pertence Diógenes de Enoanda (Ásia Menor) de quem se encontrou em 1884 um escrito esculpido em blocos de pedra. Estas inscrições revelam uma doutrina perfeitamente conforme com a original de Epicuro; a única novidade é a defesa do Epicurismo contra outras correntes filosóficas e, especialmente, contra os diálogos platónicos de Aristóteles. § 98. CARACTERÍSTICAS DO EPICURISMO Epicuro vê na filosofia o caminho para alcançar a felicidade, entendida como libertação das paixões. O valor da filosofia é, pois, puramente instrumental: o seu fim é a felicidade. Mediante a filosofia o homem liberta-se de todo o desejo inquieto e molesto; liberta-se também das opiniões irracionais e vãs e das perturbações que delas procedem. A investigação científica destinada a investigar as causas do mundo natural não tem um fim diferente. "Se não estivéssemos perturbados pelo pensamento das coisas celestes e da morte e por não conhecermos os limites das dores e dos desejos, não teríamos necessidade da ciência da natureza" (Máximas capitais, 11). O valor da filosofia está, pois, inteiramente em dar ao homem um "quádruplo remédio": 1.o Libertar os homens do temor 40 EPICURO dos deuses, demonstrando que pela sua natureza feliz, não se ocupam das obras humanas. 2.' Libertar os homens do temor da morte, demonstrando que ela não é nada para o homem: "quando nós existimos, não existe a morte; quando a morte existe, não existimos nós" (Ep. a Men., 125). 3.' Demonstrar a acessibilidade do limite do prazer, isto é, o alcançar fácil do próprio prazer; 4.' Demonstrar a distância do limite do mal, isto é, a brevidade e a provisoriedade da dor. Deste modo a doutrina epicurista manifestava claramente a tendência de toda a filosofia pós-aristotélica para subordinar a investigação especulativa a um fim prático, reconhecido como válido independentemente da pró pria investigação, de modo que vinha a ser negado a tal investigação o valor supremo que lhe atribuem os filósofos do período clássico: o de ela própria determinar o fim do homem e de ser, já como investigação, parte integrante deste fim.
Epicuro distingue três partes da filosofia: a canónica, a física e a ética. Mas a canónica era concebida em relação tão estreita com a física que se pode dizer que, para o Epicurismo, as partes da filosofia são apenas duas: a física e a ética. Em todo o domínio do conhecimento o fim que é necessário ter presente é a evidência (enàrgheia): "a base fundamental de tudo é a evidência", dizia Epicuro. § 99. A CANóNICA DE EPICURO Epicuro chamou canónica à lógica ou teoria do conhecimento enquanto a considerou essencialmente a oferecer o critério de verdade e, portanto, um canon, isto é, uma regra que oriente o homem para a felicidade. O critério da verdade é constituído pelas sensações, pelas antecipações e pelas emoções. 41 A sensação é produzida no homem pelo fluxo dos átomos que se separam da superfície das coisas (segundo a teoria de Demócrito, § 22). Este fluxo produz imagens (éidola) que são em tudo semelhantes às coisas que as produzem. Destas imagens derivam as sensações; das sensações derivam as representações fantásticas que resultara da combinação de duas imagens diferentes (por exemplo, a representação do centauro deriva da união da imagem do homem e do cavalo). Das sensações repetidas e conservadas na memória derivam também as representações genéricas (ou conceitos) que Epicuro, (como os Estoicos) chamou antecipações. Com efeito, os conceitos servem para antecipar as sensações futuras. Por exemplo, se se diz "este é um homem" é necessário ter já o conceito de homem, adquirido por virtude das sensações precedentes. Ora a sensação é sempre verdadeira. Efectivamente, não pode ser refutada por uma sensação homogénea, que a confirma, nem por uma sensação diferente que, proveniente de um outro objecto, não pode contradizê-la. A sensação é, pois, o critério fundamental da verdade. Finalmente, o terceiro critério de verdade é a emoção, isto é, o prazer ou a dor, que constitui a norma para a conduta prática da vida e está, portanto, fora do campo da lógica. O erro, que não pode subsistir nas sensações e nos conceitos, pode subsistir, em contravertida, na opinião, a qual é verdadeira se é confirmada pelos testemunhos dos sentidos ou pelo menos não contraditada por tal testemunho; é falsa no caso contrário. Atendo-se aos fenómenos, tal como se nos manifestam mercê das sensações, pode-se, com o raciocínio, estender o conhecimento até às coisas que para a própria sensação são desconhecidas; mas a regra fundamental do raciocínio é, neste caso, o mais rigoroso acordo com os fenómenos percebidos. 42 No escrito de Filodemo, Sobre os sinais, que expõe a doutrina do epicurista Zenão, mestre de Filodemo, é desenvolvida e defendida contra os ataques dos Estoicos a teoria do raciocínio indutivo. Os Estoicos afirmavam: não basta verificar que os homens que existem à nossa volta são mortais para afirmar que em todos os casos os homens são mortais; seria necessário estabelecer que os homens são mortais, precisamente enquanto homens, para dar àquela inferência a sua necessidade. Mas os Epicuristas respondiam que, dado que nada se opõe à sua conclusão, uma inferência do género na analogia, deve ser considerada válida. Dado que todos os homens que caem na alçada da nossa experiência são semelhantes também no que respeita à mortalidade, é necessário considerar que são semelhantes, também neste aspecto, aqueles que estão fora da nossa experiência (De
signis, XVI, 16-29). Por outras palavras, os Epicuristas admitiam que a indução era um processo por analogia (entendendo-se por analogia a identidade de duas ou mais relações), no sentido de que uma vez verificado que, na nossa experiência, uma certa qualidade (no exemplo, "mortal") é acompanhada constantemente por outra qualidade (aquela que os homens constituem), pode inferir-se que, também onde não alcança a experiência, esta relação se mantém constante, isto é, que as outras qualidades dos homens são sempre acompanhadas pela de mortal (lb., XX, 32 e ss.). Deste modo, eles pressupunham não já a necessária semelhança dos homens, segundo a crítica dos Estoicos, mas a semelhança, isto é, a uniformidade, das relações entre qualidade ou factos, uniformidade que mais tarde será chamada (por Stuart Mill) "uniformidade das leis da natureza", enquanto distinta da "uniformidade por natureza". Os Epicuristas partiam também de um sentido amplo de experiência e afirmavam 43 recolher "não só os sinais que nos aparecem ou que nós próprios experimentamos mas também as coisas que aparecem na experiência de outrem e que por ela podem ser tomadas" (1b., 32, 14). E também nisto se afastavam dos Estoicos que reduziam a experiência ao aqui e agora percebido e instituíam, como se viu, a força inteira do raciocínio sobre este aqui e agora. Acerca da linguagem Epicuro formulava, pela primeira vez, uma doutrina que foi retomada nos tempos modernos: a linguagem é um produto natural porque é a expressão sonora das emoções que unem os homens em determinadas condições (Diog. L., X, 75-76). É a tese que foi defendida no século XVIII por Rousseau. § 100. A FíSICA DE EPICURO A física de Epicuro tem COMO objectivo excluir da explicação do mundo toda a causa sobrenatural e libertar assim os homens do temor de estar à mercê de forças desconhecidas e de misteriosas intervenções. Para alcançar este objectivo a física deve ser: 1.o materialística, isto é, excluir a presença no mundo de qualquer " alma" ou princípio espiritual; 2.O mecanística, isto é, servir-se na sua explicação unicamente do movimento dos corpos excluindo qualquer finalismo. Dado que a física de Demócrito correspondia a estas duas condições, Epicuro adoptou-a e fê-la sua com escassas e insignificantes modificações. Como os Estoicos, Epicuro afirma que tudo aquilo que existe é corpo porque só o corpo pode agir ou sofrer uma acção. De incorpóreo, admite apenas o vazio, mas o vazio não age nem sofre alguma coisa, apenas permite aos corpos moverem-se através de si próprio (Ep. ad Her., 67). Tudo aquilo 44 que age ou sofre é corpo e todo o nascimento ou morte é mais que a agregação ou a desagregação dos corpos. Por isso Epicuro admite com Demócrito que nada vem do nada e que cada corpo é composto de corpúsculos indivisíveis (átomos) que se movem no vazio. No vazio infinito, os átomos movem-se eternamente chocando-se, combinando-se entro s@i. As suas formas são diversas; mas o seu número, embora indeterminável, não é infinito. O seu movimento não obedece a nenhum desígnio providencial, a qualquer ordem finalística, Os Epicuristas excluem explicitamente a providência estoica e a crítica a tal providência constitui um dos temas preferidos da sua polémica. Contra a acção da
divindade no mundo, argumentam tomando como ponto de partida a existência do mal. "A divindade ou quer suprimir os males e não pode ou pode e não quer ou não quer nem pode ou quer e pode. Se quer e não pode é -impotente; e a divindade não o pode ser. Se pode e não quer, é invejosa, e a divindade não o pode ser. Se não quer e não pode, é invejosa e impotente, portanto não é divindade. Se quer e pode (que é a única coisa que lhe é conforme) donde vem a existência dos males e porque não os elimina? (fr. 374, Usener). Eliminada do mundo a acção da divindade, não ficam para explicar a ordem senão as leis que regulam o movimento dos átomos. A estas leis nada escapa, segundo os Epicuristas; elas constituem a necessidade que preside a todos os acontecimentos do mundo natural. Um mundo é, segundo Epicuro, "um pedaço de céu que compreende astros, terras e todos os fenómenos, recortado no infinito". Os mundos são infinitos; eles estão sujeitos ao nascimento e à morte. Todos se formam devido ao movimento dos átomos no vazio infinito. Mas Epicuro, ao considerar que os átomos caem no vazio em linha recta e com 45 a mesma velocidade, para explicar o choque, devido ao qual se agregam e se dispõem nos vários mundos, admite um desvio casual dos átomos da sua trajectória rectilínea. Este desvio dos átomos é o único acontecimento natural não sujeito à necessidade. Ele, como diz Lucrécio, "despedaça as leis do fado". Epicuro admite, contudo, a existência das divindades neste mundo, donde foi eliminado todo o sinal de potência divina. E admite-as devido ao seu próprio empirismo, porque os homens têm a -imagem da divindade e esta imagem, como outra qualquer, não pode ter sido produzida em si senão pelos fluxos dos átomos emanados da própria divindade. Os deuses têm a forma humana, que é a mais perfeita e, portanto, a única digna de ser racional. Eles mantêm uns com os outros uma amizade análoga à humana; e habitam os espaços entre mundo e mundo (ilitermundi). Mas não se preocupam nem com o mundo nem com os homens. Todo o cuidado deste género seria contrário à sua perfeita beatitude, dado que lhes imporia uma obrigação e eles não têm obrigações, antes vivem livres e felizes. Por isso, o motivo pelo qual o sage os honra não é o temor, mas a admiração da sua excelência. A alma é, segundo Epicuro, composta por partículas corpóreas que estão difundidas em todo o corpo como um sopro cálido. Tais partículas são mais subtis e Tedondas que as demais o por isso mais móvois. As faculdades da alma, como se viu, são fundamentalmente três: a sensação em sentido próprio; a imaginação (mens, segundo Lucrécio) que produz as representações fantásticas; a razão (logos) que é a faculdade do juízo e da opinião. A estas faculdades teoréticas junta-se a emoção, prazer ou dor, que é a norma da conduta prática. A parte irracional da alma, que é o princípio da vida, está difundida por todo o corpo. 46 Com a morte, os átomos da alma separam-se e cessa qualquer possibilidade de sensação: a morte é "privação de sensações". Por isso é estulto temê-la: "0 mais terrível dos males, a morte, não é nada para nós porque quando existimos nós não existe a morte, quando existe a morte não existimos nós" (Ep. ad Men., 125). § 101. A ÉTICA DE EPICURO
A ética epicurista é, em geral, uma derivação da cirenaica (§ 39). A felicidade consiste no prazer: "o prazer é o princípio o o fim da vida feliz", diz Epicuro (Diog. L., X 149). Com efeito, o prazer é o critério da eleição e da aversão: tende-se para o prazer, foge-se da dor. Ele é também o critério com que avaliamos todos os bens. Mas há duas espécies de prazeres: o prazer estável que consiste na privação da dor e o prazer em movimento que consiste no gozo e na alegria. A felicidade consiste apenas no prazer estável ou negativo, "no não sofrer e no não agitar-se" e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de perturbação) e aporia (ausência de dor). O significado destes dois termos oscila entre a libertação temporal da dor da necessidade e a ausência absoluta de dor. Em polémica com os Cirenaicos que afirmavam a positividade do prazer, Epicuro afirma explicitamente que "o cume do prazer é a simples e pura destruição da dor." Este carácter negativo do prazer impõe a escolha e a limitação das necessidades. Epicuro distingue as necessidades naturais e as inúteis; das necessidades naturais, umas são necessárias, outras não. Daquelas que são naturais e necessárias, umas são necessárias à felicidade, outras à saúde do corpo, outras à própria vida. Só os desejos naturais e 47 necessários devem satisfazer-se; os demais devem abandonar-se e rechaçar-se. O epicurismo que, portanto, não o abandono ao prazer, mas o cálculo e a medida dos prazeres. Tem de se renunciar aos prazeres de que deriva uma dor maior e suportar até largamente as dores de que deriva um prazer maior. "A cada desejo é conveniente perguntar: que sucederá se for satisfeito? Que acontecerá se não for satisfeito? Só o cálculo cuidadoso dos prazeres pode conseguir que o homem se baste a si próprio e não se converta em escravo das necessidades e da preocupação pelo amanhã. Mas este cálculo só se pode ficar a dever à sageza (frónesis). A sageza é mais preciosa do que a filosofia, porque por ela nascem todas as outras virtudes e sem ela a vida não tem doçura, nem beleza, nem justiça" (Ep. ad Men., 132). A virtude, e especialmente a sageza que é a primeira e a fundamental, aparecem assim a Epicuro como condição necessária da felicidade. À sageza se deve o cálculo, a escolha e a limitação das necessidades e, portanto, o alcançar da ataraxia e da aponia. Num passo famoso do escrito Sobre o fim, Epicuro afirma explicitamente o carácter sensível de todos os prazeres. "Em minha opinião -diz elenão sei conceber que coisa é o bem se prescindo dos prazeres do gosto, dos prazeres do amor, dos prazeres do ouvido, dos que derivam das belas imagens percebidas pelos olhos e, em geral, todos os prazeres que os homens têm pelos sentidos. Não é verdade que só o gozo da mente é um bem; dado que também a mente se alegra com a esperança dos prazeres sensíveis em cujo disfrute a natureza humana pode livrar-se da dor". (Cícer., Tusc., fil, 18, fr. 69, Usener. Confrontar com 67, 68 e 70, Usener). É claro aqui que o bem se restringe ao âmbito do prazer sensível ao qual pertence também o prazer que a música dá ("os prazeres dos sons") 48 e a contemplação da beleza ("prazeres das belas imagens"); e que o prazer espiritual se reduz à esperança do próprio prazer sensível. Pode ser que o carácter polémico do fragmento (dirigido provavelmente contra o protréptico de Aristóteles, o qual platonicamente exaltava a superioridade do prazer espiritual, § 69), tenha levado Epicuro a acentuar a sua tese da sensibilidade do prazer. Mas é claro que esta tese deriva necessariamente da sua doutrina fundamental que faz da sensação o cânon fundamental
da vida do homem. Que o verdadeiro bem não seja o prazer violento, mas o estável da aponia e da ataraxia não é coisa que contradiga a tese da sensibilidade do prazer porque a aponia é "o não sofrer no corpo" e a ataraxia é "o não ser perturbado na alma" pela preocupação da necessidade corpórea. Mas, por isto, a doutrina de Epicuro não se pode confundir com um vulgar hedonismo. Opor-se-ia a tal hedonismo o culto da amizade que foi característico da doutrina e da conduta prática dos Epicuristas. "De todas as coisas que a sageza nos oferece para a felicidade da vida, a maior é de longe a aquisição da amizade" (Max. cap., 27). A amizade nasceu do útil, mas ela é um bem por si mesma. O amigo não é aquele que procura sempre o útil, nem quem nunca o une à amizade, dado que o primeiro considera a amizade como um tráfico de vantagens, o segundo destrói a confiada esperança de ajuda que constitui grande parto da amizade (Sentenças Vaticanas, 39, 34, Bignone). Opor-se-ia também ao referido hedonismo a exaltação da sageza. Seria certamente melhor, segundo Epicuro, que a fortuna tornasse próspera em todos os casos a sageza; mas é sempre preferível a sageza desafortunada à insensatez afortunada (Ep. ad Men., 135). Ainda que a justiça seja somente uma convenção que os homens estabeleceram entre si 49 para a utilidade comum, isto é, para que se evite * fazer-se recIprocamente dano, é muito difícil que * sage se deixe arrastar a cometer uma injustiça ainda que esteja seguro de que o seu acto permanecerá desconhecido e que, por isso, não lhe trará dano. "Quem alcançou o fim do homem, ainda que ninguém esteja presente, será igualmente honesto" (fr. 533, Usener). A atitude do epicurista para com os homens em geral é definida pela máxima: "É não só mais belo, mas também mais agradável fazer o bem do que recebê-lo" (fr. 544). Nesta máxima o prazer surge de facto como fundamento e a justificação da solidariedade entre todos os homens. E, na verdade, Diógenes Laércio testemunha-nos o amor de Epicuro pelos seus pais, a sua fidelidade aos amigos, o seu sentido de solidariedade humana (X, 9). Quanto à vida política, Epicuro reconhecia as vantagens que ela traz aos homens, obrigando-os a acatar as leis que os impedem de se prejudicarem mutuamente. Mas aconselhava ao sage que permanecesse alheio à vida política. O seu preceito é: "vive escondido" (fr. 551). A ambição política só pode ser fonte de perturbaçã o e, portanto, obstáculo para o alcançar da ataraxia. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 96. As notícias antigas sobre a vida, os escritos e a doutrina de Epicuro e dos epicuristas foram recolhidas pela primeira vez por H. USENER, Epicurea, Leipzig, 1887. - BIGNONE, Epicuro, obras, fragmentos, testemunhos sobre a vida, traduzidos com introdução e comentários, Bari, 1920; DIANO, Epicuri Ethica, Florença, 1946; ARRIGITEM, Epicuro. Opere, Introdu- ção, texto critico, tradução e notas, Turim, 1960. Oo últimos volumes recolhem também oe fragmentos encontrados nos papiros de HercuLano. -Sobre a formaçAo da doutrina epicurista: BIGNONF,, LIAr~tele 50 perduto e Ia form_azione filosofica di Epicuro, 2 vols., Florença, 1936; DIANO, Note epicuree, in ".4=ali Scuola normale superiore di Pisa", 1943; Questione epicuree, in.
"Giornale critico filosofia italiana", 1949. § 97. Sobre os discípulos de Epicuro: ZELLER, M, 1, p. 378 ss.; LuCRÉCio, De rerum natura, ed. Giussani, Turim, 1896-98. Os Fragmentos de Filodemo encontram-se nas citadas compilaçóes: o De signis, ed. GOMPERZ, Le-,ipzig, 1865; ed. e tradução inglesa DE LAcy, Filadélfia, 1941; Diógenes de Enoanda, fragmentos editados por WILLIAM, Leipzig, 1907. § 99. Sobre Epicuro em geral: BAILEY, The Greek Atomists and Epicurus, Oxford, 1928; N. W. DE WITT, Epicurus and his Philosophy, Minneapolis, 1954. § 100. C. DIANO, La psicologia di Epicuro, in "Giornale critico filosofia Italiana", 1939; V. E. ALFIERI, Studi di filosofia greca, Bari, 1950. § 101. GuyAu, La morale d'Epicure, Paris, 1886; MONDOLFO, Problemi del pensiero antico, Bolonha, 1936. x_V O CEPTICISMO § 102. CARACTERISTICAS DO CEPTICISMO A palavra cepticismo deriva de sképsi*s, que significa indagação. Em conformidade com a orientação geral da filosofia pós-aristotélica, o Cepticismo tem como objecto o alcançar da felicidade como ataraxia. Mas enquanto o Epicurismo e o Estoicismo punham a condição da mesma numa doutrina determinada, o Cepticismo coloca tal condição na crítica e na negação de toda a doutrina determinada, numa indagação que ponha em evidência a inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as considere a todas igualmente falazes e se abstenha de aceitar alguma. A tranquilidade do espírito em que consiste a felicidade, consegue-se, segundo os cépticos, não já aceitando uma doutrina, mas refutando qualquer doutrina. A indaga- ção (sképsis) é o meio de alcançar esta refutação e, por conseguinte, a ataraxia. Daqui resulta a mudança radical e também a decadência profunda que o conceito de investiga53 ção sofre por obra do cepticismo. Se se confronta o conceito céptico de indagação, como instrumento da ataraxia, com o conceito socrático e platónico da procura, a mudança é evidente. Para Sócrates e Platão, a primeira exigência da procura é a de encontrar o próprio fundamento e a própria justificação, a de organizar-se a articular-se internamente, a de aprofundar-se a si própria para reconhecer as condições e os princípios que a tornam possível. A indagação céptica não procura justificação em si própria. A ela basta-lhe levar o homem à refutação de toda a doutrina determinada e, portanto, à ataraxia. Por isso se nutre quase exclusivamente da polémica contra as outras escolas e se aplica a refutar os diferentes pontos de vista, sem nunca dirigir o olhar para si própria, para o fundamento e o valor do seu procedimento. Indubitavelmente, ainda assim, a indagação céptica desempenhou uma tarefa histórica notável, afastando as escolas filosóficas contemporâneas da sua estagnação dogmática e estimulando-as incessantemente à indagação dos fundamentos dos seus postulados.
O cepticismo não é uma escola mas a orientação seguida na Grécia por três escolas diferentes: La a escola de Pirro de Elis, no tempo de Alexandre Magno; 2.a a média e nova Academia; Ia os Cépticos posteriores, a começar por Enesidemo, os quais defendem um retorno ao pirronismo. § 103. PIRRO Pirro, natural de Elis, pôde ainda conhecer talvez na sua cidade, a dialéctica da escola eleomegárica (§ 33) que, em muitos aspectos, é um antecedente do Cepticismo. Participou na campanha de Alexandre Magno no Oriente juntamente com o 54 democritiano Anaxarco. Fundou na pátria uma escola que depois da sua morte teve pouca duração. Viveu na pobreza e morreu muito velho cerca de 270 a.C.. Não deixou escritos. Conhecemos as suas doutrinas através da exposição de Diógenes Laércio (IX, 61, 108) e pelos fragmentos de Sílloi (ou versos burlescos) com os quais o seu discípulo Tímon de Fliunte (329-230 a.C. aproximadamente) expôs e defendeu a sua doutrina. Os Sofistas tinham oposto a natureza à convencionalidade das leis e tinham distinguido o que é bem por natureza daquilo que é bem por convenção. Pirro renova esta distinção, mas apenas para negar que existam coisas verdadeiras ou falsas, belas ou feias, boas ou más, per natura. Tudo aquilo que é julgado tal é julgado tal " por convenção ou por costume", não por verdade e por natureza. Já que para o conhecimento humano as coisas não são verdadeiramente apreensíveis e a única atitude legítima por parte do homem é a suspensão de qualquer juízo (epoché) sobre a sua natureza: o não afirmar de qualquer coisa que é verdadeira ou falsa, justa ou injusta e assim sucessivamente. Esta suspensão leva a admitir que todas as coisas são indiferentes para o homem e evita que se conceda qualquer preferência a uma mais do que a outra. Assim a suspensão do juízo é já por si mesma ataraxia, ausência de qualquer perturbação ou paixão. Para ser coerente, Pirro, que não tinha fé nos sentidos, andava em redor sem olhar e sem se esquivar de nada, afrontando os carros se os encontrava, precipícios, cães, etc. (Diog. L., IX, 62). Timón de Fliunte rebatia a doutrina do mestre, considerando que, para ser feliz, o homem devia conhecer três coisas: La qual é a natureza das coisas; 2 a que posição é necessário tomar frente a elas; Ia que consequências resultarão dessa atitude. Mas as coisas mostramse todas igualmente indife55 rentes, incertas e indiscerníveis. Por isso a única atitude possível é a de não se pronunciar a respeito de nenhuma delas (afasia) e a de permanecer completamente indiferente frente a elas (ataraxia). § 104. A MÉDIA ACADEMIA A escola de Pirro esgotou-se muito depressa; mas a orientação céptica foi retomada pelos filósofos da Academia que encontravam o fundamento dela no próprio interior da doutrina platónica. Com efeito, Platão sustentara constantemente que não pode haver ciência do
mundo sensível (§ 59). Esta concerne ao mundo do ser, não ao mundo dos sentidos, a respeito do qual só se podem alcançar opiniões prováveis. Mas a especulação em torno do mundo do ser já não interessava os filósofos deste período, os quais pediam à filosofia que se convertesse em instrumento dos fins práticos da vida. E assim, da doutrina platónica, conservava actualidade apenas a sua parte negativa, precisamente aquela que negava validade de ciência ao conhecimento do mundo sensível e reduzia tal conhecimento a mera opinião provável. Aquele que iniciou este novo rumo da Academia foi Arquesilau de Pitane (315/14-241/40) que sucedeu a Cratete na direcção da escola. Arquesilau não escreveu nada, de modo que conhecemos as suas doutrinas só indirectamente. Segundo um testemunho de Cícero (De orat., 111, 18, 67), ele não manifestou nenhuma opinião própria, mas limitou-se a discutir as opiniões que os outros exprimiam. Quis imitar a Sócrates, mas para ir mais longe do que o próprio Sócrates. Se Sócrates afirmava que o homem nada pode saber a não ser precisamente que não sabe nada, Arquesilau negava que também isto se pudesse afirmar 56 com segurança. Por Sexto Empírico sabemos que as suas críticas principais foram dirigidas ao seu contemporâneo Zenão de Citium, o fundador da Stoa. Arquesilau negava que existisse uma representação catalética porque negava que existisse uma representação que não possa tornar-se falsa. Por isso a função do sage não é a de dar o assentimento a uma representação qualquer, mas abster-se de qualquer assentimento. Quanto à acção, ela não tem necessidade da representação catalética. Arquesilau sustentava que a regra daquilo que se deve escolher ou evitar é o bom senso ou a equidade (eulogia) que é a base da sageza (Sexto E., Adv. math., VII, 153 ss.). Seguiram-se a Arquesilau como chefes da escola outros mestres (Lacides, Telecles, Evandro, Hegesino) dos quais não se sabe nada, excepto que seguiram a orientação de Arquesilau. Ao último sucedeu Carnéades. § 105. A NOVA ACADEMIA Carnéades de Cirena (214/12-129/28) é considerado o fundador da terceira ou nova Academia e foi homem notável por sua eloquência e doutrina. Em 156155 foi em embaixada a Roma juntamente com o estoico Diógenes e com o peripatético Critolau. Também ele não deixou escritos e as suas doutrinas foram recolhidas pelos discípulos. A doutrina de Carnéades define-se sobretudo em oposição à do estoico Crisipo. "Se Crisipo não tivesse existido, também eu não existiria", dizia Carnéades (Diog. L., IV, 62). Carnéades considera que o saber é impossível e que nenhuma afirmação é verdadeiramente indubitável. Durante a sua permanência em Roma, pronunciou um dia um discurso belíssimo em louvor da justiça, demonstrando que ela é a base de toda a vida civil. Mas, ao outro 57 dia, pronunciou um novo discurso, ainda mais convincente do que o primeiro, demonstrando que a justiça é diferente segundo os tempos e os povos e que está muitas vezes em contradição com a sageza. E demonstrava este contraste com o próprio exemplo do povo romano que se havia apoderado de todo o mundo, arrancando aos outros a sua
posse. "Se os romanos quisessem ser justos -disse ele- deveriam restituir aos outros as suas possessões e voltar para casa na miséria, mas em tal caso seriam estultos; e assim sageza e justiça não caminham de acordo" (Lactâncio, Ist. div., 5, 14). Carnéades criticou no mesmo espírito todas as doutrinas fundamentais dos Estoicos e principalmente a do destino e da providência, sustentando que as desmentia no seu pressuposto, que é a necessidade, pela existência do acaso e da liberdade humana (Cicer., De fato, 31-34). Ele utilizou, além disso, as antinomias megáricas, por exemplo a do mentiroso, para demonstrar a impossibifidade de decidir com a dialéctica aquilo que é verdadeiro ou falso. Finalmente considerou falacioso o critério estoico da representação catalética, negando que os sentidos ou a razão pudessem valer como critérios de verdade. Quanto à conduta da vida e à conquista da felicidade, admitia, contudo, um critério. Tal critério, porém, não é objectivo, isto é, não consiste na relação da representação com o seu objecto, com base na qual a própria representação poderia ser verdadeira ou falsa, mas subjectivo, isto é, inerente à relação da representação com quem a possui. É portanto um critério, não de verdade, mas de credibilidade. Se não se pode dizer qual seja a representação verdadeira, isto é, correspondente ao objecto, pode-se dizer qual é a representação que aparece como verdadeira ao sujeito. A esta representação, chama Carnéades plausível ou persuasiva 58 (pitanon). Se uma representação persuasiva não é contraditada por outras representações do mesmo género, ela tem um grau maior de probabilidade: assim os médicos, por exemplo, diagnosticam uma doença por vários sintomas concordantes. Finalmente, a representação provável, não contraditada, examinada em todas as suas partes, é o terceiro e mais alto grau de probabilidade (Sexto E., adv. math., VII, 162 ss.). A Carnéades sucedeu na direcção da escola um seu parente com o mesmo nome, e a este outras figuras menores, depois dos quais foi seu chefe Fjlón de Larissa, o fundador da quarta Academia. § 106. OS úLTIMOS CÉPTICOS Abandonada pela Academia, a orientação céptica foi retomada por outros pensadores que quiseram ater-se directamente ao fundador do cepticismo, Pirro. Estes pensadores que floresceram do último século a.C. ao 11 século d.C. não quiseram formar uma escola mas apenas uma orientação (agoghé). Os principais foram Enesidemo, Agripa e Sexto Empírico. Enesidemo de Cnossos ensinou em Alexandria. Escreveu oito livros de Discursos pirrónicos que se perderam. Pelas repetidas afirmações de Cícero, que considera extinto o pirronismo no seu tempo, deduz-se que Enesidemo devia ter iniciado a sua actividade depois da morte de Cícero (43 a.C.) Segundo Sexto Empírico, o cepticismo era considerado por Enesidemo como um caminho para a filosofia de Heraclito: "0 facto de que os contrários parecem pertencer a uma mesma coisa, leva a admitir que eles são verdadeiramente a mesma coisa" (Pirr. hyp., 1, 210). Esta afirmação não significa 59 que Enesidemo tenha passado do cepticismo para o heraclitismo, mas apenas que, como já Platão no Teeteto, via no heraclitismo, que identifica os opostos, o fundamento de toda a concepção céptica que considera os opostos igualmente verdadeiros ou igualmente falsos.
Segundo Sexto Empírico, Enesidemo admitia dez modos (tropi) para chegar à suspensão do juízo. O primeiro é a diferença entre os animais, pela qual não podemos julgar entre as nossas representações e as dos animais, porque derivam de diferentes constituições corpóreas. O segundo é a diferença entre os homens; o terceiro o da diferença entre as sensações; o quarto, o das circunstâncias, isto é, das diferentes disposições humanas. O quinto é o das posições, dos intervalos e dos lugares. O sexto, o das misturas. O sétimo, o da quantidade e composições dos objectos. O oitavo, o da relação das coisas entre si e com o sujeito que as julga. O nono, o da continuidade ou raridade dos encontros entre o sujeito que julga e os objectos. O décimo, o da educação, dos costumes, das leis, das crenças, e das opiniões dogmáticas. Cada um destes modos estabelece uma diversidade nos conhecimentos humanos ou uma equivalência dos conhecimentos diversos, que se obtém segundo a diversidade dos mesmos modos. Se as sensações são diferentes (3.' modo) para os diferentes homens (2.' modo) ou em diversas circunstâncias (4.O modo), como -se pode distinguir entre a verdadeira e a falsa? Se os objectos surgem como diferentes segundo se apresentam misturados ou simples (6.O modo) ou em número maior ou menor (7.O modo) ou segundo se apresentam isolados ou em relação (8.' modo) ou raramente ou frequentemente ao homem (9.' modo), como se faz para decidir qual é a verdadeira realidade do objecto? Não resta, pois, outra possibilidade senão 60 suspender qualquer juízo. Leva a esta mesma conclusão a consideração da diversidade entre as crenças e as opiniões humanas, diversidade que torna impossível decidir-se por uma ou outra delas. A Agripa (de quem não se sabe nada), atribui Sexto Empírico outros cinco modos para alcançar a suspensão do juízo, modos de carácter dialéctico, úteis sobretudo para refutar as opiniões dos dogmáticos: 1.' o modo da discordância, que consiste em mostrar um dissídio insanável entre as opiniões dos filósofos e, por conseguinte, a impossibilidade de escolher entre elas, 2.' o modo que consiste em reconhecer que toda a prova parte de princípios que, por ;sua vez, exigem prova e assim até ao infinito; 3.O o modo da relação, pelo qual nós conhecemos o objecto relativamente a nós, e não qual é em si próprio; 4.' o modo da hipótese, pelo qual se vê que toda a demonstração se funda em princípios que não se demonstram, mas se admitem por convenção; 5.O o círculo vicioso (dialelo), pelo qual se assume como demonstrado precisamente aquilo que se deve demonstrar: o que demonstra a impossibilidade da demonstração. Outros Cépticos, sempre segundo Sexto Empírico (Pirr. hyp., 1, 178), reduziam todos estes modos a dois modos fundamentais de suspensão, isto é, demonstrando que não se pode compreender nada nem por si nem na base de outro. Que nada se possa compreender por si, resulta do desacordo existente entre as opiniões dos homens, desacordo insanável, não havendo nenhum critério que, por sua vez, não seja objecto de desacordo. Que nada se possa compreender na base de outro, resulta do facto de que, neste caso, seria necessário ir até ao infinito ou fechar-se num círculo, dado que toda a coisa, para ser compreendida, requererá uma outra e assim sucessivamente. 61
§ 107. SEXTO EMPIRICO A fonte de todas as notícias sobre o Cepticismo antigo é a obra de Sexto que, como médico, teve o sobrenome de Empírico e desenvolveu a sua actividade entre 180 e 214 d.C. Possuímos dele três escritos. Os Elementos (Ipotipposi) pirronianos, em três livros, são uni compêndio de filosofia céptica. Os outros dois surgem, tradicionalmente, sob o título impróprio de Contra os matemáticos. Ora o màtema é o ensino em significado objectivo, a ciência enquanto objecto do ensino; matemáticos são pois os cultores da ciência, isto é, da gramática, da retórica e das ciências do quadrívio (como foram chamadas na Idade Média) que Platão na República considerava como propedêuticas da dialéctica: geometria, aritmética, astronomia e música. Contra esta ciências são dirigidos os livros I-IV da obra. Os livros V11-XI são dirigidos contra os filósofos dogmáticos. Estes escritos de Sexto são importantes não só porque representam a súmula de todo o Cepticismo antigo, como também porque são fontes preciosas para o conhecimento das próprias doutrinas que combatiam. Os pontos mais famosos das refutações de Sexto, além da doutrina dos tropos, são os seguintes: Crítica da dedução e da indução.-A dedução é sempre um círculo vicioso (dialelo). Quando se diz: "Todo o homem é animal, Sócrates é homem, portanto Sócrates é animal", não se poderia admitir a premissa "todo o homem é animal" se não se considerasse já como demonstrada a conclusão, que Sócrates, como homem, é animal. Por isso, quando se tem a pretensão de demonstrar a conclusão, derivando-a de um princípio universal, na realidade já se a pressupõe demonstrada. Por outro lado, a indução não tem maior validade. Com efeito, se ela se funda apenas no exame de alguns casos, não é 62 segura, podendo desmenti-la em qualquer altura. os casos não examinados, e se se pretende que se funda em todos os casos particulares, o seu objectivo é impossível porque tais casos são infinitos (Pirr. hyp., 11, 193, 204). Crítica do conceito de causa.-Diz-se que a causa produz o efeito, portanto ela deveria preceder o efeito e existir antes dele. Mas se existe antes de produzir o efeito, é causa antes de ser causa. Por outro lado, é evidente, a causa não pode seguir o efeito nem ser contemporânea dele porque o efeito só pode nascer da coisa que existe antes (Pirr. hYp., 111). Crítica da teologia estoica. -Sexto insistiu longamente nas contradições implícitas no conceito estoico da divindade. Segundo os Estoicos, tudo aquilo que existe é corpóreo; portanto, também Deus. Mas um corpo ou é composto e está sujeito a decomposição, portanto mortal; ou é simples e então é água ou ar ou terra ou fogo. Por conseguinte, Deus deveria ser ou mortal ou um elemento inanimado, o que é absurdo (Adv. math., IX, 180). Por outro lado, se Deus vivesse sentiria, e se sentisse, receberia prazer e dor; mas dor significa perturbação e se Deus é capaz de perturbação é mortal. Outras dificuldades derivam de atribuir a Deus todas as perfeições. Se Deus tem todas as virtudes, também tem a coragem; mas a coragem é a ciência das coisas temíveis e não temíveis, portanto é qualquer coisa de temível para Deus, o que é absurdo (lb., lX, 152 ss.). Sexto Empírico servia-se de todos estes argumentos para reforçar a posição céptica da suspensão do juízo. Na vida prática o céptico deve, segundo Sexto, seguir os fenómenos. Por isso são quatro os seus guias fundamentais: as indicações que a natureza lhe dá através dos sentidos, as
necessidades do corpo, a tradição das leis e dos costumes e as regras das 63 artes. Com estas regras, os últimos, Cépticos procuraram diferenciar-se do critério, sugerido pela média Academia, da acção motivada ou racional. Segundo Sexto, a diferença fundamental entre o Cepticismo pirrónico o o dos Académicos é este: que enquanto os Académicos só admitiam saber que não é possível saber nada, os pirrónicos evitavam também esta asserção e limitavam-se à procura (Pirr. hyp., 1, 3). Sexto Empírico quis, noutros termos, realizar o ideal de uma investigação que seja apenas investigação, sem ponto de partida nem ponto de chegada. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 102. Sobre o desenvolvimento do cepticismo antigo: BROCHARD, Les sceptiques grees, Paris, 1887; GOEDECKEMEYER, Die Geschichte der griechischen 8keptizismus, Leipzig, 1905; DAL PRA, Lo scetticismo greco, Milão, 1950. § 103. Sobre Pirro: noticias antigas sobre a vida e a doutrina, in DIóGENES LAÉRCIO, ] EX, 61-108; sobre Timon: ID., IX, 1099-116; DIELS, POêt, philOS. fragm., 182 ss.; ZELLER, 111, 1, p. 494 ss.-ROBIN, Pyrrhon et le Scepticisme grec, Paris, 1944. § 104. Sobre a vida, os escritos -e a doutrina de Arquesil-au e da Média Academia: DIóGENEs LAÉRCIO, IV, 28-45 (Arquesilau), 59-61 (Lacides). Para a doutrina, as fontes mais importantes são CICERO, Opp. filos., e STOBEO, Eclogae, lI, 39, 20 ss.. Sobre a Média Academia: ZELLER, IlT, 1, 507 ss.; CREDARO, Lo scetticismo degli Accademici, 2 vols., Milão, 1889-93. Sobre a lõgica: PRANTL, 1, 496 ss. § 105. Sobre Carnéades: DióGENES LAÉRCIO, IV, 62-66; ZELLER, M, 1, 516 ss.. § 106. Sobre Enesidemo: DiOGENEs LAÉRCIO, IX, 109-116; ZELLER, 111, 2, 1 ss.. Sobre Agripa: DiõGENES LAÉRCIO, ]IX, 88 ss.; ZELLER, 111, 2, p. 47 ss.. § 107. As obras de Sexto Empírico foram editadas por Bekker, Berlim, 1892. Os Elementos Pirrõ64 nicos e Contra os dogmáticos foram editados criticamente por Mutschmann, Leipzig, 191214. Os Elementos foram traduzidos para italiano por BISSOLATI, Ipotiposi pirroniani, Flor(-nça, 1917, e por TESCARI, Schizzi pirroniani, Bari, 1926. Sobre Sexto, ver ZELLER, III, 2. p. 49 ss.. Sobre a lógica do Cepticismo: PRANT4 ob. cit., p. 497 ss.. 65 XVI O ECLECTISMO
§ 108. CARACTERíSTICAS DO ECLECTISMO As três grandes escolas filosóficas pós-aristotélicas. - Estoicismo, Epicurismo e Cepticismo , ainda que em desacordo nos seus pressupostos teóricos, mostram um acordo fundamental nas suas conclusões práticas. Sustentam as três que o fim do homem é a felicidade e que a felicidade consiste na ausência de perturbação e na eliminação das paixões; colocam as três o ideal do sage na indiferença relativamente aos motivos propriamente humanos da vida. Esta concordância no terreno prático devia limar necessariamente o antagonismo das respectivas posições teóricas e aconselhar, óbviamente, a encontrar um terreno de encontro sobre o qual as três orientações pudessem conciliar-se e fundir-se. O eclectismo (de ek-légo, escolher) representa precisamente esta tendência. As condições históricas favorecem o eclectismo. Depois da conquista da Macedónia pelos romanos (186 a.C.), a Grécia tornara-se de facto uma pro67 víncia do Império Romano. Roma começou a acolher e a cultivar a filosofia grega que se torna um elemento indispensável da cultura romana. E, por sua parte, a filosofia grega vaise adaptando gradualmente à mentalidade romana. Mas esta era pouco apta para dar relevo a divergências teoréticas das quais não surgisse uma diferença na conduta prática; de modo que o intento de escolher, nas doutrinas das várias escolas, os elementos que se prestassem para serem conciliados e fundidos num corpo único encontrou o mais válido apoio na mentalidade romana. Mas, dado que a escolha destes elementos supunha um critério, chegou-se a admitir como critério o acordo comum dos homens (consensus gentium) sobre cortas verdades fundamentais, admitidas como subsistentes no homem independentemente e antes de qualquer investigação. A orientação ecléctica apareceu pela primeira vez na escola estoica, dominou por largo tempo na Academia e foi acolhida também pela escola peripatética. Só os Epicuristas se mantiveram estranhos ao Eclectismo, permanecendo fiéis à doutrina do mestre. § 109. O ESTOICISMO ECLÉCTICO O encaminhar da escola estoica para o Eclectismo que começou com Bocto de Sídon (falecido em 119 a.C.), torna-se decisivo com Panézio de Rodes que viveu entre 185 e 109 a.C.. Viveu em Roma por algum tempo juntamente com o historiador Políbio; foi amigo de muitos nobres romanos, entre os quais Cipião o Africano e Lélio-, mestre de muitos outros; e teve certamente grande influência no desenvolvimento do interesse filosófico em Roma. Dos seus escritos restam-nos os títulos. Um deles, Sobre o Dever, foi o modelo do De officiis de Cícero. Panézio foi um grande admira68 dor de Aristóteles o inspirou-se em muitos pontos na sua doutrina. Com efeito, afirmou, com Aristóteles e contra a doutrina clássica do Estoicismo, a eternidade do mundo. Distinguiu na alma três partes: vegetativa, sensitiva e racional, seguindo também nisto Aristóteles e separando nitidamente a parte racional das outras. O mais famoso discípulo de Panézio foi Posidónio de Apameia, na Síria, que nasceu cerca de
135 a.C. e morreu com 84 anos como chefe da escola que fundara em Rodes, escola na qual tinha tido como auditores Cícero, e Pompeu. Das 23 obras que lhe são atribuídas apenas temos fragmentos. Posidónio recolheu na sua doutrina muitos elementos platónicos: a imortalidade da alma racional e a sua pré-existência; a atribuição das emoções, que para o Estoicismo apenas tinham importância negativa como enfermidades da alma, à alma concupiscível, compreendida como uma potência inerente ao organismo corpóreo. § 110. O PLATONISMO ECLéCTICO A orientação céptica, que prevalecera na Academia com Carnéades e os seus sucessores imediatos, modificou-se no sentido do Eclectismo com Ffion de Larissa que foi a Roma durante a guerra de Mitrídates (88 a.C.) e aqui teve, entre os seus ouvintes, Cícero. Ffion abandona já o princípio da suspensão do assentimento que é fundamental para os Cépticos. O homem não pode alcançar a certeza incondicionada da ciência, mas pode conseguir formular a clareza (enàrgheia), a evidência de uma convicção satisfatória: pode, portanto, formular uma teoria ética completa, combatendo as falsas doutrinas morais e ensinando as justas. 69 Mas a própria certeza incondicionada que Filon excluía foi admitida pelo seu sucessor, Antíoco de Ascalona, com o qual a Academia abandona definitivamente o cepticismo para inclinar-se para o eclectismo. Antíoco (morto em 68 a.C.) foi também mestre de Cícero que ouviu as suas lições no Inverno de 79-78 e entrou em polémica literária com Ffion. Sem uma certeza absoluta não é possível, segundo Antíoco, nem sequer estabelecer graus de probabilidade, dado que a probabilidade se pode julgar somente pelo fundamento da verdade e não se pode admitir aquela se não se está na posse desta. Como critério da verdade ele colocava o acordo entre todos os verdadeiros filósofos e procurou demonstrar esse acordo entre as doutrinas académicas, peripatéticas e estoicas, só o conseguindo à custa de graves deformações. Ao eclectismo de Antíoco liga-se o de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) que deve a sua importância, não à originalidade do pensamento, mas à sua capacidade de expor de forma clara e brilhante as doutrinas dos filósofos gregos contemporâneos ou precedentes. O próprio Cícero reconhece a sua dependência das fontes gregas dizendo das suas obras filosóficas numa carta Ad Attico (XII, 52, 3): "custam-me pouca fadiga, porque de meu incluo só as palavras que, não me faltam". Dos principais escritos de Cícero, o De republica e o De legibus têm como fontes Panézio e Antíoco; o Hortênsio que se perdeu inspirava-se no Protréptico de Aristóteles; os Academia, em Antíoco; o De finibus no mesmo Antíoco e, quanto ao epicurismo, em Zenão e Filodemo. As Tusculanae dependem dos escritos do académico Crantore, de Panézio, de Antíoco, do estoico Crisipo, de Posidónio. O De natura deorum, de várias fontes estoicas e epicuristas. O De oficies, de Panézio; os outros esciftos menores, de fontes análogas. 70 Como Antíoco, Cícero admite como critério da verdade o consenso comum dos filósofos e explica tal consenso com a presença em todos os homens de noções inatas, semelhantes às antecipações do Estoicismo. Na física, rejeita a concepção mecânica dos Epicuristas. Que o mundo possa formar-se, devido a forças cegas, parece-lhe tão impossível como, por
exemplo, obter os Annales de Énnio atirando ao chão desordenadamente um grande número de letras alfabéticas. Mas quanto a resolver de modo positivo os problemas da física, Ocero considera isso impossível e assim adopta, neste ponto, uma posição céptica. Na ética, -afirma o valor da virtude por si própria, mas oscila entre a doutrina estoica e a académico-peripatética. Afirma a existência de Deus e a liberdade e a imortalidade da alma, mas evita afrontar os problemas metafísicos inerentes a tais afirmações. Semelhante à posição de Cícero é a do grande erudito seu amigo, Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.). Varrão manteve-se fiel à ética de Antíoco. Em contrapartida, aceitava de Panézio a distinção da teologia em mítica, física e política. A teologia mítica é constituída pelas representações que os poetas dão da divindade. A teologia física é a que é própria das teorias dos filósofos em torno do inundo e de Deus. A teologia política é a que encontra a sua expressão nas disposições legislativas que se referem ao culto. Por sua parte, Varrão aceitava o conceito estoico da divindade como alma do mundo. § 111. O ARISTOTELISMO ECLÉCTICO A orientação ecléctica nunca se radicou profundamente na escola peripatética. Andrónico de Rodes, que de 70 a.C. em diante e durante 10 ou 11 anos foi o chefe da escola peripatética de Atenas, é 71 sobretudo famoso por ter cuidado da edição dos escritos acroamáticos de Aristóteles e por ter iniciado os comentários às obras do mestre a que se dedicaram em seguida todos os peripatéticos. O seu principal interesse aparece ligado à lógica. Entre os eclécticos peripatéticos são de enumerar o grande astrónomo Claudio Ptolemeu, no qual exerceram influência alguns elementos da investigação platónica e estoica e a doutrina pitagórica dos números, e o médico Galeno (129-199 a.C.) que foi a maior autoridade em medicina até à Idade Moderna. Ao lado das quatro causas aristotélicas: matéria, forma, causa eficiente e causa final, Galeno admitiu uma quinta, a causa instrumental, isto é, o instrumento ou o meio mediante o qual as outras quatro operam e que Aristóteles considerara idêntica à causa eficiente. Galeno foi talvez o primeiro também a -introduzir na lógica aristotélica o tratamento dos silogismos hipotéticos, modelados sobre os anapodíticos dos Estoicos: as afirmações de Alexandre de Atrodísia que atribuíam aos primeiros aristotélicos (Teofrasto o Eudemo) esta inovação não encontram confirmação. Por silogismo hipotético entende ele o silogismo que tem como premissa uma proposição condicional ou disjuntiva, como nos esquemas seguintes: "Se S é, é P; mas S é, portanto é P.); "S é ou P ou Q; mas não é Q; portanto é P". Na sua Introdução à Dialéctica, Galeno afirmava que enquanto o silogismo categórico (,isto é , aristotélico) se requer nos raciocínios dos matemáticos, o hipotético requer-se para discutir problemas como estes: "Existe o fado?", "Existem os deuses?", "Existe a providência?" que são problemas da física estoica. De agora em diante o tratamento do silogismo hipotético começou a fazer parte do corpo da lógica aristotélica e transmitiu-se como tal, através de Boécio, à lógica medieval. 72
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CICERO O último peripatético de alguma importância foi Alexandre de Afrodísia (ensinou em Atenas entre 198 e 211), o famoso comentador de Aristóteles, o exegeta por excelência. O seu comentário só nos chegou em parte. Alexandre propunha-se por ele aclarar e defender a doutrina de Aristóteles contra as afirmações opostas das outras escolas e especialmente dos Estoicos. O ponto do seu comentário que iria ter na Idade Média e no Renascimento maior importância é o que se refere ao problema do intelecto activo. Alexandre distingue três intelectos: 1.o intelecto físico ou material, que é o intelecto potencial; ele é semelhante ao homem que é capaz de aprender uma arte mas não está ainda na sua posse; 2.' o intelecto adquirido, que é a capacidade de pensar, semelhante ao artista que consegue a posse da sua arte; 3.O o intelecto activo que opera a passagem do primeiro para o segundo intelecto. Este não pertence à alma humana, mas age sobre ela de fora. Ele é a própria causa primeira, isto é, Deus. Esta doutrina iria oferecer o ponto de partida para as numerosas interpretações do intelecto activo que se sucederam na Escolástica Árabe e Latina e no Renascimento. § 112. A ESCOLA CíNICA Na primeira metade do século 111 a.C., Bión de Boristene iniciou aquele género literário que foi depois a característica da escola cínica, a diatribe. As diatribes eram prédicas morais contra as opiniões e os costumes dominantes; prédicas enriquecidas com múltiplos artifícios retóricos destinados a aumentar a sua eficácia. Menipo de Gadara, pelos meados do século 111 a.C., nas suas sátiras escritas em prosa mas intercaladas de versos, representou cenas burlescas 73 nas quais tomou como alvo os Epicuristas e os Cépticos. Baseado no seu exemplo, Vairrão escreveu as Sátiras menipeias. Cerca dos meados do século 111, a escola cínica perdeu a sua autonomia e acabou por fundir-se com a estoica. No começo da nossa era ela renasce do próprio Estoicismo; e renasce com o mesmo carácter de discurso petulante e sarcástico que o mais das vezes não tem nenhuma base filosófica e nenhuma justificação moral. Difundem-se neste período 51 Cartas atribuídas a Diógenes e a Crates. Séneca louva muito * seu contemporâneo Demétrio, que parece ter sido * renovador do Cinismo. Dión, chamado Crisóstomo, que viveu nos tempos do imperador Trajano, surge corno um propagandista popular das doutrinas tradicionais dos Cínicos. A escola cínica, que se reduziu a uma simples pregação moral sem fundamento filosófico, não sofreu a influência dos sucessivos desenvolvimentos da especulação e sobreviveu até ao século V d.C.
§ 113. SÉNECA O Estoicismo do período romano, ainda que obedecendo à orientação ecléctica, geral da época, orientação para a qual as divergências teóricas passam para segundo plano frente ao acordo fundamental das conclusões práticas, a que se subordina completamente a investigação filosófica, mostra já de modo evidente um carácter que a fase ulterior da especulação deveria acentuar: a prevalência do interesse religioso. Esta prevalência fundase no acento que nos estoicos romanos recebe o tema da interioridade espiritual. A concepção estoica do sage, que é auto-suficiente e alcança por si a verdade, é o pressuposto do valor que o Estoicismo começa a reconhecer àquilo que hoje chamamos 74 introspecção ou consciência. Para chegar a Deus e conformar-se com a sua lei, o sage estoico não tem necessidade de olhar para fora de si; deve apenas olhar para si próprio. Os estoicos romanos fazem deste retomo do homem a si próprio um dos seus temas preferidos, tema que devia depois tornar-se central e dominante no Neoplatonismo. Não se trata, contudo, de um tema que ofereça ponto de partida para novas formulações conceptuais. Dos numerosos estoicos da época imperial de que sabemos o nome e algumas notícias, nenhum apresenta qualquer originalidade de pensamento. Só quatro deles, Séneca, Musónio, Epicteto e Marco Aurélio nos aparecem dotados de personalidade filosófica própria. Lúcio Anneo Séneca, de Córdova, em Espanha, nascido nos primeiros anos da era cristã, foi mestre e, por longo tempo, conselheiro de Nero, por ordem do qual morreu em 65 d.C.. Dos seus escritos ficaram-nos sete livros de Qestioni naturali e numerosos tratados de carácter religioso e moral (Diálogos, Sobre a Providência, Sobre a Constância do Sage, Sobre a ira, Sobre a Consolação a Márcia, Da Vida Feliz, Da Brevidade da Vida, Sobre a Consolação a Políbio, Sobre a Consolação à Mãe Elvia, Dos Benefícios, Sobre a Clemência). Foi além disso autor de vinte livros de Cartas a Lucilio que cão uma fonte de notícias sobre o Estoicismo e o Epicurismo. Séneca insiste no carácter prático da filosofia: "a filosofia -escreve- ensina a fazer, não a dizem (F-p., 20, 2). O sage é para ele o "educador do género humano" (Ep., 89, 13). Por isso descura a lógica e só se ocupa da física de um ponto de vista moral e religioso. Com efeito, a ignorância dos fenómenos físicos é a causa fundamental dos temores do homem e a física elimina tais temores. Além da grandeza do mundo e da divindade ensina-nos 75 a reconhecer a nossa pequenez. Também, em certo sentido, a física é superior à própria ética porque enquanto esta trata do homem, aquela trata da divindade que se revela nos céus e em geral no mundo. (Quest. nat., 1, Pról.). Contudo, nem a física nem a metafísica de Séneca contêm algo de original relativamente às doutrinas comuns do Estoicismo. Pe-lo que respeita ao conceito da alma, pelo contrário, ele inspira-se na doutrina platónica. Depois de distinguir uma parte racional e uma parte irracional da alma, distingue nesta última duas partes: uma irascível, ambiciosa, que consiste nas paixões; a outra humilde, lânguida, dedicada ao prazer, divisão que corresponde à platónica das partes racional, irascível e apetitiva da mesma alma. Inspira-se também em Platão ao considerar a relação da alma com o corpo: o corpo é prisão e tumba da alma. O dia da morte é para a alma verdadeiramente o dia do nascimento eterno (Ep.,
102, 26). Séneca está muito longe do rigorismo estoico que colocava um abismo entre o sage que segue a razão e o estulto que a não segue. Está convencido que existe sempre uma oposição entre aquilo que o homem deve ser e aquilo que é na realidade; e que a oscilação entre o bem e o mal é própria de todos os homens; por isso é levado a considerar com maior indulgência as imperfeições e as quedas do homem. A sua máxima moral fundamental é o parentesco universal entre os homens: "Tudo aquilo que vês, que contém o divino e o humano, tudo é uno: somos todos membros de um grande corpo. A natureza gerou-nos como parentes dando-nos uma mesma origem e um mesmo fim. Ela inspirounos o amor recíproco e fez-nos sociáveis" (Ep., 95, 51). Séneca afirma e a interioridade de Deus no homem: "Não devemos erguer as mãos ao céu nem pedir ao guarda do templo que nos permita aproximar-nos das orelhas 76 da estátua de Deus, como se assim pudéssemos mais facilmente ser ouvidos: a divindade está próximo de ti, está contigo, está dentro de ti" (Ep., 41). A doutrina de Séneca é assim um estoicismo ecléctico de fundo religioso. Alguns aspectos desta doutrina, como o conceito da divindade, da fraternidade e do amor entre os homens e da vida depois da morte estão tão próximas do cristianismo que fizeram nascer a lenda das relações de Séneca com S. Paulo, lenda que levou até a falsificar uma correspondência (que não conservamos) entre ele e o apóstolo. Tais relações entre Séneca e S. Paulo certamente nunca existiram. Mas não há dúvida que a sua doutrina, especulativamente pouco notável, está impregnada por uma inspiração religiosa que lhe dá um carácter original. § 114. MUSóNIO. EPICTETO Musónio Rufo de Volsínio na Etrúria, foi expulso por Nero em 65 d.C. Regressou seguidamente a Roma e esteve em relações pessoais com o imperador Tito. Dos seus discursos conservou-nos numerosos fragmentos o Florilégio de Stobeo. Musónio acentua ainda mais que Séneca o carácter prático e moralizante da filosofia. O filósofo é o educador e o médico dos homens; deve curá-los das paixões que são as suas doenças. Para este fim, não há necessidade de muita ciência, mas apenas de muita virtude. Musónio inclina-se, por esta desvalorização da actividade teorética, para o cinismo e isto retira-lhe toda a importância especulativa. Foi seu discípulo Epicteto de Hierápolis, na Frígia. Nasceu cerca do ano 50 d.C., era escravo de Epafrodito, liberto de Nero. Libertado, viveu em Roma até 92-93 d.C. quando o édito de Domi77 ciano baniu de Roma todos os filósofos. Fundou então em Nicópolis no Epiro uma escola à qual pertenceu entre outros Flávio Arriano que recolheu as suas lições. Dos oito livros de Diatribes ou Dissertações em que Arriano recolheu tais lições, restam quatro. Além disto, ficou-nos um Manual que é uma espécie de breve catecismo moral. A intenção de Epicteto é a de voltar à doutrina original do Estoicismo e especialmente a Crisipo. Mas a sua doutrina conserva o mesmo carácter da de Séneca, o predomínio da irreligiosidade. Deus é o pai dos homens (Diss., 1, 3, 1). Ele está dentro de nós e da nossa alma; por isso o homem nunca está só (/h., 1, 14, 13). A vida é um dom de Deus e é um dever obedecer ao preceito divino. Estas e semelhantes expressões que, ainda que na
letra não se afastem muito das expressões análogas dos outros estoicos, acentuam a dependência do homem em relação a Deus, e fizeram nascer, também para Epicteto, a opinião de que ora cristão. Durante a época bizantina, parafraseou-se e comentou-se o Manual para uso cristão. Na realidade, a diferença entre o moralismo religioso de Epicteto e Séneca e o Cristianismo, está no facto de que, para o primeiro, o homem só pode alcançar a virtude através do exercício da razão e da procura inteiramente autónoma, enquanto para o Cristianismo o caminho do bem é outorgado ao homem pelo próprio Deus. Segundo Epicteto, a virtude é liberdade; mas o homem só pode ser livre desvinculando a sua própria posição interior de toda a dependência das coisas externas. Tudo aquilo que não está em seu poder, o corpo, os bens, a reputação e, em geral, todas as coisas que não são actos do seu espírito não devem ter o poder de comovê-lo e dominá-lo. As coisas sobro que deve fundar a sua liberdade são aquelas que estão em seu poder, isto é, os 78 actos espirituais: a opinião, o sentimento, o desejo, * aversão. Sobre estes ele pode agir, modificando-os * dominando-os de modo a tornar-se livre. Epicteto resume a ética estoica na frase Suporta e abstém-te (Gellio, Noct. att., XVII, 199, 6). É necessário abstermo-nos de hostilizar aquilo que não está no nosso poder evitar, enquanto que é necessário opormonos às coisas que estão no nosso poder, isto é, às opiniões, sentimentos e desejos contra a natureza ou irracionais. Arriano de Nicomédia, na Bitínia, foi cognominado o "segundo Xenofonte" na medida em que nos conservou as doutrinas de Epicteto. Também ele, como Xenofonte, foi militar e homem de acção. Recolheu de Epicteto as Dissertações e os Colóquios que se perderam; e é também o autor daquele resumo das Dissertações que é o Manual. § 115. MARCO AURÉLIO Com Marco Aurélio o estoicismo sobe ao trono imperial de Roma. Nascido em 121 d.C., de nobre família, Marco Aurélio foi adoptado pelo imperador Antonino e sucedeu-lhe em 161. Morreu em 180 durante uma campanha militar. Deixou um escrito composto de aforismos diversos, intitulado Colóquios consigo próprio ou Recordações, em 12 livros. Como Séneca, afasta-se aqui e ali da doutrina tradicional dos Estoicos; destaca-se principalmente no que respeita ao conceito da alma, no qual renega o materialismo estoico. Considera que o homem é composto de três princípios: o corpo, a alma material que é o princípio motor do corpo, e a inteligência. Como todos os elementos do organismo humano são partes dos correspondentes elementos do universo, assim o intelecto humano é parte do mundo. O génio que Zeus deu a cada 79 um como guia não é mais que a -inteligência e esta é um "pedaço" do próprio Zeus (V, 27). Das funções psíquicas, as percepções pertencem ao corpo, os impulsos à alma, os pensamentos ao intelecto. Como Séneca e Epicteto, Marco Aurélio considera que a condição da filosofia é o retiro da alma em si própria, a introspecção ou a meditação interior (IV, 3). Diz: "Olha para dentro de ti: dentro de ti está a fonte do bem, sempre capaz de brotar, se souberes sempre escavar em ti próprio" (VII, 59). Por isso, faz suas as teses estoicas da ordem divina do mundo e da providência que o governa, mas afirma também, por sua conta, o parentesco dos homens
com Deus. O génio individual como parte do intelecto universal e portanto de Zeus é o fundamento desta convicção religiosa. Pelo seu parentesco comum, os homens devem amar-se uns aos outros. "É próprio do homem amar também aquele que o fere. Deves ter presente que todos os homens são teus parentes, que eles pecam somente por ignorância e involuntariamente, que a morte nos ameaça a todos e, especialmente, que ninguém. te pode causar dano porque ninguém pode atacar a tua razão" (VII, 22). O homem é parte do fluxo incessante das coisas. "A realidade é como um rio que corre perenemente, as forças mudam, as causas transformam-se mutuamente e nada permanece imóvel" (IX, 28). Qual é o destino da alma neste fluxo? Marco Aurélio pinta com cores resplandescentes a condição da alma que, com a morte, se liberta do corpo, admitindo também a antiga crença do corpo como prisão e tumba da alma. Mas, para ele, o problema de saber se esta libertação será o inicio de uma nova vida ou o fim de toda a sensibilidade passa para segundo plano. Pode acontecer que a alma, ao reabsorver-se no todo, se transmute noutros seres 80 (como esta página é manuscrita, não se encontra aqui transcrita) Página do livro "De Finibus", de Cícero (Códi(,,é,, Palatino Latino 1513 da Bliblioteca Vaticana) (IV, 21). Nisto Marco Aurélio é mais fiel que o platonizante Séneca à doutrina original do Estoicismo. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 109. Os dados antigos sobre o Estoicísmo Ecléctico estão recolhidos in ZELLER, 111, 1, p. 57 ss. Os fragmentos de Panézio foram recolhidas por FoWLER (juntamente com os de Ecatón), Bonn, 1885. Funda- mental sobre a média Stoa a obra de SCHMEKEL, Die Philosophie der mittleren Stoa in ihrem geschichtliche Zusammenhange, Berlim, 1892. § 110. Os dados antigos sobre Filon e Antíoco, ín ZELLER, EI, 1, p. 609 ss. As obras de Cícero tiveram numerosas edições críticas: ver a da Biblioteca Teubneriana de Leipzig. Sobre Terêncio Varrão: ZELLER, 111, 1, p. 692 ss. As obras filosóficas de Varrão perderamse e -apenas restam alguns fragmentos. A distinção das três teologias foi-nos conservada por S. AGOSTINHo, De civitate Dei, VI, 5. § 111. Os fragmentos de Andrónico foram recolhidos por LITTIG na sua obra Andrónico de Rodes, II e 111 partes, 1894-95. Os fragmentos de Cláudio Ptolomeu, in MULLER, Pragm. hist. graec., III, p. 348 ss. As obras completas de Galeno foram editadas ao cuidado de Xuhn no Corpus medicorum graecorum, Leipzig, 1821-33. A Introdução à Lógica, só descoberta pelos meados do século passado, foi considerada apõcrifa por PrantI, mas agora a sua autenticidade é geralmente admitida, Foi editada com o título Institutio Logica por Kalbfleisch, Leipzig, 1896. De Alexandre de Afrodísia foram publicadas as obras na "Collezione dei Commentari greci" de ARISTõTELEs, a cargo da Academia de Berlim. Sobre estes peripatéticos: ZELLER, M, 1, 641 ss. Sobre a lógica: PRANTL, 1, 528 ss. § 112. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Blon e de Menipo: DIõGENEs LAÉRcio, IV, 46 ss (Bion), VI, 99 ss. (Menipo). Os fragmentos de Bion, in MULLACH, Fragmenta phil. graec. 11, 423 ss. Os dados antigos sobre os cínicos posteríores, in ZELLER, 111, 1, 791 ss.
81 § 113. Os dados antigos sobra Séneza foram recolhidos ín ZELLER, HI, 1, p. 719 ss. Das obras de Séneca ver as edições Teubnerianas de Leipzig. Sobre Séneca: MARCHESI, Seneca, Messina, 1920; MARTIjA, Les moralistes sous Z'Empire romain, Paris, 1896. § 114. Os dadosantigos sobre Mus6nio, in ZELLER, nI, 1, p. 755 ss. Os fragmento.<,, recolhidos por HENsE, Leipzig, 1905 (BibL Teubneriana). Sobre Epicteto e Arriano os dados antigo-s in ZELIER, 111, 1, p. 765 ss. As Dissertações (a cargo de SCHENKL), O Manual e os fragmentos, editados em Leipzig, 1916. O Manual, trad. italiana de GIACOmo LEoPARDI. Sobre Epicteto: BONHOrFER, Die Ethik der Epikt49@G Sttutgard, 1874. § 115. Os
O acentuar do carácter religioso da filosofia nos Estoicos do período romano é o início de uma orientação que se torna cada vez mais dominante no período seguinte e que encontra a sua primeira expressão num eclectismo que procura recolher e cerzir os elementos religiosos implícitos na história do pensamento grego, da religião dos mistérios ao pitagorismo e ao platonismo; depois, nas filosofias que se enlaçam expressamente com as religiões orientais e procuram conduzir de novo a elas o próprio pensamento grego (filosofia greco-judaica). Em suma, a expressão mais alta desta orientação será o Neoplatonismo. § 117. OS NEOPITAGóRICOS A revivescência da filosofia pitagórica manifesta-se no século 1 a.C. com o aparecimento dos 84 escritos pitagóricos de falsa atribuição (Ditos Áureos, Símbolos, Cartas, atribuídas a Pitágoras; Sobre a Natureza do Todo, atribuído ao lucano Ocello), dos quais nos restam alguns fragmentos. Todos são caracterizados pelo reconhecimento de uma separação total entre Deus e o mundo, reconhecimento que traz consigo a necessidade de suportar divindades inferiores que fazem de intermediários entre Deus e o mundo. A este mesmo tipo de escritos pertencem os que nos chegaram sob o nome de Hermes Trismegisto, que apareceram durante o século 1 d.C. Estes escritos tendem a relacionar a filosofia grega com a religião egípcia: Hermes é reconhecido como o próprio deus egípcio Theut ou Thot. É comum nos escritos de Hermes a hostilidade contra o cristianismo e a defesa do paganismo e das religiões orientais. Como renovador da filosofia pitagórica, Cícero assinala P. Nigídio Fígulo, falecido em 45 a.C. Pelo final do século I d.C., Apolónio de Tiana escreveu uma vida de Pitágoras na qual desenhou de modo novelesco a figura do fundador do pitagorismo. Apolónio viajou por todo o Império Romano como mago, profeta e operador de milagres. Filostrato escreveu uma Vida de Apolórdo no princípio do século 111 d.C. Num escrito, Sobre os Sacrifícios, de Apolónio, surge a distinção entre o primeiro deus e as outras divindades que havia de dominar a especulação teológica deste período. Parece que foram compostas, por volta de 140 d.C., as duas obras que nos chegaram de Nicómaco de Gerasa, na Arábia: Introdução à Aritmética e Manual de Música. Na primeira obra sustenta-se a préexistência dos números no espírito do criador anteriormente à criação do mundo. Os números são os modelos em conformidade com os quais todas as coisas foram ordenadas. Os princípios da criação são o uno, que é identificado com a razão 85 ou divindade, e a dualidade que se identifica com a matéria, segundo a doutrina dos antigos académicos. Numénio de Apameia, na Síria, viveu na segunda metade do século 1 d.C. e a sua doutrina é uma mistura de elementos pitagóricos e platónicos. Segundo Numétrio, a filosofia dos gregos deriva da sabedoria oriental; Platão é um "Moisés ateicizante". Escreveu: Dos Mistérios segundo Platão, Sobre o Bem e Da Separação dos Académicos de Platão, obras
das quais temos fragmentos. Notável é a divisão das três divindades. Ele distingue o demiurgo, da primeira divindade, como um segundo deus. O primeiro deus é puro intelecto, princípio da realidade e rei do universo. O segundo deus é o demiurgo, que opera sobre a matéria, forma o mundo e é o princípio do devir. O mundo, produzido pelo demiurgo, é o terceiro deus. Fundem-se nesta concepção os conceitos platónicos do bem como princípio supremo e do demiurgo com o conceito aristotélico de Deus como puro intelecto. No homem, Numénio distingue duas almas, uma racional o outra irracional, e declara que o ingresso da alma num corpo é sempre um mal, dado que a irrealidade incorpórea, e o devir corpóreo estão entre si como a boa e a má alma do mundo. A doutrina de Numénio apresenta características que se deviam tornar comuns na especulação deste período: o sincretismo greco-oriental, a conciliação entre Pitágoras e Platão, a crença em divindades katermédias entre Deus e o mundo, a oposição entre espírito e matéria como oposição entro bem e mal, § 118. O PLATONISMO MÉDIO A mesma mistura de doutrinas dispares encontra-se nos sequazes da escola de Platão a partir 86 do século 1 d.C. como continuação daquela orientação ecléctica que começara com Antíoco de Asca. lona. Neste período, dos numerosos representantes da escola o mais notável é Plutarco, de Queroncia, nascido em 46 e morto em 120 d.C. que desenvolveu a sua actividade científica em Atenas aonde foi no ano 66 d.C. Ficaram-nos dele numerosíssimas obras de comentário a Platão, de polémica contra os Estoicos e os Epicuristas, de física, de psicologia, de ética, de religião e de pedagogia. Ele é também autor das famosas Vidas Paralelas de gregos e romanos. Plutarco considera impossível fazer derivar todo o mundo de uma única causa. Se Deus fosse a única causa do mundo, não deveria existir o mal; tem pois de se admitir, ao lado de Deus, um outro princípio que seja a causa do mal no mundo como Deus é a causa do bem. Este princípio não é a matéria, mas uma força indeterminada e indeterminável que é subjugada por Deus no acto de criação, mas se mantém de modo permanente no mundo como causa de toda a imperfeição e de todo o mal. Deus como puro bem é assim situado absolutamente acima do mundo; e a sua relação com o mundo é estabelecida pelas divindades intermédias ou demónios com cuja acção Plutarco explica e justifica as crenças da religião popular dos gregos e das outras nações. Plutarco aceita a divisão platónica da alma em intelectiva ou racional, irascível e apetitiva (Sobre as virtudes morais, 3). Noutros lados, combina a divisão platónica com a aristotélica, admitindo assim cinco partes da alma. De todas as maneiras, mantém a superioridade do intelecto sobre as outras partes. Na ética, segue preferentemente Aristóteles. Há coisas que não têm relação necessária connosco como o céu, a terra, o mar, os astros; há outras que têm como o bem, o mal, o 87 prazer, a dor. As primeiras são objecto da razão (logos) científica ou teorética, as segundas, da razão volitiva ou prática. A virtude própria da razão especulativa é a sabedoria (sofia); a própria da razão prática é a sageza (frónesis). A razão prática tem como fim moderar os impulsos da parte irracional da alma e encontrar o justo meio entre o excesso e o defeito.
Determinam-se assim as virtudes morais ou éticas, que Plutarco opõe à apatia cínicoestoica, como a harmonia e o justo meio das paixões frente à abolição completa delas, que não é possível nem desejável. A obra de Plutarco teve uma importância muito superior ao seu significado especulativo. Através dela se difundiram e foram conhecidas em todos os países as doutrinas fundamentais da filosofia grega, mais que através das obras originais. Contudo, nada na sua filosofia existe que tenha a potência e o rigor da especulação clássica. § 119. A FILOSOFIA GRECO-JUDAICA Se, por uma parte, a filosofia grega estende a mão neste período à sabedoria oriental, por outra a sabedoria oriental estende a mão à filosofia grega, solidarizando-se com ela na mesma tentativa de fundir juntamente os resultados da especulação grega e da tradição religiosa do Oriente. Na Palestina, no século 1 da era cristã, a seita dos Essénios, de que nos falam Ffion, Josefo e Plínio, mostra uma profunda afinidade com o Neopitagorismo de tal modo que faz supor que ela se tenha desenvolvido sob a influência dos mistérios órfico-pitagóricos. Esta seita era constituída por várias comunidades submetidas a uma disciplina severa e a um certo número de regras ascéticas. Do ponto de vista doutrinal, interpretavam alegó88 MARCO AURÉLIO ricamente o Velho Testamento, segundo uma tradição que faziam remontar a Moisés. Acreditavam na pré-existência da alma e na vida depois da morte, admitiam as divindades intermédias ou demónios e a possibilidade de profetizar o futuro. Quase todas essas crenças se encontram no Neopitagorismo e o Platonismo médio. Aos Essénios se costuma frequentemente atribuir as doutrinas expostas nos documentos recentemente encontrados nas proximidades do Mar Morto e que se designam precisamente como os "manuscritos do Mar Morto". Com efeito, estas doutrinas não se diferenciam das dos Essénios que se conhecem pelas fontes tradicionais; e de qualquer modo os documentos que os contêm são uma outra prova de difusão da filosofia grecojudaica com carácter religioso na época que precede imediatamente o advento do cristianismo. Afim aos Essénios foi a seita judaico-egípcia dos Terapêuticos que se desenvolveu no Egipto. Terreno muito favorável para a fusão dos elementos doutrinais gregos o orientais foi Alexandria. Alguns fragmentos de Aristóbulo (cerca de 150 a.C.) procuram demonstrar que já Pitágoras e Platão tinham conhecido os escritos do antigo Testamento. No livro da Sabedoria do Antigo Testamento, provavelmente composto no século 1 a.C., há claras reminiscências do Platonismo e do Pitagorismo, -ia afirmação da pré-existência e da imortalidade da alma, do impedimento que o corpo constitui paTa ela e na concepção de uma matéria pré-existente e do Logos como mediador da criação divina. § 120. FILON DE ALEXANDRIA
Nascido em Alexandria entro o ano 30 e o ano 20 a.C., Fílon o judeu foi a Roma no ano 40 d.C. como embaixador dos judeus alexandrinos ao 89 imperador Calígula. Temos dele grande número de escritos de argumentos diversos, de que os principais sã o os que constituem um comentário alegórico ao Velho Testamento. Por um lado, Ffion está cheio de veneração pelas Sagradas Escrituras e, em primeiro lugar, por Moisés que ele considera inspirado directamente por Deus; por outro lado, é admirador dos filósofos eh ade expressa por eles gregos e considera que a verd é a mesma que está contida nos livros sagrados. A esta convicção chega -interpretando alegoricamente as doutrinas do Velho Testamento e adaptando a elas os conceitos da filosofia grega. O resultado é uma forma de Platonismo muito próxima da que se desenvolvera em Alexandria e que costumava reportar-se a Platão e a Pitágoras. Os pontos fundamentais da filosofia de Fílon são três : a transcendência absoluta de Deus relativamente a tudo o que o homem conhece; a doutrina do Logos como intermediário entre Deus e o homem, o fim do homem determinado como a união com Deus. Na sua perfeição absoluta, Deus é tal que é impossível compreender a sua natureza. Também o homem inspirado pode ver quem ele é, não que coisa é. Deus é superior ao bem e à unidade e não pode ter outro nome senão Ser (como indica a própria palavra hebraica Jeová-Aquele que é). A Deus pertencem as duas potências originais, a bondade e o poder; pela primeira, ele é propriamente Deus, pela segunda é o Senhor. Entre estas duas potências existe uma terceira, conciliadora de ambas, a Sabedoria, Logos ou Verbo de Deus, que é a imagem mais perfeita do próprio Deus. O Logos foi o mediador da criação do mundo. Antes de criar o mundo, Deus criou um modelo perfeito, não sensível, incorpóreo, e semelhante a ele, que é precisamente o Logos (De mundi opif., 4). E sei-vindo-se dele criou o mundo. Criou-o ser90 vindo-se de uma matéria que ele próprio tinha aprontado antecipadamente e a qual era originariamente indeterminada, privada de forma e de qualidade: Deus determinou-a, deu-lhe forma e qualidade e deste modo da desordem a levou à ordem, Da matéria derivam as imperfeições do mundo. O Logos divino é a sede das ideias por intermédio das quais Deus ordena e forma as coisas materiais. As ideias são, portanto, concebidas por Filon como forças, porque a matéria é formada por seu intermédio. O fim do homem é a sua união com Deus. Para chegar a Deus o homem deve, em primeiro lugar, libertar-se da sensibilidade e dos vínculos com o corpo, deve libertar-se também da razão e esperar a graça divina que o eleve até à visão de Deus. Só se tem esta visão quando o homem saiu fora de si mesmo (estasi) e está debaixo de urna espécie de furor dionisíaco, como ébrio e enlouquecido. Trata-se de uma condição que não se pode exprimir porque é sobrehumana e misteriosa (De ebrietate, 261-62). NOTA BIBLIOGRÁFICA § 177. O material antigo sobre os Neopitagóricos, indicado em ZELLER, 111, 2, p. 124 ss, 234 ss. Os Ditos Areos em DIEHL, Anthol. 1yrica, Leipzig, 1923. O escrito de Ocello in MULLACH, Fragm. phil. graec., I, que contém também as
Cartas atribuídas a Pitágoras, assim como a Vida de Pitágoras de PORFIRio e de JÂMBLICO foram traduzidas para italiano por PESENTI, Lanciano, 1922 (Cultura dell' anima). § 118. Dados antigos sobre Plutarco, recolhidos em ZELLER, 111, 2, 176 ss. As obras de Plutarco encontram-se em numerosas edições: ver a de 7 volumes a cargo de vários autores na Biblioteca Teubneriana de Leipzig. D. BAssi, Il pensiero moraZe, peda, gogico, religioso di Plutarco, Florença, 1927; P. THÉ91 VENAZ, LIâme du monde, le devenir et Ia matière chez Plutarque, Paris, 1939. § 119. Noticias antigas sobre os Essénios In ZELLER, 111, 2, p. 308 ss. Sobre os manuscritos do Mar Morto: DuPONT-SOMMER, Observations sur le Commentaire d'Habacuc découvert près de Ia Mer morte, Paris, 1950; ID., Observations sur le Manuel de Discipline découvert près de Ia Mer Morte' Paris, 1951; MILLAR BURROWS, The Dead Sea, Scrolls, Nova Iorque, 1956 (que contém também a tradução inglesa dos textos encontrados). § 120. Das obras de Ffion as edições são: Mangey, Londres, 1742 (com tradução latina); Richter, Leipzig, 1828-30; Cohn e WendIand, Berlim, 1896 ss. Commentaire allégorique des saintes lois, texto, tradução francesa e comentário de BRÉHIER, Paris, 1909. Sobre F'ílDn: BRÉHIER, Les idées philos. et relig. de Ph. d'Alex., Paris, 1908; GOODENOUCri, The Politics of Philo. Juda6us, New Haven, 1938 (com bibl.); WOLFSON, Philo. Foundations of Religious Philosophy in Judai.sm, Christianity and Islam, Cambridge (Mass.), 2 vols., 1947. 92 XVIII O NEOPLATONISMO § 121. A "ESCOLÁSTICA" NEOPLATóNICA O Neoplatonismo é a última manifestação do Platonismo no mundo antigo. Ele resume e leva à formulação sistemática, e (com Proelo) de um modo escolástico, as tendências e orientações que se tinham manifestado na filosofia grega e alexandrina do último período. Elementos pitagóricos, aristotélicos, estoicos fundem-se no Platonismo numa vasta síntese que devia influenciar poderosamente todo o curso do pensamento cristão e medieval e através dele também o do pensamento moderno, O Neoplatonismo é assim a manifestação mais notável da orientação religiosa que prevalece na filosofia da época alexandrina. É também a primeira forma histórica da escolástica, se com tal nome se entende a filosofia que procura realizar uma compreensão racional das verdades religiosas tradicionais (§ 173). Com efeito, a atitude religiosa implica que a verdade como tal não se busca: ela foi revelada e é garantida pela tradição. Por outro lado, é oportuno 93 compreender, explicar e defender tal verdade; para este fim se utiliza a filosofia que melhor
se presta, neste caso o Platonismo. Por isso o Neoplatonismo não tem nada que ver com o Platonismo original e autêntico. É, pelo contrário, uma espécie de escolástica que utiliza o Platonismo, em mistura confusa com elementos doutrinais heterogéneos com o fim de justificar uma atitude religiosa. O facto de Proclo, o representante mais sabedor da escolástica neoplatónica, ter considerado apócrifas a República e as Leis de Platão, que se prestam mal, pelo seu dominante interesse político, a serem utilizadas para os fins de uma apologética religiosa, constitui uma prova evidente da descontinuidade que existe entre o Platonismo e Neoplatonismo e da impossibilidade de utilizar este último como elemento de compreensão histórica do Platonismo originário. Fundador do Neoplatonismo é António Sacca, que viveu entro o ano 175 e o 242 d.C. sem deixar nenhum escrito. Era braceiro (donde o sobrenome de "Sacca"); seguidamente ensinou em Alexandria a filosofia platónica. Entro os seus alunos contaram-se Orígenes, que não se deve confundir com o Orígenes cristão (§ 144), e Cássio Longino (cerca de 213-273), retórico o filólogo, sob o nome do qual nos chegou o escrito Do sublime, que não obstante não é seu. A maior figura do Neoplatonismo é Plotino. Nascido em Licopoli, no Egipto, em 203 ou 204 d.C., participou na expedição do imperador Gordiano contra os persas para conhecer as doutrinas dos persas e dos indianos. No regresso, estabeleceu-se em Roma, onde a sua escola contou entre os seus ouvintes numerosos senadores romanos. O imperador Galieno e a sua mulher Salonina estiveram entre os seus admiradores. Morreu na Campânia com 66 anos, em 269 ou 270 depois de Cristo. 94 O s--u aluno Porfírio de Tiro (nascido em 232-33 e falecido no princípio do IV século) publicou os escritos do mestre ordenando-se em seis Enneadi, ou seja, livros de nove partes cada um. Porfírio é também autor de numerosas obras originais. Entre estas são particularmente importantes uma Vida de Plotino, uma Vida de Pitágoras e a Introdução às Categorias de Aristóteles que é um comentário em forma de diálogo ao escrito aristotélico. O interesse fundamental de Porfírio, é prático-religioso. Ele tira da doutrina de Plotino motivos para defender a religião pagã. § 122. PLOTINO: DEUS Plotino acentua até ao extremo limite a transcendência de Deus, na qual tinham já insistido os Neopitagóricos e Ffion. Mas ao passo que Ffion, ainda identifica Deus com o ser, Plotino afirma que Deus está "para lá do sem (V, 5, 6); "para, lá da substância" (VI, 8, 19); "para lá da morte" (111, 8, 9) de modo que é transcendente a respeito de todas as coisas, ainda que produzindo-as e mantendo-as ele próprio em ser (V, 5, 12). Assim a causa do ser vem de qualquer modo destacada do ser, como aquilo que é inalcançável e inexprimível da parte do homem. O nome que é menos inadequado para dar a Deus é, segundo Plotino, o de Uno e isto quer porque Deus é unidade, isto é, a causa simples e única de todas as coisas, quer porque o nome "Uno" se presta a designar aquilo que é simples e diferente de todas as coisas que vêm depois (V, 4, 1). O próprio Plotino adverte, porém, que este nome não contém mais que a exclusão do múltiplo e, salvo esta exclusão, não é mais adequado que os outros para exprimir Deus (V, 5, 6". Com estas considerações, Plotino inicia aquilo que se chamou seguidamente a teologia negativa, isto é, a
95 determinação de Deus através do reconhecimento da impossibilidade de predicar dele todas e cada uma das determinações finitas. Além disso, a definição de Deus como unidade não tem nada a ver com o monoteísmo. Conformemente a toda a tradição grega, Plotino defende explicitamente o politeísmo como consequência necessária do poder infinito da divindade. "Não restringir a divindade a um único ser, fazê-la ver múltiplice: como ela própria se manifesta, eis o que significa conhecer o poder da divindade, capaz, ainda que permanecendo aquele que é , de criar uma multiplicidade de deuses que se ligam com ele, existem para ele, existem para ele e vêm dele" (11, 9, 9). Para uma divindade concebida deste modo a criação não pode ser um acto de vontade, o que implicaria uma mudança na essência divina. A criação acontece de tal maneira que Deus permanece imóvel no centro dela, sem querê-la nem consenti-Ia. Ela é um processo de emanação, semelhante àquele pelo qual a luz se difunde em torno do corpo luminoso ou o calor em torno do corpo cálido ou, melhor, semelhante ao perfume que emana do corpo odorífero (V, 1, 6). Utilizando a noção aristotélica de Deus como "pensamento do pensamento" (§ 78), Plotino interpreta a própria emanação como o pensamento que o Uno pensa de si. O Uno, pensando-se, dá origem ao Intelecto, que é a sua imagem (V, 4, 2); o Intelecto, pensando-se, dá origem à Alma, que é a imagem do Intelecto (IV, 8, 3). Passando rapidamente de imagem a imagem, a emanação @ também um processo de degradação. Aquilo que emana do Uno é inferior ao Uno, assim como a luz é menos luminosa do que a fonte donde emana e a onda de perfume é menos intensa à medida que se afasta do corpo odorífero. Os seres que emanam de Deus não podem--- por96 séneca tanto, ter nem a sua perfeição nem a sua unidade, mas tendem cada vez mais para a imperfeição e a multiplicidade. § 123. PLOTINO: AS EMANAÇõES A primeira emanação do Uno é o Intelecto (Nous) que é a imagem mais próxima dele. O Intelecto contém já a multiplicidade na medida em que implica a distinção entre o sujeito que pensa e o objecto pensado. Este Intelecto, como o Logos, ou o Verbo de Fílon, é a sede das ideias platónicas. Ele é identificado por Plotino com o Demiurgo de que fala Platão no Timeu. Do Intelecto procede a segunda emanação, a Alma do Mundo, que é Verbo e Acto Intelecto, como o Intelecto o é do Uno. Por um lado, a alma olha o Intelecto de que provém e com o qual pensa, pelo outro olha-se a si própria e conserva-se; pelo outro ainda, olha aquilo que está depois dela e ordena-o, governa-o e rege-o. Assim a Alma universal tem uma parte superior que se dirige ao Intelecto e uma parte inferior que se dirige ao corpo: com esta governa o universo corpóreo e é Providência. Deus, o Intelecto e a Alma do mundo constituem o mundo inteligível. O mundo corpóreo supõe para a sua formação, além da acção da Alma do mundo, de um outro princípio de que derivam a ,imperfeição, a multiplicidade e o mal. Este princípio é a matéria, concebida
por Plotino negativamente, como privação da realidade e do bem. A matéria está no extremo inferior da escala no cimo da qual está T)eus. Ela é a obscuridade que começa onde termina luz, portanto não-ser e mal. As almas singulares são partes da alma do mundo. A Alma universal penetrou a matéria vivi97 ficando-a e penetrando-a toda, mas permanecendo em si mesma única e indivisível. Ela produz a unidade e a simpatia de todas as coisas do mundo, já que estas, tendo uma única alma, se ligam umas às outras corno os membros de um mesmo animal. Dominado como está pela Alma universal, o mundo tem uma ordem e uma beleza perfeitas. Para descobrir esta ordem é necessário olhar o todo no qual encontra o seu posto e a sua função cada parte singular, ainda aquela aparentemente imperfeita ou má. O próprio vício tem uma função útil ao todo porque se torna um exemplo da força das leis e acaba por produzir consequências úteis (111, 2, 5). § 124. PLOTINO: A CONSCIÊNCIA E O RETORNO A DEUS Na filosofia de Plotino toma-se central e dominante um conceito que já assomara na especulação dos Estoicos: o de consciência. Consciência não é * conhecimento dos próprios estados internos, mas * atitude do sage que não tem necessidade de sair fora de si para encontrar a verdade e que, por isso, tem o olhar constantemente voltado para si próprio. A consciência é, neste sentido, o campo privilegiado em que se manifestam na sua evidência as verdades mais altas que o homem pode alcançar e a fonte ou o próprio princípio de tais verdades, isto é, Deus. O pressuposto deste conceito é a auto-suficiência do sage sobre que tinham insistido os Estoicos e que tinha dominado as especulações morais dos estoicos romanos. A distinção estabelecida por Epicteto entre "s coisas que estão em nosso podem, isto é, os nossos actos espirituais e "as coisas que não estão em nosso podem, isto é, as coisas externas, como fundamento das atitudes 98 morais do homem, não é senão um corolário do princípio da consciência. Para indicar a consciência como introspecção ou auscultação interior, Plotino adopta expressões como "retorno, a si próprio", "retorno à interioridade", "reflexão sobre si próprio" e contrapõe constantemente esta atitude própria do sage a quem, em contrapartida, se orienta, pela conduta da sua vida, para o conhecimento das coisas externas. "0 sage -diz Plotino- tira de si próprio aquilo que revela aos outros e olha para si próprio dado que não somente tende a unificar-se e a isolar-se das coisas externas, mas se dirige a si próprio e encontra em si todas as coisas" (111, 8, 6). O retomo a Deus é um itinerário que o homem só pode iniciar e percorrer mediante o retorno a si próprio. As etapas do retorno a Deus são as etapas da progressiva interiorização do homem; e, em primeiro lugar, da sua libertação de toda a dependência ou relação com a exterioridade corpórea. Plotino afirma, portanto, que o primeiro dever do homem é o de subtrair-se aos seus laços com o corpo e purificar-se mediante a virtude. As virtudes são caminhos de purificação porque são caminhos de libertação da exterioridade. Com a inteligência e a sabedoria, a alma do homem habitua-se a operar por si só, sem a
ajuda dos sentidos corpóreos; com a temperança liberta-se das paixões; com a coragem não teme separar-se do corpo; com a justiça faz que comande em si apenas a razão e o Intelecto (1, 2, 3). A virtude como purificação constitui, contudo, apenas uma condição libertadora do itinerário interior em direcção a Deus. Na música, no amor e na filosofia, a alma encontra os caminhos positivos do retorno a Deus. Através da música, o homem deve progredir para lá dos sons sensíveis, procurando alcançar as suas relações o as suas medidas para se erguer até 99 àquela harmonia inteligível que é a própria beleza. Através do amor, o homem eleva-se gradualmente (segundo o processo já descrito por Platão no Fedro) da contemplação da beleza corpórea à da beleza incorpórea, a qual é um reflexo ou imagem do Bem, isto é, de Deus. Com efeito, a beleza resplandece nas coisas que estão mais próximas da perfeição; uma estátua é mais bela do que um bloco de mármore, um corpo vivo mais belo do que uma estátua. Mas para lá da beleza o homem deve avançar com a filosofia para a própria fonte da beleza que é Deus. Todavia, a Deus não se poderá chegar através da inteligência porque esta está confficionada pelo dualismo do sujeito que pensa e do objecto pensado, enquanto que Deus é absoluta unidade. Na visão de Deus não há já intervalo, não há já dualidade, mas a alma une-se a Deus totalmente com um êxtase de amor. Não se trata de uma visão mas de "êxtase e de simplificação, de descanso e de união, de completa entrega". Esta condição só raramente pode ser alcançada pelo filósofo. Porfírio testemunha-nos que, nos seis anos que esteve com o mestre, Plotino só quatro vezes atingiu o êxtase. § 125. A ESCOLA SIRíACA O discípulo de Porfírio, Jâmblico de Cálcide, falecido por volta de 330, inicia o chamado Neoplatonismo siríaco, muito mais próximo das fontes orientais do que o plotiniano. Foi autor de numerosos escritos dos quais nos restam cinco livros da obra Sobre os mistérios dos egípcios. Jâmblico, é mais um teólogo do que um filósofo. Elo multiplica as emanações plotinianas subdividindo-as em outras tantas divindades, às quais faz corresponder os deuses da religião popular. Insiste, pois, sobre o valor da teurgia, que é a virtude mágica dos ritos 100 e das fórmulas propiciatórias. A divindade, diz ele, não pode ser persuadida a agir pelo nosso pensamento porque a perfeição não é levada a agir por aquilo que é imperfeito. Ela age, em contrapartida, em virtude dos símbolos o das fórmulas que ela própria sugeriu aos homens. O Neoplatonismo inclinava-se assim com Jâmblico para uma teologia mítica que se prestava a justificar todas as superstições das crenças pagãs. Jâmblico -teve numerosos discípulos que, pelas notícias que nos chegaram, aparecem desprovidos de qualquer originalidade. Quando o imperador Juliano, (dito o Apóstada) quis dar nova vida ao paganismo para pô-lo como fundamento da vida política do Império, recorreu precisamente à filosofia neoplatónica na forma que Jâmblico lhe tinha dado. Entretanto, a escola platónica de Alexandria continuava e teve novo esplendor com uma mulher, Hipázia, que caiu em 415 vítima do fanatismo da plebe cristã, suscitada contra ela pelo bispo Cirilo.
Dos escritos do seu discípulo Sinésio de Cirena (nasceu por volta do ano 370) que em 411 se torna bispo de Ptolomaida (§ 169) parece que ela expusera a doutrina neoplatónica segundo os ensinamentos de Jâmblico. § 126. A ESCOLA DE ATENAS A última fase do Neoplatonismo foi dedicada provalentemente ao comentário das obras de Platão o de Aristóteles. No princípio do século V, o chefe da escola ateniense é Plutarco de Atenas, filho de Nestório, que morreu muito velho no ano 401-02 e comentou Platão e Aristóteles. A especulação metafísica foi, em contrapartida, cultivada por Siriano (o mestre de Proclo), o qual se refere especialmente a Platão que considerava 101 superior a Aristóteles e que quis conciliar com os Pitagóricos e com os Neoplatónicos. Proclo é o maior representante da orientação ateniense. Nascido em Constantinopla no ano 410 e educado em Lícia, aos 20 anos dirigiu-se para Atenas onde permaneceu até a sua morte, ocorrida em 485. As suas obras mais importantes são o Comentário ao Timeu, à República, ao Parménides, ao Alcibíades 1 e ao Crátilo e dois escritos sistemáticos, a Instituição teológica e a Teologia platónica. Proclo deu à filosofia neoplatónica a sua forma definitiva. Sucederam-lhe numerosos pensadores que seguiram as suas pisadas mas que não oferecem nenhuma contribuição original para a sua doutrina. À última geração de neoplatónicos pertence Simplício, cujos comentários a muitas obras de Aristóteles têm para nós a máxima importância como fontes de todo o pensamento antigo, e representam também uma notável obra de pensamento. No ano 529 Justiniano proibiu o ensino da filosofia em Atenas e confiscou o ingente património da escola platónica. Damáscio, que era o seu chefe, com seis companheiros, entre os quais Simplício, refugiou-se na Pérsia. Mas dali voltaram depressa desiludidos. Doravante o pensamento platónico não existia mais como tradição independente porque havia sido absorvido e assimilado pelo pensamento cristão. O seu último representante pode dizer-se que foi Severino Boécio (§ 172). Boécio traduziu e comentou os principais escritos do Organon aristotélico e a Introdução às categorias de Porfírio. Escreveu também um Comentário desta obra e outros trabalhos de lógica, matemática e música. No cárcere escreveu depois a obra que o tornou famoso durante toda a Idade Média, A consolação da filosofia. Esta obra não é original, mas resulta da utilização de várias fontes, entre as quais o Protréptico de Aris102 tóteles, talvez conhecido através de algum escritor mais recente que o reproduzira. O ponto de vista de Boécio, é um platonismo, ecléctico. De Platão tira Boécio o conceito da divindade como sumo Bem; com Aristóteles considera Deus como o primeiro motor imóvel; com os Estoicos admite a providência e o fado. Embora seja cristão, na sua filosofia segue de perto o Neoplatonismo, da época. Apresenta na sua pessoa a passagem da antiguidade à Idade Média; é o último romano e o primeiro escolástico.
§ 127. A DOUTRINA DE PROCLO O ponto fundamental da filosofia de Proclo, é a ilustração daquele princípio triádico, que é próprio do Neoplatonismo. Todo o processo se cumpro por via da semelhança das coisas que surgem com aquilo de que procedem. Um ser que não produz um outro permanece em si próprio imutável; mas a coisa produzida necessariamente se lhe assemelha. Ora o produto, enquanto tem qualquer coisa de idêntico com o que produz, resta nele; enquanto tem qualquer coisa de diverso, procede dele. Mas sendo semelhante é de algum modo idêntico e diverso; portanto permanece e procede ao mesmo tempo, e não faz nenhuma das coisas sem a outra. Ora todo o ser, que procede por sua natureza do uma coisa, retorna a ela. Retoma porquanto não pode fazer outra coisa senão aspirar à própria causa que é seu bem; e todo o ser deseja o bem. Este retorno ou conversão realiza-se pela semelhança de quem retoma com aquilo a que retoma (Ist. Teol., 30, 32). Com isto, Próclo, distingue, no processo das emanações de todo o ser pela sua causa, três momentos: 1.' o permanecer (moné) lutável da causa em si mesma; 2.* o proceder (próodos) dela pelo ser derivado que, pela sua 103 semelhança com ela, permanece aderido a ela e por sua vez se afasta dela; 3.' o retorno ou conversão (epistrophé) do ser derivado à sua causa originária. Aquele processo de emanação, que Plotino ilustrava em termos metafópicos com o exemplo da luz e do odor, é justificado por Proclo com esta dialéctica da relação entre a causa e a coisa produzida, pela qual ao mesmo tempo se enlaçam, se separam e voltam a unir-se num processo circular no qual o princípio e o fim coincidem. O ponto de partida de todo o processo é o Uno, Causa primeira e Bem absoluto que Proclo, como Plotino, considera incognoscível e inexprimível. Do Uno procede uma multiplicidade de Unidades ou Enadi que são também Bens supremos e Divindades e fazem de intermediários entre o Uno originário e o mundo do Intelecto. O Intelecto, que é a terceira fase da emanação, é dividido por Proclo em três momentos; o inteligível (o objecto do Intelecto), que é o ser; o inteligível-intelectual, que é a vida; o intelectual (o Intelecto como sujeito), que é o Intelecto. O ser e a vida, por sua vez, dividem-se em vários momentos a cada um dos quais Proclo faz corresponder uma divindade da religião popular. O quarto momento da emanação é a Alma, dividida em três espécies: a divina, a demoníaca e a humana, as primeiras duas são ainda divididas e identificadas com divindades ou seres da religião popular. O mundo é organizado e governado pela Alma divina. O mal não deriva da divindade, mas da imperfeição dos graus médios e baixos da escala do mundo e da sua deficiente aceitação do bem divino. A matéria não pode ser causa do mal porque ela foi criada por Deus como necessária para o mundo. Além das faculdades assinaladas na alma por Platão e Aristóteles, Proclo admite nela uma faculdade superior a todas, o Uno na alma, que corresponde ao Uno no mundo e é a faculdade apta a 104 conhecê-lo. O processo da elevação moral e intelectual da alma culmina na união extática com o Uno. Os graus últimos deste processo de elevação são o amor, a verdade e a fé. O amor leva o homem até à visão da beleza divina; a verdade até à sabedoria divina e ao
conhecimento perfeito da realidade. Mas só a fé o leva para lá do conhecimento e de todo o devir, ao repouso e à união mística com aquilo que é incognoscível e inexprimível. NOTA BIBLIOGRÁFICA 121. Os dados antigos sobre Amónio Sacca, Orígenes e Longino foram recolhidos por ZELLER, HI, 2, p. 500 ss. Para Plotino a fonte principal das notícias biográficas é a Vida de Plotino de PORFIRIO. As obras de Plotino foram editadas por Creuzer e Moser, O.@ffürd, 1835, ed. reproduzida na de Firmin-Didot, París, 1855; Volkmann, Leipzig, 1883-84; na colecção "A Universidade de França" apareceu a edição e a tradução de BRÉHIER em 6 vdls., 1924-38. Traduções italianas: CILENTo, 4 vols., Bari, 1947-49; FAGGIN, Milão, 1947-48. As fontes para a biografla de Porfirio, são a sua Vida de Plotino e o artigo do Léxico de Suidas. A Vida de Plotino está publicada na edição plotiniana de Creuzer e M<)ser, o Co~tário às categorias de Aristóteles nos "Comentários gregos de Aristóteles" da Academia de Berlim, IV, 1. Para as edições das obras de Porfirio, ver UEBERWEG-PRAECHTER, p. 598. Sobre Porfírio, ver BIDEZ, Vie de P. Ze philosophe néoplatonique, Gand-Leipzig, 1913. §§ 122, 123, 124. Sobre Plotino: INGE, The Phi1,osophy of P., 2 vols., Londres, 1918; BRPHIER, La philosophie de P., Paris, 1928; CARBONARA, La filosofia di P.' 2 vols., Roma, 1938-39; JENSEN, Plotin, Kjijbenhavn, 1948; Les sources de Plotin. Entretiens sur l'antiquité classique, Vandoeuvres-Genève, 1957; bibli. de MARIEN in apéndice, -ao vol. IV da citada -tradução italiana de Cilento. § 125. Os dados antigos sobre Jàmblico, Giuliano, Hípãzia, Sinésio, in ZELLER, 111, 2, p. 773 ss. 105 Sobre os mistérios dos egípcios, ed. Parthey, Berlim, 1857. As obras de Juliano foram publicadas por Bidez e Cumont, P@tris, 1922; a de Sinésio, por Petavio, Paris, 1612, 2.1 ed., 1633, e na Patr. Greca de MiGNE, vol. 66. Sobre Juliano o Apóstata: BARBAGALLO, Ciu;. lIAp., Gênova, 1912; ROSTAGNI, Giu1. l'Ap., Turim, 1920. § 126. Os dados antigos sobre Proclo, foram recolhidos na Vida escrita pelo seu disc@pulo M_ARiNo, ed. Boisonade, Leipzig, 1814. Sobre os outros Neoplatónios da escola de Atenas os dados antigos foram recolhidos em ZELLER, 111, 2, p. 805 ss. (Plutareo), 890 ss. (Simplício, Damáscio, Boécio). § 127. As obras de Proclo foram publicadas por Cousín, 6 vols. Paris, 1820-25; existem também numerosas edições de Leipzig de obras separadas. As obras de Boécio está(> na Patr. Latina de MIGNE, vol. 63 e 64. Os Elementos de Teologia de Proclo foram traduzidos para italiano por LoSAceo, Lanciano, 1927. G. MARTANO, L'uomo e Dio in Proclo, Nápoles, 1952, com bibliografia. 106
SEGUNDA PARTE FILOSOFIA PATRISTICA 1 O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA § 128. A FILOSOFIA GREGA E A TRADIÇÃO CRISTã A Grécia foi o berço verdadeiro da filosofia. Pela primeira vez no mundo ocidental, compreendeu e realizou a filosofia como investigação racional, isto é, como investigação autónoma que em si mesma encontra o fundamento e a lei do seu desenvolvimento. A filosofia grega demonstrou que a filosofia só pode ser procura e a procura liberdade. A liberdade implica que a disciplina, o ponto de partida, o fim e o método da investigação sejam justificados e postos por essa mesma investigação, e não aceites independentemente dela. A influência do cristianismo no mundo ocidental determinou uma nova orientação da filosofia. Toda a religião implica um conjunto de crenças que não são fruto de qualquer investigação porque consistem na aceitação de uma revelação. A religião é a adesão a uma verdade que o homem aceitou devido a um testemunho superior. Tal é, com efeito, o 109 cristianismo. Aos fariseus que lhe diziam: "Tu alegas de ti mesmo e, portanto, o teu testemunho não tem valor", Jesus respondeu: "Eu não estou só, somos eu e aquele que me enviou (S. João, VIII, 13, 16), apoiando assim o valor da sua doutrina no testemunho do Pai. A religião parece, portanto, nos seus próprios princípios, excluir a investigação e consistir antes numa atitude oposta, a da aceitação de uma verdade testemunhada do alto, independentemente de qualquer investigação. Todavia, logo que o homem se interroga quanto ao significado da verdade revelada e tenta saber porque caminho pode realmente compreendê-la e fazer dela carne da sua carne e sangue do seu sangue, renasce a exigência da investigação. Reconhecida a verdade no seu valor absoluto, tal como é revelada e testemunhada por um poder transcendente, imediatamente se impõe a cada homem a exigência de se aproximar dela e de a compreender no seu significado autêntico para com ela e dela viver verdadeiramente. Esta exigência só pode -ser satisfeita pela investigação filosófica. A investigação renasce, pois, da própria religiosidade, pela necessidade que o homem religioso tem de se aproximar, tanto quanto lhe for possível, da verdade revelada. Renasce com uma tarefa específica, que lhe é imposta pela natureza de tal verdade e pelas possibilidades que pode oferecer à sua efectiva compreensão pelo homem; mas renasce com todas as características, próprias da sua natureza, e com força tanto maior quanto maior for o valor que se atribui à verdade em que se acredita e se pretende fazer sua. Da religião cristã nasceu assim a filosofia cristã. Esta tomou também como objectivo conduzir o homem à compreensão da verdade revelada por Cristo, de modo a que ele possa realizar o seu autêntico significado. Os instrumentos indispensáveis para este fim encontrou-os a filosofia cristã, prontos a lio servirem, na filosofia grega. As doutrinas da especulação helénica do último período, essencialmente religioso, prestavam-se a exprimir, de modo acessível ao homem, o
significado da revelação cristã; e com O esta finalidade foram, efectivamente, utilizadas da maneira mais ampla. § 129. OS EVANGELHOS SINóPTICOS A pregação de Cristo, por um lado, está ligada à tradição hebraica e, por outro, renova-a profundamente. A tradição hebraica ensinava a crença num Deus único, puro espírito e garantia da ordem moral no mundo dos homens; um Deus que escolheu como seu povo eleito o povo hebraico, a quem ampara nas dificuldades como pune inexoravelmente nas aberrações religiosas e nas suas imperfeições morais. A última tradição hebraica, a dos profetas, anunciava, depois de um período de desventuras e tremendas punições, o renovo do povo hebreu. e o seu ressurgimento como potência material e moral, que faria dele o instrumento directo de Deus para o seu domínio no mundo. Ao anúncio desta renovação, que deveria verificar-se pela obra de um Messias directamente investido por Deus, está ligada a pregação de Cristo. Nas tal pregação alarga imediatamente o horizonte do anúncio profético, estendendo-o do único povo eleito a todos os povos da terra, a todos os homens "de boa vontade", seja qual for a sua raça, a sua civilização ou a sua posição social. Simultaneamente, retira ao anunciado renascimento todo e qualquer carácter temporal e político e faz dele um ressurgimento puramente espiritual que deve realizar-se na interioridade das consciências. O reino de Deus anunciado por Jesus não exige uma transformação política: "Dai a César o que é 111 de César e a Deus o que é de Deus" (5. Mateus, 22, 21; S. Lucas, 20, 25). É antes uma realidade invisível e -interior ao homem: "Não se poderá dizer "está aqui" ou "está ali", porque, na verdade, o reino de Deus está dentro de vós". (S. Lucas, 17, 21). Ele é como o grão de mostarda que é o mais pequeno de todos os grãos e se torna uma grande árvore; ele é como o fermento que se espalha na farinha e a faz levedar (S. Mateus, 13, 31 e ss.; S. Marcos, 4, 30 e ss.; S. Lucas, 13, 18 e ss.): quer dizer, é uma vida espiritual que se desenvolve e se difunde gradualmente entre os homens. O reino de Deus exige do homem o abandono radical de todos os interesses mundanos. Jesus afirma explIcitamente que não veio para trazer a paz, mas a espada (S. Mateus 10, 34); a aceitação da sua mensagem significa a ruptura definitiva com todos os laços terrenos e a entrega total a Deus. Por isso exclama: " Quem encontrar a sua alma perdê-la-á, e quem a perder por mim encontrá-la-á" (S. Mateus, 39). O que esta ruptura total com o mundo e com o seu próprio eu, o que esta total entrega a Deus implica para o homem disse-o Jesus no Sermão da Montanha. O reino de Deus é para os pobres de espírito, para os que sofrem, para os pacíficos, para aqueles que desejam a justiça, para os que são perseguidos. Isto impõe ao homem o amor. À lei do Velho Testamento: "Olho por olho, dente por dente", Jesus opõe a nova lei cristã: "Amai os vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus, o qual faz nascer o sol para os bons e os maus e dá a chuva aos justos e aos injustos. Pois se amais apenas os que vos amam que mérito tereis? Não fazem os publicanos 1 o mesmo? E se estimais ape1 Publicanos (telonai) eram os funcionários dos impostos públicos, gente odiosa e agarrada
ao dinheiro. 112 nas os vossos irmãos, que fareis de extraordinário? Não fazem os pagãos a mesma coisa? Sede perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celeste" (S. Mateus, 5, 44-48). Na pregação de Jesus, Deus mais do que Senhor é o Pai dos homens; mais do que executor daquela justiça inflexível e vingativa que lhe atribuíam os hebreus, é fonte inesgotável de amor, que aponta a todos os homens como primeiro e fundamental dever. A comunidade humana que deverá surgir da pregação de Cristo será , portanto, uma comunidade fundada no amor. Mesmo a relação entre o homem e Deus deve ser uma relação de amor. O homem deve abandonar-se à providência do seu Pai celeste: "Procurai antes de mais nada o reino de Deus e a sua justiça e tudo o restante vos será concedido" (S* Mateus, 6, 33). Mas este abandono não deve ser uma expectativa inerte. "Velai-disse Jesus porque não sabeis o dia em que chegará o vosso Senhor. (S. Mateus, 24, 42). Esperar pelo reino de Deus significa prepararse incessantemente para ele. Não é concedido sem esforço: "Pedi e recebereis; procurai e encontrareis; batei e as portas se abrirão" (S. Lucas, 11, 9). Todo o ensinamento de Jesus pretende transmitir a necessidade desta expectativa activa e preparatória, desta procura sem a qual não é possível tornarmo-nos dignos do reino de Deus. Por isso Jesus se volta de preferência para os humildes e para os que sofrem ("Eu fui enviado apenas às ovelhas tresmalhadas da casa de Israel", S. Mateus, 15, 24), enquanto considera que o seu apelo ressoa em vão naqueles que estão contentes consigo e nada têm que pedir à vida": "É mais fácil passar um camelo pelo cu de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus" (S. Mateus, 19, 24). Só pela dor, pela inquietação e pela necessidade nasce no homem a aspiração da justiça, da paz e do amor, que conduz ao reino de Deus. 113 § 130. AS "CARTAS" PAULINAS As Cartas de S. Paulo, escritas ocasionalmente a várias comunidades cristãs, contêm, além da apologia da doutrina fundamental de Cristo, admoestações, conselhos, prescrições rituais. Mas contêm também a clara expressão dos fundamentos conceptuais da nova religião, que deviam servir nos séculos seguintes, como constantes pontos de referência das disputas teológicas e das interpretações filosóficas. Tais fundamentos podem recapitular-se do seguinte modo: 1.* A cognoscibilidade natural de Deus, de onde ser tomada como culpa a ignorância ou o seu não conhecimento. Deus é, de facto, cognoscível através das suas obras, nas quais ele mesmo se revelou e nas quais se apoiam de modo evidente o seu poder e a sua glória (Romanos, 1, 18-25). 2.' A doutrina do pecado original o da redenÇão pela fé em Cristo. "Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, assim a morte trespassou todos os homens porque todos pecaram" (Rom., V, 12). A redenção do pecado realiza-se pela fé em Cristo. "Deus é justo e justifica quem tem fé em Jesus. Onde está, pois, a razão da vanglória? Foi excluída. Por que lei? Pela das obras? Não, pela lei da fé. Convençamo-nos de que o homem será justificado pela fé, sem as obras da lei" (Rom., 26-28).
3.* O conceito da graça como acção salvadora de Deus através da fé. "Não acontece com o pecado o que sucede com a graça; pois se pelo pecado de um pereceram muitos, muito mais abundou a graça de Deus e o dom da graça de um homem: Jesus Cristo" (Rom., V, 1516). 4. O contraste entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. "Se viverdes pela carne, 114 precipitar-vos-eis na morte; se pelo espírito fizerdes morrer os actos do corpo, vivereis. Porque todos os que seguem o espírito de Deus, são seus filhos. (Rom. VIII, 13-114). 5.o A identificação do reino de Deus com a vida e o espírito da comunidade dos fiéis, isto é, com a Igreja. Segundo S. Paulo, a Igreja é o corpo de Cristo de que os cristãos são os diferentes membros harmonizados e concordes. (Rom., XII, 5 sg). Na comunidade cristã há lugar para as tarefas mais variadas, pois todas contribuem para a unidade do conjunto, mas cada uni deve escolher aquela para que foi chamado. Domina nas epístolas paulinas o conceito da vocação (cléisis) pela qual a graça (charis') divina opera em cada indivíduo chamando-o ao dom ou à função carismática que está mais de acordo com a sua natureza. "Que cada um fique na vocação a que foi chamado". (Coríntios, 1, 7, 20). "Há diversidade de carismas, mas um só é o Espírito; há diversidade de serviços, mas um só é o Senhor; há diversidade de operações, mas um só é Deus que opera tudo em todos. Em cada um o Espírito se manifesta da maneira mais útil". (Cor., 1, 12, 4-7). E assim é dada a um a sabedoria, a outro a ciência, a outro a fé, a outro o dom da profecia e assim por diante, mas todos são como os membros de um único corpo que é o próprio corpo de Cristo, a comunidade dos cristãos (Cor., 12, sg). Mas a diversidade mesma de funções na comunidade torna necessária a harmonia espiritual entre os seus membros e esta harmonia é garantida apenas pelo amor (agápecharitas). O amor é a condição de toda a vida cristã. Todos os outros dons do espírito, a profecia, a ciência, a fé, nada são sem ele". "A caridade suporta todas as coisas, tem fé em tudo, em tudo tem esperança, tudo mantém... Estão aqui agora estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a caridade é a maior 115 de todas" (Cor., 1, 13, 7, 13). Este acentuar o valor da caridade e a posição central que o conceito de vocação ocupa nas epístolas paulinas demonstram com toda a evidência que o cristianismo se tornou uma comunidade histórica, cuja vida consiste em procurar compreender os ensinamentos e a pessoa de Cristo e realizar o seu significado. § 131. O QUARTO EVANGELHO Nos evangelhos sinópticos a doutrina de Cristo surge já estreitamente ligada à pessoa de Cristo. Cristo deu testemunho da verdade da sua doutrina, apelando para o Pai celeste que o enviara aos homens, com os milagres que operou e sobretudo com a sua ressurreição. O Evangelho de S. João é dominado, mais do que os sinópticos, pela figura de Jesus, e apresenta, pela primeira vez, a tentativa de compreender filosoficamente a figura do Mestre e o princípio da sua doutrina. O prólogo do Quarto Evangelho vê em Jesus o Logos ou o Verbo divino. "No princípio era o Logos e o Logos
estava em Deus e o Logos era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Tudo foi criado através dele e nada do que foi feito foi feito sem Ele. N'EIe estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz apareceu nas trevas e as trevas não a receberam" (S. João, 1, 1-5). Nestas palavras de S. João determina-se pela primeira vez a natureza de Cristo pelo conceito do Logos, que já tinha entrado na tradição hebraica com o livro da Sabedoria (§ 119). Ao Logos é atribuída a função de mediador entre Deus e o mundo, enquanto se diz que tudo foi criado por seu intermédio. É reconhecida a sua directa filiação e derivação do Pai (9, 35: 16, 28) e é-lhe atribuído claramente o papel de salvador de todos os homens. "Eu não rogo apenas por estes (os discípulos), mas por todos aqueles que por sua palavra acreditaram 116 em mim, para que todos sejam uma única coisa, como tu, 6 Pai, estás em mim e eu em ti, para que eles estejam em nós e todo o mundo acredite que tu me enviaste". (17, 20-21). No Quarto Evangelho a oposição entre os laços terrenos e o reino de Deus vem expressa como oposição entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito e apresentada como a alternativa crucial do homem. A vida segundo o espírito é uma nova vida que traz consigo um novo nascimento. "Em verdade, em verdade vos digo que se cada qual não nasce de novo, não pode ver o reino de Deus". Nicodemos disse-lhe: Como pode nascer um homem já velho? Pode ele entrar pela segunda vez no seio de sua mãe e voltar a nascer? Jesus respondeu-lhe: Em verdade, em verdade te digo, que se cada um não nascer da água e do espírito não pode entrar no reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do espírito é espírito. Não te surpreendas se te digo: é necessário nascer de novo. O vento sopra de onde quer, tu ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem e para onde vai; assim é tudo o que é gerado pelo espírito" (3, 3-8). Este renascer no espírito (pneuma) é o nascimento para a verdadeira vida. "0 espírito é o que vivifica, a carne de nada vale; as palavras que vos dirigi são espírito e vida" (6, 663). A vida espiritual implica um novo critério de juízo, e por isso Jesus diz aos Fariseus: "Vós julgais segundo a carne, mas eu a ninguém julgo. E se julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque não estou só, somos eu e Aquele que me enviou" (8, 15-16). § 132. A FILOSOFIA CRISTÃ Entender e realizar a mensagem de Cristo foi a finalidade da comunidade cristã durante os séculos que se seguiram. A vida histórica da Igreja é a 117 tentativa contínua de aproximar os homens do significado essencial da mensagem cristã, reunindo-os numa comunidade universal (catolicismo), na qual o valor de cada homem se baseia unicamente na sua capacidade de viver em conformidade com o exemplo de Cristo. Mas a condição fundamental desta aproximação é a possibilidade de compreender o significado daquela mensagem; e tal tarefa é própria da filosofia. A filosofia cristã não pode ter a finalidade de descobrir novas verdades, nem mesmo a de aprofundar e desenvolver a verdade original do cristianismo, mas apenas a de encontrar o melhor caminho, pelo qual os homens possam chegar a compreender e a fazer sua a revelação cristã. Tudo o que era necessário para erguer o homem do pecado e salvá-lo foi ensinado por Cristo e -selado com o seu martírio. Ao homem não é dado descobrir a não ser com fadiga o significado essencial da revelação cristã, nem pode descobri-lo apenas por si, fiando-se unicamente na razão. Na Igreja cristã, a filosofia encaminha-se não só para o esclarecimento de uma verdade, que já é conhecida desde o início, como ainda para a esclarecer no âmbito de uma responsabilidade colectiva, na qual cada indivíduo encontra um guia e um limite. A própria Igreja, nas suas assembleias solenes (Concílios), define as doutrinas que exprimem o
significado fundamental da revelação (dogmas). Daqui deriva o carácter específico da filosofia cristã, na qual a procura individual encontra antecipadamente assinalados os seus limites. Não é, como a filosofia grega, uma procura autónoma que, em primeiro lugar, pretende fixar os termos e o significado do seu problema; os termos e a natureza do problema já lhe foram dados. Isto não diminui o seu significado vital: só pela reflexão filosófica a mensagem cristã, na imutabilidade do seu signi118 ficado fundamental, se renovou e manteve, através dos séculos, a. força e a eficácia do seu magistério espiritual. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 128. Acerca da relação entre o cristianismo e a filosofia grega à qual, se refere o final deste parágrafo: RENAN, Les Evangiles et Ia seconde génération chrét., Paris, 1877; HAVET, Le christianisme et ses origines, 4 vols, París, 1871-84; HARNACK, Lehrbuch der Dog~ngeschi,chte, I, 4.a ed., 1909, esp. 121-148 e 496 segs. § 129. A fonte para o conhecimento do cristianismo é o Novo Testamento que é composto pelos seguintes livros: Evangelhos de S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas, chamados sinópticos porque a exposição que fazem da doutrina e da vida de Cristo é concordante e forma um único quadro; IV Evangelho ou Evange.lho de S. Joã o, que apresenta uma elaboração filosófica da doutrina e do significado de Cristo; os Actos dos Apóstolos; as Epístolas de, S. Pedro aos Romanos, aos Corintios (I e II), aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos Tessalonicenses (1 e II), a Timóteo, a Tito, a Filemon, aos Hebreus; as Epístolas Católicas de Tiago, de Pedro (I e 11), de João (1, 11 e III), de Judas; O Apocalipse de S. João. Os mais importantes destes escritos, sob o ponto de vista doutrinaJ, são os quatro Evangelhos e as Epístolas de S. Paulo, particularmente as dirigidas aos Romanos e aos Coríntios. O Novo Testamento está escrito em grego. Entre as edições críticas mais recentes, veja-se a de NESTLE, Stuttgart, 1928, da qual foram traduzidas as passagens citadas no texto. Sobre o Novo Testamento vejam-se as seguintes Introduções gerais: R. KNOLF-H. LIETZMANN-H. WEINEL, Binfuhrung in das Neue Testament, Berlim, 1949; W. MICHAELIS, Einleitung in das Neue Testament, Bern, 2.1 ed., 1954; A. WICKENHAUSER, Einleitung in das Neue Testament, Friburgo, 1956; A. ROBERT-A. PEUILLET, Introduction à Ia Bible: II, Nouveau Testament, Tournal, 1959; ao cuidado de vários autores, Introduzione alla Bíblia: IV, I Vangeli, Turim, s. d. (1959). Actualização bibliográfica anual na "Internationale Zeitschriftenshau fur Ribelwissenschaft und Grenzegebiete" (Dusseldorf) e in "BibUca> (Roma) 119 § 130. Sobre os pontos tratados no texto velam-se os seguintes comentários à Epístola aos Romanos: T. ZAHN, Der Brief des Paulus an die Rõmer, Leipzig, 1910; M. J. LAGRANGE, St. Paul. Êpitre aux Ramains, Paris, 1915 (numerosas reimpressões; a última de 1950); K. BART, Der Romerbrief, Munique, 1929; O. Kuss, no Regensburger Neues Testament, Regensburger, 1940; C. K. BARRET, The Epistle to the Romans, Londres, 1957.
§ 131. Acerca do IV EvangeMo: J. WELLHAUSEN, Das Evangelium Johannis, Berlim, 1908; A. LOSIY, Le Quatrième Evangile, Paris, 1921; M. J. LAGRANGE, Evangite selon Saint Jean, Paris, 1925; W. BAUER, in Handbuch zum Neuen Testament, Tubingen, 1933; R. BULTMANN, in Kritisch exegetischer Kommentar uber das Neues Testament, Gottingen, 1953; Supl. 1957; A. W1KENHAUSER in Regensburger Neues Testament, Regensburger, 1957; sobre o Prólogo em particular: M. E. BOISMARD, Le prologue de Saint Jean, Paris, 1955. 120 H A PATRISTICA DOS DOIS PRIMEIROS SÉCULOS § 133. CARACTERISTICAS DA PATRISTICA Quando o cristianismo, para se defender dos ataques polémicos e das perseguições, e também para garantir a própria unidade contra cisões e erros, teve de pôr a claro os próprios pressupostos teóricos e organizar-se num sistema doutrinal, apresentou-se como expressão completa e definitiva da verdade que a filosofia grega tinha procurado, embora imperfeita e parcialmente encontrada. Uma vez no terreno da filosofia, o cristianismo defendeu a sua continuidade com a filosofia grega e apresentou-se como a sua última e mais completa manifestação. Justificou esta continuidade com a unidade da razão (Logos), que Deus criou idêntica para todos os homens e em todos os tempos e à qual a revelação cristã deu o último e mais seguro fundamento; e com isto afirmou implicitamente a unidade da filosofia e da religião. Esta unidade não é um problenw para os escritores cristãos dos pri121 meiros séculos: é mais um dado ou um pressuposto do que guia e dirige toda a sua reflexão. E mesmo quando estabelecem uma antítese polémica entre a doutrina pagã e a cristã (como no caso de Taciano), esta antítese estabelece-se no terreno comum da filosofia e pressupõe, portanto, a continuidade entre cristianismo e filosofia. Era natural, segundo este ponto de vista, que se tentasse, por uni lado interpretar o cristianismo mediante conceitos tirados da filosofia grega, para assim o ligar a esta filosofia e, por outro, -reconduzir o significado da filosofia grega ao próprio cristianismo. Esta dupla tentativa que, na realidade, é uma só, constitui a essência da elaboração doutrinal que o cristianismo sustentou nos primeiros séculos da nossa era. Nesta elaboração, os Padres da Igreja foram frequentemente ajudados e inspirados, como era inevitável, pelas doutrinas das grandes escolas filosóficas pagãs; e, especialmente aos Estoicos, foram eles beber muitas das suas inspirações, impelidos até muitas vezes (como acontece com Tertuliano) a aceitar teses aparentemente incompatíveis com o cristianismo como a da corporalidade de Deus. O período desta elaboração doutrinal é a Patrística. Padres da Igreja são os escritores cristãos da antiguidade que contribuíram para a elaboração doutrinal do cristianismo e cuja obra foi aceite e tomada como sua pela Igreja. O período dos Padres da Igreja pode considerar-se como terminado com a morte de João Damasceno para a Igreja grega (cerca de 754); e com a de Beda o Venerável para a Igreja latina (735). Este período pode dividirse em três partes. A primeira, que vai até cerca do ano 200, é dedicada à defesa do
cristianismo contra os seus adversários pagãos e gnósticos. A segunda, que vai de 200 até cerca de 450, é dedicada à formulação doutrinal das crenças cristãs. A última, 122 que vai de 450 até ao final da Patrística, é mar. cada pela reelaboração e sistematização das doutrinas já formuladas. § 134. OS PADRES APOLOGETAS Os Padres Apostólicos do século 1 são os autores das Cartas que ilustram alguns pontos da doutrina cristã e regulam questões de ordem prática e religiosa. Tais são: o autor da chamada Carta de Bernabé, Gemente Romano, Hermes, Inácio de Antioquia e Policarpo. Mas estes escritores não encaram ainda problemas filosóficos. A verdadeira actividade filosófica cristã começa com os Padres Apologetas no século 11. Esses Padres escreviam em defesa (apologia) do cristianismo contra os ataques a perseguições que lhe eram dirigidos. Neste período "os cristãos são hostilizados pelos Hebreus como estrangeiros e são perseguidos pelos pagãos" (Epist. ad Diogn., 5, 17). Escritores pagãos adoptaram contra o cristianismo a sátira e a zombaria (Luciano, Celso). Os cristãos são alvo de ódio da plebe pagã e das perseguições sistemáticas do Estado. É nestas condições que nascem as apologias. A n-ia@s antiga de que há conhecimento é a defesa apresentada ao imperador Adriano, por volta do ano 124, quando de uma perseguição aos cristãos, movida por Cuadrato, discípulo dos Apóstolos. Temos apenas um fragmento, conservado por Eusébio (Hist. Eccles., IV, 3, 2). A apologia do filósofo Marciano Aristides foi encontrada em 1878 e é dirigida ao imperador Antonino Pio (138161). Nela se afirma já claramente que só o cristianismo é a verdadeira filosofia. De facto, só os cristãos têm aquele conceito de Deus que deriva, necessariamente, da consideração da natureza. Nesta demons123 tração são usados conceitos platónicos. A ordem do mundo, tal como aparece nos céus e na terra, faz pensar que tudo se move por necessidade e que Deus é aquele que move e governa tudo. Aristides insiste na inacessibilidade e inefabilidade da essência divina, para contrapor o monoteísmo rigoroso do cristianismo às crenças dos bárbaros que adoraram os elementos materiais, às dos gregos que atribuíram aos seus deuses fraquezas e paixões humanas, o às dos judeus que, admitindo embora um só Deus, servem melhor os anjos do que a Ele. Mas a primeira grande figura de Padre apologeta e o verdadeiro fundador da Patrística é Justino. § 135. JUSTINO Justino nasceu provavelmente no primeiro decénio do século 11 em Flávia Neápolis, a antiga Siquem, agora Nablus na Palestina. Ele próprio nos descreve a sua formação espiritual. Filho de pais pagãos, frequentou os representantes das várias escolas filosóficas.- Estoicos, Peripatéticos e Pitagóricos, e professou durante largo tempo as doutrinas dos Platónicos. Por fim, encontrou no cristianismo aquilo que procurava e desde então com a sua palavra e os seus escritos defende-o como a única e verdadeira filosofia. Viveu muito tempo em Roma e ali fundou uma escola, foi ainda em Roma que suportou o martírio entre 163 e 167. Das obras que nos ficaram, apenas três são seguramente autênticas: o Diálogo com o judeu Trifon e duas Apologias. A primeira e a
mais importante é dirigida ao imperador Antonino Pio e deve ter sido composta nos anos 150-155. A segunda, que é um suplemento ou um apêndice da primeira, foi motivada pela condenação de três cristãos, réus apenas por se terem confessado como tais: O Diálogo com o judeu Tri124 fon refere uma discussão que ocorreu em Éfeso entre Justino e Trifon e visa, em substância, demonstrar que a pregação de Cristo realiza e completa os ensinamentos do Velho Testamento. A doutrina fundamental de Justino é que o cristianismo é "a única filosofia segura e útil" (Dial., 8) e que esse é o resultado último e definitivo que a razão pode alcançar na sua pesquisa, uma vez que a razão não é mais do que o Verbo de Deus, ou seja, Cristo, do qual participa todo o género humano. "Nós aprendemos -disse ele (Apo. primeira, 46) que Cristo é o primogénito de Deus, e que é a razão de que participa todo o género humano. E aqueles que viveram segundo a razão são cristãos, ainda que tenham sido considerados ateus como, entre os Gregos, Sócrates, Heraclito e outros; e entre os bárbaros, Abraão e Ananias e Azarias e Misael e Elias. De modo que também aqueles que antes nasceram e viveram irracionalmente eram maus e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem segundo a razão, mas aqueles que viveram e vivem conformes com a razão são cristãos impávidos e tranquilos". Todavia estes cristãos "avant Ia lettre" não conheceram toda a verdade. Neles existiam sementes de verdade, que não puderam entender plenamente. (1b., 44). Podiam, por certo, ver obscuramente a verdade, mediante aquela semente de razão que com eles nascera. Mas uma coisa é a semente e a imitação e outra o desenvolvimento completo e a realidade, da qual a semente e a imitação se geraram. (Apol. seg., 13). Aqui é adoptada a doutrina estoica das razões seminais para fundamentar a continuidade do cristianismo e da filosofia grega, para reconhecer nos maiores filósofos gregos os precursores do cristianismo e para justificar a obra da razão mediante a sua identificação com Cristo. Esta mesma doutrina permite a Justino a identificação completa entre o 125 cristianismo e a verdade filosófica. "Tudo aquilo que se disse de verdadeiro pertence a nós cristãos, já que, além de Deus, nós amamos e adoramos o Logos do Deus ingénito e inefável, que se fez homem por nós, para nos curar das nossas enfermidades participando delas" (1b., 13). Deus é o eterno, o que não teve princípio, o inefável: o conhecimento de Deus é um facto inexplicável, radicado na própria natureza dos homens (Apol. sec., 6). Ao lado e abaixo dele existe outro Deus, o Logos coexistente e gerado antes da criação, por meio do qual Deus criou e ordenou todas as coisas (1b., 5). Assim como uma chama não diminui quando se acende urna outra, o mesmo aconteceu com Deus na criação do Logos (Dial., 48). Depois do Pai e do Logos está o Espírito Santo, a quem Justino chama o espírito profético, ao qual os homens devem as virtudes e os dons proféticos (Apol. prima, 6). O homem foi criado por Deus, livre de fazer o bem e o mal. Se o homem não tivesse liberdade, não teria mérito no bem nem culpa no mal realizado (Apol. prima, 43). A alma do homem é imortal, apenas por obra de Deus: sem esta, com a morte volveria ao nada (Dial., 6). Mas o próprio corpo está destinado a participar na imortalidade da alma. Efectivam-ente, deverá vir, segundo o anúncio dos profetas, uma segunda parusia de Cristo, e desta vez ele virá em glória, acompanhado pela legião dos anjos, ressuscitará os
corpos e revestirá com imortalidade os dos justos, ao mesmo tempo que condenará ao fogo eterno os dos iníquos (Apol. prima, 52). § 136. OS OUTROS PADRES APOLOGETAS Taciano o Assírio, discípulo de Justino em Roma, nasceu na Síria e converteu-se em Roma 126 depois de ter conquistado nome como filósofo. Mais tarde, provavelmente, em 172, separou-se da Igreja passando para os Gnósticos. Taciano é autor de uma apologia intitulada Discurso aos Gregos que é, na realidade, uma crítica do Helenismo. A obra de Taciano é essencialmente polémica. Acusa de imoralidade os pensadores e os poetas gregos e alarga-se em invectivas contra eles. Aos erros dos Gregos contrapõe a doutrina cristã acerca de Deus e do mundo, do pecado e da redenção. O Logos é a potência racional de Deus e nasceu dele através dum acto de participação, não de separação. Como um facho acende muitos outros sem que a sua luz diminua, assim o Logos não esgota a potência da razão do seu geriltor (Or. ad graec., 5). No homem distingue a alnw e o espírito. Só o espírito é a imagem e a semelhança de Deus. (lb., 12). A alma não é uma essência simples, mas é composta de várias partes. A sua existência está ligada ao corpo e não é separável dele, pelo que não é imortal Ub., 15). Só pela sua união com o espírito, a alma e o corpo participam da imortalidade. Através do espírito, o homem pode reunir-se a Deus. Ele deve desprezar a matéria, da qual se servem os demónios para perdê-lo, e voltarse exclusivamente para a vida espiritual (Ib., 16). Atenágoras de Atenas é autor de uma apologia intitulada Súplica para os cristãos, dirigida a Marco Aurélio ou Cómodo, e por isso composta entre 176 e 180, provavelmente em 177. Esse escrito propõe-se refutar as três acusações que eram lançadas comummente contra os cristãos: o ateísmo, os banquetes tiesteos e o incesto à maneira de Édipo. A primeira acusação é refutada mediante a exposição da doutrina cristã de Deus; contra as outras duas -são aduzidos os fundamentos da moral cristã. Na Súplica recorre, pela primeira. vez, a uma prova racional da unicidade de Deus. Se existissem mais 127 divindades, não poderiam existir no mesmo lugar porque, sendo todas incriadas, não poderiam cair sob um tipo ou modelo comum. Deveriam, pois, existir em lugares diferentes. Mas não podem estar em lugares diferentes porque o espaço para lá do mundo é a sede de um único Deus que é essência supramundana e assim não há espaço para as outras divindades. Uma outra divindade poderia existir num outro mundo ou em torno de um outro mundo; mas, em tal caso, essa não chegaria até nós e, pela limitação da sua esfera de acção, não seria a verdadeira divindade (Supp1. pro crist., 8). Por isso, os próprios poetas e filósofos gregos conheceram a unidade de Deus, ainda que o claro, seguro e completo conhecimento dele só nos tenha sido dado através dos profetas (1b., 7). O Logos gerado pelo Pai e coeterno com ele, é o modelo, a força criadora de todas as coisas criadas, enquanto o Espírito Santo é um eflúvio de Deus, semelhante a um raio de sol (1b., 24). Teófilo de Antioquia foi bispo desta cidade e deixou três livros Ad Autolico, que são três escritos independentes, o terceiro dos quais foi composto à volta de 181-182 e os primeiros dois pouco antes. Ao desafio de Autólico: "Mostra-nos o teu Deus", Teófilo responde: "Mostra-me o teu homem e eu te mostrarei o meu Deus." Deus só é visto por aqueles que
têm bem abertos os olhos da alma. Como não se pode ver a face do homem no espelho coberto de ferrugem, também o homem quando está no pecado não pode ver a Deus (Ad. Autol., 1, 2). À pergunta: "Tu que o vês, descreve-me o aspecto de Deus", Teófilo responde: "Escuta-me; a beleza de Deus é indizível e inefável e não se pode ver com os olhos corpóreos" (1b., 1, 3). Deus que é eterno e, portanto, não gerado e imutável, é o criador de tudo: tudo ele fez do nada, para que através da sua obra se compreen128 desse a sua grandeza. Por isso, ele torna-se visível através da, sua criação. "Como a alma humana que é invisível aos homens é conhecida através dos movimentos do corpo, também Deus, que não pode ser visto pelos olhos humanos, pode ser visto e conhecido através da sua providência e das suas obras." (Ib., 1, 5). A via da criação divina é o Logos Deus, mediante o Logos e a sabedoria, criou todas as coisas (1b., 1, 7). O Logos é o conselheiro de Deus, a sua mente e a sua prudência (1b., 11, 22). Pela primeira vez, Teófilo usou a palavra trindade (trias) para indicar a distinção das pessoas divinas. Os três dias da criação da luz de que fala o Génesis "são imagens da trindade, de Deus, do seu Verbo, da sua sabedoria" (1b., 11, 15). Sob o nome de Justino chegou até nós uma Carta a Diogneto que certamente não pertence a Justino pela diversidade do estilo e da doutrina. O autor responde às dúvidas levantadas por um pagão que se interessa pelo cristianismo. A composição da Carta não deve ter sido antes de 160, e provavelmente nos finais do século 11. O autor responde a três dúvidas de Diogneto. Ao culto pagão e judaico, a Carta contrapõe o culto cristão do Deus invisível e criador. A religião cristã não é uma descoberta humana mas uma revelação divina: Deus mandou o seu Filho, a eterna Verdade e a eterna Palavra, a ensinar aos homens a verdadeira religião; e o Filho de Deus veio ao mundo não como senhor mas como salvador @ libertador e encaminhou-nos para a salvação pelo amor (Ep. ad Diog., 7). Com o título Irrisão dos filósofos pagãos, de Hermias filósofo, chegou-nos um pequeno escrito polémico no qual se põem sarcasticamente à luz as contradições dos filósofos gregos @na, sua dou129 trina sobre a alma humana (cap. 1-2) o sobre os princípios fundamentais das coisas (cap. 3-10). A obra pertence provavelmente ao final do século II. § 137. A GNOSE A obra dos Padres Apologetas não tem de se dirigir apenas contra os inimigos externos do cristianismo, pagãos e hebreus, mas ainda contra os inimigos internos, contra as tendências e as seitas que, na tentativa de interpretarem a mensagem original do cristianismo, falseavam o seu espírito e a letra, contaminando-o com elementos e motivos heterogéneos. O maior perigo contra a unidade espiritual do cristianismo foi representado nos primeiros séculos pelas seitas gnósticas que se difundiram amplamente no Oriente e no Ocidente, especialmente nas esferas dos doutos e produziram uma rica o variada literatura. No entanto, esta literatura, com excepção de poucos escritos, conservados em traduções coptas, perdeu-se o só a conhecemos através dos passos citados pelos Padres Apologetas que os refutaram.
A importância da tentativa dos gnósticos reside no facto de que é a primeira investigação de uma filosofia do cristianismo. Mas esta investigação foi conduzida sem rigor sistemático, misturando juntamente elementos cristãos, míticos, neoplatónicos e orientais num conjunto que nada tem de filosófico. A palavra Gnosis, como conhecimento religioso distinto da pura fé, foi tirada da tradição grega, especialmente do pitagorismo, no qual significava o conhecimento do divino próprio dos iniciados. Foi assim empregada para indicar um grupo de pensadores cristãos do século II que fizeram do conhecimento a condição da salvação. Atribuíram a si próprios, pela primeira vez, o 130 nome de gnósticos, os Ofitas ou sócios da serpente, que depois se dividiram em numerosas seitas. Estes utilizavam grande quantidade de textos religiosos atribuídos a personalidades bíblicas: tal era o Evangelho de Judas, a que se refere Irineu (Adv. haer., 1, 31, 1). Outros escritos do género foram encontrados recentemente em traduções coptas, o mais importante dos quais é a Pistis Sophia, que foi editada em 1851 e expõe, em forma de diálogo entre o Salvador ressuscitado e os seus discípulos, particularmente Maria Madalena, a queda e a redenção de Pistis Sophia, um ser pertencente ao mundo dos Eones (seres intermédios entre o homem e Deus), e o caminho para a purificação do homem mediante a penitência. Os principais gnósticos de que temos conhecimento são Basílides, Carpócrates, Valentino e Bardesanes. Basilides, que ensinou em Alexandria entre 120 e 140, escreveu uni Evangelho, um Comentário e Salmos. A sua doutrina é conhecida através das obras de Clemente de Alexandria (Stromata) e das refutações de Irineu (Contra os heréticos) e de Hipólito (Filosofemi). Para Basilides, a fé é uma entidade real, uma coisa, deposta por Deus no espírito dos eleitos, isto é, dos predestinados para a salvação. Levado pela necessidade de explicar o mal no mundo, Basilides foi levado a admitir dois princípios da realidade, um como causa do bem, o outro do mal: a luz e as trevas. Postas em contacto entre si, as trevas procuraram unir-se à luz e participar dela, enquanto a luz, por sua vez, permanecia retraindo-se sem absorver as trevas. As trevas originaram assim uma aparência e uma imagem da luz, que é o mundo, no qual o bem se encontra por isso em quantidade desprezível e o mal predomina. Esta concepção de Basilides é muito semelhante à maniqueia, mas não admite, como esta, a luta entre os dois princípios. 131 De Carpócrates de Alexandria apenas sabemos que uma sua sequaz, Marcellina, foi a Roma nos tempos de Aniceto (cerca de 160), e "provocou a ruiria de muitos" (Irineu, Contra os hereges, 1, 25, 4). Carpócrates, para explicar a superioridade de Cristo sobre os homens, serve-se da teoria platónica da reminiscência. Cristo torna-se superior aos outros homens, porque a sua alma recordou mais abundantemente quanto tinha visto durante o seu curso com o Pai não gerado, onde este lhe deu uma virtude particular que o tornou capaz de escapar ao predomínio do mundo e de regressar livremente até ele. O mesmo acontecerá a toda a alma que se atenha à mesma linha de conduta. Os sequazes de Carpócrates ou carpocracianos admitiam a transmigração da alma de corpo em corpo, enquanto não tivesse completado o ciclo das experiências pecaminosas; só no termo desta odisseia, a alma seria digna de voltar para o Pai, libertando-se de todas as ligações com o corpo. O maior número de sequazes pertence à escola de Valentino que, segundo Irineu, foi a Roma nos tempos do bispo Higino (135-140). No cume da realidade, Valentino e os seus
seguidores colocavam um ser intemporal e incorpóreo, não gerado e incorruptível a quem chamavam Pai ou Primeiro Pai ou ainda Eone (do grego: aión=eterno) perfeito. Este primeiro princípio é formado por pares de termos, Abismo e Silêncio; e também os eones que emanam dele são constituídos por pares. Efectivamente, do primeiro Eone derivam a Mente e a Verdade, da qual procedem por emanação a Razão e a Vida; e dos quais procedem ainda o Homem (como determinação divina) e a Comunidade (ecclesia, comunidade de vida divina). O conjunto destas oito determinações divinas (ogdoade) é o reino da perfeita vida divina ou Pleroma. Ora o último Eone, a Sabedoria, quis descobrir o primeiro, o 132 Abismo, e procurou subir até às regiões superiores do Pleroma. Mas isso não foi avante e neste esforço inútil deu origem ao mundo, o qual por isto apresenta as características de um esforço incompleto o os erros e o pranto que o esforço fracassado produz. "Da ansiedade e da inquietação nasceram as trevas; do temor e da ignorância nasceram a malícia e a perversão; da tristeza e do pranto as Contes de água e os mares. Cristo foi mandado pelo Pai Primeiro, inviolável no seu mistério, a restaurar o equilíbrio desfeito pelo louco sonho da Sabedoria" 'Tertuliano, Contra os Valentinianos, 2). Deste modo, o universo nasce na rebelião infecunda do cone Sophia que dá origem à obra plasmadora de um Demiurgo. Valentino repartia o género humano em três categorias: a massa dos homens carnais, o conjunto dos psíquicos e a casta dos espirituais (pneumáticos). Os primeiros estão destinados à perdição; os segundos podem salvar-se à custa de um esforço; aos privilegiados basta, para alcançar a beatitude, a gnose, isto é, o conhecimento dos mistérios divinos. Bardesanes, nascido em Edessa em 154 e falecido em 222, foi discípulo de Valentino. É essencialmente um astrólogo e um naturalista que, da astrologia babilónica e egípcia, retira a teoria da influência dos astros sobre os acontecimentos do mundo e sobre as acções humanas. O persa Mani, nascido provavelmente cerca de 216, proclamou-se Paráclito, isto é, aquele que devia trazer a doutrina cristã à sua perfeição. A sua religião é uma mescla fantástica dos elementos gnósticos, cristãos e orientais, fundamentada no dualismo da religião de Zaratustra. Ele admite efectivamente, dois princípios originais, um, o do mal ou princípio das trevas, o outro do bem ou princípio da luz, que se combatem perpetuamente no mundo. Também no homem existem duas almas, 133 uma corpórea que é o princípio do mal, a outra luminosa que é o bem. O homem atinge a sua perfeição com um tríplice selo, isto é, abstendo-se da comida animal e dos discursos impuros (signaculum oris), da propriedade e do trabalho (signaculum manus) e do matrimónio e do concubinato (signaculum sinus). O maniqueísmo encontrou o seu grande e implacável adversário em S. Agostinho. § 138. A POLÉMICA CONTRA A GNOSE Na polémica contra o gnose o cristianismo atinge uma mais rigorosa elaboração doutrinal. Neste ponto era necessário, em primeiro lugar, individualizar e defender as fontes genuínas da tradição cristã e, em segundo lugar, fixar o significado autêntico desta tradição contra as perversões e erros que pretendiam disputá-la e exprimir o seu verdadeiro
significado. Um certo número de obras antignósticas perdeu-se, de outras obras (de Agrippa Castor, Egesipo, Rodón, Filipe de Cortina, Heraclito) restam escassos e insignificantes fragmentos (Migne, Patr. grec., 5.0). Em contrapartida, temos as obras de Irineu e de Hipólito. Irineu nasceu cerca de 140 na Ásia Menor, provavelmente em Esmima. No tempo da perseguição de Marco Aurélio, era padre da igreja de Lyon e, segundo uma tradição que remonta a S. Jerónimo, morreu mártir mas ignora-se em que data. Irineu escreveu numerosas obras. Eusébio, na sua História Eclesiástica (V, 20), cita um tratado: Sobre a monarquia ou sobre não ser Deus autor do mal; um outro, Sobre ogdoade; várias cartas e escritos menores um dos quais contra os pagãos, intitulado Sobre a ciência. De todos estes escritos só restam escassos fragmentos (em Migne, Patr. grec., 7.0), 1225-74). Em contrapartida, conserva-se uma grande 134 obra contra o gnosticismo, intitulada Refutação e desmascaramento da falsa gnose, comummente chamada Adversus haereses. Mas chegou-nos não no seu original grego, mas uma versão latina do século IV; existem, contudo, fragmentos do texto grego, especialmente do primeiro livro, sob a forma de citações dos escritores posteriores. A verdadeira gnose é, segundo Irineu, aquela que foi transmitida pelos apóstolos da Igreja. Mas esta gnose não tem a pretensão de superar os limites do homem, como a falsa gnose dos heréticos. Deus é incompreensível e impensável. Todos os nossos conceitos -são para ele inadequados. Ele é intelecto, mas não é semelhante ao nosso intelecto. É luz, mas não é semelhante à nossa luz. "É melhor não saber nada, mas crer em Deus e permanecer no amor de Deus, do que arriscar-se a perdê-lo com investigações subtis" (Adv. haer., 11, 28, 3). O que podemos saber de Deus, podemos conhecê-lo somente por revelação: sem Deus não se pode conhecer Deus. E a revelação de Deus acontece também através do mundo que é obra dele, como reconheceram até os melhores entre os pagãos. A mais grave blasfémia dos gnósticos é, segundo Irineu, (11, 1, 1) a tese de que o criador do mundo não é o próprio Deus, mas uma emanação sua. Que Deus tenha tido necessidade de seres intermédios para a criação do mundo, significaria que ele não teria tido a capacidade de levar a efeito aquilo que tinha projectado. Contra a doutrina gnóstica de que o Logos e o Espírito Santo são eones subordinados, Irineu afirma a igualdade de essência e de dignidade entre o Filho, o Espírito Santo e o Pai. O Filho de Deus não teve princípio. pois que ele é desde a eternidade coexistente com o Pai, nem teve princípio o Espírito Santo, o qual como o Filho está desde a eternidade junto ao Pai. Nem se pode admitir a emanação do Filho e do 135 Espírito Santo do Pai. A simplicidade da essência divina não consente a separação do Logos ou do Espírito Santo do Pai (11, 13, 8). O Filho é o órgão da revelação divina e está subordinado ao Pai não pelo seu ser ou pela sua essência, mas apenas pela sua actividade (V, 18, 2). Pelo que se refere ao homem, Irineu, contra a distinção gnóstica de corpo, alma e espírito, afirma que o homem resulta da alma e do corpo e que o espírito é apenas a capacidade da alma pela qual o homem se torna perfeito e se constitui à imagem de Deus. Mas para que o espírito transfigure e santifique a figura humana é necessária a acção do Espírito Santo. A alma humana está entre a carne o o espírito e pode voltar-se para uma ou para outro. Apenas pela fé e pelo temor de Deus, o homem participa do espírito e se eleva à vida divina
(V, 9, 1). Mas os gnósticos erram ao afirmar que a carne em si é um mal ou a origem do mal. O corpo como a alma é uma criação divina e não pode, portanto, implicar o mal na sua natureza (IV, 37, 1). A origem do mal está antes no abuso da liberdade e, por isso, deriva não da natureza, mas do homem e da sua escolha (IV, 37, 6). O bem consiste em obedecer a Deus, em acreditar nele, em guardar os seus perceitos, o mal consiste na desobediência e na negação de Deus (IV, 39, 1). O bem conduz o homem à imortalidade que é concedida à alma por Deus, mas não é intrínseca à sua própria natureza; o mal é punido com a morte eterna. Também os corpos ressuscitarão; mas ressuscitarão com a nova vinda de Cristo, que se verificará depois do reino do Anticristo. Então as almas, tendo readquirido os seus corpos, poderão chegar à visão de Deus (V, 31, 2; 27, 2). Da vida de Hipólito, discípulo de Irineu, dá-nos algumas indicações a própria obra que nos ficou dele, os Philosophoumena. Contra o papa Calisto 136 (217-22) colocou-se à cabeça de um partido cismático e foi assim um dos primeiros antipapas que a história conhece. O motivo do cisma foi o abrandamento da disciplina eclesiástica, introduzido por Calisto, que permitira a readmissão na Igreja daqueles que retornavam das seitas heréticas, a concessão das dignidades eclesiásticas aos bígamos, etc. (Philos., lX, 12). Em 235, Hipólito foi exilado para a Sardenha com o segundo sucessor de Calisto, Ponziano, e ali se reconciliaram provavelmente o papa e o antipapa. Falecidos ambos na Sardenha, os seus corpos foram transportados para Roma e sepultados no mesmo dia, a 13 de Agosto de 236 ou 237. A estátua de Hipólito, encontrada mutilada no ano de 1551 e conservada no Museu de Latrão, tem, nos lados do pedestral, uma lista incompleta dos seus numerosos escritos. Entre as obras de Orígenes andava incluí do, em muitos manuscritos, o primeiro livro de uma Refutação de todas as heresias, que certamente não pertence a Orígenes porque o autor se intitula bispo. Em 1842, num manuscrito do monte Athos, foram encontrados os livros IV-X da mesma Refutação, a qual hoje é universalmente atribuída a Hipólito com o título impróprio de Philosophoumena. Das outras obras chegaram-nos fragmentos; entre estes o capitulo final do escrito Contra Noetum. Restam-nos completos um escrito apologético Sobre o Anticristo e um Comentário ao profeta Daniel, que é a primeira tentativa do género entre os teólogos cristãos. Outros fragmentos de obras de Hipólito conservaram-se em eslavo, arménio, siríaco, etc. Hipólito propõe-se refutar os heréticos mostrando que eles vão beber a sua doutrina não na tradição cristã, mas na sabedoria pagã. Por isso, o I e o IV livro (no último dos quais talvez se possa ver também o 11 e o 111), traçam um quadro da sabedoria pagã, enquanto os últimos seis expõem e 137 Tefutam as heresias. Ao papa Calisto reprova Hipólito o facto de não estabelecer uma distinção suficiente entre o Pai e o Logos e o de atribuir, portanto, toda a obra redentora ao Pai mais que ao Filho. A sua doutrina do Logos tende essencialmente a estabelecer esta distinção. O Pai e o Filho são duas pessoas (prosopa) diferentes, ainda que constituam uma só potência (dynamis). Primeiramente o Logos existia no Pai impessoalmente, em inseparável unidade com ele, como Logos não expresso. Quando o Pai quis e da maneira que quis, ele procedeu do Pai e tornou-se uma pessoa à parte como outro em relação a ele.
Finalmente com a incarnação, o Logos tornou-se o verdadeiro e perfeito Filho do Pai. Hipólito insiste sobre a arbitrariedade da geração divina do Logos. "Se Deus tivesse querido, diz ele, (Philos., X, 33), teria podido fazer um homem Deus (ou o homem) em vez do Logos". Afirma assim a subordinação da natureza do Logos à do Pai. Contudo, ao afirmar que o Logos é distinto de Deus, ele não pretende dizer que sejam duas divindades: a relação entre o Pai e o Logos é semelhante à que existe entre a fonte luminosa e a luz, entre a água e a fonte, entre o raio e o sol. Com efeito, o Logos é uma potência que deriva do todo e o todo é o Pai de cuja potência procede (Contra Noet., 11). A procedência do Logos do Pai era necessária para a criação do mundo, pois que o Logos é o intermediário da obra criadora. Além do Pai e do Filho, Hipólito admite a terceira instituição (economia), o Espírito Santo. "0 Pai manda, o Filho obedece, o Espírito Santo ilumina; o Pai está acima de tudo, o Filho é por tudo, o Espírito Santo está em tudo. Não podemos pensar num único Deus, se não acreditarmos no Pai, no Filho e no Espírito Santo" (Contra Noet., 14). 138 O homem foi criado por Deus dotado de liberdade e Deus deu-lhe. através dos profetas e especialmente de Moisés, a lei que deve guiar a sua vontade livre. O homem não é Deus; mas se quiser pode tornar-se Deus: " Sô seguidor de Deus e co-herdeiro de Cristo, em vez de servir os instintos e as paixões e tornar-te-ás Deus" (Philos., X, 33). § 139. TERTULIANO Frente aos apologetas orientais que tentaram estabelecer a continuidade entre o cristianismo e a filosofia grega e apresentaram a doutrina cristã como a verdadeira filosofia que a revelação de Cristo conduziu à sua última perfeição, os apologetas ocidentais tendem a reivindicar a originalidade da revelação cristã em confronto com a sabedoria pagã e a fundá-la sobre a natureza prática e imediata da fé, mais que sobre a especulação. Este carácter da apologética latina demonstra-se, sobretudo, no seu maior representante, Tertuliano. Quinto Septímio Fiorente Tertuliano nasceu cerca de 160 em Cartago de pais pagãos. Teve uma educação excelente e exerceu, provavelmente em Roma, a profissão de advogado. Entre 193 e 197 converteu-se ao cristianismo e recebeu a ordenação sacerdotal. Desenvolveu então uma intensa actividade polémica a favor da nova fé; irias, a meio da sua vida, passou para a seita dos montanistas e começou a polernizar contra a Igreja Católica com violência pouco menor do que aquela que tinha usado contra os hereges. Finalmente, fundou uma seita própria, os "tertulianistas" (Agostinho, De haeres., 86). Parece que viveu até idade avançada (Jerónimo, De vir. iII., 53). A actividade literária de Tertuliano é vastíssima, mas exclusivamente polémica. As suas obras costumam dividir-se 139 em três grupos: apologéticas, em defesa do cristianismo; dogmáticas, em refutação das heresias; prático-ascéticas, sobre questões de moral prática e de disciplina eclesiástica. Ao primeiro grupo pertencem: o Apologeticus, dirigido no ano de 197 aos governadores das províncias do Império Romano; o Ad nationes, pouco anterior ao primeiro; o De testimonio animae, que pretende fundar a fé no testemunho da alma, "naturaliter christiana"; a carta Ad Scapulam, dirigida a um procônsul de África que perseguia os cristãos; o Adversus judaeos, que, provavelmente, só nos primeiros oito capítulos pertence a Tertuliano. As obras dogmáticas são: o De praescriptione haereticorum que é um dos seus escritos filosóficamente mais significativos; Adversus Marcionem, Adversus Hermogenem e Adversus Valentinianos, dirigidos contra os Gnósticos; o Scorpiace,
também dirigido contra os Gnósticos, comparados aos escorpiões; o De baptismo, que declara inválido o baptismo dos heréticos; o De carne Christi que confirma a realidade do corpo de Cristo contra o docetismo; o De ressurrectione Christi, em defesa da ressurreição da carne; o Adversus Praxean; o De anima, que é o primeiro escrito de psicologia cristã. Os dois últimos escritos pertencem ao período montanístico. As obras prático-ascéticas são: o De patientia, o De oratione, o De poenitentia, o De pudicitia, a carta Ad martyras, o De exortatione castitatis, o De monogamia, todos dirigidos contra o segundo matrimónio; o De spectaculis, contra a intervenção dos cristãos nos jogos pagãos; o De idololatria, contra a participação dos cristãos na Vida pública e na actividade artística; o De corona, contra o serviço militar; o De cultu foeminarum, contra os adornos das mulheres; o De virginibus velandis; o De fuga in persecutione, que declara ilícita a fuga durante as perseguições; o De ieiunio adversus psychícos, contra os jejuns dos 140 católicos; o De palfio, em defesa da veste que havia adoptado ao abandonar a toga. O traço característico de Tertuliano é a irrequietude. No tratado De patientia, que dirige sobretudo a si próprio, existe indubitàvelmente uma confissão sincera: "Pobre de mim, que ardo continuamente com a febre da impaciência." E, na realidade, ele era incapaz de deterse sobre os problemas e examiná-los com profundidade. O trabalho paciente e rigoroso da pesquisa não era para ele; por alguma coisa, como veremos, desvaloriza a investigação ante a fé. Servido por uma habilidade polémica excepcional e por uma faculdade oratória pouco comum, examina os problemas tomando as posições mais simples e extremistas com suprema indiferença por toda a cautela crítica e toda a exigência de método. Este homem que nega o valor da pesquisa e passa a vida à procura de qualquer coisa; este adversário implacável de todas as seitas que depois passa a uma delas e acaba por fundar uma; este defensor do cristianismo que afirma a corporeidade de Deus e da alma, perdendo assim a primeira conquista não só do cristianismo mas de qualquer religião; este defensor intransigente do pudor que se detém com complacência a descrever o acto carnal do amor (De an., 27), este causídico que defende com igual violência polémica a trindade de Deus e a forma do seu vestir, revela em todas as suas atitudes uma carência fundamental de clareza e de sinceridade consigo próprio. Com demasiada frequência deixa transparecer na sua arrogância polémica, sob o manto oratório das frases incisivas, a inconsistência da sua espiritualidade e o carácter formalístico da sua fé. Aquela seita dos montanistas, que tinha as características do seu fundador Montano, ex-sacerdote de Cibele, formada por exaltados que viviam em contínua agitação à espera do iminente regresso de Cristo, 141 pôde seduzi-lo por algum tempo, mas não pôde detê-lo. E assim, se imprimiu à especulação cristã do Ocidente a sua terminologia, não conseguiu dar-lhe um contributo substancial de pensamento. § 140. TERTULIANO: AS DOUTRINAS O ponto de partida de Tertuliano é a condenação da filosofia. A verdade da religião fundase na tradição eclesiástica-, da filosofia só nascem as heresias. Não existe nada de comum entre o filósofo e o Cristo, entre o discípulo da Grécia e o dos céus (Apol., 46); os filósofos são "os, patriarcas dos heréticos" (De an., 3). A raiz de todas as heresias está nos filósofos gregos. Valentino, o gnóstico, era discípulo de Platão; Marción, dos Estoicos. Para negar a imortalidade da alma recorre-se aos Epicuristas; para negar a ressurreição da carne, ao acordo unânime dos filósofos. Quando se fala de um Deus-fogo recorre-se a Heraclito. E a coisa mais inútil de todas é a dialéctica do desgraçado Aristóteles que serve tanto para edificar como para destruir e que se adapta a todas as opiniões (De praescr., 7). Que valor
têm então as palavras de Cristo: "Procurai e achareis"? É necessário procurar a doutrina de Cristo enquanto não a encontrarmos, isto é, enquanto não acreditamos nela. "Se procuramos para encontrar e encontramos para crer, põe-se fim, com a fé, a toda a ulterior investígação e achamento. Eis o limite que o próprio resultado da investigação estabelece. Eis aqui o fosso que traçou diante de ti aquele que quer que tu creias só naquilo que te ensinou e que não busques outra coisa" (De praescr., 10). A investigação excluí pois a posse e a posse exclui a investigação. Procurar, depois que se alcançou a fé, significa precipitar-se na heresia (1b., 14). Nada há 142 mais estranho à mentalidade de Tertuliano do que a exigência de uma investigação que nasça e se alimente da fé: esta exigência encarnará na grande figura de S. Agostinho. Medido pelo critério de Tertuliano, S. Agostinho seria incrédulo ou herético. A verdade do cristianismo funda-se, portanto, apenas no testemunho da tradição. Às seitas heréticas que procuram interpretar a seu modo as Sagradas Escrituras, ele opõe que a interpretação delas diz respeito apenas às autoridades eclesiásficas, às quais foi transmitido, por hereditariedade ininterrupta, o ensinamento de Cristo. Com mentalidade de advogado defende este direito da Igreja, que foi instituída, através dos Apóstolos, como herdeira da mensagem de Cristo. Mas admite também, além da tradição eclesiástica, um outro testemunho a favor da fé: o da alma. Mas a alma não é para ele, como será para S. Agostinho, o princípio da interioridade, o rincão interior onde ressoa do alto a voz da verdade divina; é a voz do senso comum, a crença que o homem da rua manifesta nas expressões correntes da sua linguagem. "Eu não invoco a alma que se formou nas escolas, exercitada nas bibliotecas e inchada pela sabedoria das academias e dos pórticos da Grécia. Eu invoco a alma simples, rude, inculta e primitiva, tal como a possuem aqueles que só a têm a ela, a alma que se encontra nas encruzilhadas e bifurcações dos caminhos" (De testimon. an., 1). E Tertuliano recolhe o testemunho desta alma nas expressões mais simples e mais frequentes que o vulgo emprega, com a convicção de que tais expressões são "vulgares porque comuns, comuns porque naturais, naturais porque divinas" (lb., 6). O testemunho da alma é, pois, para Tertuliano, o testemunho da linguagem ou do senso comum mais que o testemunho da consciência. O princípio da consciência é, efectivamente, estranho a Ter143 tuliano, que aceita dos Estoicos a corporeidade do ser. "Tudo aquilo que é, é o corpo de um género determinado. Nada é incorpóreo a não ser aquilo que não é" (De carne Christi, 11). O próprio Deus é corpo ainda que seja espírito, pois que o espírito não é mais do que um corpo sui generis. A diferença entre a natureza espiritual da alma e a natureza carnal do corpo é a diferença entre dois corpos: o espírito é um sopro que dá vida à carne, mas que é ele próprio corpóreo. O mundo sensível e o mundo intelectual diferenciam-se entre si só enquanto um é visível e aparente e o outro evanescente e imperceptível. O primeiro cai sob a sensibilidade, o segundo sob o intelecto. Mas o próprio entender é um sentir e o sentir é um entender. A sensação é efectivamente a inteligência da -realidade que se sente e a intelecção é a sensação da realidade que se percebe (De an., 18). A alma tem, pois, a mesma figura do homem e, precisamente, do corpo que a contém (lb., 9). Ela é definida por Tertuliano como "uma substância simples, nascida do sopro de Deus, imortal, corpórea e dotada de uma figura, capaz por si mesma de sabedoria, rica em atitudes, partícipe de arbítrio, sujeita às circunstâncias, mutável de humor, racional, dona da sua
capacidade, rica de virtudes, adivinhadora, multiplicando-se a partir de um único ramo (Ib., 22). Esta última determinação exprime a convicção de Tertuliano de que a alma se transmite, em conjunto com o corpo, de pai para filho através da geração (traducianisnio). No resoluto materialismo de Tertuliano exprime-se, por um lado, a necessidade de dar ao espírito a realidade mais sólida e concreta pelo outro a sua incapacidade para conceber um'@ realidade estável e firme fora do corpo. Contudo, isso permite-lhe afirmar com extrema energia a unidade indissolúvel do homem. "Se a morte não é mais que a separação entre o corpo e a alma, aquilo que é 144 contrário à morte, a vida, não será outra coisa senão a união da alma e do corpo. Estão fundidos pela vida os elementos que são desintegrados na morte" (1b., 27). Por isso, Tertuliano defende a realidade do corpo de Cristo contra aqueles que o reduziam a uma pura aparência (docetismo). No De carne Christi detém-se, com aquela complacência no repugnante e no abjecto que lhe é tão característica, nos mais grosseiros detalhes da geração e do nascimento, para defender a total e plena humanidade do homem. "Cristo, diz ele (De carne Christi, 4), amou o homem tal como é. Se Cristo é o criador, amou justamente o que era seu; se vem de outro Deus, o seu amor é mais meritório porque se redimiu a um estranho. Era, pois, lógico que amasse também o seu nascimento, a sua carne; é impossível amar um objecto qualquer sem amar o que é uno com ele. Acaba com o nascimento e faz-me ver um só homem que seja; suprime a carne e diz-me que coisa pôde Deus remir, se de um e da outra resultou a humanidade que Deus redimiu". A realidade e o valor da carne justificam a ressurreição de Cristo. E a este respeito encontramos palavras paradoxais que exprimem aquela exasperada tensão entre a certeza da fé e a verdade do intelecto que se expressou na fórmula (que não se encontra em Tertuliano): credo quia absurdum. "0 Filho de Deus foi crucificado; não é vergonhoso porque poderia sê -lo. O Filho de Deus morreu: é crível porque é inconcebível. Sepultado, ressuscitou: é certo porque é impossível" (De carne Chr., 5). Aqui a fé tem tanta maior certeza quanto mais repugna às avaliações naturais do homem. A ressurreição de Cristo é a garantia da ressurreição do homem. Tertuliano deduz as provas da imortalidade da alma dos testemunhos do senso comum, da necessidade implícita em todos de viver de qualquer modo para lá do túmulo, necessidade que se funda numa instintiva certeza do futuro (De 145 testim. an., 6). Mas à imortalidade da alma andará unida a ressurreição da carne. O homem deverá ressurgir na sua natureza inteira e esta não seria tal sem a carne (De ressur. carnis, 56-57). Na sua doutrina do Logos, Tertuliano liga-se expressamente aos Estoicos: "Deus criou todo o mundo com a palavra, com a sabedoria e com a potência. Também os vossos sábios chamam Logos, isto é, palavra e sabedoria, ao artífice do universo. Zenão chama-lhe o autor da ordem que dispôs todas as coisas; Cleanto redu-lo a um espírito e afirma que penetra o universo. E nós à Palavra, à Sabedoria e à Potência pela qual Deus criou todas as coisas, atribuímos-lhe, como substância própria, o Espírito, no qual existe a Palavra para mandar, a Razão para dispor e a Potência para efectuar" (Apol., 21). Tertuliano admite,
contudo, a subordinação do Filho e do Espírito Santo ao Pai. O ser pertence principalmente ao Pai, do qual se comunica ao Filho e, através do Filho, ao Espírito Santo. Tudo aquilo que o Filho é vem-lhe da substância do Pai; toda a sua vontade, todo o seu poder lhe vem do Pai (Adv. Praexan., 3-4). O Logos tem um duplo nascimento, o imanente e o emanewe; pelo primeiro, é gerado na sensibilidade de Deus; pelo segundo afasta-se do Pai e procede à criação do mundo (1b., 7). § 141. APOLOGETAS LATINOS Contemporâneo de Tertuliano foi Minúcio Félix, autor de um diálogo intitulado Octavius, que é uma das primeiras apologias do cristianismo. Pouco sabemos do autor, que se intitula advogado (causidicus) em Roma. No diálogo, faz de árbitro na disputa entre o cristão Octávio Gennaro e o pagão Cecilio Natale que, no final, se declara vencido. A apologia 146 de Minúcio Félix é, no seu espírito, uma obra mais próxima dos escritores gregos do que de Tertuliano. O cristianismo é apresentado como monoteísmo e caracterizado acima de tudo através da sua moral prática. Não se fala dos mistérios da fé nem da Sagrada Escritura. A concordância de todos os filósofos sobre a unicidade de Deus faz concluir que "ou os cristãos são os filósofos de agora ou os filósofos de então eram cristãos" (Oct., 20). Todavia, a obra apresenta no seu conteúdo uma grande afinidade com o Apologeticum de Tertuliano. Não é fácil elucidar a prioridade de uma ou de outra obra. Como quer que seja, as teses que, em Tertuliano, têm uma forma violenta e extrema, tomam em Minúcio Félix uma forma atenuada e cortês, que as torna mais aptas para influir persuasivamente sobre os pagãos cultos a quem a obra se dirige. À posição céptica de Cecílio, o interlocutor pagão que, reconhecendo a impossibilidade da mente humana para olhar os mistérios divinos, julga que nos devemos contentar com as crenças dos nossos pais, Octávio contrapõe a evidência pela qual o Deus único se manifesta na sua obra: o céu e a terra. Como quem entra numa casa e, ao vê-Ia bem ordenada e disposta, atribui esta ordem ao dono, do mesmo modo quem considera a ordem, a providência e a lei que regem o céu e a terra, deve crer num senhor do mundo que o move, o alimenta e o governo (1h., 18). Como Tertuliano, Minúcio recorre ao testemunho da alma simples e reconhece nela "a palavra espontânea da multidão". A crença cristã num Deus único confirmada juntamente pela demonstração dos filósofos e pelo sentido comum da maioria, e contraposta por Minúcio ao politeísmo pagão, tal como a moral cristã se opõe à moral pagã, degenerada e corrupta. Nos escritos prático-ascéticos de Tertuliano se inspirou frequentemente Tascio Cecilio Cipriano (morto em 258), em tratados e cartas que tratam 147 apenas questões referentes à disciplina eclesiástica e não têm, por conseguinte, interesse filosófico. Em contrapartida, tem conteúdo filosófico a apologia de Arnóbio intitulada Adversus nationes, composta no tempo da perseguição de Diocleciano (303-305) ou pouco depois. Arnóbio era professor de retórica em Sicca, na África romana. Uma visão convenceu-o a converter-se e para vencer a desconfiança do bispo, que devia acolhê -lo na comunidade cristã, publicou esse escrito contra o paganismo. Tal é, ao menos, o relato de S. Jerónimo (De vir. ÚI., 79). Pelo seu conceito pessimista da condição do homem, Arnóbio foi comparado a Pascal. Tudo no homem lhe parece baixo, repugnante e ignóbil. A sua própria existência é inútil para a economia do mundo, que permaneceria imutável se o
homem não existisse (11, 37). A convivência humana não chega nunca a ser justa e duradoira; a história é um suceder de violências e de crimes (11, 38) que se repetem eternamente da mesma maneira (1, 5). Posto isto, parece a Arnóbio "um crime de impiedade sacrílega" admitir que haja sido criada por Deus, autor da ordem e da perfeição do mundo, "esta coisa infeliz e mísera, que se dói de ser, que detesta e chora a sua condição e não entende ter sido criada por outrem senão para difundir o mal e perpetuar a sua miséria" (11, 46). Portanto, o homem deve -ter sido criado por uma divindade inferior em dignidade e potência, e em muitos graus, ao sumo Deus, ainda que pertencente à sua família (11, 36). Arnóbio admite assim divindades inferiores, subordinadas ao Deus supremo. Nem sequer exclui a existência das divindades pagãs: se existem, serão também divindades de ordem inferior subordinadas ao Deus dos cristãos (1, 28; 111, 2-3; VII, 35). A alma humana não tem, pois, o carácter divino que os Platónicos lhe tinham atribuído. Arnóbio combate expressamente a doutrina platónica da 148 reminiscência. Um homem que tivesse estado desde o seu nascimento em completa solidão teria o espírito vazio e não chegaria de modo algum a ter conhecimento das coisas ultraterrenas. A sensação é a origem única de todo o conhecimento humano (11, 20). Uma só ideia é inata no homem, a ideia de Deus, o único criador e senhor de tudo (1, 33); com ela se revela também a certeza da existência de Deus, da sua bondade e da sua perfeição. Ainda devido à sua natureza inferior, a alma não é naturalmente imortal. Ela não é puro espírito nem puro corpo, mas de uma qualidade intermédia e de natureza incerta e ambígua (11, 14). Só Deus pode subtraí-Ia à morte e conferir-lhe a imortalidade; ele confere a imortalidade àqueles homens que o reconhecem e servem, enquanto os demais serão por ele condenados à verdadeira morte e consumidos até ao aniquilamento pelo fogo do inferno (11, 14). Erram pois os Epicuristas ao afirmar incondicionalmente a morte da alma (11, 30) e também Platão ao afirmar a sua imortalidade incondicionada (11, 4)0. O destino da alma é um resultado da sua conduta. Discípulo de Arnóbio, segundo parece, foi Lúcio Célio - Firmiano Lactâncio que também havia ensinado retórica em África e desenvolvera já uma certa actividade literária quando se converteu ao cristianismo. Chamado por Diocleciano para ensinar retórica latina em Nicomédia, a nova capital do Império, conheceu a vida errante e pobre quando, no ano de 305, foi obrigado pela perseguição a deixar o seu ofício. Mas alguns anos depois assistia à mudança radical da política do Império, relativamente ao cristianismo, por obra de Constantino e compunha o De mortibus persecutorum, no qual, com amargo espírito de vingança, se compraz com a ruína em que caíram os perseguidores dos cristãos. Na sua velhice foi, na Galiá, perceptor de Crispo, filho de Constantino. A sua obra mais importante, os 7 livros 149 das Divinae institutiones são, ao mesmo tempo, a apologia do cristianismo contra os seus inimigos e um manual de toda a doutrina cristã. Um compêndio desta obra é o Epitome divinarum institutionum. O tratado De opificio Dei tem como fim demonstrar contra os Epicuristas que o organismo humano é uma criação de Deus; e o tratado De ira Dei, contra a indiferença atribuída pelos Epicuristas à divindade, pretende demonstrar a necessidade da ira divina. A obra principal de Lactâncio é a primeira tentativa, realizada no ocidente, para reduzir a sistema a doutrina cristã expondo-a de modo orgânico e completo. Pela forma literariamente apreciável desta exposição, Lactâncio foi chamado pelos humanistas o Cicero cristão; mas
a sua obra apresenta escassa originalidade de pensamento. Que existe uma providência que rege o mundo é evidente, segundo Lactâncio, a quem quer que erga os olhos ao céu. Só pode haver dúvidas sobre a quem pertence tal providência, se a um único Deus ou a várias divindades; a alternativa é, pois, entre monoteísmo e politeísmo. Mas admitir mais divindades significa aceitar que Deus não tinha poder suficiente para reger por si só o mundo, com o que se nega a Deus uma potência infinita e se elimina o próprio conceito de Deus. Divindades diversas poderiam estabelecer no mundo leis antagónicas que lutassem entre si, o que está excluído pela unidade e a ordem do mundo. Além disso, como no corpo humano os diferentes membros e os diversos aspectos da vida espiritual são dirigidos por uma única alma, assim o mundo deve ser regido por uma única mente divina (Instit. div., 1, 2). A doutrina cristã do Logos não divide nem multiplica o único Deus. O Pai e o Filho não estão separados um do outro, pois nem o Pai pode ser dito tal sem o Filho, nem o Filho pode ser gerado sem o Pai. Constituem entre ambos uma única razão, um único espírito, uma única substância. Mas o Pai é como a fonte 150 transbordante, o Filho é a torrente que emana da fonte; o Pai é como o sol, o Filho é o raio irradiado pelo sol; como a torrente não pode separar-se da fonte e o raio não pode separarse do sol, também o Filho não pode separar-se- do Pai. Como uma casa que pertença a um dono que ame o seu único filho e o reconheça igual a si, não cessa com isto de ser juridicamente uma só casa com um só dono, assim o mundo é a casa de Deus e o Pai e o Filho que a habitam são um único Deus (1b., IV, 29). O Filho foi gerado antes da criação do mundo para ser o conselheiro de Deus na concepção e na realização do plano da criação (Ibid., 11, 10). E o mundo não foi criado por Deus para si próprio, pois não tem necessidade dele, mas para o homem; Deus criou, em contrapartida, o homem para si, para que o reconhecesse e lhe prestasse o devido culto, compreendendo e medindo a perfeição da obra que tem diante de si (Ib., VII, 5). Deus também não teve necessidade, na criação, de uma matéria pré-existente: o homem tem necessidade da matéria para todas as suas obras, mas Deus cria a própria matéria (1b., 11, 9). O homen-i é composto de alma e corpo. A alma não tem nenhum peso terreno: é tão ténue e subtil que escapa até aos olhos da mente (1b., VII, 12-13). Alma e mente não são idênticos; a alma é o princípio da vida e não entorpece no sonho nem se extingue na loucura; a mente é o princípio do pensamento, aumenta ou diminui com a idade, perde-se no sonho e na loucura (1b., VII, 12). A alma e o corpo estão ligados entre si e contudo são opostos: aquilo que é bem para a alma como a renúncia à riqueza, aos prazeres, o desprezo pela dor e pela morte é um mal para o corpo; aquilo que é um bem para o corpo é um mal para a alma que se relaxa e extingue com os prazeres e com o desejo da riqueza (1b., VII, 15). O homem é formado por princípios diferentes e contrários, como o mundo é formado 151 por luz e trevas, vida e morte. Estes princípios combatem dentro dele e se nesta luta a alma vence será imortal e admitida à luz eterna; se vence o corpo, a alma estará sujeita às trevas e à morte (1b., 11, 13). Mas a imortalidade não é só o termo e o prémio da virtude: é condição da própria virtude. Seria estulto renunciar àqueles prazeres aos quais o homem é naturalmente inclinado e entrar num caminho que é hostil e mortificante para a natureza humana, se a imortalidade não existisse para dar um sentido à obra contra a natureza da virtude (lb., VII, 9). Reaparece aqui como pressuposto da vida moral o pessimismo de Amóbio sobre a
condição do homem. A natureza humana é radical e totalmente contrária à vida moral e religiosa. Nada existe nela que a resgate e a atraia para o espírito; pelo contrário, o espírito a dana, pois o seu único bem é o prazer, o único mal a dor. Mas este pessimismo é usado por Lactâncio como fundamento da vida moral e religiosa. Se a natureza humana não fosse fundamentalmente perversa, a própria virtude seria impossível. Os Estoicos que negam o vício no homem retiram do mesmo modo a própria virtude, pois que coisa seria a mansidão se não existisse a ira, e a continência se não existisse desejo sexual? A virtude, com termo médio, supõe os extremos viciosos (lb., VI, 15). Pela virtude, a alma, desligando-se da sua natureza e da sua ligação corpórea, tende para aquela imortalidade que lhe será dada como prémio, Mas isto significa que o sumo bem do homem só e alcançável na religião (1b., 111, 10), não em toda a religião mas só naquela com a qual está essencialmente ligada a esperança na imortalidade: a cristã (lb., 111 12). Tudo está para o homem no reconhecimento e no culto de Deus: esta é a sua esperança e a sua salvação, este é também o sumo grau da sabedoria (Ib., VI, 9). Mas este grau mais alto da sabedoria não é a filosofia. A filosofia procura a 152 sabedoria, mas não é a própria sabedoria (1b., 111, 2). Ela não atinge o conhecimento das causas, como ensinam com razão Sócrates e os Académicos. A disparidade das escolas filosóficas torna impossível orientar-se alguém nas suas opiniões se se não possui antecipadamente a verdade. Só a revelação pode, pois, dar a verdade. E a dialéctica é inútil (1b., 111, 13). NOTA BIBLIOGRáFICA § 133. São fundamentais para o estudo da Patristica as seguintes obras: MIGNE, Patrologiae cursus completus, série L, "Ecelesia graeea>, 162 volumes (com tradução latina) que chega até ao século xv, Paris, 1857-66; série 2.1 "Eeclesia latina", 221 vols. até ao princípio do século MU, Paris, 1844-64. Corpus scriptorum ecelesiasticorum latinorum, a cargo da Academia de Viena, Viena, 1866, ss.; Monumenta Germaniae historica. Auctores antiquissimi, 13 vols. Berlim, 1877-98; Escritores gregos cristãos dos priineiros trêo sécu7,os, Academia de Berlim, 31 vols. a partir de 1897; S.S. Patruum opuscula selecta, editados por HuRTER, 43 vols. 1868-85; outra série: 6 vo,18-, 1884-92. Sobre a Patrística em geral: STÜCKL, GCSchichte der christliche Philosophie zur Zeit der Kirchen-Vãter, Mogúncia, 1891. Bibliografia in UEBERWEGGEYER, Die Patristiche und scholastische philosophie, Berlim, 1928, p. 640 e ss. § 134. Sobre os apologistas em geraJ: HARNACK, Der Vorwurf des Atheismus in den ersten drei Jahrunderten, 1905; ZÜCKLER, Geschichte der Apologie des Christentums, 1907; CORBIÈRE, Le christianisme et Ia fin de Ia philosophie antique, Paris, 1921; CARRINGSTON, Christian Apologetes of the 2nd Century in their Relation to Modern Thought, Londres, 1921*, M. PELLEGRINO, Gli Apologeti greci del II secolo, Roma, 1947. § 135. As obras de Justino em Patr. Graec., vol. 6.1; Apologia, edição Pautigny, Paris, 1904; edição Rauschen, Bonn, 1911; edição Pfattisch, Münster, 1912. Sobre Justino: LAGRANCE, Saint Justin, Paris 1914; MARTINDALE, St. Justin, Londres, 1921; RIVIÈRE, st. Justin et les apologistes du Ile. siècle, Paris, 1907; 153
GOODENOUGH, The Theology of Justin Martyr, Iena, 1923. § 136. As obras dos padres apologetas estão impressas no Corpus apologetarum christianorum saeculi II, edição d3 OTTO, 9 vols., Iena, 1847-72; nova edição dos primeiros 5 vols., 1876-81. O escrito de Hermias, Jn DIELs, Doxographi.graeci, Berlim, 1879, pp. 649-656. § 137. Os fragmentos dos gnósticos estão recolhidos (de mo-do incompleto) na colectânea de W. VOLKER, Quellen zur Geschichte der christlischen Gnosis (SammIung ausgewãhlter kirchen-und dogmengesch. Quellenschriften) hrgg. v. g. G. KRUGER NF 5), Tübingen, 1932; uma selecção de textos traduzidos em italiano é a de E. BUONAIUTI, Frammenti gnostici, Roma, 1923. Tratados gnõsticos conservados em língua copta publicados (em tradução alemã) por C. SCHMIDT, Koptisch-gnostiche Schriften, Berlim, 1905 (com actualização de W. TILL), 1954; W. TILL, Die gnostische Schriften des koptischen Papyrus Berolinensis 8502 ("Texte und Untersuchungen", LX), Berlim, 1955. Em 1946 foram descobertos no Alto Egipto 11 vols. contendo 48 escritos de inspiração gnóstica. Sobre eles: 11. CH. PuECH, Les nouveaux écrits gnostiques découverts en IlauteEgypte, in "Coptie Studies in Honour of Walter Ewing Crum", (Mass.), 1950, p. 91-154. Desta bibliografia gnóstica foram publicados até agora: o valentiniano Evangelium veritatis, edição de M. MALILINE-H. Cil. PUECII-G. QUISPEL, Zürich, 1956; O Evangelho segundo Tomás, trad. francesa, Paris, 1959; trad. alemã e Inglesa, Leide, 1959. Sobre a gnose: W. BOUSSET, Hauptprobleme der Gnosis, Gottingen, 1907; A. V. HARNACK, Marcion. Das Evangelium vom fremden Gott, Leipzig, 1924; E. DE FAYE, Gnostiques et gnosticisme, Paris, 1925; F. C. BURKITT, Church and Gnosis, Cambridge, 1932. S. PÉTREMENT, Essai sur le dualisme chez Platon, les gnostiques et les manichéens, Paris, 1947; G. QUISPEL, Gnosis aIs Weltreligion, Zurich, 1951; H. JONAS, Gnosis und spãtantiker Geist, Gottingen, 1954; H. CH. PUECII, Gnostische Evangelien und verwandte Dokumente, in E. H.ENNECKE~W. SCHNEEMÉLCHER, NeutestamentUsche Apokryphen, I, Tubingen, 1959 (fundamental). Sobre o maniqueísmo: H. CH. 154 PUEcH, Le manichéisme. Son fondateur, sa doetrine, Paris, s. d. (ma-9 1949). § 138. As obras de IRINEU, in Patr. Graec., vol. 7.o; Adversus haereses, edição Harvey, Cambridge, 1857; edição Stieren, Londres, 1848-53. Sobre Irineu: HITCHCOCK, Irenaeus of Lugdunum, Cambridge, 1914; BON=SCH, Die Theologie des Irenaeus, Güterslok, 1925. As obras de Hipólito, in Patr. Graec., vol., 10.1. Há também edição berlinense em 3 vols., 1897-1916. Sobre Hipólito: A. DIALÉs, La théologie de St. Hyppolite, Paris, 1906. § 139. As obras de TERTULIANO, em P. L.@ 1.---2.o e no Corpus de Viena@ 20.o 47.o; edição de OEHLER@ 3 voIs. Leipzig, 1851-54; edição menor, Leipzig, 1854. Sobre Tertuliano: MONCEAUX, Hist. litt. de l'Afrique chrétienne, vol. 1, Paris, 1901; BUONAIUTI, 11 cristianesimo' nell'Africa romana, Bari, 1928, p. 37-208; LORTZ, Tertullian aIs apologets, 2 vols., Münster, 1927-28.
§ 141. A obra de MINucio FÉLIX, in P. L., 3.1 edição, Teubner, Leipzig, 1912. Sobre W11núcio. BARDENHEwER, Gesch. der altkirch. Litter., 1, Friburgo, 1913, p. 337 ss; BU0NAlUTI, ob. cit., p. 217 ss. A obra de ARNõBIO, in P. L., 3.1 e no Corpus de Viena, 4.1. Sobre Arnóbio: MONcEAux, Hist. Litt. de PAfrique chrétienne, võl. III, p. 275 ss; BUONAIUTI, ob. cit., p. 278 ss. As obras de LACTÂNCIO, in P. L., 6.---7.g e no Corpus de Viena, 19.o, 27.o. Sobre Lactâncio: PICHON, Lactance, Paris, 1901; BU0NAlUTI, ob. cit., pp. 285 ss. 155 HI A FILOSOFIA PATRISTICA NOS SÉCULOS III E IV § 142. CARACTERISTICAS DO PERIODO ´ A elaboração doutrinal do cristianismo, iniciada pelos apologetas para defender a comunidade eclesiástica contra os perseguidores e heréticos, foi continuada e aprofundada nos séculos seguintes por uma necessidade interna, que se afirma cada vez mais dominante no próprio campo da Igreja. Nesta elaboração seguinte dominam menos os motivos polémicos e mais a exigência de constituir a doutrina eclesiástica num organismo único e coerente, fundado numa sólida base lógica. A parte da filosofia torna-se, por isso, cada vez maior. A continuidade que os apologetas orientais, a começar em Justino, tinham estabelecido entre o cristianismo e a filosofia pagã consolida-se e aprofunda-se. O cristianismo apresenta-se como a autêntica filosofia que absorve e leva à verdade o saber antigo, do qual pode e deve @servir-se para trazer elementos e motivos para a sua própria justificação. As doutrinas 157 fundamentais do cristianismo encontram, mediante este trabalho, a sua sistematização definitiva. O período que vai de 200 a cerca de 450 é decisivo para a construção de todo o edifício doutrinal do cristianismo. As esperanças escatológicas das numerosas seitas cristãs, que tinham dominado no período precedente, vingam menos. Se, frente ao iminente regresso de Cristo, o trabalho longo e paciente da investigação doutrinal parecia quase inútil e os ritos preparatórios e propiciatórios ocupavam o primeiro lugar, uma vez esmorecida a esperança deste retorno, a investigação doutrinal torna-se a primeira e fundamental exigência da Igreja, que é a que deve garantir a sua unidade o a sua solidez na história. O primeiro impulso para tal investigação foi dado pela escola catequística de Alexandria, que existia já há muito tempo quando, em 180, se tornou seu chefe Panteno, que lhe deu as características de uma academia cristã , na qual toda a sabedoria grega era utilizada para os fins apologéticos do cristianismo. A escola alcançou o seu máximo esplendor com Clemente e Orígenes; mas quando, em 233, Orígenes procurou na Palestina uma nova pátria e abriu em Cesareia a sua escola, esta suplantou a outra e tornou-se a sede de uma grande biblioteca que foi a mais rica de toda a antiguidade cristã. § 143. CLEMENTE DE ALEXANDRIA
Tito Flávio Clemente nasceu cerca de 150, provavelmente em Atenas. Convertido ao cristianismo viajou pela Itália, a Síria, a Palestina e, finalmente, o Egipto. Em Alexandria, pouco antes de 180, torna-se discípulo de Panteno e, seguidamente, padre daquela Igreja. Cerca de 190 foi colaborador e 158 ajudante no ensino de Panteno e, depois da morte deste (cerca de 200), tornou-se chefe da escola catequística. Em 202 ou 203, foi obrigado a deixar Alexandria devido à perseguição de Sétimo Severo; cerca de 211 estava na Ásia Menor junto do seu discípulo Alexandre, que foi depois bispo de Jerusalém. Numa carta de Alexandre a Orígenes, de 215 ou 216, fala-se de Clemente como de um padre já falecido (Eusébio, Hist. ecc1., VII, 14, 8-9). Os três escritos de Clemente que nos restam, Protréptico aos gregos, Pedagogo e Stromata foram concebidos por ele como três partes de um plano único, de uma progressiva introdução ao cristianismo. O Protréptico, ou exortação aos gregos, aproxima-se muito, pelo conteúdo e a forma, da literatura apologética do século H. O Pedagogo, em três livros, procura educar na vida cristã o leitor que já se afastou do paganismo. Os Stromata ou Tapetes, isto é, "tecidos de comentários científicos sobre a filosofia" deviam ter como finalidade expor cientificamente a verdade da revelação cristã. Perdeu-se a sua obra intitulada Hipotiposis (esquemas ou esboços) e chegou até nós uma liomilia com o título Qual o rico que se salvará? O primeiro fim de Clemente é o de elaborar o próprio conceito de uma gnose cr,,'stã. Não há dúvida de que o conhecimento é o limite mais alto que o homem pode alcançar. Ele é a realização (teleiosis) do homem; é a só lida e segura demonstração daquilo que foi aceite pela fé e, frente a ele, a fé é apenas o conhecimento abreviado e sumário das verdades indispensáveis (Stromata, VII, 10). Mas, por outro lado, a fé é condição do conhecimento. Entre a fé e o conhecimento existe a mesma relação que os Estoicos estabeleciam entre os prolepsi, isto é, o conhecimento preliminar dos primeiros princípios, e a ciência; como a ciência pressupõe a "prolepsi" assim a gnose pressupõe a 159 fé. A fé é tão necessária ao conhecimento como os quatro elementos são necessários à vida do corpo (1b., 11, 6). Fé e conhecimento não podem subsistir um sem o outro (1b., 11, 4). Mas para chegar da fé ao conhecimento é necessária a filosofia. A filosofia teve para os gregos o mesmo valor que a lei do Velho Testamento para os hebreus: conduziu-os a Cristo. Clemente admite, corno Justino, que, em todos os homens, mas especialmente naqueles que se dedicaram à especulação racional, está presente um "eflúvio divino", uma "centelha do Logos divino" que lhes faz descobrir uma parte da verdade, ainda que não os torne capazes de alcançar toda a verdade que só é revelada por Cristo (Prop., 6, 10; 7, 6). Por certo, os filósofos misturaram o verdadeiro e o falso; trata-se agora de escolher entre as suas doutrinas aquilo que é verdadeiro, abandonando o falso, e a fé fornece o critério desta escolha (Stromata, 11, 4). A filosofia deve ser neste sentido a serva da fé como Agar de Sara (1b., 1. 5). Nesta subordinação da filosofia à fé reside o carácter da gnose cristã. A gnose dos
Gnósticos é a falsa gnose porque estabelece entre a filosofia e a fé a relação inversa: se ao gnóstico fosse dado escolher entre a gnose e a salvação eterna, ele escolheria a gnose porque a julga superior a todas as coisas (1b., IV, 22). Este conceito da gnose influi poderosamente sobre as doutrinas teológicas de Clemente. O cristianismo é a educação progressiva do género humano e Cristo é essencialmente o Mestre, o Pedagogo. Tal interpretação torna-se predominante na Igreja à medida que diminuem as esperanças no imediato regresso de Cristo e, portanto, na iminente destruição e regeneração do mundo. Ao conceito de uma regeneração instantânea substitui-se o da regeneração gradual que deve verificar-se através da história com a assimilação e a compreensão pro160 gressiva dos ensinamentos de Cristo. Esta interpretação, já clara em Clemente, dominará toda a obra de Orígenes. Frente a Deus, que é inatingível porque supera toda a palavra e todo o pensamento e de quem podemos saber aquilo que não é mais do que aquilo que é, o Logos é a sabedoria, a ciência, a verdade, e, como tal, o guia de toda a humanidade (Ped., 1, 7). O Logos é o alfa e o omega porque tudo se move por ele e tudo regressa a ele (Strom., IV, 25). A própria acção do Espírito Santo está subordinada ao Logos porque o Espírito é a luz da verdade, luz da qual participam, sem multiplicá-la, todos aqueles que têm fé (1b., IV, 16). Como supremo mestre, o Logos é também o guia e a norma da conduta humana. A máxima estoica de viver segundo a razão assume em Clemente o significado de viver segundo o ensinamento do Filho de Deus (lb., VII, 16). Mas obedecer ao Logos significa amá-lo; a obediência e o amor estão condicionados pelo conhecimento. À fé é dado o conhecimento, ao conhecimento o amor, ao amor o prémio celeste (1b., VII, ]0). § 144. ORÍGENES: VIDA E ESCRITOS Orígenes nasceu de pais cristãos em 185 ou 186, provavelmente em Alexandria. O pai, Leónidas, morreu mártir na perseguição de Sétimo Severo, em 202 ou 203, e o filho, que queria partilhar a sorte do pai, foi salvo pela mãe (Eusébio, Hist. ecc1., VI, 2-5). Com 18 anos, em 203, foi colocado por Demétrio, bispo de Alexandria, à frente da escola catequística como sucessor de Clemente que se tinha afastado. Desta data até 215 ou 216 desenvolveu uma actividade ininterrupta; e, através do estudo dos filósofos gregos e dos textos sagra161 dos, conseguiu formular as bases do seu sistema. Neste período, o seu zelo religioso levouo a castrar-se. Tomara por certo à letra a palavra evangélica (Mateus, 19, 12) que louva aqueles que se fazem eunucos por amor do reino dos céus. Mas, provavelmente, como observa ainda Eusébio (IV, 23, 1), queria tirar todo o pretexto à malignidade pública, dado que a sua escola era também frequentada por mulheres. Em 215 ou 216 os massacres praticados por Caracala em Alexandria obrigaram Orígenes a fugir para a Palestina onde os bispos Alexandre de Jerusalém e Teoctisto de Cesareia o acolheram com honra e o fizeram pregar nas suas i,rejas. Demétrio não aprovou esta pregação de um laico e impôs a Orígenes o regresso a Alexandria. Aqui retomou a sua actividade de mestre e de escritor que era intensíssima: um discípulo, Ambrósio, pusera à sua disposição sete estenógrafos e vários copistas (Eus.,
IV, 23, 2). Ordenado padre durante uma viagem, caiu em desgraça do bispo Demétrio e foi expulso de Alexandria. Demorou-se então em Cesareia onde fundou uma escola teológica que, em breve, se tornou florescentíssima e onde permaneceu até à morte. Morreu mártir durante a perseguição de Décio. Orígenes suportou a tortura na prisão e pouco depois morreu em Tiro, com 69 anos, e portanto em 254 ou 255. Um seu discípulo, Gregório o Taumaturgo, fornece interessantes pormenores acerca do seu ensino em Cesareia (Panegiricum in Orig., 7-15). O princípio e base do ensino de Orígenes era o estudo da dialéctica. Seguia-se o estudo das ciências naturais, das matemáticas, da geometria, da astronomia; a geometria era considerada como o modelo de todas as outras ciências. Seguidamente, estudava-se a ética que tinha por objecto as quatro virtudes cardiais de Platão e a Caridade cristã. A filosofia grega tinha um posto eminente neste 162 curso de estudos e o seu ponto culminante era representado pela teologia. A produção literária de Orígenes foi vastíssima: atribui-se-lhe um número de obras que vai de 6000 (segundo Epifânio, Haer., 64, 63) a 800 (segundo S. Jerónimo, Epist., 33). Mas o édito de Justiniano contra Orígenes (543) e a sentença do V Concílio Ecuménico (553) que o incluía entre os heréticos provocaram a perda de boa parte da produção de Orígenes. Chegaram-nos: uma obra apologética em oito livros Contra CeIsum, dirigida contra o neoplatónico> Celso que, em 178, escrevera um Discurso verdadeiro de refutação do cristianismo; um tratado dogmático De principiis que nos chegou apenas numa tradução latina refundida por Rufino, o qual se preocupou em atenuar ou eliminar as afirmações que contrastavam com as decisões do Concílio de Niceia; partes ou fragmentos dos seus vastíssimos comentários bíblicos; dois escritos Sobre a oração e Exortação ao martírio,duas cartas e fragmentos de outras obras. As obras exegéticas que, indubitavelmente, constituíam a sua mais vasta produção, eram de três espécies: scolli, isto é, notas sobre passos difíceis da Bíblia; homilias, isto é, discursos sagrados sobre capítulos da Bíblia; comentários ou tomos que eram análises minuciosas de livros inteiros da Bíblia. De todos estes escrites, as partes mais notáveis que nos restam sã o o Comentário ao Evangelho de S. Mateus, do qual ternos os livros X-XVII, o Comentário ao Evangelho de S. João, do qual temos 9 livros não consecutivos, e o da Epístola aos romanos, de que temos um arranjo de Rufino em 10 livros. § 145. ORIGENES: FÉ E GNOSE A doutrina de Orígenes, é o primeiro grande sistema de filosofia cristã. No prólogo de De piin163 cipiis, ele próprio traça a finalidade que se propôs. "Os apóstolos, diz, transmitiram-nos com a maior claridade tudo aquilo que julgaram necessário a todos os fiéis, mesmo aos mais lentos no cultivo da ciência divina. Mas deixaram àqueles que são dotados dos dons superiores do espírito e especialmente da palavra, da sabedoria e da ciência o cuidado de procurar as razões das suas afirmações. Sobre muitos outros pontos, limitaram-se à afirmação e não deram nenhuma explicação, para que aqueles seus sucessores que têm a paixão da sabedoria possam exercitar o seu génio" (De prine. pref. 3). Orígenes distingue aqui as doutrinas essenciais e as doutrinas acessórias do cristianismo. O cristão que recebeu a graça da palavra e da ciência tem a obrigação de interpretar a primeira e de
explicar a segunda. A primeira função é indispensável a todos; a segunda é uma investigação supletória, movida por um amor particular da sabedoria e que consiste no simples exercício da razão. Orígenes empreendeu uma e outra investigação. O seu trabalho exegético dos textos bíblicos tende a fazer luz sobre o significado oculto e, portanto, procura a justificação profunda das verdades reveladas. Ele distingue um tríplice significado das Escrituras o somático, o psíquico e o espiritual, que estão entre si como as três partes da alma: o corpo, a alma e o espírito (De princi., IV, 11). Mas, na prática, contrapõe ao significado corpóreo ou literal o significado espiritual ou alegórico e sacrifica resolutamente o primeiro ao segundo sempre que o considera necessário (1b., IV, 12). A passagem do significado literal ao significado alegórico das Sagradas Escrituras é a passagem da fé ao conhecimento. Orígenes acentua a diferença entre uma e outra e afirma a superioridade do conhecimento que compreende em si a fé (In Joan., XIX, 3). Aprofundando-se em si própria, a fé 164 torna-se conhecimento: este processo verificou-se nos próprios Apóstolos que, primeiramente, atingiram pela fé os elementos do conhecimento, depois progrediram no conhecimento e tornaram-se capazes de conhecer o Pai (In Mat., XII, 18). A própria fé, por uma exigência intrínseca, procura, pois, as suas razões e torna-se conhecimento. Veremos de seguida que a redenção do homem, o seu ,retorno gradual à vida espiritual, de que gozava no mundo inteligível no acto de criação, é entendido por Orígenes como a sua educação para o conhecimento. Ora frente ao mais alto grau do conhecimento, o ensinamento das Escrituras é insuficiente. As Escrituras são apenas elementos mífflmos do conhecimento completo e constituem a sua introdução (In Joan., XIII, 5-6). Acima do Evangelho histórico e como complemento das verdades nele reveladas, existe um evangelho eterno que vale em todas as épocas do mundo e só a poucos é dado conhecer (De princ., IV, 1 ss; In Joan., 1, 7). § 146. ORIGENES: DEUS E O MUNDO A primeira preocupação de Orígenes é a de afirmar contra os heréticos a espiritualidade de Deus. Deus não é um corpo e não existe num corpo: a sua natureza é espiritual e simplicíssima. O seu ser homogéneo, indivisível e absoluto não pode ser considerado nem como o todo nem como uma parte do todo, porque o todo é feito de partes (Contra Cels., 1, 23). Para indicar a unidade de Deus, Orígenes serve-se do termo pitagórico mónada, ao lado do qual emprega o termo neoplatónico de énada, que expressa ainda mais nitidamente a singularidade absoluta de Deus (De princ., 1, 1, 6). Deus é superior à própria substância, pois que não participa dela: a substância participa de Deus, 165 mas Deus não participa de nada. Do Logos pode dizer-se que é o ser dos seres, a substância das substâncias, a ideia das ideias; Deus está para lá de todas estas coisas (1b., VI, 64). Orígenes rejeita decididamente os antropomorfismos do Velho Testamento, interpretandoos alegóricamente. Dizer que Deus tem forma humana e é agitado por paixões como as nossas é a maior das impiedades (1b., IV, 71). A omnipotência de Deus encontra um limite na sua perfeição. Deus pode fazer tudo aquilo que não é contrário à sua natureza, mas não pode cometer a injustiça, porque o poder ser injusto é contrário à sua divindade e à sua potência divina (1b., 111, 70). Deus é
vida, mas num significado diferente da vida no nosso mundo, ele é a vida absoluta, isto é, na sua absoluta imutabilidade (In Joha., 1, 31). Deus é o bem no sentido platónico já que só a ele pertence a bondade absoluta: o Logos é a imagem da bondade de Deus, mas não o bem em si (In Math., XV, 10). A providência divina dirige-se, em primeiro lugar, à educação dos homens. Retomando e ampliando o conceito de Clemente, Orígenes compara a acção de Deus à de um pedagogo ou de um médico que pune ou inflige males e dores para corrigir ou para curar (Contra Cels., VI, 56). Assim se explica a própria severidade divina, da qual os livros do Velho Testamento dão tantos exemplos. "Se Deus fosse apenas bom e não fosse severo, desprezaríamos a sua bondade; se fosse apenas severo sem ser bom, os nossos pecados conduzir-nos-iam ao desespero" (In Jerem., IV, 4). Frente à transcendência divina, afirmada em termos tão rigorosos, o Logos encontra-se numa posição subordinada. Ele é certamente coeterno com o Pai, o qual não seria tal se não gerasse o Filho, mas não é eterno no mesmo sentido. A eternidade do Filho depende da vontade do Pai: Deus é a vida e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai 166 é o Deus, o Filho é Deus (In Joan., 11, 1, 2). O Espírito Santo é criado não directamente por Deus, mas através do Logos (lb., 11, 10). Aquele é compreendido por Orígenes como uma força puramente religiosa que não tem no mundo nenhuma tarefa própria. Retomando a doutrina platónica do Fedro, não sem sofrer a influência dos gnósticos e especialmente de Valentino, Orígenes explica a formação do mundo sensível com a queda das substâncias intelectuais que habitavam o mundo inteligível. As inteligências incorpóreas que constituem o mundo inteligível são criadas e como tal sujeitas a mudança; são, além disso, providas de livre arbítrio. A sua queda explica-se pela preguiça e repugnância para e esforço que a prática do bem exige. Deus estabelecera que o bem dependesse exclusivamente da sua vontade e tinha-o por isso criado livre. Descuidando e opondo-se ao bem, elas provocaram a sua queda dado que a ausência do bem é o mal o na medida em que alguém se afasta do bem cai no mal. Assim as inteligências foram conduzidas ao mal, segundo descuraram mais ou menos o bem, conformemente ao movimento secreto de cada uma delas (De princ., 11, 9, 2; fr. 23 a). Orígenes insiste na liberdade do acto que provocou a sua queda. A doutrina gnóstica negara essa liberdade: Orígenes combate vivamente o gnosticismo (1b., 1, 8, 2-3). o próprio demónio, - diz ele - não é mau por natureza, mas tornou-se pela sua vontade (In Joan. XX, 28). A queda é devida a um acto livre de webelião contra Deus, no qual participaram todos os seres supra-sensíveis com excepção do Filho de Deus. A primeira consequência da rebelião é que as inteligências se tornam almas, destinadas a revestir-se de um corpo, mais ou menos luminoso ou mais ou menos tenebroso, segundo a gravidade da culpa originária, o segundo grau da queda é 167 precisamente o revestimento do corpo. Surge então o mundo visível na variedade e na multiplicidade dos seres que o constituem. E assim algumas inteligências tornam-se as almas dos corpos celestes etéreos, luminosos e subtis. Outras tornam-se anjos, aos quais Orígenes dá os nomes bíblicos de tronos, potestades, dominações etc., destinados a ser os ministros de Deus junto dos homens. Outros ainda "descem até à carne e ao sangue" e
tornam-se homens. Finalmente os últimos tomam-se diabos. O mundo visível não é mais, portanto, do que a queda e a degeneração do mundo inteligível e das puras essências racionais que o habitam. Orígenes admite uma pluralidade sucessiva de mundos; mas, corrigindo o Estoicismo, nega que estes mundos sejam a repetição um do outro. A liberdade de que os homens estão dotados impede tal repetição (Contra Cels., IV, 67-68). Todavia, depois de se sucederem um número indeterminado de mundos, chega ao fim. O mundo visível voltará ao mundo invisível. Os seres racionais terão expiado através da série das vidas sucessivas nos vários mundos o seu pecado inicial e alcançarão a perfeição e a salvação finais. Poderão então ser restituídos à sua condição primitiva e conhecer Deus (In Joan., 1, 16, 20). Neste processo de queda do mundo inteligível no mundo sensível e de retorno do mundo sensível ao mundo inteligível, o Logos tem uma parte essencial. Em primeiro lugar, Orígenes atribui ao Logos a mesma função que lhe atribuíam os Estoicos: o Logos é a ordem racional do mundo, a força que determina a sua unidade e o dirige. Precisamente como tal, ele é distinto de Deus. Apenas o Pai é Deus em si (Autothéos); o Logos é a imagem e o reflexo de Deus. Ele é diferente do Pai "pela essência e pelo substracto" e deixaria de ser Deus se não contemplasse continuamente o Pai Ub., 1, 168 11, 2). Por esta sua natureza subordinada, o Logos recebeu do Pai a tarefa de penetrar a obra da criação e de infundir-lhe ordem e beleza (Ib., VI, 38, 39). Mas, em segundo lugar, o Logos vive nos homens e todos participam dele (1b., 1, 3): ainda que permanecendo idêntico a si mesmo, o Logos adapta-se aos homens e à sua capacidade de atingi-lo (Co.,dra Cels., IV, 15); e reveste formas diversas, segundo aqueles que conseguem conhecê-lo, isto é, segundo a sua disposição e a sua capacidade de progresso Ub., IV, 16). O Logos é, portanto, a força imanente que diviniza o mundo e o homem. Na mesma medida em que se aproxima do mundo e do homem para penetrá-los e reconduzi-los à perfeição originária, assim se afasta do Pai. Precisamente a função do Logos no homem exige e justifica a encarnação. Por ela o Logos apropria-se de um corpo mortal e de uma alma humana. Nem uma nem a outra são algo divino: divino é somente o Logos que permanece imutável na sua essência e não sofre nada do que acontece no corpo e na alma de Cristo (Contra Cels., IV, 15). O elemento divino e o elemento humano não permanecem, contudo, justapostos em Cristo depois da encarnação (a que Orígenes chama economia para indicar o seu carácter providencial); a alma e o corpo de Jesus constituem com o Logos uma unidade absoluta (lb., 11, 9). § 147. ORíGENES: O DESTINO DO HOMEM O destino do homem faz parte integrante do movimento conjunto do mundo a que o homem pertence. O homem era primeiramente uma substância racional, uma inteligência; com a queda tornou-se uma alma. A alma é algo de intermédio entre a inteligência e os corpos: a inteligência, corno 169 pura vida espiritual, é refractária ao mal; a alma, pelo contrário, é susceptível do bem e do mal (Itz Joan., XXX11, 18). Como a queda do homem foi um acto de liberdade, assim será um acto de liberdade a redenção e o retorno a Deus. Com efeito, a liberdade é o dote
fundamental da natureza humana que é capaz de agir em virtude de razão, portanto de escolher. Como Clemente, Orígenes interpreta a acção da mensagem cristã como uma acção educadora que conduz gradualmente o homem à vida espiritual. Esta é a função do Logos encarnando-se em Cristo. "Jesus afasta a nossa inteligência de tudo aquilo que é sensível e leva-a ao culto de Deus que reina sobre todas as coisas" (Contra Cels., 111, 34). Nisto consiste a obra da redenção. Comentando o prólogo do IV Evangelho, Orígenes interpreta a acção iluminadora do Logos, não como uma revelação súbita, mas como a penetração progressiva da luz nos homens, como a chamada incessante do homem para que queira livremente voltar a Deus (In Joan., 1, 25-26). O caminho para este retorno pode ser longuíssimo. Se a existência num mundo não basta, o homem renascerá no mundo seguinte e depois noutros ainda até que tenha expiado a sua culpa e tenha retornado à perfeição primitiva. Precisamente a necessidade da educação progressiva do homem justifica a pluralidade sucessiva dos mundos que Orígenes tomou do Estoicismo. Os mundos são outras tantas escolas nas quais se reeducam os seres que caíram (De princ., 111, 6, 3). A educação do homem como retorno gradual à condição de substância inteligente opera-se através de graus sucessivos de conhecimento. Do mundo sensível o homem eleva-se à natureza inteligível que é a do Logos e do Logos a Deus. O Logos é, com efeito, a sabedoria e a verdade e, só através dele, se pode discernir o ser e para lá do ser o poder 170 e a natureza do Deus (In Jomi., VIII, 19). Mas quando for possível este conhecimento directo de Deus, quando Deus não for visto já através do Filho, na imagem de uma imagem, mas directamente corno o próprio Filho o vê, o ciclo do retorno do mundo a Deus, da apocatastasi, estará completo e Deus será tudo em todos (lb., XX, 7). Tais são os traços fundamentais do sistema de Orígenes no qual pela primeira vez o cristianismo encontrou uma formulação doutrinal orgânica e completa. O Platonismo e o Estoicismo constituíram as duas raízes fundamentais pelas quais se une à filosofia grega. Mas Orígenes adaptou com grande equilíbrio, da mensagem cristã, a doutrina platónica da queda e da redenção dos seres espirituais e a doutrina cosmológica dos Estoicos. Por certo, alguns elementos que a consciência religiosa contemporânea considerava essenciais nesta mensagem foram perdidos na síntese de Orígenes. o conceito da criação é, no fundamental, estranho a Orígenes para quem a criação das substâncias racionais é eterna. Na sua natureza o Logos está subordinado a Deus Pai e o Espírito Santo ao Logos, na sua natureza e na sua função. O sacrifício de Cristo não encontra urna própria e verdadeira justificação e a ressurreição da carne, sobre a qual tanto insistiram outros padres (por exemplo Tertuliano) é explicitamente excluída (De princ., 11, 10, 3; Contra Cels., V, 18). Mas, em compensação, Orígenes elevou, pela primeira vez. à clareza da reflexão filosófica o significado mais profundo e universal do cristianismo. Foi o primeiro que viu no facto histórico da redenção o destino da humanidade inteira que, decaída da vida espiritual, deve retornar a ela. Foi o primeiro que reuniu numa única visão de conjunto a sorte da humanidade e a sorte do mundo, fazendo da antropologia cristã o elemento de uma concepção cosmológica. Foi o pri171 meiro que afirmou a exigência de liberdade humana que se havia perdido não só nas doutrinas duaUsticas dos gnósticos, mas também todas as interpretações que faziam do homem o sujeito da obra redentora de Cristo.
Finalmente temos de recordar que Orígenes foi o primeiro que exprimiu claramente o princípio em que deviam inspirar-se as doutrinas políticas do cristianismo nos séculos seguintes. Utilizando também aqui um conceito estoico, afirma que "existem duas leis fundamentais, a natural, cujo autor é Deus, e a escrita que é formulada nos diversos estados." Nesta base, afirma a independência dos cristãos perante a lei civil: "Quando a lei escrita não está em contradição com a de Deus convém que os cidadãos a observem e a anteponham às leis estrangeiras; mas quando a lei da natureza, isto é, a lei de Deus ordena coisas contrárias à lei escrita, a razão aconselha-te a deixar de bom grado as leis escritas e a vontade dos legisladores e a obedecer unicamente à lei de Deus, a regular a tua vida segundo os seus ensinamentos mesmo se isto custa fadiga, morte e desonra" (Contra Cels., V, 37). O princípio estoico do direito natural era assim utilizado para defender a liberdade dos cristãos frente à lei civil. § 148. SEQUAZES E ADVERSÁRIOS DE ORÍGENES Discípulo de Orígenes foi Dionísio de Alexandria, ao qual Eusébio dá o qualificativo de grande. A partir de 231-32 foi chefe da escola catequética de Alexandria sucedendo a Heraclito; em 247-48 tornou-se bispo da cidade e morreu em 264 ou 265. Os Discursos sobre a natureza, de que Eusébio nos conservou fragmentos, eram dirigidos contra 172 o atomismo de Demócrito e dos Epicuristas. Entre as numerosas Cartas, muitas das quais tratam de questões dogmáticas ou disciplinares, as escritas contra o sabelianismo acentuavam a diferença entre o Logos e Deus Pai, fazendo dele uma criação do Pai. Mas uma obra seguinte, intitulada Refutação e defesa, abandonava a sua interpretação e dava uma outra completamente ortodoxa. Discípulo de Orígenes foi também Gregório o Taumaturgo, que nasceu por volta do ano 213 em Neo-Cesareia, no Ponto, e que foi depois bispo da sua cidade natal e morreu no tempo de Aureliano (270-275). Duas biografias, uma de Gregório Niceno, outra siríaca, que é um arranjo da primeira, narram uma série de histórias miraculosas que explicam o seu cognome. Gregório é autor de um Discurso de acção de graças, no qual se exalta a obra do mestre Orígenes, de um escrito "A Teopompo sobre a capacidade e incapacidade de padecer em Deus", conservado em siríaco e no qual se discute a questão de saber se a impassibilidade de Deus implica a sua despreocupação pelos homens; e de outros escritos menores, exegéticos e dogmáticos. Atribui-se-lhe também o breve tratado Sobre a alma, a Taciano, que examina a natureza da alma, fora de qualquer prova tomada das Escrituras. Eusébio, bispo de Cesareia, nascido em 265, morto em 340 é conhecido principalmente como historiador dos primeiros séculos da Igreja. Discípulo de Pânfilo, do qual por reconhecimento assumiu o nome (Eusébio de Pânfilo) e a quem acompanhou quando o mestre foi encerrado no cárcere. Em conjunto, compuseram uma Apologia de Orígenes, em 5 livros, dos quais resta apenas o primeiro num arranjo de Rufino. Eusébio é autor de uma crónica que tem o título de Histórias Várias e de uma História Eclesiástica que vai até 423 e constitui um riquíssimo arquivo de factos, documentos 173 e estratos de obras de toda a espécie, da primeira época da Igreja. Escreveu, além disso, um panegírico e um elogio do imperador Constantino, do qual foi amigo entusiasta. As obras
dogmáticas Contra Marcelo e Sobre a Teologia Eclesiástica mostram uma acentuada tendência para o arianismo de que defende a tese fundamental, a da não identidade de natureza entre o Pai e o Logos. As obras apologéticas, Preparação Evangélica, em 15 livros, e Demonstração Evangélica, em 20 livros (dos quais só nos chegaram os primeiros 10) pretendem demonstrar a ,superioridade do cristianismo sobre o paganismo o o judaísmo. Um estrato destas duas obras é o escrito Sobre a Te~da, em 5 livros, de que existem fragmentos em grego e uma versão siríaca completa. Permanecem de Eusébio outras obras apologéticas (Introdução Geral Elementar, Contra Gerocles) e partes ou fragmentos da sua vasta obra exegética das Sagradas Escrituras. O escrito filosoficamente mais significativo é a Preparação Evangélica, na qual Eusébio, utilizando a rica biblioteca de Cesareia, acumulou um vastíssimo material de estratos de escritos gregos, que muitas vezes são preciosos também para nós, por se terem perdido as obras de que foram tirados. Esta obra é dominada pela convicção de que filosofia e revelação sã o idênticas e que no cristianismo encontrou plena expressão a verdade que alvorecera já nos filósofos gregos. É a mesma convicção que animara Justino, Clemente e Orígenes e que dominará a obra de S. Agostinho. Aquela identidade parece a Eusébio evidente sobretudo no que diz respeito ao platonismo. Platão é por ele considerado como um profeta (XIII, 13) ou como um "Moisés aticizante" (XI, 10). Platão e Moisés estão de acordo e têm as mesmas ideias; Platão conheceu a trindade divina porque pôs, ao lado de Deus e do Logos, a alma do mundo (XI, 16). Nas doutrinas éticas e pedagógicas, coincidem 174 Platão e Moisés, Platão e S. Paulo, e a própria república platónica encontrou a sua realização na teocracia judaica (XIII, 12). Contudo, Platão permanece amarrado ao politeísmo e admite o dualismo de Deus e da matéria eterna, o que é inconciliável com o cristianismo; ele chegou, pois, ao vestíbulo da verdade, não à própria verdade (XIII, 14). Esta é revelada pelo cristianismo porque ele é a verdadeira e definitiva filosofia. No cristianismo, não só os homens são filósofos mas também as mulheres, os ricos e os pobres, os escravos e os senhores (1, 4). Que a filosofia grega tenha podido alcançar tantos elementos da verdade cristã, explica-se com a sua derivação das fontes hebraicas (X, 1); ou talvez também porque Platão foi orientado para a verdade pela própria natureza das coisas ou por Deus (XI, 8). Adversário de Orígenes foi, em contrapartida, Metód@o, bispo de Filipo, que morreu mártir por volta do ano 311. Contra Orígenes era dirigido o seu escrito Sobre a@ Coisas Criadas de que nos restam fragmentos. É depois autor de três diálogos ao modo de Platão: Banquete ou sobre a Virgindade, Sobre o Livre Arbítrio, que nos foi transmitido grande parte em grego e numa tradução eslava, e Sobre a Ressurreição, do qual existem fragmentos do texto grego e uma versão eslava abreviada. Para demonstrar a eternidade do mundo, Orígenes afirmara que, se não houvesse mundo, Deus não seria o criador e o senhor. Metódio responde que Deus é então por si incompleto e só atinge a sua perfeição através do mundo, o que é contrário ao princípio, posto pelo próprio Orígenes, de que Deus é por si próprio perfeito (De creatis, 2). Contra a doutrina de Orígenes, segundo a qual os homens e os anjos existiam no mundo inteligível como substâncias espirituais do mesmo género e que só com a queda se diferenciaram, Metódio defende a dife175 rença entre as almas humanas e os anjos e nega a pré-existência das almas humanas relativamente ao corpo (De ressurectione, 10, 11). No escrito sobre o livre arbítrio, nega que o mal dependa de uma matéria eterna (era a doutrina gnóstica) e afirma que é produto da vontade livre da criatura racional.
Boa parte da actividade especulativa no século IV foi posta ao serviço da disputa sobre o arianismo. Ario (morto em 336) afirmara que o Logos ou Filho de Deus foi criado do nada exactamente como todas as outras criaturas e que, portanto, não é eterno. Se nas Sagradas Escrituras é chamado Filho de Deus, é no sentido em que o são todos os homens. Portanto, a sua natureza é diferente da do Pai; a sua substância é diversa. De Ario conservou-nos alguns fragmentos o seu grande opositor Atanásio. Nascido por volta do ano 295, Atanásio teve uma parte predominante na condenação que o primeiro Concílio Ecuménico da Igreja, que teve lugar em Niceia no ano de 325, pronunciou sobre o arianismo. Mas a setença do Concílio não foi acatada de repente e a polémica entre os cristãos continuou por muito tempo. Atanásio, que fora nomeado bispo de Alexandria, sofreu perseguições e condenações por obra dos arianos e morreu a 2 de Maio de 373, em Alexandria. A parte mais notável da actividade literária é a dedicada à polémica contra o irianismo: Discursos contra os Arianos, Carta a Serapião, Livro sobre a Trindade e sobre o Espírito Santo. Escreveu também obras histórico-polémicas e ascéticas e duas apologias, Discurso contra os Gregos e Discurso sobre a Encarnação do Verbo, que são duas partes de um único escrito. Atanásio afirma energicamente a identidade de natureza do Filho com o Pai; se o Filho fosse uma criatura, não poderia reunir a Deus as criaturas porque teria por sua vez necessidade desta união. O Filho tem em comum com o 176 Pai toda a plenitude da divindade e participa do seu próprio poder. O Espírito Santo procede conjuntamente do Pai e do Filho. Há, portanto, uma única divindade e um só Deus em três pessoas. As formulações de Atanásio constituíram a doutrina oficialmente aceite pela Igreja no Concílio de Niceia. Esta doutrina teve como defensores "os três luminares de Capadócia": Basílio o Grande, Gregório Nazianceno e Gregório de Nisa. Basílio foi sobretudo homem de acção; Gregório Nazianceno, orador e poeta; Gregório de Nisa, pensador. § 149. BASíLIO O GRANDE Nascido por volta de 331, Basílio estudou em Cesareia, em Constantinopla e em Atenas. Aqui estreitou com Gregório Nazianceno uma amizade que se fundava principalmente na comunidade dos estudos e das doutrinas. Fruto da colaboração dos dois amigos, foi uma antologia das obras de Orígenes, intitulada Filocalia. Nomeado bispo de Cesareia participou nas lutas teológicas do tempo e morreu no dia 1.* de Janeiro de 379. Basílio deixou obras dogmáticas, exegéticas, ascéticas e também homilias e cartas. As obras dogmáticas (Contra Eunómio, Sobre o Espírito Santo) são dedicadas à polémica sobre o arianismo. Entre as obras exegéticas vêm em primeiro lugar as 9 homilias sobre Hexamerón, nas quais Basílio utiliza, a propósito das diferentes fases da criação do mundo, as doutrinas científicas da Antiguidade, especialmente de Aristóteles. As homilias de Basílio foram também famosas na Antiguidade e colocaram o seu autor entre os maiores oradores da Igreja. Só 24 delas são, de certeza, autênticas. 177 Basílio apela explicitamente. na sua luta contra a heresia, para a tradição eclesiástica. A fé precede o intelecto: "Nas discussões em torno de Deus deve ser tomada como guia a fé, a fé que leva mais fortemente ao assentimento do que a demonstração, a fé que não é causada pela necessidade geométrica mas pela acção do Espírito Santo" (Hom. in Ps.,
115, 1). O conteúdo da fé é determinado pela tradição: "Nós não aceitamos nenhuma nova fé que nos seja prescrita por outros, nem pretendemos expor os resultados da nossa reflexão para não dar como regra de religião aquilo que é só sabedoria humana. Nós comunicamos a quem nos pergunta só aquilo que os Santos Padres nos ensinaram" (Ep., 140, 2). Basílio admite, contudo, que se possam acolher, além dos ensinamentos da Escritura, também as tradições eclesiásticas que não se oponham a elas (De Spir. S., 29, 7 1). Nas suas discussões trinitárias, Basílio mantém firme o fundamento: uma só substância ou essência (ousía), três pessoas (ypostaseis). Em Deus, afirma, há uma certa e incompreensível comunidade o juntamente uma diversidade: a distinção das pessoas não elimina a unidade de natureza e a comunidade de natureza não exclui a particularidade dos caracteres distintivos" (Ep., 38, 4). Euriómio de Cizico, no Apologético (composto por volta de 360), contra o qual é dirigido um escrito de Basílio, sustentara que a essência de Deus consiste em ser ingénito e que, por isso, tal essência não pode ser participada pelo Filho, que é gerado pelo Pai. Basílio opõe que a essência divina é ingénita enquanto não depende de outra coisa senão de si própria e, em tal sentido, quer o Pai quer o Filho são ingénitos porque participam da mesma essência. Mas, na essência divina, o Pai é o único que recebe o seu ser de pessoa por si próprio, enquanto o Filho o recebe do Pai. O Filho é, portanto, gerado como 178 pessoa, não como essência e portanto só como pessoa se distingue do Pai. Por sua vez, o Espirito Santo recebe o ser do Filho e tem, portanto, o seu lugar depois dele (Adv. Eun., 111, 1). Contra a afirmação de Eunómio de que conhecemos directamente a essência de Deus (que seria precisamente a não gerabilidade), Basílio opõe que podemos conhecer Deus através das suas obras, mas a sua essência permanece inacessível para nós. "As criaturas, diz (lb., 11, 32), fazem-no conhecer certamente o poder, a sabedoria e a arte do criador, mas não a sua natureza. Mais ainda, nem sequer manifestam necessariamente o poder do criador, pois pode acontecer que o artista não ponha toda a sua capacidade na obra, mas só a exercite nela de maneira restrita. Que se tivesse aplicado todo o seu poder na obra, seria possível por ela medir a potência dele, mas nunca compreender a essência, na sua natureza." Mesmo depois da revelação, o conhecimento de Deus só nos é dado de modo que o infinito pode ser conhecido pelo finito e até na vida futura a essência de Deus nos será incompreensível. A conclusão é uma bela e profunda frase que Basílio coloca como corolário da sua doutrina: "0 conhecimento da essência divina consiste apenas na percepção da sua incompreensibilidade" (Ep., 234, 2). O limite que o homem encontra no conhecimento do transcendente é a mais directa e evidente revelação do mesmo transcendente. § 150. GREGóRIO NAZIANCENO Gregório Nazianceno nasceu por volta do ano 330 em Arianzo, próximo de Nasâncio, e foi educado em Cesareia, em Alexandria e Atenas, onde travou amizade com Basílio. Foi nomeado bispo de Sásima e depois de Constantinopla (em 379), mas 179 renunciou a ambos os ofícios recolhendo-se a uma vida solitária, dedicada apenas ao labor literário. Morreu em Arianzo, onde nascera, em 389 ou 390. Gregório escreveu sermões, cartas e poesias. Dos
45 Sermões, os que vão do número 27 ao 31 são os mais importantes e famosos. Foram designados pelo autor como Sermões Teológicos e grangearam-lhe o apelido de teólogo. Foram proferidos em Constantinopla e tinham como objectivo justificar a doutrina da Trindade contra o ariano Eunómio (de quem se falou já a propósito de Basílio) e o semiariano Macedónio (morto depois de 360), o qual ao mesmo tempo que afirmava a estreita semelhança de essência do Filho e do Pai, fazia do Espírito Santo uma natureza subordinada ao Pai e ao Filho e em tudo semelhante ao@ anjos. As cartas de Gregório, escritas em forma literária apuradísima, por conseguinte destinadas ao público, referem-se a certos sucessos da vida do autor ou .dos seus parentes e por isso só algumas, entre elas a última, tratam de questões teológicas. Em contrapartida, as poesias são de natureza polémica, dirigidas especialmente contra os apolinaristas (Apolinário, bispo de Laodiceia, na Síria, falecido por volta de 390, negava a humanidade de Cristo considerando-o somente Deus; o Logos divino teria tomado em Cristo o lugar da alma intelectiva). Têm escasso valor poético e não são mais que prosa versificada. A especulação de Gregório não tem originalidade nem força, se bem que expressa numa forma oratória eloquente. Devido a esta forma, ela contribuiu, contudo, para a difusão e a vitória das doutrinas que os seus grandes contemporâneos haviam formulado. Segundo Gregório, podemos chegar a conhecer, mediante apenas a razão, a existência de Deus, considerando a ordem e a perfeição do mundo visível, mas não podemos conhecer a substância 180 ou essência de Deus. Sabemos que ela é superior * todas as outras essências, é "um oceano infinito * indeterminado de essências" (Or., 38), mas foge à nossa possibilidade determinar-lhe a natureza. Ao mistério da essência divina acrescenta-se o mistério da trindade. "Esta profissão de fé, diz Gregório (1b., 40, n.' 41), eu te dou como companheiro o guia de toda a vida: uma única divindade e poder que se encontra unida em Três e Três diversas compreende; que não é diferente por essência nem por natureza; que não se aumenta por acrescento nem diminui por subtracções; que é totalmente igual, mais ainda totalmente a mesma, como a beleza e grandeza única, do céu, que é a infinita conjunção de três infinitos; e cada um destes, considerado separadamente, é Deus, o Pai como o Filho, o Filho como o Espírito Santo, e cada um conserva a sua propriedade, ao mesmo tempo que, considerados os três conjuntamente, são ainda Deus, o uno pela unidade da essência, o outro pela unidade do comando". Contra o apolinarismo, Gregório defende a integridade da natureza humana em Cristo e assim tem ocas-ião de expor a sua antropologia. Ao homem pertencem o corpo, a alma e o intelecto. Mas o intelecto não é distinto da alma ; é uma força da própria alma e, portanto, parte integrante da natureza humana (Ib., 14). Cristo que tomou a natureza humana teve de tomar também o intelecto humano; de outro modo, o homem seria um animal privado de razão (1b., 5 1). § 151. GREGóRIO DE NISA: A TEOLOGIA Gregório de Nisa era irmão de Basílio o Grande e bastante mais jovem do que ele. Encaminhado para a carreira de professor de retórica, foi retirado 181 dela por Basílio que o nomeou bispo de Nisa. Como tal Gregório participou na luta contra
os arianos. Em 394 estava em Constantinopla para participar num sínodo que devia resolver uma controvérsia entre bispos árabes; depois o seu nome deixa de aparecer; muito provavelmente, a sua morte ocorreu pouco depois daquela data. A sua obra mais notável é o Discurso Catequético Grande, demonstração e defesa dos dogmas principais da Igreja contra os pagãos, judeus e heréticos. A obra mais extensa é o escrito Contra Eunómio, réplica ao escrito Em Defesa da Apologia, com o qual Eunómio respondem a Basílio. Gregório escreveu mais: duas obras Contra Apolinário: vários tratados ou diálogos (Contra os Gregos, Sobre a Fé, Sobre a Trindade, Sobre a Alma e a Ressurreição, Contra o Fado, Sobre os Meninos que Morrem Prematuramente). Compôs, além disso, numerosos escritos exegéticos, dos quais os mais notáveis são o Apologético sobre Hexameron e o De opificio hominis e outros discursos ascéticos, discursos e cartas. Como Basílio, Gregório, afirma a distinção entre a fé e o conhecimento e a subordinação deste àquela. A fé apoia-se na revelação divina e não tem necessidade da lógica e das suas demonstrações. Ela é o critério de toda a verdade e deve ser tomada como a medida de todo o saber. Por sua parte, a ciência deve fornecer à fé os conhecimentos naturais preliminares que, na Idade Média, se chamarão preambula fidei e, em primeiro lugar, a demonstração da existência de Deus (Or. catech., pref.). Em particular, a dialéctica fornece o método para sistematizar o conteúdo da fé e constitui o instrumento mediante o qual os princípios da fé podem ser fundados e se pode progredir para a gnose ainda que isto se faça com grande cautela e em forma hipotética. (De hom. opif., 16). O próprio Gregório 182 pôs em prática este procedimento na medida mais lata, como só Orígenes fizera antes, e apela continuamente, para lá do testemunho da tradição, para princípios e demonstrações racionais. O seu Discurso Catequético bem como o diálogo Sobre a Alma e a Ressurreição são inteiramente guiados por investigação puramente racional. No diálogo citado, vê na dúvida uma ajuda metódica da pesquisa. Na sistematização da teologia cristã, Gregório preocupa-se, em primeiro lugar, por estabelecer a unicidade de Deus. Divindades diferentes só poderiam distinguir-se entre si por qualquer propriedade ou perfeição que pertencesse a uma e não a outra: mas assim nenhuma delas seria perfeita. O próprio conceito de Deus como substância perfeitíssima implica a unicidade de Deus e exclui o politeísmo. Da perfeição divina deriva também a trindade das pessoas. No homem, a razão é limitada e mutável e não é, portanto, subsistente por si. Mas em Deus ela é imutável e eterna e não tem, pois, o carácter de uma força impessoal, mas subsiste corno pessoa (Or. catech., 1). O mesmo vale para o espírito. Em nós o espírito serve de mediador entre a palavra interna que é o pensamento e a palavra externa na qual se exprime. Em Deus a palavra externa não é corno para o homem um som, uma coisa como as outras, mas faz parte da sua essência e procede, pois, do Pai e do Filho como uma outra pessoa que tem a sua própria subsistência e a sua própria eternidade (1b., 1). O cristianismo, admitindo a unidade e trindade de Deus, conciliou o politeísmo pagão com o monoteísmo judaico: admitiu com o judaísmo a unidade da natureza divina, com o paganismo a plural-idade das pessoas (1b., 3). Na interpretação da trindade, Gregório serve-se do princípio platónico da unidade da essência (ousía), princípio de que se servirá na Idade Média, com o mesmo fim, Anselmo de Aosta. Se o nome de 183
Deus, diz ele no tratado Adversus Graecos, significa a pessoa, necessariamente falando de três pessoas, falamos de três divindades. Mas se o nome de Deus indica a essência, podemos reconhecer que há um único Deus porque uma só é a essência das três pessoas. Ora na realidade o nome de Deus indica a essência divina. É um costume abusivo da linguagem o de indicar com o plural do nome que significa a natureza comum os indivíduos múltiplices que participam dela. Por exemplo, dizemos Podro, Paulo e Barnabé são três homens e não um só homem, como se deveria dizer desde o momento em que a palavra homem significa a essência universal e não a existência parcial ou própria dos indivíduos singulares. Gregório toma neste caso (como foi muitas vezes observado) o significado abstracto da palavra, que não admite o plural, em vez do significado concreto que, ao contrário, o admite. Contudo, o sentido da sua doutrina é claro. A essência, toda a essência, a divina como a humana, e uma única realidade una e simples, que não é multiplicada pelo número de pessoas (ou ipostasi) que participam dela. A essência humana pode ser participada por um número indeterminado de pessoas, a essência divina só por três; mas como todos os homens são tais em virtude de uma única essência humana, assim as três pessoas divinas subsistem na única essência divina e constituem um único Deus. O traço que distingue a essência divina de todas as outras é que ela, pela sua perfeição, implica também a urky'dade de acção das pessoas que participam dela. Enquanto os homens têm actividades diferentes e às vezes contrárias, ainda que participando da mesma essência, as pessoas divinas têm uma única actividade. "Toda a actividade procedente de Deus, que se refere à criatura e é denominada de modo diverso segundo a diversidade do objecto, parte do Pai, procede através do Filho 184 e cumpre-se no Espírito Santo. Não se trata, por isso, de actividades que se diversificam segundo as pessoas que são activas, porque a actividade de cada pessoa singular não está separada da outra e tudo quanto acontece, quer diga respeito à providência sobre os homens quer concerne o governo e a ordenação do mundo, acontece por intermédio das três pessoas sem que, todavia, seja trino". De tal modo, a essência divina encontra, na unidade da acção divina, a sua característica fundamental e própria frente às essências criadas. Tal é a interpretação de Gregório no que se refere à unidade divina. No que se refere à trindade, Gregório expõe uma interpretação que funda a diversidade das pessoas na diversidade das relações de origem, formulando um princípio que devia tornar-se a base da interpretação trinitária nos séculos seguintes. Com efeito, a distinção das pessoas divinas é explicada admitindo que delas uma é a causa, a outra causada e distinguindo dois tipos de causalidade que correspondem à segunda e à terceira pessoa da trindade. Deus Pai é a causa; o Filho é imediatamente causado pelo Pai de maneira que lhe corresponde o carácter de unigénito; o Espírito Santo é causado pelo Pai através da mediação do Filho e não é ingénito como o PaI nem unigénito como o Filho. § 152. GREGÓRIO DE NISA: O MUNDO E O HOMEM O mundo é uma criação de Deus. A questão de saber por que modo uma essência absolutamente simples, incorpórea e imutável, como Deus, tenha podido produzir uma realidade composta, mutável e, sobretudo, corpórea, só pode encontrar resposta se se considera a natureza do corpo. Todo o 185
corpo resulta de partes que, tomadas de per si, são momentos ou potências puramente inteligíveis, como a quantidade, a qualidade, a figura, a cor, a grandeza e assim sucessivamente. Se se prescinde delas, nada resta do corpo. Portanto, o corpo como tal é apenas a ligação de qualidades em si próprias incorpóreas e ele mesmo é incorpóreo no seu fundamento. Pode-se, pois, conceber como possa ter sido criado por uma essência incorpórea (De hom. opif., 23-24). Partindo da exigência teológica de eliminar o abismo entre a natureza de Deus e a da criação, Gregório foi assim levado a formular uma doutrina da pura inteligibilidade do mundo corpóreo, voltando ao contrário o materialismo de Tertuliano que exprimia, contudo, uma tendência muito difundida entre as primeiras seitas cristãs. Enganar-se-ia, porém, quem interpretasse esta inteligibilidade como subjectividade das qualidades corpóreas em sentido idealístico. A inteligibilidade confirma e reforça a pura objectividade das qualidades porque, aproximando-as da natureza de Deus, as eleva ao princípio supremo da objectividade, que é o próprio Deus. No mundo, o homem foi criado por um acto de "amor superabundante" (Or. catech., 5). O mundo não podia permanecer privado de finalidade e, por isso, Deus quis que ele servisse para um ser que pudesse participar do bem que nele havia espalhado. Por um lado, o homem é um microcosmo que compreende em si o ser das coisas inanimadas, a vida das plantas, a sensibilidade dos animais e a racionalidade dos anjos. Pelo outro, é a imagem de Deus; como, em Deus, do Pai ingénito procede o Logos e do Pai e do Logos o Espírito, assim, no homem, da alma ingénita procede a palavra inteligível e de ambas a inteligência. Atributo fundamental do homem é a liberdade. A razão, que o faz distinguir entre o bem e o mal, seria inútil se 186 não pudesse escolher entre o bem e o mal. Sem liberdade não haveria virtude nem mérito nem pecado (1b., 5). Só na liberdade está a origem do mal. O corpo não é um mal nem causa do mal porque é uma criação de Deus. O mal está na nossa interioridade e consiste no desvio do bem devido ao livre arbítrio (1b., 5). O mal não tem nenhuma essência na realidade em que é apenas privação do bem, que é a única realidade positiva. Como a obscuridade é a privação da luz ou a cegueira a privação da vista, assim o mal não é outra coisa senão a falta do bem. "A maldade tem o seu ser no não-ser: e não tem outra origem senão a privação do sem (De an. et resur., p. 223). § 153. GREGóRIO DE NISA: A ApoCATÁSTASIS O relato bíblico sobre o primeiro homem é interpretado por Gregório no sentido platónico, na base da distinçã o entre o homem ideal e o homem empírico. O primeiro homem foi criado, diz Gregório, provido de um estado semelhante ao dos anjos. A sua natureza era a racionalidade e nenhum elemento irracional fazia parte dele; por isso não tinha corpo material nem sexo, era privado de todas as tendências e dos impulsos que derivam do corpo e superior à doença e à morte. Era o homem perfeito, o homem ideal, o homem feito verdadeiramente à imagem e semelhança de Deus. Com o pecado, o homem perdeu esta condição feliz. Como consequência do pecado nasceu o homem empírico, que se encontra Emitado pela sua natureza animal e tem todas as qualidades e impulsos de tal natureza (De hom. opif., 17). Nesta condição, o homem encontra-se em contraste com a sua natureza originária, com a ideia perfeita do homem. 187 O homem deve retornar então à sua condição originária. Para orientá-lo na via do retorno, foi necessária a encarnação do Logos. Contra a encarnação não vale a objecção de que o finito não pode abarcar o infinito e de que, por isso, a natureza humana não pode receber em si a divina, dado que a encarnação do Logos não significa mais do que a infinidade de
Deus se ter encerrado nos Emites da carne como num vaso. A natureza divina uniu-se com a humana mais como a chama se une ao corpo inflamável ou também como a alma supera os limites do nosso corpo e se move livremente com o pensamento através da criação inteira (Or. catech., 10). Com a morte e a ressurreição de Cristo, o Deus-homem, a natureza humana como tal, recuperou a sua condição originária, da qual o pecado a tinha feito cair. Mas com ela não retornaram à condição primitiva todos os indivíduos nos quais, depois da queda, se multiplicou e dispersou. A obra redentora de Cristo deve, portanto, frutificar através dos indivíduos singulares e reconduzi-los todos à condição originária. Segue-se daqui que a punição que cai sobre o mal na outra vida só pode ser purificador. Aqueles que deixaram por si a sujidade do vício com a água do baptismo não terão necessidade de outra purificação, mas aqueles que não participaram desta purificação sacramental serão necessàriamente purgados pelo fogo (1b., 35). Finalmente, a natureza chega por necessidade inevitável à apocatástasis, à reconstrução da condição feliz, divina e livre de toda a dor, como era a originária (1b., 35). Gregório afirma decididamente o carácter universal da apocatástasis: "Até o inventor do mal, isto é, o demónio, unirá a sua própria voz no hino de gratidão ao Salvador (1b., 26). Já um escritor antigo (Germano de Constantinopla em Fozio, Bibli. cod., 233) adiantara a hipótese de uma posterior falsificação dos 188 escritos de Gregório nos pontos em que trata da apocatástasis universal. Mas esta hipótese não tem nenhum fundamento dado que aquela doutrma corresponde ao espírito e ao tom geral da obra de Gregório. O ciclo do mundo ficaria incompleto ou coxo se uma parte dos seres se subtraísse à apocatástasis e não fosse restituída à sua condição ideal originária. Esta condição originária é concebida platónicamente por Gregório como o ser, a substância ou a norma de toda a existência: portanto, a existência permanece tal, mesmo depois que, afastando-se do bem, se incline para o nada, só pela possibilidade, que lhe é própria, de uma restituição à sua substância originária. Precisamente em virtude da exigência desta total reintegração da realidade no seu ser próprio, Gregório defende a ressurreição do corpo num sentido que não tem nada já de material. A alma é dominada por uma tendência natural para o corpo que lhe pertence e por isso imprime ao próprio corpo a sua própria forma (eidos) que permanece na matéria constitutiva do corpo e permitirá à alma reconhecê-la, e voltar a apropriar-se dela no momento da apocatástasis (De hom. opif., 27). Aqui a força organizadora e modeladora da alma (a forma) é utilizada para explicar a crença cristã na ressurreição. O fim último do destino humano é, segundo Gregório, o conhecimento místico de Deus, o êxtase. Alcançou-se quando se passa para lá das aparências sensíveis e da própria razão; e nele o ver consiste em não-ver, dado que a essência divina é inconcebível e inexprimível. Para ele, como para Basílio, o único modo de uma relação directa com a transcendência divina é a impossibilidade de relação. O motivo fundamental e permanente da especulação mística encontra nestas fórmulas a sua expressão. 189 Gregório representa, com Orígenes, a expressão máxima da especulação cristã dos primeiros séculos. O cristianismo alcançou com ele a sua primeira sistematização doutrinal na base de um encontro substancial com a filosofia grega. Contudo, o princípio da interioridade espiritual afirmado pelo cristianismo e o princípio do objectivismo, fundamento de toda a filosofia
grega, não encontram ainda, na obra dos Padres orientais, o seu ponto de encontro e de fusão. Só o encontrarão em S. Agostinho mercê de um conceito renovado da natureza e da finalidade da investigação. § 154. OUTROS PADRES ORIENTAIS DO SÉCULO IV Foi escassa a contribuição que deram à elaboração filosófica do cristianismo os outros e numerosos escritores que, nesta época, participaram nas disputas teológicas da Igreja. Epifânio, bispo de Constância (a antiga Salamina), nascido por volta de 315, falecido em 403, é autor de um escrito intitulado Panario (ou caixinha de medicinas) no qual pretende apresentar uma defesa para aqueles que são mordidos pelas serpentes, isto é, contaminados pelas heresias. Enumera 80 heresias, mas 20 delas são seitas ou doutrinas pré-cristãs. Entre as heresias está incluída a doutrina de Orígenes. Macário, bispo de Magnésia, é autor de uma grande apologia, O Unigénito ou Resposta aos Pagãos, que foi encontrada incompleta em 1867, e combate as objecções que opusera ao cristianismo o neoplatónico Porfírio nos livros que se perderam contra os cristãos. A um outro Macário, dito o Egípcio, foram atribuídos erradamente 50 homilias (às quais se juntaram outras sete encontradas em 1918) que apresentam uma curiosa mescla de Estoi190 cismo e de Misticismo. Segundo Macário, tudo aquilo que existe, incluindo a alma e as suas faculdades, é corpóreo, excepto Deus. Mas a alma corpórea tem em si uma "imagem celeste" de Deus e é esta imagem celeste de Deus que é pouco a pouco libertada e purificada pela acção de Deus sobre a alma com a cooperação da vontade humana. Este processo de purificação é o processo de elevação a Deus, que parte da apatia e, através da iluminação, da visão e da revelação da comunhão com Deus, chega ao grau mais alto, ao êxtase, que é a união com Deus. Carácter escassamente especulativo têm as homilias de João, dito Crisóstomo ou Boca de oiro pela sua eloquência, que foi patriarca de Constantinopla e morreu em 407. Em 428, Nestório, patriarca de Constantinopla, começou nas suas prédicas a defender a doutrina que nega a unidade da pessoa de Cristo. Esta doutrina fora precedentemente sustentada por Diodoro de Tarso (falecido por volta do ano 394) e pelo seu discípulo Teodoro de Mopsuestia (falecido por 428). Consistia em admitir que em Cristo coexistiam não só duas naturezas, mas também duas pessoas, uma das quais habitava na outra como num templo. Nestório negava que Maria fosse mãe de Deus e considerava fábula pagã a ideia de um deus envolto num sudário e crucificado. Contra esta doutrina, combateu Cirilo, bispo de Alexandria, morto em 444. Reafirmou a unidade da pessoa de Cristo, aduzindo que o Logos assumiu a natureza humana na unidade da sua pessoa, conjuntamente divina e humana. A obra de Cirilo, importantíssima para a definição do dogma da encarnação, como a de Anastásio para o dogma da trindade, não tem particular significado filosófico. O mais douto adversário de Grilo foi Teodoreto, que nasceu por volta do ano 386 em Antioquia, discípulo de Crisóstomo e de Teodoro de Mopsuestia e condiscípulo de Nestório. Primeiramente favorável 191 à doutrina de Nestório, que só abandonou nos últimos anos de vida (morreu pelo ano 458), Teodoreto combateu a doutrina contrária de Eutiques, bispo de Constantinopla, que
defendia uma só natureza em Cristo, não no sentido de um só indivíduo, como ensinara Cirilo, mas no sentido de uma natureza mista na qual existissem fundidas a divina e a humana. Contra esta doutrina, Teodoreto escreveu o Mendigo ou Polimorfo porque ela lhe parecia uma aberração retirada de muitas heresias precedentes. A favor da tese de Nestório, escreveu o Pentalogium de que apenas temos fragmentos. Teodoreto escreveu a última e mais completa das apologias cristãs que nos transmitiu a antiguidade grega. Intitula-se Cura das Enfermidades Pagãs ou Conhecimento da Verdade Evangélica por meio da Filosofia Pagã. Ele utiliza as apologias precedentes, especialmente os Stromata de Clemente Alexandrino e a Preparação Evangélica de Eusébio. § 155. OS PADRES LATINOS DO IV SÉCULO É escasso o contributo da patrística latina, para a especulação cristã, anterior a S. Agostinho. Júlio Fírmico Materno é autor de uma obra, De errore profanarum religionum, escrita com o objectivo de converter os imperadores Constâncio e Constante a uma enérgica política contra o paganismo. O escrito foi composto à volta do ano 347 o é urna análise polémica do culto pagão. As conquistas da especulação do Oriente foram tornadas acessíveis à igreja latina por Hilário de Poitiers, morto em 366, cuja obra mais importante é a que leva o título De trinitate, mas originariamente devia chamar-se De fide ou De fide adversus arianos. Nos 12 livros desta obra são recolhidos e expostos 192 minuciosamente todos os argumentos da polémica da Igreja contra o arianismo. Mas, por maior que seja a importância de Hilário como divulgador e defensor das doutrinas ortodoxas, é menosprezível o conteúdo especulativo da sua obra. Uma grande figura de homem de acção é Ambrósio, que nasceu cerca de 340, bispo de Milão de 374 a 397, ano da morte. Ambrósio escreveu numerosas exegeses dos livros bíblicos, obras dogmáticas dirigidas contra os arianos, cartas, sermões e um tratado, De officiis núnistrorum, que tem semelhança com os três livros do De officiis de Ocero. Nele Ambrósio segue de perto a obra de Cícero, mas completa-a em sentido cristão, apontando como último limite da moralidade a felicidade em Deus. Nas suas obras dogmáticas, de que as principais são o De fide ad Gratianum Augustum e o De Spiritu Sancto ad Gratianum Augustum, inspira-se preferentemente nas obras de Anastásio e de Basilio o Grande. Como tradutor da Bíblia para latim, destaca-se o nome de Sofrónio Aurélio Jerónimo, nascido em Estridón (entre a Dalmácia e a Panónia) e morto em Belém, onde havia muitos anos se retirara para a vida erma, em 420. Reviu a versão latina, então em uso, do Novo Testamento e traduziu do hebraico o Velho Testamento, com excepção dos livros de Baruch, Macabeos 1 e II, Eclesiastes e Sabedoria porque duvidava da sua canonicidade. Muito importante é a sua obra De vitis illustribus, composta em 392 em Belém, que é uma história dos escritores eclesiásticos, cuja matéria, para os escritores gregos dos três primeiros séculos, é tomada da obra de Eusébio de Cesareia (§ 148), enquanto que, para os escritores latinos e gregos posteriores, Jerónimo se baseia no conhecimento directo. Temperamento do polemista, Jerónimo redigiu também polemicamente as suas obras dogmáticas; as suas 193 obras mais conseguidas são as Cartas que constituem algumas vezes verdadeiros tratados.
Contudo, a sua importância está toda na sua obra de crudito o de historiador. Agostinho nomeia com louvor nas Confissões (VIII, 2) o retórico africano Mário Vitormo. Convertido ao cristianismo em idade avançada, traduziu para latim o Isagogo de Porfírio, as Categorias e a Interpretação de Aristóteles e escreveu diversos escritos contra os arianos e maniqueus. O escrito De definitionibus, que está entre as obras lógicas de Boécio, deve ser atribuído a ele. Aparece nas suas obras teológicas a doutrina da predestinação. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 143. As obras de Clemente in P. G., 8.1 e 9.1; ed. Dindorf, 4 vols., Oxford, 1869; ed. Stãhlin, 3 vols., Berlim, 1906-1909. Sobre Clemente: DE FAYE, Clément d?Alexandrie. Êtude sur les rapports du christianisme et de Ia philosophie grecque au II Wele, Paris, 1898, 2.1 edição 1906; MEYBOOM, Clemens Alexandrinus, Leiden, 1912; TOLLINGTON, Clemens of AIex. A Study in Christian Liberalism, 1-2, Londres, 1914. § 144. As obras de Origenes in P. G., 11.1, 17.1, ed. berlinense na colecção patrística, 12 vols., 1899-1955. § 145. Sobre Orígenes: E. DE FAYE, Origène. Sa vie, son oeuvre, sa pensée, 3 vols., Paris, 1923-28; A. MIURA-STANGE, CeIsus und Origene, Giessen, 1926; G. Rossi, ;Saggi su" metafisica di Origene, Milão, 1929; H. KocH, Pronoia und Paideusis. Studien über Origene und sein Verhãltniz zum Platonismus, Berlim, 1932; R. CADIOU, La jeunesse d10rigène, Paris, 1936; H. DE LuBACH, Histoire et esprit. Lintelligence de I'Écriture d'après Origène, Paris, 1950; M. HARL, Origène et Ia fonction révélatrice du Verbe Incarné ' in "Patristica, Sorboniensia", Paris, 1958 (com bibl.). § 148. Os escritos de Dionísio de Alexandria in P. G., 10.,, 1233-1344, 1575-1602; os,de Gregório Taumaturgo In P. G., 10.-, 963-1232. As obras de Eusébio in 194 P. G., 19.1-24.1 e na edição berlinense dos Padres da Igreja, 6 vols. 1902-13. Os escritos de Metódio in P. G., 18.,, 9-408; e na edição berlinense dos Padres da Igreja, 1917. As obras de Anastásio in P. G., 25.---28.,. § 149. As obras de Basílio o Grande in P. G., 29.---32.1. Sobre Basílio: CLARRE, St. Basil the Great, Cambridge, 1913. § 150. As obras de Gregório Nazianeeno in P. G., 35.---38.1. Sobre Greg6rio: PINAULT, Le platonísme de St. Gr. de Naz., Paris, 1926. § 151. As obras de Gregório de Nisa, in P. G., 44.1~46.1. Contra Eunonium, ed. Jaeger, 2 vols, Berlim, 1921-24; Cartas, ed. Pasquali, Beillim, 1925; Oratio Catech. Magna, ed. Mèrídier, Paris, 1908; Qp. ascetiche, ed. Jaeger e outros, Leyde, 1954; Opuscoli dogmatici, ed. Muller, Leyde, 1958. § 152. Sobre Gregório: H. CHERNISS, The P,aton~ of Gregory of N-yssa, Berkeley, 1930; M. PELLEGRINO, Il platonismo di S. Grego-rio Nisseno, in "Riv. di filos. neoscol.", XXX, 1938; A. A. WEiswuRm, The Nature of Human Kno-w"ge according to St. Greg. de Nysse, Paris, 1953; W. VOLKER, Gregor von N. aIs Mystiker, Wiesbaden, 1955.
§ 154. As obras de Epifânio in P. G.@ 41.---43.o: de Macário de Magnesia, ed. a cargo de C. Blondel, Paris, 1876; de Macário o Egípcio, in P. G., 34., e as outras 7 hornilias in MARRIOTT, Macarii aneedota, Cambridge, 1918; de João Crisóstomo, in P. G., 47.---64.,; de Diodoro, de Tarso in P. G., 33.1; de Teodoro de Mopsuestia. in P. G., 66.o; de CiriIo in P. G. 77.o; Sobre todos, ver bibliografia especial in BARDENHEWER, GeSchichte der altkirchlichen Literatur, III, Friburgo in Brisg., 1923; e CHRIST-SCHMID-STAMIN, Geschichte der griech. Literatur, 11, 2, Mónaco, 1924. § 155. O escrito de Firmico Materno in P. L., 12.,, 9891-1050; e no Corpus de Viena, 2.o, 1867. Os escritos de Hilário in P. L., 9-10.1 e no Corpus de Viena, 22.1. As obras de Ambrósio ín P. L., 14.---17-e no Corpus de Viena, 32.1 e 64.,. As obras de Jerónimo in P. L., 22.0-30.1. os escritos de Mário Vitorino in P. L., 8.", 999-1310; o De definitionibus in P. L., 64.% 891-910, Sobre todos, ver bibliografia nas obras citadas de BARDENHEWER E CHRIST. 195 IV SANTO AGOSTINHO § 156. A FIGURA HISTóRICA DE SANTO AGOSTINHO Pela primeira vez na personalidade de Agostinho a especulação teológica deixa de ser puramente objectiva, como se conservara mesmo nas mais poderosas personalidades da patrística grega, para se unir ao próprio homem que a institui. O problema teológico é em Santo Agostinho o problema do homem Agostinho: o problema da sua dispersão e da sua inquietude, o problema da sua crise e da sua redenção, da sua razão especulativa e da sua obra de bispo. Aquilo que Agostinho deu aos outros foi aquilo que conquistou para si próprio. A sugestão e a força dos seus ensinamentos que não diminuíram através dos séculos, muito embora tenham mudado os termos do problema, deriva precisamente do facto de que em toda a sua especulação, mesmo nos aspectos que parecem mais afastados de qualquer referência imediata à vida, apenas procurou e alcançou a clareza sobre si mesmo e sobre o seu próprio destino, o significado autêntico da sua vida interior. 197 O centro da especulação de Agostinho coincide verdadeiramente com o centro da sua personalidade. A atitude de confissão não se limita só ao escrito famoso, mas é a atitude constante do pensador e do homem de acção que, em qualquer coisa que diga ou empreenda, não tem outra finalidade senão a de ver claro em si mesmo e de ser aquilo que deve ser. Por isso declara que não quer conhecer mais nada senão a alma e Deus e mantém-se constantemente fiel a este programa: a alma, isto é, o homem -interior, o eu na simplicidade e verdade da sua natureza; Deus, isto é, o ser na sua transcendência e na sua normatividade sem o qual não é possível reconhecer a verdade do eu. Por certo, nesta radical interiorização da investigação filosófica, Agostinho tem predecessores; e tais predecessores são "os Platónicos" que evoca muitas vezes nas suas obras e especialmente Plotino. Mas para os Neoplatónicos. o retomo a si próprio, a atitude da introspecção só pode ser privilégio do sábio; para Santo Agostinho está ao alcance de todo o homem. Agostinho recolheu também o melhor da especulação patrística precedente; e os conceitos teológicos fundamentais, já então adquiridos pela especulação e
aceites pela Igreja, não sofrem na sua obra desenvolvimentos substanciais. Mas enriquecem-se com um calor e com um significado humano que antes não tinham, tornam-se elementos de vida interior para o homem, dado que são tais para ele, para Santo Agostinho. E assim consegue uni-]os à inquietação e às dúvidas, à necessidade de amor e de felicidade que são próprias do homem, fundá-los, numa palavra, na procura. Procura que encontra na razão a sua disciplina e o seu rigor, mas não é exigência de pura razão. Todo o homem procura: toda a parte ou elemento da sua natureza, intranquilidade da sua finitude, dirige-se para o Ser que é o único que pode dar-lhe 198 consistência e estabilidade. Santo Agostinho representa na especulação cristã a exigência da pesquisa com a mesma força com que Platão a havia apresentado na filosofia grega. Mas, diferentemente da platónica; a procura agustiniana Tadica-se na religião. Desde o começo Santo Agostinho abandona a iniciativa a Deus: Da quod jubes et jube quod vis. Só Deus determina e guia a procura humana seja como especulação seja como acção; e assim a especulação é na sua verdade fé na revelação e a acção é na sua liberdade graiça concedida por Deus. A polémica antipelagiana ofereceu a Agostinho ensejo para exprimir na forma mais extrema e enérgica o fundo da sua convicção; mas não constitui uma ruptura na sua personalidade, uma vitória do homem da Igreja sobre o pensador. Nele o pensador vive todo na esfera da religiosidade, a qual só a Deus reconhece necessariamente a iniciativa da procura e encontra, portanto, a sua melhor expressão na frase: só Deus é a nossa possibilidade. § 157. SANTO AGOSTINHO: A VIDA Aurélio Agostinho nasceu em 354 em Tagaste, na África romana. Seu paÂ, Patrício, era pagão; sua mãe, Mónica, cristã, e exerceu sobre o filho uma ' profunda influência. Passou a sua meninice e a adolescência entre Tagaste e Cartago. De temperamento ardente, rebelde a todos os freios, levou neste período uma vida desordenada e dispersa de que se acusou asperamente nas Confissões. Mas cultivava os estudos clássicos, especial-mente latinos, o dedicava-se com paixão à gramática a ponto de considerar (como confessa com horror, Conf., 1, 18) tira solecismo mais grave do que um pecado mortal. Pelos 19 anos, a leitura do Hortênsio de Cícero trouxe-o à filosofia. A obra de Cícero (que se per199 deu) em, como se disse (§ 110), exortação à filosofia que seguia de perto os passos do Protréptico de Aristóteles. Assim, Santo Agostinho, do entusiasmo pelas questões formais e gramaticais, encaminhou o seu entusiasmo para os problemas do pensamento e, pela primeira vez, orientou-se para a investigação filosófica. Aderiu então à (374) seita dos maniqueus (§ 137). Com 19 anos começou a ensinar retórica em Cartago e manteve o seu erwino nesta cidade até aos 29 anos, entre amores de mulheres e o afecto dos amigos, do que se acusou e arrependeu igualmente depois. Com 26 ou 27 anos compÔs o seu primeiro livro Sobre o Belo e o Conveniente (De pulchro et apto) que se perdeu. O seu pensamento ia amadurecendo; leu e compreendeu por si mesmo o livro de Aristóteles Sobre as Categorias e outros escritos, e entretanto formulava as primeiras dúvidas sobre a verdade do maniqueísmo, dúvidas que se confirmaram quando viu que nem o próprio Fausto, o mais famoso maniqueu do seu tempo, sabia resolvê-las. Com 29 anos, em 383, dirigiu-se a Roma com a intenção de continuar ali o ensino de retórica; era movido pela esperança de encontrar uma estudantada menos turbulenta e mais
preparada do que a cartaginesa e talvez também pela ambição de conseguir sucesso e dinheiro. Mas as suas esperanças não se realizaram e ao fim de um ano dirigiu-se a Milão para ensinar oficialmente retórica, cargo que obtivera do perfeito Simaco. O exemplo e a palavra do bispo Ambrósio persuadiram-no da verdade do cristianismo e tornou-se catecúmeno. Em Milão reuniu-se-lhe sua mãe, cuja influência teve importância decisiva na críse espiritual de Agostinho. A leitura dos escritos de Plotino na tradução de Mário Vitorino, um famoso retórico que se convertera ao cristianismo, fornece a Agostinho a orientação definitiva. Não encontrou nos livros dos Neoplatónicos 200 S 1 . AGOSTINHO (Ambrósio Berognone) ensinada a encarnação do Verbo e, por conseguinte, o caminho da humildade cristã, mas encontrou afirmada e demonstrada claramente a incorporeidade e incorruptibilidade de Deus e isto libertou-o definitivamente do materialismo, ao qual permanecera ligado até então ao ponto de acreditar que o universo estava cheio de Deus à maneira de uma esponja gigantesca que ocupasse o mar (Conf., VII, 5). No Outono de 386, Agostinho deixa o ensino e retira-se, com uma pequena companhia de parentes e amigos, para a vila de Verecondo, em Cassiciaco, próximo de Milão. Da meditação nesta vila e das conversações com os amigos nascem as suas primeiras obras: Contra Académicos, Sobre a Ordem, Sobre a Felicidade, Solilóquios. A 25 de Abril de 387 recebia o baptismo das mãos de Ambrósio. Convence-se então de que a sua missão era a de difundir na sua Pátria a sabedoria cristã; pensou, pois, no regresso. Em Ostia, enquanto esperava o embarque, passou com a sua mãe dias de intensa alegria espiritual discorrendo com ela sobre questões religiosas, mas Mónica morreu ali. A partir daquele momento a vida de Santo Agostinho é uma contínua procura da verdade e uma luta contínua contra o erro. Depois de uma nova permanência em Roma, voltou a Tagaste onde em 391 foi ordenado sacerdote; em 395 foi consagrado bispo de Hipona. A sua actividade dirigiu-se então não só a defender e a esclarecer os princípios da fé, mediante uma procura de que a fé é mais o resultado que o pressuposto, mas também a combater os inimigos. da fé e da Igreja: o maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo. O saque de Roma, perpretado em 410 pelos "os de Alarico. voltara a dar actualismo à velha tese de que a segurança e a força do Império Romano estavam ligadas ao paganismo e que o cristianismo representava por isso um elemento de debilidade e de dissolução. 201
Contra esta tese escreveu Santo Agostinho, entre 412 e 426, a sua obra-prima: A Cidade de Deus. Mas, entretanto, um flagelo análogo, a invasão dos Vândalos, abateu-se em 428 sobre a África romana. Havia três meses que as tropas de Genserico assediavam Hipona quando, a 28 de Agosto de 430, Agostinho morreu. 158. SANTO AGOSTINHO: AS OBRAS Os primeiros escritos de Agostinho que chegaram até nós foram os que compôs em Cassiciaco@ Contra Acadêmicos, Sobre a Felicidade, Sobre a Ordem, Solilóquios. De uma exposição completa de quase todas as artes liberais só acabou, em Tagaste, a parte que respeita à Música. Em Roma, enquanto esperava a partida para a África, compôs o escrito
Sobre a Quantidade da Alma, relativamente às relações entre a alma e o corpo. De volta a Tagaste, terminou o escrito Sobre o livre Arbítrio, começado em Roma, compôs o livro Sobre o " Génesis" contra os Maniqueus, o diálogo Sobre o Mestre e o livro Sobre a Verdadeira Religião que é um dos seus escritos filosóficos mais notáveis. A polémica contra os maniqueus ocupou-o largamente. Os seus escritos polémicos contra a seita são numerosos (Sobre a Utilidade de Crer, composto em 391 em Hipona; Sobre as duas Almas; Contra Fortunato; Contra Adimanto; Contra Fausto; Sobre a Natureza do Bem, e outros). Tornado bispo, S. Agostinho desenvolve a sua polémica, por um lado contra os donatistas que propugnavam por uma igreja africana independente e resolutamente hostil ao Estado romano (§ 165), pelo outro contra os pelagianos que negavam ou pelo menos limitavam a acção da graça divina. Contra os donatistas compôs, entre 393 e 420, muitos e 'tos (Contra a carta de Parmeniano; Sobre o scri Baptismo; Contra os Donatistas; Contra a Carta de 202 Petiliano Donalista; Cartas aos Católicos contra os Donatistas; Contra o Gramático Crescónio; Sobre o único Baptismo; Contra Petiliano, etc.). Contra os pelagianos, Agostinho abriu a sua luta em 412 com o escrito Sobre a Culpa e sobre a Remissão dos Pecados e sobre o Baptismo dos Meninos, ao qual se seguiram: Sobre o Espírito e sobre a Letra, a Marcelino; Sobre a Natureza e sobre a Graça; Carta aos bispos Eutropio e Paulo; Sobre a Gesta de Pelágio: A Graça de Cristo e o Pecado Original; e vários outros. Por altura de uma carta de Santo Agostinho em 418 (Ep., 194), os monges de Adrumeto (Susa) começaram a rebelar-se contra os seus abades, sustentando que, sabido que a boa conduta depende exclusivamente do socorro divino, os seus superiores não deviam dar ordens, mas apenas elevar preces a Deus pelo seu melhoramento. Para tranquilizar e iluminar aqueles monges sobre o verdadeiro significado da sua doutrina, Agostinho compôs em 426 ou 427 o escrito sobre a Graça e sobre o Livre Arbítrio e outro Sobre a Correcção e sobre a Graça. Como o movimento pelagiano se difundia na Gália meridional, sob a forma atenuada que se chamou depois semipelagianismo, o qual declarava inútil a graça no início da obra de salvação e na perseverança da justificação conseguida, Agostinho escreveu contra tal doutrina outros dois escritos: Sobre a Predestinação dos Santos e Sobre o Dom da Perseverança. Juntamente com estas e outras obras polémicas menores, compunha o importante escrito Sobre a Trindade, e Sobre a Doutrina Cristã, o exegético Sobre o Génesis à Letra e a sua obra mais vasta: A Cidade de Deus (413-426). Por volta de 400, escreveu os 13 livros das Confissões que são a obra chave da sua personalidade de pensador. Para o final da sua vida, em 427, nas Retratações, lançava um olhar retrospectivo sobre toda a sua obra literária a partir 203 da conversão em 386. Agostinho recorda, por ordem cronológica e, um por um, todos os seus escritos, excluindo as cartas e sermões, e muitas vezes indica a ocasião e o fim da sua composição e ao mesmo tempo faz a revisão crítica das doutrinas neles contidas, corrigindo os seus erros ou as imperfeições dogmáticas. A obra é um guia precioso para compreender o desenvolvimento da actividade literária de Agostinho. § 159. CARACTERISTICAS DA INVESTIGAÇÃO AGOSTINIANA Santo Agostinho foi chamado o Platão cristão. Esta definição é verdadeira não tanto porque se encontrem na sua doutrina pontos e motivos doutrinais do Platão autêntico ou do Neoplatonismo, mas porque renova no espírito do cristianismo a investigação que fora a realidade fundamental da especulação platónica. A fé está para Agostinho no termo da investigação, não no seu início. Por certo a fé é a condição da procura que não teria
direcção nem guia sem ela; mas a procura dirige-se para a sua condição e trata de, esclarecê-la com o aprofundamento incessante dos problemas que suscita. Por isso a procura encontra o fundamento e o guia na fé e a fé encontra a sua consolidação e enriquecimento na procura. Por um lado, na medida em que leva a esclarecer e a aprofundar a própria condição, a procura estende-se e robustece-se porque se aproxima da verdade e se funda nela; por outro lado, a própria fé é alcançada e possuída através da procura na sua realidade mais rica e consolida-se no homem triunfando da dúvida. Nada é tão contrário ao espírito de Agostinho como uma pura gnose, um conhecimento puramente racional do divino, a não ser talvez a afirmação desesperada da irracionalidade da fé, 204 que se encontra em Tertuliano. Para Agostinho, a procura empenha o homem todo não apenas o intelecto. A verdade para que tende é também, segundo a palavra angélica, a via e a vida: procurá-la significa procurar a verdadeira via e a verdadeira vida. Por isso, não é só a mente que tem necessidade dela, mas o homem inteiro e deve dar satisfação e repouso a todas as exigências do homem. Por outro lado, a procura agustiniana impõe a si própria uma disciplina rigorosa: não se entrega facilmente a crer, não fecha os olhos diante dos problemas e das dificuldades da fé, não tenta evitá-los e iludi-los, mas afronta-os e considera-os incessantemente, retornando sobre as próprias soluções para as aprofundar e esclarecer. A racionalidade da procura não é para Santo Agostinho o seu organizar-se como sistema, mas antes a sua disciplina interior, o rigor do procedimento que não pára frente ao limite do mistério, mas faz deste limite e do próprio mistério um ponto de referência e uma base. O entusiasmo religioso, o ímpeto místico para a verdade não agem nele como forças contrárias à procura mas robustecem a própria procura, dão-lhe um valor e um calor vital. Daqui deriva o enorme poder de sugestão que a personalidade de Agostinho exerceu não só sobre o pensamento cristão e medieval, mas também sobre o pensamento moderno e contemporâneo. § 160. SANTO AGOSTINHO: O FIM DA PROCURA: DEUS E A ALMA No início dos Solilóquios (1, 2), que são uma das suas primeiras obras, Agostinho declarava o fim da sua investigação deste modo: "Desejo conhecer Deus e a alma. E nada mais? Nada mais, absolutamente". E tais foram na realidade os termos para os quais se dirigiu constantemente a sua especulação 205 do princípio ao fim. Mas Deus e a alma não requerem para Agostinho duas investigações paralelas ou diversas. Com efeito, Deus está na alma e revela-se na mais recôndita interioridade da própria alma. Procurar a Deus significa procurar a alma e procurar a alma -significa reclinar-se sobre si mesmo, reconhecer-se, na própria natureza espiritual, confessar-se. A atitude de confissão que deu origem à mais famosa das obras agustinianas é, na realidade, desde o princípio, a atitude fundamental de S. Agostinho, aquela que ele mantém e observa constantemente em toda a sua actividade de filósofo e de homem de acção. Esta atitude não consiste em descrever para si e os outros as alternativas da própria vida interna ou externa, mas em pôr a claro todos os problemas que constituem o núcleo da própria personalidade. Mesmo as Confissões não são uma obra autobiográfica: a autobiografia é um dos seus elementos que fornece os pontos de referência dos problemas na vida de Santo Agostinho, mas não é o seu carácter dominante, tanto que, num certo ponto, no livro X todo o acento autobiográfico cessa e Santo Agostinho passa nos outros três livros a tratar de problemas de pura especulação teológica. O esforço de Santo Agostinho nesta obra é dirigido no sentido de fazer luz sobre os problemas que constituem
a sua própria existência. quando, consegue aclarar a natureza da inquietação que dominou a primeira parte da sua vida e que o levou a dissipar-se e a divagar desordenadamente, dáse conta que, na realidade, nunca desejou outra coisa a não ser a verdade, que a verdade é o próprio Deus, que Deus se encontra no interior da sua alma. "Não, saias de ti mesmo, volta * ti próprio, no interior do homem habita a verdade; * se verificas que a tua natureza é mutável, transcende-te para lá de ti mesmo" (De vera rel., 39). Apenas o retorno a si próprio, o encerrar-se na própria interioridade é verdadeiramente o abrir-se à 206 verdade e a Deus. É necessário chegar até ao mais íntimo e escondido núcleo do eu para encontrar mais além dele ("transcende-te para lá de ti mesmo") a verdade de Deus. Na busca desta interioridade que se transcende e se abre a Deus encontra-se uma certeza fundamental que elimina a dúvida. Não foi por acaso que a carreira de escritor de Santo Agostinho se iniciou com uma refutação do cepticismo académico. Não podemos permanecer firmemente na dúvida, como pretendiam os Académicos, e na suspensão do assentimento. Quem duvida da verdade está certo de duvidar, isto é, de viver e de pensar; tem, por conseguinte, na própria dúvida uma certeza que o subtrai à dúvida e o leva à verdade (Contra acad., 111, 11); De vera rel., 39; De trin., X, 10). Este movi. mento de pensamento para o qual a própria dúvida é tomada como fundamento de uma certeza, que não é imóvel porque apenas significa que se pode e se deve procurar, encontrar-se-á nos começos da filosofia moderna em Descartes. Em Agostinho, esta atitude significa que a vida interior da alma não pode encerrar-se na dúvida e que até a dúvida permite à alma transcender-se e moverse para a verdade. A verdade é, pois, ao mesmo tempo interior ao homem e transcendente. O homem só pode procurá-la encerrando-se em si próprio, reconhecendo-se naquilo que é, confessando-se com absoluta sinceridade. Mas não pode reconhecer-se nem confessar-se se não pela verdade e frente à verdade, a qual se afirma, precisa-mente, naquele acto em toda a sua transcendência como guia e luz da pesquisa. A verdade revela-se como transcendente àquele que a procura como deve procurar-se: na interioridade da consciência. Com efeito, a verdade não é a alma, mas a luz que do alto guia e chama a alma à sinceridade do reconhecimento de si e à humildade da confissão. A verdade não é a razão mas é a lei da razão, isto 207 é, o critério de que a razão se serve para julgar as coisas. Se a razão é superior às coisas que julga, a lei, na base da qual ela julga, é superior à razão. O juiz humano julga na base da lei, mas não pode julgar a própria lei. O legislador humano, se é honesto e sábio, julga das leis humanas, mas consulta, ao fazer isto, a lei eterna da razão. Mas esta lei escapa a todo o juízo humano porque é a própria verdade na sua transcendência (De vera rel., 30-31). § 161. SANTO AGOSTINHO: A PROCURA DE DEUS A verdade é Deus: este é o princípio fundamental da teologia agostiniana. O carácter fundamental da verdade está no facto de que ela nos revela aquilo que é, em contraste com o falso que faz aparecer ou crer aquilo que não é. A verdade é a revelação do ser como tal. Ela é o ser que se revela, o ser que ilumina a razão humana com a sua luz e lhe fornece a norma de todo o juízo, a medida de toda a avaliação. Neste revelar-se do ser na
interioridade do homem, neste seu valer frente ao homem como o princípio iluminante da sua procura, tal é a verdade. Mas o Ser que se revela e fala ao homem, o Ser que é a Palavra e Razão iluminante, é Deus no seu Logos ou Verbo (De vera rel., 36). A verdade não é, pois, mais que o Logos ou Verbo de Deus. A primeira e fundamental determinação teológica do Deus cristão nasce do próprio implantar da pesquisa agostiniana. Precisamente, enquanto o homem procura Deus na interioridade da sua consciência, Deus é para ele Ser e Verdade, Transcendência e Revelação, Pai e Logos. Deus revela-se como transcendência ao homem que incessantemente e amorosamente o procura na profundidade do seu eu: isto quer dizer que Ele não é ser senão enquanto é conjuntamente manifestação de si como tal, isto é, Verdade, que não é transcen208 dência senão enquanto é conjuntamente revelação; que não é Pai senão enquanto é conjuntamente Filho, Logos ou Verbo que se acerca do homem para o trazer a si. As duas primeiras pessoas da Trindade manifestam-se ao homem na procura; e também a outra, o Espírito Santo, que é amor. Deus é Amor além de Verdade; amor e verdade vão conjuntamente porque não se pode ser amor senão pela verdade e na verdade. Amar a Deus significa amar o Amor, mas não se pode amar o Amor se não se ama quem ama. Não é amor aquele que não ama ninguém. Por isso o homem não pode amar a Deus, que é o Amor, se não ama o outro homem. O amor fraterno entre os homens "não só deriva de Deus mas é o próprio Deus" (De trin., VIII, 12). Deus revela-se como verdade só a quem procura a verdade; Deus oferece-se como Amor só a quem ama. A procura de Deus não pode ser, portanto, apenas intelectual, é também necessidade de amor. Parte da pergunta fundamental: "Que coisa amo, ó Deus, quando te amo"? (Conf., X, 6). Aqui está o nó da procura que se dirige à alma e da procura que se dirige a Deus, nó que é o centro da personalidade de Agostinho. Não é possível procurar Deus senão submergindose na própria interioridade, senão confessando-se e reconhecendo o verdadeiro ser próprio; mas este reconhecimento é o próprio reconhecimento de Deus como verdade e transcendência. Se o homem não se procura a si próprio não pode reconhecer a Deus. Toda a experiência da vida de Agostinho se exprime nesta fórmula, dado que só para lá de si, naquilo que transcende a parte mais elevada do eu, se entrevê, pela própria impossibilidade de alcançá-la, a realidade do ser transcendente. Por um lado, as determinações de Deus radicam-se na procura dado que Deus se revela como transcendência e verdade apenas na procura; por outro lado, a procura funda-se nas 209 determinações da transcendência divina. Por certo o homem não pode conhecer a transcendência se não a procura, mas não pode procurar se a transcendência não o chama a si e não o sustém revelando-se na sua imprescrutabilidade. Deus precisamente na sua transcendência, é o transcendente da alma, a condição da sua procura, de toda a sua actividade. E é ao mesmo tempo a condição das relações interhumanas. Deus é o Amor e condiciona e torna possível todo o amor. Mas não é possível reconhecê-lo como amor e, portanto, amá-lo se não se ama; e não se pode amar senão o outro homem. Amar o Amor significa, em primeiro lugar, amar, e não se pode amar a não ser o homem. O amor fraterno, a caridade cristã, condiciona. a relação entre Deus e o homem; e ao mesmo tempo é condicionado por ela. Também aqui o Amor divino, o Espírito Santo é, na sua transcendência, o transcendental da procura que leva o homem para o outro homem. O tema de toda a especulação de Santo Agostinho é um só e é o tema da sua vida: a relação entre a alma e Deus, entro a procura humana e o seu termo transcendente e divino. Mas
esta relação manifesta-se em Santo Agostinho religiosamente, não filosoficamente<) seu acento não cai sobre a possibilidade humana na procura do transcendente mas sobre a presença do transcendente no homem como possibilidade da procura. A iniciativa é abandonada a Deus. Mais precisamente, enquanto o homem se entrega à iniciativa da procura e queima no ardor dela as escórias da sua humanidade inferior, deve reconhecer que a iniciativa não é sua, mas é de Deus; que ele consegue relacionar-se com a transcendência divina apenas porque ela se lhe revela, consegue amar a Deus só porque Deus o ama. O esforço filosófico transforma-se em humildade religiosa: a procura torna-se fé. A liberdade da iniciativa filosófica surge como graça. A exigência de referir todo o esforço, 210 todo o valor humano à graça divina não é um puro resultado da polémica contra os pelagianos, um resultado que negaria os motivos agostinianos mais profundos, mas é exigência intrínseca da especulação agostiniana. Tal exigência funda-se na relação com que, na personalidade de Agostinho, se enlaçam a filosofia e a religião, a procura e a fé: relação de tensão, pela qual se a-traem o ao mesmo tempo se opõem uma à outra. § 162. SANTO AGOSTINHO: O HOMEM A possibilidade de procurar a Deus e de amá-lo está radicada na própria natureza do homem. Se fôssemos animais, poderíamos amar apenas a vida carnal e os objectos sensíveis. Se fôssemos árvores não poderíamos amar nada daquilo que tem movimento e sensibilidade. Mas somos homens, criados à imagem do nosso criador que é a verdadeira Eternidade, a eterna Verdade, o eterno e verdadeiro Amor; temos, portanto, a possibilidade de voltar a ele, no qual o nosso ser não terá mais morte, o nosso saber não terá mais erros, o nosso amor não terá mais ofensas (De civ. Dei, XI, 28). Esta possibilidade de retornar a Deus na tríplice forma da sua natureza, está inscrita na tríplice forma da natureza humana, enquanto imagem de Deus. "Eu sou, eu conheço, eu quero. Sou enquanto sei e quero; sei por ser e querer; quero ser e saber. Veja quem pudor como nestas três coisas existe uma vida inseparável, uma única vida, uma única mente, uma única essência e como a distinção é inseparável e, todavia, existe". (Conf. XIII, 11). São os três aspectos do homem que se revelam nas três faculdades da alma humana, a memória, a inteligência e a vontade, as quais conjuntamente, e cada uma por si, constituem a vida, a mente e a substância da alma. "Eu, diz Agostinho (De trin., X, 18), recordo por ter memória, inteligên211
cia e vontade; entendo por compreender, querer e recordar; e quero querer, recordar e compreendem. E recordo toda a minha memória, toda a inteligência e toda a vontade e do mesmo modo compreendo e quero todas estas três coisas; as quais coincidem plenamente e, não obstante a sua distinção, constituem uma unidade, uma só vida, uma só mente e uma só essência. Nesta unidade da alma que se diferencia nas suas faculdades, cada uma das quais compreende as outras, está a imagem da trindade divina, imagem desigual mas imagem. A própria estrutura do homem interior torna, pois, possível a procura de Deus. Que o homem seja feito à imagem de Deus significa, portanto, que o homem pode procurar a Deus e amá-lo e relacionar-se com o seu ser. Deus criou o homem a fim de que ele seja,
dado que o ser, mesmo em grau menor, é sempre um bem e o Ser supremo é o supremo Bem; mas o homem pode afastar-se e decair do ser e, em tal caso, peca. A constituição do homem como imagem de Deus, se lhe dá a possibilidade de se relacionar com Deus, não lhe garante a realização necessária desta possibilidade. Com efeito, o homem é, em primeiro lugar, o homem velho, o homem exterior ou carnal que nasce e cresce, envelhece e morre. Mas, em segundo lugar, pode ser também homem novo ou espiritual, pode renascer espiritualmente e conseguir submeter a sua alma à lei divina. Também este homem novo tem as suas idade que, contudo, não são dadas pelo transcorrer do tempo, mas pelo seu progressivo aproximar do divino (De vera rel., 26). Todo o indivíduo é pela sua natureza um homem velho, mas deve tornar-se um homem novo, deve renascer para a vida espiritual- Este renascimento apresenta-se-lhe como a alternativa em que deve escolher- ou viver segundo a carne e debilitar e romper a própria relação com o ser, isto é, com Deus e cair na mentira e no pecado; ou viver 212 segundo o espírito estreitando a sua relação com Deus e preparar-se para participar na sua própria eternidade (De civ. Dei, XIV, 1, 4). Mas a primeira escolha não é verdadeiramente uma escolha nem uma decisão. A verdadeira escolha é aquela com o que o homem decide aderir ao ser, isto é, relacionar-se com Deus. A causa do pecado, quer dos anjos rebeldes a Deus quer dos homens, é uma só: a renúncia àquela adesão. "A causa da beatitude dos anjos bons é que eles aderem àquilo que verdadeiramente é; enquanto a causa da miséria dos anjos maus é que eles se afastaram do ser e se voltaram para si próprios que não são o ser. O seu pecado foi, pois, o da soberba." (Ib., XII, 6). Precisamente esta soberba da vontade, que nos aparta do ser e nos ata ao que tem menos ser, é o pecado, o qual, por isso, não tem causa eficiente mas apenas causa deficiente: não é uma realização (effectio) mas uma defecção (defectio). É renúncia àquilo que é supremo para adaptar-se àquilo que é -inferior. Querer encontrar as causas de tais defecções é como querer ver as trevas ou ouvir o silêncio: tais coisas só se podem conhecer ignorando-as, enquanto que, conhecendo-as, se ignoram (1b., XII, 7).
§ 163. SANTO AGOSTINHO: O PROBLEMA DA CRIAÇÃO E DO TEMPO Enquanto é ser, Deus é o fundamento de tudo o que é; é, portanto, o criador de tudo. E de facto a mutabilidade do mundo que nos rodeia demonstra que este não é o ser: teve, pois, de ser criado e leve de ser criado por um ser eterno (Conf., XI, 4). Deus criou tudo através da Palavra, mas a palavra de que fala a narração do Génesis não é a palavra sensível, mas o Logos ou Filho de 213 Deus, que é coeterno como ele (1b., XI, 7). O Logos ou Filho tem em si as ideias, isto é, as formas ou as razões imutáveis das coisas que são eternas como eterno é ele próprio: e em conformidade com tais formas ou razões são formadas todas as coisas que nascem e morrem (De div. quaest., 83, q; 46). Estas formas ou ideias não constituem, portanto, como queria Platão, um mundo inteligível, mas a eterna e imutável Razão, através d a qual Deus criou o mundo. Separar o mundo inteligível de Deus significaria admitir que Deus está privado de razão na criação do mundo ou antes dela (Retract., 1, 3). As ideias divinas são comparadas por Agostinho às raízes seminais de que falavam os Estoicos (§ 93). A ordem do mundo, que depende da divisão das coisas em géneros e espécies, é garantida precisamente pelas razões seminais que, implícitas na mente divina,
determinam, no acto da criação, a divisão e o ordenamento das coisas singulares. Alguns Padres da Igreja, por exemplo Orígenes, consideravam que a criação do mundo era eterna não podendo implicar uma mudança na vontade divina. O problema apresenta-se também * Agostinho. "Que coisa fazia Deus antes de criar * céu e a terra"? Poder-se-ia responder ironizando: "Preparava o inferno para quem quer saber demais"; mas seria iludir com uma graça um problema sério. Na realidade, Deus é o autor não só daquilo que existe no tempo, mas do próprio tempo. Antes da criação não havia tempo: não havia portanto um "antes" e não tem sentido perguntar-se que coisa fazia Deus "então". A eternidade está acima de todo o tempo: em Deus nada é passado e nada é futuro porque o seu ser é imutável e a imutabilidade é um presente eterno em que nada passa. Mas o que é o tempo? 214 Certamente, a realidade do tempo não é nada permanente. O passado é tal porque não é mais, o futuro é tal porque não é ainda; e se o presente fosse presente e não se transformasse continuamente em passado, não seria tempo, mas eternidade. Não obstante esta fuga do tempo, nós conseguimos medi-lo e falamos de um tempo breve ou longo, quer, passado quer futuro. Como e onde, efectuamos à sua medição? Agostinho responde: na alma. Certamente não se pode medir o passado que não é mais, ou o futuro que não é ainda; mas nós conservamos a memória do passado e estamos à espera do futuro. O futuro não é ainda, mas existe na alma a espera das coisas futuras; o passado não existe já, mas existe na alma a memória das coisas passadas. O presente está privado de duração e num instante transforma-se, mas dura na alma a atenção às coisas presentes. O tempo encontra na alma a sua realidade: no distender-se (distensio) da vida interior do homem através da atenção, da memória e da espera, na continuidade interior da consciência que conserva dentro de si o passado e tende para o futuro. Partindo à procura da realidade objectiva do tempo, Agostinho consegue, no entanto, aclarar a sua subjectividade. Uma vez mais o voltar da consciência sobre si mesma surge como o método resolutivo de um problema fundamental. § 164. SANTO AGOSTINHO: A POLÉMICA CONTRA O MANIQUEISMO Alcançada a determinação da natureza do pecado, S. Agostinho estava à vontade para afrontar o problema do mal no mundo e combater vitoriosamente as afirmações dos Maniqueu. Aquilo que, segundo S. Agostinho, desmente irrefutavelmente o próprio princípio do maniqueismo é o carácter fundamental 215 de Deus: a incorruptibilidade que é própria de Deus na medida em que é o próprio Ser. A argumentação do seu amigo Nebridio fazia ver o contraste entre este carácter da divindade e as teses dos Maniqueu. Estes admitiam que Deus devia combater eternamente com o principio do mal. Mas se, o principio do mal pode prejudicar Deus, Deus não é incorruptível porque pode receber uma ofensa. E se não pode ser ofendido, falta algum motivo porque Deus tenha de combater (Conf., VII, -2). Assim o reconhecimento da incorruptibilidade de Deus retira todo o fundamento à afirmação maniqueia de um princípio do mal; mas ao mesmo tempo volta a propor em toda a sua urgência e grandiosidade o problema do mal no mundo. Se Deus é o autor de tudo e também do homem, donde deriva o mal? Se do mal é autor o diabo, donde deriva o próprio diabo? Se o mal depende da matéria de que o mundo é formado, porque é que Deus ao ordená-la deixou nela um resíduo de mal? Qualquer que seja a solução a que se recorra, a realidade
do mal contradiz a bondade perfeita de Deus: não resta, pois, mais que negar a realidade do mal, E tal é a solução por que se decide Agostinho. Tudo aquilo que é, enquanto é, é bem. Também as coisas corruptíveis são boas, dado que se tais não fossem não poderiam, corrompendo-se, perder a sua bondade.. Mas à medida que se corrompem, elas não perdem apenas a bondade, mas também a realidade; dado que se perdessem a bondade continuando a ser, chegaríam a um ponto em que seriam privadas de toda a bondade e, contudo, seriam reais, portanto incorruptíveis. Mas incorruptível é Deus e é absurdo supor que as coisas, corrompendo-se, se aproximam de Deus. É necessário, pois, admitir que, à medida que se corrompem, as coisas perdem a sua realidade, que 216 o mal absoluto é o nada absoluto e que o ser e o bem coincidem (Conf., VII, 12 ss). Não pode, pois, haver outro mal no mundo senão o pecado e a pena do pecado. Ora o pecado consiste, como se viu, na deficiência da vontade que renuncia ao ser e se entrega ao que é inferior. Como não é um mal a água, enquanto, pelo contrário, é um mal o precipitarse voluntariamente na água, assim nenhuma coisa criada, por humilde que seja, é um mal, mas é mal entregar-se a ela como se fosse o ser e renunciar por isso ao ser verdadeiro. (De Vera rel., 20). Da tese maniqueia que fazia do mal não apenas unia realidade, mas um princípio substancial do mundo, Santo Agostinho chegou à tese oposta: a negação total da realidade ou substancialidade do mal e a sua redução à defecção da vontade humana frente ao ser. O mal não é, portanto, realidade nem sempre no homem, dado que é defecção, deficiência, renúncia, não-decisão, não-escolha; também no homem é, pois, não-ser e morte. No pecado, Deus que é o ser abandona a alma, precisamente como na morte do corpo a alma abandona o corpo (De civ. Dei, XIII, 2). § 165. SANTO AGOSTINHO: A POLÉMICA CONTRA O DONATISMO A segunda grande polémica de Agostinho é a que dirige contra o donatismo. Trata-se de uma polémica que levou Agostinho a esclarecer vigorosamente pontos fundamentais da sua construção religiosa. O donatismo (assim chamado de Donato de Casas Negras, um dos seus corifeus), quando Agostinho foi consagrado bispo, estendia-se pela África romana havia quase um século. Era um Movimento cismático fundado no princípio da abso217 luta intransigência da igreja frente ao Estado. A Igreja é uma comunidade de perfeitos que não devem ter contactos com as autoridades civis. As autoridades religiosas que toleram tais contactos perdem a capacidade de administrar os sacramentos * os fiéis devem considerá-los traidores e renovar * baptismo e os outros sacramentos recebidos deles. Estas afirmações dos Donatistas tornavam impossível toda a hierarquia eclesiástica porque davam a qualquer fiel o direito de indagar dos títulos do seu
superior hierárquico e negar-lhe, quando o julgasse oportuno, obediência e disciplina. Além disso. ligando o valor dos sacramentos à pureza de vida do ministro, expunham os próprios sacramentos a uma dúvida contínua. Estabeleciam finalmente entre a Igreja e o Estado uma antítese que estirilizava a acção da Igreja numa pura negação. Contra o donatismo, Agostinho afirma a validade dos sacramentos independentemente da pessoa que os administra. É Cristo que opera directamente através do sacerdote e confere eficácia ao sacramento que lhe administra; não podem, portanto, existir dúvidas sobre tal eficácia. Além disso a comunidade dos fiéis não pode restringir-se a uma minoria de pessoas que se isolam do resto da humanidade. "0 sangue de Cristo foi o preço do universo, não de uma minoria. Só a Igreja que levantou as suas tendas por toda a parte onde há vida civil, testemunha, com a sua existência, a validade do Evangelho no mundo. E esta Igreja é a Igreja de torna." Assim Santo Agostinho via na universalidade da Igreja a demonstração de facto do valor da mensagem cristã e ao mesmo tempo defendia essa universalidade contra a tentativa de a negar e de reduzir * comunidade cristã, como queriam os Donatistas, * um conventículo de isolados. 218 § 166. SANTO AGOSTINHO, A POLÉMICA CONTRA O PELAGIANISMO A terceira grande polémica agostiniana é a que dirige contra o pelagianismo. Foi a polémica que teve maior importância na formulação da doutrina agostiniana, levando Agostinho a fixar com extraordinária energia e clareza o seu pensamento sobre o problema do livre arbítrio e da graça. O monge inglês Pelágio vivia em Roma nos primeiros anos do século V. Ali teve, pela primeira vez, informação sobre a doutrina agostiniana da graça expressa na famosa invocação a Deus: "Dá aquilo que mandas e manda aquilo que queres" (Da quod jubes et Jube quod vis). Tendo Pelágio ido depois a Cartago com o seu amigo Celestio, na altura em que à aproximação dos Godos muitas famílias romanas se refugiavam em África, as suas críticas ao agostinismo difundiram-se principalmente por obra de Celestio, na própria grei do bispo Agostinho. O ponto de vista de Pelágio consistia essencialmente em negar que a culpa de Adão tivesse debilitado radicalmente a liberdade originária do homem e, portanto, a sua capacidade de fazer o bem. O pecado de Adão é apenas um mau exemplo que pesa, sim, sobre as nossas capacidades e torna mais difícil operar o bem, mas não o toma impossível e principalmente não priva os homens da possibilidade de reagir e de decidir-se pelo melhor. Para Pelágio, o homem, quer antes do pecado de Adão, quer depois, é naturalmente capaz de operar virtuosamente sem necessidade do socorro extraordinário da graça. Mas esta doutrina levava a considerar inútil a obra redentora de Cristo. Se o pecado de Adão não colocou o homem na impossibilidade de salvar-se só com as suas forças, o homem não tem evidentemente necessidade da ajuda sobrenatural que lhe trouxe a encarnação do Verbo, nem tem necessi219 dade, por conseguinte, de fazer-se participe desta ajuda pela obra mediadora da Igreja e dos sacramentos que ela administra.
Frente a uma doutrina que se apresentava tão destruidora para a dogmática cristã e a obra da Igreja, Agostinho reagiu energicamente, afirmando que com Adão e em Adão pecou toda a humanidade e que, portanto, o género humano é uma só "massa condenada" e nenhum membro dela se pode subtrair à devida punição a não ser pela misericórdia e pela não devida graça de Deus (De civ. Dei, XIII, 14). E para justificar a transmissão do pecado, Agostinho foi levado a defender, acerca da origem da alma, não o criacionismo (dado que não se pode admitir que Deus crie uma alma condenada), mas o traducianismo pelo qual a alma é transmitida de pai a filho através da geração do corpo. O vigor com que Agostinho defendeu estas teses levou-o a não hesitar diante de nenhuma das consequências. Inclinou-se para um pessimismo radical sobre a natureza e a possibilidade do homem, considerado incapaz de dar o mais pequeno passo no caminho da elevação espiritual e da salvação; e foi levado a insistir no carácter imperscrutável da escolha divina que predestina alguns homens e condena os outros. Mas por mais que estas conclusões pareçam paradoxais (e a própria Igreja católica teve de mitigar-lhes o rigor), não há dúvida de que o princípio sobre o qual S. Agostinho as funda tem na sua doutrina um alto valor, de todo independente da polémica antipelagiana. Este princípio é a identidade da liberdade humana com a graça divina. A vontade, segundo Agostinho, só é livre quando não está escravizada pelo vício e o pecado; e é esta liberdade que só pode ser restituída ao homem pela graça divina (lb., XIV, LQ. O primeiro livre arbítrio, aquele que foi dado a Adão, consistia no poder não pecar. Perdida esta liberdade pelo pecado original, a liber220 dade final, aquela que Deus dará como prémio, consistirá no não poder pecar. Esta última liberdade -será dada ao homem como um dom divino, dado que não pertence à natureza humana, e tornará esta última partícipe da impecabilidade própria de Deus. Mas pois que a primeira liberdade foi dada ao homem a fim de que ele procure a última e completa liberdade, é evidente que só esta última exprime aquilo que o homem verdadeiramente deve ser e pode ser. O não poder pecar, a libertação total do mal é uma possibilidade do homem fundada numa dádiva divina: "0 próprio Deus é a nossa possibilidade" diz Agostinho (Sol., 11, 1; De gratia Chr., 25). Estas palavras de Santo Agostinho exprimem a entidade essencial da liberdade e da graça. Aquilo que no homem é esforço de libertação, vontade de procurar e amar a Deus é, na sua última possibilidade, a acção gratificante de Deus. Agostinho não pode admitir, como faziam os pelagianos ou os semipelagianos, uma cooperação do homem com Deus, dado que o homem não está no mesmo plano de Deus. Deus é o Ser que lhe dá existência, a Verdade que dá lei à sua razão, o Amor que o chama a amar. Sem Deus o homem só pode afastar-se do ser, da verdade e do amor, isto é, só pode pecar e condenar-se. Por isso ele não possui méritos próprios que faça valer perante Deus. Os méritos do homem não são mais que dons divinos; e o homem deve atribuí-los a Deus, não a si (De gratia et libero arbítrio, 6). A iniciativa só pode pertencer a Deus porque Deus como Ser, Verdade e Amor é a única força do homem. A graça divina revela-se no homem como liberdade, como procura da verdade e do bem, afastamento do erro e do vício, aspiração à impecabilidade final. Verdadeiramente a vontade humana de libertação é acção de graça. S. Agostinho concebeu a relação entre Deus 221 e o homem no modo mais intrínseco; e assim reconhece à iniciativa divina todos os caracteres positivos do homem. § 167. SANTO AGOSTINHO: A CIDADE DE DEUS
A vida do homem singular é dominada pela alternativa fundamental: viver segundo a carne ou viver segundo o espírito. A mesma alternativa domina a história da humanidade. Esta é constituída pela luta de duas cidades ou reinos: o reino da carne e o reino do espírito, a cidade terrena ou a cidade do diabo, que é a sociedade dos impios, e a cidade celeste ou cidade de Deus que é a comunidade dos justos. Estas duas cidades nunca dividem nitidamente o seu campo de acção na história. Nenhum período da história, nenhuma instituição é dominada exclusivamente por uma ou por outra das duas cidades. Elas nunca se identificam com os elementos particulares de que a história dos homens é construída, dado que dependem apenas daquilo que cada homem singular decide ser. "O amor de si levado até ao desprezo de Deus gera a cidade terrena; o amor de Deus levado até ao desprezo de si gera a cidade celeste. Aquela aspira à glória dos homens, esta coloca acima de tudo a glória de Deus, testemunhado pela consciência... Os cidadãos da cidade terrena são dominados por uma estulta cupidez de predomínio que os induz a subjugar os outros; os cidadãos da cidade celeste oferecem os seus serviços uns aos outros com espírito de caridade e respeitam docilmente os deveres da disciplina social" (De civ. Dei, XIV, 28). Nenhuma marca exterior distingue as duas cidades que estão misturadas desde o começo da história humana e o estarão até ao fim dos tempos. Só interrogando-se a si 222 próprio, cada um poderá averiguar a qual das duas pertence. Toda a história dos homens no tempo é o desenvolvimento destas duas cidades: ela dividese em três períodos fundamentais. No primeiro os homens vivem sem leis e não há ainda luta contra os bens do mundo; no segundo os homens vivem sob a lei e por isso combatem contra o mundo, mas são vencidos. O terceiro período é o tempo da graça em que os homens combatem e vencem. Agostinho distingue estes períodos na história do povo de Israel. Atenas e Roma são julgadas por Santo Agostinho principalmente através do politeísmo da sua religião. Roma é a Babilónia do Ocidente. Na sua origem está um fratricídio, o de Rómulo, que reproduz o fratricídio de Caim do qual nasceu a cidade terrena. A própria virtude dos cidadãos de Roma são virtudes aparentes, na realidade são vícios porque a virtude sem Cristo não é possível (1b., XIX, 25). O livro VIII do De Civitate Dei é dedicado ao exame da filosofia pagã. Agostinho detém-se principalmente em Platão a quem chama "o mais merecidamente famoso dos discípulos de Sócrates". Platão reconheceu a espiritualidade e a unidade de Deus, mas nem sequer o glorificou e adorou como tal, antes como os outros filósofos pagãos admitiu o culto politeísta (lb., VIII, 11). As coincidências da doutrina platónica com a cristã são explicadas por Agostinho com as viagens de Platão ao Oriente durante as quais pôde conhecer o conteúdo dos livros sagrados (1h., VIII, 12). Quanto aos Neoplatónicos viu-se como o próprio Agostinho foi orientado para o cristianismo pelos escritos de Plotino: eles ensinaram a doutrina do Verbo mas não que o Verbo encarnara e se sacrificara pelos homens (Conf., VII, 9). Est" filósofos entreviram, sem dúvida, ainda que de maneira obscura, o fim do 223 homem, a sua pátria celeste, mas não puderam ensinar-lhe o caminho que é o assinalado pelo apóstolo João: a encarnação do Verbo (De civ. Dei, X, 29). NOTA BIBLIOGRÁFICA § 157. A principal fonte para a vida de Santo Agostinho são as Confissões em 13 livros dos
quais só têm carácter autobiográfico os primeiros 10. Sobre a conversão de S. Agostinho ver especialmente: TruMME, Augustins geistige Entwickelung in den ersten Jahren nach seiner "Bekehrung", Berlim, 1908; ALFARIE, L'évolution intellectuelle de Saint-Augustin, Paris, 1918. Bibliografia completa sobre o tema no artigo Augustin de PoRTALiÉ no "Dictionnalre de Théologie catholique". Ver também: BUONAIUTI, II Cristianesimo nell'Africa romana, Bari, 1928, p. 341 ss; PINCHERLE, SantIAgostino vescovo e teologo, Bari, 1930. § 158. As obras de Santo Agostinho em MIGNE, P. L., 32.1-47.1; no Corpus seript. ecel. lat. da Academia de Viena; e no Corpus Christianorum, Série latina, Turnhout-Paris. Além disso: Confissões, ed. Skutella, Leipzig, 1934; De civitate Dei, ed. Dombart-Kalb, Leipzig, 1928-29; Retractiones, ed. Ynoll, no Corpus de Viena. O melhor estudo de conjunto sobre Santo Agostinho é GILSON, Introduction à I'étude de Saint-Augustin, Paris, 1943. Além disso: DE PLINVAL, Pour connaitre Ia pensée religieuse de Saint-Augustin, Paris, 1954; MARRou, Saint-Augustin et Ilaugustinisme, Paris, 1955. § 159. Sobre as relações entre a razão e a fé em Santo Agostinho: GRABMANN, Die Geschichte der scholastichen Methode, 1, 1909, p. 125-143. § 161. Sobre o conceito de verdade: BoyEn, Llidée de vérité dans Ia philosophie de SaintAugustin, Paris, 1921; GUZZ0, Dai "Contra academicos" ai "De vera religione", Florença, 1925. § 162. Sobre as doutrinas morais: ROLAND-GosSELIN, Lcs morale de St.-Augustin, Paris, 1925. 224 § 163. Sobre a doutrina das razões seminais: WIE=, Geschichte der Lehre von den Koimekrãften, 1914, p. 108-224. § 164. Sobre o maniqueismo: CUMONT, Recherches sur le manichéisme, Bruxelas, 1908. § 165. Sobre o donatismo: BATTIFOL, Le catholicisme de Saint-Augustin, Paris, 1920; BONAIUTI, Op. cit., p. 292 ss. § 166. Sobre a luta antipelagiana: DuCHESNE, Histoire ancienne de IÊglise, Paris, 1910; BONAlUTI, La genesi della dottrina agostiniana intorno al pecato originale, Roma, 1916; Guzzo, Agostinho contra Pelagio, 2.1 ed., Turim, 1934; BU0NAlUTI, Il Cristianismo ne111 Africa romana, p. 361 ss. § Sobre a cidade de Deus: SCHOLZ, Glaube und Unglaube in der Weltgeschichte, 1911; TROELTSCH, Augustin, die chrL,@tliche Antícke und das Mittelalter, Mónaco, 1915. 225 v A úLTIMA PATRÍSTICA
§ 168. DECADÊNCIA DA PATRÍSTICA A partir dos meados do século V a patrística perde toda a vitalidade especulativa. No Oriente, a sua actividade sobrevive nas disputas teológicas que, contudo, passam cada vez mais para o serviço da política eclesiástica e perdem portanto todo o valor filosófico. No Ocidente, a civilização romana rompeu-se sob os golpes dos bárbaros e não se formou ainda a nova civilização europeia. O letargo do pensamento filosófico é, na realidade, o letargo da civilização europeia. A cultura vive a expensas do passado. O poder do criação diminuiu; permanece a actividade erudita que se reduz à compilação dos estratos ou dos comentários e parte de uma renúncia prévia a qualquer investigação original. No Ocidente permanece, todavia, um núcleo de interesse laico pelas sete artes liberais, o trivio (gramática, retórica, dialéctica) e o quadrivio (aritmética, geometria, astronomia, música). O conteúdo deste interesse manifesta-se em poucas obras que 227 compendiam na forma mais genérica a sabedoria da Antiguidade: a História Natural de Plínio o Velho, o De officiis de Cícero, a Farsália de Lucano e a Consolação da filosofia de Boécio. Devido a estas obras salva-se a tradição humanística que é característica e que conduzirá ao florescimento do século XIII. § 169. ESCRITORES GREGOS Mais próximo do Neoplatonismo do que do cristianismo está, mesmo depois da conversão, Sinésio de Cirena, nascido entre 370 e 375 e falecido por volta de 413. Fora discípulo da neoplatónica Hipázia (§ 125) com a qual manteve relações amigáveis mesmo depois. Em 409 foi nomeado bispo de Ptolomaida com a condição de renunciar à mulher e às suas convicções filosóficas. Algumas obras suas não mostram sinais do cristianismo. Tais são: os discursos sobre o poder real; o escrito sobre o dom do astrolábio, as narrações egípcias ou sobre a providência; o elogio da calvície, sátira aos Sofistas que falam sem tom nem som; a apologia de Dion Crisóstomo; um escrito sobre os santos. Têm carácter mais estritamente cristão numerosas cartas, duas homilias, duas orações e alguns hinos. Sinésio considera Deus neoplatonicamente como a unidade da unidade e nega a ressurreição da carne e o fim do mundo. Bastante próximo do neoplatonismo está também Nemésio que foi bispo de Emessa na Fenícia e compôs, no final do século IV ou princípio do século V, um escrito Sobre a Natureza do Homem, que se difundiu na Idade Média através da versão latina feita no século XI provavelmente por Alfano (1058-1085), arcebispo de Salerno. O homem é, segundo Nemésio, o traço de união entre o mundo sensível e o mundo supra-sensível: pelo espírito par228 tence ao mundo supra-sensível, isto é, ao mundo dos seres espirituais ou anjos; pelo corpo pertence ao mundo sensível. Por isso o primeiro homem não foi criado imortal nem mortal; podia tornar-se uma ou outra coisa e cabia a ele escolher uma ou outra alternativa. Transgredindo o mandado divino, torna-se mortal; mas pode de novo, retornando a Deus, participar da imortalidade (De nat. hum., 1). Nemésio aceita a definição aristotélica da alma como "enteléquia de um corpo físico que tem a vida em potência". Como tal a alma é
uma substância imaterial e incorpórea que subsiste por si e não é, portanto, gerada no corpo ou com o corpo. A sua união com o corpo não é uma mistura de substâncias mas uma relação pela qual a alma está toda presente em todas as partes do corpo e o vivifica do mesmo modo que o sol ilumina com a sua presença o ar (1b., 3). A alma está dotada de livre arbítrio porque a sua natureza é racional. Quem pensa pode também reflectir e quem reflecte deve também poder escolher livremente (1b., 41). Foge à liberdade humana aquilo que foge à reflexão: a saúde, as doenças, a -morte e assim sucessivamente (1b., 40). Quando as escolas retóricas do mundo grego se aproximavam já da ruína, tiveram um breve florescimento as escolas da cidade síria de Gaza. Entre os mestres desta escola dois têm um certo relevo e figuram como apologetas do cristianismo. Um é Procópio, cuja vida decorre entre 465 e 528, que foi autor dos comentários do Velho Testamento; o outro é Encias que viveu no mesmo tempo e que deve a sua celebridade na Idade Média ao diálogo Teofrasto ou sobre a imortalidade da alma e sobre a ressurreição do corpo, composto antes de 534. O escrito é dirigido contra a doutrina da pré-existência da alma e da sua transmigração. As almas não existem antes da sua união com o corpo, mas 229 são criadas por Deus no momento desta união. Deus criou todas as inteligências incorpóreas de uma vez, mas cria diariamente as almas dos homens. Na mesma linha de pensamento navega o irmão de Eneias, Zacarias, que foi bispo de Mitilene, dito o escolástico (isto é, o retórico) e morto antes de 533. Zacarias é autor de um diálogo intitulado Ammonio, destinado a combater a doutrina da eternidade do mundo. É notável o facto de que, para negar a eternidade, Zacarias negue a necessidade do mundo, procedimento que seguem todas as críticas do género que virão depois. O mundo foi criado pela vontade de Deus, por isso não é o efeito necessário da natureza divina e não é coeterno com Deus. À objecção de que se Deus não tivesse criado o mundo ab aeterno, não seria o eterno criador e feitor do bem, Zacarias responde que Deus tem em si, desde a eternidade, a ideia do mundo e de todas as coisas que o compõem e também a potência e a vontade de criá-lo. Um construtor é sempre construtor, mesmo no momento em que não construa nada e um retórico é sempre tal mesmo se nem sempre pronuncia discursos. Contra a eternidade do mundo escreveu também uma obra o gramático alexandrino João, dito Filipono pela sua incansável actividade. É também autor de uma obra teológica intitulada Árbitro ou sobre a Unidade, de uma outra, Sobre a Ressurreição do Corpo e de um comentário à narração bíblica da criação, intitulado Sobre a Construção do Mundo. Este último e o escrito Sobre a Eternidade conservaram-se; das outras duas obras temos fragmentos conservados pelo seu adversário Leôncio de Bizâncio e João Damasceno. João Filipono entendia por natureza a essência comum dos indivíduos e por hipostasis ou pessoa a mesma natureza circunscrita à existência singular de determinadas qualidades. Flor isso entendia a unidade de substância 230 em Deus como a natureza comum das três hipóstasis e fazia assim, das três pessoas divinas, três existências particulares, isto é, três divindades. Ao lado desde trideísmo (que, por outro lado, teve neste período, como no precedente, numerosos defensores) João admitia o monofisismo no que respeita à encarnação. Não podem subsistir duas naturezas numa única hipóstasis: na pessoa de Cristo não pode, portanto, subsistir senão a natureza divina. O pressuposto destas interpretações dogmáticas é a lógica aristotélica, à qual João dedicara um comentário: de facto o significado de natureza e de hipóstasis é tirado de
Aristóteles. É curioso notar que quando a lógica aristotélica for de novo empregada, por acção de Roscelino de Compiègne, na interpretação do dogma da trindade, chegar-se-á à mesma conclusão trideIstica. Ao tempo de Justiniano pertence Leôncio de Bizâncio que viveu entre 475 e 543 aproximadamente, autor de três livros contra os Nestorianos o os Eutriquianos e de dois escritos contra Severo, o patriarca monofisita de Antioquia. O fundamento das interpretações dogmáticas de Leôncio é a lógica aristotélica filtrada através dos escritos dos Neoplatónicos. Para salvar a interpretação ortodoxa do dogma da encarnação, segundo o qual na única pessoa de Cristo subsistem as duas naturezas, humana e divina, e para manter firme conjuntamente o princípio aristotélico de que cada natureza não pode subsistir senão numa única hipóstasis, Leôncio introduz o conceito de etúpostasi, isto é, de uma natureza que subsista, não numa hipóstasis própria, mas na hipóstasis de uma outra natureza. Tal é o caso da natureza humana de Cristo, a qual não tem uma hipóstasis sua mas subsiste na hipóstasis própria da sua natureza divina. Mas nem nesta doutrina, que se encontra já em Cirilo, o máximo antagonista dos monofisitas, nem nas 231 outras, Leôncio atinge uma verdadeira originalidade de pensamento. § 170. PSEUDO-DIONíSIO O AEROPAGITA Pelos princípios do século VI começam a ser conhecidos e citados alguns escritos cujo autor se qualifica como Dionísio, aquele que, segundo os Actos dos Apóstolos (XVII, 34), foi convertido ao cristianismo pela prédica do apóstolo Paulo diante do Aerópago. Motivos internos e externos demonstram que tais escritos não podem remontar para lá do fim do século V e que, portanto, a sua atribuição a Dionísio é impossível. Na verdade, a fonte principal destes escritos é o neoplatónico Proclo (418-485), de quem o autor nalguns pontos inclui estratos textuais. Como Proelo, Dionísio distingue uma teologia afirmativa, a qual, partindo de Deus, se dirige para o finito com a determinação dos atributos ou nomes de Deus e uma teologia negativa, a qual procede do finito para Deus e o considera acima de todos os predicados ou nomes com que podemos designá-lo. A este segundo tipo de teologia pertence o breve tratado Teologia Mística, segundo o qual o mais alto conhecimento é o não saber místico: só prescindindo de toda a determinação de Deus, se compreende Deus no seu ser em si. No tratado Sobre os Nomes Divinos, Dionísio insiste na impossibilidade de designar adequadamente a natureza de Deus. Ainda que seja a unidade absoluta e o bem supremo de que todas as coisas participam e sem o qual não poderiam ser, Deus é superior à própria unidade tal como é concebida por nós: é o Uno super-essencial, que é causa e princípio de todo o número e de toda a ordem. Elo não pode ser designado verdadeiramente nem como unidade, nem como trindade, nem como número, 232 nem como qualquer outro termo de que nos servimos para as coisas finitas. O próprio -nome de Bem, que é o mais alto de todos, é inadequado para a altura da perfeição divina. A emanação das coisas por Deus, que tem em si as ideias ou modelos de toda a realidade, é compreendida por Dionísio como criação. O mundo não é um estádio do desenvolvimento de Deus, mas um produto da vontade divina. Contudo os seres do mundo sã o todos
manifestações ou símbolos de Deus e por isso a sua consideração permite ao homem ascender a Deus e refazer assim no inverso o caminho da criação. Nos dois tratados Sobre a Jerarquia Celeste e Sobre a Jerarquia Eclesiástica, Dionísio coloca Deus no centro das esferas em que se ordenam todas as coisas criadas. Mais próximas dele estão as criaturas mais perfeitas, enquanto nas esferas periféricas estão situadas as criaturas menos perfeitas. A hierarquia celeste é constituída pelos anjos que se distribuem em 9 ordens reunidas em disposições ternárias. A primeira é a dos Tronos, dos Querubins e dos Serafins; a segunda é a das Potestades, das Dominações e das Virtudes; a terceira é a dos Anjos, dos Arcanjos e dos Principados (De celesti hier., 6 ss). Ã hierarquia celeste corresponde a eclesiástica, disposta também em três ordens. A primeira é constituída pelos Mistérios: Baptismo, Eucaristia, Ordens sacras. A segunda é constituída pelos órgãos que administram os mistérios: o Bispo, o Padre, o Diácono. A terceira é constituída por aqueles que através destes órgãos são conduzidos à graça divina: Catecúmenos, Energúmenos e Penitentes. O termo da vida hierárquica é a deificação, a transfiguração do homem em Deus. Só se consegue através da ascensão mística e o seu cume é o não saber místico, a muda contemplação do Uno. Os livros de Dionísio seguem a direcção neoplatónica, adaptando-a o melhor possível às exigên233 cias cristãs, mas servindo-se contudo da terminologia dos mistérios, em que se comprazia o neoplatonismo. Traduzidos por João Erígena, tiveram na Idade Média uma difusão larguíssima e constituíram o fundamento da mística e da angeologia medieval. § 171. MÁXIMO CONFESSOR. JOÃO DAMASCENO Nos escritos do falso Dionísio se inspira Máximo, dito o Confessor, nascido em Constantinopla em 580, falecido em 622. Foi o maior adversário do chamado monoteletismo segundo o qual todos os actos de Cristo dependeriam da sua vontade divina, da qual a natureza humana seria o instrumento passivo. Esta doutrina foi depois condenada no VI Concílio Ecuménico de 680; mas a luta contra ela custou a Máximo perseguições e suplícios. Contudo, escreveu numerosas obras quase todas na forma de comentários ou de recolhas de sentenças. Entre essas obras estão os comentários ao Pseudo-Dionísio e a Gregório Nazianceno (Ambígua in S. Gregorium theologum), opúsculos teológicos e várias recolhas ou florilégios de sentenças. Segundo S. Máximo, o homem pode conhecer Deus não em si próprio mas apenas através das coisas criadas de que Deus é a causa. Por isso só pode chegar a determinar os atributos de Deus que as próprias coisas revelam: a eternidade, a infinidade, a bondade, a sabedoria e assim sucessivamente. No seu ser em si, Deus é inconcebível e inexprimível. As próprias perfeições que nós lhes atribuímos, fundadas na consideração das coisas criadas, estão abaixo da sua natureza e podem, por isso, ser quer negadas quer afirmadas dele. A influência da teologia negativa do Pseudo-Dionísio é aqui evidente. E é também evidente na doutrina mística de S. Máximo. Se voltarmos as costas às paixões 234 que contrastam com a razão e nos elevarmos ao perfeito amor de Deus, podemos conseguir um conhecimento de Deus que transcende a razão e o procedimento discursivo e no qual Deus se revela imediatamente. Mas a este conhecimento de Deus não se pode chegar com a capacidade da natureza humana, mas mercê da graça divina, a qual, todavia, não age por si
só, mas eleva e aperfeiçoa as capacidades que são próprias do homem (Quaest. ad Thalassium, q. 59). O centro das especulações teológicas de S. Máximo é o Deus-Homem. Para ele o Logos é a razão e o fim último de todo o criado. A história do mundo efectua um duplo processo: o da encarnação de Deus e o da divinização do homem. Este último só se Pôde iniciar com a encarnação e com o f@n de restabelecer no homem a imagem de Deus. Como princípio deste segundo processo, Cristo devia necessariamente ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem. As duas naturezas nele não se misturam nem rompem a unidade da pessoa e dado que a cada uma das duas naturezas está unida a capacidade de querer, em Cristo subsistiam duas vontades, a divina e a humana, mas a vontade humana era levada à decisão e à acção pela vontade divina (Patr. Grec., 91.*, col. 48). João Damasceno resume as características do último período da patrística e conclui a própria patrística no seu ramo oriental, retomando e sistematizando os resultados. Não se conhece o ano do seu nascimento. Sabe-se que pertencia a uma família cristã do Damasco na qual era hereditário de pai para filho um ofício público por conta do governo árabe; e João tinha de facto o nome árabe de Mansur. Por volta de 730 começa a sua actividade de escritor teológico a favor do culto das imagens que fora proibido alguns anos antes por Leão o Isáurico. Quando João foi condenado em 754 por um concílio iconoclasta de Constantinopla, havia já falecido. 235 é a Fonte do ConheA mais famosa das suas Obras primeira Ciniento, que se divide em três partes. A ,uma introdução filosófica que segue de perto parte é a lógica de Aristóteles. A segunda é a metafísica e mosta em boa parte urna história das heresias, COIr sobre o Panário 'de Epifânio (@ 154). A terceira é dedicada à exposição da fé Ortodoxa e com este @e (De fide ortodoxa) foi traduzida título precisamente ndione de Pisa (falecido em 1194) para latim por Burgu ndamentais da escolásticae tornou-se um dos textos fu de urna A obra de João Damasceno não passa compilação sendo a parte original escassissima. Mas tom o mérito de recolher e reordenar sistematicamente toda a especulação da patrística grega que a Igreja reconheceu e fez sua. A sua obra é, portanto, uma espécie de florilégio da própria patrística, unificada pelo critério da ortodoxia. João fixa o principio da subordinação das ciências profanas à teologia e afirma designadamente que a filosofia deve ser a serva da teologia segundo uma expressão que devia, ser retomada n@ escolástica por Pedro Damião. Como serva da teologia, a filosofia fornece certos pressupostos fundamentais da fé e em primeiro lugar a demonstração da existência de Deus. A demonstração é retirada por João de outros esmitores, mas a formulação que ele lhe dá é aquela de que partiram muitos escolásticos, entre eles S. Tomás. Em primeiro lugar, tudo aquilo que é criado é mutável, dado que a própria criação é mudança (do nada ao ser). Mas tudo aquilo que existe no mundo sensível ou espiritual é mutável, portanto criado: supõe, portanto, um criador, que não seja criado por sua vez mas incriado; e este é Deus. Em segundo lugar, a conservação e a duração das coisas supõem a existência de Deus, dado que elementos diversos e
contrastantes como o fogo, a água, a terra, o ar não poderiam permanecer unidos sem destruir-se se não interviesse uma força omnipotente para mantê-los e conservá-los juntos; 236 esta força omnipotente é Deus- Finalmente, a ordem e a harmonia do mundo não podem ser produzidos pelo puro acaso e pressupõeM um principio ordenador que é Deus (De fide orthod., 1, 3), Mas se a existência de Deus pode ser alcançada pela razão humana, a sua essência é incompreensível. "A divindade, diz joão (Ib., 1, 4), é indeterminável e incOmpode ser compreendido dela, a preensivel; e só isto preensibilidade". sua indeterminabilidade e incOM trasta com a sua Podemos negar dela tudo o que con r-lhe tudo aquilo ao infinita e podemos atribui perfeiç~ inho que está implícito em tal perfeição; mas o cairi -guro é o negativo porque todo O atributo mais se positivo é desigual a Deus. Trata-se, como sc vê, de noções familiares a toda a patrística oriental, que masceno reproduz com as mesmas fórmulas. COM Da ureza da alma igual procedimento aborda a nat humana que considera naturalmente imortal, porque o das substâncias incorpóreas e pertence ao númer dotada. de livre, arbítrio. Isto
não é espirituais e é
negado pela presciência divina, que tudo Prevê 'a' não predetermina tudo: o mal depende unicamente do livre querer do homem (Ib., 11, 30). § 172. ESCRITORES LATINOS Os escritores latinos da última patrística caminham sobre os passos de S. Agostinho e manifestam a mesma falta de originalidade especulativa dos seus contemporâneos gregos e a mesma tendência para expor, coordenar e sistematizar doutrinas já conhecidas. o iniciador do semipelagianismo foi JO" Cassiano, nascido por volta do ano 360 na Gália em 435, autor de um escrito sobre ,meridional, falecido regras dos mosteiros e de unia a organização e as tiones, que é a rela0o dos colóobra intitulada Colla 237 quios travados por ele e seu amigo Germano com eremitas egípcios. Precisamente nesta obra, Cassiano considera a tese de que Deus ilumina e reforça a boa vontade que nasce no homem, mas que esta vontade tem origem apenas no esforço humano. Se o querer bem não basta ao homem, quando não é socorrido pela graça divina, todavia esta graça só é dada àquele que tem boa vontade. A tese de Cassiano difundiu-se largamente nos
mosteiros do Sul da Gália. Claudino Mamerto, que foi padre em Viena no Delfinado e morreu por volta de 474, é autor de um escrito em três livros, De statu anin2ac, composto em 468 ou 469, no qual se defende a incorporeidade da alma humana. É impossível que a ffima caia sob a categoria da quantidade, que é própria do corpo, dado que o seu poder, memória, razão, vontade estão privados de quantidade, portanto são incorpóreos. Ora estas faculdades da alma são a sua própria substância, dado que toda a alma é razão, vontade, memória; segue-se daqui que toda a alma está privada de quantidade e é incorpórea (De statu an., 111, 4). A alma é a vida do corpo e está, portanto, presente em todas as partes do corpo; mas está presente num modo que exclui a sua distribuição espacial porque está toda em todo o corpo e toda em cada parte singular do corpo. A sua presença no corpo é idêntica à de Deus no mundo. Portanto, a alma tem a mesma incorporeidade de Deus. Trata-se de um resumo da demonstração agostiniana da imaterialidade da alma. Por volta de 430, Marciano Capela compunha o seu escrito De nií,Ptiis Mercurii et Philologiae, um prospecto de todas as artes liberais, que subsistiu como um dos textos fundamentais da erudição medieval. Mas a quem se deve a sobrevivência de uma parte notável da filosofia grega na Idade Média é a Ãneio Mânho Torquato Severino Boécio, nascido 238 em Roma por volta de 480, cônsul de Roma sob o rei Teodorico, depois caído em desgraça deste, encarcerado e morto em 524. Boécio empreendeu a tarefa de traduzir e interpretar todas as obras de Platão o de Aristóteles e de demonstrar o seu acordo fundamental, mas só em pequena parte conseguiu realizar este vasto projecto. Possuímos as versões dos Analíticos 1 e 11, dos Tópicos (de que se perdeu um comentário), dos Elencos Sofísticos e do De interpretatione com dois comentários, das Categorias com um comentário. Temos, além disso, o comentário à versão de Mário Vitorino do Isagogo de Porfírio, a sua versão do Isagogo com um comentário e outros trabalhos de lógica, Entre estes últimos são importantes os do silogismo hipotético dado que neles Boécio, seguindo o próprio exemplo dos Aristotélicos, insere a lógica estoica no tronco da lógica aristotélica; e foi por estes escritos e pelos de Cícero que os escritores medievais tiveram conhecimento da lógica estoica. Mas a obra mais famosa de Boécio é o De consolatione philosophiae, que é também pouco original porque resulta da utilização de várias fontes entro as quais o Protréptico de Aristóteles, conhecido talvez através de algum escrito mais recente que o reproduzia. A obra está redigida em forma retórica o alegórica e a filosofia é apresentada na figura de uma nobre dama que conforta Boécio e responde às suas dúvidas. Nada de especificamente cristão se encontra na obra e assim não faltou quem, em tempos recentes, acreditasse que Boécio era pagão, ou então cristão só de nome, e que portanto fossem apócrifos os opúsculos teológicos que nos chegaram dele (De Sancta Trinitate; Utrum Pater et Filius et Spirictus Santus de divinitate substantialiter praedicentur; Quomodo substantiae in eo quod sint bonae sint; De fide; Liber contra Nestorium et Eutychen). Mas a autenticidade destes escritos, com excepção do
239 De fide, está comprovada, não só pelo testemunho dos códices, como pelo do contemporâneo de Boécio, Cassiodoro, e portanto não pode ser posta em dúvida. Além disso, se o De consolatione não tem qualquer referência aos mistérios do cristianismo, está impregnado por aquele espírito platónico ou neoplatónico que os escritores da patrística consideram substancialmente cristão. As traduções e os escritos lógicos de Boécio asseguraram a sobrevivência da lógica aristotélica mesmo no período da maior obscuridade medieval e fizeram dela um elemento fundamental da cultura e do ensino medieval. Quanto à De consolatione, está entre as obras mais famosas da Idade Média. Divide-se em 5 livros e é mista em verso e prosa. O primeiro livro é uma espé cie de introdução na qual a filosofia se apresenta a Boécio na forma de augusta matrona que vem trazer-lhe conforto na triste condição em que se encontra, não por sua culpa, mas por ter querido seguir a verdade e a justiça. No segundo livro, a filosofia faz ver a Boécio que a felicidade não consiste nos bens da fortuna, que são mutáveis e caducos e que, mesmo quando se possuem, trazem consigo o perigo e o temor da sua perda. A felicidade deve consistir numa condição que exclua qualquer temor deste género e compreenda em si todos os bens que tornam o homem suficiente por si próprio. O terceiro livro contém, precisamente, a teoria da felicidade assim compreendida. É evidente que não pode consistir nem na riqueza, nem no poder, nem nas honras, nem na glória, nem nos prazeres. Nenhum destes é o bem supremo, o bem melhor de todos e que torna o homem auto-suficiente. Defende pois que a felicidade consiste no próprio Deus, enquanto é o ser de que não se pode conceber melhor, portanto o bem supremo. Deus é conjuntamente a origem de todas as coisas e o fundamento da verdadeira felicidade humana (111, 10). O quarto livro examina em que 240 S. GREGÓRIO MAGNO o mundo e modo Deus, como supremo bem, rege expõe uma teoria da providência e do fado. A proVidência é o plano da ordem e da disposição do mundo na inteligência divina; o fado é a própria ordem que por aquele plano vem a ser determinada no mundo. "A providência é a própria razão (ratio) divina que, constituída como supremo Princípio de tudo, dispõe todas as coisas; o fado é a disposição inerente às coisas mutáveis, disposição pela qual a Providência assinala a cada coisa a sua ordem própria" (IV, 6). A ordem do fado, na multiplicidade dos seus desenvolvimentos temporais, depende pois da própria razão de Deus. Os problemas que nascem deste conceito da Providência e do fado são examinados no quinto livro. A Providência e o fado parecem excluir à primeira vista a liberdade, mas em tal caso seria inútil para o homem a razão que serve para julgar e escolher livremente. A resposta da filosofia ao problema é que, se Deus prevê tudo, não prevê que tudo aconteça com necessidade. A previsão de um acontecimento não implica que o acontecimento se deva realizar necessariamente. Além disso, em Deus a previsão é inerente à natureza da sua vida, que é uma eternidade privada de qualquer sucessão. Nele não existe nem o passado nem o futuro e a sua ciência é o conhecimento total e simultâneo de todos os acontecimentos que se verificam sucessivamente no tempo (V, 6). Nele estão presentes também os acontecimentos futuros, mas estão presentes no mesmo modo do seu acontecimento; e aqueles que dependem do livre arbítrio estão presentes precisamente na sua contingência (V, 6). A importância de Boécio para a cultura medieval foi enorme. A De consolatione teve numerosíssimos comentários, as obras lógicas introduziram a lógica aristotélica (como se
disse) no ensino e na cultura escolástica. Os seus opúsculos teológicos forneceram às discussões teológicas medievais os conceitos, a terminologia e o método. Com 241 tudo isto, Boécio não assume o lugar de pensador original. É um hábil compilador e uni retóricO CIOadaptar à língua e à mentalidade quente que soube seguindo a sombra de latina a especulação grega, S. Agostinho de quem tomou a divisa: unir, nos limites do possível, fé e razão, Contemporâneo e amigo de Boécio mas de têmpera diferente foi Magno Aurélio Cassiodoro, nascido cerca de 477 em Squillace na Calábria, ministro de Teodorico e dos seus sucessores. Em 540 abandonou a corte e retirou-se para o mosteiro de Vivario que fundara, para se dedicar à vida espiritual e à ciência. Morreu em 570. De Cassiodoro têm grande interesse histórico as cartas que escreveu por conta de Teo(10rico, cuja recolha leva o nome@de Variae, e a História dos godos de que só nos chegou um estrato A obra mais importante, que escreveu no claustro, são as Istitutiones divinarum et saecularium lectiOnum em dois livros: o primeiro indica os autores que são estudados Corno guias das disciplinas teológicas; o segundo é uni manual das sete artes liberais. A obra devia servir aos monges e foi na Idade Média um dos manuais mais usados. Num breve escrito, De a?úma, Cassiodoro propõe-se demonstrar, nas pegadas de Claudiano Mamerto, a incorporeidade da alma humana. O escrito reproduz os argumentos de Mamerto que, por sua vez, como se viu, foram retirados de S. Agostinho. A última figura da patrística é verdadeiramente O papa Gregório Magno, nascido em Roma provavelmente em 540, consagrado pontifico em 590, falecido em 604. Documento da actividade papal de Gregório é o Registrum epistolarum, colecção das suas cartas Oficiais. O Uber regulae pastoralis estabelece a missão do pastor de almas. Os Diálogos tratam da vida e dos mil@gres dos diferentes homens pios de Itália, o mais conhecido dos quais é S. Bento de Nórcia. Gregório escreveu também uma exposição do livro de Job e 242 duas colectânias de homilias sobre os Evangelhos e sobro Ezequiel. A parte especulativa de todos estes escritos é muito restrita. A importância de Gregório está toda no ter procurado conservar, num período de decadência total da cultura, as conquistas dos séculos passados. O tempo em que vivia parecia ter levado à destruição total da cultura e de to-da a civilização e prenunciar o fim do mundo. "As cidades estão despovoadas, escrevia Gregório (Dial., 111, 38), as aldeias arrasadas, as igrejas queimadas, os mosteiros dos homens e das mulheres destruidos, os campos abandonados pelos homens estão privados de quem os cultive, a terra está deserta na solidão e nenhum proprietário a habita, as bestas ocuparam os lugares onde antes se aglomeravam os homens. Não sei o que acontece nas outras partes
do mundo. Mas na terra em que vivemos, o fim do mundo não só se anuncia, mas já se mostra em acto". A desolação de uma civilização quebrada e despodaçada não se podia descrever melhor. Nesta desolação, a cultura mantém-se viva apenas nalguma figura solitária de erudito que a atinge nas obras do passado e a transmite em rudes e desordenados compêndios. Assim Isidoro de Sevilha, nascido cerca de 570 e falecido em 636, compôs uma série de obras que deviam servir às escolas abaciais e episcopais onde se formavam os clérigos. Estas obras têm um carácter de pura compilação: são justapostas noções heterogéneas sem sequer uma tentativa de unificação. No De natu@a rerum Isidoro expõe a astronomia e a medicina tiradas das Questioni naturali de Séneca. No De ordine creaturarum descreve a hierarquia dos seres espírituai,s, segundo o modelo neoplatónico. Nas Sententiae faz a história da humanidade desde a criação e trata da graça, das condições da vida terrestre do homem e de direito natural. A obra mais célebre são os 20 livros de Origini ou Etimologias, uma espécie de enciclopédia, onde está condensado todo o saber do 243 passado, das artes liberais à agricultura e às outras artes manuais. Grande parte desta enciclopédia é destinada a investigações gramaticais, mas não se descura aquilo que pode ser útil a uma educação filosófico-teológica. Há entremeados estratos retirados das obras de escritores clássicos e dos padres da Igreja, em particular de Gregório Magno. A filosofia é definida com os Estoicos como "a ciência das coisas humanas e divinas" e é dividida em física, ética e lógica. Através da obra de Isidoro, de Sevilha os resultados da ciência antiga eram salvos do naufrágio e destinados a alimentar o trabalho intelectual dos séculos seguintes. A mesma natureza têm os escritos de Boda o Venerável, nascido em 674 em Inglaterra, morto em 735 no claustro de Jarrow. Boda forneceu ao catolicismo inglês o mesmo arsenal intelectual que Isidoro forneceu ao espanhol. O seu De natura rerum, baseado principalmente na obra de Plínio o Velho, dá-nos a mesma imagem do mundo que o tratado homónimo de Isidoro. Boda é também autor de escritos gramaticais e cronológicos e de uma História eclesiástica da gente dos Anglos que vai até 731. Do ponto de vista filosófico, Boda inspira-se nas obras de S. Agostinho. Em particular considera que a matéria do mundo contém as sementes de todas as coisas e que delas, como de causas primordiais, se desenvolvem no curso do tempo todos os seres do mundo. O homem é um microcosmo; a história divide-se em partes correspondentes aos sete dias da criação. Boda é um outro anel da cadeia através da qual a cultura antiga se transmite à Idade Média. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 168. Sobre a história deste período: DAWSON, Les origines de I'Europe, Paris, 1934. Sobre os escritores gregos deste período: KRUMBACHER, Geschichte der byzantinische Literatur, 2.1 edição, 1897. 244
§ 169. Os escritos de Sinésio in P. G.@ 66.o; de Nemésio in P. G.@ 40.o9 504-817 (tradução latina do De natura hominis -a cargo de Holzinger, Leipzig, 1887); de Procópio de Gaza in P. G., 87.1 p. I-III; de Eneias de Gaza e de Zacarias Escolástico in P. G.@ 85.% 871-1004; de João FilipGno, edição teubneriana do De mundi aeternitate, a cargo de Rabe, 1899, e do De opificio mundi, a cargo de Reichardt, Leipzig, 1897; de Leõncio de Bizâncio in P. G., 86.o, p. I-U. - JAEGFR, Nemesios von Nemesa, Berlim, 1914. § 170. As obras do falso Dionísio in P. G.@ 3.o-4.o. Sobre o carácter pseudo-epigráfico dos escritos: STIGLMAYR in "Hist. Jahrb.", 1895, 253-273, 721-748; KOCH, in "Theal. QuartaIschr.", 1895, 353-420, 1896, 290-298; Forschungen zur christ. Litteratur-und Dogmengeschichte, 1, 2-3, Mogúncia, 1900. Sobre a doutrina de Dionísio: M-ULLER, nos "Beitrãge" do Baeumker, XX, 3-4; RoQuEs, LIunivers dionysien. Structure hiérarchique du monde selon le Pseudo-Denys, Paris, 1954 (com bibl.). § 171. Os escritos de Máximo Confessor in P. G., 90.---91.1; de João Damasceno in P. G., 94.o-96.,. Sobre João Damasceno: PRANTL, Gesch. der Logik, 1, 657-658; GRABMANN, Gesch. der scholast. Methode, 1, 108-113; 11, 93 ss., 389 ss. § 172. Os escritos de Cassiano in P. L., 49.o-50.* e no Corpus de Viena, 13., e 17.1; os de Mamerto in P. L., 53.,, 697-780 e no Corpus de Viena, 11.1. o escrito de Marciano Capella, ed. Eyssenhardt, 1866. As obras de Boécio in P. L.@ 63.---64.o e no Corpus de Viena, 48.o e 67.o; os Opúsculos Teológicos, ao cuidado de STEWART e RAND, Londres, 1926. Sobre a autenticidade dos escritos teológicos e o testemunho de Cassiodoro: USENER, Anecdoton Holderi, Bonn, 1877. Sobre a não autenticidade do De fide: RAND, in "Jahrbucher für klass. Philol.", supl., 1901, 405-461. Sobre as obras lógicas de, Boécio: GRABMANN, Die Gesch. der scholast. Methode, 1, 149-160; 11, 70-72; DCRR, The Propositional Logie of Boethius, Amsterdão, 1951; VANN, The Wisdom of Boethius, Londres, 1952. As obras de Cassiodoro in P. L., 69.---70.1; de Gregório Magno in P. L., 75.---79.1; de IsidorG in P. L., 81.---84.o; de Beda in P. L., 90-95.o. Sobre todos: bibliografia especial in UEBERWEG-GEYFR, Die patr. und schol. Philos., Berlim, 1928, p. 669-672; e in VASOLI, La filosofia medievale, Milão, 1961, p. 516 ss. 245 íNDICE XII - A ESCOLA PERIPATÉPTICA § 86. Teofrasto, ... ... ... ... ... Estratão ... ... ... ... ... ... 9 Nota bibliográfica XM-O
... ... ...
ESTOICISMO
... ...
7
7 §87. Outros discípulos de Aristóteles
10 ... ... ... ... ...
11
8 §88.
§89. Características da Filosofia pós-Aristotética ... ... ... ... ... 11 §90. A escola estoica ... ... ... ... 12 §91. Característica da Filosofia estoica 15 §92. A Lógica ... ... ... ... ... 16 §93. A Física ... ... ... ... ... 23 §94. A Psicologia ... ... ... ... ... 27 §95. A ntica ... ... ... ... ... ... 29 Nota bibliogrãfica
... ... ...
XIV -0 EPICURISMO § 96. Epicuro
35
... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ...
37
37 § 97. A escola epicurista
... ... ...
38
247 § 98. Características do epicurismo § 99. A Canónica ... ... ... ... § 100. A Física § 101. A Ética ... ... ... ... ... Nata bibliográfica ... ... XV-0
CEPTICISMO
... ... ... ...
§ 102. Características do cepticismo § 103. Pirro ... ... ... ... ... § 104. A média Academia ... ... § 105. A nova Academia ... ... § 106. Os últimos cépticos 107. Sexto empírico ... ... ... Nota bibliográfica
... ... §
... ...
XVI --0 ECLECTISMO
. . ... ... ...
§ 108. Características do Eclectismo § 109. o estoicismo Ecléctico ... § 110. o Platanismo Eclético ... § iii. o Aristotelismo Ecléctico 248 § 112. A Escola Cinica ... ... ... ... 73 § 113. Séneca ... ... ... ... ... ... 74 § 114. Musónio. Epicteto ... ... ... 77 § 115. Marco Aurélio ... ... ... ... 79 Nota bibliográfica
... ... ... 81
XVII --PRECURSORES DO NEOPLATONISMO
... ... ... ... ... ... ... 83
§ 116. Características da Filosofia
na
época Alexandrina Platonismo médio Filon de Alexandria
... ... ... 83 § 117. Os Neopitagóricos ... ... ... ... 86 § 119. A Filosofia greco-judaica ... ... ... 89
Nota bibliográfica
... ... ... 91
XVIII -0 NEOPLATONISMO
... ... ... .. 93
84 § 118. O ... 88 § 120.
§ 121. A "Escolãstica" Neoplatónica ... 93 § 122. Plotino: Deus ... ... ... ... 95 § 123. Plotino: as emanações ... ... 97 249 § 124. Plotino: a consciência e o retorno a Deus siriaca ... ... .. 1 100 § 126. Aescola de Atenas Proclo ... ... 103 Nota bibliográfica
... ... ... ... 98 § 125. A escola ... ... ... 101 § 127. A doutrina de
... ... ... 105
SEGUI-4DA PARTE FILOSOFIA PATRISTICA 1-0
CRISTIANISMO E A FILOSOFIA
109
§ 128. A Filosofia grega e a tradição cristã ... ... ... ... ... ... 109 § 129. Os evangelhos sinópticos ... ... 111 § 130. As "cartas" Paulinas ... ... 114 § 131. O quarto evangelho ... ... ... 116 § 132. A Filosofia cristã ... ... ... 117 Nota bibliográfica
... ... ... 119
250 A PATRISTICA DOS DOIS PR=IROS SÊCULOS ... ... ... ... ... ... §133. Caracteristicas da Patristica
121
... 121
§134. Os padres Apologetas ... ... 123 §135. Justino ... ... ... ... ... ... 124 §136. Os outros padres Apologetas ... 126 §137. A Gnose .. . ... ... ... ... 130 §138. A polémica contra a gnose ... 134 §139. Tertuliano ... ... ... ... ... 139 §140. Tertuliano: as doutrinas ... ... 142 §141. Apologetas latinas ... ... ... 146 Nota bibliográfioa
... ...
... 153
III -A FILOSOFIA PATRISTICA NOS cULOS M E IV
... ... ... ...
§142. Caractexisticas do período §144. Origenes: vida e -escritos §146. Origenes: Deus e o mundo 169
SÊ-
... 157 ... 157 §143. Clemente de Alexandria ... ... 158 ... 161 §145. Orígenes: Fé @e gnose ... ... 163 ... 165 §147. Origenes: o destino do hom@em
251 §118. Sequazes e adversários de Orígenes ... ... ... ... ... ... 172 §149. Basílio o grande ... ... ... 177 §150. Gregório Nazianceno ... ... 179 §151. Gregõrio de Nisa: a Teologia ... 181 §152. Gregório de Nisa: o mundo e o
homem
... ... ... ... ... ... 185 §153. Gregório de Nisa: a Apoca-
tástasis
... ... ... ... ... 187 §154. Outros padres orientais
do sé-
culo IV
... ... ... ... ... 190 §155. Os padres latinos do IV
século
Nota bibliográfica
192
... ... ... 194
IV -SANTO AGOSTINHO
... ... ... ... 197
§ 156. A figura histórica ... ... ... 197 § 157. A vida ... ... ... ... ... ... 199 § 158. As obras ... ... ... ... ... 202 § 159. Características da investigação Agostiniana ... ... ... ... ... 204 § 160. O fim da procura Deus e a alma
... ... ... ... ... ... 205
252 § 161. A procura de Deus ... ... ... 208 § 162. O homem 163. O problema da criação e do tempo
... ...
... ... ... ...
213 § 164. A polémica contra o mani-
queísmo ... ... ... ... ... 215 § 165. A polémica contra o A polémica contra o pelagianismo
... ...
... ... ... ...
Nota bibliográfica
... ... ... ... ... 211 §
219 § 167. A cidade de Deus
donatismo
217 § 166.
... ... ... 222
... ... ... 224
V-A CLTIMA PATRISTICA
... ... ... 227
§ 168. Decadência da patrística ... 227 § 169. Escritores gregos ... ... ... 228 § 170. Pseudo-Dionísio o ae@roípagita ... 232 § 171. Máximo confessor. João Damasceno
... ... ... ... ... 234 § 172. Escritores latinos
Nota bibliográfica
... ... ... 244
253
HISTÓRIA DA FILOSOFIA Volume terceiro Nicola ABAGNANO
... ... ... 237
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO: ÂNGELO MIGUEL ABRANTES. HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME III TRADUÇÃO DE: ARMANDO DA SILVA CARVALHO CAPA DE: J. C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto EDITORIAL PRESENÇA . Lishoa 1969 TíTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Bil, 2 cIE. - Lisboa TERCEIRA PARTE FILOSOFIA ESCOLÁSTICA i AS ORIGENS DA ESCOLáSTICA § 173. CARÁCTER DA ESCOLáSTICA A palavra escolástica designa a filosofia cristã da Idade Média. O termo scholasticus indicava nos primeiros séculos da Idade Média aquele que ensinava as artes liberais, isto é, as disciplinas que constituíam o trívio (gramática, lógica ou dialéctica, e retórica) e o quadrívio (geometria, aritmética, astronomia e música). Mais tarde passou a chaMar-se também scholasticus ao professor de filosofia ou de teologia, cujo título oficial era o de magister (magister artílim ou magister in theologia) e que a princípio dava as suas lições na escola do claustro ou da catedral e mais tarde na universidade (studium genei-ale). A origem e o desenvolvimento da escolástica encontram-se estritamente ligados às funções docentes, funções que determinaram também a forma e o método de actividade literária dos escritores escolásticos. Como as formas fundamentais do ensino eram duas, a lectio, que consistia no comentário de um texto, e a disputatio, que consistia no exame de um problema tendo-se em consideração todos os argumentos que se possam aduzir pro e contra, a actividade literária dos Escolásticos assume sobretudo a forma de Commentari (à Bíblia, às obras de Boécio, à lógica de Aristóteles e mais tarde às Sentenze de Pedro Lombardo e às outras obras de Aristóteles) ou de recolha de questioni. Recolhas deste
género são os Quodlibeta que compreendem as questões que os -aspirantes ao grau de teologia deviam discutir duas vezes por ano (pelo Natal e pela Páscoa) sobre qualquer tema, de quodlibet. As questiones disputatae são muitas vezes o resultado das disputationes ordinariae que os professores de teologÍa mantinham durante os seus cursos sobre os mais importantes problemas filosóficos e teológicos. A conexão da escolástica com a função docente não é um facto puramente acidental e extrínseco; faz parte da própria natureza da escolástica. Todas as filosofias são determinadas na sua natureza pelos problemas que constituem o centro da sua investigação; e o problema da escolástica consistia em levar o homem à compreensão da verdade revelada. Tratava-se portanto de um problema de escola, ou seja, de educação: o problema da formação dos clérigos. A coincidência típica e total do problema especulativo com o problema educativo justifica plenamente o nome da filosofia medieval e não explica os caracteres fundamentais. Em primeiro lugar, a escolástica não é, como a filosofia grega, uma investigação autónoma que afirme a sua independência crítica frente a qualquer tradição. A tradição religiosa é, para a escolástica, o fundamento e a norma da sua investigação. A verdade foi revelada ao homem através das Sagradas Escrituras, através das definições dogmáticas de que a comunidade cristã se serviu para fundamentar a sua vida histórica, através dos padres e doutores inspirados ou iluminados por Deus. Para o homem, trata-se apenas de aproximar-se dessa verdade, compreendê-la na 10 medida do possível, mediante os poderes naturais e com a ajuda da graça divina, e fazê-la sua para assumi-Ia como fundamento da própria vida religiosa. Mas mesmo nesta perspectiva, que é a da própria investigação filosófica, o homem não pode nem deve basear-se apenas nas suas faculdades; a tradição religiosa ajuda-o e deve ajudá-lo fornecendo-lhe, através dos órgãos da Igreja, um guia esclarecedor e uma garantia contra o erro. Trata-se mais de uma obra comum que individual: de uma obra na qual o simples indivíduo não pode nem deve basear-se apenas nas suas forças, mas pode e deve recorrer à ajuda dos outros e especialmente daqueles que a própria Igreja reconhece como particularmente inspirados e apoiados na graça divina. Daí o uso constante das auctoritates na especulação. Auctoritas é a decisão de um concílio, uma expressão bíblica, uma sententia de um Padre da Igreja. O recurso à autoridade é a manifestação típica do carácter comum e superindividual da investigação escolástica, na qual o indivíduo quer sentirse continuamente apoiado e sustentado pela autoridade e tradição eclesiástica. Daqui deriva o outro aspecto fundamental da investigação escolástica. Esta não se propõe formular ex novo nem doutrinas nem conceitos. O seu principal objectivo é o de compreender a verdade já dada na revelação, e não o de encontrar a verdade. Deste modo, como a norma da investigação resulta da tradição religiosa, os instrumentos e os materiais dessa investigação são provenientes da tradição filosófica. Esta vive substancialmente à custa da filosofia grega; primeiro a doutrina platónico-agostiniana, depois a aristotélica, fornecem-lhe os instrumentos e os materiais de especulação. A filosofia, como tal, é para ela simplesmente um meio: ancilla theologiae.
Claro que as doutrinas o os conceitos que são adoptadas de acordo com aquele 11 objectivo acabam por sofrer uma transformação mais ou menos radical quanto ao seu significado original. Mas a escolástica não se propõe realizar esta transformação de modo intencional o a maior parto das vezes não tem disso consciência. O sentido da historicidade é-lhe estranho. Doutrinas e conceitos surgem livres dos complexos históricos de que fazem parte e considerados independentes dos problemas a que se referem e da personalidade autêntica do filósofo que os elaborou. A Idade Média coloca tudo num mesmo plano e fez dos filósofos mais afastados da sua mentalidade, seus contemporâneos, dos quais é lícito colher os frutos mais característicos para adaptá-los às suas próprias exigências. Nesta estrutura formal que a filosofia medieva apresenta, reflecte-se a própria estrutura social e política do mundo medievaL Este é um mundo constituído como uma hierarquia rigorosa apoiada numa única força que do alto dirige e determina todos os aspectos. Tem-se afirmado em regra que a concepção medieval do mundo se inspira no aristotelismo: com efeito, essa é substancialmente a concepção estoico-platónica à qual acabam por se reduzir e adaptar as próprias doutrinas aristotélicas. O mundo é uma ordem necessária o perfeita na qual todas as coisas têm um lugar e uma função determinados, permanecendo nesse lugar e nessa função pela força infalível que determina e orienta o mundo vindo do alto. Tudo o que o homem pode e deve fazer é conformar-se com esta ordem: o próprio livre arbítrio pode ser utilizado com utilidade desde que integrado nessa conformidade. As instituições fundamentais do mundo medieval, O Império, a Igreja, o Feudalismo, apresentam-se como os defensores da ordem cósmica e como os instrumentos da força que o rege. Essas são dirigidas substancialmente no sentido de fazer surgir todos os bens materiais e espirituais a que o homem pode aspirar, desde o 12 pão quotidiano à verdade, como derivantes da ordem a que pertencem, assim como da hierarquia de que são intérpretes e os guardiães dessa mesma ordem. Num mundo assim constituído, a investigação filosófica não pode desenvolver os seus princípios e a sua disciplina senão a partir da hierarquia em que se concretiza a ordem universal ou da força que se mantém causa dessa estrutura. Como ideia directiva da vida individual e social, a noção desta ordem começa a afirmar-se a partir do século VIII, com o desaparecimento quase total das trocas económicas e culturais e o desaparecimento ou decadência das cidades, deixando de pé apenas uma economia rural paupérrima e fechada. O despertar do tráfego comercial e das artes que se verifica a partir do século XI, as viagens e as trocas provocam a primeira crise da concepção medieval da ordem cósmica. Essas transformações vêm demonstrar, com a própria força dos factos, que o indivíduo pode adquirir para si os bens que se lhe oferecem, incrementá-los o defendê-los com a sua actividade e com a colaboração dos outros. O poder hierárquico começa a surgir, agora, como um limite ou uma
ameaça, mais do que uma ajuda ou garantia, à capacidade humana de adquirir ou conservar os bens que são indispensáveis ao homem. A luta pela autonomia comunal, pela libertação das limitações impostas pelo feudalismo, é substancialmente baseada na crença do homem em si próprio, na sua capacidade de providenciar sobre as suas necessidades e de organizar-se em comunidades autónomas que, melhor que as hierarquias impostas de cima, podem providenciar pela sua própria defesa. Nestas condições, a investigação filosófica adquire um respirar novo e uma nova dimensão de liberdade. Os seus pressupostos hierárquicos não são por enquanto postos em dúvida, os seus limites e as suas condições sobrenaturais 13 continuam ainda a ser reconhecidos; mas a parte devida à iniciativa racional do homem começa a aumentar e a reforçar-se, e em certos domínios e em certos Emites tal iniciativa acaba por ser reconhecida como legítima e eficaz. Tenta-se em seguida estabelecer claramente os domínios e os limites de tal iniciativa e julga-se haver realizado um perfeito acordo entre a razão e a fé, ou seja, entre a verdade que o homem pode conseguir com os seus poderes naturais o a que lhe foi revelada pelo alto e imposta pela hierarquia. Mas até este equilíbrio começa a romper-se a partir dos últimos decénios do século XIII; e agora não se renuncia à fé nem se denuncia, na sua totalidade, a concepção h-ierárquica da ordem cósmica, mas alarga-se e reforça-se o âmbito da iniciativa racional e a investigação filosófica debruça-se sobre domínios que já nada têm a ver com os objectos da fé e nos quais pode avançar com a sua força autónoma. Sobre este desenvolvimento, que compreende os aspectos sociais e políticos como os filosóficos do inundo ocidental nos séculos da Idade Média, se funda a caracterização da filosofia escolástica como o problema da relação entre razão e fé e a sua periodização fundada nas diversas formas de resolver tal problema. É evidente que deste ponto de vista o problema da relação entre razão e fé não é um problema puramente especulativo. É também um problema especulativo considerável se nos basearmos no confronto entre os textos filosóficos e os textos religiosos e as suas interpretações e implicações; mas não é apenas isto. É sobretudo o problema do papel que pode e deve ter a -iniciativa racional do homem na busca da verdade e da direcção da vinda individual e colectiva, perante a posição que deve ocupar a ordem cósmica e a hierarquia que a representa. Por isso é também o Problema da liberdade que o homem pode reivin14 dicar por si e das limitações que tal liberdade deve encontrar as hierarquias que governam o mundo. É, em suma, o problema dos novos domínios da indagação (a natureza, a sociedade) que se apresentam ao homem à medida que ele reivindica, pela sua razão, uma maior autonomia. Se designarmos, nos termos que assim ficam expostos, o "problema escolástico" pode ser facilmente abordado para se poder dar conta da continuidade e da variedade, das concordâncias e das polémicas do pensamento medieval. Isso pode permitir que nos apercebamos de que a ortodoxia e a heterodoxia religiosas fazem parte
igualmente deste pensamento como fazem parte as especulações políticas e os interesses, que se mantiveram ou ressurgiram, pela natureza e pela ciência; e que as tendências heréticas, as rebeliões filosóficas, teológicas ou políticas que, em certa medida, sempre o caracterizaram, não constituem os aspectos históricos fundamentais a mesmo título que as grandes sínteses doutrinais nas quais a iniciativa racional do homem e as exigências da fé e da hierarquia eclesiástica parecem ter encontrado um compromisso efectivo. O que este conceito do problema escolástico pretende excluir é a tentativa de considerar a própria escolástica no seu conjunto como uma síntese doutrinal homogénea ria qual se hajam unificado e fundido os contributos individuais. Esta noção da escolástica parece sugerida pela vontade de privilegiar o aspecto da existência (real ou presumida) de uma concordância plena e definitiva entre a razão e a fé: aspecto que é característico da síntese tomista. Mas este privilégio não tem nenhuma base histórica e não terá outro efeito que o de excluir da escolástica, considerada como a única filosofia existente na Idade Média, uma parte importante dos pensadores medievais. Uma preferência ideológica, historiograficamente insustentável, está na base deste privilégio. A filosofia medieval, tal 15 como a filosofia de qualquer outro período, pode ser descrita o caracterizada apenas com base no seu Problema dominante, e não nas soluções que foram dadas a esse mesmo -problema. A continuidade desta filosofia pode ser reconhecida apenas com o fundamento da unidade do seu problema e das diferenças nas soluções apresentadas. E a periodização da mesma pode ser efectuada apenas com base na prevalência de uma ou de outra das soluções fundamentais. A esta exigência responde a periodização tradicional que distingue quatro fases na escolástica. A primeira, chamada pré-escolástica, é a do renascimento carolíngio, durante a qual é pressuposta e admitida pura e simplesmente a identidade da razão e da fé. Na segunda, chamada altaescolástica, que vai da metade do século XI até ao fim do século XII, o problema da relação entre a razão e a fé começa a esboçar-se e a ser posto claramente na base da antítese potencial entre os dois termos. Na terceira, que vai de 1200 aos primeiros anos de 1300, organizam-se os grandes sistemas escolásticos que constituem o que se costuma chamar o "florescimento da escolástica". Na quarta, que compreende o século XIV, verifica-se a dissolução da escolástica pela reconhecida insolubilidade do problema que foi seu fundamento. Todavia, ainda que acabada como período histórico, a escolástica permanece actual para exprimir a exigência, para o homem que vive numa tradição religiosa, de compreender e justificar racionalmente essa mesma tradição. Esta exigência surge com frequência ao longo da história da filosofia. Outras formas de escolástica, recorrendo às formas filosóficas na altura dominantes, apresentar-se-ão no ulterior decurso do pensamento filosófico. 16 § 174. O RENASCIMENTO CAROLINGIO Os séculos VIII e IX -assinalam a concentração das forças sobreviventes da
cultura nos grandes impérios do Ocidente: o império árabe e o império carolíngio. Tanto um como o outro tomaram possível um -renascimento cultural. Carlos Magno, pela própria necessidade de garantir a unidade do seu império e de administrá-lo, necessidade que exigia o emprego de numerosos funcionários dotados de uma corta cultura, promoveu e encorajou os estudos. No período precedente, estes eram cultivados apenas nas regiões periféricas: por um lado, nas cidades da Itália meridional, como Nápoles, Amalfi e Salerno; por outro, nos mosteiros ingleses e irlandeses. Na época carolíngia converteramse no património das grandes Abadias, que exerceram a função que primeiramente havia pertencido às cidades. Nos fins do século VIII, a obra de Alcuíno foi o início da -reconstrução intelectual da Europa. Tendo nascido em 730 na Inglaterra, Alcuíno formou-se na escola episcopal de York; em 781 foi chamado pelo imperador Carlos Magno para dirigir a Escola Palatina e transformou-se no organizador dos estudos no império franco. Morreu no ano de 804. As obras de Alcuíno são quase exclusivamente constituídas por extractos tirados de outros autores. A sua Gramática foi obtida em Prisciano, Donato, Isidoro, Beda; a sua Retórica num texto de Cícero De inventione, a sua, Dialéctica num texto pseudo-agostiniano sobre as categorias. Mesmo o texto De animae ratione ad Eulaliam Virginem, que é o primeiro tratado de psicologia da Idade Média, não passa de uma série de extractos de Agostinho e Cassiano. Alcuíno é o grande organizador do ensino no reino franco. Foi ele quem ordenou os estudos segundo as sete disciplinas do trívio e do quadrívio, o a que chama as sete colunas da sabedor-ia (Patri. 17 Lat., 101, 853 c). No seu escrito teológico sobre a Trindade (De fide Sanctae et individuae Trinítatis, três livros), Alcuíno trata da essência divina, das propriedades de Deus, da trindade das pessoas, da encarnação e da redenção, mantendo-se em tudo fiel à especulação de Santo Agostinho. Tal como este, insiste na impossibilidade de se conceber e exprimir a essência divina, em relação à qual as categorias, que servem para compreender as coisas finitas, adquirem um novo significado. Em Deus tudo se identifica: o ser, a vida, o pensamento, o querer e o agir, e no entanto Ele é a simplicidade absoluta. Num escrito seu sobre a alma, dedicado à Jovem Eulália, Alcuíno define a alma como "o espírito intelectual ou racional, sempre em movimento, sempre vivo e capaz de boa ou má vontade>. A alma assume vários nomes consoante as suas funções: chama-se alma enquanto vivifica; espírito quando contempla; sentido enquanto sente; ânimo enquanto sabe; mente enquanto compreende; razão enquanto julga; vontade enquanto consente; memória enquanto lembra. Mas estas funções diversas não são próprias de várias substâncias, apesar de serem indicadas com nomes diferentes: constituem todas uma alma única (De animae ratione, 11). AIcuíno distingue nela três partes, de acordo com a doutrina platónica: a racional, a irascível e a apetitiva. As três partes da alma racional, memória, inteligência e vontade reproduzem a Trindade divina (segundo a doutrina de Agostinho). A alma é o fundamento da personalidade humana, mas o eu na sua totalidade pertence não só à alma como também ao corpo. A alma é incorpórea o como tal imortal. O seu bem mais @levado é Deus e o seu destino é o de amar a Deus. Para tal destino a alma prepara-se através das virtudes; e entre estas Alcuíno coloca não apenas as cristãs: fé,
esperança e caridade, como também as pagãs: pradêwia, 18 justiça, força e temperança, das quais dá definições platónicas de De officiis de Cicero. A obra de Alcuíno foi continuada pelos seus sucessores. Fredegiso, que lhe sucedeu como abade de S. Martinho de Tours e foi, a partir de 819, até 834, ano da sua morte, chanceler de Ludovico o Pio, compôs uma obra na qual se levantava a questão de se saber se o nada é alguma coisa ou não (De nihilo et tenebris). Fredegiso conclui que o nada de certo modo é; e de facto, se se nega ,isso, essa mesma negação é já alguma coisa e por isso o nada de certa maneira é (Patr. Lat., 105. ., 751). O próprio facto de o nada ter um nome demonstra a sua realidade, uma vez que um nome que não se refira a qualquer coisa real não pode ser pensado. A expressão bíblica de que o mundo foi criado do nada demonstra também a sua realidade; porque do nada procedem todos os elementos e ainda a luz, os anjos e as almas dos homens. Discípulo de Alcuíno foi Rabano Mauro. Nascido na Mogúncia no ano de 776 ou 784, foi primeiro professor e depois abade no mosteiro de Fulda; em 847 foi nomeado arcebispo de Mogúncia, onde morreu no ano de 856. Rabano é considerado como o escritor da Escola da Alemanha. Da escola de Fulda saíram um grande número de doutores que foram ensinar pelas províncias vizinhas o que haviam aprendido com o seu mestre. Um caso anedótico ;revela-nos a hostilidade de alguns eclesiásticos do tempo contra a cultura e a fama que Rabano tinha conquistado. O abade de Fulda apoderou-se um dia dos cadernos de Rabano e dos seus alunos e declarou que proibia para o futuro a introdução de qualquer novidade no mosteiro; além disso empregou os monges mais aplicados em trabalhos pesados e contínuos. Os monges apelaram para o rei que se pronunciou contra o abade. Rabano foi reintegrado na sua cátedra continuando a leccio19 nar. Os seus contemporâneos chamaram-lhe Rabano o Sofista. Rabano preocupou-se sobretudo com a educação filosófica e teológica do clero. Com este fim, compÔs três livros Sobre a instrução dos Clérigos (De institutione clericorum) que é uma compilação cujo material foi extraído dos Padres da Igreja, de Isidoro e de Beda. Rabano insiste na necessidade e importância do estudo das artes liberais e também dos filósofos pa gãos e em particular dos platónicos. Justifica a utilização da cultura profana com a teoria da injusta posse: "Se os filósofos disseram nos seus escritos coisas verdadeiras e que estão de acordo com a fé, não se deve recear e retomá-los como injustos possuidores" (111, 26). Na verdade, os filósofos descobriramnas enquanto guiados pela verdade, isto é, por Deus: por isso elas não lhes pertencem, mas a Deus. Num tratado De Universo, tirado em grande parte das Etimologias de Isidoro e da De natura reruni de Beda, recolheu um rico material profano de ciências naturais. Numa glosa às Categorias de Aristóteles, Rabano nega, referindo-se
à doutrina deste filósofo, a univocidade do ser, isto é, nega que o termo "ser" conserve o mesmo significado referindo-se a tudo o que existe, e afirma, em contrapartida, a sua equivocidade, a diversidade dos seus significados. A univocidade ou a equivocidade do ser devia converter-se, no século XIII, num dos ternas fundamentais da polémica filosófica. Um discípulo de Rabano, Servato Lupo, que foi abade de Ferrières desde 842 até falecer, em 862, tem em grande conta a cultura humanística e nas suas Cartas oferece o exemplo de um vivo interesse literário e filosófico. O seu tratado Sobre três questões trata do livre arbítrio, da predestinação e da Eucaristia, seguindo as pisadas dos padres e especialmente de Agostinho. 20 Da escola de Alcuíno saiu também Pascásio Radoberto, abade de Corbie desde 842 e falecido em 860. Pascásio compôs em 831 a obra De corpore et sanguine Domini. A sua obra maJor é um Comentário ao Evangelho de São Mateus. Na obra intitulada De fide, spe et charitate, distingue três espécies de coisas críveis. A primeira é a das que se podem crer imediatamente, como as coisas visíveis; a segunda, a das coisas que se podem crer e compreender ao mesmo tempo, como os axiomas e as verdades racionais. A terceira é a das coisas que a revelação ensina acerca de Deus; e estas não são simultaneamente críveis e compreensíveis, devem ser primeiramente cridas com todo o coração o com ,toda a alma, para depois serem compreendidas. Pascásio exprime assim aquela precedência da fé sobre a razão que devia ser a especulação de Anselmo. Um outro monge de Corbie, Godescalco, falecido entre 866 e 869, sustentou com particular energia, apesar das condenações de dois sínodos, a doutrina da dupla predestinação. Sustentava que Deus predestina tanto o bem como o mal e que alguns homens, pela predestinação divina que os constrange à morte espiritual, não podem corrigir-se do erro e do pecado, porque Deus os criou desde o princípio incorrigíveis e destinados ao castigo. Esta doutrina da dupla predestinação que era ensinada também pelo mestre de Godescalco, o monge Ratramno (falecido à volta de 868), foi combatida pelo arcebispo de Reims Hinchmar e que chegou ao nosso conhecimento precisamente através da refutação deste último. § 175. HENRIQUE E REMIGIO DE AUXERRE Henrique de Auxerre (841-876) foi discípulo de Servato Lupo e continuou a tradição humanística 21 do mestre. Com efeito, foi autor de uma Vita S. Germatú, em verso, que enriqueceu com glosas extraídas dos clássicos e também da Divisio Naiurae de João Escoto. A ele foram atribuídas algumas glosas marginais a um texto pseudo-agustiniano sobre as Categorias. Estas glosas apresentam uma tese que será a do conceptualismo posterior, isto é, que os conceitos universais não são realidades em si, e designam apenas as coisas particulares conhecidas pela experiência. A formação dos conceitos de género e espécie é feita por
uma exigência de economia mental. Uma vez que os nomes dos seres individuais são inumeráveis e o intelecto e a memória não bastam para conhecê-los e fixálos, formam-se os conceitos de espécie (por exemplo, homem, cavalo, leão), com os quais se podem reconhecer e recordar facilmente inumeráveis indivíduos. Mas como os conceitos de espécie são, por sua vez, inumeráveis e, por isso, em grande parte incognoscíveis, agrupam-se em conceitos mais amplos e menos numerosos, formando os conceitos de género, como animal ou pedra. Em seguida recorre-se a um grau mais elevado, a um conceito extensíssimo que permite designar com um só nome todos os seres: é o conceito de substância. Um discípulo de Henrique, Remígio de Auxerre (841-908) ensinou na escola de Auxerre todas as artes liberais e especialmente a gramática, a dialéctica e a música. Escreveu comentários às obras de gramáticos e poetas latinos; ao Génesis e aos S mos. O seu comentário a Marciano Capella possui significado filosófico. Ao contrário do seu mestre Henrique, Remígio inclina-se para o -realismo, ou seja, para a afirmação da realidade substancial dos conceitos. Remí gio sustenta que o conceito mais geral que a inteligência pode alcançar é o da essência, que compreende todas as naturezas; e que tudo o que existe, existe pela participação na essência. 22 A essência divide-se nos géneros e nas espécies até à última espécie, que é o indivíduo, o qual, como a própria palavra -indica, é indivisível. Segundo esta doutrina, que se relaciona com a de João Escoto, o indivíduo seria o resultado da repartição sucessiva de uma realidade universal. Igualmente se relaciona com o platonismo a doutrina de Remígio sobre o conhecimento humano. A natureza humana possui em si todas as artes; mas estas foram ocultas pelo pecado original e apenas podem ser reconquistadas mediante esforços fatigantes, que pouco a pouco as libertam das trevas que as encobrem à inteligência. Assim se explica que nem todos possam ser oradores, dialécticos ou músicos, apesar de todos possuírem em si as noções correspondentes. Com efeito, nem todos se empenham no esforço exigido para -trazerem de novo para a luz o saber originário obscurecido pelas trevas do pecado. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 173. A tentativa de compreender a escolástica do ponto de vista do conteúdo, como uma síntese doutrinal, foi levada a efeito por De Walf, Histoire de Ia phil. méd., (V. ediç. 1924 e ediç. post.) que colocou os fundamentos desta síntese na geração da comunidade entre o ser divino e o ser das criaturas, na afirmação do valor da personalidade humana, na existência de uma essência supra-material e na objectividade do saber humano. De Walf considerou anti-escolásticos os sistemas que se afastam destes fundamentos, por exemplo, o de Escoto Erigena, o panteísmo do sé culo XII, a averroísmo. Mas aqueles fundamentos são tão genéricos que não chegam para caracterizar a escolástica e explicar as suas mais importantes afirmações. Para o estudo da escolástica são fundamentais, além da Patrologia Grega e Latina de MIGNE, aS seguintes colecções de textos e estudos: BARACH e WORBEL, Bibliotheca philosophiae mediae aetatis BAEUMKER, Reitrage zur Geschichte der
Philosophie des Mittelal23 ters, textos e investigações, Mónaco, a partir de 1891; ElAuRÉAu, Notices et extraits de quelques manuscrits de Ia Bibliothêque Nationale, Paris, 18901893, 6. vols. Não se faz aqui referência às numerosas colecções nas quais existem e foram publicados textos e estudos de filosofia medieval (e que possivelmente poderão estar indicados nos instrumentos bibliográficos re@ferid4Ds) uma vez que tais textos e estudos serão indicados na nota bibliográfica referente a cada um dos filósofos. Obras de carácter geral sobre a escolástica: SOCKL, Geschichte der Philosophie des Mittelalters, 3 vols., Mogúncia, 1864-1866; HAuRÉAu, Histoire de Ia Philosophie scolastique, 2 vol., Paris, 1872-1880; PimVET, Essai d'une histoire générale et comparée des philosophies médiéval,es, Paris, 1905, 2.1 ed., 1913; BAEUMKER, Die ehristliche Philosophie des Mittelalters, in Allgem-eine Geshichte der Philosophie, Leipsig, 1913; GRABMANN, Geschichte der scholastischen Me@ thode, 2 vols., Freiburgo, 1909-1911; 1956 (ed. fotoestática); DUHEm, Le systême du monde, de Platon à Copernic, 10 vols., Paris, 1913-1959; GILSON, La Philosophi,e au Moyen Age, 1922, 1952; Wesprit de Ia philosophie médiévale, Paris, 1932, 1944; BRÉHIER, La philosophie du moyen áge, Paris, 1937; COPLESTON, A HistGry of Philosophy, H: Medieval Philosophy, Londres, 1958; VIGNAUX, La philosophie du moyen âge, Paris, 1958; VASOLI, La fiJ-osofia mediovale, Milão, 1961. Para bibliografia especial: UEBERWEG-GEYER, Die Patristische und scholastische Philosophie, Berlim, 1928; DE BRIE, Bibliographia Philosophica, 1934-1945; 2 vols., Bruxelas, 1950-1954; MOSCIIETTi, Bibliografia critica general per Ia storia del pensiero cristiano, in Grande Antologia Filosofica, III, Milão, 1954; VASOLI, Op. Cit. Para ulteriores actualizações bibliográficas: Repertoire Bibliographique de Ia Revue Philosophique de Louvain. § 174. Sobre o renascimento carolíngio: BRUNHES, La foi chrétienne et Ia philosophie au temps de Ia renaissance carolingienne, Paris, 1903; PiRENNE, Mahomet et Charlemagne, Paris, 1937. As obras de AIcuino em Pat. Lat., 100.,_101.o_ E. M. WILMONT-13UXTON, Alcuin, Londres, 1922. O texto de Fredegiso em Pat. Lat., 105.1, 751-756. -GEYMONAT, 1 problemi del nulila e delle- tenebre in Fredegiso di Tours, in Saggi di filosofia neorazionalistica, Turim, 1953, p. 101-111. 24 ALCUINO As obras de Servato Lupo in Pat. Lat., 119.1, 431-700.
As obras de Pascásio Radúberto in. Pat. Lat., 120.o. As obras de Ratramno in Pat. Lat., 121.o, 13-346. As obras de I-linkmar in Pat. Lat., 125.---126.o. Sobre este autor: J. A. ENDRES, em "Beitrage", XVII, 2-3. § 175. De Henrique de Auxerre, La vita de San Germano, editada em "Mon. Germ. Hist.". Poeti Latini dell'evo carolingio, M, 428-517. Excertos das glosas ao texto pseudo-agustiniano em Cousin, inédits d'Abélard, p. 621, e HAUREAu, De Ia phil. schal., I, p. 131-143. De Remígio os Comentários in Pat. Lat., 131.1, 51-134.-J. BURNAM, Commentaire anonyme sur Prudence d'après de ms. 413 de Valenciennes, Paris, 1910. 25 11 JOÃO ESCOTO ERÍGENA § 176. JOÃO ESCOTO: A PERSONALIDADE HISTÓRICA Inesperadamente aparece, na primeira metade do século IX, a grande figura de João Escoto. Na pobreza cultural e especulativa do seu tempo, este homem dotado de um espírito extremamente livre, de excepcional capacidade especulativa e vasta erudição greco-latina, surge como um milagre. Através de Santo Agostinho, João Escoto relaciona-se como o mais genuíno espírito da investigação filosófica, tal como havia surgido na idade clássica da Grécia. Erígena tem consciência das exigências soberanas da investigação e afirma-as decididamente. Quando tropeça com a realidade incompreensível de Deus ou da essência das coisas, não afasta as armas dialécticas nem prescreve o abandono, à fé, mas volta a assumir a mesma incompreensibilidade no âmbito da investigação, dialectiza-a e faz dela um elemento de clareza. A razão preguiçosa, que neste período da história da filosofia descobre tantas formas de entrincheirar-se por detrás das exigências da fé, não consegue assenhorear-se dele. 27 A obra de João Escoto teve uma importância decisiva para a ulterior evolução da escolástica. As suas fontes principais são as obras de Santo Agostinho, do Pseudo-Dionísio (que o próprio Escoto traduziu do grego) e dos Padres da Igreja, especialmente de S. Gregório e S. Máximo. Em toda a especulação posterior, não há filósofo da escolástica que não se relacione com ele directa ou poa. O papa Honório 111, -numa Bula de 23 de Janeiro de 1225, condenou a sua obra-prima: De divisione naturae. Muitos doutores escolásticos, antes e depois da condenação, entram em polémica contra as suas afirmações; mas a sua especulação assinala em todos os pontos um marco fundamental na filosofia escolástica. § 177. JOÃO ESCOTO: VIDA E OBRA João Escoto é chamado Erígena devido ao facto de ter nascido na Irlanda (Eriu-Erin, Irlanda). A data do seu nascimento deve andar à volta de 810. Não
se sabe com precisão o ano em que se dirigiu a França, para a corte de Carlos o Calvo; mas deve ter sido nos primeiros anos do reinado deste rei. Com efeito, Escoto Erígena participou na controvérsia teológica suscitada pela tese do monge Godescalco sobre a predestinação, ora a condenação de Godescalco verificou-se em 853, depois de largos e solenes debates. Muito provavelmente, a vinda de João Escoto para França foi anterior ao ano de 847. Carlos o Calvo nomeou-o director da Academia do Palácio, a Schola Palatina, em Paris; a convite do mesmo rei, Erígena traduz as obras de Dionísio o Areopagita, cujos textos o imperador bizantino, Miguel Balbo, tinha oferecido a Ludovico Pio no ano de 827. O papa Nicolau 1 queixou-se ao rei do facto de Erígena não haver submetido essa tradução à censura eclesiástica antes de a publi28 car e quis instaurar um processo contra as heresias que a mesma continha. Depois da morte de Carlos o Calvo, no ano de 877, não há notícias seguras sobre João Escoto. Segundo alguns, teria morrido em França nesse mesmo ano; segundo outros, teria sido chamado pelo rei Alfredo o Grande, para a escola de Oxford e, mais tarde, como abade de Malmesbury ou de Athelney, teria sido assassinado pelos monges. A actividade filosófica de João Escoto pode ser dividida em dois períodos. No primeiro período, Escoto Erígena inspirou-se sobretudo nos Padres latinos, isto é, em Gregório Magno, Isidoro e especialmente em Santo Agostinho. A este período pertence o texto contra o monge Godescalco: De divina praedestinatione. Num segundo período, Erígena sofre a influência dos teólogos e filósofos gregos. Em 858, traduz os textos do Pseudo-Dionísio o Areopagita; em 864, os Ambígua de Máximo o Confessor e o texto De hominis opificio de Gregório de Nisa. Estes trabalhos guiaram-no na criação da sua obra-prima, a De divisione naturae, em cinco livros. Escrita em forma de diálogo entre mestre e aluno, é o primeiro grande texto especulativo da Idade Média. Esta obra denuncia já o carácter da investigação escolástica: o método apriorístico ou dedutivo que o autor maneja com grande mestria. As glosas de Erígena aos Opuscula theologica de Boécio, são o comentário mais antigo aos escritos teológicos de Boécio. Muito conhecidas na Idade Média, mas nunca impressas, deviam ter sido escritas nos últimos anos da sua vida, à volta de 870, e apresentam com a Divisio naturae a mesma relação que existe entre as Retractationes e as outras obras de Santo Agostinho. A cultura e capacidade especulativa de João Escoto colocam-no acima do nível dos seus con29 temporâneos. Não só conhece o grego e o traduz, como adquire dos escritores e do espírito grego, grande liberdade tanto no campo da investigação como da orientação especulativa. § 178. JOÃO ESCOTO: FÉ E RAZÃO
O pressuposto da investigação de João Escoto é o acordo intrínseco entre razão e fé; entre a verdade a que chega a lIvre investigação e a que é revelada ao homem pela autoridade dos Livros Sagrados e dos escritores iluminados. "Não há salvação para as almas dos fiéis se não em crer no que se diz com verdade sobre o único princípio das coisas, e em entender o que com verdade se crê" (De div. nat., 11, 20). A autoridade das Sagradas Escrituras é indubitavelmente indispensável ao homem, porque só elas podem conduzi-lo aos lugares secretos em que reside a verdade (1, 64). Mas o peso da autoridade não deve, de forma alguma, afastá -lo daquilo que a recta razão o persuada. "A verdadeira autoridade não cria obstáculos à recta razão, nem a recta razão cria obstáculos à autoridade. Não há dúvida de que ambas dimanam de uma fonte única, isto é, da sabedoria divina" (1, 66). Mas a dignidade maior e a prioridade da natureza correspondem à razão, e não à autoridade. A razão nasceu no princípio dos tempos, juntamente com a natureza: a autoridade nasceu depois. A autoridade deve ser aprovada pela razão, de contrário poderá não parecer sólida: a razão não precisa de ser apoiada ou corroborada por qualquer autoridade. Em suma, a própria autoridade nasce da razão, porque a verdadeira autoridade não é mais que a verdade descoberta pela razão dos Santos Padres e por eles transmitidas por escrito em benefício da posteridade (1, 69). E João Escoto coloca na boca 30 do mestre, que é o principal interlocutor do diálogo, um enérgico convite à livre investigação: "Devemos, seguir a razão que procura a verdade e não está oprimida por qualquer autoridade e que de nenhuma maneira pode impedir que seja publicamente exposto e difundido aquilo que os filósofos procuram assiduamente e com dificuldade conseguem encontrar" (11, 63). Esta enérgica afirmação da liberdade de investigação, que faz de Escoto Erígena um sobrevivente exaltado do espírito filosófico dos gregos, não implica neste autor qualquer limitação ou negação da religião. E isto porque a religião não se identifica com a autoridade, mas com a investigação. Religião e filosofia são uma e a mesma coisa: "Que significa -lidar com a filosofia senão expor as regras da verdadeira religião, por meio das quais a suma o principal causa de todas as coisas, isto é Deus, é humildemente adorada e racionalmente investigada? (De praedest., 1). João Escoto, neste ponto, está muito próximo do espírito de investigação agustiniana, para a qual a fé é mais um ponto de chegada que de partida, e no término da longa e laboriosa via da investigação, e muito mais um princípio, uma direcção, um guia da investigação, do que um limito ou um obstáculo. E de facto, o pressuposto agustiniano da Verdade suprema, que se revela e afirma na investigação humana, volta a repetir-se- em Escoto Erígena. A natureza humana considerada por si, é uma substância em trevas que, não obstante, é capaz de participar da luz da sabedoria. Quando o ar participa do raio solar não significa que o mesmo seja luminoso por si, mas pelo esplendor do sol que nele aparece. Assim acontece com a parte racional na nossa natureza quando participa do Verbo, ou seja, da Verdade divina, que por si só não compreende as coisas inteligíveis e Deus e apenas as conhece por inter31 médio da luz divina que nela existe (De div. nat.,
11, 23). Na investigação humana quem encontra, não é o homem que procura, mas a luz divina que no homem procura. A palavra de Jesus, segundo S. João: "Não sois vós que falais é Deus que fala em vós" é entendida por Escoto da seguinte forma: "Não sois vós que me compreendeis, sou Eu que mo compreendo a Mim próprio em vós, através do meti espírito" (Hom. in Joh., p. 291-A). § 179. JOÃO ESCOTO: AS QUATRO NATUREZAS O título da obra principal de João Escoto: * divisão da natureza é de pura origem platónica. * "divisão" a que se refere significa a operação fundamental da dialéctica platónica, operação que Erígena defende como constitutiva da própria estrutura da natureza; e a "natureza", segundo os ensinamentos do Parménides e do Sofista, é o conjunto do ser e do não ser. Retomando um modelo de Santo Agostinho (De civ. Dei, V, 9). Erígena divide * natureza em quatro partes. A primeira natureza cria e não é criada: é ela * causa de tudo o que é e que não é. A segunda é criada e cria, constitui o conjunto das causas primordiais. A terceira é criada e não cria e corresponde ao conjunto de tudo o que é gerado no espaço e no tempo. A quarta não cria nem é criada, é o próprio Deus, como fim último da criação (De div. nat., 1, 1). Faz parte destas quatro naturezas não só tudo o que é, como também tudo aquilo que não é. Pelo não-ser, não se entende o nada, mas a negação das várias determinações possíveis do ser. Deste modo poderá afirmar-se que não são as coisas que escapam aos sentidos e ao intelecto; ou as coisas infe32 riores em relação às coisas superiores e celestes, ou as coisas futuras que ainda não são; ou as que nascem e morrem; ou, em suma, as que transcendem o entendimento e a razão. To-das as coisas deste género, de certa forma, não são: todavia não se identificam com o nada e, constituem parte da realidade universal a que Escoto chama natureza (1, 3 e segs.). As quatro naturezas constituem o círculo vital do ser divino: "Em primeiro lugar, Deus descende da super-essencialidade da sua natureza, na qual deve dizer-se que Ele não é; criado por si próprio nas causas primeiras, convertese em princípio de toda a essência, de toda a vida, de toda a inteligência, o que a teoria gnóstica considera como causas primordiais. Em segundo lugar, ele desce às causas primordiais que estão entre Deus e a criatura, entre a inefável super-essencialmente de Deus, que transcende toda a inteligência e a natureza que se manifesta aos que têm um espírito puro; encontra-se no efeito das causas primordiais e manifesta-se abertamente nas suas teofanias. Em terceiro lugar, procede através das formas múltiplas de ta-is efeitos até à última ordem da natureza inteira que contém os corpos. Deste modo, procedendo ordenadamente em todas as coisas, cria todas as coisas e acaba por ser tudo em tudo; e volta a si próprio, chamando a si todas as coisas, e apesar de se encontrar em todas as coisas, não deixa de estar acima de tudo" (111, 20).
Este círculo, pelo qual a vida divina procede a constituir-se constituindo todas as coisas e com elas torna a si própria, é o pensamento fundamental de João Escoto. Nele se encontra contida e determinada a relação entre Deus e o mundo. O mundo é o próprio Deus, enquanto teofania ou manifestação de Deus; mas Deus não é o mundo, porque 33 ao criar-se e converter-se em mundo, se mantém acima dele. § 180. JOÃO ESCOTO: A PRIMEIRA NATUREZA: DEUS A primeira natureza é Deus, na medida em que não tem princípio, e é a causa principal de tudo o que procede d'Ele. Com efeito, Deus é o princípio, o meio e o fim: é princípio na medida que d'Ele derivam todas as coisas que participam da essência; é o meio, na medida em que n'Ele e por Ele subsistem e se movem todas as coisas; é o fim, na medida em que todas as coisas se movem para Ele, em busca do repouso do seu movimento e da estabilidade da sua perfeição (1, 11). Como princípio, meio e fim, a natureza divina não se limita a criar, é também criada. É criada por si própria nas coisas que ela própria cria, tal como o nosso intelecto se cria a si próprio através dos pensamentos que formula e das imagens que recebe dos sentidos (1, 12). Deus é incriado, no sentido em que não é criado por outro; como tal está acima de todos os seres e não pode ser compreendido nem definido adequadamente. É unidade, mas unidade inefável que não se encerra esterilmente na sua singularidade; articula-se em três substâncias: a substância ingénita, o Pai; a substância génita, o Filho; a substância procedente da ingénita e da génita, o Espírito Santo. João Escoto vai buscar ao Pseudo-Dionísio, a distinção das duas teologias: a positiva e a negativa. A primeira afirma de Deus todos os atributos que lhe correspondem. A outra nega que a substância divina possa ser determinada mediante os caracteres das coisas que são; isto é: que possa ser de algum modo compreendida ou exprimida. Mas os mesmos caracteres que a teologia positiva atribui a Deus assumem nesta referência um valor diferente daquele que possuem quando se 34 referem às coisas criadas. Deus não é propriamente essência, mas superessência; não é verdade, mas supra-verdade, e o mesmo se deve dizer de todos os caracteres positivos que possam ser atribuídos a Deus. De modo que a própria teologia positiva é na realidade negativa; a menos que não se lhe queira chamar positiva e negativa ao mesmo tempo; uma vez que, dizer que Deus é a super-essência, equivale a afirmar e negar ao mesmo tempo que ele seja essência (1, 14). É certo que a Deus não se pode atribuir nenhuma das categorias aristotélicas que, referidas a ele, assumem um significado diferente. Se Deus caísse no âmbito de algumas categorias seria um género (como, por exemplo, animal). Ora Deus não é nem género nem espécie nem acidente e, deste modo, nenhuma categoria pode propriamente qualificá-lo (115). A conclusão é de que tudo o que a razão humana pode conseguir em relação a Deus é demonstrar que nada se pode propriamente afirmar d'Ele. "Ele supera
todo o entendimento e todo o significado sensível e inteligível, de modo que o conhecemos ignorando-o, e a ignorância acerca dele é a verdadeira sapiência" (1, 66). Mas se Deus é inacessível como natureza supra-essencial revela-se por si próprio na criação, que é uma contínua manifestação d'Ele ou teofania. A essência divina, que é em si incompreensível, manifesta-se nas criaturas intelectuais e é possível conhecê-la nelas. Teofania é o processo que desce de Deus ao homem através da graça, para regressar do homem a Deus, com o amor. Teofania significa, também, toda a obra de criação, enquanto manifeste a essência divina, que deste modo se torna visível nela e através dela (1, 10; V, 23). Cada uma das pessoas divinas tem a sua própria função no processo da teofania. O Pai é o criador de tudo, o Filho cria as causas primordiais das coisas que 35 subsistem nele de forma universal e simples; o Espírito Santo multiplica estas causas primordiais nos seus efeitos; isto é, distribui-as por géneros e espécies, por números e diferenças, quer se trate das coisas celestiais, quer das sensíveis (11, 22). § 181. JOÃO ESCOTO: A SEGUNDA NATUREZA: O VERBO A segunda natureza, a que é criada e cria, corresponde à segunda pessoa da Trindade. Contém as ideias e as formas das coisas; é portanto o Verbo divino, através do qual todas as coisas foram criadas. Escoto interroga-se sobre o valor causal que podem ter as formas subsistentes no Verbo divino; se os corpos do mundo são formados por elementos que foram criados do nada. Se o nada fosse efectivamente a origem de tais corpos, teria sido também a sua causa. Sendo assim, o nada seria melhor que as próprias coisas de que foi causa, uma vez que a causa é sempre superior ao efeito. Escoto resolve a dificuldade afirmando que os elementos que compõem o mundo não foram criados pelo nada, mas pelas causas primordiais. E volta a levantar o problema a propósito destas últimas. Teriam sido estas criadas do nada? Escoto responde que também estas não foram criadas do nada; sempre estiveram com o Verbo porque são coessências. A criação do nada não se refere às causas primordiais, nem tão-pouco às coisas que dependem delas. O nada não encontra lugar nem dentro nem fora de Deus. O facto de as coisas terem sido criadas do nada significa apenas que existe um sentido no qual não são: com efeito, as coisas tiveram um princípio no tempo através da geração e antes desta não apareciam nas formas nem nas espécies do mundo sensível. Mas, noutro sentido, são sempre, já que subsistem como causas primordiais no Verbo 36 divino, na qual nunca começam ou deixam de existir (111, 15). A teofania divina começa nas causas primeiras que subsistem no Verbo. Para elas, o próprio Criador é criado por si mesmo e por si se cria, isto é, começa por surgir nas. suas teofanias, a emergir dos recessos da sua natureza o a descer aos princípios e às coisas, começando assim a existir juntamente com elas (111, 23). João Escoto, ao longo de toda a sua obra, insiste na identidade essencial das criaturas com o Criador, na permanência da criatura na própria
essência do Criador, ria presença substancial deste naquelas. O mundo é o próprio Deus na sua auto-revelação. Tal é o princípio que domina toda a especulação de Erígena. Deus não pode, certamente, subsistir antes do mundo. Deus precede o mundo, não no tempo, mas apenas racionalmente enquanto causa dele. Mas não começa a ser causa num momento dado, uma vez que é essencialmente causa e, embora não fosse causa se não criasse o mundo, a sua criação deve ser eterna, co-eterna com Ele (111, 8). "Deus não existia antes de criar todas as coisas" Q, 72) afirma Escoto. § 182. JOÃO ESCOTO: A TERCEIRA NATUREZA: O MUNDO A terceira natureza, criada e não criadora, é o próprio mundo-o conjunto universal das coisas sensíveis e não sensíveis que procedem das causas primeiras pela acção distributiva e multiplicadora do Espírito Santo. Escoto -sustenta que todos os corpos do mundo são constituídos de forma e matéria. A matéria, quando privada de forma e de cor, é invisível e incorpórea e é por isso, objecto não dos sentidos mas da razão. É resultado do conjunto das diversas qualidades, por si mesmas incorpóreas, que a cons37 tituem reunindo-se conjuntamente: e transforma-se nos distintos corpos à medida que se lhe juntam as formas e as cores (111, 14). Também a terceira natureza, isto é, o mundo, não se distingue na realidade do Verbo divino. A razão, afirma energicamente Escoto, obriga-nos a reconhecer que no Verão não só subsistem as causas primeiras, como ainda os seus efeitos, e do mesmo modo, nele se encontram os lugares e os tempos, as substâncias, os géneros e as espécies, até as espécies especialíssimas representadas pelos indivíduos com todas as suas qualidades naturais. Numa palavra, subsiste no Verbo tudo o que está reunido no universo das coisas criadas, tanto o que é compreendido pelos sentidos, ou pela inteligência humana ou angélica, como o que transcende os sentidos e a própria mente (111, 16). O mundo foi certamente criado: afirma-o a Sagrada Escritura. O mundo é certamente eterno, porque subsiste no Verbo; afirma-o a razão. De que maneira se conciliam criação e eternidade, é problema que a mente humana não pode resolver. Mas, na realidade, talvez o problema seja mais aparente do que real. As coisas que subsistem no espaço e no tempo e estão distribuídas nos géneros e nas formas do mundo sensível não são, em verdade, distintas das causas primeiras que subsistem em Deus, e são o próprio Deus. Não se trata de duas substâncias diversas, mas de dois modos diversos de entender as mesmas substâncias; na eternidade do Verbo divino, ou na vida do tempo. Assim, não há duas substâncias "homem", uma como causa primordial, o outra individuada no mundo; mas uma só substância, que pode ser entendida de dois modos, ou na sua causa intelectual, ou nos seus efeitos criados. Entendida da primeira forma, está livre de toda a mutabilidade; entendida da segunda, surge formada por qualidades 38 e quantidades diversas e é susceptível de ser conhecida pela inteligência
(IV, 7). Vê-se assim, que Deus não é apenas o princípio, mas também o fim das coisas. A Ele, portanto, retornarão as coisas que dele saíram e nele se movem e estão. A Sagrada Escritura ensina claramente o fim do mundo e é por outro lado evidente, que tudo o que começa a ser o que antes não era, deixará também de ser o que é. Pois bem, se os princípios do mundo são as causas de que saiu, estas mesmas causas serão o último termo do seu retorno. O mundo não será reduzido ao nada, mas às suas causas primeiras; e, uma vez terminado o seu movimento, será conservado perpetuamente em repouso. Pois bem, as causas primeiras do mundo são o próprio Verbo divino: ao Verbo divino voltará, portanto, o mundo quando chegar o seu termo. Uma vez reunido a Deus, para o qual tende no seu movimento, o mundo não terá um fim ulterior a atingir o necessariamente repousará. Por isso o princípio e o fim do mundo subsistem no Verbo de Deus e são o próprio Verbo (V, 3, 20). Se a tese típica do panteísmo é de que Deus é a substância ou a essência do mundo, não há dúvida de que a doutrina de Escoto é um rigoroso panteísmo. "Deus está acima de todas as coisas e em tudo, disse Escoto, só Ele é a essência de todas as coisas porque só ele é; e, sendo tudo em tudo, não deixa de ser tudo fora de todas as coisas. Ele é tudo no mundo, tudo ao redor do mundo, tudo ria criatura sensível, tudo na criatura inteligível, é tudo ao criar o universo, torna-se tudo no universo, está todo em todo o universo, está todo nas várias partes deste, porque ele é o todo e a parte e não é nem o todo nem a parte" (IV, 5). Constantemente, o panteísmo, quer na filosofia medieval quer na moderna, assumiu como princípio seu a tese-deste modo expressa,-de que Deus é 39 a substância do mundo. Por outro lado, poderá compreender-se que uma outra enérgica afirmação de Escoto Erígena, a de que Deus está fora de todo o universo e que não é nem o todo nem a parte, possa ser assumida como prova do carácter não panteísta da sua doutrina. § 183. JOÃO ESCOTO: O CONHECIMENTO HUMANO O homem interior é uma imagem da Trindade divina. Escoto retoma e desenvolve, à sua maneira, este pensamento de Santo Agostinho. As três pessoas divinas relacionam-se entre si como a essência (Ousia,) a potência (Dytzaniis) e o acto (Energheia). Na alma humana, a essência é a inteligência ou nous, que é a parte mais elevada da nossa natureza e pode perceber Deus e as coisas nas suas causas primordiais. A razão ou logos corresponde à virtus ou dynamis e refere-se aos princípios das coisas que vêm imediatamente a seguir a Deus. O sentido interior ou dianoia corresponde ao acto ou energheia e diz respeito aos efeitos, visíveis ou invisíveis, das causas primordiais. Este sentido interior é essencial à razão e ao entendimento, apesar de o sentido interior, que se serve dos cinco órgãos e reside no coração, pertencer mais ao corpo do que à alma e perecer com a dissolução do corpo (11, 23). A estas três partes da alma correspondem três movimentos diversos: segundo a alma, segundo a razão, segundo os sentidos. O primeiro movimento é aquele
mediante o qual, a alma se move até ao Deus desconhecido, para além de si própria e de toda a criatura. Através deste primeiro movimento, Deus aparece à alma como transcendente a tudo o que é e como absolutamente indefinível. O segundo movimento é aquele pela qual a alma define o Deus desconhecido como causa de todas as coisas, por40 ANSELMO DE AOSTA que nele estão as causas primordiais. O terceiro movimento é o que diz respeito às razões das coisas singulares. Parte das imagens recolhidas pelos sentidos externos e, a partir dessas imagens, ergue-se até às razões ú ltimas das coisas das quais são imagens. Através deste movimento, a própria imagem sensível transfigura-se. De imagem impressa nos órgãos dos sentidos, transforma-se em imagem que a alma sente em si como própria; é precisamente desta imagem espiritualizada que a alma parte para ascender até às razões eternas das coisas (11, 23). A correspondência entre a alma e Deus estende-se também àquilo que diz respeito ao conhecimento que a alma tem de si própria. Como Deus é cognoscível. através das suas criaturas, mas incompreensível em si próprio, já que nem ele próprio nem outro pode entender que coisa seja, uma vez que não possui um quid, uma essência determinada que se possa entender, assim a alma humana sabe que é, mas de nenhuma maneira pode conhecer aquilo que é. E isto não é um limite ou uma imperfeição da própria mente. Assim como a melhor maneira de aproximarmo-nos de Deus não é a afirmação mas a negação, não é o conhecimento mas a ignorância, porque Deus, não tendo limites, não pode ser definido nem restringido a uma essência determinada; também se à alma fosse possível conhecer a sua própria essência, isso significaria a possibilidade de circunscrevê-la e implicaria a sua dissemelhança com o Criador (IV, 7). § 184. JOÃO ESCOTO: DIVINDADE DO HOMEM Circula em toda a obra de João Escoto o sentido do valor superior e divino do homem. O pessimismo próprio dos pensadores cristãos, e até de 41 Santo Agostinho, sobre a natureza e o destino do homem, parece atenuar-se neste filósofo até se transformar em exaltação do homem, das suas capacidades e do seu êxito final. "0 homem, afirma, não foi chamado imerecidamente fábrica de todas as criaturas; com efeito, todas as criaturas se contêm nele. Compreende como o anjo. raciocina como homem, sente como animal irracional, vive como o verme, compõe-se de corpo e alma e não carece de nenhuma coisa criada". Em certo sentido, o homem é superior ao próprio anjo que, por carecer de corpo, não tem sensibilidade, nem movimento vital (111, 37). Muito significativas são as considerações que Escoto tece, com visível complacência, em torno do tema "se o homem não pecasse ... ". Se o homem não pecasse seria de certo omnipotente como Deus. Com efeito, nada o separaria de Deus, e ele, que é a imagem de Deus, participaria totalmente na perfeição do
seu modelo. Pelo mesmo motivo, seria omnisciente, porque, tal como Deus, conheceria nas suas causas primordiais todas as coisas criadas. Se o primeiro homem não tivesse pecado, a semelhança entre a natureza angélica e a humana ter-se-ia transformado numa identidade, e o homem e o anjo ter-se-iam convertido numa mesma coisa. E isto explica-se porque a mesma identidade se estabelece entre homem e homem, quando reciprocamente se compreendem. "Se, afirma Escoto, eu compreendo 9 que tu compreendes, converto-me no teu próprio entendimento e de certa maneira inefável, converto-me em ti próprio. E quando tu compreendes o que, eu compreendo, convertes-te no meu entendimento, e dos dois entendimentos resulta um só, constituído por aquilo que ambos sincera e correctamente compreendemos. Porque o homem é verdadeiramente o seu entendimento, o qual se especifica e individualiza pela contemplação da verdade (IV, 9). 42 A perfeição do homem é tão grande que nem mesmo o pecado original chega para destruí-Ia. Com elo o homem não perdeu a sua natureza que, enquanto imagem de Deus, é necessariamente incorruptível; perdeu apenas a felicidade, à qual estava destinado se não houvesse desprezado o mandamento divino. "É preciso afirmar, diz Escoto, que a natureza humana, feita à imagem de Deus, nunca perdeu a força da sua beleza e a integridade da sua essência e nunca poderá perdê-las. Uma forma, divina como é a alma, permanece sempre incorruptível, além do mais, torna-se capaz de suportar a pena do pecado" (V, 6). Com o mesmo optimismo Escoto considera o destino último do homem. A morte é para o homem o princípio de uma ascensão que o leva a identificar-se com Deus. Não há morte para o homem, mas o retorno a um estado antigo que perdeu ao pecar. A primeira fase deste retorno a Deus dá-se quando o corpo se dissolve nos quatro elementos de que é formado. A segunda fase é a ressurreição, na qual cada um receberá de novo o seu corpo, através da reunião dos quatro elementos. Na terceira fase, o corpo transformar-se-á em espírito. Na quarta fase, toda a natureza humana voltará às suas causas primordiais, que subsistem em Deus de forma imutável. Na quinta fase, a natureza humana, juntamente com as suas causas, mover-se-á em Deus "como o ar se move na luz" (V, 8). Este triunfo final da natureza humana não será, no entanto, uma anulação em Deus. O dissolver-se místico do homem em Deus está excluído por João Escoto. O destino da natureza humana não é o de perder-se no ser divino, mas o de permanecer na sua verdadeira substância, de reintegrá-la nas suas causas primordiais e de subsistir na sua total perfeição o âmbito do ser divino, como o ar na luz. O misticismo neoplatónico é aqui corrigido 43 pelo sentido do carácter irredutível da natureza humana, carácter pelo qual conserva, mesmo perante Deus, e em virtude de Deus, a sua autonomia substancial.
§ 185. JOÃO ESCOTO: O MAL E A LIBERDADE HUMANA Esta mesma posição leva João Escoto a modificar a doutrina agustiniana da liberdade humana. De Santo Agostinho, retoma o ponto de partida para a sua doutrina do mal. Que o mal não é uma realidade, mas uma negação da realidade, é para Escoto Erígena um pressuposto evidente. Deste pressuposto tira a conclusão de que Deus não conhece o mal. Com efeito, o conhecimento divino é imediatamente criador: Deus não conhece as coisas que são, porque são: mas as coisas são porque Deus as conhece. A causa da sua essência é a ciência divina. Tudo o que é, é pensamento divino. O homem é definido por Escoto como "uma noção intelectual eternamente criada na mente divina"; e esta mesma definição aplica-se a tudo o que existe (IV, 7). Daqui se conclui que se Deus conhecesse o mal, se o mal fosse um pensamento divino, o mal seria real no mundo (11, 28). Mas o mal não é real. Não é algo substancial e as próprias aparências sedutoras de que se reveste perante os homens maus, não são por si, más. Um objecto belo e precioso que inspira ambição no avarento pode inspirar, pelo contrário, admiração desinteressada no homem sábio. Não é, portanto, a aparência bela que leva ao pecado e é por si o mal, mas a disposição maléfica daquele que a contempla (IV, 16). Do mal, que não é realidade, não há portanto em Deus presciência; nem tão-pouco predestinação. A pena que recai sobre o que peca não foi predestinada por Deus; pois também ela é dor e privação, e não uma realidade 44 positiva. A pena é consequência do pecado e segue-se como se estivesse ligada a ele por uma corrente; mas nem a pena, nem o pecado subsistem na mente divina, na qual apenas encontra lugar o ser e o bem (De praedest., 15, 8). Quando as Sagradas Escrituras falam de predestinação ou de presciência divina do mal, há que entender estas expressões no sentido com que nós costumamos saber que, depois do sol se pôr vêm as trevas, que o silêncio vem depois das aclamações e a tristeza depois da alegria. Mas as trevas, o silêncio, a tristeza, não são mais que noções negativas e indicam. apenas a ausência das realidades -positivas correspondentes (ibid., 15, 9). Para Escoto, tal como para Santo Agostinho, o mal reduz-se ao pecado, à deficiência ou ausência de vontade. Mas enquanto para Santo Agostinho a vontade livre é unicamente a vontade do bem, para Escoto Erígena a vontade livre é o livre arbítrio, capaz de decidir-se quer pelo bem, quer pelo mal. É certo que a causa do pecado está na mutabilidade da vontade. Esta mutabilidade, que é causa do mal, é certamente ela própria um mal (Do div., nat., IV, 14). Mas sem ela o homem não seria verdadeira e plenamente livre. Se Deus tivesse dado ao homem apenas a capacidade de querer o bem e de viver de acordo com a justiça, de forma a que o homem só se pudesse mover numa direcção, o homem não sena absolutamente livre, mas apenas livre em parte e em parte não livre. Ora uma liberdade parcial não é possível. Se mesmo numa parte mínima o homem não é livre, ele é absolutamente não-livre. Um livre arbítrio que oscila não pode permanecer de pé (De praedest., 5, 8). Se se afirma que não viria dano ao homem pelo facto de possuir um livre arbítrio claudicante, poderá objectar-se que sem um verdadeiro e total livre arbítrio a justiça divina não poderia exercer-se. Uma vez que a jus-
45 tiça consiste em dar a cada um o que é seu, e da parte de Deus em reconhecer a cada homem o mérito de haver obedecido aos seus preceitos. Mas que significado poderiam ter esses preceitos para um homem que apenas pudesse fazer o bem? Deus teve portanto, que dar ao homem um livre arbítrio pelo qual ele pudesse pecar ou não pecar. Só um livre arbítrio assim criado torna o homem capaz de usufruir livremente a ajuda que lhe oferece a graça divina (Ibid., 5, 9). A liberdade do homem consiste portanto na possibilidade de pecar ou não pecar, uma vez que só essa possibilidade torna o homem susceptível de ser premiado ou castigado segundo um juízo. E como só a vontade dotada de livre arbítrio é responsável pelo pecado, só a vontade pode ser castigada por Deus. Também os juízes humanos, se não são impelidos pela sede de vingança, têm em vista a correcção dos réus e castigam não a sua natureza, mas apenas os seus delitos. Do mesmo modo, a punição divina do pecado dirigese apenas à vontade que cometeu o pecado, mas deixa íntegra e salva a natureza do pecador, que permanece capaz de regressar a Deus, no triunfo final (V, 31). Para este triunfo o homem é ajudado tanto pela sua natureza como pela graça divina. O homem deve à própria natureza o haver sido retirado do nada e existir; à graça deve a sua deificatio pela qual regressa à substância divina. A natureza é dada, a graça é um dom gratuito, concebido pela divina bondade sem que tenha havido mérito por parte do homem. § 186. JOÃO ESCOTO: A LóGICA De acordo com a orientação platonizante do sistema, a lógica de Escoto Erígena é realista: pressupõe a realidade objectiva de todas as deter46 minações lógicas universais, de todos os conceitos de género e espécie. Está no espírito de uma lógica que quanto mais um conceito é universal, tanto maior é a sua realidade objectiva; assim os conceitos dos géneros supremos são mais reais que os dos géneros menos extensos; e os conceitos de género são mais reais que os conceitos de espécie, nos quais todo o género se subdivide; enfim, as espécies especialíssimas, isto é, os indivíduos, têm uma -realidade menor que as espécies superiores ou mais extensas. Comentando uma passagem bíblica, Escoto afirma que Deus criou primeiro o género, porque nele se contêm e estão reunidas todas as espécies; o género divide-se em seguida e multiplica-se nas formas gerais e nas espécies especialíssimas. Daqui pode tirar-se uma conclusão fundamental sobre o valor objectivo da dialéctica: "A arte que divide os géneros em espécies e resolve as espécies e os géneros, a chamada dialéctica, não foi criada através das investigações humanas, mas baseia-se na própria natureza e foi criada pelo Autor de todas as artes que são verdadeiramente artes, descoberta pelos sábios e empregada para proveito de toda a classe de investigações sobre as coisas." (IV, 4". E assim a tábua lógica dos conceitos dispostos segundo a ordem da sua universalidade, identifica-se, segundo Escoto, com a ordem metafísica das determinações do ser. A mais universal determinação lógica, e por conseguinte, a mais real
determinação objectiva, é a essência (ousia), que é incorpórea, simples e indivisível. A essência existe nos géneros e nas espécies, mas não se divide neles, permanecendo não-multiplicada, mesmo que se multiplique nos géneros, nas espécies e nos indivíduos (1, 34). "A essência subsiste toda reunida, está eterna e imutavelmente nas suas subdivisões, e todas as suas subdivisões constituem simultaneamente e sempre, nela, uma 47 unidade inseparável" (1, 49). Por isso, a essência de todas as coisas é na realidade uma só, é o próprio Deus (1, 1). É incognoscível, e incompreensível como o próprio Deus; o que se percebe com os sentidos ou se compreende com o intelecto em toda a criatura, é apenas algum acidente da essência incompreensível (1, 3). A lógica de Escoto, que nasceu dois séculos antes de a discussão sobre os universais se transformar no problema fundamental da dialéctica, apresenta antecipadamente a solução tipicamente realista do problema e é a fonte de todas as soluções do mesmo tipo que foram adoptadas depois. Representa também o papel de um termo de comparação polémico para as escolas anti-,realistas. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 177. As obras de João Escoto e as suas traduções do Pseudo-Dionísio e dos Ambígua de Mássimo o Confesor, in P. L. 122.1; De divisione naturae, ed. Schlüter, Munique, 1938; Commentarius ad Opuscula Boethii, ed. Rand, Mónaco, 1906;Autographa, ed. Rand, Mónaco, 1912. § 178. J. Huber, Johannes Scotus Erigena, 1861, ed. fot., 1960; Bett, J. S. E., Cambridge, 1925; Cappuyns, J. S. E., Paris-Louvaina, 1933, com bibl.; Dal Pra, S. E., Milão, 1951 com bibliografia. § 181. Gregory, Sulla metafisica di G. S. E., in "Giorh. Crit. della Fil. Ital.", 1957; Mediazione e incarnazione, n~ filosofia dell'E.> Ib., 1960. 48 III DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS § 187. GERBERTO As condições políticas do século X, sobretudo a dissolução do império carolíngio, detiveram quase por completo a recuperação intelectual do Ocidente. Restabelecida a unidade do império com Otão o Grande, o movimento da cultura tornou a prosseguir. Neste período aparece uma grande figura de erudito e de mestre, Gerberto, que se formou na escola de Aurillac. A partir de 972 foi professor na escola de Reims; em 982 foi designado abade de Bobbio, em 991, arcebispo de Reims; em 998, arcebispo de Ravena; em 999, papa, com o nome de Silvestre 11. Morreu no ano de 1003. Gerberto ocupou-se de todas as ciências mas sobretudo destacou-
se no estudo da mecânica e das matemáticas. Atribui-se-lhe a invenção de um relógio e de uma espécie de sirene a vapor de água. Para explicar a sua vasta erudição, um antigo cronista, Vicente de Beauvais (Speculum historiale, XXIV, 98) conta que Gerberto tinha feito uma larga estadia em Espanha, 49 país de nigromantes. Aí, conseguiu seduzir a filha de um desses doutores diabólicos e roubar-lhe, em seguida, os livros. O mago, advertido pelas constelações celestes, dispôs-se a perseguir o ladrão; este, no entanto, aproveitando-se das indicações dos mesmos astros, conseguiu furtar-se à perseguição que aquele lhe movera, escondendo-se durante uma noite debaixo do arco de uma ponte destruída. O diabo em pessoa foi buscá-lo depois e levou-o sobre o mar para que um dia algum dos seus adeptos pudesse ocupar a cátedra do príncipe dos apóstolos. Provavelmente, esta lenda fabulosa oculta a realidade de uma viagem de Gerberto a Espanha e da procedência árabe de boa parte da sua cultura. Gerberto escreveu comentários à Isagoge de Porfírio, às Categorias e ao livro De interpretatione, de Aristóteles, e aos Comentários lógicos de Boécio. O seu escrito, De rationali et ratione uti, uma questão que disputou em Ravena com Otrício, na presença de Otão II, propõe-se investigar o significado da expressão "empregar a razão". A questão apresenta-se, à primeira vista, com carácter lógico-gramatical; mas a solução de Gerberto eleva-a. a um plano metafísico. É regra fundamental da lógica aristotélica que o predicado seja mais universal que o sujeito: por exemplo, na proposição "Sócrates é mortal", o predicado mortal é mais universal que o sujeito, porque pode referir-se a muitos outros seres além de Sócrates. Mas na expressão que se encontra em Santo Agostinho (De ord., 11, 12, 35): Rationale, id est quod ratione utitur, o predicado "ratione utitur" é mais restrito que o sujeito "rationale", porque nem sempre quem é racional se serve efectivamente da razão. Esta é a dificuldade que dá origem à discussão. Para resolvê-la, Gerberto distingue as substâncias necessárias e eternas das mutáveis e caducas. As primeiras são suprasensíveis, cognoscíveis apenas pela razão e sempre em acto. 50 As outras são sensíveis e naturais, sujeitas a mudança e, por conseguinte, à geração e à corrupção. Ora, uma vez que todas as substâncias da primeira classe estão sempre em acto, o ser -racional e o servir-se da razão são nelas completamente coincidentes; porque são racionais precisamente no sentido de que a sua razão está sempre em acto, ou seja, que sempre se servem dela. A situação é diversa quando se trata de substância da segunda classe. Na alma, que está unida ao corpo, a racionalidade não está em acto, mas em potência, e passa da potência ao acto precisamente quando se diz que a alma "se serve da razão". Daqui se conclui que, para a alma, o servir-se da razão não é um predicado necessário, como para as substâncias supra-sensíveis, que são razão em acto, mas um atributo acidental que pode acontecer ou não à racionalidade potencial da pró pria alma. Deste modo, Cerberto, empregava os conceitos aristotélicos de potência e acto, para chegar a uma distinção entre substâncias racionais puras e substâncias racionais sensíveis, que é de grande interesse para o posterior desenvolvimento da metafísica escolástica.
§ 188. DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS A segunda metade do século XI e o século XII são, no Ocidente, um período de florescimento intelectual. A cultura deixa de ser património das abadias e o ensino tende a organizar-se na forma que há-de possuir no século XIII com as universidades. Este período representa a primeira verdadeira idade da escolástica que alcança a consciência do seu problema fundamental: o de compreender e justificar as crenças da fé. Alguns julgam encontrar a solução do problema entregando-o à razão e à ciência que parece ser mais própria dele, a dia51 Jéctica; outros desconfiam da dialéctica. e apelam para a autoridade dos santos e dos profetas, limitando a sua tarefa de investigação filosófica à defesa das doutrinas reveladas. Daqui nasce a polémica entre dialécticos e teólogos e que ocupa o século XI. Na realidade, mesmo os mais hostis à dialéctica, mesmo os mais acérrimos defensores da superioridade da fé, não abandonam a investigação, propriamente escolástica, do melhor caminho para levar o homem à inteligência das verdades reveladas. Entre os dialécticos sobressai a figura de Berengário de Tours. Formou-se no convento de Saint-Martin, em seguida frequentou a escola de Chartres, dirigida por Fulberto, de quem foi discípulo. Desdenhando as outras artes liberais, dedicou-se à dialéctica e em breve se divertia ao recolher nos escritos dos filósofos argumentos contra a fé dos simples. Conta-se que Fulberto, no leito de morte, disse que Berengário era um diabo enviado pelos abismos para corromper e seduzir os povos. O seu êxito como professor foi, todavia, enorme. No ano de 1040 chegou a arquidiácono de Angers. Morreu em 1088. Berengário põe a razão acima da autoridade e exalta a dialéctica, sobrepondo-a a todas as ciências. Baseando-se em Santo Agostinho, considera a dialéctica como a arte das artes, a ciência das ciências. Recorrer à dialéctica significa recorrer à razão. E quem não recorre à razão pela qual o homem é a imagem de Deus, abandona a sua dignidade e não renova em si, no dia a dia, a imagem divina (De sacra coena, edic. Vischer, p. 100). A mais famosa das polémicas de Berengário é a que se refere à Eucaristia, que sustentou contra Lanfranco, e à qual está dedicado o seu escrito De sacra coena adversus Lanfrancum. Berengário sustenta o princípio aristotélico de que os acidentes ou qualidades de uma coisa não podem subsistir sem a substância dessa mesma coisa. Deste modo, no sacra52 mento da Eucaristia os acidentes do pão e do vinho mantêm-se: a substância não pode, por conseguinte, ter sido destruída, e o pão e o vinho devem permanecer como tais, mesmo depois da consagração. Esta vem acrescentar à substância do pão e do vinho um corpo inteligível que é o corpo de Cristo. Tal doutrina impugnava a definição dogmática. da Eucaristia, que afirma a transformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo; e suscitou violentas polémicas. A doutrina de Berengário foi condenada pela
Igreja. O mais notável adversário de Berengário foi Lanfranco de Pavia, nascido no ano de 1010, aluno da escola de Bolonha, já então florescente. Lanfranco, dotado de um espírito aventureiro e entusiasta, percorreu a Borgonha e a França e fixou-se na Normandia. Aqui fez-se monge na abadia de Bec, que através dele se tornou famosa. Em 1070 foi nomeado arcebispo de Cantuária; morreu em 1089. Lanfranco é um adversário da dialéctica que é, segundo pensa, completamente incapaz de levar o homem a compreender os mistérios divinos. Declara energicamente que prefere ouvir discutir sobre os mistérios da fé com autoridades sagradas de que com razões dialécticas. (De corp. et sang. Domitú, 7). "Quem vive da fé, afirma, não procura analizá-la com a argumentação nem concebê-la com a razão; prefere prestar fé aos mistérios celestes em vez de se cansar em vão, pondo de lado a fé, para compreender o que não pode ser compreendido" (ibid. 17). Mas, não obstante estas afirmações, Lanfranco não deixou de ser um dialéctico. Se a dialéctica, abandonada a si própria, falha no campo dos mistérios da fé, guiada e sustentada pela fé, pode prestar úteis serviços àquela. Com este espírito comentou as cartas de São Paulo, como nos dá testemunhos Sigiberto de Gemblou (De sctipt. eccles., c. 155; em Patr. Lat., 160, 582 c): "Lanfranco, dia53 léctico e arcebispo de Cantuária, expôs as cartas do apóstolo São Paulo: e sempre que teve oportunidade, apresentou as suas teses, os seus argumentos e as suas conclusões segundo as regras da dialéctica". Pode dizer-se que na relação entre a razão e a fé, Lanfranco escolheu a mesma posição que depois foi assumida pelo seu grande discípulo, Anselmo de Aosta. Contra os dialécticos polemizou Pedro Damiano, nascido em 1007 em Ravena. Em 1035 retirou-se para viver como ermitão em Fonte Avellana, e dali foi chamado, no ano de 1057, para ser consagrado cardeal-bispo de Aosta. Morreu em Faenza em 1072. A maior parte da obra de Pedro Damiano é dedicada à ascese monástica e a questões eclesiásticas. A sua posição perante a dialéctica e as ciências mundanas está expressa na obra que compôs em 1067, De divina omnipotentia. "Muitas vezes, afirmou, a virtude divina destrói os silogismos armados pelos dialécticos e as suas subtilezas e confunde os argumentos que foram considerados Inevitáveis e necessários pelos filósofos" (De div. omnip., 10). A dialéctica e, em geral, toda a arte ou perícia humana não deve chamar a si arrogantemente o trabalho principal e pelo contrário deve servir velut ancilla dominae quodam famulatus obsequio (ibid. 5). A tese típica de Pedro Damiano é a da superioridade da omnipotência divina nos confrontos da natureza e da história. Uma vez que as leis são atribuídas à natureza por Deus, as coisas naturais obedecem às suas leis até que Deus o queira; mas, quando Deus não quer, esquecem a sua natureza e obedecem a Ele. A omnipotência divina não encontra nenhum limite, nem mesmo no passado: pois Deus pode fazer com que as coisas que aconteceram não tenham acontecido: portanto o pode (no tempo presente) refere-se à vontade de Deus que é eterna e está fora do tempo; e nós devemos antes dizer que podia 54
não fazê-las acontecer. A muitos dos próprios Escolásticos considerações semelhantes parecerão implicar a tese da superioridade da omnipotência divina em relação ao próprio princípio da contradição: aquela tese pode, com efeito, exprimir-se com a afirmação de que Deus pode fazer com que não tenham acontecido as coisas que aconteceram. De qualquer modo, Pedro Damiano serviase da tese da omnipotência divina para retirar validade autónoma ao mundo da natureza e do homem; e mesmo no campo político (como testemunham as considerações desenvolvidas na sua Disceptatio Sinodalis) a sua preocupação dominante é a de retirar ao Imperador toda a dignidade de potência autónoma e de considerá-lo como um simples delegado do Papa. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 187. As obras de Gerberto, em Patrist. Lat., vol. 139, 57-338; outra edição de Olleris, Paris, 1867. Epistolae, ed. Havet, Paris, 1889; Opera mathematica, ed. Bubnov, Berlim, 1899.-PICAVET, Gerbert ou le pape philosophe, Paris, 1897; LEFLON, Gerbert, P=3, 1946. § 188. As obras de Berengãrio in P. L., 150.1; De sacra coena, ed. Vischer, Berlim, 1834; ed. Beekenkamp, L'Aya, 1941.-A. J. MACDONALD, Berengar and the Reform of Sacramental Doctrine, Londres, 1930. As obras de Lanfranco in P. L., 150.'.-MACDONALD, Lanfrane, Oxford, 1926. As obras de Pedro Damiano in P. L., 144.o-145.o; De divina omnipotentia e outros opusculos, ao cuidado de Brezzi e Nardi, com trad. ital., Florença, 1943. -ENDREs, nei "Beitrãge", VLU, 3, 1910; J. GONSETTE, P. D. et Ia culture profane, Lovaina, 1956. 55 IV ANSELMO DE AOSTA § 189. ANSELMO: A FIGURA HISTÓRICA Anselmo de Aosta representa a primeira grande afirmação da investigação na Idade Média. Mas a sua investigação tem mais um valor religioso e transcendente do que humano. Com acentos agustinianos, abandona a Deus a iniciativa e a orientação das suas pesquisas; e no esforço de aproximar-se da verdade revelada não vê mais que a progressiva acção iluminadora da própria verdade. "Ensina-me a procurar-te, diz (Pros., 1), e mostra-te a mim que te procuro. Eu não posso procurar-te, se Tu não me ensinas, nem encontrar-te se Tu não te mostras. Que eu te procure desejando-te, que eu te deseje procurando-te, que te encontre amando-te e que te ame procurando-te. Reconheço-te, Senhor, e dou-te graças por teres criado em mim esta tua imagem para que me lembre de Ti, pense em Ti e te ame; mas esta imagem está tão gasta pela miséria dos vícios, tão ofuscada pela acumulação dos pecados, que não pode fazer aquilo para que foi feita se Tu não a renovares e a não reconstituíres. Não pretendo,
57 Senhor, penetrar na tua altíssima dignidade, porque não posso, de facto, comparar a ela o meu entendimento, mas desejo entender de alguma maneira a tua vontade que o meu coração crê e ama. Também não procuro entender para crer mas creio para entender. E também creio nisto: que senão acreditar primeiro, também não poderei compreendem. A -prioridade da fé sobre a compreensão exprime claramente o carácter religioso da investigação de Anselmo, tal como a prioridade da compreensão sobre a fé exprimirá o carácter filosófico da investigação de Abelardo. Esta religiosidade encontra a sua melhor expressão no ponto culminante da investigação de Santo Anselmo, a prova ontológica da existência de Deus. Como o próprio Anselmo reconhece, na sua resposta a Gaunilon, o pressuposto da prova é a fé. Só a fé transforma em afirmação indubitável a possibilidade de pensar o ser maior de todos. Se se pode pensar este ser, deve-se pensá-lo como existente; mas não se pode pensá-lo verdadeiramente apenas com a fé. A prova ontológica é a própria fé que esclarece o seu princípio e se converte em certeza intelectual. § 190. ANSELMO: VIDA E OBRA Anselmo nasceu em 1033 em Aosta, no Piemonte. Entrou para o mosteiro de Bec, na Normandia, foi prior em 1063 e abade em 1078. A maior parte das suas obras são o resultado das discussões que dirigia no mosteiro. De 1093 até 1109, ano da sua morte, foi arcebispo de Cantuár@a. O seu secretário, Eadmer, dá-nos uma pormenorizada descrição da sua vida. De natureza dócil e contemplativa, Anselmo foi impelido para a vida do claustro por necessidade de recolhimento e de 58 meditação. A sua fama de santo atribuiu-lhe bem cedo poderes sobrenaturais. Curou e levou à penitência um velho monge, de quem previu a morte, que se verificou na altura e da forma que havia predito. Apagou um incêndio numa casa vizinha do mosteiro fazencio o sinal da cruz sobre as chamas. E uma vez que estava na sua cela meditando sobre o dom da profecia viu através, das paredes, os frades que preparavam na igreja o ofício da meia-noite. Afastado contra a sua vontade da vida contemplativa, teve que ocupar-se de negócios e política, primeiro como abade de Bec e depois como arcebispo de Cantuária. Na qualidade de arcebispo viu-se envolvido na vida agitada da Igreja inglesa nos tempos de Guilherme o Vermelho que pretendia subordinar à sua vontade o cloro inglês e subtrair-se à vontade papal. Anselmo dirigiu-se a Roma para buscar apoio e conforto junto de Urbano 11. Regressado a Inglaterra teve novos desentendimentos com Henrique 1, que queria conservar o direito de investidura dos bispos com o anel e a cruz. Conseguiu um compromisso pelo qual o rei renunciava a conferir a investidura e os bispos rendiam-lhe homenagem (1106). Alguns anos depois, Anselmo, que nunca abandonara as suas meditações, morria, quando procurava concluir as suas investigações sobro a origem da alma.
Entre os anos 1070 e 1078 Anselmo compôs o Monologion, cujo primeiro capítulo era Exemplum meditandi de ratione fidei; em seguida o Proslogion, que primeiramente se intitulava Fides quarens intellectum e o apêndice polémico Liber apologeticus contra Gaunilonem; em continuação, compôs quatro diálogos, De veritate, De libero arbítrio De casu diabuli, De gramatico. Nos últimos anos da sua vida escreveu o Cur Deus homo e o seu apêndice De conceptu virginali. Outras obras suas: De fide 59 TritWatis, De concordia praescientiae et praedestinationis, Meditationes, e, além disso, homilias, discursos e cartas. § 191. ANSELMO: FÉ E RAZÃO A frase que exprime a posição de Anselmo, sobre o problema escolástico é a seguinte: Credo ut inielligum (Pros., 1). A fé é o ponto de partida da investigação filosófica. Nada se pode compreender se não se tem fé; mas a fé por si só não basta, é preciso confirmá-la e demonstrá-la. Esta confirmação é possível. "0 que nós cremos pela fé sobre * natureza divina e as pessoas da mesma, excepto * encamação, pode ser demonstrado com razões necessárias, sem se recorrer à autoridade das Escrituras" (De fide Trin., 4). E, uma vez que isso é possível, passa a ser um dever: "É negligência não intentar compreender o que se crê, depois de havermos sido confirmados pela fé" (Cur Deus homo, 12). A própria encarnação é apresentada por Anselmo, na obra que dedicou a este tema, como uma verdade que a razão pode alcançar por si própria; não existe dúvida, com efeito, de que os homens não teriam podido salvar-se, se o próprio Deus não tivesse encarnado e não tivesse morrido por eles (ibid. prol.). Deste modo, Anselmo considera o acordo entre a fé e a razão intrínseca e essencial. Certamente que, se uma contradição se produzisse, não seria necessário admitir a verdade do raciocínio, mesmo quando este parecesse irrefutável (De concordia praescientiae, 6); mas Anselmo está intimamente seguro de que não pode haver uma verdadeira contradição, porque a inteligência está iluminada pela luz divina, exactamente como a fé. O que não implica, por outro lado, que a verdade se encontre inteiramente ao alcance do homem. "Seja o que for que o homem possa dizer sobre o saber, 60 afirma Anselmo, as razões supremas, os mistérios da fé, -permanecem sempre escondidos" (Cur Deus homo, 1, 2). O que investiga uma realidade incompreensível, como é a Trindade, deve bastar-lhe alcançar com a inteligência o conhecimento de que isso exista, ainda que não compreenda de que modo exista. (Mon., 64). Anselmo afirmou desta forma, em limites extensos, o valor da investigação. Distingue a verdade do conhecimento, a verdade do querer e a verdade da coisa. A verdade do conhecimento consiste na conformidade do conhecimento com
a coisa e consegue-se quando se conhece a coisa tal como é. Esta verdade define-a Anselmo como rectitudo cognitionis. A verdade da vontade é, analogamente, rectitudo voluntatis. Agir segundo a verdade, significa fazer o bem, fazer o que se deve fazer. Mas também aqui o critério é objectivo; a medida está no objecto, isto é, na coisa. O fundamento de toda a verdade é a verdade da coisa, a rectitudo rei. Mas esta verdade, por sua vez, está fundada na verdade eterna, que é Deus: as coisas são verdadeiramente aquelas que estão na mente de Deus, na qual subsistem as suas ideias ou exemplares. O próprio Deus é, portanto, a absoluta verdade, que é norma e condição de qualquer outra verdade (De verit., 2-10). Anselmo segue aqui os passos da especulação de Santo Agostinho na sua De vera religione. No âmbito do pensamento platónico-agustiniano movem-se também as suas investigações sobre a existência de Deus. § 192. ANSELMO: A EXISTÊNCIA DE DEUS O Monologion é um conjunto de reflexões sobre a essência divina que conduzem a uma demonstração da existência de Deus. Anselmo parte do pressuposto de que o bem, a verdade, e em geral 61 todo o universal, subsiste independentemente das coisas particulares e não apenas nelas. Há muitas coisas boas, quer sejam meios, isto é, por utilidade, quer sejam fins, isto é, pela sua bondade ou beleza intrínseca. Mas todas são mais ou menos boas e não de forma absoluta; pressupõem, portanto, um bem absoluto, que seja a sua medida e do qual obtenham o grau de bondade ou verdade que possuem. Este sumo bem é Deus. Da mesma maneira, tudo o que é perfeito e, em geral, tudo o que existe, existe por participação de um Ser único e sumo. O sumo bem, o sumo ser, o sumo grau, tudo o que no mundo tem verdade e valor, coincidem em Deus. O Monologion desenvolve uma argumentação cosmológica que vai do particular ao universal e do universal a Deus. O Proslogion desenvolve, pelo contrário, uma argumentação ontológica que começa no simples conceito de Deus para chegar à demonstração da sua existência. Está dirigido contra a negação pura e simples da existência de Deus, contra o néscio do Salmo XIII "que disse em seu coração: Deus não existe". Evidentemente, mesmo o que nega a existência de Deus deve pensar no conceito de Deus, pois é impossível negar a realidade de algo que nem sequer se pensa; a prova que vai do conceito à realidade é, portanto, a que não pode ser negada de modo nenhum. Portanto o conceito de Deus é o de um Ser maior de que não se pode pensar nada maior (quo maius cogitari nequit). Mesmo o néscio deve admitir que o Ser, a respeito do qual nada maior pode ser pensado. existe no intelecto, mesmo que não exista na realidade. Com efeito, uma coisa é existir na nossa inteligência, e outra coisa existir na realidade; a imagem que o pintor quer pintar não existe ainda na realidade, mas existe certamente no seu pensamento. Posto isto, aprova de Anselmo é a seguinte: 62 "Certamente, aquilo de que não se pode pensar nada maior, não pode existir apenas no intelecto. Porque se existisse apenas no intelecto, poder-se-ia
pensar que existe também na real-idade e que, portanto, era maior. Assim, se aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar existe apenas no intelecto, aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar é, por sua vez, aquilo de que se pode pensar algo de maior. Mas isto é, certamente, impossível. Portanto, não há dúvida de que aquilo do qual nada maior se pode pensar existe tanto no intelecto como na realidade. "(Prosl., 2). O argumento baseia-se em dois pontos: 1.o que o que existe na realidade é "maior", ou mais perfeito do que o que existe apenas no intelecto; 2.o que negar que existe realmente aquilo em relação ao qual nada maior pode pensar-se, significa contradizer-se, porque significa admitir que se pode pensá-lo maior, isto é, existente na realidade. À objecção de que então não se vê como é possível pensar que Deus não existe, Anselmo responde que a palavra pensar tem dois significados: pode pensar-se a palavra que indica a coisa e pode pensar-se a própria coisa. No primeiro sentido pode pensar-se que Deus não existe, como, por exemplo, se pode pensar que o fogo é água; no segundo sentido, não se pode pensar que Deus não existe (Prosl., 4). Ao argumento ontológico, o monge Gaunilone, do mosteiro Mar-Montier, no seu Liber pro insipiente, opôs que, em primeiro lugar todo aquele que decididamente nega a existência de Deus começaria por negar que tivesse o Seu conceito (que é o ponto de partida do argumento ontológico); e, em segundo lugar, mesmo admitindo que se tenha o conceito de Deus como o de um ser perfeitíssimo, deste conceito não pode deduzir-se a existência de Deus, da mesma maneira que não pode deduzir-se 63 a realidade de uma ilha perfeitíssima a partir do conceito de tal ilha. Anselmo replicou com o Uber apologeticus. É impossível negar que se pode, pensar em Deus: para demonstrax esta impossibilidade basta a mesma fé de que tanto Anselmo como Gaunilonern estão dotados; e se se pode pensar em Deus, deve-se reconhecê-lo como existente, sendo impossível negar a existência àquilo que se pode pensar como a maior de todas as coisas. De uma ilha fantástica, ainda que se a conceba perfeita, não se pode dizer que ;seja aquilo em relação ao qual nada mais perfeito pode pensar-se. Da possibilidade de pensá-la não se segue da simples possibilidade de pensar em Deus como o ser mais perfeito de todos. O argumento ontológico foi uma vez defendido e outras criticado durante a Escolástica e estas alternativas mantiveram-se no pensamento moderno. Na realidade, o argumento não é uma prova mas um princípio. Não é uma prova, porque a existência que se pretende deduzir está já implicitamente contida na definição de Deus como o ser em relação ao qual nada maior se pode pensar e, por isso, no simples pensamento de Deus: como prova é um círculo vicioso. Como princípio, exprime a identidade de possibilidade e realidade no conceito de Deus. Se se pode pensar Deus, deve-se pensá-lo como existente: o pensamento de Deus é o próprio pensamento desta identidade da possibilidade e da existência, identidade que, como Anselmo afirma no Liber apologeticus, é realizada pela fé. A fé consiste precisamente em admitir, como necessariamente real, a perfeição possível: o argumento ontológico, que deduz dessa perfeição aquela existência não é, por conseguinte, outra coisa senão a
explicação da fé na sua expressão racional ou no seu princípio lógico. Tratase uma vez mais das fides quarens intellectum, do credo ut intellígam: do 64 processo através do qual o acto de fé se converte em acto de razão e a iluminação divina em investigação filosófica. § 193. ANSELMO: A ESSêNCIA DE DEUS Das próprias provas que demonstram a existência de Deus, resulta que só Deus é o ser perfeito e absoluto e que as outras coisas quase não são ou apenas são (fere non esse et vix esse, Mon., 28). Sujeito ao devir e ao tempo, o ser das coisas finitas começa e acaba continuamente e continuamente muda; é por isso um ser aproximativo e apenas tal, não podendo ser comparado com o ser imutável de Deus. Ao qual Santo Anselmo reconhece aquela necessidade, cujo conceito ia sendo elaborado pela escolástica árabe, a partir de Avicenas. A natureza de Deus é tal que não pode proceder nem de si nem de outro; nem dá a si própria uma matéria da qual possa ser retirada, nem outro pode dar-lhe tal matéria (Mon., 6). É, portanto, originária e necessária. Por conseguinte, as propriedades que se afirmam da natureza divina devem ser predicados dela quidditativamente e não qualitativamente: isto é, como partes ou aspectos integrantes da essência divina, mas de forma alguma diversas desta essência. Deus não pode ser justo ou sábio, se o não for em si e por si; não é, certamente, pela participação de uma justiça ou sabedoria distintas d'Ele. O melhor portanto, é dizer não que Deus é justo, mas que é * justiça; não que tem vida, mas que é a vida; * analogamente que é a verdade, o bem, a grandeza, a felicidade, a eternidade, o poder, a imutabilidade, a unidade e, em geral, todas as qualidades 65 que implicam excelência e perfeição em quem as possui (Mon., 15-16). Por outro lado, todas estas qualidades não podem subsistir na essência divina como uma multiplicidade numérica. A natureza divina exclui toda a composição e não pode constar de partes ou de aspectos diversos. As qualidades diversas que se lhe atribuem, enquanto idênticas a ela, são idênticas entre si; e assim a justiça ou a sabedoria e qualquer outra qualidade é a própria essência divina e, quem afirma uma delas afirma também esta (Mon., 17). Disto se conclui que a essência divina não é substância, no sentido de substracto ou esteio de qualidades ou acidentes. É substância no sentido de que subsiste por si e em si; mas neste sentido não pode ser compreendida sob a categoria universal de substância, uma vez que está fora de todo e qualquer conceito genérico. A única determinação que se pode atribuir à essência divina como substância é a espiritualidade; o ser espiritual é, com efeito, mais excelente que o ser corpóreo e por isso o único que é próprio de Deus (Mon., 27). Uma tal substância está absolutamente para além das variações temporais. Na vida divina, não existe sucessão, tudo está presente num único acto
indivisível. Está completa de uma vez para sempre na sua totalidade o não pode ter aumento ou diminuição (ibid., 24). A sua imutabilidade exclui, em suma, que nela existam caracteres acidentais, que, como tais, implicariam mutabilidade. Em Deus podem subsistir tais caracteres, mas não analogamente ao que, por exemplo, é a cor do corpo, mas apenas como relações determinadas, puramente exteriores, como quando se diz que é maior que todas as outras naturezas. Só nestes limites, a categoria de acidente não contradiz a natureza divina (Ibid., 25). 66 § 194. ANSELMO: A CRIAÇÃO Uma vez que Deus é o ser e as coisas existem apenas pela participação do ser, toda a coisa tem o seu ser através de Deus. Tal derivação é uma criação do nada. E de facto, as coisas criadas não podem proceder de uma matéria. Esta, por sua vez, deveria derivar de si própria, o que é impossível, ou da natureza divina. Neste caso, a natureza divina seria a matéria das coisas mutáveis e estaria sujeita às mudanças e à corrupção daquelas. Ela, que é o Sumo Bem, estaria submetida à mutabilidade e à corrupção; mas o Sumo Bem não pode deixar de o ser. A matéria das coisas criadas não pode ser nem por si nem de Deus; não há, portanto, matéria das coisas criadas. Só resta então admitir que foram criadas do nada (ibid., 7). Contra a interpretação (que se encontra, por exemplo em Erígena) de que o "nada" do qual as coisas procedem é algo positivo, por exemplo, uma causa material ou uma realidade potencial, Anselmo tem o cuidado de acrescentar que isso não é nem uma matéria nem outra coisa real; e que a expressão criação do nada significa apenas que o mundo primeiramente não existia mas existe agora. A expressão "criação do nada" é idêntica à que se emprega dizendo que "se fez do nada" um homem que agora é rico e poderoso e que dantes não era. Significa o salto do nada para qualquer coisa (ibid., 8). Todavia, o mundo foi racionalmente criado e nada pode ser produzido de tal modo sem se supor na frazão de quem produz um exemplar da coisa a produzir, isto é, uma forma, similitude ou regra dela. Deve existir, na mente divina, o modelo da ideia da coisa produzida, como na mente do artista humano existe o conceito da obra que vai realizar: com a diferença de que o artista tem 67 necessidade de uma matéria exterior para realizar a sua obra e Deus não, e de que o primeiro deve obter das coisas externas o próprio conceito da obra, enquanto Deus cria por si próprio a ideia exemplar (ibid., 11). Num e noutro caso, não obstante, a ideia da obra é uma espécie de palavra interior; Deus manifesta-se nas ideias, como o artista através do seu conceito, mas a expressão não é uma palavra exterior, uma voz; é a própria coisa, à qual se dirige o engenho da mente criadora (ibid., 10). A criação do nada é precisamente esta articulação interior da palavra divina. Sem a actividade criadora de Deus, nada existe e nada dura; Deus não só dá o ser às coisas, como também as conserva e faz durar continuando a sua acção criadora. A criação é contínua (ibid., 13). Daqui se segue que Deus está e
deve estar por todas as partes; onde Ele não está, nada existe e nada está de pé. Isto não quer dizer, certamente, que Ele esteja condicionado pelo espaço e pelo tempo. N'Ele não existe nem o alto nem o baixo, nem o antes nem o depois: Ele está em todas as coisas existentes e em cada uma delas vive uma vida interminável, que é toda ao mesmo tempo (totum simul) presente e perfeita (lbid., 14,22-24). § 195. ANSELMO: A TRINDADE A palavra interior de Deus não é o som de uma voz, mas essência criadora. Este é o ponto de partida da especulação trinitária de Santo Anselmo. Aquela palavra interior é a divina sabedoria, o Verbo de Deus: por isso tudo foi dito e tudo foi feito. O Verbo, por um lado, é idêntico com a essência de Deus; por outro, idêntico com a essência da criatura. É idêntico com a essência de Deus, porque não é criatura, mas princípio da criatura, e porque está em Deus, no qual não subsiste nem 68 diversidade nem multiplicidade. Por outro lado, é a própria essência das coisas criadas: pois de que seria Verbo se não fosse Verbo das mesmas? Todo o verbo é verbo de alguma coisa. É necessário portanto entender que não existiria o Verbo se não existissem as criaturas? A coisa é inconcebível, porque o Verbo é necessário e eterno como o próprio Deus. Mas, por outro lado, se as criaturas não existissem, como poderia ser verbo do que não existe? A solução é de que o Verbo é, em primeiro lugar, a inteligência que Deus tem de si mesmo. Assim, tal como a mente humana tem conhecimento e compreensão de si própria, o mesmo acontece com Deus: o Verbo é, portanto, coeterno com Deus porque é a eterna inteligência que Deus tem de si. Mas, ao mesmo tempo, é também Verbo das coisas criadas. "Com um só e mesmo Verbo o Sumo Espírito fala de si próprio e de todas as coisas criadas" (Ibid., 33). Se tais coisas em si mesmas são mutáveis, são todavia imutáveis na sua essência e no seu fundamento, que está no Verbo divino; e existem tanto mais verdadeiramente quanto mais semelhantes são a tal fundamento (Ibid., 34). Por seu lado, o Verbo, mesmo na sua identidade com o Sumo Espírito, distingue-se dele: são dois, apesar de não ser possível exprimir a forma como o são. São distintos pela recíproca relação, porquanto um é o Pai e outro o Filho; e são, por sua vez, idênticos na substância, porquanto no Pai há a essência do Filho, e no Filho a essência do Pai. l@nica e indivisível é, com efeito, a essência de ambos (ibid., 43). Portanto, uma vez que o Sumo Espírito se i-econ,hece o se compreende no Filho, deve também amar-se, seria inútil, com efeito, a inteligência sem o amor (ibid., 43). O amor depende, portanto, da inteligência que o Sumo Espírito tem de si, isto é, depende do Pai e do Filho, conjuntamente. Esta 69 dependência não significa geração: o amor não é filho. E, no entanto, é uma dependência que supõe participação na sua natureza comum; e uma vez que tal natureza é espírito, o amor chama-se Espírito (Ibid., 57). Cada uma das três pessoas divinas, participando da total natureza divina, recorda, compreende e ama sem necessidade de outra. E, apesar de a memória ser própria do pai, a
inteligência do Filho, o amor do Espírito, cada uma das pessoas é essencialmente memória, inteligência e amor. Da inteligência, memória e amor de cada uma delas não derivam nem outros filhos nem outros espíritos: nisto consiste o mistério inexplicável da Trindade divina (ibid., 62-64). Santo Anselmo procurou esclarecer com uma imagem este mistério. Consideremos, afirma (De fide Trinitatis, 8), uma fonte, o rio que nasce dela e o lago no qual se recolhem as suas águas: damos ao conjunto destas três coisas o nome de Nilo. Trata-se de três coisas distintas uma das outras; não obstante, chamamos Nilo à nascente, Nilo ao rio, Nilo ao lago e, finalmente, Nilo a todo o conjunto. Não falamos de três Nilos, ainda que sejam três coisas distintas entre si. São três, a nascente, o rio e o lago; pois é sempre o único e o mesmo Nilo, um só fluir, urna só água, uma só natureza. Há aqui uma trindade no uno e uma unidade em três, que é a imagem da Trindade divina. § 196. ANSELMO: A LIBERDADE A investigação levada a cabo por Anselmo no Monologion e no Proslogion tende a compreender Deus na sua essência e na sua existência. Anselmo procura traduzir com ela, a certeza da fé em verdade filosófica; e com isto oferecer um caminho de abordagem à verdade revelada, de modo que o 70 homem consiga chegar junto desta o mais perto possível. Mas paralelamente a esta investigação, Anselmo empreende outra, dirigida ao homem e às suas possibilidades de elevar-se até Deus. O tema desta investigação é a liberdade. A ela Anselmo, dedicou duas obras: o De libero arbitrio, e o De concordia praescientiae et praedestinationis nec non et gratiae Dei cum libero arbitrio, composta, esta última, no ano de 1109, depois do seu regresso a Inglaterra. A liberdade supõe, em primeiro lugar, duas condições negativas: que a vontade seja livre de coacção por parte do toda a causa externa e seja livre da necessidade natural interna, como é o instinto nos animais (De libero arbitrio, 2, 5). A liberdade é essencialmente liberdade de escolha e esta está ausente quando existe coacção e necessidade. Posto isto, Anselmo exclui a ideia de que a liberdade possa definir-se (como havia feito Escoto) como possibilidade de escolher entre pecar e não pecar. Se fosse assim, nem Deus nem os anjos, que não podem pecar, seriam livres. Em todo o caso, quem não pode perder aquilo que o favorece é mais livre do que aquele que pode perder; e deste modo quem não pode afastar-se da rectidão de não pecar é mais livre do que qualquer outro que pode fazê-lo. A capacidade de pecar não aumenta nem diminui a liberdade; por isso não é elemento ou parte da liberdade (De lib. arb., 1). O primeiro homem recebeu de Deus originariamente a rectidão da vontade, isto é. a justiça. Poderia ter podido e devido conservá-la; e para esse fim precisamente lhe foi dada a liberdade. Portanto, esta, não é arbítrio de indiferença, isto é, vontade que se decide indiferentemente entre o bem e o mal; é a capacidade positiva de conservar a justiça originária e de conservá-la pela mesma justiça, e não em vista de um motivo estranho (lbi(l., 13).
71 Este poder em que consiste a liberdade não o perde o homem em caso algum, nem sequer com o pecado. Como quem já não vê um objecto, conserva a capacidade de vê-lo, porque o vê-lo ou não depende da distância do objecto e não da perda de vista, assim a capacidade de conservar a rectidão da vontade permanece no homem mesmo através do pecado e entra em acção logo que Deus restitui ao homem a rectidão da vontade que perdeu. Portanto, o homem pode perdê-la apenas por um acto seu de vontade e nunca por causas externas. O próprio Deus não pode retirá-la ao homem. Uma vez que consiste em querer o que Deus quer que se queira, se Deus a afastasse do homem não quereria que o homem quisesse aquilo que Ele quer que ele queira. Uma vez que isto não se pode imaginar, Deus não pode tirar ao homem a vontade justa: só o homem pode perdê-la. Nada é portanto mais livre que a vontade (ibid., 11). Não contradiz isto a frase bíblica de que o homem que peca se converte em "escravo do pecado". O converter-se em escravo do pecado significa apenas que perde a rectidão da vontade e que não tem a capacidade de voltar a adquiri-la a não ser por dádiva gratuita de Deus. A escravidão do pecado é a impotentia non peccandi: o homem que perdeu a rectidão da vontade não pode deixar de pecar; mas mesmo assim permanece livre porque conserva a possibilidade de conservar aquele. la rectidão, se essa lhe for devolvida. Disto :resulta que, tal como Santo Agostinho, Anselmo estabelece uma estreita relação entre a liberdade humana e a graça divina. Não há dúvida de que a vontade quer com rectidão apenas porque é recta. Mas como a vista boa não é boa porque vê bem, mas porque vê bem é boa, também a vontade não é recta porque quer com rectidão, mas quer com rectidão porque é recta. Isto significa que 72 ABELARDO a vontade recebe a sua rectidão não de si própria (a partir do momento em que cada acto recto seu a pressupõe), mas da graça divina (De concord. praesc. c. 3, 3). A última condição da liberdade humana é, portanto, a graça divina. Como capacidade de conservar a justiça originária, a liberdade humana está condicionada pela posse dessa justiça; e uma tal posse apenas pode vir-lhe de Deus. § 197. ANSELMO: PRESCIÊNCIA E PREDESTINAÇÃO Como a liberdade humana não se opõe, em nada, à graça divina, assim também nenhum limite ou restrição produzem na liberdade humana a presciência e a predestinação divinas. É certo que Deus prevê todas as acções futuras dos
homens, mas esta previsão não impede que as acções dos homens sejam efectuadas livremente. Com efeito, Deus prevê as acções dos homens na liberdade, que é atributo fundamental das mesmas. Não é preciso dizer, afirma Santo Anselmo, "Deus prevê que eu vou ou não pecar" mas é necessário acrescentar que Ele prevê que eu vou ou não pecar sem necessidade e assim, tenha eu pecado ou não, uma e outra coisa será liberdade, porque o próprio Deus prevê que isso acontecerá sem necessidade. (De concord. praesc., q. 1, 3). Existe uma dupla necessidade: uma que precede o efeito, a outra que se segue à realização da coisa. A primeira é verdadeiramente determinante, a segunda não. A primeira está, por exemplo, imcluída na afirmação "os céus necessariamente giram"; a segunda está contida na afirmação "tu falarás". De facto, a necessidade natural obriga os céus a moverem-se, embora não exista nenhuma necessidade que obrigue o homem a falar. Mesmo neste caso, a previsão verificar-se-á e, por conseguinte, é certa; mas a sua certeza em nada 73 anula ou diminui a liberdade do facto previsto. indubitavelmente, o que é não pode não ser. Uma acção livre, uma vez que se haja verificado, tem uma necessidade de facto, que obriga a admiti-Ia tal como é. Mas esta necessidade de facto não anula a liberdade, ainda que a torne previsível com absoluta certeza por parte de Deus. Análogas considerações valem para a predestinação. Deus predestina a salvação dos eleitos e aqueles que não predestina estão condenados. Pode-se, por conseguinte, falar também de uma predestinação dos condenados, porquanto Deus permite a sua condenação: ainda que a predestinação só seja positiva e efectiva para os eleitos. A predestinação tem em conta a liberdade. Deus não predestina ninguém coagindo uma vontade, deixa sempre a salvação nas mãos do predestinado. Tal como a presciência que nunca se engana, sabe de antemão tudo o que acontecerá, quer aconteça necessária quer livremente, também a predestinação, que nunca se altera, apenas prodestina em virtude e em conformidade com a presciência (De concordía praese. q. 2, 3). São predestinados à salvação aqueles apenas cuja boa vontade Deus conhece de antemão. § 198. ANSELMO: O MAL Relaciona-se com os conceitos agustinianos o tratado de Anselmo, sobre o problema do mal. Como existem duas espécies fundamentais de bem, a justiça e o útil, assim existem também duas espécies fundamentais de mal: a injustiça (malum injustitiae) e odano (malum incommodi). O verdadeiro e próprio mal é apenas a injustiça. A injustiça é sempre algo de negativo; é a pura e sim les negação do ZD p que deve ser, isto é, da justiça. E mesmo que o bem seja verdadeiramente a justiça, o mal não tem em nenhum caso realidade positiva: é uma pura 74 negação e pode, com todo o direito, ser chamado o nada (De casu diaboli, 1226). Quanto ao dano, ou seja, o mal físico, também é na sua essência uma negação;
mas como às vezes surge acompanhado de uma acção positiva, é nesta que se pensa quando se lhe chama mal. Não há dúvida de que a cegueira, por exemplo, é simples negação da vista; mas é acompanhada de tristeza e dor, que são realidades positivas e constituem o aspecto pavoroso do mal (Ibid., 26). Contudo, a tristeza, a dor e o horror que estas coisas determinam na alma, seguem-se à privação do bem, que é o verdadeiro fundamento de todo o mal. O verdadeiro e único bem é a justiça, pela qual são bons, isto é, justos, os anjos e os homens e pela qual a própria vontade é boa ou justa. Pois bem, a justiça consiste na conformidade da vontade humana com a vontade divina. A vontade da criatura racional deve estar submetida à vontade divina e aquela que não tributa a Deus esta honra devida, tira a Deus o que é seu e por isso peca. A Deus apenas pertence ter vontade própria, isto é, uma vontade que não está sujeita a ninguém. Todo aquele que se atribui de uma vontade própria esforça-se por tornar-se semelhante a Deus per rapinam e por privar Deus, naquilo a que a Ele se refere, da sua dignidade e singular excelência (De fide Trinit., 5). O traço característico destas formulações de Anselmo consiste na redução de todo o valor moral à vontade, a ú nica em que reside a justiça e a injustiça. Os apetites sensíveis, por seu lado, não são bons nem maus. O homem é justo ou injusto, não porque os sente ou não, mas apenas porque os consente ou não com a vontade. O pecado consiste não em senti-los, mas em consenti-los (De concep. virg., 4). A única origem do mal é a própria vontade. A vontade pode perder a sua rectidão enquanto quer o que não deve querer; mas o 75 poder perdê-la não é fundamento do mal; uma vez que não a perde porque pode perdê-la, mas apenas porque quer perdê-la. O mal não tem outra causa positiva. Também não se pode atribuir a Deus, porque não se pode afirmar que Ele dê aos homens uma vontade má, senão no sentido de que não impede, podendo fazê-lo, que uma tal vontade aconteça. Tudo o que há de bom na vontade e nas acções dos homens, procede da graça de Deus; só o mal procede do homem. E assim como a vontade é o único sujeito das valorações morais, assim também apenas ela é responsável e pode ser castigada. Não existe pena que não esteja dirigida contra a vontade e nenhuma coisa pode sofrer um castigo se não está dotada de vontade. Assim como é a vontade que actua sobre os membros e os sentidos, assim também é a vontade que, através dos membros e dos sentidos é castigada ou recompensada (ibid., 23). Num cas @ apenas o pecado não depende da vontade, é o caso do pecado original. Adão pecou por livre vontade; os seus descendentes pecam por necessidade natural (lhid., 23). Mas em Adão estava presente toda a natureza humana; nele, portanto, pecaram todos os homens, não pessoalmente, mas na sua origem e na sua natureza comuns. § 199. ANSELMO: A ALMA A doutrina de Anselmo sobre a alma segue de perto a agustiniana sobre o mesmo tema, mas possui um notável avanço em relação àquela no que se refere à demonstração da imortal-idade. O homem é formado por duas naturezas, a alma e o corpo (Medit., 19) a parte mais elevada, porque está mais pró)Qimo da suma essência, é a alma e mais precisamente, o intelecto. De facto, só através da inte-
76 ligência se pode conhecer e buscar a Deus e pode o homem aproximar-se d'Ele. A alma é como um espelho na qual se reflecte a imagem da Suma essência, que não se pode contemplar face a face. Anselmo segue, neste ponto, Santo Agostinho: a alma recorda, compreende e ama-se a si própria; e desta forma reproduz a Trindade divina, que é precisamente Memória, Inteligência e Amor (Monol., 67). A natureza da alma marca o seu destino. A alma deve exprimir com actos de vontade a imagem da Trindade divina que nela está impressa naturalmente: deve, por conseguinte, empenhar toda a sua vontade em recordar, compreender e amar o Sumo Bem; esse é o fim da sua existência (Ibid., 68). Deste seu destino deriva a sua imortalidade. Se a alma está destinada a amar sem fim a sua essência é necessário que esteja viva sempre e que a morte não venha interromper, em certo ponto, sem demérito seu, o amor que deve a Deus. Nem Deus poderia reduzir a nada uma criatura que Ele criou para que o amasse ou permitir que lhe seja retirada a criatura que ama a vida que Ele lho deu, quando ela ainda não O amava, para que possa amá-LO: tanto mais que o Criador ama toda a criatura que verdadeiramente o ama. É portanto evidente que uma vida entregue ao amor de Deus não pode ser senão feliz. A alma tem, por conseguinte, assegurada pelo seu destino uma vida eterna e feliz (ibid., 69). Mas a imortalidade não se refere apenas à alma que ama a Deus. Se para a alma que ama Deus, a imortalidade é, por parte de Deus, um dom de amor, para a alma que despreza Deus, a imortalidade é, por parte de Deus, um acto de justiça. Seria, com efeito, injusto que a alma que despreza Deus fosse castigada com a perda da vida e do próprio ser, e não tivesse outro castigo além do de tornar ao estado em que se encontrava antes de toda a culpa, isto é, antes de existir. Mesmo 77 a alma injusta deve, por conseguinte ser imortal, para sofrer uma pena, tal como é imortal a alma justa para gozar do prémio eterno (Ibid., 71). Todas as almas são, portanto, imortais, tanto as justas como as injustas; mesmo aquelas que não são capazes nem de uma coisa nem de outra, como as almas das crianças, devem sê-lo, porque devem ter a mesma natureza (ibid., 72). Sabemos pelo biógrafo Eadmer que Anselmo morreu quando tentava ansiosamente esclarecer a natureza e a origem da alma. Com efeito, pouco nos dizem as obras que nos deixou. A investigação de Anselmo, que começa com Deus, termina com a alma humana. Na verdade, Anselmo tinha feito suas as palavras de Santo Agostinho: "Desejo conhecer Deus e a alma: e nada mais". NOTA BIBLIOGRÁFICA § 190. As obras de Santo Anselmo em P. L., 158.---159.1, e>d. Schmitt 5 vols., Roma-Londres, 1938-1951. Opere filosofiche, trad. ital. de C. Ottaviano, 3 vols., Lanciano, 1938. - De Rémusat, Saint-Anselme de Canterbury; Vanni-Rovighi, SanVAnselmo, Milão, 1949 com bibliografia; Levasti, SantIAnselmo, Bari, 1929; Domet de Vorges, Saint-Anselme, Paris, 1901.
§ 191. Heitz, Essai historique sur les rapports entre Ia philosophie e Ia foi Bérenger de Tours à Saint-Thomas, Paris, 1909; Betzendõrfer, Glauben und Wissen bei den grassen Denkern des Mittelalters, 1931; Gilson, in "Arch. Hist. Doct. Lit. M<)yen Age" 1934, 5-51. § 192. Koyré, L'idée de Dieu dans Ia philosophie de Saint-Anselme, Paris, 1923; K. Barth, Fides quaerens intellectum, Mónaco, 1931. Sobre o argumento ontológico na escolástica: Daniels, nei Beitrage, VII1@ 1-2. Muitissimos filósofos tomaram posição sobre o argumento ontológico e das discussões referentes a esse ponto encontrar-,se-á eco na presente obra. 78 § 193. Seeberg, Dogmengeschischte, EI, 1913, p. 150 sgs., 207-226. § 194. Baeumker, nei Beitrâge, X, 6, 1912. § 195. Martin, La question de péché originel dans Saint-Anselme, in Reme des Sciences philos. et Théol. 1911, p. 735-749. 79 v A DISCUSSÃO SOBRE OS UNIVERSAIS § 200. UNIVERSAIS: O PROBLEMA E O SEU SIGNIFICADO HISTÓRICO A partir do século XII um dos tomas de discussão mais frequentes entre os escolásticos é o chamado problema dos universais. O problema parece ter surgido com uma passagem de 1sagoge (introdução) de Porfirio às Categorias de Aristóteles e dos comentários de Boécio a elas referentes. A passagem de Porfirio é a seguinte: "Sobre os géneros e as espécies não direi aqui se subsistem ou se estão s@mplesmente no intelecto, e, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, separados das coisas sensíveis ou situados nas mesmas, exprimindo os seus caeacteres uniformes". Das alternativas indicadas por Porfirio nesta passagem, uma apenas não obtém qualquer confrontação na história desta polémica: aquela, segundo a qual, os universais seriam realidades corpó reas. Em compensação, uma alternativa que, Porfirio não tinha previsto verificou-se históricamente: isto é, que o universal não existe 81 nem no intelecto e não passa de um simples; nome, de um flatus vocis. De qualquer modo, resulta da passagem de Porfirio que as duas soluções fundamentais do problema são aquelas que mais tarde se chamarão realismo (ou formalismo) e nom;inalismo (ou terminismo), a primeira das quais afirma, enquanto a outra nega, que os universais existem, de qualquer forma, fora da alma. As soluções que a discussão dos universais encontrou dentro da escolástica foram numerossímas: João de Salisbúria (Metalogicus, 11, 17) dá-
nos disso uma primeira amostra, no entanto bastante incompleta (Cfr. PrantI, Geschishte der Logik, II, p. 121 sgs.). Apesar do problema sobre o qual se discutia não fosse precisamente novo (como veremos em seguida), o próprio facto da posição explícita do problema (ainda que mediante o recurso a um texto antigo) e o reconhecimento da possibilidade de resolvê-lo em mais direcções é já por si significativo e pode ser considerado com um sinal do novo espírito que começa a invadir a escolástica a partir dos últimos decénios do século XI. Anteriormente a este período, nenhum pensador conseguia pôr em dúvida que os géneros e as espécies fossem ideias arquétipos na mente divina e formas dessa mesma mente impressas nas coisas. Deste ponto de vista, o problema dos universais não tinha sentido. Levantá-lo significa, com efeito, admitir que o mesmo pode ser Tesolvido de forma diferente das doutrinas que a primeira escolástica tinha deduzido da patrística e que se tornaram o património da especulação teológica. A posição do problema significa, portanto, a consideração do assunto de um ponto de vista, que deixa de ser apenas teológico, para passar a ser também filosófico: isto é, de um ponto de vista que vê nos universais não apenas os instrumentos da acção criadora de Deus mas também, e sobretudo, os instrumentos ou condições das operações 82 cognoscitivas do homem. A posição deste problema é, já de per si, a instauração de um ponto de vista que diz mais respeito ao homem que a Deus: com efeito, o problema colocado nos termos de Porfírio não é outro senão o problema da validade do conhecimento racional em geral. Isso é o indício de uma nova importância atribuída ao homem; e. deste ponto de vista, também as inumeráveis subtilezas que desde logo possam ser consideradas como a expressão da nova liberdade com que o homem se encara e encara os seus problemas. Esta nova liberdade, que se manifesta, (como veremos no capítulo seguinte) na renovada atenção que os filósofos dispensam ao mundo da natureza e aos seus problemas, acompanha e suporta o ressurgir económico e social da época: que se exprime na formação ou na consolidação das repúblicas marítimas e das comunas, nas trocas, nas viagens, na economia mercantil e, em geral, no prosseguimento da actividade e do espírito lógico. Do ponto de vista da história da lógica, a posição do problema dos universais está condicionada pela possibilidade reconhecida de uma alternativa diferente da metafísica ou da teologia que era aceite sem discussão no período precedente. É esta a alternativa nominalística que em breve passa a chamar-se a via moderna da ló gica e que não é mais que a direcção cínico-estoica apontada pela lógica, de harmonia com as obras de Boécio e de Cícero e contraposta à direcção tradicional platónico-aristotélica. Nominalismo e realismo correspondem, substancialmente, a estas duas direcções originárias. Para o realismo, isto é, para a tradição platónica-aristotélica, o universal é algo de diferente, um conceptus mentis, é a essência necessária ou a substância das coisas e a ideia de Deus. Para o nominalismo, isto é, para a tradição estoicizante, o universal é 83 urna marca das próprias coisas e está em lugar (supponit) delas. Apesar das suas querelas e de procurarem sempre novas soluções (que muitas vezes se
distinguem umas das outras apenas por um cabelo), os Escolásticos, com o seu eclectismo desenvolto, não renunciam, no entanto, aos resultados que no campo da lógica se possam obter, utilizando ora uma ora outra das duas orientações. A partir do século XIII os tratados lógicos justapõem simplesmente às doutrinas lógicas aristotélicas, as estóicas, dando igual importância tanto a umas como a outras sem se preocuparem com as divergentes orientações teóricas. As Summulae logicales de Pedro Hispano constituem o mais famoso modelo desta justaposição. O antagonismo entre o realismo e o nominalismo, entre a via antiga e a via moderna, é no entanto um antagonismo de fundo que transcende o alcance das subtis, abstractas e frequentemente aborrecidas querelas a que deu lugar. Do realismo pode-se fazer uso teológico e cosmológico, com o nominalismo não. Por isso, as correntes da escolástica que se inspiraram no realismo foram as que se aplicaram a defender a teologia e a concepção teológica do mundo. As que se inspiraram no nominalismo alinharam em geral contra a teologia e assumiram posições críticas nos confrontos da concepção teológica do mundo, conseguindo algumas vezes alcançar ousadas inovações que constituem como que o anunciar ou a preparação de novas concepções da natureza e do homem. Compreende-se a razão porque, no final da escolástica, o nominalismo tenha prevalecido: os problemas da teologia, respeitantes ao domínio da fé, não interessavam já à filosofia, que se voltava para outros campos, nos quais se poderiam deter, de forma mais oportuna e eficaz, os poderes racionais do homem. 84 § 201. ROSCELINO A primeira e clamorosa fase da querela dos universais foi provocada pelo aparecimento em cena de um nominalismo na sua forma mais extrema, defendido por uma figura singular, a de Roscelino. Otão de Freising, na sua crónica Sobre as proezas de Frederico, afirma que Roscelino "foi o primeiro nos nossos tempos, que propôs na lógica a doutrina das palavras (setentiam vocum)". Sabemos que Roscelino nasceu em Compiègne, estudou em Soissons e Reims e ensinou como teólogo na escola-cátedra de Compiègne, depois na de Loches, Bretanha, onde teve entre os seus alunos Abelardo, e em seguida em Besançon e Tours. Devia ter morrido entre 1123 e 1125, a julgar pelas apóstrofes que Abelardo lhe dirige nos seus escritos. De Roscelino, temos apenas uma carta dirigida a Abelardo sobre a questão da Trindade. Não sabemos se escreveu mais alguma outra coisa ou se as suas obras não foram ainda descobertas entre os manuscritos medievais. É provável que não tenha escrito mais nada, porque os seus adversários, Anselmo, Abelardo e João de Salisbúria não lhe atribuem nenhum livro e os Padres do Concílio de Soissons, que condenaram a sua doutrina trinitária, não deixariam de entregar às chamas os seus escritos se tivessem existido. Não podemos, portanto, conhecer a doutrina de Roscelino a não ser a-través dos escritos dos seus adversários e, especialmente, de Anselmo e de Abelardo. Anselmo coloca Roscelino entre os dialécticos, mais ainda, entre os hereges dialécticos do seu tempo, "que acreditam que as substâncias universais não passam de um
sopro de voz (flatus vocis); e que, por "com, apenas entendem o corpo colorido, e por "sabedoria" a própria alma do homem". Santo Anselmo acrescenta ainda a explicação de semelhante opinião: tais pessoas perma85 n=m enredadas nos sentidos e não conseguem libertar deles a razão. "Nas suas almas, a razão que deve ser a parte dominante e julgadora de tudo o que há no homem, está de tal maneira submergida nas imaginações corporais que não conseguem livrar-se delas; e mantêm-se incapazes de discerni-la quando afinal deveriam servir-se dela apenas para a especulação". (De fide Trin., 2). Esta incapacidade de Roscelino para seperar a razão do envólucro sensível é também motivo, segundo Anselmo, da heresia trinitária defendida pelo clérigo de Compiègne: "Quem não compreende nem sequer a maneira como os homens constituem a única espécie homem, como poderá compreender a maneira como através da misteriosíssima natureza divina, várias pessoas, sendo cada uma delas um Deus perfeito, constituem as três um só Deus? E quem tem a mente tão obscurecida que não sabe distinguir o cavalo da sua cor, como poderá distinguir o Deus único das suas diferentes relações? Em suma, quem não compreende que o homem não é o próprio indivíduo, de forma alguma poderá entender por homem a natureza humana" (ibid.). João de Salisbúria dá-nos um testemunho análogo sobre o nominalismo de Roscelino: coloca-o "entre os que afirmam que os géneros e as espécies não são outra coisa a não ser vozes" (Metal., 11, 13, Policrat., VII, 12). Abelardo ilustra-nos outro aspecto de tal nominalismo. Roscelino sustentou que é impossível que as coisas constem de partes e que as partes das coisas são, como as espécies, nomes diversos das próprias coisas (Obras inéditas, edic. Cousin, 471). Vimos já como Santo Anselmo relaciona com o nominalismo a heresia trinitária de Roscelino. Ele próprio nos afirma que, segundo Roscelino, "as três pessoas da Trindade são três real-idades como três anjos ou três almas, apesar de serem absolutamente 86 idênticas pela vontade e podem (De fide Tiin., 3); podendo-se acrescentar, se fosse costume admiti-lo, que constituem três divindades (Epist., 11, 41). Mas sobro esta doutrina temos algumas referências do próprio Roscelino na sua carta a Abelardo. Roscelino começa por identificar pessoa com substância, a propósito de Deus. Uma vez que, em Deus, diversos nomes não indicam realidades diversas, mas a mesma única e simplicíssima realidade, a pessoa só pode significar substância. Mas se as pessoas são diversas porque uma gera e a outra é gerada, é evidente que são diversas as substâncias da Trindade divina. A Trindade é una pela comunhão das três substâncias, não porque seja constituída por uma única substância. Reconhece-se, portanto, à Trindade uma unidade de semelhança ou de igualdade, mas não de substância. Daí se conclui que Roscelino deduziu o seu trideísmo da identificação de substância e pessoa (que na tradição eclesiástica sempre foram distintas): e foi levado a essa identificação por imaginar que as determinações diversas que se atribuem a Deus não são mais que nomes diversos de uma realidade única. A heresia de Roscelino foi condenada pela primeira vez num Concílio que se celebrou em Reims em 1092 ou 1093. Roscelino foi obrigado a abjurar e a ele
se submeteu com receio de ser assassinado pelo povo de Reiras; mas tendo abandonado a cidade, voltou a defender as suas teses. Foi novamente condenado em 1094 num concílio convocado pelo rei Filipe para celebrar as suas bodas com Bertrada. Expulso de França, dirigiu-se a Inglaterra, onde uma nova perseguição o obrigou a regressar a França. Tornou a aparecer para combater a doutrina de Abelardo, em 1121. O seu carácter surge-nos, através da carta que conhecemos dele, como pouco recomendável: ataca Abelardo nos 87 é termos mais violentos e atira-lhe em cara cinicamente a mutilação que lhe havia sido infligida. 1 § 202. GUILHERME DE CHAMPEAUX O realismo de Guilherme de Champeaux opõe-se ao nominalismo de Roscelino. Guilherme nasceu em Champeaux, perto de Melun, à volta de 1070 e foi discípulo em Paris de Anselmo de Laon (falecido em 1117), que contou entre os seus alunos alguns dos homens mais notáveis do seu tempo, entre os quais se encontravam Abelardo e Gilberto. Até 1108, Guilherme passou da escola catedral de Paris para a abadia de São Victor, da qual foi prior e abade. Em seguida foi nomeado bispo de Chálons-sur-Marne. Viveu até morrer em grande amizade com São Bernardo e faleceu no ano de 1121. Dos seus numerosos escritos ficaram: o De eucaristia, o De origine animae e um diálogo Sobre a fé católica. No que se refere à doutrina sobre os universais, a nossa principal fonte é a polémica que contra ele desencadeou Abelardo. Guilherme sustentava a realidade substancial dos universais e afirmava que tal realidade se encontra inteiramente em todos os indivíduos, que se multiplicam e se diferenciam entre si por qualidades acidentais. Por exemplo, a espécie "homem" é uma realidade que permanece una e idêntica em todos os homens; a ela se acrescentam depois as qualidades acidentais que são diferentes em Sócrates, Platão e nos outros indivíduos particulares (Abelardo, Obras inéditas, De gen. et. spec., 513). Abelardo, que foi discípulo de Guilherme, vangloria-se de o ter obrigado a modificar, e mais ainda, a abandonar completamente esta tese. Eis o texto de Abelardo (Hist. calam., 2): "Guilherme corrigiu a 88 sua opinião afirmando que a realidade universal se encontra nos indivíduos não essencialmente, mas individualmente". Individualiza-se, isto é, nos indivíduos de modo que perde a sua unidade essencial e se multiplica neles, o que é uma renúncia a afirmar a realidade em si do universal. Mas com isto a tese do realismo não se encontrava de todo abandonada: estava apenas abandonada a realidade separada do universal e admitia-se o universal in i-e, o universal individualizado e incorporado na mesma coisa individual. Esta é uma segunda fase do pensamento de Guilherme. Enquanto que a primeira nega efectivamente a realidade dos indivíduos, reduzindo-os a meras modificações acidentais da essência universal, a segunda sustenta a realidade dos indivíduos, afirmando, não obstante, a presença neles da essência universal
individualizada. Um fragmento das Senientiae faz-nos conhecer uma terceira fase da doutrina de Guilherme sobre os universais; a essência comum dos indivíduos particulares nem seria a mesma: os diversos indivíduos teriam apenas essências semelhantes. Nesta terceira fase, a doutrina de Guilherme transforma-se em puro conceptualismo. § 203. O TRATADO "DE GENERIBUS ET SPECIEBUS" O tratado De generibus et speciebus foi considerado por Cousin como uma obra de Abelardo e incluído entre as suas obras inéditas. Ritter foi o primeiro a negar esta atribuição e atribui o tratado a Joscelino (Gausleno, 1125-1151), bispo de Soissons. Esta atribuição foi logo confirmada por outros eruditos, e, com efeito, João de Salisbúria, no seu Metalogicus (11, 17) atribui a Gausleno a doutrina de que o universal é o conjunto das coisas siri89 gulares; doutrina contida no tratado. Nele se define a espécie como todo o conjunto de indivíduos que têm a mesma natureza. "Essa colecção, apesar de ser essencialmente múltiplice, chama-se tradicionalmente uma só espécie, um só universal, uma só natureza da mesma maneira que se fala de um só povo, ainda que este seja constituído por muitas pessoas" (Abelardo, Obras inéditas, edic., Cousin, 527). Para o indivíduo, a espécie é matéria, a individualidade a forma. Por exemplo, Sócrates é composto da matéria "homem" e da forma "Sócrates", Platão, de uma forma semelhante, isto é, "homem", e de uma forma diferente, isto é, "Platão", e assim para os outros. E como a socratitas que constitui formalmente Sócrates não subsiste fora de Sócrates, também a essência "homem" que em Sócrates constitui a socratitas não subsiste se não está em Sócrates. O ponto de vista defendido neste tratado aproxima-se muito do de Abelardo. NOTA BIBLIOGRáFICA § 200. Sobre a querela dos universais, que ocupa a actividade filos6fica de todos os escritos da época, veja-se a seguinte bibliografia. § 201. A carta de Roscelino a Abelardo está publicada nas obras de Abelardo, em Patr. Lat., verl. 1.78.o, 357 e sgs. Nova ed. de Reiners, em Beitrage, VIII, 5, 66-80. PICAVETE: PosceZin, Paris, 1911. Sobre o nominalismo: Reiners, op. cit. § 202. As obras de Guilherme de Champeaux, em P. L., 163., 1037-1072. As Sententiae (ou Quaest"es), em LEFÈVRE, Les variations de G. de Ch. et de Ia question des universaux, Lille, 1898; GRABMANN, GeSchischte des scholast. Methode, n 136-168. @ 203. O De generibus et speciebus, encontra-se nas obras inéditas de Abelardo, editadas por Cousin; RITTER, Gesch. d. Phil., VII, 1844, 364; PRANTL, II, 142-147; RoBERT, Les écoles et Ilenseignement de ta Theologie pendant ta preinière moitié du XII Mcle, Paris, 1909, 202, 205. 90 vi
ABELARDO § 204. ABELARDO: A FIGURA HISTÓRICA Abelardo é a primeira grande afirmação medieval do valor humano da investigação. Trata-se de urna figura que nem sequer a tradição medieval conseguiu reduzir ao esquema estereotipado de sábio ou santo; trata-se de um homem que pecou e sofreu e que colocou todo o significado da sua vida na investigação; de um mestre genial que fez durante séculos a fortuna e a fama da Universidade de Paris, e que encarna, pela primeira vez na Idade Média, a filosofia na sua liberdade e no seu significado humano. Dotado de grande presença física (Heloísa dá-nos disso testemunho em Ep., H em Patri 178.*, col. 185, quando ele se dirigia ou Regressava das aulas, com o seu olhar enérgico e a cabeça erguida, despertava a admiração de todos), de uma eloquência precisa e cortante, de um extraordinário poder dialéctico que o tornava invencível em todas as discussões, estava destinado ao êxito, que efectivamente lhe sorriu, acarretando-lhe invejas, perseguições e condenações. Mas o centro da sua 91 personalidade é a exigência da investigação: a necessidade de resolver em motivos racionais toda a verdade que seja ou queira ser como tal para o homem, de enfrentar com armas dialécticas todos os problemas para levá-los ao plano de uma compreensão humana efectiva. Para Abelardo, a fé no que se não pode entender é uma fé puramente verbal, privada de conteúdo espiritual e humano. A fé, que é um acto de vida, é inteligência do que se crê: todas as forças do homem devem portanto dirigir-se para a compreensão. Nesta convicção reside a força da sua especulação e do seu fascínio como professor. Nele torna-se claro o significado, até então incerto e débil, da ratio medieval. A ratio é a investigação a que o homem se entrega para compreender e fazer a sua verdade revelada e na qual realiza e encontra a sua substância humana. A razão é para o homem o **tiruico gu ,ia possível; e o exercício da razão, que é próprio da filosofia, é a actividade mais elevada do homem. Portanto, se a fé não é uma obrigação cega que pode dirigir-se no sentido do preconceito e do erro, deverá estar sujeita à joeira da razão. Deste ponto de vista, não subsiste uma diferença radical entre os filósofos pagãos e os filósofos cristãos; se o cristianismo constitui a perfeição do homem, também os filósofos pagãos, enquanto filósofos, foram cristãos na sua vida e na sua doutrina (Theol. christ., 11, 1). § 205. ABELARDO: VIDA E ESCRITOS As movimentadas circunstâncias da vida de Abelardo são contadas por ele próprio numa carta que tem o título de Historia calamitaium. Pedro Abelardo nasceu perto de Nantes, no ano de 1079, estudou dialéctica com Guilherme Champeaux, de 92 quem logo se tornou adversário e rival. Ensinou primeiramente dialéctica em
várias localidades de França, depois, em 1113, teologia na escola catedral de Paris. O ensino de Abelardo desenrolou-se entre discussões clamorosas e polémicas violentas, suscitadas pela sua intemperança dialéctica e pela inveja que o seu êxito provocava. Em Paris, apaixonou-se por Heloísa, sobrinha de um tal Fulberto, cónego, que era bela e muito culta e de quem teve um filho, Astrolábio. Tendo casado com ela para aplacar a ira do tio, quis manter secreto esse casamento, com receio que pudesse prejudicar a sua fama e carreira de professor, e enviou Heloísa para o convento de Argenteuil, perto de Paris, onde fora educada desde criança. Mas os tios e os parentes de Heloísa, julgando que Abelardo pretendia desembaraçar-se dela, vingaram-se e mandaram-no castrar enquanto ele dormia. Coberto de vergonha pelo ultraje recebido, Abelardo entrou num convento; e os dois esposos consagraram-se a Deus: Abelardo na abadia de São Dionísio perto de Paris; Heloísa, no mosteiro de Argenteuil. No epistolário de Abelardo conservam-se algumas cartas de Heloísa plenas de afecto e força de resignação Depois deste infortúnio, Abelardo renovou com redobrado entusiasmo o ensino, num lugar afastado em Nogent-sur-Seine, para onde os discípulos o acompanharam e onde construíram um oratório que ele consagrou ao Espírito Santo ou Paracleto. Em 1136 reapareceu em Paris e reatou as suas lições na montanha de Santa Genoveva, onde tinha conseguido os seus primeiros êxitos como professor. Exaltado pelos seus discípulos pela eloquência e ardor da sua dialéctica, invejado pelos outros professores, em breve Abelardo deu aso a que fosse apontado como herege. O Concílio de Soissons condenou a sua doutrina trinitária e obrigou-o a queimar por suas próprias 93 mãos, o livro De unitate et trinitate divina (1121). Nos últimos anos da sua vida manteve uma polémica com São Bernardo, que provocou a sua condenação pelo Sínodo de Sens (1140). Abelardo apelou para o Papa o resolveu dirigir-se a Roma para defender a sua causa; mas o abade Podro de Cluny convenceu-o a permanecer em Cluny e a reconciliar-se com a Igreja, com o Papa e com São Bernardo. Abelardo compôs, nesta altura, uma Apologia e passou os últimos dias da sua vida na abadia de Saint Marcel. Aqui morreu em 20 de Abril de 1142 com 63 anos. Os seus restos mortais foram sepultados no Paracleto o para ali foram levados e sepultados a seu lado, vinte e um anos depois, os restos mortais de Heloísa (1164). Abelardo é o autor de uma Dialéctica, escrita em 1121, de numerosas obras lógicas constituídas de comentários (Glossae) aos escritos lógicos de Porfírio e Boécio e de uma obra intitulada Sic et non, que é a típica expressão do seu método. Além disso, escreveu três obras sobre o problema trinitário: Tractatus de unitate et trinitate divina, Introductio ad Theologiam, Theologia christiana. As referências contidas nestas obras permitem conjecturar que a Theologia christiana foi escrita depois de De unitate, e provàvelmente entre 1123-1124, e que a Introductio não é mais que a primeira parte da Theologia condenada no Concílio de Sens. Em continuação,
Abelardo escreveu um Conientario sobre a Epístola aos Romanos e a Ética ou Scito te ipsum. Posteriores ainda são as Cartas a Heloísa, os Sermões, os Hinos, os Problemata, a Exposiiio in Exameron. A carta com o título Historia Calamitatum foi escrita entre 1133 e 1136. Nos últimos anos, passados em Cluny, Abelardo escreveu Carmen ad Astrolabium e o Dialogus inter indaeum, philosophum et christianum (1141-1142). 94 § 206. ABELARDO: O MÉTODO Abelardo exerceu sobre o desenvolvimento da filosofia medieval uma influência decisiva. Esta influência deve-se, em primeiro lugar, ao seu fascínio como mestre. Ele foi, senão o fundador, pelo menos o precursor da Universidade de Paris. o seu prestígio como professor e a superioridade do seu método consagraram a celebridade da escola de Paris e prepararam a formação da Universidade. A obra na qual melhor esclareceu e pôs em prática o seu método de investigação é o Sic et non. Trata-se de uma compilação de opiniões (sententiae) de Padres da Igreja, ordenadas segundo os problemas que abordam, de forma a que apareçam as diversas opiniões como respostas positivas ou negativas ao problema proposto (daí o título que significa sim e não). O processo ameaçava lançar o descrédito sobre a unidade da tradição eclesiástica, fazendo realçar os seus contrastes de forma evidente; mas a finalidade de Abelardo era a de expor os problemas de forma nítida para demonstrar a necessidade de resolvê-los. Com este fim, descreve no prólogo uma série de regras. Começa por distinguir os textos do Velho e do Novo Testamento e os textos patrísticos. Os primeiros lêem-se com a obrigação de crer; os outros, com liberdade de juízo. Se se encontra nos primeiros alguma coisa que pareça absurdo, é preciso supor, não que o autor esteja enganado, mas que o código é falso ou que o intérprete se equivocou ou então somos nós que não conseguimos compreender. Mas no que se refere aos outros textos, muito do que contêm foi escrito mais segundo a opinião do que a verdade. Quando neles se encontram opiniões diferentes e opostas sobre o mesmo tema, é preciso ter em conta o fim que o autor tinha em vista, e é preciso distinguir as épocas em que a coisa foi dita, porque o que se 95 admite numa época é Proibido noutra e o que é prescrito rigorosamente na maioria das vezes é depois suavizado pela dispensa. Em suma, esta é a regra fundamental, e muitas controvérsias podem facilmente ser resolvidas se se tiver em conta que as mesmas palavras têm significados diversos na boca de diferentes autores. Há que realizar, portanto, uma investigação completa para resolver os contrastes entre os textos que têm autoridade em filosofia. E se se considerar que a disciplina que estuda e prescreve o uso das palavras e o seu significado é a lógica, vê-se que a lógica terá, na investigação escolástica, como propõe Abelardo, um lugar predominante. A lógica equivale à razão humana. A investigação de Abelardo é uma busca racionalista que se exerce sobre os textos tradicionais para encontrar neles, livremente, a verdade que contêm. Esta investigação deve ser entendida como uma constante interrogação (assidua seu frequens interrogatio). Principia na dúvida, porque só a dúvida
promove a investigação e só a investigação conduz à verdade (dubitando enim ad inquisilionem venimus; inquirendo veritatem percipimus). Nisto reside, sem dúvida, o motivo de fascínio que a personalidade de Abelardo exerceu sobre os seus contemporâneos e da eficácia do seu ensino sobre a escolástica. Abelardo é uma das personalidades que mais sentiu e viveu as exigências e o valor da investigação. Os resultados especulativos são para ele menos importantes que a investigação necessária para chegar a esses resultados. O ter encarnado o espírito da investigação racional numa época de despertar filosófico, levou-o a ser considerado o fundador do método escolástico. Este método, em breve se fixou, depois dele, num esquema que foi seguido universalmente, o esquema da questio, que consiste em partir de textos que dão soluções opostas ao mesmo problema 96 para chegar a elucidar, por um caminho puramente lógico, o própria problema. Este método, que a princípio foi tido como duvidoso e combatido, em breve prevaleceu em toda a escolástica. § 207. ABELARDO: RAZÃO E AUTORIDADE O predomínio da investigação na especulação de Abelardo confere à razão o predomínio sobre a autoridade. Abelardo não nega a função da autoridade na investigação: "Enquanto a razão se mantém oculta, afirma, (Theol. christ., 111, Migne, col. 1226), deve bastar a autoridade e deve respeitar-se sobre o valor da autoridade aquele conhecidíssimo princípio, transmitido pelos filósofos: não se deve contradizer o que parece verdadeiro a todos os homens, ou aos que são mais, ou aos que são doutos". Só à autoridade nos devemos confiar enquanto se mantiver oculta a razão (dum ratio latet). Mas a autoridade passa a ser inútil quando a razão possui meios para encontrar, por si, a verdade. "Todos sabemos que, naquilo que pode ser discutido pela razão, não é necessário o juízo da autoridade" (Theol. christ., 111, col, 1224). É certo que a razão humana não é medida suficiente para compreender as coisas divinas (De unit. et trin., edic. StólzIe, 27). A propósito da Trindade, por exemplo, Abelardo diz explicitamente que não pode prometer com este argumento ensinar a verdade à qual nenhum homem pode chegar, mas propor apenas uma solução verosímil ou próxima da razão humana e que, ao mesmo tempo, não seja contrária à fé (Int. ad Theol., H, 2). Mas isto não implica que a fé não se deva alcançar e defender com a razão. Se não é preciso discutir, nem sequer sobre o que se deve ou não deve crer, que nos resta senão prestar fé tanto 97 aos que dizem a verdade como aos que dizem o que é falso? (Ibid., 11, 3). Não cremos numa coisa porque Deus a tenha dito, mas porque admitimos que Ele a disse, e assim nos convencemos de que a coisa é verdadeira. Uma fé cega, prestada com ligeireza, não tem nenhuma estabilidade, é uma fé incauta e
privada de discernimento: em qualquer caso é preciso discutir, pelo menos de antemão, se é necessário acreditar ou não (Ibid., 11, 3). A última convicção de Abelardo está expressa na Historia calamitatum (cap. 9). Nela afirma que escreveu o livro sobre a Unidade e Trindade divina para os seus discípulos que, no campo teológico, procuravam argumentos humanos e filosóficos e queriam mais raciocínios do que palavras. É ingénuo pronunciar-se palavras cujo significado não se entende, uma vez que não se pode crer senão no que se entende, e é ridículo predicar aos outros aquilo que quem predica ou quem ouve não consegue apreender. Não se pode crer senão no que se compreende. Nesta frase se contém o verdadeiro cerne da investigação de Abelardo. A própria verdade -revelada não é verdade para o homem, se não apelar para a sua racionalidade, se não o deixa entender e apropriar-se dela. § 208. ABELARDO: O UNIVERSAL COMO DISCURSO Na discussão sobre os universais, a posição de Abelardo é típica e vai influenciar poderosamente o desenvolvimento posterior do problema. Com efeito, Abelardo foi o primeiro que baseou a sua solução não já na verdadeira ou suposta realidade metafísica do conceito, mas unicamente na sua função, que é a de significar as coisas. Abelardo parte da definição de universal dada por Aristóteles (De interpr., 1, 6). "Universal é o 98 que nasceu para ser predicado de muitas coisas". Em virtude desta definição, Abelardo acentua o carácter lógico e puramente funcional do universal e, por um lado, nega que possa, por qualquer título, ser considerado como uma realidade ou res, e por outro, que possa considerar-se como um puro nome. Não pode ser considerado como realidade porque nenhuma realidade pode ser predIcada de outra. Rem de re praedicari monstrum dicunt, afirma João de Salisbúria no Metalogicus (11, 17) referindo-se a Abelardo e aos seus continuadores. Por outro lado, não pode ser uma pura voz, porque a própria voz como tal é uma coisa, uma realidade particular que não _ pode ser predicada de outra. A fórmula de Roscelino: universal est vox, é substituída por Abelardo pela fórmula universal est sermo: diferentemente de vox, sermo supõe predicabilidade, referenoia a uma realidade significada, o que a escolástica posterior chamará intencionalidade. Este ponto de vista que encontra a sua expressão mais clara nas Glosas a Boécio, tem o grande mérito de ter clarificado a natureza puramente lógica e funcional do conceito. Trata-se de uma descoberta que o posterior desenvolvimento da lógica medieval não irá esquecer. Através dela, Abelardo pode justificar a realidade objectiva do universal sem ter de recorrer às hipóstases metafísicas do realismo. É evidente que não existe o universal fora das coisas individuais. Quando os filósofos afirmam que a espécie é criada pelo género, não pressupõem com isto que o género preceda às suas espécies no tempo ou exista antes delas. O género não é de forma alguma anterior à espécie, e nunca pôde existir um animal que não fosse nem racional nem irracional: o género não pode existir senão com a espécie, tal como esta não pode existir senão com aquele. (Int. ad theol., 11, 13). Mas o facto de o
universal não existir na realidade como tal, não significa que não 99 seja nada. As coisas singulares, nas suas propriedades e na sua natureza, são uniformes ou semelhantes, a~r desta uniformidade ou semelhança não constituir, por sua vez, uma coisa singular. Todas as coisas separadas, como Sócrates e Platão, são opostas em número mas convergem nalguma coisa, por exemplo, no facto de serem homens. E esta convergência ou uniformidade é real: Abelardo define-a, como um status, que não é nem uma res nem um nihilum. Quando se diz que todos os homens se aproximam pelo facto de serem homens (In statu hominis), deve-se entender apenas que todos são homens e que nisto não diferem em nada. (Philosophische Schriften, ed. Glyer p. 19-20). Tal é a a tese típica do nominalismo medieval; e a lógica nominalista integrá-lo mais tarde, com a doutrina da suppositio: mediante a qual se exprime a função própria do conceito (como -sinal) de estar em lugar, nas proposições e nos raciocínios em que é utilizado, de um conjunto de objectos entre os seus similares. § 209. ABELARDO: O ACORDO ENTRE A FILOSOFIA E A REVELAÇÃO O valor que a investigação racional como tal assume aos olhos de Abelardo, condu-lo naturalmente a reconhecer o valor de todos aqueles que se dedicam ao mesmo tipo de investigação, mesmo que estejam fora do cristianismo. Abelardo reconhece assim que a verdade falou também pela própria boca dos filósofos pagãos, que também poderiam ter reconhecido a natureza trinitária de Deus (Intr., ad. Theol., 1, 20). A distinção entre filósofos pagãos e cristãos deixa de ter valor para ele: todos estão unidos pela razão. Tanto a vida como a doutrina dos filósofos, afirma ele, encarnam o mais alto grau da perfeição evangélica ou apostólica, e pouco 100 ou nada se afastam da religião cristã (Theol., christ., 11, 1, col. 1184). A intenção fundamental de Abelardo nas suas especulações teológicas, é precisamente a de mostrar o acordo substancial entre a doutrina cristã e a filosofia pagã. Abelardo dá-se conta, todavia, de estar a forçar, nesta sua tentativa, o sentido literal das expressões dos filósofos a que se refere, mas defende-se recordando que os próprios profetas, quando através deles falava o Espírito Santo, não entendiam, senão em parte, o significado das suas palavras: as quais muitas vezes são tomadas claras e interpretadas por outros (Introd. ad theol., 1, 20). De acordo com estes pressupostos, o tratamento racional do dogma trinitário é em Abelardo conduzido no sentido de demonstrar o acordo substancial dos filósofos, em particular de Platão e dos neo-platónicos, com a revelação cristã. Com efeito, até mesmo os filósofos pagãos, segundo Abelardo, conheceram a Trindade. E admitiram que a Inteligência divina ou Nous nasceu de Deus e é coeterna com Ele, e, além disso, consideraram a alma do mundo, como uma terceira pessoa, que procede de Deus e é a vida e a salvação do mundo. " Platão, afirma Abelardo, reconheceu explicitamente o Espirito Santo
como a Alma do mundo e como a vida de tudo. Uma vez que na bondade divina tudo, de certo modo, vive; e todas as coisas estão vivas e nenhuma está morta em Deus; o que significa que nenhuma é inútil, nem mesmo, os males, que são dispostos da melhor maneira para bem do conjunto" (Theol., christ., 1, 27, c. 1013). Se Platão afirma que a alma do mundo é em parte indivisível e mutável e em parte divisível e mutável, enquanto se multiplica nos vários corpos, isto deve ser entendido no sentido de que o Espírito Santo permanece indivisível em si mesmo; mas, enquanto multiplica os seus dons, aparece dividido na sua 101 acção vivificadora. Quando Platão afirma que a Alma foi colocada por Deus no meio do mundo e que a partir daí se estende igualmente por todo o globo, o que ele quer afirmar, de forma elegante, é que a graça de Deus se oferece igualmente a todos, e que nesta casa ou templo que é seu, o mundo, ele dispõe todas as coisas de modo salutar e justo (Introd. ad theol., 1, 27). A doutrina Platónica coincide assim de forma substancial, com a fé na Trindade; e se Platão afirma que a Mente e a Alma do mundo foram criadas, trata-se de uma expressão imprópria que quer significar a geração e a providência das duas pessoas, divinas do Pai Ubid. 1, 10). § 210. ABELARDO: A TRINDADE DIVINA Estas analogias guiam Abelardo nas suas interpretações trinitárias. A distinção das três pessoas é baseada na distinção dos atributos. Com o nome do Pai indica-se a potência da majestade divina pela qual pode fazer tudo o que quer. Com o nome de Filho ou Verbo designa-se a sapiência de Deus, pela qual ele pode conhecer tudo e de modo algum ser enganado. Com o nome de Espírito Santo exprime-se a caridade ou benignidade divina, pela qual Deus quer que tudo seja disposto do melhor modo e dirigido ao melhor fim. Estes três momentos da Trindade garantem a perfeição divina, uma vez que não é perfeito em tudo quem é importante em qualquer coisa, nem é perfeitamente santo quem pode enganar-se em qualquer coisa, nem é perfeitamente bondoso quem não quer que tudo seja disposto do melhor modo. Os três atributos de Deus, expressos nas três pessoas da Trindade, pressupõem-se e reclamam-se uns aos outros. E assim, ainda que a sapiência pertença ao Filho e a caridade ao Espírito Santo, todavia, tanto o Pai como 102 o Espírito Santo são inteira sapiência; e, do mesmo modo, tanto o Pai como o Filho são também caridade (Int. ad Theol., 1, 7-10). Em razão desta unidade dos atributos divinos, as várias pessoas derivam umas das outras. O Pai, que é a potência, gera em si a sua sapiência, que é o Filho, se bem que a própria sapiência divina, seja uma potência, isto é: um poder de Deus: o poder de discernir a forma de evitar qualquer engano ou erro, de modo a que nada pode subtrair-se ao conhecimento de Deus. O Espírito Santo procede do Pai e do
Filho, enquanto a bondade é própria do Espírito, a forma de produzir os seus efeitos deriva da potência e da sapiência de Deus: pois se não derivasse da potência seria privado de eficácia e se não derivasse da sapiência não conheceria a melhor forma de explicar-se e de produzir os seus efeitos. O Espírito Santo designa portanto o proceder de Deus de si para as criaturas, que têm necessidade dos benefícios da graça divina, proceder que é ditado pelo amor de Deus (1b., 11, 14). O Filho e o Espírito Santo diferem, todavia, na sua derivação de Deus Pai: o Filho é gerado pelo Pai, e é da mesma substância do Pai, uma vez que a sapiência é uma determinada potência; o Espírito Santo não é da mesma substância do Pai e do Filho porque a caridade, que não é atributo, não é nem potência nem sapiência, ainda que esteja condicionada na sua eficácia, tanto por uma como por outra. Fala-se, portanto, de geração do Filho em relação ao Pai, e de processão do Espírito Santo, tanto em relação ao Pai como ao Filho (1b., 11, 14). A relação entre as três pessoas divinas e a sua geração ou processão é ilustrada em Abelardo com uma comparação. A divina Sapiência é um aspecto determinado da divina Potência do mesmo modo que um selo de bronze é uma determinada parte do bronze. A divina Sapiência recebe o seu ser 103 da divina Potência tal como O selo de bronze recebe o seu ser do bronze de que é formado. Para que seja um selo de bronze, é necessário que exista o bronze; assim a divina Sapiência que é a potência de conhecer, exige necessariamente que haja a divina Potência, de que é formada. E como o bronze se chama a substância do selo, assim a divina Potência é a substância da divina Sapiência. Nesta similitude, o Espírito Santo é aquele que se serve do selo e aquele que pressupõe o ser do próprio selo e do bronze que o constitui. Tal como aquele que ao usar o selo se serve de qualquer coisa mole sobre a qual imprime a imagem que existe na substância do selo, assim o Espírito Santo, com a distribuição dos seus dons, reconstitui em nós, a imagem destruída de Deus, para que de novo sejamos feitos conforme a imagem do Filho de Deus, isto é: de Cristo. Em suma, tal como o bronze, o selo e o acto de selar são uma só coisa na sua essência, ainda que se trate de três coisas distintas uma das outras; assim também o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são uma única essência, mas são distintos uns dos outros nos seus atributos pessoais, de forma que nenhuma pessoa pode ser substituída por outra. O bronze, como matéria, não é a forma do selo e reciprocamente. Assim o Pai não é o Filho, e a Potência divina não é a divina Sapiência; e reciprocamente (Int. ad. theol., 11, 14). Estas especulações trinitárias de Abelardo suscitaram a crítica de S. Bernardo que interpretou os atributos com que Abelardo caracteriza as três pessoas divinas como se fossem omnipotência, semi. -potência, nenhuma potência (De erroribus Ab., 3, 8). E na verdade tal coisa é teológicamente imprópria, uma vez que não assume a substancialidade das pessoas divinas que são reduzidas, segundo o esquema de Escoto Erígena, a três momentos da vida divina (modalismo). Por outro lado, a especulação de Abe104
Abelardo conduz Heloísa para o Convento do Paráclito lardo tem uma intencionalidade mais cosmológica do que teológica. O seu objectivo é mais o de esclarecer a estrutura e a constituição do mundo e a relação entre o mundo e Deus, do que propriamente esclarecer a natureza de Deus. E esta sua intencionalidade cosmológica foi aplicada e utilizada pelos filósofos posteriores, especialmente os da escola de Chartres. § 211. ABELARDO: A UNIDADE DIVINA No que se refere à natureza de Deus em si própria, Abelardo repete a especulação negativa de Escoto Erígena. Não é possível definir a essência de Deus, porque Deus é inexprimível. Deus está fora do número das coisas, porque não é nenhuma delas. Todas as coisas pertencem ou à categoria da substância ou a outra categoria. Mas aquilo que não é substância não pode subsistir em si. Ora bem, Deus é o princípio e fundamento de tudo, portanto não pode pertence- ao conjunto das coisas que não são substância. Mas tão-pouco pode ser integrado nas substâncias. Com efeito, o que é característico da substância é o permanecer numericamente una e idêntica, ainda que possa receber em si determinações diversas e opostas. Mas Deus não pode receber nenhuma dessas determinações, porque nele não há nada de acidental e de mutável. Por isso, mais que substância, deve-se chamar-lhe essência, dado que nele, o ser e o subsistir são absolutamente -idênticos. Nenhum nome, nenhuma palavra referida a Deus conserva o significado com a qual são referidas todas as coisas criadas. A natureza divina apenas pode ser exprimida com parábolas e metáforas. Podemos distinguir, por exemplo, na substância do homem a vida animal, a razão, a mortalidade, etc., ainda que a essência do homem permaneça numericamente una e idêntica. Do mesmo modo pode105 mos supor que na divina Substância se podem distinguir atributos diversos, constitutivos de três pessoas diferentes, permanecendo, no entanto, aquela substância una e idêntica (Intr., ad theol., il, 12). Para compreender a unidade das pessoas divinas é útil considerar uma outra imagem que Abelardo vai buscar à gramática. A gramática distingue três pessoas: a que fala, aquela a quem se fala e aquela de que se fala; mas reconhece que estas três pessoas podem ser atribuídas a um mesmo sujeito. Uma pessoa pode falar de si a si própria; neste caso, referem-se ao mesmo sujeito todas as três pessoas da gramática. Além disso, a primeira pessoa é o fundamento das outras, uma vez que não há ninguém que fale, também não há ninguém a quem se fale e ninguém de que se fale. Em suma, a terceira pessoa depende das duas precedentes, pois que só entre duas pessoas que falam se pode falar de uma terceira pessoa. Em tudo isto podemos encontrar a imagem da unidade divina; ainda que a segunda pessoa, com efeito, pressuponha a primeira e a terceira as outras duas. E como um e mesmo homem pode ser a primeira, a segunda e a terceira pessoas gramaticais, sem que estas três pessoas se confundam ou anulam; assim também em Deus a mesma essência pode ser as três pessoas, sem que as três pessoas se identifiquem umas com as
outras (lbid., 11, 12). § 212. ABELARDO: DEUS E O MUNDO As relações entre Deus e o mundo são esclarecidas em Abelardo com o fundamento dos atributos divinos e em primeiro lugar o da omnipotência, que é o atributo próprio do Pai. A conclusão a que Abelardo chega, a propósito deste atributo, é de que Deus não pode fazer nem mais nem menos 106 daquilo que faz e por isso a sua acção é necessária. Com efeito, Deus apenas pode fazer o bem. Deus faz aquilo que quer, mas quer aquilo que é bom. O princípio da sua acção não é o sic volo, sic iubeo, sit pro ratione voluntas: Ele quer apenas que aconteça aquilo que é bom que aconteça. (Theol. christ., V, col. 1323). É claro pois, que, em tudo aquilo que Deus faz ou deixa de fazer, há uma justa causa... Tudo aquilo que ele faz, deve fazê-lo, porque se é justo que alguma coisa aconteça, é injusto que essa coisa seja omitida (Intr., ad theol., 111, 5). Nem se pode dizer que, se Deus tivesse feito algo de diferente daquilo que fez, esse algo seria também bom, porque seria feito por ele; uma vez que, se aquilo que não fez, fosse bom como aquilo que faz, não haveria fundamento para a sua escolha nem motivo para fazer uma coisa e omitir outra. Se aquilo que faz é apenas o bem, Deus pode fazer apenas aquilo que faz. Tinha pois razão Platão ao afirmar que Deus não podia criar um mundo melhor do que aquele que criou (lb., 111, 5). Em Deus, possibilidade e vontade são uma e só coisa: é verdade que ele pode tudo o que quer, mas é verdade também que ele não pode, senão aquilo que quer. Esta doutrina de Abelardo implica a necessidade da criação do mundo e o optimismo metafísico. O mundo foi necessariamente querido e criado por Deus. Tudo o que Deus quer, quere-o necessariamente, nem a sua vontade pode permanecer ineficaz; necessariamente, pois, Ele leva a seu termo tudo aquilo que quer (Theol., christ., V, col. 1325 e segs.). A necessidade do mundo não implica a essência da liberdade em Deus. A liberdade não consiste em escolher indiferentemente o fazer uma coisa ou outra, mas antes em executar sem coacção, e com plena independência, aquilo que se decidiu consciente e racionalmente. Esta liberdade pertence também a 107 Deus: pois tudo aquilo que ele faz, fá-lo apenas por sua vontade, e portanto sem precisar de qualquer coacção (Intr. ad theol., 111, 5). Deus concedeu ao homem a possibilidade de pecar e de fazer o mal para que, em confronto com a nossa fraqueza, nos surja na sua glória, uma vez que de forma alguma Ele pode pecar: e para que ao afastarmo-nos do pecado não atribuamos isso à nossa natureza, mas à ajuda da sua graça que dispõe para a sua glória não só o bem como também o mal (Ib., HI, 5). A necessidade que é própria de Deus reflecte-se nas acções de Deus no mundo. Deus prevê tudo: e se bem que a sua previsão não seja necessariamente determinante em relação aos acontecimentos singulares, não pode contudo ser
desmentida e esses acontecimentos devem integrar-se na ordem das suas previsões. Nesta ordem integra-se também a predeterminação. Deus predestina os eleitos à salvação, mas mesmo aqueles que ele não predestina e que por isso estão condenados, integram-se na ordem providencial do mundo. A acção de Deus não é nunca sem motivo, ainda que o motivo permaneça oculto aos homens. Mesmo a traição de Judas integra-se na ordem providencial, porque sem a sua existência não teria sido possível a redenção da humanidade. E, tal como a traição de Judas, todos os males que podem acontecer ou acontecem, estão ordenados pela Providência divina para o bem, o têm o seu motivo e o seu resultado inevitável, mesmo que o homem não possa dar-se conta disso Un Ep. ad Rom., col. 649-52). § 213. ABELARDO: O HOMEM A alma humana é, segundo Abelardo, uma essência simples e distinta do corpo. Existe um sentido ao afirmar-se que até as criaturas intelectuais, como 108 a alma ou o anjo, são corpóreas, enquanto estão ,limitadas no espaço; mas trata-se de um sentido impróprio que deriva de um conceito falar de corporeidade. A alma está toda presente em todas as partes do corpo e é o princípio da vida corpórea. Só através da alma o corpo é o que é (Intr. ad theol., HI, 6). Como natureza espiritual, a alma traz em si a imagem da Trindade divina. O que na alma é substância, é na Trindade a pessoa do Pai; o que na alma é virtude e sapiência é na Trindade o Filho, que é a Virtude e a Sapiência de Deus; aquilo que na alma é a propriedade de vivificar-se é na Trindade o Espírito Santo, ao qual corresponde a missão de dar vida ao mundo (1b., 1, 5). A alma humana é dotada de livre arbítrio. "Por livre arbítrio, afirma Abelardo, entendem os filósofos o livre juízo da vontade. O arbítrio é, com efeito, a deliberação ou o juízo da alma, pelo qual alguém se propõe fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. Este juízo é livre quando nenhuma necessidade de natureza impõe a realização do que se decidiu e permanece em nosso poder tanto o fazer como o deixar de fazem (lb., 111, 7). Os animais não têm livre arbítrio porque não têm raciocínio e mesmo nós estamos privados de livre arbítrio quando queremos aquilo que não está no nosso poder ou quando alguma coisa acontece sem a nossa decisão. Como capacidade de executar voluntariamente e sem coacção a acção que se decide a seguir a um juízo racional, o livre arbítrio pertence quer aos homens quer a Deus e em geral a todos os que não estão privados na faculdade de querer. Pertence também, e em grau eminente, aos que não podem pecar. O que não pode peca-r, não pode certamente afastar-se do bem; mas isso não implica que seja obrigado a fazêlo por uma necessidade de coacção. Essa impossibilidade não deve confundir-se com uma constrição que impeça ou vincule o juízo racional 109 da vontade (1b., 111, 7). Pode dizer-se, assim, que a liberdade de escolha é mais ampla no âmbito do bem, quando aquele que escolhe está livre da servidão do pecado (1b., 111, 7).
§ 214. ABELARDO: A ÉTICA O ponto central da ética de Abelardo é a distinção entre vício e pecado e entre pecado e má acção. O vício, é uma inclinação natural da alma para o pecado. Mas se tal inclinação consegue ser combatida e vencida, não só não dá origem ao pecado, como torna ainda mais meritória a virtude. O pecado é, pelo contrário, o consentimento dado a essa inclinação e é um acto de desprezo e de ofensa a Deus. Consiste no não cumprir a vontade de Deus, no transgredir uma sua proibição. Trata-se de um não-fazer, ou de um não-omitir; de um não-ser, de uma deficiência, de uma ausência de realidade: de algo sem substância (Scito te ipsum 3). A acção pecaminosa pode ser cometida mesmo sem o consentimento da vontade, mesmo sem pecado: como acontece quando, por defesa. se mata um perseguidor furioso. O mal da alma é verdadeiramente apenas o pecado, o consentimento dado a uma inclinação viciosa. A vida humana é uma contínua luta contra o pecado. "Desta forma, nós estamos sempre empenhados num combate interior para recebermos no outro mundo a coroa dos vencedores. Mas para que haja batalha é necessário que exista um inimigo que resista e que não deixe de surgir. Este inimigo é a nossa vontade pecaminosa, sobre a qual devemos triunfar submetendo-a ao querer de Deus; mas nunca conseguiremos eliminá-la definitivamente porque devemos ter sempre um inimigo contra quem combatem (1b.). Abelardo está na situação de -insistir, com base nestas premissas, sobre a pura interioridade das valoHo rações mormis. A acção pecaminosa nada acrescenta ao pecado que é o acto pelo qual o homem despreza o querer divino. Onde não existe consentimento da vontade não existe pecado, ainda que a acção seja em si pecaminosa (como no caso de quem mata coagido), e quando existe consentimento da vontade na inclinação viciosa, o facto de se seguir a ela uma acção pecaminosa nada acrescenta à culpa. Deve-se chamar transgressor, não àquele que faz aquilo que é proibido, mas àquele que apenas consente no que é proibido por Deus: e assim a proibição deve entender-se como referida não à acção, mas ao consentimento. "Deus tem em conta não as coisas que se fazem mas o ânimo com que elas são feitas; e o mérito e o valor do que actua não consiste na acção mas na intenção" (1b.). Uma mesma acção pode ser boa ou má; por exemplo, enforcar um homem tanto pode ser um acto de justiça como de malvadez. Nem sempre o juízo humano pode adequar-se a esta exigência da valoração humana. Mas isso acontece porque os homens não têm em conta a culpabilidade interior, a não ser o acto pecaminoso externo, que é efeito da culpa. Apenas Deus que observa, não as acções, mas o espírito com que são praticadas, pode avaliar segundo a verdade, o valor das intenções humanas e julgar exactamente a culpa (1b., 5). O juízo humano afasta-se necessariamente do juízo divino. O primeiro castiga mais a acção do que a intenção, porque segue mais um critério de oportunidade do que um dever de justiça e tem em mira, sobretudo, a utilidade comum; o segundo, pelo contrário, castiga exclusivamente a intenção e inspira-se na mais perfeita justiça, sem ter em conta as repercussões sociais da culpa. Mas enquanto o juízo humano se conforma com necessários critérios de oportunidade, tal coisa não é justificável com o fundamento da realidade moral
111 do homem. Para esta real-idade não é a acção mas a intenção que conta, e a acção só é boa quando procede de uma boa intenção. Na verdade, a bondade da intenção deve ser real, não aparente; é necessário que o homem não se engane ao crer que o fim para que tende seja da vontade de Deus (1b., 11). Abelardo procede coerentemente nesta ética da intenção e não se detém perante as consequências teologicamente perigosas da mesma. Se o pecado está apenas na intenção, como se justifica o pecado original? Abelardo responde que o pecado original não é um pecado, mas a pena de um pecado. "Quando se diz que as crianças nascem com o pecado original e que nós todos, segundo o Apóstolo, pecámos como Adão, é como se se dissesse que do pecado de Adão derivou a nossa pena, que é a sentença da nossa condenação" (1b., 14). Igualmente impróprio é chamar pecado à ,ignorância em que vivem os infiéis em relação à verdade cristã e as consequências que surgem de tal ignorância. "Não constitui pecado o ser infiel, ainda que -tal coisa impeça a entrada na vida eterna àqueles que chegaram ao uso da razão. Para ser-se condenado é suficiente não acreditar no Evangelho, ignorar a Cristo não se aproximar dos Sacramentos da Igreja, ainda que isto aconteça não por maldade, mas apenas por ignorância" (1b., 14). Não se pode ter por culpa o facto de não acreditarem no Evangelho e em Cristo aqueles que nunca ouviram falar nem dum nem doutro. Afirmar que se pode pecar por ignorância significa entender o pecado num sentido lato e impróprio, já que o pecado é verdadeiramente apenas a ignorância quando é efeito de negligência consciente. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 205. As obras teológicas de Abelardo in P. L., 178.o. Alguns escritos foram publicados parcialmente Por COUSIN, Ouvrages inédits d'Abélard, Paris, 1836 112 (Cousin tem uma nova edição das obras já editadas, conjuntamente com Jourdain, Paris, 1849-1859); outros por GYEER, Abaelards philosophie Schriften, nei "Beitrage", XX1, 1-4, 1933; e por DAL PRA, P. Abelardo Scritti filosofici, Milão, 1954. Outras edições: De unitate et trinitate divina, ed. Stõlzl,e, Friburgo, 1891; Theologia Summi boni, ed. Ostlender, nei "Beitrage", XXV, 1939; Dialectica, ed. De Kijk, Utrecht, 1956; Historia calamitatum, ed. Monrain, Paris, 1959. RÉmuSAT, Abélard, 2 vols. Paris, 1845; OTTAVIANO. P. Abelardo, Roma, 1931; S1KES, P. Abelard, Oambridge, 1932; GILSON, Heloise et Abélard, Paris, 1938 (Trad. ital., Turim, 1950); LLOYD, P. Abelard: the orthodox Rebel, Londres, 1947; MOORE, He"se and Abelard, Londres, 1952. § 206. RoBERT, Les écoles et Venseignement de Ia théologie pendant Ia première moitW du XIIe siècle, Paris, 1909; GRABMANN, Geschichte de scholastichen Methode, 11, 199-221). § 207. MOORE, Reason in the Theology of. P. Abelard, in "Proceed. Cathol. Philos. Assoc.", 1937.
§ 208. REINERS, nei "1@eitrãge", VH1, 5, 1910; GEYER, nei "Beitrage", supp1. 1, 1913; ARNOLD, Zur Geschichte der Suppositionstheorie, in " Symposion", 1952; MOODY, Truth and Consequence in Medieval Logic, Amsterdão, 1953. § 210, 211. GRUNWALD, nei "Beitrage", VII, 3, 36-40; MCCALLUM, A.Is Christian Theology, Londres, 1948. § 214. DITTRicH, Geschichte der Ethik, 111, 67-74; DAL PRA, in "Riv. Stor. F*Ilos.", 1948; in "Acme", 1948. 113 VII A ESCOLA DE CHARTRES § 215. O NATURALISMO CHARTRENSE O -problema dos universais, ao fim das suas primeiras manifestações, constitui o sinal de um novo interesse pelo homem e em especial pelos seus poderes cognoscitivos; e o resultado imediato desse interesse é uma mais extensa autonomia reconhecida a tais poderes. Mas o século XII oferece também, nalguns caminhos abertos pela filosofia, o exemplo de um novo interesse pelo mundo da natureza; e também neste caso o resultado desse interesse é o reconhecimento de uma mais extensa autonomia da natureza em confronto com o seu próprio criador. Este segundo aspecto da Escolástica do século XII, constitui o caminho seguido pelos filósofos que ensinaram na Escola catedral de Chartres, que foi fundada, no fim do século X, por Fulberto (falecido 1028). Mas juntamente com o interesse naturalístico, a escola de Chartres cultivou igualmente o interesse pelos estudos literários o gramaticais e pela lógica; tanto assim que nos oferece a melhor documentação sobro a viragem que a filosofia escolástica sofre no 115 século XII; uma viragem através da qual o mundo do homem passa a ser observado e encarado com renovado interesse, ainda que no lugar subordinado que apesar de tudo mantém perante as forças transcendentes que o dominam. Os temas da filosofia naturalista, que os filósofos de Chartres preferem, são muito simples e todos se reconduzem à tentativa de Abelardo de inserir o Timeu platónico no tronco da teologia cristã. Abelardo tinha identificado a platónica Alma do mundo com o Espírito Santo. Esta identificação é mantida pelos filósofos de Chartres, mas agora a identificação passa a ser entre a Alma do mundo e a Natureza. A natureza passa a ser a força motriz, ordenadora e vivificadora do mundo; e com estas características ganha uma dignidade e uma potência autónomas. A natureza é designada força universal (vigor universalis) que não só faz com que existam todas as coisas individuais como também ela própria e de forma autónoma. E nas composições literárias que exprimem imaginosamente e segundo os modelos clássicos estes conceitos, ela surge personificada e exaltada como a filha de Deus, a genitrix de todas as coisas, a ordem, o explendor e a harmonia do mundo. Mas o importante é que,
reconhecida à natureza uma tal dignidade, se torna possível reconhecer-lhe também uma certa autonomia: começa a dar-se conta de que é possível explicarse a natureza com a natureza, e os filósofos de Chartres. utilizando as fontes clássicas e patrísticas (especialmente Cícero), recorrem de boa vontade às doutrinas epicuristas e estóicas para as suas explicações cosmológicas. obviamente, a utilização de doutrinas assim heterogéneas platonismo, epicurismo, estoicismo, todas filtradas pela retorta da teologia abelardiana-dá lugar a construções conceptuais heterogéneas e confusas que têm escasso valor científico e filosófico. Mas a importância destas tentativas não 116 está nos seus resultados, mas antes nos caminhos filosóficos para que apontam; caminhos que se dispõem a dar um relevo cada vez maior à natureza e ao homem, mesmo que a natureza e o homem sejam concebidos, não em oposição ao transcendente, mas como manifestações do próprio transcendente. A direcção que encontra na escola de Chartres a mais rica expressão filosófica tinha sido preparada, desde o século anterior, por um certo prosseguimento dos conhecimentos científicos devido sobretudo aos contactos com os árabes. Antes da primeira metade do século XI, no que diz respeito às ciências naturais e à medicina, a cultura medieval tinha ficado onde a deixara as obras de Gerberto d'Aurillac. Mas nos princípios daquele século, o médico Constantino Africano traz para o conhecimento do mundo ocidental, com numerosas traduções, a ciência e a medicina greco-árabe. Constantino nascera em Cartago e viajara pelo Oriente e pelo Egipto. Em 1060 deteve-se em Salerno onde florescia uma grande escola de medicina. Mais tarde torna-se frade no claustro de Montecassino. Traduz do árabe dois livros de medicina intitulados Pantegni e Viaticum que foram em seguida atribuídos ao médico ebreu Isaac e impressos com o seu nome (Lyon, 1515). Em seguida, Constantino traduz obras médicas do mesmo Isaac e dos grandes médicos gregos Hipócrates e Galeno, tendo chamado a atenção para a teoria atómica dos mesmos. A obra de Constantino foi continuada pelo inglês Adelardo de Bath (nascido em 1090) que ensinou durante alguns anos em Laon, na escola de Anselmo, e viajou pela Itália Meridional pela Espanha e pela Ásia Menor, para regressar, após sete anos, a Inglaterra e dar a conhecer o que tinha aprendido com os árabes. Traduz então os Elementos de Euclides e tratados árabes de aritmética e de astronomia; 117 compõe dois livros dos quais um, Quaestiones naturales, é uma obra de física; o outro, De codem et diverso, tem a forma de uma carta a um sobrinho o é uma alegoria na qual a filosofia e a filoscomia disputam o jovem Adelardo, vangloriando-se cada uma dos seus próprios méritos. Nas Quaestiones naturales Adelardo explicitamente contrapõe a razão à autoridade para aquele que tenta indagar o mundo natural. Nesta indagação, afirma ele, aquilo que é preciso deter o conhecer, é a razão das coisas (Quaest, nat., 6). Esta forma de agir não afecta, de modo algum, o poder de Deus; porque Deus tudo fez, mas não fez nada sem razão: e é no sentido de
conhecer essa razão que se deve orientar a ciência humana (1b., 1). Na investigação dessa mesma razão, Adelardo recorre frequentemente à teoria atómica que provavelmente, deduzia da obra de Constantino Africano e que neste período, como veremos em seguida, é frequentemente invocada, se bem que seja conhecida, mais do que através de Lucrécio, através das advertências dos escritores patrísticos: Calcídio (in Tim, 279), Ambrogio (in Hexam., 1, 2), Santo Agostinho (Epi., 118, 4, 28) e Isidoro (Etim., 13, 2, 1 e segs.). Por outro lado, Adelardo introduziu pela primeira vez no Ocidente latino a prova aristotélica da existência de Deus, deduzida do movimento (Quaest, nat., 60). De tudo isto pode, portanto, deduzir-se que teria conhecido através dos árabes a Física de Aristóteles, que era ainda inacessível aos filósofos do Ocidente e que ele cita (1b., 18). Quanto ao problema dos universais, Adelardo faz sua a solução de Abelardo, mas exprime-a de forma diferente. Os nomes "género", "espécie", "indivíduo" , são impostos à mesma substância, mas de um ponto de vista diferente. Assim o nome de género "animal" designa um sujeito dotado de sensibilidade e de alma; o nome de espécie "homem" designa esse mesmo 118 sujeito mas acrescentando-lhe o raciocínio e a mortalidade; o nome individual "Sócrates" designa todas as coisas precedentes com mais uma distinção numérica devida a caracteres acidentais. Adelardo conclui que Aristóteles tinha razão ao afirmar que os géneros e as espécies existem apenas nas coisas sensíveis; mas acrescenta que também Platão tinha razão em dizer que eles existem na sua pureza, enquanto formas sem matéria, na mente divina. Todos estes temas e motivos são abordados na escola de Chartres cujo primeiro representante de envergadura foi Bernardo, professor de 1114 a 1119 na Escola catedral, e de 1119 a 1124, chanceler da Abadia. Dele não possuímos escritos mas conhecemos a sua doutrina através dos testemunhos de João de Salisbúria que no seu Metalogicus (IV, 35) lhe chama "o mais perfeito entre os platónicos do seu século". O que sabemos das suas doutrinas aparece como um resumo do Timeu platónico visto através de Abelardo. Bernardo identifica os géneros e as espécies com as ideias platónicas e sustenta que, tal como as ideias, são eternos. Não são todavia coeternos com Deus no sentido em que são coeternas entre si as pessoas da Trindade. As ideias, enquanto subsistentes na mente divina, estão privadas de matéria e não são sujeitas ao movimento: na matéria estão apenas as imagens dessas formas ideais, impressas por Deus, imagens a que Bernardo chama formas inatas e que têm o destino das coisas singulares (1b., 11, 17). Mas Bernardo foi sobretudo (quanto sabemos) um gramático e um literato, admirador entusiasta dos autores antigos: dizia ele que nós somos, em relação aos antigos, como anões sobre os ombros de gigantes: podemos ver mais além apenas porque podemos subir até à sua altura (1b., RI, 4). O irmão mais novo de Bernardo, Teodorico, de Chartres, foi professor em Chartres em 1121; em 119 1140 ensinou em Paris onde João de Salisbúria foi seu aluno e em 1141 foi chanceler de Chartres e ao mesmo tempo arquidiácono de Dreux. Morreu em 1150.
Teodorico, é autor de um Heptateucon ou manual das sete artes liberais de que se servia no seu ensino e que é um documento do material de estudo utilizado nas escolas na primeira metade do século XII; de um comentário ao géneses Hexameron ou De septem diebus e de um comentário ao De Trínitate de Boécio. Na especulação de Teodorico é sensível a influência das obras de Escoto Erígena. Como este, Teodorico distingue quatro causas e que em seguida são quatro fases do processo de auto-realização de Deus no mundo: a causa eficiente, que é Deus Pai; a causa formal que é a Sapiência ou o Filho de Deus, que organiza a matéria; a causa final que é o Espírito Santo que anima e vivifica a matéria já formada e organizada; e finalmente a causa material que são os quatro elementos que o próprio Deus criou do nada no princípio. Como se vê, Teodorico, tal como Abelardo, identifica o Espírito Santo com a Alma do mundo e na sua obra é frequente a insistência neoplatónica (obtida em Escoto Erígena) sobre o primado ontológico da Unidade, que é o próprio Deus. Teodorico insiste também na sua noção de unidade ao considerar Deus, no seu comentário ao De Trh*ate de Boécio, como a única forma do ser (forma essendi) de que participam todas as coisas existentes, tal como da única matéria participam todas as coisas materiais. É provável que esta doutrina não tenha, para Teodorico, o significado panteístico que à primeira vista pode apresentar; mas com tal significado podia ser encarada, assim como foi, por alguns escolásticos, como veremos. É portanto característica de Teodorico (como de todos os filósofos de Chartres) a tese de que a obra miraculosamente criadora de Deus se extingue 120 com a produção dos quatro elementos; criados os quatro elementos, a acção natural da capacidade deles próprios produz o ordenamento do mundo e a disposição das suas partes: nesta acção tem grande papel o fogo com o seu poder iluminante e incandescente. Trata-se da velha doutrina estoica, extraída da tradição neoplatónica. Aluno de Bernardo foi Guilherme de Conches de quem sabemos pouquíssimo. Nascido, provavelmente, em 1090, era ainda vivo em 1154 e foi professor de gramática em Chartres. Escreveu uma Philosophia que é :a sua primeira obra sistemática, um Dragmaticon, composto entre 1144 e 1149 e que pode considerar-se a sua obra mais amadurecida. Extractos do Dragmaticon são o De secunda e o De tertia philosophia. Escreveu também Glosas a Boécio, Glosas ao Timeu e um tratado de ética, Moralium dognw philosopharum, que é uma recolha de máximas de moral extraídas de autores pagãos e ordenadas sistemàticamente. A Guilherme costuma também ser atribuído um Compendium philosophiae em seis livros que é também atribuído a Hugo de São Victor, mas que é provàvelmente obra de um compilador anónimo. Em todos estes escritos podemos encontrar, com pequenas oscilações e retraimentos, a doutrina típica da escola de Chartres. Nas Glosas ao Timeu que parecem ser anteriores à Philosophia e que foram publicadas recentemente, Gui]herme afirma: "A alma do mundo é o vigor natural que permite a umas coisas terem movimento, a outras o crescimento, a outras o sentir, a outras o discernir. Quanto a mim julgo que este vigor natural é o Espírito Santo, ou seja, a divina e benigna concórdia da qual todas as coisas retiram o ser, o movimento, o crescimento, o sentir, o viver e o discernir". Com mais incerteza, esta doutrina vem repetida na Philosophia, mas desaparece do
Dragmaticon, talvez 121 por efeito da condenação que, na pessoa de Abelardo, essa mesma doutrina tinha entretanto sofrido. Mais caracteristicamente, Guilherme insiste na composição atómica dos quatro elementos. Segundo Guilherme, a á gua, o ar, a terra e o fogo não são verdadeiramente elementos porque são divisíveis: os verdadeiros elementos são indivisíveis porque são simplicíssimos. No entanto, Guilherme chama elementata Ou elementos do mundo à água, ao ar, à terra e ao fogo e reserva o nome de elementa apenas para os átomos aos quais atribui as qualidades fundamentais opostas: quente e frio, seco e húmido (Philosophia, 1, 21). Todos os temas da escola de Chartres encontram uma expressão imaginosa na obra de Bernardo Silvestre, autor de um poema intitulado De mundi universitate sive Megacosmus et Microcosmus escrito à volta de 1150 e dedicado a Teodorico de Chartres. A obra está redigida em verso e em prosa segundo o exemplo do De consolatione de Boécio e do De nupliis de Marciano Capella e é uma espécie de cosmogonia inspirada no Timeu de Platão. Bernardo personifica as entidades teológicas e metafísicas da escola de Chartres: a Matéria ou Hyle, concebida como absolutamente informe, aparece reconduzida à ordem e à harmonia do Intelecto ou Noys, pelos trâmites da Natureza ou Physis; e no cume desta ordem foi colocado o homem, o Microcosmos. A oposição entre o carácter informe, pavoroso e maligno da Hyle e a ordem racional que a Ph),sis procura impor, dá colorido dramático à obra. Nela, os próprios atributos das pessoas da Trindade tomam-se puramente cosmológicos, isto é, relativos às funções que as pessoas desempenham perante o mundo e caracterizadas como Potência, Sapiência e Bondade, segundo um esquema que nós podemos encontrar frequentemente nos mestres de Chartres e que deriva de Abelardo. 122 § 216. GILBERTO DE LA PORRÉE O mais notável representante da escola de Chartres é Gilberto Porretano. Nascido em Poitiers, foi aluno de Bernardo de Chartres e de Anselmo e Rodolfo de Laon. Ensinou em Chartres e em Paris com grande sucesso e foi bispo de Poitiers (1142-1154). Gilberto foi autor de numerosos escritos, quase todos mantidos inéditos. Os mais notáveis são o Commentario aos opúsculos teológicos de Boécio e um tratado das últimas seis categorias de Aristóteles que tem o título De sex principiis,- tem-se duvidado da autenticidade deste escrito, mas sem razões suficientes. De qualquer modo, trata-se de um escrito que contém as teses típicas de Gilberto e que em breve se tomou famoso; foi usado como texto de ensino na Universidade de Paris e comentado por diversos autores: a última vez pelo humanista Hermolau Bárbaro que o publicou na sua edição das obras de Aristóteles. Gilberto define a fé como a "percepção, acompanhada de aprovação, da verdade de uma coisa" o sustenta que a fé precede a razão no domínio teológico, mas segue-a no domínio filosófico. As coisas criadas não têm necessidade verdadeira e própria: uma vez que nelas tudo é variável, mesmo aquilo que em
regra se considera necessário. A necessidade existe apenas nas coisas divinas e a fé precede a razão. Nós não acreditamos porque sabemos, mas sabemos porque acreditamos (non cognoscentes credinw sed credentes cognoscimus). A fé, prescindindo completamente dos princípios da razão, consegue compreender não só o que a razão humana não pode compreender, mas também aquilo que ela pode compreender com os próprios princípios. Justamente por isso, a fé católica é considerada o exórdio não só do conhecimento teológico mas de qualquer outro; é privada de qualquer incerteza e 123 é o fundamento mais firme e certo mesmo dos conceitos naturais (In Boeth. de praed. trium pers., in P. L., 64. , 1303). Com base neste pressuposto. Gilberto defende a estreita união entre a razão e a fé em toda a investigação filosófica. "Une a fé à razão, afirma ele, para que a fé confira, em primeiro lugar, autoridade à razão e em seguida a razão confira assentimento à fé" (Ib., 1310). Segundo um testemunho de João de Salisbúria (Metal., 11, 17), Gilberto distinguia o universal in rem do universal ante rem. O universal in re, forma inata ou espécie, considerava-o inerente às coisas criadas. A forma inata seria a cópia do exemplar existente na mente divina, tal como a espécie imanente nos indivíduos é, segundo Platão, a cópia da ideia. O intelecto humano abstrai o universal das coisas individuais para considerar melhor a sua natureza e melhor compreender as suas propriedades. O universal não é uma realidade em si, numericamente una, mas a simples colecção das coisas singulares, unificadas segundo as suas propriedades comuns. Noutros termos, Gilberto participa aqui no ponto de vista de Abelardo: o fundamento objectivo da universalidade do conceito, o fundamento que garante ao conceito a sua verdade, é a semelhança que as coisas singulares têm entre si, a sua uniformidade colectiva. O universal tinha já sido definido como colecção de coisas singulares por Joscelino ou Gauleno no tratado De generibus et speciebus (§ 203). Mas Gilberto acrescenta aqui uma opinião sua: distingue dois significados na palavra substância. Num primeiro sentido, mais geral, é substância o que para subsistir não precisa de qualidades acidentais. Neste sentido, a substância é subsistência, isto é, essência e exprime o quo est da coisa. Num segundo sentido, que é o próprio, a palavra substância significa aquilo que subsiste, a realidade existente ou subsistens, o quod est (In Boeth., de 124 trin., in P. L., 64. , 1281). No primeiro sentido, os géneros e as espécies, ou seja, os universais, subsistem enquanto são subsistentiae ou essências determinadas, que não precisam de acidentes para existirem no modo que lhes é próprio. Mas no segundo sentido, apenas os indivíduos são substâncias porque só esses, na realidade, existem. Os indivíduos, portanto, não só subsistem, subsistunt, mas também existem, substant, porque estão dotados de diferenças próprias e específicas e constituem os sujeitos reais dos acidentes, enquanto são as suas causas e princípios. Quando o indivíduo subsistente tem também o atributo da racionalidade, toma o nome de pessoa (In Boeth. de duab. nat., Ib., 1375 sgs.).
Com base na distinção entre subsistência e subsistente, Gilberto faz a distinção entre forma e matéria. A forma é o que determina uma coisa no seu ser específico; a matéria é o sujeito determinável da forma. Por isso se pode chamar também matéria às essências enquanto são os sujeitos dos seus caracteres e são determinadas ou concriadas por tais caracteres. Existe uma forma simples que é "o ser do Artífice", isto é, Deus, como existe uma matéria simples que é a matéria-prima ou informe, a hyle de Platão. Entre estes dois extremos, estão as realidades compostas ou concretas, que são matéria e forma, conjuntamente, no sentido referido acima. A sua criação é uma concriação (concretio): isto é, a união sucessiva, num sujeito indeterminado mas determinável, de essências ou subsistências que o determinam. Neste sentido, a função criadora de Deus é uma função formadora e Deus é a forma originária de tudo (In Boeth, de trin., Ib., 1266). Se se quisesse exprimir esta doutrina nos termos do que em seguida se chamará o problema da individuação, será necessário afirmar que, para Gilberto, o princípio da individuação é a forma. Os seres singulares são determinados e indi125 viduados pela essência de que são investidos o ser, a corporeidade, a sensibilidade, a inteligência, etc. Dois seres que se distingam apenas numericamente, por exemplo, dois homens, distinguem-se entre si pelas propriedades formais que os constituem; e mesmo se tais propriedades lhes faltassem, distinguir-se-iam pela sua diferença de lugar que é também ela uma diferença qualitativa ou formal. Se por um lado Gilberto considera Intimamente unidas a fé e a razão, entende distinguir nitidamente o domínio das disciplinas singulares e, em primeiro lugar, o da teologia do da filosofia. Esta distinção não deve ser baseada numa diversidade de actividade ou de atitude espiritual, mas apenas sobre uma diversidade de princípios objectivos. Toda a ciência deve partir de fundamentos próprios, de princípios que são específicos da ciência e inerentes ao seu objectivo. Gilberto gaba-se de ter feito pela teologia aquilo que foi feito pela matemática, de ter determinado os conceitos e princípios fundamentais da ciência teológica (In Boeth. de heMom., Ib., 1316). Nas disciplinas teológicas, todavia, é preciso servimo-nos de princípios que são diferentes dos que são adoptados nas considerações das coisas naturais. E, com efeito, o objecto da teologia é completamente diferente do objecto das ciências naturais. As coisas naturais são dotadas de matéria e de movimento, enquanto que Deus é privado de matéria e de movimento. Por tal motivo não são aplicadas a Deus as categorias e os conceitos que servem para compreender as coisas naturais. A própria categoria de substância é indevidamente referida a Deus, porque designa aquilo que suporta as qualidades acidentais. Em relação a Deus será mais próprio falar em essência; mas em verdade, nem a sua realidade subsistente, o quod est, nem a sua subsistência, o quo est, são apreendidas pela razão. De Deus apenas se pode afirmar que a singularidade da sua essência impedem qual-atribuição. Deus é portanto inteligível, compreensível (In Boeth. the duab. nat., Sobra a distinção entre essência e substância, entra subsistência o subsistente se baseia a doutrina de Gilberto sobre a Trindade. Gilberto distingue entre deidade o Deus. A deidade é a única essência divina, da qual
participam as três pessoas diversas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. As três pessoas são três realidades singulares, numericamente distintas; a sua unidade é a forma comum da deidade, de que todas participam. Em virtude da forma de deidade cada uma delas é o que é, e cada uma delas é Deus. A fórmula de Gilberto é a seguinte: "Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo". A essência divina que constitui a sua unidade é na verdade real, mesmo nas três pessoas distintas. Esta doutrina trinitária atraiu sobre si a condenação da Igreja. Depois do encerramento do Concílio de Sens, dois arquediáconos de Poitiers foram junto do Papa Eugénio 111 e denunciaram o seu bispo como criador de novidades teológicas heréticas. Dirigiram-se em seguida a Claraval e informaram S. Bernardo da questão. O resultado foi que no Concílio de Paris em 1147 e no de Reiras em 1148, a interpretação trinitária de Gilberto foi condenada. S. Bernardo combateu a distinção entre deitas e deus; e o seu secretário Godofredo escreveu contra Gilberto o seu Libellus contra capitula Gilberti Porretani. A principal acusação de Godofredo contra Gilberto é a de que a sua doutrina equivale a admitir não já uma trindade, mas uma quaternidade divina. Por um lado, existiria a forma da deidade, por outro as três pessoas de Deus. Estas três pessoas seriam distintas umas das outras nas suas relações, pelas quais uma é o Pai, a outra o 127 Filho e a terceira o Espírito comum e santificante: mas estas relações seriam estranhas à única essência divina que apareceria como uma quarta realidade, juntamente com a trindade das pessoas divinas. Gilberto explicava o dogma da encarnação sustentando que só a pessoa divina, isto é, Cristo, mas não a natureza divina, ou seja a forma da deidade, assumiu a natureza humana. Esta doutrina era consequência natural da distinção entre a deidade e Deus (In Boeth. de duab., Ib., 1938). A mesma distinção pode ser encontrada na doutrina antropológica de Gilberto. O ser da alma e o ser do corpo constituem, na sua unidade, a subsistência, o quo est do homem; apesar de o próprio homem constituir, como um todo, o quod est, a substância existente como tal. O homem não é nem a alma, nem o corpo, considerados por si. Com a morte, o homem como tal deixa de existir, mas a sua parte fundamental, a alma, não perde a sua existência (1b., 1295). Com efeito, a alma não é privada de substância ou enteléquia, mas antes uma subsistência real, uma essência subsistente. Todavia, a alma como tal não é uma pessoa; a personalidade pertence apenas ao homem como um todo. Gilberto fazia deste modo valer com lógica rigorosa, em todas as partes do seu sistema, a distinção entre subsistência e subsistente, entre essência e substância. É evidente que na sua investigação a solução do problema dos universais havia de influir a de todos os outros problemas. Gilberto é, sobretudo, um lógico e no discorrer do seu pensamento obedece às exigências da sua doutrina lógica. E mesmo as suas investigações lógicas exerceram sobre a escolástica posterior a maior influência. O seu escrito De sex ptincipÚs baseia-se na pretensa diferença entre as primeiras quatro e as outras seis restantes categorias aristotélicas. As primeiras quatro 128
(substância, qualidade, quantidade, relação) designariam, além da substância, o que é absolutamente inerente à substância, e seriam, por conseguinte, formas inerentes. As últimas seis designariam, por seu lado, modalidades externas que interviriam para alterar a condição da substância sem, no entanto, se unirem a ela, e seriam por isso formas assistentes. Precisamente dessas formas assistentes (acção, paixão, lugar, quando, situação, posse) é que se ocupa o texto de Gilberto. § 217. JOÃO DE SALISBúRIA João de Salisbúria está ligado à Escola de Chartres não só pelas relações que teve com alguns mestres daquela escola mas também pelo entusiasmo pelos estudos humanísticos e pela independência de pensamento que, tal como aqueles, sempre demonstrou ter. No entanto, as suas doutrinas teológicas e cosmológicas afastaram-se das que eram defendidas na escola de Chartres: as quais foram além dos seus interesses porque suportadas por ele para lá dos limites da capacidade humana. Nasceu na velha Salisbúria, em Inglaterra, entre 1115 e 1120. Foi para França ainda jovem, à volta de 1136 e aqui permanece até finais de 1148. A sua educação filosófica divide-se entre Paris, onde ensinava Abelardo, e Chartres, onde foi discípulo de Guilherme de Conches e Gilberto de Ia Porréc. Em 1151 regressa a Inglaterra e é nomeado capelão do primaz de Cantuária, Teobaldo; depois da morte deste, foi secretário do seu sucessor, Tomás Becket, com o qual travou relações de amizade. Em seguida foi nomeado bispo de Chartres (1176) e nesta cidade viveu até morrer (1180). O interesse humanístico de João de Salisbúria é evidente no seu Entheticus sive de dogmate philosopharum (1155), um poema em dísticos, que é 129 um manual de ensino cuja primeira parte é constituída por uma história da filosofia greco-romana. Escreve também numerosas Epistolae, uma Historia pontificalis, de que existe um fragmento, uma Vida de Anselmo de Cantuária e uma Vida de Tomás Becket. Em 1159, ou seja vinte anos depois do início dos seus estudos, escreve as suas principais obras: o Policratus, que é a primeira obra medieval de teoria política, e o Metalogicus que se apresenta como uma defesa do valor e da utilidade da lógica contra um tal que ele designa com o nome fictício de Cornifício. Em Cornifício podemos ver, segundo os intérpretes modernos, a corrente que se opunha aos estudos humanísticos em proveito da física; ou que propunha uma extensão da pesquisa lógica da palavra às coisas. Mas, a acreditar nas declarações de João de Salisbúria, Cornifício era um sofista que escarnecia do saber autêntico e da técnica das artes para se entregar a exercícios confusionistas e à discussão de questões como esta: "Se o porco conduzido ao mercado é levado pelo homem ou pela corda" (Metal., 1, 3). Toda a doutrina de João de Salisbúria é animada de um espírito autenticamente crítico: o seu objectivo é o de estabelecer claramente os limites e os fundamentos das possibilidades cognoscitivas humanas. João de Salisbúria afirma-se um académico e sustenta que a investigação se deve contentar, a
maior parte das vezes, com o provável: "Como académico, em todas as coisas que possam ser para o filósofo objecto de dúvida, não juro que é verdadeiro aquilo que afirmo: no entanto, verdadeiro ou falso, contento-me apenas com a probabilidade". E ainda: "Prefiro duvidar com os Académicos sobre as coisas individuais, do que definir temerariamente, com simulação consciente e perniciosa, o que permanece oculto e ignorado" (Metal., prol.). Esta prudente posição é justificada por João de Salis130 búria com as próprias limitações da ciência humana, às quais se subtraem as coisas futuras. "Sei com certeza que a pedra ou a seta que lanço às nuvens deverá cair por terra, porque assim exige a natureza das coisas, todavia, não sei se elas apenas podem cair no chão e porquê; com efeito, elas poderão cair ou não. Também a outra alternativa é verdadeira, ainda que não necessariamente, como é verdadeira aquela que eu sei que acontecerá... Aquilo que ainda não é, não é ciência, mas apenas opinião" (Policrat., 11, 21). Daqui deriva que todas as afirmações que implicitamente e explicitamente digam respeito ao futuro têm um valor provável, não necessário: a sua probabilidade é baseada na indeterminação do seu objecto e é por isso impossível de eliminar. Com efeito, deve-se chamar provável àquilo que acontece frequentissimamente: o que não acontece nunca de outra maneira é ainda mais provável: e o que se crê que não pode acontecer de outra maneira adquire o nome de necessário (Metal., 111, 9). Donde se conclui que o "necessário" segundo João de Salisbúria é limitado à "crença"; enquanto que o "provável" exprime a uniformidade objectiva dos eventos e baseia-se na frequência com que acontecem. João de Salisbúria tira todas as consequências implícitas neste ponto de vista. A dialéctica, como lógica do provável, é o instrumento indispensável de todas as disciplinas (,Metal., 11, 13). A pretensão da astronomia divinatória de predizer infalivelmente o futuro é absurda porque o futuro não é necessariamente determinado e é por isso imprevisível (Policrat., 11, 19). A infalível presciência que Deus tem das coisas futuras não implica de forma alguma a sua necessidade (lb., 11, 21). No entanto, se o conhecimento humano se mantivesse encerrado no círculo do provável, isso significaria para João de Salisbúria, um abandono à 131 dúvida radical do cepticismo. Tem de haver um ponto firme qualquer onde possamos apoiar o edifício das nossas limitadas certezas. Os sentidos, a razão e a fé fornecem o ponto firme dessa natureza. Afirma João de Salisbúria: "Parece ser importante aquilo que a autoridade dos sentidos, da razão o da religião nos persuade a admitir; e a dúvida em torno do ser tem o carácter de doença, do erro ou do crime. Perguntar se o sol brilha, se a neve é branca, se o fogo aquece, é próprio do homem privado de sensibilidade. Perguntar se três é mais que dois, se o todo contém a metade, se quatro é o dobro de dois, é próprio de quem não tem discernimento ou possui uma razão ociosa ou completamente doentia. Quem levanta o problema da existência de Deus, do @@eu poder, da sua sabedoria ou da sua vontade é não apenas irreligioso como também pérfido e merecedor de uma pena que o castigue" (Policrat., VII, 7).
Os primeiros princípios da ciência estão entre estas coisas indubitáveis (1b.); e entre as ciências, a matemática é a única que atinge a necessidade pelo seu carácter demonstrativo (Metal., 11, 13). E no que se refere à religião, João de Salisbúria, sustenta que é tão impossível demonstrar a existência de Deus como negá-la. Reconhece, no entanto, o valor da prova cosmológica que vai de causa em causa até à causa primeira (Policrat., 111, 8); e sustenta, por outro lado, que a ordem finalista do mundo revela claramente a sabedoria e a bondade do criador (Metal., IV, 41). Que Deus seja poderoso, sapiente, bom, venerável e amável é princípio único de toda a religião, princípio que todos admitem gratuitamente, sem provas, por puro espírito de religiosidade (Policrat., VIII, 7). Mas outras determinações são alheias à razão. A própria Trindade é, para a razão humana, um mistério impenetrável (1b., 11, 26). No entanto, pode-se reconhecer que 132 Deus é o fundamento da ordem do mundo, mas não se pode conceber essa ordem como um facto inelutável, segundo a concepção dos Estóicos, porque isso não exclui a mobilidade das coisas e a liberdade da vontade humana (1b., 11, 20). João de Salisbúria insiste no carácter prático e de devoção da fé religiosa. Tal como a alma é a vida do corpo, também Deus é a vida da alma. Tal como o corpo morre se a alma o abandona, também a alma perde a sua verdadeira vida se Deus a abandona (Entet., 181). Por isso o destino da alma o a sua felicidade consiste em entregar-se à acção da graça de Deus (Policrat., 111, 1). Como se depreende, João de Salisbúria introduziu drásticas limitações à especulação teológica e cosmológica ou, para melhor dizer, estabeleceu como linha de princípios, a possibilidade e a eficácia. Debrucemo-nos sobre os três campos em que a investigação humana pode aplicar-se com uma certa possibilidade de sucesso: a matemática, a lógica, a política. Destes três campos, as obras principais de João de Salisbúria tratam dos dois últimos. O Metalogicus é o documento de interesse que João de Salisbúria escreveu sobre os problemas lógicos do seu tempo; além disso, é nesta obra que pela primeira vez se utiliza os livros Tópicos de Aristóteles. No que se refere ao problema dos universais, João de Salisbúria ao mesmo tempo que dá notícia das soluções mais importantes oferece-nos importantes informações sobre as escolas lógicas do tempo. A sua posição pessoal perante este problema é ecléctica mas inclina-se bastante para a doutrina de Abelardo. Considera os universais como formas ou qualidades comuns imanentes das coisas, formas que o intelecto abstrai das próprias coisas. Os universais (géneros e espécies) não são substâncias que existam como natureza; na -realidade, só as substâncias singulares existem, substâncias a que Aris133 tóteles chamou substâncias primeiras, e que são objecto do conhecimento sensível. Os géneros e as espécies são produto da abstracção, figmenta rationis, que a razão cria a fim de melhor proceder na sua investigação sobre as coisas naturais (Metal., U, 20). No entanto não são privados de verdade objectiva, porque correspondem a
uma conformidade efectiva das coisas singulares entre si: por isso Aristóteles lhes chamou substâncias segundas, querendo com isto indicar que, sendo insubsistentes enquanto realidades singulares, são no entanto, algo de real. O intelecto humano pode erguer-se até aos universais apenas pela via da indução, partindo das coisas sensíveis. João de Salisbúria refere-se à doutrina aristotélica de que evidentemente aceita os resultados: "Os conceitos comuns são criados pela indução sobre as coisas singulares. Com efeito, é impossível chegar-se a considerar os universais senão através das induções que estão na base de todas as nossas noções abstractas. Mas é impossível induzir aquilo que é desprovido de sensibilidade. Com efeito, os sentidos são a forma de conhecimento das coisas singulares e não é possível ter conhecimento das coisas singulares senão através dos universais conseguidos pela indução; não é possível a indução sem a sensibilidade. Com efeito, dos sentidos deriva a memória, da memória frequentemente repetida surge a experiência, e da experiência os princípios da ciência ou da arte... E assim os sentidos corpóreos, que são a primeira força e o primeiro exercício da alma, lançam os fundamentos de todas as artes e formam o conhecimento preexistente, que não só abro a vida aos primeiros princípios, como também aos géneros" (Metalog., IV, 8). Trata-se, como é evidente, das mesmas considerações que encerram os Segundos Analíticos de Aristóteles, considera134 ções cujo significado empirístico é sublinhado por João de Salisbúria. O Policraticus é o único livro de filosofia política medieval anterior à descoberta da Política de Aristóteles. As fontes da teoria nele exposta são Cícero, Séneca e os textos patrísticos e a base da teoria é o conceito estóico da lei natural como norma universal e perpétua à qual se submetem, mesmo as coisas. Esta norma é a imagem do querer divino, a custódia da segurança, a unidade do povo, a regra do dever, o extermínio dos maus, a punição da violência e de todas as transgressões (Policrat., IV, 2). Nela se baseia a relação entre o súbdito e o rei; e a diferença entre um príncipe e um tirano reside no facto de que o primeiro não só transgride a lei como ainda não se propõe a fazê-la respeitar a valer (1b., IV, 4). Por esta via, João de Salisbúria vai ao ponto de justificar o tiranicídio. Quanto ao resto, a sua doutrina, é inspirada nos princípios do teocracismo medieval. § 218. ALANO DE LILLE Na direcção aberta pela escola de Chartres podemos integrar a obra de Alano de Lille (ab In.yulis, Lille ou Ryssel, na Flandres), chamado o Doctor Universalis, falecido em Citeaux no ano de 1203 e que foi professor em Paris. Entre as suas obras existe um Anticlaudiano que é uma espécie de enciclopédia do saber corrente; o De planctu naturae em verso e prosa, no qual as reminiscências mitológicas, as alegorias, e os ensinamentos morais se misturam com uma filosofia da natureza proveniente da escola de Chartres; uma Ars praedicandi que é um manual de predicação; os Sermones; o Distinctiones dictionum theologicarum que é uma
espécie de léxico das expressões bíblicas; o Contra 135 haereticos e o Regulae de sacra theologia que são as suas obras teológicas. Recentemente foi atribuída também a Alano a paternidade de um Tractatus de virtutibus et vitiis e de uma Summa que começa com as palavras Quoniam homines, ainda não publicada. A figura de Alano poeta, cosmólogo e teólogo reproduz fielmente o cliché dos mestres de Chartres dos quais ele deduz, com igual fidelidade, todas as suas doutrinas. Tal como os professores de Chartres, também ele é devedor de Abelardo, de quem reproduz, à letra, no seu Tractatus de virtutibus, as doutrinas morais. A ú nica característica original da obra de Alano é a forma sistemática que pretendeu dar às suas especulações teológicas, tendo sobretudo em vista a tarefa a que se havia proposto: a de defender contra descrentes e heréticos (Maometarios, Judeus, Valdeses) a validade da fé cristã. Por isso também Alano nos deixou uma clara definição dos limites entre a razão e a fé. No prólogo do Contra haereticos, é assim que descreve o objectivo proposto: "Ordenei diligentemente as razões prováveis da nossa fé às quais um espírito engenhoso e perspicaz dificilmente pode resistir, para que aqueles que desdenham prestar fé às profecias e ao Evangelho sejam pelo menos convencidos pela razão humana. No entanto, se estas razões podem induzir os homens a acreditar, não são suficientes para se conseguir uma fé plena: não terá mérito aquela fé apoiada única e exclusivamente na razão. A nossa glória estará em compreender in patria (ou seja, no céu) aquilo que agora apenas podemos contemplar como num espelho e através de enigmas" (Contra haeret., prol.). Começa aqui a distinção entre o domínio da razão e o domínio da fé e que receberá a sua mais clara formulação em S. Tomás. A pretensão de compreender a verdade da fé na sua necessi136 BERNARDO DE CLARAVAL (Retrato de El Greco) dade, de demonstrá-la como se fosse verdade de razão, pretensão que surge, por exemplo em Santo Anselmo, é aqui abandonada. O que é objecto de fé não pode ser compreendido e por isso não é objecto de ciência. "Nada se pode conhecer que não se possa compreender, mas nós não apreende mos Deus com o intelecto, portanto não existe ciência de Deus. Somos, certamente, induzidos pela razão a supor que existe Deus, mas não o sabemos com certeza, acreditamos apenas. Isto é a fé, uma presunção que nasce de razões certas, mas não suficientes para constituírem uma ciência. Como tal, a fé está acima da opinião, mas abaixo da ciência" (lb., 1, 17). A distinção entre ciência e fé está aqui feita de forma bastante clara. A fé deve conservar o seu mérito de conhecimento certo mas não demonstrativamente necessário; diferente portanto da ciência. Todavia, Alano tentou organizar cientificamente a teologia precisamente sobre o modelo da ciência mais rigorosa, a matemática. No escrito intitulado Regulae ou Maximae theologicae formulou os princípios da teologia, partindo do pressuposto de que "toda a ciência se baseia nos seus princípios como
nos seus próprios fundamentos", fixando, assim, as regras fundamentais da ciência teológica, recolhendo e sistematizando os resultados da especulação teológica. Destas regras, a primeira é a afirmação da unidade de Deus: "a mónada é aquilo em virtude do qual todo o ente é uno": afirmação que óbviamente não é mais que o lugar-comum neoplatónico mas que assume um particular relevo nos escritos de Alano, dada a posição polémica assumida por estes escritos. Essa atitude polémica dirige-se em primeiro lugar contra a seita herética dos Cátaros: cuja doutrina fundamental consistia no reconhecimento de um dualismo fundamental de princípios: um óptimo e criador da ordem e da perfeição do mundo, o outro 137 Péssimo e criador da desordem, da luta e do mal. Deste segundo princípio a Hyde de que falam os poemas chartrenses, informe, caótica e maligna, é uma boa expressão: no entanto, nesses poemas @i Ufle não tem força para se contrapor a Deus, é ela própria criada por Deus e submetida à ordem da Alma, do mundo-Natureza. Contra este dualismo (que implicava também o da condenação e da salvação, considerados como dois estados não mediáveis entre si, nem mesmo através dos meios carismáticos da Igreja), a afirmação feita por Alano da unidade de Deus como mónada primeira e absoluta, ainda que no seu carácter filosófico já gasto, adquire um valor de novidade polémica. E não é po@ acaso que Alano utiliza e cita (na obra intitulada Aphorismi de essentia summae bonitatis Contra haeret., 1, 30, 3 1) o Uber de catísis: o texto de Próculo que está rigorosamente centrado sobre o conceito de Deus como absoluta unidade devia parecer a Alano o melhor antídoto contra qualquer concessão dualista. Com efeito, Alano afirma que a causa primeira, enquanto é simples e forma absoluta, é absoluta unidade, e, assim, a própria unidade absoluta; e que referidos a tal unidade, os atributos diversos exprimem sempre a mesma essência simplicíssima (Reg. teol., 11). Como Abelardo, e muitos dos mestres de Chartres, Alano está ainda convencido que já os filósofos pagãos concebiam esta verdade e que, por exemplo, a conheciam Aristóteles e Hermes Trismegista (Contra haeret., 111, 3; Reg. theol., 3). § 219. O PANTEíSMO: AMALRICO DE BENA E DAVID DE DINANT Algumas das mais importantes e mais debatidas teses da escola de Chartres têm um franco sabor panteístico. O panteísmo consiste em sustentar que 138 a relação Deus-mundo seja necessária perante o próprio Deus: isto é, o mundo deriva de Deus como necessidade, quer como manifestação sua, quer como seu aspecto necessário, de tal modo que sem o mundo, Deus não seria Deus. Esta tese está óbviamente implícita em todas as especulações teológicas que definem o ser de Deus ou o das pessoas da Trindade nos termos das suas relações com o mundo: por exemplo, na tese de que o Espírito Santo é a Alma do mundo e que a alma do mundo é a própria natureza; ou na tese de que o pró prio Deus é a forma essendi ou essência de todas as coisas. A última tese é sem dúvida a mais explicitamente panteísta: entendida no sentido de que Deus contém a essência (as formas, as ideias, os modelos de todas as coisas) leva-
nos a considerar Deus como a essência das coisas e as coisas, na sua essência, como elementos necessários da essência divina. Estas conclusões vêm no entanto bastante esbatidas e atenuadas, por parte dos mestres de Chartres, com várias observações destinadas a acentuar a diferença entre o ser das criaturas e o ser de Deus. Mas no período de que nos ocupamos, portanto da segunda metade do século XII, essas mesmas concepções são ainda apresentadas em toda a sua crueza panteística por pensadores que não hesitaram em tirar delas as conclusões mais paradoxais. Temos notícia de dois destes pensadores, Amalrico de Bena e David de Dinant e sabemos que as suas ideias foram seguidas por numerosos grupos sobre os quais caíram as condenações eclesiásticas. E não se trata, na verdade, de teses que pertençam à esfera das discussões teoréticas: pela única obra polémica que temos contra a seita de Amalrico, um escrito anónimo de 1210 e que tem o nome de Contra Amaurianos, sabemos que da tese da presença de Deus em todos os seres, e portanto em todos os homens também, os sequazes de Amal139 rico derivam a possibilidade para todos os homens de se salvarem mediante o simples conhecimento dessa presença divina, sem a necessidade de se socorrerem dos dons carismáticos cuja eficácia era por eles negada: negando assim todas as funções à administração eclesiástica que é a administradora desses mesmos dons. Estas características relacionam estreitamente o panteísmo de Amalrico com as seitas heréticas que floresciam no século XII e que estavam todas ligadas na luta contra o privilégio, que a Igreja reivindica pela sua hierarquia, de administrar a salvação. Valdeses, Cátaros, Amaricianos, sustentam todos que o homem se salva através de uma relação directa com Deus ou que o próprio Deus o escolha manifestando-se nele ou a ele: o panteísmo de Amalrico ou de David é antes de mais e sobretudo a expressão metafísica de uma insurreição contra a hierarquia eclesiástica que, por seu lado, como é já assente, tinha raízes económico-sociais. De Amalrico, nascido em Bena (no distrito de Chartres) sabemos apenas que morreu em Paris, como professor de teologia em 1206 ou 1207. Das notícias obtidas através de vários cronistas sabe-se que ensinava que Deus é a essência de todas as criaturas e o ser de tudo e que o criador e a criatura se identificam. Provavelmente estas teses, que se aproximam das que eram sustentadas por muitos mestres de Chartres, tinham para Amalrico o significado mais próximo do que era defendido por Escoto Erígena; com efeito, ele afirmava que as ideias estão na mente divina, criam e ao mesmo tempo são criadas e que Deus é o fim de todas as coisas que a ele regressam e na sua unidade indivisível permanecem e estão (Gerson, Concordia nwtaphysicae cum logica, in Opera, IV, 825). Mas a intenção de AmaIrico compreende-se melhor pelas 140 consequências que ele tirava das próprias teses: Deus identifica-se com todas as coisas, disseminadas como estão no espaço e no tempo, identifica-se também com o próprio tempo e com o espaço como se identifica com todos os homens que assim se unificam nele. Desta presença de Deus nos homens, Amalrico extrai a
negação, como já foi dito, da validade dos sacramentos e do magistério eclesiástico. Todas estas doutrinas foram condenadas no Sínodo de Paris de 1210 e pela obra de Inocêncio III, no IV Concílio de Latrão de 1215. Do outro representante do panteísmo, David de Dinant (na Bélgica) não sabemos nada. Atribuem-se-lhe dois textos: De tomis hoc est de divisionibus que reproduz o título da obra principal de Escoto Erígena e Quaterni ou Quaternuli, nome por que foram indicados os escritos condenados a serem queimados (Denifle, Chart., Univers. Paris., 1, 70). Mas provàvelmente este segundo não é um título mas apenas o nome genérico dos opúsculos de David. Tomás de Aquino dá-nos a seguinte exposição da doutrina de David: "David divide a realidade em três partes: corpos, almas e substâncias separadas. Ao princípio indivisível de que são constituídos os corpos chamou hyle (matéria), ao princípio indivisível de que são constituídas as almas chamou noun ou mente; e chamou Deus ao princípio indivisível das substâncias eternas. David afirmou que estes três pii---ncípios são uma única e idêntica coisa, concluindo-se assim que todas as coisas são pela sua essência uma só" (In Sent., 11, d. 17, q. 1, a. 1). Segundo S. Tomás, a diferença entre a doutrina de Amalrico e a de David é que, para Amalrico, Deus é essência ou forma de todas as coisas, enquanto que para David é a matéria. A mesma caracterização da doutrina de David é-nos dada por Alberto Magno (Sunma Theol., I, tract. IV, q. 20). Como ser originário, Deus é o ser puramente poten141 cial. David, provàvelmente, desenvolveu as implicações positivas da teologia negativa própria da sua época. Deus está fora de todas as categorias que constituem o ser em acto; mas, fora das categorias, não há senão o ser em potência, que é a primeira condição para a constituição de todas as coisas. David identificou o ser em potência com Deus e uma vez que o ser em potência é a matéria-prima, identificou a matéria-prima com Deus. § 220. JOAQUIM DE FIORE As seitas heréticas do século XII tinham entre si de comum a crença numa iminente e final renovação do mundo que elas designavam como o advento do reino do Espírito Santo. Sabemos que também os Amauricianos possuíam esta crença e sustentavam que depois da época do Pai e da do Filho, a época do Espírito Santo traria consigo a abolição de todas as formas legais e sacramentais que tinham caracterizado a época precedente (Caesarius, Dialogus miraculorum, ed. Strange, p. 306). Esta divisão das épocas históricas, para lá da esperança escatológica em que se baseia, parece ser sugerida pelas especulações trinitárias que Abelardo tinha iniciado e que floresceram na escola de Chartres. A ela se encontrava, portanto, ligada a obra do mais famoso e popular profeta do século XII, o abade Joaquim. Joaquim de Fiore nasceu em 1145 em Dorfe Ceico, perto de Cozença. A partir de 1191 foi abade do mosteiro por ele fundado em São João de Fiore, Calábria, e aí morreu em 1202. A lenda apoderou-se deste abade profético, cujos dados
históricos são escassíssimos. Segundo a biografia urdida por um frade de Seiscentos, Jaime Grego, que obteve informações pelas cartas do antigo convento de Fiore, 142 mas que certamente modificou e transfigurou, Joaquim de Fiore fez uma peregrinação à Terra Santa e passou por Constantinopla, tendo-se salvado milagrosamente de uma epidemia, converteu-se ao ascetismo. Regressado à pátria, entrou no convento cistercense de Sambucina e passou depois para o de Corazzo, do qual foi abade. Em 1191 retirou-se para fazer a vida de anacoreta e fundou então o convento de S. João em Fiore. Teria também de certo modo participado nos agitados acontecimentos históricos do seu tempo, dirigindo-se a Nápoles para ZD ameaçar, pelas suas crueldades, Henrique IV que sitiava a cidade; e teria obrigado a imperatriz Constança a prostrar-se a seus pés para obter o perdão das suas culpas. O abade Joaquim escreveu três grandes obras que mutuamente se completam: Concordia Novi et Veteris Testamenti, Expositio in Apocalypsim, Psalterim decem cordarum. Além destas, escreveu também uma obra polémica de teologia contra Pedro Lombardo De unitate seu essentia Trinitatis, que se perdeu: um texto contra os judeus, Adversus Judeos; uma exposição sumária da fé católica, De articulus fidei. Estas últimas obras são inéditas. Foram editadas recentemente os Tractatus super quattor Evangelia, cuja autenticidade levanta algumas dúvidas. O interesse fundamental da obra de Joaquim de Fiore está na sua mensagem profética. Pela sua visão da história chega a prenunciar uma renovação iminente: o advento do reino do Espírito Santo. Mas a sua visão da história é baseada num conceito da Trindade cristã; as suas especulações trinitárias vinculam-se à sua mensagem profética. Essas especulações apresentam uma certa afinidade com as de Gilberto Porretano: ainda que não se possa falar de uma dependência, dada também a diversidade de temperamento espiritual entre o teólogo Gilberto 143 e o profético abade calabrês. A teologia de J. de Fiore está elaborada com vista à sua filosofia da história: insiste sobre a distinção e a autonomia das pessoas divinas, para basear a distinção das três grandes épocas históricas o para dar o necessário relevo à terceira, que é a futura, a do reino do Espírito. "Uma vez que também o Espírito em si mesmo é Deus verdadeiro, tal como o Pai e o Filho, também ele realiza alguma coisa à imagem e semelhança próprias, tal como aconteceu com o Pai e com o Filho" (Concordia, IV, 35). O saltério, título de uma das obras de Joaquim de Fiore, é precisamente a imagem da Trindade, na distinção das Pessoas e na unidade que as liga. "Um altíssimo lugar ocupa o saltério de dez cordas entre as obras de Deus que sugerem o mistério da Trindade. Trata-se com efeito de um instrumento musical unitário. Pode ser dividido em partes porque é feito de matéria, mas não pode sê-lo sem deixar de ser saltério. Como instrumento é uno; mas é triangular e está admiravelmente unido nos três lados. A unidade
indivisa vincula os três lados tão estreitamente que parecem um e cada um se reflecte nos três" (Psalt., fol. 230). A unidade de Deus não deve ser portanto entendida de forma a que se anule a diversidade das pessoas: porque, nesses casos, seria impossível compreender a diversidade das obrAs e das ,épocas históricas e deixaria de existir qualquer fundamento para a esperança numa época de justiça e de salvação (Conc., fol. 8 e segs.). Ás três pessoas da Trindade correspondem as três grandes épocas da história. O primeiro dos três estados é o que se desenvolve sob o domínio da lei, quando o povo do Senhor, ainda um pouco criança, servia sob os elementos deste mundo, incapaz de alcançar a liberdade do Espírito, destinada a brilhar quando tivesse surgido aquele que disse: "Quando o Filho vos vier libertar, sereis verda144 deiramente livres". O segundo dos três estados é o da iniciação com o Evangelho, e que ainda perdura, em liberdade sem dúvida, se o compararmos com o estado precedente, mas não em liberdade se pensarmos no futuro". "Por isso disse o Apóstolo (S. Paulo, 1 Cor., XIII, 12) "conhecemos agora apenas parte e apenas em parte profetizamos: mas quando chegar a perfeição, tudo o que é parcial será anulado". O terceiro estado iniciar-se-á para o fim do século, não sob o véu opaco da letra, mas sim em plena liberdade de espírito... Como a letra do Antigo Testamento em virtude de uma certa analogia parece pertencer ao Pai, e a letra do Novo Testamento ao Filho, assim a inteligência espiritual, que procede de um e de outro, pertence ao Espírito Santo. E como a ordem dos cônjuges, em virtude de uma analogia evidente, pertence ao Pai e a ordem dos predicadores pertence ao Filho, também a ordem dos monges-a que estão destinados os grandes tempos finais, pertence ao Espírito Santo" ( Expositio, fol. 5 e segs.). O terceiro estado que há-de vir será portanto caracterizado por uma inteligência da palavra divina, já não literal, mas espiritual: os homens conhecerão verdadeiramente o seu significado real. Há um evangelho eterno que é a própria palavra de Deus, sob a letra das expressões evangélicas. Os próprios sacramentos são símbolos provisórios (mas nem por isso menos necessários) dessa realidade com a qual, no terceiro estado, o homem entrará directamente em comunicação (Super quattor evang., p. 8, 6). "0 primeiro estado viveu do conhecimento; o segundo desenvolve-se no poder da sapiência; o terceiro difundir-se-á na plenitude da inteligência. No primeiro reinou a servidão; no segundo a servidão filial; o terceiro dará início à liberdade. O primeiro estado decorreu na flagelação; o segundo na acção, o 145 terceiro decorrerá na contemplação. O primeiro viveu na atmosfera do temor; o segundo na da fé; o terceiro viverá na verdade" (Conc., V, 84, 112). No terceiro estado, não só as almas, mas também os corpos serão transfigurados; o céu o a terra terão uma nova beleza e a morte e a dor desaparecerão. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 215. Sobre a escola de Chartres: CtERVAL, Les écoles de Chartres au moyen âge, Paris, 1895; GRABMANN, Die Geschirhte d. schol. Methode, 11, 407-476;
PARENT, La doctrine de Ia création dans Ilécole de Chartres, Paris-Otawa, 1938; GREGORY, Anima Mundi. La filosofia di Guglielmo di Conches e Ia scuola di Chartres, Plorenç.a, 1955; GARIN, Studi sul platonisma mediocvale@, Florença, 1958. As obraB de Constantino Africano foram editadas em Basileia, 1536 e 1539. O prólogo ao livro Pantegni, in P. L., vol. 150.-, 1563-1566. - SIEBECK, in "Archiv fur Gesch. der Philos.>, 1888, p. 528 e segs.; BAEumKER, ivi, 1892, p. 557. De Abelardo: De eodem et diverso, ed. WilIner, nei "Beitrage", IV, 1, 1903; e Quaestiones naturales, ed. Muller, nei "Beitrage", XXX1, 2, 1934. THORNDIKE, A History of Magic, 11, 19-49; BLIEMTZ111EDER, A. V. B., Mõnaco, 1935. Bernardo: as fontes nas obras de João de Salisbúria in P. L., 199.---GILSON, Le platonisme de B. d. -C., In. "Revue Néo-scol.", 1923, 5-19. Teodorico: De sex dierum operibus, in HAUREAU, Notices et extraits, 1893, p. 52-68; eomentãrío ao De trinitate de Boécio em JANSEN, Der Kommentare d. Marembaldus v. Aras zu Boethius de Trinitate, BresUvia, 1926; Heptateukon, edição do Prólogo ao cuidado de JEAUNEAU, in "Medieval Studies", 1954, 171175.JEAUNEAU, in "Mémoires de Ia societé archéol. d'Eure et Loire", 1954, 110. Guilherme de Conches: a Philosophia foi impressa com as obras de Beda In P. L., 90.,, 1127-1178; o Dragmaticon foi Impresso com o título Dialogus de substantis physicis., Estrasburgo, 1567; ed. Parra, Paris, 1943; Glosas ao Timeu e Segunda e Terceira Filosofia, parcialmente em COUSIN, Ouvrage8 inédits 146 d'Abélard; outras partes das Glosas a Boécio o ao Timeu, em JOURDAIN, NOtices et extraits, ece., XX, 2, Paris, 1862, e no escrito de PARENT noutro lado citado. -FLATTEN, Die Phil. des W. v. C., Coblenza, 1929; OTTAVIANO, Um ramo inédito da "Philosophia" de G. de C., Nápoles, 1935; PARENT, La doctrine de Ia création dans 1'école de Chartres, cit.; GREGORY, op. cit. Bernardo Silvestre: De mundi universitate, ed. Barach-Wrobel, 1nnsbruck, 1876. - GILSON, La cosmogonie de B. d. S., In "Arch. Hist. Doet. de Ia Litt. m. a.", 1928; THORNDIRE, A History of Magic, 11, 1929. § 216. Gilberto de Ia Porrée: as Glosas a Boécio, juntamente com os opúsculos teolõgicos de Boécio, in P. L., 64.-, 1225-1412; de alguns destes comentários existem edições recentes: De Hebdomadibus, in "Traditio", 1953; "Contra Eutychen et Nestorium, in "Arch. Hist. Doctr. de Ia Litt. m. ã.", 1954; VANNI-ROVIGHI, La filosofia di G. P., in "Misc, dell'Università Catt. di Milano", 1956. § 217. João de Sa.Iisbúria: obras in P. L.@ 199.o: Policratus, ed. Webb, Oxford, 1909; Metalogicus, ed. Webb, Oxford, 1929; Historia pontificalis, ed. Poole, Oxford, 1927.-WEBB, J. of S., Londres, 1932; DAL PRA, G. di Salisbury,
Milão, 1951 (com bibl.); HOHENLEUTNER, J. V. S. in der Literatur der letzen zehn Jahre, in " Hist. Jahrb.", 1958. § 218. Alano de Lille: obras in P. L.@ 210.o; Trac- tatus de virtutibus, ao cuidado de Lottin, in "Medieval Studies", 1950; Suma quoniam homines, ao cuidado de Glorieux, in "Arch. Hist. Doctr. de Ia Litt. m. ã.", 1954; Anticlaudianus, nova ed. Bossuat, Paris, 1955. -BAUMGARTNER, em "Beitrage", 11, 4, 1896; PARENT, em "Beitrage", supp1. 111, 1935; VASOLI, Due studi per Alano di Lilla, in "Riv. Crit. di St. della FiI.", 1961; Le idee filofiche di Alano di Lilla, nel "De planctu" e neZ "Anticlaudianus", in "Giorn. Crit. delila ffios. itali.", 1961. § 219. Sobre AmaIrico de Bena e David de Dinant: HAUR£AU; Hist. de Ia philos. schol., 11, 1, p. 83-107; DUHEM, Système du monde, V, 244-260; CAPELLE, A. de B., Paris, 1932; DAL PRA, AmaIrico de Bena, Milão, 1951, com bibliografia. § 220. De Joaquim de Piore, as seguintes ediç.: Concordia Veteris et Novi Testamenti, Veneza, 1519: Expositio super apocalypsim, Veneza, 1527; Psalterium 147 de-cem cordarum Veneza 1527; Super quattor Evangelia, Roma, 1930 ("Fonti,della Storia D'Italia"). Escritos menores: De articulis fidei, ed. Buonaiuti, Roma, 1936; Liber contra Lombardum (escola de J. de F.), ed. Ottaviano, Roma, 1934.-FOURNIER, Êtudes sur J. de F. et ses doctrines, Paris, 1909; BUONAUTI, Gioacchino da Fiore: I tempi-La vita-II messaggio, Roma, 1931; F. RuSso, Bibliografia Gioachimita. Florença, 1954; BLLOOMFIELD, J. of P., "Traditio", 1957. 148 VIII O MISTICISMO § 221. CARACTERES DO MISTICISMO MEDIEVAL O renascimento filosófico do século XII é também um renascimento do misticismo. Mais precisamente, esse renascimento torna possível o reconhecimento da mística como uma via autónoma de elevação para Deus, uma via que em qualquer caso é alternativa ou rival da investigação racional. Esta via não era ainda conhecida da primeira idade da escolástica: basta pensar nas obras de Escoto Erígena que punha na deificatio o último termo da investigação racional. Mas vendo bem, essa posição não surgia como radicalmente distinta da posição racional e muito menos contraposta a ela. As condições históricas do século XII conduzem, pelo contrário, ao estabelecimento de tal distinção. Por um lado o número e a importância das correntes heréticas que florescem neste século, por outro a liberdade crescente de que a razão faz uso no próprio domínio da especulação teológica, levam a encarar a via mística como correctivo 149
eficaz que permite reconhecer em Deus e apenas em Deus a iniciativa e o sustentáculo do esforço do homem na direcção da verdade. Com efeito, é próprio da mística a tentativa de aproximar-se da Verdade pela própria força da Verdade; de se unir a Deus mediante a ajuda sobrenatural e directa de Deus e de deixar a ele apenas a iniciativa da investigação. O esforço do místico é dirigido unicamente para o fim de se tornar digno de sofrer a iniciativa divina; já que é Deus que do alto o atrai a si e o ergue até à compreensão dos seus mistérios. Por isso a via mística consiste numa transumanizt@ção, vencendo os limites humanos para se abrir à própria vida de Deus e à beatifica acção da sua graça. Nos confrontos dos movimentos heréticos que concluíam todos por negar qualquer função ao aparelho eclesiástico, o misticismo oferecia a tal aparelho um poderoso instrumento de defesa, porque lhe consentia reivindicar para si a administração dos poderes carismáticos sem os quais a ascese mística não seria possível. E nos confrontos da razão, a que faziam apelo as escolas filosóficas contemporâneas, o misticismo oferecia ao mesmo aparelho eclesiástico o modo de contrapor ao carácter incerto e até então erróneo dos resultados a que a razão conduzia, a certeza e a glória do êxito místico que permitem reunir os poderes sobrenaturais da Igreja. Não é nada de espantar, portanto, que, na época de que agora nos ocupamos, o misticismo tenha servido em primeiro lugar de arma polémica contra as aberrações das heresias e as divagações da dialéctica; isto é , como arma polémica para afirmar o poder da Igreja e reforçar a ortodoxia doutrinal pela qual esse poder era justificado. Mas não foi esta a única função do misticismo medieval. Decorrida a fase polémica ou em concomitância com esta fase, o misticismo coloca-se, 150 com o fundamento de uma mais nítida distinção dos limites entre a razão e a fé, já não como alternativa rival da investigação racional mas como complemento e coroamento dessa mesma investigação. É nesta forma que aparece na escola dos Vitorinos e se conserva na escolástica sucessiva, até ao século XIV, em que a mística alemã assume de novo a posição anti-racionalista mas desta vez fora de qualquer preocupação de defesa da Igreja. § 222. BERNARDO DE CLARAVAL Como arma de combate contra todas as formas de heresia religiosa ou filosófica e como instrumento de reforço do poder eclesiástico assim foi entendido o misticismo por Bernardo de Garaval, chamado, pela sua eloquência, o doctor melifluus. Bernardo nasceu em Fontaines, perto de Dijon, em 1091. Aos 21 anos torna-se monge em Citeaux e passados três anos abade do convento de Claraval, onde morreu em 1153. Durante toda a sua vida foi um defensor encarniçado da ortodoxia religiosa e da autoridade eclesiástica. Quando em 1130 foi oposto ao papa Inocêncio 11 o antipapa Anacleto II, a obra de Bemardo serviu para impedir o cisma e para convencer Anacleto a renunciar à sua oposição. No concílio de Sens de 1140 pregou contra os erros de Abelardo, que foram condenados. A segunda Cruzada de 1147 foi obra das suas predicações. As doutrinas de Gilberto de Ia Porrée, encontraram nele um opositor violento. Fez igualmente valer, com idêntica força, as armas da sua
polémica contra a seita herética dos Cátaros. De grande importância histórica são as suas Epistolae. Contra Abelardo dirigiu dois escritos: Contra quaedam capitula errorum Abelardi e Capitula haeresum Petri Abelardi. Numerosos são, pois, 151 os escritos místicos, entre os quais: De gradibus humilitatis et superbiae (composto em 1121); De deligendo Deo (em 1126); De gratia el libero arbitrio (1127); Sermones in cantica canticorum, De consideratione (1149-1152). A doutrina de S. Bernardo, nos seus pontos essenciais, não é mais que o plano estratégico da luta contra as heresias, a favor da autoridade absoluta da Igreja. Os pontos fundamentais desta doutrina podem ser assim resumidos: 1) a negação do valor da razão; 2) a negação do valor do homem, 3) a actuação do homem reduz-se à ascese e à elevação mística. Sobre o primeiro ponto, Bernardo pronuncia-se sem reservas contra a razão e contra a ciência. O desejo de conhecer surge-lhe como uma
purificado do vício e do pecado. O supremo grau da contemplação é o êxtase ou excessus mentis, pelo qual Deus desce sobre a alma humana e a alma se une a Deus. "Tal como uma gota de água que cai no vinho se dissolve e assume o sabor e a cor do vinho; tal como o ferro candente e incandescente se torna semelhante ao fogo e perde a sua forma própria; tal como o ar que percorrido pela luz do sol se transforma em claridade luminosa até parece mais que iluminado, transformado na própria luz; assim nos Santos todo o afecto humano necessariamente se dissolverá de modo inefável e quase se transformará na vontade de Deus. Com efeito, de que forma poderá Deus estar em todas as coisas, se algo de humano permanece no homem? É certo que permanecerá a substância, mas com outra forma, com outra glória, com outro poder... Isto significa deificar-se" (De dil. Deo, 11, 28). O processo de deificação do homem supõe que a alma olvide completamente o corpo. Conseguido este estádio, nada mais impede que o homem se afaste cada vez mais de si e se erga para Deus tornando-se semelhante a ele, na medida em que é possível tornar-se semelhante a Deus. Neste estádio, o homem faz uma só coisa com o Espírito de Deus (lb., 11, 32; 15, 39). 153 O único problema que S. Bernardo tratou filosoficamente é o da graça e do livre arbítrio. Distingue três aspectos de liberdade: a liberdade da necessidade, a liberdade do pecado, a liberdade da miséria. A liberdade da necessidade é o livre arbítrio, que é próprio da vontade humana; não se perde nem com o pecado nem com a miséria, e não é maior no justo que no pecador, nem no anjo que no homem (De grat., 1, 2). O livre arbítrio constitui a própria essência da liberdade humana. Tudo o que é voluntário é livre. A vida, os sentidos, o apetite, a memória, o engenho, e todas as outras actividades humanas estão sujeitas à necessidade, quando não estão inteiramente submetidas à vontade (1b., 2, 5). A vontade é a faculdade de escolha: mas esta escolha não se exerce necessariamente entre o bem e o mal; Deus é livre nas suas acções, mas não se determina no mal. Contra Escoto Erígena e com Sto. Anselmo, S. Bernardo nega que a liberdade consiste na escolha entre o bem e o mal. A possibilidade de escolher o mal não e essencial à liberdade, mas é antes uma imperfeição própria da liberdade finita, o essencial da liberdade é a ausência de toda a coacção. Ao lado do livre arbítrio está a liberdade do pecado e a liberdade da miséria. Mas, apesar do livre arbítrio fazer parte da nossa natureza, a liberdade do pecado é-nos dada pela graça e a liberdade da miséria ser-nos-á reservada in patria, isto é, no céu: por isso o livre arbítrio pode ser chamado liberdade de natureza, a liberdade do pecado liberdade da graça, a liberdade da miséria liberdade de vida ou de glória (lb., 3, 7.) Amigo de S. Bernardo foi Guilherme de S. Th,ierry, abade deste mosteiro de 1119 a 1135 e falecido em 1148 ou 1153. Participou na luta contra Abelardo com um escrito redigido no Inverno de 1138-1139, Disputatio adversus Abelardum e com 154 uma carta na qual pedia a atenção de S. Bernardo para os erros de Abelardo. É também autor de obras místicas e exegéticas, Meditativae orationes, De
contemplando Deo, De natura et dignitate divini amoris. Nos dois livros De natura corporis et animi, trata, no primeiro, da física do corpo humano e no segundo da física da alma. O interesse desta compilação está no facto de Guilherme procurar a união da psicologia platónico-agustiniana com a da medicina greco-árabe, que conheceu através de Constantino Africano. § 223. ISAAC DE STELLA O inglês Isaac foi monge em Citeaux, depois, de 1147 a 1169, abade de Stella, na diocese de Poitiers. A sua obra mais significativa filosoficamente é uma Epistola ad quendam familiarem suum de anima, escrita à volta de 1162. lsaac parte de um pressuposto que tira de S. Agostinho e que voltaremos a encontrar em Descartes: para o homem, o conhecimento mais claro é o de Deus. Das três realidades, corpo, alma e Deus, o corpo é-nos menos conhecido que a alma e a alma menos conhecida que Deus. A alma é, de certo modo, a imagem da divindade como disse Aristóteles, ela é a similitude de todas as coisas; e assim se transforma em meio entre o corpo e Deus. Cinco são os graus da actividade cognoscitiva da alma: o sentido corpóreo, a imaginação, a razão, o intelecto e a inteligência. Os sentidos percebem os corpos, a imaginação conserva e reproduz as imagens sensíveis, mesmo na ausência dos corpos; a razão percebe as formas incorpóreas das coisas corpóreas. O processo da razão é abstracção; e Isaac formula uma teoria da abstracção que será seguida e desenvolvida por S. Tomás de Aquino. */*l 155 "A razão, afirma ele, abstrai dos corpos as formas ou naturezas que no corpo subsistem, mas abstrai-as não em acto, mas apenas ao considerá-las; o vendo que em acto subsistem apenas no corpo, percebe no entanto que elas não são o próprio corpo. Assim a razão percebe o que nem os sentidos nem a imaginação conseguem perceber, ou seja, na natureza das coisas corpóreas as formas, as diferenças, os atributos próprios e acidentais; todas as coisas ,incorpóreas que, não obstante, não existirem fora dos corpos, mas na própria razão" (P. L., 194.O, 1884). Acima da razão, o intelecto é a força que percebe as formas das coisas incorpóreas, isto é, dos seres espirituais; e a inteligência. vê, na medida em que é possível à sua natureza, o sumo ser, isto é, Deus na sua pureza e incorporeidade. Deste conhecimento supremo da inteligência, o homem recebe a luz para os conhecimentos inferiores. Aqui Isaac: reproduz a doutrina agustiniana da iluminação exprimindo-a com os termos de Escoto Erígena: as verdades que através da inteligência descem de Deus ao homem são teofanias, manifestações de Deus (1b., 1888). § 224. HUGO DE S. VICTOR: RAZÃO E FÉ S. Bernardo contrapõe a via mística à investigaçao racional. Aquela é considerada como a via da humanidade e da renúncia a toda a autonomia humana. No entanto, estas duas vias parecem fundir-se harmoniosamente em Hugo de S. Victor e concorrem para fazer dele uma das personalidades mais notáveis do mundo medieval. Nasceu em 1096 em Hartingan na Saxónia e formou-se no convento de Hamersleben, perto de Halberstadt. A partir de 1115 foi para o convento de S. Victor em Paris e de
156 1133 a 1141, ano da sua morte, foi professor naquele convento. É, em primeiro lugar, autor de uma introdução à filosofia e à teologia com o título Eruditionis didascalicae libri VII ou, mais brevemente, Didascalion cujos três primeiros livros são dedicados às artes íiberais, os três seguintes à teologia, o último é um texto sobre a meditação. Dos quatro livros de De anima apenas o quarto lhe pertence, enquanto o segundo pertence provávelmente a Alquério de Clairvaux. A sua obra maior é o De sacramentis christianae fidei que parece ter sido escrita entre 1136 e 1141. Esta obra é a primeira summa teológica medieval. O obectivo declarado da obra é o de fornecer um fundamento à interpretação alegórica dos mistérios cristãos. Com efeito, Hugo de S. Victor distingue em tais mistérios a alegoria que é o seu significado fundamental e a história que é o seu significado literal. Pretendo assim fornecer um guia para se poder ler as Escrituras com critério seguro e conseguir-se uma reconstrução alegórica que se subtraia à disparidade de pareceres. Juntamente com estas obras de investigação escolástica, escreveu também numerosos opúsculos místicos: De arca Noe mystica, De arca Noe moral!, De arrha animae, De vanitate mundi, etc. A atitude de Hugo de S. Victor perante a ciência é decididamente oposta à de S. Bernardo. Nada há de inútil no saber: "Aprende tudo, afirma, verás que nada é supérfluo" (Didasc., VI, 3). A própria ciência profana é útil à ciência sagrada, à qual está subordinada: "Todas as artes naturais servem a ciência divina o a sapiência inferior, ordenada com rectidão, conduz à superiom (De sacram., I, prol. 5, 6). Em vez de contrapor entre si a ciência profana e a ciência sagrada, a fé mística e a investigação racional, Hugo de S. Vietor procura estabelecer entre elas um equilíbrio harmónico e de as 157 coordenar num único sistema. Desse modo tenta coordenar a via mística com a investigação racional: "Há dois modos e duas vias através das quais Deus, que permanece primeiramente oculto no coração do homem, pode ser conhecido e julgado: a razão humana e a revelação divina. A razão humana empreende de duas formas a investigação de Deus; em si e nas coisas que estão fora de si. Do mesmo modo a revelação de Deus actua de duas formas a fim de dissipar a ignorância e a dúvida do homem: com a iluminação interior e com a doutrina exteriormente transmitida e confirmada pelos miJagres" (1b., 1, 3, 3). Os caminhos da razão são dados pela natureza, os da revelação pela graça. Uma e outra servem-se tanto do interior como do que é exterior ao homem para o conduzir até Deus. E como se se coordenam entre si, tendo em vista o fim único do conhecimento de Deus, a investigação racional e a revelação, assim se coordenam também entre si para o mesmo fim os objectos da investigação humana. Hugo de S. Victor distingue todos os objectos possíveis em quatro categorias, determinadas pelas suas relações com a razão humana. "Certas coisas derivam da razão, outras são conformes com a razão, outras estão acima da razão, outras ainda estão contra a razão. As coisas que derivam da razão são necessárias,- as que são conformes à razão, prováveís; as que estão acima
da razão, admiráveis; e as contrárias à razão, impossíveis. As primeiras e as últimas excluem a fé: as primeiras, derivando da razão, são absolutamente conhecidas e não podem ser criadas porque se conhecem, as outras não podem ser criadas porque a razão não pode assentar nelas. Portanto, podem ser apenas objecto de fé as coisas que são conformes com a razão e as que estão acima da razão. Nas primeiras, a fé é sustentada pela razão e é aperfeiçoada pela fé: se a razão não compreende a sua 158 verdade, também não cria obstáculos a que a fé acredite nelas. Nas coisas que estão acima da razão, a fé não pode ser ajudada pela razão, que não compreende aquilo em que a fé crê; há nelas, no entanto, qualquer coisa que exorta a razão a venerar a fé, ainda que não a compreenda" (1b., 1, 3, 30). O domínio da investigação racional é agora rigorosamente distinto do da fé, como domínio da necessidade lógica absoluta: a fé não tem lugar no que é demonstrável ou evidente. Mas, por outro lado, a fé não se opõe à razão porque o seu objecto seja incrível, mas porque é provável ou admirável, o que se aproxima da razão ou a transcende, sem no entanto a negar. O princípio de S. Tomás, o da graça que completa a natureza sem a destruir, encontra aqui pela primeira vez uma clara formulação. A esta classificação dos objectos do conhecimento, corresponde a classificação das correspondentes posições subjectivas. Estas posições são : a negação, a opinião, a fé e a ciência. A negação, a opinião, e a fé dirigem-se não à coisa, mas ao que se ouve, dizer da coisa. Apenas na ciência a própria coisa está realmente presente; a ciência é conhecimento perfeito, porque convalidade e garantida pela presença própria do seu objecto (1b., I, 10, 2). Viu-se já como a ciência é também o único conhecimento necessário; e esta necessidade vem-lhe da lógica que é o seu instrumento indispensável. As ciências experimentais, como a física, pressupõem as ciências puramente lógicas, tal com a própria lógica e a matemática; uma vez que a experiência por si só é falaz e só na pura razão existe e garantia indiscutível da verdade. Hugo de S. Victor extrai da obra de Abelardo * teoria aristotélica da abstracção. A matemática * a física constituem, graças à abstracção, o seu objecto. A matemática considera distintamente os 159 elementos que nas coisas naturais se encontram confusos entre si; e assim, ainda que, na realidade, a linha não exista sem a superfície e o volume, a razão considera, na matemática, a linha em si, prescindindo da superfície e do volume. Isto, porque a razão frequentemente considera as coisas, não como elas são, mas como podem ser, isto é: não em si mesmas, mas em referência a ela própria (Didasc., 11, 18). Do mesmo modo, a física considera distintos uns dos outros os elementos que nos corpos do mundo se encontram confundidos, isto é, o fogo, a terra, a água e o ar; e julga todos os corpos como um produto da composição e da força de tais elementos (1b., 11, 18). Como muitos representantes da escola de Chartres, Hugo de S. Victor admite a composição atómica dos
elementos (De sacram., 1, 6, 37) e afirma o princípio da conservaçao da matéria, princípio que apoia na autoridade de Pérsio (Sat., 111, 84): de nihilo nihil, in nihilum nil posse reverti (Didasc., 1, 7). § 225. HUGO DE S. VICTOR: A TEOLOGIA Vimos já que tanto a investigação racional como a mística apoiada e baseada na graça se distinguem consoante partam do interior ou do exterior do homem. A demonstração racional da existência de Deus, como momento necessário da investigação filosófica, divide-se também consoante parta da consideração do homem ou da consideração das coisas exteriores. O espírito humano reconhecese a si próprio como uma realidade existente e com este reconhecimento distingue-se dos corpos e de tudo o que conhece. Mas enquanto se percebe existente, reconhece também que nem sempre existiu, que o seu ser teve um princípio e que não é ele pró prio o princípio do seu ser. Por isso é levado a reco160 nhecer uma causa criadora que seja o fundamento da sua existência. E como não pode pensar que esta causa criadora tenha s-ido por sua vez criada sem se integrar num processo ad infitzitum deve admitir que tal causa subsiste em si e que o ser da mesma não tenha princípio, mas seja eternamente real (De sacram., 1, 3, 6-9). À mesma conclusão se chegará pela consideração das coisas externas. Todas as coisas que têm nascimento e morte devem ter uma origem e um criador. Tudo o que é mutável nem sempre existiu e por isso deve ter tido um princípio. Deste modo as coisas externas confirmam o que a alma encontra em si; e a natureza revela o seu autor tal como o revela a própria alma (1b., 1, 3, 10). Tal como a existência de Deus, também a Trindade pode ser demonstrada através das duas vias, interna e externa. No homem de palavra interior revela-se na palavra exterior; assim em Deus a palavra interior, qu,@ é a sua eterna Sapiência, reveIa-se na palavra externa, que é o mundo criado. No nosso espírito, a razão, a sabedoria que- nasce da razão, e o amor, que procede de ambas são uma única realidade-, assim em Deus espírito, sapiência e amor constituem uma única substância. Mas, enquanto que no nosso espírito a sabedoria e o amor não têm personalidade porque são puros acidentes ou afeições do espírito, em Deus a Sapiência, e o Amor são o próprio ser de Deus, são o que o próprio Deus é, por conseguinte, pessoas. Assim, em Deus há três pessoas numa só natureza, enquanto que no homem há uma só pessoa, a qual, com as diversas qualidades da sua vida interior, corresponde à Trindade Divina, sem no entanto a reproduzir adequadamente (Ib., 1, 3, 25). As coisas exteriores reproduzem também a divindade. A grandeza do mundo corresponde ao poder divino, a sua beleza, à sabedoria, o seu finalismo e a sua 161 conformidade às necessidades do homem, à bondade (lb., 1, 3, 28). Deus criou o mundo não apenas secundum se, mas também propter se. Secundum se, ou seja: em conformidade consigo próprio, porque não tomou do extenor ou que foi obra sua; propter se, ou seja: por sua própria causa, porque não recebeu de outro
a causa da sua acção criadora (1b., 1, 2, 3). Hugo de S. Victor distingue, a propósito da criação, as coisas que são apenas causa, das que são apenas efeito, e as que são ao mesmo tempo causa e efeito O que é apenas causa e não é efeito é Deus, como causa suprema. No extremo oposto está aquilo que é apenas efeito o não é causa, a matéria, de que são compostas as coisas criadas. Entre estes dois extremos estão e movem-se todas as outras coisas, que estão entro si numa relação de causa e efeito e assim vão desde a causa primordial até à matéria. Deus criou em primeiro lugar a matéria informe; mas tal matéria não era informe a ponto de ser absolutamente privada de forma, porque o que é privado de forma é privado de existência, era informe apenas no sentido de que era confusa e mesclada (forma confusionis), privada de ordem e de disposição (forma dispositionis) que em seguida teve de Deus (lb., 1, 1, 4). Em polémica com Abelardo, que tinha afirmado que Deus não pode fazer coisa diferente daquilo que faz, nem aquilo que faz pode fazê-lo melhor do que fez, Hugo de S. Victor sustenta que Deus teria também podido criar um mundo melhor. Com efeito, a razão porque Deus não pôde criar um mundo melhor pode ser devida ao facto de ao mundo não faltar qualquer possível perfeição ou ao facto de o mesmo não ser susceptível de urna maior perfeição. Más no primeiro caso, o mundo seria semelhante ao Criador e assim o Criador seria coagido aos limites do finito ou então o mundo 162 elevado para além desses limites; e tanto uma hipótese como a outra são impossíveis. Se se pode afirmar a incapacidade do mundo de assumir uma perfeição maior, isto é já uma prova de que o mundo não é o melhor nem o mais perfeito, porque esta incapacidade é, por si, defeito e imperfeição. Na verdade, apenas Deus é de tal modo perfeito que não pode ser mais perfeito. O mundo criado não participa destaperfeição absoluta e por isso Deus teria podido criá-lo ainda melhor do que realmente o criou. Ele não pode fazer apenas o que é impossível, uma vez que "não poder o impossível não é não podem Ub., 1, 2, 22). A criação não é uma acção necessária de Deus, mas uma livre manifestação da sua bondade. A decisão e a vontade de criar os homens estão desde a eternidade em Deus, mas a própria criação não é eterna. Deus quis sempre que o mundo existisse, mas não quis que ele fosse eterno: o querer criador de Deus é eterno, e o que é criado não é eterno (1, 2, 10). Na criação participaram não só o poder e a bondade de Deus, como também a sua sabedoria. A sabedoria divina é ciência, presciência, disposição predestinação, providência: ciência das coisas existentes, presciência das coisas futuras, disposições das coisas a fazer, predestinação dos homens para a salvação, providência daqueles que estão sujeitos ao querer divino. Desde a eternidade que todas as coisas criadas existiam no conhecimento divino; mas isso não as torna necessárias. As coisas não chegam necessàriamente ao ser porque foram pensadas por Deus. Podem também não se tornarem reais e neste caso as ideias divinas não são causas das coisas. Só a vontade divina pode transformar as ideias divinas em realidade criada (lb., 2, 16-18). À vontade divina se referem todas as determinações de valor. Deus não quis certa coisa apenas porque é bom e justo, mas tudo o que é bom e
163 justo é-o porque Deus o quis. Com efeito, o ser justo é propriedade essencial do querer divino. "Quando se pergunta porque é que é justo o que é justo é preciso responder: porque é conforme com a vontade divina, que é justa. E quando se pergunta porque é que a vontade de Deus é justa, é preciso responder: não há causa da primeira causa e ela é por si o que é" (1b., 1, 4, 1). Se a vontade de Deus é o próprio bem, a presença do mal no mundo deve ser exigida pela bondade conjunta do mundo. Deus fez o bem e permitiu que houvesse o mal, apesar de não ser o seu autor. E apesar de o mal ser e continuar a ser como tal, como tal é e continua a ser o bem, e é por bem que existe o bem e o mal. Com efeito, o bem deriva não apenas do bem, mas também do mal; através da oposição entre o bem e o mal resulta mais evidente a beleza e a ordem conjunta do mundo. Por isso é um bem existir o mal e esse é o motivo pelo qual Deus permitiu que o mal existisse (lbid., 1, 4, 5-6). § 226. HUGO DE S. VICTOR: A ANTROPOLOGIA O homem está no cume do mundo sensível. Segundo a Sagrada Escritura, o homem foi criado depois de todas as outras coisas, e isto aconteceu porque ele é o primeiro de todas as criaturas sensíveis e todo o mundo sensível foi criado para ele. Deus criou o homem para o servir; e criou o mundo para que este sirva o homem. O homem é um ser finito, precisa da ajuda exterior quer para se conservar tal como é, quer para chegar a ser o que não é ainda. Foi colocado no centro do mundo sensível para que dele se sirva como de uma ajuda necessária à sua conservação. Mas está destinado a 164 servir a Deus e assim alcançar aquela plemitude e felicidade que não possui ainda. Para ele existe um duplo bem, um bem de necessidade e um bem de felicidade: o primeiro é-lhe dado pelas coisas do mundo, o segundo pelo próprio Criador. O primeiro suige criado por causa do homem e para se lhe tornar útil; o segundo é o fim para que foi criado o homem (De sacrum, 1, 2, 1). Sendo este o lugar do homem no mundo, distinguem-se na própria natureza do homem duas partes, o corpo e a alma. A alma é, em contraposição com o corpo, uma substância simples e espiritual. Juntamente com Boécio, Hugo de S. Victor distingue o intelectível e o inteligível: o intelectível é o que não é sensível e não é semelhante ao sensível; o inteligível é que, apesar de não ser sensível, tem relações de semelhança com o sensível. A alma é intelectível porque não é nem sensível nem semelhante ao sensível; mas é ao mesmo tempo inteligível porque é dotada de sensibilidade e de imaginação e pode assim compreender o sensível (Didase., 11, 3, 4). Como tal, por um lado, está em relação com o sensível e, por outro, em relação com o supra-sensível. A sua relação com o sensível é baseada na sua sensibilidade, a relação com o supra-sensível é baseada na inteligência. Entre as faculdades sensíveis e a inteligência está a razão, que é a faculdade discursiva (De sacrum., 1, 1, 19). Definida com Boécio a pessoa como "uma substância individual de natureza racional", Hugo atribui a personalidade à alma em si e por si. O corpo não contribui para formar a pessoa, e apenas se une a ela. A própria alma como
tal, é pessoa (1b., 11, 1, 11). A característica fundamental da alma como pessoa é a autoconsciência. Nas pegadas de S. Agostinho, Hugo de S. Victor insiste na necessidade e no valor da consciência da própria existência. "Não existe sábio que não saiba que existe. E no entanto o homem, 165 se começa a considerar verdadeiramente aquilo que é, compreende que não é nenhuma das coisas que percebe ou pode perceber em si mesmo. O que em nós é capaz de razão, ainda que, por assim dizer, esteja confundido com a carne, distingue-se no entanto da substância da carne e compreende o que é distinto dela (Didasc., VII, 17). Este pensador reconhece ao homem a liberdade como faculdade de escolha, privada de determinações necessitantes. A liberdade é o fundamento da vida moral do homem que sem ela seria impossível. * princípio objectivo desta vida é a lei de Deus. * bem é o que é conforme com esta lei, o mal é a negação daquiilo que a lei prescreve. Com o bem, o mal tem o seu fundamento na livre vontade, e não vê positivo nem negativo; é um puro nada (1b., 1, 7, 16). § 227. HUGO DE S. VICTOR: o MISTICISMO A via mística para alcançar a visão directa de Deus tem três momentos principais: o pensamento, a meditação e a contemplação. O pensamento (cogitatio) é determinado pela presença na alma de uma coisa em imagem, que ou provém dos sentidos ou é suscitada pela memória. A meditação (meditatio) é o contínuo e sagaz exame do pensamento, que se esforça por explicar o que é obscuro e de penetrar no que está oculto. A contemplação (contemplatio) é a livre e perspicaz intu-ição da alma que se difunde sobre as coisas examinadas. A contem- ,plação possui aquilo que a meditação procura: a visão manifesta e completa. Por seu lado, a contemplação cinde-se na consideração das criaturas e na contemplação do Criador, que é o seu grau último e perfeito (De nwd. dicend. et meditand., 8). Este último grau é a contemplação mística, na qual a ascese para Deus se identifica com a clausura na 166 própria intimidade espiritual: "Aquele que entra dentro de si e, penetrando internamente em si próprio, se transcende verdadeiramente sobe até junto de Deus" (De vanitate mundi, 2). § 228. RICARDO DE S. VICTOR: A TEOLOGIA O terceiro dos grandes místicos desta época é Ricardo de S. Victor. Escocês de nascimento, cedo se dirigiu a Paris e entrou para o mosteiro de S. Victor. Aqui se cultivou guiado por S. Hugo e, pela morte deste, sucedeu-lhe no ensino e no priorado. Morreu em 1173. Ricardo é, como Hugo, escolástico e místico. Entre as suas obras escolásticas há um tratado em três livros De trinitate e um texto De verbo incarnato. Entre as obras místicas: De preparatione ad contemplationem chamado também Beniamin minor; De gratia
contemplationis chamada também Beniamin maior; De statu interioris hominis; De exterminatione mali. Ricardo distingue a verdade fundada na experiência, da verdade fundada na razão e da verdade fundada na fé. O homem conhece as coisas temporais através da experiência; as coisas eternas em parte com a razão, em parte com a fé. Do que é eterno, com efeito, nem tudo pode ser conhecido através da razão, há muito que só pode ser revelado por Deus e tem, por conseguinte, como pressuposto a fé (De trinit., 1, 1). Todavia, Ricardo não desiste de prosseguir na sua busca ideal da demonstração apodítica. Na sua obra Sobre a Trindade declara a sua intenção de acrescentar em apoio da fé razões não só prováveis, como necessárias, e exprime a confiança de que tais razões não faltam (1b., 1, 4). 167 Estas razões dizem respeito, em primeiro lugar, à existência de Deus. Tal como Hugo, ele também prefere partir da experiência para a demonstração de Deus em homenagem ao princípio (sobre o qual insistirá S. Tomá s) de que "todo o nosso processo demonstrativo tem início naquilo que conhecemos pela experiência" (Ibid., 1, 7). A sua argumentação consiste essencialmente em ascender das coisas finitas, que não têm ser por si, a um princípio que tem o ser por si e é eterno. Se este princípio não existisse, as coisas que não têm ser por si não teriam podido recebê-lo do nada e portanto não existiriam. A existência mutável do ser contingente demonstra a eternidade do ser necessário (1b., 1, 6). Da experiência, Ricardo parte também para demonstrar a trindade de Deus. A experiência demonstra que o raio de sol, ainda que procedendo do sol e tendo a sua oriaem nele, é no entanto seu contemporâneo. O sol produz por si o raio e em tempo algum carece dele. Ora se a luz corpórea tem um raio que é seu contemporâneo, porque razão não terá também a luz espiritual um raio seu coeterno? Não é admissível que a natureza divina, princípio de toda a fecundidade, tenha ficado estéril em si mesma e não haja gerado nada, ela que deu a todas as coisas a possibilidade de gerar. É portanto provável que na incomutabilidade supraessencial de Deus haja algo que não existe por si próprio e seja todavia ab aeterno (1b., 1, 9). Esta probabilidade torna-se certeza se se considerar a perfeição do poder, na beatitude e do amor divino. Esta perfeição implica a possibilidade de uma comunicação mediante a qual Deus possa difundir a abundância infinita da sua vida. Uma dualidade de pessoas torna-se necessária para que Deus não seja privado dessa comunicação, sem a qual a sua vida seria estéril e solitária (Ibid. HI, 11). Mas uma dualidade não basta: a comunicação não é perfeita se não 168 se pode difundir além de si, para uma terceira pessoa co-igual. A perfeição do amor pressupõe que tal possa estender-se a uma tercelra pessoa que seja igualmente amada e que seja igual em dignidade e em potência. A perfeição do amor e em geral da vida divina requer portanto a trindade das pessoas divinas, sem a qual não haveria a inte- ,-,ridade da sua plenitude (1b., 111, 11). A Trindade divina deve ser constituída por pessoas que tenham os nossos atributos. A perfeição da divindade ,implica a perfeição da Potência,
a perfeição da Sabedoria, a perfeição do Bem. Assim como é omnipotente uma delas, assim são as outras; assim como uma delas é infinita, assim são as outras: assim como uma delas é Deus, assim são Deus também as outras. Mas existe apenas um só Deus, porque assim como as três pessoas são igualmente omnipotentes, assim as três são igualmente Deus. O que significa que as três pessoas tenham uma única e idêntica substância, ou melhor, que sejam uma única e mesma substância (Ibid., 111, 9). Enquanto que no homem existe mais que uma substância (alma e corpo) mas uma só pessoa, em Deus existe uma só substância e várias pessoas. À definição boeciana de pessoa, aceite já por Hugo como "substância individual de natureza racional", Ricardo acrescenta a determinação "dotada de existência incomunicável" (Ib., IV, 18). A interpretação trinitária de Ricardo constitui na escolástica uma fórmula fundamental que foi seguida sobretudo pela escola franciscana. § 229. RICARDO DE S. VICTOR: A ANTROPOLOGIA MíSTICA O pressuposto de Ricardo é a unidade e a simplicidade da natureza humana. A alma é uma essência simples e espiritual que comunica ao corpo vida 169 e sensibilidade: A alma e o espírito não são no homem duas substâncias diversas, mas constituem uma única essência; o espírito é a faculdade superior da alma, mas não se distingue substancialmente dela. Tal como os objectos se dividem nas três classes do sensível, do -inteligível (mundo espiritual) e do intelectível (Deus) assim se dividem em três faculdades os poderes da alma; imaginação, razão, inteligência. A função da imaginação é a de receber e conservar as percepções sensíveis. A razão é a capacidade de pensamento discursivo, que procede demonstrativamente de uma verdade para outra. A inteligência são os olhos espirituais que vêem as coisas invisíveis na sua presença real, como os olhos da carne vêem o que é visível (De contempl., 111, 9). Nestas três faculdades se baseia a via mística ao procurar a união com Deus. O pensamento (cogitatio) baseia-se na imaginação; a meditação (meditatio) na razão e a contemplação (contemplatio) na inteligência. "0 pensamento vagueia lentamente por aqui e por ali, sem se preocupar com uma meta. A meditação tenta esforçadamente prosseguir através de obstáculos e dificuldades na direcção de um fim. A contemplação circula em voo livre, por onde quer que expanda o seu ímpeto e com uma extraordinária agilidade. A contemplação é o último estádio da via mística. Duas são as suas condições fundamentais. Em primeiro lugar, a pureza de coração, condicionada pela virtude; em segundo lugar, o conhecimento de si. Ricardo compara a razão e a vontade do homem às duas mulheres de Jacob, Raquel e Lia. Tal como Jacob se uniu primeiro a Lia e dela teve sete filhos e sete filhas, e em seguida desposou Raquel e gerou dela, assim também a vontade humana é primeiro fecundada pelo espírito de Deus, que gera nela as virtudes; em seguida a razão humana, desposando a graça divina, gera o conhe170 cimento mais alto. As virtudes são portanto os filhos de Lia, mas a vida
mística começa apenas com o conhecimento que a alma tem de si. O último filho de Jacob e de Raquel, Benjamim, é o símbolo desse conhecimento de si, que é a verdadeira e própria -introdução à união mística com Deus (De praep. ad contempl., 67-71). "Aprenda o homem a conhecer o que há nele de invisível, antes de conhecer o que há de invisível em Deus. Se não te podes conhecer a ti próprio, como pretendes poder conhecer aquele que está acima de ti?" (lb., 7). Seis são os graus fundamentais da contemplação. O primeiro, in imaginatione et secundum imaginationem, considera o mundo sensível como tal, relacionando a perfeição e a beleza com a potência, sabedoria e bondade de Deus. O segundo, in imaginatione et secundum rationem, considera o mundo sensível nos seus dois princípios e assim nos conduz do mundo sensível ao mundo inteligível. O terceiro grau, in ratione et secundum imaginationem, relaciona o sensível com o supra-sensível e assim tem em consideração as ideias das coisas. O quarto grau in ratione et secundum rationem considera a alma e os espíritos puros, como sejam os anjos. O quinto grau, supra rationem et non praeter rationem, dirige-se a Deus na medida em que ele é cognoscível pela nossa razão. O sexto e últrro grau, supra rationem et praeter rationem, considera os atributos da divindade que transcendem em absoluto a razão humana, por exemplo, os que se referem à Trindade (De contempl., 1, 6). Os graus de ascese progressiva da alma para a verdade suprema podem distinguir-se também pela qualidade subjectiva dos seus actos. Alguns deles implicam, com efeito, o dilatar-se (dilatatio) da mente, outros o levantar-se (sublevatio) outros a alienar-se (alienatio) da mente de si mesma. O dilatar da mente consiste em expandir-se e em agudizar 171 as suas capacidades, sem que, no entanto, transcendam os limites humanos. O elevar-se da mente é o estado em que ela permanece iluminada pela luz divina e transcende os limites da capacidade humana. Finalmente, o alienar-se da mente é o abandono da memória de todas as coisas presentes e a transfiguração num estado em que já não há nada de humano Ub., V, 2). O primeiro destes graus é devido à actividade humana, o terceiro apenas à graça divina, o segundo a uma e a outra. No terceiro grau, está o ponto culminante da contemplação, o êxtase ou excessus mentis. Som invólucro e sem sombras, não mais per especulum et in enigmate, o homem contempla então a luz da sabedoria divina. Neste estado não existe já sensibilidade, nem memória das coisas externas e a própria razão humana se cala. A mente é arrebatada lá de si própria e todos os limites da razão são superados. Morre Raquel e nasce Benjamim. A morte de Raquel significa o desaparecimento da razão (De praep. ad contemp., 73). A mística de Ricardo é a expressão fundamental e típica do misticismo medieval. Ricardo viu nitidamente que a via mística conduz à abolição de todos os limites humanos para colocar o homem face a face com Deus. NOTA BIBLIOGRÁFTCA § 221. GEBRART, L'Italie mystique, Paris, 1890,
8.a ed, 1917; BERNHART, Die philosophische M-.ystik des Mittelalters, Berlim, 1922; R. OTTO, West-õstliche Mystik, Berlim, 1926; STOLZ, Theologie der Mystik, Ratisbona, 1936; DANIÉLOU, Platonisme et théologie mystique, Paris, 1944. § 222. As obras de S. Bernardo em P. L., 182.---185.I.Uma edição crítica está em preparação em Roma. Oeuvre8, escolha e tradução francesa de Davy, 2 vols., Paris, 1945.-COULTON, St. B., Cambridge, 1923; MI172 TERRE, La doctrine de St. B., Bruxelas, 1932; GILSON, La thélogie mystique de St. B., Paris, 1934; BAUDRY, St. B., Paris, 1946; ANTONELLI, B. di C., Milão, 1953 (com bibli.); DELHAYE, Le problème de Ia conscience morale chez St. B., Namur, 1957. As obras de Guilherme de S. Thierry, em P. L., 180.1, 205-726. Outros textos foram editados através das obras de S. Bernardo, em P. L., 184.o, 365-436. A carta que acompanha a Disputatio contra Abelardo, em P. L., 182.-, 531-532. Edições recentes: Meditativae orationes, ed. Davy, Paris, 1934; Epistola ad fratres de Monte, Dei, ed. Davy, Paris, 1940; Commentario ad Cantico dei cantici, ed. Davy, 1958; De contemplando Deo, ed. Hourlier, Paris, 1959;-DAVY, Thélogie et mystique de G. de St. T., La connaissance de Dieu, Paris, 1954. § 223. As obras de Isaac, em P. L., 194.o, 1689-1890.-BERTOLA, La dottrina psicologica di Isacco di Stella, in. "Riv. @di Fil. NeoscoI.", 1953. § 224. As obras de Hugo, em P. L., 175.---177.o. Dois outros escritos de Hugo: Epitome in philosophiam e De contemplatione et eius speciebus foram publicados por I-IAuREAu, Hugues de St. Victor, Paris, 1859, 2.1 @ed. com o titulo Les oeuvres de Hugues se St. Victor, Paris, 1886. Outras edições: Didascalion, ed. Buttimer, Washington, 1939; La contemplation et ses espèces, ed. Baron, Paris, 1958. - BARKHOLT, Die Ontologie H. s. V., Bonn, 1930; KLEINZ, The Theory of Knowledge of H. of St. V., Washington, 1944; BARON, Science et sagesse chez H. de St. V., Paris, 1957. 9 225. Sobre as provas da existência de Deus: GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3, 1907, p. 69-77. § 226. Sobre a psicologia: OSTLER em "Beitrãge", vi, 1, 1906. § 228. As obras de Ricardo, em P. L., 196. . Outras edições: Les quatre degrés, ed. Dumeige, Paris, 1955; De trinitate, ed. Ribaillier, Paris, 1958; LibeT exceptionum, ed. Chatillon, Paris, 1958; Sermons et opuscules inédits, trad. frane., Paris, 1951.-OTTAVIANO, Riceardo di S. Vittore, Roma, 1933; DUMEIGE, R. de St. V., Paris, 1952. 173 IX
A SISTEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA § 230. SENTENÇAS E SUMAS A dificuldade de se encontrar os raros e custosos manuscritos tinha determinado na Idade Média o uso frequente de compêndios e excertos. O desenvolvimen,to da cultura medieval manifesta-se com a modificação da natureza destas compilações. A princípio eram constituídas por excertos tirados de um só autor ou também de vários autores, mas destituídos de qualquer ordem. Por exemplo, o Sancti Prosperi liber sententiarum ex Augustino delibatarum é uma compilação de cerca de quatrocentos excertos quase todos de Santo Agostinho e reunidos sem nenhuma ordem. Os manuscritos medievais contêm um grande número de excertos ou Sententiae deste gênero. O mais célebre é o Liber Pancrisis, que remonta ao século XII e contém sentenças dos Santos Padres e de mestres contemporâneos, como Guilherme de Champeaux, Anselmo de Laon e outros. Em seguida, os excertos foram agrupados 175 segundo a ordem das Sagradas Escrituras. Os textos eram algumas vezes de um só doutor, outras vezes de mais. A primeira compilação do gênero é a de Patério, secretário de S. Gregório, que reúne a explicação dos textos bíblicos contida na obra do Santo. De mais autores foram extraídos os textos recolhidos por Beda o Venerável e por Rabano Mauro, que acrescentaram aos próprios textos comentários pessoais. Mas havia outras compilações nas quais as sentenças dos Padres eram reagrupadas segundo uma ordem mais ou menos lógica. Isidoro de Sevilha é o autor de uma obra deste gênero que intitulou Sententiarum libri tres, e que em seguida foi citada com o titulo De summo bono. Estas recolhas de textos que seguiam uma ordem mais ou menos lógica, eram designadas com o nome de Sententiae.mas, progressivamente, a parte correspondente à elaboração pessoal na explicação e nos comentários dos excertos era cada vez maior. No entanto, as recolhas continuaram a manter o nome de Setaentiae, uma vez que o texto original não era mais que a explicação e o comentário das sentenças transcritas. Abelardo reformou profundamente este costume literário. A partir dele as obras que mantiveram o nome de Sententiae passaram a ser compêndios sistemáticos, completos e racionais, das verdades fundamentais do Cristianismo. Para exprimir este novo carácter adoptou-se o termo Summa. Abelardo serve-se deste termo no prólogo da Introdução à Teologia: "Escrevi uma summa da erudição sacra como introdução às divinas Escrituras". E Hugo de S. Vietor no prólogo do 1 Livro do De sacramentis, que é a primeira verdadeira e própria suma de teologia medieval, diz: "Reuní numa única cadeia (series), esta breve suma de todas as coisas". No século XII o nome de 176 Summa substitui o de Sententiae e os livros que continham a exposição sistemática das verdades cristãs chamavam-se Sumas de teologia.
§ 231. PEDRO LOMBARDO Entro os mais notáveis autores de Sum~e há a salientar Robert Pulleyn, um inglês que ensinou em Paris e depois em Oxford e morreu em 1150; Roberto de Melun; que foi aluno em Paris, de Hugo de S. Victor e provà velmente também de Abolardo, do qual aceitou o principio da dúvida metódica, Simão de Tournay, que ensinou em Paris entre a segunda metade do século XII e o principio do século XIII e defendia a fórmula de Anselmo do credo ut intelligum, contraponda-a ao preceito da filosofia personificada por Aristóteles: iniellige et credes. Mas a obra do gênero mais significativa, pela importância que teve como texto fundamental da cultura escolástica, é a de Pedro Lombardo. Pedro Lombardo nasceu em Lumollo, perto de Novara; estudou em Bolonha o depois na escola de S. Victor, em Paris. A partir de ll^ ensina na escola catedral de Paris; em 1159 torna-se bispo de Paris e morre provávelmente em 1160. Escreveu um Commentario às cartas de S. Paulo e um outro aos Salmos. Os seus livros Libri quattor sententiarum foram escritos entre 1150 e 1152. Esta obra é um compêndio sistemático das doutrinas cristãs baseado na autoridade da Bíblia e dos Padres mas no qual a parte pessoal é relevante. O maior peso é constituído pela autoridade de Santo Agostinho, mas apirecem também citados Hilário, Ambrósio, Jerón-imo, Gregório Magno, Cassiodoro, Isidoro, Beda e Boécio. Dos escritores posteriores é utilizado sobretudo o De sacramentis, de Hugo de S. Victor. Pela primeira vez, no Ocidente, aparece citado o 177 texto De fide orthodoxa de João Damasceno que é a terceira parte, traduzida do latim em 1151 por Borgúridio de Pisa, da Fonte do conhecimento. Mas a obra de Pedro Lombardo manifesta também com evidência a influência de Abelardo e do método por ele criado no Sic et non. Apesar da sua explícita afirmação de que em matéria de fé "cré-se nos pescadores e não nos dialécticos", Pedro Lombardo é um dialéctico que procura fazer valer todo o peso da razão em apoio à autoridade dos textos citados. Na própria divisão da obra, Pedro Lombardo segue um critério sistemático. O conteúdo total da Bíblia é constituído por coisas e signos. A coisa é o que não pode ser empregado para significar ou simbolizar outra coisa; o signo é, pelo contrário, o que serve essencialmente para esse fim. Entre os signos, Pedro Abelardo inclui os Sacramentos, que são símbolos da realidade suprasensível. Por sua vez, as coisas distinguem-se, segundo são objecto de gozo (fruitio) ou objecto de uso. Objecto de gozo é a Trindade divina, objecto de uso são as coisas criadas. As virtudes são conjuntamente objectos de gozo e objectos de uso, porque são meios para atingir o fim da beatitude. Das coisas podemos distinguir os sujeitos que as gozam ou se servem delas. Consequentemente, Pedro Lombardo distingue a sua obra em duas partes, a primeira referente às coisas, a segunda referente aos signos. A primeira parte, diz respeito aos sujeitos e aos objectos da fruição e do uso, isto é; a Trindade divina, as coisas criadas em geral, os anjos e os homens em geral e as virtudes. Estes argumentos formam o conteúdo dos primeiros três livros das Sententiae. O último livro é dedicado aos signos, isto é, aos Sacramentos.
O homem pode elevar-se ao conhecimento de Deus partindo das coisas criadas. Tudo o que nós 178 vemos é mutável e tudo o que é mutável deve ter a sua origem numa essência imutável. O corpo e o espírito estão igualmente sujeitos à mudança: o ser de que obtêm a sua origem deve ser, por isso, superior a ambos. E uma vez que todas as coisas corpos e espíritos, têm uma determinada forma e espécie, há que pensar numa forma originária, ou numa primeira espécie da qual, tanto o espírito como o corpo, recebam as suas formas ou espécies. Essa primeira espécie é Deus (Sent. 1, dist 3, n. 3-5). Os três caracteres fundamentais das coisas: a unidade, a forma e a ordem, constituem o reflexo da Trindade divina e consentem ao homem a sua elevação para Ela. Na alma humana a memória, a inteligência e a vontade constituem uma única substância e também aqui se reflecte a imagem da Trindade divina, que é mente (mens), conhecimento (notitia) e amor (amor) (lbid., 1, dist. 3, n.o 6 sgs.). No entanto, nenhuma coisa criada pode dar-nos um conhecimento adequado da Trindade. É preciso distinguir entre as coisas que podemos conhecer antes de crer e aquelas que para serem conhecidas pressupõem a fé. Entre os objectos de fé, alguns não podem ser conhecidos e compreendidos, se não acreditarmos primeiramente neles; outros não podem ser cridos se não forem primeiramente, compreendidos, e estes últimos são, por via da fé, compreendidos mais profundamente (1b. 111, dist. 24, 3). O objectivo fundamental das interpretações teológicas de Pedro Lombardo é a defesa da omnipotência divina. Contra Abelardo e de acordo com Hugo de S. Victor (§ 225), Pedro Lombardo nega que Deus não possa criar nada de melhor do que aquilo que efectivamente criou. Na realidade, se o "melhor" se refere à actividade criadora de Deus, a afirmação é legítima: mas se se refere ao objecto dessa actividade, isto é, ao mundo criado, a afirmação é fadsa, porque leva a pensar que ao mundo 179 não falta qualquer perfeição, e em tal caso o próprio mundo seria semelhante a Deus: ou então Deus não poderia dar-lhe maior perfeição e assim o mundo manifestaria uma imperfeição que estaria em contraste com a tese, segundo a qual, é o melhor dos mundos possíveis (1b., 1, dist. 44, 2-3). No que diz respeito ao homem, cujas três faculdades reproduzem, como se disse, a Trindade divina, Pedro Lombardo afirma que a alma é-lhe transmitida d-irectamente por Deus. É preciso distinguir no homem a sensibilidade, a razão e a vontade livre. A sensibilidade está ligada a todos os órgãos dos sentidos, e é receptiva e apetitiva. A razão é a mais alta faculdade cognoscitiva da natureza humana: dirige-se por um lado ao que é temporal; por outro ao que é eterno. O livre arbítrio é a faculdade da razão e da vontade conjuntamente, o por isso o homem ~lhe o bem, se a graça divina o ajuda, ou o mal, se não existe a graça. Diz,se livre em razão da vontade, que pode determinar-se por uma
coisa ou por outra; diz-se arbítrio em virtude da razão, da qual representa a faculdade ou poder de discernir o bem do mal, escolhendo umas vezes um, outras vezes o outro (lb., 11, dist. 24,5). O livre arbítrio pressupõ e, portanto, a vontade e a razão e não pode pertencer aos animais que são privados de razão. A sua essência não está na capacidade de escolher entre o bem e o mal, mas antes na capacidade de escolher, sem necessidade ou coacção, o que a razão estabelece. Para o homem o mal é duplo: o pecado e a pena do pecado. Um e outra são negatividade e privação do bem: o pecado é privação num sentido activo, porque corrompe o bem o priva dele o homem; a pena é privação em sentido passivo porque é um efeito do pecado. Deus não é de forma alguma causa do mal: prevê infalivelmente o mal, não como obra sua, mas como obra daqueles que o fazem e suportam. A previsão do 180 mal exclui o beneplácito da sua autoridade, enquanto que a previsão do bem, que é tudo aquilo que ele directamente opera no mundo, é sempre acompanhada de tal beneplácito (lb., 1, dist. 38, 4). Condição primeira para que o homem escolha o bem é a graça divina, que é sempre gratuitamente concedida (gratis dada), independentemente dos méritos humanos: com efeito, não seria graça se não fosse gratuitamente dada. Mas, enquanto que a misericórdia divina é sempre um acto de graça, a reprovação e a severidade de Deus perante o homem são actos de justiça, determinados por aquilo que o homem mereceu. A reprovação divina consiste no não querer ser misericordioso, a severidade em não sê-lo e uma e outra pretendem tornar melhor o homem (1b., dis. 41, 1). As Setuenças de Pedro Lombardo tomaram-se, em breve, um dos livros fundamentais da cultura filosófica medieval e foram objecto de numerosos comentários até ao fim do século XVI. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 230. Sobre o desenvolvimento das complicações de Sentenças: RoBERT, Les écoles et 1'ense@gnement de Ia théol. pendant Ia première moitié du XIIe sièc@e, Paris, 1909, cap. 6; DE GHELLINCK; Le mouvement thélogique du XIIe 8ièc1e. Rruges-Bruxelas-Paris, 1948 (com bibli.). § 231. As obras de Pedro Lombardo, em P. L., 191.,-192.,. Edição critica das Sentenças, a cargo dos padres franciscanos de Quaracchi, 1916, 2 V018.-PROTOIS, Pierre Lombard, Paris, 1881; GRABMANN, Die Gesch. d. 8chol. Methole, 11, 350-407; ERSPENBERGER, em "Beitrãge", 111, 5, 1901. 181 x A FILOSOFIA ÁRABE § 232. FILOSOFIA áRABE: CARACTERíSTICAS E ORIGENS
Entre as causas que mais eficazmente estimularam a actividade cultural do Ocidente no século XII, estão as relações com o mundo oriental sobretudo com os Árabes. Com efeito, o mundo árabe tinha já assimilado, nos séculos precedentes, a herança da filosofia e da ciência gregas, que ainda permaneciam em grande parte, ignoradas pela cultura ocidental: esta conhecia delas apenas o que tinha conseguido filtrar-se através da obra dos autores latinos e dos Padres da Igreja. Por outro lado, e sobretudo por isso, a filosofia árabe surgia aos olhos dos pensadores ocidentais como a própria manifestação da razão e, por isso, como uma força de libertação dos entraves postos pela tradição. Adelardo de Bath não hesitava em contrapor o que tinha aprendido " com os mestres árabes, orientado pela razão", ao "cabresto da autoridade" a que estavam submetidos os que seguiam a tradição (Quaest. nat., 6). Em terceiro lugar, a filosofia oci183 dental tinha, em comum com a filosofia oriental, a própria natureza dos seus problemas. Também a filosofia árabe é uma escolástica, isto é, uma tentativa para encontrar uma via de acesso racional à verdade revelada; e a verdade que se pretende alcançar, a que está contida no Corão, tem muitas características semelhantes à verdade cristã. Em suma, tal como a filosofia cristã, a escolástica árabe vive à custa da filosofia grega, especialmente do neoplatonismo e do aristotelismo. Tudo isto explica a influência e a profunda penetração que o pensamento árabe exerceu na escolástica cristã no século XIII e XIV. Todavia, em certos pontos, as duas escolásticas deviam revelar-se inconciliáveis. A síntese a que chegaram os maiores representantes da escolástica árabe, Al Farabi, Avicena e Averróis, surge-nos de acordo com o principio da necessidade. A necessidade domina o mundo divino e humano; tal é a convicção dos grandes filósofos árabes. E a isso não se furta o mundo das coisas finitas que é necessário não por si, mas pela sua dependência de Deus: nem mesmo a vontade humana, dominada por uma cadeia causal que, através dos acontecimentos do mundo sublu. nar e dos movimentos da esfera terrestre, tem como motor o Ser necessário. A escolástica latina, ainda que tenha recebido o aristotelismo através dos árabes, deverá no entanto tentar subtrai-lo ao princípio da necessidade e introduzir nele um princípio de contingência quepermitisse salvar, ao mesmo tempo, a liberdade criadora de Deus e o livre arbítrio do homem. A primeira actividade filosófica nasceu entre os Árabes da tentativa de interpretar certas crenças fundamentais do Corão. Assim a seita dos Quadáries, afirmava o livre arbítrio do homem perante a vontade divina, enquanto que a dos Jabaries defendia o fatalismo absoluto. No século 11 da FIégira 184 (732-832),. expande-se a seita dos Motazeis ou dissidentes, que afirmavam
enèrgicamente os direitos da razão na interpretação da verdade xeligiosa. Foram eles que divulgaram o Kalam. (ciência da palavra), ou seja, a teologia racional. A partir do califado de Haroun al-Raschid (785-809), os árabes começaram a familiarizar-se com a cultura grega. As traduções árabes das obras de Aristóteles e dos outros autores gregos deveram-se, em geral, a sábios cristãos sírios ou caldeus, que viviam, em grande número, como médicos na corte dos Califas. As obras de Aristóteles foram traduzidas em grande parte das traduções sírias que, desde a época do imperador Justiniano, tinham começado a difundir no Oriente a cultura grega. Entre as obras que exerceram mais profunda influência no pensamento árabe conta-se uma Teologia atribuída a Aristóteles, que é formada por uma centena de passagens tiradas das Eneadis de Plotino, e o Liber de causis, que é a tradução dos Elementos de teologia de Próculo. Além destes textos e das obras de Aristóteles, contribuiram para formar o pensamento árabe, os comentáfios de Alexandre de Afrodísia, os diálogos de Platão, especialmente a República e o Timeu, e as obras científicas de Euclides, Ptolomeu e Galeno. Uma reacção da ortodoxia religiosa contra as novidades introduzidas pelos filósofos foi desenvolvida pelos Mutakallimun (os que discutem). A afirmação fundamental dos Mutakallimun é a novidade e discontinuidade do mundo, que toma necessária a existência de um Deus criador. Adoptam a doutrina atómica de Dernócrito, que provàvelmente conhecem através da exposição de Aristóteles. Segundo eles, os átomos não têm nem quantidade nem extensão, e são criados por Deus sempre que ele quer. As coisas resultam da agregação dos átomos e as suas qualidades não poderão durar dois 185 instantes, ou seja, dois átomos de tempo, se Deus não interviesse continuamente na sua criação. Quando Deus deixa de criar, as coisas, as suas qualidades e os próprios átomos, deixam de existir. A discontinuidade toma necessária a acção incessante e criadora de Deus o garante a liberdade na criação. A reforçar esta tese, os Mutakallium negavam a relação de causalidade entre as coisas. As coisas criadas não têm, entre si, relações de causa e efeito. O fogo tende a afastar-se do centro da terra e a produzir calor; mas a razão não se nega a admitir que o fogo poderá mover-se em direcção ao centro e a produzir frio, ainda que permaneça fogo. Os nexos causais não têm qualquer necessidade intxínseca; são estabelecidos únicamente por Deus. Mais que causa primeira, Deus é causa agente e eficiente e produz directamente todos os efeitos do mundo criado. No princípio do século estas doutrinas dos Mutakallium foram retomadas por uma outra seita, a dos Asharies, assim chamados devido a Abul-Hassan AIAshari (873-935), de Bassora. Os asharies exageram ainda a doutrina da criação directa por parte de Deus, afirmando que todas as qualidades acidentais nascem e desaparecem únicamente por um acto de criação da vontade divina. Assim, por exemplo, quando um homem escreve, Deus cria quatro acidentes que não estão ligados entre si por nenhum nexo causal: a verdade de mover a pena, a faculdade de a fazer mover, o movimento da mão, o movimento da pena. O movimento filosófico determinado pelas posições destas seitas vem a ser
substituído a seguir pela acção de verdadeiras e próprias personallidades filosóficas que, em parte, utilizam e continuam as doutrinas das próprias seitas, e em parte se opõem a elas na tentativa de se manterem ficis à doutrina dos filósofos gregos e especialmente a Aristóteles. 186 § 233. AL.XINDI A,I-,Kindi é o primeiro dos filósofos árabes que se relaciona explicitamente com a tradição grega. Viveu em Bagdad, e devia ter falecido em 873. Escreveu um grande número de obras de filosofia, matemática, astronomia, medicina, política e música. Foi um dos autores que o califa AI-Mamún encarregou de traduzir as obras de Aristóteles e de outros pensadores gregos. Os Árabes deram-lhe o título de Filósofo por execelência. Foi autor de numerosos comentários aristotélicos. Gerardo de Cremona traduz no século X11 um texto seu com o título Verbum Jacob Al Kindi de intentione antiquorum in ratione. Um outro texto foi traduzido com o título De intellectu. A parte do comentário aristotélico de AI-Kindi que chamou a especial atenção dos escolásticos latinos é a que diz respeito à doutrina do intelecto. Al-Kindi teve a pretensão de expor as opiniões de Platão e Aristóteles, mas, na verdade, segue de perto a interpretação de Alexandre de Afrodísia (§ 111). Enumera quatro intelectos: "0 primeiro é o que está sempre em acto; o segundo é o que está em potência na alma; o terceiro é o que na alma passa da potência a realidade efectiva; o quarto é o intelecto que chamamos demonstrativo: este último, Aristóteles assimila-o aos sentidos porque os sentidos estão próximos da verdade e em comunicação com ela". Destes quatro intelectos os três primeiros correspondem respectivamente ao nous poieticós, ao nous ylikós e ao nous epiktetós de Alexandre; o quarto é a alma sensitiva. Em AI-Kindi surge pela primeira vez, de uma forma nítida, o princípio típico do aristotelismo árabe que atribui directamente ao intelecto de Deus a iniciativa do processo de conhecer do homem. "A alma, afirma ele, é inteligente em potência: passa a ser inteligente de modo efec187 fivo pela acção do Intelecto primeiro, quando dirige o seu olhar para este. Quando uma forma inteli1 givel se une à alma, esta forma e a inteligência da alma passam a ser uma só e mesma coisa, que é ao mesmo tempo aquilo que conhece e o que à conhecido. Mas o Intelecto que está sempre em acto, e que atrai a alma para a converter em intelecto efectivo, de intelecto potencial que era, não se identifica com o que é conhecido. Em relação ao Intelecto primeiro, portanto, o intelecto e o inteligível que a alma co"ece não são a mesma coisa; em relação à alma, o intelecto que conhece e o inteligível que é conhecido são a mesma coisa". Está implícita nesta doutrina de AI-Kindi a separação entre o Intelecto activo, que é o divino, e os outros intelectos, que são próprios do homem. § 234. AL FARABI
AI Farabi, assim chamado por ser natural de Farab e que foi célebre entre os muçulmanos não apenas como filósofo peripatético, mas também como matemático o médico, continua a tradição enciclopédica de AI-Kindi. All Farabi ensinou em Bagdad e morreu em Dezembro do ano de 950. Escreveu uma obra sobre as ciências, De scientiis, um texto sobre o intelecto, De intelectu, e ainda outras obras de ética e de política, todas inspiradas no pensamento aristotélico. Em AI Farabi, encontra-se pela primeira vez a distinção entre a essência e a existência e que iria ter uma tão grande Importância na filosofia de S. Tomás. Averróis faz Temontar esta distinção aos Mutakallimun, que teriam sido os primeiros a distinguir o ser em possível e necessário e teriam afirmado que para se pensar num ser possível há que pressupôr a existência de um agente que o 188 faça passar a acto; e como o mundo no seu todo é possível, é preciso que o agente do mundo seja um ser necessário (Destr. destruct. Algazelis, 1, 4, 5). Na realidade, a primeira origem desta distinção está no Liber de causis que, como já foi dito, é uma das principais fontes de inspiração da especulação árabe. O Liber de causis (cap. 9) distingue, nas coisas, a existência e a forma, ambas procedentes do exterior: a existência do primeiro Ser pela via da criação; a forma das Inteligências subordinadas pela via das impressões. Mas no Liber de causis a existência é o substracto receptivo da forma, e, por isso, a possibilidade da própria forma: funciona como matéria; no pensamento árabe a relação inverte-se e a essência ou forma será considerada como matéria ou possib',lidade e a existência como acto. Segundo AI Farabi, tudo o que existe é ou possível ou necessário. Ao afirmarse que uma coisa dotada de existência possível não existe, não se enuncia nenhum absurdo, uma vez que para receber a existência essa coisa precisa de uma causa. Uma coisa possível não pode passar ao número das coisas necessárias, senão através da acção de um ser nocessário. Pelo contrário, se afirmamos o ser necessário como não existente, fazemos uma suposição absurda, pois esse ser não tem uma essência distinta da sua própria existência. O ser necessário é único e nenhum outro além dele possui uma verdadeira substância: escapa a todas as categorias e a todas as distinções de matéria e de forma. "É o acto de pensamento na sua pureza, o puro objecto pensado, o puro sujeito pensante. Nele, as três coisas seguintes são apenas uma: é sábio, sapiente e vivente. Tem actividade perfeita e perfeita vontade. Goza de uma imensa felicidade na sua própria substância e é o primeiro amante e o primeiro amado". (Dieterici, Alfarabis philos. AbhandIungen, p. 93-96). 189 A distinção entre o ser necessário e o ser possível será fundamental para todo o pensamento árabe e também para a escolástica latina posterior. Do ser necessário, e precisamente do acto com que o ser necessário se pensa a si próprio (segundo o esquema de Plotino), nascem, afirma AI Farabi, os vários intelectos, que se relacionam entre si como a matéria e a forma, a potência e
o acto. Do Ser necessário enquanto se conhece a si próprio, nasce o primeiro Intelecto, que por sua vez conhece o Ser necessário e a si próprio. E na medida em que conhece o Ser necessário, produz um segundo intelecto; no entanto, enquanto se conhece a si próprio, produz o primeiro céu na sua matéria e na sua forma, que é a alma. Do segundo intelecto dimana, do mesmo modo, um outro intelecto e um outro céu que se situa abaixo do primeiro. E assim, de cada intelecto nasce sempre um intelecto o um céu, até se chegar a um intelecto privado de matéria e que por si não pode originar a formação de uma nova esfera celeste. Este último intelecto é a causa da existência das almas humanas e, em colaboração com as esferas celestes, é a causa dos quatro elementos que compõem o mundo sublunar. Trata-se do intelecto agente, do qual dependem os outros três intelectos (própriamente humanos): em potência, em acto e adquirido, cuja distinção AI Farabi retoma de AI Kindi. O princípio eficiente de todo o conhecimento humano é o Intelecto agente. À alma humana pertence o intelecto em potência, que pela acção do intelecto activo, se transforma em intelecto em acto e conhece as formas inteligíveis das coisas, formas que se identificam com ele. A elaboração destas formas conceptuais, dirigindo-se a noções mais gerais e mais elevadas é obra do intelecto adquirido. Deste modo o intelecto adquirido é forma do intelecto em acto, que, por sua vez, é forma do intelecto em potência (lb., p. 71-72). O total meranismo do conhecimento vem assim a ser dependente 190 da acção do Intelecto agente. A esta acção AI Farabi faz ligar também a qualidade mais elevada que o homem pode alcançar, a sapiência e a profecia. Com efeito, quando o Intelecto agente consegue transportar o intelecto potencial de um homem ao seu grau mais alto, que é o intelecto adquirido, então o homem torna-se num sábio-filósofo; mas quando o próprio Intelecto agente actua, não sobre o Intelecto, mas sobre as faculdades representativas de um homem, este homem pode transformar-se num profeta, num iluminado, num vidente e esperar ser chefe na cidade ideal; porque nenhum está em posição de o dirigir mas ele está em posição de dirigir todos (lb., p. 59). De tal modo o Intelecto agente é considerado por AI Farabi que o considera um dom da iluminação divina, fazendo do homem um profeta ou um chefe; e o mecanismo atribuido ao intelecto é utilizado também para uma explicação racional da revelação religiosa original. Mas o Intelecto agente, como se viu, nasce pela reflexão do Ser necessário: e assim também a sua acção se integra na necessidade própria deste ser. A necessidade exclui toda a possibilidade de escolha: o conhecimento com que o Ser necessário produz tudo está necessàriamente conexo com a sua própria essência e não separa a necessidade (1b., p. 96). A necessidade reflecte-se portanto em todas as coisas do mundo: a própria vontade humana surge determinada pela cadeia das causas naturais que tem como origem primordial a causa absoluta. O Ser necessário. § 235. AVICENA: A METAFíSICA Ibri-Sina, que os escolásticos latinos cognominaram de Avicena, era persa de origem e nasceu em Afshana (perto de Bokara) em 980. Dotado de inteligência precoce, aos 17 anos era já famoso como
191 médico e teve a sorte de curar o príncipe de Bokara, que o colmou de favores e pôs à sua disposição a imensa biblioteca do seu palácio. Mais tarde, Avicena foi para Sorsan, onde abriu uma escola pública e deu início ao seu célebre Cânone de medicina. Obrigado a abandonar a cidade em virtude das desordens que surgiram, dirigiu-se para Hamadan, onde foi designado Visir do príncipe dessa localidade. A sua actívidade como tal quase o levou à morte, porque as tropas descontentes com ele, haviam-no prendido e pedido a sua morte. No entanto, o príncipe salvoulhe a vida e manteve-o junto de si como médico. Avicena compõe então várias partes da sua grande obra sobre A Cura (AI Scifà). Depois da morte do seu protector, partiu para Ispahan, onde se torna secretário do príncipe, que acompanhou frequentemente nas suas expedições. Estas viagens contribuiram para perigar a sua saúde, já de si comprometida por uma vida agitada e laboriosa: Avicena amava a vida, e dedicava-se de bom grado ao amor e à bebida. Tendo acompanhado o seu príncipe numa expedição contra Hamadan, caiu enfermo e morreu naquela cidade em 1307, com a idade de 57 anos. A Wa de 1bn-Sina, escrita pelo seu discípulo Sorsanus foi traduzida para o latim e imprimida no início de diversas edições das suas obras. A actividade de Avicena estende-se a todos os campos do saber. O seu Cânone de medicina foi a obra clássica da medicina medieval. As obras que interessam à filosofia são o Livro da Cura (AI Scífà) e o Livro da Libertação (AINajah): o primeiro era uma vasta enciclopédia de ciências filosóficas em dezoito volumes; o segundo, dividido em três partes, era um resumo do primeiro. As edições latinas das obras de Avicena são traduções de uma ou de outra parte das suas obras principais. No fim do século XII Gerardo de Cremona traduz o Cânone de medicina; Domingo Gundisalvo e o judeu Avendeath 192 traduzem a Lógica, uma parte da Física, a Metafisica, o De caelo e muitos dos escritos científicos. Rápidamente, entre o fim do século X11 o o princípio do século XIII, o Ocidente cristão vem a conhecer, através destas traduções de Avicena, quase toda a obra de Aristóteles, de que apenas conhecia a lógica. Mas com tudo isto, o ocidente latino conhece bem pouco a obra de Avicena. Com efeito, a sua obra é vastíssima (provàvelmente mais de 250 obras); e o reconhecimento da sua importância, quer pela filosofia oriental, como pela ocidental e ainda pela ciência (e especialmente pela biologia e medicina), levaram os estudiosos modernos a publicar e a traduzir algumas partes inéditas. Entre estas têm importância para a filosofia: Tratados místicos; Epístola das definições, Livro de ciência; Livro das directivas e das notas; Lógica oriental, que é parte de uma grande obra perdida, Juizo imparcial entre os orientais e os ocidentais. O título desta última obra levou a pensar num ramo teosófico ou místico da filosofia de Avicena em contraste com as directrizes filosóficas e racionalistas das obras que conhecemos. Na realidade não existe qualquer base para uma tal laipótese: que é desmentida, não só pelos fragmentos das suas obras que temos sobre a lógica, como também pelo conteúdo do Livro das directivas que pertence aos últimos anos de Avicena e que não testemunha qualquer mudança sensível nas conclusões da sua filosofia. As fontes desta filosofia são Aristóteles, Plotino (que Avicena, contudo, não distingue do primeiro e a que atribui a Theologia, e uma centena
de passagens das Eneadis) e AI Farabi; mas é sobretudo dos Estoicos que se aproxima o seu conceito do mundo como o domínio de uma força racional que o orienta com infalível necessidade. Avicena descreve em termos nitidamente escolásticos o objectivo da filosofia: o de demonstrar e esclarecer racionalmente a verdade revelada. Os fun193 dadores da fé ensinaram e transmitiram a sua doutrina por virtude da inspiração divina. Os filósofos acrescentaram à doutrina transmitida o discurso e as considerações demonstrativas. Os fundadores da fé não distinguiram nem esclareceram o conteúdo das suas doutrinas, definiram apenas os princípios e os fundamentos: cabe aos filósofos expôr e elucidar claramente o que está obscuro e oculto (De defin. et quaest., fol. 138, p. 1). Mas se a filosofia vem acrescentar à tradição religiosa as considerações demonstrativas, por outro lado a tradição religiosa, representada pelos profetas, estende o domínio da verdade humana para lá dos limites que a demonstração necessária pode alcançar. Com efeito, é ela que permite afirmar com certeza a Tealídade das coisas que o intelecto não pode demonstrar ou apenas pode reconhecer a possibilidade (De divis scient., fol. 144, p. 2). O princípio da especulação de Avícena é, tal como o de AI Farabi, a necessidade do ser. Todo o ser enquanto tal é necessário. "Se uma coisa não é necessária em irelação a si própria, afirma Avicena, necessita que seja possível em relação a si própria e necessária em relação a uma coisa diferente (Met., 11, 2, 3). A propriedade essencial do que é possível é precisamente esta: a de exigir necessàriamente uma outra coisa que a faça existir em acto. O que é possível perinanece sempre possível em relação a si próprio, mas pode acontecer sê-lo de modo necessário em virtude de uma coisa diversa (1b., 11, 2, 3). A existência em acto é portanto necessária. O possível mantém-se como tal até ter existência em acto: quando recebe a existência em acto, recebe ao mesmo tempo a necessidade. Isto implica, em primeiro lugar, que todo o possível exige e ff-eclama o ser necessário como causa da sua existência actual. E, em segundo lugar, implica que o ser necessário exista por si, em virtude da sua própria essência; 194 sendo inteligível apenas por essa essência. É um ser simples, sem vínculos, sem deficiências e sem matéria. No Livro das directívas, Avicena insiste na superioridade desta prova de Deus extraída da simples consideração do ser: "Quando consideramos o estado do ser, afirma, o ser é testemunho de si enquanto ser, e ele mesmo, em razão disso, testemunha tudo o que vem a ter existência depois dele". (1b., p. 146; trad. franc., P. 371-372). Se o ser necessário é absolutamente simples, o que é possível e existe apenas em virtude do ser necessário já não é simples e implica em si dois elementos: aquele pelo qual é possível em relação a si mesmo, e aquele pelo qual é
necessário em relação a outra coisa. A possibilidade e a necessidade conjugam-se na formação da sua natureza respectivamente como a matéria e a forma. Com efeito, Avicena interpreta a distinção aristotélica de matéria e forma como distinção entre o possível e o necessário: a matéria é possibilidade, a forma, como existência em acto, é necessidade. O que não é necessário por si, ner-essáriamente é formado por matéria e por acto, por isso não é simples. O ser que é necessário por si é, no entanto, absolutamente simples, mesmo privado de possibilidade ou de matéria (Met., 11, 1, 3). Este conceito do ser necessário (necesse esse) é o ponto de referência de toda a especulação de Avicena. Em primeiro lugar, ele é fundamento da distinção real entre a essência e a existência que viria a tornair-se um dos maiores temas especulativos da escolástica cristã no século XIII e especialmente do tomismo. Com efeito, o ser necessário é o ser que existe por essência ou cuja essência implica a existência; em consequência, o ser que não existe em virtude da própria essência existe apenas como efeito do ser necessário. Esta distinção será o fundamento do princípio da analogicidade do ser, fundamental para o tomismo. Em segundo lugar, o ser 195 necessário introduz em todos os ramos e formas da existência a sua própria necessidade. Toda a contingência ou possibilidade real fica excluída uma vez que o possível não pode passar ao ser sem ser através da acção do necessário; mas com esta acção toma-se ele próprio necessário na sua existência (ainda que o não seja na sua essência). Esta eliminação radical da contingência do ser (implica, além do mais, a necessidade da própria criação divina) é o ponto fundamental em que a doutrina de Avicena surgia contrastante das exigências da escolástica cristã, interessada em manter a liberdade da criação e na criação. Convém no entanto salientar que, não obstante esta exclusão de todo o possível da realidade, Avicenaexpõe um conceito do possível bastante mais preciso e rigoroso do que aquele que tinha sido admitido por Aristóteles. Avicena distingue, com efeito, dois sentidos do possível. No primeiro sentido possível é o "não impossível"; neste sentido o que não é possível é impossível e portanto o próprio necessário é possível. No segundo sentido, que é o próprio, o possível é uma terceira alternativa ailém do impossível e, do necessário em tal caso o possível é o que pode ser ou não ser; o nem o impossível nem o necessário podem dizer-se possíveis (Livre des directives, p. 34, 35; trad. franc., p. 138-141). óbviamente, neste segundo sentido o possível subtrai-se a todos os paradoxos a que dava lugar na lógica. de Aristóteles (§ 85). A absoluta simplicidade do ser necessário consente em Avicena que seja entendido como absoluta unidade, e com maior razão com a própria Unidade no sentido neo-platónico. Avicena, tal como acontecia já com AI Farabi, liga o conceito platónico do uno ao conceito aristotélico do Acto puro; e ao mesmo tempo identifica o Uno e o Intelecto, que os neo-platónicos distinguiam. "Como princípio de toda a existência, o Uno conhece por si as coisas de que é
196 princípio: sabe que é princípio das coisas cuja existência é perfeita na sua singularidade (as coisas celestes) e também das coisas que estão sujeitas à geração e à corrupção. Estas últimas são por ele conhecidas quer atravé s das suas espécies quer através das respectivas individualizações; mas quando conhece estes entes mutáveis, não os conhiece a eles e à res- pectiva mutação, enquanto seres mutáveis, não os conhece com uma inteligê ncia individual" (1b., VIII, 6). A derivação de todos os seres do Ser necessário não é uma criação intencional. Não subsiste uma intenção criadora na Causa primeira: esta intenção implicaria uma multiplicidade de elementos na natureza do Uno, que ao invés é siraplicíssimo. Seria necessário que a ciência e a bondade da Causa primeira a coagissem a ter essa intenção ou que a mesma lhe fosse sugerida pela consideração de uma utilidade ou de uma vantagem que lhe poderia advir; e tudo isto é absurdo. Não existe em Deus nem desejo, nem necessidade, nem intenção: Deus é causa em virtude da sua própria essência., e aquilo de que é causa, o mundo, procede necessàriamente da essência divina. O mundo é assim tão eterno como Deus. A derivação do mundo provemente de Deus verífica-se (como Ail Farabi havia dito, reproduzindo Plotino) através do pensamento isto é, através da ciência que Deus tem de si, da auto-reflexão divina. "A Causa primeira é uma inteligência única, que se conhece a si própria: daí o conhecer necessáriamente tudo o que de si resulta; sabe que a existência de todos os seres surge de si, que ela é principio e que não há nada na sua essência que impeça às coisas de derivarem de si. A sua essência sabe pois que a sua própria perfeição e a sua própria excelência consistem nisto: que o bem deriva dela" (lb., IX, 4). Também a Providência, ou seja o governo do mundo, se exercita do mesmo modo: Deus conhece a ordem,segundo a qual o bem 197 se distribui no mundo e por este simples conhecimento o próprio bem deriva d'Ele de tal forma que d'Ele deriva a ordem mais perfeita possível (Ib., W, 6). Avicena é verdadeiramente o filósofo da necessidade absoluta. Para ele, nada escapa ao princípio de que todo o ser é necessário: nem mesmo a vontade humana. As decisões da nossa vontade devem ter uma causa, como tudo o que passa da simples possibilidade ao ser. Mas a série das causas que o produzem remonta mais além da própria alma, remonta aos acontecimentos terrestres. Ora os aconos celesLecimentos terrestres são determinados pel tes; portanto a série de todos os efeitos depende necessàriamente da necessidade da vontade divina. "Se fosse possível a um homem conhecer, afirma Avicena, todas as coisas que acontecem no céu e na terra na sua natureza, conheceria todos os acontecimentos futuros e também o modo como aconteceriam" (Metaf., X, 1). Donde se deduz a justificação das predicções astrológicas. É claro que o astrólogo não pode pela simples observação do movimento dos corpos celestes obter predicções infalíveis, mas isso deve-se à multiplicidade das
circunstânoias de que depende o acontecimento futuro, muitas das quais se subtraem às suas considerações, não se tratando portanto de falsidade ou insuficiência da ciência astrológica. § 236. AVICENA: A ANTROPOLOGIA O que distingue os animais dotados de razão daqueles que dela são privados é o poder de conhecer as formas inteligíveis. Este poder é a alma racional a que se costuma também chamar intelecto material, ou seja, o intelecto em potência ou intelecto possível. As formas inteligíveis formam a alma de três modos distintos. Em primeiro lugar, mediante emanação 198 ou infusão divina, sem qualquer ensinamento ou qualquer aquisição de origem sensível: é deste modo que ao homem é dado o conhecimento dos primeiros princípios. Em segundo lugar, por meio do raciocínio discursivo e do pensamento demonstrativo: deste modo a alma conhece as espécies inteligíveis que são objecto da consideração lógica. Em terceiro lugar, e através dos sentidos, com a ajuda de uma capacidade natural e inata. Mediante as espécies inteligíveis que assim advêm à alma, o intelecto em potência transforma-se em intelecto em acto, idêntico com as próprias espécies, de tal modo que é ao mesmo tempo sujeito e objecto de conhecimento (intelligens et intellectum). A inteligência em potência, a simples substância intelectual, encontra-se apenas nas crianças, que estão ainda privadas de toda a forma ou espécie inteligível. Em seguida, sem a ajuda de qualquer ciência ou de qualquer meditação, obtém-se o conhecimento dos primeiros princípios. Tais princípios são as verdades imediatamente evidentes, a que se dá o assentimento de forma imediata como, por exemplo "0 todo é maior que a parte" ou "Dois contrários não podem simultâneamente pertencer a uma única coisa". Não podem derivar esses princípios da experiência sensível: não podendo portanto serem fundamento de um juízo necessário, porque não excluem o juizo contrário àquele que sugerem. Estes princípios devem ser portanto o produto de uma imanação divina à qual a alma se encontra unida continuamente ou de forma interrupta. Uma vez que, em virtude de tal imanação, a alma adquire o conhecimento dos primeiros princípios, o intelecto está já em acto e a sua actividade pode enriquecer o património inteligível que lhe foi subrainistrado pelo alto. Intervém então a actividade discursiva do intelecto, que procede por composição e divisão, isto é, por análise e síntese, e este exercício é determinado pelos primeiros princípios que a alma 199 possui. As outras formas inteligíveis ou conhecimentos racionais são adquiridos pela alma por via de abstracção da experiência sensível. A abstracção e a actividade discursiva que compõem e dividem, são pois os dois meios fundamentais pelos quais a alma humana adquire e enriquece os seus conhecimentos racionais e constituem o intelecto adquirido. Existe uma via directa de aquisição, mas é excepcional e
reservada a poucos: "Em alguns homens a vigília prolongada e uma certa união íntima com o Intelecto universal (isto é, o Intelecto em acto de Deus) conferiram ao poder da razão uma tal disposição que a alma racional destes homens deixa de ter necess);dade de qualquer raciocínio discursivo ou do socorro da reflexão para conhecer e aumentar a sua ciência. A esta disposição dá-se o nome de santidade e a alma que dela é dotada é uma alma santificada. Mas esta graça e esta dignidade são apenas concedidas aos profetas e aos apóstolos, nos quais se encontra a salvação" (De an., 8, fol., 24). Mas isto é sem dúvida uma excepção: para os outros homens a relação imediata com a imanação ou com o ser de que provem é limitada e não constante porque o corpo o impede. Desta situação Avicena extraía, platónicamente uma prova de imortalidade da alma: " Quando a alma se encontrar separada do corpo, a continuidade que une a alma ao Ser que a aperfeiçoa e do qual depende não será suprimida. A união continua com a realidade, da qual deriva e da qual depende a sua perfeição, colocando a coberto de qualquer corrupção, a tal ponto, que ela nunca fica destruida nem mesmo quando se afasta ou separa dessa mesma realidade. Por conseguinte a alma permanece depois da morte sempre imortal, na dependência da substância superior que se chama Intelecto universal e que os doutores das diferentes religiões designam por Sapiência de Deus" (De an., 10, fol 34). 200 MAIMõNIDAS Deste modo, Avicena relaciona a imortalidade, tal como a santidade e a sabedoria, com a acção do Intelecto divino, isto é, com o Ser necessário. Mas uma vez que o Ser neccssário é também o bem, a felicidade consiste na contemplação do ser necessário, ou seja, na ciencia deste ser, que é proporcionada pela filosofia. Através da filosofia o homem aproxima-se do Bem supremo que é também a sua origem; e do bem supremo aproximam-se igualmente todas as coisas criadas, cada uma de acordo com o modo ou via que lhe são próprios. O amor de que Avicena fala nos Tratados místicos é portanto, e de harmonia com as concepções aristotél;cas a tendência das coisas para o bem, para o fim supremo, tendência que garante a ordem e a perfeição de tudo. No homem e sobretudo no sábio, este amor é desejo de contemplação do ser necessário. Avicena insiste em sublinhar a superioridade do sábio sobre os outros homens: o sábio actwa desinteressadamente com o único objectivo de se ar)roximar da verdade, enquanto que os outros homens actuam por uma espécie de troca comercial, renunciando a certos bens nesta vida para terem depois a recompensa na outra (Livre des directives, p. 199; trad. franc. p. 485-487). A via mística coincide assim com o conhecimento filosófico e a ambos se opõem todas as formas populares de culto religioso que no entanto, segundo Avicena, não devem ser desprezadas pelo sábio (lb. p. 221; trad. franc., p. 524).
§ 237. AL GAZALI Em oposição ao espírito filosófico de Avicena surge-nos o espírito xeligioso de AI Gazali, o mais célebre dos teólogos muçulmanos. AI Gazali, chainado pelos escolásticos latinos Algazel, nasceu em Tous do Khorasan, em 1059. Ensinou, em primeiro 201 lugar no colégio de Bagdad, depois em Damasco, Jerusalém e Alexandria. Mais tarde retirou-se para Tous, sua cidade natal, onde se dedicou a vida contemplativa dos Súfi (místicos) e compõe grande número de escritos com o objectivo de estabelecer a superioridade do Islamismo sobre todas as outras religiões e sobre a própria filosofia. O mais célebre destes textos teológicos, intitula-se, Restauração das ciências religiosas, obra de teologia e de moral dividida em quatro partes que tratavam das cerimónias religiosas, das prescrições relativas às diversas circunstâncias da vida, dos vícios e das virtudes. Tendo abandonado o seu retiro, AI Gazali retoma a direcção do colégio de Bao,,dad, mas nos últimos tempos da sua vida, regressa novamente a Tous, onde funda um mosteiro para os Súfi e passa o resto dos seus dias na contemplação e nas práticas religiosas. Morre em 1111. Em meados do século XII, Domingo Gundisalvo traduz duas obras de AI Gazali: As tendências dos filósofos e A destruição dos filósofos. Na primeira, AI Gazali não faz mais que expor em síntese os resultados da filosofia do seu tempo, principalmente de AI Farabi e de Avicena. Neste livro, evita fazer críticas, de qualquer género, e limita-se a fazer um inventápio das doutrinas destes filósofos. Na segunda obra, pelo contrário, propõe-se apresentar certos raciocínios que se opõem à argumentação dos filósofos e que pretendem demonstrar a nulidade destes. No final desta segunda obra, AI Gazali mostrase essencialmente negativo. Na parte positiva do seu sistema remete para a sua obra sobre a Restauração das ciências religiosas. A única filosofia que AI Gazali toma em consideração, na sua Destruição dos Filósofos, é a de Avicena. E compreende-se. A doutrina de Avicena é uma filosofia da necessidade: Deus é o próprio ser necessário, e também o mundo como 202 realidade em acto é necessário em relação a Deus. AI Gazali, pelo contrário, ao ligar-se à tradição dos Mutalcallimun, dispõe-se a afirmar enérgicamente a liberdade da acção divina, pressuposto de toda a atitude religiosa. As suas críticas devem portanto dirigir-se no sentido de desmantelar as razões dessa ordem necessária, a que Avicena tinha reduzido tanto Deus como o mundo. Com efeito, AI Gazali combate, em primeiro lugar, o conceito de necessidade no próprio ser necessário, isto é, em Deus. Se este ser fosse, como Avicena afirma, absoluta necessidade, dele não poderia derivar a multiplicidade das emanações e das coisas criadas. Segundo Avicena, tudo é produto da causa primei,ra, mediante o simples conhecimento que a mesma tem de si. Mas conhecendo-se a si própria, conhece também todas as coisas criadas, o que significa que contém em si essas mesmas coisas e que, portanto, não é assim tão simples e necessária como se afirma. O mundo foi criado por um-a vontade
eterna que tinha decretado a existência e que tinha atribuído a tal existência limites definidos no tempo. Segundo Avicena, isso implicaria uma alteração na vontade divina, alteração que não pode conciliar-se com a sua necessidade eterna. Mas, para AI Gazali, esta alteração não oferece apoio a qualquer objecção, uma vez que ele não vê em Deus o ser necessário. A crítica de AI Gazali à necessidade própria da essência divina, à necessidade e também à eternidade do mundo, culmina com a crítica ao próprio conceito de necessidade, expresso no piincípio causal. Não parece que seja necessário existir entre as coisas que acontecem, isoladamente, uma relação causal. Causa e efeito são perfeitamente distintos uma do outro e não estão ligados entre si quanto às respectivas existências. A relação existente entre o fogo e a combustão de um objecto qualquer, não 203 é determinada pela acção do fogo, mas pela acção directa de Deus. "0 fogo é algo de inanimado, não pode por si explicar qualquer acção. Porque razão haveríamos nós de o considerar activo? Os fi-lósofos não têm outra razão para afirmarem tal, a não ser a da evidência de que ao aproximar-squalquer coisa do fogo se verifica a combustão. Mas esta evidência apenas se refere ao facto de que a combustão se dá juntamente com o fogo, e não que ela provenha do fogo; não exclui portanto que haja outra causa, para além dele" (Destr. destruct., 1, dub. 3). Esta outra causa, a única verdadeira causa, é Deus. Mas a acção de Deus é livre e não está ligada a qualquer ordem determinada. A possibilidade de existência do milagre permanece, deste modo, garantida. A figura de AI Gazali representa a reacção da teologia muçulmana à filosofia da necessidade defendida por AI Farabi e por Avicena. A parte positiva da doutrina de AI Gazali é a que trata da mística: AI Gazali atribui o máximo valor à prática da religião. Essa a razão porque as suas obras fundamentais são as de moral-para ele "a ciência é a árvore, mas a prática é o fruto". § 238. IBN-BADJA Ibn-Badja, que os escolásticos latinos cognominaram Avempace é o primeiro filósofo famoso entre os Árabes de Espanha. Nasceu em Saragoça no final do século X1; em 1118 encontrava-se em Sevilha. Esteve também em Granada e mais tarde dirigiu-se a África onde alcançou grande consideração junto da corte dos Almorá vidas. Morreu relativamente novo em Fez, no ano de 1138. Alguns autores árabes relatam que ele foi envenenado por médicos que o invejavam. Avempace escreveu numerosas obras de ciência e de filosofia. Averróis cita 204 dele uma carta Sobre a continuidade do intelecto com o homem, que fazia parte do seu escrito Sobre a alma e uma Carta de despedida (Epistola expeditionis). A sua obra principal é o Regime do Sol;tário, hoje perdida mas da qual existe um resumo elaborado por um filósofo do século XIV, Moisés de Narbona, incluído no seu comentário à obra de Ibrt-Tofail. No Regime do Solitário, Avempace propunha-se dar a entender o modo como o homem pode chegar a identificar-se com o intelecto em acto, mediante o
sucessivo desabrochar das suas faculdades. Avompace considerava o homem isolado da sociedade, ou seja, livre dos seus vícios, mas participando das suas virtudes. O objectivo final do solitário é o de conseguir alcançar as formas inteligíveis isto é, a verdade especulativa; e as acções que correspondem a este objectivo integram-se no domínio do intelecto. Esse objectivo é atingi-do, quando o homem consegue ser intelecto adquirido ou imanado. Este intelecto consiste na consideração das formas inteligíveis em si, isto é, separadamente da matéria a que estão ligadas nas coisas terrenas. O intelecto adquirido é o único que pode conseguir pensar-se a si próprio e desta forma alcançar o seu termo mais alto, que é a união com o intelecto em acto, ou intelecto separado de Deus. Na obra de Avempace o problema aristotélico do intelecto passa a ser uma via de elevação e de purificação humana e deste modo se transforma de problema de especulação lógica e metafísica em problema religioso. § 239. IBN-TOFAIL Ibn-Tofail ou Abubekr nasceu à volta de 1100 em Uadi-Ash (Guadix), na Andaluzia, e foi célebre como médico, matemático, filósofo e poeta. Minis205 tro o médico da corte dos almorávidas que atraiíu flustres sábios do tempo e, entre eles, Averróis que foi encarregado pelo rei, a seu conselho, de redigir uma análise clara exacional de Aristóteles. Abubekr morreu em 1185, em Marrocos. Tal como aconteceu com lbn-Badja, também ele levantou o problema de encontrar a via através da qual o homem possa conseguir unir-se ao mtelecto universal. Mas a sua originalidade consiste em ter criado sobre este problema um verdadeiro romance filosófico intitulado O vivente, filho do vigilante (HajjJaqzân). lbn-Tofail faz nascer o protagonista, sem pai nem mãe, numa ilha desabitada do Equador. A criança nasce da terra e uma gazela encarregi-se de alimentá-la. com o seu leite. Os diversos períodos da sua -idade são assinalados com os progressos sucessivos do seu conhecimento. Partindo do conhecimento sensível, o protagonista consegue, gradualmente, dar-se conta da unidade dos vários seres e a conceber as formas inteligíveis, sendo a primeira a da espécie. Debruçando-se sobre uma concepção do mundo, na sua fflade, e através dos conceitos de forma e de matéria, Hajj chega ao conhecimento de um Ser activo que perpetua a existência do mundo e o põe em movimento. O regresso a este Ser supremo torna-se então o objectivo da sua vida. Pretende afastar-se dos sentidos e da imaginação e concentrar-se no pensamento, para poder identificar-se com ele. No grau mais elevado da contemplação descobre o reflexo de Deus no universo e a proximidade da esfera celeste. Finalmente, no êxtase, vê a Deus dele dimanando diversas esferas celestes e descendo sobre diversos seres humanos, alguns puros e piedosos, outros impuros e condenados. Para demonstrar o acordo entre a sua doutrina e a crença da religião islâmica, Ibri-Tofail imagina o seu protagonista encontrando-se, aos cinquenta
206 anos, com um homem criado na religião e que por uma via diferente consegue chegar às mesmas conclusões que ele. Os dois juntam-se para criar uma comunidade religiosa, mas depois, reconhecendo a irrípossibilidade de comunicar a todos a verdade por eles alcançada, retiram-se de novo para o isolamento, para viverem uma vida contemplativa. O romance de Ibn-Tofail exprime uma posição que é comum a todos os filósofos árabes: a de que a filosofia conduz a um resultado idêntico ao da religião, mas por uma outra via, que é a da busca individual e da demonstração. Além disso, a obra de Ibri-Tofail é também como que um resumo das doutrinas correntes na filosofia árabe sobre o intelecto. O verdadeiro agente do conhecimento humano é o intelecto universal, a última emanação do Ser supremo. O @ntelecto humano ou potencial está dominado e dirigido por Aquele. § 240. AVERRóIS: VIDA E OBRA Ibn-Ruslid ou Averróis, o mais célebre dos comentadores árabes de Aristóteles, nasceu em Córdova em 1126. O avô e o pai eram jurisconsultos e juízes, e à mesma carreira estava destinado Averróis, que no entanto se dedicou com grande entusiasmo à medicina, à matemática e à filosofia. Sabemos já como ele foi apresentado por Ibri-Tofail à corte do rei Yussuf. Este rei confiou-lhe numerosos cargos políticos que o obrigaram a viajar frequentemente pela Espanha e por Marrocos. O sucessor de Yussuf, Almansur, protegeu igualmente Averróis. Mas quando este foi acusado por suspo*,ta de heresia e, Ial como muitos outros sábios árabes da época, de promover o estudo da ciência e da filosofia dos gregos, em detrimento da religião 207 muçulmana, Almansur desterrou-o para a cidade de El-isana (Lucena), perto de Córdova, proíbindo-o dela sair. Averróis teve então de suportar os insultos dos fanáticos. Ele próprio nos conta que uma vez, indo com o filho à mesquita para assistir à oração da tarde, a turba o expulsou do lugar sagrado. Mais tarde, foi enviado para Marrocos e não voltou mais a Espanha. Morreu em 10 de Dezembro de 1198, com a idade de 73 anos. Por ordem de Almansur, as suas obras foram todas destruídas e o Ocidente teve delas conhecimento através de versões hebraicas. Entre as obras de Averróis podemos destacar, em primeiro lugar, os Comentários a Aristóteles e que se distinguem em grandes comentários, comentários médios e paráfrases ou análises. Pelas referências contidas nestas obras podemos supor que Averróis tenha redigido os comentários médios primeiro que os grandes e as paráfrases e análises contemporâneamente ou quase com os comentários médios. Além destes comentários, Averróis escreveu: 1.` A destruição da destruição dos filósofos de Algazali e que é uma refutação da obra de Algazali; 2. Questões ou dissertações sobre diversas passagens do Organon de Aristóteles; 3. Dissertações físicas ou pequenos tratados sobre diversas questões da física de Aristóteles; 4. Duas dissertações sobre a união do intelecto separado com o homem; 5.O Uma dissertação sobre o problema de se saber "se é possível que o intelecto
(intelecto material ou hílico) compreenda as formas separadas ou abstractas", 6.O Uma refutação do texto de Avicena Sobre a divisão dos seres; 7.O Um tratado sobre o acordo da religião com a filosofia; 8. Um tratado sobre o verdadeiro significado dos dogmas da religião, escrito em Sevilha em 1179. 208 § 241. AVERRóIS: FILOSOFIA E RELIGIÃO A intenção declarada de Averróis não é a de construir um sistema próprio, mas apenas a de esclarecer o significado autêntico da filosofia de Aristóteles, que para ele é a expressão máxima do pensamento humano. "Aristóteles, afirma Avicena, é a regra e o exemplo criados pela natureza para demonstrar a máxima perfeição humana. A doutrina de Aristóteles é a verdade máxima, porque a sua inteligência reflecte o ponto mais alto do intelecto humano. E bem se pode afirmar que foi criado e oferecido aos homens pela Divina Providência, para que os homens pudessem saber tudo o que lhes é dado sabem (De an., 111, 14). Com tais considerações sobre o valor de Aristóteles e sobre a verdade da sua doutrina, Averróis evidentemente não pretende ter a presunção de ultrapassar o seu mestre ou de se afastar do caminho por ele traçado. No entanto, na sua obra de ilustração e de wmentários aos textos aristotélicos, perpassam os resultados fundamentais de toda a especulação árabe anterior; ele próprio se move dentro do clima dessa especulação, que é substancialmente uma interpretação neoplatonizante do oristotelismo. Não obstante a suspeita de heresia que sobre ele pesou, Averróis não concebe a investigação filosófica em desacordo com a tradição religiosa. Em primeiro lugar, está consciente do valor absoluto dessa mesma investigação. "Na verdade, afirma, a religião própria dos filósofos consiste em aprofundar o estudo de tudo o que é, não se poderá render a Deus um culto melhor do que aquele que consiste em conhecer as suas obras e leva ao conhecimento do próprio Deus em toda a sua realidade. Esta é, aos olhos de Deus, a acção mais nobre, enquanto que a acção mais desprezível é a de 209 acusar de erro e de presunção vã aquele que se consagra a esse culto, que é o mais nobre de todos, o que adora Deus com esta religião, que é a melhor de todas" (Muiik, Mélanges, p. 456). Por outro lado, no entanto, a investigação filosófica não pode ser de todos, a religião do filósofo não pode ser a religíão do vulgo. Tal como certos alimentos são bons para certos animais e maus para outros, também os processos dos filósofos que são utilíssimos nas suas investigações são, no entanto, funestos para os não-filósofos. Se os filósofos viessem demonstrar junto do vulgo as suas dúvidas e as suas demonstrações, isso poderia dar aso aos incompetentes de levantar ainda mais dúvidas e argumentos sofísticos e de caírem em erro. Por isso, a religião que é feita para a maioria, segue e deve seguir outra via, uma via "simples e narrativa" que ilumine e dirija a acção. Este é o verdadeiro domínio da razão. À filosofia cabe o mundo da especulação, e à rehgião o mundo da acção. Quem nega, ou simplesmente duvida, dos princípios enunciados pela tradição religiosa, tornaria impossível o agir humano, do mesmo modo que tornaria impossível a ciência aquele que negasse ou duvidasse dos princípios básicos
em que ela se fundamenta (Destr. destruct., disp. 6, fol. 56, 79). AverrÓis pretende nos seus livros "falar livremente com os autênticos filósofos" e não opor-se aos ensi-namentos da tradição religiosa. Não se lhe pode portanto atribuir aquela doutrina da dupla verdade, que os escolásticos consideraram como pedra angular do seu sistema. Para ele não existe uma verdade religiosa ao lado de uma verdade filosófica. A verdade é uma só: o filósofo procura-a através da demonstração necessária, o crente recebe-a da tradição religiosa (a lei do Corão) numa forma simples e narrativa, que se adapta à natureza da maior parte dos homens. Mas não existe um contraste entre as duas vias, nem dua210 lismo na verdade. Averróis escreveu, como já dissémos, dois tratados que se destinavam a demonstrar o acordo que existe entre a verdade religiosa e a filosófica. Todos os que são estranhos à especulação devem aproximar-se da forma que a verdade recebeu por obra da tradição religiosa, para que assim possam ser iluminados e guiados nas suas acções. Mas para os filósofos, ao invés, a verdade adquire o aspecto severo da demonstração necessária e passa a ser o termo de uma investigação que é a melhor e mais elevada de todas as acções humanas. § 242. AVERRóIS: A DOUTRINA DO INTELECTO A doutrina que os escolásticos latinos recolheram como sendo típica do averroísmo é a do intelecto. Com ela, Averróis, distingue-se das interpretações que dominam a filosofia árabe de Al Kindi a Ibrí-Tofail. Para estes filósofos, o Intelecto agente é a última emanação divina e é por isso uma substância separada de toda a matéria e da própria alma humana, pertencendo ao número das substâncias divinas. Ointelecto potencial ou material (hílico) é, pelo contrário, para eles, o intelecto prè@prÍamente humano, a parte racional da alma humana. Este último, passa a acto por obra do primeiro, tornando-se assim intelecto em acto; por sua vez, o intelecto em acto, aperfeiçoando-se com o exercício do raciocínio discursivo, transforma-se em intelecto adquirido (adeptus). A esta doutrina que se encontra exposta e defendida, com poucas variantes, nos filósofos tratados atrás, Averróis vem trazer uma modificação substancial: o intelecto material ou hílico não é a alma humana. E não é pela mesma razão porque não o é o intelecto activo: uma vez que as formas inteligíveis que são o seu objecto 211 potencial são universais, eternas, indestrutíveis e não o seriam se seguissem a sorte da alma humana, que é diferente nos diferentes indivíduos; que algumas vezes pensa e outras não; e que pensa diferentemente em cada indivíduo. Por esses mesmos motivos também o intelecto adquirido ou especulativo (adeptus, speculativus) que resulta da acção do intelecto agente sobre o íntelecto material ou possível é uno em todos os homens e separado da
alma humana. Mas este último pode ter a participação da alma humana na sua multiplicidade e mutabilidade; e essa participação pode ter a forma de um hábito, de uma disposição, ou de uma preparação (habitus, dispositio, preparatio) e que constituem a perfeição da própria alma: uma preparação que segue os acontecimentos, desde o nascimento à morte, da própria alma, porque pertence à sua capacidade imaginativa (que é dada ao corpo). O intelecto especulativo, no entanto, pode ser considerado por um lado como ú nico, por outro como múltiplo; como eterno ou como gerador corruptível. Em si próprio, é único e eterno. Como disposição e preparação da alma é múltiplo e submetido ao nascimento e à morte. Segundo Averró@s, uma tal solução permite resolver todas as dificuldades que a doutrina do intelecto provocava nas soluções adoptadas pelos seus predecessores. "Se o objecto inteligível, afirma Avarróis, fosse absolutamente único em mim e em ti, aconteceria que, quando eu o conhecesse, tu também o conhecerias; e outras coisas impossíveis. Por outro lado, se o objecto inteligível fosse diferente para os diferentes indivíduos, aconteceria que o mesmo estaria em ti e em mim, único, na sua espécie, duplo naindividualidade uma vez que haveria um outro objecto fora dele e este outro por sua vez um outro e assim sucessivamente. Seria ainda impossível neste caso que o discípulo aprendesse, 212 o mestre, a menos que a ciência que existe no mestre não seja uma virtude que gera e cria a ciência que existe no discípulo, do mesmo modo que um fogo gera outro fogo a ele semelhante: o que é impossível. Mas quando pensamos que o objecto inteligível que está em mim e em ti é múltiplo para o sujeito para o qual é verdadeiro, isto é, para as formas da imaginação, e único para o sujeito que é o _;ntelecto existente e material, tais questões acabam totalmente por desaparecem (Comm. inagiuim De an., 111, 5). Portanto, segundo Averróis, a virtude cognitiva própria do homem limita-se à esfera das formas imaginativas, ou seja, das formas extraídas das imagens sensíveis; uma tal vàrtude é simples preparação do Intelecto material, ~elhante à preparação da matéria que se dispõe a receber a obra do artífice (1b., 111, 20). Deste modo, o processo total do conhecimento iotelectivo, que vai da potência ao acto, desenrrola-se independente e separadamente da alma humana, que se limita a reflecti-lo imperfeita e parcialmente. O processo integral é posto directamente em movimento e mantido pelo intelecto activo. A acção deste é comparada por Averróis. de acordo com a imagem aristotélica, à do sol enquanto que o intelecto potencial ou materiaí (hí,lico) é comparado à capacidade de ver, que existe graças à luz solar; e as formas inteligíveis (verdades ou conceitos) existentes na alma humana são comparáveis às cores. Tal como o sol, que flumina, o meio transparente (o ar) e deste modo conduz ao acto as cores que existem no objecto, o intelecto activo, ao iluminar o intelecto potencial, faz com que este disponha a alma de forma a que esta possa abstrair das representações sensíveis os conceitos e as verdades universais. Por conseguinte, a alma individual não possui mais nada além do material das representações; mas é ela que abstrai das referidas representações os conceitos, ao unir-se ao intelecto potencial;
e este une-se a ela quando a ele se une o Intelecto agente. Desta doutrina resulta toda uma série de consequências paradoxais que desencadearam uma polémica acalorada por parte da escolástica latina. Em primeiro lugar, o intelecto material é único em todos os inffivíduos porque é a disposição que o Intelecto agente comunicou às respectivas almas. Multiplica-se nos diversos indivíduos como a luz do sol se multiplica ao distribuir-se sobre os diversos objectos que ilumina. Como S. Tomás explica (C. gent., 11, 73), a diversidade dos intelectos humanos é determinada pelo facto de que, actuando o intelecto material sobra as imagens, que não existem todas em todos os indivíduos, nem são igualmente distribuídas por todos, as coisas que um certo homem pensa não são as mesmas que são pensadas por um outro homem. Em segundo lugar, não pode acontecer que umas vezes o intelecto material compreenda e outras vezes não, salvo no caso de determinado indivíduo e nunca no que se refere à espécie humana. Por exemplo, pode acontecer que Sócrates ou Platão umas vezes compreendam e outras vezes não o conceito de cavalo; mas, no conjunto da espécie humana, o intelecto compreende sempre este conceito, a menos que a própria espécie venha a desaparecer, o que é impossível. Disto resulta que a ciência não pode reproduzir-se nem corromperse, porque é eterna. Morre a ciência que existe em Sócrates ou em Platão com a morte do indivíduo: mas não morre a ciência em si, porque está ligada a uma disposição universal, essencialmente conexa com toda a espécie humana. Nesta natureza do intelecto se fundamenta o destino da alma humana. A felicidade do homem consiste em cultivar e ampliar a disposição que constitui o intelecto material, a fim de aperfeiçoar 214 e ampliar a capacidade especulativa e conhecer as substâncias separadas e finalmente o próprio Deus. Averróis retoma, na sua totalidade, a doutrina aristotélica da superioridade da vida teorética. "0 intelecto prático, segundo ele, é comum a todos os homens, todos o possuem, uns em maior grau que outros; mas o imelecto especulativo é uma faculdade divina, que se encontra apenas nos homens excepcionais" (De an., 111, 10, fol. 494 a). A ciência é a única via da beatitude humana: uma beatitude que se atinge nesta vida, através da pura investigação especulativa, uma vez que a vida humana não continua para além da morte. Com efeito, a única parte da alma humana que não está ligada ao corpo e não se encontra portanto submetida à reprodução e à corrupção é precisamente o intelecto material. Mas esse intelecto se como simples disposição faz parte da alma humana, como realidade substancial subsiste separadamente e não é mais que o próprio intelecto agente. Na alma humana mantem-se apenas o intelecto aquisitivo ou especulativo; mas este, condicionado como está pela parte sensível que lhe fornece as imagens das quais são abstraídas as formas inteligíveis, está ligado ao corpo, nasce e morre com ele (1b., 111, 1). Averróis é levado a negar a imortalidade da alma e a colocar o fim último do homem na bealitude que se pode alcançar nesta vida mediante a investigação especulativa e a contemplação das realidades supremas. § 243. AVERRóIS: A ETERNIDADE DO MUNDO
Sobre o problema do intelecto e sobre as questões com ele conexas, entre as quais está a imortalidade humana, Averróis entra em contradição com os pensadores anteriores e especialmente com 215 Avicena que identificava o intelecto material com o humano e sustentava a imortalidade própria da natureza e do destino da alma humana. Mas, no que diz respeito às relações entre Deus e o mundo, e em especial à criação, Averróis não faz mais que retomar a doutrina dos seus predecessores. A necessidade do ser, tão enèrgicamente defendida por Avicena, é também a pedra angular da metafísica de Averróis. É de notar que tal necessidade não exclui, mas antes exige, a criação: o ser possível em relação a si mesmo exige o ser necessário que o conduza ao acto e o crie. Mas esta criação é apenas, como já notou S. Tomás (§ 278), a dependência causal do ser possível, que é a-penas necessário em relação a outro, desse outro que é Deus. Exclui assim o início no tempo do ser possível, ou seja do mundo, e nada tem a ver com a criação tal como é concebida na Bíblia e no Corão. Esta depende de um acto de vontade do Criador, que dá início no tempo ao mundo e prescreve ao mesmo limites temporais definidos. Mas contra este conceito, Averróis Emita-se a repetir as objecções de Avicena. Se Deus criou o mundo do nada, isso pode significar que ele o tenha criado por um motivo estranho à sua natureza ou que se tenha verificado na sua natureza uma alteração que de certo modo o haja determinado à criação. Ora ambas estas alternativas são impossíveis. Nada existe fora de Deus, excepto o mundo, por isso Deus não pôde buscar o inóbil da sua criação no exterior. Por outro lado, nenhuma coisa pode alterar-se a si própria; por conseguânte, a natureza de Deus não pode também sofrer alteracão. Além disso, se a criação significa uma escolha áivina, essa escolha deve ser contínua e eterna, a não ser que se verifique algum obstáculo ou se lhe apresente uma coisa melhor para escolher. Mas não podemos falar em obstáculos em relação a Deus, nem se pode conceber uma alternativa melhor na 216 criação do mundo. A escolha de Deus deve ser por isso eterna e contínua e não se pode falar de um princípio do mundo (Dest. destruct., disp. 1, dub. 1-2). Averróis aceita a doutrina de AI Farabi e de Avicena, de que o mundo dimana necessàriamente da ciência de Deus e que esta dimanação não é motivo ou intenção particular, porque procede da natureza de Deus, na medida em que este se conhece a si próprio (Ib., disp. 3, dub. 2). Deve por isso afirmar-se que a acção de Deus na formação e na conservação do mundo não é comparável à acção de nenhum agente Enito, nem natural nem voluntário, uma vez que Deus formou o mundo e mantem-no de um modo que não tem paralelo na acção das coisas o dos homens. O mesmo deve afirmar-se da acção de Deus ao governar o mundo. Deus dirige o mundo com a sua ciência, mas a ciência de Deus nada tem a ver com a humana. Deus apenas se conhece a si próprio; mas ao conhecer-se a si próprio, conhece tudo. A sua ciência não diz respeito às coisas particulares porque está para além dos limites das mesmas. Mas o facto de não conhecer as coisas
individuais deste mundo na sua essência individual, não significa um defeito do conhecimento divino, pois não é um defeito não conhecer de forma imperfeita aquilo que se conhece de um modo mais completo (Epit. metaf., IV, p. 138). A providência divina segue a ciência divina. Como Deus não conhece as coisas indâviduais também não as d-Jrige e governa com a sua acção providencial. A injustiça e o mal que existem no mundo demonstram clara-mente que, nem Deus nem as outras substâncias separadas que dimanam dele directamente e regem as órbitas celestes, governam directamente as vissicitudes e o destino dos seres singulares (1b., IV, p. 155). Através do movimento dos corpos celestes Deus regula também os acontecimentos do mundo 217 sublunar. Com efeito, o movimento do sol, ao determinar a sucessão dos dias e das noites e a alterriância das estações, regula a geração das plantas e dos animais. Deus rege deste modo todo o mundo segundo uma ordem necessár@a e infalível. Mas o que é puramente individual ou casual, o que não se integra na ordem necessária de tudo, escapa à providência, assim como à ciência de Deus (Ib., IV, p. 152). A própria vontade humana é determinada, na medida em que as suas deliberações estão sujeitas à ordem necessária do mundo. Averróis sustenta que as nossas acções dependem,pelo menos em parte, do nosso livre arbítrio, mas afirma que, por outro lado, elas não podem furtar-se ao determinismo da ordem cósmica. A vontade humana é em si um agen!e livre; mas a sua acção manifesta-se no mundo que é regulado pela ordem necessária e eterna de Deus. A relação da vontade com as causas externas é determinada pelas leis naturais: por isso o Corão fala de uma predestinação infalível do homem (Munk, Mélanges, p. 457-458). A condenação pronunciada em Paris nos anos de 1270 e 1277 contra o averroísmo, referia-se às seguintes proposições: o intelecto de todos os homens é numèricamente uno e idêntico; o mundo é eterno; a alma, que é a forma do homem enquanto homem, corrompe-se com a corrupção do corpo-, Deus não conhece as coisas singulares; o livre arbítrio é uma potência passiva, não activa, movida necessàriamente pelo objecto apetecido; a vontade do homem escolhe por necessidade (Denifle, Chart. Univers. Paris, 1, 486-487). Estas proposições incluem aquilo que aos escolásticos latinos surgia como típico do averroísmo e em contraste irremediável com o dogma cristão. Mas o significado do averroísmo não reside apenas nestas proposições. Apresenta-se também como a ,grande tentativa de reconquistar, com o regresso a Aristóteles - o filósofo por excelência - a liberdade 218 da investigação filosófica; o de dirigi-Ia no sentido de esclarecer essa ordem necessária do mundo, cuja contemplação pareceu a Averróis ser o mais alto dever e a felicidade perfeita do homem. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 232. MUNK, Mélanges de philosophie juive et arabel Paris, 1852, 1927; DIETERECI, Die Philosophie der Arabern in Jahrhundert, 4 vol., Leipsig, 1865-
1870; CARRA DE VAux, Les penseurs de LlIstam, Paris, 1921; M. HORTEN, Die Philosophie des Islams, Mónaco, 1924; G. QUADRI, La filosofia degli Arabi nel suo fiore, Florença, 1939, 2 vols. Da Teologia, a tradução Ia-tina feita sobre a tradução italiana do texto árabe (descoberto em Damasco em 1516, pelo humanista Francesco Rosso) foi publicada em Roma em 1519. O texto do Liber de causis, comentado, a partir do século XM por numerosos autores, encontra-se numa recolha de opúsculos de S. Tomás, Pedro de Auvernia e Egídio Romano, publicada em Veneza em 1507. Sobre as escolas teológicas: HORTEN, Die philosophischen Probleine der spekulativen Theoloqie in Islam, Bonn, 1912; MACDONALD, Development of Muslim TheoZogu, Jurisprudence and Constitutional Thenry, New York, 1903; GARDETANAWATY, Introduction à Ia thèologie musulmane, Paris, 1948. -Sobre os Mutakal!Iimun: S. PINES, Beitrãge zur islamichen Atomenlehre, Berlim 1936. § 233. Os escritos de AI Kindi foram publicados pela primeira vez por ALBINO NAGY, Die philosophischen AbhandIungen des AI-Kindi, em (Beitrãge" de Baeumker, 11, 5, 1897. Um escrito de introducão ao estudo de Aristóteles foi publicado por GUIDI e WALZER, em "Atti Aec. dei Lincei", 1940, série VI, vol. VI. Um escrito moral de WALzER e RITTER, V01. VIII. AI Kindi foi também autor de escritos sobre astronomia, medicina e óptica: De astrorum indiciis, Veneza, 1507: Liber novem indicum, Veneza, 1509; De rerum gradibus, Argentorati, 1531; De temporum mutationibus 8ive de imbribus, Paris, 1540; De aspectibus, ed. Bjoernbo-Vogl, Leipsig, 1912. Sobre a doutrina do intelecto: GILSON, Les sources gréco-arabes de Ilaugustinisme avicénnisant, em "Arch. d'Hist. doctr. et @it. du m. â.", 1930. 219 § 234. De AI Farabi: De scientiis, De intelectu, Paris, 1638; ed. com trad. frane. de Gilson, em "Arch. £I,Hist. doetr. et lit. du m. á.", 1929-30; Philosophische AbhandIungen, texto árabe, ed. Dieteríci, Leiden, 1890; Das Buch der Ringsteine, cd. Horten, em "Beitrãge", V, 3, 1906; De ortu scientiarum, ed. Bë-er, Munster, 1916; ed. com trad. ingl. ed. Harmer, Glasgow, 1934; De arte poetica, com trad. ing1. ed. Arberry, em "FUvista di Studi Orientali", 1930; De Platonis philosophia, ed. Rosenthal-Walzer, Londres, 1943; Compendium legum Piatonis, texto árabe e trad. lat., ao cuidado de Gabrieli, Londres, 1952. MADICOUR, La place d'Al Farabi dans Fécolé philosophique musulmane, Paris, 1934. § 235. De Avicena: a parte do Cânone de medicina traduzida na Idade Mádia, em Opera Omnia, Veneza, 1495, 1508; Metafísica, trad. alemã, Horten, Lcíp@ig, 1913, 1960; Compendium metaphysicae, ed. Carame, Roma, 1926; De anima, ed. Rahman, Londres, 1959; Traités mystiques, trad. frane. Mehren, Leiden, 1889-
1899; Logica oriental (Mantigual-masriqiyyah), Cairo, 1910; Epitre des définitions, trad. frane. Goiclwn, Bey- rut-Paris, 1951; Livre de sciences, trad. frane. Massé, Paris, 1955; Poème de Ia mèdicine, texto árabe com trad. frane. e lat,, ao cuidado de Jahier e Novreddine, Paris, 1956. -Bibliografia: SA'TI) NAFICY, Bib. des principaux travaux européens sur A., Teerão, 1953; PUR-E SINA (A., his life, Works, Thought and Time) Teerão, 1954; ANAWATI, Chronique avicénnienne, 1951-1960, em "Rev. Thomiste", 1960. CARRA DE Vxux, A., Paris, 1900; SALIBA, Mudes sur métaphysique d'Avicenna, Paris, 1926; GoiCHON, La distinction de Vessence et de rexistence d'après Ibn Sina, Paris, 1937; La phil. dA. et son influence en Europe médiévale, Paris, 1944, 1951; GARDET, La pemée religieuse d'A., Paris, 1951; La connaissance mystique chez Ibn-Sina, Cairo, 1952; RAHMAN, Avicenna's Psychology, Oxford, 1952; AFNAN, A., His Life and Works, Londres-New York, 1958. § 237. De AI-Gazali: As tendências dos filósofos foram publicadas na trad. lat. com o título Logica et philosophiae, Veneza, 1516. A trad. lat. da Destructio philosophorum tem sido sempre editada juntainente com a Destructio, destructionum de Averróis; Tendentiae philosophorum, Leiden, 1888; Destructio philosopharum, 220 Cairo, 1888; Metaphysic. A Medieval Transtation ed. Muckl.e, Toronto, 1933. ASIN PALACIOS, Algazei: Dogmatica, Moral, Ascética, Saragoça, 1901; CARRA DE VAux, Gazali, Paris, 1902; OBERMANN, Der philosophie und religiose Subjektivismus Ghazalis, VienaLeipsig, 1921; WATT, The Faith and Practice of al-Gazali, Liondres, 1953; FARID YABRF, La notion de certitude selon Ghazali dans ses origmes psychologiques et historiques, Paris, 1958. § 238. De Avempace: De plantis, Continuatio intellectus cum homine, Epistola expeditionis, Regime del solitario, textos árabes e= trad. espanhola a cargo de Asin Palacios em "Al-Andalus", 1940, 1942, 1943. MUNK, Mélanges, cit. p. 386-410; FARRUKH, Ibn Baajja (Avem pace) and the Philosophy in the Modern West, Beirute, 1945. § 239. De Ibn Tofail: o tratado, cujo títu@o em árabe é Hajj ibn Jaqzân, vem publicado no original e numa tradução latina de E. Pococke, Oxford, 1671, com o título: Philosophus autodidactus sive epistola in qua ostenditur quomodo ex inferiorum contemplatione ad superiorum notitiam mens ascendere possit. O texto árabe com tradução francesa foi publicado por Gauthier, Argel, 1900, e teve numerosas traduções em outras línguas. GAUTI-11ER, Ibn Tofail, Paris, 1909. § 240. De Averróis: a tradução latina dos seus escritos foi editada pela primeira vez em 1472 e depois editada em Veneza, várias, dezenas de vezes, juntamente com as obras aristotélicas: a melhor edição é a de 1552 a qual existe, uma reedição, Froncoforte do Meno, 1962. Commentarium magnum in De anima, ed. Crawford, Cambridge (Mass.), 1953; Traité dé~f sur l'accord de Ia religion et de Ia philosophie, texto árabe e
trad. frane. de Gauthier, Argel, 1942; trad. alem. Müller, Mónaco, 1875; trad. ing1. Jamil-ur-Rehman, Baroda, 1921; trad. esp. Alonzo, Madrid 1947; De generatione et corruptione, ed. Kurland, Cambridge (Mass.), 1958; Parva Naturalia, ed. ShieIds, Cambridge (Mass.), 1949. RENAN, Averroes et Faverroisme, Paris, 1851, 1869; GAUTHIER, Ibn Roschd, Paris, 1948; ALLARD, Le rationalisme dAverràes d'après une étude sur Ia création, Paris, 1955. 221 xI A FILOSOFIA JUDAICA § 244. A CABALA Como acontece com a filosofia árabe, com a qual tem muitos caracteres em comum, a filosofia judaica começa a constituir, a partir do século XIII, uma das componentes fundamentais da escolástica latina. Como acontece com a filosofia árabe e a filosofia cristã da Idade Média, a filosofia judaica é uma escolástica que tem em comum com as duas primeiras os problemas fundamentais (as relações entre a razão e a fé, entre Deus e o mundo, entre o intelecto e a alma) e empenha-se em resolvê-los com os mesmos dados ou com dados semelhantes: a filosofia grega e a tradição religiosa judaica. Mais próximo desta tradição e em polémica com as tentativas mais francamente filosóficas para encontrar uma justifi- cação racional das crenças religiosas, encontra-se o misticismo que assume predominantemente a forma da Cabala. A Cabala (que significa tradição) é uma doutrina secreta que a principio se transmitia oralmente e mais tarde foi recolhida num certo número de trata, 223 dos, dois dos quais existem na totalidade ou quase: o Livro da Cri4ção (Sefer Yetsirá) e"o Livro do Esplendor (Zohar). Trata-se de escritos em cuja composição entram elementos heterogéneos. Se bem que alguns destes elementos sejam provàvelmente bastante antigos, o segundo destes escritos, o Zohar, na forma que chegou até nós, pertence, quase de certeza, à segunda metade do século XIII. Tal como são, estes textos apresentam uma doutrina emanenhista, substancialmente semelhante à dos Neopitagóricos e dos Neoplatónicos dos primeiros séculos. Neles se afirma que Deus é ilimitado (En Sof.), isto é, inacessível a toda a determinação e a todo o conhecimento. Como tal, é a negação de to-da a coisa determinada, não é nenhuma coisa, é portanto o nãoser ou o Nada. A criação do mundo surge mediante a aparição de substâncias intermédias chamadas Números (Sephiroth) que são, no tempo, os atributos fundamentais de Deus e as forças através das quais se realiza a criação divina. A mediação dos Sephiroth serve para garantir a Deus a absoluta unidade, ainda que a sua acção se expanda na multiplícidade das coisas, e neste sentido podem ser comparados aos primeiros e mais directos raios do Esplendor divino. Os Sephi -
roth são dez: I.'- A Coroa; 2.'-A Sabedoria; 3.'-A Inteligência; 4.'-a Graça; 5.'-a Justiça; 6.'-a Beleza; 7.0-o Triunfo; 8.o-a Glória: 9.---o Fundamento; 10.'-a Realeza. A acção destas substâncias produz toda a realidade do mundo visível, as três primeiras constituem o mundo inteligível, segundo o esquema da trindade neoplatónica. O munIo visível e o inteligível têm a sua proveniência comum no amor e tendem a aproximar-se e a unir-se. O impulso deve provir do mundo inferior que deve tender para o superior; em resposta a este impulso, o próprio mundo superior deseja e ama o mundo inferior. Deus não ama senão aqueles que o amam. 224 A alma humana -reproduz as três primeiras substâncias emanadas: em primeiro lugar está o espírito vital, depois o espírito intelectual, e finalmente a alma verdadeira e própria, que domina sobre as duas precedentes e é o orgão da santidade e da virtude superiores. A Cabala não tem intentos filosóficos e à expressão ceptual prefere a concepção imaginativa ou alegórica. A posição que pretende suscitar é a do misticismo, a base doutrinal que pretende defender é a ortodoxia judaica tradicional. Ainda que tenha extraído os seus conceitos do helenismo e da própria obra dos filósofos judeus da Idade Média, os defensores ou expositores que teve nos séculos XIII e XIV entendem fazer dela uma alternativa às obras dos filósofos e -polemizam com eles. Todavia, no Renascimento os próprios filósofos iriam buscar à Cabala parte da sua inspiração e utilizaram-na frequentemente como instrumento de interpretação dos livros sagrados. § 245. ISAQUE ISRAELI Como já se disse, a filosofia judaica consiste substancialmente num encontro da tradição judaica com o helenismo; e sob este prima o mais antigo filósofo judeu da Idade Média é Isaque Ibri Salomão Israeli, que viveu no Egipto entre 845 e 940. As suas obras de medicina foram traduzidas para o latim por Constantino Africano; os seus escritos filosóficos, Livros das Definições e Livro de Elementos, foram traduzidos do árabe para o latim, por Gerardo de Cremona. Isaque não é um filósofo original, mas apenas um compilador que se serve sobretudo de fontes neoplatónicas, especialmente do Livro de Causas. Muitos latinos do século X111, 225 entre os quais S. Tomás, foram buscar a Isaque a definição de verdade como "adequação entre o intelecto e a coisa". § 246. SAADJA O verdadeiro fundador da escolástica hebra-ica é Saadja, que foi célebre corno filósofo e teólogo, mas também como poeta. Nasceu em Fajjoum, no Egipto, em 892 e em 928 foi designado dirigente da academia de Sora (perto de Bagdad) que era então a sede principal do rabinismo. Morreu em Sora em 942. A
mais notável das suas obras é o Livro da Fé e da Ciência que escreveu em árabe, e em verso, em 932. Ao lado da autoridade da escritura e da tradição, Saadja reconhece a da razão e afirma não apenas o direito, mas também, o dever, de compreendermos a verdade religiosa para assim a consolidarmos e defendermos dos ataques que lhe são dirigidos. A razão ensina-nos as mesmas verdades que a revelação, mas esta é necessária para que o homem possa atingir de modo mais rápido a verdade que a razão, abandonada a si própria, só teria podido alcançar depois de um longo trabalho. Os pontos sobre que se debruça a especulação de Saadja são: a unidade de Deus, os seus atributos, a criação, a revelação da lei, a natureza da alma humana, ete. A propósito de Deus, Saadja afirma que as categorias aristotélicas lhe são aplicáveis. Defende a criação do nada, refutando os sistemas contrários a este dogma. Defende também a liberdade criadora de Deus e reconhece ao homem o livre arbítrio. Verificamos, no entanto, que no seu pensamento ainda não se faz sentir a influência do aristoteliismo: isso só vem a acontecer nos filósofos judeus de Espanha e, em primeiro lugar, em Ibri- -Gebirol. 226 § 247. IBN-GEBIROL: MATéRIA E FORMA Salomão Ibn-Gebirol, foi reconhecido por Munk como o autor da Fons Vitae, aquele que os escolásticos latinos conheceram sob o nome de Avicebron como sendo árabe. Nasceu em Málaga em 1020 ou 1021, fez a sua educação em Saragoça e viveu provàvelmente até 1069 ou 1070. Foi célebre como poeta e, segundo uma tradição lendária, foi morto por um muçulmano que tinha inveja do seu génio. A figueira sob a qual foi sepultado deu frutos de tal modo extraordinários que atraiu a atenção do rei sobre o seu proprietário que foi obrigado a corifessar o crime. A sua obra, A Fonte da Vida, escrita em árabe, foi traduzida para o Iatim por João Hispano e Domingos Gundisalvo. Está composta em forma de diálogo entre mestre e aluno e dividida em cinco livros. A especulação de Ibn-Gebirol é dominada pelos conceitos aristotélicos de matéria e forma. O princípio de que parte é o da composição hilomórfica universal; tudo o que existe, é necessàriamente composto de matéria e forma. Começa por reduzir a uma matéria única as díversas matérias e a uma única forma as diversas formas existentes. Com este objectivo, começa por reduzir à unidade a matéria e a forma das coisas sensíveis. Nestas, as várias espécies de matéria, quer as artificiais, por exemplo, o bronze, quer as naturais (os quatro elementos), quer as celestes, têm todas a mesma natureza, que é a de substracto da forma. Por outro lado, todas as formas sensíveis têm em comum a característica de serem formas corpóreas. Nas coisas sensíveis, portanto, existe uma só matéria, o corpo, e uma só forma, a forma corpórea ou corporeitas. Mas a matéria não é apenas corpo, uma vez que se só torna corpo quando a ela se junta a forma particular que é a corporéidade; e por outro
227 lado, a forma não é apenas corporeidade porque esta é apenas a determinação de uma forma mais universal. Uma matéria que seja maas universal que a matéria corpórca deve ser comum não só aos corpos como também aos espíritos: é uma matéria que entra na composição quer das substâncias espirituais quer das corpóreas. As substâncias espirituais não são simples, são também compostas de matéria e forma. Nos escolásticos latinos, a doutrina de IbriGebirol aparece tipificada neste princípio da composiçao hilomórfica das substâncias espirituais. Se se trata de uma matéria universal, comum também às substâncias espirituais, então tratar-se-á de uma forma universal comum a todos os seres. Esta forma universal é o conjunto das nove categorias de Aristóteles, que constituem precisamente as determinações mais gerais do ser. A matéria universal é a primeira das categorias aristotélicas, a substância, que sustenta (sustinet) as outras nove categorias (Fons vitae, 11, 6). Assim unificadas e universalizadas, a matéria e a forma não subsistem em si, mas na mente do Criador. Na Sabedoria de Deus, matéria e forma subsistem na sua distinção. A criação comiste na união, determinada pela vontade divina, entre a matéria e a forma. Mediante ela, a forma une-se à matéria e determina-a, comunicando-lhe, pouco a pouco, as suas sucessivas determinações: as qualidades primárias, a forma mineral, a forma vegetativa, a forma sensitiva, a forma racional, a forma inteligível. Mas o pressuposto desta união entre a matéria e a forma, e em que consiste a criação, é a vontade de Deus. § 248. IBN-GEBIROL: A VONTADE A matéria e a forma têm em comum entre si o desejo de se unirem uma à outra. A matéria 228 anu a forma e deseja gozar a alegria que experimenta ao unir-se a ela; a forma deseja realizar-se na matéria para nela produzir a sua acção, segundo o impulso que lhe é transmitido pelo próprio Criador (Fons vitae, 111, 13). O amor e a tendência recíproca, que existem entre a matéria e a forma, devem derivar de uma substância superior de que ambas participam. Esta :substância espiritual, e más que espiritual, é o Verbo agenie (Verbum agens) ou vontade de Deus. "No ser, afirma Ibn Gebirol, apenas existern três coisas: a matéria e a forma, por um lado, a Essência primeira, por outro; e a Vontade que é o meio entre os dois extreinos". A Vontade cria a matéria e a forma universais e por conseguinte, todos os seres que resultam da união da matéria e da forina. A Vontade está ligada à matéria e à forma tal como a alma está ligada ao corpo: funde-se nelas, penetrando-as completamente (1b., V, 36). Essa é a virtude da Essência primelira, de Deus, e por conseguinte, a intermediária entre essa mesma essência o a matéria e a forma. No entanto, entre a Essência primeira ou Verbo agente, e a matéria, IbnGebirol admite uma série de formas ou substâncias separadas, inspirando-se evidentemente no neo-platonismo do Liber de causais. Estas substâncias, de
acordo com a ordem que vai do menos perfeito e menos simples ao mais perfeito e mais simples, são as seguintes: a natureza, as três almas (vegetativa, sensitiva e racional), a inteligência. A inteligência compreende todas as formas e conhece-as. A alma racional compreende as formas inteligíveis e conhece-as mediante um movimento discursivo que a faz passar sucessivamente de uma para outra. A alma sensitiva percebe as formas corpóreas e conhece-as. A alma vegetatíva apodera-se do corpo e faz com que este se mova. A natureza une as partes do corpo, gera entre elas 229 a atracção ou a repulsa e alterna-as entre si. Estas substâncias intermédias são menos perfeitas à medida que se afastam da sua forma comum, a vontade criadora de Deus. A sua crescente imperfeição explica-se com a diminuição do poder da Vontade criadora, que, sendo infinita em si, é finita na sua acção e por isso vai enfraquecendo (como um ra;o luminoso que se afasta do centro que o produz) à medida que vai avançando (lb., IV, 19). A filosofia de lbn-Gebirol apresenta, no seu conjunto, uma originalidade e uma força que lhe asseguraram grande influência nos séculos seguintes. A parte históricamente mais importante da mesma é a afirmação da matéria universal. Combatida por S. Tomás, esta afirmação virá a ser retomada por Giordano Bruno que fará dela o pressuposto do seu panteísmo. § 249. filosofia judaica: REACÇÃO CONTRA A FILOSOFIA A reacção da ortodoxia judaica contra a Elosofia é representada por algumas figuras que têm escasso relevo especulativo. No final do século XI, Baclija lbn-Pakudia, num texto seu, Deveres dos corações, coloca a moral prática acima da especulação e representa na tradição hebraica o que Algazel representa no mundo árabe. Em 1140 o poeta Yehuda Halevi num livro intitulado Kuzari parte de uni facto histórico: a conversão ao judaísmo de um rei dos Jazares (séc. VIII), para fazer a apologia do judaísmo e uma condenação da investigação filosófica. Abraão Ben David, de Toledo, escreveu em 1161, em árabe, um livro chamado A fé sublime para demonstrar o acordo entre a teologia liebraica e a filosofia aristotélica. Mas esta tentativa teve pouca fortuna; e o único que consegue entre os Judeus alcançar um lugar importante na investigação filosófica é Maimónidas. 230 § 250. MAIMóNIDAS: A TEOLOGIA Moshé lbn Maymon, chamado Maimónidas, nasceu em Córdova a 30 de Março de 1135. Por causa da intolerância dos almohades, a sua família foi obrigada a abandonar a Espanha e a fixar-se, primeiro em Fez, Marrocos, e depois na Palestina. Daqui, Moisés passou para o Egipto, instalando-se na velha Cairo. Ao mesmo tempo que se dedicava ao comércio de pedras preciosas, dava cursos públicos que lhe granjearam fama como filó sofo e teólogo, mas sobretudo como médico. O rm,nistro do célebre sultão Saladino, que naquele tempo tinha estendido o seu -Poder ao Egipto, assegurou-lhe os meios necessários
pararenunciar ao comércio e dedicar-so apenas à ciência, nomeando-se médico da corte. Ma-imónidas consegue então obter grande celebridade e fortuna, e pôde, com a ajuda do seu protector, furtar-se às acusações que lhe foram feitas de haver regressado ao judaísmo depois de ter aceitado, durante a sua estadia em Espanha quando jovem, a fé muçulmana. Morreu em 13 de Dezembro de 1204. Maimónidas é autor de numerosos textos médicos e teológicos. Entre estes últimos tem importância fLUosófica um chamado Oito capítulos. Um seu Vocabulário da lógica foi traduzido para latim por Sebastião Munster. Mas a sua obra fundamental é o Guia dos perplexos, na qual procurou levar a cabo a conciliação entre a Bíblia e a filosofia, a revelação e a razão. A obra está dirigida àqueles que rejeitam tanto a irreligiosidade como a fé cega e que, ao encontrarem nos livros sagrados coisas contraditórias ou na aparência impossíveis, não ousam admiti-Ias para não irem contra a razão, nem rejeitálas para não menosprezarem a fé; ficando por isso dominados por uma perplexidade dolorosa. A estes perplexos se dirige Maimónidas, com o 231 propósito de utilizar todas as armas dialécticas, proporcionadas pela filosofia árabe e judaica na defesa da fé tradicional. Vimos já que o resultado substancial da filosofia árabe desde AI Kindi a Averróis foi a elaboração do princípio da necessidade do ser, princípio que tem como imediata consequência a eternidade do mundo. É certo que contra esse mesmo princípio se fez sentir a reacção dos Mutalcalli-mun, dos Asharias e de Algazel; mas esta reacção, que partia da ortodoxia -religiosa, era estranha à filosofia e por isso contrária a todas as filosofias. Parecia que a defesa da novádade do mundo e da criação não podia ser feita a não ser em nome da fé e com a renúncia de todas as vantagens que a investigação filosófica tinha trazido à própria compreensão da verdade revelada. A originalidade de Maimónidas que, no entanto, se apresenta de início como defensor do mundo e da criação, reside no facto de ele não renunciar ao processo demonstrativo e aos resultados da filosofia da necessidade. Uma vez que a existência de Deus e as outras verdades fundamentais não permitem ser demonstradas rigorosamente a não ser através dos processos dessa mesma filosofia e na base do princípio que a mesma defende, parece ser de utilizar este princípio para se estabelecer as verdades fundamentais, para em seguida submeter a uma análise o referido princípio. "Creio, diz Maimónidas (Guia, 1, 71), que o verdadeiro modo, o método demonstrativo que elimina a dúvida, consiste em estabelecer a exigência de Deus, a sua unidade e a sua corporeidade de acordo com o procedimento dos filósofos, procedimento esse que se baseia na eternidade do mundo. Não ,porque eu creia na eternidade do mundo ou faça a este propósito qualquer concessão; mas porque só com este método a demonstração se torna segura e se obtém uma certeza perfeita sobre estes pontos: 232 que Deus existe, que é uno, que é incorpáreo, sem que isto implique decidir o que quer que seja quanto ao mundo, se ele é eterno ou se foi criado. Uma vez resolvidas, com uma verdadeira demonstração, estas três questões graves e importantes, poderemos voltar em seguida ao problema da novidade do inundo e
para isso deitaremos mão de todos os argumentos possiveis". Noutros termos, Maimónidas admite a título de hipótese provisória o princípio da necessidade do ser para poder demonstrar certas verdades fundamentais-, deixando para depois, num segundo momento, a discussão do corolário fundamental daquele princípio, a eternidade do mundo. Sob esta base, Maimónidas procede à demonstração da existência, de Deus e dos seus atributos fundamentais, a unidade e a corporcidade: e as suas demonstrações não fazem mais que seguir de perto o que disse Avicena. Supondo que alguma coisa existia (e para que qualquer coisa exista. bastam os nossos sentidos para o demonstrar), existe necessàriamente um Ser necessário. Já que aquilo que existe, ainda que seja apenas como possível, é necessário em relação à sua causa; e esta causa é precisamente o Ser necessário (1b., 11, 1). Deus conhece todas as coisas, mesmo as particulares; mas conhece-as com um único e imutável acto de ciência. A multiplicidade das coisas conhecidas não implàca a multiplicidade do saber divino, que permanece único porque não depende das coisas, que por seu lado dependem dele (1b., 111, 20-21). Estabelecida a existência de Deus, Maimónidas passa a considerar o problema do mundo. O argumento mais forte adoptado por Avicena a favor da eternidade do mundo era o seguinte: o mundo, antes de ser criado, era possível; mas toda a possibilidade implica um substrato material; por conse- ,guinte, antes da criação subsistia a matéria do mundo. Mas nenhuma matéria existe privada de 233 forma; por conseguinte, antes da criação, subsistiam a matéria e a forma do mundo, ou seja, o próprio mundo na sua totalidade. A este argumento e a todos os outros da mesma espécie, Maimónidas opõe que é impossível raciocinar sobre as condições em que se encontrava quando começava a nascer, uma coisa que agora está acabada e perfeita. Não podemos recuar do estado em acto de uma coisa para o seu estado potencial; por conseguinte, todos os argumentos que se servem desta forma de agir são viciosos e não têm qualquer força demonstrativa. Se a tese da eternidade do mundo não pode ser demonstrada, a tese oposta, da criação é, pelo menos, possível. Mas Maimónidas sustenta que, mais que possível, é certa e dá-nos disso a razão. Essa razão consiste substancialmente no reconhecimento da liberdade do acto criador, liberdade que rompe com a necessidade do mundo, da qual derivaria a sua eternidade. Pela negação da necessidade do ser, Maimónidas pretende chegar à negação da eternidade do mundo; e consegue chegar à negação da sua necessidade ao reconhecer em determinado momento do processo criativo uma liberdade de escolha por parte de Deus, uma decisão contingente, não rigorosamente determinada pela exigência de garantir a ordem necessária do todo. De qualquer modo, o mundo teria podido ser diferente do que é; no entanto ele é aquilo que é devido a uma livre escolha de Deus que exclui a necessidade absoluta e, por conseguiinte, a eternidade. "Se debaixo da esfera celeste existe uma tal disparidade de coisas, não obstante a matéria ser uma só, poderás dizer que essa disparidade se deve à influência das esferas celestes e às diferentes posições que a matéria assume perante elas, como ensinou Aristóteles. Mas a diversidade que, existe entre as esferas celestes,
quem poderá determiná4a senão Deus? 234 Se alguém afirmar que ela é produzida pelos intelectos separados isso nada explicaria: os intelectos não são corpos que possam ocupar uma posição relativamente à esfora. Porque razão o desejo que atrai cada uma das esferas para a sua inteligência separada arrastaria uma esfera para leste e outra para oeste? Por outro lado, qual a razão porque uma esfera seria mais lenta e outra mais rápida?" (-1b., 11, 19). A única resposta possível a estas perguntas é, segundo Maimónidas, a contingência do mundo. "Deus determinou como quis a direcção o a rap@dez do movimento de cada esfera, mas nós ignoramos o modo como ele realizou o facto, segundo a sua sabedoria". E deste modo, Maimóffides partindo da hipótese da eternidade para chegar a Deus mediante uma demonstração necessária, consegue negar a própria hipótese e inutilizar, no terreno da filosofia, a necessidade do mundo que era o resultado fundamental da especulação árabe. § 251. MAIMóNIDAS: A ANTROPOLOGIA Tal como a metafísica de Maimónidas é dorninada pela exigência de ressalvar a liberdade criadora de Deus, ainda que nela não se negue a ordem do mundo nem se faça da realidade um milagre contínuo, também a antropologia é dominada pela exigência de ressalvar a liberdade humana, quer no domínio do conhecimento quer no domínio moral. Vim-os já como a filosofia árabe tinha constantemente atribuído ao Intelecto agente, separado e divino, a total iniciativa do conhecer humano. Ma,imónidas, ainda que reproduzindo nos seus traços fundamentais a doutrina de Avicena sobre o intelecto, modifica-a no sentido de reservar ao homem e ao seu esforço de aperfeiçoamento a verdadeira e própria iniciativa do conhecer. A alma racional do homem 235 é o intelecto hilico, material e potencial, que se encontra no corpo, tal como as almas das esferas celestes se encontram nos corpos das próprias esferas. Este intelecto passa a acto e eleva a alma ao conhecimento verdadeiro e próprio das formas inteligíveis, por acção do Intelecto agente que não é múltiplo, nem se encontra nos corpos diversos, como a inteligência hílica, mas único e separado de todos os corpos (1b., 1, 50-52). Até aqui nada de novo: trata-se da reprodução da doutrina de Avicena. Mas Maimónidas acrescenta que para o Intelecto poder fazer passar a acto o intelecto hílico, precisa de encontrar uma matéria preparada para receber a sua expansão. Conforme a alma racional esteja ou não convenientemente disposta, assim receberá ou não a influência do Intelecto agente, passará ou não a acto, e o realizar-se numa ou noutra das alternati,vas não depende do Intelecto agente, que permanece sempre idêntico, mas apenas no homem, Maimónidas retira assim ao Intelecto agente a iniciativa de conhecer e restitui-a ao homem. Consoante o grau de preparação da sua alma racional, assim recebe o homem mais ou menos a acção do intelecto agente e se ergue mais ou menos para a perfeição; já que para ele a perfeição consiste em tornar-se inteligência em acto e em conhecer, de tudo o que existe, aquilo
que lhe é dado conhecer (1b., 111, 27). A maior parte dos homens recebe do Intelecto agente apenas a luz que chega para alcançar a perfeição individual; outros recebem uma acção mais abundante, que os estimula a criar obras e a comunicar aos outros homens a sua própria iluminação. Quem recebe a imanação do Intelecto agente na alma racional é um sábio que se dedica à especulação. Quem a recebe não só na alma racional, mas também na capacidade imaginativa, é um profeta. A profecla representa (como já acontecia em AI Farabi e em Avicena) a mais elevada 236 perfeição do homem, porque só na alma melhor disposta a influência do Intelecto agente se expande para lá da razão, na faculdade imaginativa (1b., 11, 36-37). Maimónidas, assim como defende a actividade humana no domínio do conheoimento, também defende a liberdade humana no domínio da acção. É certo que a providência divina se estende a todo o futuro e por conseguinte determina também as acções humanas que irão acontecer. Mas não se pode renunciar a admitir a liberdade que é o princípio da acção e a condição da responsabilidade humana. É preciso portanto afirmar que a predeterminação divina e a liberdade humana são conciliávèis; só a forma como o são é que nos escapa. A própria providência exerce-se tendo em conta a liberdade, a razão e os méritos do homem, e não se deve impor ao homem o peso de uma ordem préconstituída que lhe tolha a liberdade (1b., 111, 17-18). Da sua doutrina do intelecto, Maimónidas deriva a da imortalidade. A imortalidade não é para todos os homens, está reservada aos eleitos, àqueles a que a Bíblia chama as "almas dos justos" (1b., H, 27; 1, 70). Mas não se trata de uma imortalidade singular. Maimónidas admite o princípio aristotélico de que a diversidade entre os ind,ivíduos de uma mesma espécie é devida à matéria. Para as inteligências separadas, este princípio não vale: estas são distintas únicamente pela razão causal, pela qual uma é causa e outra efeito. Mas as almas dos homens são distintas entre si apenas pelos corpos: e uma vez corrompido o corpo, a distinção entre os indivíduos desaparece, pois apenas fica o puro intelecto (1b., 1, 74). A imortalidade do homem não é mais que a sua participação na eternidade do Inteler-to separado. O homem não é verdadeiramente, segundo Maimónidas, imortal como homem, mas 237 apenas, como parte do Intelecto agente; e a medida da sua imorta-lídade é devida à medida da sua participação nesse intelecto, ou seja, à medida da sua elevação espiritual. NOTA BIBLIOGRÃFICA § 244. Sobre a filosofia judaica: MUNK, Méianges, cit., p. 461-511; STOCKL, Geschichte der Phil. des Mittelalters, II, p. 227-305; NEumARK, Geschichte der judischen Phil. des Mittelalters, Berlim, 1907-1928; HuSIK, A History of Medieval Jewish Philosophy, New York, 1918; GUTTMANN, Die Philosophie, des Judentums, Munique, 1933; BERTOLA, La filosofia ebraica, Milão, 1947; ADLER,
Philosophy of Judaism, New York, 1960. O Livro da Criação foi imprimido em Basileia em 1567, numa recolha com o título de Artis cabbalisticae scriptores; outra ed. Amesterdão, 1642, reeditada por GoIdschmidt, Francor-f do Meno, 1894. O Livro do EsvIendor, impresso pela primeira vez em Mântua, 1558-1560, teve depois várias edições com a tradução latina de Amesterdão, de 1670 em diante. Traduções francesas de DE PAULY, Paris, 6 vols. 19051911.FRANK, Système de Ia Eabbale, Paris, 1842; PicK, The Cabala, Londres, 1914; BOSKER, From the World of the Cabbalah, New York, 1954; SEROUYA; La Kabbale, Paris, 1957. § 245. As obras de Isaque com o titulo Opera Omnia, editadas em Lyon em 1515; esta edição compreende a tradução latina do Livro das Definições e do Livro dos Elementos; ed. Muckle, in "Archiv. d'Hist. doctr. et litt. du m. â." 1937-38; trad. ing. de Stern, Londres, 1958. GuTTMANN, Die philosophischen Lehren des Isaac, em "Beitrage", X, 4, 1911. § 246. De Saadja: Ouvres complètes, ed. Derenbourg, 6 vols., Paris, 18931896. GRVNFELD, em "Beitrage", VII, 6, 1909; MALTER, Saadia Gaon, Filadelfia, 1921; VENTURA, La phil. de S. G., Paris, 1934; FREIMANN; Saadia's BibUography, New York, 1943. 238 § 247. O Fons Vitae de Ibn-Gebirol foi editado nas partes fundamentais em árabe e traduzido para francês por MUNK, Mélanges, cit. A tradução latina de João Hispano e Domingo Gundisalvo, por Ba,eumker, nos seus "Beitrage", 1, 24, 1892-1895. MUNK, Mélanges, cit., p. 151 e sgs.; GUTTMANN, Die Philosophie des Salomon von Gebirol, Cottingen, 1889; BERTOLA, Salomon ibn Gebirol (Avicebron), Pádua, 1953. § 249. O livro de Bachja Sobre os deveres dos corações teve idêntica edição na tradução hebraica; Nápoles, 1490; Leipsig, 1846; Viena, 1854. Com tradução alemã de STERN, Viena, 1856; tradução alemã de FURRSTENTHAL, 1836. O livro Alcharari de Gluda Halevi foi publicado com a tradução latina em Basilei-a em 1660; com tradução alemã em Leipsig, 1841-1853, 2.1 ed., Leipsig, 1869. O livro de Ben David A fé sublime, na tradução hebraica acompanhada da tradução alemã, foi publicado por WeiJ, Franefort do Meno, 1852. § 250. A tradução latina do Guia dos Perplexos de l@faimõnidas com o título Dux seu doctor dubitantium seu perplexorum, foi editada em Paris em 1520. O texto árabe foi publicado com tradução francesa por S. MUNK com o titulo Le guide des égarés, traité de théologie et de philosophie, 3 vols. Paris, 1856, 1861, 1866; trad. ing. edlãnder, Londres, 1881, 1885; 2.1 ed. New York,
1925. LEVY, Maimónide, Paris, 1911, reedição em 1931, com bibl.; SÉROUYA, Maimónide, Paris, 1951; ZEITLING, Maimónides,. New York, 1955. 239 xII A POLÉMICA CONTRA O ARISTOTELISMO § 252. ARISTOTELISMO: AS TRADUÇõES LATINAS DE ARISTóTELES O século XIII assinala o florescimento da escolástica. A tentativa de levar a razão humana à compreensão das verdades reveladas é o seu maior sucesso até dar lugar à grande síntese feita por S. Tomás. Esse sucesso apresenta-se condicionado pelo enriquecimento da razão nas suas forças e no seu conteúdo problemático mediante a obra de Aristóteles que, por intermédio dos árabes, foi redescoberta pela filosofia ocidental. Já na primeira metade do século XII, Raimundo, arcebispo de Toledo de 1126 a 1151, havia dirigido uma escola de tradutoires, à qual muito ficou a dever a escolástica, do século seguinte. João Hispano traduz a Lógica de Avicena; Domingos Gundlisalvo, arquidiácono de Segóvia, com a ajuda daquele, traduz a Física, o De coelo et mundo e os primeiros dez livros da Metafisica de Aristóteles; e, além disso, a Metafísica de Avicena, a Filosofia de AI Gazali, 241 o escrito Sobre as Ciências de AI Farabi e a Fons Vitae de Algebirol. Um outro membro da escola de Toledo, Gerardo de Cremona, falecido em 1187; traduz a Física. O De coelo, o De generatione, e os primeiros livros dos Meteorológicos, de Ar@stóteles; além do Cânone de Avicena, o Liber de causis e outros textos. Miguel Scoto (1180-1235), nascido na Escócia, ou, segundo outros, em Salermo ou Toledo, famoso como mago ("veramente delle magiche frode seppe il giuo-co" afirma dele Dante, Inf., XX, 116), e autor de obras de astronornia, e de alquimia, foi encarre- ,gado pelo imperador Frederico Il de traduzir Aristóteles. Traduziu a História animalium; e além disso, o comentário de Averróis ao De coelo e ao De anima e provávelmente a De generatione, Meteore e Parva naturalia. Na metade do século XIII, Hermann, o Alemão, bispo de Astorga, traduziu o comentário médio de Averróis à É tica a Nicómaco e depois à Retórica e à Poética. Em 1120 existia em Paris uma tradução da Metafísica de Aristóteles; e em Pádua descobriu-se uma tradução latina da mesma obra que remonta aos fins do
século XII. Em 1125, Alfredo Anglico traduz do grego o De anima, o De somnio e o De respiratione. Entre 1240 e 1250, Roberto Grossatesta (§ 255) traduzia ou mandava traduzir a Grande Ética e outros opúsculos de Aristóteles. Guilherme de Moerbeke, nascido em 1215, forneceu a S. Tomás a tradução do grego de vários textos. Traduziu a Política e a Economia de Aristóteles; os Comentários de Simplício às Categorias e ao De coelo; os Elementos de Teologia e outros opúsculos de Proclo. A tradução dos Elmentos permito a S. Tomás reconhecer neles o original do 242 Liber de causis, já traduzido por Gerardo de Cremona. Todo este trabalho de tradução revela um interesse profundo pela doutrina de Aristóteles, na qual * escolástica do século XIII acabou por descobrir * expressão mais perfeita da razão humana e, por conseguinte, o melhor caminho para alcançar a verdade revelada. Mas precisamente pelo facto da obra de Aristóteles ser a expressão perfeita da razzão com plena autonomia e independência de qualquer pressuposto da fé, a mesma devia suscitar, e suscitou com efeito, oposições e desconfiança e à primeira vista i)areceu inconciliável com o dogma católico. O século XIII apresenta-nos as primeiras tentativas de aproximação do aristotelismo bem como as reacções contrárias; virá mais tarde o equilíbrio conseguido com a síntese toraista. § 253 polémica comtra o aristotelismo: GUILHERME D'AUVERGNE O primeiro contacto da escolástica latina com a doutrina de Aristóteles verificou-se através do aristotelismo, arabe. O conhecimento directo dos textos aristotélicos é ainda demasiado escasso e inseguro para que se possa discernir o aristotelismo original dos acréscimos interpretativos dos Árabes; por outro lado, estes mesmos acréscimos aproximavam o aristotelismo da mentalidade dos escolásticos e do problema que os preocupava, uma vez que são, em parte, fruto da tentativa de procurar no aristotelismo uma resposta para os problemas da fé muçulmana que, em certos pontos essenciais (existência e espiritualismo de Deus, criação, imortalidade da alma) coincide com a cristã. O primeiro entre os escolásticos a tomar posição perante o aristotelismo é Guilherme d'Auvergne. Nascido em Aurillac, provàvelmente antes de 1180, 243 foi mestre de teologia na Universidade de Paris; e de 1228 até morrer (1249), bispo de Paris. A sua obra principal é o Magisterium divinale, em sete partes, sendo de maior importância filosófica o De tritiitate (escrito entre 1223 e 1228), De utúverso e o De aninw (escrito entre 1231 e 1236). O objectivo de Guilherme é polémico: pretende combater "os erros de Aristóteles
e dos filósofos que o seguem"; mas efectivamente pretende visar sobretudo Avicena, do qual depende directa e polèmicamente. Depende directamente na medida em que faz sua a distinção fundamental de Avicena entre o ser necessário e o ser possível, depende polèmicamente na medida em que transforma essa distinção numa oposição, que lhe permite defender a nãonecessidade do mundo, e por conseguinte, da criação. Nesta polémica, Guilherme foi levado naturalmente a utilizar a obra de Maimónidas, que era dominada pela mesma preocupação fundamental. Guilherme começa por distinguir uma dupla predicação: uma predicação secundum essentiam e uma predicação secundum partecipationem. Todo o predicado que se aplica a uma coisa ou pertence à própria essência da coisa ou permanece exterior à essência da coisa em que participa. A predicação por participação supõe a predicação por essência. Se se afirma, por exemplo, que uma coisa é boa porque participa de uma outra coisa, e que essa outra coisa é boa também por participação, dá-se início a um processo infinito, que apenas se evi,tará quando se chegar a um ser que seja bom por essência (De trin., 1). Ora, quando se atribui o ser às coisas finitas faz-se uma predicação por participação, que pressupõe uma predicação por essência: ou seja, supomos um -ser que é ser por essência e, portanto, impensável como não existente. A estes dois modos de predicação correspondem assim dois modos fundamentais do ser: o Ser por 244 essência, que inclui a existência na sua quididade ou substância; e o ser não por essência cuja quididade ou substância não inclui a existência. O Ser por essência não tem causa e é simples, porque privado de composição. O ser não por essência recebe a existência do exterior e precisamente do Ser por essência e é, por conseguinte, composto sempre pela sua qualidade ou substância e pela existência que lhe é atribuída do exterior. Estes conceitos, derivados de Avicena, são esclarecidos por Guilherme com os próprios termos de Avicena: o Ser por essência é o ser necessário, o ser por participação é o ser possível ou potencial (De tric., 7). Mas neste ponto, Guilherme afasta-se de Avicena para se aproximar de Maimón@idas. Para Avicena não existe oposição entre o ser necessário e o ser possível; o ser possível é, na realidade necessário por outrem; não pode conseguir a existência em acto a não ser ao converter-se ipso facto em necessário. Pelo contrário, Gulilherme contrapõe nitidamente o ser necessário ao ser possível. "Procederei por outra via e dir-te-ei a razão por que o ser necessário e o ser possível são contrários entre si. Do mesmo modo são contrários a necessidade em si e a possibilidade em si, tal como a antiguidade e a novidade. Com efeito, como a necessidade em si é causa da eternidade ou antiguidade, assim necessàriamente a possibilidade em si será causa da novidade ou temporalidade; e uma vez que a necessidade em si não se encontra no criador, nele se encontra apenas a eternidade ou antiguidade. E mais: como a necessidade em si não suporta a novidade ou temporalidade no ser em que se encontra, assim é necessário que a possibilidade em si não suporte a eternidade no seu próprio sujeito. Por isso é impossível que nenhuma das coisas criadas seja eterna" (De univ. 1. 2). O primeiro resul245
tado desta contraposição entre o ser necessário e o ser possível é, portanto, a negação da eternidade do mundo e a afirmação da necessidade da criação. Poss,ibilidade no ser -participado, signifea temporalidade, novidade; por conseguinte, criação. Guilherme introduz assim pela primeira vez na escolástica latina, a distinção real entre a essência e a existência das coisas criadas, que iria tornar-se o cerne da metafísica de S. Tomás. "Uma vez que o ente possível não é o ente por essência, ele e o seu ser, que não lhe pertence por essência, são duas realidades distíntas e uma (o ser) surge da outra (a essência), ainda que não se integre na sua razão ou quididade" (De trin., 1). As coisas criadas são, portanto, formadas pela essência e pela existênc;a e essa existência deriva de Deus por participação. O ser das coisas criadas e o ser de Deus não são idênticos nem diferentes, são análogos: de certo modo, assemelham-se e correspondem-se entre si, sem que tenham o mesmo significado (1b., 7). Este princíp;o da analogicidade do ser, irá ter também uma aplicação sistemática na metafisica de S. Tomás. A criação supõe que Deus contenha em si os modelos ou exemplares das coisas criadas: esses modelos não constituem um mundo à parte, como queria Platão; são a própria Sabedoria ou Verbo, gerado por Deus desde a eternidade (De univ., 1, 36-37). Deste modo, o platonismo aparece ligado à especulação do aristotelismo árabe e serve para conciliar este último com a fé cristã. O Verbo divino confere directamente ao homem os conhecimentos fundamentais ou primeiros princípios a que Guilherme chama prima intelligibil,;a, primae impressiones, dignitates et communes animarum conceptiones, etc. Esses primeiros princípios oferecem-se à alma humana como se fossem inatos ou inculcados nela de forma natural (De an., V, 15); com 246 efeito, surgem i-ião do exterior mas do interior, e constituem não só as regras fundamentais da verdade, como também as do recto agir, ou seja, da honestidade (1b., VII, 6). Através desta fluminação interior, que é um outro enxerto do agustinismo, Guilherme sustenta que é inúti,1 a acção do intelecto agente. Se os primeiros princípios são ffirectamente inculcados no homem pela Sabedoria divina, os outros conhecimentos inteligíveis derivam directamente da realidade inteligível, sem qualquer força ou potência intermédias. "Entre os sentidos e as coisas naturais não é necessária nenhuma virtude intermédia que actue sobre os sentidos de modo tal que faça com que os conhecimentos sensíveis, que existem em potência nos órgãos dos sentidos, se transformem em acto. ]Para este efeito bastam os objectos sensíveis que são exteriores à alma. Para. quê, na verdade, uma potência intermédia e necessária ao conhecimento intelectual, como se não bastasse ao intelecto, para apreender a realidade inteligível, a acção dessa mesma realidade? (1b., VII, 4). O intelecto agente é portanto uma ficção inútil. O iintelecto material, pelo contrário, é a verdadeira e própria essência da alma; mas não é apenas potência receptiva mas também activa e, por meio dela e dos objectos inteligíveis, podemos explicar todo o conhecimento intelectual humano. (1b., V, 6). Entre os escritos de Guilherme figura uma reelaboração de um tratado Sobre a imortalidade da alma de Domingos Gundisalvo, arcebispo de Segóvia, conhecido
sobretudo como tradutor (§ 252). O escrito é inteiramente dependente das fontes árabes, das quais é extraída a prova da imortalidade da alma: independência da actividade intelectual em relação ao corpo; natureza da alma como forma, imaterial o aspiração à felicidade pela alma intelectiva; posição intermédia da alma entre os puros espíritos e a alma das plantas e dos animais; inde247 pendência da alma em relação a qualquer factor destruidor; ausência de um órgão corpórco da alma intelectiva; relação da alma com a origem da vida. O escrito, muito pouco original, teve dentro da escolástica uma certa importância histórica; entre outros, inspiraram-se nele S. Boaventura e Alberto Magno. § 254. ALEXANDRE DE HALES A entrada do aristotelismo na escolástica latina está de certo modo ligada com os acontecimentos da Universidade de Paris. Em Fevereiro de 1229, depois de vários tumultos que tiveram início num dia de Carnaval, a Universidade ficara deserta e mestre e alunos abandonaram Paris. Em 1231, o papa Gregório IX reconstitui a Universidade, mas proíbe os professores de utilizarem os livros de Física de Arístóteles (que haviam sido proibidos por um concílio provincial em 1210) até que fossem expurgados de qualquer suspeita de erro. Da comissão para tal constituída fazia parte um mestre da própria Universidade, Guilherme d'Auxerre, autor de um comentário às sentenças de Pedro Lombardo e que tinha o título de Summa aurea. Neste comentário, são poucas e imprecisas as referências a Aristóteles; nele se encontra, todavia, defendida a distinção entre um duplo ser das coisas criadas: o ser que existe na criatura e o ser divino, do qual depende a criatura; distinção que parece reconduzir à que Avicena fazia entre o possível e o necessário. Mas é com Alexandre de Hales que a escolástica assume uma nítida posição relativamente ao aristotelismo. Alexandre nasceu em Hales, no condado de Gloucester, em Inglaterra, entre 1170 e 1180. Estudou em Paris e foi professor de teologia na faculdade das artes desta cidade. Em 1231, ingressou na ordem franciscana que, através dele, teve -pela primeira 248 S.BOAVENTURA vez um representante na escola parisiense. Conta-se que o papa Inocêncio IV, acabando por conhecer a fama que tinham as suas lições, o encarregou de compor uma Summa que servisse de regra aos doutores no seu ensino. A obra apresentada por Alexanúre ao papa foi em seguida submetida ao juizo de 70 teólogos. Estes aprovaram-na e recomendaram-na como livro perfeito para toJos os mestres de teologia. Rogério Bacon, ao escrever alguns anos mais tarde a sua Opus minus (1267) negava que fosse Alexandre de Hales o autor da Summa totiu theologiae: "A partir do momento em que Alexandre entrou para a ordem dos franciscanos, os frades colocaram-no nas nuvens, conferiram-lhe a máxima autoridade em todo o gênero de estudos e atribuiram-lhe esta grande Summa que
é carga demasiada para um só cavalo". O que é certo é que a ordem franciscana, a partir daí, se manteve fiel aos pontos fundamentais do neopla,tonismo agustiniano exposto na Summa de Alexandre e defendeu-os enèrgicamente contra o aristotelismo. No entanto, ela ainda apresenta vasta ressonancia do aristotelismo árabe e juda@ico e, em primeiro lugar, de lbn Gabirol. Deste, Alexandre aceita o princípio da composição hilomórfica universal. Todos os seres criados são formados por matéria e forma; o mesmo acontece com os seres espirituais. A alma é precisamente a forma do corpo; mas além de ser forma, isto é actividade, é também passividade ou capacidade de suportar a acção dos outros seres e esta passividade, que é igualmente pertença da alma separada do corpo, constitui a matéria da mesma (Sum. 11, q. 61, 1). As coisas criadas têm, por um lado, a composição de matéria e forma, por outro, a composição de essência e de existência (quo est e quod est); esta última pertence também à alma como tal (lb., q. 20, 2). 249 Mas se existe uma matéria das criaturas espirituais, ela não é, como queria Ibn Gabirol, idêntica à das coisas corpórcas. Não ex@ste uma matéria comum a ambas; nem sequer existe uma matéria comum entre os corpos celestes e os sublunares, ainda que a matéria de uns e de outros pertença ao mesmo gênero (1b., 11, q. 44, 2). A doutrina aristotélica das quatro causas é adoptada por Alexandre para delerminar as relações entre Deus e o mundo. Deus é causa formal, é causa eficiente e causa final das coisas. É causa formal, na meJ,@da em que contém as ideias, que são os exemplares das coisas do mundo: estas ideias formam um todo com a essência. É causa eficiente, na medida em que o mundo depende da sua omnipotência que pode levar a cabo tudo o que não contradiga a sua essencia e os seus atributos fundamentais. É a@nda causa final na medida em que é o bem supremo para o qual tendem as coisas, cada uma a seu modo. (Ib., q. 21, 1; 11, q. 3, 2; 11, q. 42). Tal como Guilherme d'Auvergne, Alexandre não admite senão um único modelo do mundo, o próprio Deus. As i@eias estão reunidades na essência de Deus e só surgem na sua diversidade quando relacionadas com as coisas múltiplas que dela provêm. A propósito da questão do intelecto, Alexandre sustenta que não só o intelecto material, mas também o próprio intelecto agente faz parte da alma humana. "0 intelecto agente e o intelecto potencial são duas distinções da alma racional. O àntelecto a-ente é a forma pela qual. a alma é espírito; o intelecto possível é a matéria da alma, matéria pela qual a alma existe em potência relativamente às coisas congrioscíveis que contém. Tais coisas existem na sua parte inferior e surgem sobretudo da alma sensível Ub., 11, q. 69, 3). Também o inte250 lecto agente faz parte da alma; mas, apesar de ser a-ente, não conhece em acto to-das as formas. Recebe do primeiro Agente uma iluminação relativa a um certo número de forma inteligív&s; mas uma vez iluminado, aperfeiçoa por sua
vez o intelecto em potência (lb., 11, q. 69, 3). Deste modo, a alma humana apresenta uma tripla distinção: o intelecto material, que é o acto do homem no seu corpo; o intelecto em potência, que pertence à alma enquanto separável do corpo; o intelecto em acto, que lhe pertence porque, de certo modo, está já separada do corpo (lbid., II, q. 69, 4). Tais são os pontos sobre os quais a Summa de Alexandre assume uma posição, frente ao aristotelismo árabe e judaico. Estes pontos implicam a aceitação de poucos conceitos fundamentais: a distinção real entre essência e existência; a composição hilomórfica de todas as criaturas; a distinção entre os intelectos. Mas a Summa é uma obra vastíssima que tem a pretensão de reunir toda a tradição integral da escolástica latina para assim formar um dique contra a invasão das novas correntes aristotélicas. Como tal é obra de escassa ou nenhuma originalidade. De destacar, contudo, a recapitulação que faz das provas da existência de Deus, que se encontram expostas no primeiro livro da obra. Aí podemos descobrir a prova de Ricardo de S. Victor que, da existência de coisas que dependem de outras, deduz a existência do Ser que apenas depende de si próprio; a prova causal extraída do De fide orthodoxa (1, 3) de João Damasceno; a prova agustíniana deduzida da verdade que existe no homem, e que Alexandre vai buscar a Hu_ao de S. Victor; a prova ontológica de Santo Anselmo; e a prova deduzida da necessidade da essência divina, tirada do Monologion do próprio Santo Anselmo. 251 § 255. ROBERTO GROSSETêTE: A TEOLOGIA A Summa de Alexandre de Hales, além de ser uma assimilação parcial das teses do aristotelismo, é também uma tentativa de reacção polémica-o que representa um regresso à posição platónico-agustiniana, tradicional na escolástica. O regresso ao agustinismo como método para conservar e reformar a tradição origináda da escolástica é levado a efeito, com o maior vigor, pelo franciscano Roberto Grossetête. Já Rogério Bacon se havia apercebido deste aspecto da obra de Roberto. "Monsenhor Roberto, bispo de LincoIn, de santa memoria, pos completamente de parte os livros de Aristóteles e as vias que ele -indicou, e tratou os temas aristotélicos valendo-se da sua própria experiência, de outros autores e de outras ciências. Deste modo conseguiu escrever sobre os problemas de que se ocupava o estagirita coisas mil vezes melhores do que aquelas que se podem aprender nas más traduções daquele filósofo" (Comp. stud. phil., 8, Opera, ed. Brewer, p. 469). A observação de Bacon não significa que Roberto ignorasse os livros de Aristóteles. Pelo contrário conhecia-os e citava-os: mas pretendia no entanto regressar à pura inspiração agustiniana. Roberto Grossetête (Greathead, Grossum caput) nasceu em 1175 em Stradbrok no condado de Suffolk, em Inglaterra. Estudou em Oxford e em Paris, e em seguida tornou-se professor e chanceler da Universidade de Oxford. Em 1235 é nomeado bispo de LincoIn e morre em 12,53, excomungado pelo papa Inocêncio IV, a quem nos seus sermões havia acusado de avarento, tirano e vaidoso. Escreveu alguns Comentarii aos Segundos Analíticos, às Refutações sofísticas e à Física de Aristóteles; e traduziu do grego para latim a Ética daquele filósofo.
252 Rogério Bacon. tinha-o entre aqueles "que souberam explicar as causas de tudo com o auxílio da matemática" (Op. maius, ed. Bridges, 1, 108); e, na verdade, a sua actividade abrange todos os ramos do saber: astronomia, meteorologia, óptica, física e disciplinas liberais. Os seus escritos respeitantes à filosofia são: De unica forma omnium, De statu causarum, De poteidia et actu, De veritate propositionis, De sciência Dei, De ordine emanandi causatorum a Deo, De libero arbitrio. Desde o princípio, isto é, desde o próprio conceito de Deus, que Roberto se baseia na autoridade de Santo Agostinho. "Eis como a autoridade de Santo Agostinho afirma abertamente: Deus é forma e é forma das criaturas". Da própria definição de forma se conclui que Deus é forma: uma forma é aquilo pelo qual uma coisa é o que é. Por exemplo, a humanidade que é a forma do homem, é aquilo pelo qual o homem é homem. Ora Deus é por si aquilo que é, porque a divindade, pela qual é Deus, é o próprio Deus. Por conseguinte, Deus é forma (De forma omtdum, edição Baur, 108). Mas a afirmação de que Deus é forma das criaturas é típica da filosofia de Escoto Erígena (§ 180) e deste obteve Amalfico de Bene (§ 219) o seu panteísmo, considerando Deus como a própria forma das coisas. Pelo contrário, Roberto dá ao seu princípio um significado que exclui uma @nterpretação panteísta. "Deus não é forma das criaturas no sentido de ser parte da sua substância completa e precisamente aquela que ao unir-se com a matéria gera a coisa singular. Chama-se forma ao modelo que o artesão tem presente para formar uma obra que imite e se assemelhe ao modelo. Chama-se forma também, àquilo que se aplica à matéria que se pretende formar, como o selo é forma da cera e o molde de barro é forma da estátua que nele toma corpo. Finalmente, forma é 253 também o modelo que o artesão têm no seu espírito, quando apenas considera o que no seu espírito existe para produzir uma obra que a isso se assemelhe". (lb., 109). Estes três significados da palavra forma como modelo interior, modelo exterior e molde da coisa a produzir não são diversos uns dos outros; a forma é em qualquer caso o exemplar ou modelo: e, tratando-se de Deus, o exemplar ou modelo da sua obra não pode ser exterior a EleEle próprio, e precisamente a sua Sabedoria ou o ,seu Verbo, é o exemplar, a causa eficiente, o agente que confere a forma, e conserva as criaturas na forma que lhes deu (M., 110). Roberto ilustra a função formadora do Verbo com a doutrina de Santo Agostinho do Verbo como verdade. As coisas foram criadas para toda a eternidade pelo Verbo ou Discurso divino; a sua verdade consiste na sua conformidade com o Discurso que as pronunciou. A conformidade das coisas com o que foi eternamento enunciado é a rectitudo das próprias coisas, a norma da sua constituição. A verdade das coisas consiste em serem como devem ser, em possuirem a plenitude de ser (plenitudo essendi) que é conforrnidade com o Verbo criador (De verit., ed. Baur, 134-5). Se o Verbo divino é a própria verdade, o homem não pode atingir a verdade
senão em virtude do próprio Verbo divino. No entanto, Roberto não admite uma iluminação directa por parte de Deus. O empirismo aristotélico ganha aqui vantagem sobre o apriorismo agustiniano. "Tal como os olhos do corpo não podem ver as cores se não receberem a ilum,@nação da luz do sol, assim também os débeis olhos da alma nada vêem, a não ser através da luz da suma verdade. No entanto, não podem ver a suma verdade em si próprio, mas só na medida em que ela se une, ou de qualquer forma se funde, com as -próprias coisas verdadeiras" (De verit., ed. 254 Baur, 137-138). Condição para conhecer a verdade é, da parte do homem, a perfeição moral: Só os puros podem ver a luz divina. Mas também os ámpuros têm, de qualquer forma, conhecimento da verdade, uma vez que, sem o saberem, vêem as coisas à luz divina, tal como um homem vê as cores à luz do sol, sem necessidade de olhar para o sol Qb., 138). Roberto dedicou um tratado ao problema da liberdade humana, o De libero arbítrio. Nesta obra examina a relação entre a liberdade humana e a presciência d,ivinq e exclui a doutrina de Averróis, segundo a qual a previsão divina apenas diria respeito à ordem universal do mundo; não aos acontecimentos singulares. Contràriamente à definição de Santo Anselmo, que afirma que o "livre arbítrio é a faculdade de conservar a rectidão da vontade pela própria rectidão", Roberto afirma a exigência de incluir na definição de liberdade, a capacidade de a vontade se inclinar ou dirigir para uma coisa ou para outra, indiferentemente (flexibilitas vel vertibilitas ad utrantque). Com ele, a liberdade aparece definida como "a própria e natural capacidade da vontade de se inclinar a querer uma ou outra de duas coisas opostas quando consideradas em si" (De lib. arb., ed. Baur, 225). Deste niodo definida, a liberdade é o verdadeiro e próprio arbítrio da indiferença: já não é um conceito moral mas metafísico: pertence à natureza do homem e é por isso designada, por Roberto, como capacidade natural e espontânea. Este conceito deveria permanecer tradicional e típico na corrente platónicoagustiniana tal como permanecerá típico, na própria corrente, o primado da vontade afirmado claramente por Roberto (Opera, ed. Baur, 23.1).- "0 ser da natureza racional é duplo: o querer e o aprender. Mas o ser primeiro e máximo é o querer, uma vez 255 que é nele e não no apreender que consiste orig;nàriamente e por si a felicidade." 256. ROBERTO GROSSETÊTE: A FíSICA A especulação sobre o mundo natural tem na obra de Roberto um importante
lugar. A sua originalidade consiste em ter afirmado um principio que será defendido por Rogério Bacon e se tomará mais tarde o fundamento da ciência moderna: o estudo da natureza deve ser baseado na matemática. "A utilidade, afirma (De luce, ed. Baur, 59), do estudo das linhas, dos ângulos, das figuras é enorme, uma vez que sem ele é impossível conhecer seja o que for da filosofia natural. E isto vale de formi absoluta para todo o universo ou para qualquer das suas partes". Por outro lado, Roberto exprime exactamente a lei de economia que regula os fenômenos naturais e que será mais tarde corroborada por Francis Bacon e por Galileu, todas as operações da natureza se verificam da forma mais determinada, mais ordenada e mais breve que é possível (lb., 75). Entre as doutrinas físicas que lhe são próprias, merecem especial relevo as que dizem respeito aos motores do céu e à luz. Os céus têm dois motores, segundo ele: a alma que existe em cada céu e o motor que existe separadamente. Este motor é único * move-se infinitamente com movimento uniforme * contínuo: é o próprio Deus. Pelo contrário, as almas são múltiplas, uma para cada céu, e cada uma se move no seu céu de forma diversa (De motu supercelestium, ed. Baur, 100). Esta doutrina, que Roberto apresenta como exposição da que se encontra no X11 Livro da Metafisica de Aristóteles, na realidade nada tem a ver com esta, uma vez que Aristóteles não falava de almas ligadas à maté256 ria dos céus, mas de motores separados, em tudo semelhantes ao primeiro (§ 78). No que diz respeito ao universo corpóreo, a física de Robeito é substancialmente uma teoria da luz. Tal como Ibri Gebirol, e ao contrário de Alexandre de Hales, Roberto admite que todos os corpos tenham uma forma comum, que se liga à matéria primeira antes de receber as formas particulares dos vários elementos. Esta pÊrneira forma ou corporeidade é a luz. "A luz, afirma ele, (De inchoactione formarum, ed. Baur, 51-52), difunde-se em todas as direcções, de forma que de um ponte, luminoso pode @,er gerada uma esfera de luz do tamanho que se quiser, a menos que se forme algum obstáculo com corpos opacos. Por outro lado, a corporeidade é aquilo que tem por consequência necessária a extensão da matéria nas três dimensões". Roberto identifica a difusão instantânea da luz nas três dimensões com a tridimensionalidade do espaço; e por conseguinte, a luz com o espaço. Através do processo de extensão, de agregação e de desagregação detern-iinado pela luz, são formadas as treze esferas do mundo, ou seja, as nove esferas celestes e as quatro esferas terrestres do fogo, do ar, da água e da terra (Ib., 54). A luz, segundo Roberto, explica todos os fenómenos da natureza. Ela é o instrumento mediante o qual a alma actua sobre o corpo e é a causa da beleza do mundo visível. Roberto Grossetête pode ser considerado o iniciador do movimento que, contra a influência do aristotelismo, se torna partidário de um decidido regresso ao platonismo agostiniano. Este movimento será continuado pelos representantes da ordem franciscana e terá como característica constante, o interesse pelo mundo natural; o que se torna objecto de uma investigação que não se contenta
com os 257 textos aristotélicos, procedendo também com o raciocínio e com a experiência. § 257. JOÃO DE LA ROCHELLE Foi discípulo de Alexandre de Hales e sucessor deste na cátedra ocupada pedos franciscanos na Universidade de Paris. João de Ia Rochelle nascido à volta de 1200 e falecido em 1245, é autor de uma Summa de anima que apresenta uma interpretação, no sentido agost@iniano, da teoria de Avicena sobre o intelecto. João de ]a Rochelle identifica o intelecto agente com Deus. "Segundo Avicena, afirma (De an., 11, 37), a função do intelecto agente é a de iluminar e difundir o fogo da inteligência nas formas sensíveis existentes na imaginação e, iluminando-as, abstrair as referidas formas de todas as suas condições materiais, para em seguida uni-Ias e ordená-las no intelecto possível". Identifica a ac@ão do intelecto activo, de que fala Avicena, com a acção iluminadora de Deus, de que fala Santo Agostinho. Deste modo pode afirmar que "a alma humana nada compreende se não for iluminada pelo princípio de toda a iluminação, Deus nosso pai" (M., 1, 3). A capacidade que a alma humana possui de abstrair a forma sensível das imageris do corpo deriva da acção iluminadora de Deus. Este autor utiliza também a teoria aristotélica da abstracção (que conhece de Avicena) e agrup3. elementos díspares, ao tentar reconduzir aos princípios tradicionais do agostinianismo as doutrinas do aristotelismo árabe. § 258. VICENTE DE REAUVAIS Puras compilações, privadas de qualquer elaboração original, são os escritos do dominicano 258 Vicente de Beauvais, falecido em 1264. Continuador da tradição dos enciclopedistas medievais, a sua obra apenas se destaca pelo facto de incluir passagens de autores árabes e judeus, contribuindo assim para a sua difusão no mundo latino. O seu Speculum maius compreende quatro partes (Speculum doctrinale, Speculum historiale, Speculum naturale, Speculum morale), das quais apenas as três primeiras são autênticas. Foi perceptor do filho de S. Luís, rei de França, e deixou-nos um texto pedagógico intitulado, Acerca da educação dos filhos dos reis ou dos nobres. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 252. Sobre as traduções aristotélicas: A. e C. JOURDAIN, Recherches critiques sur 1'áge et 1'origine des traductions dAristote, 2.a ed., Paris, 1843; DUHEM, Systême du monde, III, Paris, 1915, p. 179 e segs.; GRABMANN, Forschungen über die lat. Aristoteles-Ubersetzungen d. XIII Jahrh., em "Beitrage", XVII, 5-6, 1916; MUCKLE, Greek Works Translated directly into Latin before 1350, in
"Medieval Studies", 1943. § 253. De Guilherme d'Auvergne, as Opere foram editadas: Nürnberg, 1946; Venetiis, 1591; e em edição mais completa; Aureliae, 1674. VALOlS, Guillaume dAuvergne, Paris, 1880; MuRÉAu, Histoire de Ia phil. scal., 11, 1, Paris, 1880, p. 142-170, DUHEM, Système du monde, II, p. 249260, V. p. 261-283; MASNovo, Da Guglielmo d'-4uvergne a S. Tommaso d'Aquino, 2 vols., Milão, 1930; GILSON,M La notion d'existence chez G. d'A., in "Arch. d'Hist. doetri. et lit. du m. â.", 1946. § 254. De Guilherme de Auxerre, a Summa aurea foi editada em Paris, 1500 e 1518, e em Veneza, 1951, GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3, 1907, 87-911; MINGES, in "Theolog. Quartaschrift", 1915, 508-529; OTTAVIANO, G. d'Auxerre, Roma, 1929 (com bibl.). Da Summa de Alexandre de Hales fizeram-se as seguintes edições: Venetiis, 1475; Norimbergae, 1482; Papiae, 1489; Norimbergae, 1502; Lugduni, 1515; Vene259 tiis, 1576; Coloniae, 16622; edição critica ao cuidado dos franciscanos de Quaracchi, Quaracchi, 1924-1948. HA~Au, Histoire de Ia phil. médiév., 11, 1, 130-141; GUTMANN, Die Scholastik des 13 Jahrhundert in ihrer Beziehungen zum Judentum, 1902, p. 32-46; WITTMANN; Die SteWng des M. Thomar von Aquin zu Avenceprol, 1900, p. 20 e segs.; HERSCHER, A Bibliography of A. of Hales, in. "Fran. Stud."., 1945-6. § 255. De Roberto, Grossetête: Os seus escritos tiveram uma primeira edição em Veneza, 1514; e uma nova edição critica ao cuidado de BuAR em "Beitrage" de Baeumker, vol. IX, 1912. Para a indicação dos textos não compreendidos nesta recolha, ver o volume de BAUR e UEBERWEG-GEYER, p. 358-359. PRANTL, Gesch. der Logik, IU, p. 85-89; STEVENSON, Robert Grossatesta, Londres, 1899; BAUR, Intr. à citada edição; DUHEM, Système du monde, V, p. 341358; ALEssio, Studi e richerche di LincoIn (Grossatesta), in "Rivista Crit. di Stor. deTIa Fil.", 1957; Storia e teoria nel pensiero scientifico di Roberto Grossatesta, na mesma revista, 1957. § 257. De João de Ia Rochelle, a Summa de Anima, foi editada em Prato, 1882. HAURÉAU, HiSt. de Ia phil. scol., 11, 1, 192-213; MANSER, in "Jahrb. für philos. und spek. Theol.", 1912, 290-324; in. "R-evue Thomiste", 1911, 89-92; MINGES, in "Archivum Franciscanum Historicum", 1913, 597-622; in "Philos. Jahrb.@>, 1914, 461-77; in "Franzisk. Studien", 1916, 365-378; FABRO, in. "Divus Thomas", 1938. § 258. De Vicente de Beauvais o Speculum maius teve várias edições: Venetils, 1484, 1494, 1591; Duaci, 1624; GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3, 112 e segs.; DUHEM, Êtudes sur Léonard de Vinci; 11, Paris, 1909,
318 e segs.; ID., Système du monde, M, 346-348. 260 XIII S. BOAVENTURA § 259. S. BOAVENTURA: O REGRESSO A SANTO AGOSTINHO O regresso a Santo Agostinho, que na Summa de Alexandre de Hales e principalmente na obra de Roberto Grossetête se apresenta como a reacção da escolástica latina contra o progresso do aristotelismo, encontra em S. Boaventura a sua máxiima expressão teológica e mística. Contra o assalto de uma filosofia que à primeira vista parece -impossibilitar a resolução do problema escolástico, dado que conduz a investigação filosófica a conclusões inconciliáveis com a fé, a escolástica concentra-se sobre si própria, retorna às origens e procura alcançar uma nova vitalidade a partir da doutrina agostiniana, a qual, apesar de ter permanecido sempre como a sua principal fonte de inspiração, havia perdido a sua autenticidade e força original ao longo de vários séculos de laboriosas e incertas elaborações. Santo Agostinho regressa. A primeira consequência paradoxal do aparecimento de Aristóteles no horizonte filosófico do século XIII consistiu na revivescência das teses fundamentais do bispo de 261 Hipona, como que redescobertas na sua enorme capacidade de persuação. Frente a estas teorias, o aristotelismo aparece à escolástica latina como uma força estranha, possível de ser utilizada dentro de certos limites, mas à qual devemos fazer o menor número possível de concessões. Os doutores escolásticos vão adquirindo uma maior familiaridade com essa mesma força, à medida que o seu conh,.cimento da obra de Aristóteles se vai tornando mais amplo e mais prociso; mas aquela estranheza permanecerá até ao aparecimento das obras de Alberto Magno e de S. Tomás, e tudo o que os doutores aproveitarão da obra aristotélica não passará de simples sugestões ou doutr3nas particulares, que procurarão integrar o melhor possível no corpo das doutrinas tradicionais. Esta é a atitude de S. Boaventura frente ao aristotelismo. A sua palavra de ordem, tal como a de Alexandre de Hales e Roberto Grossetête, é o regresso a Santo Agostinho. O conhecimento da obra de Aristótoles permite-lhe aproveitar elementos e sugestões a inserir no tronco de uma filosofia que elo explicitamente reconhece e deseja como tradicional. "Não pretendo, diz ele (In Sent., 11, pról.), combater as novas opiniões, mas conservar aquelas que são comuns e aprovadas. E ninguém pense que eu queira ser o fundador de um novo sistema". Nenhum novo sistema: S. Boaventura só quer voltar a percorrer os caminhos já desvendados, voltar a tecer a trama ininterrupta do pensamento cristão, que vai de Santo Agostinho ao seu mestre Alexandre. As novas doutrinas, tal como as aristotélicas, parecem-lhe estar tão afastadas daqueles caminhos batidos e seguros que nem sequer se propõe combatê-las. Para ele, Aristóteles é um filósofo, não o filósofo: é um autor cujas afirmações podem ser ocasionalmente utilizadas, não é a própria encarnação darazão humana.
262 § 260. S. BOAVENTURA: VIDA E OBRA Giovanni Fidanza, chamado Boaventura na ordem franciscana, nasceu em Bagnoregio (Viterbo), em 1221. Conta uma lenda que, tendo-o S. Francisco curado ainda em criança de uma doença mortal, desde logo a mãe fizera o voto de o consagrar à ordem franciscana. Ao certo, sabemos que desde novo ingressou nessa ordem, aos 17 (ou 23) anos. Não é contudo verdade que tenha sido aluno, em Paris, de Alexandre de Hales. Nos fins de 1253 ou princípios de 1254 foi nomeado mestre regente da Universidade de Paris. No ano seguinte, devido à luta travada pelos mestres seculares dessa Universidade, dirigidos por Guilherme de Santo Amor, foram excluídos do ensino parisiense todos os representantes das ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos). S. Boaventura, assim como o seu am,igo S. Tomás, continuou a luta através das suas obras, e um ano mais tarde o papa Alexandre IV decidiu a disputa a favor das ordens mendicantes. S. Boaventura foi reintegrado na Universidade, provàvelmente ainda em 1256; a sua nomeação oficial em Outubbro de 1257 coincide com a de S. Tomás, o qual foi então nomeado mestre pela primeira vez. Mas já desde Fevereiro de 1257 que desempenhava o cargo de geral da ordem franciscana, a qual foi por ele completamente reorganizada. Em 1273 foi nomeado arcebispo de Albano e cardeal. Faleceu durante o Concílio de Lião, em 1274. As obras de S. Boaventura ocupam dez volumes na edição dos padres franciscanos de Quaracchi. A sua obra fundamental é o Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, em quatro livros, escrito a partir de 1248, durante o seu ensino em Paris. A sua obra mística mais -importante é o 1t1nerarium mentis in Deuni escrito no Outono de 1259. Outras obras importantes são: De scientia Christi, Qitaes263 tiones disputatae, Breviloquiuni, Collationes in Hexaênzeron. Escreveu ainda mu,itos comentários exegéticos a livros da Bíblia, numerosos opúsculos místicos, sermões e escritos relativos à sua actividade na ordem franciscana. Nos opúsculos místicos, S. Boaventura inspira-se em S. Bernardo, Hugo de S. Vítor e Ricardo de S. Vítor. Quer dizer, enquanto que na sua obra teológica procurava, remontando a Santo Agostinho, retomar toda a tradição escolástica, na sua obra mística recolhia paralelamente a tradição mística medieval. § 261. S. BOAVENTURA: FÉ E CIÊNCIA S. Boaventura declara prèviamente a superioridade da fé sobre a ciência. Tratando do problema de se ser maior a certeza da fé do que a da ciência, distingue uma certeza relativa às verdades da fé e uma outra relativa à s verdades da razão. No que respeita às verdades da fé, é mais certa a fé do que a ciência. Mesmo que um filósofo chegue a demonstrar uma verdade de fé, por exemplo, que Deus é criador, nunca poderá alcançar mediante a sua ciência a certeza que o verdadeiro fiel recebe da verdadeira fé. No que se refere às outras verdades, a fé possui uma certeza de adesão maior do que a da ciência
uma certeza do, especulação maior do que a da fé. A adesão relaciona-se com o afecto, a especulação com o puro intelecto. A ciência elimina a dúvida, como se nota claramente no conhecimento dos axiomas e dos primeiros princípios mas a fé faz com que o crente adira à verdade de tal forma que nem os argumentos, nem os tormentos, nem as lisonjas o conseguirão afastar dela. Seria louco o geórnetra que enfrentasse a morte pela sua certeza dum dado teorema; mas o crente enfrenta e deve enfrentar a morte pela sua fé (In 264 Sent., 111, dist. 23, a. 1, q. 4). A certeza científica é assim reduzida a um puro facto intelectual, simples indubitabilidade teorética, que não exige um compromisso pessoal; enquanto que a certeza da fé é exaltada como acto de afecto e adesão, isto é, como um compromisso efectivo da pessoa. Fé e ciência, fé e opinião, podem todavia coexistir em relação à mesma verdade. Se por opinião se não entende o consentimento dado a uma alternativa por temor da outra, mas sim o consentimento sugerido por razões prováveis, desde logo verificamos que muitos fiéis têm, para apoiar aquilo que crêem, muitas razões prováveis: pelo que, neste caso, a opinião não só não exclui a fé, como ainda a ajuda e a serve. Por outro lado, a fé não exclui a ciência em relação à mesma verdade e não a exclui porque tem uma certeza superior. Pode demonstrar-se com razões necessárias que Deus existe e que é uno; porém, dilucidar essa mesma essência d-ivina e essa mesma unidade de Deus e ver como essa unidade não exclui a pluralidade das pessoas, isso só poderá conseguir-se através da fé. Por conseguinte, a ciência não torna inútil a iluminação da fé, antes a exige e a torna necessária. Os filósofos que conseguiram conhecer muitas verdades acerca de Deus, acabaram, por falta de fé, por incorrer em erro ou por desconhecer muitas outras Un Sent., 111, dist. 24, a. q. 3). Portanto, nunca a ciência poderá deixar de valer-se da f4 A fé é a adesão integral do homem à verdade, pela qual o homem vive da verdade e a verdade vive no homem. § 262. S. BOAVENTURA: O CONHECIMENTO Na teoria do conhecimento, apresenta S. Boaventura a primeira e a mais notável concessão ao aristotelismo. À pergunta de se todo o conheci265 mento deriva dos sentidos, ele responde que não: tem de adraitir que a alma conhece Deus, se conhece a si mesma e a tudo o que há em si sem o auxílio dos sentidos externos (In Sent., 11, dist. 39, a. 1, q. 2). Mas por outro lado tem também de admitir que alma não pode fornecer por si só todo o conhecimento. O material desse conhecimento deve provir necessàriamente do exterior, através dos sentidos, já que é constituído por semelhanças das coisas, abstraídas das imagens sensoriais (De scientia Christi, q. 4). Diz S. Boaventura: "As espécies e as semelhanças das coisas adquirem-se mediante os sentidos, como diz explicitamente o filósofo (isto é, Aristóteles) em muitas passagens; e também o ensina * experiência. Com efeito ninguém poderia conhecer * que é o todo ou a parte, ou o pai ou a mãe, se não recebe a espécie de um dos sentidos externos" (lt-i Sent., 11, dist. 39, a. 1, q. s).
Se entendemos por espécie as semelhanças das coisas, que são como que retratos das próprias coisas, teremos de dizer que a alma foi criada vazia de toda a esp&e, e que Aristóteles tinha razão ao afirmar que ela é uma tábula rasa (In Sent., 1, dist. 17, a. q. 4). Porém, a alina recebe sómente dos sentidos o material do conhecimento: a espécie, isto é, os conceitos, os termos objectivos de que parte o conhecimento. Mas o conhecimento está condic@onado na sua constituicão, no seu funcionamento, e portanto no SCLI valor de verdade, por princípios que são independentes dos sentidos e, portanto, inatos, porque são infundidos directamente por Deus. S. Boaventura regressa aqui completamente à tese clássica do a-ustinianismo. É dada à alma humana um lumen directivum, uma directio naturalis, da qual ela obtém a certeza do conhecimento. E esta luz directiva, esta direcção que é impressa naturalmente nela e a dirige, vem-lhe directamente de Deus. Uma linfluên266 cia indirecta da razão eterna não bastaria para garantir a verdade ao conhecimento. S. Boaventura refere-se expressamente às palavras de S. Agostinho "o qual, com toda a clareza e razão, demonstra que a mente, para conhecer com certeza, tem de ser regulada por normas imutáve@s e eternas, não através da sua própria disposição (habitus), mas directamente por essas normas, que estão acima dela, na Verdade eterna" (De scientia Christi, q. 4). O nosso intelecto está pois unido com a própria Verdade eterna. "Para que haja conhecimento certo requere-se necessàriamente uma Razão eterna reguladora e motriz, uma Razão que não permaneça isolada na sua clareza, mas se una com a razão criada e seja intuída pelo homem segundo as possibilidades da sua condição terrena" (De scientia Christi, q. 4). O Itinerário oferece-nos a análise das condições a priori do conhecimento humano. O mundo externo, ou macrocosmos, penetra na alma, ou microscosmos, através dos sentidos, produzindo no homem a apreensão, o prazer e o juizo. As coisas externas entram na alma não em si, isto é, na sua substância, mas sómente na sua senzelhança. A semelhança, ou espécie não é po,i@s a substância da coisa, mas únicamente uma sua imagem: S. Boaventura está aqui afastado do princípio aristotélico segundo o qual a alma aprende a própria forina substancial da coisa. A proporção entre o objecto percebido e o sentido perceptor determina o prazer. À apreensão e ao prazer segue-se o juízo que explicita um e outro e, portanto, purifica e abstrai a espécie sensível, levando-a dos sentidos até ao intelecto. O juizo é a faculdade intermédia da razão, através da qual a espécie se purifica das condições materiais de tempo e lugar e é elaborada conforme as exigências do intelecto (Itín., 2). Mas o acto do juízo supõe já a iluminação divina. O juizo é um 267 acto da razão que abstrai do lugar, do tempo e do movimento; mas o que está fora do tempo, do lugar e do movimento é eterno, é portanto Deus ou um elemento divino. No juizo, a razão vale-se pois de uma regra infalível, que é o próprio Deus como verdade, segundo as palavras de Santo Agostinho (Ib., 2). A espécie, abstraída das coisas sensíveis pelo juízo, constitui o ponto de
partida e o objecto da actividade intelectual. Esta actividade desdobra-se em três momentos: a percepção dos termos, das proposições e das ilacções. O intelecto compreende o significado dos termos quando compreende, por intermédio da definição, aquilo que é cada um deles. Mas a definição dum termo faz-se recorrendo a um termo superior ou mais extenso; e remontando assim a termos cada vez mais extensos, chega-se a termos supremos o generalíssimos, ignorando os quais se não podern entender nem definir os termos inferiores. O termo mais extenso, condição de qualquer outra definição, é o de ser. O ser pode ser parcial ou total; imperfeito ou perfeito, em potência ou em acto; mas dado que, tal como afirma Averróis (De an., 111, 25), a negação ou privação só pode conceber-se relativamente à afirmação, o nosso intelecto não poderá entender o ser reduzido, imperfeito ou potencial das coisas criadas se não for em referência ao Ser puríssimo, actualíssimo e completíssimo, no qual residem na sua maior pureza as razões de todas as coisas. Tal como a apreensão dos -termos também os outros dois actos do intelecto pressupõem a revelação directa de Deus ao ,intelecto do homem. Com efeito, a nossa mente, que é mutável, não poderia compreender a verdade imutável das proposições, se não fosse iluminada por uma luz imutável; nem poderia, sem essa luz, formular ilacções, nas quais a conclusão se segue 268 necessàriamente das premissas. "A necessidade de tal ilacção, diz S. Boaventura, não deriva da existência material da coisa, dado que ela é contingente, nem da existência da coisa na alma, porque seria uma ficção se não se encontrasse também na realidade. Deriva pois do modelo que existe na arte eterna de Deus (ab exemplaritate in arte aeterna) porque as coisas têm entre si as relações que a arte criadora divina estabelece entre os seus modelos". Daqui conclui S. Boaventura, uma vez mais com Santo Agostinho, que "o nosso intelecto está unido à própria verdade eterna e nada de verdadeiro pode compreender com certeza senão mediante o ensinamento daquela". E chega às mesmas conclusões ao considerar a actividade do intelecto prático: o conselho, que consiste em procurar o que seja melhor e que, portanto, supõe a noção do óptimo, ou seja, o sumo bem, que é Deus; o juízo, que versa sobre os objectos do conselho e supõe um critério ou lei que é o próprio Deus; o desejo, que tende para a felicidade, a qual consiste na posição do fim último, isto é , do Sumo Bem, e que portanto depende dele (Itin., 3). A doutrina do conhecimento de S. Boaventura mostra da forma mais clara os traços característicos do seu procedimento. Permanecendo fiel aos pontos essenciais do apriorismo teológico de Santo Agostinho, aceita a tese empirista de Aristóteles, limitando-a ao material do conhecimento; prescinde, porém, completamente das posições que o problema do conhecimento havia recebido de Aristóteles e dos seus intérpretes muçulmanos. Um ponto isolado do sistema aristotélico, ponto julgado carente de consequências, é tudo quanto ele utiliza da obra de Aristóteles. Este procedimento encontra-se ainda noutros aspectos da sua
doutrina. 269 § 263. S. BOAVENTURA: METAFíSICA E TEOLOGIA A relação intrínseca que o intelecto humano tem com Deus não implica que lhe seja dado conhecer Deus directamente e em si. "É preciso dizer que, tal como cada causa brilha no seu efeito e a sabedoria do artífice se manUesta na sua obra, assim também Deus, que é artífice e causa da criatura, se conhece através da criatura. E para isso existe uma dupla razão: uma de conveniência e outra de indigência. De conveniência: porque não podendo Deus, como luz supremamente espiritual, ser conhecido pelo intelecto na sua espiritualidade, a alma, para o poder conhecer, necessita como que de uma luz material, isto é, da criatura" (In Sent., 1, dist. 3, a. 1, q. 2). Dever-se-ia esperar, dada esta nova concessão ao empirismo, que S. Boaventura seguisse, na demonstração da existência de Deus, a via a posteriori, escolhida e seguida por S. Tomás, e que por isso recusasse o argumento de Santo Anselmo. Na realidade não foi assim: S. Boaventura reproduz e defende o argumento ontológico: "A verdade do ser divino, diz ele, é tal que não pode pensar-se com consentimento [isto é, crer efectivamente] que ele não exista, a não ser por ignorância daquilo que significa o nome de Deus" (1b., 1, dist. 8, a. 1, q. 2). O argumento de Santo Anselmo move-se no âmbito da especulação agustiniana e dificilmente pode ser negado por quem, como S. Boaventura, considera que a mente humana, para entender e julgar, deve estar unida a Deus. Não se pode pôr Deus como pressuposto e condição do conhecimento de todas as coisas particulares, sem admitir que a sua realidade é certa e demonstrável independentemente dessas coisas, portanto a priori. Se o conhecimento das coisas é condicionado pelo conhecimento de Deus, e não inversamente, só através da relação directa com Deus é que o intelecto pode 270 entender e julgar as coisas. Que o homem se eleve das coisas até Deus é uma possibilidade condicionada pela relação do homem com Deus: não pode, pois, condicioná-lo. O argumento ontológico reentra na lógica da posição agustiniana da relação entre o homem e Deus: tal como S. Boaventura, considerá-lo-ão válido todos os que se novam no âmbito do pensamento agustiniano. Deus, como causa criadora das coisas, é também o seu modelo. A ideia ou o modelo das coisas na mente divina identifica-se com a essência divina, e multiplica-se só em referência às coisas criadas, mas não no próprio Deus (lb., 1, dist. 35, a. 1, q. 2-3). Na sua omnipotência infin-ita, Deus é a causa de todas as coisas, que ele criou do nada. A criação não implica nenhum problema insolúvel, é um ponto sobre o qual coincidem plenamente a fé a a razão, quer no que se refere à dependência causal do mundo em relação a Deus, quer no que se refere ao início do mundo no tempo. Que o mundo tenha sido criado do nada resulta evidente de que sendo Deus, pela sua omnipotência, o agente mais nobre e mais perfeito, a sua acção é portanto radical, e determina todo o ser da coisa produzida, não sendo condicionada por nada de estranho (1b., 11, dist. 1, a. q. 1). Mas é impossível, segundo S. Boaventura, afirmar ao mesmo tempo
que o mundo foi criado e é eterno. É impossível que seja eterno aquilo que chegue a ser depois de não-ser; e é este o caso do mundo, enquanto criado a partir do nada. Além disso, a duração infinita do mundo implicaria infinitas revoluções celestes. Mas aquilo que é infinito não pode ser ordenado; no infinito não existe um primeiro, portanto, não existe ordem. Mas é impossível que haja revoluções celestes que não sejam ordenadas. Além disso a eternidade do inundo suporia a existência simultânea de infinitas almas humanas, o que é impossível. Poder-se-ia 271 negar este último argumento admitindo uma palingenesia, uma real unidade das almas dos homens: mas isto não só é contrário à fé cristã como também é declarado falso pela filosofia (1b., 11, dist. 1, a. 1, q. 2). A criação como início do mundo no tempo é pois uma verdade necessária. S. Boaventura assume aqui, como dotadas de valor demonstrativo as razões aduzidas por MaÀmónidas (§ 250) e procede sem a mínima hesitação. A sua atitude está neste ponto em franco contraste com a prudente cautela com que o próprio Maimónidas (e mais tarde S. Tomás) considera a questão, declarando impossível a sua solução demonstrativa. S. Boaventura aceita do aristotelismo hebraic-,) (Avicebrão) o princípio da composição hilomórfica universal. Matéria, diz ele, deve ser atribuída não só aos seres corporais, mas também aos espirituais. Com efeito, o ser espiritual, enquanto criado, não é absolutamente simples; mas sim composto por potênc@a e acto. Ora potência e acto são convertíveis com matéria e forma: deve pois ser também atribuído aos seres espirituais o conjunto de matéria e forma. A matéria espiritual não está sujeitta, como a das coisas corpóreas, à privação e à corrupção; está privada de todas as determinações corporais (lb., 11, dist. 3, a. 1, q. 1; dist. 17, a. 1, q. 2). É pura potência e constitui, com a matéria corpórea, uma única matéria homogénea, como único é o ouro de que são feitos diversos objectos (lb., 11, dist. 3, 1, a. 1, q. 3). Esta doutrina, que já Alexandre de Hales tinha defendido, torna-se com S. Boaventura, num dos pontos básicos do agustinianismo franciscano. Todos os seres são pois compostos por matéria e forma. A forma é a essência que restringue e define a matéria a um determinado ser. Mas esta essência é sempre universal, porque tem em si a capacidade de se realizar numa multiplicidade de 272 indivíduos. Qual é pois o princípio de individuação que determina e individualiza a forma universal? É evidente que tal princípio não pode ser externo à constituição do indivíduo, mas deve coincidir com os seus princí pios constitutivos. E como tais princípios são precisamente a matéria e a forma, a individuação derivará da união e da acção recíproca (cominunicalio) entre a matéria e a forma. E é, com efeito, pela unidade de matéria e forma que o inJivíduo, é constituído, o qual é um hoc aliquid no qual o hoc é constituído pela matéria, o aliquid pela forma (1b., 111, dist. 10, a. 1, q. 3). Esta solução contrasta com a tradição aristotélica que põe na matéria o princípio da individuação, e também ela se tornará uma doutrina comum do novo
agustinianismo. Este novo agustinianismo tomará também de S. Boaventura o conceito de matéria como potência. quer passiva quer activa, capaz de determinar por si mesma a emergência das formas. A potência activa da matéria é a razão seminal. A noção de razão seminal (logos spermatikós) que passara dos Estóicos aos Neoplatónicos, foi retomada nestes últimos por Santo Agostinho, do qual a retomou S. Boaventura. "A razão seminal é.a potência activa radicada na matéria; e esta potência activa é a essência da forma, porque dela se gera a forma mediante o procedimento da natureza, que nada produz do nada" (lb., 11, dist. 18, a. 1, q. 3). § 264. S. BOAVENTURA: A FíSICA DA LUZ Tal como Roberto Grossetête, S. Boaventura elabora uma doutrina física, que é uma teoria da luz. A luz não é um corpo, mas a forma de todos os 273 corpos. Se fosse um corpo, dado que é próprio dela multiplicar-se por si mesma, seria necessário admitir que fosse possível a um corpo multiplicar-se sem adjunção de matéria, o que é impossível. A luz é a forma substancial de qualquer corpo natural. Todos os corpos dela participam em maior ou menor quantidade, e conforme a sua participação, assim é maior ou menor a sua dignidade ou valor na hierarquia dos seres. A luz é o princípio da formação geral dos próprios corpos; a sua especial é devida à adição de outras formas, elementares ou mixtas (In Sent., 11, dist. 13, a. 2, q. 1-2). Isto implica que na constituição dum corpo podem entrar várias formas, que coexistem no próprio corpo. A forma comum da luz, efectivamente, coexiste em cada com a forma própria desse mesmo corpo (1b., 11, dist. 13, a. 2, q. 2). O princípio da pluralidade das formas substanciais constituirá um outro ponto básico da metafísica do agustinjanismo. § 265. S. BOAVENTURA: A ANTROPOLOGIA "Deus criou o homem de duas naturezas màximamente d-istintas entre si, conjugando-as numa única pessoa" (Brevil., 11, 10). A alma e o corpo entram pois, ao mesmo nível e na mesma meJida, na constituição da unidade na natureza e da pessoa humana, embora estando tão distantes uma da outra. No que se refere à alma, S. Boaventura prefere a definição platónica que faz dela o motor do próprio corpo, à aristotélica, que a considera como enteléquia ou forma perfeita do corpo (1b., 11, 9). Mas dado que a alma é não só uma forma natural, mas também uma substância, e uma substância espiritual é separável do corpo, segue-se que ela é, por natureza, incorruptível e imortal. O seu nascimento não é devido à acção duma forma natural, mas à criação 274 directa de Deus. O seu destino é alcançar a beatitude em Deus, pelo que pode ser definida como uma "forma beatificável" (Ib., 11, 9).
S. Boaventura preocupa-se com o garantir ao homem, no campo do conhecimento, a capacidade de iniciativa, e, no campo prático, a liberdade. Contra a identificação do Intelecto agente com Deus, sustentada por Alexandre de Hales e João de Ia Rochelle, afirma a oportunidade de reconhecer o poder activo que Deus concedeu à alma humana. "Se bem que esta solução, diz ele (Opera, ed. Quaracchi, 11, 568 b) afirme a verdade e esteja de acordo com a fé católica, não é, todavia, oportuna (a,d propositum): já que à nossa alma foi dada a possibilidade de outros actos; e Deus, embora sendo o agente principal nas acções de qualquer criatura, deu, todavia, a alguns dos seres uma força activa, que os conduz às acções que lhe são próprias". Ainda que falando como Aristóteles do intelecto possível e do intelecto agente, S. Boaventura considera-os como duas partes da alma, dois aspectos do intelecto humano. No domínio prático o homem é livre, porque deve merecer a beatitude e não há mérito sem liberdade. A liberdade pertence à natureza da vontade e de nenhum modo lhe pode ser arrebatada, ainda que se torne miserável pela culpa e escrava do pecado. A liberdade não é um instinto natural, mas supõe a deliberação e o arbítrio. A sua essência consiste na possibilidade da escolha, a qual é sempre escolha de indiferença, pois supõe que a vontade possa, em cada caso, decidir-se por uma ou por outra de duas alternativas opostas. Mas dado que esta indiferença pressupõe uma deliberação prel-iminar, à qual se junta a decisão da vontade, o livre arbítrio é simultâncamente uma faculdade da razão e da vontade (Brevil., 11, 9). 275 A livro escolha do homem é guiada e iluminada pela sindérese 1. S. Boaventura aceita de Aristóteles a distinção entre, intelecto especulativo e intelecto prático; mas, ainda com Aristóteles, nega que se trate de dois intelectos diferentes. "0 intelecto especulativo torna-se prático quando se une à vontade e à acção, determinando-as e dirigindo-as" (In Sent., II, dist. 24, p. 1, a. 2, q. 1). Na realidade o intelecto prático e o intelecto especulativo são a mesma faculdade: o primeiro é sómente a extensão do segundo ao domínio da acção (1b., II, dist. 39, a. 1, q. 1). Aquilo que a ciência é para o intelecto especulativo, é a consciência para o intelecto prático. "A ciência é a perfeição do nosso intelecto enquanto especu-lativo, a consciência é a disposição (habitus) que aperfeiçoa o nosso intelecto enquanto prático". Mas como a actividade do intelecto especulativo pressupõe, segundo v-imos, a iluminação directa pela parte de Deus, assim também é pressuposta a mesma iluminação pela actividade do intelecto prático. "No momento da criação da alma, o intelecto recebe uma luz que é para ele um critério natural de juízo (naturale iudicatorium) que dirige o próprio intelecto no conhecer: também da mesma forma o afecto tem em si um peso (pondus) natural que o dirige no desejam (lb., 11, dist., 39, a. 2, q. 2). Este peso natural que faz mover o intelecto prático em direcção ao bem é 1 O conceito de si~rese aparece pela primeira vez em S. Jerónimo (Comm. in Ezechiele, in P. L., 25.o, cãI. 22) como a "faísca da consciência, que não se extinguiu ne peito de Adão depois de ter sido expulso do Paraiso". Encontrase noutros Padres (Basílio, Gregório o Grande) e nos Vitorinos. Porém só em S. Boaventura e em Alberto o Magno (§ 271) se torna urna faculdade natural do juizo, que atrai o homem para o bem e lhe dá o remorso do mal.
276 a disposição nele determina pela acção iluminadora de Deus; a sindérese. "A sindérese, diz S. Boaventura (Ib., 11, dist. 39, a. 2, q. 1) é a faísca da consciência: a consciência não pode mover, incitar, estimular, senão mediante a síndérese, que é como que o seu estímulo e o seu fogo animador. Tal como a razão não pode mover senão mediante a vontade, assim também a consciência não pode mover senão mediante a sindérese". O remorso não é produzido pela consciência, mas sim pela disposição que regula a consciência, por aquela faísca que é a sindérese (1b., 11, dist. 39, a. 1, q. 1). No Itinerário, a sindérese é denominada "o ápice da mente" e consiste no último grau da elevação até Deus, aquele que imediatamente precede o rapto final. § 266. S. BOAVENTURA: A ASCESE MíSTICA O misticismo de S. Boaventura inspira--se no dos Vitorinos, entroncando também na corrente agustiniana chefiada por aqueles. O Solilóquio, diálogo entre o homem e a sua alma, insipra-se em Hugo de S. Vítor; o Itinerário da mente para Deus, que é a obra-prima mística de S. Boaventura, inspira-se em Ricardo de S. Vítor. Tal como Hugo de S. Vítor, distingue S. Boaventura três olhos ou faculdades da mente humana: o que esitá voltado para as coisas exteriores e que é a sensibilidade; o que está voltado para si próprio e que é o espírito, o que está voltado para cima de si próprio e que é a mente. Cada uma destas faculdades pode ver Deus per speculum, isto é, através da imagem de Deus reflectida nos entes criados, ou in speculo, isto é, na marca ou traço que o ser e a bondade de Deus deixam nas próprias coisas. Cada faculdade se desdobra deste modo e ficam assim determ-inadas sds potências da alma pelas quais se -passa 277 das coisas ínfimas às supremas, das exteriores às interiores, das temporais às eternas. Estas seis potências, em cuja enumeração S. Boaventura segue Isaac de Stella (§ 223), são as seguintes: o sentido, * imaginação a razão, o intelecto, a inteligência, * o ápice da mente ou faísca da sindérese. A estas seis potências da alma correspondem seis graus da ascese para Deus. O primeiro consiste na consideração das coisas na sua ordem e na sua beleza e em todos os atributos que permitem remontar à sua origem divina. O segundo consiste na consideração das coisas não em si próprias, mas na alma humana que delas apreende as espécies que purifica, abstraindo-as das condições, sensíveis, com * faculdade do juízo. No terceiro grau contempla-se * imagem de Deus reflectida nos poderes naturais da alma: a memória, o intelecto e a vontade. No quarto grau contempla-se Deus na alma iluminada e aperfeiçoada pelas três virtudes teologais. No quinto grau contempla-se Deus directamente no seu primeiro atributo que é o ser. No sexto grau contempla-se Deus na sua máxima potência que é o bem, pelo qual Deus se difunde e se articula na Trindade. Com este sexto grau termina a investigação mística, mas não a ascese mística. À alma que já percorreu os seis graus da investigação "
resta únicamente transcender e superar não só o mundo sensível, mas também a si própria". Neste ponto, necessita abandonar todas as operações intelectuais e projectar em Deus todo o afecto. "Pois que aqui nada pode a natureza, e bem pouco a actividade humana, pouca importância se deve dar-se à investigação, à eloquência, às palavras, ao estudo, à criatura, e muito à piedade, à alegria interior, ao dom divino, ao Espírito Santo, isto é, à essência criadora, Pai, Filho e Espírito Santo" (Itin., 7). Esta condição de êxtase (excessus mentis) é descrita por S. Boaventura com as palavras do Pseudo-Dio278 nísio (De myst. theol., 1, 1) e é definida como um estado de douta ignorância, na qual a escuridão dos poderes cognosciltivos humanos se transfornia em luz sobrenatural. "0 nosso espírito é arrebatado acima de si mesmo, na escuridão e no êxtase, por uma espécie de dou-ta ignorância" (Brevil., V, 6). O êxtase não é portanto um estado intelectual, mas sim um estado vital: é a união viva do homem com o criador, união pela qual o homem pode participar na vida de Deus e conhecer a essência. NOTA BIBLIOGRÃFICA § 260. Os dados biográficos do texto estão conforme as investigações de PELSTER, Literargeschichtlíche Problem im Anschluss an die Bonaventuraausgabe, in "Zeitschrift für kotholische Theologie", Innsbruck, 1924, vol. 48, p. 500-532, Das obras de S. Botaventura há a edição feita pelos padres de Quaracchi, 10 volumes e um de indices, Quaracchi, 1882-1902. Outras edições: Breviloquium, Itinerarium mentis in Deum, De reductio,n,e artium ad theologiam, Quaracchi, 1911; Collationes in Hexaêmeron, ed. Delorme, Quaracchi, 1934; Opera teologica selecta, Quaracchi, 1934-1949; Questions dispputées, De caritate, De novisimis, ed. Glorieux, Paris, 1950. GILSON, La phil. de St. B., Paris, 1924, 1953 3 (COM bibl.); STEFANINI, Il problema religioso in PTatone e S. Bonaventura, Turim, 1934; BRETON, St. B., Paris, 1943; LAzZARINI, S. Bonaventura, filosofo e mistico del cristianesimo, Milão, 1946 (com bibl.). § 261. Acerca das relações entre fé e ciência: ZIESCHE, Die h1. B. Lehre von der logisch-psychologischen analys-, des Glaubensaktes, Breslau, 1908. § 262. Sobre a doutrina do conhecimento: LuycKx, in "Beitrãge", XXM, 3-4, 1922; DADY, The Theory of KnowIedge of St. B., Washington, 1939. § 263. Sobr-@ -a teologia e a metafisica: DANIELS, in "Beitrãge", VII, 1-2, 1909, p. 38-40, 132-156; RoSENMOLLEE, in "Beitrãge", XXV, 3-4, 1925; BISSEN, Llexemplarisme divin seion St. B., Paris, 1931; ROBERT, Hy@-morphisme et devenir chez St. B., MontreaL, 1936; 279 TAVARD, Transi~ and Permanence. The Nature of Theology According to St. B., Saint Bonaventure (New York), 1954.
§ 2644. Sobre a filosofia da luz: BAEumKER, Wítelo, in "Beitrãgc", 111, 2, 1908, p. 394-407. § 265. Sobre a antr~ogia: LUTZ, in "Beitráge", VI, 4-5, 1909; 0- DONNFL, The Psychology of St. B. and St. Thom" Aquinas, Washingtm, 1937. § 266. Sobre o misticism<>: GRONEWALD, Fra"iskanische Mystik, Mónaco, 1931; PRENTicE, The Psychology of Love According to St. B., Saint Bonaventura (New York), 1951, 19572 280 íND1CE TERCEIRA PARTE FILOSOFIA ESCOLÃSTICA I-AS ORIGENS DA ES0OI@ÃST1CA
... 9
§ 173. Carácter da Escolástica ... ... 9 § 174. O renascimento carolíngio ... ... 17 § 175. Henrique e Remigio de Auxerre 21 Nota bibliográfica ... ... ... ... 23 II - JOÃO
ESCOTO ERIGENA
... ... ...
27
§ 176. A personalidade histórica ... ... 27 § 177. Vida e Obra ... ... ... ... ... 28 § 178. Fé e Razão ... ... ... ... ... 3!p § 179. As quatro naturezas ... ... ... 32 § 180. A primeira natureza: Deus ... 34 § 181. A segunda natureza: o Verbo ... 36 § 182. A terceira natureza: o Mundo ... 37 § 183. O conhecimento humano ... ... 40 § 184. Divindade do homem ... ... ... 41 § 185. O mal e a liberdade humana ... 44 § 186. A lógica ... ... ... ... ... ... 46 Nota bibliográfica ... ... ... ...
48
281 DIALr@, § 187. § 188. ANSEI, § 189. § 190. § 191. § 192. § 193. § 194. § 195. § 196. § 197. § 198. § 199. CTICOS E ANTIDIAL1,=ICOS Gerberto ... ... ... ... ... ...
49 49 51 55 57 57 58 60 61 65 67 68 70 73 74 76 78 V_A DIS SAIS § 200. § 201. § 202. § 203. VI - ABE §204. §205. §206. §207. §208. §209. §210. §211. CUSSÃO SOBRE OS UNIVER- ... ... ... ... ... 81 o problema e o seu significado @@ 4.f_;
... ... 81
Dialécticos e antidialécticos ... Nota bibliográfica ... ... ... ... MO DE AOSTA ... ... ... ... A figura histórica ... ... ... Vida e Obra ... ... ... ... ... s - ... 85
... ... ... r-?-scelino
... ... ... ...
Guilherme de Champe-aux ... ... 88 o tratado "de Generibus et
speelebus" ... ... ... ... ... ... 89 Nota bibliográfica ... ... ... ... 90 LRDO ... ... ... ... ... ... --- 91 r e e Razão
... ... ... ... ...
A existência de Deus
... ... ...
A essência de Deus
... ... ...
A Criação
... ... ... ... ...
A figura histõrica ... ... ... ... 91 -ida e Escritos ... 92 ... ...
... ... ...
95
A Trindade
... ... ... ... ...
o o ... ... ... Razão e Autoridade ... ... ... 97 O universal como discurso ... ... 98 O acordo entre a filosofia e a 1. X
... 100
A Liberdade ... ... ... ... ... Presciência e predestinação ... o ai
. ... ... ...
A Alma ... ... ... ... ... ... r~ aç o ... ... ... ... A Trindade Divina Unidade Divina ... ... ... 105 283 Not- biblio ráfica ... ... ... ... 282 § 212. §213. §214. VII-A ESC §215. §216. §217. §218. §219. §220. viu -o MIS
... ... ... 102 A
§ 221. § 222. Deus e o mundo ... ... ... ... 106 108 110 112 115 115 123 129 135 138 142 146 149 149 151 § 223. § 224. § 225. § 226. § 227. § 228. § 229. IX - A SIS § 230. § 231. X-A FIL § 232. § 233. Isaac de Stella 155 156 160 164 166 167 169 172
... ... ... ...
175 175 177 181 183 183 187 O homem
... ... ... ... ...
Hugo de S. Victor* Razão e Fé Hugo de S. Victor: A Teologia Hugo de S. Victor: A Antropoloma ... ... ... A Êtica ... ... ... ... ... ... Nota bibIioLyráfica ... ... ... ... OLA DE CHARTRES
... ... ...
O naturalismo chartrense ... ... Gilberto de ia Porrêe, ... ... ... T-5- A. Salisbúria Hugo de S. Victor: O Misticismo Ricardo de S. Victúr: A Teologia Ricardo de S. Victor- A Antroolo-ia Mistica k Nota bibliogrãfica ... ... ... ... ... ... ... ... Alano de Lille
... ... ... ...
TEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA Sentenças e sumas ... ... ... T->.A,- T-1-1O Panteismo: AmaIrico de Bena e Davi-d de Dinant ... ... ... Joaauim de Flore ... ... ... ... Nota biblio--%fica
.. ...
TICIS O ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Nota biblio@ráfica OSOFIA ÁRABE
. ... ... ... ... ... ...
Caracteres do misticismo medieval ... ... ... ... ... ... Caracíceristicas e origens ... ... Al-Kindi ... ... ... ... ... ... Bernardo de CJáraval ... ... ... 284 285 §234. AI Farabi ... ... ... ... ... 188 §235. Avicena: a Metafisica ... ... 191 §236. Avicena: a Antropologia ... ... 198 §237. AI Gazali. ... ... ... ... ... 201 §238. Ibn-Badja ... ... ... ... ... 204 §239. Ibn-Tofail ... ... ... ... ... 205 §240. Averróis: Vida e Obra ... ... 207 §241. Averróis: FiIosofia e Religião ... 209 §242. Averróis: a Doutrina do Intelecto 211 §243. Averróis: a Eternidade do Mundo 215 Nota bibliográfica ... ... ... ... 219 XI -A FILOSOFIA JUDAICA
... ... ... 223
§244. A cabala ... ... ... ... ... ... 223 §24,5. Isaque Israeli ... ... ... ... 225 §246. Saadja ... ... ... ... ... ... 226 §247. Ibn-Gebiroil: Matéria e Forma ... 227 §248. IbnGebirol: a Vontade ... ... 228 §249. Reacção contra a Filosofia ... 230 §250. Maimónidas: a Teologia ... ... 231 §251. Maimõnidas: a Antropologia ... 235 Nota bibliográfica ... ... ... ... 238 286 XH --A POLI=CA CONTRA O ARISTOTELISMO ... 2@
... ... ... ... ... ... ...
§ 252. As traduções latinas de Aristóteles ... ... ... ... ... ... ... 24 § 253. Guilherme d'Auvergne ... ... ... 2@ § 254. Alexandre de Hales ... ... ... 2@ § 255. Roberto Grossetê te: A Teologia 2,1 § 256. Roberto Grossetête: A Física ... 2,1 § 257. João de ia Rochelle ... ... ... 2,1 258. Vicente de Beauvaís Nota bibliográfica ... ... ... ...
... ... ... 2! 2!
XIIII
S. BOAVENTURA
... ... ... ... , - 21
§ 259. O regresso a Santo Agostinho ... 21 § 260. Vida e Obra ... ... ... ... ... 21 § 261. Fé e Ciéncia ... ... ... ... ... 21 § 262. O conhecimento ... ... ... ... 2 § 263. Metafisica e Teologia ... ... ... 2 § 264. A física da luz ... ... ... ... 2 § 265. A antropologia ... ... ... ... 2 § 266. A ascese mística ... ... ... ... 2 Nota bibliográfica ... ... ... ... 287
2
História da Filosofia Quarto volume Nicola Abbagnano DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO: ÂNGELO MIGUEL ABRANTES. HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME IV TRADUÇÃO DE: JOSÉ GARCIA ABREU CAPA DE: J. C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 1970 TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa XIV ALBERTO MAGNO § 267. A OBRA DE ALBERTO MAGNO Chegada ao ocidente latino através das especulações árabe e judaica, a obra de Aristóteles pareceu, à primeira vista, estranha à tradição originária da escolástica. O primeiro resultado do seu aparecimento foi, como vimos, o entrincheiramento da tradição escolástica na sua posição fundamental, o ,regresso à doutrina autêntica daquele que fora até então o inspirador e o guia da investigação escolástica, Santo Agostinho. Este regresso provoca um trabalho de revisão crítica e de sistematização das doutrinas escolásticas fundamentais, o qual alcança a sua máxima expressão na obra de S. Boaventura. São utilizadas neste trabalho doutrinas particulares e sugestões especulativas do aristotelismo, sem que se faça a mínima concessão aos pontos
básicos do próprio aristotelismo e ao espírito que os anima. Paralelamente, as autoridades eclesiásticas advertem o perigo contido na nova corrente e procuram interromper-lhe o caminho com proibições e limitações frequentemente repetidas 1. Mas esta situação modifica-se quando o aristotelismo encontra o homem que lhe saberá dar o direito de cidadania na escolástica latina. Este homem é Alberto Magno. Aquilo que Boécio fizera para o mundo latino do século VI, dando-lhe a possibilidade de se acercar de Platão e Aristóteles; aquilo que Avicena fizera para os muçulmanos do século XI oferecendo-lhes o pensamento de Aristóteles e dos Gregos, fê-lo Alberto Magno para a escolástica latina do século XIII, oferecendo-lhe a completa enciclopédia científica de Aristóteles, numa exposição que faz com que o pensamento do Estagirita perca aquele carácter de estranheza que o revestia aos olhos dos escolásticos latinos. Através da imensa e paciente obra de Alberto Magno, abre-se a possibilidade para que o aristotelismo se insira como um ramo vital do tronco da escolástica latina, tal como havia vivido e prosperado nas escolásticas muçulmana e judaica. Alberto Magno descobre e explora pela primeira vez o caminho mediante o qual os pontos básicos do pensamento aristotélico :L Esta proibição foi estabelecida por quatro vezes durante a primeira metade do século XIII. Em 121.O aparece no Concílio provincial de Paris a primeira proibição das obras de Aristóteles e seus comentários. Em 1215, Roberto de Courçon legado pontifício, renova as proibições. Em 1231, Gregório XI proíbe a Física e a Metafísica de Aristóteles e nomeia uma comissão -composta por Guilherme de Auxerre, Simão d'Authie e Estêvão de Provins para revisão dos textos. Em 1245 esta proibição passou a vigorar também na Universidade de Toulouse. Porém já em 1252 se tornou obrigatório para os candidatos de nacionalidade inglesa o conhecimento de De anima, e em 1255 tal obrigação foi imposta a todos os candidatos e para todas as obras de Aristóteles. DENIFLECI-1ATELAIN, Chartularium Universitatis Parisiensis, 1, 70, 78-79, 138, 227. poderão servir para uma sistematização da doutrina escolástica, sem atraiçoar nem abandonar os resultados fundamentais da tradição. Torna-se claro, com Alberto Magno, que o aristotelismo não só não torna impossível a investigação escolástica, isto é, a compreensão filosófica da verdade revelada, mas constitui o fundamento seguro de tal investigação e oferece o fio condutor que permitirá ligar entre si as doutrinas fundamentais da tradição escolástica. Com a sua obra, Alberto Magno anunciou esta possibilidade; mas só a realizou parcialmente. Ã sua sistematização, falta a clareza e a profundidade de um resultado definitivo. Um dos mais perspicazes dos seus críticos contemporâneos, Roger Bacon (Opus minus, ed. Brewer, p. 325), acertadamente assinalava já, falando do enorme sucesso de Alberto Magno, a deficiência filosófica da sua obra. "Os escritos deste autor estão cheios de erros e contém uma iinfinidade de coisas inúteis. Entrou muito jovem na ordem dos pregadores; nunca ensinou filosofia, nunca pretendeu ensiná-la em nenhuma escola; nunca frequentou nenhuma Universidade antes de se tornar teólogo; nem teve possibilidade de ser instruído no seio da sua ordem, já que ele é, de entre os seus irmãos, o primeiro mestre de filosofia". Na realidade, o aristotelismo apresenta-se-lhe como um todo confuso, no qual não sabe distinguir o pensamento original do mestre daquilo que lhe foi acrescentado
pelos intérpretes muçulmanos. Os erros históricos de Alberto Magno são frequentes: considera Pitágoras como um Estóico, crê que Sócrates era Macedónio, que Anaxágoras e EmpédocIeseram oriundos da Itália, chama a Platão "prínceps stoicorum", e assim sucessivamente. Por outro lado, não chegou a separar-se completamente do neoplatonismo agustiniano, do qual admite uma doutrina típica: a concepção da matéria, não como simples potencialidade ou privação de forma, mas como dotada duma certa actualidade consistente na inchoatio formae: a qual, como ele diz, "não é a coisa nem parte da coisa, mas é semelhante ao ponto, que não é a linha nem parte da linha mas sim o seu princípio incoativo" (De natura et origine aninwe, 1, 2). Finalmente, e isto é ainda mais grave, Alberto Magno não fixou claramente o centro especulativo da sua investigação, não sublinhou com vigor suficiente o princípio segundo o qual o aristotelismo deve ser reformado para servir de fundamento à sistematização filosófica da revelação cristã. Por todas estas razões, a sua obra teria ficado como uma simples tentativa, não fora ter sido retomada e completada por S. Tomás de Aquino. § 268. ALBERTO MAGNO: VIDA E OBRA Alberto, denominado Magno, pertencia à família dos condes de BolIstãdt e nasceu em Lavingen, na Suábia em 1193, ou, segundo outros, em 1206 ou 1207. Estudou em Pádua, onde conheceu o geral dos dominicanos, Giordano o Saxão, por influência do qual ingressou naquela ordem. As palavras de Roger Bacon acima mencionadas, excluem a hipótese de ele ter seguido estudos regulares. Entre 1228 e 1245 ensinou em vários conventos dominicanos. Em 1245 torna-se mestre de teologia, em Paris; e foi neste período que teve como aluno S. Tomás de Aquino. Em 1248 foi chamado a Colónia, para ensinar na Universidade que acabava de ser fundada, e para aí o seguiu S. Tomás. Entre 1254 e 1257 ocupou o cargo de provincial dos dominicanos. Em 1256, numa viagem à corte papal de Alexandre IV em Anagni, na Itália, conheceu o livro de Guilherme de Santo Amor contra as ordens mendicantes e a doutrina de Averróis sobre a unidade do intelecto. De 1258 a 1260 voltou a ensinar em Colónia, após o que, durante algum tempo, foi bispo de Ratisbona e desempenhou numerosas missões da sua ordem e da Igreja. Em 1269 ou 1270 voltou para Colónia, onde morreu em 15 de Novembro de 1280. A obra de Alberto Magno é vastíssima: abrange 21 volumes in folio na edição Jammy e 38 volumes in-4. na edição Borgnet. Dizia expressamente, em todas as ocasiões, que só queria expor a opinião de Aristóteles; de facto, a sua obra segue fielmente os títulos e as divisões da obra aristotélica, da qual, embora não citando o texto, faz uma exposição intercalada de comentários e digressões. Alberto Magno divide a filosofia em três partes: filosofia racional ou lógica, filosofia real, que tem por objecto aquilo que não for obra humana, e filosofia moral, que tem por objecto as acções humanas. Os seus escritos de lógica consistem na exposição dos escritos de Aristóteles, dos quás também utilizam os títulos. Divide a filosofia real em física (e também aqui utiliza os títulos e a ordem das obras aristotélicas); matemática (a cujo grupo pertence uma só obra, Speculum astronomiae, de autenticidade duvidosa); e metafísica, à qual pertencem a Metafísica e uma ampla paráfrase do Liber de causis. Ã filosofia moral pertencem os dois Comentários à Ética e à Política.
Além destas obras que repetem o traçado da obra aristotélica, Alberto Magno foi ainda autor de escritos teológicos: um comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, uma Sumina de creaturis, uma Summa theologiae, um comentário ao Pseudo-Dionísio, um Comentário ao Antigo e Novo Testamento. Contra a doutrina averroística, compôs ainda a obra De unitate intellectus. Este último e a Metafísica pertencem provàvelmente aos anos 1270-1275. Todo o comentário aristotélico foi composto por 11 Alberto Magno entre o seu quinquagésimo e septuagésimo ano de idade. Dissemos já que Alberto Magno não distingue, ou distingue mal, entre o pensamento de Aristóteles e o dos seus intérpretes muçulmanos. Destes intérpretes, é Avicena aquele que mais o influencia; serve-se também amplamente da obra de Maimónides para a crítica e a correcção das teses muçulmanas. § 269. ALBERTO MAGNO: FILOSOFIA E TEOLOGIA O trabalho a que Alberto Magno se dedica é o de expor o pensamento de Aristóteles. "Tudo aquilo que eu disse, disse-o como conclusão da Metafísica, e de acordo com as opiniões dos peripatéticos: quem quiser discutir o que eu disse leia atentamente os seus livros e dirija-lhes, não a mim, os louvores ou as críticas que mereçam". E no final do livro Acerca dos animais: Eis o fim do livro sobre os animais; com ele termina toda a nossa obra de ciência natural. Limitei-me nesta obra a expor, o melhor que mo foi possível, aquilo que os peripatéticos disseram; e ninguém poderá nela encontrar o que eu próprio penso em matéria de filosofia natural" . Que esconderá verdadeiramente esta fidelidade de Alberto Magno ao aristotelismo, tão energicamente proclamada e frequentemente repetida? Evidentemente, que a convicção de que o aristotelismo não é somente uma filosofia, mas a filosofia, a obra perfeita da razão, o termo último do saber humano. Esta admiração por Aristóteles, que Averróis (§ 241) explicitamente proclamava na sua obra, é o pressuposto subentendido na posição de Alberto Magno. Este pressuposto leva-o precisamente a separar com nitidez o domínio da filosofia do da teologia. "Há quem pense, diz ele 12 ((Met., XI, 3, 7), seguir o caminho da filosofia e, na realidade, confunde a filosofia com a teologia. Mas as doutrinas teológicas não coincidem, nos seus princípios, com as da filosofia: a teologia fundamenta-se, não na razão, mas na revelação e na inspiração. Não podemos pois discutir sobre questões teológicas na filosofia" . E ainda, no De unitate (cap. l. ): "É necessário verificar com razões e silogismos qual a opinião que devemos aceitar e defender. Não falaremos portanto daquilo que ensina a nossa religião, nem admitiremos nada que não possa ser demonstrado por intermédio dum silogismo". Deste modo, o reconhecimento do aristotelismo como a autêntica filosofia, leva Alberto Magno a separar nitidamente a filosofia, que procede por razões e silogismos, da teologia, que se fundamenta na fé. Servindo-se, por um
momento, da linguagem de Santo Agostinho, afirma serem dois os modos da revelação de Deus ao homem. O primeiro é o de uma iluminação geral, isto é, comum a todos os homens, e é deste modo que Ele se revela aos filósofos. O segundo é o de uma iluminação superior destinada a fazer intuir as coisas sobrenaturais; e é nesta iluminação que se baseia a teologia. A primeira luz transparece nas verdades conhecidas por si mesmas, a segunda, nos artigos de fé (Sum. theol., 1, 1, q. 4, 12). A teologia é a fé que, segundo as palavras de Santo Anselmo, vai em busca do intelecto e da razão (lb., 1, 1, q. 5). O seu impulso reside na piedade religiosa, e tem, com efeito, por objecto tudo aquilo que se relaciona com a salvação da alma (lb., 1, 1. q. 2). Mas a fé, que no domínio religioso implica adesão e anuência e é a via que conduz à ciência das verdades divinas, é, no domínio filosófico, pura credulidade alheia a qualquer ciência. E isto porque a ciência se baseia na demonstração causal e não em razões prováveis, e a fé só 13 pode ter o valor de uma opinião provável (Ib., 1, 3, q. 15, 3). Era a primeira vez, na escolástica latina, que se estabelecia tão nitidamente a separação entre filosofia, e teologia. O domínio da filosofia fica reduzido ao da demonstração necessária. Para além dele existirá também uma ciência, mas uma ciência baseada nos princípios admitidos pela fé, e que por isso obtém a sua validade da adesão e da anuência do homem à verdade revelada. O aparecimento da autonomia da investigação filosófica coincide em Alberto Magno com a exigência duma investigação naturalista baseada na experiência. "Das coisas que aqui expomos, diz ele numa obra sobre botânica (De vegetalibus, ed. Jessen, 339), algumas delas foram por nós comprovadas com a experiência (experimento), enquanto que outras são mencionadas nas obras daqueles que, não tendo delas falado com ligeireza, antes as comprovaram também com a experiência. E de facto, só a experiência concede a certeza em tais assuntos, pois que, acerca de fenómenos tão particulares o silogismo nada vale". § 270. ALBERTO MAGNO: METAFíSICA Aceitando o princípio de Aristóteles segundo o qual aquilo que é primeiro em si não é primeiro para nós, Alberto Magno considera que a existência de Deus pode e deve ser demonstrada, mas que tal demonstração terá de ser feita a partir da experiência em vez de ser a priori. Reproduz, pois, as provas cosmológicas e causais que a tradução escolástica. havia elaborado (S. theol., 1, 3, q. 18). Deus é o intelecto agente universal que está perante as coisas na mesma relação em que o intelecto do artífice está para a coisa produzida, desde que este último produza as coisas por si próprio e não por 14 uma disposição proporcionada pela arte (De causis, 1, 2, 1). Como intelecto, Deus tem em si mesmo as ideias, isto é, as espécies ou razões de todas as coisas criadas, mas essas ideias não são distintas dele, ainda que se diferenciem em relação às próprias coisas; já que ele só se conhece a si próprio e duma forma imediata, sem nenhuma ideia ou espécie
intermediária (Summa theol., 1, 13, q. 55, 2, a. 1-2). Daqui resulta que sejam três os géneros das formas: o primeiro é o das formas que existem antes das coisas existirem, isto é, no intelecto divino como causa formativa delas; o segundo é o das formas que flutuam na matéria; o terceiro é o das formas que o intelecto, através da sua acção, separa das coisas (De nat. et or. animae, 1, 2). Estes três géneros de formas constituem os três tipos de universais anie rem, in re e post rem, solidamente admitidos pelo realismo escolástico. Mas Alberto Magno acrescenta uma limitação importante: o universal, enquanto universal, só existe no intelecto. Na realidade, está sempre unido às coisas individuais que são as únicas que existem. Na realidade, o universal só existe enquanto forma que constitui com a matéria as coisas individuais. É a essência da coisa, essência individual ou comunicável a outras coisas. É ainda o fim da geração ou composição da substância que a matéria deseja realizar, e é quem dá o ser e a perfeição (o acto) aquilo em que se encontra. O universal é pois, também, a quididade, isto é, a essência substancial da coisa, que é sempre determinada, particularizada e própria. Neste último sentido de quididade, o universal é a forma, que o intelecto separa da matéria e considera na sua pura universalidade, abstraindo-a das condições individualizadoras (De intellectu et intellegibili, 1, 2, 2). Estas condições individualizadoras residem no quod est, que é a existência, o substrato ou sujeito 15 do ser. Com efeito, Alberto Magno aceita a doutrina da distinção real entre a essência e a existência. Todas as criaturas são compostas por uma quídidade ou essência (quod est) e por um sujeito ou sustentáculo de tal quid~ "0 quod est é a forma total; o quod est é o próprio todo a que pertence a forma" (Sum. de creat., 1, 1, q. 2, a. 5). Esta composição é também própria das criaturas espirituais, às quais Alberto Magno nega por vezes a composição de matéria e forma, opondo-se a Avicebrão e aos escolásticos agustinianos. Ora o princípio da individuação é precisamente o quod est, o sujeito da essência; a qual, pelo contrário, é participável e comum a outras coisas. E, dado que nas coisas corpóreas o quod est é a matéria, pode dizer-se que nelas o princípio individualizante é a matéria, ainda que não enquanto matéria, mas enquanto que, precisamente, sustentáculo da essência, substracto real da coisa (S. th., 11, 1, q. 4, a. 1-2). Mas o ponto no qual o aristotelismo parecia inconciliável com a revelação cristã era a eternidade do mundo. Os peripatéticos muçulmanos haviam elaborado rigorosamente o conceito da necessidade absoluta do ser enquanto ser; e deste princípio tinham deduzido, em primeiro lugar, a necessidade da própria criação pela parte de Deus, enquanto inerente à sua essência autocognoscente, e em segundo lugar e por consequência, a eternidade do ser criado. O único que, de certa maneira, havia conseguido justificar a contingência do acto criador e do ser criado, e portanto o início temporal do mundo, embora mantendo intactos os pontos básicos do aristotelismo, tinha sido Moisés Maimónides. É precisamente a ele (a quem chama Rabi Moisés ou Moisés Egípcio) que se refere explicitamente Alberto Magno, seguindo-lhe cuidadosamente as pegadas. Maimónides tinha justificado o início do mundo no
16 ALBERTO MAGNO tempo mostrando a contingência do acto criador e, portanto, a não necessidade do ser criado. A mesma via é seguida por Alberto Magno. A prova fundamental por ele aduzida é a da diversidade dos efeitos que derivam de uma única causa criadora: é impossível explicar esta diversidade a não ser recorrendo à livre vontade divina. "Se se admite que a totalidade dos corpos foi trazida ao ser mediante escolha e vontade, torna-se, possível a grande diversidade que ela apresenta. Demonstrámos já que o ser que actua por liberdade é livre para produzir diversas acções. A diversidade que notamos nas órbitas dos céus não terá, portanto, outra causa que não seja a Sabedoria que ordenou e préconstituiu esta diversidade segundo uma razão ideal" (Phys., VIII, 1, 13). A este argumento tirado de Maimónides, acrescenta Alberto Magno o que deriva da consideração da diversidade do ser criado em relação ao ser de Deus, Não podemos aqui utilizar a mesma escala de medida. Se a eternidade é a medida de Deus, o tempo deve ser a medida do mundo. Se Deus precede o mundo enquanto é a sua causa, o mundo não pode ter a mesma duração de Deus. Esta -razão parece-lhe ser suficientemente forte para justificar a opinião de que o mundo tenha sido criado, mais forte do que as razões aduzidas por Aristóteles para defender as teses opostas; embora não suficientemente fortes para valerem como demonstração. A conclusão é que "o início do mundo pela criação não é uma proposição física e não pode ser demonstrada fisicamente" (Phys., VIII, 1, 14). É todavia certa a não necessidade do ser criado. A criação de Deus é absolutamente livre, e é um acto de vontade cuja única causa é ele próprio (S. th., 1, 20, q- 79, 2, a. 1, 1-2). O acto criador não implica uma relação necessária de Deus com a coisa criada, mas somente uma dependência da coisa criada para 17 com Deus, a qual coisa criada começa a ser a partir do nada (1b., a. 4). § 271. ALBERTO MAGNO: A ANTROPOLOGIA Alberto Magno negou a composição hilomórfica das substâncias espirituais: não considera que a alma seja composta de matéria e forma. Reconhece, porém, a composição, própria de todas as criaturas, de existência e de essência, de quod est e quo est. O homem, que tal como todos os outros seres sublunares, participa na natureza corpórea, distingue-se dos outros seres pela forma que anima o seu corpo, isto é, pela alma. Pela sua função de determinar e individuar no homem a matéria corpórea, a alma é a forma substancial do corpo (S. th., 11, 12, q. 68). Como acto primeiro do corpo, a alma conduz o corpo ao ser; como acto segundo, condu-lo a agir (S. de creat., 11, 1, q. 2, a. 3). As três potências da alma, vegetativa, sensitiva e racional, constituem uma única forma e uma única actividade (lb., H, 1, q. 7, a. 1). Alberto Magno recusa a doutrina da pluralidade das formas, a qual, pelo contrário, era admitida pelos agustinianos da sua época. Mas o problema fundamental da antropologia de Alberto Magno continua a ser o
mesmo do aristotelismo, isto é, o problema do intelecto. Alberto Magno, tem de combater a teoria típica do aristotelismo muçulmano, a da unidade do intelecto humano, teoria que exclui a multiplicidade das almas depois da morte e, por consequência, a imortalidade individual. O principal argumento a favor desta tese era, como vimos (§ 242), que as almas eram individuadas pelos corpos aos quais se uniam e que, portanto, toda a individuação cessa com a dissolução do corpo. Admitindo com Avicebrão uma matéria espiritual individuadora da alma, en18 quanto tal, os contemporâneos de Alberto Magno (Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste) conseguem evitar o argumento averroístico. Mas Alberto Magno nega a existência de uma matéria espiritual; não pode, portanto, recorrer à matéria para justificar a individualidade da alma separada. Tem de recorrer ao quod est, ao substrato da essência: o quod est desempenha nos seres espirituais a mesma função Índividualizante que a matéria desempenha nos seres corpóreos. "0 princípio, que faz subsistir a natureza comum e a determina ao indivíduo (ad hoc aliquid), tem a propriedade de um princípio material (principium hyleale); pelo que muitos filósofos lhe dão o nome de hyliathis, derivado da palavra hyle-" (De causis, 11, 2, 118. A palavra hyliathis encontra-se adoptada no Liber de causis, cap. 9). Alberto Magno afirma o princípio segundo o qual "à excepção do ser primeiro, tudo o que existe é composto por quo est e quod est". Pode assim admitir a individualidade da alma como tal, uma individualidade conexa com a própria essência da alma, inseparável, portanto, dela mesmo para além da morte. Os intelectos que Alberto Magno distingue, seguindo sobretudo Avicena, são partes da alma humana. O intelecto agente deriva do quo est, isto é, da essência da alma, que é acto; a inteligência possível deriva do quod est, isto é, da existência da alma, que é potência (Sum. de creat., 11, 1, q. 52, a. 4, 1). O princípio de individuação do intelecto é portanto o intelecto em potência, o qual individualiza o intelecto agente. Este último é como que uma luz, imagem e semelhança da Causa primeira. Em virtude do que, a alma abstrai as formas inteligíveis das condições materiais e redu-las ao seu ser simples (S. Th., 11, 15, q. 93, 2). O intelecto agente e o intelecto potencial estão unidos através delas. Constituem o intelecto formal que, por sua vez, é simples ou composto. O inte.19 lecto composto ou tem por objecto os primeiros princípios, e é então dito inato, ou é intelecto adquirido, intellectus adeptus, enquanto se adquire através da investigação, da doutrina e do estudo (S. th., 11, 15, q. 93, 2). Chama também especulativo ao intelecto adquirido (De unit. intel. contra Aver., 6). O mesmo intelecto formal, quando dedica a sua luz à acção, em vez de ser à especulação, e ao bem, em vez de ser à verdade, é o intelecto prático (Suni. de creat., 11, 1, q. 61, a. 4). É pelo intelecto adquirido ou especulativo que o homem se torna, de certa maneira, semelhante a Deus, porque realiza a conjunção mais estricta com o intelecto agente: no qual já não existe a diferença entre o acto de comprender e a coisa compreendida, e onde a ciência se identifica com a coisa conhecida (De an., 111, 2,
18). Dado o carácter espiritual e divino da sua função intelectual, a alma não depende do corpo; pelo que não perece com ele. Na sua actividade intelectual, ela é a causa de si mesma'e os seus próprios objectos são incorruptíveis: portanto, a morte do corpo não a afecta (De nat. et orig. animae, 11, 8). Deste modo, Alberto Magno, embora aceitando alguns pontos básicos do aristotelismo, crê haver conseguido garantir, contra as doutrinas erradas do próprio aristotelismo, a verdade fundamental do cristianismo. Os outros aspectos da sua antropologia carecem de originalidade. Atribui ao homem o livre arbítrio como uma potência especial que lhe pertence por natureza; e coloca a essência do livre arbítrio na capacidade de escolher entre as alternativas que a razão apresenta ao homem (Sum. de creat., 11, 1, q. 68, a, 2). Aproveita de Alexandre de Hales a teoria da consciência e da sindérese. A consciência é a lei racional que obriga o homem a actuar ou a não 20 actuar. A sindérese é a disposição moral determinada por essa lei, o habitus que conduz o homem ao bem e lhe dá o remorso do mal. Ás quatro virtudes cardeais que, com Pedro Lombardo, chama adquiridas, Alberto Magno junta as três virtudes infusas, fé, esperança e caridade (Summ. theol., 11, 16, q. 103, 2). NOTA BIBLIOGRÁFICA § 268. A data de nascimento de Alberto Magno é situad-i em 1193 por MICHAEL, Geschichte der dentschen Volkes vom 13 Jahrh. bis zum Ausgang des Mittelalters, 111, 1903, p. 69 e ss.; e por PELSTER, Kritische Studien zu Leben und zu den Shriften, AIberts der Grosse, 1920. 2 situada em 1206 ou 1207 por MANDONET, Siger de Brabante et Paverroisme latin au XIII.c siècle, I, Lovaina, 1911, p. 36-39; e por ENDRES, in "Historisches Jahrbuch", 1910, p. 293-304. Existem duas edições completas da obra de Alberto Magno: a de P. Jammy, Lyon, 1651 e a de Borgnet, Paris, 1890-1899, em 38 vol. in-4.1. Saíram já alguns volumes duma edição crítica organizada pelos Padres DGminicanos, Münster, 1951 e - .; outras ediç5es: De vegetalibus, ed. Jessen, Berlin, 1867; Commentari in Librum Boethii De divisione, ed. De Loê, Bonn, 1913; De animalibus, ed. StadIer, Münster, 1916-1920; Suma de creaturis, ed. Grabmann, Leipzig, 1919; Liber sex principiorum, ed. SuIzbacher, Viena, 1955. DuHEM, Système du monde, V, p. 418-468; WILMS, Albert der Grosse, Mónaco, 1930; SCHEEBEN, Albertus Magnus, Colónia, 1955; NARDI, Studi di filosofia medioevale, Roma, 1960, p. 69-150. § 269. Sobre as relações entre filosofia e teologia: HEITZ, in "Revue des Seiences phil. et théol.", 1908, 661-673. § 270. Sobre a metafísica: DANIELS, in "Beitrãge", VIIII, 1, 2, 1909, 36-37, onde se examina a atitude vacilante de Alberto, Magno perante a prova ontológica; ROHNER, in "Beitrãge", XI, 5, 1913, 45-92;
21 PELSTER, Kritische Studien zu Leben und zuden Schriften A. s. d. Gr, 1920. Sobre as relações com Platão: GAUL, in "Beitrãge", XII, 1, 1913. Sobre as relações com Maimónides: JO2L, Das Verhãltnis A.& d. Gr. zu Moses Maimonides, 1863. § 271 . Sobre a psicologia: SCI1NEIDER, in "Beitrãge", IV, 5-66, 1903, 1906. 22 XV S. TOMÁS DE AQUINO § 272. A FIGURA DE S. TOMáS DE AQUINO A obra de S. Tomás marca uma etapa decisiva da Escolástica. É ele que continua e leva ao seu termo o trabalho iniciado por Alberto Magno. Através da explicação tomista, o aristotelismo torna-se flexível e dócil a todas as exigências da explicação dogmática; e não por meio de expedientes ocasionais ou de adaptações artificiosas (segundo o método daquele), mas em virtude de uma reforma radical, devida a um princípio único e simples situado no próprio coração do sistema, e desenvolvido com lógica rigorosa em todas as suas partes. Se Alberto Magno necessitava ainda de corrigir o aristotelismo partindo de doutrinas que lhe eram estranhas, aproveitando motivos e sugestões da própria corrente agustiniana contra a qual polemizava, S. Tomás encontra na própria lógica do seu aristotelismo a maneira de situar os resultados fundamentais da tradição escolástica num sistema harmonioso e completo no seu conjunto, preciso e 23 claro nos seus detalhes. Neste trabalho especulativo, S. Tomás é ajudado por um talento filológico nada comum: para ele, o aristotelismo já não é, como era para Alberto Magno, um todo confuso formado pelas doutrinas originais e pelas diversas interpretações dos filósofos muçulmanos. Ele procura estabelecer o significado autêntico do aristotelismo, deduzindo-o dos textos de Aristóteles, vale-se dos textos árabes como fontes independentes, cuja fidelidade ao Estagirita analisa criticamente. Aristóteles aparece a S. Tomás como o termo final da investigação filosófica. Ele foi até onde a razão humana pode ir. Para além desse ponto só existe a verdade sobrenatural da fé. Integrar a filosofia e a fé, a obra de Aristóteles e a verdade revelada por Deus ao homem e de que a Igreja é depositária, -é a tarefa que S. Tomás se propõe. A realização desta tarefa supõe duas condições fundamentais. A primeira é a separação nítida entre a filosofia e a teologia, entre a investigação racional, unicamente guiada e sustentada por princípios evidentes, e a ciência que tem por pressuposto a revelação divina. Com efeito, só em virtude desta separação nítida pode a teologia valer como completamento da filosofia, e a filosofia pode valer como preparação e auxiliar da teologia.
A segunda condição é que, no próprio seio da investigação filosófica, se faça valer como critério directivo e normativo, um princípio que exprima a disparidade e a separação entre o objecto da filosofia e o objecto da teologia, entre o ser das criaturas e o ser de Deus. Estas duas condições estão liga-das entre si: dado que filosofia e teologia não podem ser separadas uma da outra, se não se separarem e distinguirem os seus objectos respectivos; nem a filosofia pode servir de preparação e auxiliar da teologia, que é o seu verdadeiro coroamento, se não inclui e faz valer em si mesma o princípio que 24 justifica precisamente esta sua função preparatória e subordinada: a diversidade entre o ser criado e o ser de Deus. Este princípio é pois, a chave da abóbada do sistema tomista. É ele que guia S. Tomás na determinação das relações entre razão e fé e no estabelecimento pela razão da regula fidei; no centrar a função cognoscitiva do homem à volta da função da abstracção; na formulação das provas da existência de Deus; no aclarar os dogmas fundamentais da fé. S. Tomás formulou este princípio na sua primeira obra, De ente et essentia, como distinção real entre essência e existência; mas é também expresso na fórmula da analogicidade do ser, da qual também se utiliza muitas vezes. Esta forma é talvez a mais adequada para exprimir o princípio da reforma radical trazida ao aristotelismo por S. Tomás. Um é o ser de Deus, outro é o ser das criaturas. Os dois significados da palavra ser não são nem idênticos nem totalmente distintos; antes se correspondem proporcionalmente, de tal modo que o ser divino implica tudo aquilo que a causa implica em relação ao efeito. S. Tomás exprime-o dizendo que o ser não é unívoco nem equívoco, mas análogo, isto é, que implica proporções diversas. A proporção é neste caso uma relação de causa e efeito: o ser divino é causa do ser finito (S. th., 1, q. 13, a. 5). S. Tomás relaciona este princípio com a analogicidade do ser afirmado por Aristóteles acerca das várias categorias. Mas em Aristóteles, é inconcebível uma distinção entre o ser divino e o ser das outras coisas; o ser aristotélico é verdadeiramente uno, o seu significado primário reside na substância (§ 73). Para S. Tomás, o ser não é uno. O criador está separado da criatura; as determinações finitas da criatura nada têm a ver com as determinações infinitas de Deus, unicamente as reproduzem de modo imperfeito e 25 demonstram a sua acção criadora. S. Tomás orientou verdadeiramente o aristotelismo numa via oposta àquela para a qual a filosofia muçulmana o tinha orientado. Esta conclui na necessidade e eternidade do ser, de todo o ser, inclusivé do mundo. S. Tomás conclui na contingência do ser do mundo e na sua dependência da criação divina. § 273. S. TOMáS: VIDA E OBRA Tomás, pertencente à família dos condes de Aquino, nasceu em Roccasecca (próximo de Cassino) em 1225 ou 1226. Iniciou a sua educação na abadia de
Montecassino. Em 1243, em Nápoles, ingressou na ordem dos dominicanos, foi depois enviado para Paris, onde foi aluno de Alberto Magno. Em 1248, quando Alberto Magno passou a ensinar em Colónia, S. Tomás seguiu-o e só voltou a Paris em 1252; comentou então a Bíblia e as Sentenças. O sucesso do seu ensino rapidamente se delineou. Mas entretanto, os mestres seculares da Universidade de Paris tinham iniciado a luta contra os frades mendicantes, "falsos apóstolos precursores do anticristo", e pretendiam que lhes fosse negada a faculdade de ensinar. Contra o seu libelo, Sobre os perigos dos últimos tempos, e contra o seu organizador, Guilherme de Santo Amor, S. Tomás escreveu o opúsculo Contra impugnantes Dei cultum et religionem. A princípio, pareceu que o Papa dava razão aos mestres seculares; porém, no ano seguinte, decidiu a disputa a favor das ordens mendicantes. S. Tomás foi então nomeado, assim como o seu amigo S. Boaventura, mestre da Universidade de Paris (1257). O livro de Guilherme de Santo Amor foi condenado e queimado em Roma, e o seu autor foi expulso de França pelo rei S. Luís. 26 Em 1259, S. Tomás deixou Paris e regressou a Itália, onde foi hóspede de Urbano IV em Orvieto e Viterbo de 1261 a 1264. Em 1265 foi-lhe dado o encargo de organizar os estudos da sua ordem em Roma. A este período de permanência em Itália pertencem as obras principais: a Summa contra Gentiles, o segundo Comentário às Sentenças, a 1 e a 11 partes da Summa theologiae. Em 1269 voltou para Paris, ocupando durante três anos a sua cátedra de mestre de teologia. Novas lutas o ocuparam nesta época. Os professores seculares, com Gerardo de Abeville e Nicolau de Lisieux, haviam retomado a luta contra as ordens mendicantes, e ele escreve então o De perfectione vitae spiritualis contra o tratado de Gerardo Contra adversarium perfectionis christianae; e o Contra retrahentes a religionis ingressu, contra o De perfectione et excellentia status clericorum de Nicolau. de Lisicux. Escreveu ainda, contra a difusão do aristotelismo averroísta, principalmente por obra de Siger de Brabante (§ 283), o De unitate intellectus contra averroístas. As quaestiones quodlibetales pertencem igualmente a este período, demonstrando a actividade polémica de S. Tomás também contra a outra corrente da Escolástica, o agustinianismo. Em 1272, perante a insistência de Carlos da Sicília, irmão de Luís IX de França, voltou a Itália para ensinar na Universidade de Nápoles. Mas em Janeiro de 1274, designado por Gregório X, partia para o Concílio de Lião. Adoeceu durante a viagem, em casa da sobrinha Francisca de Aquino. Fezse conduzir à abadia cistercience de Fossanova (próximo de Terracina) onde morreu em 7 de Março de 1274. Conservam-se três antigas biografias de S. Tomás: as de Guilherme de Tocco, Bernardo Guidone e Pedro Calo. Da sua vida se ocupa amplamente o seu aluno Bartolomeu de Lucca na sua Historia ecclesiastica nova (22. , 20-24, 39; 23. , 8-15); e 27 conservamos também as actas do processo de canonização de 18 de Julho de 1323 que contêm testemunhos sobre o carácter e a vida do santo. S. Tomás era alto, moreno, gordo, um tanto calvo, e tinha o ar pacífico e doce do estudioso sedentário. Devido ao seu carácter fechado e silencioso os condiscípulos de Paris chamavam-lhe o boi mudo. Vir miro modo conte,-mplativus, chama-lhe
Guilherme de Tocco, e efectivamente dedicou toda a sua vida à actividade intelectual. A própria vida mística, testemunhada nas actas do processo de santificação, reflecte a sua investigação e as suas meditações. Os apóstolos Pedro e Paulo vêm iluminá-lo a propósito do seu comentário sobre Isaías; vozes sobrenaturais incitam-no e louvam-no pela sua obra especulativa; a sua prece tende a obter de Deus a solução dos problemas que lhe agitam a mente. A prerrogativa de S. Tomás foi ter levado toda a vida religiosa do homem para o plano da inteligência esclarecedora. Na data da sua morte, S. Tomás tinha somente 48 ou 49 anos; mas a sua obra era já vastíssima. As actas do processo de canonização (contidas nos manuscritos 3112 e 3113 da Biblioteca Nacional de Paris) dão-nos um catálogo dos seus escritos que enumera 36 obras e 25 opúsculos; mas é muito provável que este catálogo seja incompleto. Ao período da sua primeira permanência em Paris pertencem: De ente et essentia (125253), provavelmente a sua primeira obra, o Comentário à s Sentenças (1254-56), as Quaestiones disputatae de veritate e outros escritos menores. Mas a actividade principal é a que ele desenvolve nos anos do seu regresso a Itália e da segunda permanência em Paris (1259-72). A este período pertencem: o Comentário a Aristóteles, o Commentario al Liber de causis (no qual S. Tomás pode reconhecer a tradução dos Elementos de teologia de Proclo, de que Guilherme de Moerbecke lhe tinha 28 comunicado a tradução); o Comentário a Boécio e ao De divinis nonzinibus do Pseudo-Dionísio; e, finalmente, as suas obras principais: a Sunima de veritate fidei catholicae contra Gentiles (1259-64), o segundo Comentário às Sentenças e a Summa theologiae, a sua obra-prima, cujas duas primeiras partes foram escritas em 1265-71, enquanto a terceira, até à questão 90, foi composta entre 1271 e 1273. A morte impediu-o de completar esta obra, cujo Suplemento foi acrescentado por Reginaldo de Piperno. Acrescentem-se ainda as Quaestiones disputatae e quodIffietales, que reflectem especialmente a activIdade polémica de S. Tomás contra os averroistas e os teólogos agustinianos. Dos numerosos opúsculos, os mais famosos são o De unitate intellectus contra Averroístas e o De regimine principum. O primeiro, escrito durante a sua segunda estada em Paris (por volta de 1270) é dirigido contra os averroístas latinos (§ 283). Do segundo, só podem ser-lhe atribuídos o livro 1 e os 4 primeiros capítulos do livro 11: o restante é obra de Bartolomeu de Lucca. § 274. S. TOMÁS: RAZÃO E FÉ O sistema tomista baseia-se na determinação rigorosa das relações entre a razão e a revelação. Ao homem, cujo fim último é Deus, o qual excede a compreensão da razão, não basta a investigação filosófica baseada na razão. Mesmo aquelas verdades que a razão pode alcançar sozinha, não é dado a todos alcançá-las, e não está liberto de erros o caminho que a elas conduz. Foi portanto necessário que o homem fosse instruído convenientemente o com mais certeza pela revelação divina. Mas a revelação nem anula nem torna inútil a razão: "a graça não elimina a natureza, antes a aperfeiçoa". A razão
29 natural subordina-se à fé, tal como no campo prático as inclinações naturais se subordinam à caridade. É evidente que a razão não pode demonstrar o que pertence ao âmbito da fé, porque então a fé perderia todo o mérito. Mas pode servir a fé de três modos diferentes. Em primeiro lugar, demonstrando os preâmbulos da fé, ou seja aquelas verdades cuja demonstração é necessária à própria fé. Não se pode crer naquilo que Deus revelou, se não se sabe que Deus existe. A razão natural demonstra que Deus existe, que é uno, que tem as características e os atributos que podem inferir-se da consideração das coisas por ele criadas. Em segundo lugar, a filosofia pode ser utilizada para aclarar as verdades da fé mediante comparações. Em terceiro lugar, pode rebater as objecções contra a fé, demonstrando que são falsas ou, pelo menos, que não têm força demonstrativa (In Boet. De trinit., a. 3). Por outro lado, porém, a razão tem a sua própria verdade. Os princípios que lhe são intrínsecos e que são certíssimos sendo impossível pensar que são falsos, foram infundidos pelo próprio Deus, que é o autor da natureza humana. Estes princípios derivam portanto da Sapiência divina e fazem parte dela. A verdade de razão nunca pode ser contrária à verdade revelada: a verdade não pode contradizer a verdade. Quando surge uma contradição, é sinal de que não se trata de uma verdade racional, mas de conclusões falsas ou, pelo menos, não necessárias: a fé é a regra do recto proceder da razão (Contra Gent., 1, 7). O princípio aristotélico segundo o qual "todo o conhecimento começa pelos sentidos" é utilizado por S. Tomá s para limitar a capacidade e as pretensões da razão. A razão humana pode, é certo, elevar-se até Deus, mas somente, partindo das coisas sensíveis. "Mediante a razão natural, o homem não pode alcançar o conhecimento de Deus senão através 30 das criaturas. As criaturas conduzem ao conhecimento de Deus, como o efeito conduz à sua causa. Portanto, com a razão natural só se pode conhecer de Deus aquilo que necessariamente lhe compete enquanto é o princípio de todas as coisas existentes" (S. th., 1, q. 32, a. 1). Das duas demonstrações possíveis à razão, a a priori ou propter quid, que parte da essência de uma causa para descer aos seus efeitos, e a powteriori ou quia, que parte do efeito para remontar à causa, só a segunda pode ser utilizada para o conhecimento de Deus (Ib., 1, q. 2, a. 2). Mas essa, se leva a reconhecer com necessidade a existência de Deus como causa primeira, nada diz acerca da essência de Deus. Portanto, a força da razão não consegue demonstrar a Trindade e a Encarnação, nem todos os mistérios que com esses se relacionam. Tais mistérios constituem os verdadeiros " artigos de fé" que a razão pode dilucidar e defender, mas não demonstrar; enquanto que a existência de Deus, e tudo o que acerca de Deus a força da razão consegue alcançar e demonstrar, constitui os preâmbulos da fé. Esclarecidos assim os respectivos domínios da fé e da razão, S. Tomás passa a esclarecer os correspondentes actos. Aceitando uma definição de Santo Agostinho (De praedest. Sanctorum, 2), S. Tomás define o acto da fé, o crer,
como um "pensar com anuência" (cogitare cum assensu) entendendo por "pensar" a "consideração indagadora do intelecto e o consentimento da vontade". O pensar que é próprio da fé é um acto intelectual que continua a indagar porque não chegou ainda à perfeição da visão certa. Ora, a anuência não acompanha todos os actos intelectuais desta espécie: o duvidar consiste no não nos inclinarmos nem para o sim nem para o não; o suspeitar consiste em nos inclinarmos para um lado, mas sendo tentados ou movidos por todos os pequenos sinais da outra parte; o opinar na 31 aderência a uma coisa, com receio que a contrária seja verdadeira. "Mas este acto que é o crer, diz S. Tomás (S. th., 11, 2, q. 2, a. 1), inclui a adesão firme a uma das partes; no que o crente se assemelha ao que tem ciência ou inteligência; o seu conhecimento, todavia, não é perfeito como o do que tem uma visão evidente; no que ele se assemelha ao que duvida, suspeita ou opina. E assim, é próprio do crente pensar com anuência". O assentimento implícito na fé, se é semelhante pela sua firmeza ao que é implícito na inteligência e na ciência, é diferente pelo seu móbil: dado que não é produzido pelo objecto, mas por uma escolha voluntária que inclina o homem para um lado e não para o outro. Com efeito, o objecto da fé não é "visto" nem pelos sentidos nem pela inteligência, dado que a fé, como disse S. Paulo (Ebrei, XI, 1), é "a prova das coisas que se não vêem" (S. th., 11, 2, q. 7, a. 4). Deste modo S. Tomás, embora -reconhecendo à fé uma certeza superior à do saber científico, funda essa certeza na vontade, reservando somente à ciência a certeza objectiva. § 275. S. TOMÁS: TEORIA DO CONHECIMENTO A teoria tomista do conhecimento é decalcada sobre a aristotélica. A sua característica mais original é o relevo que nela toma o carácter abstractivo do processo do conhecimento e, consequentemente, a teoria da abstracção. Comentando a passagem do De anima (111, 8, 431b) onde se afirma que "a alma é, de certo modo, todas as coisas" (porque as conhece todas), diz S. Tomás: "Se a alma é todas as coisas, é necessário que ela ou seja as próprias coisas, sensíveis ou inteligíveis-no sentido em que Empédocles afirmou que nó s conhecemos a terra com a terra, a água com a água, etc. -ou então 32 S. TOMAS DE AQUINO seja as espécies das próprias coisas. Porém a alma não é as coisas, porque, por exemplo, na alma não está a pedra mas a espécie da pedra". Ora a espécie (eidos) é a forma da coisa. Por conseguinte, "o intelecto é uma potência receptora de todas as formas inteligíveis e o sentido é uma potência receptora de todas as formas sensíveis". Deste modo, o princípio geral do conhecimento é "cognitum est in cognoscente per modum cognoscentis" (o objecto conhecido está no sujeito cognoscente em conformidade com a natureza
do sujeito cognoscente). O processo através do qual o sujeito cognoscente recebe o objecto é a abstracção. O intelecto humano ocupa uma posição intermediária entre os sentidos corpóreos, que conhecem a forma unida à matéria das coisas particulares, e os intelectos angélicos, que conhecem a forma separada da matéria. Isto é uma virtude da alma que é forma do corpo: portanto, pode conhecer as formas das coisas só enquanto estão unidas aos corpos e não (como queria Platão) enquanto estão separadas deles. Mas no acto de conhecer, abstrai-as dos corpos; o conhecer é portanto um abstrair a forma da matéria individual, e, assim, extrair o universal do particular, a espécie inteligível das imagens singulares (fanpTIUNIMIRO = C414 Mas podemos considerar a cor dum fruto, prescindindo do fruto, sem que por tal afirmemos que exista separada do fruto; também podemos conhecer as formas ou espécies universais do homem, do cavalo, da pedra, prescindindo dos princípios individuais a que estão unidas; mas sem pretender que elas existam separadas destes. Portanto, a abstracção não falsifica a realidade. Ela não afirma a separação real da forma em relação à matéria individual: permite unicamente a consideração separada da forma; e tal consideração é o conhecimento intelectual humano. É de notar que esta consideração separa a forma não da matéria 33 em geral mas da matéria individual; pois, de contrário, não poderíamos entender que o homem, a pedra ou o cavalo também são constituídos por matéria. "A matéria é dúplice, diz S. Tomás (S. th., [ q. 85, a. 1), isto é, comum e signata ou individual; comum, como a carne e os ossos, signata como esta carne e estes ossos. O intelecto abstrai a espécie da coisa natural da matéria sensível individual, mas não da matéria sensível comum. Por exemplo, abstrai a espécie do homem desta carne e destes ossos que não pertencem à natureza da espécie mas fazem parte do indivíduo, e das quais, portanto, podemos prescindir. Mas a espécie do homem não pode ser abstraída pelo intelecto, da carne e dos ossos em geral". Donde resulta que, para S. Tomás, o principium individuationis, o que determina a natureza própria de cada indivíduo e portanto o que o diferencia dos outros, não é a matéria comum (e de facto todos os homens têm carne e ossos, não se diferenciando portanto nesta medida); mas sim a matéria signata ou, como ele também diz (De ente et essentia, 2), a "matéria considerada sobre determinadas dimensões". Assim, um homem é distinto de outro não porque está unido a um determinado corpo, distinto do dos outros homens por dimensões, isto é, pela sua situação no espaço e no tempo. Resulta ainda desta doutrina que o universal não subsiste fora das coisas individuais, mas somente nelas é real (Contra Gent., 1, 65). De modo que ele é in re (como forma das coisas) e post rem (no intelecto); ante rem, só na mente divina, como princípio ou modelo (ideia) das coisas criadas Un Sent., 11, dist. 111, q. 2, a. 2). O universal é objecto próprio e directo do intelecto. Pelo seu próprio
funcionamento, o intelecto humano não pode conhecer directamente as coisas individuais. Com efeito, ele procede abstraindo da matéria individual a espécie inteligível; e a espécie, 34 que é o produto de tal abstracção, é o próprio universal. A coisa individual não pode portanto ser conhecida pelo intelecto senão indirectamente, por uma espécie de reflexão. Dado que o intelecto abstrai o universal das imagens particulares e nada pode entender senão voltando-se para as próprias imagens (convertendo se ad phantasmata), ele também só indirectamente conhece as coisas particulares, às quais as imagens pertencem (S. th., 1, q. 86, a. 1). O intelecto que abstrai as formas da matéria individual é o intelecto agente. O intelecto humano é um intelecto finito, que, ao contrário do intelecto angélico, não conhece em acto todos os inteligíveis, mas tem somente a potência (ou possibilidade) de os conhecer; é, portanto, um intelecto possível. Mas como "nada passa da potência ao acto senão por obra do que já está em acto", a possibilidade de conhecer, próprio do nosso intelecto, torna-se conhecimento efectivo por acção dum intelecto agente, o qual faz com que os inteligíveis passem a acto, abstraindo-os das condições materiais, e actuando (segundo a comparação aristotélica) como a luz sobre as cores Ub., 1, q. 79, especialmente a. 3). Contra Averróis e seus seguidores, S. Tomás afirma explicitamente a unidade deste intelecto com a alma humana. Se o intelecto agente estivesse separado do homem, não seria o homem a entender, mas sim o pretenso intelecto separado a entender o homem e as imagens que estão nele: o intelecto deve, portanto, fazer parte essencial da alma humana (Ib., 1, q. 76, a. 1; Contra Gerd., 11, 76). Por isso também o intelecto activo não é um só, mas há tantos intelectos activos quantas as almas humanas: contra a tese da unicidade do intelecto, a qual era sustentada pelos averroístas, é dirigido o opúsculo famoso de S. Tomás, De unitate intellectus contra Averroístas (§ 284). O procedimento abstractivo do intelecto garante a verdade do conhecimento intelectual, porque 35 garante que a espécie existente no intelecto é a própria forma da coisa. Retomando a definição dada por Isaac (§ 245) no seu Liber de definitionibus, S. Tomás define a verdade como "a adequação do intelecto e da coisa" (S. th., 1, q. 16, a. 2; Contra Gent. 1, 59; De ver., q. 1, a 1). As coisas naturais, das quais o nosso intelecto recebe o saber, são a sua medida: já que ele possui a verdade só enquanto se conforma às coisas. Estas são, por sua vez, medidas pelo intelecto divino, no qual subsistem as suas formas do mesmo modo que as formas das coisas artificiais subsistem no intelecto do artífice. "0 intelecto divino é medidor, mas não medido; * coisa natural é medidora (em relação ao homem) * medida (em relação a Deus); o nosso intelecto é medido, e não mede as coisas naturais mas somente as artificiais" (De ver., q. 1, a. 1). Portanto, Deus é a verdade suprema, enquanto o -seu entender é a medida do todo que existe e de qualquer outro entender (S. th., 1, q. 16, a. 5). Por isso, a ciência que ele tem das coisas é a causa delas, do mesmo modo que a ciência que o artífice tem a coisa artificial é
causa dessa coisa. Em Deus, o ser e o entender coincidem: entender as coisas significa, em Deus, comunicar-lhes o ser, desde que ao entender se una a vontade criadora (Ib., I, q. 14, a. 9). Isto estabelece uma diferença radical entre o intelecto divino e o humano, entre a ciência divina e a humana. Deus entende todas as coisas mediante a simples inteligência da própria coisa: com um só acto Deus capta (e, querendo, cria) a essência total e completa da coisa, ou antes, de todas as coisas na sua totalidade e plenitude. Pelo contrário, o nosso intelecto não consegue com um só acto o conhecimento perfeito de uma coisa; mas primeiro apreende-lhe um qualquer, dos seus elementos, por exemplo, a essência, que é o objecto primeiro e próprio do intelecto, e depois passa a entender a 36 propriedade, os acidentes e todas as disposições ou comportamentos que são próprios da coisa. Daqui deriva que o conhecimento intelectual humano se desdobra em actos sucessivos, segundo uma sequência temporal; actos de composição ou de divisão, isto é, afirmações ou negações, que exprimem mediante proposições aquilo que o intelecto vai sucessivamente conhecendo da própria coisa. O proceder do intelecto, de uma composição ou divisão a outras sucessivas composições ou dlivisões, isto é, de uma proposição a outra, é o raciocínio; e a ciência que assim se vai constituindo por sucessivos e conexos actos de afirmação ou de negação é a ciência discursiva. O conhecimento humano é, portanto, conhecimento racional, e a ciência humana, ciência discursiva: características que não se podem atribuir ao conhecimento e à ciência de Deus, o qual entende tudo e simultaneamente em si próprio, mediante um acto simples e perfeito de inteligência (lb., 1, q. 14, a. 7, 8, 14; q. 85, a. 5; Contra Gent., 1, 57-58). Isto estabelece também uma diferença radical entro a autoconsciência divina e a humana. Deus não só se conhece a si próprio, mas também a todas as coisas, através da sua essência que é acto puro e perfeito, e portanto, perfeitamente inteligível por si mesmo. O anjo, cuja essência é acto, mas não acto puro porque é essência criada, conhece-se a si mesmo por essência, mas não conhece as outras coisas senão através das suas semelhanças. O intelecto humano, pelo contrário, não é acto mas sim potência; só passa a acto através das espécies abstraídas das coisas sensíveis em virtude do intelecto agente: não pode, portanto, conhecer-se senão no acto de fazer esta abstracção. Este conhecimento pode verificar-se de dois modos: singularmente, como quando 37 Sócrates ou Platão têm consciência (percipit) de ter uma alma íntelectiva pelo facto de terem consciência de entender; geralmente, como quando consideramos a natureza da mente humana com base na actividade do intelecto. Este segundo conhecimento depende da luz que o nosso intelecto recebe da verdade divina, na qual residem as razões de todas as coisas, e exige uma investigação diligente o subtil, enquanto que o primeiro é imediato (S. th., 1, q. 87, a. 1).
A possibilidade do erro está no carácter raciocinador do conhecimento humano. O sentido não se engana acerca do objecto que lhe é próprio (por exemplo, a vista acerca das cores), a menos que haja uma perturbação acidental do órgão. O intelecto também não pode enganar-se acerca do objecto que lhe é próprio. Ora o objecto próprio do intelecto é a essência ou quididade da coisa; não se engana, portanto, acerca da essência, mas pode enganar-se acerca das particularidades que acompanham a essência e que ele consegue conhecer compondo e dividindo (ou seja) mediante o juízo) ou através do raciocínio. O intelecto pode também incorrer em erro acerca da essência das coisas compostas, ao formular a definição que deve resultar de diferentes elementos: isto ocorre quando refere a uma coisa a definição (em si mesma verdadeira) de uma outra coisa, por exemplo, a do círculo ao triângulo; ou quando reúne elementos opostos, numa definição que por isso resulta ser falsa, por exemplo, se define o homem como "animal racional alado". No que se refere às coisas simples, em cuja definição não intervém nenhuma composição, o intelecto não pode enganar-se; só pode ser imperfeito, permanecendo na ignorância da sua definição Ub., 1, q, 85, a. 6). 38 § 276. S. TOMÁS: METAFíSICA No De ente et asseiaia, que é a sua primeira obra e como que o seu Discurso do método, S. Tomás estabelece o princípio fundamental que, reformando a metafísica aristotélica, a adapta às exigências do dogma cristão: a distinção real entre essência e existência. Este princípio, de que mostrámos a progressiva afirmação na filosofia medieval, é aceite por S. Tomás na forma que recebera de Avicena 1. Mas este princípio servira a Avicena para fixar na forma más rigorosa a necessidade do ser, de todo o ser, inclusivé do ser finito. Com efeito, a diferença entre o ser cuja essência implica a existência (Deus) e o ser cuja essência não implica a existência (o ser finito) consiste, segundo Avicena, em que o primeiro é necessário por si, o segundo é necessário por outro, e, portanto, deriva desse outro (do ser necessário) quanto à sua existência actual. Na interpretação de Avicena, o princípio exclui a criação, implicando somente a derivação causal e necessária das coisas finitas em relação a Deus. Na doutrina tomista, pelo contrário, tem a função de levar a exigência da criação à pró pria constituição das coisas finitas, e é por isso o princípio reformador que S. Tomás utiliza para adaptar plenamente o aristotelismo à tarefa da interpretação dogmática. O primeiro resultado deste principio na doutrina tomista é de separar a distinção entre potência e acto da distinção entre matéria e forma, conver1 Met., 11, tract. V, 1. De Avicena o principio passou a Maimónides, que o modificou, reduzindo a existência a um simples eMente da essência (Guide des égarés, tradução Munk, p. 230-233). S Tomás nega que a existência seja um acidente (Quodl., q. 12, a. 5) e retoma o princípio tal como o havia enunciado Avicena. 39
tendo-a numa distinção à parte. Para Aristóteles, potência e acto identificam-se, respectivamente, com matéria e forma: não há potência que não seja matéria, nem acto que não seja forma, e reciprocamente. S. Tomás considera que não só a matéria e a forma, mas também a essência e a existência estão entre sina relação de potência e acto. A essência, que ele também denomina quididade ou natureza, compreende não só a forma mas também a matéria das coisas compostas; dado que compreende tudo o que é expresso na definição da coisa. Por exemplo, a essência do homem, que é definido como "animal racional", compreende não só a "racionalidade." (forma) mas também a "animalidade" (matéria). A essência, assim entendida, distingue-se do ser ou existência das próprias coisas; podemos entender, por exemplo, o que (quid) é o homem ou a fénix (essência), sem saber se o homem ou a fénix existem (esse) (De e. et ess., 3). Portanto, substâncias como o homem e a fénix estão compostas por essência (matéria e forma) e existência, separáveis entre si: nelas, a essência e a existência estão entre si como a potência e o acto; a essência está em potência em relação à existência, a existência é o acto da essência; e a união da essência com a existência, isto é, a passagem de potência a acto, requer a intervenção criadora de Deus. Ora, nas substâncias que são forma pura sem matéria (os anjos, como inteligências puras) falta evidentemente a composição de matéria e forma, mas não falta a de essência e existência: também neles, com efeito, a essência é somente potência em relação à existência e também a sua existência requer, por isso, o acto criador de Deus. Só em Deus a essência é a própria existência, porque Deus é por essência e, portanto, por definição; portanto, em Deus não há uma essência que seja potência; ele é acto puro (S. th., 1, q. 50, a. 2). Por conse40 ,guinte, a essência pode, estar na substância, de três modos diferentes. 1.o Na última substância divina a essência é idêntica à existência: por isso Deus é necessário e eterno. 2.o Nas substâncias angélicas, privadas de matéria, a existência é diferente da essência: o seu ser não é, portanto, absoluto, mas sim criado e, finito. 3. Nas substâncias compostas de matéria e forma o ser é-lhes acrescentado do exterior e é, portanto, criado e finito. Estas últimas substâncias, dado que incluem matéria que é o princípio de individuação, multiplicam-se, em vários indivíduos: o que não acontece nas substâncias angélicas, as quais carecem de matéria. Com esta reforma radical da metafísica aristotélica, S. Tomás faz com que a própria constituição das substâncias finitas exija a criação divina. Aristóteles, identificando com a forma a existência em acto, estabelece que onde há forma há realidade em acto, e que por isso a forma é por si mesma indestrutível e incriável, portanto, necessária e eterna como Deus. Garante assim a eternidade da estrutura formal do universo (géneros, espécies, formas e, duma maneira geral, substâncias). Do seu universo é excluída a criação, assim como toda a intervenção activa de Deus na constituição, das coisas. E precisamente por isto, o seu sistema parecia (e era) irredutivelmente contrário ao cristianismo, e pouco adequado para lhe exprimir as verdades fundamentais. A reforma tomista altera radicalmente a metafísica aristotélica, transformando-a de estudo do ser necessário em estudo do ser criado.
Por consequência, o termo "ser" aplicado à criatura tem um significado não idêntico, mas só semelhante ou correspondente ao ser de Deus. É este o princípio da analogicidade do ser que S. Tomás extrai de Aristóteles, mas ao qual dá um valor completamente diferente. Evidentemente que Aristóteles havia distinguido vários significados do ser, 41 mas só em relação às várias categorias, e os tinha referido todos ao único significado fundamental que é o de substância (ousia), o ser enquanto ser, o objecto da metafísica (§ 72), Por isso, não distinguia, nem podia distinguir, entre o ser de Deus e o ser das outras coisas; por exemplo, Deus e a mente são substâncias precisamente no mesmo sentido (Et. Nic., 1, 4, 1096 a). Por sua vez, S. Tomás, em virtude da distinção real entre essência e existência, distinguiria o ser das criaturas, separável da essência e, portanto criado, do ser de Deus, idêntico à essência e, portanto, necessário, Estes dois significados do ser não são unívocos, isto é, idênticos, mas também não são equívocos, isto é, simplesmente diferentes; -são análogos, isto é, semelhantes, porém de proporções diferentes. Só Deus é ser por essência, as criaturas têm o ser por participação; as criaturas enquanto são, são semelhantes a Deus, que é o primeiro princípio universal de todo o ser, mas Deus não é semelhante a elas: esta relação é a analogia (S. th., 1, q. 4, a. 3). A relação analógica estende-se, a todos os predicados que se atribuem ao mesmo tempo a Deus e às criaturas; porque é evidente que na Causa agente devem subsistir de modo indivisível e simples aqueles caracteres que nos efeitos são divididos e múltiplos; do mesmo modo que o sol na unidade da sua força produz no mundo terreno formas múltiplas e diferentes. Por exemplo, o termo "sapiente" referido ao homem significa uma perfeição distinta da essência e da existência, do homem, enquanto que referido a Deus significa uma perfeição que é idêntica à sua essência e ao seu ser. Por isso, referido ao homem, faz compreender aquilo que quer significar; referido a Deus, deixa fora de si a coisa simplificada, a qual transcende os limites do entendimento humano (S, th., 1, q 13, a. 5). A analogicidade do ser torna evidente42 mente impossível uma única ciência do ser, como o era a filosofia primeira de Aristóteles, A ciência que trata das substâncias criadas e serve de princípios evidentes à razão humana é a metafísica. Mas a ciência que, trata do Ser necessário, a teologia, tem uma certeza superior e utiliza princípios que procedem directamente da revelação divina; é por isso superior em dignidade a todas as outras ciências (inclusivé a metafísica) que lhe são subordinadas e servas (1b., 1, q. 1, a. 5). Dado que o ser de todas as coisas (excepto Deus) é sempre um ser criado, a criação, se é verdade de fé como início das coisas no tempo, é além disso verdade demonstrada como produção das coisas do nada e como derivação, de Deus, de todo o ser. De facto, e tal como vimos, Deus é o único ser que é tal pela sua própria essência, isto é, que existe necessariamente e por si mesmo: as outras coisas obtêm dele o seu ser, por participação; tal como o ferro se torna ardente pelo fogo. Também a matéria-prima é criada. E todas as coisas do mundo formam uma hierarquia ordenada segundo a sua maior ou menor
participação no ser de Deus. Deus é o termo e o fim supremo desta hierarquia. Nele residem as ideias, ou seja, as formas exemplares das coisas criadas, formas que, porém, não estão separadas da própria sapiência divina: logo, deve dizer-se que Deus é o único exemplar de tudo (lb., 1, q. 44, aa. 1, 2, 4, 3). A separação entre o ser criado e o ser eterno de Deus, própria de uma tal metafísica, permite que S. Tomás salve a absoluta transcendência de Deus em relação ao mundo e torne impossível qualquer forma de panteísmo que queira identificar de algum modo o ser de Deus com o ser do mundo. S. Tomás alude explicitamente, para as refutar, as duas formas de panteísmo aparecidas nos finais do século XII, A prímeira é a de AmaIríco de Bene 43 (§ 219) o qual considera Deus como "o princípio formal de todas as coisas", ou seja, a essência ou natureza de todos os seres criados. A segunda é a de David de Dinant (§ 219) que identificou Deus com a matéria-prima. Contra esta forma de panteísmo, assim como contra a de origem estóica (mas que S. Tomás conhecia por meio duma tese de Terêncio Varrão citada por Santo Agostinho, De civ. Dei, VII, 6) segundo a qual Deus é a alma do mundo, S. Tomás opõe o princípio de que Deus não pode ser de nenhum modo um elemento componente das coisas do mundo. Como causa eficiente, Deus não se identifica nem com a forma nem com a matéria das coisas de que é causa, o seu ser e a sua acção são absolutamente primeiros, isto é, transcendentes, em relação a tais coisas (S. th., 1, q. 3, a. 8). § 277. S. TOMÁS: AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS A distinção metodológica feita por Aristóteles (An. post., 1, 2) entre o que é primeiro "por si" ou "por natureza" e o que é primeiro "para nós", foi seguida e sempre respeitada por S. Tomás. Ora se Deus é primeiro na ordem do ser, não o é na ordem dos conhecimentos humanos, os quais começam pelos sentidos. É portanto necessário uma demonstração da existência de Deus; e deve partir daquilo que é primeiro para nós, isto é, dos efeitos sensíveis, e ser a posteriori (demonstra-lio quia). Recusa, portanto, explicitamente a prova ontológica de Santo Anselmo: ainda que se entenda Deus como "aquilo sobre o qual não se pode pensar nada de maior", não se segue que ele exista na realidade (in rerum natura) e não só no intelecto. 44 S. Tomás enumera cinco vias para passar dos efeitos sensíveis até à existência de Deus, Estas vias já expostas na Summa contra Gentiles (1, 12, 13) encontram a sua formulação clássica na Summa theologiae (1, q. 2, a. 3. A primeira via é a prova cosmológica, extraída da Física (VIII, 1) e da Metafísica (XII, 7) de Aristóteles. Parte do princípio de que "tudo o que se move é movido por outro". Ora se o que o move também por sua vez se move, é preciso que seja movido por outra coisa; e esta por outra. Mas é impossível continuar até ao infinito; porque então não haveria um primeiro motor nem os outros se moveriam, como, por exemplo, o pau não se move se não é movido pela mão. Por conseguinte, é necessário chegar a um primeiro motor
que não seja movido por nenhum outro; e todos consideram esse motor como sendo Deus. Este argumento tinha sido -retomado pela primeira vez na escolástica latina por Abelardo de Bath (§ 215); depois, insistiram nele Maimónides e Alberto Magno. A segunda via é a prova causal. Na série das causas eficientes não podemos remontar até ao infinito, porque então não haveria uma causa primeira e, portanto, nem uma causa última nem causas intermediárias: deve, por conseguinte, haver uma causa eficiente primeira, que é Deus. Esta prova, extraída de Aristóteles (Met., 11, 2) tinha recebido de Avicena uma nova exposição. A terceira via é extraída da relação entre possível e necessário. As coisas possíveis existem somente em virtude das coisas necessárias: mas estas têm a causa da sua necessidade ou em si ou em outro. As que têm a causa noutro, remetem a esse outro, e dado que não é possível continuar até ao infinito, é preciso chegar a algo que seja necessário por si e seja causa da necessidade daquilo que é necessá45 rio por outro; e isso é Deus. Esta prova é extraída de Avicena. A quarta via é a dos graus. Encontra-se nas coisas mais ou menos de verdade, de bem e de todas as outras perfeições: por conseguinte, também haverá o máximo grau de tais perfeições e será ele a causa dos graus menores, como o fogo, que é maximamente quente, é a causa de todas as coisas quentes. Ora a causa do ser, da bondade e de todas as perfeições é Deus. Esta prova, de origem platónica, é extraída de Aristóteles (Met., li, 1). A quinta via é a que se infere do governo das coisas. As coisas naturais, privadas de inteligência, estão todavia dirigidas para um fim; e isto não seria possível se não fossem governadas por um Ser dotado de Inteligência, como a flecha não pode dirigir-se ao alvo senão por obra do arqueiro. Por conseguinte, há um Ser inteligente que ordena todas as coisas naturais para um fim; e este Ser é Deus. Nesta prova que é a mais antiga e venerável de todas, a exposição tomista segue, provavelmente, S. João Damasceno e Averróis. O primeiro destes argumentos, o cosmológico, tinha sido utilizado por Aristóteles para demonstrar não só a existência de Deus como primeiro motor, mas a existência de tantos intelectos motores quantas são as órbitas dos céus (§ 78). Para S. Tomás, pelo contrário, o primeiro motor é um só e é Deus; e só para Deus é válida a prova. Quanto ao movimento dos céus, parece, com efeito, supor uma substância inteligente que o produza, porque, ao contrário dos outros movimentos naturais, não tende para um só ponto, no qual deva cessar; mas é muito possível que se -ia produzido directamente por Deus. De qualquer modo, se quisermos admitir, como fizeram vários filósofos e santos, inteligências angélicas como motores dos céus, temos de 46 notar que não estão unidas aos céus como as almas dos animais e das plantas
estão unidas aos corpos (que são formas dos próprios corpos): mas estão unidas aos céus só com o fim de os mover, para lhes transmitir o impulso (per contactum virtutis [S. th., I, q. 70, a. 3]). S. Tomás chega por isso à existência das inteligências angélicas, separadas dos corpos, não através da consideração do movimento dos céus (dado que pode ser directamente produzido por Deus), mas através da consideração da perfeição do mundo, a qual requer a existência de algumas criaturas incorpóreas. Efectivamente, estas criaturas são, no mundo, as mais semelhantes a Deus, que é puro espírito, e através delas o mundo, que é efeito de Deus, se assimila maximamente à sua Causa (lb., 1, q. 50, a. 1). § 278. S. TOMÁS: TEOLOGIA Os dogmas fundamentais do cristianismo, a trindade, a encarnação, a criação são, segundo S. Tomás, artigos de fé, não susceptíveis de tratamento demonstrativo; perante eles, a tarefa da razão limita-se, primeiro, a esclarecê-los e depois a resolver as objecções. Os esclarecimentos de S. Tomás têm uma tal lucidez e elegincia dialéctica, que constituem uma das partes mais importantes de todo o seu sistema. Acerca do dogma da Trindade, a dificuldade consiste em entender de que modo a unidade da substância divina se concilia com a trindade das pessoas. Para mostrar como se conciliam, S. Tomás serve-se do conceito de relação. A relação, por um lado, constitui as pessoas divinas na sua distinção; por outro lado, identifica-se com a única essência divina. Com efeito, as pessoas divinas são constituídas pelas suas relações de origem: o Pai 47 pela paternidade, isto é, pela relação com o Filho; o Filho pela filiação ou geração, isto é, pela relação com o Pai; o Espírito Santo pelo amor, isto é, pela relação recíproca de Pai e Filho. Ora estas relações em Deus não sã o acidentais (nada pode haver de acidental em Deus) mas reais; subsistem realmente na essência divina. Por conseguinte, a própria essência divina na sua unidade, implicando a relação, implica a diversidade das pessoas (S. th., 1, q. 27-32, e em especial q. 29, a. 4 c). Segundo S. Tomás, basta este esclarecimento para mostrar que "o que a fé revela não é impossível". Isto é tudo quanto deve fazer-se nestes assuntos; nos quais toda a tentativa de demonstração é mais nociva que meritória, porque induz os incrédulos a suporem que os cristãos se baseiam, para crer, em razões carentes de valor necessário (1b., 1, q. 32, a. 1). Quanto à encarnação a dificuldade consiste em poder entender a presença, na única pessoa de Cristo, de duas naturezas, a divina e a humana. A Igreja condenara já, no século V, duas interpretações opostas deste dogma, interpretação às quais S. Tomás reduz todas as outras para as refutar. A heresia de Êutiques (§ 154), insistindo sobre a unidade da pessoa de Cristo, reduzia as duas naturezas a uma só: a divina. A heresia de Nestórío (§ 154), pelo contrário, insistindo sobre a dualidade de naturezas, admitia em Cristo duas pessoas simultaneamente coexistentes, sendo a pessoa humana como que instrumento ou revestimento da divina. A distinção real entre essência e existência nas criaturas, e a sua unidade em Deus, fornecem a S. Tomás a
chave da interpretação. A essência ou natureza divina identifica-se com o ser de Deus; Portanto, Cristo, que tem uma natureza divina, é Deus, subsiste como Deus, isto é, como pessoa divina; é, portanto, uma só pessoa, a divina. Por 43 outro lado, dado que a natureza humana é separável da existência, ele pode perfeitamente assumir a natureza humana (que é alma racional e corpo) sem ser uma pessoa humana (Contra Gent., IV, 49). Assim se compreende como a natureza humana pôde ser assumida por Cristo, que, revestindo-se dela, a enobreceu, elevou e tomou novamente digna da graça divina (S. th., 111, q. 2, a. 5-,6). Quanto à criação, para S. Tomás, ela só é artigo de fé no sentido de início no tempo, não o sendo no sentido de produção a partir do nada. Pode admitirse, diz ele, que o mundo tenha sido produzido do nada e, por conseguinte, falar de criação sem admitir que ela venha depois do nada; assim fez Avicena na sua Metafísica (IX, 4). Pode dizer-se que se houvesse um pé impresso no pó da eternidade, ninguém duvidaria que a pegada fora produzida pelo pé; mas com isso não se admitiria um início no tempo da própria pegada (Santo Agostinho, De civ. Dei, XI, 4). Do mesmo modo, os argumentos que se podem aduzir em favor de um início do mundo no tempo não levam a conclusões necessárias. Por outro lado, também não concluem necessariamente os que pretendem demonstrar a eternidade do mundo. Dentre estes últimos, o mais famoso dos aristotélicos, era o que baseava na eternidade da matéria-prima, Se o mundo começou a existir com a criação, quer dizer que antes da criação podia existir, isto é, que era uma possibilidade. Mas toda a possibilidade é matéria, que depois passa a acto ao receber a forma. Antes da criação, existia portanto a matéria do mundo. Porém, não pode haver matéria sem forma; e matéria e forma, em conjunto, constituem o mundo; por conseguinte, admitindo a criação no tempo, o mundo existiria antes de começar a existir, o que é impossível. A este argumento responde S. Tomás que antes da criação o mundo era possível só 49 porque Deus podia criá-lo e porque a sua criação não era impossível; não se pode daqui deduzir a existência de uma matéria. Aos outros argumentos também tirados de Aristóteles, segundo os quais os céus são formados por uma substância incriável e incorruptível e que, portanto, são eternos, responde S. Tomás que a incriabilidade e a incorruptibilidade dos céus e, portanto, do mundo, se entende per modum naturalem, isto é, em relação aos processos naturais de formação das coisas, e não em relação à criação. De modo que os argumentos que tendem a demonstrar a eternidade do mundo também não têm valor necessário. A conclusão é que se não pode demonstrar nem o início no tempo nem a eternidade do mundo; e isto deixa livre o caminho para crer na criação no tempo: id credere maxíme expedit (S. th., 1, q. 46, a. § 279. S. TOMÁS: PSICOLOGIA Segundo S. Tomás, a natureza do homem é constituída por alma e corpo. O homem não é só alma; o corpo faz também parte da sua essência, visto que ele além de entender, sente, e o sentir não é uma operação da alma sozinha. A alma é (segundo a doutrina de Aristóteles) o acto do corpo: é a forma, o princípio
vital que faz com que o homem conheça e se mova: como tal é substância, isto é, subsiste por sua conta. S Tomás rejeita a doutrina do neoplatonismo judaico-muçulmano aceite pelos franciscanos, segundo a qual a alma é composta por matéria e forma. Não há uma matéria da alma: se houvesse, estaria fora da alma que é pura forma. Nem o intelecto poderia conhecer a forma pura das coisas, se tivesse em si matéria: nesse caso, conheceria as coisas na sua materiali50 dade, isto é, na sua individualidade, e, o universal escapar-se-lhe-ia (S. th., 1, q. 45, a. 4). No homem só subsiste a forma intelectiva da alma, a qual desempenha também as funções sensitiva e vegetativa. Duma maneira: geral, a forma superior pode sempre desempenhar as funções das formas inferiores; e assim, nos animais, a alma sensitiva desempenha também a função vegetativa, enquanto que nas plantas só subsiste a alma vegetativa. S. Tomás rejeita deste modo o princípio estabelecido por Avicena, e seguido pelo agustinianismo, segundo o qual num composto permanecem as formas dos vários elementos que o compõem; e que, por isso, na alma humana subsistem também as outras formas em conjunto com a forma intelectiva. Segundo S. Tomás, formas diversas só podem coexistir em diversas partes do espaço; porém, assim ficam justapostas, e não fundidas; não constituem um verdadeiro composto, o qual resulta sempre da fusão dos seus elementos. Por consequência há uma única forma na alma humana, a forma superior intelectiva que também desempenha as funções inferiores. Como forma pura, a alma é imortal. A matéria pode corromper-se, porque a forma (que é acto, isto é, existência) pode separar-se dela. Mas é impossível que a forma se separe de si própria; e é portanto impossível que se corrompa. Neste argumento tomista reaparece a prova platónica do Fedon, segundo a qual a alma, tendo em si a própria ideia da vida, não pode morrer. Por outro lado, segundo S. Tomás, mesmo admitindo a alma humana como sendo composta de matéria e forma, é também necessário admitir a sua incorruptibilidade. De facto, só pode corromper-se o que tenha um contrário; ora a alma intelectiva não tem contrários, porque o próprio conhecimento dos contrários constitui na alma humana uma -única ciência, 51 Finalmente, o próprio desejo que a alma humana tem de existir é um índice (signum) de imortalidade. O intelecto que conhece o ser absolutamente, deseja naturalmente ser sempre; e um desejo natural não pode ser vão (S. th., q. 75, a. 6). Mas como é possível que a alma conserve, após a separação do corpo, a individualidade que lhe vem precisamente do corpo? S. Tomás responde que a alma intelectiva está unida ao corpo pelo seu próprio ser (esse); destruído o corpo, este ser permanece, precisamente como era na sua união com o corpo, individual o particular (1b., 1, q. 76, a. 2 a 2 um). A persistência da individualidade na alma separada permitirá ainda que, no dia da ressurreição dos corpos, todas as almas retornem a matéria nas dimensões determinadas que lhes eram próprias reconstituindo assim o próprio corpo (De natura materiae, 7; Quodl., XI, a. 5).
§ 280. S. TOMÁS: ÉTICA Da quinta prova da existência de Deus resulta que Deus ordena todas as coisas para o seu fim supremo, que é Ele mesmo, enquanto Sumo Bem. O governo divino do mundo que ordena o mundo para o seu fim é a providência. Todas as coisas, inclusivê: o homem, estão sujeitas à providência divina. Mas isto não implica que tudo aconteça necessariamente e que o desígnio providencial exclua a liberdade do homem. Aquele desígnio não só estabelece que as coisas sucedem, mas ainda o modo como elas sucedem. Por isso ordena previamente as causas necessárias para as coisas que devem suceder necessariamente, e as causas contingentes para as coisas que devem suceder contingentemente. Deste modo, a acção livre do homem faz parte da providência divina (S. th., 1, q. 22, a, 4). E a liberdade do homem também não é 52 anulada pela predestinação à beatitude eterna. Com as suas forças naturais o homem não pode alcançar esta beatitude que consiste na visão de Deus, e deve ser portanto guiado pelo próprio Deus. Mas com isto Deus não obriga, com necessidade, o homem: porque faz parte da predestinação, que é um aspecto da providência, que o homem atinja livremente a beatitude para a qual Deus livremente o escolheu (1b., 1, q. 23, a. 6). Providência e predestinação pressupõem a pré-ciência divina, com a qual Deus prevê os futuros contingentes, isto é, as acções cuja causa é a liberdade humana. A pré-ciência divina é certa e infalível, porque até as coisas futuras estão nela presentes; pelo que vê desenvolverem-se em acto aquelas acções livres que, não sendo enquanto tais determinadas necessariamente pelas suas causas, são imprevisíveis para o homem. Em Deus, que é a própria eternidade, todo o tempo está presente e estão portanto também presentes as acções futuras dos homens. Ele vê-as, mas ao vê-Ias não lhes tolhe a liberdade, como não lha tolhe c) que assiste no momento em que elas se cumprem (1b., 1, q. 14, a. 13). Por conseguinte, a vontade humana é um livre arbítrio que não é eliminado nem diminuído pelo ordenamento finalista do mundo nem pela pré-ciência divina, nem sequer pela graça que é uma ajuda extraordinária de Deus, gratuitamente concedida. "Deus, diz S. Tomás (1b., 1, 2, q. 113, a. 3), move todas as coisas no modo que é próprio de cada uma delas. Assim, no mundo natural, move dum modo os corpos leves, doutro modo os corpos pesados, segundo a sua diferente natureza. Por isso move o homem para a justiça segundo a condição própria da natureza humana. Pela sua própria natureza, o homem tem livre arbítrio. E, enquanto tem livre arbítrio, a tendência para a justiça não é produzida por Deus independentemente desse livre 53 arbítrio: e Deus infunde o dom da graça justificante de modo a mover, em conjunto com ele, o livre arbítrio a aceitar o dom da graça". A presença do mal no mundo deve-se ao livre arbítrio do homem. S. Tomás admite a doutrina platónico-agustiniana da não-substancialidade do mal: o mal
não é senão ausência de bem. Ora tudo o que existe é bem, e é bem no grau e na medida em que existe; mas dado que a ordem do mundo requer também a realidade dos graus inferiores do ser e do bem, os quais parecem (e são) deficientes e, portanto, maus em relação aos graus superiores, pode dizerse que a própria ordem do mundo requer o mal. O mal é de duas espécies: pena e culpa. A pena é deficiência da forma (realidade ou acto) ou de uma das suas partes, necessária para a integridade de uma coisa: por exemplo, a cegueira é a falta de vista. A culpa é a deficiência de uma acção, que não foi feita ou não foi feita do modo devido. Dado que no mundo tudo está sujeito à providência divina, o mal, como ausência ou deficiência de integridade, é sempre pena. Mas o mal maior é a culpa, que a providência tenta eliminar ou corrigir com a pena (1b., 1, q. 48, a. 5-6). Ora a culpa (o pecado) é o acto humano de escolha deliberada do mal, isto é, a actuação discordante com a ordem da razão e com a lei divina (11, 1, q. 21, a. 1). o homem é dotado da capacidade de distinguir o bem e de tender para ele. Com efeito, tal como há nele a disposição (habitus) natural para entender os princípios especulativos, dos quais dependem to-das as ciências, também nele existe a disposição (habitus) natural para entender princípios práticos, dos quais dependem todas as boas acções. Este habitus natural prático é a sindérese, que nos dirige para o bem e nos afasta do mal; o acto que deriva desta disposição, é que consiste no aplicar os princípios gerais da acção 54 a uma acção particular, é a consciência (S. th., 1, q. 79, a. 12-13). As virtudes estão baseadas neste habitus geral do intelecto prático. A este propósito, S. Tomás aclara o carácter de indeterminação e de liberdade que são próprios do habitus. As potências (ou faculdades) naturais estão determinadas a agir dum único modo: não têm possibilidade de escolha nem liberdade, agem dum modo constante e infalível. Pelo contrário, as potências racionais, que são próprias do homem, não estão determinadas num só sentido; podem agir em vários sentidos, segundo a sua livre escolha; e por isso a escolha que fazem do sentido em que agem produz uma disposição constante, mas não necessária nem infalível, que é o habitus (11, 1, q. 55, a. 1). Neste sentido, as virtudes são habitus, disposições práticas para viver rectamente e para fugir do mal. S. Tomás aceita a distinção de Aristóteles entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais; destas últimas, as principais ou cardeais, a que todas as outras se reduzem, são: justiça, temperança prudência e fortaleza. As virtudes intelectuais e morais são virtudes humanas: conduzem à felicidade que o homem pode conseguir nesta vida com as suas próprias forças naturais. Mas estas virtudes não bastam para conseguir a beatitude eterna: são necessárias as virtudes teologais, directamente infundidas por Deus no Homem: fé, esperança e caridade. § 281. S. TOMÁS: POLíTICA O fundamento da teoria política de S. Tomás é a teoria do direito natural, uma das maiores heranças que o estoicismo deixou ao mundo antigo e moderno e que, na época de S. Tomás, era considerada como fundamento do próprio direito
canó55 nico. Segundo S. Tomás, há uma lei eterna, isto é, uma razão que governa todo o universo e que existe na mente divina; a lei natural, que existe no homem, é um reflexo ou uma "participação" dessa lei eterna (S. th., 11, 1, q. 91, a. 1-2). Esta lei natural concretiza-se em três inclinações fundamentais: 1.a -a inclinação para o bem natural, que o homem tem em comum com qualquer substância, a qual, enquanto tal, deseja a sua própria conservação; 2.a-a inclinação especial para determinados actos, que são os que a natureza ensinou a todos os animais, como a união do macho e da fêmea, a educação dos filhos e outros semelhantes; 3 a-a inclinação para o bem segundo a natureza racional que é própria do homem, como o é a inclinação para conhecer a verdade, a de viver em sociedade, etc. (S. th., 11 1, q. 94, a. 2). Além desta lei eterna, que é para o homem lei natural, existem duas outras espécies de leis: a humana, "inventada pelos homens e pela qual se dispõem de modo particular as coisas a que a lei natural já se refere" (1b., 11, 1, q. 91, a. 3); e a divina, que é necessária para dirigir o homem aos fins sobrenaturais (lb., a. 4). S. Tomás afirma, de acordo com a teoria do direito natural, que não é lei aquela que não é justa, e que, portanto, "da lei natural, que é a primeira regra da razão, devem ser derivadas todas as leis humanas" (1b., q. 95, a. 2). Segundo S. Tomás, pertence à colectividade ditar as leis. "A lei, diz ele (11, 1, q. 90, a. 3), tem como o seu fim primeiro e fundamental o dirigir para o bem comum. Ora ordenar algo com vista ao bem comum é próprio de toda a colectividade (multitudo) ou de quem faz as vezes de toda a colectividade. Estabelecer as leis pertence portanto a toda a colectividade ou à pessoa pública que cuida de toda a colectividade; porque em todas as coisas só pode dirigir para um fim aquele a quem pertence 56 o próprio fim". Deste modo, S. Tomás afirmou explicitamente a origem popular das leis. Todavia considera que entre as formas de governo enunciadas por Aristóteles, a melhor é a monarquia: como aquela que melhor garante a ordem e a unidade do estado, e a mais parecida com o próprio governo divino do mundo (De regimine princ., 1, 2). Mas embora o estado possa dirigir os homens para * virtude, não pode, pelo contrário, dirigi-los para * fruição de Deus que é o seu fim último. Um tal governo espiritual pertence só àquele rei, que não só é homem mas também é Deus, isto é, a Cristo. E como o fim menos alto se subordina ao fim mais alto e supremo, assim o governo civil se deve subordinar ao governo religioso que é próprio de Cristo, e que por Cristo foi confiado não aos reis terrenos mas ao papa. "A ele, como ao próprio Senhor Jesus Cristo, devem estar sujeitos todos os reis do povo cristão. Pois àquele a quem pertence velar pelo fim último devem estar sujeitos aqueles aos quais pertence velar pelos fins subordinados; estes devem estar sob o comando daquele" (De reg. princ., 1, 14). § 282. S. TOMÁS: ESTÉTICA
Ocasionalmente, S. Tomás expôs também um núcleo de doutrinas estéticas, extraídas do Pseudo-Dionísio, e também com inspiração neoplatónica. O belo, segundo S. Tomás, é um aspecto do bem. É idêntico ao bem, enquanto o bem é aquilo que todos desejam e, portanto, o fim; também o belo é desejado e, portanto, tem valor de fim. Mas o que se deseja do belo é a visão (aspectus) ou a consciência: ao contrário do bem, o belo está portanto em relação com a faculdade cognoscitiva. Por isso a beleza só se refere aos sentidos que têm maior valor cognoscitivo, ou seja, a vista e o ou57 Vido, que servem a razão; chamamos belas às coisas oisíveis e aos sons, mas não aos sabores e aos dores. O que agrada, na beleza, não é o objecto mas a apreensão (apprehellsio) do objecto (s. th., i, q_ 5, a. 4; 11, 1, q- 27 , a. 1). Seguindo o Pseudo-DionísiO (De div, noin., cap. 4, 1), S- Tomás atribui ao belo três características: perfeição, porque o que é reduzido ou incompleto ou cas OU condições fundamentais: a integridade to e feio; a proporção ou congruência das partes- a clareza. Estas características encontram-se não só nas coisas sensíveis, irias também nas espirituais; as quais, portanto, também têm a sua beleza. Se chamamos belo a um corpo quando os seus membros são proporcionados e tem a cor devida, também chamamos belo a um discurso ou a uma acção que é bem proporcionada e tem 90 a clareza espiritual da razão. E é bela a virtude porque modera, com a razão, as acções humanas (S. th., 11, 2, q. 2, a, 1). Finalmente, chamamos bela a uma **iniaperfeitamente o seu objecto, -'em
se ela representa
mesmo que eJe seja feio. E neste sentido, S. Tomás- se- ,guindo Santo Agostinho (De trin., VI, 10), vê a beleza perfeita no Verbo d e Deus que é a imagem perfeita do Pai (S. th., 1, q. 39, a, 8). NOTA BIBLIOGRÁFICA § 273. As antigas biografias de S. Tomás (Pedro Calo, Guilherme de Toeco, Bernardo Guidone) foram novamente editadas por PRUMMER, Pontes vitac S. Thomae Aquinatis, Toulose, 1911 e .,, BARToLomEo DA LUccA, Hstória eccIesiástica nova, XXrI, 20-24 39. XX111, 8-15. A edição completa da obra de 1 S. Tomás apareceu pela primeira vez em Roma, por ordem do papa pio V, 1570-1571, 18 vol. ín-folio, Poram posteriormente publicadas numerosas edições, das quais a últirria, por ordem de Leão XIII, foi edi58 tada em Roma a partir de 1882, Das obras principais são numerosíssimas as edições parciais e as traduções em todas as línguas do mundo. Para a bibliografia: _MANDONNET-DESTREZ, Bibliograp7iie Thomiste, Kain, 1921;
2.1 edição completada por Chenu, Paris, 1960; "Bullettin Thomiste", 1924 e ss. Sobre a autenticidade das obras de S. Tomás: XANDONNET, Les écrits authentiques de St. Thomas, Paris, 1922; GRABMANN, in "Beitrãge", XX11, 1-2, 1931. SERTILLANGES, St. Th. dA., 3 vol., Paris, 1910; GILSON, St. Th. d'A., Paris, 1925; RoUGIER, La scolastique et le thomisme, Paris, 1925; MARITAIN, Le doteur angélique, Paris, 1934; GRABMANN, Thomas von Aquin, Monaco, 1935; CHENU, Introduction à Ilétude de St. Th. dIA., Montreal-Paris, 1950; DIApcY, St. Th, dIA., Dublin-Londres, 1953; CRESSON, St. Th. dIA., Paris, 1957 3. § 274. Sobre a relação entre razão e fé: LABERTHONNIÈRE, St. Thomas et le rapport entre ia science et Ia foi, in "Annales de phiI. ehrétienne" , 1909, p. 599-621; LEFEBURE, Llacte de foi dIaprès Ia doctrine de St. Thomas dIA., Paris 1905, 2.1 ed., 1924; GILSON, ÉtwIes de phil. médiévale, p. 30 e ss.; CHENU, St. Th. dIA., et Ia théologie, Paris, 1959. § 275. Sobre a teoria do conhecimento: PRANTL, Gesch. d. Log., III, p, 107119; LANNA, La teoria della conoscenza in S. Tommaso, Florença, 1913. Sobre a teoria da abstracção: BLANCH, Mélange thomiste, p. 237-251. Em geral: ROUSSELOT, Llintellectualisme de St. Th., Paris, 1908, nova ed. 1924; PEIFER, The Concept in Thomism, New York, 1952; DuPONCHEL, Hypothèses pour Ilinterprétation de Ilaxiomatique thomiste, Paris, 1953. § 276. Sobre a distinção entre essência e existén- [cia: Dumm, Système du monde, V, p. 468 e ss.; GRABMANN, Doctrína S. Thomae de distinctione reali inter essentiam et esse ex documentis ineditis saec. XIII Mustratur, Roma, 1924; ROUGIER, Op. cit. Sobre a analogicidade do seu e a noção de participação: BLANCI1, in "Revue des Seiences phil. et théol.", 1921, p. 169193, e in "Revue d ePhilos.", 1923, p. 248-271; GARRIGOU-LAGRANGE, Dieu, son existence et sa nature, 4.1,ed., Paris, 1924, p. 200 e ss., etc.; LANDRY, in "Revue néoscolastique". 1922, p. 257-280, 451-464; DE MUNNYNK, ib., 1923, p. 129-155; FABRO, La nozione metafísica di partecipazione secondo S. Tommaso 59 d'Aquino, Turim, 1950 2; ANDERSON, An Introduction to the Metaphysios of S. Th., Chicago, 1953; KLUBERTANS, St. Th. A. on Analogy, Chicago, 1960. § 277. Sobre as provas da existéncia de Deus e as suas fontes: BAEUMKER, in "Beitrãge", 111, 2, p. 302 e ss,, 310, 324 e ss., 332-334; GRUNWALD, Geschichte der Gottesbeweise in MitteWters, in "Beitrãge", VI, 3, p. 133-161, Sobre a teoria dos anjos: Dumm, op. cit., p. 539 e ss. § 278. Sobre a teologia: GARRIGOU-LAGRANGE, op. Cit.; SLRTILLANGES, in. "Revue de Sciences phil. et théol.", 1907, p. 239-251; GEYER, in " Phi,losophisches Jahrbuch", 1924, p. 338-359.
§ 279. Para a psicologia, os textos fundamentais são: Contda Gent., 11, 56-90; Quaestio disp. de an. e Summa theoL, 1, q. 75-89, 118-119. DOMET DE VORGES, La perception et Ia psychotoqie thomiste, Paris, 1892; FABRO, Percezione e pensiero, II, Milão, 1941; HART, The Thomistic Concept of Mental Faculty, Washington, 1930. § 280. Sobre aliberdade: VERWEYEN, Das Problem der ]Villensfreffieit in der Schokstik, 1909 p. 692-713; GILSON, St. Thomas dIA. ("Les moraIistes chrétiens. Textes Qt conimentaires"), Paris, 1924; LAPORTE, in "Revue de Mét. et de Mor.", 1931, 1932, 1934. § 281. Sobre a política: BAUMANN, Die Staatslehre d. h. Th. v. Aquino, LeIpzig, 1909; ZEILLER, Llidée de Pétat dans Saint Thomas, Paris, 1910; MICHEL, La notion thomiste de bien ~mum, Paris, 1932; COTTA, Il concetto di legge nella "Summa Theologiae" di S. Tomm,aso d"Aquino, Turim, 1955; GILBY, The Political Thought of Th. A., Chicago, 1958. § 282. Sobre a estética: DE WULF, in "Revue néo-seo,lastique", 1895, p. 188205, 341-357; 1896, p. 117-142, recolhidos in Êtudes historiques sur Ilesthétique de St. Th. dIA., Lovaina, 1896; VALENSISE, DellIestetica secondo i principii dell'Angelico Dottore, Roma, 1903; MARITAIN, in "Revue des Jenues", 1920; DE MUNNYNK, in San Tommaso, Milão, 1923, p. 228-246; Eco, Il probleina estetico in Tommaso dAquino, Turim, 1956. 60 XVI O AVERROISMO LATINO § 283. AVERROISMO LATINO: CARACTERISTICAS DO AVERROISMO LATINO A primeira consequência da introdução do aristotelismo na escolástica cristã foi a plena delimitação dos campos respectivos da razão e da fé. A razão é o domínio das verdades demonstradas, e por isso, o das demonstrações necessárias e dos princípios evidentes que as fundamentam; a fé é o domínio das verdades reveladas, privadas de necessidade demonstrativa e de evidência imediata, Esta distinção é solidamente mantida em toda a história posterior do aristotelismo escolástico, ou melhor de toda a escolástica. Mas a obra de S. Tomás não se tinha limitado ao reconhecimento desta distinção: antes havia pretendido ultrapassá-la, estabelecendo entretanto a impossibilidade de qualquer oposição entre os dois termos. "Pois que só o falso é oposto ao verdadeiro, dizia S. Tomás, como é evidente pelas suas respectivas definições, é impossível que a verdade da fé seja contrária aos princípios que a razão
61 conhece naturalmente" (Contra Gent., 1, 7). Toda a doutrina tomista está organizada com o fim de tornar impossível esta oposição: o princípio da analogicidade do ser, no sentido em que é desenvolvido por S. Tomás, serve precisamente, por um lado, para demonstrar que o próprio estudo dos seres naturais tem necessidade de uma integração sobrenatural, e por outro lado, serve para situar tal integração na zona do ser em que a capacidade demonstrativa da razão não pode alcançar nem a afirmação nem a negação. Tomese como exemplo a maneira como S. Tomás trata do problema da criação, o qual se iria tornar, fora do tomismo, um dos pontos cruciais da polémica escolástica: a criação é uma verdade de razão, isto é, demonstrável; no entanto, não se pode demonstrar nem que tenha sucedido no tempo, nem que se situe fora do tempo, por isso é lícito crer que tenha acontecido no tempo (§ 278). O tomismo tentou assim demonstrar a coincidência dos dois princípios, um de estrita inspiração aristotélica, exprimindo o outro a própria possibilidade da investigação escolástica: isto é, do princípio segundo o qual "é impossível que seja falso o contrário de uma verdade demonstrável" com o princípio: "é -impossível que uma verdade de fé seja contrária à verdade demonstrável". Todavia, a não coincidência destes dois princípios tinha sido a base do aristotelismo averroista. O aristotelismo, ou seja, a filosofia, tinha sido entendido por Averróis (claro que num sentido mais conforme com as suas intenções originais) como não necessitando e não sendo susceptível de integrações não-demonstrativas: continha, portanto, segundo Averróis, tudo aquilo em que o filósofo deve acreditar (que coincide com aquilo que pode demonstrar) e constitui a verdadeira religião do filósofo, enquanto que a religião revelada não é senão um modo aproximativo e imperfeito de se acercarem das próprias 62 verdades aqueles que não são capazes de seguir a via da ciência e da demonstração. Deste ponto de vista não se podia excluir a possibilidade duma oposição entre as afirmações da ciência e as crenças da fé: mesmo que não se tratasse de uma oposição entre duas verdades, mas sim entre dois modos de exprimir a mesma verdade, dos quais um, o da fé, é muito mais imperfeito do que o outro porque, embora. estando adaptado à sua tarefa prática (a de dirigir as multidões no caminho da salvação) está privado da necessidade racional própria da ciência. Claro que a expressão "doutrina da dupla verdade", que foi posteriormente inventada e é ainda frequentemente adoptada a propósito de Averróis, dos averroístas e de qualquer outro ponto de vista que de qualquer forma admita a possibilidade de uma oposição entre a razão e a fé, tal expressão não é muito exacta: para Averróis, em particular, a verdade é uma só. Mas para os averroístas dos séc. XIV e XV essa expressão pode considerar-se dotada de uma certa verdade no sentido em que designe qualquer posição que reconheça uma oposição entre as conclusões da filosofia e as crenças da fé e não se preocupe em eliminar ou conciliar tal oposição. Na sua base, e como inspiração fundamental de todo o averroísmo, está o conceito da filosofia como ciência rigorosamente demonstrativa, e da felicidade do filósofo como coincidindo com a posse de tal ciência: não
inclui porém o conceito que, para lá desta ciência e desta felicidade, existem uma verdade e uma felicidade diferentes, as quais são dadas pela fé. Desta forma, o averroísmo podia chegar, e chegou, ao reconhecimento explícito de pontos de oposição entre os dois domínios, e não oferece nenhum princípio para anular tais oposições. Foi esta a situação em que se colocou aquela corrente que (na expressão de Renan) chamamos o averroísmo latino; corrente da qual só alguns estudos e descobertas recentes 63 permitiram conhecer o alcance, dado que as condenações teológicas de que foi objecto haviam impedido * difusão e a publicação do material historiográfico * ela relativo. Fazem parte desta corrente Siger de Brabante, Boécio de Dácia, Bernier de Nivelles e Gosvino de Chapelle; mas destes dois últimos quase nada se sabe. § 284. SIGER DE BRABANTE: VIDA E OBRA Siger de Brabante, mestre da faculdade de artes da Universidade de Paris, aparece pela primeira vez na história a 27 de Agosto de 1266, a propósito de desordens que se tinham verificado naquela Universidade. A data do seu nascimento foi fixada, com uma certa probabilidade, cerca de 1235. Em 1270, o dominicano Egídio de Lessines (que morreu cerca de 1304) expunha, numa carta a Alberto Magno, quinze teses sustentadas pelos mais célebres mestres de filosofia do estudo parisiense: 1. O intelecto de todos os homens é numericamente uno e idêntico. 2. A proposição w homem entende" é falsa e imprópria. 3. A vontade do homem quer e escolhe por necessidade. 4. Todos os acontecimentos sublunares estão submetidos necessariamente aos corpos celestes. 5. O mundo é eterno. 6. Nunca existiu um primeiro homem. 7. A alma, que é a forma do homem individual, morre com a morte do homem. 8.O A alma separada depois da morte não sofre o fogo corpóreo. 9.O O livre arbítrio é uma potência passiva, não activa, e é movido necessariamente pelo objecto do desejo. 10.1 Deus não conhece as coisas particulares. 11. Deus não conhece aquilo que é diferente de si próprio. 12. As acções humanas não são regidas pela providência divina. 13. Deus não pode dar a imortalidade ou a incorruptibilidade a uma coisa mortal 64 AVERROIS ou corporal. 14. O corpo de Cristo, que foi crucificado e sepultado, não é ou não foi sempre numericamente idêntico, mas só relativamente. 15. O anjo e a alma são simples, ainda que não de uma simplicidade absoluta, não porque se aproximem do que é composto, mas porque se afastam do que é sumamente simples. As treze primeiras teses constituem os princípios do averroísmo parisiense; as duas últimas pertencem à doutrina tomista porque, em substância, exprimem o princípio da unidade das formas e a simplicidade das substâncias espirituais enquanto privadas de matéria. Como resposta e refutação destas teses, Alberto Magno escreveu o seu tratado De quindecim
problematibus; e, provavelmente em consequência dessa refutação, o arcebispo de Paris, Estevão Tempier, condenou as treze proposições nos finais desse mesmo ano de 1270. O averroísmo continuou todavia em Paris a sua propaganda, sob a direcção de Siger e de Boécio de Dácia, até 7 de Março de 1277 quando o mesmo arcebispo procedeu à condenação de 219 proposições, que pertenciam não só ao averroísmo, mas também à doutrina peripatética em geral. Esta segunda condenação assinalou o fim do averroísmo latino. Em 23 de Outubro de 1277 o inquisidor de França, Simão du Val, citou Siger de Brabante perante o seu tribunal para responder a uma acusação de heresia. Parece que Siger apelou para Roma e que a condenação foi confirmada. Ao certo sabemos que foi internado na própria corte de Roma e passou a segui-Ia nas suas deslocações. entre 1281 e 1284, enquanto a corte papal estava em Orvieto, Siger foi assassinado por um clérigo meio louco que estava ao seu serviço. São os seguintes os escritos atribuídos a Siger que, com um certo fundamento, podem considerar-se autênticos: 1. Quaestio utrum haec sit vera: homo est animal, nullo homo existente (1268); 2.O Sophis65 ma: omnis homine de necessitate est animal (1268); 3. Cotipendium super librum De generatione et corruptione (depois de 1268); 4.O Quaestiones in librum tertium De anima (cerca de 1268); 5.O Quaestiones logicales; 6. Quaestiones supra secundum Physicorum (cerca de 1270); 7. Impossibília (1271-72); 8. Quaestiones naturales (cerca de 1271); 9. De aeternitate mundi (cerca de 1271); 10. Tractatus de anima intellectiva (1272-73); 11. De necessitate et contingentia causarum (cerca de 1272); 12. Quaestiones naturales (cerca de 1273); 13.O Quaestiones super 11-VII Metaphysicorum (1272-74), 14.o Quaestiones morales. Destas obras, umas foram publicadas por historiadores modernos e outras apareceram em estratos ou resumos. São atribuídas a Siger muitas outras obras; mas algumas perderam-se completamente e outras são de autenticidade duvidosa ou contestada. § 285. SIGER: NECESSIDADE DO SER E UNIDADE DO INTELECTO A fidelidade de Siger ao aristotelismo de feição averroísta aparece perfeitamente na quaestio: se será verdadeira a preposição "o homem é animal" supondo que não exista nenhum homem. Com efeito, tal questão relaciona-se com a distinção real entre essência e existência, que tinha servido a S. Tomás para a sua reforma do aristotelismo, Siger responde que "se se suprimem os homens individuais, suprime-se aquilo sem o qual a natureza humana não pode subsistir, e suprime-se assim a própria natureza humana". Destruímos os indivíduos, o homem deixa de existir; por isso, não se lhe pode chamar nem animal nem qualquer outra coisa. Essência e existência não são separáveis, nem sequer nas coisas finitas. 66
Era assim eliminado o princípio que S. Tomás tinha utilizado para mostrar que o ser das coisas finitas é um ser criado e supõe a acção activa de Deus; e Siger regressava ao princípio aristotélico (conservado pelo averroísmo) segundo o qual o ser, na sua estrutura universal, é necessário e eterno. Consequentemente admitia a eternidade da matéria, do movimento e das espécies, reafirmando o princípio de que nenhuma espécie de entes começa a ser no tempo (De an. intell., ed. Mandonnet, 11, 159). Portanto, eterna é inclusivamente a alma intelectiva, que não é de forma nenhuma uma parte ou uma faculdade da alma humana. Está ligada ao corpo somente enquanto coopera com ele num único trabalho (opus), que é o de entender. Mas é numericamente una e idêntica em todos os homens porque, tendo o seu ser separado da matéria, não se multiplica com a multiplicação da matéria ou com a multiplicação dos corpos. Acontece com ela aquilo que acontece com todas as espécies (por exemplo, "homem") que são participadas por vários indivíduos, os quais diferem entre si material e numericamente, mas que, como forma deles, permanece única e indivisa e não se multiplica com a multiplicação dos indivíduos (De an. intel., 7). O De unitate intellectus de S. Tomás, que nalguns manuscritos é explicitamente indicado como tendo :sido dirigido contra Siger (contra magistrum Sogerum), deve ter sido escrito para refutar uma obra de Siger; não porém para refutar o Acerca da alma intelectiva, o qual, pelo contrário, parece antes ser uma resposta às objecções de S. Tomás. A principal destas objecções é, como vimos (§ 279) que se o intelecto fosse uma substância separada, não seria o próprio homem a entender; ao que Siger responde que o intelecto actua no homem não como um motor, mas operans in operando, isto é, 67 como um princípio directivo da sua actividade intelectual. E precisamente enquanto o homem sapiente participa nas acções do intelecto activo ou, pelo menos, permite que essas acções nele operem, que alcança aquela felicidade puramente contemplativa possível de já obter dessa maneira, como Siger sustentava num tratado desaparecido (De felicitate) mas de cuja ideia restam traços em alguns averroístas do renascimento, especialmente em Nifo. § 286. SIGER: A ETERNIDADE DO MUNDO E A DOUTRINA DA DUPLA VERDADE A unidade e eternidade do intelecto era uma tese que na filosofia de Siger, tal como no aristotelismo muçulmano, estava estreitamente ligada à da necessidade do ser em geral, e constituia um simples corolário desse princípio mais geral. A esse mesmo princípio se liga a outra tese típica do averroísmo, e da eternidade do mundo. Com efeito, se o mundo é necessário não pode ter tido um começo e é eterno. E Siger considera a necessidade do mundo como sendo uma verdade demonstrada, que deriva da própria necessidade do ser divino. Com efeito, Deus é necessariamente primeiro Motor ou primeiro Agente; como tal está sempre em acto; portanto, é preciso que mova ou actue sempre. Segundo este ponto de vista, a criação não é um acto livre de Deus mas deriva da sua própria necessidade; e desta necessidade deriva também o ciclo imutável da criação pelo qual todas as coisas retornam periodicamente nas mesmas condições, com base no movimento dos céus, que é o intermediário pelo
qual a necessidade divina actua no mundo. "Assim sucede, diz Siger, com as opi68 niões, as leis e as religiões: todas as coisas inferiores percorrem um ciclo determinado pela rotação dos corpos celestes, ainda que os homens não recordem o retorno periódico de muitas delas, dado o seu afastamento no tempo" (De an. intell., 7). Siger encontrava deste modo, através de Averróis, a concepção estóica do devir cíclico do mundo; e, admitindo a subordinação de todos os acontecimentos sublunares aos movimentos celestes, aceitava o determinismo astrológico dos muçulmanos. Todavia, perante o nítido contraste entre estas teses e os pontos fundamentais da fé cristã, Siger declara preferir esta última. "Estas proposições, diz ele, formulamo-las segundo as opiniões do filósofo, mas não afirmamos que sejam verdadeiras". E aponta a mesma reserva a propósito da separação do intelecto, dizendo: "Se a santa fé católica é contrária à opinião do filósofo, é a ela que nós preferimos, tanto neste caso como em todas as outras circunstância s". S. Tomás, referindo-se no De unitate (cap. 25) ao autor que pretende refutar, cita-lhe a seguinte frase: "Mediante a razão concluo necessariamente que o intelecto é numericamente uno, mas pela fé estou firmemente seguro do contrário". É esta a expressão típica da doutrina da dupla verdade; e contra ela, S. Tomás pode objectar que, nesse caso a fé seria contrária à razão, portanto, às verdades necessárias; e, por consequência, falsa. As expressões que encontramos nas obras conhecidas de Siger não são tão enérgicas como a que é referida por S. Tomás. Mas o seu sentido é talvez o mesmo; dado que o filósofo, ou seja, Aristóteles, é a própria encarnação da razão, tanto para Siger, como para Averróis, como para o próprio S. Tomás, e a irredutibilidade da sua opinião aos ensinamentos da fé significa um contraste irremediável entre as duas ordens da verdade: a verdade filosófica, 69 baseada como diz Siger "na experiência humana e na razão" e a verdade da fé, baseada na revelação. § 287. BOÉCIO DE DÁCIA O contraste entro as duas ordens de verdades aparece ainda mais nítido na obra do dinamarquês Boécio de Dácia, que foi aluno de Siger, e também foi mestre do estudo parisiense. Boécio foi autor, a',ém de Comentários às obras aristotélicas, de um trabalho sobre lógica, De modis significandis, e de outros tratados: De summo bono,- De somniis; De mundi aeternitate: este último, só recentemente editado, é particularmente significativo para a história do averroísmo. Vimos que o princípio fundamental que o averroísmo latino aproveitava do aristotelismo muçulmano é o da necessidade do ser em geral: com efeito, derivam deste princípio as duas teses típicas deste averroísmo, a da eternidade do mundo e a da eternidade do intelecto activo. Boécio afirma
claramente o princípio da necessidade como exigência de quaisquer considerações racionais ou naturais do mundo. Do ponto de vista racional, de facto, a natureza é "o primeiro princípio no género das coisas naturais, e é o primeiro princípio que o filósofo natural pode consideram (De mundi aet., ed. Sajó, p. 96-97). O que significa que, para lá da natureza, não existe, racional e humanamente falando, nenhum princípio superior; e que o mundo pode e deve ser explicado com base num seu princípio imanente que não reenvie a nada de superior à natureza ou de diferente dela. Do ponto de vista da filosofia natural, a criação é portanto impossível: "possível" ou "impossível" são com efeito qualificações que o filósofo adopta "com base nas razões que são investigáveis pelo homem" ; dado 70 que mal abandona estas razões ele deixa de ser filósofo. "A filosofia não se baseia na revelação nem nos milagres" (1b., p. 117). Mas aquilo que é impossível para a filosofia não é impossível absolutamente ou em si, já que é dito impossível somente no âmbito de um universo de discurso no qual valem como decisivas as razões naturais e os princípios em que elas se baseiam. Fora deste universo, a criação pode ser admitida como possível: isto é, possível para uma causa "maior que qualquer causa natural": ou seja, que não conheça, ou transcenda, as limitações ou os comportamentos próprios das causas naturais. A criação do mundo, que é racionalmente impossível, pode ser possível a uma tal causa; e o reconhecimento dos dois diferentes universos do discurso, paralelos e irredutíveis e em que se situam aquela impossibilidade e esta possibilidade, é a única "concordância" que, segundo Boécio de Dácia, pode haver entre a filosofia e a fé. Este ponto de vista tornava óbviamente impossível a investigação escolástica e a ciência teológica que era a cúpula ou a filha predilecta dessa investigação: assim se explica porque é que isso foi constantemente considerado como um escândalo enquanto a escolástica permaneceu viva como a única forma possível de filosofia, e porque é que, pelo contrário, foi aceite e reconhecido à medida que o próprio problema escolástico se encaminhava para a sua dissolução. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 284. A figura de Siger de Brabante só recentemente pôde ser estudada. As investigações de HAURÉAU ("Journal des savants", 1886, 176-183; Histoire litt. de Ia France, vol. 30, 1988, 270-279; Notices et extraits, V, 88-89) e de DENIFLE (Chart. Univ. 71 Paris, 1, 487, 556) haviaxn esclarecido que as condenações pronunciadas em 1270 e em 1277 pelo bispo de Paris, Estêvão Tempier, eram fundamentalmente dirigidas contra o ensino de Siger. Mas quando BAEUMKER publicou em 1898 os Impossibilia (in "Beitrãge", 11, 6) considerou-as (confirmando a opinião de HAuRÉAU) como uma obra polémica de autor desconhecido, e dirigida contra Siger; com a excepção de
seis únicas teses, que seriam do próprio Siger. MANDONNET (Siger de Brabante et Vaverroisme latin au XIII, Wele, I, Lovaina, 1911, p. 119 e ss.), demonstrou que toda a obra pertence a Siger, e que é constituída por uma série de sofismas, que, como era uso na Idade Média, tinham sido discutidos e refutados na escola, na presença do mestre (neste caso Siger). £ a reportatio, o resumo escrito, feito por um aluno de Siger, dos exercicios dialécticos que se faziam na escola. Ao mesmo gênero pertencem os Impossibilia de SIGER DE COURTRAI, que foi confundido, durante muito tempo, com Siger de Brabante. Dele sabemos que foi Mestre de artes = 1309, membro da Sorbonne em 1310 e Decano da igreja de Santa Maria de Courtrai de 1308 a 1330. As obras de Siger foram parcialmente editadas nos dois trabalhos abaixo mencionados de Mandonnet e Van Steenberghen. A carta de Egidio de Lessines foi editada pela primeira vez em Mandonnet, II, 29 e ss. Que o De unitate intellectus de S. Tomás não seja a refutação do De anmia intellectiva de Siger (como Mandonnet considerava), mas que pelo contrário este seja uma refutação do primeiro, foi demonstrado pela primeira vez por CHOSSAT, Saint Thomas d'Aquin et Siger de Brabant, in. "Revue de Phil., 1914, 553 e ss., e confirmado por NARDI, in Tommaso d'Aquino. Opuscoli e testi filosofici, 11, 7-8; por OTTAVIANO, Intr. à tradução do opúsculo tomista, Lanciano, 1935. Sobre a doutrina da dupla verdade: GILSON, La doctrine de Ia double vérité, in Êtudes de phil. médiév., p. 51. Sobre Siger: P. MANDONNET, S. de B. et Vaverroisme latin du XIII- siècle, 2.1 ed. em 2 vol., Lovaina, 1908-1911; F. VAN STEENBERGHEN, S. d. B. dlaprès ses oeuvres inédites, 2 vol., Lovaina, 1931-1942 (com ampla bibli.); C. A. GRAIFF, S. d. B. Questions sur Ia Métaphysique, Lovaina, 1948; J. J. DUIN, La doe72 BO]PCIO trine de Ia Providence dans les écrits de S. d. B., Lovaina, 1954 (com bib1.completa). Importante, também para as obras desaparecidas, B. NARDI, S. d. B. nel pensiero del Rinascimento italiano, Roma, 1945. § 287. De Boécio: De summo bono e De somniis, ed. Grabmann, in Mittelalterliches Geistesleben, II, p. 200-224; De mundi aeternitate, ed. Sajó, Budapeste, 1954. GREcoRY,Discussioni sulla doppia verità, in "Cultura e scuola", Roma, 1962, p. 99-106 (com bibli). 73 XVII
A LÓGICA DO SÉCULO XIII § 288. LÓGICA DO SÉCULO XIII: DESENVOLVIMENTO DA LóGICA MEDIEVAL Quando, nos meados do século XIII, a lógica começou a ser considerada em íntima relação com a gramática, e, portanto, como uma doutrina dos termos, isto é, das palavras, consideradas como signos convencionais das coisas, esta concepção é contraposta como via moderna à concepção tradicional da lógica designada como via antiga. Às duas partes da lógica aristotélica, denominadas agora como ars vetus, compreendendo as Categorias e as Interpretações, e ars nova, compreendendo os Analíticos primeiros e segundos, os Tópicos e os Elencos sofísticos, acrescenta-se agora, com base na nova tendência, um outro corpo de doutrinas constituídas pelo estudo das propriedades dos termos. É principalmente neste estudo que toma corpo a tendência terminista ou nominalista da lógica do séc. XIII. Ela aparece já na lógica de Guilherme Shyreswood (falecido em 1249) e de 75 Lamberto de Auxerre; mas difunde-se sobretudo através da obra de Pedro Hispano, autor do mais famoso compêndio medieval de lógica. Nos escritos destes autores e nos dos muitos outros que lhes seguiram as pegadas, nunca vem mencionada a diferença entre a lógica aristotélica e perspectiva conceptual própria da lógica entendida como estudo das propriedades dos termos. As duas matérias vêm simplesmente justapostas; a lógica aristotélica é amputada das suas numerosas implicações ontológicas e metafísicas e reduzida, tanto quanto possível, ao seu esqueleto formal. Mas o tratamento dos problemas ontológicos e gnoseológicos, sempre implícitos nos estudos de lógica, é feito em conformidade com a nova orientação nominalista que começa a prevalecer a partir da segunda metade do séc. XIII. Esta orientação é em grande parte inspirada em Abelardo, do qual repete a perspectiva ontológica e gnoseológica; mas os conceitos de que se serve são extraídos da lógica estóica, conhecida através da obra de Cícero e de Boécio. E dado que a lógica estóica estava baseada no raciocínio hipotético, e que no organon aristotélico o raciocínio hipotético é próprio da dialéctica como faculdade do provável, a dialéctica, neste mesmo sentido de ciência provável, começa a impor-se à lógica e a englobar toda a lógica nos seus processos. Diz Pedro Hispano: "A dialéctica é a arte das artes, é a ciência das ciências que abre caminho aos princípios de todos os métodos. De facto, só a dialéctica discute com probabilidade os princípios de todas as outras artes, pelo que deve vir em primeiro lugar na aquisição das ciências" (Summulae logicales, 1, 10. De acordo com o espírito da lógica estóica, a lógica terminista é fundamentalmente empirista. Os termos, dos quais estuda as propriedades, não indicam formas substanciais, não exprimem as estru76 turas necessárias do ser ou o ordenamento ontológico do mundo, mas indicam somente objectos de experiência: coisas ou pessoas ou, ainda, outros termos.
A sua propriedade fundamental é, portanto, a suposição (suppositio): isto é, a propriedade pela qual, em todos os enunciados e raciocínios em que ocorrem, eles estão por (supponunt pro) tais objectos, e não por alguma outra forma, estrutura ou entidade de qualquer género. A doutrina da suppositio é a principal característica da nova lógica. Outra característica importante é o relevo que nela assume a doutrina das consequentiae, ou seja, dos raciocínios imediatos (sem termo médio), próprios da lógica estóica. Invertendo o procedimento característico de Aristóteles, que procurava reduzir ao silogismo todos os tipos de raciocínio, os lógicos terministas procuram reduzir todas as formas de raciocínio, incluindo o silogismo, a uma conexão do tipo "se... então". Deste modo, o desenvolvimento da lógica segue a nova orientação da investigação filosófica: a qual, do campo da teologia em que permanecera durante o primeiro período da escolástica, se afastava cada vez mais para o da física e da antropologia, considerados como mais acessíveis às capacidades da razão humana e mais fecundos de resultados positivos. Lógica terminística, nominalismo e pesquisa física e antropológica são os três aspectos interrelacionados que caracterizam a escolástica da segunda metade do séc. XIII e do séc. XIV. Tais aspectos fazem com que a escolástica deste período assuma, na discussão dos problemas que preocupavam principalmente a escolástica precedente, uma atitude essencialmente crítica: orientação que leva a uma revisão dos conceitos da metafísica tradicional e a um cepticismo teológico. 77 § 289. PEDRO HISPANO Pedro Hispano (Hispanus) nasceu em Lisboa, na segunda década do séc. XIII; estudou em Paris com Guilherme Shyreswood, do qual provavelmente extraiu as directrizes da sua lógica. Foi bispo cardeal de Tusculo, o em 1276 foi eleito papa, adoptando o nome de João XXI; faleceu, porém, no ano seguinte. Foi famoso como médico e deixou numerosas obras ou traduções de livros de medicina. Mas a sua importância no campo filosófico ficou a dever-se ao seu compêndio de lógica, escrito provavelmente, em Siena, onde ensinou, e que tem o título de Summulae logicales. Esta obra tem conteúdo idêntico ao da Sinopse da lógica aristotélica, escrita em grego e atribuída a Miguel Psello (10181078 ou 1096); e foi considerada como uma tradução da obra de Psello. Na realidade, a Sinopse atribuída a Psello não passa da tradução grega das Summulae logicales feita por Jorge Scholarios (1400-1464). Aparecem pela primeira vez nas Summulae as vogais, as palavras e os versos mnemónicos que passaram a ser correntemente utilizados para o ensino da lógica. Por exemplo, indica-se por A a proposição universal afirmativa, por E a universal negativa, por 1 a particular afirmativa e por O a particular negativa, e aparecem os versos: A adfirmat, negat E, sed unicersaliter ambae, i firmat, negat O, sed particulariter ambae. Para indicar as figuras e os modos do silogismo são indicadas as palavras mnemónicas Barbara, Celarent, Darii, Ferio, etc., cujas vogais indicam a quantidade e a qualidade das proposições que constituem as premissas e a conclusão do silogismo. Assim, no
78 silogismo Barbara, tanto as premissas como a conclusão são universais afirmativas. A obra está dividida em sete tratados: 1) a enunciação; 2) os universais; 3) os predicamentos; 4) o silogismo, 5) os lugares dialécticos; 6) os sofismas; 7) as propriedades dos termos. Os seis primeiros tratados expõem a ló gica de Aristóteles, o sétimo expõe a lógica moderna, ou seja, a lógica terminista. As propriedades dos termos consideradas nesta última parte são a suposição, a ampliação, a restrição, a denominação, a distribuição. Mas a mais importante destas propriedades é a suposição, cuja teoria constitui a parte central da lógica nominalista. A suposição distingue-se da significação enquanto, contrariamente àquela, é própria, não do termo isolado, mas do termo enquanto ocorre nas proposições, e constitui a dimensão semântica do próprio termo. Diz Pedro Hispano: "A suposição difere da significação porque a significação é a imposição de um vocábulo à coisa significada, enquanto que a suposição é a acepção do próprio termo já significante por qualquer outra coisa; e, por exemplo, quando se diz o homem corre este termo homem está em vez de Sócrates ou Platão ou outro qualquer. A significação é prévia à suposição, e as duas não são idênticas dado que o significado é próprio do vocábulo e pela significação (Summulae, 6, 03): A distinção entre as várias espécies de suposições e os problemas que originam constitui a matéria desta parte da lógica, e cria também os pontos de discordância e de discussão entre os próprios lógicos da via moderna. Mencione-se somente a distinção que, tendo sido formulada por Podro Hispano foi depois vulgarmente aceite pelos lógicos posteriores, ou seja, entre a suposição simples e a suposição pessoal. A suposição simples ocorre quando o termo comum é empregue em vez da coisa universal que ele representa, como quando se diz "o homem é 79 uma espécie", proposição em que o termo "homem" está em vez do homem em geral o não em vez de qualquer indivíduo humano. A suposição pessoal, pelo contrário, ocorre quando o termo comum está em vez dos indivíduos que ele compreende, como na proposição "o homem corre", onde o termo "homem" está em vez dos indivíduos humanos, isto é, em vez de Sócrates, Platão ou qualquer outro. A doutrina da suposição foi o maior instrumento forjado pela lógica medieval para um uso empírico da própria lógica, isto é, para um uso que não se refere a entidades de ordem metafísica. ou teológica, mas sim a realidades ou conceitos que permanecem nos limites da experiência, ou são, de qualquer forma, acessíveis ao homem. § 290. RAIMUNDO LÚLIO Ráimundo Lulio ocupa um lugar de relevo na história da lógica medieval. Nasceu em Palma de Maiorca em 1232 ou 1235. Começou por ser cortesão na corte de Jaime 11, mas em consequência de uma visão abandonou a vida mundana e dedicou-se à vida religiosa (1265). Passa então a dedicar-se à luta contra o Islamismo e escreve numerosas obras contra a filosofia muçulmana, especialmente contra o averroísmo; entretanto, ocupava-se também de outros estudos e, principalmente, de lógica. A partir de 1287 começou a viajar de cidade em cidade, na propaganda das suas ideias. Embora com escasso êxito,
deu lições em Paris, em 1282, sobre a sua Ars generalis. Viajou para Tunes, Nápoles e pelo Oriente, após o que regressou, voltando a viajar pelas cidades europeias. Em 1314 voltou a embarcar para Tunes e, segundo uma lenda, morreu lapidado pelos muçulmanos em 29 de Junho de 1315. A sua actividade literária foi vas80 tíssima e variada . Escreveu poemas, romances filosóficos, obras de lógica e metafísica, tratados místicos, A sua hostilidade contra a filosofia árabe, especialmente contra o averroísmo, deriva da convicção de que a fé pode ser demonstrada com razões necessárias. A diversidade e a distinção que o averroísmo estabelecia entre a razão e a fé, fazem com que Raimundo Lúlio seja um seu encarniçado adversário. Segundo ele, a pró pria fé suscita nos crentes as razões necessárias que a justificam. A fé torna-se assim o instrumento do intelecto. O fim do intelecto não é crer mas entender, e a fé é a intermediária entre o intelecto e Deus, já que por seu intermédio o intelecto pode elevar-se até Deus e satisfazer-se assim no seu primeiro objecto (ars magna, IX, 63). Mas a importância de Raimundo Lúlio consiste na sua concepção de uma lógica entendida como ciência universal, fundamento Oe todas as ciências, concepção que ele expõe num tratado intitulado Ars magna et ultima. E dado que cada ciência tem os seus princípios próprios, diferentes dos princípios das outras ciências, deverá haver uma ciência geral, em cujos princípios estejam implícitos e contidos os das ciências particulares, tal como o particular está contido no universal. Mediante esta ciência geral, as outras ciências podem ser facilmente aprendidas (Ib., pref., ed. Zetzner, p. 218). Esta ciência não é a metafísica dado que não trata do ser; considera somente os termos de cuja combinação podem resultar os princípios de todas as ciências. Estes termos são nove predicados absolutos (bondade, grandeza, eternidade ou duração, potência, sabedoria, vontade, virtude, verdade, glória); nove predicados relativos (diferença, concordância, contraste, princípio, meio, fim, maioria, igualdade, minoria); nove questões (se, o que, de que, porque, quanto, qual, quando, onde, de que 81 modo ou com quo), nove sujeitos (Deus, anjo, céu, homem, imaginação, sensíveis, vegetativos, elementares, instrumentais); e ainda nove virtudes e nove vícios. A ars magna deve consistir essencialmente na capacidade de combinar os termos mencionados, de modo a formar com eles todas as verdades naturais que o intelecto humano pode atingir. A ars magna é portanto verdadeiramente a arte, da combinação dos termos simples, para a descoberta sintética dos princípios das ciências. Este conceito da arte combinatória suscitou seguidores entusiásticos no Renascimento, entre os quais Agrippa, Carlos Bovillo e Giordano Bruno. O próprio Leibniz, mais tarde, retomou o conceito luliano de uma arte combinatória como fundamento de uma ciência inventiva, isto é, dirigida a descobrir por via sintética as verdades das ciências. E é precisamente esta a originalidade de ars magna de Raimundo Lúlio. Numa época em que a lógica era exclusivamente concebida como ciência analítica, como procedimento que se limita a decompor o pensamento nos seus termos para os
estudar independentemente, LUlio estabelece a exigência de um procedimento sintético e inventivo que não se limite a analisar as verdades conhecidas, mas que sirva para descobrir novas verdades. Trata-se de uma aspiração utópica, que apareceu várias vezes na história do pensamento. Reduzir o longo e paciente trabalho de investigação que toda a ciência supõe, e pelo qual progride, a uma técnica simples e rápida, aplicável a todas as ciências, qualquer que seja o seu objecto, é um ideal demasiado atraente para que o homem não se lhe dedique, por vezes, com complacência. É todavia um ideal utópico, porque todas as ciências, à medida que progridem, constróem a sua lógica, ou seja, a sua disciplina de investigação; e esta disciplina não pode ser conhecida de 82 antemão nem aplicada automaticamente a todas as ciências. Porém, talvez se possa ver no ideal da ars magna de Lúlio a primeira manifestação da consciência do carácter construtivo e sintético da disciplina da investigação científica. Os outros aspectos da especulação de Raimundo Lúlio, o filosófico, o teológico e o místico, retomam motivos já conhecidos da tradição escolástica. e, portanto, não oferecem senão um escaço interesse. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 288. Sobre a polémica -entre a via antiga e a via moderna: PRANTI, Gesch. der Logik, II, p. 261 ess.; II]@ p. 26, n. 103; IV, passim. § 289. As Summulae logicales de Pedro Hispano foram editadas pela primeira vez em 1480 e tiveram numerosas edições no século XVI, assim como duas edições recentes: a de Mulilally, Notre Dame, (Ind.), 1945 e a de Bochensky, Turim, 1947. Nesta última aparecem abreviadas e organizadas em 12 tratados em vez de sete. As citações do texto seguem esta última edição. As outras obras: Obras filosoficas, ed. Alonzo, 3 vol., Madrid, 1942-1952. A Sinop3e atribuida a Psello foi considerada como o original, da obra de Pedro Hispano pelo seu primeiro editor Ehinger em 1592 e a opinião era aceite por BRUCKER, Historia critica philosophiae, III, Leipzig, 1743, p. 817; e retomada depois por PRANTL, Gesch. der Logik, II, p. 264; 111, p. 18. Esta opinião foi combatida por TRUROT in "Revue Archéol.", X, p. 267-281 e in "Revue Critique>, 1867, 194-203, o qual, pelo contrário, vê na Sinopse a tradução das Summulae logicales de Pedro Hispano. Esta opinião, confirmada por STAPPER, Papst Iohannes XXI, MUnster, 1898, p. 16 e ss. e por ZERVOS, Un philosophe néoplatonicien du XI siècle: M. Psellos, Paris, 1920, p. 39-42, pode considerar-se como definitivamente estabelecida. E. ANOLD, Zur Geschichte der SuppositionsIchre, In "Symposion", M, Mónaco, 1952. Bibliografia sobre Pedro Hispano, in "Rev. Portuguesa de Fil.>, 1952. 83
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§ 290. A primeira edição completa das obras de Raimundo Lúlio foi impressa em Estiasburgo (Argentorati), 1598, e depois reimpressa várias vezes. Uma edição, não completa, foi organizada por Salzinger e impressa em Mogúncia, 1721-1742, e abrange 10 vGI. in-folio; além destas: Obras originales de R. L., Palma de Maiorca, 1906 e ss.; Opera latina, Palma de Maiorca, 1952 e ss.; Obras essencials, Barcelona, 1957-1960. Sobre a actividade de Lúl,io contra o averroismo: RENAN, Averroès et l'averroisme, p. 255 e ss. Sobre a relação de Lúlio com a filosofia muçulmana: KMCHER, in <@@Beitrãge", VIII, 4-5, 1909. Sobre a lógica: PRANTL, Gesch. der Logik, 111, p. 145-177. Sobre a mística: PROBST, in "Bp-itrãge", XIII, 2-3, 1914. Sobre a figura de Lúlio duma maneira geral: PROBST, Caractère et origine des idées du bienheureux Raymond Lulte, Toulouse, 1912. OTTAVIANO, L'ars compendiosa de R. L., avec une étude sur Ia bibliographie et le fand ambrosien de Lu-lle, Paris, 1930 (com bibi.); PAOLo Rossi, Clavis universaZis, Milão, 1960, passim. Cf. também sobre todos os aspectos da obra de Lúlio os fascículos dos "Estudos Lullianos", Palma de Maiorca, 1957 e ss. 84 XVIII A POLÉMICA SOBRE O TOMISMO § 291. A LUTA CONTRA S. TOMÁS Na luta contra o averroísmo encontravam-se coligadas as forças da tradição platónico-agustiniana e as do novo aristotelismo de Alberto o Magno e S. Tomás de Aquino. Mas este aristotelismo representava, para a orientação tradicional da escolástica, um desconcertante desvio em relação aos cânones interpretativos que ela seguira desde o seu início. Apesar do equilíbrio evidente da síntese tomista, a qual, reconhecendo a relativa autonomia da razão tal como havia sido encarnada e expressa pela filosofia de Aristóteles, a utilizava como um dócil instrumento para a explicação e defesa da verdade, a distância a que esta síntese se encontrava do que até então tinha constituído o caminho principal da interpretação dogmática, bastaria para provocar lutas e dissenções. Assim foi, com efeito. Na condenação pronunciada em 7 de Marco de 1277 pelo bispo de Paris, Estevão Tempier (§ 284), estavam incluídas, entre diversas proposições averroístas, algumas teses de S. Tomás, 85 precisamente as que se referem ao princípio da individuação e a negação de que as substâncias intelectivas sejam providas de matéria. Eram estas as teses que mais contrastavam com a doutrina platónico-agustiniana, tal como havia sido exposta, por exemplo, na Summa de Alexandre de Hales. Pouco tempo
depois, a 18 de Março do mesmo ano, o arcebispo da Cantuária, Roberto KiIwardby, condenava também a outra doutrina típica do tomismo, a da unidade da forma substancial no homem, ou seja a afirmação de que "a alma vegetativa, sensitiva e intelectiva, constituem uma única forma simples". Era o outro ponto em que o tomismo significava um nítido afastamento em relação ao augustinismo tradicional. A condenação era tanto mais significativa quanto provinha de um dominicano, de um confrade de S. Tomás. Roberto Kilwardby, nascido em Inglaterra, tinha estudado em Paris onde alcançara o título de Magister artium. Regressando a Inglaterra, ingressara na ordem dos dominicanos e foi mestre de teologia em Oxford de 1248 a 1261. Em 1272 ora arcebispo da Cantuária. Nomeado cardeal em 1278 veio a morrer em Viterbo no ano seguinte. É autor de Comentários às obras lógicas de Aristóteles, Porfírio, Boécio, à Física e à Metafísica de Aristóteles, de um Comentário às Sentenças e de uma introdução à filosofia intitulada De ortu et divisione philosophíae, na qual são utilizádas fontes cristãs e árabes. Estes escritos permaneceram inéditos e só modernamente foram publicados alguns extractos ou dados sobre eles. Kilwardby segue a tradição agustiniana e poleraíza vivamente contra S. Tomás. Com Boaventura, defende a doutrina das razões seminais, acolhida dos Estóicos por Santo Agostinho. A "matéria-prima natural" deve considerar-se, não como privada de forma e actualidade, mas sim como algo "dotado das dimensões corpóreas e 86 impregnado pelas razões seminais ou originais, as quais irão produzir as formas de todos os corpos específicos". Contra S. Tomás insiste na distinção entre as várias partes da alma humana. A alma humana não é simples mas composta: nela, as partes vegetativa, sensitiva e intelectiva são essencialmente distintas e constituem uma unidade só pela sua ordem e união natural. A condenação contra S. Tomás foi confirmada pelo seguidor e sucessor de Kilwardby no arcebispado da Cantuária, João Peckham, a 29 de Outubro de 1284 e a 30 de Abril de 1286, especialmente no que se refere à unfflade da formaalma no homem. Peckham, nascido em 1240, estudou em Paris com S. Boaventura, e pertencia à ordem franciscana. Ensinou teologia em Paris e em Oxford, em 1276 foi nomeado leitor do Santo Palá cio em Roma, e em 1279, arcebispo da Cantuária. Morreu em 8 de Dezembro de 1292. Ficou inédito um grande número das suas obras. Compôs uma Collectanea bibliorum sobro a concordância entre os livros bíblicos, obras do física (Perspectiva comniunis, Tractatus sphaerae, Theorica planetarum); um Comentário ao Livro 1 das Sentenças, uma obra Sobre Ética e uma série de escritos exegéticos e polémicos em defesa do ideal de pobreza dos franciscanos. Para a polémica entre o augustinismo e o tomismo são importantes as suas Cartas, algumas das quais só recentemente foram publicadas. Numa delas, datada de 1 de Junho de 1285, depois de condenar as novidades introduzidas em teologia nos últimos vinte anos, enumera os pontos fundamentais do augustinismo, aos quais, com Alexandre de Hales e S. Boaventura, a ordem franciscana se tinha mantido fiel, e que constam das doutrinas sobre a lei eterna, a luz imutável, as diversas potências da alma e as razões seminais insitas na matéria. Numa quaestio disputata sobre a luz eterna como guia do conhecer 87
humano (ed. Quaracchi, p. 180), põe três condições do conhecimento: a luz criada, mas imperfeita, do intelecto humano, a luz incriada e supraresplandescente, o o intelecto possível que apreende a espécie inteligível. No mesmo plano polémico de Peckham, move-se Guilherme de la Mare seu compatriota e confrade franciscano, o qual ensinou em Oxford, morreu em 1298 e foi autor dum Correctorium fratris Thoinae, em que são indicadas e censuradas 118 proposições extraídas das obras principais de S. Tomás (Siimma, Quaest. disputatae, Quest. quodlibetales e Sententiae). Enquanto o geral dos franciscanos prescrevia no capítulo de Estrasbwgo de 1282 a não difusão das obras de S. Tomás a não ser acompanhadas dos comentários de Frei Guilherme, a ordem dominicana reagia com vários Correctoria ou Defensoria corruptori fratris Thomae (deformando-se assim satiricamente o título da obra de Guilherme). O ,mais importante de tais Correctoria é o que falsamente foi atribuído a Egidio Romano (§ 294) e veio a ter muitas reimpressões. Há conhecimento de mais quatro obras idênticas, mas que no entanto permanecem inéditas. § 292. MATEUS DE ACQUASPARTA Enquanto a luta contra o tomismo era assim conduzida no plano da condenação e censura eclesiásticas, desenvolvia-se no plano doutrinal a polémica contra as posições filosóficas do tomismo. Mateus, nascido em Acquasparta, na Umbria, entre 1235 e 1240, pertencia à ordem franciscana; estudou em Todi e foi aluno de S. Boaventura na Universidade de Paris. Leccionou também em Paris como mestre de teologia. Em 1281 sucede a Peckham como Lector S. Palatii em Roma. Torna-se geral 88 da sua ordem em 1287, cardeal em 1288, bispo-cardeal de Porto e Rufina em 1291. Desempenhou cargos políticos no papado, de Bonifácio VIII, de quem era amigo. Morreu a 29 de Outubro de 1302. Escreveu um Comentário às Sentenças, um Comentário à Bíblia, Questioni disputatae. Só estas últimas foram recentemente editadas, no que se refere aos problemas do conhecimento. Mateus retoma totalmente a doutrina típica do augustinismo: o conhecimento dirigido pela luz dlivina. Contra o cepticismo da Nova Academia, sustenta que há duas ordens de conhecimento absolutamente certas: por um lado, a autoconsciência, por outro, os axiomas da lógica e as proposições da aritmética. A possibilidade de tais conhecimentos reside na luz divina. Para os alcançar, não basta a luz natural do intelecto humano, a não ser que ele se refira à Luz eterna, fundamento -perfeito e suficiente do conhecimento, a alcance e a toque no seu grau supremo. "Tudo aquilo que se conhece com absoluta certeza, conhece-se nas razões eternas e na luz da primeira Verdade" (ed. Quaracchi, 1903, p. 261). Este princípio é contraposto por Mateus de Acquasparta à doutrina de S. Tomás (que ele indubitàvelmente ,inclui entre os quidam philosophantes contra os quais polemiza), doutrina segundo a qual basta a acção do intelecto agente para abstrair a espécie das coisas e determinar assim o verdadeiro conhecimento delas. E é natural que ele rejeite a doutrina tomista aduzindo a autoridade de Santo Agostinho. "Não se pode destruir desde os seus fundamentos a doutrina do bem-aventurado Agostinho: ele é o doutor príncipe (doctor
praecipuus) que os doutores católicos, especialmente os teólogos, devem seguir (Ib., 252). E com efeito o conhecimento tem por objecto a essência das coisas, mas tal essência só se pode alcançar com o auxílio da luz divina. 89 Ao conhecer, por exemplo, o conceito de homem ou de qualquer outra coisa particular que tenha uma determinada essência, eu não conheço um nada, nem sequer um ser em potência ou algo única-mente apreensível que só subsista como tal: conheço sim, uma verdade eterna. Ora esta verdade eterna não pode ter o seu fundamento na coisa, dado que esta muda e a verdade não, a qual permaneceria válida ainda que a coisa não existisse. A afirmação "o homem é um animal racional" continuaria a ser válida mesmo que não existisse nenhum homem. E uma verdade eterna também não pode ter o seu fundamento no intelecto, dado que o intelecto é mutável e aquela verdade é válida mesmo que não exista nenhum intelecto criado. As verdades eternas, independentes do objecto a que se referem e do sujeito que as formula, devem portanto ter o seu fundamento no Eterno Exemplar, no qual, segundo a palavra de Santo Agostinho, "permanecem imutáveis as origens das coisas mutáveis e residem as razões das coisas transeuntes". O objecto do nosso intelecto é pois a essência da coisa enquanto é -referida pelo nosso intelecto (que tem o seu conceito) ao exemplar divino (Ib., 223). Todavia, a fidelidade professada por Mateus ao ensinamento agustiniano não lhe impede algumas concessões ao aristotelismo. Mateus serve-se dele para limitar ou corrigir o princípio agustiniano da pura interioridade do conhecimento. Se é certo que a regra e o fundamento supremo do conhecimento é a luz divina que do interior nos -ilumina, também é certo que o próprio conhecimento está condicionado pelas coisas externas, e assim Aristóteles (An. post., 11, 19) tem razão ao afirmar que o conhecimento é produzido em nós pela via dos sentidos, da memória e da experiência. Mateus distingue desta forma no conhecimento um elemento a priori e um elemento a posteriori um é o princípio formal, o outro 90 é o princípio material. A espécie, produzida no intelecto pela coisa, é o principio **naterial. A luz natural do intelecto agente é o princípio formal eficiente. A espécie levada ao acto pelo intelecto agente é o princípio formal, embora incompleto. A luz divina é o fundamento eficiente primário e principal e a luz por ela emanada é o princípio formal completo e perfeito (lb., 294). A polémica contra S. Tomás é também evidente num outro ponto fundamental da doutrina gnoseológica de Mateus de Acquasparta. Em primeiro lugar reafirma a validade da prova ontológica de Santo Anselmo. "Quando o intelecto, escreve (ed. Daniels, 61), apreende o significado do nome de Deus, como aquilo em relação ao qual nada de maior se pode pensar, de nenhum modo pode duvidar ou pensar que Deus não exista". Em segundo lugar, e enquanto S. Tomás tinha negado à alma humana a possibilidade de ter conhecimento directo de si mesma e dos seus próprios actos e atribuíra unicamente a Deus a possibilidade de tal conheci- mento, Mateus sustenta que a alma se conhece a si mesma e às suas disposições, não só deduzindo esse conhecimento dos seus próprios actos, mas também dum modo intuitivo e objectivo através das suas essências e
formalmente através das espécies por elas expressas (ed. Quaracchi, 334). S. Tomás defendia que a alma não tem conhecimento directo das coisas singulares, alcançando-o somente "com uma certa reflexão" (§ 275). Mateus afirma: "0 intelecto conhece as coisas singulares através das espécies singulares, os universais através das espécies universais, e não basta a espécie universal para também conhecer as coisas singulares" (ed. Quaracchi, 1903, 309). A contraposição da autoridade de Santo Agostinho às inovações do tomismo é típica do procedimento de Mateus de Acquasparta. Contudo, também 91 nele se faz sentir a influência do aristotelismo: o reconhecimento de uma condição empírica do conhecimento, o qual não tem precedentes na doutrina agustiniana, faz da sua gnoseologia uma doutrina ecléctica de escassa originalidade e coerência.
§ 293. A ESCOLA DE S. BOAVENTURA O ensino de S. Boaventura em Paris formou um numeroso grupo de discípulos, todos pertencentes à ordem franciscana. Para além dos mais importantes, João Peckham, Mateus de Acquasparta, Guilherme de Ia Mare, muitos outros de menor importância defenderam também o augustinismo franciscano. Rogério de Marston, que estudou em Paris por volta de 1270 e ensinou em Oxford e depois em Cambridge, autor de duas colecções de Quaestiones disputatae e de dois Quodlibeta, apresenta uma tentativa de conciliação entre o augustinismo e o aristotelismo. Embora defendendo com muita energia o princípio agustiniano segundo o qual a certeza do conhecimento depende exclusivamente da directa iluminação de Deus, considera que o intelecto agente, de que falou Aristóteles, é precisamente a luz divina que ilumina e conduz o intelecto humano até à verdade. Mas nesse caso o intelecto agente é verdadeiramente uma substância separada, porque é o próprio Deus (ed. Quaracchi, 207). Ricardo de Middletown que estudou em Oxford e cal Paris, ensinou em Paris e morreu em 1307 ou 1308, autor de um Comentário às Sentenças, de Quodlibeta, de Quaestiones disputatae e de escritos exegéticos, aproxima-se mais, pelo contrário, do ponto de Vista tomista. Considera que o intelecto humano é iluminado por Deus, não directamente (como na doutrina típica do augustinismo, mas 92 mediante uma "luz criada e natural que é irradiada por Deus" (ed. Quaracchi, 235). Ricardo também se afasta da corrente franciscana pela sua negação da prova ontológica de Santo Anselmo. Nesta mesma linha move-se Guilherme de Ware (ou de Guarra) que ensinou em
Paris nos fins do século XIII e foi mestre de Duns Escoto. Também ele considera que a luz natural, dada à alma por Deus, basta para conhecer tudo o que acontece no domínio do conhecimento natural sem necessidade de uma imediata iluminação sobrenatural. A propósito da prova ontológica, afirma que ainda que a proposição "Deus existe" seja conhecida por si própria, o homem não pode apreendê-la a não ser com esforço (cum magno labore), daido que os termos de que se compõe não são conhecidos por experiência. Pedro João Olivi, nascido em Serignano, no Languedoque, em 1248 ou 1249, falecido na Narbona em 1298, foi o chefe dos espirituais e defensor da pobreza absoluta da ordem franciscana, doutrina que iria suscitar lutas e oposições no seio dos próprios franciscanos e no da Igreja em geral. Nas suas obras é sobretudo notável a doutrina das relações entre a alma e o corpo. Posto o princípio de que as formas naturalmente primeiras só podem unir-se com as que são últimas através das formas intermediárias, admite que a alma intelectiva se una ao corpo mediante a alma sensitiva. Isto exclui a identidade da forma intelectiva com a forma sensitiva da alma e implica a doutrina da multiplicidade das formas. no composto, a qual era típica do augustinismo franciscano. § 294. A ESCOLA TOMISTA Enquanto os Franciscanos defendiam contra o aristotelismo tomista o regresso ao augustinismo 93 que havia sido vigorosamente sustentado por S. Boaventura, a ordem dominicana defendia com os seus professores e mestres a doutrina de S. Tomás. O grupo dos tomistas é numerosíssimo na segunda metade do século XIII; mas entre eles, a originalidade especulativa ou os ocasionais desvios da doutrina do mestre são ainda menos frequentes do que entre os franciscanos. O movimento tomista teve dois centros principais: um em Paris, outro em Nápoles. O chefe da escola tomista parisiense foi Hervé Nédélec (Herveus Natalis) que foi mestre na faculdade de teologia de Paris e morreu em Narbona, em 1323, um mês após o processo de canonização de S. Tomás. Escreveu um Comentário às Sentenças, Quaestiones disputatae, Quodlibeta e numerosos escritos polémicos. Na disputa sobre os universais, Hervé é o sustentador da chamada teoria da conformidade: o universal, que como tal existe somente no intelecto, objectivamente não é senão a conformidade real dos vários objectos por ele significados. Resulta pois da coincidência das coisas particulares em algum atributo ou carácter comum. O chefe da escola tomista de, Nápoles foi João de Nápoles ou de Regina que estudou e ensinou em Paris e foi depois mestre na Universidade de Nápoles. Autor de um Comentário às Sentenças (que porém. nunca se descobriu), de treze Quodlibeta e quarenta e duas Quaestiones disputatae, é o máximo defensor do tomismo desde os primeiros anos do século XIV até 1336, ano a que remontam as últimas notícias que dele temos. A sua importância, especulativamente nula, é notável sob o ponto de vista da difusão do tomismo em Itália e da defesa do mesmo contra as escolas adversas, especialmente a escotista.
O tomismo encontrou defensores também fora dos dominicanos. Entre os eremitas agustinianos, 94 o chefe dos tomistas foi Egídio Romano, nascido em Roma em 1247 ou um pouco antes, aluno de S. Tomás em Paris durante a segunda estadia deste nessa cidade (1268-1272) e defensor do tomismo contra as condenações de Estevão Tempier e Roberto de Kilwardby. Numa obra intitulada Liber contra gradus et pluralitates formarum defende vivamente a unidade formal da alma humana contra o ponto de vista agustiniano. Após a morte de Estêvão Tempier, Egídio torna-se mestre em Paris; em 1295 foi consagrado arcebispo de Bourges por Bonifácio VIII. Faleceu em Avinhão em 22 de Dozernbro de 1316. É autor de seis Quodlibeta, de Quaestiones disputatae de ente et essentia, do De \nwnsura et cognitione angelorum, dos Theoremata de corpore Christi, de um Comentário às Sentenças e de numerosos escritos exegéticos. Egídio adopta uma certa liberdade frente à doutrina tomista, que, no entanto, defende nos seus pontos essenciais. Afasta-se dela, por exemplo, ao admitir que o intelecto agente é forma do intelecto possível e que a causa principal do conhecimento intelectual em acto é a espécie inteligível, à qual precisamente se deve a passagem a acto do intelecto possível. Mas a importância fundamental de Egídio reside talvez nos seus tratados políticos. O De regimine principum, que compôs para o seu aluno e futuro rei, Filipe o Belo, e o De ecclesiastica sive Summi Pontificis potestate constitum expressões típicas do curialismo, ou seja, da afirmação da superioridade do poder papal sobre os príncipes temporais da terra. Parece que a bula de Bonifácio, intitulada Unam sanctam e datada de 18 de Novembro de 1302, na qual se afirmava solenemente tal doutrina, se baseou precisamente na obra de Egídio, a qual devia ter sido escrita pouco tempo antes. 95 § 295. HENRIQUE DE GAND: A Metafísica Henrique de Gand, a quem os seus contemporâneos chamaram o Doctor Solemnis, pertence ao grupo de pensadores que defendem e desenvolvem o augustinismo em oposição polémica mais ou menos explícita contra o tomismo. Entre esses pensadores (§ 289), é ele o de mais forte personalidade, o único que demonstra uma certa liberdade especulativa. A sua biografia foi bastante renovada por estudos recentes. Nasceu em Gand (e não em Muda, perto de Gand) nos princípios do século XIII. Não foi aluno de Alberto o Magno em Colónia, tal como o afirma a lenda, antes se formou na escola capitular de Tournai. Em 1267 era cônego em Tournai, em 1276 arcediago de Bruges, e de Tournai em 1278. Em 1277 torna-se mestre de teologia na Universidade de Paris, e como tal participou na reunião de profimsores de teologia, convocada nesse mesmo ano por Estêvão Teimpier, pela qual foram condenadas proposições averroístas e tomistas. Morreu em 29 de Junho de 1293. A sua obra principal, composta entre 1276 e 1292, são os Quodlibeta (15 livros). Compôs também uma Summa theologica, que ficou incompleta, e que trata das relações entre filosofia e teologia, da doutrina do conhecimento e de Deus. Outras obras manuscritas são um Comentário à física aristotélica e
um Tratado de Lógica. O espírito que anima a obra especulativa de Henrique é expresso pelo princípio que constitui o seu fundamento: a distinção entro o esse essewiae e o esse existentiae. O ser da essência é aquele grau ou modo de ser que corresponde à essência como tal, independentemente da realidade, isto é, do ser da existência, o qual pode ou não acompanhá-lo. Segundo ele, nenhuma essência está privada do ser 96 que lhe compete enquanto essência, sem a qual não seria uma essência, antes se confundi-ria com o nada. O ser da existência, a realidade efectiva, pode acrescentar-se ou não à essência, mas em ambos os casos, esta última é, por si própria, uma forma ou grau de ser, A essência de Deus é tal que inclui também o ser existencial e, portanto, Deus existe necessariamente. A essência das criaturas não inclui o ser existencial, o qual lhos é comunicado por Deus como causa eficiente. Mas isto não quer dizer que a essência e a existência estejam nas coisas criadas como dois princípios realmente diferentes e separáveis. A essência das criaturas não é indiferente à existência, no sentido de não ter de facto nem o ser nem o não-ser e de estar indiferentemente disposta quer para um quer para o outro. Só é indiferente no sentido em que, mesmo que não exista actualmente, pode receber de outrem a existência; e em que, mesmo que exista, pode perder essa existência se ela deixar de lhe ser transmitida por outrem **(Qi,íodl,, 111, q. 9). A distinção entro esse essentiae e esse existentiae, ao levar a reconhecer à essência enquanto tal, um ser que lhe está inseparavelmente unido, conduz à negação da distinção real entre essência o existência que é a alma da metafísica de S. Tomás. Com efeito, esta distinção é explicitamente criticada e negada por Henrique de Gand. Se a essência das coisas criadas não tivesse nenhum ser por sua conta, o ser teria de lhe vir de uma outra coisa, e o ser dessa outra coisa teria ainda de derivar de uma outra coisa e assim sucessivamente, até ao infinito. Na realidade, toda a criatura tem a sua existência na sua essência, enquanto é o efeito o a semelhança do ser divino. "Tal como o raio de luz, diz Henrique (1b., 1, q. 9), participa da luz do sol, enquanto é na sua essência uma real semelhança dessa luz, também a criatura participa do ser de Deus, 97 enquanto é na sua essência uma semelhança do ser divino. Do mesmo modo, a imagem do selo, se subsistisse por sua conta fora da cera, seria uma semelhança do selo pela sua essência e não por qualquer coisa que lhe fosse acrescentada. Assim, em qualquer criatura, o ser não é algo de realmente diverso da própria essência e que lhe seja acrescentado; e mais, toda a criatura tem o ser pela própria essência pela qual é aquilo que é, enquanto é efeito e semelhança do ser divino". Desta forma era directamente atacado o pressuposto fundamental da metafísica tomista. Enquanto a distinção entre esse essentiae e esse existentiae serve a Henrique para justificar a dependência das criaturas em relação a Deus, o reconhecimento de que a própria essência, enquanto tal, possui o seu ser, recondu-lo ao exemplarismo agustiniano. A essência da criatura existe, enquanto é efeito e semelhança de Deus. Portanto, Deus é a causa e o modelo-causa exemplar de todas as criaturas.
Também neste caso o pensamento de Henrique de Gand se determina em oposição ao de S. Tomás. Deus não contém as ideias próprias dos indivíduos singulares (lb., V, q. 3); contém somente a essência absoluta da criatura, isto é, da espécie a que ela pertence, não a ideia desta ou daquela criatura, como S. Tomás admitia (S. th., I, q. 15, a. 3). Todavia, assim como a essência que é uma só implica referência aos múltiplos indivíduos que são dela portadores (supposita), também a única ideia divina da essência implica a dos múltiplos indivíduos, que levam em si a mesma única essência (Quodl., 11, q. 1). A metafísica de Henrique de Gand desenvolve-se em virtude de um princípio que é radicalmente diferente do da tomista. Assim como a essência tem em ,si o seu ser, também a matéria tem em si o seu ser. Ela não é pura potência, como afirmava S. Tomás 98 na sequência de Aristóteles, e dado que tem em si o seu ser, é criável por si e tem uma ideia própria na mente do criador. A realidade da matéria não lhe deriva pois da forma mas da sua própria natureza de matéria, que é algo de subsistente em acto, ainda que não dotada daquela actualidade perfeita que a matéria alcança somente em união com a forma (1b., 1, q. 10). O princípio d,?,, individuação não é a matéria, como sustentava o tomismo, mas é a negação. A negação individuante é dupla, enquanto exclui no interior do indivíduo a plurificabilidade e a diversidade, e enquanto exclui no exterior do indivíduo a identidade com os outros indivíduos. Com efeito, um indivíduo é tal enquanto não tem em si a possibilidade de ser diferente e exclui de si a possibilidade de ser idêntico com os outros indivíduos da mesma espécie (lb., V, q. 7) . § 296. HENRIQUE DE GAND: A ANTROPOLOGIA A antropologia de Henrique de Gand tem um carácter voluntarista em oposição ao intelectualismo da antropologia de S. Tomás. No que se refere ao conhecimento, a teoria de Henrique caracteriza-se por um ponto que se voltará a encontrar em Occam: a negação da espécie como intermediária do conhecimento. Segundo ele, com efeito, a espécie não é necessária, já que o próprio objecto, presente na sua imagem, é feito universal pelo Intelecto agente e torna-se assim o objecto imediato do intelecto (Qitodl., XIII, q. 11). Enquanto o próprio objecto é intelectualizado pelo intelecto agente, não há necessidade da espécie. Como Rogé rio de Mairston e Bacon, Henrique de Gand identifica com Deus o intelecto agente, embora também admita, como um 99 seu efeito, um intelecto activo na alma, o qual é precisamente a actividade que transforma o objecto da imagem em objecto universal (lb., IX, q. 15). A acção de Deus, como intelecto activo, é entendida por Henrique (segundo o modelo agustiniano) como acção iluminante; só que essa acção é limitada àqueles que Deus livremente escolhe como depositários da verdade. A ~ em Deus das regras eternas da verdade está condicionada por uma iluminação divina especial, a qual excede os poderes o os limites naturais do homem (S. th., 1, q. 2, ri. 26).
Com Santo Agostinho, Henrique afirma o primado da vontade sobre o intelecto. Sobre a vontade está fundada preferentemente a liberdade humana; sendo verdade que a escolha, condição da liberdade, supõe o juízo da razão, também é verdade que a vontade não segue necessariamente o juízo da razão, a qual, portanto, se limita a propor-lhe os objectos entre os quais a vontade se decide (Quodl., 1, q. 16). A vontade é superior ao intelecto porque a sua disposição (habitus), a sua actividade e o seu objecto são superiores aos do intelecto. A disposição da vontade é o amor, a do intelecto é a sabedoria; e o amor é superior à sabedoria. A actividade do querer domina toda a vida humana e identifica-se com o objecto, que é o fim a alcançar, enquanto que a actividade do intelecto permanece sempre distinta e separada do seu objecto. Por fim, o objecto do querer é o bem, o qual é o fim em sentido absoluto, mais o fim último; o objecto do intelecto é o verdadeiro, o qual é um dos bens, subordinado, portanto, ao fim último (lb., 1, q. 14). Dada esta superioridade da vontade, Deus é mais * termo do amor do que o do conhecimento humano: * vontade une-se com o amor no seu fim, mais do que o intelecto se une com o conhecimento (lb., XIII, q. 2). 100 A doutrina de Henrique de Gand fixou em traços atraentes, e que desde logo se tornaram característicos, a oposição polémica contra o tomismo. Dado que Henrique pertencia ao clero secular e não aos franciscanos, a sua obra demonstra como era viva esta oposição mesmo fora do ambiente franciscano, e como ela acaba por revestir, mesmo em personalidades mais independentes da tradição agustiniana, o aspecto dum retomo ao augustinismo. § 297. GODOFREDO DE FONTAINES Aluno e depois colega de Henrique de Gand na Universidade de Paris, Godofredo de Fontaines pertencia também ao clero secular. Foi membro da Sorbonne, cónego de Lüttich, Paris e Tournai e preboste de S. Severino em Colónia (1287-95). Em 1300 foi nomeado bispo de Tournai e veio a falecer depois de 1306. A sua obra principal são os 14 Quodlibeta, que só recentemente foram publicados, mas que na Idade Média tiveram uma grande difusão, como demonstra o grande número de manuscritos que deles nos ficaram. Godofredo critica, como Henrique de Gand, a distinção tomista entre essência e existência, reduzida por ele a uma distinção puramente lógica, que se refere ao modo de entender e significar a realidade, e não à própria realidade (Quodl., II, q. última). Critica também o princípio de individuação tomista mas não se limita à explicação de Henrique. "As coisas, afirma energicamente (Ib., VII, q. 5), não existem senão na sua singularidade (singulariter) que é indicada pelo seu nome próprio; na sua natureza comum, elas não existem, são somente apreendidas pelo intelecto": Toda a realidade, toda a substância é, portanto, individual, mas quer isto dizer que a diferença entre os indivíduos 101
é uma diferença entre substâncias ou realidades e não entre acidentes, e que o princípio de individuação é uma forma substancial, própria de cada indivíduo. Mas se neste ponto Godofredo se afasta de S. Tomás, aceita dele completamente a teoria do conhecimento, rejeitando a doutrina da iluminação. "No estado da nossa vida presente, não há senão uma maneira de entender todas as coisas, tanto as materiais e mutáveis como as imateriais e eternas: a abstracção da espécie inteligível, por virtude do intelecto agente, da imagem ou do objecto presente na imaginação". Mas esta acção abstractiva do intelecto não se refere de forma alguma ao ser do objecto, o qual permanece substancialmente individualizado e singular, mas **sekmente à condição de inteligibilidade do próprio objecto. As ideias, que constituem os exemplares das coisas na mente divina, não são realidades substanciais e, portanto. não têm nem o ser da essência nem o ser da existência (que aliás são idênticos) mas têm somente o valor de princípios cognoscitivos, como na mente do artista o tem a casa ainda não construída. A essência e a existência da coisa criada nascem ao mesmo tempo, por efeito da vontade criadora de Deus, de modo algum pré-existem ao acto criador na mente divina (lb., VIII, q. 3; Hauréau, 11, 2, 149). A doutrina de Godofredo de Fontaines assinala assim uma decidida tendência para o nominalismo, que terá o seu máximo triunfo em Guilherme de Occam. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 291. As condenações de Rilwardby e Peckham contra o tomismo: DENIFLE, Chart. Univ. Paris., I, 543 ss., 558 ss.; EHRLE, John Pekhakn über den Kampf 102 des Augusti%ismus und Aristotelismu& in der zweiten Hãlfe des 13 Jahrhundert, in "Zeitschrift für Katholische Theologie", 1889, 172 ss. De Peckham, tudo o que se refere à tradição manuscrita in: LITTLE, The Grey Friars in Oxford, Oxford, 1892, 156. Obras citadas: Collectaneum BibZiorum, Paris, 1514, Colónia, 1541; Perspectiva communis, Medioliani, s/d, Veneza, 1501, 1593. Sete cartas foram editadas por Ehrle@, 1 e. A Quaestío sobre a luz eterna como "ratio cognoscendi", in De humanae cognitionis ratione anecdota quaedam Seraphici Doctoris S. Bonaventurae et nonnullorum ipsius discipulorum, ad Claras Acquas (Quaracchi), 1883, p. 179-182. Canticum pauperis, Quaracchi, 1905. Tractatus tres de paupertate, Aberdee,n, 1910; Quaestiones De Anima, ed. Spettmann, in "Beitrãge", XIX, 5-6, 1918; Summa de Esse et Essentia, ed. Delorme, Florença, 1928; Quodlibet Romanum, e,d. Delorme, Roma, 1938; Tractatus de Anima, ed. Melani, Florença, 1948. Sobre o Quodlibetum: DESTREZ, Les disputes quodZibétiques de St.-Thomas, 49108; GLORIEUN, La litterature quodlibétique, Kain, 1925, 220-222. Sobre Peckham: SFETTMAN, in "Franziskanisclie Stu,dien", 1915, 170-207, 266285; in "Beitrãge", XIX, 5-6, XX, 6; SuppI., 11, 1923, 221-242; DOUIE, Archbishop Peckham, Oxford,
1952. Sobre o Paradisus animae: The Paradise of the Soul, Londres, 1921; tradução francesa de VANHAMME, Saint-Maximin, 1921. Extractos da obra de Kilwardby, De ortu et divisione philosophiae, in 1IAURÉAU, Histoire de Ia philos, scol., 11, 2, Paris, 1880, 29-32, e in L. BAUR, Dominicus Gundissalinus, in "Beitrãge", IV, 2-3, p. 369-375. Sobre Kilwardby: PRANTL, Gesch. d. Log., 111, 185-188; EHRLE, Der Augustinismus und der Ari.-toteZismus in der Scholastik gegen der 13 Jalbrhundert, in "Archiv für Literatur und Kirchengeschichte des Mittelalters", 1889, 603-635; DE WURP, Gilles de Lessines De unitate formae, 73, ss.: é um escrito dirigido contra uma carta de Roberto ao arcebispo de Corinto Pedro de Confleto, sobre esse tema; BIRKENMAJER, Vermischte Utersuchungen, in "Beitrãge"", XX, 5, 1922, 36-69. Sobre Guilherme de Ia Mare: LITTLE, The Grey Friars in Oxford, 315, %S.; EHERLE, Der Kampf und die Lehre des W. Thomas von Aquins in ersten fünfzig Jahren nach seinen Tode, in "Archiv für Katholische 103 Theol.", 1913, 266-318; LONGPRS, "France franciscaine" 1921-.1922. Sobre os Corr6ctoria: a obra citada de EHRLE e UEBERWEG-GEYER, 495-497. § 292. Cinco das Quaestiones disputatae de Mateus foram impressas em De humanae cognitionis ralione anecdota quaedam Seraphiei Doctoris S. Bonaventurae et nonnmllorum ipsius discipulorum, Quaracchi, 1903. Uma selecção mais ampla: Questiones disputatae de g7atia, ed. Doucet, Quaracchi, 1935; De productione rerum et de providentia, ed. Gal, Quaracchi, 1956; Quaestiones disputatac De anima separata, De anima beata, De ieunio et De legibus, Quaracchi, 1959; Quaestiones disputatae selectae, 1, Quaestianes de fide et cognitione, Quaracchi, 1903. Extractos do Comentário às Sentenças, de um manuscrito da Biblioteca comunaI de Todi, publicados por DANIELS, in "Beitrãge", VIII, 1-2, 51-63. Sobre Mateus: o escrito de DANIELS, no vol. ci-tado; GRABMANN, Die Philos. und theol. ErkenntníssIehre des Kard. M. v. Acquasparta, Viena, 1906. § 293. De Rogério: De humanae cognitionis ratione, Quaracchi, 1883; Quaestiones disputatae, Quaracchi, 1932. Sobre Rogério: CAIROLA, L'opposizione a San Tomaso nelle "Quaestiones disputatae" di R. M., in Seritti, Turim, 1954, p. 132, ss. De Ricardo de MiúdIetown, o Comentário às Sentenças teve as seguintes edições: Venetiis, 1489, 1509; Brixiae, 1591; os Quodlibeta: Veneflis, 1507, 1509; Parisfis, 1510, 1519, 1529. Algumas das Quaestiones disputatae in. Anecdota quaedam, etc., cit.,p. 221-245. DANIELS, in. "Beitrüge", VlU, 84-88. Do Comentário às Sentenças foram pupblicadas as questões referentes à
Imaculada Conceição, Quaracchi, 1904; duas questões sobre as provas da existência de Deus, in DANIELS no vol. cit. dos "Beitrãge", p. 89-104, e uma questão sobre o conhecimento humano, também por DANIELS, in "Festgabe für C. Bacumker", 1913, 309-318. Cfr. DuHFm, Système du monde, III, p. 484-488; ZAVALLONI, R. de MediaviZIa et Ia controverse sur Ia plúralité des formes, Louvain, 1951.. De Pedro João Olivi foi publicado o segundo livro dos Comentário.R às Sentenças, por Jasen, 3 vol., Quaracchi, 1922, 1924, 1926. Os Quodlibeta foram editados em Veneza, 1509. 104 Sobre GliVi: JANSEN, Die Erkenntnislehre Olivis, Berlim, 1921; BETTOM, Le dottrine filosofiche di P. G. Oliv, Milão, 1961. § 294. Das obras de Herveus Natalis existem as seguintes edições: Quaestiones in libros sententiarum, Veniffis, 1505, Parisiis, 1657; Quadlibeta, Venetiis, 1486. O De unitate formarum foi impresso como sendo obra de S. Tomás juntamente com a Summa philosophica de Cosme Alamanno, Paris, 1638-1639. De potestate ecelesiae et papae, Parisfis, 1500, 1506, 1657. De João de Nápoles: Quaestiones variae Pariis disputatae, Nápoles, 1618. De Egídio Romano foram numerosas vezes editadas as obra.9 nos séculos XVI e XVIII. Entre as edições recentes: De potestate ecelesiastica, ed. Scholz, Weimar, 1929; Theoremata de ente et essentia, ed. Hocédez, Louvain, 1930; outras questões publicadas por BRUNI, in "Analecta Augustiniana", 1939; De erroribus philosophorum, ed. Koch, Milwaukee, 1944; De plurificatione intellectus possibilis, ed. Bullotta Barracco, Roma, 1957. Sobre Egídio: BRUNI, Le opere di Egidio Romano, Florença, 1936; KNOX, Giles of Rome, 1944. § 295. O.s Quodlibeta de Henrique foram impressos em Paris em 1518 e em Veneza em 1608 e em 1613. A Summa theologica foi impressa sob o título de Summa quaestíonum ordinarium em Paris em 1520 e em Ferrara em 1646. As obras filosóficas de Henrique foram publicadas por Ãngelo Ventura em Bologna em 1701; esta edição contém também os escritos apócrifos. Sobre a biografia: WAUTERS, in "Bull. de Ia Comm. royale d'Histoire", IV série, 1887, 179-190; BAEUMICER, in "Archiv für Geschichte der Philos.", 1891, 130 ss.; DE WULF, Histoire de Ia philosophie en Belgique, Bruxelas, 1910, 80-116; J. PAULUS, H. d. G., Essai sur les tendances de la métaphysique, Paris, 1938. § 297. De Godofredo: XIV Quodlibeta, ed. De Wu11, Pelzer, Hofimans, Louvain, 1904-1935; Quodlibeta XV, com o Quaestiones, ed. Lottin, Pelzer, Hoffmans, Louvain, 1937. Sobre Godofredo: DE WULr, Un théologien-philosophe du XIIIe siècle (Godefroid de FGntaines), Bruxelas, 1904; ID., Histoire de Ia philosophie en Belgique, 80-116; PELZER, Godefroid de Fontaines, in "Revue néoscol.", 1913, 365-388, 491-532.
105 XIX A FILOSOFIA DA NATUREZA NO SÉCULO XIII § 298. FILOSOFIA DA NATUREZA: CARACTERISTICAS DA INVESTIGAÇÃO NATURALISTA NO SÉCULO XIII O século XIII assinala um grande florescimentü da investigação científica. Já no século precedente, a escola de Chartres, retomando e ampliando as especulações de Escoto de Erígena e de Abelardo, tinha considerado a natureza como parte ou elemento do ciclo criador divino, atraindo assim para ela as atenções da filosofia. Mas tratava-se mais de uma exaltação teológica e poética da natureza do que uma predisposição ao seu estudo experimental. Por outro lado, esta espécie de estudo também não fora completamente esquecida ao longo dos séculos da Idade Média: fora antes rejeitada para fora da filosofia e, em geral, do saber oficial, e reservada aos alquimistas, magos e similares doutores diabólicos, dedicados a arrancar com falsas artes os segredos do mundo natural para darem ao homem, 107 com pouco trabalho, a riqueza, a saúde e a felicidade. Mas com a difusão da filosofia árabe e do aristotelismo, o carácter da investigação experimental muda completamente. A matemática, a astronomia, a óptica, a física, a medicina dos árabes, que por sua conta tinham continuado, embora com modestos resultados, o trabalho da investigação da ciência clássica, chegam agora ao conhecimento dos filósofos do mundo ocidental. O aristotelismo, que se apresenta como uma completa enciclopédia do saber, incluindo em si as disciplinas filosóficas particulares, vale agora aos olhos desses mesmos filósofos como a justificação suficiente dessas ciências e da investigação experimental em que se baseiam. Desta maneira, tais investigações deixam de ser um trabalho secreto reservado aos iniciados, tendendo a transformar-se num aspecto fundamental da investigação filosófica e a assumir um lugar reconhecido na economia geral do saber. Esta influência da difusão do aristotelismo, a mais ampla e talvez a mais radical, não se restringe aos que permanecem mais fielmente aderentes à letra do sistema aristotélico, antes abrange a totalidade do campo da cultura. Tanto os agustinianos como os aristotélicos a ressentem na mesma medida. O aristotélico Alberto Magno insiste na importância da investigação experimental e dedicava grande parte da sua obra à discussão dos problemas científicos, e, por outro lado, são os agustinianos os que se dedicam com maior entusiasmo aos novos campos de investigação. Entre esses agustinianos, são os franciscanos da escola de Oxford que oferecem, no século XIII, o maior volume de investigações experimentais e, de discussões científicas, a partir de Roberto Grosseteste (§ 255) que pode considerar-se como o iniciador do novo naturalismo de Oxford. 108
É claro que os procedimentos e os resultados desta investigação, misturados como são com elementos teológicos, místicos e mágicos, interessam mais (quando interessam) à história das respectivas ciências do que à filosofia. Mas interessam também c, à história da filosofia. Em primeiro lugar, como se disse, denunciam uma nova perspectiva da investigação filosófica. e uma renovação dos seus horizontes; em segundo lugar, enquanto se intersectam (como muitas vezes acontece) com os problemas propriamente filosóficos respeitantes à natureza dos instrumentos cognoscitivos de que o homem dispõe e às tarefas do homem no mundo. Finalmente, interessam também à filosofia porque através daquelas investigações o como seu resultado global se vai delineando a crítica e o abandono gradual da velha concepção do mundo de raiz aristotélico-estóica que dominara a cultura medieval. Não é por acaso que, no século seguinte, serão os filósofos dessa orientação empirista, a qual encontrava na obra de Aristóteles o seu maior encorajamento, os que descobrirão as primeiras falhas na concepção aristotélica do mundo e entreverão a possibilidade de uma concepção diferente. O máximo representante do experimentalismo científico do século XIII é Rogério Bacon, discípulo de Roberto Grosseteste. Mas entre os que Rogério Bacon exalta com seus predecessores e mestres há um tal Mestre Pedro, que foi Pedro Peregrino de Mahrancuria ou de Maricourt, na Piccardia, do qual nada se sabe anão ser que no ano 1269 estava em Lucera de Apúlia onde acabava de escrever a sua Epistola de magnete. Este dado consta da própria obra, que é um pequeno tratado em 13 capítulos sobre o magnetismo, ao qual se referirá mais tarde, em 1600, o primeiro estudioso moderno do magnetismo, o inglês Gilbert. Bacon exalta-o como o mestre da arte experimental, o único 109 dos latinos capaz de entender os mais difíceis resultados desta ciência (Opus tert., 13). Na sua Epistola, Pedro Peregrino afirma a necessidade da experiência directa, da habilidade manual, a fim de facilmente corrigir erros que não poderiam ser eliminados por considerações filosóficas e matemáticas. § 299. ROGÉRIO BACON: VIDA E OBRA Rogério Bacon, a quem os seus contemporâneos chamaram Doctor mirabilis, nasceu perto de fichester, no Dorsetshire, entre 1210 e 1214. Estudou em Oxford, onde foi aluno de Roberto Grosseteste, depois em Paris, onde permaneceu desde 1244 até 1250 ou 1252, e onde foi também mestre de teologia. Em 1250 ou 1252 voltou para Oxford e não sabemos se foi antes ou depois que ingressou na ordem franciscana. Teve como protector o papa Clemente IV (1265-1268), que a 22 de Junho de 1266 lhe pedira por carta o envio do seu Opus maius. Mas alguns anos após a morte de Clemente, em 1278, Jerónimo de Ascoli, geral da ordem franciscana, condenava a doutrina de Bacon e impunha-lhe uma severa clausura que não sabemos quanto tempo durou. O último dado seguro que dele temos é o que se refere à composição do Compêndio de estudos teológicos no ano de 1292. Nada sabemos depois desta data. As obras principais de Bacon são as intituladas Opus maius, Opus minus e Opus tertium. Destas três obras, a ú nica completa é o Opus maius, que
provavelmente foi também a única que Bacon enviou a Clemente IV. O Opus minus e o Opus tertium não passaram da forma de esboços. Bacon. concebera o projecto grandioso duma completa enciclopédia das ciências, dado que concebia a metafísica com a ciên110 cia que encerra os princípios de todas as outras. As ciências filosóficas dividem-se em três grandes grupos: matemática, física e moral, enquanto que a gramática e a lógica constituem somente partes acidentais da filosofia (Opus maius, IV, d. 1, 2). Mas não conseguiu realizar completamente este seu plano. As suas investigações mais numerosas tratam da física, e em particular da óptica; outras tratam da astronomia, matemática, história natural e da gramática grega e hebraica. A atitude de Bacon em todas as suas obras é a de, uma resoluta liberdade espiritual. Está convicto que a verdade não se revela senão aos homens que a procuram, que as investigações devem acrescentar-se e integrar-se umas com as outras e que, numa palavra, a verdade é filha do tempo. E por isso, embora reconhecendo o imenso valor de Aristóteles, a propósito de quem cita a frase de Averróis segundo a qual ele representa "a última perfeição do homem", considera que Aristóteles não penetrou nos últimos segredos da natureza, assim como os sábios de hoje ignoram muitas verdades que serão familiares aos estudantes mais jovens dos tempos futuros (1b., 11, 13). § 300. BACON: A EXPERIÊNCIA Com base nesta atitude, Bacon podia fazer pouco ou nenhum caso do valor da autoridade para o conhecimento. Se bem que coloque a autoridade ao lado da razão e da experiência, entre as três vias pelas quais se pode atingir o conhecimento, considera que na realidade a autoridade nada faz conhecer, a não ser vindo acompanhada pela sua própria razão, e que por seu lado não nos dá a inteligência mas sim a credulidade, sendo ainda uma das mais 111
comuns fontes de erro (Comp. stud. phil, p. 397). Restam portanto dois modos de conhecer: a demonstração racional e a experiência. Mas a demonstração racional, embora resolva e nos faça resolver as questões, não dá a certeza nem climina a dúvid.-, já que a alma descansa no intuir da verdade se não a encontra pela via da experiência. Muitos são os que aduzem argumentos racionais para sustentar as coisas que conhecem; porém, não tendo experiência delas, não sabem discernir nos seus conhecimentos os úteis e os nocivos. Pelo contrário, o que conhece a razão e a causa por experiência, é perfeito em sabedoria. Sem a experiência, nada se pode conhecer adequadamente (Op. maius, VI, 1). Mas se a experiência é o único instrumento eficaz de investigação, se só ela fornece ao homem a visão directa (inluitus) da verdade, então todo o campo do conhecimento humano, quer se refira às coisas naturais quer às sobrenaturais e divinas, deve ser baseado na experiência. E assim é, segundo ,Bacon. A
experiência não é só o fundamento da investigação natural, mas é também o do conhecimento sobrenatural. A experiência é dupla: externa e interna. A experiência externa é a que é dada através dos sentidos; a experiência interna é a que é dada através da iluminação divina. Bacon junta aqui ao seu experimentalismo o princípio básico da tradição agustiniana, a teoria da iluminação. Da experiência externa derivam as verdades naturais. da experiência interna, as verdades sobrenaturais: ambas encaminham o homem para o seu fim último, a beatitude. O carácter pragmático e utilitário da verdade reveste em Bacon um significado ético e religioso. Admitindo a experiência como único fundamento da verdade, Bacon suprime à lógica aristotélica todo o valor como órgão de investigação. Reconhecelhe somente um valor dialéctico enquanto " conclui e nos 112 faz concluir uma questão", mas nega-lhe o valor real de instrumento efectivo de investigação referente à realidade, a capacidade de fundamentar a certeza, eliminar a dúvida e dar assim satisfação total à necessidade humana da verdade. A experiência é, pois, para Bacon, um conhecimento imediato, pelo qual o homem é posto frente a frente com a realidade. Isto aplica-se também à experiência interna; esta é antes o modelo de que Bacon se serve para interpretar a própria experiência sensível. Com efeito, a doutrina agustiniana da iluminação é a formulação típica do conhecimento imediato. Bacon distingue na experiência interna uma tripla iluminação: a iluminação ou revelação geral, comum a todos os homens; a iluminação primitiva e tradicional; a iluminação especial. Esta última é de ordem religiosa e sobrenatural e é devida à graça. A iluminação primitiva refere-se também às verdades de ordem natural enquanto foram reveladas primitivamente por Deus. A primeira é, por sua vez, à iluminação no sentido da escola agustiniana, como condição do conhecimento humano, e consiste no concurso divino a tal conhecimento, independentemente da providência universal e do concurso especial da graç a. A iluminação comum é o fundamento da filosofia. "Este caminho é a sapiência da filosofia, a única sapiência que está ao alcance do homem e que pressupõe uma iluminação divina que seja comum a todos, já que Deus é o intelecto que age em todos os conhecimentos da nossa alma". Desta forma, Bacon une à sua doutrina da experiência e à doutrina agustiniana da iluminação a doutrina aristotélica do intelecto, segundo a interpretação de Avicena. "A sapiência filosófica, é inteiramente irevelada e dada aos filósofos por Deus, e é o próprio Deus que ilumina as almas dos homens em toda a sua sapiência, Mas dado que 113 aquilo que ilumina a nossa mente é agora chamado pelos teólogos intelecto activo, segundo a palavra de filósofo no livro 111 do De anima, onde distingue dois intelectos, activo e possível, eu sustento que o intelecto agente é em primeiro lugar Deus, e em segundo lugar os anjos que nos iluminam" (Opus tert., ed. Brewer, 74). E de facto o intelecto chama-se activo enquanto influi sobre as almas humanas, iluminando-as para a ciência e
para a virtude. Em certo sentido, também o intelecto possível pode chamar-se activo, enquanto é tal no acto de entender; mas o verdadeiro intelecto activo é o que ilumina e influencia o intelecto possível para o conduzir ao conhecimento da verdade. "E assim, segundo os maiores filósofos, o intelecto activo não é uma parte da alma, mas uma substância intelectiva diferente e separada por essência do intelecto possível" (Opus maius, 11, 5). É aqui evidente a influência de Avicena. Mas não era nova a identificação do intelecto activo com Deus: encontrámo-la já em Guilherme de Auvérnia (§ 253), em João de Rupella (§ 257) e ultimamente em Rogério Marston (§ 293), e em todos eles, como em Bacon, está relacionada com a doutrina da 4,*iluminação divina. A experiência interna, para Bacon, é a via mística: o seu mais alto grau é o conhecimento extático. Bacon distingue sete graus na ciência interior. O primeiro é o das iluminações puramente científicas. O segundo consiste nas virtudes. O terceiro, nos sete dons do Espírito Santo. O quarto, nas bem-aventuranças de que fala o Evangelho. O quinto, nos sentidos espirituais. O sexto, nos frutos, entre os quais está a paz de Deus, que superam todo o sentido. O sétimo consiste no rapto extático e nas suas modalidades, porque cada um cai em extase à sua maneira e vê coisas que ao homem não é consentido exprimir. "Aquele, acrescenta Bacon 114 (Opus maius, 11, 170 ss.), que se exercitou diligentemente nestas experiências ou na maior parte delas, pode certificar-se e certificar os outros, não só das ciências espirituais, mas de todas as ciências humanas". Assim, o experimentalismo de Bacon, em concordância com o espírito agustiniano pelo qual é completamente impregnado e dominado, conclui em pleno misticismo. A conclusão aclara as **prerãissas. A experiência baconiana está ainda carregada do carácter mágico e religioso das investigações dos alquimistas e dos magos. Bacon reconduziu-a ao augus"ismo e interpretou-a à luz da doutrina da iluminação divina. Mas desta forma confirmou-lhe o carácter místico e religioso, reconhecendo-lhe um fundamento transcendente, a revelação directa de Deus. E todavia, não é possível deixar de reconhecer a esta estranha figura de frade franciscano, alquimista e místico, experimentador e teólogo, o carácter de um precursor da ciência moderna. Em primeiro lugar, pelo valor que deu à investigação experimental, fundamento de toda a verdade mundana e supramundana. Em segundo lugar, porque reconheceu que a disciplina da investigação, a sua lógica interna, é a matemática. Todo o poder da lógica depende da matemática, segundo ele, dado que todas as determinações (qualidade, relação, espaço, tempo) dependem da quantidade e a quantidade é o objecto próprio da matemática. Por isso, só na matemática existe a demonstração verdadeira e poderosa, e nela somente se pode chegar à plena verdade isenta de erro e à certeza isenta de dúvida. Só através da matemática podem as outras ciências constituir-se e tornar-se certas (1b., IV, d. 1, c. 2-3). São estas as teses fundamentais das quais nasceu o sobre as quais se desenvolveu, de Leonardo em diante, a investigação científica moderna. 115 § 301. WITELO
Witelo (diminuitivo de Vito) nasceu na Silésia entre 1220 e 1230, de pai turíngio e mãe polaca. Cerca de 1260 foi para Itália e fez os seus estudos filosóficos, matemáticos e físicos em Pádua. Mas deve ter também vivido em Viterbo, onde naquela ano se encontrava a corte papal, porque nela tinha o cargo de penitenciário Guilherme de Moerbeke, o tradutor de Aristóteles, Simplício e Proelo, que era seu amigo e a quem dedicou a sua obra principal, a Perspectiva. Esta obra foi provavelmente composta cerca de 1270, mas certamente antes de 1277, ano em que Guilherme foi nomeado arcebispo de Corinto. Este é o único dado seguro que temos de Witelo, nada se sabendo de outras estadias suas, ou do lugar e data da sua morte. A Perspectiva não foi a única obra escrita por Witelo, mas é a única de que temos conhecimento; nela cita Witelo outras obras entre as quais uma Sobre a filosofia natural e uma outra De ordine eniiuni, a qual foi identificada por um historiador moderno com o Liber de intelligentiis, escrito anónimo que expõe uma teoria da luz bastante semelhante à de Roberto Grosseteste (§ 256). Mas esta obra é na realidade mais antiga, pois é já citada por S. Tomás de Aquino (Quod., VI, q. 11, a 19; De ver., q. 2, a. 1) e por Vicente de Beanvais no Speculum naturale (11, 35-37). A Perspectiva é um tratado de óptica em dez livros que teve uma importância notável na história desta disciplina. o seu pressuposto é uma metafísica da luz, tal como já se encontrou em Roberto Grosseteste e em S. Boaventura. Segundo Witelo, a acção divina exerce-se nas coisas inferiores do mundo por meio das coisas superiores. Na ordem das substâncias intelectivas, as substâncias inferiores recebem das superiores a luz derivada da fonte da bondade divina; e, duma 116 maneira geral, o ser de qualquer coisa deriva do ser divino, toda a inteligibilidade deriva da inteligência divina, toda a vitalidade, da vida divina. De todas estas influências, o princípio, o meio e o fim é a luz divina, da qual, para a qual e à qual todas as coisas se encontram dispostas. No que se refere às coisas corpóreas, o meio é a luz sensível através da qual as formas corpóreas supremas se difundem na matéria dos corpos inferiores e nela se multiplicam de modo a produzirem as formas específicas e individuais (Perspect., ed. Bacumker, p. 127-128). A óPu`ca, que estuda as leis da difusão da luz, é, portanto, mais do que uma ciência particular, toda a física, enquanto esclarece a estrutura de todo o mundo físico, determinado precisamente no seu génese pela difusão da luz. Nas três maneiras de ver (,visão directa, reflexão, refracção) Witelo vê, por isso, o signo da tríplice acção das formas e de todas as potências celestes e naturais (1b., p. 131, 15). Nos traços de Witelo move-se o dominicano Teodorico de Friburgo (no Saxe) (cerca. de 1250-1310) autor de numerosos escritos filosóficos e científicos (De on .gine rerum ~icamentalium, De quidditatibus entium, De intellectu et intellígibili, De habitibus, De esse rt essentia, De accidentibus, De mensuris durationis rerum, De tempore, De elementis, De luce, De coloribus, De iride, De miscibilibus in mixto) recentemente editados. Teodorico repete as teses tipicas do augustinianismo: a negação da distinção real entre
essência e existência, a pluralidade das formas no composto; e partilha com o augustinianismo o interesse pela indagação experimental, sobretudo no domínio da óptica. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 298. A Epistola de magnete foi novamente pub?icada por Berte111, in "Bo11. di Bibliografia e di 117 storia delle, scienze matematiche e fisiche", 1868, 70-89; e por HeIlmann, in Rara magnetica, 1898. PICAVET, Essai sur 1'hi@st. gén. et comp. des théol. et des phil. médiév., Paris, 1913, p. 232-254. § 299. O Opus maius foi impresso em Londres, 1773, e em Veneza, 1750. A edição mais recente é a Bridges, 2 vol., Oxford, 1897; vol. III de suplementos, Oxford, 1900. O Opus minus, O Opus tertium e o Compendium, philosophiae, in Opera quaedam hactenus inedita, editado por Brewer, Londres, 1859 Outros escritos, in Opera hactenus inedita, editado por Steele, 5 fase., Oxford, 1905-1920. O Compendium studii theologiae foi publicado por Rashdall, Aberdoniae, 1911. Sobre as obras e manuscritos de Bacon: LITTLE, The Grey Friars in Oxford, Oxford, 1892, 195-211; MANDONNET, in "Revue néoscol.", 1913, p. 53-68, 164180; CHARLES, Roger Bacon, sa vie, ses Guvrages, ses doctrines, Paris, 1861; CARTON, L'expérience physique chez R. B., Paris, 1924; ID., L'expérience mystique de Villumination intérieure chez R. B., Paris, 1924; ID., La synthèse doctrinale de R. B., Paris, 1924; DUHEM, Système du monde, V, 375491 (utiliza as questões sobre física e sobre metafísica contidas num manuscrito de Amiens e compostas por Bacon em Paris cerca de 1250); EASTON, R. B. and his Search for a Universal Science, New York, 1952; ALESSIO, Mito e scienza in R. B., Milão, 1957. § 301. A perspectiva apareceu pela primeira vez em Nuremberga em 1535. Extractos contendo as partes filosóficamente mais notáveis foram publicados por BAnUMKER na sua monografia Witelo, ein Philosoph und Naturforscher des XIII Jahr., in "1?>eitrãge", III, 2, 1908. A Witelo atribuiu BAEUMKER nesta monografia o Liber de inteNigentiis mas depois negou essa atribuição, in Miscellanea Ehrle, vol. 1, 87-102. BIRKENMAIER, Études sur Witelo, I-IV, in "BuIl. de l'Acad. des sciences de Cracovie", 1918-1922. De Teodorico, o De intellectu e o De abitibus foram editados p01- E. KREM in "Beitrãge", V, 5-6 (1906), O De esse et essentia pelo mesmo KREM in "Revue néoscolastique de phil.", 1911, e outros escritos por F. STEGMCLLEP in "Archives d'histoire doetr. et litt. du m. â.", 1940-1942; e por W. WALLACE, The Scientific Methodology of T. of F., Fribourg (Suíça), 1959 (com bibl.). 118
XX JOÃO DUNS ESCOTO § 302. JOÃO DUNS ESCOTO: DOCTOR SUBTILIS Depois de S. Tomás, deve-se a Duns Escoto a outra mudança de direcção da escolástica. Trata-se de uma mudança decisiva, que devia conduzir rapidamente a escolástica ao fim do seu ciclo e à exaustão da sua função histórica. Também esta mudança foi determinada pelo aristotelismo, mas o aristotelismo é aqui o espírito de um sistema e não um sistema. Para S. Tomás, o aristotelismo é uma doutrina que é necessário corrigir e reformar. Paira Duns Escoto, é a própria filosofia, que é necessário reconhecer e fazer valer em todo o seu rigor a fim de circunscrever nos seus justos limites o domínio da ciência humana. Para S. Tomás, trata-se de utilizar o aristotelismo para a explicação da fé católica. Para Duns Escoto trata-se de utilizá-lo como princípio que (restringe a fé ao seu próprio domínio, o prático. O ideal de uma ciência absolutamente necessária, isto é, inteiramente fundada na demonstração, e o procedimento crítico, analítico e dubitativo constituem a expressão da fidelidade de Escoto 119 ao espírito do aristotelismo. O apelativo que Escoto recebeu dos seus contemporâneos, Doctor subtilis, exprime unicamente, o carácter exterior do seu filosofar: a tendência para distinguir e subdistinguir, a insatisfação analítica que busca a clareza na enumeração completa das alternativas possíveis. Mas o núcleo da sua personalidade filosófica é a aspiração a uma ciência racional necessária e autónoma, e o cuidado crítico derivado dessa aspiração. A relação entre Escoto e S. Tomás foi já comparada à relação entre Kant e Leibniz: S. Tomás e Leibniz seriam dogrnáticos, Duns Escoto e Kant seriam críticos. Esta comparação, despropositada como todas as comparações feitas entre personalidades pertencentes a momentos históricos diferentes, pode ser entendida no sentido em que Escoto tenta, tal como Kant, basear o valor do conhecimento científico no reconhecimento dos seus limites, e o valor da fé na diversidade da sua natureza em relação à da ciência. Por isso Escoto se não preocupou em criar uma obra sistemática e não escreveu nenhuma Summa; preocupou-se somente em fazer valor o seu alto ideal da ciência como critério para a discussão dos problemas filosóficos e teológicos do seu tempo, para neles determinar a parte que diz respeito à ciência e a que diz respeito à fé, para circunscrever a fé a um domínio diferente, o domínio prático, e para atribuir tal domínio à teologia, considerada como uma ciência sui generis, diferente das outras e sem nenhuma primazia sobre elas. O denominado primado da vontade significa simplesmente, na obra de Escoto, que tudo o que não é susceptível de rigoroso procedimento demonstrativo pertence ao domínio de um factor contingente, arbitrário e livre, isto é, ao domínio da vontade humana ou divina. O primado da vontade não é aqui um princípio psicológico, como em Henrique de Gand, mas sim um princípio metodológico o metafísico. O seu augus120 tinismo (ainda que se afaste do augustinismo em pontos fundamentais,
principalmente no da doutrina da iluminação divina) é puramente ocasional, como revela o seu carácter limitado e parcial. Daqui deriva o aspecto desconcertante que a sua figura frequentemente revestiu para os seus contemporâneos e posteriores. Na realidade, o ideal científico de Aristóteles foi utilizado por ele como princípio negativo em relação à investigação escolástica tendente a reconduzir a fé à razão. § 303. JOÃO DUNS ESCOTO: VIDA E OBRAS João Duns Escoto nasceu em 1266 ou (segundo outros) em 1274 em Maxton na Escócia. Cedo ingressou na ordem franciscana onde recebeu a sua primeira educação, e estudou em Oxford, onde, segundo uma tradição que parece provável, foi aluno de Guilherme de Ware. Em 1302 vai para Paris, onde, como barachel e conforme o costume, deu o seu curso de comentário às Sentenças. Em Junho de 1303 foi obrigado a sair de Paris porque, com outros frades, se tinha declarado a favor do papa na luta que estalara entre Bonifácio VIII e Filipe o Belo. Pôde voltar a Paris no ano seguinte, e Gonçalo de Balboa, geral da sua ordem, escrevia a 18 de Novembro de 1304 uma carta ao guardião dos estudos de Paris a fim de que apresentasse Escoto ao chanceler da Universidade para a nomeação como mestre. Essa nomeação foi-lhe conferida. Em 1305-1306 Escoto regressou a Inglaterra e pertence a este período a redacção da sua obra principal, o comentário às Sentenças, conhecido com o nome de Opus oxoniense. Em 1308 ora chamado a Colónia, onde faleceu a 8 de Novembro e foi sepultado na igreja dos Frades Menores. 121 Na data da sua morte tinha Escoto cerca de 40 anos: uma vida breve, ocupada por uma intensa actividade, mesmo que consideremos somente as obras que com toda a segurança lhe podem ser atribuídas. São elas o tratado De primo principio, as Quaestiones in Metaphysicam, o Opus oxoniense, os Reportata parisiensia e um Quodlibet. As três primeiras pertencem à estadia em Oxford, as outras duas são resultado do ensino parisiense. Os Reportala parisensia, que são o texto do comentário às Sentenças feito por Escoto naquela cidade, ficaram-nos em duas redacções, uma mais breve, outra mais longa. A edição que deles fez o editor seiscentista de Escoto, Luca Waddinng, é uma contaminação das duas redacções que não tem qualquer base nos manuscritos. Sabemos agora ser apócrifo um grupo de obras atribuídas a Escoto. O Comentário à Física cita uma obra de Tomás Bradwardine (§ 311) composta entre 1338 e 1346, pelo que não pode pertencer a Escoto. Uma outra obra do mesino autor, escrita em 1328, é citada no Comentário aos livros meteorológicos denunciando assim igualmente a falsidade da atribuição. Também não são autênticas a Exposição dos XII livros da Metafísica, as Conclusões de Metafísica, a qual pertence a Gonçalo de Balboa, e a Gramática especulativa, que é de Tomás de Erfurt. E enquanto se descobriram já outras obras constituídas por cursos dados por Escoto nas Universidades de Paris, Cambridge e Oxford (obras, aliás, ainda não publicadas), permanece incerta a posição de duas obras já conhecidas, o De perfectioni statuum e o De rerum
principio. Por seu ,turno, os Theoremata, sobre os quais existiam algumas dúvidas, provocadas fundamentalmente pela extensão que neles assume o cepticismo teológico de Escoto, são actualmente considerados como autênticos. Com efeito, os seus pressupostos gnoseo122 lógicos são incompatíveis com os Ockham, a cuja escola se costumavam atribuir. E por outro lado, é notório que o agnosticismo teológico, acentuado nesta obra, não é mais do que o aspecto negativo de um ideal positivo de perfeição científica, ou seja, da aspiração de Escoto a uma ciência rigorosamente demonstrativa, tal como havia sido concebida e realizada por Aristóteles. § 304. JOÃO DUNS ESCOTO: CIÊNCIA E FÉ O De primo principio começa com uma prece a Deus, a qual constitui simultâneamente a profissão de fé do ideal científico de Duns Escoto. "Tu és o verdadeiro ser, Tu és todo o ser; isto creio eu, isto, se fosse possível, desejaria eu conhecer. Ajuda-me, Senhor, a procurar este conhecimento do verdadeiro ser, isto é de Ti mesmo, que a nossa razão natural pode atingir" (1, n. 1). Escoto, não pode a Deus uma iluminação sobrenatural, um conhecimento completo em verdade e em extensão, mas unicamente o conhecimento que é próprio da razão humana natural. Ainda que, dentro dos seus limites, este seja o único conhecimento possível, a única ciência para o homem. "Para além dos atributos que de Ti os filósofos demonstram, especialmente os católicos, louvam-Te como omnipotente, imenso, omnipresente, verdadeiro, justo e misericordioso, providente para todas as criaturas e especialmente para as inteligentes. Mas destes atributos falarei num outro tratado no qual serão expostos os objectos da fé (credibilia) aos quais é dado o assentimento da razão e que, todavia, são, para os católicos, tanto mais certos quanto se baseiam, não no nosso intelecto míope e vacilante, mas na tua solidíssima verdade" (4, n. 37). É aqui evidente o contraste entre a verdade racional da metafísica, que é própria da razão 123
humana e, por consequência, válida para todos os homens, e a verdade da fé, à qual a razão pede somente "submeter-se" e que tem uma certeza solidíssima **ii),ticamente para os católicos. E, com efeito, a fé nada tom que ver com a ciência, segundo Escoto: ela pertence inteiramente ao domínio prático. "A fé não é um hábito especulativo, nem o crer é um acto especulativo, nem a visão que se segue ao crer é uma visão especulativa, mas sim prática" (Op. ov., prol., q. 3). Tudo o que transcende os limites da razão humana já não é ciência, mas acção ou conhecimento prático: refere-se, não à ciência, mas ao fim a que o homem deve tender, aos meios para o alcançar ou às normas que, em vista dele, se ,seguem. Porque foi a revelação necessária aos homens? Porque, responde Escoto, o homem, com a razão natural, não pode dar-se conta do fim a
que foi destinado, nem dos meios para o conseguir. Que o homem esteja destinado à visão e ao gozo de Deus, é coisa que não pode saber senão através da revelação (Op. ox., prol., q. 1, n. 7). E porque não pode sabê-lo através da razão natural? Porque não existe uma conexão necessária entre o fira sobrenatural do homem e a natureza humana, tal como ela é nesta vida (lb., prol. q. 1, n. 11). Evidentemente, trata-se de um fim de Deus quis atribuir livremente ao homem, que não se conecta necessariamente com a natureza do homem e por -isso não pode ser demonstrado como sendo próprio dessa natureza, enquanto que a demonstração suporia tal necessidade. Os limites que Escoto, descobre no conhecimento humano não são acidentais para o próprio conhecimento, mas sim constitutivos. O homem não pode conhecer demonstrativamente aquilo que Deus decidiu em virtude do seu livre arbítrio, e que, portanto, não possui vestígio algum daquela necessidade- que torna possível o conhe124 cimento demonstrativo. O princípio que move toda a crítica de Escoto é o que ele exprime a propósito da impossibilidade de demonstrar que os nossos actos meritórios sejam seguidos poT um prémio divino. Isto é impossível de se saber, porque o acto remunerador de Deus é livre. "Isto não é cognoscível naturalmente, diz ele, e daqui resulta que erram os filósofos que afirmam que tudo o que deriva imediatamente de Deus, dele deriva dum modo necessário" (1b., prol., q. 1, n. 8). Daqui procedem a separação e a antítese entre o teorético e o prático, as quais dominam todo o pensamento de Duns Escoto. O teorético é o domínio da necessidade, e, portanto, o da demonstração racional e da ciência. O prático é o domínio da liberdade, e, portanto, da impossibilidade de toda a demonstração, e da fé. A metafísica é a ciência teorética por excelência, a teologia é por excelência a ciência prática. O objecto da teologia, de facto, não é afugentar a ignorância, mas persuadir o homem a agir para a sua própria salvação. Por outras palavras, o seu fim não é contemplativo, mas educativo. Ela repete frequentemente os seus ensinamentos, a fim de que o homem seja mais facilmente induzido a praticá-los (lb., prol., q. 4, n. 42). Se por conhecimento prático se entende o conhecimento que precede e condiciona necessariamente a volição recta, toda a teologia deve ser reconhecida como sendo conhecimento prático, porque condiciona e determina a vontade e a acção recta do homem. Mesmo aquelas verdades que aparentemente se não referem à acção, como por exemplo, "Deus é trino" e "o Pai gera o Filho", são, na realidade, práticas. Com efeito, a primeira inclui virtualmente o conhecimento do recto amor que o homem deve a Deus, amor que deve dirigir-se às três pessoas divinas, e se se dirigisse a uma só dessas pessoas excluindo as outras (como 125 acontece precisamente com os infiéis) deixaria de ser o recto amor de Deus. A segunda afirmação inclui o conhecimento da regra pela qual o amor do homem deve dirigir-se ao Pai e ao Filho, segundo a relação que ela precisamente determina entro eles (lb., prol., q. 4, n. 3 1).
Pelo seu carácter prático, a teologia não pode denominar-se uma ciência em sentido próprio: com efeito, os seus princípios não dependem da evidência do seu objecto (1b., 111, d. 24, q. 1, n. 13). Mas querendo considerá-la como ciência, é necessário atribuir-lhe um lugar especial, dado que ela não se subordina a nenhuma outra ciência e não subordina a si mesma nenhuma outra ciência. Ainda que o seu objecto possa, de certo modo, ser incluído no objecto da metafísica, ela não recebe os seus princípios da metafísica, porque nenhuma proposição teológica é demonstrável mediante os princípios do ser enquanto tal (objecto da metafísica), ou mediante qualquer razão derivada da natureza do ser enquanto tal. Por outro Ia-do, ela não subordina a si nenhuma outra ciência, porque nenhuma outra ciência dela recebe os seus princípios. "Qualquer outra ciência, que pertença ao conhecimento natural, tem o seu último fundamento em princípios imediata e naturalmente evidentes" (Rep. par., prol., q. 3 n. 4). Frente ao carácter prático da teologia, que é ciência só impropriamente e no sentido especificado, está o carácter teorético da metafísica, que é ciência no sentido mais alto. "São, por excelência, objecto de ciência, quer as coisas que se conhecem antes de todas as outras e sem as quais as outras não podem ser conhecidas, quer as que se conhecem com a máxima certeza. O objecto da metafísica possui no máximo grau este duplo carácter: portanto, a metafísica é ciência no máximo grau" (Quaest. in Met., prol., n. 5; Op. ox., 1, d. 3, n. 25). 126 Duns Escoto acolhe de Aristóteles. e dos seus intérpretes muçulmanos o ideal de uma ciência necessária, inteiramente constituída por princípios evidentes e por demonstrações racionais. Mas é ele o primeiro a servir-se deste ideal para restringir e limitar o domínio do conhecimento humano. O seu alto conceito da ciência alia-se nele ao reconhecimento dos limites rigorosos da ciência humana. O que não é demonstrável não é necessário mas sim contingente, logo, arbitrário ou prático. Posto que o único domínio do contingente é a acção, tudo o que não é necessário ou é termo ou produto da acção humana ou divina, ou é regra de acção, isto é, fé. Em Duns Escoto não existe verdadeiramente uma atitude de cepticismo ou de agnosticismo. Não concebe que o conhecimento humano poderia estender-se para além dos limites até aos quais efectivamente se estende. Tudo o que está para lá do conhecimento humano carece, na verdade, de necessidade intrínseca, sendo pois indemonstrável em si e absolutamente. Não há em Escoto nenhuma renúncia ao conhecimento, e mais, ü seu ideal cognoscitivo permanece solidamente estabelecido perante ele. Todavia, uma vez admitida a doutrina segundo a qual tudo o que não é demonstrável racionalmente é um puro objecto de fé, isto é uma regra prática sem fundamento necessário, deveria aparecer como quimérica a investigação escolástica, a qual desde há séculos renovava a sua tentativa de reduzir as verdades da fé a um todo compacto de doutrina lógica. Os Theoremata apresentam um impressionante conjunto de proposições indemonstráveis que, como tal, ficam a fazer parte do domínio prático da fé. Não se pode demonstrar que Deus vive (Theor., XIV, n. 1); que é sapiente ou inteligente (lb., n. 2); que é dotado de vontade (fb., n. 3); que é a primeira causa eficiente (1b., XV); que é necessário para a conservação da natureza
127 criada (lb., XVI, ri. 5); que coopera com as criaturas na sua actividade (1b., ri. 6); que é imutável e imóvel (1b., ri. 11, 13); que carece de, magnitude e de acidentes (lb., ri. 14-16); que é infinito no sentido da potência (1b., ri. 17). Escoto considera impossível demonstrar todos os atributos de Deus, e também, como veremos, a imortalidade da alma humana. Deste modo, a certeza destas proposições converte-se em certeza prática, isto é, baseada exclusivamente na sua livro aceitação por parte do homem. O ideal aristotélico da ciência demonstrativa conduz aqui à expulsão definitiva para fora do âmbito de investigação filosófica de fundamentos básicos da religião católica. A escolástica encaminha-se para esvaziar de qualquer conteúdo o seu próprio problema. § 305. JOÃO DUNS ESCOTO: CONHECIMENTO INTUITIVO E DOUTRINA DA SUBSTâNCIA A doutrina do conhecimento de Duns Escoto é fundamentalmente de inspiração aristotélica. Nela domina o conceito aristotélico de abstracção, e mais, a abstracção converte-se numa forma fundamental do conhecimento, no próprio conhecimento científico. Tal é o significado da distinção entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstractivo. "Pode haver, diz Escoto (Op. ox., II, d. 3, q. 9, ri. 6), um conhecimento do objecto, que abstrai da sua existência actual, e pode haver um conhecimento do objecto enquanto existe e enquanto está presente na sua existência actual". A ciência abstrai da existência actual do seu objecto, sem o que existiria ou não, conforme a existência ou não existência do seu objecto, com o que não seria perpétua mas seguiria o nascimento e a morte desse objecto. Por outro lado, se o sentido conhece o objecto na sua 128 DUNS ESCOTO existência actual, também do mesmo modo o deve conhecer o intelecto, que é uma potência cognoscitiva mais elevada. Escoto chama abstractivo ao primeiro conhecimento, porque abstrai da existência ou não existência actual do objecto; chama intuitivo ao segundo, enquanto nos coloca directamente na presença do objecto existente e no-lo faz ver tal como ele é em si próprio. "Intuitivo" não se opõe a "discursivo", não significa a imediatês. do conhecimento em oposição ao procedimento indirecto da razão, designa, sim, a presencialidade do objecto que se tem no acto de ver (intueri). Duns Escoto serviu-se assim do conceito aristotélico de abstracção para determinar os dois graus fundamentais do conhecimento, independentemente da distinção tradicional de sensibilidade e razão. O conhecimento abstractivo é o conhecimento do universal, e é próprio da ciência. O conhecimento intuitivo, que não é somente próprio da sensibilidade Pias também pertence ao intelecto, é o conhecimento da existência como tal, da realidade, enquanto ser ou presença actual. Trata-se de duas formas ou graus de conhecimento que não correspondem a dois órgãos ou faculdades diferentes (tal como a
sensibilidade e o intelecto), porque podem ser e são de um só órgão, precisamente o intelecto. Com efeito, é evidente que aos sentidos é dado o conhecimento intuitivo, mas não o abstractivo; enquanto que ao intelecto pertencem tanto um como outro. Ora é sobre, a dupla função intuitiva do conhecimento intelectual que se baseia toda a metafísica de Duns Escoto. É esta a parte mais subtil e original de todo o sistema escotista, e consiste essencialmente na interpretação da teoria aristotélica da substância. A substância aristotélica, como causa ou princípio do ser enquanto ser, é também o fundamento de toda a inteligibilidade e de toda a realidade. Ela é, simultaneamente, a essência do ser e 129 o ser da essência, a natureza racional da realidade e a sua existência necessária (§ 73). Escoto refere-se explicitamente a esta doutrina, através da interpretação de Avicena (Op. ox., 11, d. 3, q. 1, n. 7). Posto que na realidade externa só existem coisas individuais, e que o universal só subsiste como tal no intelecto, Escoto preocupa-se em encontrar o fundamento comum da individualidade das coisas externas e da universalidade das coisas pensadas, reconhecendo este fundamento comum numa quididade ou substância, de tipo aristotélico. Com efeito, embora na realidade externa só existam coisas individuais, deve no entanto haver uma substância ou natureza comum dessas coisas individuais. Em qualquer género dado, existe uma unidade primeira que serve de medida de todas as coisas que pertencem a esse género. Tal unidade é uma unidade real porque é medida de coisas reais, mas não é uma unidade numérica porque não se acrescenta ao número dos indivíduos, que compõem o género. Por exemplo, a natureza humana é a medida e o fundamento de todos os indivíduos que pertencem ao género homem e constituem a sua unidade; mas não é uma unidade numérica, pois se o fosse acrescentar-se-ia, como outra realidade individual, ao número dos indivíduos humanos. Esta unidade não numérica, ou, como ele diz, menor que a unidade numérica, é a qualidade - o quod quid erat esse ou a essência substancial de Aristóteles, isto é, a natureza comum. A substância ou natureza comum é simultaneamente o fundamento da realidade dos indivíduos o da universalidade do conceito. Pela sua parte, não é, portanto, nem individual nem universal, ou melhor, é, por si mesma, indiferente à individualidade e à universalidade. "Ela, diz Escoto (Op. ox., 11, d. 3, q. 1, n. 7), não é, por si mesma, una com uma unidade numérica, nem múltipla com uma 130 multiplicidade oposta a essa unidade; não é universal em acto, tal como o universal o é no intelecto; nem é, em si, particular. Embora nunca exista realmente sem alguma destas determinações, não é todavia nenhuma delas, mas precede-as naturalmente a todas, e, por esta sua prioridade natural, é o quod quid est [a substância no sentido aristotélico é, por si mesma, objecto do intelecto e, por si mesma, é considerada pelo metafísico e expressa pela definição". Esta natureza comum não só é, por si mesma, indiferente à universalidade que recebe no intelecto e à singularidade que recebe na
realidade, mas o seu próprio ser no intelecto não tem originariamente um carácter universal. A universalidade é-lhe acrescentada como primeira determinação, enquanto é objecto; na realidade externa, do mesmo modo, é-lhe acrescentada a singularidade que faz dela uma realidade individual, se bem que, por si mesma, seja anterior à determinação que a contrai a um indivíduo singular. Pela sua igual indiferença à universalidade e à singularidade, não repugna nem a uma nem a outra, pode adquirir, como objecto, do intelecto, aquela universalidade que dela faz uma realidade inteligível, e como realidade física, aquela individualidade que dela faz uma realidade externa à alma (1b.; Rep. par., 11, d. 12, q. 6, ri. 11). Ora esta natureza comum, que é fundamento de toda a realidade, quer no intelecto quer fora do intelecto, é objecto do conhecimento intuitivo. Revela-se aqui a função que Escoto atribui a esta forma de conhecimento. Dado que o conhecimento intelectual abstractivo é evidentemente o do universal, e dado que a natureza comum é anterior tanto à universalidade como à singularidade que é percebida pelo sentido, não haveria qualquer possibilidade de a conhecer se o intelecto não tivesse a função intuitiva que o faz perceber na sua realidade a substância última das coisas (Op. ox., III, d. 14, q. 3, n. 4). 131 Reconhecendo assim na natureza comum e na sua unidade, "menor que a unidade numério-a", a substância metafísica do universo, a estrutura última comum ao mundo sensível e ao mundo inteligível, Escoto propõe-se o problema de ver como ela dá precisamente lugar por um lado, à universalidade que é objecto do intelecto, e, por outro, à singularidade que é o carácter das coisas existentes. Ou seja, encontra-se, por um lado, perante o problema da individuação, por outro lado, perante o problema da universalização. No que se -refere ao princípio da individuação, Escoto nega que ele consista na matéria ou na forma. A matéria é o fundamento indistinto e indeterminado da realidade: não pode, portanto, ser o princípio da distinção e da diversidade (1b., 11, d. 3, q. 5, n. 1). Também a forma o não pode ser, dado que ela, na realidade, é precisamente a substância ou natureza comum que precede tanto a universalidade como a singularidade, sendo, por isso, indiferente a uma e a outra. A individualidade consiste, segundo Escoto, numa "última realidade do ente", a qual determina e contrai a natureza comum à individualidade, ad esse hane rem. Esta última realidade do ente, este princípio contractor e limitativo, que restringe e define a natureza como indiferente nos limites de um indivíduo determinado, foi denominado por Escoto, ou por algum dos seus discípulos imediatos, haecceitas. Este termo, que não se encontra no Opus oxoniense, aparece, pelo contrário, nos Reportata parisiensia (11, d. 12, q. 5, n. 1, 8, 13, 14). Indica a determinação última e completa da matéria, da forma e do seu composto. Esta determinação é uma determinação real, a qual se acrescenta realmente à substância que constitui a natureza comum de todos os indivíduos, mas não é uma realidade dela diferente numericamente. A natureza comum e a haec132 ceitas não são duas realidades, duas coisas numericamente dislintas, embora sejam realmente distintas. Escoto introduz aqui um tipo de distinção que exclui a separação e a diversidade numérica dos termos distintos, se bem que não seja uma pura distinção de razão mas sim uma distinção real. Tal é a
distinção formal, que ele considera existir a natureza e a entidade de um ente qualquer: entendendo por natureza a substância comum indiferente, e por entidade a completa realização do indivíduo com tal (Op. ox., 11, d. 3, q. 6, n. 15). Esta solução do problema da indivIduação implica o reconhecer ao indivíduo um valor metafísico que a tradição escolástica nunca lhe atribuíra. A individualidade é a última perfeição da substância metafísica; constitui a completude de tal substância, a sua actualidade plena. O outro problema fundamental da metafísica de Escoto é o que se refere à universalização da substância comum no intelecto. Esta universalização realiza-se por meio da espécie inteligível. A espécie é necessariamente exigida pelo conhecimento intelectual, dado que é objecto de tal conhecimento. De facto, se a imagem (phantasma) é o objecto do conhecimento sensível e representa a realidade sob o aspecto da singularidade, é necessário que o conhecimento intelectual tenha um objecto diferente, que representa a realidade sob o aspecto da universalidade: tal objecto é a espécie. Ora a espécie não é criada pelo intelecto, ainda que a actividade do intelecto seja a única causa do conhecimento. A espécie é, por sua natureza e não por obra do intelecto, o objecto adequado desse mesmo intelecto; o qual é portanto, nos seus confrontos, não só activo mas também receptivo. O intelecto e a espécie concorrem conjuntamente no determinar do conhecimento, tal como o pai e a mãe na geração da prole (Ib., 1, d, 3, q- 7, n. 2, 3, 20). O primeiro 133 conhecimento confuso do intelecto é o da espécie especialíssima, isto é, da espécie menos universal e mais individualizada, o portanto, a mais próxima da imagem sensível. Mas o primeiro conhecimento distinto do intelecto é, pelo contrário, o mais universal, o do ser, Este conceito está incluído em todos os outros conceitos mais restritos: portanto, todos os outros o pressupõem e não podem ser concebidos distintamente (,isto é, definidos) se neles não estiver distintamente compreendido o conceito de ser. A metafísica, que, precisamente tem por objecto este conceito, é pressuposta por todas as outras ciências, e condiciona. e possibilita os princípios sobre os quais elas se baseiam (Ib., 1, d. 3, q. 2, n. 22-25). § 306. JOÃO DUNS ESCOTO: O SER E DEUS Os pontos fundamentais da doutrina de Escoto de que já tratámos são resultados duma investigação que se esforça por se manter fiel ao espírito do aristotelismo. Como Aristóteles, Escoto situou a metafísica acima de todas as ciências, como condição e fundamento de todas elas. Como Aristóteles, entendeu a metafísica como sendo a ciência do ser enquanto ser. Como Aristóteles, explicitou-a como uma teoria da substância, a qual só pode entender-se em referência à exposição clássica do livro VII da Metafísica. A sua teoria do universal é, na realidade, a teoria da substância como pura estrutura ontológica, fundamento, simultaneamente, da universalidade lógica e da individualidade natural. A fidelidade ao espírito do aristotelismo conduz Escoto a um outro dos traços característicos da sua doutrina: a afirmação da univocidade do ser em oposição polémica a S. Tomás. O conceito de ser, que é o objecto próprio da metafísica, é, Como vimos, o conceito primeiro e fundamental. Está
134 para além de todas as categorias e de todas as determinações genéricas, isto é, não entra em nenhuma categoria nem em nenhum género; como tal, é transcendente (Op. ox., 11, d. 1, q- 4, n. 26). A noção de ser é comum a todas as coisas existentes, comum, portanto, à criatura e a Deus. É unívoca, não análoga; e Escoto detém-se a mostrar as consequências impossíveis derivadas da admissão da analogicidade. O seu argumento fundamental é que, se não se admite um significado de ser que seja comum a Deus e às criaturas, torna-se impossível conhecer algo de Deus e determinar qualquer um dos seus atributos partindo das criaturas por via causaL Com efeito, assim como nada se poderia conhecer da substância, que é por nós unicamente conhecida através dos seus acidentes sensíveis, se não houvesse um conceito comum à substância e a esses acidentes, o qual é, precisamente, o conceito de ser; também nada se poderia conhecer de Deus se não houvesse um conceito comum a Deus e à criatura: e também aqui tal conceito não pode ser senão o de ser (1b., 1, d. 3, q. 3, ri. 9). Não se poderia, por exemplo, ascender da sapiência que nós aprendemos nas criaturas até à sapiência de Deus, porque esta nada teria em comum com aquela; e valeria o mesmo afirmar que Deus é uma pedra, porque entre a pedra criada e a predicada a Deus não haveria relação menor do que há entre a sapiência divina (1b., 1, d. 3, q. 2, n. 10). Ã analogia de proporcionalidade, afirmada por S. Tomás, objecta Escoto que ela confirma precisamente a impossibilidade de afirmar analogicamente qualquer um dos atributos de Deus partindo das criaturas; já que, em virtude dela se não pode afirmar que Deus possua aquela perfeição que se encontra nas criaturas, mas unicamente que é a causa dessa perfeição. Ora, que Deus seja a causa de uma perfeição criada não implica que Deus tenha um atributo 135 semelhante a essa perfeição, a não ser que se aDmita uma semelhança entre o atributo divino e a perfeição criada semelhança que só se pode justificar admitindo um conceito comum a Deus e às criaturas, conceito a que certamente se não pode chegar ascendendo por via causal das criaturas até Deus (lb., 1, d. 8, q. 3, n. 10). Por outro lado, que o ser deva atribuir-se univocamente a Deus e às criaturas, não exclui a sua diversidade. Deus e as criaturas diferem nas suas respectivas realidades. as quais nada têm em comum (Ib., I, d. 8, q. 3, n. 11). Considera Escoto que o principio da univocidade do ser oferece ao homem uma via para demonstrar a existência de Deus. Permite-nos em primeiro lugar, descobrir a impossibilidade da prova ontológica, tal como S. Anselmo a expôs. Se a proposição "Deus existe" se entende como unidade do ser e da essência divina, é certamente necessário considerá-la como evidente dado que se limita a reconhecer a Deus o ser em geral, sem determinar a realidade de tal ser. Se, pelo contrário, fazemos questão da realidade própria de Deus, do ser que lhe compete enquanto o pensamos mediante um conceito próprio, isto é, não comum a ele e às criaturas, como, por exemplo, o de Ser necessário, de Ser infinito ou de Sumo bem, não poderemos então resolver a questão a não ser mediante uma demonstração a posteriori. Posto que os conceitos que determinam a realidade própria de Deus não são simples, mas resultam por sua vez de outros conceitos, a sua união para formar o conceito de Deus deve ser
justificada com uma demonstração, a qual deve proceder, como todo o nosso conhecimento, dos efeitos para as causas (Op. ox., 1, d. 2, q. 2, n. 4, 5, 10). Por outras palavras, só se pode reconhecer, a priori a Deus o ser em geral, o predicado ontológico que é comum a ele e às criaturas; mas a realidade determinada que lhe com136 pete em virtude de um conceito próprio que o homem dele forma, somente deve e pode ser demonstrada partindo da experiência. A priori, sabemos que, de um modo qualquer, Deus existe, mas que ele seja o Sumo Bem ou o Ser necessário ou infinito, só o podemos saber em virtude, de uma demonstração causal. De tal natureza são, com efeito, as provas que Escoto apresenta para a existência de Deus. Dado que o que há de produtível no mundo teve de ser produzido por uma causa, e dado que não se pode ir até ao infinito na cadeia das causas, temos de chegar a uma causa primeira ou, como diz Escoto, a uma primaridade necessária, incausável e existente em acto. Esta prova é obtida considerando a causa eficiente; é obtida uma outra considerando a causa final. Existe um fim absoluto, que é absolutamente primeiro, isto é, não subordinado a nenhum outro fim-, e também este fim absoluto é incausável e actual. Finalmente, e eis uma terceira prova, deve existir uma natureza eminente, primeira pela sua perfeição absoluta, e também ela deve ser incausável e actual. Existem, portanto, três primazias, as quais são inseparáveis e não podem encontrar-se senão numa única natureza, já que o ser absoluta- mente primeiro não pode ser senão um (lb., 1, d. 2, q. 2, n. 11, 17; De primo princ., 3, 9, 11). As três primazias exprimem os três aspectos da suma bondade que, necessariamente, coincidem: a suprema comunicabilidade, a suprema amabilidade e a suprema perfeição. De entre os conceitos que se podem ter de Deus, um só, segundo Escoto, exprime a sua natureza intrínseca: é o de infinito. Com efeito, este conceito é mais simples que o de bem ou outro qualquer semelhante, dado que o infinito não é um atributo ou uma determinação do ser, mas sim, um seu modo intrínseco e não acidental Se dizemos que 137 Deus é sumo, damos-lhe uma determinação que lhe compete em relação às coisas que são diferentes dele; é sumo entre todas as coisas existentes. Mas se dizemos que é sumo na sua natureza intrínseca, então isto não significa senão que é infinito, isto é, que transcende todo o grau possível de perfeição (Op. ox., 1, d. 2, q. 2, n. 17). A infinitude divina leva ao limite todos os atributos de Deus, mas não os identifica na unidade da sua essência. Escoto afasta-se da doutrina dominante na escolástica, segundo a qual os atributos de Deus seriam na sua multiplicidade incompatíveis com a simplicidade da essência divina, e, por isso, se identificariam imediatamente com tal essência. Ele admite entre os atributos divinos aquela distinção formal que é característica da sua doutrina, a qual já vimos interceder entre a natureza comum e a entidade individual. "As perfeições divinas, diz ele, distinguem-se ex parte rei, não realmente, mas formalmente". Entre elas não há somente uma distinção de
razão, como haveria se só fossem modos diferentes de definIr e conceber a única essência divina, nem há uma distinção real, como haveria s-, fossem realidades numericamente, distintas e separadas. Há uma distinção formal, no sentido em que uma é diferente da outra dado que tem uma natureza ou uma essência diversa, diversamente definível. Com efeito, isto implica a distinção formal: a diversidade das definições que exprimem as essências ou quididades respectivas dos termos distintos. Ora se nas coisas erradas a definição da bondade é diferente da da sapiência, também o será na essência infinita de Deus. A infinidade que caracteriza uma perfeição divina aumenta o seu grau para além de todo o limite, mas não modifica a sua natureza. Portanto, as perfeições continuam a ser também em Deus formalmente diferentes uma da 138 outra: a ratio formalis de cada uma delas é diferente da das outras (1b., 1, d. 8, q. 4, ri. 17). Deus é inteligência e vontade, e a inteligência e a vontade são idênticas à sua essência. Como inteligência, conhece não só a sua essência mas também, e em virtude da própria essência, as coisas criadas. Mas ao contrário do intelecto humano, que tem necessidade da espécie para entender as coisas, as quais não podem ser-lhe presentes na sua realidade, o intelecto divino não necessita de intermediários: é-lhe presente a própria realidade e o seu objecto é a realidade conhecida. "0 mundo inteligível não é senão o mundo externo enquanto existe representativamente (obiective) como mundo conhecido na mente divina: a ideia do mundo real não é senão o mundo inteligível, isto é, o mundo no seu ser conhecido" (Rep. Par., 1, d. 36, q. 2, ri. 31). Quanto à vontade divina, é ela o verdadeiro fundamento da essência divina. É verdadeiramente causa primeira e absoluta, pois que não há motivo que a preceda e possa de alguma maneira determiná-la. "Não existe causa alguma pela qual a vontade divina queira isto ou aquilo, mas a vontade é a vontade e nenhuma causa a precede" (Op. ox., 1, d. 8, q. 5, ri. 24). Está aqui verdadeiramente expresso o princípio do chamado voluntarismo de Duns Escoto. A vontade é o princípio da contingência absoluta, escapa a qualquer necessidade e é a única causa de si própria. Explica-se assim que a atribuição de qualquer elemento ao domínio prático da vontade signifique a negação da sua necessidade, isto é, da sua demonstrabilidade racional. Explica-se também como toda a intervenção directa de Deus na constituição do mundo deva ser considerada por Escoto como indemonstrável, enquanto está excluída da ordem racional do próprio mundo. É este o motivo pelo 139
qual Escoto considera que a omnipotência de Deus é indemonstrável e constitui um puro artigo de fé. Que Deus actue como causa primeira através da acção das causas segundas, é uma verdade demonstrável, pela qual se pode mesmo chegar (como já vimos) à própria existência de Deus. Mas que Deus produza imediatamente, isto é, prescindindo de qualquer causa intermediária, qualquer coisa que não seja em si necessária ou não inclua contradição, tal afirmação
é uma afirmação que não pode ser demonstrada, mas somente acreditada (lb., 1, d. 42, q. 1). A vontade de Deus é absolutamente livre, se bem que a liberdade divina se não entenda, como a humana, como a possibilidade simultânea de actos opostos, já que esta possibilidade implica uma imperfeição que não pode ser atribuída a Deus (lb., 1, d. 39, q. 5, n. 21). A liberdade de Deus consiste somente na sua capacidade de querer um número infinito de objectos diversos. Esta capacidade não implica nele nenhuma mutabilidade. Deus pode estabelecer que a coisa por ele querida se efectue neste ou naquele momento do tempo, sem que o seu querer perca a sua eternidade e imutabilidade. A novidade do mundo não é, pois, excluída (como sustentavam os filósofos árabes) pela eternidade do querer divino. Quanto ao início do mundo no tempo, Escoto considera que a questão, sob o ponto de vista da razão, deve ser deixada indecisa (lb., II, d. 1, q. 3). § 307. JOÃO DUNS ESCOTO: O HOMEM Que a alma intelectiva seja a forma substancial do corpo é, segundo Escoto, uma verdade demonstrável. O homem, enquanto tal, pensa; e o seu pensamento não pode ser reportado a um órgão corporal, porque transcende o domínio dos objectos sensíveis e dirige-se ao universal e ao supra-sensível. 140 O sujeito do pensamento deve, portanto, ser a alma; e se o homem é tal pelo pensamento, a alma, que é o órgão do pensamento, é a substância ou a forma do homem (Op. ox., IV, d. 43, q. 2). Mas alma intelectiva não é a única forma do homem: há nele uma outra forma substancial, a do corpo enquanto corpo. É a forma corporeitatis ou forma misti, que é própria do corpo como tal, anteriormente à sua união com a alma e, que o predispõe a tal união. Esta realidade que o corpo humano possui como corpo orgânico, independentemente da sua união com a alma, é a forma de corporeidade do próprio corpo (lb., IV, d. 11, q. 3; Rep. par., IV, d. 11, q. 3). A doutrina da forma de coMoreidade é um corolário da doutrina da actualidade da matéria, que Escoto tem em comum com a tradição franciscana. A matéria, independentemente da forma, tem uma realidade sua, pela qual se distingue do nada; ela é, portanto, em wto, não enquanto o acto se opõe à passividade (já que, segundo Aristóteles, a matéria é sempre passividade ou potência) mas enquanto o acto se opõe ao não ser (Op. ox., 11, d. 12, q. 1, n. 16). Esta doutrina da actualidade da matéria encontra-se desenvolvida de modo característico no De rerum princípio, e se bem que tais desenvolvimentos não possam ser atribuídos a Escoto, dada a impossibilidade de, com certeza, lhe atribuir esta obra, eles revelam todavia um aspecto historicamente notável da corrente escotista. São distinguidos naquela obra três significados da matéria. A matéria primo prima é a mais indeterminada e, portanto, a menos actual, já que é privada de qualquer forma substancial ou acidental. A matéria secundo Prima é o substrato da geração e da corrupção e é já provida de alguma forma substancial e da quantidade. A matéria tercio prima é a matéria sobre a qual agem as forças naturais e da qual o 141 Próprio homem se serve nas suas produções artificiais. A distinção destas
três matérias não anula a unidade da matéria. O De rerum principio admite explicitamente a doutrina de Avicebrão da unidade da matéria, quer a das coisas corporais quer a das espirituais (De rer. princ., q. 8, a. 3-4). De qualquer maneira, a matéria nada tem que ver com a individualidade da alma. A alma tem a sua singularidade independentemente, e antes da sua união com a matéria. Evidentemente, a sua singularidade é, como a de qualquer outra coisa, a sua entidade última, a haecceítas (Quod1., q. 2, n. 5). É aqui mais uma vez refutado o princípio de individuação tomista como materia signata. A partir da natureza da alma não se pode deduzi-r ou demonstrar a sua imortalidade. Não são concludentes as razões que foram aduzidas em defesa da sua -imortalidade. Aristóteles não teria podido admitir a imortalidade sem destruir todos os seus princípios, já que ele considera que em todo o composto o ser do todo é diferente do ser das partes que o compõem (a matéria e a forma). Mas se a alma permanecesse após o corpo, não seria só forma, isto é, parte do homem, mas todo o homem, o que é contrário à sua explícita afirmação (Rep. par., IV, d. 43, q. 2, n. 13). Não se pode dizer que a alma, como forma, tenha o ser por sã, e seja, portanto, indestrutível; já que ela não tem o ser por si no sentido de subsistir por sua conta e de, a nenhum título, poder ser separada do ser: isto quereria dizer que nem Deus a poderia criar ou destruir, o que é falso (1b., IV, d. 43, q. 2, n. 18-19). Esta relação intrínseca entre o ser e a alma, afirmada pela primeira vez por Platão e da qual também S. Tomás se servira para demonstrar a imortalidade, é assim negada por Escoto e reduzida a pura matéria de fé (Op. ox., IV, d. 43, q. 2, n. 23). Ainda menos concludentes são as razões 142 extraídas da vida moral: a aspiração da alma à beatitude, eterna e a uma justiça que remunere o bem e o mal. Já que, ao menos, deveríamos conhecer, por meio da razão natural, que a beatitude eterna seja o fim conveniente à nossa natureza, o que não acontece; e quanto à necessidade de um prémio ou de um castigo, pode dizer-se que cada um encontra a sua suficiente remuneração na sua própria boa acção, e que a primeira pena do pecado é o próprio pecado (1b., IV, d. 43, q. 2, n. 27, 32). A imortalidade, da alma é, portanto, uma pura verdade de fé, não susceptível de tratamento demonstrativo. Escoto afirma com muita energia a liberdade da vontade humana. "A vontade, enquanto acto primeiro, é livre para actos opostos; é também livre de tender, mediante tais actos opostos, para objectos opostos, e, além disso, é livre de produzir efeitos opostos" (1b., I, d. 39, q. 5, n. 15). Esta liberdade é condicionada essencialmente pelo facto de que a vontade não tem outra causa senão ela própria, já que é o único princípio de tudo o que acontece de uma maneira contingente, isto é, não necessariamente (lb., 11, d. 25, q. 1, n. 22). No acto voluntário, o intelecto depende da vontade, dado que a vontade dele se serve como instrumento e o submete às exigências da acção. Contra o primado do intelecto afirmado por S. Tomás, Duns Escoto afirma, com Henrique de Gand, o primado da vontade. A bondade do objecto não causa necessariamente a anuência da vontade, mas a vontade escolhe livremente o bem, e livremente opta pelo bem maior (1b., 1, d. 1, q. 4, n. 16). Esta supremacia da vontade confere à vida moral do homem um carácter de arbitrariedade irremediável.
A única lei moral é para o homem o mandato da vontade divina. "Deus não pode querer nada que não seja justo, porque a vontade de Deus é a 143 ,primeira regra" (lb., IV, d. 46, q. 1, n. 6). Dado que a causa da vontade divina não é outra senão a própria vontade, Deus poderia agir de outra forma e estabelecer para o homem uma lei diferente daquela que estabeleceu: em tal caso, esta última seria a lei justa, dado que nenhuma lei é justa senão enquanto é aceite pela vontade divina (lb., 1, d. 44, q. 1, n. 2). Trata-se de consequências inevitáveis do princípio fundamental de que tudo o que é prático é absolutamente livre e arbitrário. Este princípio, utilizado com rígida coerência, leva a reduzir o valor da conduta humana à simples conformidade com a lei estabelecida por Deus, e o valor desta lei ao simples arbítrio divino. Porém, é evidente que Escoto deve admitir uma excepção, e uma só, ao princípio segundo o qual todas as regras de conduta se reduzem a mandamentos divinos. Esta excepção refere-se à própria regra que impõe o respeito ao mandamento divino; já que se esta última também só fosse válida em virtude de um mandamento divino, não haveria para o homem nenhuma vida de acesso natural à vida moral, e esta consistiria numa obediência ao mandamento divino também ela prescrita somente por um mandamento divino. E tal é, com efeito, a posição de Escoto a esse propósito. Começa, porém, por distinguir uma lei de natureza, evidente naturalmente ao homem do mesmo modo que os princípios especulativos, e uma lei positiva divina feita valer por um mandamento de Deus (lb., III, d. 37, q. 1); mas logo restringe o campo da lei natural distinguindo nela os princípios práticos que resultam evidentes pelos seus próprios termos ou que são demonstrados necessariamente, daqueles que sendo conformes a tais princípios, não são evidentes nem necessários; e considera somente os primeiros como leis naturais em sentido restrito Ub., 111, d. 37, q. 1). Assim restringido, o domínio da lei natural com144 preende somente os dois primeiros preceitos da primeira tábua: "Não terás outro Deus além de mim e "Não pronunciarás o nome de Deus em vão", os quais são, precisamente, os preceitos sobre os quais se baseia a obediência geral aos preceitos divinos. A todos os outros preceitos, e embora admita a sua maior ou menor consonância com a lei da natureza, Escoto nega-lhes a naturalidade e procura confirmar esta sua negação com base na dispensa que Deus pode conceder, e concede, em relação a eles, reconhecendo de tal modo que o homem pode agir rectamente ainda que sem a sua observância (Ib., 111, d. 37, q. 1). Como só existe um único preceito de lei natural--a obediência a Deus-também só existe um único acto verdadeiramente bom para o seu sujeito -o amor a Deus. O amor a Deus é o amor de um objecto desejável por si mesmo e infinitamente bom, e nunca pode ser moralmente mau; do mesmo modo, o ódio a Deus é o único acto verdadeiramente mau, e que em nenhuma circunstância pode ser bom. Qualquer outro acto que se dirija a outro objecto pode ser bom ou mau conforme as circunstâncias (Rep. par., IV, d. 28, q. 1, n. 6). O amor a Deus é a condição do amor ao próximo e a si mesmo, e fornece a regra e a medida de qualquer outro amor (Op. ox., HI, d. 28, q. 1). Ao
amor, responde Deus com a graça, que é o acto com o qual ele aceita o amor e ama aquele que o ama (lb., 11, d. 27, q. 1, n. 3). Escoto atribui ao arbítrio divino a própria ordem providencial da salvação. Contra a justificação tradicional da redenção, concebida como necessária para retirar o homem do estado de queda para o qual fora precipitado pelo pecado de Adão, Escoto afirma a contingência da redenção e a perfeita voluntariedade da encarnação de Cristo. O homem poderia ter sido redimido de um modo diferente do que mediante a morte de Cristo. Não havia 145 ?r, 0 ., necessidade de que Cristo **reffiraisse o homem com a sua morte, a não ser uma necessidade condicionada pela sua decisão de o querer redimir daquele modo. A morte de Cristo foi contingente e devida unicamente a decisão divina (Ib., IV, d. 15, q. 1, n. 7). Assim conduziu Escoto com extremo rigor a sua redução da fé ao domínio prático, isto é, ao contingente e arbitrário. Todavia, esta redução não implica a seus olhos nenhuma diminuição do valor da fé. O seu carácter voluntário ainda mais lhe aumenta o mérito. Não pode haver dúvida sobre a profundidade do espírito religioso, desta estranha figura de franciscano que professava o ideal aristotélico, de uma ciência rigorosa e simultaneamente defendia e expunha aquela crença na imaculada concepção de Maria, que a própria Igreja católica só no século XX viria a reconhecer como dogma. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 303. Todas as obras de Escoto foram publicadas em 1639 em Lyon por Luca Wadding, autor de anais dos franciscanos. O De primo principio está no volume 1'11; O Opus exoniense nos vois. V-X; os Reportata parisiensia no vol. X1; o Quodlibet no vol. XII. Foram feitas edições mais recentes sob a direcção dos padres franciscanos de Quaracchi: as Quaestiowes disputatae de imaculata conceptione, Qauracchi, 1904; o De rerum principio, Quaracchi, 1910. Das Opera omnia pubIieadas pela Comissão Escotista sob a presidência de C. Balic sairam, os primeiros quatro volumes, Roma, 1950 e seguintes. Sobre a vida. e a obra: LITTLE, The Grey Friars in Oxford, Oxford, 1892, p. 210-222. Sobre a questão da autenticidade das obras: LONGPRÉ, La philosophie du B. Duns Scot, Paris, 1924, 16-49, 288-291; e em particular sobre os Theoremata E. GILSON, in "Arch. &Hist. doct. et litt. du Moyen Age", Paris, 1938, p. 5-86; C. BALIC, in "Riv. di Fil. Neo-Scol.>, 1938, 146 p. 235-245. O confronto entre Duns Escoto e Kant é in WILLMANN, Geschichte des Ideahsmus, vol. 11, 1908, p. 516. § 304. Sobre as relações entre ciência e fé: MINGES, in "Forschungen zur ehristlichen Literatur und Dogmengeschichte", 1908, 4-5; FINKENZELLER, in
"Bleitrãge", XXXVIII, 5, 1961. § 305. Sobre a lógica e a teoria do conhecimento: PRANTL, Gesch. der Logik, 111, 202-232; HEIDEGGER, Die Kategorien und BedeutungsIehre des Duns Scotus, Tübingen, 1916. Esta obra toma em consideração especialmente a Gramática especulativa que não é autêntica. Sobre o chamado realismo excessivo de Duns Escoto que é a velha interpretação da sua doutrina baseada em textos apócrifos: MINGES, in "Beitrãg", VI, 1, 1908. § 306. Sobr,- a unIvocidade do ser: MINCES, in "Phil. Jahrbuch", 1907, 306323. Sobre a teologia: BELMOND, Êtudes sur Ia philos. de Duns Scotus, Paris, 1913. § 307. Sobre o indeterminismo, de Escoto: MINGES, in "]3eitrãge", V, 4, 1905. Sobre a ética: STOCKMus, Die Unverãnderlichkeit des natürlichen Sittengesetz in der scho7astischen, Ethik, 1911, 102-135; DITTRICH, Gesch. d. Ethik, 111, 150 ss. Entre as monografias mais recentes: LANDRY, Duns Scot, Paris, 1922, contra a qual se dirige a obra de LONG~, La philos. du Béat Duns Scot, Paris, 1924, notãvel sobretudo pelo exame da autenticidade das obras escotistas. A monografia inglesa de HARRIS, Duns Scotus, 2 vols., Oxford, 1927, baseia-se também no De rerum principio, do qual Flarris admite a autenticidade. Sobre temas fun- )damentais da filosofia escotista, o vasto eGmentárío de E. GILSON, Jean Duns Scot, Introduction à ses positions fondamentales, Paris, 1952. Bibliografia: IlAnRIS, op. cit., IT, p. 313-360; E. BETTONI, VentIanni di studi scotisti, in "Quaclerni defla R.v. Neo-Scol.", Milão, 1913; SCHAEFER, Bibl. de vita operibus et doctrina J. D. S., Roma, 1954. 147 XXI A POLÉMICA TEOLóGICA E POLíTICA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIV § 308. SINAIS PRECURSORES DA DISSOLUÇÃO DA ESCOLÁSTICA Entre a morte de Duns Escoto e o início da actividade filosófica de Occam medeiam muito poucos anos. Mas durante esses poucos anos, a consciência dos **lirutes que a investigação escolástica encontra por todo o lado na sua tentativa de explicar o dogma católico dá passos gigantescos, reforça-se aprofunda-se em todos os sentidos. Pela primeira vez, Duns Escoto faz valer o aristotelismo como norma de uma rigorosa ciência demonstrativa e, consequentemente, como critério limitativo e negativo da investigação escolástica. Pela primeira vez, ele afirma a heterogeneidade da teologia em relação à ciência especulativa e reconhecera o carácter prático, isto é, arbitrário, de qualquer afirmação dogmático. Desenhava-se assim uma cisão entre os 149
dois domínios que a escolástica sempre houvera procurado aproximar e fundir harmonicamente Após Duns Escoto, esta cisão vai-se sempre aprofundando cada vez mais. Uma série de pensadores dos quais nenhum apresenta uma personalidade de primeiro plano e que, por isso, mais não fazem do que exprimir a atmosfera dominante no seu tempo, especifica e descobre novos motivos de contraste entro a investigação filosófica e as exigências da explicação dogmática. Pensadores relativamente independentes, como Durand de Saint-Pourçain e Pedro Auréolo, discípulos de Escoto como Francisco Mayrone e Tomás Bradwardine, acentuam o carácter arbitrário das afirmações dogmáticas. O nominalismo, que se desenha nitidamente nos dois primeiros, vai corroendo as bases da explicação dogmática conduzindo a um reconhecimento do valor da experiência, o que, com Occam, levará à subversão das posições tradicionais. A revivescência do averroísmo fará reflorescer a doutrina da dupla verdade, a qual se converte no estandarte do cepticismo teológico do período seguinte. Por detrás da aceitação pura e simples da verdade de fé, esconde-se a desconfiança na tentativa de a entender racionalmente e a convicção de que a investigação filosófica não deve sequer propor-se a esta tarefa impossível, mas sim dirigir-se para outras vias. Finalmente, as discussões jurídicas e políticas da primeira metade deste século, as quais culminam na obra de Marsílio de Pádua, abrem caminho a um conceito racional e positivo do direito e do estado. § 309. DURAND DE SAINT-POURÇAIN Durand de Saint-Pourçain (de S. Porciano) denominado Doetor modermis pelos seus contemporâneos, nasceu entre 1270 e 1275, foi frade domi150 nicano, e morreu bispo de Meaux em 10 de Setembro de 1334. Desenvolveu algumas actividades na corte papal de Avinhão. Participou com uma obra na disputa sobre a pobreza de Cristo o dos Apóstolos, e fez parto da comissão que em 1326 censurou os 51 artigos extraídos do Comentário às Sentenças de Guilherme de Occam. A sua obra principal é o Conzentário às Sentenças, em cujo prólogo se afirma explicitamente a exigências da liberdade de investigação filosófica. "0 modo de falar e de escrever em tudo o que se refere à fé é que nos baseemos na razão, mais do que na autoridade de qualquer doutor por mais célebre e solene que ele seja, e que se faça pouco caso de qualquer autoridade humana quando a verdade contra ela surja por obra da razão". E efectivamente, parece que na sua actividade filosófica Durand seguiu uma via pessoal e, embora fosse dominicano, não fez muitas concessões à autoridade de S. Tomás. A esta sua posição independente se devem talvez as polémicas contra ele dirigidas por Horveus Natalis, João de Nápoles e, outros tomistas. No que se !refere à teoria do conhecimento, Durand nega a necessidade da espécie intermediária tanto para a sensibilidade como para o intelecto. O próprio objecto está presente aos sentidos e, através deles, também ao intelecto (In Sent., 11, d. 3, q. 6, n. 10). O objecto real é sempre individual. O universal, seja género ou espécie, subsiste unicamente no intelecto. Compete à coisa só enquanto ela é compreendida pelo intelecto, o qual abstrai das condições individuantes dela, e não por qualquer elemento pertencente à
substância da própria coisa (lb., 11, d. 3, q. 7, n. 7). O universal o o individual distinguem-se só racionalmente, mas na realidade são idênticos, já que o universal não é 151 senão o indeterminado, e o individual o determinado. Pelo seu carácter indeterininado, o universal é um conhecimento confuso, enquanto que o conhecimento do individual é distinto. Aquele que tem o conhecimento universal de uma rosa que não vê, conhece confusamente aquilo que é intuído distintamente por quem vir a rosa que lhe está presente (1b., IV, d. 49, q. 2, n. 8). Os elementos desta doutrina do universal são tirados de Duns Escoro. Conhecimento intuitivo, conceito confuso, são noções escotistas; escotista é também a noção de um conhecimento no qual o próprio objecto está presente no seu ser objectivo, mas tal conhecimento é atribuído por Escoto não ao homem mas a Deus (§ 304). A doutrina de Durand assinala uma decisiva orientação no sentido do nominalismo radical de Occam. Em polémica com S. Tomás, que definira a verdade como adequação do intelecto e da coisa, Durand define a verdade como a conformidade do ser apreendido pelo intelecto com o ser real (1b., 1, d. 19, q. 5, n. 14); e esta rectificação torna-se necessária dada a sua doutrina fundamental de que no intelecto não existe a espécie ou forma da coisa, mas a própria coisa na sua realidade representada. O mesmo princípio conduz Durand à modificação da doutrina das ideias divinas, por ele consideradas não como representações das coisas, mas as próprias coisas enquanto produzidas ou produtíveis, isto é, na causa do seu ser (lb., 1, d. 36, q. 3). Finalmente, Durand aceita a doutrina escotista de que a teologia é unicamente uma ciência prática e que, portanto, não é ciência no sentido restrito do termo, e de que a razão é incapaz de demonstrar a verdade ou mesmo a possibilidade dos artigos de fé (1b., prol., q. 1, n. 40-48). 152 § 310. PEDRO AURÉOLO Na mesma linha de pensamento move-se o Doctor facundus, Pedro Auréolo, que foi provavelmente aluno de Duns Escoto em Paris. Pertenceu à ordem franciscana e ensinou em Bolonha, Toulouse e Paris. Em 1321 foi nomeado arcebispo de Aix e morreu em 1322 na corte papal de Avinhão. Pedro Auréolo também participou na luta contra os sustentadores da pobreza de Cristo e dos apóstolos com um Tratactits de paupertate et usu paupere escrito em 1311. A sua obra principal é um Comentário às Sentenças, no qual defende uma teoria do conhecimento análoga à de Durand. Critica a doutrina da espécie, que ele chama forma specularis, aduzindo que se a espécie fosse objecto do conhecimento, este não se referiria à realidade mas só à imagem dela, O objecto do conhecimento é a própria coisa externa, que, por obra do intelecto, assume um ser intencional ou objectivo, o qual não é efectivamente diferente da própria realidade particular. A rosa que é objecto de definição e de demonstração, diz ele, não é senão a própria rosa particular constituída em um ser representado ou intencional, que forma uma única intentio e um
único conceito simples (Dreiling, p. 82, n. 2). O universal, como tal, não tem a mínima realidade externa. Tudo o que existe é singular e o problema da individuação é insubsistente (In Sent., 1, 144, in Dreiling, p. 160, n. 1). O conhecimento tem tanto maIs clareza quanto menos se afasta da realidade individual: tem maior valor o conhecimento da realidade individuada e determinada do que o abstracto e universal. E isto porque o fundamento do conhecimento é a experiência. "É necessário aderir ao caminho da experiência mais do que às razões lógicas, já que na experiência tem origem a ciência 153 e as noções comuns que constituem os princípios das artes" (1b., 1, 25, in Dreiffing, p. 196, n. 1), Eis aqui uma decisiva orientação no sentido do empirismo occamista, a qual também se evidencia na aceitação e no uso do princípio metodológico da economia, que Occam assumirá: Frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora (1b., 1, 319, in Dreiling, p. 205, n. 5). Henrique de Harelay foi outro dos sustentadores do esse obiectivum ou intentionale da realidade conhecida, isto é, do carácter representativo ou significativo do objecto do conhecimento, o qual não te-ria, portanto, uma realidade substancial, um subiectum, diferente da realidade da coisa externa. Henrique de Harelay nasceu cerca de 1270 e morreu em 1317. Foi mestre na faculdade de teologia de Paris e autor de um Comentário às Sentenças e de Questões, algumas das quais foram recentemente publicadas. Em alguns aspectos, como na doutrina das relações, Henrique de Harelay preludia directamente Guilherme de Occam. § 311. A ESCOLA ESCOTISTA A figura de Duns Escoto bem depressa obscureceu a dos outros mestres franciscanos, convertendo-se para a ordem franciscana no que S. Tomás era para a ordem dominicana. Uma numerosa série de discípullos apareceu a reexpor, explicar e defender polemicamente as doutrinas do mestre, contribuindo assim para a sua difusão ainda que sem aumentar a sua força e originalidade especulativa. Entre estes discípulos os mais notáveis são António Andrea, Doctor dulcifluus, falecido cerca de 1320 e autor de uma Metafísica textualis que foi impressa entre as obras de Escoto; e Francisco de Mayarone (na Provença) cognominado pelos seus 154 contemporâneos Doetor ilIuminatus ou Doctor acutus ou ainda Magister abstractionum. Este últirno faleceu em Piacenza em 1325 e escreveu numerosas obras, entre as quais um Comentário às Sentenças, um Comentário à Física aristotélica, um De primo principio e um Tractatus de formalitatibus. O Comentário às Sentenças contém a notícia (In Sent., 11, d. 14, q. 5, fel. 150 a, ed. Venetiís, 1520) de que em 1320 na Universidade de Paris um doutor afirmava que "se a terra se movesse e o céu estivesse parado, isso seria uma melhor disposição do mundo". Francisco Mayrone defendeu a distinção formal de Escoto, colocando-a ao lado da distinção essencial e da situação real. A distinção essencial é aquela que intervém entre a essência e a existência de duas realidades, por exemplo,
Deus e a criatura. A distinção real é a que intercede entre duas realidades existentes que possam ter a mesma essência, por exemplo, entre pai e filho. A distinção formal é a que intercede entre duas essências diferentes, por exemplo, entre o homem e o burro. Há ainda uma distinção interior à essência, que intercede entre a essência e o seu modo intrínseco, por exemplo, entre o homem e a sua finitude. Lutou contra o nominalismo oecamista Walter Burleigh (Burlaeus), Doctor planus et perspicuus, que ensinou em Paris e em Oxford e morreu cerca de 1343. É autor de uma espécie de história da filosofia, de Tales a Séneca, que é intitulada De vitis et moribus philosophorum e se baseia nas biografias de Diógenes Laércio e em obras de Cícero e outros autores latinos; escreveu também comentários de obras de lógica, da física e ética de Aristóteles e vários tratados sistemáticos. Estas obras apresentam uma acentuação das teses de Escoto no sentido realista. Simultâneamente matemático, filósofo e teólogo, Tomás Bradwardine chamado Doctor profundus, 155 nasceu em 1290 e faleceu em 1349 como arcebispo de Cantuária. É autor de numerosas obras de aritmética e de geometria, obras contra o pelagianismo e, possivelmente, de um Comentàrio às Sentenças. Foi ele quem introduziu no Merton College de Oxford o género de estudos lógicos que depois se vieram a chamar Calculationes (§ 326). No seu Tractatus de proportionibus escrito em 1328 costuma-se ver o início da distinção entre a consideração cinética e a consideração dinâmica do movimento. Com efeito, Bradwardine trata nele, separadamente, da "proporção da velocidade em relação às forças dos moventes e à coisa movida", que é a consideração dinâmica, e da velocidade "em relação às grandezas das coisas movidas e ao espaço percorrido", que é a medida cinética do movimento. Por outro lado, começa a formar-se com o seu Tratado o dicionário de cinemática que não deixa de, ter uma certa importância até aos trabalhos de Galileu, embora só este último o tenha guindado a um plano autênticamente científico. Os escritos teológicos de Bradwa"ne apresentam uma acentuação do princípio escotista da perfeita arbitrariedade da vontade divina, afirmando mesmo a sua supremacia sobre a própria vontade humana que Escoto, pelo contrário, considerava livre. "Não há em Deus razão ou lei necessária que preceda a sua vontade, só ela é necessàriamente a lei e a justiça suprema" (De causa Dei, 1, 21). Deus é a única causa motora ou eficiente de tudo o que sucede, e determina necessàriamente a própria vontade humana. "Baste ao homem ser livre em relação de todas as coisas excepto a Deus, e ser sómente serva de Deus, servo livre e não coagido" (1b., 111, 9). Assim se compreende a sua polémica contra o polagianismo, o qual afirmava a liberdade do homem mesmo em relação a Deus. 156 Um dos alunos de Tomás Bradwardin-- foi João Wicliff, o iniciador da reforma religiosa em Inglaterra; e através de Wícliff, o determinismo teológico de Bradwardine inspirou João Huss e Jerónimo de Praga, os precursores da reforma na Alemanha.
§ 312. OS úLTIMOS AVERROíSTAS MEDIEVAIS A condenação do averroísmo e da principal personalidade do averroísmo latino, Siger de Brabante, não impediu a difusão da obra de Averróis. À medida que na cultura escolástica crescia a importância de Aristóteles, crescia também a importância daquele que era considerado como o "Comentador" por excelência. Contudo, o averroísmo não constitui uma escola, mas sim uma orientação seguida por alguns pensadores isolados, orientação que em certos casos se afirmou uma decisiva antítese das crenças cristãs mantendo-se fiel à doutrina original do Comentador, enquanto que noutros casos se atenuou, eliminando, ou procurando eliminar, qualquer motivo de contraste com o cristianismo. A Universidade de Pádua foi durante muito tempo um centro averroísta. Em Pádua ensinou, nos primeiros anos do século XIV e até à sua morte (ocorrida provavelmente em 1315 durante o processo a que a Inquisição o submetera), Pedro de Abano, nascido em 1257, médico e filósofo, defensor da astrologia e autor de um Conciliator differentiarum philosophorum et praecipue medicorum. Não parece que Pedro de Abano tenha feito suas as teses tipicamente anticristãs do averroísmo originário, teses que, pelo contrário, se encontram na obra de João de Jandum. No Conciliator, Pedro de Abano propõe-se fazer o acordo entre as opiniões diversas que haviam sido enunciadas sobretudo a 157
propósito de questões médicas. Defende também o determinismo astrológico dos Árabes. Tudo o que acontece no mundo, inclusivé a vontade humana, está sujeito aos movimentos celestes, os quais determinam os grandes acontecimentos que assinalam as épocas da história e até o aparecimento dos profetas e dos fundadores de religiões. Tomás de Estrasburgo (de Argentina), monge agostinho sequaz do tomismo e que morreu em Viena em 1357, atribui a Pedro de Abano, no seu Comentário às Sentenças, um racionalismo religioso de que se não encontram traços nas obras do filósofo-médico. A propósito de certos casos de morte aparente, cita Pedro de Abano entre os que acreditam na possibilidade desta letargia e acrescenta que ele "aproveitava isso para se rir dos milagres. nos quais se vê Cristo e os Santos a ressuscitarem os mortos; dizia ele que as pessoas assim ressuscitadas não estavam verdadeiramente mortas, mas unicamente caídas em letargia". Tomás de Estrasburgo acrescenta que estas heresias não lhe trouxeram nada de bom: "Estava eu lá, quando na cidade de Pádua os seus ossos foram queimados por causa deste erro e de todos os outros por ele sustentados" (In Sent., IV, d. 37, q. 1, a. 4). Todavia, não se pode considerar que Pedro de Abano tenha sustentado as teses tipicamente anticristãs do averroísmo originário. Tais teses encontram-se, pelo contrário, na obra de João de Jandum. Foi mestre na faculdade das artes de Paris e amigo e, segundo alguns consideram (mas quase de certeza erradamente), colaborador de Marsílio de Pádua, autor do Defensor pacis, o mais vigoroso escrito da Idade Média contra a supremacia
política universal do papado. Tendo tomado partido por Luís o Bávaro, contra João XXII, João de Jandum e Marsílio de Pádua refugiaram-se junto do Imperador, fugindo assim às consequências 158 da escomunhão que o papa lhos lançara. João de jandum morreu em 1328, o seu amigo Marsílio de Pádua viveu ainda mais alguns anos. João de Jandum escreveu um Comentário à Física e à Metafísica de Aristóteles e vários tratados, um dos quais acerca do sentido activo (sensus agens). Declara-se explicitamente discípulo de Aristóteles e de Averróis, mas a característica fundamental da sua atitude filosófica é o cepticismo perante, qualquer possibilidade de explicação dogmática e o puro e SIMples reconhecimento do contraste entre fé e razão. Depois. de ter afirmado a unidade numérica do intelecto nos diversos indivíduos, diz que: "Ainda que esta opinião de Averróis. não possa ser refutada com razões demonstrativas, eu, pelo contrário digo e afirmo que o intelecto não é numericamente uno em todos os homens; mais ainda, é diferente nos diferentes indivíduos segundo o número dos corpos humanos e a perfeição que lhos dá a realidade. Mas isto não demonstro eu com nenhuma razão necessária porque não o considero possível; e se alguém o conseguir demonstrar, que se alegro (gaudeat) com isso. Esta conclusão afirmo eu ser verdadeira e considero-a indubitável unicamente para * fé" (De an., 111, q. 7). Assume a mesma atitude * respeito de todos os pontos fundamentais da fé cristã. E repete o seu irónico convite: "que se alegre quem o souber demonstrar"; ele, por seu lado, limita-se a reconhecer a sua absoluta** incononiabilidado com os resultados da investigação racional. O averroísmo age aqui como um factor de dissolução da escolástica e tem somente o valor dum radical cepticismo teológico. Carácter diferente assume, pelo contrário, em João de Baconthorp, que pertenceu à ordem carmelita, ensinou em Inglaterra e faleceu em 1348. Das suas numerosas obras só foram publicadas o Comentário às Sentenças, os Quodlibeta e o Compendium 159 legis Christi, ficando inéditos numerosos tratados e comentários. Interpreta a doutrina da unidade do intelecto no sentido de que ela não representa a verdadeira opinião de Averróis, mas sim uma hipótese provisória de que ele se serve para alcançar uma verdade mais completa. Além disso, João Baconthorp limÍta-se a recolher doutrinas diversas, às quais não dá nenhuma elaboração original. § 313. MARSíLIO DE PÁDUA E A FILOSOFIA JURíDICO-POLITICA DA IDADE MÉDIA A primeira metade do século XIV é caracterizada não só pela liberdade e ausência de preconceitos das discussões teológicas e metafísicas, mas também pela liberdade e ausência de preconceitos das discussões jurídico-políticas. Olhando para o campo destas discussões (mencionadas ocasionalmente nas páginas precedentes) nele distinguimos imediatamente dois constantes pontos de referência, um doutrinal e outro prático: a teoria do direito natural e
o problema das relações entre o poder eclesiástico e o poder civil. A teoria do direito natural é o quadro geral em que se movem todas as discussões jurídicas e políticas da escolástica. Elaborada pelos Estóicos e divulgada por Cícero, incorporada no direito romano, esta teoria constitui o fundamento daquela nova criação jurídica, característica da Idade Média, e que é o direito canónico. Na sua forma mais completa e amadurecida, que encontrou com S. Tomás (§ 281), a lei natural é a própria lei divina que, com perfeita racionalidade, regula a ordem e a mutação do mundo, nela devendo inspirar-se quer as leis civis quer a lei religiosa que dirige o homem par o seu fim sobrenatural. Acolhendo ecleticamente 160 as duas alternativas que a teoria do direito natural periodicamente seguira (ambas as quais se podiam já detectar nos Estóicos) S. Tomás considera que a lei natural é simultaneamente instinto e razão porque abrange tanto as inclinações que o homem tem em comum com os outros seres naturais como as racionais, especificas do homem (Summa theol., 11, 1, q. 94, a. 2). Mas, duma forma ou doutra, esta doutrina nunca foi posta em causa durante os séculos da Idade Média (e continuará a não o ser ainda durante alguns séculos), é este o fundo comum de todas as discussões políticas. Por vezes, a discussão cai sobre a autoridade que melhor, mais directamente ou eminentemente **incairria a lei natural, isto é, sobre o problema de se tal autoridade será a do papa ou a do Imperador. A polémica filosófica segue ou acompanha neste caso a grande luta política entre o papado e, o império. Da teoria das "duas espadas", da qual o papa Gelásio 1 se servira, cerca dos finais do século V, para reivindicar a autonomia da esfera religiosa em relação à autoridade política, o papado passara gradualmente a sustentar a tese da superioridade absoluta do poder papal sobre o político, e da dependência de qualquer autoridade mundana em relação à eclesiástica, considerada a única directamente inspirada e patrocinada pela lei divina. Foi sobretudo com Inocêncio 111 (1198-1216), cuja obra teve uma importância enorme em toda a Europa, que começou a afirmar-se em todo o seu rigor a tese da superioridade do poder eclesiástico; a partir desse momento, as discussões filosóficas sobre a essência do direito e do estado passaram a incidir sobre o tema da superioridade de um ou outro dos dois poderes. Pelos princípios do século XIV, estas discussões tornam-se particularmente vivas e inflamadas. O De ecclesiastica potes161 tate (1302) de Egidio Romano (§ 294) é a melhor expressão da tese curial, na sua acepção mais extensa. Não só a autoridade política, mas toda e qualquer posse ou bem derivam da Igreja e mediante a Igreja; e a Igreja identifica-se, segundo Egídio, com o Papa, que se toma, portanto, a causa única e absoluta de todos os poderes e bens da terra. Por outro lado, nesse mesmo ano, João de Paris (1269-1306), no seu De potestate regia et papali, negava a plenitude potestatis do Papa e
reivindicava para os indivíduos o direito de propriedade, atribuindo unicamente ao Papa a função de um administrador responsável pelos bens eclesiásticos. Uns anos depois, Dante, no De monarchia, preocupava-se sobretudo em defender a independência do poder imperial frente ao poder papal. "É, portanto, claro, dizia ele na conclusão da obra, que a autoridade do monarca temporal desce até elo, sem nenhum intermediário, da fonte da autoridade universal, a qual, única como é da fortaleza da sua simplicidade, flui em inúmeros leitos dada a abundância da sua excelência" (111, 16). O imponente conjunto das obras políticas de Occam (§ 322) procurava, por outro lado, separar o conceito de Igreja do de papado, identificando a própria Igreja com a comunidade histórica dos fiéis e atribuindo-lhe o privilégio de estabelecer e defender as verdades religiosas, e rebaixando o papado a um principado ministrativus, instituído exclusivamente para garantir aos fiéis a liberdade que a lei de Cristo trouxe aos homens. Cada um destes escritores anticlerialistas tem as suas características próprias, conforme o interesse específico que pretende defender: interesse que, para João de Paris, é essencialmente económico-social; para Dante, político; para Occam, filosófico-religioso. Mas a totalidade destes interesses constitui o interesse mais geral da nova classe burguesa que defende a sua liberdade de iniciativa 162 contra o monopólio do poder reivindicado pelo papado, apoiando-se na autoridade civil que se mostra mais aberta ou menos exigente. A obra de Marsílio de Pádua apresenta, pelo contrário, um carácter mais radical, conseguindo até pôr entre parêntesis o fundamento comum de todas as disputas políticas da Idade Média, ou seja a doutrina do direito natural divino. Marsílio Múnardin nasceu em Pádua entre 1275 e 1280. Foi reitor da Universidade de Paris de 1212 a 1213 o participou, como dissemos, na luta entre Luís o Bávaro e o papado de Avinhão como conselheiro político e eclesiástico de Luís. Acabou de escrever o Defensor pacis em 1324, e mais tarde, durante a sua estada na Alemanha na corte de Luís, compôs um resumo dessa obra sob o título de Defensor minor, e dois outros escritos de menor importância, o Tractatus de Jurisdictione imperatoris in causis matrimonialibus a propósito do casamento do filho de Luís com Margarida Maltausch, e o Tractatus de translatione Imperii. A sua morte deve ter ocorrido entre os finais de 1342 e os primeiros meses de 1343. A originalidade da obra de Marsílio de Pádua consiste no carácter positivo do conceito de "lei" que ele toma como fundamento da sua discussão jurídicopolítica. Exclui explicitamente das suas considerações a lei como inclinação natural, como hábito produtivo ou como prescrição obrigatória com vista à vida futura. Uralita-se a considerar a lei como "a ciência, doutrina ou juízo universal de quanto é justo e civilmente vantajoso e do seu oposto". (Def. pacis, 1, 10, 3). Mas mesmo no âmbito deste conceito restrito, a lei pode ser considerada, segundo Marsílio, quer como o que mos" traz aquilo que é justo e injusto, vantajoso ou nocivo, e, neste sentido constitui a ciência ou doutrina do direito, quer como "um **pr"to coactivo ligado a
163 uma punição ou a uma recompensa a atribuir neste mundo" (1, 10, 4); e só neste sentido ela é propriamente chamada "lei". São duas as características desta doutrina que está na base de toda a obra de Marsílio: 1) O que é justo ou injusto, vantajoso ou nocivo para a comunidade humana não é sugerido por um instinto infalível posto no homem por Deus, nem pela própria razão divina, mas descoberto pela razão humana, criadora da ciência do direito. Pode ver-se neste aspecto do pensamento de Marsílio o primeiro sinal da passagem do velho ao novo naturalismo jurídico, o qual incorporado no naturalismo jurídico do século XVII: passagem, após a qual passa a ser atribuída à própria razão humana o juízo acerca do que é vantajoso ou nocivo para a comunidade humana. 2) A limitação do conceito próprio de lei não ao simples juízo da razão (que por si só constitui** tinicamente ciência ou doutrina) mas ao que se tornou preceito coactivo ao coligar-se com uma sanção. Este segundo aspecto da doutrina de Marsílio de Pádua fez dele um antecessor do que hoje se denomina o positivismo jurídico. Dados estes pressupostos, a tarefa de Marsílio de Pádua fica automaticamente restringida às considerações sobre unicamente aquelas leis e governos que derivam duma forma imediata do arbítrio da mente humana" e a sua instituição (1, 12, 1). Sob este ponto de vista, o único legislador é o povo: considerado ou como "o corpo total dos cidadãos" ou como a sua "parte prevalescente" (pars valentior) que exprime a sua vontade numa assembleia geral e ordena que "algo seja feito ou não seja feito a respeito dos actos civis humanos sob a ameaça de uma pena ou punição temporal". Com a expressão "parte prevalescente", Marsílio refere-se não só à quantidade mas também à qualidade das pessoas que constituem a comunidade que ins164 titui a lei, no sentido em que a função legislativa pode ser deferida a uma ou mais pessoas, embora nunca em sentido absoluto mas só relativamente e salvo a autoridade do legislador primordial que é o povo (1, 12, 3). Ã lei assim estabelecida todos estão igualmente sujeitos, incluindo os clérigos. "0 facto de alguém ser ou não ser sacerdote não tem perante o juiz maior importância do que se fosse camponês ou pedreiro, como não tem valor perante o médico que seja ou não músico alguém que possa adoecer e curar-se" (11, 8, 7). Portanto a pretensão do papado em assumir a função legislativa e a plenitude do poder não passa duma tentativa de usurpação que não produz e não pode produzir senão cisões e conflitos (1, 19, 8 e seguintes). Analogamente, para a definição das doutrinas respeitante-s a matéria de fé, definição indispensável em todos os casos deixados duvidosos pela Sagrada Escritura, e para evitar cisões e discórdias no seio dos fiéis, a autoridade legítima não é a do Papa mas a do concílio convocado da devida forma, isto é, de modo a que nele esteja presente, ou directamente ou por delegação, a "parte prevalescente da cristandade" (11, 20, 2 e seguintes). É fácil darmo-nos conta da validade e modernidade das teses do Defensor pacis. Com base nelas, o âmbito, do estado é limitado (segundo o princípio que mais tarde foi reintroduzido por Hobbes) à defesa da paz entre os cidadãos, isto é. à eliminação dos conflitos; e, consequentemente, o domínio da lei como preceito coactivo é restringido aos actos externos, limitação
importantíssima porque garante a liberdade de consciência. Além disso, o direito é entendido como norma racional puramente formal, segundo uma orientação que se tomou cada vez mais prevalescente nas modernas concepções sobre ele. 165 NOTA BIBLIOGRÁFICA § 309. De Durand, o Comentário às Sentenças teve nuinerosas edições, das quais a principal é a de Paris, de 1508. Quaestio de natura cognitionis, ed. Koch, in "Op. et Texta", VI, Mtinster, 1929; VIII, Münster, 1930. Sobre Durand: Koci, in "Beitrãge", XXVI, 1, 1927; POURNIER, in "Hist. Lit. de Ia France" 37, Paris, 1938, p. 1, ss. § 310. De Pedro Auréolo, o Comentário e Quodlibeta, Roma, 1596, 1605. Sobre AuréGio: DREILING, in <@Beitrãge", X, 6, 1913; LANDRY, Pierre XAuréole, in <,Revue d'I-Iist. de Ia Phil.", 1928. § 311. , As obras de lógica de Antônio Andrea tiveram várias edições venezianas in-folio: 1492, 1508, 1517- As Quaestiones sobre a Metafísica aristoté,lica foram impressas em Veneza em 1481, 1514, 1523. Em Veneza foi também impresso em 1489 o De tribus principiis rerum naturalium. As obras de Francisco de Mayrone foram impressas em Veneza em 1520. Sobre Francisco de Mavrone: ROTH, Franz von Meyronnes, Werl i. W., 1936. De Burleigh, as obras tiveram numerosas edições entre 1472 e 1508; ed. Bõhner, San BGnaventure (New York), 1951; De vitis et moribus phiZosaphorum, ed. Knust, Tübingen, 1886. Sobre Burleigh: BAUDRY in "Rev. Hist. Francis.", 1934. De TGniãs Bradwardine, as obras tiveram várias edições antigas. De causa Dei, ed. S?@vi'e, Londres, 1618; Tractatus de proportionibu8, ed. Crosby, University Gf Wisconsin, 1955. Sobre Bradwardine: HAHN, in Beitrãge", V, 2, 1905; MICHALSKi, Le problè~ de Ia volonté à Oxford et à Paris ao XiVe siècle, Leopoli, 1937; OBERMAN, Archbishop Th. B., Utrecht, 1957; assim como a introdução e o comentário de Crosby na ed. cit. do Tractatus. § 312. De Pedro de Abano: Conciliator, Veneza, 1476, 1483, 1565; a Expositio problematum Aristotelis, em Mântua em 1475, Pádua 1492, Veneza, 1501. Sobre Pedro de Abano: S. FERRARI, I tempi, ta vita, le dottrine di Pietro dAbano, Génova, 1900; DunEm, SysUme du monde, IV, 2292663; NARDI, Intorno alle dottrine fiZosofiche di P. D'Abano, Milão, 1921. Sobre as características do averroísmo paduano: TIZOILO, Averroismo e Aristotelismo padovano, Pãdua, 1939. 166 As obras de João de jandum tiveram numerosíssimas edições venezianas na
primeira metade do século XVI. Sobre Jandum: GILSON, Êtudes de philosophie médiévale, Paris, 1921, 51-75; J. RIVIÈRE, in "Diet. de théol. cath(>Iique", VIII, 764 ss.; MCCLINTOCK, Perversity and Error, Indiana, 1956 (com bibli). De João Baconthorp: o Comentário às Sentenças foi publicado em Milão em 1510, Veneza, 1527, Paris, 1484; e conjuntamente com os Quodlibeta em Cremo-na em 1618. Sobre João Baconthorp: MICHALSKI, Les courants philowphiques à Oxford et à Paris pendant le XIVe siècle, Cracõvia, 1922, p. 13 ss. § 313. Do Marsílio. de Pádua: as obras in GOLDAST, Monarchia, H, 1r>14; Defensor pacis, ed. Previté-Orton, Cambridge, 1928; ed. Schols, Hannover, 1932. Traduções: inglesa de MarshalI, Londres, 1535 e de Gewirth, New York, 1956; alemã de Kunsmann e Kulch, Berlim, 1958; italiana de Vasoli, Turim, 1960. Sobre Marsílio de Pádua: BATTAGLIA, Marsilio da Padova, Florênça, 1928; GEwIRTH, Marsilius of Padova, New York, 1951; Marsilio da Padova, volume colectivo sob a direcção de C~ini e Bobbio, Pádua, 1942. Bibliografia na cit. tradução italiana de Vasoli. 167 XXII GUILHERME DE OCCAM § 314. GUILHERME DE OCCAM: A LIBERDADE DE INVESTIGAÇÃO Guilherme de Occam é a última grande figura da escolástica e simultaneamente a primeira figura da Idade Moderna. O problema fundamental, do qual a escolástica tinha saído e de cuja incessante elaboração tinha vivido, o acordo entre a investigação filosófica e a verdade revelada, é declarado por Occam, e pela primeira vez, como impossível e vazio de qualquer significado. Com isto, a escolástica medieval conclui o seu ciclo histórico; a investigação filosófica fica disponível para a consideração de outros problemas, o primeiro dos quais é o da natureza, isto é, do mundo a que o homem pertence e que pode conhecer com a simples força da razão. A negação da possibilidade do problema escolástico implica imediatamente a abertura de um problema no qual a investigação filosófica reconhece o seu domínio próprio. O princípio de que Occam se serviu para levar a cabo a dissolução da escolástica iniciada por Escoto é o recurso à experiência. Para Duns Escoto, 169 o princípio limitativo e negativo da investigação escolástica fora o ideal aristotélico da ciência demonstrativa. Assumido e feito valer pela primeira vez no seu pleno rigor, este ideal levara o Doutor subtil a reconhecer na teologia uma ciência puramente prática, isto é, apta a fornecer normas de acção mais incapaz de alcançar verdades especulativas. O recurso à experiência, que, pelo contrário, constitui o traço saliente do procedimento de Occam, leva-o a pôr na experiência o fundamento de todo o conhecimento e a rejeitar para fora do conhecimento possível tudo o que transcende os limites da própria experiência. Pode pensar-se que este primado da experiência,
afirmado por Occam, seja também devido à influência do aristotelismo; na realidade, o valor da experiência fora já reconhecido pela tradição franciscana e fora objecto de afirmações solenes de Roberto Grosseteste e Rogério Bacon. Occam mantém-se mais fiel a esta tradição do que Escoto. Mas, tal como o ideal aristotélico da ciência, embora já conhecido e aceite pela escolástica latina, só com Escoto foi adoptado como força limitadora e negadora do problema escolástico, também o empirismo, embora já conhecido e aceite por muitos escolásticos, só com Occam se transforma na força que determina a queda da escolástica. Ao empirismo, que é o fundamento da sua filosofia, chegou Occam partindo de uma exigência de liberdade que é o centro da sua personalidade. Tal exigência domina todos os seus pontos de vista. A propósito da condenação pronunciada pelo bispo de Paris, Estevão Tempier, sobre algumas proposições tomistas (§ 284) diz ele: "As asserções fundamentalmente filosóficas, que não se referem à teologia, não devem ser condenadas ou solenemente interditas por ninguém, porque nelas qualquer um deve ser livro de livremente dizer o que lhe parecem (Dial, inter mag. et disc., 1, tract. 11, e. 22, ed. Goldast, 170 p. 427). Era a primeira vez que era feita uma tal reivindicação, e nela inspirava Occam não só a sua investigação filosófica mas também a sua actividade política. Durante vinte anos defendeu a causa imperial com um imponente conjunto de obras, cujo principal intento é o de levar a Igreja à condição de uma livre comunidade religiosa, alheia a interesses e finalidades materiais, garantia e custódia da liberdade que Cristo reivindicou para os homens. A Igreja, que é o domínio do espírito, deve ser o reino da liberdade; o império, que segundo a velha concepção medieval, tem em seu poder não as almas irias os corpos, pode e deve ter uma autoridade absoluta. Tal é a essência das doutrinas políticas que Occam defende na luta entre o papado de Avinhão e o império. Uma única atitude domina toda a sua actividade: a aspiração à liberdade da investigação filosófica e da vida religiosa. Mas a condição da liberdade de investigação filosófica é o empirismo, dado que uma investigação que já não reconhece, como guia a verdade revelada não pode senão tomar por guia a própria realidade em que o homem vive, a qual é dada pela experiência. § 315. GUILHERME DE OCCAM: VIDA E OBRA Guilherme de Occam, chamado Doctor invincibilis e Princeps nominalium pelos seus contemporâneos, nasceu em Ockham, pequena aldeia do condado de Surrey, na Inglaterra. É incerto o ano do seu nascimento, mas pode situar-se cerca de 1290. Não é, portanto, provável que tenha sido aluno de Escoto, o qual morreu em 1308. A primeira data segura da sua biografia é 1324, ano em que foi citado a compare=. na corte de Avinhão para responder por algumas teses contidas no seu Comentário às Sentenças. Uma comissão de seis doutores censurou, 171
em 1326, cinquenta e um artigos extraídos de tal comentário. Em Maio de 1328, Occam fugia de Avinhão com Miguel de Cesena, geral da ordem franciscana e sustentador da tese (considerada herética pelo papado) da pobreza de Cristo e dos apóstolos; e refugiava-se em Pisa junto do imperador Luís o Bávaro; dali prosseguiu para Munich, onde provavelmente permaneceu até ao fim da vida. A sua morte deve ter ocorrido entre 1348 e 1349, sendo o seu corpo sepultado na igreja franciscana de Munich. A primeira e fundamental obra de Occam é o Comentário às Sentenças, cujo primeiro livro é muito mais amplo e prolixo do que os outros três. Escreveu ainda: 7 livros de Quodlibeta; um tratado De sacramento altaris et de corpore Christi; um breve escrito, Centiloquium theologicum, que é a exposição de cem conclusões teológicas; as Summulae Physicorum também chamadas Philosophia naturalis; e duas obras de lógica: a Expositio aurea super artem veterem (que contém o comentário aos livros Praedicabilium e aos livros Praedicamentorum de Pórfiro, o comentário aos livros Perihermeneias de Aristóteles, um tratado De futuris contingentibus) e a Summa totius logicae. Estão inéditas outras obras, especialmente de física. As obras mais notáveis são o Comentário às Sentenças, os Quodlibeta e a Summa totius logicae. Numerosas são as obras políticas de Occam. Parte delas destina-se a combater as afirmações dogrnáticas, que Occam considera heréticas, do papa João XXII. Tais obras são: Opus nonaginta dierum; De dogmatíbus papae Joanis XXI1; Contra Johannem XX11; Cotnpendium errorum Johannis papae XXII. Quando, em 1338, a dieta de Rhens estabeleceu que bastava únicamente a eleição pelos príncipes alemães para a nomeação do im~or, Occam iniciou a composição de uma série de trata172 dos em defesa desta tese. Tais tratados são: Tractatus de potestate imperiali, escrito entre 1338 e 1340; Octo quaestionum decisiones super potestatem Summi Pontificis, escrito entre 1339 e 1341; um monumental Dialogus inter magistrum et discipulum, cuja composição foi várias vezes interrompida e que ficou incompleto; o tratado De imperatorum et pontificum potestate, que recapitula as teses do Diálogo; finalmente, o tratado De electione Caroli IV, que é a última obra de Occam. São apócrifos a Disputatio inier militem et clericum, que é do tempo de Bonifácio VIII, e o Defensorium contra errores Johannis XX11 papae. § 316. GUILHERME DE OCCAM: A DOUTRINA Do CONHECIMENTO INTUITIVO A distinção entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstractivo, que servira a Escoto como fundamento para a sua teoria metafísica da substância (§ 305), serve a Occam como formulação da sua doutrina da experiência. O conhecimento intuitivo é aquele mediante o qual se conhece com toda a evidência se a coisa existe ou não e que permite ao intelecto julgar imediatamente sobre a realidade ou irrealidade, o objecto. O conhecimento intuitivo, é, além disso, aquele que faz conhecer a inerência de uma coisa a outra, a distância espacial ou qualquer outra relação entre as coisas particulares. "Em geral, qualquer conhecimento simples de um ou vários termos, de uma ou várias coisas, em virtude do qual se pode conhecer com evidência uma verdade contingente, especialmente referente a um objecto
presente, é um conhecimento intuitivo" (In Sent. prol., q. 1 Z). O conhecimento intuitivo perfeito, aquele que é o princípio da arte e da ciência, é a experiência, que tem sempre por objecto uma 173 realidade actual e presente. Mas o conhecimento intuitivo também pode ser Imperfeito o referir-se a um objecto passado (lb., prol., q. 1 Z; 11, q. 15 H). Entre o conhecimento perfeito e o imperfeito existe uma relação de derivação: todo o conhecimento intuitivo imperfeito deriva de uma experiência. A mesma relação existe entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento abstractivo, o qual prescinde da realidade ou irrealidade do seu objecto; o segundo procede do primeiro e só se pode ter conhecimento abstractivo daquilo de que precedentemente se teve um conhecimento intuitivo (Ib., IV, q. 12 Q). O conhecimento intuitivo tanto pode ser sensível como intelectual. Segundo Occam, a função do intelecto não é puramente abstractiva. O intelecto pode conhecer intuitivamente as próprias coisas singulares que são objecto do conhecimento sensível; já que, se não as conhecesse não poderia formular sobro elas nenhum juízo determinado (Quodl., 1, q. 15). Intuitivamente, o intelecto conhece também os seus próprios actos e, duma maneira geral, todos os movimentos imediatos do espírito, tais como o prazer, a dor, o amor, o ódio, etc. O intelecto conhece, com efeito, a realidade destes actos espirituais, e só a pode conhecer através do conhecimento intuitivo (lb., 1, q. 14). Do próprio conceito de conhecimento intuitivo, que implica uma relação imediata entre o sujeito cognoscente e a realidade conhecida, deduz-se a negação de quaisquer espécies que sirvam de intermediárias do conhecimento. Em primeiro lugar, tais espécies seriam inúteis e, portanto, derrogariam o princípio metodológico da economia (chamado "navalha do Occam") a que Occam se mantém constantemente fiel (frustra fit per plura quod potest fiéri per pauciora). E, em segundo lugar, o valor cognoscitivo da espécie é nulo, porque, se o objecto não fosse percebido imediatamente, a espécie não o 174 poderia fazer conhecer. A estátua de Hércules nunca conduziria ao conhecimento de Hércules, nem se poderia judicar sobre a sua semelhança com Hércules, se não se conhecesse previamente o próprio Hércules (In Sent., 11, q. 14 T). Nesta negação da espécie, que Occam tem em comum com Durand de Saint-Pourçain e Pedro Auréolo, ele vai além dos seus predecessores porque nega também que a realidade tenha no intelecto um esse intentionale ou apparens distinto da própria realidade. Com efeito, só o ser puramente concebido é diferente do ser real, ele não no-lo faz conhecer: a própria realidade deve ser, como tal, imediatamente presente ao conhecimento se este deve ter o pleno e absoluto valor de verdade (lb., 1, d. 27, q. 3 CC). Com base numa teoria da experiência tão completa e amadurecida, que antecipa a de Locke em todos os pontos fundamentais inclusivé na distinção entre experiência interna e externa, nenhuma realidade poderia ser reconhecida ao universal. Com efeito, Occam. afirma em. termos explícitos a individualidade
da realidade como tal; e faz uma crítica completa de todas as doutrinas que, seja de que forma for, reconhecem ao universal um grau qualquer de realidade, distinguindo entre as que o consideram real separadamente das coisas singulares, e as que o consideram real em união com as próprias coisas. A conclusão é a impossibilidade absoluta de considerar o universal como real "Nenhuma coisa exterior à alma, nem por si nem por outra coisa real ou simplesmente racional que se lhe acrescente, nem de qualquer maneira que a consideremos ou entendamos, é universal; já que a impossibilidade de que alguma coisa exterior à alma seja de qualquer modo universal é tão grande como a impossibilidade de que o homem, por qualquer consideração ou sob qualquer aspecto, seja o burro" (lb., 1, d. 2, q. 7 S). Por outras palavras, a realidade do 175 universal é em si mesma contraditória e deve ser radical e totalmente excluída. O que é, e que valor tem, então, o conceito? Occam não nega que o conceito tenha uma realidade mental, isto é, que existia subiective (substancialmente ou realmente) na alma. Mas esta realidade mental não é senão o acto do intelecto; portanto, não é uma espécie nem sequer um idolum ou fictum, isto é, uma imagem ou ficção que seja, duma forma qualquer, distinta do acto intelectual. Mas esta realidade subjectiva do conceito é, como qualquer outra realidade, determinada e singular (lb., 1, d. 2, q. 8 Q; Quodl., IV, q. 35). A universalidade do conceito consiste, portanto, não na realidade do acto intelectual, mas na sua função significante, para a qual ele é uma intentio. O termo intentio exprime precisamente a função pela qual o acto intelectual tende para uma realidade significada. Como intentio, o conceito é um signo (signum) das coisas; e, como tal, está em lugar delas em todos os juízos e raciocínios em que ocorre. Occam determina a função do signo no conceito da suppositio (veja-se adiante). Preocupa-se todavia em garantir a realidade do conceito. Se o conceito de homem serve para indicar os homens e não, por exemplo, os burros, deve então ter uma semelhança efectiva com os homens; e tal semelhança deve também existir entre os homens, visto que podem ser todos representados igualmente bem por um único conceito. Mas isto não implica uma qualquer realidade objectiva do universal. A própria semelhança, segundo Occam, é um conceito, como também é um conceito qualquer relação: por exemplo, a semelhança entre Sócrates e Platão significa somente que Sócrates é branco e Platão também, mas não é uma realidade que se acrescente aos termos considerados. Que um conceito represente um determinado grupo de objec176 tos e não outro qualquer, não é coisa que possa ter um fundamento na relação destes objectos entre si e com o conceito, já que a própria relação não é senão um conceito privado de realidade objectiva. A validade do conceito não consiste na sua realidade objectiva. Occam abandona aqui (e é a primeira vez que tal acontece na Idade Média) o critério platónico da objectividade. O valor do conceito, a sua relação intrínseca com a realidade que simboliza, está na sua génese: o conceito é o signo natural da própria coisa. Diferentemente da palavra que é um signo instituído por convenção arbitrária
entre os homens, o conceito, é um signo natural predicável de várias coisas. Significa a realidade "do mesmo modo que o fumo significa o fogo, o gemido do enfermo a dor e o riso a alegria interior (Summa logicae, 1, 14). Esta naturalidade do signo exprime simplesmente a sua dependência causal da realidade significada. Ele é um produto, na alma, dessa mesma realidade: a sua capacidade de representar o objecto não significa outra coisa (Quodl. IV, q. 3). É este, sem dúvida, o traço mais acentuadamente empirista da teoria do conceito de Occam: a relação do conceito com a coisa não é por ele justificada metafisicamente, mas empiricamente explicada com a derivação do próprio conceito da coisa, que por si só produz na mente o signo que a representa. O outro traço característico do empirismo de Occam é a sua doutrina da indução. Enquanto que para Aristóteles a indução é sempre indução completa, que funda a afirmação geral na consideração de todos os casos possíveis (§ 85), para Occam, a indução pode efectuar-se também com base numa única prova, admitindo o princípio segundo o qual causas do mesmo género têm efeitos. do mesmo género (In Sent., prol., q. 2 G). Occam indicou assim no princípio da uniformidade causal da natu177 reza o fundamento da indução científica que será teorizada pela primeira vez na Idade Moderna por Bacon e analisada nos seus pressupostos por Stuart Mill. § 317. GUILHERME DE OCCAM: A LÓGICA OccaM considera a lógica como o estado das propriedades dos termos e das condições de verdade das proposições e dos raciocínios em que eles ocorrem. Os termos podem ser escritos, falados o concebidos (segundo a velha classificação de Boécio). O termo concebido (conceptus) é "uma. intenção ou afecção (intentio seu passio) que significa ou co-significa naturalmente qualquer coisa, nascida para fazer parte de uma proposição mental o -para estar em lugar daquilo que significa". A palavra é um signo subordinado do termo concebido ou mental, enquanto que o termo escrito é signo da palavra. O termo significa ou co-significa: significa quando tem um significado determinado, como, por exemplo, o termo "homem"; co-significa quando não tem um significado determinado mas o adquire em união com outros termos. Os termos co-significantes (ou sincategoremáticos) são, por exemplo: qualquer, nenhum, algum, tudo, à excepção de, somente, etc. Occam, analisa na sua lógica os termos de segunda intenção, isto é, que se -referem a outros termos (as intentiones primae, por seu turno, são as que se referem às coisas). Intenções segundas são as categorias aristotélicas assim como as cinco vozes de Pórfiro: género, espécie, diferença específica, propriedade e acidente. O motivo dominante na análise de Occam é que nenhuma intenção segunda é real ou é signo de uma coisa real: a lógica de Occam é rigorosamente nominalista tal como a sua gnoseologia. 178 A propriedade fundamental dos termos é a suposição. "A suposição é como que a posição em vez de qualquer outra coisa. Assim, se um termo está numa proposição em vez de outra coisa, de modo que nos servimos dele em
substituição dela e que o termo (ou o seu nominativo se ele estiver noutro caso) é verdadeiro para a própria coisa ou para o pronome demonstrativo que a indica, então o termo supõe aquela coisa". Assim, com a proposição "o homem é animal" denota-se que Sócrates é verdadeiramente animal pelo que é verdadeira a proposição "isto é um animal" quando se indica Sócrates (Summa logicae, 1, 63). A suposição é, pois, para Occam (e dum modo geral para toda a lógica nominalista do século XIII) a dimensão semântica dos termos nas proposições, isto é, a atribuição dos termos a objectos diferentes desses mesmos termos e que podem ser coisas, pessoas ou outros termos. Esses objectos não podem pelo contrário, ser entidades ou substâncias universais e metafísicas como a "brancura", a "humanidade", etc. Com efeito, os objectos a que a suppositio se refere devem ter um modo de existência determinado, ou como realidades empíricas (coisas ou pessoas), ou como conceitos mentais ou como signos escritos. A suposição pessoal é precisamente aquela pela qual os termos estão em vez da coisa por eles significada, há uma suposição simples quando o termo está em vez do conceito mas não tomado no seu significado, como quando se diz "homem é uma espécie"; e há uma suposição material quando o termo não está tomado no seu significado mas como signo verbal ou escrito, como quando se diz "homem é um substantivo" ou se escreve "homem". Dado que os objectos a que a suposição se refere devem ter um modo de ser determinados, quando se formulam proposições a respeito de objectos inexistentes, essas proposições 179 são falsas porque os seus termos não estão em lugar de nada. Occam. considera por isso que são falsas as próprias proposições tautológicas (que sob certo aspecto podem ser consideradas as mais certas) como, por exemplo, "a quimera é quimera", porque a quimera não existe (11. 14). Esta doutrina da suppositio serve de base a uma nova definição do significado predicativo do verbo ser. Diz Occam: "Proposições como Sócrates é homem ou Sócrates é animal não significam que Sócrates tem a humanidade ou a animalidade nem significam que a humanidade ou a animalidade estão em Sócrates, nem que o homem ou o animal estão em Sócrates, nem que o homem ou o animal são uma parte da substância ou da essência de Sócrates ou uma parte do conceito substancial de Sócrates. Significam sim que Sócrates é verdadeiramente um homem e verdadeiramente um animal, não no sentido de que Sócrates seja este predicado
180 incontestáveis, ou melhor, necessariamente verdadeiras, são desde logo declaradas falsas por Occam porque não existe nenhum objecto ou termo real pelo qual possa estar "humanidade". A proposição "Sócrates é homem" tem para Occam este único e simples significado: existe um objecto (neste caso uma pessoa) que pode ser indicado com um pronome demonstrativo ("esta pessoa") que é verdadeiramente Sócrates e verdadeiramente homem. Assim, o próprio modo de entender a natureza da cópula põe Occam em condições de eliminar como falsas toda uma série de afirmações metafísicas referentes à teoria aristotélica da substância. Isto no que se relaciona com o significado predicativo de "ser". No que se relaciona com o significado existencial, Occam afirma **imefflatamente que o ser e a coisa coincidem, isto é, que a existência não é acrescentada à essência de uma coisa como se a essência fosse a potência e a existência o acto dessa potência, mas ambas sem **inads pertencem à própria coisa enquanto coisa real. E isto é válido quer em relação às coisas finitas quer em relação a Deus, embora sejam diferentes, o modo de ser das coisas finitas e o de Deus. Diz Occam: "'Ser significa a própria coisa. Mas significa a primeira causa simples quando se diz dela significando que não depende de outrem. Quando, pelo contrário, o ser se predica de outra coisa, significa a própria coisa dependente e ordenada em relação à causa primeira. Isto porque essas outras coisas não são coisas senão enquanto dependentes e ordenadas em relação à causa primeira, e não existem doutro modo. Pelo que, quando o homem não depende de Deus, então não existe e não é sequer homem" (Summa log., HI, 11, 27). Tal como depois dele farão todos os lógicos nominalistas, Occam considera como fundamental a teoria das consequências (consequentiae), isto é das 181 conexões imediatas de tipo estóico, e considera o próprio silogismo como um tipo particular de tais consequências. A consequência é, duma maneira geral, uma proposição condicional na qual tanto o antecedente como o consequente podem ser constituídos por proposições simples ou compostas. O desenvolvimento occamista desta parte da lógica é o mais rico dos desenvolvimentos medievais da matéria, contém muitos teoremas do moderno cálculo proposicional. Interessa finalmente sublinhar a importância da posição occamista acerca dos denominados insolubilia, isto é, dos argumentos que hoje denominamos paradoxos ou antinomias, e que já tinham Sido debati-dos pela lógica megárico-estóica. O mais famoso de tais paradoxos era o do mentiroso que Cícero exprimia dizendo: "Se tu dizes que mentes, ou dizes verdade e então mentes, ou dizes mentira e então dizes a verdade" (Acad., IV, 29, 96). A solução de Occam é que a proposição "eu minto" não pode entender-se como se fosse verdadeira no sentido de "eu minto que **nu,*nto". Com efeito, aquela proposição pode ser falsa, mas precisamente porque pode somente ser falsa não significa, por si mesma, nem a verdade nem a falsidade (Summa log., 111, 111, 38). Por outras palavras, tratar-se-ia duma proposição indecisível, no
sentido em que esta palavra é usada na lógica moderna. § 318. GUILHERME DE OCCAM: A DISSOLUÇÃO DO PROBLEMA ESCOLÁSTICO Uma atitude de tão radical empirismo devia conduzir a uma nítida rejeição do problema escolástico desde o seu esquema básico. Dado que o único conhecimento possível é a experiência (da qual deriva o próprio conhecimento abstractivo) e 182 dado que a única realidade cognoscível é a que a experiência revela, isto é, a natureza, qualquer realidade que transcenda a experiência não pode alcançar-se por via natural e humana. Com efeito, Occam afirma explicitamente a heterogeneidade radical entre a ciência e a fé. Trata-se de atitudes que não podem subsistir conjuntamente: mesmo quando a fé parece seguir a ciência, como no caso de se crer numa conclusão de que esquecemos a demonstração, não se trata verdadeiramente de fé porque se mantém firme a conclusão somente enquanto se sabe que é baseada numa demonstração (In Sent., III, q. 8 R). Mas não é este o caso da fé religiosa, a qual só poderia ser demonstrada se se tivesse um conhecimento de Deus e da realidade sobrenatural; conhecimento que é impossível ao homem (Quodl., 11, q. 3). Os milagres e os sermões, embora possam produzir a fé, não podem, de facto, produzir o conhecimento da sua verdade. A evidência não pode estar unida à falsidade: o serraceno pode ser convencido pelos milagres e pelos sermões da lei de Maomé, que todavia é falsa (1b., IV, q. 6). A conclusão de tudo isto está exposta numa passagem da Lógica (111, 1): "Os artigos de fé não são princípios de demonstração, nem conclusões, e nem sequer são prováveis, já que parecem falsos a todos ou à maioria ou aos sábios, entendendo por sábios os que se confiam à razão natural, já que só de tal modo se entende o sábio na ciência e na filosofia". Não poderia ser concebida uma exclusão mais completa da verdade revelada do domínio do conhecimento humano: as verdades de fé não são evidentes por si mesmas, como os princípios da demonstração, não são demonstráveis, como as conclusões da própria demonstração; e não são prováveis porque podem parecer, e parecem, falsas aos que se servem da razão natural. O problema escolástico é assim declarado, por Occam, como 183 in"úvol o desprovido de todo o significado. A teologia deixa de ser uma ciência e transforma-se numa simples amálgama de noções práticas e especulativas, inteiramente desprovidas de evidência racional e de validade empírica (In Sent., prol., q. 12). As próprias provas da existência de Deus não têm, para Occam, valor demonstrativo. E, com efeito, a existência de uma realidade qualquer é revelada ao homem unicamente pelo conhecimento intuitivo, isto é, pela experiência; mas o conhecimento intuitivo de Deus não é dado ao homem **viator (lb., 1, d. 2, q. 9 Q; d. 3, q. 2 F). E dado que a existência e a essência estão unidas, e que só se conhece a essência daquilo de que intuitivamente se conhece a existência, o homem, na verdade, não conhece nem a existência nem a essência de Deus (lb., 1, d. 3, q. 3 Q). A proposição "Deus existe" Dão é,
portanto, evidente. A existência não se predica so-mente de Deus mas também de todas as outras coisas reais; não pode, portanto, fazer parte da essência de Deus, nem ser-lhe -intrínseca Ub., 1, d. 3, q. 4 G). A prova ontológica é rechaçada (Quodl., VII, q. 15). Também não possui valor demonstrativo a prova cosmológica que o aristotelismo introduzira na escolástica latina e que era considerada com a mais forte. Occam nega o valor dos dois princípios em que esta prova se baseia. Não é verdade, em sentido absoluto, que tudo o que se move seja movido por outrem:. a alma e o anjo movem-se por si mesmos, assim como o peso que tende para baixo. Nem é verdade, em sentido absoluto, que é impossível remontar até ao infinito na série dos movimentos, já que nas grandezas contínuas o movimento se transmite necessariamente de uma a outra das infinitas partes que o compõem (Ceia. theol., 1 D). Quanto à prova tirada do movimento causal, é 184 impugnada por Occam no seu próprio fundamento, já que ele não considera ser demonstrável que Deus seja causa eficiente, total ou parcial, dos fenómenos, e que não bastem unicamente, as causas naturais para explicar os fenómenos (Quodl., 11, q. 1). A conclusão é que tais provas, privadas como são de todo o valor apodíctico, podem determinar no homem somente uma razoável persuasão. Já que se Deus não exercesse nenhuma acção no mundo, com que fim se lhe afirmaria a existência? A acção de Deus no mundo é pois um simples postulado da fé, desprovido de valor racional (lb., 11, q. 1; In Sent., 11, q. 5 K). Também não se podem demonstrar os atributos fundamentais de Deus. Em primeiro lugar, não se pode estabelecer com certeza que haja um único Deus: nenhum inconveniente derivaria da admissão de uma pluralidade de causas primeiras, porque, podendo cada uma delas querer só o melhor, nunca estariam descordantes entro si e governariam o mundo com unânime acordo (In Sent., 1, d. 2, q. 10; Qlíodl., 1, q. 1). Também não se pode demonstrar a imutabilidade de Deus, que parece negada pelo facto de Deus ter assumido, com a incarnação, uma natureza inferior e depois a ter abandonado (Cent. theol., 12). Também não podem atribuir-se a Deus por via demonstrativa nem a omnipotência nem a infinitude, e a respeito desta última, Occam -refuta os argumentos de Duns Escoto (Qliodl., VII, qq. 11-17). De Deus não se pode ter mais do que um conceito composto de elementos extraídos das coisas naturais por abstracção (In Sent., 1, d. 3, q. 2 F). No Centiloquium theologicum desenvolve Occam uma série de conclusões de que ele próprio diz que Potius sunt incedibíles quam asserendae, e que por isso as expõe a título de mero Cxercício lógico. Estas conclusões constituem uma redução ao absurdo da hipótese da criação. Dado que na eternidade, como ensinou Santo Agostinho, não existe um antes nem um depois, não é necessário admitir que Deus existisse antes da criação ou que existirá depois (Cent. theol., 47 D). A eternidade de Deus significa somente que Deus não tem causa da sua existência nem, por conseguinte, começo ou fim do seu ser; mas isto não lhe confere uma duração para além dos limites temporais do mundo, sendo o próprio conceito de duração estranho à sua natureza. Occam, detém-se nas consequências paradoxais desta conclusão, assim como na absoluta irracionalidade do dogma cristão da Trindade: "Que uma única essência simplicíssima seja três pessoas realmente distintas-é coisa de que nenhuma razão natural pode persuadir e é afirmada únicamente
pela fé católica, como o que supera todo o sentido, todo o intelecto humano e quase toda a razão" (Ib., 55). O desconhecimento da possibilidade de interpretação racional da verdade revelada é em Occam tão completo e decidido que assinala a etapa final da escolástica. O problema escolástico continuará, depois de Occam, a sobreviver de algum modo nas escolas, mas será a sobrevivência de um resíduo, abandonado fora do círculo vital da filosofia, que, a partir de agora, se alimentará de outros problemas. § 319. GUILHERME DE OCCAM: A CRITICA DA METAFíSICA TRADICIONAL A metafísica de Occam é substancialmente uma crítica da metafísica tradicional. Vimos já como ele regeita a distinção real entre essência e existência, de que S. Tomás se servira para reformar a metafísica aristotélica e a adaptar às exigências da explicação dogmática. À pergunta sobre a existência. de uma coisa qualquer, não se pode responder se não 186 se possui o conhecimento intuitivo da própria coisa, isto é, se a coisa não é percebida por algum sentido particular ou, no caso de se tratar de uma realidade inteligível, senão é intuída pelo intelecto de modo análogo àquele em que a potência visual vê o objecto visível. "Não se pode conhecer com evidência que a brancura existe, ou pode existir, se não se tiver visto qualquer objecto branco; e embora eu possa acreditar naqueles que contam que o leão e o leopardo existem, eu, contudo, não conheço tais coisas com evidência se não as tiver visto" (Summa log., 111, 2, c. 25). O ser tem, portanto, um significado unívoco que é o intuitivo e empírico; e não se pode predicar de Deus a não ser no sentido em que se predica das coisas naturais (Quod[., IV, q. 12). O princípio empirista vale para Occam como cânon crítico dos conceitos metafísicos tradicionais. A substância só é conhecida através dos seus acidentes (lb., 111, q. 6). Não conhecemos o fogo em si mesmo, mas sim o calor que é acidente do fogo; por isso não temos da substância senão conceitos conotativos e negativos como " o ser que subsiste por si", "o ser que não existe em outrem", que "é sujeito dos acidentes", etc. Portanto, não é senão o substrato desconhecido das qualidades que a experiência revela (In Sent., 1, d. 3, q. 2). Tão- pouco possui validade empírica o outro conceito metafísico fundamental, a causa. Do conhecimento de um fenómeno não se pode nunca chegar ao conhecimento dum outro fenómeno que seja a causa ou o efeito do primeiro; já que de nada se tem conhecimento senão através dum acto de experiência, e causa e efeito são duas coisas diferentes, embora conexas, que exigem, para ser conhecidas, dois actos de experiência diferentes (lb., prol., q. 9 F). A crítica que o empirismo inglês de Locke e Hume fez dos conceitos de substância e de causa encontra aqui 187 mn Precedente, que dele antecipa não a letra, mas também o espíritocompreende-se que, deste ponto de vista, os conceitos fundamentatis da metafísica aristotélica, os de matéria e forma, sofram uma transformação radical. Occam insiste na individualidade dos princípios metafísicos da realidade. Tantos são os princípios, diz ele, quantas as coisas geradas. Com
efeito, os princípios não podem ser universais, porque nenhum universal é real e nenhum universal pode ser princípio de uma realidade individual. Devem então ser individuais, o que quer dizer que são numericamente, diferentes nos vários indivíduos, e que a forma e a matéria duma coisa são diferentes da forma e da matéria duma outra coisa (Summulae phys., 1, 14). Quanto à matéria, ela possui uma sua actualidade própria, independente da forma substancial, da qual é susceptível em potência: ~ está aqui de acordo com toda a tradição franciscana. Mas acrescenta que a actualidade da matéria como tal consiste na extensão. É impossível, com efeito, que a matéria exista sem extensão; não há matéria que não tenha uma. parte distante de outra parte, pelo que, embora as partes da matéria possam unir-se entre si como, por exemplo, se unem as da água ou do ar, nunca podem, contudo, existir no mesmo lugar. Ora a distância recíproca das partes da matéria é a extensão (lb., 1, 19). Mas a separação de Occam em relação à metafísica aristotélica é assinalada, de modo ainda mais evidente pela sua crítica da causa final. A causalidade do fim consiste em ser amado ou desejado pelo agente; mas que o fim seja amado e desejado não significa que ele actue, seja de que maneira for, efectivamente: a causalidade do fim é, pois, metafórica, não real (In Sent., 11, q. 3 G). É impossível demonstrar, quer mediante proposições evidentes, quer empIricamente, que qualquer efeito tenha uma 188 causa final; os agentes naturais actuam dum modo uniforme e necessário, e por isso excluem todo o elemento contingente ou mutável, como seriam precisamente o amor ou o desejo do fim (Quodl., IV, q, 2). E também não é demonstrável a causalidade teleológica de Deus, já que os agentes naturais, privados como são de conhecimento, produzem os seus efeitos independentemente do conhecimento de Deus. A questão propter quid não tem lugar nos acontecimentos naturais, não tem sentido perguntar com que fim se gera o fogo, já que não se requer a existência do fim para que o efeito se produza (Quodl,, IV, q. 1). Esta crítica de Occam, que preludia a famosa crítica de Espinoza, é animada pelo mesmo espírito: o seu pressuposto é a convicção de que os acontecimentos naturais se verificam em virtude de leis necessárias que lhes garantem a uniformidade e excluem todo o arbítrio ou contingência. § 320. GUILHERME DE OCCAM: PREVÊ A NOVA FíSICA O desinteresse, pela investigação do problema teológico coincide com o interesse pólo problema da natureza. O mesmo empirismo conduzia Occam * considerar mais profundamente a natureza, já que * natureza é precisamente o objecto da experiência sensível. Occam considera a natureza como o domínio próprio do conhecimento humano, para ele, a experiência deixa de ter o carácter iniciático e mágico que ainda conservava em Bacon, e transforma-se num campo de investigação aberto a todos os homens, enquanto tais. Esta atitude permite-lhe a máxima liberdade de crítica frente à física aristotélica. Através dessa critica abrem-se numerosas vigias sobre a nova concepção do mundo, as quais serão defendidas e assumidas pela filosofia do Renascimento. As possibilidades descobertas por 189
~In converter-se-ão no Renascimento em afirmações **zesolutas e constituirão o fundamento da ciência moderna. Occam põe em dúvida pela primeira vez a diversidade de natureza, estabelecida pela física aristotélica, e mantida por toda a filosofia medieval, entre os corpos celestes e os corpos sublunares. Tanto uns como OutrOs são formados Pela. mesma matéria: o princípio metodológico da economia impede admitir a diversidade das substâncias, dado que tudo o que se explica admitindo que a matéria. dos corpos celestes é diferente da dos elementos sublunares Se pode explicar admitindo que as duas matérias são da mesma natureza Un Sent., II, q. 22 B). Nem sequer Os seguidOres de Occam manterão a este respeito a afirmação do mestre, é necessário chegar a Nicolau de Cusa para encontrar novamente negada, e desta vez para sempre, a diversidade entre substânCia. celeste e substância sublunar. Contra Aristóteles, Occam admite e dde**rlde a Possibilidade de mais mundos. A argumentação de Aristóteles (De Coelo, 1, 9, 276 a) segundo a qual se existisse um mundo diferente do nosso, a terra desse mundo mover-se-ia naturalmente para o centro e unir-se-á à nossa, e, do mesmo modo, todos os Outros** CICInOntos se reuniriam na própria esfera fOrmando um mundo único, é combatida por Occam através da negação das determinações absolutas do esPaÇO admitidas Por Aristóteles. Um mundo diferente do nosso teria um Outro centro, uma outra circunferência, um acima e um abaixo diferentes, e Os movimentos dos elementos estariam pois dirigidos para esferas diferentes e não se verificaria a conjunção Prevista por Aristóteles (In Sen_t., 1, d. 44, q. 1 F, Cel?t. theol., 2 D). Esta relatividade das determinaÇões espaciais do universo será um dos PORtOS fundamentais da física do Renascimento, 190 Segundo Occam, também a infinitude da potência divina predispõe a admitir a pluralidade dos mundos. Deus pode produzir outra matéria, além daquela que constitui o nosso mundo; pode também produzir um número infinito de indivíduos das mesmas espécies existentes no nosso mundo; nada impede, pois, que com eles forme um ou mais mundos diferentes do nosso (In Sent., 1, d. 44, q. 1 E). Mas a pluralidade dos mundos implica a possibilidade do infinito real. Já a negação das determinações espaciais absolutas abria a via para admitir esta possibilidade. Com efeito, no infinito, tal como se dirá no Renascimento, o centro pode estar em qualquer parte. Deus pode sempre criar uma nova quantidade de matéria a acrescentar à existente, e assim pode aumentar infinitamente a magnitude do mundo (1b., 1, d. 17, q. 8 D). Ã objecção alegada por Rogério Bacon (Op. tertium, 41, ed. Brewer, p. 141-142) de que o infinito não pode ser real porque nele a parte seria idêntica ao todo, responde Occam que o princípio segundo o qual o todo é maior do que a parte vale para um todo finito, não para um todo infinito. Onde existir um número infinito de partes, o princípio não é válido; e assim, nu-ma fava existem tantas partes quantas existem no universo inteiro, porque as partes da fava são infiinitas (Cent. theol., 17 Q Quod[., 1, q. 9). Paralelamente à infinitude de magnitude Occam admite
também a infinitude de divisão. Qualquer magnitude contínua é infinitamente divisível e não existem entidades indivisíveis. Qualquer magnitude contínua pode ter, diz Occam, o mesmo número de partes que o céu e a mesma proporção, ainda que sem a mesma virtude absoluta (Quodl., 1, q. 9). FinAlmente, Occam admite e defende a possibilidade de o mundo ter produzido ab aeterno, Também isto elo não afirma explicitamente, Emi191
J4,
** tando-se a desimpedir o caminho das objecções
Possíveis. Ã objecção de que se o mundo fosse eterno se teria já verificado um número infinito de revoluções celestes, o que é impossível porque um número real não pode ser infinito, responde Occam que assim como num contínuo cada parte, juntada a outra, forma um todo finito, embora as próprias partes sejam infinitas, também cada revolução celeste, juntada às outras, forma sempre um número finito, ainda que no seu conjunto as revoluções celestes sejam infinitas (In Sent., II, q. 8 D). Occam tinha consciência de que a eternidade do mundo implica a sua necessidade, já que aquilo que é o terno não p e ser senão produzido necessariamente (Quodl., od 11, q- 5). Sabe ainda que a eternidade do mundo exclui a criação, porque esta implica a não existência da coisa antes do acto da sua produção (In Sem., 11, q. 8 R). No entanto considera que a própria eternidade é altamente provável, dada a dificuldade. de conceber o início do mundo no tempo. A pluralidade dos mundos, a sua infinitude e eternidade são, portanto, possibilidades, que, por obra de Occam se abrem à investigação filosófica. Alguns séculos mais tarde, no Renascimento, estas possibilidades converter-se-ão em certezas, e a visão do mundo que Occam havia entrevisto será então reconhecida como a própria realidade do mundo. § 321. GUILHERME DE OCCAM: A ANTROPOLOGIA A crítica de Occam visa aqui o conceito central da psicologia, o de alma, cOMO forma imaterial incorruptível. A nossa vida espiritual é-nos dada na experiência: mediante a intuição, conhecemos directamente os pensamentos, as volições, os nossos estados interiores. Mas o conhecimento interior nada nos diz sobre uma pretensa forma incorruptível, que 192 seja o substrato a que são inerentes os nossos estados de consciência. Nem tão-pouco chega a esse substrato mediante o raciocínio porque toda a demonstração nesse sentido é duvidosa e pouco concludente. "Aquele que segue a razão natural, diz Occam, admitiria somente que experimentamos em nós a intelecção que é o acto de uma forma corpórea e corruptível. E, consequentemente, diria que uma tal forma poderia ser recebida na própria matéria. Mas nunca experimentamos aquela espécie de intelecção que é a operação própria de uma substância imaterial; portanto, mediante a intelecção
não podemos concluir que exista em nós, como forma, uma substância incorruptível" (Quodl,, 1, q. 10). Por outras palavras, Occam admite a possibilidade de ser o próprio corpo a pensar, isto é, que o corpo seja o sujeito dos actos de intelecção, os quais constituem o único dado seguro de que o raciocínio pode partir neste campo. O conceito de intelecto activo, que tanto trabalho dera ao aristotelismo árabe e latino, é sem mais eliminado por Occam como inútil para explicar o funcionamento do conhecimento. Com efeito, ele não é necessário para a formação dos conceitos. Todos os conceitos, tanto as intenções primeiras como as intenções segundas, são causados naturalmente, isto é, sem que intervenham nem o intelecto nem a vontade, pelos objectos singulares presentes na experiência. Conhecidas as coisas singulares na intuição, formam-se em nós espontaneamente, Dela sua acção, os universais e as intenções segundas. Se, por exemplo, alguém vê duas coisas brancas, abstrai das duas coisas a brancura Que têm em comum: o que quer dizer que a noção daqueles dois objectos causa nele naturalmente, como o fogo causa o calor, uma terceira noção distinta, que é o conceito do branco (In Sent., 11, q. 25 0), Trata-se, portanto, dum processo natural, isto é, neces193 sário, ou seja, independente de qualquer intervenção voluntária, processo que tem o seu ponto de partida na realidade dada pela experiência e o seu ponto de chegada na espontaneidade do intelecto. O intelecto activo não tem nele nenhum lugar. Tão-pouco lhe pertence a função de dirigir a formação dos juízos, tendendo a formar um juízo verdadeiro mais do que um falso, afirmativo mais do que negativo. O intelecto activo não poderia actuar senão dum modo uniforme e constante, em qualquer ocasião e em qualquer circunstância, e deveria, portanto, dar indiferentemente lugar a proposições verdadeiras ou proposições falsas ou a umas e outras, sem tender pela sua parte nem para umas nem para outras. Requere-se, aqui pelo contrário, uma causa não natural mas livre, como o é a vontade, que dirige a atenção do homem e lhe gradua o esforço. O intelecto agente é, portanto, inútil em toda a linha. Entre a vontade e o intelecto estabelece Occam uma simples diferença de nomes. Na realidade eles são idênticos entre si e com a essência da alma. A diversidade dos seus actos não basta para estabelecer a sua própria diversidade, já que mesmo os actos do intelecto são diferentes entre si. Nem basta para os distinguir a diversidade do seu modo de agir, agindo o intelecto necessariamente e a vontade livremente, já que esta diversidade não implica uma diversidade de princípios: por exemplo, a vontade divina é princípio necessário em relação ao Espírito Santo, princípio livre em relação à criatura, mas não inclui por isto nenhuma diversidade (IB., 11, q. 24 K). A vontade é livre. Por liberdade entende Occam "a faculdade de pôr indeferente e contingentemente coisas diferentes, de modo a poder causar e não causar o mesmo efeito, sem que nada mude excepto essa mesma faculdade" (Q_uodl., 1, q. 16). A liberdade é, portanto, entendida por ele como puro e 194
simples arbítrio de indiferença. Não é outro o significado da palavra liberdade, segundo Occam. Se w admite que a vontade seja de algum modo determinada, será determinada precisamente no sentido de qualquer outra coisa natural, e não bastará para diferenciar a sua determinação a diversidade da sua natureza em relação à das coisas naturais; também as coisas naturais têm naturezas diferentes e, todavia, o modo da sua determinação é um só e excluí a contingência Un Sent., 1, d. 10, q. 2 G). A liberdade do querer não é demonstrável com o raciocínio, mas -resulta evidente pela experiência, já que o homem experimenta em si mesmo que, sugerindo-lhe a razão alGo, a vontade pode quer-lo ou não o querer (Oi@odl., 1, ci. 166), Ou Deus possa prever as acções humanas não obstante o seu carácter contingente e livre, é coisa que não se pode entender e esclarecer de nenhum modo por parte do intelecto humano (Jin Sent., I, d. 38, q. 1 U. A vontade livre é o fundamento de toda a valoração moral. "0 homem, diz Occam, pode** aQir louvavelmente ou repreensivelmente, e, por **conscouêne,a, merecer ou desmerecer, porque é um 3Qente livre e Porque ninitos actos só a ele são im,ni-itáveis" (Ouo@@Il., TTI, ci. 19). Todo o acto dif**erente dum acto de vontade nole ser mau porque pode ,r evecutado com ilm** rn@oi fim ou com uma má intf.-ncão; só o acto voluntário, enquanto está em noler do homem, é ab<@ol1ihmente bom, se é conforme à recta r,97ãO (In Sent.**, T11, ci. 10 R). Não basta o-ne o acto seia confcirme à recta razão para aue se**;a virt,tio,zo: é, nec-ç@-;o wie der;ve exclu@s,ivgmelnte da vontade livre**. Se 1'",iis determinasse na minba vontade um acto conforme à recta ra7ãO. es@**te acto n@o seria virtuo,-e> nem meritório (1b.j. Mpis se o unIor moral do** beimem dnnende eyelusiva mente da Ilberda-le do horn,-ni, o deRtino ultr@:,,miinAnno do h(,imí-,m depende excluisiva mente da liberdade de Deus. 195 Occam faz a sua tese oposta à de Pelágio: nada há que possa constranger Deus a salvar um homem: ele concede a salvação só com uma graça e livremente, ainda que de potentia ordinata não possa regular-se senão pelas leis que ele mesmo voluntária e contingentemente ordenou (In Sent., 1, d. 17, q. 1 M). Mas Occam tira da liberdade de escolha divina que pode predestinar ou condenar quem quiser, independentemente dos méritos humanos, uma consequência paradoxal. Não é contraditório que Deus considere meritório um acto privado de qualquer disposição sobrenatural; assim como ele voluntária e livremente aceita como meritório um acto inspirado pela disposição sobrenatural da caridade, também pode aceitar igualmente um acto voluntário privado de tal disposição (1b., 1, d. 17, q. 2 D). Isto significa que a salvação não está impedida para quem vive somente segundo os ditames da recta razão. "Não é impossível, diz Occam (1b., 11, q- 8 C), que Deus ordene que aquele que vive segundo os ditames da recta razão e não crê em nada que lhe não seja demonstrado pela razão natural, seja digno da Vida eterna. Em tal caso, também pode salvar-se aquele que na vida não teve outro guia senão a recta razão". Esta é uma opinião que coloca Occam para além dos limites da Idade Média: a fé já não é uma condição necessária da salvação. A livre investigação filosófica confere ao homem tal nobreza que pode torná-lo digno da vida eterna. Que a vida eterna consista no gozo e na posse de Deus, é opinião de pura fé. Não se pode demonstrar que tal gozo seja Possível ao homem. Não se pode demonstrar que o homem não possa verdadeiramente repousar senão em Deus.
Finalmente, não se pode demonstrar que o homem possa, de qualquer modo, repousar definitivamente, já que a vontade humana, pela sua liberdade, pode sempre 196 tender para outra coisa e sofrer se não a alcançar (1b., 1, d. 1, q. 4 F). A liberdade é também aqui insatisfação, ilimitação das aspirações, ou seja, aquilo que Bruno denominará de heróico furor. Quanto ao pecado, ele é a simples não conformidade da vontade humana com o mandamento da vontade divina. Deus não é obrigado a nada, dado que nenhuma norma limita ou pode limitar as possibilidades infinitas da sua vontade, mas concorre como causa eficiente no pecado do homem. Não obstante isso, o pecado não é imputável a Deus, que nada deve a ninguém, e que por isso não é obrigado nem àquele acto nem ao seu oposto: Deus, portanto, não peca, embora seja a causa do pecado humano. A vontade criada pelo contrário, é obrigada pelo preceito divino e peca quando o transgride. Sem a obrigação estabelecida por aquele preceito não haver-ia pecado para o homem, como o não há para Deus (1b., IV, q. 9 E ). § 322. GUILHERME DE OCCAM: O PENSAMENTO POLíTICO Occam é, com Marsílio de Pádua. (autor do Defensor pacis), o maior adversário, na sua época, da supremacia política do papado. Mas enquanto que Marsílio de Pádua, jurista e político, parte da consideração da natureza dos reinos e dos estados em geral para a solução do problema das relações entre o Estado e a Igreja, Occam visa reivindicar a liberdade da consciência religiosa e da investigação filosófica contra o absolutisimo papal. A lei de Cristo, segundo Occam, é lei de liberdade. Ao papado não pertence o poder absoluto (plenitude potestatis) nem em matéria espiritual nem em matéria política. O poder papal é ministrativus, não dominativus: foi instituído para proveito dos súbditos, não para que lhes fosse tolhida aquela liberdade 197
que a lei de Cristo, pelo contrário, veio aperfeiçoar (De imp. et pont. pot., VI, ed. Scholz, 11, 460). Nem o papa nem o concílio têm capacidade para restabelecer verdades que todos os fiéis tenham de aceitar; dado que a infalibilidade do magistério religioso pertence somente à Igreja, que é "a multidão de todos os católicos que têm existido desde os tempos dos profetas e dos apóstolos até à actualidade" (Dial. inter mag. et disc., 1, tract. 1, c. 4, ed. Goldast, 11, 402). A Igreja é, por outras palavras, a livre comunidade dos fiéis, que reconhece e sanciona, no decurso da sua tradição histórica, as verdades que constituem a sua vida e fundamento. Por este seu ideal da Igreja combate Occam o papado de Avinhão. Um papado rico, autoritário e despótico, que tende a subordinar a si a consciência religiosa dos fiéis e a exercer igualmente um poder político absoluto, afirmando a sua superioridade sobre todos os príncipes e poderes da terra, devia parecer a Occam a negação do ideal cristão da Igreja como comunidade livre, alheia a
toda a preocupação mundana, em que a autoridade do papado seja unicamente a protecção da livre fé dos seus membros. Indubitavelmente, o mesmo ideal de Occam animava a ordem franciscana na sua luta contra o papado de Avinhão. A tese da pobreza de Cristo e dos apóstolos foi a arma de que serviu a ordem franciscana para defender este ideal. Não somente Cristo e os apóstolos não quiseram fundar um reino ou domínio temporal, como até nem quiseram ter nenhuma propriedade comum ou individual. Quiseram sim fundar uma comunidade que, não tendo em vista senão a salvação espiritual dos seus membros, renunciasse a toda a preocupação mundana e a todo o instrumento de domínio material. Tal é também a preocupação polémica de Occam. As palavras que segundo um escritor antigo Occam dirigiu a Luís o Bávaro quando se refugiou 198 na sua corte: "0 Imperator, defende me gladio et ego defendam te verbo", não exprimem a essência da obra política de Occam. Mais do que deter-se a defender o imperador, ele contrapõe a Igreja ao papado e defende os direitos da própria Igreja contra o absolutismo papal que pretende erigir-se em árbitro da consciência religiosa dos fiéis. A Igreja é para Occam uma comunidade histórica, que vive como tradição, ininterrupta através dos séculos, a esta tradição reforça e enriquece o património das suas verdades fundamentais. O papa pode errar e cair em heresia; também o concílio pode cair em heresia pois que é formado por homens falíveis, mas não pode **catir em heresia aquela comunidade universal que não pode ser dissolvida por nenhuma vontade humana e que, segundo a palavra de Cristo, durará até ao fim dos séculos (Dial., 1, tract. 11, c. 25, ed. Goldast, 11, 494-495). Deste ponto de vista, a tese sustentada pelo papado de Avinhão segundo a qual a autoridade imperial procede de Deus somente através do papa e, portanto, só o papa possui a autoridade absoluta tanto nas coisas espirituais com nas coisas tem. **porais, tal tese devia parecer herética. Com efeito, assim parece a Occam, que mostra como ela é infundada, observando que o império não foi instituído pelo papa, visto que já existia antes da vinda de Cristo (Octo quaest., 11, 6, ed. Goldast, 11, 339). O império fdi fundado pelos Romanos que primeiro tiveram os reis, depois os cônsules, e por último **eleacram o imperador para que dominasse sobre todos elos sem ulteriores mudanças. Dos Romanos foi transferido para Carlos Magno, e em seguida foi transferido dos Franceses para a nação alemã. São, portanto, os Romanos, ou os povos aos quais eles transferiram o seu poder, que têm o direito de eleição imperial. Occam defende a tese afirmada 199 dieta de Rliens de 1338 de que a eleição por parte dos príncipes da Alemanha basta por si só para fazer do eleito o rei e imperador dos Romanos. Fica excluída toda a jurisdição do papado sobre o império. Acerca das relações entre o império e o papado, Occam admite substancialmente a teoria da independência recíproca dos dois poderes, teoria que, afirmada pela primeira vez pelo papa Gelásio 1 (492-496), dominou quase toda a Idade Média. Occam reconhece, todavia, uma certa jurisdição do império sobre o papado, especialmente no que se refere à eleição do papa. Em
alguns casos, o próprio interesse da Igreja pode requerer que o papa seja eleito pelo imperador ou por outros leigos (Dial., 111, tract. 11, lib. 111, c. 3, ed. Goldast, 11, 917). NOTA BIBLIOGRÁFICA § 315. Elementos sobre a vida de Occam foram-nos deixados por velhos escritores e cronistas como TRITIRMio, De scriptoribus ecelesiasticis e WAI)DING, Annules minorum (ad annos 1308, 1323, 1347). A data da citação de Occam a Avinhão é-nos dada por uma carta endereçada por Occam ao capitulo geral dos franciscanos de Assis em 1334, carta publicada por K.MULLER, in "Zeitschritt für Kirchengeschichte", 1884, p. 108 ss. Sobre a biografia de Occam: HoFFR, in "Archivum francíscanum historicum", 1913, p. 209-233, 439-465, 654-669; HOCHSTETTER, Studien zur Met. u. Erkenntnislehre W. v. O., Berlim, 1927, p. 1-11; ABBAGNANO, G. Ockham, Lanciano, 1931, cap. 1. Novos documentos parecem mostrar que Occam. foi citado a Avinhão por denúncia do chanceler da Universidade de Oxford, John Luttereil: i. KocH, Neue Aktenstücke zu dem gegen W. v. O. in Avignon geführten Prozes3, in "Rech. de Théol. ancienne et rnédiévale", 1935, VII, p. 353-380; 1936, VIII, p. 168197; Fr. HOFFMANN, Die erste Kritik des Ockamismus durch den Oxforder KanzIer Johannes LutterelI, Breslau, 1941; LÉON BAUDRY, G. d'O., sa vie, se& oeuvres, ses idées sociales et politiques, I, L'homme et ses oeuvres, Paris, 1950. 200 Edições antigas: Quaestiones in quatuor libros Sententiarum, Lugduni, 1495. Centiloquium theol., Lugduni, 1495 (conjuntamente com o precedente). Exposítio aurea super totam artem veterem, Bonomae, 1496. Summulac in libros physicorum o Philosophia naturalis, Bononiae, 1494; Venetiis, 1506; Romae, 1637. Quodlibeta septem, Parisüs, 1487; Argentinae, 1491. De sacramento altaris et de corpore Christi, Argentinac, 1491 (conjuntamente com os Quodlibeta). Summa totius logicae, Parisfis, 1488; Bononiae, 1498; Venetiis, 1508, 1522, 1591; Oxoniae, 1675. Edições recentes: Quaestio prima principalis Prologi in priknum àbrum Sententiarum cum interpretatione Gabri61is Biel, ed. Bõhner, ZurichPaderborn-New Jersey, 1939; De sacramento altaris, ed. Birch, Burling- ,ton (Iowa) 1930: Tractatus de praedestinatione, ed. Bbhner, S Bonaventure (N. Y.), 1945; Parihermeneias, ,ed. Bõhner, ir, "Traditio", 1946; Summa logicae, ed. Bõhner, 1951-1954. Algumas questões inéditas foram publicadas por CORVINO, in "Riv. crit. di st. della fil.", 1955, 1956, 1958. As obras políticas foram reimpressas quase todas nos princípios do século XVII por Melchior Goldast na sua Monarchia S. Romani Imperii, Francofordiae, 1614. No vol. Il desta obra estão incluídos: Opus nonaginta dierum; Tractatus adversus errores Johannis XXII; Octo quaestionum decisione3 super potestatem Summi Pontificis; Dialogus inter magistrum et discipu7um de Imperatorum, et Pontificum potestate.
As outras obras: Contra Johannem XXII, Tractatus contra Benedictum XII, Tractatus de potestate imperiali, De Imperatorum et Pontificum potestate foram edi.tadas por SCHOLZ, Unbekannte Kirchenpolitische Streitschriften aus der Zeit Ludwigs des Bayern, Roma, 1914, vol. 1. O De Imperatorum et Pontificum potestate foi também editado em Oxford, 1927, por Ke.nneth Brampton. A parte que falta foi publicada p,or MULDER, in "Archivum franciscanum historicum", 1924, p. 72-97. Algumas destas obras tiveram também edições recentes. Sobre Occam, para além das obras já citadas: GOTTFRIED MARTIN, W. v. O., Untersuchungen zur Onto7ogie der Ordnungen, Berlim, 1949 (sobre as doutrinas lógico-matemáticas de O.); E. HOCTISTETTER. P, VIGNAUx, G. MARTIN, P. BõHNER, A. B. WOLTER. J. SALAmucflA, A. HAMMAN, R: HORN, V. HEYNCK, W. O. 201 (1349-1949) Aufsdtze zu seiner Philosophie und Theologie, Münster-West., 1950; VASOLI, G. d'O., Florenga, 1953. § 316. Sobre a teoria do conhecimento: HomsTETTER, Studien, cit.; DONCOEUR, in "Revue néo-scol.", 1921, p. 5-25; S. G. TERNAY, W. of O.'s Nominalism., in "Phil. Review", 19366, p. 245-268; P. VIGNAUX, Nominalisme au XIVe siècle, Montréal-Paris, 1948. § 317. Sobre a lógica: MOODY, The Logic of W. of O., Londres-New York, 1935; BõHNER, Ockham's Theory of Signification, in "Frane. Stud.", 1945; MOODY, Truth and Consequence in Mediaeval Logie, Amsterdão, 1953. § 318. Sobre a teologia: ABBAGNANO, 0p. Cit. cap. VI; R. GUELLUY, Phil. et théol. chez G. dIO., Louvain-Paris, 1947 (com bibl.). § 319. Sobre a metafísica: HOCHSTETTER, op. Cit., 12-26, 56-62, 139-173; MENGEs, The Concept of Univocity Regarding the Predication of God and Creature, According to W. O., St. Bonaventura (N. Y.), 1952. § 320. Sobre a física: DUHEM, Êtudes sur Léonard de Vinci, II, Paris, 1909, p. 39-42, 76-79, 85-86, 257-259, 416; DELISLE BURNS, in "Mind", 1916, p. 506-512. § 321. Sobre a antropDIogia: WERNER, in "Sitzungb. d. k, Akad. d. Wiss. philos. hist. kl.", vol: 49:1, 1882( p. 254-302; SIEBEK(sobre a doutrina da vontade), in. "Zeitsehrift f. Philos.", 1898, p. 195-199. Sobre a ética: DIETRICII,Geschichte der Etnik, III, Leipzig, 1926, p. 171181. § 322. Sobre a doutrina pGlítica: RIEzLrR, Die literaíschen Widersacher der Pãpste zur Zeit Ludwigs des Bayern., Leipzig, 1874; DEMPF, Sacrum Imper-*um,
Munich, 1929; R. SciiOLZ, W. v. O. aIs politischer Denker und sein Breviloquium de principatu tyrannico, in Schriften des Reichsinstitute für ãIterer deutsche Geschichtskunde, VIII, Leipsiz, 1944. Sobre a personaRdade de Oceam: ABBAGNANO, op. Cit.; ROCHSTETTER, in W. O. (1349-1949), P. 1-20. Bibliografia actualizada por V. HEYNCK na citada recolha de estudos, p. 164183. 202 XXIII O OCCAMISMO § 323. OCCAMISMO: CARACTERíSTICAS DA ESCOLÁSTICA FINAL Depois de Occam, a Escolástica, não voltou a ter nenhuma grande personalidade nem nenhum grande sistema. O seu ciclo histórico está concluído e ela vive da herança do passado. O tomismo, o escotismo, o occamismo são as escolas que entre si disputam o campo, defendendo polemicamente as doutrinas dos seus respectivos chefes, por vezes exagerando-as ou deformando-as, raramente as desenvolvendo ou prestando-lhe um contributo original. Frente ao tomismo e ao escotismo que representam a via antiga, o occamismo representa a via moderna, ou seja a crítica e o abandono da tradição escolástica. Os "modernos" são os "nominalistas", que se confiam à razão natural e excluem toda a possibilidade de interpretação racional da verdade revelada. A 23 de Setembro de 1339 a doutrina occamista era proibida em Paris; e a 29 de Dezembro de 1340 a condenação era confirmada com a proibição de numerosas proposições occamistas (Denifle, Chart. 203 1~ Univers. Paris., 11, 485, 505 e seguintes). Mas apesar das proibições e condenações, o occamismo difundia-se rapidamente e bem depressa conquistava, nas mais famosas Universidades, numerosos discípulos, os quais lhe acentuaram a tendência crítica e negativa, não só nas questões teológicas mas também nas filosóficas. O número das questões declaradas insolúveis sob o ponto de vista da razão natural e dos princípios declarados desprovidos de qualquer base experimental, aumentava continuamente. A escolástica conservava a sua estrutura exterior, o seu proceder característico, o seu método de análise e de discussão. Mas esta estrutura formal voltava-se contra o seu próprio conteúdo, mostrando a inconsistência lógica ou a falta de fundamentação empírica das doutrinas que tinham constituído a substância da sua tradição secular. Todavia, à medida que os [problemas tradicionais se esvaziavam de conteúdo, ia-se reforçando o interesse pelos problemas da natureza que já haviam abrangido uma parte tão notável da especulação de Occam. Na usura a que o occamismo submetia todo o conteúdo da tradição escolástica, iam
amadurecendo novas forças, forças que se vieram a desenvolver na filosofia do Renascimento. § 324. PRIMEIROS DISCíPULOS DE OCCAM Discípulo de Occam em Oxford foi o franciscano inglês Adão Wodham ou Goddam, falecido em 1358, ao qual o mestre dedicou a Summa totius logicae. Temos dele um Comentário às Sentenças no qual são defendidas as teses fundamentais de Occam. Considera a fé como fundada precisamente numa lógica diferente da natural, uma lógica na qual não é válido, o princípio da não contradição. 204 O dominicano inglês Roberto Holkot, falecido em 1349, foi outro dos sequazes de Occam, professor de teologia em Cambridge e autor de um Comentário às Sentenças e de escritos morais e exegéticos, entre os quais, os exegéticos, se situam as Praelectiones in librum Sapientiae. O cronista Aventino cita entre os principais nominalistas, juntamente com João Buridan e Marsílio de Inghen, o frade agostinho Gregório de Rimini que estudou em Paris, Bolonha, Pádua e Perugia e foi mestre de teologia em Paris. Escreveu um Comentário ao primeiro e segundo livros das Sentenças e faleceu em 1358. A preponderância do occamismo na Universidade de Paris é demonstrada pelas condenações sofridas por dois mestres da Universidade de Paris nessa época: João de Mirecourt e Nicolau. de Autrecourt. De João de Mirecourt (de Mirecuria) foram condenadas em 1347 pelos mestres de teologia de Paris 40 teses extraídas de um Comentário às Sentenças que ficou inédito. Estas teses são exagerações de princípios occamistas; entre elas encontra-se a de que Deus é causa do pecado e que o homem peca com o beneplácito da vontade divina; a de que a caridade não é necessária para a salvação da alma e que, portanto, o ódio ao próximo não é necessariamente demeritório (Denífle, Chart., 612, n. 34, 611, n. 27). Pertencia à ordem de Cister e por isso foi chamado pelos seus contemporâneos "o monge branco" (monachus albus). Nicolau de Autrecourt (de Ultricuria) estudou em Paris, foi membro da Sorbonne e magister artium. A 21 de Novembro de 1340 foi chamado por Bento XII à corte de Avinhão para responder por heresia. Em 1346 foram condenadas 60 teses extraídas de duas cartas a Bernardo de Arezzo, de uma carta a **4EQíd@o e de um Tractatus universalis indicado por vezes 4pdas palavras iniciais Exigit ordo executionis. Nicolau arrependeu-se dos seus erros 205 e morreu em 1350 como decano da cátedra de Metz. O fundamento do saber é, para NicoMu de Autrecourt como para Occam, o conhecimento intuitivo. Mas a característica própria desse conhecimento não consiste, para ele, na sua referência à coisa existente enquanto mas antes na maior clareza que ele possui frente ao conhecimento abstractivo. Com efeito, qualquer conhecimento é conhecimento duma coisa existente; mas "se Deus, como se crê, conhece tudo com perfeita clareza, o nosso conhecimento intuitivo
poderia chamar-se abstractivo em relação ao conhecimento de Deus, o qual, pelo contrário, deveria chamar-se simplesmente intuitivo" (Tract., 242). Além disto, o próprio conhecimento intuitivo, embora seja medilda e fundamento, de toda a certeza, não constituí a verdade absoluta. Ele é, com efeito, a evidência, ou seja, o manifestar-se, da coisa existente; mas, diz Nicolau (Tract., 228-229) "que aquilo que se manifesta de modo próprio e último como existente existia, e que aquilo que se manifesta como verdadeiro seja verdadeiro, é uma conclusão, **umeamente provável: mais provável, não mais verdadeira, do que a conclusão oposta". De modo que nem sequer a última certeza atingível naturalmente pelo homem implica uma garantia absoluta de verdade mas goza umicamente de um grau eminente de probabilidade. Ms um típico e notabilíssimo desenvolvimento, do occamismo: a crítica iniciada por Occam dá mais um passo em frente com Nicolau de Autrecourt. E este passo em rigor, não se destina a desvalorizar a experiência, que é a forma primária e última" do conhecimento intuitivo. A experiência, por exemplo, daquele que, estando em Roma, vê que Roma é uma grande cidade, não está sujeita a erro ( que Só pode aparecer no juízo feito sobre ela) enquanto é assumida na sua forma última, ou seja, presente 206 ou actual, e constitui o critério de validade de qualquer outra manifestação. Nicolau de Autrecourt insiste, portanto, como Occam (Summa log., 111, 2, 25), que esta certeza máxima é limitada à acção actual e não subsiste para além dela. Analogia do ponto de vista de Occam e Nicolau de Autrecourt com o de Locke (inclusivé no exemplo, que, no caso de Locke, é o de Constantinopla) é evidente. É evidente também, na obra destes occamistas, o alargamento que sofre o conceito de conhecimento, que passa a abranger o provável e que, em Locke, que é quem no mundo moderno recolhe a herança do occamismo, se transforma numa extensão do conceito de razão até ao domínio do provável. Compreende-se que Autrecourt não possa reconhecer à metafísica aristotélica aquele valor de saber necessário (ou seja, demonstrativo) que lhe atribuíam os Escolásticos de tipo antigo. E compreende-se que renove com substancial fidelidade a crítica de Occam contra os dois conceitos, fundamentais de tal metafísica, os de substância e de causa, nesta crítica, serve-se do princípio de não contradição que lhe parece o único apto a garantir aquela certeza que se pode conseguir na **deincinistração. O princípio de não contradição não permite inferir que, posto que uma coisa exista, deva também existir uma coisa diferente como efeito da primeira. Portanto, o princípio de causalidade não é baseado no princípio de não contradição, não há pois, certeza mas só probabilidade. Do facto de o fogo ser fogo não se segue que **arla: a combustão é , portanto, o seu efeito provável, mas não é uma consequência evidente (Lappe, pap- 327). Considerações análogas valem para o conceito de substância. Da substância, nós conhecemos os acidentes; mas dos acidentes não podemos remontar com toda a evidência até à existência da substância. Se a substância é qualquer coisa de diferente dos objectos dos 207 sentidos e da nossa experiência interna, é impossível afirmar a sua realidade, já que da existência de uma coisa se não pode inferir de modo algum a existência de uma outra (1b., 12, 20-29). Juntamente com estes pontos
fundamentais, Nicolau de Autrecourt defende também outras teses occamistas: a negação da finalidade do mundo, probabilidade de o mundo ser eterno; C opõe à física, aristotélica, como, pelo menos, igualmente provável, a hipótese préaristotélica dos átomos e do vazio. § 325. OCCAMISMO: O NATURALISMO NA ESCOLA OCCAMISTA As intuições físicas de Occam, que são o ponto de partida da mecânica e da astronomia modernas, são retomadas por um corto número de sequazes. Um deles é João Buridan, nascido em Béthune, no Artoís, mestre e reitor da Universidade de Paris, de quem temos notícias até 1358, ignorando-se, no entanto, o ano da sua morte. Buridan escreveu comentários à Física, à Metafísica, à Política, ao De anima e aos Parva naturalisa de Aristóteles. A atitude geral da obra de Buridan segue de perto a de Occam, mas, por vezes, Buridan vai além de Occam no desenvolvimento empirista e naturalista de certas teses. Por exemplo, para Occam, a distinção tradicional entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual não tem grande importância porque o primeiro lugar é assumido pela distinção entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstractivo que é transversal àquela; para Buridan, ela tem uma importância ainda menor porque ele não hesita em aproximar o conhecimento conceptual dum conhecimento sensível confuso. Respondendo à questão de se os universais vêm antes ou depois dos singulares, Buridan afirma que, para o 208 intelecto, temos primeiro o conceito singular -que o universal porque o intelecto parte do sentido que lhe fornece representações singulares. Mas logo a seguir reconhece que, para os sentidos, o universal precede o singular porque o conhecimento sensível confuso vem antes do determinado e exemplifica: como quando acontece que se vê de longe um objecto que não se consegue discernir, e que, portanto, é confuso ou universal (dado que pode ser um objecto qualquer), e que depois se torna cada vez mais determinado até se tornar singular quando pode ser percebido claramente (De an., 1, q. 5). Isto não é senão um modo de exprimir a superioridade do conhecimento sensível sobre o intelectual, enquanto só o primeiro é o instrumento para atingir as coisas nas suas determinações efectivas e é o ponto de partida do próprio conhecimento intelectual. Dentro do mesmo espírito, Buridan acentua energicamente a tese occamista de que é o próprio corpo que pensa, declarando-se propenso a considerar o intelecto como "uma forma material desenvolvida pela potência da matéria" educta de potentia materiae, De an. 111, q. 4). Igualmente acentuado é, na obra de Buridan, o interesse pela física considerada como ciência empírica. É-lhe atribuído o mérito de ter vislumbrado o princípio da inércia na chamada teoria do impetus, formulada a propósito do movimento dos projécteis. Este movimento era uma espécie de escândalo para a física aristotélica a qual admitia o princípio de que um corpo só pode mover outro por contacto. Já Occam, opusera a este princípio o exemplo da flecha e, duma maneira geral, dos projécteis, aos quais é comunicado um impulso que o projéctil conserva sem que o corpo que lho
comunicou o acompanhe na sua trajectória (In Sent., 11, q. 18 e 26). Ruridan retoma esta doutrina aplie~a 209 também ao movimento dos céus: estes podem perfeitamente ser movidos por um impetus a eles comunicado pela potência divina, e que se conserva porque não é diminuído ou destruído por forças opostas; isto torna inúteis as inteligências motoras que Aristóteles admitira precisamente para explicar o movimento dos céus. A astronomia moderna nascia assim na escola occamista. O nome de Buridan está ligado ao famoso exemplo do burro, o qual, colocado precisamente no meio de duas faixas de palha, morreria de fome antes do decidir a comer ou uma ou outra. Este argumento não se encontra nas obras de Buridan, e não pode encontra-se porque é uma redução ao absurdo da sua doutrina. Tal doutrina, porém, dá-lhe efectivamente o seu ponto de partida. Com efeito, Buridan considera que a escolha feita pela vontade segue necessariamente o juízo do intelecto. Entre dois bens, um maior outro menor, que o intelecto julga com evidência como tais, a vontade decide-se necessariamente pelo bem maior. Mas quando se trata de dois bens iguais, que o intelecto reconhece com evidência como tais, a vontade não pode decidir-se nem por um nem pelo outro: a escolha não se realiza (In Eth., III, q. 1). Este é precisamente o caso do " burro". Mas aliás Buridan. não pretende com isto negar qualquer liberdade à vontade humana; mas, dado que, na presença de um juízo evidente do intelecto a escolha feita pela vontade é necessariamente determinada, a vontade é livre só no sentido de poder suspender ou impedir o juízo do intelecto (In Eth., III, q. 4). Nicolau de Oresme estudou teologia em Paris e morreu bispo de Lisieux em 1382. Traduziu para francês em 1371, por ordem do rei Carlos V, a Política, a Economia e a Ética de Aristóteles-, escreveu em francês vários tratados sobre política e 210 economia, um Tratado da esfera e um Comentário aos livros do céu e do mundo de Aristóteles. Escreveu ainda, em latim, tratados de física. É notável a sua importância no campo da economia política do século XIV, mas é maior ainda no campo da astronomia, no qual é um directo precursor de Copérnico. Basta aqui citar algumas das proposições do seu comentário ao De coelo: "l. Que não se poderia provar com nenhuma experiência que o céu se move com movimento diurno e a terra não; II. Que nem sequer isso se poderia provar com o raciocínio; 111. Várias boas razões para mostrar que a terra se move com movimento diurno e o céu não; IV. Como estas considerações são úteis para a defesa da nossa fé". Igualmente importante é a obra de Nicolau de Oresme no domínio da matemática, onde se antecipa a Galileu e Descartes. Na sua obra De difformitate qualitatum serve-se pela primeira vez das coordenadas geométricas que serão introduzidas por Descartes, e enunciou a lei da queda dos graves que seria formulada por Galileu. Alberto de Saxe, denominado também Alherto de Helmsteá ou Albertus Parvus, ensinou em Paris e foi reitor da Universidade de Paris e mais tarde da de Viena, na altura da sua fundação. Morreu em 1390 como bispo de, Halberstadt.
As suas obras tratam de lógica, matemática, física, ética e economia. É escassa a sua originalidade. Na Lógica segue Occam; nas Quaestiones meteororum segue Nicolau de Oresme, nas suas teorias científicas segue Buridan. De Buridan aproveita a teoria do impetus, de que serve para explicar o movimento dos céus, considerando também inúteis as Inteligências motoras admitidas por Aristóteles. De Nicolau de Oresme extraí provavelmente a sua teoria da gravidade e a determinação da lei da queda dos graves. Afasta-se deste último ao admitir a teoria ptolomaica da imobilidade da terra. 211 § 326. OCCAMISMO: OS "CALCULADORES" DE OXFORD A parte da doutrina occamista que encontrou um maior número de sequazes foi indubitavelmente a lógica, e, da lógica, a parte mais seguida e desenvolvida foi a relativa à refutação dos sofismas; parte que acaba por ser tratada de modo autónomo e com fim em si própria, embora sempre com base nos princípios da lógica terminista e, em primeiro lugar, da teoria da suppositio. Multiplicaram-se assim as colecções intituladas Sophismata, Insolubilia, Consequentiae, Obligationes, Calculationes, cuja finalidade consiste em fornecer as regras para a solução dos sofismas, e, com base nelas, analisar e resolver o maior número possível deles, mesmo os manifestamente mais absurdos ou menos prováveis. A habilidade e a subtileza destes trabalhos são notáveis como é também notável o seu formalismo e a sua (pelo menos) aparente obiosidade, tratando problemas cuja solução não parece, duma forma ou de outra, influenciar por pouco que seja a esfera dos problemas humanos. É sobretudo por esta última característica que os sequazes desta lógica, os quais foram numerosos em Itália nos séculos XIV e XV,, foram asperamente criticados pelos humanistas, a começar por Petrarca que viu (e não sem deixar de ter razão) neste tipo de exercícios a tentativa de evasão dos problemas referentes, ao homem e ao seu mundo, logo, a obstinada sobrevivência de uma filosofia que tivera já a sua época. Por outro lado, Leibniz (numa carta a Thomas Smith datada de 1696) reconhecia ao mais célebre destes calculadores, Sulseth, o mérito de haver introduzido o simbolismo matemático (mathesin) na filosofia escolástica; e esta observação explica o renovado interesse que estudos recen212 tes dedicam a esta escola de l¥ca, interesse que também permite uma avaliação mais imparcial dessa mesma escola. Os seus principais representantes apareceram na Universidade de Oxford e especialmente no Merton Colloge onde este tipo de estudos fora iniciado pelo Tractatus de proportionibus de Tomás Bradwardine (§ 311). Um dos méritos da escola é o de ter dado início à formulação do dicionário de termos da mecânica que iria ser aperfeiçoado por Galileu. Chamavam latitude a qualquer incremento positivo ou negativo do movimento (motus), da velocidade (velocitas) ou de qualquer determinação qualitativa ou quantitativa (forma) em todos os graus (gradus) possíveis do zero até ao infinito. As principais obras desta escola foram as Regulae solvendi sophismata de Heytesbury e as Calculationes de Suiseth.
Guilherme Heytesbury foi mestre do Merton College, chanceler da Universidade de Oxford em 1371 e morreu em 1380. Além da obra mencionada (cujo título completo é De sensu composito et diviso, regulae solvendi sophismata) que foi escrita provavelmente em 1335, escreveu também uma recolha de Sophismata. Alguns dos sofismas tratados por Heytesbury no De sensu composito et diviso são os tradicionais da escola negárico-estóica como, por exemplo, o do mentiroso (ef. § 37). Mas aqueles cuja discussão constitui a importância da obra referem-se à noção do infinito sincategoremático tal como tinha sido tratada pelos lógicos terministas, a partir das Summulae logicales de Podro Hispano. PoT infinito sincategoremático entende-se uma quantidade que pode ser tomada maior ou menor do que qualquer outra quantidade dada. Trata-se, como se vê, dum conceito fundamental para as matemáticas modernas 213 (a especialmente para o cálculo infinitegiinal) e não é de admirar que o tratamento que lhe foi dado pelos lógicos de Oxford tenha atraído as atenções dos estudiosos modernos; tanto mais que, ao contrário dos escritores anteriores os quais, a começar em Rogério Bacon e a acabar em Duns Escoto e Occam, tinham tratado esta noção nas dificuldades e nos aparentes sofismas a que dava lugar, os lógicos de Oxford adoptaram pela primeira vez, no tratamento que lhe deram, símbolos constituídos por letras e dedicaram-se sobretudo a considerá-la em relação aos conceitos de movimento e de velocidade chegando mesmo a formular alguns teoremas da cinemática moderna. Para dar uma ,ideia da maneira como Heytesbury enfrenta os problemas do infinito assim entendido, pode considerar-se o procedimento por ele seguindo na sua discussão do máximo e do mim .mo para refutar uma proposição como a seguinte: existe um peso máximo que Sócrates consegue transportar. Seja a esse peso. Sócrates consegue transportar a, portanto, a potência de Sócrates excede, com um excesso (excessus) qualquer, a resistência do peso a. Mas dado que aquele excesso é divisível, com metade dele, Sócrates pode transportar o peso a mais uma outra quantidade logo a não é o máximo que Sócrates pode transportar. E, dado que, tal como se raciocina a respeito de a do mesmo modo se pode raciocinar a respeito de qualquer peso infinitèsimamente maior do que a, resulta que não existe um peso máximo que Sócrates consegue transportar. Segundo Heytesbury, deve antes dizer-se que existe um peso mínimo que Sócrates não consegue transportar. Considere-se, com efeito, um peso que seja igual à potência de Sócrates e chame-se-lhe a. Sócrates não consegue transportar a mas pode transportar qualquer peso 214 menor que a; portanto, a é o peso mínimo que Sócrates não consegue transportar (De sensu composito et diviso, vol. 194 r a). A obra mais famosa desta escola de lógica é o Liber calculationum de Ricardo SWineshead também denominado Suseth ou Sulseth ou Suset cuja actividade se desenvolveu no segundo quartel do século XIV mas de quem quase nada se sabe, excepto que esteve implicado na tumultuosa eleição de um Chanceler de Oxford
em 1348. A sua obra foi todavia a mais famosa nos séculos XIV e XV, e dela foram feitas numerosas edições. A sua finalidade, tal como na de Heytesbury, consistia na refutação dos sofismas; mas Suiseth afirma claramente que os sofismas nascem da noção de infinito. "Sofismas em número quase infinito, diz ele, podem nascer do infinito; mas se tiveres presente que não existe nenhuma proporção entre a totalidade infinita e uma das suas partes, poderás resolvêlos** fficifimonte" (Liber calculationum, ed. 1520, fol. 8 v b). A obra de Suiseth trat-a analiticamente vários argumentos que constituom aspectos diversos do processo através do qual uma grandeza ou, duma maneira geral, uma forma (isto é, uma determinação qualquer) começa a ser ou cessa de ser; aumenta ou diminui de intensidade; ou aumenta ou diminui na velo--idade em que aumenta ou diminui; ou se rarefaz ou se condensa por meio da aproximação ou afastamento das suas partes. Estes argumentos são tratados analiticamente mediante o uso de símbolos e com definições precisas, embora respeitando pouco os dados da experiência aos quais só ocasionalmente se faz referência, preferindo-se a maior parte das vezes a consideração de casos puramente fictícios. Ainda que nestes trabalhos se encontrem alguns dos teoremas que a mecânica moderna demonstra, o que lhes falta é precisamente a exi215 gência fundamental desta mecânica e, em geral, da ciência moderna: a da medida. Está-se ainda no domínio duma ciência qualitativa que carece do instrumento fundamental da ciência moderna, a observação mensuradora. Suisoth foi o mais famoso dos lógicos da escola de Oxford e, por isso, foi denominado por antonomásia o Calculator. Foi sobretudo em Itália que a lógica de Oxford encontrou mais numerosos seguidores, ficando em voga durante mais dum século. Podem recordar-se os nomes de Poduro de Mântua (falecido em 1400) autor de um De instanti e de uma Lógica; de Paulo Veneto (falecido em 1429) autor de uma Summa naturalium que foi impressa em Veneza em 1476 e de uma colecção de Sophismata; de Caetano Tffiene (falecido em 1465) que ensinou em Pádua de 1422 a 1465, e cujo comentário às Regulae de Heytesbury foi editado conjuntamente com elas em 1494, de Paulo de Pergola (falecido em 1451) autor de uma Lógica e de um Tratado sobre o sentido composto e dividido. Mas o mais famoso foi Biagio Pelacani de Parma que ensinou em Pavia, Pádua, Bolonha e Florença e morreu em 1416. Biagio foi um averroísta que ensinava um rígido determinismo astrológico, a unidade do intelecto activo e a eternidade do mundo. Mas ocupou--se sobretudo de questões científicas relativas ao movimento dos projécteis (no sentido de Buridan e de Oresme), ao movimento e contacto dos corpos e à óptica. Nas Quaestiones de latitudinibus formarum trata dos mesmos problemas considerados por Heytesbury e chega a conclusões semelhantes. A sua característica fundamental é a mistura que apresenta de averroísmo e occamismo: os aspectos mais interessantes da sua obra são os científicos e especialmente os seus contributos para a elaboração duma óptica geométrica. 216 § 327. A ESCOLA OCCAMISTA Na segunda metade do século XIV, o occamismo é a cor-rente dominante nas maiores Universidades da Europa. Foi chanceler da Universidade de Paris o
francês Pedro de AilIy, nascido em 1350, bispo de Cambrai, cardeal, e falecido em 1420 como legado papal em Avinhão. Participou no concílio de Constança (1414-1418) no qual contribuiu para a condenação da teoria da superioridade do Concílio sobre o Papado. Foi autor de numerosas obras de filosofia, teologia e ciências naturais e, dentre destas últimas, duma Imago mundi que é uma espécie de enciclopédia do saber do seu tempo. A sua filosofia depende substancialmente da de Occam. No Comentário às Sentenças, que é a sua obra principal, afirma resolutamente que o filósofo só pode servir-se da razão natural e que a razão natural não permite demonstrar nem sequer a existência de Deus. Do ponto de vista da razão natural, a existência de Deus é unicamente provável; a afirmação dessa existência pertence somente à fé (In Sent., 1, q. 3, a. 2). Mas a fé é, neste caso, a fé infundida directamente por Deus, isto é, a fé sobrenatural e não a adquirida. A fé adquirida é conciliável com o conhecimento demonstrativo ou científico, mas não o é a fé infundida por Deus. Diz Pedro de Aifiy: "Não é contraditório que alguém tenha ciência ou demonstração e todavia não perca a fé infunffida, ainda que perca a fé adquirida, do mesmo modo que se pode ter fé no princípio e conhecimento evidente da conclusão ou conhecimento experimental da mesma, mas não se pode, simultaneamente, ter fé adquirida na conclusão e conhecimento evidente dele" (In Sent., 111, q. 1, a. 2). O exercício da filosofia não exclui, portanto, a posse de uma fé sobrenatural, isto é, directamente infundida por Deus, mas exclui qualquer outra 217
espécie de fé. Esta tese revela a tendência crítica e cepticizante de Pedro de Ailly e domina toda a sua filosofia. Até a existência das coisas externas é considerada por ele como não sendo nada segura, porque Deus podia destruir as coisas externas e manter as sensações que delas tem o homem, pelo que, estas sensações não são prova da sua existência. Como todos os occamistas, Pedro, de Aüly dedica-se, de boa vontade à solução ou ao esclarecimento dos insolubilia, isto é, dos paradoxos da lógica, o afirma que todos estes paradoxos derivam de proposições que têm reflexionem supra se, ou seja, do tipo daquela que "significa que ela própria é falsa". A solução de tais paradoxos pode obter-se, segundo ele, passando da proposição enunciada à proposição mental, para a qual afirma o princípio "Nenhuma proposição mental propriamente dita pode significar ser ela própria falsa". Outros aspectos da sua doutrina derivam directamente de Occam: * prioridade do querer divino em relação ao bem * ao mal e a arbitrariedade do mesmo querer divino. Discípulo de Pedro de Ailily em Paris, João Gerson, Doctor Christianissimus, nasceu em 1363 e morreu em 1429. Gerson foi doutor em teologia e chanceler da Universidade de Paris após o seu mestre. Participou também no Concílio de Constança onde desenvolveu uma notável actividade. São numerosos os seus escritos de lógica e metafísica. Mas o seu interesse fundamental era a mística O Considerationes de theologiae mystica speculativa, o De theologiae mystica practica, o De simplificatione cordis, o De elucidatione cholastica theoloQiae mvsticae propõem-se introduzir, inserir a mística dos Vitorinos e
de S. Boaventura da filosofia occamista, que constitui o fundo especulativo da sua investigação. Gerson distingue o ser da coisa externa do ser objectale ou representativo que a coisa possui ao intelecto humano ou divino. A coisa externa 218 é a matéria ou o sujeito do ser representativo. Esta distinção permitiria, segundo Gerson, conciliar os formalistas e os terministas, ou seja, os sequazes da via antiga, tomistas e escotistas, com os da via moderna, os occamistas (De concordia methaphycae cum logica). Para definir a natureza do esse objectale serve-se do conceito occamista da suppositio: a ratio objectalis está em lugar da coisa externa. Portanto, ela não é senão a intetio occamista, signo da coisa natural. Com tudo isto Gerson considera que os procedimentos naturais do conhecimento não servem para alcançar o conhecimento de Deus. A teologia deve ter a sua própria lógica; e esta lógica é aquela que regula a relação entre o homem e Deus, ou seja, o amor. O amor exclui o conhecimento natural, mas ele próprio é conhecimento; conhecimento experimental da realidade sobrenatural, análogo ao que o tacto, o gosto, o olfacto são n- ps coisas sensíveis (De simplific. cordis, 15). Assim procura Gerson oferecer ao homem, com a via mística, aquele conhecimento de Deus que o occamismo lhe negava resolutamente por via natural; e concebe o próprio conhecimento místico, que é o amor, por analogia com a experiência da realidade natural. O misticismo de Gerson apresenta-se como a integração mística do nominalismo occamista. Depois de Podro de Ailly e Gerson, a Universidade de Paris continua a ser o centro da via moderna, isto é, do nominalismo e do occamismo. A 1 de Março de 1473, o rei Luís XI proibia a doutrina de Occam e as obras dos nominalistas, seus seguidores; mas, em 1481, o nominalismo estava em Paris livre de toda a proibição. Na Alemanha, o nominalismo encontra numerosos sequazes. O aluno de Buridan, Marsílio de Inghen, que foi em 1386 o primeiro reitor da Uni219 versidade de Heidelberg, então fundada, e morreu em 1396, escreveu sobre teologia, lógica e física. Outros sequazes de Occam são Henrique de Hainbuch (1325-1397) e Henrique Totting de Oyta. (falecido em 1397), ambos os quais ensinaram em Viena e devem ser considerados entre os fundadores da faculdade de teologia daquela Universidade. Mas quem mais contribuiu para a difusão do occamismo na Alemanha foi Gabriel Biel que estudou em Heidelberg e Erfurt, ensinou na Universidade de Tubingen e morreu em 1495. O Comentário às Sentenças de Biel não se propõe outra finalidade que a de expor, abreviandoas ou completando-as, as obras de Guilherme de Occam. Os sequazes do occamismo nas Universidades de Erfurt e de Wittemberg denominaram-se gabrielistas e o próprio Lutero foi orientado para o occamismo pelas obras de Biel. NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 323. Sobre este último período da escolástica: MIC11ALSKi, Les courants philosophiques à Oxford pendant je XiVe siècle, Cracóvia, 1922; ID., Les sources du criticisme et du scepticisme dans ta philosophie du XIVe siècle, Cracóvia, 1924; ID., Le criticisme et le scepticisme dans Ia phi7sophie du XIVe siècle, Cracõvia, 1925. § 324. O Comentário de Adão Woddam foi impresso em Paris em 1512. As obras de Roberto Holkot tiveram numerosas edições nos últimos anos do século XV e nos primeiros amos do século XVI. O Comentário de Gregório de Rimini foi impresso várias vezes em Paris, e em Veneza em 1532. As 40 proposições condenadas de João de Mireeourt foram editadas in DENIFLE, Chartularium Univ. Par., 11, 610-614. As cartas de Nicolau de Autrecourt foram editadas por LAPPE, in "Beitrãge", VI, 2, 1908; o Tractatus universalis foi editado por J. R. UDONNEL, in "Mediaeval Studies", Toronto, 1, 1939. Sobre Nicolau: O'DON220 NEL, The Phil. of N. of A, and his Appraisal of Aristotie, in "Mediaeval Studies", Toronto, IV, 1942; J. R. WEINBERG, N. of A., Princeton, 1948; M. DAL PRA, N. di A., Milão, 1951. § 325. As obras de João Buridan tiveram numerosas edições antigas. Recentes: De caelo, ed. Moody, Cambridge (Mass.), 1942; Tractatus de suppositionibus, ed. Reina, in "Riv. crit. di st. della fil.", 1953. Sobre Buridan: Dumm, Études sur Léonard de Vinci, II e III, passim; Le Système du monde, VI e VII, passim; REINA, Il problema del linguaggio in Buridano, in "Riv. crit. di st. della fil>, 1959-1960; Note sulla psicologia di Buridano, Milão, 1959. Sobre a tradição manuscrita: FARAL, in "Arch. d'Hist. Doctr. et Lit. du m. á.", 1946; FEDERICI VESCOVINI, in "Riv. crit. di st. della fil.", 1960. De Nicolau de Oresme: os Comentários aristotélicos tiveram algumas edições no século XV. Recentes: Etica, ed. Menut, New York, 1940; Economica, ed. Menut, Filadélfia, 1957; De caelo, ed. Menut-Denomy, in "Mediaeval Studies", 19411943; De Porigine, nature et mutation des monnais, ed. Wolowski, Paris, 1864; Johnson, Edimburgo, 1956; Quaestiones super geometriam Euclidis, ed. Busarda, Leiden, 1961. Sobre Oresme: DuHEm, Français de Meyrones et Ia question de Ia rotatiow de Ia terre, in "Arch. fvane, frane. Hist.", 1913, 23., Êtudes sur Léonard de Vinci, III, Paris, 1913, 347 ss.; Le système du monde, VII, VIII, IX, X, passin; BORCHERT, in "Beitrãge", XXXI, 3, 1934, e XXXV, 4-5, 1940. As obras de Alberto de Saxe tiveram numerosas edições nos finais do século XV e no principio do século XVI. Sobre ele ver as obras citadas de Duhem e HEIDINGSFELDER, in "Beitrãge", XX11, 3-4, 1921. 326. De Héytesbury: o Tratado foi impresso em Veneza em 1494. Sobre ele: DUHEM, Études sur Léonard, III; MAYER, An der Greme von Scholastik und Naturwissenschaft, Roma@ 1952, COP. M; WILSON, W. H., Medieval Logic and the Bise of Mathematical Physics, Madison, 1956.
As Calculationes de Suiseth foram editadas pela primeira vez em Pádua em 1480 e reimpressas repetidas vezes. Sobre Suiseth.* DUHEM, Êtudes sur Léo-nard, III, passim; MICHALSKI, Le criticisme et le scepticisme dans ta phíl. du XIVe siècle, Cracóvia, 1926; THORNDIKE, History of Magic, III, cap. 23. 221 Textos destes autores como comentários oportunos (mas de interesse exclusivamente científico) foram incluídos na obra de CLAGETE, The Science of Mechanics in the Mi-ddle Ages, Madison, 1959. De Paulo de Pergola a Lógica e o Tractatus de sensu composito ed diviso foram impressos em Veneza em 1501 (nova edição M. A. Brovm, St. Bonaventure, N. Y., 1961). De Biagio de Parma, as obras foram impressas em Pádua, 1482, 1486 e em Veneza, 1505. O seu averroísmo é manifesto no comentário ao De anima que está inédito. A obra De latitudinibus formarum foi impressa por Amodeo, Nápoles, 1909. Sobre ele, além das obras citadas de Mayer e Clagett: G. FSDERICI VESCOVINI, in "Rivista di filosofia", 1960; in "Rinascimento", 2, 1961; ALEssio, in "Rivista critica di storia. della filosofia", 1961. § 327. As obras de Pedro de Ailly foram impressas conjuntamente com as de Gerson por Du Pin, Anteverpiae, 1706, e tiveram também numerosas edições separadas nos séculos XV e XVI. Sobre ele: DUHEM, Le système du monde, VII, VIII, IX, X, passim. De Gerson: Opera omnia, ed. Du Pin, 5 vols., 1706, 1727 2; nova edição critica por Glorieaux, Paris, 1961, ss. Sobre e'-e: CONNOLLY, John Gerson, Louvain, 1928 (com bibl.). De Marsilio de Inghen, as obras tiveram numerosas edições no século XVI. As de Henrique de Hainbuch foram editadas só em parte: v. Ueberweg-Geyer, p. 604. As de HenrIque de Oyta foram editadas em Paris em 1506. Sobre ele: MICHAT,SKI, Le criticisme, passim; e RITTER, Marsilius von Inghen, 1921, 13, 41. O Epítome de Gabriel Biel foi impresso pela primeira vez em 1501 e teve depois várias edições: PRANTL, Gesch. d. Log., IV, p. 231 ss. 222 xxIV O MISTICISMO ALEMÃO § 328. MISTICISMO ALEMÃO: CARACTERÍSTICAS DO MISTICISMO ALEMÃO A dissolução da Escolástica, iniciada por Duns Escoto e progredindo rapidamente depois dele até alcançar o seu ponto terminal com Occam e o
occamismo, põe em primeiro plano o problema da fé. Se as verdades a que a fé se dirige não têm nenhum fundamento racional, não são evidentes nem demonstráveis, nem sequer justificáveis, que valor tom a fé? Duns Escoto tinha colocado o fundamento da fé na vontade; mas, desse modo, em vez de a justificar, havia acentuado a sua arbitrariedade. De qualquer modo, depois dele, até este fundamento desaparece: apresenta-se uma diversidade radical, que muito frequentemente é uma antítese, entre a fé e todas as capacidades naturais do homem. A escolástica nunca chega, todavia, à negação do valor da fé: o problema deste valor apresenta-se, pois, Como urgente, no momento em que se tira a essa mesma fé todo o apoio da razão, considerada como capaz de indagar o mundo natural, mas não de se acercar da realidade sobrenatural e de Deus. Era 223
necessário restabelecer a possibilidade de uma relação directa entre a criatura e o criador, a fim de justificar a fé. Era necessário reconhecer, para além e acima dos poderes naturais do homem, a possibilidade de uma relação com Deus, sem a qual a fé é impossível. Era necessário reconhecer, no homem, um ser não finito nem de criatura, que se identificasse com o próprio ser de Deus. Tal é a tarefa que a si mesmo impõe o misticismo especulativo alemão, sobretudo com Mestre Eckhart. O problema da fé domina inteiramente a investigação especulativa de Eckhart. A mística precedente estava solidamente ligada à investigação escolástica: era um auxiliar e um complemento dessa investigação, uma via paralela, por vezes coincidente, sempre convergente, com a especulação. Mas agora a investigação escolástica parecia inadaptada à sua finalidade; a sua capacidade de fazer aceder o homem à verdade revelada parecia nula. Restava, então, a via mística; mas esta devia agora justificarse por si mesma, utilizando e transfigurando, até onde fosse possível, os próprios conceitos da escolástica, para uma justificação da fé. Nascia assim o misticismo especulativo, que já não é uma simples descrição da ascese do homem para Deus, mas a investigação da possibilidade dessa ascese, e reconhecimento do seu fundamento último na unidade essencial de Deus e do homem. § 329. MESTRE DIETRICH Mestre Dietrich (Theodoricus) nasceu em Freiberg no Saxe, provavelmente cerca de 1250, e pertenceu à ordem dominicana. Estava em Paris cerca de 1276, onde assistiu às lições de Henrique de Gand. Foi mais tarde mestre de teologia em Paris e ensinou nessa Universidade. Desempenhou na 224 MESTRE ECKHART E UTA Alemanha vários cargos na sua ordem, mas a sua principal actividade foi a pregação. Depois de 1310 não voltamos a ter mais dados sobre ele; pouco depois desse ano, deve, portanto, situar-se a data da sua morte. Mestre
Dietrich escreveu numerosas obras de metafísica, lógica, física, óptica e psicologia, obras que ficaram inéditas e das quais só recentemente algumas foram publicadas. A sua especulação relaciona-se dum modo geral com a tradição agustiniana; mas a sua fonte principal é Proclo, cujos Elementos de teologia tinham sido traduzidos em 1268 por Guilherme de Moerbek-e. Como Proclo, admite quatro ordens de realidades: o Uno, a natureza intelectual, as almas e os corpos, que derivam umas das outras por um processo de emanação, interpretada, num sentido cristão, como criação. Tal criação é determinada pela superabundância do ser divino que se derrama fora de si próprio, sobre os graus inferiores da realidade, criando-os e governando-os (De intellectu et intelligibili, 1, 9, ed. Krebs, p. 130). Dietrich propende para a interpretação que Avicena tinha dado da teoria neo-platónica da emanação, segundo a qual a acção de Deus sobre as coisas do mundo se exerce mediante as inteligências motoras das esferas celestes, de modo que cada uma delas depende da superior, e que da última e mais baixa dependem as coisas sublunares. Mas ele declara não afirmar decididamente tal doutrina ,porque não lhe encontra confirmação explícita na Sagrada Escritura. O misticismo é curiosamente fundado por Mestre Dietrich sobre a doutrina aristotélica do intelecto activo. O intelecto activo é a parte mais intrínseca e profunda da alma humana, e é para ela aquilo que o coração é para o animal (lb., 11, 2, p. 135). É o abditum mentis, o princíPio que sustenta e vivifica toda a actividade intelectual e é a sede daquela verdade imutável que, segundo Santo Agos225 tinho, está presente no homem como norma de todo o seu conhecimento (De visione beatifica, ed. Krebs, p. 77). O intelecto possível é, pelo contrário, uma pura possibilidade, sem natureza positiva. As espécies inteligíveis vêm à alma, não por abstracção das coisas sensíveis, como sustentara S. Tomás, mas pelo intelecto agente, segundo a doutrina de Avicena. E, dado que o intelecto agente é a directa emanação de Deus, Dietrich aceita, neste sentido a doutrina agustiniana da iluminação divina (De inteil. et intellig. 111, 35, p. 203). Ora, precisamente por meio do intelecto agente o homem está em condições de regressar a Deus e de se unir com ele. Para esta união, Dietrich não considera necessário aquele lumen gloriae que S. Tomás havia considerado como sua condição (S. th., 1, q. 13, a. 4); basta a acção natural do intelecto agente. " O mesmo intelecto agente. "0 mesmo intelecto agente, diz ele (De intell. et intellig., 11, 31, p. 162), é aquele princípio beatífico, pelo qua-l, quando estamos informados- isto é, quando ele se torna a nossa forma-, nos tornamos bem-aventurados, o nos unimos a Deus mediante a imediata contemplação beatífica, com a qual vemos a própria essência de Deus". § 330. MESTRE ECKHART João Eckhart, o verdadeiro fundador da mística alemã, nasceu cerca de 1260 em Hochheim, perto de Gotha. Pertenceu à ordem dominicana e estudou em Colónia, onde provavelmente foi aluno de Alberto Magno. Em seguida, estudou o ensinou em Paris cerca de 1300; e em 1302 foi nomeado doutor por Bonifácio VIII. Desempenhou alguns cargos na sua ordem, dirigiu em
Estrasburgo a escola teológica e nos últimos anos da sua V,; Ja ensinou em Colónia. Aqui, foi-lhe movido pelo arcebispo, em 1326, um 226 processo por heresia. Retratou-se condicionalmente das suas doutrinas e apelou para o -papa. Mas morreu em 1327, antes de ser publicada a bula que condenava 28 proposições extraídas da sua obra (27 de Março de 1329). Eckaot é autor de um Opus trípartitum, que só foi em parte recentemente ed'iwtado, de algumas Quaestiones, e de Sermões e Tratados em alemão. Temos dele duas obras em que justifica as proposições imputadas de heresia. 1 1 A obra de Eckhart é a maior tentativa de justificação da fé, à qual a última Escolástica. tirava todo o fundamento nas capacidades naturais do ficomem. A sua obra é substancialmente uma teoria da fé: os seus pontos fundamentais visam estabelecer aquela unidade essencial entre o homem e Deus, entre o mundo natural e o mundo sobrenatural, que é a única condição que possibü,;,,ta e justifica a atitude da fé. As 28 proposições condenadas revelam já o intento fundamental da especulação de Eckhart. Afirmam a eternidade do mundo, criado por Deus simultaneamente com a geração do Verbo, a trans, formação, na vida eterna, da natureza humana na natureza divina, a identidade perfeita entre o homem santo e Deus; a unidade perfeita e indistinta de Deus; o não-ser das criaturas como tais; o valor indiferente das obras exteriores; a pertença à alma do intelecto incriado. Todas estas teses tendem a estabelecer a unidade essencial do homem e de Deus, da criatura, enquanto possui uma qualquer realidade, e do criador, e a oferecer assim ao homem a possibilidade duma relação com o mundo sobrenatural e com Deus: a possibilidade da fé. Para fundamentar tal relação, Eckhart deve, por um lado, negar que as criaturas tenham, enquanto tais, uma realidade própria; por outro lado, reduzir o ser das criaturas ao ser de Deus. Tais são, com efeito. os pontos fundamentais da sua metafísica,, "Todas as criaturas, são um puro nada, diz ele. Não 227 m,41,11^k%o que sejam uma coisa pequena ou sem **impersão um puro nada. O que não tem ser, **-ras tem ser porque ,não existe. Nenhuma das criatu1 o wU ser depende da presença de Deus. Se Deus se afastasse das criaturas por um só instante, elas cairiam no nada. Disse já outras vezes e é verdade: quem agarrasse no mundo e em Deus nada mais teria do que se só tivesse Deus" (Pred., IV, ed. Quint, p. 69-70). Frente à nulidade das criaturas, Deus é o ser, todo o ser. "0 sor é Deus. Esta proposição é evidente, em primeiro lugar, porque se o ser é diferente de Deus, Deus não existe nem é Deus. Com efeito, de que modo poderia ser, e ser algo, se o ser fosse diferente, estranho e distinto dele? Ou então, se é Deus, é Deus por causa de outrem, se o ser é outro que não ele. Portanto, Deus e o ser são idênticos, pois de outro modo Deus receberia o ser de outrem" (Prologus generalis in opus tripartitum, n. 12). Eckhart não hesita a servir-se de conceitos e princípios da tradição
escolástica, especialmente de S. Tomás, para esclarecer este ponto. Admite a analogicidade do ser e a distinção real entre essência e existência, que sã o as traves mestras do pensamento tomista; mas serve-se de tais princípios únicamente para negar toda a realidade às criaturas enquanto tais, e reduzir o ser dessas criaturas ao ser de Deus. A analogicidade do ser significa, para ele, que "todo o ser criado tem por Deus e em Deus, não em si próprio, o ser, a vida e o saber, positiva e radicalmente". Do mesmo modo, afirma que as coisas estão em Deus como na mente do artífice; mas acrescenta também que as ideias das coisas não são nem criadas nem criáveis, mas se identificam directamente com o Verbo, e são produzi-das pelo Pai contemporaneamente com o próprio Verbo. Desta redução total do ser a Deus deriva, em primeiro lugar, a coeternidade e a unidade substancial 228 do mundo com Deus: "Não se deve imaginar, como muitos fazem, que Deus tenha criado e produzido todas as coisas não em si mas fora de si; criou-as e produziu-as por si e em si primordialmente, já que aquilo que existe fora de Deus existe fora do ser e, assim, não existe e não poderia ter sido criado nem produzido. Em segundo lugar, o que existe fora de Deus é nada. Por isso, se as criaturas ou todas as coisas produzidas se colhessem ou nascessem fora de Deus, seriam produzidas do ser para o nada, e não haveria produção ou criação mas corrupção: a corrupção, com efeito, é a via que vai do ser para o não ser, isto é, para o nada" (In Sap., VI, 8). Deus é, portanto, o ser, todo o ser na sua absoluta unidade. Como tal, é a negação de todo o ser particular, determinado e múltiplo; é o não-ser de tudo o que existe de qualquer modo diferente dele. Mesmo o seu nome é inexprimível: Eckhart serve-se de boa vontade da teologia negativa (apofatica) de Dinis o Areopagita, da qual se servira já Escoto de Erígena no principio da Escolástica. "Deus não tem nome, já que ninguém pode dizer nem entender nada sobre ele. Se eu digo: Deus é bom, será mais ,verdadeiro dizer: eu sou bom, Deus não é bom. Se eu digo: Deus é sábio. não será verdadeiro dizer: eu sou sábio. Eu digo, portanto: não é verdadeiro que Deus seja uma essência. Ele é uma essência superessencial e um nada superexistente" (Werke, ed. Pfeiffer, p. 318-319). Como tal, Ele, mais do que Deus, é a divindade, a essência em si que é o fundamento comum das três pessoas divinas, **wneriores às suas relações, à sua distinção, à sua actividade criadora; é um repouso desértico, no qual só há unidade. Mas, precisamente para este centro e para este fundamento último da vida divina, precisamente para este repouso desértico, que está para além da 229 distinção e da própria actividade de Deus, deve tender o homem. E o homem pode para lá tender, dada a natureza da sua alma. Eckhart admite as partes que a tradição escolástica distinguia: a parte racional, a irrascível e a apetitiva; e, acima destas, a memória, a inteligência e a vontade. Mas a mais alta potência da alma não é uma faculdade que esteja ao lado das outras, é sim a alma na totalidade da sua essência, na sua pura racionalidade. Na sua racionalidade, a alma é verdadeiramente a imagem de Deus e, como tal, **incúada e eterna; a alma dotada de faculdades é pelo contrário, múltipla e
criada. A racionalidade é a citadela da alma, a chispa nela acesa pelo próprio fogo divino (lb., p. 113). Só mediante esta chispa o homem se eleva acima de toda a actividade sensível e intelectual, à contemplação. Frente ao conhecimento comum, a contemplação é um não-conhecimento, uma situação de cegueira, um não-saber; mas só ela é a posse, o gozo da verdade, só ela é a fé (lb., p. 567). A fé é, portanto, a reunião da realidade última e de Deus na sua identidade. Ela revela ao homem simultaneamente a deidade de Deus e a sub"ncia da alma: e revela-as como idênticas. A fé é o nascimento de Deus no homem: por ela, o homem torna-se filho de Deus. A primeira condição deste nascimento é que o homem volte as costas ao pecado, se desinteresse de todas as coisas finitas e se retrai-a, da multiplicidade dos seus poderes espirituais, em direcção àquela chispa de racionalidade, que é o domínio do eterno. "Nós não podemos ver Deus, se não vemos todas as coisas e nós próprios como um puro nada". O homem deve fazer morrer em si tudo o que pertence à criatura fazer viver em si o ser eterno de Deus: a morte do ser de criatura no homem é o nascimento nele do ser divino. Para este nascimento pouco contribuem as obras externas (os jejuns, as vigílias, 230 as macerações), mas muito contribuem as internas, isto é, o aprofundamento da relação com Deus, o qual ama as almas, não as obras externas. É necessário alcançar Deus, procurando-o no ponto central da alma: somente aí Deus revela o fundamento da sua divindade, a sua inteira natureza, a sua verdadeira essência. Nesse ponto culminante o homem torna-se uno com Deus, converte-se em Deus; as propriedades de Deus convertem-se nas suas. Mas a alma não se anula inteiramente em Deus: uma linha subtilíssima separa sempre o homem de Deus: o homem é Deus por graça, Deus é Deus por natureza (Ib., p, 185). Tais são as características fundamentais do misticismo especulativo de Mestre Eckhart. Perante elas, parecem completamente irrelevantes os problemas que se costumam debater, no intento de reduzir a personalidade do seu autor a esquemas pré-estabelecidos. Mestre Eckhart foi um escolástico ou um místico? É ou não ortodoxa a sua especulação? O resultado da sua filosofia é verdadeiramente o pan- ,teísmo? Uma solução qualquer destes problemas nada diz sobre a personalidade de Mestre BAhart. Já que ele é certamente um místico que, diferentemente dos outros místicos medievais (os Vitorinos, S. Boaventura) sabe que a via mística é a única que permite o acesso à verdade revelada, à qual a investigação filosófica não pode conduzir. O pressuposto implícito da especulação de Eckhart é a desconfiança na possibilidade de alcançar a fé através da investigação realizada pela razão natural, desconfiança que existe na atmosfera filosófica da sua época, e que então encontrava as suas mais decididas expressões, O seu problema é o problema da fé: encontrar a possibilidade e a justificação da fé, na possibilidade e na justificação duma relação directa entre o homem e Deus. Para este problema, serve-se, sem escrúpulos, de numerosos temas e 231, motivos da **Úadição escolástica; mas tais tomas e motivos são por ele transfigurados e entendidos segundo uma perspectiva que já não é a que
representa o seu significado genuíno. Quanto à sua ortodoxia, ele aparecerá não como ortodoxo, desde que se utilize como medida da ortodoxia o tomismo ou a antiga tradição escolástica. Mas a sua especulação é a última grande tentativa medieval de dar à fé religiosa uma fundamentação metafísica. Finalmente, se olharmos para a separação que Eckhart estabelece entre as criaturas como tais, consideradas como um puro nada, e Deus, Eckhart está muito longe do panteísmo; mas se olharmos para a identidade que Eckhart estabelece entre o ser autêntico das criaturas, e em primeiro lugar da alma humana, e o ser de Deus, o panteísmo pode parecer a última palavra da sua especulação. Pode parecer; mas, na -realidade, o panteísmo, nas expressões típicas que assumiria o Renascimento, é sempre um naturalismo, e o naturalismo está muito longe da especulação eckhartiana, a qual está completamente absorvida no problema da fé, e vê, na unidade da criatura com Deus, a única via mediante a qual o homem pode voltar a unir-se com Deus. § 331. A MíSTICA ALEMÃ Discípulos imediatos de Eckhart são João Tauler e Henrique Suso. João Tauler nasceu cerca de 1300 em Estrasburgo e pertenceu à ordem dominicana. Na luta entre Luís o Bávaro e o papa, esteve do lado do papa. A sua actividade desenvolveu-se como pregador em Estrasburgo, Basileia e Colónia. Morreu em Estrasburgo em 1361. A doutrina exposta nos seus Ser~- s é substancialmente a de Eckhart. Como Eckhart, distingue Deus, como Trindade e actividade criadora, da essência divina que, 232 JOÃO TAULER **nidade sinplicíssima, é o fundamento de -na sua 4ura, Deus. Como Eckhart, distingue na alma humana as suas diversas faculdades da sua substância última, que é a luz da razão. Ainda como Eckhart, afirma a identidade do ser da alma com o ser de Deus e esboça o ~,ínhe, mediante o qual se pode alcançar esta identidade e Dous pode nascer no homem. Há todavia um ponto capital em que Tauler modifica a doutrina de Eckhart: a identidade absoluta do ser das criaturas com o ser de Deus, a qual Eckhart insistira com tão enérgicos paradoxos. A essência divina permanecesse acima de todos os níveis, -numa altitude a que nenhuma criatura a pode alcançar; é por isso que, se o espírito humano "se perde em Deus e se afoga no mar sem fundo da sua divindade", o eu espiritual não deve dissolver-se, mas penetrar essencialmente íntegro no recinto do mistério divino. Estas atenuações expressam, todavia, exigências cujo fundamento se não descobre nas bases daquela teoria da fé que Eckhart tinha desenvolvido com lógica inflexível. Henrique Suso (Seuse) nasceu em Constança cerca de 1295 e pertenceu também à ordem dominicana. Estudou em Colónia com Mestre Eckhart, foi um pregador famoso e morreu em Um em 1366. É autor de um Livrinho da verdade, de um Livrinho da eterna sabedoria que ele mesmo traduziu para latim sob o título de Horologium sapientiae, e que constitui a sua biografia, além de numerosas Cartas. A obra de Suso é alimentada por um intenso fogo lírico, mas têm pouca originalidade especulativa. O esqueleto do seu pensamento é haurido em
Eckhart. Como Tauler, preocupa-se em estabelecer uma linha de demarcação entre o ser das criaturas e o ser de -Deus. Todas as criaturas em Deus são Deus, diz ele, e não têm nenhuma distinção fundamental entre si. Mas a forma natural de cada uma delas é distinta da essência divina e de todas as outras formas naturais 233
NOTA BIBLIOGRÁFICA § 329. Das obras de Dietrich foram editadas: Tractatzts de intellectu et inteZligibili e Tractatus de habitibu,s, por KREBS, in "Beitrãge", V, 5-6, 1906; De esse et essetia pelo mesmo KREBS, in "Revue néo-scõl.", 1911, p. 516-536; De iride, por MRSCHMIDT, in "Beltrãgè", XII, 5-6, 1914. Sobre ele ver, além da introdução de KREBS, BIRKENMAJER, in "Reitrãge", XX, 5, ,1922. § 330. Os Sermões e os Tratados em alemão de Eckhart foram editados por PFEIFFER, Deutsche Mys~ tiker des 14 Jahrhunderts, vol. 11, 1857, e tiveram depois numerosas edições parciais. Os escritos em @l@atim foram editados por DENIFLE, in "Archiv. für Litt. Gesch. des M. A.", 1866. As Quaestiones foram edItadas por GRABMANN, in "Sitzungsberichte der bauerich. Akad. d. Wiss.", 1921. Uma nova edição das obras :latinas e alemãs é a que foi publie-ada por Weiss, Kock, Christ, Benz, Stuttgart-Berlim, 1936 ss. Trad. itaI.: Prediche e trattati, Bolonha,, 1928; La nascita eterna (Antologia com textos e trad.), de FAGGIN, Florença, 1953. 235 As obras em que Eckhart defende as proposições Imputa~ heréticas foram editadas primeiro por DANILS, In "Beitrãge", XXIII, 5, 1923, depois por THÉRY, In "Archives d'hist. doctrinale et littéraire du moyen áge", 192619271 p. 229-268. DELACR0IX, Essaí sur le mysticisme spéculatif en Allemagne au XIVe siècle, Paris, 1900; KARRER, Meister Eckhart, Erfurt, 1926; LONGPRÉ, QUeStions inédites de maítre Eckhart, in "Revue néo-scol.", 1927, p. 69-85; DFLT,A VOPLE, Il misticismo 8peculativo di Maestro Eckhart nei suoi rapporti storici, Bollonha, 1930; 2.1 ediçãc, revista: E. o della fil. mistica, Roma, 1952-, CLARK, The Great Geman Mystics, Eckhart, Tauler, Suso, Oxford, 1949; KoPPER, Die Metaphysik Meister Eckharts, Saarbrücken, 1955; LOSSKY, Théologie négative et conn&ssance de Dicv, chez M. Eckhart, Paris, 1960. § 331. Os Sermões de Tauler tiveram numerosas edições antigas. No seu texto original em alemão medieval foram editadas por Vetter, Berlim, 1910. Hã deles uma tradução francesa, verificada com a tradução latina, de Noel, Paris, 1911913. O texto crítico das obras de Henrique Suso foi editado por BIHLMEYER: Deutsche Schriften, Stuttgart, 1907. A Teologia alemã foi novamente editada por PFEIFFER, Stuttgart, 1851, 5., ed., 1924. As obras de Ruysbroek foram editadas na versão latina em Colónia em 1552. Uma sua edição completa na língua original foi publicada por David, em Gand, 6 vols., 1858-1869. Para a bibliografia sobre estes autores: UEBERWEG-GEYER, p. 789-791; FAGGIN, Meister Eckhart e Ia mistica, tedesca pre-protestante, Milão, 1946; e trad. esp. Buenos Aires, 1953 (com hibl.).
236 INDICE XIV - ALBERTO MAGNO
... ... ... ... ...
7
§ 267. A obra de AJberto Magno ... 7 § 268- Vida e Obra ... ... ... ... ... 10 § 269. Filosofia e Teologia ... ... ... 12 § 270. Metafísica ... ... ... ... ... 14 § 271. A Antropologia .. . ... ... ... is Nota bibliográfica
... ... ... 21
XV - S. TOMAS DE AQUINO
... ... ... ...
§ 272. A figura de S.
de
Tomás
23
Aquino ... ... ... ... ... ... 23 § 273. Vida e Obra ... ... ... ... 26 § 274. Razão e Fé ... ... ... .. . ... 29 § 275. Teoria do conhecimento ... ... 32 § 276. Metafísica ... ... ... ... ... 39 § 277. As provas da existência de Deus 44 § 278. Teologia ... ... .. . ... ... 47 § 279. Psicologia ... ... ... ... ... 50 § 280. ntica ... ... ... ... ... ... 52 § 281. Politica ... ... ... ... ... ... 55 § 282. Estética ... ... ... ... . .. 57 Nota bibliográfica
... ... ... 58
237 XVI -0 AVERROISMO LATINO
... ... ...
61
§ 283. Oaracterísticas do Averroismo latino ... ... ... ... ... ... 61 § 284. Siger de Brabante: Vida e Obra 64 § 285. Siger: Necessidade do ser e unidade do intelecto do mundo
... ... ...
66 § 286. Siger: A eternidade
e a doutrina da dupla verdade ... ... ... 70 Nota bibliográfica
... ... ...
68 § 287. Boécio de Dácia 71
XVII-A LôGICA DO S2CULO XIII § 288. Desenvolvimento da lógica ... ... 75 § 289. Pedro Hispano 290. Raimundo Lúlio ... ... Nota bibliográfica
... ... ...
83
... ...
75
me- ,dieval ... ... ... ... ... ... 78 § 80
XVIII -A POLPMICA SOBRE O TO1@ffSMO § 291. A luta contra S. Tomás Acquasparta ... ... 88
... ...
...
85
85 § 292. Mateus de
238 § 293. A escóla de S. Boaventura ... 92 § 294. A escola Tomista ... ... ... 93 § 295. Henrique de Gand: A Metafísica 96 § 296. Henrique de Gand: A Antropologia ... ... ... ... ... ... ... ... 101 Nota bibliográfica
99 § 297. Godofredo de Fontaines
... ... ... 102
XIX-A FILOSOFIA DA NATUREZA NO SnCULO XIII
... ... ... ... ... .. . 107
§ 298. Cara cteristicas da investigação naturalista no skwulo XIII ... 107 § 299. Rogério B-acon: Vidae Obra ... 110 § 300. Bacon: A expeliência ... ... 111 § 301. Witelo ... ... ... ... ... ... 116 Nota bibliográfica
... ... ... 117
XX-JO-&O DUNS ESCOTO
... ... ... ... 119
§ 302. Doctor subtilis ... ... ... ... 119 § 303. Vida e Obras ... ... ... ... 121 § 304. Ciência e Fé ... ... ... ... 123 239 § 305. Conhecimento, intuitivo e douti-!na da substância ... 128 306. O ser e Deus ... ... ... ... 134 § 307. O Homem ... ... ... ... ... 140 Nota bibliográfica
... ...
... ... ... 146
XXI-A POLÉMICA TEGLOGICA E POLTTICA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIV 149
... ... ... ... ... ...
§308. Sinais precursGres da dissolução escolástica ... ... ... ... ... 149 §309. Durand de SaintPourçain ... 150 §310. Pedro Auréolo ... ... ... ... 153 §311. A escola escotista, ... ... ... 154 §312. Os últimos
averroistas medievais .. . ... ... ... ... ... 157 §313. Marsílio de Pádua e a Filosofia Jurídico-Política da Idade Média ... ... 166
160 Nota bibliográfica
XX11-GUILHERME DE OCCAM § 314. A liberdade de investigação ... ... ... ... ... 171
...
... ... ... 169 ... 169 § 315. Vida e Obra
240 316. A doutrina do conhedmento intuitivo ... ... ... ... ... 173 § 317. A Lógica ... ... ... ... ... 178 § 318. A dissolução do problema esco1 @ástico ... ...
... ... ... ...
182
§ 319. A critica da metafísica tradiciona,1 ... ...
... ... ... ...
186
§ 320. Prelúdios à nova fisioa ... ... 189 § 321. A Antropologia, ... ... ... ... 192 § 322. O pensamento po211tico ... ... 197 Nota bibliográfica
... ...
... 200
xxIII -o OCCAMISMO
... ... ... ... ... 203
§ 323. Características da escolãstica fina,1 ... ... .. . ... ... ...
203
§ 324. Primeiros discípulos de Occam
204
325. O naturalismo na escola occamista ... ... ... ... ... ... 208 § 326. Os "calculadores" de Oxford ... 212 § 327. A esco'a occamista. ... ... ... 217 Nota bibliográfica
... ... ... 220
241 xxIv - O MISTICISMO ALEMAo --- --- ... 223 § 328. Característica do misticismo § 329. alemão ... ... ... .. .-- 223 § 330. Mestre Dietrich ... ... ... ... 224 § 331. Mestre Eckhart ... ... 226
-A mística alemã ... ... Nota bibliográfica
232
23,5 242 Composto e Impresso para a EDITORIAL PRESENÇA na Tipografia Nunes Porto 14
História da Filosofia Quinto volume Nicola A bbagnano DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO: ÂNGELO MIGUEL ABRANTES. HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME V TRADUÇÃO DE: NUNO VALADAS ANTÓNIO RAMOS ROSA CAPA DE: J. C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970 TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa QUARTA PARTE A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO RENASCIMENTO E HUMANISMO § 332. RENASCIMENTO E HUMANISMO: O PROBLEMA HISTORIOGRáFICO Escritores, historiadores, moralistas e políticos, todos estão de acordo em que se teria verificado na Itália, a partir da segunda metade do século XIV, uma mudança radical na atitude dos homens perante o mundo e a vida. Convencidos como estão do início de uma época nova, constituindo uma ruptura radical com o mundo medieval, procuram explicar a si mesmos o significado dessa mudança. Esse significado, atribuem-no então à renascença de um espírito que já fora próprio do homem na época clássica e se perdera durante a Idade Média: um espírito de liberdade, pelo qual o homem reivindica a sua autonomia de ser racional e se reconhece como intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se resolvido a fazer de ambas o seu reino. Uma tal renascença é, no ponto de vista desses escritores, um regresso à antiguidade, uma reaquisição de capacidades e poderes que os antigos (isto é, os Gregos e
os Latinos) tinham possuído e exercitado. Este regresso porém, não consiste numa mera repetição do antigo mas numa retomada e consequente continuação daquilo que pelo mundo antigo fora realizado. Tais princípios são expressos, de uma forma ou de outra, por inúmeras figuras do Renascimento italiano; pode mesmo dizer-se que a cada nova descoberta de matéria documental nos apercebemos melhor até que ponto eles foram partilhados pelos escritores e vultos notáveis da época. Estes testemunhos aparecem-nos confirmados por imponentes fenómenos culturais: o nascimento de uma nova arte, magnífica pela variedade e pelo valor das suas manifestações, de uma nova concepção do mundo, de uma ciência que nos séculos seguintes e mesmo até ao momento presente deveria dar notáveis frutos e de uma nova maneira de compreender a história, a política e, em geral, as relações dos homens uns com os outros. Assim, tais testemunhos foram durante muito tempo tomados à letra, servindo de base ao estabelecimento dos períodos históricos da civilização ocidental. A historiografia filosófica não se limitou porém, nem poderia fazê-lo a aceitar o contraste que os próprios humanistas quiseram estabelecer entre a sua época e a Idade Média. Se é verdade que uma parte dos historiógrafos aceitou esse contraste como fio condutor para a interpreta10 ção das doutrinas e figuras que se apresentam em primeiro plano no século XV, não é menos certo que uma outra parte se deu pelo contrário ao trabalho de salientar a continuidade que, apesar de tudo, subsiste entre aquele século e os que o precederam. Tem-se já hoje como certo que não é possível, do ponto de vista da exactidão histórica, basear a interpretação do humanismo e do Renascimento na existência de uma antítese entre o "homem medieval" e o "Homem do Renascimento". Não é possível considerar o Renascimento meramente como a afirmação da imanência em contraste com a transcendência. medieval ou da irreligiosidade, do paganismo, do individualismo, do sensualismo e do cepticismo em contraposição à religiosidade, ao universalismo, ao espiritualismo e ao dogmatismo da Idade Média. Não faltam e até abundam no Renascimento motivos francamente religiosos, afirmações enérgicas de transcendência e certas retomadas de elementos cristãos e dogmáticos; muitas vezes esses motivos e elementos aparecem entrelaçados com elementos e motivos opostos, formando sistemas complexos cujo centro de gravidade e sentido completo são difíceis de determinar. Difícil é pois a compreensão das polémicas que agitam a vida cultural do Renascimento: a que, em nome da eloquência e da antiga sabedoria clássica, os humanistas travaram contra a ciência e a cultura, oposta, que os partidários da ciência travaram contra a eloquência; a que lançou platónicos contra aristotélico e a que se desenrolou no próprio seio do aristotelismo entre alexandristas e 11 averroístas. É evidente que nenhuma destas posições polémicas representa por si só o Renascimento, e por conseguinte não se pode ver neste apenas a revolta da sabedoria e da eloquência, nem a da ciência contra a eloquência, nem as reivindicações do platonismo contra o aristotelismo medieval, nem a desforra do aristotelismo científico sobre a transcendência platonizante. A primeira exigência a fazer é a de que o Renascimento seja entendido na sua totalidade pois só assim se poderá conhecer o terreno comum no qual nascem e se radicam as várias e opostas teses polémicas.
§ 333. O HUMANISMO A primeira destas polémicas, travada entre a sabedoria clássica e a ciência, é às vezes apresentada como a antítese entre humanismo e renascimento. Uma vez que a irrupção do Renascimento é marcada pelo aparecimento das novas ciências naturais, a polémica contra a ciência, iniciada por Petrarca, tem sido interpretada como constituindo a defesa da transcendência religiosa e da sabedoria revelada contra a liberdade de investigação científica. Acontece porém que a defesa da sabedoria clássica, inspirada na convicção (que é uma herança deixada pela Patrística) da existência de um perfeito acordo da mesma com a verdade revelada do cristianismo é muito mais antiga do que o Renascimento e nunca chegou a ser totalmente abandonada pela Escolástica; o humanismo seria assim a 12 força que combate e retarda o advento do verdadeiro espírito renascentista, o qual, como reivindicação da liberdade de investigação, seria par sua vez a continuação do aristotelismo e do averroísmo medievais. Humanismo e Renascimento constituiriam assim, na sua antítese, claras atitudes do espírito medieval, o que, se nos permite a compreensão da continuidade histórica que deve existir entre a Idade Média e a Moderna, afasta toda e qualquer possibilidade de entendermos a originalidade e o valor do Renascimento, ao estabelecer os pressupostos do pensamento moderno. A interpretação histórica do Renascimento, se, por um lado, vem esbater a contraposição polémica do mesmo à Idade Média, vem por outro, fazer luz sobre aqueles aspectos que caracterizam suficientemente a sua configuração doutrinal. E do entre os aspectos mais importantes, sob este ponto de vista, podemos enunciar os seguintes: 1) - a descoberta da historicidade do mundo humano; 2) - a descoberta do valor do homem e da sua natureza mundana (natural e histórica); 3) - a tolerância religiosa. 1) - O humanismo renascentista não consiste apenas no amor e no estudo da sabedoria clássica e na demonstração da sua concordância fundamental com a verdade cristã mas sim e antes de mais na vontade de reconstruir uma tal sabedoria na sua forma autêntica, procurando compreendê-la na sua realidade histórica efectiva. É com o humanismo que surge pela primeira vez a exigência do reconhecimento da dimensão histórica dos acontecimen13 tos. A Idade Média tinha ignorado por completo tal dimensão. É certo que já então se conhecia o se utilizava a cultura clássica; esta era porém assimilada à época e tornada contemporânea. Factos, figuras e doutrinas não possuíam para os escritores da Idade Média uma fisionomia bem definida, individualizada e irrepetível: o seu mérito residia apenas na validade que lhes pudesse ser reconhecida relativamente ao universo de raciocínios no qual se moviam os ditos escritores. Sob este ponto de vista eram inúteis a geografia e a cronologia como instrumentos de averiguação histórica. Todas essas figuras e doutrinas se moviam numa esfera intemporal que não era outra senão a delineada pelos interesses fundamentais da época, apresentando-se por isso como contemporâneas dessa mesma
esfera. Com o seu interesse pelo antigo, pelo antigo autêntico e não por aquele que vinha sendo transmitido através de uma tradição deformante o humanismo renascentista concebe pela primeira vez a realidade da perspectiva histórica, isto é, da separação e da contraposição do objecto histórico, relativamente ao presentehistoriográfico. Andam em polémica no Renascimento, platónicos e aristotélicos; porém, o seu interesse comum reside na descoberta do verdadeiro Platão ou do verdadeiro Aristóteles, quer dizer, da doutrina autêntica dos troncos do seu pensamento, não deformada nem disfarçada pelos "bárbaros" medievais. A exigência filosófica não é um mero aspecto formal ou acidental do humanismo, mas sim um seu elemento 14 essencial. A necessidade de descobrir os depoimentos e de os reconstituir na sua forma autêntica, estudando e cotejando os manuscritos, é acompanhada pela necessidade de neles buscar o seu conteúdo autêntico em matéria de poesia e de verdade filosófica ou religiosa. Sem investigação filológica não há propriamente humanismo pois apenas existe uma posição genérica de defesa da cultura clássica, a qual pode ser encontrada em toda e qualquer época e por conseguinte não é característica de nenhuma em particular. A defesa da eloquência clássica é a defesa da linguagem autêntica do classicismo contra a deformação sofrida durante a Idade Média e simultaneamente uma tentativa de reconstituição da sua forma original. A descoberta de falsificações documentais e de falsas autores, e a tentativa de integração de escritores e filósofos no seu próprio mundo, na sua própria distância cronológica, são os aspectos fundamentais do carácter historicista do humanismo. Não restam dúvidas de que o humanismo, no tocante a resultados, só parcial e imperfeitamente levou a cabo esta sua tarefa de restauração histórica; trata-se aliás de tarefa que nunca se esgota e se apresenta sempre em primeiro lugar aos historiógrafos. Todavia foi o humanismo quem se apercebeu do valor desta tarefa, iniciando-a e deixando-a em herança à cultura moderna. O iluminismo de setecentos constitui seguidamente um passo decisivo nesse caminho, do qual nasceu por sua vez a investigação historiográfica moderna. 15 Nunca será demasiada a importância que se der a este aspecto do Renascimento. A perspectiva historiográfica torna possível distinguir o passado do presente e por conseguinte torna também possíveis o reconhecimento da natureza diferente e própria do passado e a pesquisa das características e condições determinantes de uma tal individualidade e irrepetibilidade. Por último, dá-nos ainda a consciência da originalidade do passado em confronto connosco e a da nossa originalidade ao passado. A descoberta da perspectiva histórica está para o tempo, como a descoberta da perspectiva visual, conseguida pela pintura do Renascimento, está para o espaço: consiste na possibilidade de nos apercebermos da distância que vai de
um objecto a outro e de qualquer deles ao observador. É por conseguinte a possibilidade de os entendermos na sua real localização, na sua diferença relativamente aos demais e na sua individualidade autêntica. O significado da personalidade humana, com centro original e autónomo de organização dos vários aspectos da vida, é condicionado pela perspectiva, nesta acepção. A importância que o mundo moderno atribui à personalidade humana é o resultado de um propósito atingido pela primeira vez pelo humanismo renascentista. 2 -Quando se diz que o humanismo renascentista descobriu ou redescobriu "o valor do homem", quer com isso dizer-se que reconheceu o valor do homem como ser terrestre ou mundano, inserido no mundo da natureza e da história, capaz de nele forjar o próprio destino. O homem a quem se 16 reconhece um tal valor é um ser racional e finito, cuja integração na natureza e na sociedade não constitui condenação nem exílio mas antes um instrumento de liberdade o que por essa razão pode obter no meio da natureza, e entre os homens a sua formação e a sua felicidade. Este reconhecimento não é, indubitavelmente, mais do que a expressão filosófica ou conceitual (alcançada com atraso, como frequentemente acontece) de capacidades e poderes que o homem se arrogava havia já alguns séculos e que já exercera e continuava exercendo nas cidades que constituíram o berço do humanismo. A experiência humana em que este se apoia dera já frutos no campo da economia, da política o da arte, o que explica a conexão geográfica do humanismo com as grandes cidades e particularmente com aquelas em que (como Florença) o exercício das novas actividades político-económicas fora e continuava a ser mais livre e amadurecido. Vimos no volume anterior desta História, como já no domínio da própria Escolástica, a partir do século XI, o homem reivindica uma autonomia cada vez maior da razão, isto é, da sua iniciativa inteligente, face às instituições típicas do mundo medieval (a igreja, o império o feudalismo) que tinham tendência para apresentar como dimanados do Céu todos os bens de que ele podia dispor. No humanismo renascentista, porém, esta autonomia aparece-nos afirmada e reconhecida de modo mais radical, como capacidade do homem para planear a sua própria existência individual ligada à história e à natureza. 17 É claro que, se entender como naturalismo a tese segundo a qual para além da história e da natureza nada existe, não se poderá na verdade dizer que o humanismo e o Renascimento tenham conhecido o naturalismo; porém, se se entender como naturalismo a tese segundo a qual o homem está radicado na natureza e na sociedade e só desses dois elementos poderá obter os meios necessários à sua própria, realização, um tal naturalismo foi característico de todos os escritores da época, os quais, se bem que exaltem a "alma" do homem como sujeito relativamente aos próprios poderes da liberdade, não esquecem por isso o corpo nem aquilo que ao corpo pertence. A aversão ao ascetismo medieval, o reconhecimento do valor do prazer e a apreciação do epicurismo sob um novo prisma são as manifestações mais evidentes deste naturalismo humanista. Ligado a ele aparece-nos também o reconhecimento da existência de um vínculo que liga o homem à comunidade humana; este é um tema especialmente escolhido pelos humanistas florentinos os quais participaram
activamente na, vida política da sua cidade. Segundo este ponto de vista, exalta-se a vida activa em contraposição à especulativa e a filosofia moral em contraposição à física e à metafísica. A Política de Aristóteles é estudada com renovado interesse e o seu autor elogiado por ter reconhecido o valor do dinheiro como coisa indispensável à vida e à conservação do indivíduo e da sociedade. Reconhecia-se assim à poesia, à história, à eloquência e à filosofia um valor essencial; atendendo ao que o homem é e verdadeira 18 mente deve ser; retomava o seu inteiro valor aquele conceito de paideia ou humanitas que já no tempo de Cícero e de Varrão exprimia o ideal da formação humana como tal, ideal este que só se poderá identificar por intermédio daquelas artes próprias do homem e que o distinguem de todos os outros animais (Aulo Gellio, Noct. att., XIII, 17). 3)-Finalmente, fazem também parte do humanismo renascentista a concepção civil da religião e o conceito da tolerância religiosa. A função civil da religião encontra-se na fundamentação da correlação entre cidade celeste e cidade terrena: a cidade terrena deverá, na medida do possível, realizar a harmonia e a felicidade que são características da cidade celeste. A harmonia e a felicidade pressupõem, por sua vez, a paz religiosa. O ideal da paz religiosa é a for-ma tomada pela exigência da tolerância religiosa, no humanismo e no Renascimento. Os humanistas estão convencidos da identidade essencial entre filosofia e religião e da unidade de todas as religiões, não obstante a diversidade dos respectivos cultos. Como é óbvio, este ideal tem de ser entendido como privando a intolerância de toda e qualquer base pois na verdade a crença na possibilidade de uma "paz" no sentido em que, por exemplo, Pico della Mirandola emprega este termo, significa a renúncia aos contrastes insuperáveis e à luta entre religião e filosofia por um lado e entre as várias religiões e as várias filosofias por outro, bem como o fim do ódio teológico. Cada época vive de uma tradição e de uma herança cultural das quais fazem parte os valores 19 fundamentais que inspiram as suas atitudes. Esta tradição, porém, especialmente nas épocas de transição e renovação, nunca consiste em herança passiva ou automaticamente transmitida mas sim na escolha de uma herança. Os humanistas rejeitaram a herança medieval e escolheram a do mundo clássico como sendo aquela que achavam constituída pelos valores fundamentais que lhes eram mais caros. O que lhes interessava era fazer reviver a mencionada herança como instrumento de educação, ou seja, de formação humana e social. A primazia que concederam às chamadas letras humanas, isto é, à poesia, à retórica, à história, à moral e à política, fundava-se na convicção, igualmente herdada dos antigos, de que estas disciplinas são as únicas que educam o homem como tal, levando-o a tomar consciência das suas reais aptidões. Esta convicção poderá talvez, nos nossos dias, considerar-se demasiado estreita mas o que não pode é ser
encarada como preconceito de literatos. As letras humanas não constituíam para os humanistas campo próprio para exercícios brilhantes mas inúteis, nem ornamento fabuloso destinado à ostentação nos círculos da alta sociedade. Constituíam sim o único instrumento que conheciam, apto a formar homens ,livres, dignos e empenhados em construir um mundo justo e feliz. Não há dúvida que o humanismo (como todos os outros períodos da história do Ocidente) conheceu também o prazer do exercício literário, a elegância da investigação meramente erudita e a tentação de esconder, sob os méritos formais da linguagem, das artes ou da literatura, a carência 20 de um sério e profícuo interesse humano. É igualmente indubitável que estes sintomas de deterioração prevaleceram ou se tomaram mais evidentes no século XVII, quando a decadência política e civil da Itália tomou quase impossível o exercício daquelas actividades que os humanistas dos séculos anteriores tinham exaltado no mundo antigo. Entretanto, porém, o humanismo renascentista italiano dera já os seus frutos da Itália e mesmo nesta, o novo espírito de iniciativa e liberdade que o Renascimento tinha suscitado dava igualmente seus frutos no campo da ciência. § 334. O RENASCIMENTO Os estudos filológicos mais recentes (Hüdebrand, Walser, Burdach) estabeleceram para além de toda e qualquer dúvida a origem religiosa do termo e do conceito de renascimento. Renascença é uma segunda nascença, a nascença do homem novo ou espiritual de que falam o Evangelho segundo S. João e as Epístolas de S. Paulo (§§ 130-31). Termo e conceito mantêm-se durante toda a Idade Média com o significado de regresso do homem a Deus e à vida que lhe fugiu após a queda de Adão. O Renascimento é uma renascença do homem neste mesmo sentido de renovação; esta renovação porém não consiste já numa transcendência dos limites da natureza humana, numa existência de pura e exclusiva ligação com Deus, mas sim numa verdadeira renovação do homem na sua capacidade e nas suas 21 relações com os outros homens, com o mundo e com Deus. Uma renascença em Deus, entendida como uma nova e mais genuína acepção das relações do homem com Deus, longo de ser excluída desta renovação, é até considerada como a sua condição primordial, embora não fique assim esgotado o sentido da renascença, pois esta reporta-se ao mundo do homem na sua totalidade: à sua actividade prática, à sua arte, à sua poesia e à sua vida em sociedade. A renascença do homem não é o nascimento para uma vida diferente e super-humana, mas sim o nascimento para uma vida verdadeiramente humana porque baseada naquilo que o homem tem de mais seu: as artes, a instrução e a investigação, que fazem dele um ser diferente de todos os outros que existem na natureza e o tomam na verdade semelhante a Deus, restituindo-o assim à condição de que decaíra. O significado religioso de renascença identifica-se com o mundano: o fim último da renascença é o próprio homem. O seu instrumento essencial é o retorno aos
antigos que é também entendido como um regresso ao princípio, ou seja, como um retorno ao que dá vida e força a todas as coisas e de que depende a conservação e o aperfeiçoamento de todos os seres. O regresso ao princípio ora um conceito neoplatónico e por isso não admira que tenha sido sobretudo teorizado pelos Platónicos do Renascimento (Ficino, Pico). Foi todavia expressamente defendido também por certos filósofos naturalistas (Bruno, Campanella) e por Maquiavel; este último afirma que o regresso às origens constitui o único modo possível de reno22 vação das comunidades que só assim fugirão à decadência e à ruína pois, segundo ele, todas as origens têm em si uma corta bondade pela qual as coisas retomarão a sua vitalidade e a sua primitiva força. No neoplatonismo antigo o regresso ao princípio ora um conceito declaradamente religioso. O princípio é Deus e o regresso a Deus é o cumprimento do verdadeiro destino do homem e consiste na reprodução em sentido inverso do processo da criação pelo qual os seres se desprenderam de Deus, num voltar a subir a ladeira, numa tendência para a identificação com Deus. Este significado religioso não é estranho aos escritores do Renascimento; os Neoplatónicos, sobretudo, repetem-no e fazem-no seu. Porém o regresso às origens assume também no Renascimento um significado histórico e humano, segundo o qual o "princípio" a que se deve regressar não é Deus e sim a origem terrena do homem e do mundo humano. É sem dúvida neste sentido que Maquiavel falava do "regresso às origens" como modo de renovação das comunidades humanas. Aliás o próprio Pico, della Mirandola admite (em De ente et uno), ao lado do regresso ao princípio absoluto, isto é, a si mesmo, consistindo nisto a sua felicidade terrena. Ora este regresso do homem ao seu princípio é, substancialmente, regresso àquilo que o homem foi, ou seja ao seu longínquo, mas mais autêntico, passado, às origens da sua história. Como é óbvio, as origens da história humana estão para além do mundo clássico, para o qual olham sobretudo os escritores do Renascimento os quais, porém, sustentam que foi no mundo clássico que o exercício 23 daquelas faculdades que desde a origem asseguraram ao homem um lugar privilegiado no mundo, encontrou a sua expressão amadurecida e perfeita. Por esta razão o Renascimento pôde acrescentar ao conceito da verdade como filia temporis o da continuidade da história através da qual o homem melhora e amplia as suas faculdades e que por isso permite aos modernos verem mais longe que os antigos, tal como acontece ao anão empoleirado nos ombros do gigante. Por meio do regresso à antiguidade clássica, que é ao mesmo tempo regresso do homem a si próprio, vai tendo lentamente lugar a conquista da personalidade humana. Esta conquista é condicionada pela consciência da própria originalidade relativamente aos outros, ao mundo e a Deus. A descoberta da historicidade e a investigação filológica, fornecem ao homem o sentido da sua própria originalidade quanto aos outros, quanto àqueles mesmos exemplares da humanidade que tinham vivido no passado. O regresso da arte à natureza e a redução desta à objectividade (de onde nasceu a ciência), realçam a originalidade do homem face à própria natureza de que faz parte e contribuem deste modo
para a formação do sentido e do conceito da personalidade humana. Finalmente, a confirmação da transcendência divina pela qual o Renascimento se liga nova e directamente à especulação cristã da Idade Média, acentuando a separação entre o homem e Deus, vem acentuar ainda mais o carácter original do homem e a irredutibilidade da sua situação à de qualquer outro ser, quer seja supe24 rior, quer inferior. Resulta daqui a função mediadora. e central que é atribuída ao homem como "cópula do mundo> (Ficino, Pico, Bovilo, Pomponazzi), como nó da criação, no qual encontram a sua unidade e o seu equilíbrio os vários aspectos da mesma. Daqui resultam também a afirmação da liberdade humana e as discussões em torno das relações desta com a ordem providencial do mundo. Resultam ainda as análises da fortuna ou do acaso, aos quais se não pretende sacrificar o poder decisivo da vontade que se afirma dominadora de ambos. Resulta finalmente o, reconhecimento da origem humana dos estados, fruto da habilidade e da perspicácia dos políticos. § 335. RENASCIMENTO: AS ORIGENS DA CIÊNCIA EXPERIMENTAL Com o reconhecimento do carácter essencial e determinante das relações entre o homem e a natureza, o humanismo estabeleceu a premissa fundamental da investigação experimental moderna. Tem-se insistido muito, nestes últimos tempos, na importância da contribuição dada pelos Escolásticos de Trezentos à formação da ciência moderna, através da crítica de teorias aristotélicas fundamentais, como a do movimento dos astros e projécteis (§325). Confrontando esta contribuição com a hostilidade que os humanistas manifestam contra o físico Aristóteles e, em geral, contra as especulações físicas e metafísicas dos Escolásticos, somos 25 levados a concluir, que o desenvolvimento da ciência moderna está mais ligado ao aristotelismo tradicional do que ao humanismo renascentista. Vimos já, porém, como a aversão ao físico Aristóteles e a preferência dada ao Aristóteles moralista constituía para os humanistas um motivo polémico que tinha por objectivo acentuar a importância que pretendiam atribuir àqueles ramos da ciência do espírito, considerados indispensáveis à direcção da vida activa do homem. Este motivo polémico não implicava a aversão à natureza ou à sua investigação e observação directas que já a arte do Renascimento tão estreitamente ligada ao movimento humanístico considerava como seu fundamento, guia e ideal. Acontece que a investigação científica, tal como se revelou nas invenções de Leonardo e na obra de Galileu ora uma investigação baseada na observação e na experiência. E a observação e a experiência não são coisas que possam limitar-se a ser anunciadas e programadas têm que se empreender e levar efectivamente a cabo. Não podem porém empreender-se nem levar-se a cabo se não se apoiarem num interesse vital, interesse este que só pode ser constituído pela convicção de que o
homem se encontra firmemente implantado no mundo da natureza e de que as suas faculdades cognoscitivas mais eficazes e adequadas, são precisamente aquelas que derivam das suas relações com a natureza. Quando Galileu punha, ao lado dos raciocínios matemáticos, a "experiência, sensata" como a única fonte restante do conhecimento, estava claramente a indicar a mudança de direcção que 26 existe na base do empenhamento experimental da ciência moderna. Já antes dele, Bernardino Telésio, embora sem se empenhar em trabalhos de investigação, afirmara em De rerum natura juxta propria principia que os princípios próprios do mundo natural e os únicos capazes de o explicar, são os princípios sensíveis, enunciando a equação entre "o que a própria natureza revela" e "o que os sentidos dão a perceber". O recurso à experiência sensível, interrogando-a e obrigando-a a falar é o único caminho que, segundo esta opinião, conduz à explicação da natureza pela natureza, ou seja, aquele que não lança mão de princípios estranhos à própria natureza. Esta autonomia do mundo natural, que é pressuposto de toda e qualquer investigação experimental, é um aspecto da atitude humanística, ao procurar entender cada coisa nos seus elementos constitutivos e no seu valor intrínseco. Assirn, e de uma forma geral pode dizer-se que o Renascimento criou as condições necessárias ao desenvolvimento de uma investigação experimental da natureza, estabelecendo designadamente: 1) - Que o homem não é um hóspede provisório da natureza mas sim ele próprio um ser natural, cuja pátria é a natureza; 2) -- Que, o homem como ser natural, possui tanto o -interesse como a capacidade de conhecer a natureza; 3) - Que a natureza só pode ser interrogada e compreendida por meio dos instrumentos que ela própria fornece ao homem. 27 Trata-se aqui, obviamente, de condições gerais mas não determinantes e que portanto não poJem considerar-se a origem de todos os caracteres de que a ciência moderna se apresenta composta nos seus primórdios. Estes caracteres determinam por sua vez outros factores, estes porém, ainda e sobretudo pertencentes ao humanismo renascentista. O primeiro consiste precisamente no já citado "regresso ao antigo" que é a tendência peculiar do humanismo. O regresso ao antigo produziu a revivescência de doutrinas e textos desprezados durante séculos, como por exemplo as doutrinas heliocêntricas dos Pitagóricos, as obras de Arquimedes, dos geógrafos, dos astrónomos e dos médicos da antiguidade. Os velhos textos forneceram com frequência a inspiração ou o motivo para novas descobertas, como aconteceu sobretudo com Arquimedes, no qual amiúde se inspirou Galileu. Por outro lado, o aristotelismo renascentista, ao mesmo tempo que dava origem a uma nova e mais livre leitura de Aristóteles, ia elaborando eficazmente, em polémica com as concepções teológico-r-liracu-listas, o conceito de uma ordem natural imutável e necessária, baseada na série causal dos eventos. Este conceito passou a constituir o esquema geral da investigação científica. A magia, posta em evidência pelo Renascimento, uma vez aceite e difundida, contribui para determinar o carácter activo e operativo da ciência
moderna, o qual consiste no domínio e na sujeição das forças naturais com o fim de as colocar ao serviço do homem. Por último, a ciência derivava ainda do platonismo e 28 do pitagorismo antigos o seu outro pressuposto fundamental, sobre o qual insistem igualmente Leonardo, Copérnico e Galileu: a natureza apresenta-se escrita em caracteres matemáticos e a sua linguagem própria é a da matemática. A todos estes factores que, com importância diversa e de modos diferentes, condicionam os primórdios da ciência experimental na Europa, o Renascimento está, directa ou indirectamente, ligado neste ou naquele dos seus aspectos essenciais. Entre estes factores podem e devem certamente incluir-se as críticas que os Escolásticos de Trezentos (Occam, Buridan, Alberto da Saxónia, Nicolau Oresmo) tinham formulado contra alguns dos pontos fundamentais da física aristotélica. Essas críticas provêm (é preciso não o esquecer) da orientação empírica que Occam fizera prevalecer na última Escolástica, quando, pela reconhecida impossibilidade de interpretar e defender as verdades teológicas, a filosofia ficara disponível para outros fins e interesses. O valor de tais críticas deriva portanto, não do facto de se situarem adentro do aristotelismo tradicional mas antes do de serem antiaristotélicas e de constituírem a primeira manifestação daquela revolta do aristotelismo que, na segunda metade do mesmo século e no século seguinte deu origem ao humanismo. Constituem portanto, não a união do aristotelismo com a ciência, mas, antes pelo contrário, a primeira ruptura da frente aristotélica tradicional. Ao aristotelismo de Trezentos (como a boa parte do renascentismo) faltava todavia aquele reco29 nhecimento da naturalidade do homem e dos seus meios de conhecimento, o qual é condição indispensável de todo e qualquer estudo experimental da natureza. Sob este aspecto o aristotelismo não podia fornecer à ciência qualquer impulso ou razão de vida. Só a revolução humanística pôde realizar a mudança radical de perspectiva da qual nasceu a investigação científica e a nova concepção do mundo. Esta concepção, para a qual contribuíram igualmente platónicos como Cusano e Ficino, filósofos naturalistas como Telésio e Bruno e cientistas como Copérnico e Galileu, é (,não o esqueçamos) precisamente a antítese da cone-opção aristotélica. O mundo não é um conjunto finito e concluído, mas antes um todo infinito e aberto em todas as direcções. A sua ordem não é final mas sim causal; não consiste na perfeição do todo e das partes e sim na concatenação necessária dos eventos. O homem não é o principal ser visado pela teleologia do universo e cujo destino estaria pois confiado a essa teleologia, mas sim um ser natural entre os outros, que tem a mais a faculdade de planear e realizar o próprio destino. O conhecimento humano do mundo não é um sistema fixo e concluído mas sim o resultado de tentativas sempre renovadas e que devem ser continuamente submetidas a verificação. O instrumento desse conhecimento não é uma razão supermundana e infalível mas um conjunto de poderes naturais falíveis e corrigíveis. São estes os traços gerais da concepção que ainda permanece na base da nossa ciência e da nossa civilização. 30
§ 336. RENASCIMENTO: DANTE O primeiro anúncio da renascença aparece com Dante Alighieri. Toda a sua cultura é medieval e escolástica. O seu pensamento filosófico oscila entre S. Tomá s e Sigieri de Brabante-ao qual, apesar da condenação eclesiástica, exaltou no Paraíso-e o seu espírito alimenta-se dos textos e das discussões que imperavam nas escolas. A sua obra poética, porém, vive um clima novo e anuncia os aspectos fundamentais do Renascimento. Já a poesia autobiográfica da Vida Nova não é mais do que a análise e expressão poética da renovação sofrida pelo poeta, sob o impulso espiritualizante do amor. Precisamente por causa desta renovação nasce o poeta para a sua arte e torna-se capaz de escrever poesia segundo o "doce estilo novo", por conseguinte não através duma fria elaboração doutrinal, mas por inspiração do amor que o leva a falar como lhe dita o seu íntimo. (Purg., 24, 49 e segs.). Na Comédia, porém, a ideia de renovação alarga-se e aprofunda-se, abrangendo a própria pessoa do poeta e o seu destino individual, a renovação de tudo que o rodeia, bem como da religião e da arte, da igreja e do estado. Aparentemente, a Comédia é a visão profética da viagem de Dante através dos três reinos transmundanos, viagem pela qual o poeta, após ter conhecido os abismos da culpa e do pecado se afasta penosamente do mal, subindo a montanha do Purgatório até atingir no cume desta o Paraíso ,terrestre e consequentemente o esquecimento do pecado e a renovação total da sua alma, simboli31 zados pela acção purificadora das águas do Lete e do Eunoé. Toma-se assim digno de iniciar a última parte da viagem pelas esferas celestes, até ao limiar do mistério divino. Mas o fim da ~ dantesca não é o de descrever a preparação da alma de Dante para a vida extra-terrena mas sim o de promover a renovação do mundo ao qual pertence o homem, Dante. O próprio Dante afirma na carta em que dedicou o Paraíso a Cangrande della Scala, que a finalidade do poema é a de "apartar os que vivem nesta vida do estado de miséria, conduzindo-os a um estado de felicidade" (Ep., XHI, 15). A viagem transmundana de Dante é a de um homem vivo que deve regressar para junto dos vivos e aí revelar a sua visão. É precisamente da revelação da sua visão e por conseguinte da participação na mesma de todos os homens de boa vontade, os quais poderão, servindo-se do magistério artístico do poeta, refazer com ele a viagem e com ele se renovar, que Dante espera a renascença do mundo seu contemporâneo. Esta renascença por ele esperada, é um regresso às origens. "0 supremo desejo de todas as coisas", escreve em Convívio (IV, 12, 14), "e o primeiro que da natureza resulta, é o de regressar à sua origem". A igreja deverá renovar-se, regressando à sua primitiva austeridade, segundo a admoestação e o exemplo dos seus dois grandes reformadores, S. Domingos e S. Francisco. O estado deverá regressar à paz, à liberdade e à justiça que eram o
seu apanágio na ora de Augusto, renovando-se assim no regresso à concepção imperial de Roma. 32 Mas precisamente porque a intenção de Dante visa o outro mundo para depois regressar a este e promover a sua renascença, a obra do poeta é rica de uma realidade humana, na qual os símbolos e as alegorias acham a carne, e o sangue que lhes dão vida. A natureza da arte de Dante é determinada pelo propósito de renovação, da qual o poeta a considera instrumento. Precisamente porque essa renovação deve tirar os homens da sua miséria e conduzi-los à renascença num mundo renovado, é que os homens figuram no poema dantesco não como símbolos ou esquemas conceituais (ainda que às vezes ali apareçam com esta função) mas antes com a sua realidade humana, os seus ~os, as suas paixões e a sua aspiração ao divino. É impossível separar no poema de Dante o conteúdo doutrinal as alegorias e os símbolos, da forma poética, na qual aqueles encontram a própria realidade artística. A distinção entre forma e conteúdo impossibilita o entendimento da arte de Dante a qual possui a mesma unidade da personalidade histórica do seu autor. As doutrinas, alegorias e símbolos fazem parte integrante da concepção dantesca de renascença, como dela fazem igualmente parte integrante os homens que deverão vivê-la e fazê-la sua. Dante não se teria preocupado em revestir de carne e ossos os seus símbolos se não o tivesse MOVido uni interesse fundamental, como é o de fazer participar os homens e o seu mundo, da renascença por ele próprio sofrida, na sua viagem transmundana. Quanto maior for a corpulência humana e passional das sombras que pululam nos fossos 33 ;infernais, padecem os tormentos purificadores ou sorriem envoltas na luz do paraíso, tanto mais evidente )resultará o apelo à renovação e à exigência de renascença para as quais propende o espírito de Dante. No ocaso da Idade Média, Dante vem afirmar, com todo o poder da sua arte, a exigência daquela renovação que deveria ser a palavra de ordem da renascença. § 337. RENASCIMENTO: PETRARCA Se Dante se encontra ainda doutrinalmente ligado à Idade Média, Francisco Petrarca (20 de Julho de 1304-18 de Julho de 1374) já se liberta mesmo doutrinalmente daquele mundo e dá início pleno ao humanismo. A polémica que conduziu contra o averroísmo em De sui ipsius et nzultorum ignorantia (1337-38), assinala precisamente essa libertação. Tal polémica é conduzida em nome da velha sabedoria romano-cristão, representada por Cícero e Santo Agostinho, que Petrarca considera fundamentalmente de acordo entre si. A difusão do averroísmo, com o crescente interesse que suscitava pela investigação naturalista, parece a Petrarca desviar perigosamente os homens daquelas artes liberais que são as únicas a poder dar a sabedoria necessária para se alcançar a paz espiritual nesta vida e a eterna beatitude na outra. Quase todos o& conhecimentos que os ditos investigadores naturalistas acabam por atingir, vêm a revelar-se falsos à luz da experiência; "mas ainda que fossem verdadeiros", acrescenta Petrarca, "de
nada serviriam para 34 a vida beata". A sabedoria clássica e cristã, contraposta por Petrarca à ciência averroísta, é a baseada na meditação interior pela qual se esclarece a si própria e se forma a personalidade do homem como indivíduo. O processo autobiográfico de Santo Agostinho, continuamente debruçado sobre si próprio e para quem não existe problema que não seja o seu próprio e não existe doutrina que não responda a uma sua própria exigência pessoal (§ 156), é o que se apresenta mais próximo do seu espírito e a ele pensa recorrer continuamente. Este processo é o adoptado por si na obra (composta entro 1347 e 1353) De contemptu mundi à qual chamou também Secretum e que em alguns manuscritos se apresenta com o título "0 conflito secreto das suas preocupações" (De secreto conflictu curarum suarum). É um diálogo entre Petrarca e Agostinho, durante o qual o primeiro reporta continuamente ao exemplo e aos ensinamentos do segundo tolas as suas exigências de ordem espiritual. Esta obra porém, contém além disso a confissão do conflito interior do poeta, da sua íntima debilidade. Confessase ele vítima daquela acédia (ou acídia) que era a moléstia medieval dos conventos e consistia rum doloroso tédio da w;da. A clareza que traz às suas contradições íntimas é sintoma que atingiu o sentido da pers-onalidade o qual emerge precisamente dessa clareza. Numa carta famosa (Ep. famil., IV, 1), ao descrever a sua ascensão ao Monte Ventoso, Petrarca narra como, ao chegar ao cume, em vez de se deter na contemplação da majestade do espectáculo que se lhe oferecia, abriu as Confissões 35 de Santo Agostinho que frequentemente o acompanhavam nas suas peregrinações e leu "Os homens contemplam as altas montanhas, as enormes ondas do mar, o largo curso dos rios, o vasto círculo do oceano e os caminhos das estrelasmas esquecem-se de si próprios e a si próprios se encaram sem admiração". Põe então a advertência de Santo Agostinho Noli foras ire em relação com o Scito te ipsum de Sócrates e reconhece que toda a sabedoria antiga tende à concentração do homem em si próprio, distraindo-o do mundo exterior. A sua vontade, todavia, continua dividida entre a admiração perante, a natureza e a advertência da sabedoria, no seu espírito lutam o chamamento do mundo e o apelo à concentração interior, luta esta que é característica da sua personalidade. É esta mesma luta que o leva, por um lado, a afastar-se do mundo, buscando a solidão em Valchiusa, e por outro a procurar honras e glória, juntamente com a coroação em Campidoglio. No seu espírito combatem o homem medieval, acorrentado pelo desejo exacerbado da eterna salvação, o qual exige a maior concentração interior, e o homem moderno, enamorado de Laura, amando a natureza e desejando a glória
e a opulência. Está porém consciente da contradiÇão existente entre as duas exigências e é precisamente nessa consciência que reside a novidade da sua personalidade. Procurou ele libertar-se dessa contradição através da meditação moral em De reniediis utriusque fortunae. Mas mesmo aí, a contradição aparece reconhecida como a lei da vida. "Tudo acontece", diz36 * nos, ",por força da contradição. Aquilo a que se (lá o nome de mudança é na verdade luta". E a maior e mais áspera luta, é a que se trava no próprio homem. "Que cada um se interrogue e responda a si próprio para assim se dar conta até que ponto a sua vontade é intimamente contrariada por diversas e contrárias paixões e impelida, ora para cá, ora para lá, por estímulos vários e opostos. Jamais se consume ou se apresenta homogénea, mas sim interiormente discorde e dilacerada". Donde o pessimismo que domina as meditações de Petrarca e o leva a afirmar acerca da vida: "A cegueira e o olvido marcam o seu início, o cansaço a sua continuação, a dor o seu termo e o erro todas as coisas". Este pessimismo, porém, não impediu Petrarca de esperar e anunciar a renascença de uma era de paz. Na canção ao Espírito gentil (quer tenha ou não sido dedicada a Cola di Rienzo), manifesta a esperança de que Roma seja novamente chamada "à sua antiga viagem" e reencontre o seu antigo esplendor "<.A minha Roma voltará a ser bela"). E noutro passo, não falta a espectativa de uni retorno à época áurea do mundo, ou seja à era da paz e da justiça: De almas belas e amigas da virtude Se vai enchendo o mundo; nele veremos depois Tudo áureo e cheio de obras antigas. A época áurea consiste pois num regresso das "obras antigas", quer dizer, do costume e das artes 37 antigas. E Petrarca contribui para a renascença do antigo com a sua obra de poeta e de historiador: África, o poema latino do qual esperava a máxima glória, é uma exaltação da virtude romana que jamais se considerou separada da justiça e da benevolência; De viris illustribus é uma tentativa de reconstrução das grandes figuras históricas da antiguidade, para nelas patentear a sua profunda e essencià humanitas e idêntico fim têm os Reruin memorandarum cujo significado o próprio Petrarca esclarece, ao dizer: "Estudarei os exércitos romanos, perlustrarei o fórum e, quer nas legiões armadas, quer no tumulto do fórum encontrarei espíritos pensativos e dados à contemplação". § 338. HUMANISTAS ITALIANOS: SALUTATI, BRUNI, RAIMONDI, FILELFO Na esteira de Petrarca seguem os humanistas italianos. Coluccio Salutati (1331-1406) que foi durante 30 anos escrivão da senhoria de Florença, apresenta certos traços de semelhança com Petrarca. Coluccio considera estéreis, perante a morte, as consolações aduzidas pelos filósofos. A morte é um mal, diz nas Epistolae, embora não seja um mal moral e sim natural, não uma culpa e sim uma pena. É um mal para quem morro e um má para os parentes e amigos; e é o pior dos males pois consiste na perda do ser. Mesmo que a alma sobreviva, o homem, sendo unidade de corpo e alma é 38
anulado pela morte que é assim para ele o mal pior. Por conseguinte, o facto de o homem nada poder fazer perante a morte, aumenta e agrava a sua dor em vez de a diminuir. Em face da morte não há pois outra consolação além da fé: só Deus pode conceder ao homem a graça de o fazer suportar a ideia- Aqui, portanto, se por um lado a morte é despojada de todos os aspectos consoladores e benéficos de que era revestida pela sabedoria antiga e cristã, por outro recorre-se à pura graça de Deus para obter a designação no inevitável. É uma atitude de intima contradição, já muito remota da medieval. Igualmente remota da concepção medieval é a exaltação que Coluccio faz da vida activa relativamente à contemplativa. Quem se perdesse na contemplação de Deus a ponto de já não se comover com a infelicidade do próximo, de não se afligir com a morte dos parentes e de não vibrar com a ruína da pátria, não seria um homem mas antes um tronco ou uma pedra. Por isso, a verdadeira sabedoria não consiste no puro entendimento mas, é antes e sobretudo prudência, ou seja razão mentora da vida. E num seu tratado, intitulado De nobilitate legum et medicinae, Coluccio afirma que de boa vontade, contanto que lhe deixem a ciência das coisas humanas, abandonará todas as outras verdades aos, que exaltam a especulação pura. Põe também as leis, que dizem precisamente respeito aos homens e às suas relações mútuas, acima da medicina e das ciências naturais em geral, as quais só se ocupam de coisas materiais. Finalmente, é também característica de 39 Coluccio a afirmação da liberdade humana que julga conciliável. com a ordem infalível do mundo criado por Deus (De fato, fortinta et castí. Discípulo de Salutati foi Leonardo Bruni, nascido por volta de 1374 e falecido em 1444. Estudou grego com Emanuel Crisolora, o qual, tendo chegado a Florença em 1397, deu aos estudos humanísticos, a possibilidade de se porem em contacto directo com o mundo grego na sua língua original. Bruni traduziu do gre.p para o latim numerosos diálogos platónicos e ainda a Ética Nicoinachea, a Económica e a Política, de Aristóteles. Escreveu uma Vita Ciceronis e uma Vida de Dante, considerando xealizado nestas duas figuras o ideal do homem douto e sábio que, longe de permanecer alheio à vida política, nela participa activamente. Na Vita Arístotelis, e em Dialogi ad Petrum Histrum onde se discute o valor comparativo de antigos e modernos bem como em Isagogicon moralis disciplinae, a sua preocupação constante é a de demonstrar como as doutrinas morais das mais importantes escolas filosóficas da antiguidade (platonismo, aristotelismo, epicurismo, estoicismo) concordam fundamentalmente entre si. E é justamente às doutrinas morais que Bruni dá o máximo relevo, uma vez que as disciplinas meramente especulativas lhe parecem menos úteis para a vida. " A filosofia moral", diz no Isagogicon "é, por assim dizer, inteiramente nossa. Por isso aqueles que a descuram, dedicando-se antes à física, parecem de certo modo ocupar-se de assuntos estranhos, desprezando os pró-
40 prios". Estas palavras de um admirador entusiástico e conhecedor directo dos Gregos que tão frequentemente afirmavam a superioridade da vida especulativa, são significativas quanto à tendência dos humanistas para a exaltação da vida activa o da participação do homem nos negócios públicos com vista ao bem comum. Também é característica a convicção de Bruni, segundo a qual os filósofos antigos nada ensinaram que fosse diferente da verdade cristã. "Mas se quisesse referir tudo quanto h nos filósofos de concordante com as nossas verdades, creio que suscitaria a admiração de muitos... Ensina Paulo algo mais do que Platão?" A sabedoria antiga, quer cristã, quer pagã, aparecia aos olhos de Leonardo Bruni como um todo harmónico; por conseguinte o regresso à sabedoria clássica justificava-se como uma renascença daquela vida moral que os filósofos antigos haviam conhecido e o cristianismo fizera sua, espalhando-a depois pelo inundo. Os humanistas empenham-se cada vez mais decididamente em considerar e apreciar os aspectos propriamente humanos da vida, ou seja, o que diz respeito ao homem na sua essência terrestre e activa, ao homem que, antes de atingir a felicidade transmundana, procura conseguir na terra a que for humanamente possível. Esta compreensão humana do homem, este reconhecimento sem condenação da sua tendência para a felicidade terrena, antes lhe admitindo a legitimidade e o valor, determina uma nova valorização do prazer e por conseguinte 41 uma nova apreciação do epicurismo, doutrina para a qual o prazer ora o objectivo da vida. Tom-se agora uma concepção correcta do epicurismo e sabe-se que para Epicuro o prazer não andava separado da virtude mas era, pelo contrário, por ela condicionado. Por esse motivo Epicuro é exaltado como aquele que enunciou uma verdade fundamental da sabedoria prática do homem. A exaltação de Epicuro encontra-se numa carta de Cosmo Raimondi (cremonês, falecido em 1435) para Ambrósio Tignosi. "Epicuro", diz Raimondi, "considerou o prazer como o supremo bem porque perscrutou profundamente as forças da natureza e compreendeu que nascemos e somos formados a partir da natureza, de tal modo que não há nada mais congruente do que possuir íntegros e sãos todos os membros do corpo, conservando-os nesse estado, isentos de todo e qualquer mal espiritual ou corporal". A própria virtude se apresenta subordinada ao prazer, na medida em que não é procurada senão porque permite viver prazenteiramente, evitando os prazeres que não convém buscar e buscando os que convêm. Idêntica defesa do prazer é frequentemente encontrada nas cartas de Francisco Filelfo (13981481), o qual insiste na identidade entre a virtude e o prazer e declara que lhe parece "não apenas tolo, mas completamente louco e fátuo aquele que pretende negar o gozo do prazer mais alto, da felicidade e da beatitude, ao homem virtuoso". Este aspecto do humanismo atinge porém a sua expressão máxima com Lourenço Valla. 42 § 339. LOURENÇO VALLA
Nascido em Roma em 1407, Lourenço Valla vagueou por várias cidades italianas e viveu durante muito tempo na corto de Nápoles-, veio a falecer em Roma em 1457. A sua obra mais famosa é o De voluptate, um diálogo em três partes, no qual se defende a tese de que o prazer é o único bem para o homem e se apresenta uma concepção optimista da natureza, que contrasta não só com o estoicismo ao qual aparece polemicamente oposta, mas até mesmo com o ascetismo cristão. O prazer é, segundo Valla, o único fim de toda a actividade humana. As leis que governam as cidades foram elaboradas com um propósito de utilidade, a qual gera o prazer, e todos os governos visam o mesmo fim. As artes liberais, como por exemplo, as que têm por objectivo satisfazer as exigências necessárias à vida, a medicina, a jurisprudência, a poesia e a oratória, têm todas como fim o prazer, ou pelo menos a utilidade, que é o que conduz ao prazer (11, 39). A virtude não é senão a escolha dos prazeres: procederá bem aquele que preferir a maior à menor vantagem e a menor à maior desvantageM (11, 40). Até mesmo o cristão só age pelo prazer que todavia para ele é, não o terreno e sim o coles- -. Porém e diversamente dos restantes glorificadores do prazer, Lourenço Valla não considera este como idêntico à virtude. Não é verdade que só o justo seja feL-z, pois, pelo contrário, a vida nos 43 mostra frequentemente que assim não é. Na realidade ao cristão apresenta-se a seguinte alternativa: ou se inchna para o prazer terreno e renuncia ao eterno ou se inclina para este e renuncia àquele (111, 9). Mas quem espera os bens eternos não deve gemer, nem sofrer ou acusar Deus porque lhe faltam os terrenos. A renúncia do cristão deve ser confiante e jovial, para ser verdadeiramente sincera e total (111, 11). Para Lourenço Valla é a aceitação desta condição que é própria do homem no mundo, consistindo na consciência da alternativa que esta condição apresenta. "Compreendo", diz-nos, "de que te lamentas: de não teres nascido imortal, como se a natureza estivesse em dívida para contigo. Se ela não pode dar-te mais, e é certo que nem mesmo os pais podem dar tudo a seus filhos, não lhe estás reconhecido pelo que recebeste? Preferirias, certamente, não estar exposto ao risco quotidiano de feridas, mordeduras, venenos e contágios. Mas quem assim fosse, seria imortal e igual à natureza e a Deus, ora isto não devemos pedi-lo nem é possível à natureza concedê-lo". Glorificador da língua latina, na qual via o sinal da persistente soberania espiritual da Roma antiga após a ruína da sua soberania política (Elegantiarum linguae latinae libri, 1444), Valla provou com argumentos filológicos num opúsculo famoso, intitulado De falso credita et
emenlita ConstantÚri donatione declamatio (1440), ser falsa a doação de Constantino, ficando deste modo demonstrada a nuli44 dade jurídica da pretensão do papado à supremacia política universal. Paralelamente, combateu em De professione religiosorum (1442) a pretensão da Igreja à exclusividade da garantia das autênticas relações do homem com Deus nas suas ordens religiosas. ValI, a não reconhece qualquer privilégio à vida monacal. A vida de Cristo não é custodiada apenas por aqueles que pertencem às ordens religiosas mas sim por todos quantos, dentro ou fora da sociedade dos clérigos, dedicam a Deus as suas vidas. A verdadeira religiosidade depende unicamente da atitude do indivíduo, que livremente entra em ligação com Deus e não da adesão a uma obrigação formal de carácter colectivo. Afirma-se aqui a liberdade da vida religiosa contra a sua regulamentação medieval. E na verdade a exigência de liberdade, da liberdade do indivíduo como tal, está na base de toda a posição de Valla, que a faz valer em nome da própria religião e contra as ordens religiosas e também em nome da investigação filosófica, contra o espírito de reverência pela tradição escolástica. As suas obras De libero arbítrio e Dialecticae disputationes (1439) são dirigidas precisamente contra o predomínio de aristotelismo, que considera como a negação ou limitação da liberdade de investigação. No prefácio desta última obra e após ter afirmado que depois de Pitágoras, mais ninguém teve o nome de sábio mas apenas o de filósofo e que sempre os filósofos tiveram a liberdade de dizer ousadamente o que pensavam, acrescenta: "Tanto menos suportáveis são os peripatéticos modernos que negam aos 45 sequazes de toda e qualquer ~Ia a liberdade de discordarem de Aristóteles, como se este fosse sophos e não filósofo e como se ninguém o houvesse discutido antes". E depois de haver aludido à variedade de opiniões das escolas filosóficas que se seguiram a Aristóteles e à linguagem bárbara de Avicena e Averróis, apoda de "homens supersticiosos, insensatos e indignos de si mesmos, porque se privam culposamente da faculdade de procurar a verdade", aqueles aristotélicos que induzem os próprios discípulos a jurar que não mais discuidarão Aristóteles. A mesma afirmação de liberdade se encontra em De libero arbítrio. Aqui porém, trata-se antes de uma lição pela qual Deus condena ou salva os homens, ultrapassando assim os limites consentidos à investigação humana. Nem os homens, nem os anjos conhecem o motivo pelo qual a vontade divina torna certos homens empedernidos no mal e tem piedade de alguns outros. Valla nega todavia que se trate de uma contradição entre a liberdade humana e a presciência divina: assim como o conhecimento de um acontecimento presente não determina esse evento, assim também o conhecimento futuro não determina necessariamente que o mesmo sobrevenha. A presciência divina não é causa dos acontecimentos futuros, os quais permanecem por isso contingentes. A solução de Valla para este problema é a escolástica
mas o problema em si é livremente colocado e expresso mediante um mito: Apolo representa a presciência e Júpiter a omnipotência. 46 § 340. HUMANISTAS ITALIANOS: FAZIO, MANETTI, ALBERTI, PALMIERI, SACCHI, NIZOLIO Entre os temas preferidos pelos humanistas italianos, dois há que sobressaem relativamente a todos os outros: a dignidade do homem e o elogio da vida activa. O primeiro aparece-nos tratado num escrito de Bartolomeu Fazio (nascido em Espézia e falecido em 1457) intitulado De excellentia et prestantia hominis, insignificante do ponto de vista especulativo, e também num escrito análogo de Giannozzo Manetti (13961459) intitulado De dignitate et excellentia hominis. Nesta obra, parte-se da afirmação do carácter divino do homem para se atingir a formulação da sua tarefa, expressa na fórmula agere et intelligere. Agir e compreender significam para Giannozzo Manetti "saber e poder governar e dirigir o mundo, o qual foi feito para o homem". O reconhecimento da dignidade humana é ao mesmo tempo reconhecimento da missão de domínio que o homem deve desempenhar no mundo, consistindo num regnum hominis no sentido baconiano. Contrastando com o optimismo ingénuo destas exaltações, apresenta-se-nos o tom realista e pessimista que domina as obras de Leão Battista Alberti (1404-1472), nas quais a exigência de afirmar no mundo o poderio do homem anda ligada ao reconhecimento das dificuldades e perigos da sua efectivação. Opondo-se à atribuição de culpas à sorte, por parte dos homens, Alberti diznos na introdução 47 do seu tratado Da família que não se pode atribuir à sorte a função de conservar a virtude, os costumes ou as leis dos homens nem a culpa das vicissitudes humanas. "A sorte não pode, nem, ao contrário do que julgam alguns idiotas, é assim tão fácil, vencer quem não quer ser vencido. A sorte só subjuga quem a ela se submetem. Desta conclusão, porém, apenas surge para o homem a obrigação de agir de modo mais enérgico. "Por conseguinte, pareceme poder-se acreditar que o homem nasceu, certamente não para apodrecer jazendo, mas para viver agindo". Advertência semelhante se encontra na obra Da vida civil de Mateus Palmieri (1406-75), onde se afirma a superioridade da vida consumida ao serviço do bem público sobre a vida solitária e devotada somente à meditação. Este tema é igualmente tratado em De óptimo cive de Bartolomeu Sacchi (chamado o Platina, nascido em 1421 e falecido em Roma em 1481), para quem o homem que se refugia na solidão é um egoísta que se esquiva ao cumprimento da obrigação de trabalhar pelo bem dos seus semelhantes, A polémica contra a Escolástica, que já fora defendida energicamente por Lourenço Valla, é retomada por Mário Nizolio, nascido em Bersello, perto de Módena em 1498 (ou 88) e falecido em 1576. A sua obra principal intitula-se Antibarbarus philosophicus sive de veris principiis et vera ratione philosophandi contra pseudophilosophos (1553), a
qual é dirigida contra os aristotélicos que falsearam ou entenderam mal Aristóteles e contra o próprio Aristóteles, que juntamente com algumas verdades, 48 ensinou enorme quantidade de erros. As verdades contêm-se nos livros de ética e política, na retórica e nos tratados sobre os animais; os erros, sobretudo na lógica e na metafísica. É portanto necessário ler Aristóteles com espírito crítico e saber distinguir nele o verdadeiro do falso. E Nizolio enumera então as condições essenciais a todo e qualquer progresso rios estudos filosóficos: um bom conhecimento das línguas latina e grega, o conhecimento das regras gramaticais e da retórica, a leitura assídua dos autores gregos e latinos, a liberdade de apreciação e a clareza de expressão (Antibarb., 1, 1). Para combater Aristóteles, Nizolio, adopta o ponto de vista de Ockham. A realidade é sempre individual. O universal não é mais do que o acto de compreensão (comprehensio) do intelecto pelo qual se abarcam todas as coisas particulares que pertencem ao mesmo ,género (111, 7). A realidade universal de que falam D os Escolásticos é destituída de sentido. O universal não passa de um nome puro que designa um conjunto de coisas particulares. As ciências mais elevadas são a filosofia e a retórica. Constituem ambas um todo ú nico, tal como a alma e o corpo, correspondendo a filosofia à alma e a retórica ao corpo; ,nenhuma delas pode passar sem a outra e apenas se distinguem pelas respectivas tarefas pois-. enquanto a filosofia tem como objectivos o conhecimento da verdade e a rectidão das acções, a retórica tem como fins a rectidão do pensamento e da fala, no tocante às coisas naturais e civis (111, 3). A filosofia divide-se por sua vez em física e política; da primeira faz parte a t"ogia e da segunda, a ética. 49 A doutrina de Nizolio constitui o último ataque à Escolástica levado a cabo com as próprias armas da Escolástica. O ockhamismo é por ela utilizado para defender a sabedoria humanística e a liberdade de investigação, da persistente reverência pela tradição aristotélica § 341. BOVELO Em França, o iniciador dos estudos humanísticos mediante o regresso ao aristotelismo original foi Jaime Faber (Jacques Lefèvre, 1455-1537). O discípulo de Faber, Carlos Bovi,.Uus (Charles Bouillé, 1470 ou 75-1553, aproximadamente) é uma das personalidades mais notáveis da filosofia humanista, cujos temas apreende e expõe com grande liberdade especulativa. A sua obra mais significativa é De sapiente, no qual reconhece ao homem aquela posição central de árbitro e síntese de todo o mundo natural que igualmente lhe reconheciam Cusano (§§349 e segs.), Ficino (§§354 e scgs.), Pico (§§357 e segs.) e Pomponazzi "§§362 e segs.). "Ao homem", escreve, "nada é próprio nem peculiar mas são-lhe comuns todas as coisas próprias dos outros seres. Tudo o que é próprio deste ou daquele ser ou é mesmo próprio dos seres individualmente considerados, pertence também ao homem.
O homem transfere para si a natureza de todas as coisas, reflecte tudo e imita a natureza inteira. Ao atingir e absorver tudo quanto está na natureza, torna-se ele próprio tudo isso. Por conseguinte ele não é este ou aquele ser particular nem lhe pertence 50 esta ou aquela essência, mas é simultaneamente todas as coisas". Por causa desta sua posição singular o homem encontra-se no cume de toda a realidade. Tom esta quatro graus, segundo Bovilo: o ser, a vida, o sentir e o entender. O mais baixo destes graus, o ser, pertence a todas as coisas: às pedras, às plantas, aos animais e ao homem. Porém, só pelo entender é que o ser atinge a consciência de si próprio e assim conclui o termina o ciclo do seu desenvolvimento. "Definimos a razão como a força pela qual a mão natureza volta a si própria e pela qual se completa o ciclo de toda a natureza, sendo esta restituída a si própria" (De sap., 5). Até aqui parece que nos encontramos em presença do habitual ideário neoplatónico, segundo o qual a obra do homem é o acabamento racional e místico do mundo. Na verdade, porém, as afirmações de Borvilo têm outro valor e tendem a definir a tarefa do homem e a alternativa do seu destino. O homem pode com efeito escolher livremente entre passar por todos aqueles graus, alcançando na inteligência o completamento do ser, ou parar num deles. Se sucumbir ao vício da inércia e à moleza medieval, degradar-se-á até ao ponto de não ser mais que existência nua, sem forma e por conseguinte sem consciência, se, pelo contrário, se elevar até ao grau mais alto, elevará consigo o próprio mundo no seu total acabamento (De sap., 1-2). Só por esta segunda via o homem se tomará num microcosmo, num minor mundus, levando consigo, na sua verdade o no seu valor autêntico, o macrocosmo, o maior mundus. Da decisão do homem, 51 dependerão, ao mesmo tempo, a realização completa e final do próprio homem e do mundo. o homem deve formar-se como tal, com virtude(, e arte, e, ao formar-se homem, dará ao mesmo tempo ao mundo a sua forma final porque lhe confere a perfeição última: a inteligência de si mesmo. "Esta", diz Bovilo (De sap., 24) "é a realização consumada (consumatio) do homem e consiste na passagem de homem substancial a homem racional, de homem natural a homem adquirido, de homem simples a homem composto, perfeito e sábio". A natureza humana multiplica-se com esta passagem e de mónada transforma-se em díade, de homo em homohomo. O verdadeiro homem é aquele que se desdobrou no sábio, ou seja, na consciência que adquiriu de si próprio e do mundo. Mas a díade traz consigo a tríade. Entre o homem como puro ser natural e o homem que se forma por si com arte, devem existir um nexo e uma concordância que são paz e amor, a ligar os dois termos. A mónada e a díade combinam-se entre si, formando o tríade homohomoh~ que é a última perfeição do homem (De sap., 22). Mas o homem como tal, nada tem de comum com os outros seres da natureza; coloca-se numa esfera à parte para onde tudo converge por obra sua, esfera essa situada no polo oposto àquele em que se encontram as outras coisas do mundo.
O homem é o centro de todas as coisas, o espelho no qual estas se reflectem, não na sua realidade material e sim na sua realidade verdadeira e ideal. "Seja qual for o lugar em que colocares todos os 52 seres do mundo, no lugar oposto deverás colocar o homem para que possa ser o espelho de tudo". Alude-se aqui claramente pela primeira vez à subjectividade que é a função do homem como tal e por conseguinte à polarização pela qual o mundo acaba por se estruturar entre objectividade e subjectividade, entre natureza e homem. Reconhece-se ainda à subjectividade humana um poder de iniciativa, que é essencial ao próprio mundo, uma vez que o transfigura e o conduz a uma ordem e a unia unidade que ele por si só não poderia atingir. "Todas as coisas eram plenamente actuais e cada Lima delas permanecia constante no seu grau, no seu lugar e na sua ordem. Jamais o homem poderia ter nascido das diversas actualidades, das diferentes espécies, da diversidade entre as coisas e luzes do mundo, que por si sós não poderiam nem dever:'am misturar-se, confundir-se nem harmonizar-sc. Portanto, foi precisamente no exterior das diferenças e propriedades de todas as coisas, no polo oposto àquele em que todas se encontram, no nó vital do mundo, no centro de tudo, que o homem se formou, como uma criatura. pública, preenchendo tudo quanto ficara vazio na natureza com forças, sombras, espécies e razões". (De sap., 26). Não poderia ter-se exprimido melhor, na linguagem neoplatonizante e escolástica, a originalidade do homem como sujeito, faca à objectividade da natureza. Há um mito que exprime, segundo Bovilo, esta autoformação do homem que se duplica no tocante à sua naturalidade e se torna sábio: é o mito de Prometeu. Assim como Prometeu penetrou na morada divina para 13 ali roubar o fogo e dá-lo aos homens, também o sábio que abandona o mundo sensível e penetra no espaço celestial, leva ao homem o lume da sabedoria, deste modo o fortalecendo e reanimando. Com efeito, o homem, por virtude deste lume "conquista-se a si próprio, possui-se e permanece seu, ao passo que o ignorante se conserva devedor à natureza, oprimido pelo homem essencial e sem pertencer jamais a si próprio". (De sap., 8). Prometeu simboliza portanto o homem que por si se forma e se possui. Bovilo exprimiu com grande energia e profundidade o resultado para o qual tende toda a especulação humanista. § 342. humANISTAS FRANCESES, ESPANHóIS E ALEMÃES A Jaime Lefèvre junta-se em França Podro Ramus (de Ia Ramée, 1515-1572), autor de numerosas obras nas quais aparecem novamente expostas a física, a metafísica e a lógica aristotélicas. Nas suas Dialecticae institutiones (1543), procura formular uma lógica ou uma dialéctica diferente da aristotélica e mais conforme ao funcionamento natural do pensamento. D3fine a dialéctica como doetrina disserendi, ou seja, ciência que ensina a arte de discutir, a qual deve acompanhar, no seu método e nas suas divisões, o comportamento natural do homem quando discute consigo próprio e com os outros acerca de um qualquer objecto. Este comportamento natural é o seguinte: primeiramente 54 medita em silêncio para encontrar o argumento que resolverá determinada questão; depois exprime a ideia assim formulada e elaborada racionalmente, de
tal modo que se preste a responder a toda e qualquer objecção que lhe seja dirigida. De acordo com este processo natural de pensar, a dialéctica na sua primeira parte será o guia e a base para a solução das questões; na segunda parte será o guia para a expressão desta solução de maneira a poder responder às possíveis perguntas. Por outras palavras, os momentos da dialéctica serão dois: a elaboração mental de um problema e a sua expressão verbal apta a enfrentar a discussão. Ramus constrói sobre estas bases uma exposição minuciosa e pedante que conheceu grande êxito nas escolas lógicas da época mas que tem hoje reduzido interesse. O que há nele de importante é apenas a exigência de que parte: a recondução da forma lógica do discurso à sua forma natural e o consequente amoldar da dialéctica ao método próprio de qualquer homem que pense e raciocine. Nisto se revela o espírito humanístico da sua dialéctica que assina-Ia também, embora a seu modo, um regresso à natureza e ao homem. Exigência semelhante se encontra no espanhol Luís Vives, nascido em Valência em 1492 e falecido em 1540, o qual foi amigo de Tomás Moro (§ 367) e autor, entre outras, de uma obra enciclopédica intitulada De disciplinis (1531). Víves parte também da crítica à lógica aristotélica e opõe-se sobretudo à reverência incondicional que esta lógica desperta ainda nas várias escolas, reverência esta, na qual 55 Vives vê a causa da decadência das ciências. É necessário, segundo Vives, regressar, não à doutrina de Aristóteles, agora já inadequada, mas ao exemplo de Aristóteles; os verdadeiros discípulos de Aristóteles não são os que juram pela sua palavra, mas sim os que interrogam a natureza como ele próprio fez. Só através da investigação experimental se, pode chegar ao conhecimento da natureza; são inúteis as subtilezas aristotélicas. Nos três livros da obra De anima et vita (1539), Vives enuncia uma exigência empírica: é preciso investigar, não o que é a alma em si, mas sim as propriedades da alma e o modo pelo qual estas operam. Popérri, Vives só parcialmente se conserva fiel a este princípio, que deveria assinalar a passagem da psicologia metafísica dos antigos à psicologia empírica, pelo que os seus resultados são escassamente significativos. É todavia fácil reconhecer em toda a sua obraque frequentemente cai no formalismo lógico - a exigência fundamental do humanismo, que é a de um renascimento da ciência mediante o regresso -não já à letra das doutrinas antigas mas ao espírito (quer dizer, aos modos e métodos) em que foram formuladas. Na Alemanha, quem primeiro enunciou esta exigência foi Rudolfo Agrícola (1442-85), autor de uma obra intitulada De inventione dialectica, na qual assume relativamente à dialéctica a mesma posição de Lourenço Valla. Agrícola combate a reverência inconsiderada por Aristóteles e afirma a necessidade de joeirar livremente as suas doutrinas. Considera ele como indispensáveis o estudo e o conhecimento 56 dos escritores antigos para se poderem reconduzir as ciências à sua forma legítima e o fim do seu livro é o de fornecer, deduzindo-os precisamente
desses escritores, os meios pelos quais se pode chegar ao conhecimento das coisas e à expressão do seu carácter essencial. Agrícola resolve em sentido nominalista. o problema dos universais. Certas coisas apresentam propriedades idênticas e essas propriedades comuns constituem precisamente o universal. O universal não é portanto outra coisa senão a semelhança que as coisas apresentam nas suas propriedades essenciais. Porém a importância de Agrícola reside, mais do que nestas doutrinas e na análise por si feita das formas retóricas do discurso, em ter sido o primeiro que na Alemanha contribuiu para aquele regresso ao classicismo que constitui a mensagem do humanismo.. § 343. MONTAIGNE O regresso do homem a si mesmo, que constitui a essência do movimento de renovação renascentista, encontra a sua expressão culminante na obra de Montaigne. Miguel de Montaigne nasceu em 23 de Fevereiro de 1533 no castelo de Montaigne no Périgord, em França. Educado pelo pai com um método que excluía todo e qualquer constrangimento ou severidade, aprendeu o latim como língua materna através de um perceptor que não sabia francês. Estudou direito e tornou-se conselheiro no parla57 mento de Bordéus (1557). o seu primeiro trabalho literário foi a tradução de uma obra do teólogo cataIão Raimundo Sabunde (falecido em Toulouse em 1436) intitulada Liber creaturarwn ou Theologia naturalis, livro de apologética que procurava demonstrar a verdade da fé católica mais pelo estudo das criaturas e do homem, do que com o apoio dos textos sagrados e dos doutores da igreja. Em 1571 retirou-se para o seu castelo com o fim de se dedicar aos seus estudos. Os primeiros frutos do seu trabalho (Ensaios, 1, 220, 32-38, 40-48) são simples compilações de factos e sentenças, obtidas a partir de diversos escritores antigos e modernos e nas quais não surge ainda a personalidade do autor. Seguidamente, porém, essa mesma personalidade começa a ser o verdadeiro objecto central da meditação de Montaigne, a qual assume o carácter de "pintura do eu" (1, 26, 31; H, 7, 10, 17, 37). Naquele mesmo ano, deixou a França e viajou pela Suíça, Alemanha e Itália onde, em Roma, passou o inverno de 1580-81. Tendo sido nomeado prefeito de Bordéus, regressou à pátria, mas as preocupações do cargo não o impediram de se dedicar ao estudo e à meditação. Em 1582 publicou uma segunda edição dos Ensaios enriquecida com algumas adendas, publicou outra em 1588, contendo numerosas adendas aos primeiros dois livros e ainda um terceiro livro. Neste último, a pintura do eu constituia a parte predominante. Montaigne trabalhava numa nova edição da sua obra, com ulteriores aperfeiçoamentos quando em 13 de Setembro de 1592 faleceu no seu castelo. O título da obra de Montaigne indica 58 claramente o carácter da mesma. Ensaios quer dizer experiências (e não tentativas); Montaigne pretende descobrir as experiências humanas expressas nas obras de autores antigos e modernos e pô-las à prova, relacionando-as com as suas próprias experiências. O olhar continuamente virado para si próprio, a meditação interior não já religiosa mas laica e filosófica e incidindo portanto não apenas sobre o próprio eu espiritual, mas também sobre todos os assuntos e coisas humanas e símultâneamente o diálogo permanente com os
outros e o contínuo confronto entre as experiências próprias e as alheias, constituem os traços essenciais da obra de Montaigne. É verdade que esta não é uma filosofia no sentido de conter um complexo sistemático de doutrinas; é porém um verdadeiro e autêntico filosofar no sentido moderno da palavra, podendo afirmar-se que Descartes e Pascal são os seus mais directos descendentes. Face a esta posição, perdem valor as caracterizações sobre as quais habitualmente se insiste com o fim de determinar a situação histórica do seu pensamento. Na realidade, ele passou de uma orientação estóica a uma orientação céptica para acabar por encontrar o seu equilíbrio numa posição socrática; só esta última constitui a substância da sua pessoa e do seu pensamento. O estoicismo e o epicurismo são, para ele, não já doutrinas às quaiis deva permanecer ligado, mas sim experiências através das quais atinge o equilíbrio que lhe é próprio. A partir da experiência do estoicismo, chega ao reconhecimento do estado de dependência em que o homem se encontra relativamente às 59 coisas; a partir da experiência do cepticismo, atinge o meio de se libertar, tanto quanto possível, desta dependência e de reconduzir as coisas ao seu justo valor. Assim, por exemplo, põe em evidência a preocupação que liga o homem ao futuro. "Não estamos nunca junto de nós mas sempre para além de nós mesmos. O temor, o desejo e a esperança lançam-nos para o futuro e tiram-nos o sentimento e a consideração do que é, levando-nos, a interessarmo-nos; pelo que será, quer dizer, quando já não existirmos" (1, 3, p. 14). Agarra-se de novo à ideia estóica segundo a qual os homens são atormentados pelas opiniões que têm das coisas e não pelas coisas em si, para promover um alívio da "Miserável. condição humana", reconhecendo aos homens a faculdade de desprezar aquelas opiniões ou de as aproveitar no sentido do bem (1, 14, p. 63). Por outro lado, aproveita para o mesmo fim a experiência céptica, a qual deve curar os homens da presunção, que é a sua enfermidade natural original, e conduzi-los a uma aceitação lúcida e serena da sua condição. É este o espírito que anima o mais longo e difundido capitulo dos Ensaios (1, 12), a Apologia de Raimundo Sabunde. Montaigno faz da condição humana uma diagnose amarga e impiedosa que será depois apropriada por Pascal. "Que pode imaginarse de maIs ridículo do que esta criatura miserável e mesquinha que nem sequer é senhora de si própria, e se encontra exposta às ofensas provenientes de todas as coisas, dizendo-se dona e senhora do universo, quando nem ao menos possui a faculdade de conhecer a minima parte deste, quanto mais 60 de dirigi-la?" O homem deve curar-se da presunção de que a natureza parece tê-lo dotado com o fim de o consolar da sua miserável condição (Ib., p. 227). Montaigne em-prega expressões e frases que reaparecerão depois em Pascal: "Um antigo a quem se reprovava o fazer profissão de filosofia, sem que todavia lhe ligasse grande importância, respondeu que isso é que era realmente filosofar" (Ib., p. 262). O mesmo dizia Pascal: "Brincar com a filosofia é filosofar realmente" (Pensées, 4). Por outro lado, este cepticismo leva Montaigne a avaliar adequadamente tudo quanto está verdadeiramente na posse do homem, a começar pelo conhecimento sensível. "A ciência começa e resolve-se nos sentidos. Não seríamos mais do que pedras se não soubéssemos o que são o som, o cheiro, a luz, o sabor, a medida, o peso, a moleza, a dureza, a aspereza, a cor, a lisura, a largueza e a profundidade. São estas as
raízes e os princípios de todo o edifício da nossa ciência" (Essais, 1, 12, p. 379). "0 privilégio dos sentidos é o de constituírem o extremo limite da nossa experiência; nada há para além deles que nos possa servir para os descobrirmos e nenhum sentido pode descobrir outro". (Ib., p. 380). Ao conhecimento sensível falta porém um critério seguro para se poderem distinguir as aparências falsas das verdadeiras. Não temos maneira de controlar as percepções sensíveis, mediante o confronto com as coisas que as determinam em nós; por conseguinte não podemos verificar a sua verdade, assim como quem não conhece Sócrates, não poderá dizer se o seu retrato se lhe assemelha. "Não comunicamos 61 com o ser porque toda a natureza humana se encontra sempre entre o nascimento e a morte e não alcança de si própria mais que uma aparência obscura e sombria e uma débil e incerta opinião. E se por acaso o nosso pensamento se obstinar em agarrar o seu ser, isso será o mesmo que pretender agarrar água na mão fechada: quanto mais se apertar e comprimir aquilo que por sua natureza se escapa por todos os lados, mais será perdido por aquele que queria apertar e agarram (Ib., p. 399). Estoicismo e cepticismo foram as experiências de que Montaigne se serviu para aclarar a condição humana. Mas o estudo do homem determina-se melhor nele, como estudo daquele homem-indivíduo que ele próprio é. Os seus últimos Ensaios assumem sempre um carácter autobiográfico pelo qual o filosofar se toma num contínuo experimentar-se a si próprio, numa contínua explicação do eu a si próprio. Já na introdução da obra Montaigne dissera: "Sou eu próprio o assunto do meu livro"; no terceiro livro acaba por definir claramente o seu filosofar como uma incessante experiência de si próprio. "Se a minha alma pudesse criar raízes, eu não me experimentaria; resolver-me-ia (je ne m "essaierois pas, je me resoudrois). FJa porém está sempre em aprendizagem e em prova" (111, 2, p. 29). Montaigne possui um sentido sempre atento da condição problemática da existência; para ele, a existência é um problema sempre aberto e uma experiência contínua que não poderá nunca encerrar-se definitivamente e deve por conseguinte explicar-se incessantemente a si própria. Não importa 62 para obter esta explicação o considerar-se uma vida humilde e sem brilho. "A filosofia moral pode ter por objecto com igual êxito, tanto uma vida popular e privada como uma outra de mais rica substância, uma vez que cada homem traz em si, inteira, a forma da condição humana". Por esse motivo, não pretende comunicar com os outros por meio de qualquer sinal especial e estranho mas unicamente através do seu ser universal, "como Miguel de Montaigne e não como gramático, poeta ou jurisconsulto" (Ib.). E declara contentar-se consigo próprio, não com a consciência de um anjo ou de um cavalo mas sim com a consciência de um homem. "Quando falo, estou a investigar, a ignorar e a reportar-me decididamente às opiniões comuns o
,legítimas. Não ensino absolutamente nada; apenas conto". (Ib., p. 30). Este filosofar autobiográfico que, ao dirigir-se à humanidade do próprio ou, compreende e abarca igualmente a singularidade do indivíduo e a universalidade máxima da condição humana, é o fruto mais maduro do humanismo e assinala o início da filosofia moderna. Descartes, no Discurso do método, procederá da mesma forma para chegar ao princípio fundamental do saber científico: fará a história dos seus estudos, das suas dúvidas, da sua investigação. Desta atitude nasce aquela aceitação serena da condição humana, igualmente afastada da exaltação e do desânimo, que é característica de Montaigne. Ã afirmação de Séneca (Quaest. nat., proem): "Coisa vil e abjecta é o homem se não se elevar acima da humanidade", responde ele: "Aqui está uma divisa 63 espiritual e um propósito tão inútil quanto, absurdo-, é simultaneamente impossível e monstruoso fechar um punho que seja maior do que a mão ou dar um passo maior do que o permitido pela perna. Nem o homem pode elevar-se acima de si próprio e da humanidade, pois não pode ver senão com os seus olhos, nem aquilo que se escapa à sua apreensão". O homem não pode nem deve procurar ser senão homem. Montaigne acrescenta, na verdade, que poderá consegui-lo com a ajuda divina; é porém evidente que os efeitos da graça sobrenatural estão fora das possibilidades e limites humanos. O homem deve aceitar-se tal como é. Esta aceitação é o tema de um dos Ensaios mais notáveis, o que trata do arrependimento (111, 2), do qual se extraíram os passos ora citados. Aí, Montaigne, embora dando valor positivo àquele arrependimento moral que consiste em empenharmo-nos sèriamente na reforma de nós próprios, exclui e condena o arrependimento que consiste numa reprovação da condição humana por parte do homem. "Posso desejar, diz-nos, "ser diferente; posso condenar e desgostar-me da minha forma universal e suplicar a Deus a minha reforma radical e o perdão da minha natural fraqueza. A isto não posso porém chamar arrependimento, tal como não posso chamar arrependimento ao desgosto por não ser anjo ou Catão. As minhas acções regulam-se e conformam-se por aquilo que sou e pela minha condição. Melhor, não posso fazer. O arrependimento não respeita propriamente às coisas que escapam ao nosso poder como não respeita também à aspiração. Imagino inúmeras naturezas màs ilus64 MONTAIGNE tres e moderadas do que a minha; com isso porém, não melhoro as minhas faculdades, tal como o meu braço o o meu espirito não se tomam vigorosos só porque concebo outros que o são". (Ib., p. 40). Fantasiar uma condição melhor e mais elevada do que aquela em que o homem se encontra efectivamente e cultivar a aspiração àquela e o desprezo por esta, é atitude inútil e perniciosa. Por outro lado, a morte é elemento constitutivo da condição humana: "Não morres por estares doente; morres porque estás vivo" (HI, 13). "A morte mistura-se e confunde-se por toda a parte com a nossa vida", não tanto por consumir o nosso organismo como porque a sua necessidade inelutável se impõe ao nosso espírito. E "quem receia sofrer, sofre já por aquilo que receia"
(Ib.). Por isso, quem ensinasse os homens a morrer, ensiná-los-ia a viver; este ensinamento porém, exclui o modo da morte. Logo que o homem sabe que a sua condição é perdível, dispõe-se a perdê-la sem desgosto. A ideia da morte torna a vida mais estimável. "Eu gozo-a duas vezes mais do que os outros", diz Montaigne (HI, 13) "porque a medida do gozo depende em maior ou menor grau do empenho que nisso pomos... À medida que a posse da vida se vai tornando mais breve, necessário é que eu a torne mais profunda e plena". A ideia da morte suscita pois o desejo de viver, de viver mais profunda e plenamente. O humanismo atinge assim em Montaigne o seu equilíbrio. O homem já não se exalta e antes se acoita tal como é. Se a primeira consciência da sua subjectividade individual e histórica, levou o homem, 65 no Renascimento, à exaltação da sua situação privilegiada, o aprofundamento desta consciência, no seu contínuo experimentar-se e pôr-se à prova, conduziu-o ao reconhecimento dos seus limites e à lúcida aceitação de si próprio. Montaigne representa precisamente esta segunda fase do humanismo renascentista e é justamente através desta segundo fase que o humanismo se transforma na filosofia moderna, abrindo caminho a Descartes e a Pascal. § 344. CHARRON, SANCHEZ, LIPSIO Directamente ligado a Montaigne, está Pie= Charron que foi seu amigo e nele encontrou a inspiração fundamental do seu pensamento. Nascido em Paris em 1541, estudou direito e fez-se advogado; porém, sob o impulso de uma vocação vinda mais tarde mudou para a teologia e fez-se padre. Viveu durante muito tempo em Bordéus e aí conheceu Montaigne, ao qual se ligou por amizade. Foi cónego em Condom e faleceu em Paris em 1603. Escreveu dois livros. O primeiro, intitulado Três verdades contra todos os ateus, idólatras, judeus, maometanos, heréticos e cismáticos (1593), constitui uma apologia da igreja católica. As três verdades são as seguintes: há um Deus e uma só religião verdadeira: a religião cristã é a única verdadeira; só a igreja católica é verdadeira. O outro livro, intitulado Da sabedoria está em nítida contradição com o primeiro: com efeito, consiste na apologia de uma sabedoria profana e baseada no conheci66 mento do homem. A contradição residia na própria natureza de Charron e era por ele procurada e teorizada. "É preciso", diz-nos (De la sagesse, 11, 2, 13), "que saibamos disfinguirmo-nos e separarmo-nos a nós próprios dos nossos cargos públicos; cada um de nós desempenha dois papéis e faz duas personagens, uma alheia e aparente e a outra própria e essencial. É necessário saber distinguir a pele da camisa: o homem hábil poderá desempenhar bem o seu cargo mas não deixará por isso de julgar devidamente a estupidez, o vício e a astúcia que aí se aninham... É necessário servirmo-nos e valermo-nos do mundo tal como se nos depara, considerando-o porém como coisa estranha a nós próprios e sabendo gozar-nos de nós próprios à parte, através da comunicação com um bom confidente ou pelo menos connosco próprios". Aceitar e teorizar uma contradição deste tipo, significa já assumir uma posição céptica fundamental; ora esta é precisa- ,mente a posição de Charron. Nesta posição, porém, tal como no cepticismo de Montaigne, está implícita a convicção de que a vida humana é uma experiência contínua que o
homem faz consigo próprio e com os outros. E na verdade, diz-nos Charron (Ib., 1, 1, 1): "A verdadeira ciência e o verdadeiro estudo do homem consistem no próprio homem". Em primeiro lugar, está consciente dos limites do homem e é precisamente por causa destes limites que não considera que a alma do homem seja absolutamente incorpórea. Tudo quanto é finito é, como tal, determinado por limites espaciais e por essa razão não se apresenta destituído de corporei67 dado. A alma, uma vez criada, é corpórea, embora a sua corporeidade seja invisível e incorruptível (Ib., 1, 8, 4). Em virtude dos seus limites, o homem não pode alcançar a verdade. Se bom que o homem exista para procurar a verdade, o possuí-la só a Deus pertence. Mesmo que alguma verdade chegue às mãos do homem, terá sido por mero acaso; ele não saberá segurá-la nem distingui-la da mentira (Ib., 1, 15, 11). Por esse motivo o homem está destinado a viver em permanente dúvida, sendo a filosofia céptica a única verdadeira (Ib., 11, 2, 5). Por conseguinte o princípio da sabedoria consiste no reconhecimento destes Emites, resultando daí "a universal e plena liberdade do espírito". É preciso que nos libertemos de todos os pressupostos dogmáticos e nos tomemos independentes de lodo e qualquer preconceito. Nisto consiste a verdadeira sabedoria (preud'homie), uma sabedoria livro e franca, forte e generosa, risonha e jovial, igual, uniforme e constante", uma sabedoria "cujo principal incentivo reside na lei da natureza, que é como quem diz na equidade e na razão universais que **briffiam e resplandecem em cada um de nós". Quem age segundo a razão natural, age ao mesmo tempo segundo Deus, de onde irradia a razão, e segundo o próprio que age, do qual a razão constitui o elemento mais rico e mais nobre. (Ib., 11, 3, 4). Esta sabedoria natural é independente da ,religião. É necessário que o homem seja honesto, não por causa do paraíso ou do inferno, mas por obediência à ordem que lhe vem da razão. A religião deve aprovar, autorizar e rematar o comando 68 da razão. A religião é posterior à sabedoria (Ib., II, 5, 29). De natureza diferente é o cepticismo do Francisco Sanchos 1, nascido por volta de 1552 em Braga, Portugal, mas formado em França, tendo sido professor de medicina em MontípeU, ier e Toulouse, onde faleceu em 1632. É autor de uma obra intitulada Quod ?úhiI seitur, terminada em 1576 mas só publicada em 1581. Propõe-se Sanches, adoptar a dúvida como processo de pesquisa de um método verdadeiro e de um saber objectivo mas acaba por concluir que o homem não possui nem um nem outro. ]Parte da crítica ao procedimento si-logístico da doutrina escolástica que pretenderia tirar conclusões necessárias com base em princípios universais e obrigar à concordância sobre coisas de que não se tem um conhecimento directo. Quem não percebe porém, por si próprio, determinada coisa, não poderá ser forçado a percebê-la por nenhuma demonstração. A verdadeira ciência, se existisse, seria livre e própria de uma mente livre: seria a "consciência perfeita do objecto". Mas esta ciência não foi dada aos homens. Nem as coisas se dei=
agarrar, nem os homens têm meio de as agarrar, 1 N. T. -Não estão certas as datas citadas por Abbagnano. Este filósofo e médico de formação francesa e italiana, nasceu em 1550 e foi baptizado em Braga em 25-7-1551, na igreja paroquial de S. João do Souto. Faleceu em 1622. n duvidosa a sua nacionalidade real. 69 nem poderiam alguma vez agarrá-las completamente. A conclusão é-nos indicada pelo próprio título da obra: nil scitur. Porém esta conclusão não pode ser tirada nem mantida dogmaticamente; o homem deve atingi-Ia e tomar consciência dela, através de uma pesquisa incessante, indagando por todos os lados os limites do conhecimento e dando-se conta da debilidade intrínseca deste último. O cepticismo não constitui portanto para Sanches uma renúncia à investigação mas antes um estíríiulo à pesquisa e à **crítica metódica de todo o saber. Em Charron e Sanches, o regresso ao cepticismo aparece-nos como meio de renovação do homem e da sua ciência. Para o mesmo fim se dirige o regresso ao estoicismo sustentado por Justo Lípsio, nascido em Over-Issche, perto de Bruxelas, em 1547 e falecido em 1606. Pretendeu Lípsio fazer ressurgir o estoicismo antigo, sobretudo o romano, após tê-lo descoberto nas suas fontes originais, especialmente em Séneca. As suas obras principais são Manoductio ad philosophiam stoicam, Physiologia stoícorum e De constantia. O tema central da sua reelaboração é constituído pela doutrina da providência. Da providência divina depende a ordem das coisas, segundo Lípsio; e desta ordem depende a fatalidade imutável de todas as coisas do mundo, ou seja, o destino. Este, portanto, não é senão a acção necessária da ordem cósmica dependente da providência divina (De const., I, 17-19). Ora é precisamente nesta doutrina que Lípsio considera existir a força de renovação do estoicismo. Com efeito, é da aceitação do destino 70 cósmico que deriva a virtude fundamental do homem, ou seja, a perseverança que não se deixa demover por qualquer vicis&itude exterior e que apesar de todas as lutas e dificuldades, dá ao homem o equilíbrio e a paz interior (Ib., 1, 20). Quem tiver conseguido atingir a sabedoria estóica, saberá que em todos os casos as coisas acontecem como devem acontecer e por conseguinte só resta ao homem aceitá-las como são. NOTA BIBLIOGRáFICA § 332. Em H. BARO'N, Renaissance in Italien encontra-se uma resenha dos estudos sobre o renascimento (Archiv. für Kulturgeschichte, 1927 e 1931). Cfr. também o axtigo respectivo de F. Chabod na Enc. Ital. e todas as obras a seguir indicadas, em especial as de Garin. ] É fundamental a obra de JACOB BURCKHARDT, A civilização do Renascimento na Itália, trad. Valbusa, Florença, 1876. São notáveis os trabalhos de G. DILTHEY, aparecidos sob o título A anãUse do homem e a intuição da natureza, entre 1891 e 1900 (trad. ital. Sanna, Veneza, 1926), bem como os de G. VOICT, Die Wiederbelebung des klassischen Altertums, Berlim, 3.1 ediç., 1893. A concepção idealista-que consiste principalmente no desenvolvimento das teses de Burckh<%rdt-é exposta
na obra de G. GENTILE, Giordano Bruno e o pensamento da Renascença, Florença, 1920 (novamente publicado sob o título O pensamento italiano da Renascença, Florença, 1940). Elementos fundamentais, contidos em E. CASSIRER, O indivíduo e o cosmos na filosofia do Renascimento, trad. ital. Federíci, Florença, 1935 e em M. BARON, The crisís of the Early Italian Renaissance, 2 vols., Princeton, 1955. A mais equilibrada e 71 autorizada interpretação do Renascimento, baseada numa documentação vastíssima, é a de E. GARIN a quã1 se contém principalmente em O humanismo italiano, Bari, 1952; Idade Média e Renascimento, Bari, 1954; A educação na Europa (1400-1600), Bari, 1957; A cultura filosófica do Renascimento italiano, Florença, 1961. Considera-se implicita a referência a e~ obras, a propósito de todos os autores italianos mencionados no presente capítúlo. § 333. Sobre a intevpretação que insiste na continuidade entre o humanismo renascentista e a Idade Média, efr. G. TOFFANIN, História do humanismo, Roma, 1933, 1939 2 e os autores mencionados no § 335. § 334. A origem religiosa, do conceito de renascimento foi sustentada pela primeira vez por R. HILDEBRAND, Zur sogenannten Renaissance, em "Zeitschrift für den deutschen Unterricht", Leipzig, 1892, vol. VI, p. 377 e segs. (e depois em Beitrãge zum deutschen Unterricht, Leipzig, 1897, p. 279 e segs.). Aquela origem fica definitivamente demonstrada após os estudos fundamentais de K. BURDACH, Reforma, renascimento, humanismo, trad. ital. Cantimori, Florença, 1935. Para toda e qualquer investigação no mesmo sentido deverão oonsultar-se as referências contidas nesta obra. Importante é taxnbém WALSER, Studien sur Weltanschauung der Renaissance, BasiWela, 1920. § 335. A conexão entre as origens da ciência e o aristotelismo medieval foi pela primeira vez salientada por P. Duimm, Études sur Léonard de Vinci. 1906-13 e seguidamente desenvolvida por numerosos autores, entre os quais efr. espeoiahnente M. CLAGETT, The Science of Mechanics in the MiddIe Ages, 1959 e John Randall Jr., The Schoot of Padua and the Emergence, of Modern Science, 1961. § 336. Sobre o significado de Dante relativamente ao Renascimento: BURDACH, ob cit., passim. 72 Sobre as características medievais do pensamento de Dante: B. NARDI, Dante e a cultura medieval, Bar!, 1942. No mundo de Dante, Roma, 1944. ; 337. Sobre a posição de Petrarca no Renascimento: DILTHEY, ob. cit., vol. I, p. 25 e segs.; Burdach, ob cit., passim; Oassirer, ob. cit., passim. § 338. Sobre os filõsofos do século italiano de Quatrocentos, ver a antologia de E. GARIN, Filósofos italianos de Quatrocentos, Florença, 1942, que contém igualmente informações biográficas e bibliográficas, além das outras obras de GARIN já mencionadas. De Col~o Salutati, De nobilitate legum et medicinae editado -em 154.2 em Florença (edição e tradução ftaliana de E. GARIN, Florença, 1948); a obra intitu~ De tyranne (por VON MARTIN, Leipzig, 1913 a por P. ERCOM, Leipzig, 1914); e o Epistolário (por NOVATI, Roma, 1891-1905). Os Diálogos de LEONARDO BRUNI foram editados por Mmer, Livorno, 1889 e o Isagogicon Por BARON, do qual é fundamentã1 a monografia intitulada Leonardo Bruni, aretino, Deipzig, 1928. A carta d-, CosmF, RAIMONDI, na mencionada antologia de Garim Dos tratados morais e
das epistolas de Ffi~ há edições quatrocentistas e quinhentistas. § 339. As obras de Valla foram publicadas em Basileia, em 1540 e 1543. Sobre Vaffia: Gentile, A filosofia italiana, desde o fim da escolástica até ao início do Renascimento, p. 266-288; Saitta, Filosofia italiana o humanismo, Florença, 1928, p. 69-78. § 340. A obra de B. FAZIO aparece editada em S-andeo, Epitomae de regibus Siciliae et Apuliae, Hanover, 1611. A obra de GIANNOZO MANETTI foi publicada em Basileia em 1532. As obras de Alberti fomm pubIteadas. por BONUCCI em Plorença, 1843-49, em 5 vols.; uma outra edição foi publicada por MANCINI, Florença, 1890. Sobre Alberti: Gentíle, Giordano Bruno, p. 149-152. O Da vida civil de Palmieri foi 73 publicado em 1529 e o De optimo cive de Platina teve algumas edições quatrocentistas. As obras de NIZOLIO foram publicadas em Parma em 1553 e reeditadas por LEIBNiz em Franefort, nes anos de 1671 e 1674. § 341. A obra De sapiente de BOVILO foi novamente editada por KLIBANSKI, em apêndice à edição original alemã da ob. cit. de CASSIRER. As obras de BOVILO tinham sido publicadas em Paris, em 1512. Sobre este autor: CASSIRER, ob. cit., p. 142 e segs. § 312. As obras de PEDRO RAMUS conheceram numerosas edições nos anos de quinhentos e seiscentos. Sobre este autor: Waddingtou, De P. Rami vita, seriptis philosophia, Paris, 1849 (edàção, francesa, Paris, 1855); W. J. Ong, Ramus Method and Decay of Dialogue, Cambridge, Mass., 1958; R. Hooykaas, Humanisme, science et reforme-Pierre de la Ramée, Leiden, 1958. A obra De disciplinis de L. Vives conheceu inúmeras edições a partir da de Brügge, 1531. S<>bre este autor: Rivari, A sabedoria psicológica e pedagógica de L. V., Bolonha, 1922. As obras de Agricola foram publicadas em Colónia em 1539 e conheceram seguidamente numerosas edições. Sobre o humanismo alemão: Burdach, Deutsche Renaissance, Berlim, 1916. § 343. A melhor edição dos Ensaios de Montaigne é a que vem publicada na colecção das Universi,dades de França, a cargo de J. PLATTARD, Paris, 1931-32 (mencionada no texto), a qual reproduz a edição elaborada por Montaigne em 1588, acrescida das adendas e correcções manuscritas do próprio Montaigne. Dilthey, ob. cit., vol. 1, p. 47 e segs.; Strowski, Montaigne, Paris, 1906; Weigand, Montaig?ie, Mónaco, 1911. § 344. A obra Trois vérités de Charrou fed pela primeira vez publicada em Bordéus, em 1593 e o De 74 Ia sagesse na mesma cidade em 1601; Obra, 2 vols., Paris, 1635. De Sanches: Quod nihil seitur, Lyon, 1581, Francfort, 1618; Tractatus philosophici, RGterdão, 1649. MENÉNDEZ Y PELAY0, Ensayos de critica philosophica, vol. II, Madrid, 1892, 195-366; Giarratano, O pensamento de P. S., Nápoles, 1903. De Justo Lípsio: Obra, Wesel, 1675. Dilthey, A análise do homem, cit., p. 245 e segs.; Del Prai na "Revista de História da Filosofia,", 1946. 75
li RENASCIMENTO E POLÍTICA § 345. MAQUIAVEL O humanismo renascentista encontra-se estreitamente ligado a uma exigência de renovação política. Pretende-se renovar o homem, não apenas na sua individualidade mas também na sua vida em sociedade; por esse motivo, empreende-se uma análise da comunidade política, c~ o fim de lhe descobrir o fundamento e de -reportar a este as formas históricas daquela. O regresso às origens, que até mesmo neste campo constitui a palavra de ordem da renovação, é por um lado entendido como o regresso de uma comunidade histórica determinada, povo ou nação, às suas origens históricas, às quais poderá ir buscar nova força e novo vigor, e por outro, como regresso à base estável e universal de toda e qualquer comunidade, 77 ou seja, como reajustamento s reorganização da comunidade sobre a sua base natural. Historicismo e jusnaturalismo são os dois aspectos em que se concretiza a vontade política renovadora do Renascimento. O primeiro destes aspectos remonta, como já se viu (§ 334), ao neoplatonismo na medida em que este tenha perdido o seu carácter teológico. O segundo aspecto encontra a sua raiz no estoicismo antigo e na doutrina do direito natural que dominara a antiguidade e a idade Média; até mesmo este tende a perder as suas implicações teológicas. Para os Estóicos como para os escritores medievais, a ordem natural da comunidade humana identificava-se, por um lado com a razão e por outro com Deus; é sobre a primeira destas identidades que insistem os escritores do Renascimento. O direito natural, base de toda e qualquer comunidade humana é ditado pela própria razão. Nicolau Maquiavel (1469-1527) aparece-nos como o iniciador da orientação historicista. Toda a sua vida foi dedicada à tentativa de criação de uma comunidade italiana. Maquiavel via e reconhecia como única via para essa criação, um regresso às origens da história italiana. A investigação historiográfica dirigida ao reconhecimento destas origens aparece nele estreitamente ligada ao labor positivo de reconstrução da unidade política do povo italiano, de tal modo que a sua personalidade se defino precisamente pela unidade entre a tarefa política e a -Investigação historiográfica. O Príncipe (1513) e os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio contêm a revelação daquela unidade 78 entre o juízo político e o juízo histórico que constitui a característica fundamental de Maquiavel e faz dele o primeiro escritor político da idade moderna. O primeiro capítulo da terceira parte dos Discursos é dedicado à explicação daquele regresso aos princípios que constitui a palavra renovadora do Renascimento em tudo quanto diz respeito ao homem e à sua vida em sociedade. Segundo Maquiavel, a única maneira pela qual as comunidades podem renovar-se e fugir assim à decadência e à ruína, consiste em regressar aos seus princípios, pois todos os princípios contêm alguma bondade na qual aquelas poderão retomar a sua
vitalidade e a sua força primitivas. Nos estados, o regresso aos princípios faz-se, ou por acidente extrínseco ou por prudência intrínseca. Assim aconteceu em Roma onde os reveses deram causa a que os homens "se reconhecessem" nas ordens da sua convivência e onde instituições adequadas como a dos tribunos da plebe e a dos censores, ou até mesmo indivíduos de excepcional virtude, desempenharam a tarefa de chamar novamente os cidadãos às suas virtudes primitivas. Mas até as próprias comunidades religiosas se salvam apenas pelo regresso aos princípios. A religião cristã ter-se-ia extinguido completamente se não tivesse regressado à sua origem por intermédio de S. Francisco e de S. Doraingos, que com a pobreza e o exemplo da vida de Cristo lhe restituíram a sua força primitiva. Mas o regresso aos princípios pressupõe duas condições: em primeiro lugar que os princípios a 79 que se deve regressar, as origens históricas da comunidade, sejam claramente reconhecidos e entendidos com rectidão; em segundo lugar, que sejam reconhecidas na sua verdade efectiva as posiições de facto, a partir das quáis ou através das quàis o regresso deve ter lugar. A objectividade histórica e o realismo político são pois as condições fundamentais do regresso aos princípios. Estas duas condições constituem na verdade as características, da obra de Maquiavel, o qual, por um lado, se volta para a história, procurando encará-la na sua objectividade, no seu fundamento permanente, que é a substância imutável da natureza humana, e por outro, observa a realidade política que o rodeia e ,a vida social na sua verdade efectiva, renunciando a toda e qualquer atitude de êxtase perante repúblicas e principados "cuja existência real jamais foi vista ou reconhecida". Relativamente ao primeiro ponto, isto é, quanto à forma original a que a comunidade deve regressar,,Maquiavel acaba por reconhecê-la na república livre, tal como existiu nos primeiros tempos da nação romana. Por mais abstracto que seja o imaginar uni tipo ideal de estado, Maquiavel não pode deixar de determinar, através da sua investigação histórica--- a forma original da comunidade política ,italiana, à qual esta deve regressar. Porém, esta forma, baseada na liberdade e nos bons costumes é uma metalongínqua e difícil de atingir. Incumbe ao político, segundo Maquiavel, uma tarefa imediata, a única realizável nas circunstâncias históricas do tempo: fazer surgir um príncipe unificador 80 MAQUIAVEL e reorganizador da nação italiana. Deriva daí o esboço da figura do príncipe. Se uma comunidade não tem outra maneira de se libertar da desordem e da servidão política, senão a de se organizar em principado, a realização deste principado, torna-se uma tarefa que encontra a sua regra e a sua justificação em si própria. Pesa sobre esta tarefa o risco de se perder, caindo na tirania. Pode muito bem acontecer que aquele que a assumir "se deixe enganar por um falso bem" ou "se deixe ir voluntária ou ignorantemente" pela via aparentemente fácil mas funesta da tirania. Renunciará nesse caso à glória, à certeza, à serenidade e à satisfação interior e irá ao encontro da infância,
do vitupério, do perigo e da inquietação. A aceitação daquela tarefa implica pois uma alternativa e uma escolha: ou seguir a via que conduz a uma vida segura e à glória após a morte, ou seguir aquela que conduz a uma vida de permanente angústia e à infâmia depois de morto (Disc., 1, 9). É porém impossível que a segunda alternativa seja escolhida por aquele que, por sorte ou por virtude, de particular que era se torna príncipe de uma república, se conhecer verdadeiramente a história e tirar partido dos seus ensinamentos (Ib., 1, 10). Mas uma vez aceite o reconhecida, como própria a tarefa política, é impossível a paragem a meio caminho. Tem ela as suas exigências derivadas da natureza humana. Não se pode contar corri a boa vontade dos homens. O homem não é por natureza nem bom nem mau, mas pode ser efectivamente 81 uma e outra coisa. O político, se quiser ser bem sucedido nos seus planos, deverá sempre contar com o pior o que quer dizer que deverá partir do princípio de que todos os homens são maus e de que aproveitarão a primeira ocasião para lhe manifestar a sua malignidade (Ib., 1, 3). O político não pode pois fazer "profissão de bondade"; deve aprender "a poder não ser bom, e a usar ou não de bondade, conforme for preciso." (0 Princ., 15). Se puder, não deve afastar-se do bem; deve p~ saber usar do mal quando necessário (Ib., 19). Há certamente meios extremamente cruéis, contrários a todo o viver, não só cristão como humano e de tal maneira que todo e qualquer homem deve evitá-los. Nesse caso "torna-se necessário -preferir viver como particular do que como roi com tamanha ruína dos homens". Todavia, se não se quiser ou não se puder enveredar por esta renúncia, é necessário entrar resolutamente no caminho do mal, evitando o meio termo que para nada serve (Disc., 1, 26). Maquiavel põe assim duramente o político em face das cruéis e tristes exigências da sua tarefa. Aflora-lhe certamente ao espírito a dúvida sobre se o combater o mal com o mal, a fraude com a fraude, a violência com a violência e a traição com a traição tornará possível a recondução da comunidade à verdadeira ordem da sua forma política. Responde porém a essa dúvida, observando que por vezes se mantiveram no poder aqueles que, depois de o terem obtido por meio de crueldade e perversidade, não continuaram. por essas vias e converteram-nas posto82 riormente na maior utilidade possível para os seus súbditos. Esses "podem, com Deus ou com os homens, trazer algum remédio ao seu país". Quanto aos outros, é impossível a sua manutenção (0 Princ., 8). Por outras palavras, o limite da actividade política reside na própria natureza dessa actividade. A tarefa política não tem necessidade de deduzir do exterior a própria moralidade nem a norma que a justifique ou lhe imponha os seus limites. Ela justifica-se por si, pela exigência que lhe é intrínseca de reconduzir os homens a uma forma de convivência ordenada e livre e encontra os seus limites na possibilidade de êxito dos meios empregados. Certos meios, extremos e repugnantes, são impolíticos por se voltarem contra quem os emprega e tornarem impossível a manutenção do estado. O domínio da acção política estende-se a tudo quanto oferece garantias de êxito as quais consistem na estabilidade e na ordem da comunidade política. Maquiavel foi o primeiro a perscrutar e a considerar aquele domínio por meio dum critério puramente intrínseco pelo qual se
entrevê o princípio duma normatividade inerente às tarefas humanas como tais e não sobreposta a estas a partir do exterior, com um carácter de critério e limite estranhos. A tarefa do político, na medida em que implica escolha, risco e responsabilidade, pressupõe a liberdade do homem e o problematismo da história. Maquiavel toma em consideração a hipótese de as coisas do mundo serem governadas pela sorte ou 83 por Deus de maneira que os homens não possam nem corrigi-las nem remediá-las; porém, embora a hipótese o tente, pela extrema mobilidade dos acontecimentos contemporâneos, acaba por rejeitá-la porque nesse caso a liberdade seria nula o a única atitude possível seria o "deixar-se comandar pela sorte". Sustenta como mais provável que a sorte seja o árbitro de metade das acções humanas, deixando aos homens o comando da outra metade ou pouco menos. A sorte é como um rio que, quando se encoleriza, transborda e arrasta tudo, de tal modo que o homem não consegue de maneira nenhuma detê-lo ou impedir a sua marcha mas cujo ímpeto porém, não se torna daninho ou se toma menos prejudicial se o homem providenciar a tempo pela construção de defesas e diques que impeçam e disciplinem as cheias. A sorte mostra o seu poder onde não depara com a resistência da "virtude ordenada" e dirige os seus ímpetos para onde não houver diques nem defesas a contê-la (0 Prínc., 25). O homem só poderá dirigir a sorte se se conformar historicamente, reportando-se ao passado; ligando o passado ao futuro, evitará as transformações bruscas e inconcludentes e conseguirá dirigir a sorte de modo a não ter motivo para mostrar o seu poder a cada volta do sol (Disc., 11, 30). Existe tensão entre a sorte e a liberdade. A acção do homem insere-se nos acontecimentos e é portanto condicionada por eles. Mas quanto mais se apresentar historicamente fundamentada, tanto melhor conseguirá dominá-los, uma vez que a metade que no decurso dos 84 mesmos cabe à liberdade humana pode ser a metade decisiva se a previsão tiver sido feita com perspicácia. A acção humana - parece dizer Maquiavel * não pode eliminar todos os riscos mas pode e deve eliminar as reviravoltas inconcludentes e transformar o risco numa possibilidade de êxito. Tudo isto envolve a radical problematicidade da história. Esta, tira ou dá ao homem a oportunidade de proceder virtuosamente, umas vezes, suscitando ou destruindo a seu belprazer as vontades humanas o outras, delineando um plano que os homens podem favorecer mas não impedir ou urdindo uma trama que aqueles podem tecer mas não quebrar (Disc., 11, 29). Porém, os homens "farão bem em não desistir nunca". Não conhecem, na verdade, o fim para que tende a história e uma vez que esta envereda sempre por atalhos e caminhos desconhecidos, haverá sempre motivos para ter esperança, e, esperando, não devem os homens desistir, sejam quais forem a sua sorte e a sua aflição (Ib., 11, 29). O ensinamento que daí se tira consiste, num chamamento à decisão e ao querer, à inserção activa na história e ao comprometimento com a mesma. Maquiavel rejeita todos os princípios e doutrinas que se resolvam. num "deixar-se andar", num abandonar-se passivamente ao curso dos acontecimentos. O homem que se compromete com a história tem uma tarefa precisa e jamais deverá desesperar: o resultado da sua acção transcende-o e pode conduzi-lo, por atalhos e caminhos distantes, à vitória da tarefa que
lhe é cara. 85 § 346. GUICCIARDINI, BOTERO As Memórias políticas e civis de Francisco Guicciardini (1482-1540) contêm os ~os de uma sabedoria mundana que vai buscar as suas raízes à actividade política e tem como objectivo iluminá-la e guiá-la. Guicciardini considera inútil e disparatada a preocupação com problemas relativos à realidade sobrenatural ou invisível: "Os, filósofos e teólogos que descrevem as coisas sobronaturais ou que se não vêem, dizem mil disparates pois os homens ignoram efectivamente tais coisas e uma tal indagação serviu e serve mais para cultivar o engenho do que para encontrar a verdade". (Mem., 125). Rejeita por motivos análogos, a astrologia: pensar em conhecer o futuro é um sonho e os astrólogos não adivinham mais do que qualquer outro homem que faça conjecturas ao acaso (Ib., 207). O verdadeiro interesse de Guicciardini incide sobre o homem e em especial sobre o homem nas suas relações sociais, na sua actividade política. O homem é julgado, não pela tarefa que cumpre mas sim pelo modo como a cumpre. Ela não escolhe na verdade, a classe social em que nasce nem as ocupações ou a sorte que lhe caberão. Escolhe porém a sua conduta na sua classe ou nas suas ocupações, ou ainda em face da sua sorte. E é por esta conduta que será julgado (Ib., 216). Mas no, que se refere à sua conduta o homem não pode fazer mais do que confiar na reflexão e na experiência. "Saboi que quem governa ao acaso acabará por se encontrar nas mãos do acaso; o que se deve fazer é pensar, 86 analisar e observar bem todas as coisas etiam mínima; mesmo vivendo assim é com grande custo que se governam as coisas; pensai agora no que acontecerá a quem se deixa levar pelo curso das águas" (Ib., 187). O "deixar-se levar pelo curso das águas" equivale ao "deixar-se comandar pela sorte" de Maquiavel. Tal como Maquiavel, Guicciardini pretendo o empenho activo do homem na realidade política e um realismo atento e laborioso que corrija, mesmo quando não o pode desviar completamente, o curso da sorte. Por essa razão dá especial valor positivo à fé. "Ter fé não é senão crer com firmeza de opinião e uma quase certeza nas coisas que não são razoáveis; ou, se forem razoáveis, crer nelas com mais resolução do que a simplesmente baseada nas razões". A fé produz a obstinação e esta pode, num mundo submetido a mil acasos e acidentes, encontrar finalmente o caminho do êxito. É justamente por isso que se diz: "quem tem fé consegue executar grandes coisas" Ub., 1). Porém, nem a fé nem a perspicácia bastam para garantir o êxito, embora possam comandar muita coisa. A sorte desempenha um grande papel nas coisas humanas, sorte essa que é puro acontecimento casual e independente de qualquer ordem ou lei providencial, se existe, é impenetrável ao homem. "Não se deve dizer: Deus ajudou aquele porque era bom; àquele correram-lhe as coisas mal porque era mau; pois o que frequentemente se observa é o contrário. Nem por isso de=os dizer que a justiça de Deus não
existe, uma vez que os seus conselhos são tão profundos que são, mere87 cidamente ditos abyssus multa" (Ib., 92). É porém evidente que a "máquina mundana", a ordem natural das coisas, encoraja os homens à actividade. Por exemplo, se é verdade que os homens não pensam na morte, embora saibam que têm de morrer, tal não acontece porque a morte é coisa remota * é, pelo contrário, bem próxima e sempre iminente -mas antes porque a ideia da morte tornaria o mundo cheio de pusilanimidade e torpor" (Ib., 160). No que respeita à natureza humana, Guicciardini apresenta-se substancialmente de acordo com Maquiavel. Os homens são, é verdade, naturalmente propensos ao bem; mas, uma vez que a sua natureza é frágil e as ocasiões que os convidam ao mal são infinitas, afastam-se facilmente e por interesse próprio, da sua natural propensão (Ib., 225). A consequência disto é que os homens maus são em maior número do que os bons e por conseguinte é boa regra do político o não se fiar senão naqueles que verdadeiramente conhece, mantendo, frente aos outros, os olhos bem abertos, embora sem o mostrar, para não parecer desconfiado (Ib., 201). O governo deve portanto basear-se mais na severidade do que na brandura; a combinaÇão eo doseamento de ambas é a arte mais elevada e mais difícil do homem político (Ib., 41). O político deve parecer mas também ser, pois a aparência, com o decorrer do tempo, acaba por se desmascarar: "Fazei tudo para parecerdes bons, o que tem imensa utilidade; porém, como as falsas opiniões duram. pouco, dificilmente conseguireis parecer bons por muito 88 tempo, se efectivamente o não fordes" (Ib., 44). É assim a própria necessidade de êxito que exige e justifica uma substância moral intrínseca da acção política. O ensinamento político de Guicciardini, não se afasta, quanto a realismo, do de Maquiavel; distingue-se deste porém, pela ausência daquele fundamento histórico que nutria a actividade e o pensamento políticos de Maquiavel. Este considera o juízo político fundamentalmente ligado ao histórico. Guicciardini distingue o juízo político do histórico, ligando-o ao seu interesse particular, ao êxito da sua obra pessoal. "Há três coisas", diz-nos, "que gostaria de ver antes de morrer mas creio que por mais que vivesse, não chegaria a ver qualquer delas: uma república bem ordenada na nossa cidade, a Itália liberta de todos os bárbaros e o mundo liberto da tirania criminosa dos padres" (Ib., 236). Esta aspiração permanece porém puramente retórica pois a sua particular condição impele-o a servir precisamente a causa que odeia: "0 acolhimento que tive junto de alguns pontífices, fez com que amasse particularmente a sua grandeza; e se não fosse este respeito, teria amado Martinho Lutero como a mim mesmo, não para libertar-me das indoutas leis da religião cristã, no modo por que esta é vulgarmente entendida e interpretada, mas para ver esta caterva de criminosos, reduzida às dimensões devidas, quer dizer, ou sem vícios ou sem autoridade" (Ib., 28). A personalidade de Guicciardini apresenta pois uma cisão que, pelo
89 contrário, se não verifica na de Maquiavel: Guicciardini distingue a sua condição particular da tarefa política que julga ser a melhor, ou seja, do juízo histórico. Maquiavel unira ambas as coisas e nisso reside a sua grandeza. Os ensinamentos políticos de Maquiavel foram recolhidos em fins do século XVI por João Botero (nascido por alturas de 1533 e falecido em 27 de Junho de 1617), autor dos dez livros de que se compõe a obra Da razão de estado (1589). A própria noção de razão de estado é uma herança do maquiavalismo. "Razão de estado é o conjunto dos meios idóneos para fundar, conservar e ampliar um domínio". Com isto reconhece à arte política uma autonomia, uma lógica e uma normatividade intrínsecas que a colocam numa esfera à parte, era precisamente isto o que fundamentalmente resultava da obra de Maquiavel. Mas o que caracteriza e constitui novidade em Botero, em confronto com Maquiavel, é a inclusão entre as exigências da razão de estado, das exigências próprias da moral. Afirma assim que "é necessária no príncipe a excelência da virtude" pois o fundamento do estado é a obediência dos súbditos e esta é cativada precisamente pela virtude do príncipe. As virtudes podem conseguir a reputação e o amor; entre as que produzem o amor, a principal é a justiça, e entre as que obtêm a reputação, a principal é a prudência. A justiça deve ser garantida pelo príncipe, quer nas relações entre ele e os súbditos, quer nas relações destes entre si. A prudência exige que o príncipe se deixe 90 guiar unicamente pelo interesse, nas suas decisões. "Por esse motivo não deve fiar-se na amizade, nem no parentesco, nem nas alianças, nem em qualquer outro vínculo relativamente ao qual aquele com quem tratar, não ti-ver fundamento de interesse" (Da razão de estado, ed. de 1589, 60). Preocupado como está, mais com a conservação do Estado do que com a sua fundação e ampliação, Botero prefere as vias cautelosas da prudência, condena as grandes ambições e os grandes projectos e desconfia da astúcia demasiado subtil. A diferença entre prudência e astúcia reside inteiramente na escolha dos meios: a prudência segue mais o honesto do que o útil e a astúcia só tem em conta o interesse. Porém, a subtileza da astúcia é um obstáculo para a execução, tal como um relógio que, quanto mais complexo, mais facilmente se estragará, assim os projectos e empresas baseadas numa subtileza demasiado minuciosa, fracassam a maior parte das vezes (Ib., 70). No tocante à religião, Botero, vivendo no ambiente da contra-reforma, considera-a como um dos fundamentos do estado e aconselha o príncipe a rodear-se de um "conselho de consciência", constituído por doutores em teologia e em direito canónico, "pois de outro modo carregará a sua consciência e fará coisas que terá mais tarde de desfazer, se não quiser danar a sua alma e as dos seus sucessores". Estamos portanto perante um maquiavelismo temente a Deus, no qual se estabelecem como meios de governo, preceitos de moral, de religião e regras de
procedimento astucioso. 91 § 347. T. MORO, G. BODIN Das duas correntes nas quais se concretiza o esforço de renovação política do renascimento, a outra é a que se inclina para o jusnaturalismo. As origens desta corrente residem numa preocupação universal e filosófica que se distingue da preocupação particular e histórica que prevalece na corrente historicista. Não se trata aqui de renovar e reconstituir um determinado estado, por meio do regresso às suas origens históricas, mas sim de renovar ou reconstituir o estado em geral pelo regresso ao sou fundamento universal e eterno. A investigação sobre a natureza do estado torna-se aqui mais vasta e desenvolve-se a partir duma base filosófico-jurídica. Procura-se a substância, princípio último que dá força e valor a todo e qualquer estado e projectam-se transformações e reformas que possam reconduzi-lo à sua forma ideal. Pode-se por conseguinte reconhecer como primeira manifestação de jusnaturalismo precisa-mente aquele desejo de uma forma ideal de estado que se encontra na Utopia de Tomás Moro. A forma ideal do estado consiste na verdade, na sua estrutura racional; e a natureza fundamental de todas as comunidades políticas é descoberta pela razão. O verdadeiro e propriamente dito naturalismo, o de Gentile e Grócio, desenvolver-se-á precisamente a partir deste pressuposto: a identidade existente entre o direito natural e as exigências de uma estrutura puramente racional da comunidade. 92 Tomás Moro nasceu em Londres em 1480. Estadista e literato, opôs-se ao acto do parlamento que declarava nulo o matrimónio de Henrique VIII e Catarina e designava como sucessor o filho do segundo matrimónio do rei com Ana Bolena. Por esse motivo foi condenado à morte e decapitado = 1535. As suas opiniões políticas e filosóficas encontram-se expressas na Utopia, publicada em 1516, a qual é uma espécie de novela filosófica em que as opiniões de Moro aparecem enunciadas por um filósofo de nome Rafael, que conta o que lhe teria sido dado observar numa ilha ignota chamada precisamente Utopia, durante uma das viagens de Américo Vespúcio. O ponto de partida de Moro é a crítica das condições sociais na Inglaterra do seu tempo. A aristocracia proprietária de terras empenhava-se então em substituir o cultivo de cereais pela criação de carneiros de cuja lã retirava maior rendimento. Os camponeses eram expulsos de casas e quintas e não tinham outra saída senão a mendicidade (para a qual a rainha Isabel veio a instituir penas severas) e a rapinagem. A análise desta situação levou Moro a almejar uma reforma radical da ordem social. Na ilha da Utopia a propriedade privada encontra-se abolida. A terra é cultivada segundo um sistema de turnos pelos habitantes que estão todos adestrados na agricultura e se substituem nos campos uns aos outros, de dois em dois anos. O ouro e a prata não têm
qualquer valor e são utilizados nos mais humildes utensílios. Todos têm além disso o seu ofício próprio e há uma categoria de magistrados denominados sifograntes que 93 velam por que ninguém permaneça ocioso e por que todos exerçam com diligência a sua arte. Os cidadãos da ilha trabalham apenas seis horas e dedicam o resto do tempo às letras ou aos divertimentos. A cultura daquele povo é inteiramente dirigida para a utilidade comum à qual os utopes subordinam todos os interesses particulares. Preocupam-se pouco com a lógica mas cultivam as ciências positivas e a filosofia; completam os conhecimentos racionais com os princípios da religião pois reconhecem que a razão humana não pode, por si só, conduzir o homem à verdadeira felicidade. Os princípios que reconhecem como próprios da religião são: a imortalidade da alma, destinada por Deus à felicidade; o prémio e o castigo após a morte, consoante o comportamento nesta vida. Embora tais princípios derivem da religião, os utopes. afirmam ser possível crer nos mesmos com base em razões e fundamentos humanos. Reconhecem pois que o único guia natural do homem é o prazer e que é sobre este guia que se baseia o sentimento da solidariedade humana. Na verdade, o homem não seria levado a ajudar os outros homens e a evitar-lhes o sofrimento se não pensasse que o prazer é um bem para os outros; mas aquilo que é um bem paira os outros é igualmente um bem para ele próprio e na realidade o prazer é o fim que a natureza atribuiu ao homem. Porém a característica fundamental da Utopia é a -tolerância religiosa. Todos reconhecem a existência de um Deus criador do Universo e autor da sua ordem providencial. Cada um, porém, o concebe e venera a seu modo. A fé cristã 94 coexiste com as outras e só é condenada e rejeitada a intolerância de quem condena ou ameaça os adeptos de uma outra confissão religiosa. A cada um é lícito procurar convencer os outros sem violência ou injúria e a ninguém é permitido violar a liberdade religiosa de ou-trem. Os utopes crêem que o culto variado e diverso agrada a Deus e por esse motivo consentem que cada um creia naquilo que lhe aprouver. Apenas está proibida a doutrina que nega a imortalidade da alma e a providência divina; p"m, aqueles que a professam não são punidos mas somente impedidos de difundirem as suas opiniões. A república dos utopes. é por conseguinte um estado conforme à razão e no qual os próprios princípios da religião são aqueles que a razão está apta a defender e a fazer valer, não havendo ali lugar para a intolerância. Se Tomás Moro idealizara no estado utope a estrutura de uma comunidade de acordo com a razão, João Bodin, pelo contrário, coloca-se expressamente no plano da realidade política e analisa os princípios jurídicos dum estado racional. Bodin nasceu em Anvers em 1530 (ou 1529), foi jurista e advogado em ]Paris e teve muita influência na corte do rei Henrique III. Faleceu em 1596 (ou 1597). Nos Six livres de Ia république (1576) propõe-se esclarecer a definição de estado que enuncia no começo da sua obra: "A república é o governo íntegro de muitas famílias e do que lhos é comum, com poder soberano". ]Porém a
validade própria do estado reside na última determinação, ou seja, na soberania, que é concebida por Bodin como não tendo 95 fimitos, excepto os que derivam das leis de Deus ou da natureza. O poder absoluto e soberano do estado não consiste num arbítrio incondicional, pois tem a sua norma nas leis divina e natural, norma essa que deriva do seu fim intrínseco, a justiça. Não há poder soberano onde não houver independência do poder estatal relativamente a todas as leis e capacidade para as fazer e desfazer. A soberania não é um atributo puramente negativo, consistindo em ser dispensado e liberto das leis e costumes da república. Tal dispensa pode existir, como no caso de Pompeio, o Grande, em Roma, sem que haja soberania. Consiste, pelo contrário, no poder positivo de ditar leis aos súbditos e de abolir as leis inúteis, substituindo-as por outras, o que não pode ser feito por quem está sujeito às leis ou por quem recebe de outrem os poderes de que se acha investido (Rep., 1, 9.a ed., 1576, 131-132). O limite intrínseco do poder soberano, as leis natural, e divina, permitem o estabelecimento da regra seguindo a qual o príncipe soberano é obrigado a cumprir os contratos que celebra, seja com os próprios súbditos, ,seja com o estrangeiro. É ele quem garante aos súbditos o cumprimento das convenções e obrigações mútuas, sendo obrigado a ,respeitar a justiça .em, todos os seus actos. Um príncipe não pode ser ,perjuro (Ib., 148). De acordo com estes princípios, ,Bodin -afirma, por um lado, a indivisibilidade do -poder soberano, pela qual este não pode pertencer simultaneamente a um, a poucos ou a todos (aceita a antiga classificação das formas de governo em monarquia, aristocracia e democracia), mas por outro, 96 TOMAS MORO afirma energicamente os limites da soberania que não pode prescindir das leis divina e natural. "A diferença mais importante entre o rei e o tirano reside no facto de o rei se conformar com as leis da natureza, ao passo que o tirano as atropela; enquanto um cultiva a piedade, a justiça e a fé, o outro não conhece Deus, nem fé , nem lei". (Ib., 11, 4, 246). Partidário da monarquia francesa, Bodin afirma ser o governo monárquico o melhor de todos, contanto que seja temperado pelos governos aristocrático o popular. Com efeito, é própria do governo aristocrático a justiça distributiva ou geométrica, que distribui os bens segundo os méritos de cada um e é própria do governo popular a justiça comutativa ou aritmética que tende para a igualdade. A justiça perfeita é a harmónica que é composta por ambas; tal justiça é própria das monarquias reais (Ib., VI, 6, 727 e segs.). A república bem ordenada é semelhante ao homem, no qual o intelecto representa a unidade indivisível a que estão subordinadas a vida racional, a vida irascível e a vida sensual. A república aristocrática ou popular sem rei é como um homem a quem a actividade intelectual falta ou escasseia. Poderá ela viver, como vive o homem que não cuida da contemplação das coisas divinas e intelectuais, não possuirá porém aquela unidade nem aquela harmonia intrínsecas que só um príncipe lhe
pode dar, o qual, tal como o intelecto dos homens, unifica e harmoniza as partes do todo (Ib., 756-57). Como Tomás Moro, Bodin afirma como próprio de uma comunidade racionalmente organizada 97 O princípio da tolerância religiosa. Dedicou à defesa deste principio o Colloquium heptaplomeres (escrito por alturas de 1593), que consiste num diálogo em que aparecem a falar sete pessoas, representando sete confissões religiosas diferentes (e daí o título): um católico, um luterano, um calvinista, um hebreu, um maometano, um pagão e um partidário da religião natural. Supõe-se o diálogo como tendo lugar em Veneza, a qual, ainda antes de a Holanda se ter tornado a sede da liberdade religiosa, era conhecida como o estado mais liberal, como o provava o episódio de Sarpi. O personagem mais significativo do diálogo é Toralba, adepto da religião natural. A tese de Torailba consiste em que, dada a oposição existente entre as religiões positivas, a paz religiosa só será possível por meio dum regresso ao fundamento puramente natural (ou seja, racional) das várias religiões, o qual constitui a substância comum a todas. Este regresso não exclui porém * persistência das religiões positivas, uma vez que * religião natural, francamente racional e filosófica não está apta a conseguir da plebe ou do vulgo o assentimento que só as cerimónias o ritos poderão obter. Uma vez reconduzidas à substância comum que lhes; é reconhecida pela razão filosófica, as religiões positivas perdem os motivos de oposição e reconhecem-se solidárias, tornando possível a paz religiosa no seio do género humano. Na verdade, esta paz que ora o ideal dos platónicos do Renascimento, de Cusano em diante, é também o ideal de Bodin que escreve a sua obra no decurso do período das guerras religiosas em França. Porém a 98 preocupação de Bodin é principalmente política. O que lhe interessa estabelecer é o princípio da tolerância religiosa como fundamento da ordem civil na melhor das repúblicas. § 348. O JUSNATURALISMO As doutrinas de Tomás Moro e de João Bodin contêm já o pressuposto jusnaturalismo: o regresso da organização política à sua substância racional. Este pressuposto é porém explicado e posto em evidência pelos autênticos fundadores dos jusnaturalismo moderno, através da consideração do estado de guerra. A guerra suspende com efeito a validade das leis positivas e dos acordos entre os estados singulares; não pode todavia suspender a eficácia das normas baseadas na própria natureza humana e por conseguinte inerentes à comunidade humana em qualquer momento e mesmo nas relações de guerra. A consideração do estado de guerra permito isolar no conjunto das normas jurídicas, aquelas que não dependem nem da vontade nem das convenções humanas e são antes ditadas pela própria razão do homem. Assim se explica como foi precisamente da análise do estado de guerra que se induziram as regras básicas e a natureza do direito natural. Alberico Gentile nasceu no Castelo de S. Genesio em 1552, doutorou-se na
Universidade de Perúgia e foi professor de direito em Oxford; faleceu em 1611. Na sua obra De jure belli (1588) chega a formular o conceito de direito natural, partindo do 99 problema de saber se a guerra será ou não conforme àquele direito. A sua resposta é negativa. Todos os homens são membros de um grande e único corpo que é o mundo e estão por isso ligados entre si por um amor recíproco. É nesta sua unidade original que se radica o direito natural que é um instinto imutável baseado na natureza. O homem não é pois por natureza inimigo dos outros homens nem há aí lugar para a guerra. Esta nasce quando os homens se recusam a seguir a natureza. Guerra justa é todavia a guerra defensiva, uma vez que o direito de defesa é uma regra ~na que, embora não escrita, nasceu com os homens. Pelo contrário, não são justas as guerras ofensivas nem as de religião, estas últimas porque a religião é de tal natureza que ninguém pode ser obrigado a professá-la por meio de violência, devendo por conseguinte ser reconhecida como livre (De jure belli, 1, 9). Mas a guerra, apenas possível no âmbito duma comunidade humana, não suspende as normas fundamentais de direito próprias de toda e qualquer comunidade e portanto naturais. O respeito pelos prisioneiros, pelas mulheres, pelas crianças e pelas cidades e o não servir-se de armas traiçoeiras, fazem parte destas normas que não são próprias deste ou daquele povo mas de toda a humanidade. O princípio da soberania popular foi pela primeira vez afirmado por João Altilsio (Althlis), nascido em 1557 numa aldeia do condado de Wittegenstein-Berleburg e que foi professor na Universidade de Herborn, tendo falecido em 12 de Agosto de 1638. Na sua Politica methodice digesta retoma 100 a doutrina de Bodin segundo a qual a validade do estado consiste na soberania que também reconhece como única, indivisível e intransmissível. Porém, segundo Altúsio, esta soberania reside no povo. Toda e qualquer comunidade humana (consociatio) se constitui através dum contrato, expresso ou tácito, que faz dela um corpus symbioticum, um organismo vivo. Este contrato baseia-se num sentimento natural e encontra-se regulado por leis (leges consociationis) que são em parte leges comunicationtis, quer dizer, respeitantes às relações recíprocas entre os membros, e noutra parte, leges directionis et gubernationis, respeitantes às relações entre os vários membros da comunidade e o governo. O estado é definido como "uma comunidade pública universal pela qual várias cidades e províncias se obrigam a possuir, constituir, exercer e defender a soberania (jus regni) mediante a mútua comunicação de obras e coisas e com forças e despesas comuns" (Pol., 9, 1; ed. de 1617. 114). A soberania ou jus
majestatis pertence por conseguinte à comunidade popular e é inalienável. O príncipe é apenas um magistrado cujo poder deriva do contrato. Junto do príncipe ou "supremo magistrado", encontram-se os éforos a quem compete exercer relativamente àquele os direitos do povo. Se o povo faltar ao contrato, o príncipe considerar-se-á liberto das suas obrigações; porém, se for o príncipe a violá-lo, o povo poderá proceder à escolha dum novo príncipe ou duma nova constituição (Ib., 20, 19-21). Estas bases da doutrina de Altúsio constituem o procedente histórico da doutrina de Rousseau (§ 496). 101 Altúsio permanece todavia firme no tocante à negação da liberdade religiosa, Com o seu calvinismo intransigente, afirma que o estado deve ser também o promotor da religião e que deve portanto expulsar do seu seio tanto ateus como descrentes. Músio é o primeiro representante da filosofia jurídica da Refonna. O mais destacado representante dessa filosofia é Hugo Grócio (Groot, Grotius), nascido em DeM, na Holanda, em 10 de Abril de 1583. Jurista e homem político, tomou parte nas lutas religiosas no seu país e foi encarcerado após a derrota do partido dos Armínios (designação derivada do nome do teólogo Amiínio) cuja defesa tomara (1619). Tendo conseguido fugir dois anos depois por obra da astúcia da mulher, viveu em Paris e faleceu em 1645 em Rostock. Numa série de obras teológicas (a principal das quais é De veritate religionis christianae, 1627), visou à superação das diferenças entre confissões religiosas por meio do reconhecimento do significado genuíno do cristianismo. O seu propósito é, tal como o de Boffin, a pa7 religiosa, a qual se pode conseguir pela redução da religião aos seus princípios naturais: a existência de um só Deus, espírito puro, a providência e a criação. A sua obra fundamental é De juri bellí ac pacis (1625), composta por uma introdução e três livros. O ponto de partida desta grande obra é a identidade do natural com o racional, identidade esta, baseada no pressuposto de que a razão é a verdadeira natureza do homem. Tanto aquela identidade como este pressuposto são teses directamente deri102 vadas da doutrina estóica que alimentara durante tantos séculos todas as especulações sobre a essência do direito e da comunidade humana. Porém, aquilo em que consiste a originalidade da obra de Grócio e pode ser considerado como característico da fase moderna do jusnaturismo, é a libertação do conceito de razão de toda e qualquer implicação teológica, lIbertação esta expressa por Grócio com a famosa afirmação (que provocou enorme escândalo) de que as normas da razão natural seriam válidas ainda que Deus não existisse. A partir daqui, a obra de Grócio procura formular a teoria do direito e da política em geral como uma pura ciência racional dedutiva, semelhante às matemáticas e constituída apenas por princípios evidentes e demonstrações necessárias. Este é o único ponto de vista pelo qual a -teoria do direito poderá, segundo Grócio, ascender a uma autêntica universalidade, abstraindo de todos os sistemas particulares de direito positivo. "Assim como os matemáticos", diz,
prescindindo de todo e qualquer facto particular" (De jure b. ac p., proleg.). A mãe do direito natural é a própria natureza humana que conduziria os homens a procurarem a mútua associação, mesmo que não precisassem uns dos outros. Por isso, o direito que se baseia na natureza humana teria lugar ainda que se admitisse aquilo que se não pode admitir sem pecar, ou seja, que Deus não existe ou que não se preocupa com as coisas huma103 nas" (Ib., § 11). Na medida em que provém por legítima dedução dos próprios princípios da natureza, o direito natural distingue-se do direito das gentes (jus gentium), o qual provém, não da natureza mas do consenso de todos os povos ou de alguns deles, tendo como objectivo a utilidade de todas as nações. Precisamente pela sua origem, o direito natural é próprio do homem, que é o único ser racional, mesmo quando se refere a acções (como a criação dos filhos) comuns a todos os animais (Ib., 1, 1, 11). É definido por Grócio como "o comando da recta razão que aponta a fealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma acção qualquer, mediante o acordo ou o desacordo desta com a própria natureza racional". As acções sobre as quais incide o comando são por si obrigatórias ou ilícitas e consideram-se portanto necessariamente prescritas ou proibidas por Deus. Neste ponto, o direito natural diferencia-se não só do direito humano mas também do direito voluntário divino que não prescreve nem proíbe as acções que por si e por sua própria natureza sejam obrigatórias ou ilícitas, mas antes as torna ilícitas ao proibi-las e obrigatórias ao prescrevê-las. O direito natural é portanto de tal maneira imutável que nem mesmo por Deus pode ser mudado. "Assim, como Deus não pode fazer com que dois e dois não sejam quatro, também não pode fazer com que aquilo que pela sua razão intrínseca é um mal, não o seja" (Ib., 1, 1, 10). Por conseguinte a verdadeira prova do direito natu104 ral é aquela que se obtém a priori, mostrando o acordo ou o desacordo necessário de uma acção com a natureza racional e social. A prova a posteriori, baseada naquilo que na opinião de todos os povos ou na dos mais civilizados de entre eles, se crê legítimo, consiste numa mera probabilidade e funda-se na presunção de que um efeito universal exige uma causa universal (Ib., 1, 1, 12). Do direito natural se distingue o direito voluntário que não tem origem na natureza mas sim na vontade e pode ser humano ou divino (Ib., 1, 1, 13-15). Porém, só o direito natural fornece o critério da justiça ou da injustiça: "Entende-se por injusto aquilo que repugna necessariamente, à natureza racional e social> (Ib., 1, 2, 1). A guerra não é, segundo Gróoio, contrária ao direito natural. O fim da guerra é a conservação da vida dos membros do todo social ou a aquisição do que é necessário à vida e este fim resulta da própria natureza. Nem mesmo o uso da força é contrário à natureza, a qual dou a todos os animais a força suficiente para se ajudarem ou se matarem reciprocamente. Grócio distingue três espécies de
guerras: pública, privada e mista. A pública, é a que é feita por quem tem o poder de governar; a privada, a que é feita por quem está privado do ,poder jurisdicional; a mista, aquela em que uma parte é pública e a outra privada (Ib., 1, 3, 1). Da consideração do direito de guerra, Grócio leva a sua análise a incidir sobre a natureza do poder político. O supremo poder político (sunima potestas 105 civilis) é aquele cuja acção não está sujeita. ao direito de outrem de modo a poder ser anulado pelo arbítrio doutra. vontade humana. Grócio opõe-se à tese de Alffisio, segundo a qual o poder supremo reside apenas no povo, sendo lícito a este coagir e castigar os reis que fazem mau uso do seu poder. Aceita som reservas a tese contratualista segundo a qual toda e qualquer comunidade humana se baseia num pacto original, mas não deixa também de admitir que esse pacto tenha precisamente transferido a soberania, do povo para o príncipe. "Assim como há vários modos de vida, uns melhores, outros piores, podendo cada um escolher aquele que lhe agrada, também o povo pode escolher a forma de governo que deseja, **reguilando-se o direito, não pela excelência desta ou daquela forma (no que variam as opiniões) mas sim pela vontade do povo. Podm, com efeito, existir certas causas pelas quais o povo renuncie completamente ao direito de mandar, confiando-o a outrem: por exemplo, porque determinada lei o colocou em perigo de vida e não encontra quem o defenda, ou porque está oprimido pela miséria e não pode obter doutro modo aquilo de que necessita para se manteu (Ib., 1, 3, 8). É portanto possível que a soberania seja integralmente transferida do povo para o príncipe. É todavia igualmente possível que essa transferência se processe em determinadas condições e que o príncipe prometa aos súbditos e a Deus cumprir co~, regras que não cumpriria sem tal promessa e que por conseguinte não pertencem ao direito natural o divino 106 nem ao direito das gentes, a cujo cumprimento todos os reis são obrigados mesmo sem promessa. Esta limitação não implica o reconhecimento da soberania do poder popular por parte do príncipe e é perfeitamente conciliável com o seu poder supremo (Ib., 1, 3, 16). GrÓcio não admite a existência do direito de depor o príncipe, por parte do povo, mas aceita que este princípio possa sofrer excepções em caso de extrema necessidade ou em determinadas circunstâncias, enumerando em seguida os casos em que se verificam estas circunstâncias ou aquela necessidade. Podem elas resultar duma cláusula do contrato através da qual a soberania é deferida ao príncipe ou das condIções deste deferimento, sempre que o próprio príncipe viole tais cláusulas ou condições (Ib., 1, 4, 8-14). Ao direito natural está, no pensamento de Grócio, ligada a religião natural a qual o é, precisamente por se basear na razão. "A verdadeira religião", escreve (Ib., 11, 20, 45), "comum a todas as épocas, baseia-se essencialmente sobre quatro enunciados. O primeiro consiste em que Deus existe e é uno.
O segundo, em que Deus não é nenhuma das coisas que se vêem e lhes é muito superior. O terceiro, em que Deus se ocupa das coisas humanas, julgando-as com perfeita equidade. O quarto, em que o próprio Deus é o artífice de todas as coisas exteriores". Estes princípios são tão racionalmente sólidos. e apresentam-se tão reforçados pela tradição, que não podem ser anulados pela dúvida, donde a sua não aceitação deve constituir culpa puní107 vel. Não podem porém ser punidos aqueles que não aceitem noções não igualmente evidentes, como, por exemplo, que é impossível a existência de mais de um único Deus, que Deus não é nem o céu, nem a terra, nem o sol, nem o ar, nem nada daquilo que vemos, ou que o mundo não existe ab aeterno pois a própria matéria que o constitui foi criada por Deus. Estas noções tomaram-se obscuras em muitos povos sem que estes se possam considerar culpados de tal obscurecimento. No que se refere à religião cristã, é um facto que acrescenta à religião original muitas coisas em que se não pode acreditar com base em argumentos naturais mas unicamente através do fundamento histórico da ressurreição e dos milagres. Crer no cristianismo, só é possível com o auxílio misterioso de Deus e por conseguinte, pretender impô-lo pela força das armas é contrário à razão (Ib., 11, 20, 48-49). Não é igualmente possível atribuir culpa aos cristãos por aquelas opiniões que se baseiam na ambiguidade da lei de Cristo; será mais justo punir, pelo contrário, aqueles que se mostram ímpios ou irreverentes para com os seus deuses. (Ib., 11, 20, 50-51). A obra de Grócio não representa apenas uma tentativa grandiosa de fundamentar racionalmente o mundo da política e do direito. É além disso o primeiro acto de fé na razão humana, a primeira manifestação do empenho, característico da especulação moderna, em reconduzir à razão, nela os baseando, todos os aspectos essenciais do homem e do seu mundo. 108 NOTA BIBLIOGRÁFICA § 345. Das obras de Maquiavel, v. a edição de MAZZONI C CASELLA, Florença, 1929. - P. VILLARI, N. M. e o seu tempo, 3.1 ed., Milão, 1912; DE SANCTIS, História da Literatura Italiana, VOI. II, BARI, 1912, 67-112; MEINECEP, Die Idee der Staatraison in der neuren Geschichte, Munique Berlim, 1924. ALDERIGIO apresentou um Maquiavel moralizador: Maquiavel, Turim, 1930.-G. SASSO, N. M., história do seu pensamento polítwo, Nápoles, 1958. § 346. As Memórias políticas e civis de GUICCIARDINI, em Obras inéditas, ed. de CANESTRINI, Florença, 1857; Escritos raros e autobiográficos, ed. de Palmarocchi, BARI, 1936. BOTERO, Da razão de estado e Das causas da grandeza da eidade, Veneza, 1589, Desta última obra há uma edição de M. De Bernardi, Turim, 1930. § 347. TOMÁS MORO, De optimo reipublicae statu deque nova insulae Utopia, edição Lupton, Oxford, 1895.-E. DERMENGHEM, Th. Morus et les utopistes de Ia Renaissance, Paris, 1927. J. BODIN, Six livres de Ia république, Paris, 1576; Colloquium heptaplomeres de abditi.&
rerum sublium arcani&, edição Noack, 1857.-BAUDRILLART, J. B. et son temps, Paris 1853; DILTHEY, Análise do homem, já citada, passim. § 348. Há uma reprodução moderna da edição de 1612 do De jure belli de C. PHILLIPSON, Oxford, 1933.-Solmi, De Francisci, Del Vecchio, Giannini, Alberico Gentile, em "Publicações do Instituto Italiano de direito internacional", Roma, 1933. ALT0SIO, Política methodice digesta et aexemplis sacris et profanis Mustrata, Herbon, 1603; Groningen, 1610.---OTTO VON GIERKE, J. Althusius und die En109 twick1ung der naturrechtlichen Staatsth-eorien, Breslau, 1880; trad. ital. de A. Giolitti, Turim, 1943. DE GRócio: Opera omnia theologica, An-isterdão, 1679 e Basileia, 1732. De jure belli ac pacis, Paris, 1625, 1632, 1646; Anisterdão, 1553. Há a reprodução fotográfica da edição de 1646, da Fundação Carnegie.-Dilthey, ob. cit., vol. II, pgs. 39 e segs.,-HAMILTON VEERLAND, H. G. the Father of the Modern Seience of International Law, Nova Iorque, 1917; SCHLCTER, Die Theologie des H. G., Gottingen, 1909; CORSANO, Hugo Grócio, Bari, 1948. lio HI RENASCIMENTO E PLATONISMO § 349. NICOLAU DE CUSA: A DOUTA IGNORÂNCIA O platonismo e o aristotelismo, que tinham sido as duas correntes básicas da Escolástica, reaparecem igualmente no Renascimento, mas agora já reconduzidas às suas fontes originais e aceites, na sua autenticidade histórica, como meios de renovação do homem e do seu mundo. As disputas em torno da superioridade de uma ou de outra orientação, pressupõem a exigência comum de restituir ambas ao seu sentido histórico original, libertando-as das deformações e incrustações sofridas por obra da Escolástica. O antagonismo entre Platónicos e Aristotélicos é, no Renascimento o antagonismo de dois interesses culturais diferentes. Platónicos são aqueles que põem em primeiro plano a exigência 111 da renascença religiosa e que vêm por conseguinte, no regresso ao platonismo, considerado como síntese de todo o pensamento religioso da antiguidade, a condição desta renascença. Aristotélicos são aqueles que tendem sobretudo para a renascença da actividade especulativa e especialmente da filosofia natural; vêem estes no regresso à autêntica ciência de Aristóteles, a condição da renascença de uma livre e rigorosa investigação naturalista. Neste sentido, o renovador do platonismo é Nicolau de Cusa, a mais completa personalidade filosófica de Quatrocentos. Nicolau Chrypffs ou Krebs nasceu em Cusa, perto de Trier, na Alemanha, em 1401. Recebeu a primeira instrução em Deventer, ministrada pelos "irmãos da vida comum" que cultivavam o ideal da chamada devotio moderna e se inspiravam
principalmente na mística alemã (§§ 327-29). Estudou em Heidelberg, e seguidamente, de 1418 a 1423, em Pádua, onde se ligou por amizade a Paulo Toscanelli, mais tarde médico e astrónomo de fama. Destinava-se ao estudo do direito mas, tendo perdido o seu primeiro processo, voltou-se para a teologia e fez-se padre em 1430. Em 1432 foi pelo cardeal-legado Julião Cesarini, seu antigo mestre em Pádua, chamado a participar no Concílio de Basileia, após o Concílio, que devia entre outras coisas decidir da união entre as igrejas latina e grega, foi enviado à Grécia, de onde regressou a Itália na companhia dos pensadores e teólogos gregos mais -importantes da época. Pôde assim adquirir grande familiaridade com a língua e com os clássicos gregos 112 e sobretudo conhecer directamente aquelas obras de Platão das quais extraiu a inspiração fundamental. Nomeado cardeal e bispo de Bressanone, entrou em conflito com Sigismundo, duque do Tiroi, por ordem do qual permaneceu encarcerado vários anos. Morreu longe da sua diocese, em Todá, na úmbria, em 11 de Agosto de 1464. Na sua viagem de regresso da Crécia, tivera a inspiração da sua doutrina fundamental, a da douta ignorância (De docta ign., 111, 12) a qual vem exposta nas suas duas principais obras: De docta ignorantia e De conjecturis (1440). Seguiram-se depois muitas outras: De querendo Deum e De filiatione Dei (1445), De dato patris luminum (1446), De genesi (1447), Apologia doctae ignorantiae (1449), De idiota (1450), De novissimis diebus (1453), De visiona Dei (1453), Complementum theologicam (1454), De bery11o (1458), De possest (1460), De non aliud (1462), De venatione sapientiae (1463), De apice theoriae, De ludo globi (1464) e Compendium (1464). Nicolau de Cusa escreveu além disso, várias obras de geometria, matemática e teologia. O ponto de partida de Nicolau de Cusa consíste nu-ma determinação precisa da natureza do conhecimento, o qual, é por ele modelado segundo o conhecimento matemático. A possibilidade do conhecimento reside na proporção entre o conhecido e o desconhecido. Só em relação ao já conhecido é que pode avaliar o ainda desconhecido, isso só será porém possível se o ainda desconhecido possuir uma certa proporcionalidade (quer dizer, homogeneidade ou conveniência) relativa113 mente ao já conhecido. O conhecimento é tanto mais fácil quanto mais próximo estão das que se conhecem, as coisas que se procuram; por exemplo, em matemática, as proposições mais directamente derivadas dos primeiros princípios, já por si bem conhecidos, são as mais fáceis e evidentes, ao passo que as que se afastam desses mesmos princípios são menos evidentes e mais difíceis. Daqui resulta que quando procuramos algo de desconhecido e sem qualquer relação com os conhecimentos que possuímos, o mesmo escapa a toda e qualquer possibilidade de conhecimento e só nos resta proclamar a esse respeito a nossa ignorância. Este reconhecimento, da ignorância, este saber que não se sabe e que Nicolau de Cusa filia na antiga sabedoria de Pitágoras, de Sócrates e de Aristóteles e também na sabedoria bíblica de Salomão (Ecles, 1,
8), é a douta ignorância. A atitude da douta ignorância é a única possível perante o ser como tal, ou seja, perante Deus. Deus é na verdade o grau máximo do ser e da perfeição em geral; é "aquilo cuja grandeza não pode ser ultrapassada". Deus, como já o dissera Duns Escoto (§ 306), é o infinito e entre o infinito e o finito não existe relação. O homem pode aproximar-se indefinidamente da verdade por graus sucessivos de conhecimento, mas uma vez que estes graus serão sempre finitos e a verdade é o ser em grau infinito, esta última escapará necessariamente ao esforço feito para a sua compreensão. Entre o conhecimento humano e a verdade existe a mesma relação que entre os polí114 gonos, inscritos ou circunscritos e a circunferência: multiplicando indefinidamente os lados desses polígonos, estes aproximar-se-ão indefinidamente da circunferência com a qual porém jamais se identificarão. A verdade no seu carácter absoluto e necessário permanecerá sempre para além do conhecimento, que é a possibilidade pura de estabelecer relações definidas (Da d. ign. 1, 3). E, tal como o máximo absoluto, assim também o mínimo absoluto escapa ao conhecimento. Este move-se no âmbito do que é susceptível de mais ou de menos ao passo que o mínimo absoluto escapa ao mais e ao menos por ser aquilo de que não pode haver menor. O máximo absoluto e o mínimo absoluto coincidem por pertencerem ambos ao domínio da necessidade e da actualidade plenas, ao passo que * domínio do mais e do menos, no qual se move * conhecimento humano em todos os seus graus é * da possibilidade e da potencialidade (Ib., 1, 4). Nestas teses fundamentais de Nicolau de Cusa convergem as duas últimas manifestações da filosofia medieval: o occamismo e o misticismo alemão. O occamismo declarara já impossível ao homem o acesso à realidade divina e o misticismo alemão tinha procurado este acesso fora do conhecimento, na fé, recorrendo à teologia negativa do falso Dionísio, o Areopagita. Também este último traço, como veremos, se encontra em Nicolau de Cusa. Este não parte, porém, como Occam, do empirismo; o seu pressuposto é metafísico e inspirado no platonismo original. Esse pressuposto é a incomensurabilidade (a não-proporcionalidade) da relação existente entre 115 * ser como tal e o conhecimento humano, ou seja, * transcendência absoluta do ser que permanece um valor ou uma norma ideal, não podendo jamais ser atingido nem possuído pelo homem. § 350. NICOLAU DE CUSA: O MUNDO DA CONJECTURA Porém, após ter ensinado a Nicolau de Cusa a transcendência do ser relativamente ao inundo, Platão ensina-lhe também o regresso ao mundo. A diferente natureza do mundo e do homem com respeito ao ser, não implica a condenação total do mundo e do homem, a negação de todo o seu valor. Ao fazer reviver também este segundo aspecto do platonismo, Nicolau de Cusa aproximou-se do
espirito do filósofo antigo, tanto quanto se afastou do platonismo medieval. Após ter desligado Deus, como máximo absoluto, do mundo, volta a encontrá-lo no conhecimento humano, justamente por causa deste desligamento. O saber que não se conhece Deus é o princípio do seu conhecimento e, em geral, a douta ignorância, o saber que não se sabe, constitui o princípio e o fundamento de todo o conhecimento humano. Para designar este último, Nicolau de Cusa adopta o termo conjectura que traduz a eikasia platónica (Rep., 511 e; § 52), definindo-a como "a asserção positiva que participa, por meio de diferente natureza, da verdade como W" (De conjecturis, 1, 13). A conjectura é um modo de conhecer (por diferente natureza), ou seja, um conhecimento que remete fundamentalmente 116 para aquilo que é distinto de si mesmo, para a verdade como tal mas que precisamente por essa razão está em relação com a própria verdade, dela participando. Aqui, a diferente natureza do conhecimento relativamente à verdade serve para fundamentar o valor do conhecimento que, precisamente pela sua diferente natureza se põe em contacto com a verdade. Contanto que reconheça os seus limites e neles se baseie, o conhecimento humano será pois, válido; deixará de o ser quando não for ignorância douta, ou seja, quando esquecer a sua natureza diferente da verdade que é a sua única participação possível na mesma verdade. Correlativamente, o mundo, considerado na sua natureza diferente de Deus, implica necessariamente uma relação com Deus e até mesmo a sua identidade com ele. O mundo, é, segundo Nicolau de Cusa, um Deus contraído. As palavras contraído e contracção (Icontractio), são extraídas de Duns Escoto (§ 305) que as adoptara para designar a determinação e a concretização no indivíduo, da substância comum. Nicolau de Cusa emprega-as com um significado semelhante. O universo é o máximo, a unidade, e a infinidade tal como Deus, mas é um máximo, uma unidade e uma infinidade que se contrai, isto é, que se determina e se individualiza numa multiplicidade de coisas singulares. Deus, que é a essência absoluta do mundo, está no mundo, considerado na sua unidade, mas não rias coisas; o universo que é a essência contraída das coisas, está nestas de modo contraído, quer dizer. multiplicado e diferenciado pela sua multi117 plicidade e pela sua diferença. Resulta daqui que Deus é a essência (quidditas) do sol e da lua (como de todas as outras coisas) não está no sol nem na lua; porém, o universo que é a essência contraída, é sol no sol e lua na lua; a sua identidade realiza-se na diversidade e a sua unidade na pluralidade; é neste sentido que é contraído. (De d. ign., 11, 4). Mas esta relação entre Deus e o mundo, que a própria transcendência de Deus relativamente ao mundo pressupõe, significa que tudo quanto se pode encontrar no mundo existe, na sua necessidade e na sua verdade, em Deus. Neste sentido, Deus é a complicação (complicatio) de todas as coisas. Deus é, com efeito, identidade, igualdade, simplicidade; estas três coisas são porém, a complicatio da diversidade, da desigualdade, da divisão. Por
outro lado, é também a explicatio, ou seja, o desdobramento da identidade na diversidade, da igualdade na desigualdade, da simplicidade na divisibilidade. Pela sua explicação, Deus está em todas as coisas, embora permaneça absolutamente para além delas, pela sua unidade multiplicável. A especulação ulterior de Nicolau de Cusa incidiu, ora sobre um, ora sobre outro aspecto desta relação entre Deus e o mundo. Em De conjecturais, De idiota e De visione Dei acentua a inatingibilidade da transcendência divina, afirmando que a única fórmula capaz de a exprimir é a da coincidência dos contrários: coincidência do máximo e do mínimo, da compilação e da explicação, do todo e do nada, do criar e do criado. Esta coin118 cidência não pode porém ser apreendida nem compreendida pelo homem e por isso, Deus permanece para além do todo e qualquer conceito humano, como infinito absoluto, relativamente ao qual são nulos os passos de quem caminha na sua direcção. Todavia, em De noit aliud (1462) reconhece essa expressão non aflud como a que melhor exprime a transcendência divina. Significa ela, na verdade, que Deus não está nesta ou naquela coisa e que, portanto, não pode ser conhecido nem determinado mediante coisa alguma que dele seja distinta. Mas a fórmula exprime também a ideia de que Deus determina tudo quanto é distinto de si, abrindo assim caminho à compreensão da essência do mundo. Põe ela em evidência, por conseguinte, não só o carácter distinto do mundo relativamente a Deus mas também a conexão do mundo com Deus; é sobre esta conexão que insistem as outras obras de Nicolau de Cusa. Em De possest descobre tal conexão no conceito de possibilidade (posse). Tudo quanto é, pode ser o que é. Isto é válido mesmo para a realidade absoluta, isto é, para Deus: também essa pode ser. Porém, nessa, o poder ser não precede o ser actual; o poder ser, a realidade absoluta e a relação entre um e outro, são na realidade absoluta igualmente eternos. Em De venatione sapientiae Nicolau de Cusa distingue o poder fazer (posse facere), o poder transformar-se (posse fieri) e o poder ser feito (posse factum). O poder transformar-se precede o poder ser feito, mas o poder fazer precede o poder transformar-se; por essa razão o poder fazer é o principio e o termo 119 da possibilidade de tudo quanto se transforma ou é criado. É tudo o que pode ser e por conseguinte não pode ser nem maior nem menor, é o máximo e o mínimo absolutos e não pode ser outra coisa. Por esse motivo é a causa eficiente, a causa formal ou exemplar e a causa final de tudo, o princípio e o termo de todas as coisas criadas (De ven. sap. 39). O conceito da possibilidade serve aqui a Nicolau de Cusa para justificar e também para garantir a transcendência de Deus como posse facere em face do criado e a sua imanência nele como fundamento do posse fieri e do posse factum. Em De apice theoriae o mesmo conceito de possibilidade é reconhecido como o caminho mais directo e imediato para um conhecimento de Deus nos limites da douta ignorância. Sapientia clamat in plateis, dissera Nicolau de Cusa em De idiota (1, fi. 75 v. ): a verdade revela-,se nas expressões mais simples e
vulgares, empregadas por todos. Até mesmo a criança ou o jovem sabem o que significa a possibilidade, quando falam em poder correr, poder falar ou poder comer. Não há noção mais fácil nem mais certa do que a do posse, sem a qual não há realidade, nem bem; é ela pois que abre caminho à compreensão da misteriosa essência da realidade absoluta. Assim, partindo da douta ignorância, ou seja, dos limites que geralmente se aceitam e se reconhecem no saber humano, Nicolau de Cusa conseguiu de certo modo restabelecer sobre esses mesmos limites uma relação entre Deus, de um lado, e o 120 mundo e o homem, do outro, relação esta que lhe permite uma nova avaliação do homem. § 351. NICOLAU DE CUSA: A DOUTRINA DO HOMEM A doutrina da douta ignorância implica a ideia de que o homem não pode aventurar-se ao conhecimento de Deus sem ter em conta os seus limites. Implica todavia também a ideia de que nesses mesmos limites pode ele obter um conhecimento de Deus cuja. validade é garantida pela íntima relação que subsiste entre o homem e Deus. A velha doutrina da semelhança entre a mente divina e a mente humana é reafirmada por Nicolau de Cusa no sentido de que o homem pode descobrir nos limites da sua subjectividade a verdadeira face de Deus. E com efeito, a verdadeira face de Deus não se determina quantitativa nem qualitativamente, nem segundo o -tempo, nem segundo o espaço; é a forma absoluta, a face de todas as faces. Assemelha-se àqueles retratos que parecem fitar o observador, qualquer que seja a posição em que este se encontre. Quem olhar Deus com amor, verá o seu rosto olhá-lo amorosamente. Quem o olhar com ira, verá também irado o seu rosto. E quem o olhar com alegria, vê-lo,-á irradiando alegria. A objectividade humana empresta a sua própria cor ao semelhante divino, tal como uma lente colorida empresta a sua cor aos objectos observados. Mas é precisamente nesta multiplicidade de rostos divinos, 121 nesta multiplicação dos semblantes de Deus consoante a atitude subjectiva de quem o procura, que se encontra a revelação de Deus na sua verdade, Deus não pode revelar-se senão através da subjectividade do homem e esta subjectividade não é uni impedimento à procura de Deus e sim condição dessa procura (De vis. Dei, 6). A subjectividade humana é aqui reconhecida por Nicolau de Cusa em todo o seu valor; para se aproximar de Deus, o homem não deve negá-la nem aboli-Ia, mas antes reforçá-la e desenvolvê-la. É ela uma força assimiladora que se transforma em sensibilidade diante das coisas sensíveis e em razão diante das coisas racionais (De id., 111, 7). É unia semente divina que com a sua força reúne em si (Complicans) os modelos de todas as coisas e foi lançada à terra para que possa dar os seus frutos e produzir por si, conceptualmente, a totalidade das coisas (Ib., III, 5). A subjectividade humana é actividade, capacidade de iniciativa e de
desenvolvimento e possibilidade de realizar sempre novas aquisições no domínio do saber. "A natureza intelectual do homem", diz Nicolau de Cusa (Excitationes, V), "é capaz de Deus porque é potencialmente infinita: pode, na verdade, compreender sempre cada vez mais". E ela é também o princípio de toda e qualquer avaliação e até mesmo a própria condição do valor. Não quer isto dizer que seja o intelecto a criar o valor; todavia, sem o intelecto não haveria maneira de o apreciar e por conseguinte todas as coisas criadas careceriam de valor. Se Deus quis que à sua obra fosse atribuído um valor, teve que criar 122 o intelecto humano que é o único a poder estimá-lo (De ludo globi, 11). Por isso o homem não tem necessidade de romper os limites da sua subjectividade para se elevar até Deus. À pergunta de como será possível alcançar Deus, de como poderá o homem, atingir Deus, que é todo no todo, em si, recebe aquele do próprio Deus a resposta: Sê teu e serei teu. Aqui reside a verdadeira liberdade do homem. O homem pode, se quiser, pertencer-se a si próprio e só se for de si próprio é que Deus será seu. Por essa razão, Deus, embora não o necessitando, espera que o homem escolha ser de si próprio (De vis. Dei, 7). Assim a última consequência da douta ignorância, ou seja, do reconhecimento da transcendência absoluta de Deus, é o apelo divino ao homem para que escolha livremente ser ele próprio, reconhecendo-se na própria finitude, aceitando-a e realizando-a. Somente se não se negar a si próprio e livremente aceitar ser o que é, se colocará o homem numa relação autêntica com Deus e Deus será seu, tal como ele é de si próprio. Os limites que a douta ignorância reconhece ao homem, constituem assim, não a negação mas antes o fundamento do valor do homem. A criatura é um "Deus ocasionado" ou um "Deus criado", que não pode tender para outra coisa senão para ser aquilo que é e só desse modo consegue de alguma maneira reproduzir a infinidade de Deus (De d. ign., 11, 2). O valor que a criatura tem em si, dentro da sua finitude, é claramente patenteado pela encarnação do Verbo, o qual, ao assumir a natureza humana, que recolhe e unifica 123 em si todas as coisas, nobilitou e elevou, conjuntamente com o homem, todo o mundo natural Ub., 111, 2). O mistério da encarnação é assim para Nicolau de Cusa, expressão do vínculo que une a natureza finita do homem, justamente na medida em que é finita, à natureza infinita de Deus, ou seja, a demonstração do valor da subjectividade humana baseada precisamente naqueles limites de que a douta ignorância constitui o reconhecimento e a aceitação. § 352. NICOLAU DE CUSA: A NOVA COSMOLOGIA O princípio da douta ignorância leva Nicolau de Cusa a uma nova concepção do mundo físico, a qual, por um lado se vai ligar às pesquisas dos últimos
escolásticos, especialmente de Occam, e por outro preludia directamente a nova ciência de Kepler, Copérnico e galileu. Em primeiro lugar, o reconhecimento dos limites próprios da realidade e do valor do mundo conduz Nicolau de Cusa a negar que uma parte deste-a celeste-seja possuidora de uma absoluta perfeição e seja portanto ingénita e incorruptível. A doutrina de Aristóteles, que a filosofia medieval tinha feito sua, segundo a qual existe uma separação entre a substância celeste ou etérea, dotada de movimento circular perfeito, e a substância elementar dos corpos sublunares sujeitos ao nascimento e à morte, doutrina essa já posta em dúvida por Occam, acaba por ser definitivamente aniquilada por Nicolau de Cusa. Não 124 reconhece ele, na verdade, a nenhuma parte do mundo o privilégio da perfeição absoluta: todas as partes do mundo têm o mesmo valor e todas se aproximam mais ou menos da perfeição, mas nenhuma a alcança pois esta pertence única-mente a Deuis. O mundo não tem centro nem circunferência como o supusera Aristóteles. Se os tivesse e se por conseguinte tivesse dentro de si o seu princípio e o seu termo, haveria fora do mundo outro espaço e outra realidade, ambos destituídos de qualquer verdade. Só Deus é centro e circunferência do mundo; é porém um centro e uma circunferência não corpóreos e antes ideais, significando apenas que todo o mundo nele se reúne (complicans) e que ele está em todo o mundo (explicans). Da construção do mundo pode dizer-se unicamente que
sua luz, uma terra central, rodeada de uma zona aquosa, seguidamente, de uma atmosfera mais pura do que a nossa e por fim, de uma zona ígnea superficial; estas quatro esferas sucessivas comportar-se-iam como os quatro elementos terrestres. Por outro lado, se um homem se encontrasse no espaço exterior à terra, vê-la-ia resplandecer como o sol. E se a lua não nos aparece tão luminosa como o sol, é pelo facto de estarmos demasiado perto dela, quase na sua zona aquosa (Ib., 11, 12). Os movimentos que se verificam na terra como em qualquer outra parte do mundo, têm por fim salvaguardar e garantir a ordem e a unidade do todo. De acordo com esse fim, os corpos pesados tendem para a terra, os corpos leves para o alto, a terra para a terra, a água para a água, o ar para o ar, o fogo para o fogo, o movimento do todo, tanto quanto possível, para o movimento circular, e todas as formas para a forma esférica, como se 126 vê nas partes constituintes dos animais e das árvores e ainda no céu (Ib., 11, 12). Foi esta talvez a primeira formulação do princípio da gravidade. A concepção do mundo aparecia completamente renovada pela obra de Nicolau de Cusa. Retoma ele também a teoria do impetus que os filósofos da escola occamista (§ 325) tinham formulado para explicar o movimento dos céus e dos projécteis, negando o princípio ari,stotélico, segundo o qual o motor deve acompanhar o móvel na sua trajectória e reconhecendo assim a existência da lei da inércia que constitui uma das bases da mecânica moderna. Todo e qualquer corpo, como a bola lançada pelo jogador, prossegue indefinidamente no seu movimento até que o poso ou outros obstáculos o façam afrouxar ou parar (De ludo globi, 1). A mecânica de Leonardo da Vinci foi buscar a Nicolau de Cusa a sua inspiração. § 353. O PLATONISMO ITALIANO Enquanto Nicolau de Cusa elaborava a sua filosofia que, ao renovar o platonismo, renovava igualmente a concepção do homem e do seu mundo, travava-se em Itália a polémica sobre o platonismo e seu valor relativamente ao aristotelismo. Esta polémica fora iniciada por Jorge Gemisto Pletone, nascido em Constantinópla por alturas de 1355 e falecido em 1464. Tendo vindo a Itália para participar no Concílio de Florença, que devia decidir a união das igrejas grega e latina, foi dos que fomentaram 127 aqui o conhecimento da língua grega e portanto o estudo directo das obras clássicas. Pletone ora partidário de uma unificação total das crenças religiosas com base no platonismo. Via em Platão aquele em cujo nome a humanidade poderia encontrar a sua unidade religiosa e por conseguinte a paz; neste espírito escreveu o Confronto das filosofias de Platão e Aristóteles (por volta de 1440) que deu origem a uma longa e acesa polémica durante a qual foram alternadamente. exaltadas as figuras dos dois filósofos. A esperança da unificação das religiões não era um sonho exclusivo de Pletone. O próprio Nicolau de Cusa, alguns anos depois, manifestava em De pace fidei (1454) a mesma esperança e
suplicava a Deus que permitisse aos homens o venerá-lo numa única religião, ainda que tivesse de subsistir a diversidade de cerimónias e ritos. Nicolau de Cusa baseava especulativamente a sua esperança na doutrina que já expusemos (§ 351), da diversidade dos rostos divinos. Pletone, baseia-a numa rovivescência do platonismo no qual via porém, não já a doutrina original de Platão e sim a dos Neoplatónicos. e Neopitagóricos da filosofia helenística (§§ 117 e segs.) mesclada de elementos orientais aos quais o próprio Pletone se refere expressamente. Com efeito, há entre as suas obras um comentário aos chamados Oráculos caldaicos, por ele atribuídos a Zoroastro, mas que na realidade são uma misturada de teses pertencentes ao neoplatonismo siríaco (§ 125). A obra de Pleitone é importante apenas pelo facto de exprimir a convicção, pró pria do Renascimento, de que a renovação do homem e da sua vida religiosa 128 e social só se poderá atingir mediante um regresso às doutrinas filosófIcas dos antigos. As ideias religiosas de Gemâsto foram combatidas por Gennadio, teólogo da igreja oriental, também participante no concílio de Florença, por Teodoro Gaza e por Jorge de Trebizonda que escreveu contra ele uma obra intitulada Confronto das filosofias de Aristóteles e Platão (sobre estes v. § 360). Em defesa de Pletone interveio Basílio Bessarion (nascido em Trebizonda em 1403 e falecido em Ravena em 1472) com um escrito intitulado Contra um caluniador de Platão. A preocupação inicial de Bessarion é a de não condenar Aristóteles para defender Platão, demonstrando, pelo contrário, na medida do possível, a sua concordância fundamental. A superioridade de Platão relativamente a Aristóteles reside, segundo Bessarion, no facto de Platão, mais do que Aristóteles, se ter aproximado da verdade revelada pelo cristianismo, embora sem a alcançar plenamente. Bessarion pretendo porém, expressamente, reconduzir as doutrinas, quer de Platão, quer de Aristóteles, ao seu genuíno significado; é este igualmente o objectivo das suas inúmeras traduções: da Metafísica de Aristóteles, dos Memoráveis de Xenofonte, dos fragmentos de Teofrasto. O interesse que estas discussões provocaram pela filosofia de Platão exprimiu-se pela fundação em Florença da Academia platónica. Ficou esta a dever-se à iniciativa de Marcílio. Ficino e Cosme de ,Médicis, e reuniu um círculo de pessoas que viam num regresso às doutrinas autênticas do platonismo antigo a possibilidade de renovação do homem e 129 da vida religiosa e social. Os sequazes da Academia, especialmente Marcílio Ficino e Cristóvão Landino, viam no Platonismo a síntese de todo o pensamento religioso da antiguidade e portanto também do cristianismo que, por esse, motivo, seria a religião mais elevada e verdadeira possível. A doutrina de Platão ora na verdade considerada por Ficino (Prohemium ad Merc. p. 1836) como a última e mais perfeita manifestação daquela teologia de que Mercúrio Trismegisto fora o iniciador e que fôra depois continuada e
desenvolvida por Orfeu e Pitágoras. A concordância entre esta teologia e o cristianismo explicava-se através do reconhecimento de uma fonte comum das doutrinas de Platão e Moisés, fonte essa contida nos ensinamentos de Mercúrio Trismegisto que teriam constituído o núcleo de toda a teologia posterior. O regresso ao platonismo não significava pois para os sequazes da Academia platónica um regresso ao paganismo mas antes uma renovação do cristianismo, pela sua recondução à fonte original que teria sido precisamente o platonismo. A este regresso ao antigo está ligada outra faceta da Academia platónica, o anticuriailismo. Contra as pretensões de supremacia política do papado, a Academia platónica defendia o regresso às ideias imperiais de Roma pelo que o De monarchia de Dante ora frequentemente objecto de comentários e discussões. Entre os membros da Academia e além dos inúmeros letrados e crudátos da época que se congregavam em redor de Lourenço, o Magnífico, e de Ficino, destaca-se Cristóvão Landino que viveu entre 1424 e 1498. Nas Disputationes 130 camaldulenses e no De nobilitate atimae, diálogos em que falam os membros ilustres da Academia, encontram-se expostas e defendidas as doutrinas de Ficino. Porém a figura que constituiu o elemento animador da Academia, foi o próprio Marcílio Ficino. § 354. FICINO: A ALMA, CóPULA DO MUNDO Marcílio Ficino nasceu em Figline, no Valdarno em 19 de Outubro de 1433 o fez os seus estudos em Florenç a e Pisa. Tendo entrado em contacto com Cosmo de Médicis, deste recebeu encorajamonto e auxílio, bem como o encargo de traduzir Platão. Na villa Careggi oferta de Cosme, Ficino entregou-se durante muitos anos ao estudo e difusão do platonismo, reunindo à sua volta aquele círculo de amigos e discípulos que constituía a Academia platónica. Tendo adoecido gravemente em 1474, em vão buscou alívio, como ele próprio conta (Ep., I, fis. 644), na filosofia e nos escritores profanos; só se curou depois de ter feito uma promessa a Maria. Resolveu então pôr a sua actividade filosófica ao serviç o da religião e formulou por isso claramente o princípio directivo da sua especulaçãoa unidade intrínseca da filosofia e da religião. Nos últimos anos da sua vida assistiu às contendas que afligiram Florença e à tentativa de Savonarola a que foi hostil. Faleceu em 3 de Outubro de 1499 e foi sepultado em S. Maria del Fiore. Ficino, quando jovem, escrevera um tratado intitulado De voluptate 131 (1457). A primeira obra escrita após a crise foi De christiana religione, em 1474, que escreveu primeiro em italiano e depois em latim. Em 1482 saíu a TheoJogia platonica; em 1489 o De vita; em 1492 saíram os 12 livros das Epístolas que na realidade consistem numa colecção de ensaios e opúsculos. Importantes são os comentários a Platão, especialmente o que incide sobre o Banquete. Ficino traduziu para latim os diálogos de Platão, as Enéadas de Plotino e inúmeras outras obras de escritores gregos (Atenágoras, Jâmblico, Proelo, Porfirio, Psofios, Xenócrates, Sinésio, Spêusipo, Pitágoras e Hermias). O objectivo declarado da especulação de Ficino é o de renovar e promover a união entre religião e filosofia. Esta união existiu na antiguidade em todos aqueles povos entre os quais religião e filosofia tiveram amplo desenvolvimento. A sua separação provocou a decadência tanto da religião que se tornou superstição ignorante como da filosofia que se tornou iniquidade e astúcia. A renovação conjunta da religião e da filosofia só se pode atingir
através do restabelecimento da sua correlação e para tanto é necessário recorrer ao platonismo no qual é mais estreito o nexo existente, entre religião e filosofia e que por conseguinte permite a revivescência de tal nexo na sua fecundidade (De christ. rel., proém., II, Theol. plat., proém.; In Plotin., proém.). O próprio título da principal obra de Ficino exprime-lhe a intenção: a Theologia platónica tem por objectivo renovar a especulação cristã, ligando-a ao platonismo. Porém, uma especulação assim entendida deve necessàriamente ter no homem o 132 seu centro. A teologia medieval tem por objecto únicamente Deus mas a teologia tal como Ficino a entende, tem realmente por objecto o homem,, uma vez que o único fim de uma especulação religiosa ou de uma religião filosófica é a renovação do homem. O significado que para Ficino contém a redenção confirma esta posição central do homem. A redenção é uma reformatio, uma reforma ou uma renovação, pela qual no homem e através do homem, toda a natureza criada aparece restituída à sua forma e reconduzida a Deus. Ficíno observa que a reforma das coisas disformes é para a divindade uma tarefa não menos importante do que a sua formação inicial. Pela redenção, Deus "declarou e fez com que nada existisse de disforme nem de desprezível no mundo, uma vez que uniu as coisas terrenas ao rei do céu, adequando-as assim, de certo modo, às coisas celestes" (De christ. rel., 18). É pois no homem que reside o centro e o núcleo de todo o ser. * Pode dizer-se que toda a especulação de Ficino incide sobre esta posição central do homem no mundo. Toda a realidade se diferencia em cinco graus: o corpo, a qualidade, a alma, o anjo e Deus. A alma encontra-se no meio e é por isso a terceira essência ou essência média: quer ascendendo do corpo para Deus, quer descendo de Deus até ao corpo, encontra-se sempre no terceiro grau. Por conseguinte é o núcleo vivo da realidade. Deus e o corpo são muitíssimo diferentes um do outro e constituem os dois extremos do ser. O anjo não **hga ~s dois extremos pois está completamente 133 voltado para Deus, descurando os corpos. A qualidade também os não liga pois se inclina paira o corpo, descurando as coisas superiores. A alma prendo-se às coisas superiores sem deixar as inferiores; é imóvel como aquelas e móvel como estas; concorda com umas e deseja-as a ambas. Move-se em direcção a um extremo sem abandonar o outro e por conseguinte é a verdadeira cópula do mundo (Theol. plat, 111, 2). Introduz-se entre as coisas mortais sem ser mortal, pois introduz-se íntegra e não repartida e portanto retira-se íntegra e não dispersa. Enquanto rege os corpos adere ao divino e por isso não é companheira e sim senhora dos corpos. É simultaneamente todas as coisas porque traz em si a imagem das coisas divinas das quais depende, e os motivos ou modelos das coisas inferi que de certo modo produz. É considerada por Ficino como o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a cadeia do mundo, a face do todo, o núoleo e cópula do mundo (Ib., 111, 2). Em virtude desta sua natureza, a alma é necessária à economia e à ordem do mundo e por isso deve ser indestrutível. Ficino retoma todos os argumentos
aduzidos por Platão e pelos Neoplatônicos em apoio de tal, indestrutibilidade; porém o principal argumento e o que mais intrinsecamente se prende com a natureza por ele atribuída à alma é o que se baseia na participação que esta tem no infinito, A alma é capaz de medir e dividir o tempo, e ainda de remontar indefinidamente no curso deste em direcção ao passado ou de o estender infinitamente em direcção ao futuro. É ela que descobre 134 e define a infinidade do tempo assim como é também a verdadeira medida de tal infinidade. Mas a medida deve ser proporcional àquilo que mede: a própria alma deve ser portanto infinita, como medida do infinito (Ib., VIII, 16). E esta infinidade revela-se com efeito nas suas próprias aspirações. A posse de corta coisa, a obtenção de um certo prazer, bastam para satisfazer todos os restantes seres animais. Só o homem jamais está contente com o que possui (Ib., XIV, 7). Ao lado desta característica da infinidade, que distingue o homem das outras criaturas, há uma outra, igualmente distintiva do homem e que é a liberdade. Ficino admite a existência de uma tríplice ordem divina do mundo: a providência, que é a ordem que governa os espíritos, o destino que é a ordem que governa os seres animados e a natureza, que governa os corpos. O homem é porém livre porque, embora participando destas três ordens, não é determinado por nenhuma delas. A sua natureza média permte-lhe participar duma ou doutra, segundo a sua livre escolha, mas sem ficar submetido ao seu determinismo. Participa nestas três ordens de modo activo e não passivo: participando na providência, a exemplo do governo divino, governa-se a si próprio e governa a casa, o estado e os **am,*mais; participando no destino com a imaginação e a sensibilidade (que o ligam aos outros animais) governa o próprio destino; e participando na natureza, adquire o **d~io dos corpos. Por isso está liberto da necessidade e segue, livremente ora esta, ora aquela lei, servindo-se delas 135 como instrumento mas sem lhes sofrer os efeitos (lb., XIII). A sua verdadeira escolha é portanto a escolha da liberdade. Retomando a fórmula de Nicolau de Cusa, Ficino afirma que o homem, ao decidir-se pela acção, opta mais por pertencer a si próprio, do que por servir este ou aquele e por isso o acto verdadeiramente livre é aquele que escolhe a Liberdade (lb., IX, 4). Também para Ficino, tal como para Nicolau de Cusa, o homem não deve procurar ser senão ele próprio. § 355. FICINO: A DOUTRINA DO AMOR Ao carácter medianeiro da alma está ligado o amor que é justamente a actividade pela qual a alma desempenha a sua função medianeira. Ficino parte duma descrição mítica das origens do amor na qual se revela já a sua ideia dominante. Os três
mundos criados por Deus, o da mente angélica, o da alma e o das coisas sensíveis, provêm todos do caos. Em primeiro lugar, Deus cria a substância ou essência da mente angélica a qual, nos primeiros momentos, é obscura e informe. Porém, uma vez que nasceu de Deus, volta a Deus pelo desejo. Movida pelo desejo e iluminada pelo raio divino, determina-se e forma-se, e nela se determinam e formam as ideias modelos da criação. Este processa que vai do caos à determinação consumada das ideias arquétipos da criação é o processo do amor. 136 MARSILIO FICINO o primeiro regresso da mente a Deus é o nascimento do amor; a infusão do raio divino é a nutrição do amor, a inflamação da mente é o incremento do amor, o aproximar-se a mente de Deus é o arrebatamento do amor; a formação da mente é a perfeição do amor. Assim pois, foi a criação guiada pelo amor, do caos até ao cosmos; e a característica do cosmos como tal é a beleza. Por via da beleza, o amor conduziu a mente primeiramente disforme até à formação acabada (In Conv. Plat. de am. comm., 1, 3). Porém o que faz do amor a actividade medianeira do universo é a natureza recíproca das relações que estabelece entre Deus e o mundo. Não é apenas o mundo que tende para Deus e se forma nesta sua tendência, mas é o próprio Deus que ama o mundo. O homem não poderia amar Deus se este mesmo o não amasse. Deus volta-se para o mundo num acto livre de amor, toma-o a seu cuidado e torna-o vivo e activo. O amor explica a liberdade de acção tanto divina como humana, uma vez que é livre e nasce espontaneamente da livre vontade (lb., V, 8). Deus forma e governa livremente o mundo e livremente o homem se eleva até Deus. O amor é o vínculo do mundo e é ele que abole a indignidade da natureza corpórea, a qual é resgatada pela solicitude de Deus (Theol. plat., XVI, 7). "São três", afirma Ficino, "os benefícios do amor: reconduzindo-nos à integridade, de divididos que estávamos, reconduz-nos ao céu; coloca cada um no seu lugar e faz com que, nesta distribuição, todos ~ satisfeitos, extingue todos os aborreci137 mentos e acende na alma uma alegria continuamente nova, tornando-a feliz, com um doce o brando prazer" . (In Conv., IV, 6). Deste modo o amor é, não só a condição da ascensão do homem para Deus, mas também o próprio acto da criação, ou seja, da descida de Deus até à criatura. As duas doutrinas fundamentais de Ficino, a da alma medianeira e a do amor, constituem as facetas originais do platonismo do Renascimento. Repete ele incontestavelmente o esquema neoplatónico, servindo-se porém deste para acentuar a função central do homem. O centro da especulação original é o próprio Deus, unidade absoluta, da qual tudo deriva e à qual tudo regressa. O centro da especulação platónica de Ficino, como de Nicolau de Cusa, é o homem na sua função medianeira e por conseguinte no amor como justificação e acto desta função. O homem é situado pelo platonismo de Nicolau de Cusa e de Ficino numa posição particularmente sua que faz dele um elemento indispensável da ordem e da unidade dinâmica do ser. Contínua este a ter a sua origem e a sua perfeição em Deus, encontrando porém a sua verdadeira unidade vivente e autojustificante no homem e no amor que o liga a Deus e que Deus lhe retribui. A noção dos limites do homem e da transcendência do ser relativamente a esses limites é parte essencial do platonismo
histórico original. Mas mesmo estes limites constituem, para Nicolau de Cusa e Ficino, a originalidade da natureza humana e o fundamento do seu valor e da sua liberdade. 138 § 356. LEÃO HEBREU A teoria ficiniana do amor foi retomada por Leão Hebreu, nascido em Lisboa entre 1460 e 1463 e falecido entre 1520 e 1535, provavelmente em Ferrara. Deixou escritos os Diálogos de **anwr, editados pela primeira vez em Roma em 1535 e que tiveram logo inúmeras traduções e vastíssima difusão. A doutrina ali exposta é substancialmente a de Marcílio Ficino. Descreve-se ali o amor como o duplo processo que vai de Deus às criaturas e do homem para Deus e que faz do homem o centro do universo, o ser sem o qual o mundo inferior estaria completamente separado de Deus. Atribui-se ao amor a circularidade do processo cósmico que deriva de Deus e a Deus regressa. O intelecto humano, ao unir-se ao corpo, transporta a luz divina do mundo superior para o inferior e faz assim participar de Deus tudo quanto foi criado. O amor de Deus é o desejo de que o mundo, que lhe é inferior em perfeição, atinja o grau máximo de perfeição e beleza, o amor do homem, através do qual o próprio mundo ama Deus, tem como fim último a plena e absoluta união com Deus. Esta metafísica. do amor, que já se encontrava em Nicolau de Cusa e em Ficino, constitui um traço comum do platonismo do renascimento. Prestava-se ela, com efeito, não só a justificar a posição central do homem no mundo mas também e sobretudo, a exprimir o carácter religioso daquele platonismo que via na filosofia platónica a mais perfeita sín139 tese religiosa da antiguidade, reconhecendo nela a única via para a renovação religiosa do homem. § 357. PICO DE MIRÃNDOLA: A PAZ REGENERADORA O interesse religioso domina também a complexa figura de Pico. João Pico, conde de Mirândola, nasceu em Mirândola em 24 de Fevereiro de 1463. Após haver estudado em Bolonha e Ferrara, foi a Pádua entre 1480 e 1482, onde entrou em contacto com o averroísmo ensinado na Universidade local. Pico não tinha a prevenção dos humanistas contra os "bárbaros" filósofos medievais. Numa carta de 1485 para Ermolao Bárbaro (§ 340), condena a atitude dos que sacrificam a aparência à substância e se deixam derrotar pelas especulações daqueles que pouco cuidam dos ornamentos do discurso. Precisamente pelo desejo de entrar em mais estreito contacto com os filósofos árabes e escolásticos, cuja doutrina predominava ainda na Universidade de Paris, dirigiu-se a esta cidade. Em 1485 voltou ali, com o fim de anunciar uma grande discussão entre eruditos convocados em Roma a expensas suas, sobre 900 teses; algumas destas revelaram-se heréticas e foram condenadas. Pico defendeu-as na sua Apologia. Para fugir à condenação, dirigiu-se a França e em seguida fixou-se em Florença, onde manteve relações de amizade com Lourenço, o Magnífico, Ficino, Polinizado e com o próprio Savonarola pelo qual se deixou, nos últimos anos da sua
140 vida, converter à ideia da necessidade de uma reforma moral da igreja. Morreu em Florença em 17 de Novembro de 1494, ao que parece, envenenado pelo secretário. Entre as suas obras, além da Apologia e da carta para Bárbaro, cabe referir as seguintes: Heptalus**, comentário aos primeiros capítulos do Génese, editado em 1489; De ente et uno (1492), tentativa de síntese entre aristotelismo e platonismo; e Oratio, de dignitate hominis. Após a sua morte foram publicadas as Disputationes adversus astrologos, obra que é uma crítica da astrologia, as Conclusiones que desenvolvem as 900 teses que tinha preparado para a discussão em Roma o Comentário a uma canção de amor de Gerolamo Benivieni. De temperamento passional (viu-se implicado num clamoroso escândalo por causa do rapto de uma dama florentina), investigador incansável e irrequieto, erudito excepcional, João Pico não alcançou na sua especulação, nem a profundidade de Nicolau de Cusa nem a clareza de Ficino. No seu pensamento convergem os mais diversos elementos, derivados do platonismo e do aristotelismo, da cabala e da magia, e ainda da escolástica medieval, árabe, hebraica e latina, sem chegarem a fundir-se numa unidade especulativa original. O que o liga principalmente ao platonismo é o interesse religioso que domina a sua actividade especulativa. No discurso De hominis dignitate que preparou como introdução à discussão sobre as 900 teses que deveria ter tido lugar em Roma e que tem sido justamente designado como o manifesto do Renascimento ita141 liano, expõe Pico admirâvelmente o e~ e o plano do seu filosofar, plano este, ao qual se mantém fiel em todo o resto da sua obra. O ponto de partida do discurso é a superioridade do homem sobre as restantes criaturas, que era o tema favorito dos humanistas bem como de Nicolau de Cusa e de Ficino. Ao homem, último produto da criação, não ficara disponível nenhum dos bens já distribuídos na totalidade às outras criaturas. Deus decretou então que lhe fosse comum tudo o que individualmente destinara aos outras. "Por essa razão acolheu o homem como obra de natureza indefinida e após tê-lo colocado no coração do mundo, falou-lhe deste modo: Não te dei, ó Adão, nem lugar determinado, nem aparência própria, nem qualquer prerrogativa especial, para que obtenhas e conserves o lugar, a aparência e as prerrogativas que desejares, de acordo com a tua opinião e esse mesmo desejo. A natureza limitada dos outros está contida nas leis por mim prescritas. Determinarás a tua, livre de qualquer obstáculo e segundo o teu arbítrio a cujo poder te confiei. Coloquei-te no centro do mundo para que daí pudesses avistar melhor tudo quanto há no mundo. Não te fiz nem celestial nem terreno, nem mortal nem imortal, para que, sendo de ti próprio o quase livre o soberano artífice, te moldasses e esculpisses na forma da tua preferência. Poderás degenerar nas coisas inferiores, poderás, segundo a tua vontade, regenerar-te nas coisas superiores que são divinas" (Or. de hom. dign., fis. 131 v. ). A indeterminação da natureza humana ofer~ ao 142 homem a livre escolha do seu ser e coloca-o face à alternativa de degenerar ao nível dos
animais irracionais ou de se regenerar em Deus. Mas este regenerar-se não é senão a renascença do homem, ou seja, aquela renovação que o Renascimento, na sua totalidade, tende a realizar. Qual é a via dessa renascença? É precisamente aqui que se revela o aspecto religioso da filosofia de Pico. A renascença realizar-se-á através de vários graus de sabedoria, culminando no mais alto que é o constituído pela sabedoria teológica. "Mas já que não podemos **deançá-la", acrescenta Pico, "nós, que somos carne e temos o gosto das coisas terrenas, aproximemo-nos dos antigos padres, que destas coisas, para eles tão familiares e tão próximas, nos poderão dar riquíssimo e seguro testemunho," (lb., fis. 132 v. ). Por conseguiinte, a via da renascença consiste uma vez mais no regresso aos antigos. E é nos antigos que Pico encontra o caminho da sabedoria purificante e libertadora. A ciência moral dominará o ímpeto das paixões, a filosofia natural conduzirá o homem de um grau a outro da natureza e a teologia aproximá-lo-á de Deus. Mas a regeneração não terá lugar senão na paz e pela paz, É este o fim último do homem e é um fim religioso. Aquela não poderão conduzir, nem a dialéctica, nem a ciência moral, nem a filosofia natural, as quais se limitarão a indicar o caminho, Só a teologia indissolúvel e a amizade harmónica, pela qual todos os homens não só se harmonizam naquela única mente que está acima de todas as mentes, como, de modo inefável, se 143 fundem num só" (Ib., fls. 133 v.'). Estas paz e amizade que para os Pictóricos constituíam o fim da filosofia, cifram-se na paz celeste que a mensagem cristã anunciou aos homens de boa vontade, e que cada um de nós deseja para si próprio, aos seus amigos e a toda a sua época. Esta paz regeneradora é também aquela que Pico quer afirmar e estabelecer filosoficamente, mostrando o acordo fundamental de todas as principais manifestações do pensamento, dos Pictóricos a Platão e Aristóteles, dos Neoplatónicos aos Escolásticos e dos averroístas à cabala e à magia. Aquilo que impele Pico à tentativa de demonstrar o acordo fundamental entre as mais diversas doutrinas filosóficas e religiosas da humanidade, não é uma necessidade de quietude ecléctica mas sim a convicção de que só por meio da paz filosófica poderá o homem regenerar-se e renascer para a sua verdadeira vida. Esta verdadeira vida que é a felicidade e o sumo bem é definida por Pico como o regresso ao princípio (De ente et uno, VH, proém.). Regresso ao principio pode significar para cada ser, regresso ao seu próprio princípio ou -regresso ao princípio absoluto que é Deus. Mas o regresso ao seu próprio princípio é na realidade um regresso a si próprio e desse modo, o homem poderá obter apenas a beatitude terrena e não a eterna. Por conseguinte, só no regresso a Deus residem a vida eterna e a paz definitiva do homem. Se o platonismo e o aristotelismo do Renascimento representam respectivamente as exigências opostas da vida religiosa e da investigação científica, a conciliação, entre Platão e Aristóteles representa para Pico 144 a harmonia e a paz entre aquelas exigências. A teologia não nega a filosofia natural, antes a completa assim como Platão completa Aristóteles: o homem não pode renunciar nem a conhecer a natureza nem a transcendê-la. A aspiração à paz regeneradora sugere a Pico o único tema original da sua especulação teológica. Apresenta na verdade, para ilustrar a tradicional
semelhança entre a criatura e Deus, um esboço que, segundo ele próprio afirma, jamais foi apresentado por outros. Vê a unidade das criaturas diferenciada em três formas: a primeira é a unidade pela qual cada coisa é una; a segunda é aquela pela qual uma criatura se une a outra e todas se unem para formarem o mundo; a terceira é aquela pela qual todo o universo forma, com o seu artífice, um todo uno, tal como o exército com o seu chefe. Esta tríplice unidade que está presente em todas as coisas, faz de cada coisa a imagem da trindade divina. E portanto, aquilo que de semelhante a Deus há em cada criatura singular, aquilo que constitui o seu maior valor, é a unidade, a paz ou a concórd,ia da sua constituição intrínseca, paz e concórdia que a ligam às outras criaturas e a Deus. § 358. PICO DE MIRÃNDOLA: CABALA, MAGIA E ASTROLOGIA Todas as obras de Pico tendem a realizar o projecto de uma paz filosófica. A esta paz deveria conduzir a grande discussão de Roma e nela se 145 inspira fundamentalmente o discurso introdutório De hominis dignitate. A obra De ente et uno destina-se à demonstração do acordo existente entre Platão e Aristóteles. Por sua vez, o Heptalus destina-se à demonstração do acordo existente entro a filosofia antiga e a narração bíblica da criação. E a última obra de Pico, a que é dirigida contra os astrólogos, destina-se também a ilustrar a concordância existente entre as doutrinas mágicas e astrológicas e o cristianismo. A narração bíblica da criação é interpretada por Pico no Heptalus em sentido alegórico: vê nela a descrição da formação dos três mundos admitidos pelos filósofos antigos, ou sejam, o mundo inteligível ou angélico, o mundo celestial e o mundo sublunar, aos quais se junta uni quarto que é o homem como microcosmo, no qual converge todo o resto da realidade. A obra De enle et uno descobre a concordância entre Platão e Aristóteles na determinação das categorias fundamentais da realidade que são o ser, o uno, o verdadeiro e o bem, categorias estas que culminam e se unificam em Deus. Nas duas obras, como nas outras, Pico recorre continuamente a doutrinas orientais, mágicas e cabalísticas, na convicção de que a origem de todo o saber humano seja uno e que esta unidade, reconstituindo-se, torne o próprio saber capaz da regeneração do homem. A magia, a cabala e a astrologia desempenham portanto um grande papel na especulação de Pico. A magia, para ele, não é más do que "a realização completa da filosofia natural" (Or. de hom. 146 dign., fis. 136 v ). Há também uma magia que opera, baseando-se exclusivamente na obra e na autoridade dos demónios; é porém coisa execranda e monstruosa que nada tem a ver com a verdadeira magia, a qual se destina a fazer do homem o senhor das forças naturais. Esta, perscruta a íntima concórdia do universo a que os Gregos chamam simpatia e que, consiste nas mútuas relações das coisas naturais. Os sortilégios dos magos não são mais que as ilusões apropriadas, pelas quais se tornam visíveis os milagres
ocultos nos penetrais do mundo e nos mistérios de Deus. E assim como o camponês casa os olmos com as videiras, assim também o mago casa a terra com o céu, ou seja, as forças inferiores com os dotes e faculdades superiores (Ib., fis. 137). O mago não transgride, portanto, a ordem natural mas antes a submete, pondo em acto e ajustando as energias que jazem disseminadas e dispersas na natureza (Concl. mag., XI, XIII). Se a magia serve para penetrar os mistérios da natureza, a cabala serve para penetrar os mistérios divinos. Pico considera-a, na verdade, como o melhor guia para a interpretação das sagradas escrituras, sob o véu dos símbolos, no seu genuíno significado. As doutrinas da cabala (ver § 244) parecem pois a Pico estar em perfeito acordo, não só com a doutrina da igreja e com a filosofia cristã mas também com as de Pitágoras e Platão (Or. de hom. dign., fis. 138 vo). A convicção de que através da cabala as doutrinas básicas do cristianismo remontam a uma tradição antiquíssima, reforça a vontade 147 de Pico em renovar a religiosidade do seu tempo mediante um regresso às suas fontes originais. A sua atitude é porém diferente no que se refere à astrologia. Em face do determinismo astrológico que fora afirmado pela filosofia árabe da Idade Média e dominava ainda a filosofia natural do ocidente, Pico faz-se paladino da liberdade do homem. A astrologia pode ser entendida em dois sentidos. Em primeiro lugar é astrologia matemática ou especulativa, quer dizer, astronomia, a qual se preocupa unicamente com a determinação das leis matemáticas do universo. Em segundo lugar é astrologia judiciária ou divinatriz, preitendendo fazer provir do curso e da natureza dos astros os acontecimentos da vida terrena. Contra esta última se dirige a obra de Pico Disputationes in astrologiam. Converte ela, na sua opinião, os homens, de livres a escravos e fá-los ainda desgraçados, ansiosos, inquietos o infelizes em quase todos os seus actos (Ib., 1, proém.). É absurdo supor que o nascimento de um homem como Aristóteles seja devido à influência dos astros. Muitos outros nasceram ao mesmo tempo que ele e não possuíram o seu talento. Este, recebeu-o ele de Deus e não do céu; o corpo apto a servi-lo, recebeu-o dos pais o tão-pouco do céu. Escolheu a filosofia e essa escolha foi fruto da sua livre vontade; nada existe nele que se possa atribuir à influência dos astros (Ib., 111, 27). A acção dos céus, que Pico considera, tal como Aristóteles, de natureza imutável e incorruptível, deveria ser uniforme e constante e não explicaria por essa razão, a variedade e a mutabilidade, dos acontecimentos. 148 terrenos (Ib., HI, 7). Pôs e acima de tudo, a astrologia inverte a relação hierárquica que é própria, da realidade, pois subordina o superior ao inferior, visto que, se o céu é sem dúvida superior às coisas terrenas, o homem, como ~o e liame do universo inteiro é superior ao pró prio céu. Através da investigação cientifica, o homem encontra-se em posição de compreender as leis naturais servindo-se disso para dominar a natureza. A
astrologia anularia esta liberdade e torná-lo-ia. escravo (Ib., IV, 8). Pico defendia, deste modo, contra uma das mais difundidas e arraigadas crenças do seu tempo, a dignidade do homem como responsabilidade em face do próprio destino. § 359. FRANCISCO PATRIZZI O mesmo propósito de renovação religiosa, próprio do platonismo renascentista, domina a obra de Francisco Patrizzi. Nascido em Cherso, na Dalmácia, em 1529, estudou em Veneza e em Pádua. De 1576 a 1593 ensinou filosofia platónica, em Ferrara e seguidamente foi chamado para idênticas funções em Roma, onde faleceu= em 1597. As suas principais obras são as Discussiones peripateticae e a Philosophia nova. A primeira tem como assunto a aniquilação da filosofia aristotélica e a segunda, a construção de uma filosofia platónica que possa servir de base à fé cristã. Patrizzi considera a filosofia aristoté lica como inimiga da religião, uma vez que nega a omnipotência divina e o governo divino do 149 mundo; afirma ainda que os Escolásticos não são verdadeiros filósofos na medida em que não fizeram senão reformar a filosofia aristotélica sem cuidarem de conhecer as coisas tal como são. A sua filosofia tem por objectivo a renovação e defesa da religião cristã através do regresso às doutrinas pré-aristotélicas e particularmente às crenças orientais, pitagóricas e platónicas. Ao dedicar a sua obra ao papa Gregório XIV, convida-o a mandar ensinar a sua filosofia em todas as escolas cristãs, chegando a crer que tal provocaria o regresso dos protestantes ao seio da igreja. A Philosophia nova está dividida em quatro partes: a panaugia ou doutrina da luz, a panarchia ou doutrina do primeiro princípio de todas as coisas, a panpsichia ou doutrina da alma e a pancosmia ou doutrina do mundo. Patrizzi afirma, com os Neoplatónicos, como primeiro princípio, o Uno. O Uno é a causa primeira, absoluta e incondicionada, e não pode ser qualificado senão como o bem. Do Uno se distingue a unidade, gerada a partir dele, e da unidade os outros graus do ser até aos menos perfeitos: a sabedoria, a vida, o intelecto, a alma, a natureza, a qualidade, a forma e o corpo. O conjunto destas nove ordens da realidade constitui o universo inteiro. O conhecimento humano é um acto de amor que tende a regressar à unidade original, suprimindo a separação entre os elementos do ser. É definido por Patrizzi como "a união com o objecto cognoscível" (Panarch., XV) e consiste no acto de amor pelo qual o homem tende para o objecto, procurando suprimir a distância que o separa deste último. Mas 150 este identificar-se o intelecto cognoscitivo com o objecto, esta coitio, só é possível com base numa identidade de natureza entre sujeito e objecto. Se o sujeito é alma e vida, também o objecto é alma e vida; Patrizzi defende a animação universal das coisas, o panpsiquismo, como sendo o único princípio capaz de explicar a sua conexão no mundo, a simpatia que as liga até formarem o todo e as torna penetráveis ao intelecto humano (Panpsich., IV). A força natural que distribui vida e movimento a todos os corpos é a luz; Patrizzi retoma assim a física da luz que já fora
defendida pelo platonismo medieval de Roberto Grossetesa e de S. Boaventura. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 349. A primeira ed. das obras de NICOLAU DE CUSA é alemã e intitula-se Opuscula varia; não traz indicação do ano nem do local da impressão mas foi provàvelmente editada em Estrasburgo em 1488. Outras eds.: Paris, Basileia, 1565. O De non aliud foi descoberto e editado por Ubinger, Die Gotteslehre des N. C., Münster, 1888, págs. 138 e segs, Do De dacta ignorantia hâ uma nova edição de P. Rotta, J3ar@, 1913. A Universidade Heidelberga iniciou uma nova edição critica, das obras de Nicolau de Cusa: De idiota, De sapientia, De mente, a cargo de L. Baur, Leipzig, 1940; De concordantia catholica, a cargo de O. Kallen, Leipzig, 1940; etc. Sobre Nicolau de Cusa: Vanstenbeerghe, Le cardinal N. de Cues, Paris, 1930; CAssiRER, Indivíduo e cosmos na filos. do ren., cap. 1; M. de GandUlac, La phil. de N. de C., Paris, 1941. 151 § 352. Sobre a física de Nicolau de Cusa: DuHEm, Études sur Léonard de Vinci, vol. II, Paris, 1909, pags. 97 e segs.. § 353. Algumas obras de Pletone, entre as quais o Confronto, encontram-se em P. G. de Migne, 160.1 Sobre ele: MESZKOWSKi, Estudos sobre o platonismo do renascimento, em Itália, 1936, cap. U. O texto e a tradução latina de Ficino dos Oráculos caldaicos em apêndice a este, úJtimo volume. As obras de Bessarione em P. G., 161.,. Sobre ele: MOMER, Kardinal Bessarion aIs Theologe, Humanist und Staatsman, Paderborn, 1923. Sobre a Academia platónica: DELLA TORRF, HiStória da Academia platónica de Florença, Florença, 1902. De C. Landino, as Disputationes foram publicadas em Florença por volta de 1480, o De vera nobilitate é inédito e o De nobilitate animae foi publicado por GENTILE e PA0L1 nos "Anais das Universidades toscanas". Gentile, Estudos sobre o renascimento, pgs. 87 e segs. § Trads. platónicas de Ficino. Florença, 1483-E-1; de PLOTINO, 1492; a Thealogia platonica, Florença, 1482. Ediç. das obras completas: Basileia, 1561, 1567, 1576; Paris, 1641. Sobre Ficino: Saitta, A filosofia de M. P., Messina, 1923; BARON, Willensfreiheit und Astrologie bei F. und Pico d. M., Berlim, 1929; P. O. KRISTELLER, The Philosophy of M. P., Nova Iorque, 1943 (com bibl.). § 356* Os Diálogos de, amor de Le Hebreu foram reeditados por C. GEBHARDT, Heidelberga, 1929 e por CARAMELLA, Bari, 1929. FONTANESI, O problema do amor na obra de Leão Hebreu, Veneza, 1934. § 357. De Pico, foram as Conclusiones editadas em Roma em 1486 e em Colônia em 1619; a Apologia, em Roma em 1489; o Hoptalus em Florença em 1490; 152 as outras obras, em Boilonha, em 1496. A Oratio de hominis dignitate, o Heptalus, o De ente et uno e o Comentário à canção de G. BENIVIENI foram reeditados e traduzidos por Garin, Florença, 1942, assim como as Disputationes adversus astrologiam
dininatrirem, Florença 1946. Os trechos citados são tirados da trad. de Garin. Sobre Pico: GARIN, Jodo Pico de Míràndola, Fiorença, 1937; G. BARONE, J. Pico de Mirándota, Milão-Rorna, 1948-49. § 359. As Di&cussiones peripateticae de PATRIZZI: Veneza, 1571; Basileja, 1581. A Nova philosaphia: Ferraxa, 1591; Veneza, 1593; Londres, 1611. T. GREGORY, em "Renasci~to", 1953, pgs. 89 e segs.. 153 IV RENASCIMENTO E ARISTOTELISMO § 360. O PRIMEIRO ARISTOTELISMO Unidos, no campo da historicidade, pelo esforço de regressar às doutrinas autênticas de Platão e Aristóteles, os Platónicos e Aristotélicos, do Renascimento opunham-se uns aos outros na defesa de interesses contrários: religião e investigação naturalista. Os Platónicos viam no platonismo a síntese do pensamento religioso da antiguidade e por conseguinte no regresso ao platonismo a condição da renascença religiosa Os Aristotélicos viam no aristotelismo o modelo da ciência naturalista e por conseguinte no regresso ao naturalismo a renascença da pesquisa da natureza. A polémica entre Platónicos e Aristotélicos, é portanto o choque de duas, exigências de evidente e igual necessidade para 155 o homem; e as tentativas de concüiação (como p. ex. a de Pico) tendem a harmonizar estas exigências num conceito do mesmo homem mais próximo da perfeição. O regresso ao aristotelismo original foi iniciado em Itália por aqueles eruditos, gregos que tomaram parto no Concílio de Florença para a reunião das duas igrejas ou que se refugiaram naquele país após a queda de Constantinopla nas mãos dos Turcos (1453). O primeiro foi Jorge Scholario, chamado Gennadio, ~o em Constantinopla e falecido por volta de 1464. Adversário de Genuísto Pletone, condenou e combateu o seu escrito sobre as Leis. Num escrito Sobre as dúvidas de Pletone relativamente a Aristóteles defendeu Aristóteles contra Pletone, aduzindo a sua maior conciliabil-idade com a doutrina cristã. Baseava-se evidentemente na tradição escolástica que estudara o de que fora partidário; traduzira mesmo para o grego, obras de S. T~ e de Gilberto Porrotano (o De sex principiís). Parece ser-lhe também atribuível a tradução para o grego das Summulae logicales de Pedro Hispano, (§ 289) que foi mais tarde erradamente considerada obra original do filósofo bizantino Míguel Psollos. A polémica contra Pletone foi continuada por Jorge Trapezunzio, nascido provavelmente em Creta, em 1396 e falecido em 1484- Chegou este a Itália por volta de 1430 e escreveu em 1464 a Comparatio Platonis et Aristotelis à qual respondeu por volta de 1469 o caildeal Bessarion (§ 353). A actividade de Trapezunzio dirige-se principalmente
156 à explicação e comentário das obras aristotélicas, nomeadamente da lógica, que expõe em De re didectica, não sem utilizar elementos tirados da tradição escolástica. Não têm mais interesse filosófico as obras de Teodoro Gaza, nascido por volta de 1400 em Tessalónica e falecido por volta de 1473. Tendo chegado a Itália em 1440, permaneceu durante alguns anos na escola de Vitorino da Foltre e ensinou primeiro em Ferrara e depois em Roma. Travou polémica com Bessarion sobre questões aristotélicas e escreveu contra Pletone. Traduziu inúmeras obras de Aristóteles e o tratado Sobre as plantas de Teofrasto. Quem primeiro contrapôs o Aristóteles original ao Aristóteles da escolástica árabe e latina foi Ermelao Barbaro (1453-93) de Veneza, o qual compendiou a ética e a filosofia natural, e traduziu a Retórica de Aristóteles e o Co~ntário de Gemisto. Professa o mais absoluto desprezo pelos "filósofos bárbaros"", incluindo entre estes, tanto Alberto e Tomás como Averróis. Vê na forma rude e inculta da sua linguagem a primeira e mais grave traição ao espírito original do classicismo que pretendeu encerrar os mais altos pensamentos na forma literária mais nobre. Os filósofos bárbaros; foram pelo contrário, defendidos por Pico de Mirândola na famosa carta dirigida a ErmelaO na qual o repreendia e simultâneamente aconselhava * buscar neles, para além da rude forma literáría, * substância do seu pensamento, do qual Pico julgava extrair ainda ensinamentos ~. Na ver157 dade, porém, a intolerância de Erinolao pela barbárie da forma era intolerância pelas superstruturas que o pensamento medieval acrescentara ao Aristóteles original. § 361. AVERROISTAS E ALEXANDRISTAS Mais um passo no sentido de um regresso ao autêntico Aristóteles foi o que deram aqueles aristotélicos que, polemicando contra o aristotelismo averroista, pretendem manter-se fiéis aos textos de Aristóteles e dos seus antigos comentadores, especialmente Alexandre de Afrodísia. O campo aristotélico apresentava-se a Marcílio Ficino dividido em dois partidos: Alexandristas e averroístas. "Os primeiros", afirmava Ficino (In Plotin., proém.), "crêem que o nosso intelecto é mortal enquanto os outros sustentam que é único em todos os homens; tanto uns como os outros destroem os alicerces de toda e qualquer religião, principalmente porque negam a acção da providência divina sobre os homens, e tanto uns como os outros são infiéis ao seu próprio Aristóteles". O grande centro Averroísta era, ao tempo, a Universidade de Pádua (§ 312). O averroísmo dominou aquela Universidade desde a primeira metade do século XIV até meados do século XVII-, foi em Pádua que apareceu em 1472 a primeira edição em latim das obras de Averróis a que se seguíram posteriormente, no século XVI, numerosas outras. Notam-se todavia entre os partidários do chamado averroí srno, 158 diferenças importantíssimas de doutrina e sobretudo frequentes atenuações das teses que mais directamente se opõem à religião cristã. por obra de Pedro Pomponazzi, nasce o alexandrismo que pretende regressar, em matéria de interpretação de Arístóteles, ao comentário antigo de Alexandre, o próprio averroísmo sofre por isso modificações tais que é frequentemente
difícil classificar os pensadores aristotélicos nesta ou na outra corrente, Dum modo geral pode dizer-se que os Averroístas tendem para o panteísmo, na medida em que consideram o intelecto humano único e idêntico ao divino, ao passo que os Alexandristas afirmam a transcendência de Deus relativamente ao mundo. Uns e outros têm em comum os temas da sua especulação que são a imortalidade da alma e a relação entre a liberdade e a ordem necessária do mundo. Uns e outros têm sobretudo em mira a afi-rmação da ordem necessária do mundo e por conseguinte negam o milagre e, dum modo geral, a intervenção directa de Deus nos acontecimentos do mundo. O aristotelismo do Renascimento tende por isso a delinear uma concepção do mundo baseada numa ordem imutável e necessária e com tal assenta as bases de uma ciência da natureza que tenha por objecto precisamente essa ordem. Tanto Alexandristas como Averroístas recorrem além disso e com frequência à chamada "doutrina da dupla verdade" , entendida no sentido já explicado (§ 283) de admissão da existência de uma posição entre as conclusões da filosofia e as crenças da religião, oposição essa que não julgam 159 possível conciliar. Este ponto de vista nada tem que ver com o de Averróis. ao afirmar que a religíão tinha por objecto as mesmas verdades que a filosofia mas revestia-as de uma forma que as tornava mais aptas a servirem de guia e salvação das multidões. É antes, pelo menos na aparência, o registo de um conflito entre filosofia e religião, entre razão e fé; o uma vez que se exclui a possibilidado de solução do conflito e se admite ora a verdade de um, ora a de outro, dos dois termos em contradição pode designar-se esta posição poi "doutrina da dupla verdade". É óbvio que nada sabemos da sinceridade em que cada pensador reconhecia a "verdade" da religião: as condenações, as retratações e os arrependimentos tornam impossível qualquer investigação sobre este ponto que aliás seria estranha a um estudo histórico da filosofia. Tudo o que nesta matéria se pode fazer, consiste em precisar a posição explícita dos filósofos e em expor as bases teóricas da mesma. A figura de Nicoletto Vernia. (1420-99), que ensinou em Pádua desde 1465 até morrer, pode ter-se como típica do averroísmo paduano do século XV. Conhecido pelo seu feitio desabusado e faceto, Vernia sustentou as teses típicas do averroísmo, provocando a intervenção do bispo de Pádua que em 1489 proibiu as discussões sobre a unidade do intelecto sob pena de excomunhão. Vemia pagou bem os seus erros. Enquanto que as suas obras se perderam, ficaram-nos dele alguns escritos menores, nos quais a sua orientação naturalista se torna evidente através da superioridade 160 que atribui à filosofia natural relativamente à metafísica e à medicina em face da jurisprudência; esta última está, segundo Vernia, ligada às acções particulares dos homens, ao passo que a medicina respeita à natureza que é o reino do universal e do necessário. Discípulo de Vernia foi Agostinho Nifo, nascido em Sessa, na Campânia, em 1473, e falecido em 1546, o qual ensinou, primeiro em Pádua e seguidamente em Pisa, Bolonha, Salerno e Roma. Numa obra intitulada De intellectu et daemotúbus afirma que não existem outras substâncias espirituais e imortais para além das inteligências motoras dos céus. Publicou em 1495-97 as obras de Averróis, por si anotadas, a seguir
escreveu uma obra em que atacava o De imortalitate animae de Pomponazzi, recorrendo frequentemente a argumentos tomistas. No campo da moral, Nifo mostra-se partidário de uma espécie de sabedoria mundana, alcançada pelos escritores antigos em que tem como objectivo o prazer; e, a acreditarmos nos testemunhos (ou intrigas) dos escritores seus contemporâneos, a sua conduta foi em tudo conforme àquela orientação. Um misto de platonismo e aristotelismo resulta das doutrinas de Leonico Tomeo, nascido em Venexa em 1456 e falecido em Pádua, onde ensinava, em 1531. Afirma ele que a oposição entre Platão e Aristóteles reside mais na linguagem do que no pensamento e que a diversidade das expressões se deve ao facto de Aristóteles adoptar -mais do que 161 Platão -uma linguagem física. De acordo com este princípio, procura encontrar na própria doutrina de Aristóteles o fundamento da demonstração da imortalidade da alma feita por Platão (De imortalitate animae, 1524). A demonstração platónica baseia-se no princípio de que a alma se move por si; por conseguinte não pode ser destruída, nem por ela própria, pois o movimento não pode falhar-lhe, nem por outra coisa, dado que o seu movimento não depende de outra coisa. Ora, segundo Torneo, Aristóteles teria negado que a alma se movia por si mas umicamente no sentido do movimento espacial que nem o próprio Platão lhe atribuía. Do mesmo modo se pode conciliar a doutrina platónica da reminiscência com a aristotélica da alma como tabula rasa que recebe do exterior as sensações: na verdade, a expressão aristotélica refere-se à alma que não recebeu ainda sensações ou que não recordou ainda os conhecimentos que já possui. Tomeo sustenta que existe uma alma do mundo que tudo anima e governa e constitui o principio do conhecimento humano. Assim o reconhecem também os peripatéticos, os quais admitem que o nosso espírito sobre a influência do exterior e não tem sentido diverso a doutrina averroísta da unidade do intelecto. Cognominado "o segundo Aristóteles" pelo seu conhecimento da filosofia aristotélica, foi Alexandre Achillini, que nasceu em Bolonha em 1463 e ensinou medicina e filosofia, primeiro em Pádua e depois em Bolonha onde faleceu em 1512. A sua 162 obra principal é constituída pelos Quodlibeta de intelligentis; foi todavia igualmente autor de obras de anatomia e de medicina. A maneira de proceder de Achillini é um bom exemplo daquela "doutrina da dupla verdade" cujo significado específico se esclareceu através do confronto entre os filósofos deste período. Achillini ilustra e defende com grande vigor todas as teses típicas do averroísmo latino, mas não deixa de lhes opor e com pouco menos energia, as teses tradicionais da escolástica. Talvez (ou com certeza) o seu coração esteja com as primeiras; afirma todavia que, ao transmitir a palavra do "filósofo" (ou seja, Aristóteles, na interpretação averroísta) não pretende fazer suas as conclusões. É este, muito provàvelmente, apenas um subterfúgio, para ter a possibilidade de defender e ilustrar sem perigo o averroísmo. Assim, enquanto por um lado afirma que, segundo Aristóteles, Deus faz mover o mundo por necessidade e que o mundo é eterno, por outro sustenta que Deus faz mover * mundo por um acto livre e que o próprio, mundo * as inteligências motoras dos céus foram criadas por Deus.
Reconhece que Averróis tinha razão ao afirmar que, de acordo com a doutrina de Aristóteles, há um único intelecto possível em todos os homens; sustenta porém que Aristóteles não tinha razão, uma vez que o intelecto é a forma que confere a cada homem o seu ser individual. O intelecto activo é, pelo contrário, reconhecido por ele como sendo o próprio Deus; chama-lhe intellectus qui esi omnia facere e considera-o como a ac~ade 163 divina que determina a intelecção e por conseguinte também a felicidade, do homem. Posição semelhante, encontra-se nas obras de Marco António Zimaira (14601523) que foi também professor em Pádua e que interpretava a unidade do intelecto, afirmada pelo averroísmo, como unidade dos princípios fundamentais do conhecimento. § 362. POMPONAZZI: A ORDEM NATURAL DO MUNDO O fundador da escola dos AlexandrÍstas foi Pedro Pomponazzi (cognominado Pereto ou Peretto) o qual nasceu em Mântua em 16 de Setembro de 1462. Tendo obtido em 1487 o grau de doutor em medicina em Pádua, ensinou depois filosofia naquela Universidade, em concorrência com Alexandre AchiIlini, segundo o costume então em voga de contrapor um professor a outro no ensino da mesma matéria. Encerrada a Universidade paduana após a batalha da Ghiaradadda (1509), Pomponazzi foi leccionar para Ferrara e dali para Bolonha onde escreveu todas as suas obras e se suicidou em 18 de Maio de 1524. A sua obra mais famosa, De immortalitate animae é de 1516. Acusado por muitos de impiedade, Pomponazzi não sofreu qualquer aborrecimento, principalmente por causa do apoio de Pedro, Bembo e dos magistrados bolonheses. Pôde até, em 1518, responder às acusações 164 */* numa Apologia, do que lhe resultou ser alvo de novos ataques, entre os quais o de Nifo (De immortalitate animae libellus, 1518). A este replicou Pomponazzi com o De Defensorium. As suas outras principais obras, De naturalium effectuum admirandorum causis sive de incantationibus e De fato, libero arbitrio et praedestinatione foram publicadas já depois da sua morte. O objectivo essencial da especulação de Pomponazzi consiste no reconhecimento e justificação da ordem racional do mundo. Pomponazzi é levado a negar ou a rejeitar todo e qualquer facto ou elemento que contradiga o ideal de um mundo necessàriamente ordenado com base em princípios imutáveis. Vê em Aristótoles o filósofo que xejeitou a intervenção directa de Deus ou de outros poderes sobrenaturais nas coisas do mundo e quiÍs entender o mundo como puro sistema racional de factos. Pomponazzi remete para o domínio da fé tudo quanto é miraculoso e até a própria crença nos milagres, pretendendo assim desimpe£ür o caminho da investigação racional de toda e qualquer ingerência estranha e restituí-Ia à sua liberdade. A doutrina averroísta da dupla verdade é também o seu guáa: a igreja ensina a verdade; ele limita-se modestamente a declarar a opinião de Aristóteles. Na realidade, porém, a opinião de Arístóteles é para ele a procura racional que não pretende guiar-se senão por si própria, ao passo que a fé, ou seja a reverência perante a autoridade, uma vez reconhocida como falha de toda e qualquer base racio165
nal ou moral, se esvazia de sentido e deixa de ser um obstáculo à investigação. Estes tragos do filosofar de Pomponazzi são evidentes sobretudo na obra De incaiuationibus. Aparentemente, esta obra encontra-se pejada de superstições medievais, tendo por objectivo a explicação de encantamentos, magias, bruxarias e efeitos miraculosos de plantas, pedras o outras coisas. Nem Pomponazzi nega a realidade de tais factos excepcionais ou miracuilosos os quais parecem comprovados pela experiência. Porém, o espírito novo da obra revela-se na recondugão dos supostos factos miraculosos a factos naturais e na sua explicação mediante causas que pertencem à ordem necessária do mundo. Pomponazzi começa por criticar a explicação popular tradicional segundo a qual tais factos seriam produzidos pelos espíritos ou pelos demónios. Nem os espíritos, nem os demónios, poderiam sequer ter conhecimento das coisas naturais pelas quais se produzem aqueles efeitos miraculosos: não poderiam, com efeito, conhecê-los, nem - como Deus através da sua própria essência, nem - com os homens -através das qualidades abstraídas das coisas. Não através da sua própria essência pois tal só poder-ia acontecer se esta fosse a causa das coisas, o que não sucede; não, também, através das qualidades abstraídas das coisas como acontece com os homens pois aqueles não possuem, como estes, órgãos de sentidos. É portanto inútil admitir a existência de espíritos ou demónios para explicar encantamentos e bruxarias. Na verdade, encantamentos e bruxarias não são milagres no sentido 166 de serem absolutamente contrários à natureza e estranhos à ordem do mundo; dizem-se porém milagres apenas na medida em que são factos insólitos e raríssímos que não acontecem segundo o curso ordinário da natureza e sim com longuíssimos intervalos (De íncant., 12). A via através da qual estes aparentes milagres reentram na ordem natural é o deternúnisrno astrológico. Deus é a causa universal das coisas mas não pode agir imediatamente sobre as coisas do mundo sublunar. Todas as suas acções relativamente a estas últimas são apenas acções mediatas executadas por intermédio dos corpos celestes que são os órgãos ou insitrumentos necessários à acção divina. A ordem cósmica exige que o grau suiperior só possa agir sobre o inferior através do grau intermédio, o que implica que nenhum milagre seja possível no sentido de uma acção sobrenatural directa de Deus sobre as coisas do mundo subluna-r. Oráculos, encantanientos, ressurreições e outros efeitos miraculosos que têm lugar no mundo por obra de magos ou necromantes, são só efeitos naturais, devidos ao influxo dos corpos celestes (De incant, 10). Mas a parte mais típica desta doutrina de Pomponazzi é a que inclui na ordem natural do inundo, regulado pelo determinismo astrológico, a própria história dos homens. Com deito, tudo o que acontece no mundo sublunar está sujeito à geração e à corrupção, tem um princípio, uma
progressão, através da qual atinge o acabamento e um termo. A esta evolução não se subtraem os estados, nem os povos, 167 nem as próprias instítuições religiosas. Todas as religiões nascem, florescem e morrem. O nascimento de uma religião é caracterizado por oráculos, profecias e milagres cujo número diminui progressivamente à medida que se aproxima a época do seu termo. O cristianismo não se subtrai a esta lei. "Vemos", diz Pomponazzi (Ib., 12) "que as instituições religiosas e os seus milagres no principio são mais débeis, depois aumentam até atingir o cume e em seguida vão enfraquecendo até desaparecerem por completo. É por esse motivo que também na nossa fé estão a acabar os milagres, excepto os fingidos ou simulados: o fim parece estar próximo". Assim, nada, absolutamente, se subtrai à ordem necessária do mundo e à lei que o governa. É verdade que Pomponazzi se mantém fiel ao velho determinismo astrológico que fora introduzido na ffi osofia ocidental pela especulação árabe (§ 235) mas esse determinismo é apenas o meio de que se serve para alargar a todos os fenómenos, incluindo os aparentemente miraculosos, a ordem necessária da natureza que é o fundamento da investigação filosófica. Pomponazzi foi o primeiro a expor com grande clareza e extrema energia o pressuposto de toda e qualquer investigação naturalista: a afirmação de uma ordem regular que não sofre exepções. Só a partir deste pressuposto é possivel. o estudo do mundo natural. Mudará mais tarde a forma particular deste pressuposto e será negado o determinismo astrológico; não mudará, porém, o pressuposto em si. 168 § 363. POMPONAZZI: A NATURALIDADE DA ALMA O famoso tratado de Pomponazzi sobre a imortalidade da alma tem fundamentalmente o mesmo fim: fazer regressar o homem à ordem das coisas naturais. A alma humana não pode de modo algum existir e obrar sem o corpo. A sua individualidade depende na verdade do corpo que, como queria S. Tomás, a multiplica e divide nos homens individualmente considerados: a sua acção depende outrossim do corpo pois não pode compreender senão os objectos corpórcos. As inteligências celestes não necessitam do corpo, nem como sujeito, nem como objecto: o seu conhecimento não é adquirido pelo corpo, que não têm, nem é produzido pelos corpos pois das são motoras e não movidas. Pelo contrário, a alma sensitiva necessita do corpo como sujeito, uma vez que não pode desempenhar as suas funções senão por intermédio de um órgão corpôreo e nocessita dele também como objecto, uma vez que o seu conhecimento é por ele produzido. A alma intelectual humana possui uma natureza intermêdia entre a inteligência celeste e a alma sensitiva. Não necessita do corpo como sujeito porque não necessita de órgãos corpórcos como a alma sensitiva; necessita porém do corpo como objecto por não ser capaz de compreensão se não for movida pelos corpos exteriores. Este modo de funcionar do inteler-to humano não pode
transformar-se no funcionamento imaterial das intolàgências celestes. A experiência demonstra que o intelecto humano só pode 169 entender mediante imagens; ora uma vez que as imagens só pelo corpo lhe podem ser fornecidas, a própria vida do intelecto encontra-se ligada ao corpo e sofre a mesma sorte deste (De imm. an., 91). S. Tomás admitira a possibilidade de um outro funcionamento do intelecto, independentemente do corpo, ou seja, das imagens por este fornecidas, Pomponazzi observa que isso significaria transformar a natureza humana na divina e a alma humana também na divina, segundo uma daquelas transformações fabulosas narradas por Ovídio nas Metamorfoses (Ib., 9). É precisamente aqui que se revela plenamente o carácter naturalista da psicologia de Pomponazzi: a alma é reconhecida na sua condição e no seu funcionamento naturais, que se apresentam E-ados ao corpo e à experiência sensível. Querer subtraí-Ia a estas condições naturais é ridículo; significa abandonar-se a uma
matéria e participando pouco do intelecto é melhor determinada por móbeis que apelem para o 171 seu lado material. A moiral humana natural é por conseguinte aquela pela qual o homem escolhe a virtude pela felicidade que lhe anda inseparàv01mente ligada. É todavia igualmente natural a perspicácia dos legisladores que prescrevem prêmios e castigos eternos. Pomponazzi quer reconhecer e compreender o homem na sua naturalidade, quer submetê -4o a uma lei que o ligue à ordem necessária do todo. § 364. POMPONAZZI: LIBERDADE E NECESSIDADE A relação existente entxe esta lei necessária e a liberdade humana é estudada na terceira das obras fundamentais de Pomponazzi, intítuilada De fato, libero arbitrio et praedestinatione. Ali se expõem amplamente todas as dificuldades, dúvidas e contradições que nascem do estudo da relação que existe entre a presciência, a predeterminação e a omnà,,potência divinas, por um lado, e a liberdade huimana, por outro. A presciência e a prodeterminação divinas não podem ser negadas sem que se prive a religião completamente, do seu fundamento; a liberdade não pode ser negada sem que se contradiga directamente a experiência humana. Pomponazzi examina longaniente todas as soluções possíveis e não chega a uma conclusão precisa; pelo contrário confessa-se torturado por este problema tal como o fabuloso Prometeu era torturado pelo abutre que lhe devorava o fígado para o punir por ter roubado o fogo divino (De facto, 111, 7). 172 O que se pode dizer é que a presciência divina não exclui em absoluto a liberdade humana. Há uma dupla relação entre o conhecimento divino e a acção humana. Em primeiro lugar, Deus prevê a acção humana com base na sua causa que é a natureza humana, quer dizer, ele sabe que o homem pode atingir desta ou daquela maneira e que pode executar ou não determinaida acção e sabe-o em virtude do conhecimento que tem da natureza humana. Porém, esta presciência divina é ènicamente previsão da possibilidade de uma acção e não da sua efectiva execução; não elimina portanto a liberdade de acção. Em segundo lugar, Deus conhece a acção futura, não na sua causa mas sim na sua efectiva realização, isto é, sabe com certeza qual das muitas acções possíveis será na verdade executada pelo homem. Todavia, Deus conhece isto na medida em que conhece tudo o que existe e por conseguinte até mesmo o futuro; tão-pouco esta presciência tolhe, pois, a liberdade humana e explica-&e pelo facto de que Deus, na sua eternidade, compreende todos os tempos (Ib., 111, 12). Considerações semelhantes valem para a predestinação. Deus quer que todos os homens sejam felizes, com aquela beatítude que se alcança por meios naturais e mediante a pura razão. Predestina porém, alguns homens à beatitude eterna, a qual não é alcmçada por vias puramente naturais. Esses homens, se cooperarem com a graça divina, al=çarão aquela beatitude, mas, se a recusarem, ~erão a própria alma. A predestinação deixa pois subsistir a liber-
173 dade do homem para aceitar ou recusar a ajuda sobrenatural de Deus (Ib., V, 7). Onde, porém, a contradição nos surge irreme. diável é na relação existente entre a omnipotência divina e a liberdade do homem, Aqui, Pomponazzi recusa-se a uma conclusão definitiva e limita-se a dizer que, atendendo a considerações puramente naturais e a quanto pode consentir a razão humana, a opinião menos contraditória é a dos Estóicos que afirmaram o destino, isto é, a necessidade absoluta da ordem cósmica estabelecida por Deus. Contra esta solução, mantém-se a dificuldade de ser Deus a causa não apenas do bem mas também do mal. Pode todavia responder-se que tanto o bem como o mal concorrem para o acabamento do universo e que neste, como num organismo vivo, devem existir não só partes puras e nobres mas também partes impuras e vis. Se não existissem tantos males, não haveria os correspondentes bens o se o mal fosse impossível, o bem sê-lo-ia também (lb., 11, 6). A preferência de Pomponazzi por uma solução tão radicalmente determinista como a estóica, revela-nos a essência do seu pensamento. O imiportante é salvar a todo o custo a ordem racional do mundo, ainda que esta ordem conduza à negação do livre arbítrio do homem. O interesse de Pomponazzi incide totalmente sobre a investigação naturalista e esta investigação só é possível desde que se aceite a ordem necessária do mundo. Contra esta exigência ergue-se a doutrina da igreja e Pomponazzi declara expressamente que é preciso crer na igreja e por conseguinte negar o destino dos Estói174 cos (Ib., perorat.). Para elo, porém, a exigência religiosa e a exigência científica constituem sistemas distintos e que não se comipensam mútuamente. Reduzindo a exigência religiosa a um puro acto de respeito pela autoridade da igreja, liberta a investigação científica de toda e qualquer interferência, entendendo-a como pura indagação racional. § 365. OUTROS ARISTOTÉLICOS Pomponazzi abre a série dos peripatéticos alexandrístas. Foi seu discípulo Simão Porta ou Porzio (1496-1554), autor de duas obras, intituladas respectivamente De rerum naturalibus principii o De anima et mente humana (1552), o qual se manteve estrietamente fiel às doutrinas do mestre. Pelo contrário, no cardeal Gaspar Contarini, (1483-1542), patriarca de Veneza, também seu discípulo e autor de De immortalitate animae contra setentiam Pomponatii doctoris sui, encontrou Pomponazzi um adversario sobre a questão da imortalidade da alma. Um lugar à parte é devido a André Cesalpino, nawido em Arezzo em 1519; ensinou primeiro em Pisa e mais tarde em Roma, onde foi médico de Clemente VII e faleceu em 1603. O interesse naturalista de Cesalpino toma-se evidente com a obra De plantis (Florença, 1583) na qual revelou um "sisterna natural" do mundo vegetal, inàciando a nova ciência botânica. Nas suas duas obras filosóficas, Quaestiones peripateticae e Daemonum investigatio, propõe-se regressar ao estudo das obras aris175 totélicas, prescindindo de todos os intérpretes, com o objectivo de fazer
surgir o verdadeiro e genuíno Aristó teles (Quaest. perip., pref). Vai ainda mais longe do que Pomponazzi na afirmação da independência da investigação filosófica relativamente ao ensinamento eclesiástico, Não nega que, nalguns pontos, as dou-trinas de Aristóteles sejam contrárias k verdade revelada; declara porém, que não lhe cabe evidenciar esta oposição pelo que a deixa aos teólogos competentes (Ib.). A doutrina. de Cesalpino é essencialmente um panteísmo em moldes averroístas. Deus é imanente no mundo, tal como a alma é imanente no corpo. É a alma do universo considerado na sua totalidade mas não a alma das partes singulares do universo. Assim como no organismo vivo a alma não se encontra em acção em todo o corpo e tem a sua sede no coração, de onde transmi,te a vida ao corpo inteiro, também a alma do universo tem a sua sede no céu e dali difunde a sua força vivificadora por todas as partes do universo (lb., 1, q. 7). O órgão desta actividade vivificadora é o espírito vital que actua por intermédio do calor celeste, o qual se encontra espalhado por toda a parte, coordena todas as porções e garante a unidade do universo ffiaem. invest. 3). O universo é pois considerado como um corpo vivo e animado no qual todas as partes se encontram subordinadas ao conjunto. As inteligências celestes, admitidas por Aristóteles para explicar os movimentos dos céus, são aspectos da inteligência divina única. "Assim como", diz-nos (Quaest. per., 11, q. 6), "a alma sensível toma a designação de vista nos olhos o de 176 ouvido nos ouvidos, também a inteligência, na medida em que faz mover a lua, é atribuída à lua, na medida em que faz mover Saturno, é atribuída a Saturno e assim por diante. Todas as inteligências se contêm numa só, do mesmo modo que as partes se contêm no todo". São igualmente partes da inteligência divina os intelectos humanos individuais, os quais se diferenciam das inteligências motoras dos céus pelo facto da sua participação no intelecto divino não ser eterna mas sim corruptível. Por mais que a individualidade dos intelectos humanos dependa da matéria, não será por isso que e~ intelectos perderão após a morte essa indivídualidade: o facto de terem aderido a um corpo basta pam os distinguir uns dos outro; e para os distinguir a todos da inteligência divina que jamais se encontra unida a qualquer corpo ffiaem. invest., 3). Mas esta afirmação da persistência da individualidade da alma humana (e portanto da sua imorta-lidade) não impede a doutrina de Cesalpino de ser uni autêntico panteísmo: Deus é a alma do mundo e identifica-se com a força que lhe comunica movimento e vida. Enquanto Cesalpino leccionava em Pisa o em Roma, Jaime Zabarella (1533-89) ensinava em Pádua uma doutrina mais próxima do alexandrismo. Tal como Cesalpino, Zabarefia declara limitar-se a expor a doutrina de Aristóteles sem se preocupar com a relação existente entre esta e o cristianismo (De prim. rer. mat., HI, 2). Mas, ao contrário de Cesalpino, Zabarefia afasta-se do panteísmo ao afirmar a separação entre Deus e o mundo. A relação exis177 tente entre Deus como primeiro motor e o céu que põe em movimento não é semelhante à que tem lugar no homem entre alma e corpo. Deus não é * forma enformadora (inform~ do céu assim como * alma é a forma enforniadora do corpo; é apenas * forma assistente (assistens) do céu. Com efeito, ele não
dá o ser ao céu, que é eterno como ele próprio, mas apenas o movimento (De natura coeli, 1). Que Deus se limita a comunicar movimento ao céu é o que se conclui da circunstância de só se poder provar a existência de Deus como primeiro motor se se admitir a eternidade do movimento celeste. Se se abstrair desta eternidade, poderá admitir-se a existência de um primeiro motor imóvel e semelhante à alma dos animais mas não a de um primeiro motor separado da matéria, indivisível, infatigável e perpétuo. Um tal primeiro motoir só poderá ser demonstrado se se partir do principio da eternidade do movimento celeste. ou se admite portanto que o movimento celeste e por conseguinte * mundo são eternos ou não é possível demonstrar * existência de um primeiro motQr distinto (De invent. aeterni motoris, 2). Mas uma vez admitida a existência de um primeiro motor, este é por sua natureza distinto dos céus e por conseguinte é forma assistente. Quanto à alma humana, esta é ao mesmo tempo forma enformadora e forma assistente do corpo: como forma enformadora dá o ser ao corpo e como forma assistente é princípio motor. Neste último aspecto a alma é actividade intelectiva e portanto independente de todo e qualquer órgão corporal (De nwnte hum. 1, 13). O intelecto é indi178 vidual, assim como a própria alma, da qual constitui a força. É falsa a doutrina de Averróis que o julgava numèricamente idêntico em todos os indivíduos. Se assim fosse, não constituiria a forma essencial do homem, aquálo que o distingue de todas as outras coisas (Ib., 10). O intelecto humano é porém o intelecto material. O intelecto actirvo não pertence na realidade ao homem. Aquele (o intelecto activo) está para o intelecto material assim como a luz está para a vista. Ao unir-se aos objoctos, a luz torna-os visíveis e determina a visão em acto. Do mesmo modo, ao unir-se às imagens, o intelecto activo é portanto o primeiro motor. Se este comunica ao homem a faculdade de entender é apenas porque só o homern possui o intelecto possível, ou seja, é capaz de receber a luz do intetecto divino (De mente agente, 12). Ãobjecção segundo a qual o intelecto possível, o único que é próprio do homem, é mortal e que por conseguinte a doutrina aristotélica parece excluir a imortalidade, responde Zabarella com a enumeração das opiniões dos Aristoté licos a respeito deste argumento, considerando como a mais verosímil aquela segundo a qual o intelecto possível é mortal, não pela sua substância mas pela sua imperfeição e natureza corpórea (lb., 15). Aliás a imortalidade oncontra-se firmemente estabelecida pela igreja e pela teologia e Zabarella recusa-se a demonstrar a existência de qualquer relação entre filosofia e teologia (De invent. aet. nwt., 2). Na esteira de Zabarella segue César Cremonini, nascido em 1550 em Forrara e falecido em 1631 em 179 Pádua onde ocupara a cátedra daquele após a sua morte. A separação entre Deus e o mundo é igualmente salientada por Cremonini, o qual afirma que o mundo não pode ter sido criado por Deus. A acção criadora seria uma acção extrinseca. que não pode ser reconhecida em Deus. Deus não pode, também, ser a causa eficiente do movimento do mundo; ele dá movimento apenas como objectivo, isto é, como objecto de desejo: dá
movimento porque é amado e desejado. Mas precisamente por isto, aquálo que por elo é movido deve ~r em posição de o amar e desejar: deve possuir uma alma. A alma dos céus é portanto o princípio eficiente dos movimentos. Deus e as inteligências celestes só podem mover os céus por intermédio desta alma enformadora que ama e deseja a Deus e assim move directamente os céus e indirectamente as coisas que lhes estão suibinetidas (De calore innato, dict. 2; dict. 9, p. 89). Tal como Zabarella, Cremoními opõe-se à doutrina averroísta, da unidade do intelecto, e considera este como sendo a diferença específica que distingue os homens entre si o relativamente aos animais. A conexão entre alma e corpo é operada pelo calor inato que tem a sua sede central no coração, de onde irradáa para todas as partes do corpo. Este calor inato não é corporal; é antes aquele calor dos temperamentos de que falava Galeno, o qual é devido à mistura dos elementos que compõem o corpo, mistura esta causada pelo movimento dos céus (Ib., dict. 9, p. 89). A natureza da alma humana na sua singularidade depende portanto dos astros. 180 O afistotelismo do Renascimento contribuiu fortemente, com o regresso à indagação cáentífica de Aristóteles, para a renascença da investigação naturalísta. Elaborou, além disso, a base necessária a tal investigação, ou seja, o conceito da ordem naluxal do mundo. Porém, o naturalismo, tão poderosamente encaminhado, não podia já permanecer sujeito ao sistema do aristotelismo; devia tender a subtrair-se-lhe, tomando outras vias. A magia, por um lado, o o naturalísmo de Telesio, por outro, apontavam essas vias. O ocaso do aristotelismo averroísta é marcado pela figura de Júlio César Vanini, nascido por alturas de 1585 no reino de Nápoles, e queimado vivo como herético em Tolosa, em 1619. Na sua principa] obra, intitu-lada De admirandis naturae reginae deaeque mortaflum arcards surgem novamente as teses típicas do aristotelismo renascentista e outras de Nicolau de Cusa: a eternidade da matéria, a homogencídade existente entre a substância celeste e a sublunar, a identidade de Deus com a força que governa o mundo e a força natural dos seres. Não apresonta qualquer originalidade e é como um resumo com o qual se encerra um aspecto da investigação naturalista no Renascimento. NOTA BIBL1OGRÁFICA § 360. As obras de GENNADIO em P. G., 160- A Comparatio de TRAPEZUNZIO foi editada em veneza em 1523 e a De re dia7_ectica em IAão em 1569 e posteriormente. O tratado De fato de TEODORO GAZA foi editado pela TayJor de Toronto em 1925. 181 Os Comentários de ERMOLAO BARBARO foram objc-to dL vãri edições em Veneza, Basiloia e Paris, a partir de 1544. § 361. De VERNIA, foram editadas em Voneza, em 1504, as Quaestiones de pluralitate intellectuS contra falsam et ab omni veritate remotam apinionem Averroys. Outros escritos foram publicados por Ragnisco sob o título Documentos inéditos e raras relativos à vida e obras de N. V., Pádua, 1891 e unia Quaestio sobre a nobreza da medicina foi publícada por Garin em "A ~uta das artes", Florença, 1947. B. NARDI, Ensaios sobre o aristotelismo paduano do sécu.To XIV ao século XVI, Florença, 1958, caps. IV e V; GARIN, A cultura filosófica do renascimento italiano, Florença, 1961, pgs. 293 e segs. As obras de AGOSTINHo NiFO conheceram várias edições nos séculos XV e XVI: colecções completas, Veneza, 1599; Opuscola moralia et politica, Paris, 1645. GARIN, ob. cit., pgs. 299 e segs.
De L. ToMEO aS obras De immortalitate animae, Pãdua, 1524, e Opera, Paris, 1530. DE ACHILLINI: Opera Omnia, Veneza, 1508-45. B. NARDI, Sigieri de Brabante no pensamento da renascença italiana, Roma, 1945, 11 parte. Sobre M. A. ZIMARA, Nardi, ob. cit., cap. Xff. § 362. Sobre o suicídio de Pomponazzi: CIAN, Yovos documentos sobre P. P., Veneza, 1887. Opera, Bastícia, 1567 (De incantationibus e De fato); inúmeras edições anteriores das obras singulares. Sobre ele: FIORENTINO, P. P. Estudos históricos sobre as escolas bolonhesa e paduana do século XVI, Florença, 1868. O comentário ao De anima de Arístóteles foi publicado por L. FERRI em A psicologia de P. P., Roma, 1877; À. H. DouGLAS, The Philo8. and Psychol. of P. P., Cambridge, 1910; B. NARDI, AS obras de P. em Diário critIco da fil. it.", 1950; As obras inéditas de P., ib., 1950 e 1951. 182 § 365. As obras de CESALPINO: Veneza, 1571 e 1593. As obras de ZABARELLA conheceram inúmeras edições no séefflo XVI, sendo a última de Havenreuter e de 1623. Sobre ele: R.AGNIS00j. Z., o filósofo, Veneza, 1886; do mesmo, Pomponazzi e Z., Veneza, 1887; GARIN. O humanismo italiano, Florença, 1952, pgs. 191 e segs.; B. NARDI, Ensaios sobre o aristotelismo paduano do século XIV ao século XVI, Florença, 1958, passim. As obras de CREMONINI foram editadas separadamente nos séculos XVI e XVH. Sobre ele: MABILLEAU, Ptude historique sur Ia phil. de Ia renaiss, en Italie, Paris, 1881. A obra de VANINI Intitulada De admirandis naturae reginae, ete. foi publicada em Paris, em 1616. Trad. ital. das obras, por PORzio, Lecee, 1911. Sobre todo o arístotelismo, italiano do século XVI: CI-TARBONEL, La p~ée italiene du XVI.e siécle et le courant libertin, Paris, 1919; J. RANDALL JR., The School of Padua and the Emergence of Modern Seience, 1961. 183 v RENASCIMENTO E REFORMA 366. O RETORNO ÀS ORIGENS CRISTÃS O Renascimento, como retorno do homem às 9~ possibilMades origináfias é ~bém renovação da vida religiosa. O homem procura entrar de posse daquelas possibilidades que con,3hituíam a força e a va1idade do mundoanfigo: daí que procure reconhecê-las paralá dia dispersão e do enfraquecimento que elas têm sofrido ao longo dos séculos da História e de novo se firmar nelas para ~mar o caminho interrompido. Perante a decadência da vida religiosa, o homem retorna às fontes da religiosidade: quer redescobri-las na sua pureza, entendê~las no seu significado genuíno, fazê-las reviver na sua fecundidade espiritual. Viu-se já como o p~i~ procurava reconhecer e fazer revíver a origffiária sabe185 doria religiosa da humanidade, sabedoria que via sintetizada em Platão, e na qual, segundo considerava, confluíam igualmente a especulação oriental e o
pensamento greco-romano. Mas a religião dos Platónicos do Renascimento é uma religião para. os doutos, quer dizer, não é verdadeiramente uma religião mas um filosofia teológica na qual o cristianismo originário do Novo Testamento apenas entra como um elemento entre outros e nem =nio como o dominante. Marsílio Ficino e Pico de Mirândola partilham este ponto de vista com Cusano e até mesmo, com Bruno: o retomo à religiosidade originária é para eles um ~mo aos "teólogos" da Antiguidade: àqueles que elaboraram e exprimiram a vida religiosa em fecundas fórmulas de pensamento. O platonismo não podia por isso tornar-se numa autêntica. reforma da religiosidade: ele é um momento da renovação filosófica renascentista A refôrma da vida religiosa do ocidente cristão podia ser o resultado apenas de um retomo às fontes do crÍstianismo enquanto tal: isto é, não aos jogos ou à teologia greco-ofiental mas à palavra mesma de Cristo, à verdade revelada da Bíblia. Aquele rena,_vimento espiritual, aquela reforma total do homem, que a pregação de Cristo havia onunciado e promovido só podia readquirir o seu sentido oríT,,nário e tomar-se ~ade mediante um regresso à palavra divina, a que vem expressa nos Evangelhos e nosi outros li~s da Bíblia. A palavra de Deus d~se não só aos deutos mas a todos os homens como tais e não pretende reformar a doutrina, mas sim a vida. Uma renoivação religiosa, segundo o 186 espírito do Renascimento, devia tender a fazer reviver directamente a palavra de Deus nas consciências dos homens, dibertando-a dassuperstruturas tradicionais, restabelecendo-ana sua forma genuína e na sua potência salvadora. Tal foi a tarefa da reforma religiosa, à.qual se liga necessàriamiente, tal como no Humam, %no, um momento filológwo: restabelecer na sua pureza e genuidade o texto bíblico. Mas, ~samente como no Humanismo,,o momento filológico é o instrumento de uma exigência más - profunda, a de regressar ao significado verdadeiro e originário da palavra divina paira a fazer valer oomtoda a eficácia do seu poder de renovação. O momento füol¥co-humanístico da Reforma é representado por Erasmo. § 367. ERASMO Desidério Erasmo nasceu em Roterdão, em 1466. Foi educado num claustro agustinilano, onde pronunciou votos e, em 1492, se ordenou de padre. Fez-se no entanto dispensar das obrigações do seu ofício e deixou até de usar o hábito. Espírito independente e cioso da sua independência, não quis aceitar nenhum encargo ou ensino e rejeitou, no período da sua máxima celebridade, a9 ofertas mais fisonjeiras. Vagabundeou por toda a Europa. Em 1506, na Uníversidade de Turim, tomou-se mestre e doutor de teologia: mas a ~a que ele tomou a peito foi a de escritor e fálólogo. [Pode oonsiderar-se o fundador da patrologia pelas suas edições de 187 S. Jeirónimo, SLO Hilário, St.<> Ambrósio e SLO Agostinho. Além disso,
elaborou um texto crítico do Novo Testamento, que traduziu do grego para o latim, Quando, desencadeada a Reforma, Lutero, que havia sido o precursor dela, se lhe dàrigiu, para obter o seu apoio, Erasmo recusou-se. Não ~a ligar-se a nenhum partido e era totalmente alheio a todo o movimento que provocasse rebelião ou desordem. Por outro lado, não condenou a Reforma nem mesmo quando pronunciou contra a tese luterana sobre o livre-arbítrio. No choque entre o cristianismo da Igreja e o cristianismo luterano quis permanecer neutral e recusou a oferta do cardinaliato que lhe foi feita pelo papa Paulo RI em 1535. A luta religiosa obrigava-o a sair dos seus refúgios: deLo,vaina, rigidamente catóhica, foi obrigado a sair por haver sido con-qiderado amigo da Reforma; de Basfieia, onde se Tefugiara, abalou logo que a reforma se impôs. Estabeleceu-se então em Friburgo, onde transcorreram os seus últimos anos; faleceu em 12 de Julho de 1536 em Basiácia, ondese detivera na esperança de regressar à Pábria. O primeiro escrito de Erasmo são os Adágios, uma rewlha de sentenças gregas e l~; mas a sua prini obra significativa é a Enchyridion militis christiani que contém já os práncípios ideais e práticos da reforma protestante. A obra mais famosa é o Elogio da loucura (Stultitix laus, 1509), a que são afins pelo conbeiúdo os Colloquía familiaria, publicados em 1524. Ao mesmo ano pertence o escrito contra Lutero Diatribe de libero arbitrio. Ao De servo arbítrio de Lutero replÍcou ele com o Hyperaspistes. 188 São dmportantes também os prefácios ao Novo Testamento e os escritos pedagógicos, entre os quaàs o * mais notável é o De ratione studii 1(1511), o pro,"uma do humanismo alemão. Brasmo, foi chamado por Dilthey "génio voltairiano" e, na realidade, ele serve-ge da sátira e do sarca~ para pôr a nu a decadência moral do seu tempo e especialmente da Igreja. Porém, a crítica de Erasmo não é negativa e destrutora, comoserá a de Voltaire, mas positiva e evocadora, evisa a reconduzir a vida humana à simplicidade e à pureza do cristianismo primitivo. Significativo a este propósito, é sobretudo o Elogio da loucura. A loucura é para Erasmo o impulso vital,, a beata inconsciêncÍa, a ilusão, a ~âncàa contente de síi-numa, palavra. a mentira vital. Toda a vida humana, seja a individual, seja a social, funda-se em mentiras, em Anusões ou em imposturas, que velam a crua realdade e constituem o maior atractivo da própria vk1a. E Erasmo, pondo a ffl- -ar a Loucura e entricheirando-se por detrás (de um ~to d@v@udo, pode rasgar o véu daquelas mentiras e mostrar a realidade que elas ocultam. Os interesses vitais que o seu sarcasmo defende pare= evidentes. Quando fala desses loucos, os quais confiam em ~, s pequenos sinais exteriores de devoção, em certo pala ~,o, em cortas oraçõezinhas inventadas por algum pio impostor para -seu divertimento ou interesse, julgam ter assegurado o gozo de uma inalterável felicidade e um bom lugar no paraíso"; ou de quem crê que "lhe basta deitar uma pequena moeda numa bandeja para que o mundo fique limpo de uni sem número 189 de rapinas como quando saiu da fonte baptismal" (EI., 40)-pronuncia evidentemente uma condenação das indulgências e de toda a prática de devoção formal, no que é tão terminante como o será Lutero. E quando a Lioucura
atribui a Cristo estas palavras: "Abertamente e sem parábolas prometi em outros tempos a herança do meu Pai não aos frades, não às rezas, não à abstinência, mas sim à observância da caridade. Não, não conheço aquelas pessoas que prezam demasiado as suas pretensas obras meritórias e que querem parecer mais santas do que eu próprio" (Ib., 54)-é evidente a desvalorização das obras e a exaltação da fé que será o próprio lema da reforma luterana. Em oposição às obras meritórias, à religiosidadefo~, ística às regras nomástioas, exalta Erasmo a religiosidade verdadeira, que é fé e caridade segundo os ensinamentos dos Evangelhos. E este ensinamento é contraposto ao próprio papado: "Os papas dizem-se vigários de Jesus Cristo; mas se se conformassem à vida de Deus, seu mestre, se praticassem a sua pobreza e a sua doutrina, se sofressem pacientemente os seus padecimentos e a sua cruz e mostrassem o seu desprezo pelo mundo; se reflectissem sèriamente no bom nome do papa, isto é, de pai, e no epíteto de Santíssimo com que são honrados: quem seria então mais infeliz do que eles?" (Ib., 59). Todos os temas da polémica protestante contra ia Igreja se encontram já na obra de Erasmo. E se no Elogio da Loucura são expressos sob o véu da f~ satírica, na Enchyridion militis christiani são retomados e desenvolvidos positivamente. O escrito é piolêmicamente dirigido contra a cultura bico190 lógica que exercita as pessoas nas disputas doutoras mas nãopromove, nem reforça a fé religiosa. Era~ propõe-se formar o militante cristão, não o teólogo ou o literato. Toda a força da "filosofia de Crisi está na transfiguração que ela é capaz de operar ws costumes e na vida do homem. "0 Modo MLs eficaz de converter os Turcos, diz ele (Lett. dedic. deIPEnch., ed. Holborn, 5), obter-se-á se eles virem resplender em nós as palavras e o ensinamento de Cristo; se nos Jembirarmos de que nós não &wjamos osseus âmpérios, o ouro e os bens deles, senão que procuramos apenas a sua salvação e a glória de Cristo. Esta é a teologia verdadeira, genuína, eficaz, que jáuma vez sujeitou a Cristo a soberba dois filósofos e os ceptros invictos dos príncipes. Se agirmos assim e só assim, o próprio Cristo estará em nós". A perfeição cristã não está no género de vida mas nos sentimentos, está na alma, não nos vestidos e nos alimentos (Ib., 12). A arma principal dio militante cristão é a deitura e ia interpretação da Bíblia. Erasmo aconselha escolher para guia aqueles iintérpretes que mais se afastam da letra dos livros sagrados. Cumpre ir além da letra para alcançar o espírito, já que sóno espírito reside a verdade. Mias onde a exigência da reforma se apresenta decididamente, onde o humanista aristocrático e altivo se torna o porta-voz de uma tendência que devia res 1~ numa rcb~ de povos, é na necessidade expressa cÍlaramente, por Erasmo, de lodos lerem e entenderem a seumodo a Bíblia. "Eu divirjo violentamente, diiz eile (Paraclesis in Nov Test, ed. Holborn, 191 142), daqueles que não quer= que as sagradas, escrituras sejam lÍdas pelos indoutOs, traduzidas na fingua dopovo, como se Cristo houvesse ensinado coisas tão obscuras que a custo poucos filósofos as pudessem entender, ou como se a defesa da reli~ cristã consistisse em serignorada. É talvez meilhor ocultar .o mi,stério do rei, mas Cristo quer que os mi~os sejam dàvulgados o mais poissível. Desejaria que todas as mulheres pudessem ler o Evangelho e as
cartas de S. Paulo." É precisamente deste re~o à leitura e ao entendimento da Sagrada Escritura que Erasmo espera a renovação- do homem, aquela reforma ou renascimento que é a restauração da autênitica natureza humana. "FàcIlmente entra na alma de todios o que é màximiamente conformo à natureza. Mas a filosofia de Cristo, que ele próprio chama de renascimento, que outra coisa é senão a restauração de uma bem construída na-tumw?" (Ib., 145). Esta conv~ oonstitui o móbdl e o fundamento da obra filológica de Erasmo destinada a restabelecer o texto do Novo T~mento e a promover a difusão mediante nova tradução. O renascimento que só a palavra de Cristo pode determinar é con. traposth por Erasmo à sabedoria teológica que toma as pessoas destras nas disputas mas não lhes dá nem a fé nem a caridade. "Quem deseje ser maIs instruído na piedade do que na disputa, ocupe-se o mais que possa das fontes e daqueles escritores que directamente procedem das fontes" (Ratio verae theol., ed. Holbom, 305). POT isso Erasmo exerce a sua actividade de filólogo não isó no domínio do 192
ERASMO Novo Testamento, mas também no dos Padres da Igreja, cuja doutrina lhe parcoe inspirar-se directa.mente nas flontes do cristianismo, enquanto que repudia e despreza a especulação ewoUstica, como sendo a que desvaneceu o sentido orig~ do cristianismo, entregando-se a questões ociosas. A tais q~ões ociosas como às cerimónias, aos jejuns e obras meritórias, opõe Erasmo os dois pontos basdilares do ensino de Cristo: a fé e a caridade. (Desfolheá todo o N~ Testamento, diz de (Ib. 239), não encontrareig nenhum preceito que diga respeito às cerimáúias. Onde se faz menção dos alimentos e das ve~ Onde se referem os jejuns e semelhantes coisas? O preceito de Cristo invoca, apenas a caridade. Das cerimónias nascem os dissídios, da caridade a paz." Deste modo estabelece Erasmo os pressupostos teóricos da Reforma e, o que mais conta, esclarece o conecUo fundamental desta: o de uma renovação radical da consoiência cristã mediante o retorno às fontes do cristiani&mo. Mas a -sim tarefa devia deter-se aqui. Humanista habituado a mover-se no mundo dos dotitos, partícipe do ideal humanista de uma paz religiosa universal, na qual encontrassem concíliação e concórdia as diversas experiências religiosas do género humano, ele não podia aperceber-se do alcance revolucionário da sua doutrina; e quando tal alcance se revelou na obra de Lutero, ele desconheceu-o e fechou-se na sua neutralidade de estudioso. Erasmo formulara filosóficamente os princípios da reforma cristã, mas não podia reconhecer a sua própria acção na obra de Lutero, que daqueles 193 princípios se valia para agitar forças políticas e sociais, todo um mundo, que parecia a Erasmo estranho e surdo à vida da cultura. Por isso, quando a 28 de Março de 1519 Lutero lhe enviou uma carta
pedindo-lhe que se pronunciasse públicamente a favor da Reforma, Erasmo, embora aprovando os princípios de que Lutero partia, recusou-se a seguí-lo e a encorajá-lo na obra revolucionária que em nome de tais princípios Lutero iniciara. Na luta que o movimento reformista desencadeou, Erasmo quispermanecer neutral; e tal permaneceu substancialmente, não obstante algumas oportunistas concessões à Igreja. Sobre um único ponto, todavia, atacou a Reforma: o problema do livre-arbitrio. Retomando o ensinamento de S. Paulo e de Santo Agostinho, Lutero afirmara decididamente a dependência da vontade humana em relação a Deus. Esta afirmação que, como veremos, deriva de uma religiosidade resoluta e exasperada, não podia ser acolhida pelo filósofo humanista Erasmo. Na Diatribe de libero arbitrio (1524), Erasmo enumera os motivos que levam a admitir a liberdade, definida como ",a força da vontade humana pela qual o homem se pode dirigir às coisas que conduzem à salvação eterna ou se pode desviar dela. A liberdade humana é para Erasmo liberdade de se salvar; e que o homem tem a capacidade de se salvar é demonstrado pelo próprio relevo que nas Sagradas Escrituras têm os conceitos de mérito, de juízo e de punição. Não teriam sentido ais punições, as ameaç as, as promessas diviinas se o homem não fosse livre. Mesmo a 194 concessão da graça, resolvendo-se numa ajuda divina à vontade humana, pressupõe a liberdade; e assim a pressupõe a oração, que não teria sentido se ela própria não fosse manifestação de uma vontade de salvação. Erasmo reconhece que se repetem na Bíblia, esobretudo nas epístolas de S. Paulo, expressões que parecem negar o livre-arbítrio, mas nelas vê o sentimento próprio dia consciência rellilgiosa que faz denvar todos os méritos humanos de Deus. Quanto à conciliação entre o livre-arbítrio e a omnipotência divina, afirma a cooperação do homem, e de Deus "na obra indivisível da regeneração": a graça é causa principalis, a liberdade humana causa secundaria. Assim como o fogo tom uma força interna graças à qual arde e que pressupõe Deus como causa principalis que !a criou e a mantém, asgim a salvação humana é obra do homem ajudado e sustentado pela acção divina. Na realidade, esta solução eclética não salva coisa alguma, porque, atribuindo a salvação humana à cooperação do esforço do homem com a graça divina, atribuí a um e a outra o mesmo valor determinante e não resolve o problema. A atitude de Erasmo é aquii ditada pela prevadência que a exigência filosófica humanista tem nele sobre a religiosa: ele quer salvar a dignidade e o valor do homem que são inconcebíveis sem a liberdade e por llsso recalcitra à tese extremista de Lutero que exprime todavia a essência mesma da vida religiosa: a dependência absoluta do homem para com Deus e o reconhecimento de que só a Deus ~nce a ciativa deterinúnante da salvação195 § 368. LUTERO O retorno às fontes cústãs, como via de renovação da consciência religiosa, encontra o defensor mais resoluto em Martinho Lutero (10 de Novembro de 1843 * 18 Fevereiro de 1546). A exigência, que Erasmo apresentara mas quisera restringir ao mundo dos doutos, é assumida por Lutero como o instrumento de uma revolução
que devia desligar a Europa germânica da Igreja católica. Partindo dk=tamente do Evangelho, Lutero impugna o valor de toda a tradiição eclesiástica e chega à negação da obra e da função da Igreja. Na sua doutrina e nos ~, tados históricos que dela derivaram parece evidente o valor revolucionário daquele retorno aos princípios que o Renascimento procurara realizar em todas as manifestações da vida. No domínio reLgioso este princípio levava a negar o valor da tradição e portanto da Igreja, que durante os séculos acumulara o património das verdades fundamentais do catolicismo. O retomo aos princípios significava aqui o retomo ao ensinamento fundamental de Cristo, à palavra do Evangelho, e por isso o repúdio de tudo o que a tradição eclesiástica acrescentar a a esta palavra. No seu escrito Contra Henrique VIII de Inglaterra (1522), Lutero contrapõe à tradição eclesiástica o Evangelho. Ele polenuiza contra os adversários, que à sua vontade de firmar-se na palavra de Cristo respondem com "glosas patrísticas, laboriosos e artificiais ritos depositários dos séculos". E acrescenta: "Eu grito: Evangelho! Evangelho! e cães uniformemente respondem: Tradição, 196 Tradição! O acordo é impo~ Eis aqui precisamente o centro especulativo e práfioo da refôrma luterana; e por esse oentro ela -se religa ao Renascimento que pretende renovar o homem e o seu mundo me&ante,um reitorno, à sabedoria originária. Deste Princípio dia Refôrma brotam todos os seus aspectos doutrinais. É, na verdade, graças à tentativa an~osamente repetida de alcariçar, para lá dias tincrustações seculares, o signikcado, origináriiio da mensagem evangélica, que se acendeno espíwito de Lutero a centelha daquela verdade que devia ser o enunciado basiIar dia Reforma: a justificação por meio da fé. O próprib Lutero cora que soda a escritura se erguia diante de si como um muro, antes de entender o significado da frase de S. Paulo: o justo viverá pela sua fé. Por esta frase aprendeu que a justiça de Deus reside na fé, na misericórdia pela qual o próprio Deus nois j,usffica com a sua graça. De posse desta verdade fundarnental, pareceu a Lutero haver encontrado a chave dia iinterpretação genuína dos textos sagradois. A justiça divina significou para ele a justiça passiva com que Deus justifica o honiemrnediante a fé, anàlogamente, a obra de Deus significa aquilo que Deus opera em nós, a sabedoria de Deus o atributo pelo qual nos faz sapientes, etc.. De modo que todo, o significado, da mensagem cristã foi condensado por Lutero no abandono total do homem à iniciativa divina, graÇas ao qual o homem nada tem de próprio a não ser o que recebe de Deus como dádiva gratuita. Assim L~ reconheceu e determinou na sua nudez essenciail a atitude religiosa. A fé é para ele 197 a confiança pda qual o homem crê que os poeudos. lhe são rernidos gratuitamente por Cristo; e é por isso a própria justificação por parte de Deus. O homem que tem fé é o homem cujos ~os flor= remidos, o homern justificwdo, o homem, wdvo. A jushi~ pella fé imphca arenúncia atoda a tentativa por parte do homem, o confiante abandono a Deus, a certeza interior da salvação. É evidente que, deste ponto de visita, o esforço, que dominara toda a filosofla escolástica, de justi,fkw pela razão a fé, devia parcoer repugnante
e absurdo. "Tal como acontece a Abraão, a fé vence, mata e sacrifica a razão que é a mais encam~ e pesitífera inimiga de Dous". A razão, de facto, sigrúfica a iniciativa por parte do homem, o esforço da pesquisa, a confiança nas possibáldades humanas; ao passo que a fé é a iniciativa abandonada a Deus, a rmúnoia a toda, a pesquisa, a confiança exdusiilva na graça justificadora de Deus. A doutrúna de Oxam, que excluía pela irracionalidade e inveififica,bi,lidade da fé e a tinha absolutamente excluído do âmbito da indagação racional, é saudada por Lutero como amiga e alliada. Occam, que Lu~ estudara no perlodo da sua formação académica, é, pode dizer-se, o único filósofo que ele salva da condenação. Todos os outros, desde Arístóteles a S. Tomás, chama-os de "sofistas" e ~seiia-os com os piores atributos. O oocanusmo é assim um dos pressupostos da reforma luterana: afirmando a irracionalidade da fé, permitiu ver nela a atítude, oposta à atituíde activa da investigação: o confiante abandono a Deus. 198 O pTimeiro cor;olário do regresso ao Evangelho é a nova dou~, dos sacramentos. No De captivitate babylonica ecclesiae (1520), Lutero reduz os sacramentos a três só: o baptismo, a penitência e a euca~ poás só estes foram iinstítuidos por Cri~, como den~ o testernunho evang~ Mas ele Pretende ~r-se a ~ testemunho no que respeita ao PróPriO conceito dos sacramento que mais do que &~tos uns dos outros, são três símbolos de um único saemmento. O sacramento fundamental é * baptismo, j--@eIo qual ohomem morre para a carne * para o mundo e revive a justificação dMna. O baptismo nunca perde a sua efi~ nem mesmo se o pecado é S~Ivamente cometido: ele caincide com o niato da fé no homem, e a própria fé é a rMOvaÇãO incessante do sacramentio baptismal, uma vez que mercê dela o homem morre conCinuamente para a Carne e continuan~ renasce paira o espírito. A penitência COrroboTa a confiança, na salvação, seMO O rec ~1imMUO colectivo dia justificação inteiráor. E a eucaristiia renova a particiPaÇão na vida de Cristo mediante o banqueti,fraterno do pão e do vio . Assim os sacramentios perdem o cará~ de uLmia jurisdição ~rdoU,1 e tornam-se a expressão daquela ári~ta relação entre o homem e Deus, que se realiza na fé. A doutrina dos sacramentos élimia toda a função intermédia entre o homem e Deus, nega a possibilidade, da mediação ~~ e coloca d~amente o homem defronte de Deus em virtude de um acto Puramente inteoior, o da fé, de que os próprios ~amentos são a realiização e a garantia. A nega199 ção da tradição eclesiástica, operada mercê do retomo ao Evangelho, toma-se assim a negação da função sacerdotal e por isso da distinção entre casta sacerdotal e mundo liaico. Esta consequência é tratada no outro escrito de Lutero À nobreza cristã da, nação alemã (1520), que inioiou a rebelião da Alemanha contra a igreja de Roma. A justificação pior meio da fé tira todo o valor às chamadas obras meritórias. Sem a fé, estas obras não fazem senão redobrar os pecados: as boas obras não podem portanto ar ninguém. Todavia não devem poT àsso ser excluídas: elas são de facto o fruto, e ao mesmo tempo o sinal seguro da justificação diviina. A, fé verdadeira não é ociosa mas operosa; e se as
obras não se seguem à fé, tal fé não será genuína. "Assim como as árvores existem antes dos frutos, diz Lutero no De libertate christiana (1520), e não, são os frutos que fazem as árvores boas ou másmas as árvores que fazem os frutos tais, assim o homem deve ser na sua pessoa pio ou mau, anítes que possa fazerobras. boas, ou más". Mas as obras levam o homem para fora da sua humanidade para aquela exterioridade em que o homem já não é lívre, mas servo. Lutero faz valer em toda a sua força a distinção paulista entre o espírito e a carne. O homem que tem fé nasceu para a vida do espírito, é uma nova criatura independente de todo o mundo que o circunda, portanto absolutamente livre. Mas na sua carne, isto é na sua natureza sensível, o, efistão é, pelo contrário, o mais submisso, o mais dócil dos homens. O homem exterior que vive no mundo deve adaptar-se à prática 200 LUTERO do bem não para adquirir mérito, mas para contribuijr para o aperfeiçoamento da -vida social. O campo cuja vida cada um deve contribuir com todas as suas possibilidades. O sapateiro, o artífice, o camponês têm, cada um deles, a própria ittarefa oora a qual prestam serviço aos outros e contribuem para uma obra de que o corpo e a alma beneficiam, de modo que o ofício dois vários membros beneficia avida total do corpo. Aquise revela outro corolário dos mais notáveis da doutrina de Lutero: a vida social, e a W, efa que cada um nela desempenha é o único serviço divino, a única obra, em que o cristianismo dá testemunho da sua fé interior. Não são as práticas piedosas mas o exercíciio, do -dever civil que é a obra boa, fruto e sinal da fé, garantia oerta da justificação dávina. Enquanto afasta os homens dias práticas do culto, Lutero procura levá---los a empenharem-se no exercioio do devor civiiI, vmdo neste apenas a obra em que exteriormente se manifesta e se realiza a fé. Frente à concepção luterana da fé como absoluto abandono do homem a Deus, a tentativa de Erasmo de salvar de algum modo a liberdade humana fixando-se numa posição de semipelagianismo, devia parecer impossí vel. Ao De libero arbitrio de Erasmo, Lutero replicou em 1525 com o De servo arbitrio, cujo título diz tudo. Seig-undo Lutero, não se pode adimâir ao mesmo itiempo, a liberdade divina e a humana. O livire-arbítrio não é mais que um nome vão; a presciência e a omâipotência divina excluem-no. Deus prevê, propõe elevia a ei com vontade 201 e~ e infalível -tudo o que sucede. A p~ônede e a predeternúnação dÍvina implicam que nada acontece que Deus não queiTa; e asso exclui que no homera ou em qualquer outra criatura haja livre-arbítrio. Cumpre portanto concluir que Deus opera igualmente nos homens o mal e o bem, assim com um artífice se serve por vezes de instrumentos maus ou deteriorados, e que ~to a &-úvação, como a danação do homem, é únicamente obra sua, Ã óbvia objecção de que em tal caso Deus é o autor do mail, Lutero responde retomando a doutrina de Occam. Deus não é obrigado a observar nenhuma regra ou norma: ele não deve querer uma coisa por ser justa, mas aquillo que ele quer por Isso me= é justo
(De serv. arb., 152). Uma vez mais, a doutrina de Lutem encontra um preitexto na f~ia de Oecam: a ind,,derença da vontade ffivina que cria, querendo, a norma do bem e do mal é afirmada por Lutero como defesa da predesbinação (que havia sido, também ela, aliás, sustentada por Occam). Mas esta itão absoluta e apaixonada n~ da liberdade humana revela logo em Lutetro o seu móbil religioso. A doutrina da p~tànação não é nele uma doutrina fidosófica; e as velhas t~ de Oco,un têm nele uma ress~cia muito diferente, Lutero pretende defender e realuzar plenamente a atítuderelíigiosa da fé, o abandono ~ do homem a Deus. Tal atitude exclui que o homem possa reivkdw,ar para si a liberdade, o, mérito, a iniciativa. Tudo deve ser atribuído a Deus e apenas a Deus. "0 sumo grau da fé, &z Lutem (Ib., 42) consiste 202 em crer que Deus é demente mesmo se Galvia poucos, mesmo se condena muitos; em julgá-lo justo mesmo se por sua vontade nos torna necessàriamente culpados, mesmo quando pareça delatar-se com as dores e as misériais, e antes digno de ódio que de amom. E, na realidade, o que conta, na disputa entre Erasmo e Lutero em torno da liberdade humana, não é o valor das razões aduzidas em apoio de uma ou de outra ~, razões já gastas e velhais, mas a diversidade das afltudes que aquelas razões revelam. Não obstante todo o seu ffiteresse pela renovação reFeiosa, Era~ permaneceu um filósofo humanísta; em Lutero, pelo contrário, o r~mo ao Evang~ determinou uma aútude de roligiosidade absoluta e intransigente, para a qual a única liberdade humana não podeser senão a sujeição a Deus * a única iniciativa, como único mérito, a renúncia * toda a kú ciativa e a todo o mérito. Essa atitude constitui a originalidade da doutrina * dia obra de Lutero. Indubitàvelmente, todos os elementos de tal doutrina são medievais e não apresentam nenhurna ofiginalidade (excepto tailvez a dos sacramentos), mas a originalidade está em ter feito valer o retomo ao Evangelho como instrumento de uma palmgenesia religiosa e em ter fewto de tã retorno uma força de destruição e de renovação. A Reforma religasse ao Renascimento precisamente no seu moítivo central, no seu esforço de se refazer nas orágens; e, tal c~ o Rienasoimento, tende a levar o homem a empenhar-se nas obras da vida, desviando-os das cerimônias e do culto ex~. 203 § 369. ZWINGLI O retorno às fontes religiosas é concebido e posto em prática do modo mais conforme ao ideal humanístico pelo reformador suíço Ulrich Zwinglii, nascido no 1.O de Janeiro de 1484 e falecido a 11 de Outubro de 153 1. Zwingli faz sua a doutrina de Pico de Mirândola (§ 357) de uma sabedoria refligiosa, na qual confluem e se harmonizam os textos das Sagradas Escrituras e os dos filósofo pagãos. Por isso ede não restringe a revelação a um facto histó- ,rico determinado, nem mesmo ao cristianismo. A revelação é universal: tudo o que se dIsse de verdadeiTo, por quem quer que tenha sido dito, procede da própria boca de Deus, de contrário não seria verdadeiro. A Plaitão e a Séneca, não menos que a Maisés e a S. Paulo, o próprio Deus revelou, mediante a luz interior da consciência, elemenitos essenciais da verdade. Oretorno às fontes da religião deve portanto significar o retorno a todas as vozes divinas através das quais Deus ise
mwlou e tem por fim renovar em nós mesmos a intimidade de directa adesão a Deus. Estas teses desenvolvidas no De vera et falsa religione commentarius (1525), conduzem Zwingli a enriquecer e generalizar o seu conceiito de Dous, no sentido elástico, aprópria natureza. No De prorejeita nenhuma dias determinações filosóficas da &rvi,n,d:ade. Deus é o Ser, o suma Bem, a U ,,ade no senflido elástico, a própria natureza. No De providentia (1530), ele identifica-o com a potência que rege o mundo, com o sujeito único e a única força 204 que rege as coisas. Neste sentido Deus identifica-se com a providência, e Zwingli diz: "Se a providência não existisse, Deus não existiria; excluída a Providência, Deus também é excluído". A salvação de todos os homens é determinada pela acção providencial de Deus. Deus quis livremente todos os acontecimentos do mundo: deterniinouítanto o pemdo de Adão como ia encarnação do Verbo; e determina, em virtude de uma eleição gratuita, a salvação dos homens. Esta última é devida a uma livre decisão de Deus, que a dá ou a nega segundo o seu arbitrio, a coisa alguma estando obrigado, mas determinando só com a sua vontade tudo o que é justo e injusto. E a eleição d&se ab aeterno, não se deve à fé, mas precede-a; os eleitos &ãono ~s de crer. A fé não é más que o abandono total à vontade de Deus, abandono pelo qual o homem se torna independente de todas as coisas exteriores; e este abandono pode encontrar-se em pagãos como Sócrates e Séneca, que Zwingk não duvida hajam sido eleitos para a vida oterna. Para Zwingli, como para Lutero, a fé é a confiança inabalával na graça justificadora de Deus, a certeza absoluta de se estar totalmente nas mãos de Deus e não poder (agir diversamente do modo por que se age: confiança e certeza que fizeram as grandes almas reúgiosas e activas da Reforma e transformaram o que parece à primeira vista,um princípio de encorajamento e denúncia, a negação da lib"ade humana, num elemento de força e de exaltação. Mas para a universalização da revelação e do próprio conceito de Deus, a fé purif-ica-se e interioriza-se ao 205 máxinio na doutrina de Zwingli. Zwingli rejeita, bastante mais do que Lutero, toda a expressão ou subsídlio exterior da vidia religiosa. A fé basta-se a si mesma: nada que venha do exterior pode aJudá-la ou apoiá-la. Ela move tudo, mas não é movida por coisa alguma, porque é a própria, ~ de Deus; na consoiência. As cerimónias, os sinibolos, os pietextos exteriores da religiosidade são resoluhamente excluídos. O próprio sacramento da Eucaristia, a que LuteTo atribuía valor real, interpretando-O no sentido da consubstanciaçáo - (já defendido por Oceam no seu tratado De corpore Christi et de sacramento altaris), isto é, com a presença simultânca das duas substâneias, a do pão ou do minho e a do corpo ou do sangue de Cristo, é por Zwiingli Teduzido a uma pura cerimónia simbólica, na qual o corpo de Cristo já não está no seu corpo real mas na comunidade dos fiéis que se torna verdadei- ,ramente o corpo de Cristo no acto de reevocar durante a cerimónia, o sacrifício de Cristo. Foi precisamente esta interpretação da eucaristia que determinou a polémiica entre Zwinglii e LuteTo e tornou impossível o acordo entre os dois inovadores. Num outro ponto de vista, o antagonismo entre Lutero e Z~gli resulta
evidente. Lutevo, negando o valor das práticas reEgilosas, tinha levado, o homem * empenhar-se na vida social e a considerar esta * único domínio da opera buona reveladora da graça. Mas -neste domínio ham@a baprado o caminho a todas as forças inovadoras, reconhecendo e afirmando o valor absoluto do poder político e negando-se a toda a eirativa de reforma social. A doutrina de 206 Lutem leva assim a um revigoramento do conservantísmo político-social. Zwingli, que nascera e vivia numa wciedade democrática, dá-se conta do valor de renovação que o reto -mo às fontes religiosas, representa paria a sociedade do seu tempo. A vida ~ deve, segundo Zwingli, determinar activamente e transformar, moffiante um retorno à sociediade cristã originária, a vida política e gocial. Ele condena Lutem que encoraja os príncipes a perse- ~ @nuwnanamen1tc a forro e f os inocentes culpados apenas de terem fé na verdade. Nega a obediência passiva à autoridade política; reconhece legítimo só,um governo que encaminhe para a vida cristã e aprove a deposição dos tiranos, pela concorde vontade do, povo. A comunidade dos cristãos deve tornar-se, no espírito da reforma de Zwingli, uma =unidade política que retorna às formas da sociedade cristãoriginária. Zwinglí é consciente de que este retorno não é integralmente possível e reconhece, por e~pdo, que a comunhão de bens, que poderia reallizar-se apenas entre santos, não é possível neste mundo, no qual se pode todavia avizinhar esse estado de perfeição mediante a beneficiência. Mas antes de tudo ele leva o princípio reformador ao plano social e dele faz um instrumento de renovação e a base de uma nova orga~ política. § 370. CALVINO Se o retorno às fontes religiosas é para Lutem ~ncialmente o regresso ao Evangelho e para ZwIngli o regresso à revelação Originária concedida 207 a pagãos e ia cristãos, para Calvino é, ao invés, o retorno à religiosidade do Velho Testamento. joi Calvino, (10 de Julho de 1509-27 de Maio de 1564) nasceu em França, em Noyon, mas foi na Suíça, em Genebra, que levou a caibo a sua obra de reformador; e desta obra se originaram as igrejas reformadias que não se organizaram sob a influência do Estado, com na Alernanha, mas se desenvolveram livremente. Em 1553 Calvino mandava condenar à foguoira, pelo Conselho de Genebra, o espanhol Miguel Serveto, que negava a encarnação, pois via na figura histórica de Cristo uma simples participação na substânda eterna do, Pai (Restitutio christianismi, 1553). Mais tarde, foram efectuadas perseguições econdenações contra a chamada corrente libertina, que congregava os idefensores da imanência de Deus em todio o universo. AintoIcrância foi para Calvino uma arma de defesa dia nascente Igreja reformi enquanto vilveu, o poder político em Genebra foi completamente subordinado às exigências esparituús da reforma religiosa. Num capítulo dia sua obria fundamental Instituiição da religião cilsitã (aparecida pela primeira vez em latim em 1536 e por ele traduzida pwteriormente para francês epublicada em 1541 ~a língua, a qual constitui o primeiro documento literário dia prosa francesa), Calvino propõe-se mostrar a unidade do Velho e do Novo Testamento,
combatendo a tese de que o Velho Testamento tenha anunciado aos Hebreus uma feLcidade puramente terrena. Calvino insiste na impossibilidade de entender a douffina do Evangelho sem o Velho Testamento; e, 208 na lade, na sua interpretação da Bíblia são os conceitos do Velho Testamento que prevalecem. Do Velho Testamento extrai o conceito axial dia sua concepção religiosa: Deus com absoluta soberania e potência, perante o qual o homem nada é. Na teoliogia de Calvíno, Deus é omnipotência e impre~biLdade, mais do que amor. Da sua vontade depende o curso das coisas e o destino dos hori portanto também a sua salvação. " Conforme aquilo que a EscriÍtura claramente demonstra, nós dizemos que o Senhor há muito decidiu, no seu conselho eterno e imutável, que homens havia de destinar à salvação e quais deixar na ruí-na. Aqueles que ele chama à salvação, dàzemos nós que os recebe pala sua misericórdia gratuita, sem ter em conta a digmdãde deles. Pelo con4~, o dngresso na vida está vedado a todos aqueles que ele quer v~ à condenação; e isso ooorre devido a um seu juízo oculto e incompreensível, embora justo e equâniri (Inst7, 111, 62-63). A eleição diviina não se segue à previsão divina, senão que a precede. Calvino considera inconeffiáveis estas duas afirmações: a de que os fiéis iobtêm a sua santidadepela eleição e a de que são eleitos por esta santidade. A santidade origina-se hfficamente da eleição: não pode portanto ser causa dela. É impossível atribuir ao homem um mérito qualquer relativamente a Deus. O homem reconetifia-se com Deus apenas através da m~ de Cristo e da participação nas suas promessas. Mas a própria obra mediadora de Cristo é um decreito ~o de Deus, que faz parte da ordem providencial do mundo. "Nós temos, diz Câvino (Ib., 6, 11, 275) 209 ~ rogra breve mas geral e certíssim-m: aquele que por completo se aniquilou e despojou, não digo da sua jusuiça que nada é, mas daquela sombra de justiça que nos engana, está devotamente preparado para receber os frutos da misericórdia de Deus. Porque, quanto mais cada um repouse em si mesmo, tanto mais será,um impedimento, à graça de Deus". Aliás, a graça de Deus não impele o homem do Inesmo modo que nós atiramos uma pedra. É uma faculdade natural, reconhece Calváno., querer ou não querer e tanto faz querer o mal como não que= o bem, entregar-se ao pecado como resistir à justiça. O S~r serve-se da perversidade do homem como de um instrumento da sua ira; enquanto refreia e ~era a vontade dos que destina à súvação, dirige-a, forma-", condu-la segundo a regra da sua justiça, e finalmente confirma-u e fortifica-a com a virtude do Espffito. Deus quer que tudo o que ele faz emnós seja nosso, contanto que entendamos que nada depende de nós (Ib., 2; 11, 188-190). Esta doutrina da predestinação, precisamente no que possui de extremo e de paradoxal, consÜW! a força da consciência Calvino Quem conta, apenas com os mérisos humanos, permanece necessàriamente em dúvidia quanto à ~cia de tás méritos, tão imperfeitos e precários, e poT ísso quanto à própria salvação. Mas quem crê apenas méá- ,tos de Cristo e se sente, em virtude de tais méàtos, predestinado, adquire uma força de convicção que não recua perante as dificuldades e o leva até ao fanaksmo. Como Lutero e Zwingli, Calvino abria ao 0~ o campo de ~ da vida social e levava-o a
210 empenhar-se num trabalho activo dentro da sociedade e a &,ansformá-la em conformidade com o seu ideal r~oso. O trabalho tomava-se assim um dever sagrado, e o êxito nos negócios uma prova evidente do favor de Deus e, segundo os conoeitos do Velho Tostamento, um sinal da sua predilecção. Pela ética caMnista se modelou o espírito da nascente burguesia capitalista: o espírito activo, agressivo, desdenhoso de os os sentimentos, continuamente dirigido para o êxiito. É signàficativo que o próprio Calvino tenha reabilitado a usura e haja declarado, moralmente lícito receber juros de emprésfiLmo. ~ quer que seja, a verdade é que o carácter religioso, atribuído ao êxito, nos ócios estabelece laços estrekos ~re a actividade mercantil e a o~êne@a religiosa e reveste de um carácter sagrado a prosperidade económica. No plano própriamente especulativo, a t~a de Ciadvino põe o homern perante um muro: a imprescrutabUidade dos desígnios dívinos que faz com que o homem nada possa entender da justiça divina e deva limitar-se a sDfr64a. § 371. TEÓLOGOS E MÍSTICOS DA REFORMA O sistematizador teológioo da reforma luterana foi Rfipe Meilanethon (16 de Fe~o dL- 1497-19 de Abril de 1565). Pola sua -incansável activádade de defensor dos princípios luteranos, de professor, de autor de manuais didácticos (de diaJéctica, de física, de ética) foi chamado Praeceptor Germaniae. Ten211 tou reportar os princípios da Reforina à espe~ da Antiguidade c CS~Imente de Platão e de Aristótelesque interpretou através de Cícero. Defensor do nominalismo (nos conceitos universais vê sómente Os nomes comuns das coisas) identifica este ponto de ViSta com o de Platão, e de Aristóteles. E, em geral, faz wu o princípio humanistico do acordo substancial entre os ensinamentos da antiguidade clássica e a revelação cristã . - A primeira obra imPortantC de M~thon são os Loci ~munes rerum theologicarwn editados pela primeira vez em 1521 e ree@aborados e enriquecidos nas subsequentes edições. Estas reclaborações mostram o desenvolvimento do pensamento de Melanethon, que, partindo da simples interp~ da doutrina de Lu~, proema em seguida Vinculá4a à ~ção do pensa" mento antigo, atenuando-a em alguns pontos essenciais, especialmente na doubrina do livre-arbitrio. O princípio de que ede parte é a presença no homem de um lumen naturale que é o fundamonto último de toda a actividade teórica e prática. São manifestações deste lumen naturale os conhecimentos inatos, que Melanethon admite w~ os Estóicos e Cícero. Tais conhecimentos são as verdades supremas, os princípios por si evidentes que são a base da ciência e da conduta humana. São princípios inatos práticos as leis do decálogo, que Deus ~ou e sancionou com a sua autoridade, quando eles se obscureceram na consciência do homem. Sobre os princípios naturais inatos deve ser fundada a ordem social: eles de~ ser por~ o guia do homem, que quer, segundo o ensinamento de Lutero, reafizar no mundo 212
a obra de Deus. A obra de MeUnetIon é desfituída de eiriginalàdade especuktiva: o seu valor consi= em haver conduzido ao terreno filosófico os princípios da reforma r ~,* sa que Lutero valer apenas no domínio religioso, excluindo e condenando toda a ~boração, filosófica dos mesmos. Sebastian Franck 1(1499-1542) enxerta as d~nas da mística alemã no tronco do panteIsmo, humanista. He é o autor de uma história unâ~ (Chronica) que foi impressa em Estrabuirgo (1531), de uma Cosmographia 1(1534) e de 280 Paradoxa (1534-35). Como XMan~, Franck con,&dera que há nos homens uma luz natural, fundamento da capacidade de juízo, qlue dIes possuem. TW lume, que Platão, Cícero, Senéoa e os outros filósofos pagãos denominam razão, chamam-lhe os cri~ Verbo ou Filho de Deus, Chsto invisível. O Cri~ invisível é portanto a própria razão, mercê da quad o homem consegue vencer o seu egoísmo carnal, renuncia a si mesmo e se fia em Deus. A obra de libertação e de renascimento espiritual, aquela justificação que Lutero atribuía à iniciativa divina e da qual o homem era sujeito passlivo, torna-se em Franck a obra mesma da razão humiana, em que actua e se identifica a acção justificadiora de Deus. NissO reside precisamente a importância da doutrina de Franck, a qual pela primeira vez leva a ~ma P&ig"a ao torrem fdosófico, não já no sentido de retraçar os pressupostos doutrinais (como fizera Melanethon), mas no sentido de traduzir numa afitude filosófica equivalente a atiltude religiosa que, ela defendia. Franck é fiel à doutrina da justificação de 213 Lutero; mas a justificação é para ele obra e iiniciativa humana, em que todavia se manifesta e actua a obra e iniciativa divina. Dai a sua doutrina sobre o livre-ar, bítrio (Padaroxa, 264-268). Em polémica com Lutero, Franck defende a liberdade humana, visto que é mediante ela que se realiza a decisão justificadora de Deus. Daí, também, a interpretação puramente alegórim da Sagrada Eserãura, cujos factos -,ao por Franck considerados símbolos de verdade eternos. O sacrifício de Cristo é apenas o símbolo de ,um processo que se repete continuamenle na História: o processo - da libertação e da redenção do homem que, através da razão, se mune a Deus. Daí, enfim, o conceito de uma igreja invisível de que se faz parte, não por atributos externos, mas pela perseverante justificação interior, e da qual são membros também os pagãos, com Sócrates e Séneca, que viveram de acordo com os ditames da razão. A par desteradonalismo religioso, Franck apresenta uma vMo da história dominada pela acção proVidencial de Deus. Desta acção é o mal um instrumento e uma condição necessária, portanito impossível de eliminar. Homens maus e loucos sempre exisfixam e existirão sempre em maior número do que os homens justos e piedosos. E haverá sempre um papa no mundo, porque este tem. newssidade da fé cega e de servir -alguém; e oshornens, devido àsua debMidade, dificilmente conhecem outro modo de servir Deus que não seja pelas cerimónias externas, pelos cantos, procissões, etc. Elepróprio, Franck, quer ser e permanecer estranho às seiitas religiosas e tomar o seu lugar entre aqueles poucoshomens de 214 todos os ~s que têm servido livremente Deus na interwridade do seu espírito. Mais próximo do misticismo de Me~ Eckhart está Valentino Weigel (1533-88),
autor de numerosas obras, entre as quais as mais notáveis filosóficamente são: A verdadeira resignação, Introdução à teologia alemã, A chave áurea, As origens do mundo, Pequeno livro, Sobre a vida e a maneira de conhecer todas as coisas, Conhece-te a ti mesmo, O bem e o mal no homem, A vida santa. - W6gal parte do conceito de Deus próprio dos mistkos: Deus é uma unidade inefável superior a toda a essência criada e incomparável, com ela. Mas ao mesmo tempo Deus, é imanente no homem e constitui o principio que conhece e opera nele. E, de facto, todo o oc>nhectimento humano encontra o seu princípio, não no objecto, mias no sujeito em que age Deus mesmo. O homem possui itrês formas de conhecimento: a sensibilidade, que item por objecto o mundo sensível, a razão de que dependem as ciências e as artes, e a inteligência que visa ao que é invisível e divino. Mas estas três formas de conhecimento têm o seu principio, não no objecto que as produz, mas no sujedito cognoscente. No conhecimenito sensível, de facho, a coisa externa solicita a percepção, mas não a produz, porque esta é uma actividade do sujeâo. E o mesmo acontece com o conhecimento sobrenatural: daí que possamos, na verdade, entender a palavra divina consignada na Bíblia, mas a~ na medida em que em nós próprios actue a luz divina. Na realidade, Deus e a sua palavra estão em nós: ele é o nosso olho e a luz que o ilumin . Por isso é knpos215 sível ent~ a Sagrada Escritura moffiante um corfi, ecimento puriamente natural: só a presença do p~ Santo em nós nos abre o entendimento. Donde se segue que a justá, ~ do homem por parte de Deus não vem do exterior, senão que ua na illb~d@adie ! MCSIM do homem. Weágel une a doutrinal~ana da justif~ à dioutrina de Ec~ do Deus no homem. Ohomem, deve morrer para si mesmo e o PTóprúo Deus deve fazer-se nede homem. O renascimento que se alcança através da fé é a afirmaÇão da vida divina no homem, afirmação pela qual a vontade humana é suplarítada ántekwn~ pela vontade salvadora de Cri~. O mais ~,Icaltivorepresentante daleosofia alemã luterana é Jakob Bõhmie na~ em 1575. De familia humd&, não sqguiu estudos regulares e exerceu o mester de sapaíteiro. As lutas entre váxias seitas protestantes turbavam a sua c
Gomo iodos os místicos, Bõlime considera a razão i~paz de chegar a um ver~o conhecimento de Deus. Um tal conhecúmento obtém-se aperiais através de uma visão @media$a que é possível ao homem. porque há nele uma Oentelha dia luz dilvina. Tal como Franck e Weigel, Bõhme ~te uma origiriària iluminação divina, devida ao facto de que a alma tem a sua origem na es~ mesma de Deus. (Aurora, pref. 96). Tal como os outros místicos alemães, Bõhme coloca Deus acima de todas as as reais, de sodas as determinações finitas, chegarido, a di= que se pode designá-lo por lima sópalavra: um nada eterno(Mist. ~, ., 1, 2). Deus é o mysterium magnum, o eterno abismo do ser; este abismo item uma vontade; e esta vontade anela espelhar-se em si mesma. A -trindade divina determina-se assim: o Pai é a Vontade (W111) do abismo oterno; o Fiffio é o Sentimento (Gemüth) e~ da v~e, o prazer que ela experimenta em contemplar-se; o Espírito, fmalmente, é a, Resultante (Ausgang) da Vontade e do Sentimento na linguagem e na inspiração. Porém, não se tratava tanto de &és pessoas como detrês aspeotos dia dlivúndade no sou nascimento eterno, pois que a divindade é veridadeiramente uma via única e um único bem. (lb., 7, 9-12). Todavia, esta única, vida iinclui em si a opo,~ de dois princípios. Se de facto fosse absolukv=te una, nera sequer poderia revelar-se a 217 à mesma: a revelação supõe uma dualida&, kW uma o~,- A opo~ é entre ais trevas e a luz, entre o óffio e o arnor, ~ o coppo e a natureza, entre o coração e o sentim~ de Deus. "Se deve -haver a luz, tera de haver ita~ o fogo. O fogo gera a luz e a luz ~ cin si o fogo, ela compreende em si mesma o fogo, isto é a naftm-ez-a, e habita no fogo" (Ib., 40, 3). O amor poder~se apenas através do Mio, o Mio através do amor, e astrevas estão estreitamente figadas à luz. I)cus compreende Portanto em si a eterna natureza em OPOS@ÇãO ao eterno espírito, que é o ~0 daqueda e~ naitureza. E nesta eterna natureza ex@stern sete formas fundamentais ou qualidades, nas quais encontram a sua raiz todos os aspectos da realidade criada. A primeira forma natural é o Anelo, do qual nasce o e~ querer & Deus. A segunda é o Movimento a que o Anelo dá origeim, do qual nascem o espírito, a sensibdúdade e a vida. A terceira é a Angústia, que deriva das precedentes. Estas três primeiras formas nas quais se reflecte a acção do Padre, do Filho e do EspírUo Santo, são simbálicamente Indicadas por Bõhme com os nomes dos elementos deParacelso: sal, mercúrio e enxofre (Clavis, 9, 46). Da angústia brota o Fogo, que é o nasdmento da v@dia e a quarta forma natural: nela se revela autênticamente a trindade divina. Do fogo brota @a quiinta forma, a Luz, que é o amor. A sexta forma é o Som da palavra divina. A sétima é o Corpo que resulta da acção combinada de todas as formas precedentes e é des;~, a como a natureza 218 de Deus, o céu incriado, o salítre dàvâno (Aurora, 11, 1). O mundo criado encoutra as suas raízes ne~ sete formas da natureza divina. Ele não foi criado do nada: Deus tirou-o de si, e ele não é senão a revelo@o e a explicação da essência divina (De tr. pri.nc. 7, 23). O que em Deus é a oposição dos dois princípios (ia natureza e o espírito), no mundo é a
oposição entre o bem e o mal. Umavez que o mundo deriva de ambos os princípios divinos, deve reflectir em si a oposição desses princípios. Todas as coisas do mundo estão portanto em luta entre si e esta luta é inelutável porque, sem ela seria ,possível a vida e todias as fbrmais da realidade (Myst. magn., 26, 37-38). O homem microcosmo é a imagem da divindade. A sua alma compreende três princípios: * alma do fogo, ia alma da luz e a alma do animal; * o seu corpo Compreende também três princípios: * corpo celeste, o corpo sideral e o corpo elementar (Ib., 15, 15; 11, 20-25). Através da fé, a imagem divina do homem restabelcoe-se e refaz-se tal como era no princípio, iantes da queda de Adão. Bõhme interpreta a fé, em conformidade com a doutrina luterana, como justificação total do homem, como um -retomo do homem, através de Cristo, à luz e à vida de Deus. O renascimento do homem é verdadeiramente o renascimento de Deus no homem. Mas para B5hrne este renascimento é fruto da liberdade. Whme nega ia predestinação dávina, mas nega-a, não já para fazer valer perante Deus os méritos do homem, mas para mostrar que a acção divina é intrínseca à vontade humana de salvação. 219 A queda do homem entra na ordem provadencW do mundo Porque sem ela o amor e a graça de Deus não teriam podido wvelar-se. Decerto que Deus não PrOdc~ Os homens nem tão-pouco a sua Presciência ~ ou viola a üb~, e deles. Mas a queda, a salvação e alternativa que se propõe à Qivre escolha do homem enitmo bem e o mad, e~ radicadas na essência divána, @sto é, na duplicidade dosprincípios de tal, essêncáa: a naitur
católicos (especialmente por Belarmino), tentaram os p~tantes mo~ a suficiência e a intelígibilídade da Sagrada Escritura. Denominaram eles clavis aurea o método de que Flacius @se serviu para tal fim, e que ~súa pirincipalmente em explicar cada simples passo, mediante o sentido total da Escritura. Não obstante a arbitrariedade dos resultados, este método abriu o caminho à exegese histórica da Bíblia, cuja necessidade Erasmo hav@a sido o pri> zrwiro, a compreender. E um pa~ ulterior desta exegese é representado pelo socinianismo. O fundador do socinianisma foi Lelio Socini nascido em Siena em 1525 e morto aos 37 anos, em 1562, em Zurique, depois de ter vividb na Alemanha, na Suíça e na Polónia. O sobrinho Fausto, Socirai, também nascido em Siena em 1539 e falecido em 1604, na Polóniia. (onde se estabelecera em 1579) prosseguiu e levou a efeito os estudos do tio, sendo o verdadeiro fundador do socinianismo. Fausto Socini defende, nas pisadas de Flacius, a veracidade e suficiência das Sagradas Escrituras, servindo-se, tam@bém ele, da clavis aurea para demonstrar a coerênedia 221 delas. Mas o espír@t" racionalista da sua ~se sagradia reflecte-se nas suas d,out,@mw, que chegam a negar os dogmas fundamentaís do cristianismo. Já Miguel Serveto (1511--53) nepra o dogma trinitário, admitindo um ú nico Deus, isto é, o Paá, e recusando-se a rcoonhecer que a trindade se funda na Sagrada Escritura. A mesma negação se encontra em Socino. Deus, que é uma essênda numèricamente una, deve ser também uma pessoa numèficamente una: pessoas diversas implicariam essências, isto é, substâncias diversas. O que exclui que Cristo seja Deus. Aliás, se fosse Deus, já não seria homem, pors uma única substância não pode ter em si duas formas. A pretensa dirvindade de Cristo contradiz ao mesmo tempo o testemunho do Evangelho e a razão humana. O pecado original deixa de subsistir, "é uma fábulia judaica iiintroduzida na Igreja Pello Anti-Cristo," (Dial. de justif., Op. 1, 604 b). A culpa requer a vontade, e não pode haver culpa no homem que acaba de nascer. Fausto Socini defende, além disso, a liberdade do homem e @nterpreta a doutrina luterana da justificação como uma espécie de Mmissão jurídica que Deus faz do pecado em virtude da fé. Mas o homem não pode salvair-se ~o pela sua vontade, porquanto a escolha divina não ocorre sem ia livre acção da vontade humana. No racionaliismo religioso de Sooini o cristianismo tornou-se num puro iteismo filiosófico, no qual os caracteres h@stórieos: do cristianismo se desvanecem de todo. Insiíste, ao invés no carácter moral e prático do cril,stiràni,smo, entendido como religião da Uberdade e da caridade, G@acomo Aconcio que, nascido tialvez 222 em Trento (1520) viveu ~, s anos na Inglaterra, onde morreu em 1567. No seu Strata gemata Satanae (1565), vê ele o único meio que o homem tem de fugiT aos ardis de Satanaz, considerando como supérf,luos à salvação, todos os
pontos de doutrina que nãoinf1uene@ení a prática da virtude cristã. Tudo o que conduz eincita à fé, à esperança e à candade, é verdadeiramente essencial; tudo o que divide os cristãos e os lança na luta e na tintolorância é considerado oomo uma tentativa dwabólica. - Num tra- ozinho @ntítulado De methodo (1558), Aconcío também prenunciou, conquanto de maneiÍra vaga e genérica, a exigência da renovação metodológica baconiana. "Uma vez que a utilidade dias artes oonsisoe, não no seu cionhecimento mas no seu uso, e quie é necessário, se te queres servir de uma arte, que i~, à mão os prewitos dela, como os elementos das letras a quem deseje escrever e ler, é evidente que no ensino das artes se deve evitar toda a verbosidade" (De meth., 15). Aconcio insiste no fim práãw das artes e no valor das experiêndas, ma retoma e ilustra velhas e gastas noções da lógica e da metafísica. escolástica. § 373. A CONTRA-REFORMA Costurna-se dar o nome de Contra-Reforma à reacção da Igreja católica, reacção que se @nich com o Concilio de Trento (1545-63). Na realidade, a Contra-Mbrma é a reforma que a igreja, sob o impulso das circunstâ"s lustóvicas, faz de si 223 mesmia; o tal reforma é mais unia vez um retorno aos princípios. A Igreja, de facto, retorna decididamente aos prIncípios fundamentaús que havmm presidiido à sua fonnação e reencontra nesses principios o seu vigor e a sua força de expansão, que a impelem, ta difundir o seu ensino em íodas as partes do mundo e a reconstituiir asua potência uni~ que havia súdo, quebrada pela Reforma. GontTa a Reforma, que queria voltar ao Evangelho, anulando de golpe os resultados da tradição ecliesiástica, a Igreja reafirma o valor de taltradição e por~ das doutrinas, das cerimónias e dos à que se tinham acumulado e consolidado através dos tempos. Para -a Igreja, o retorno às origens não é o retomo à BíbUa, mas o retorno ao primieiro pier~ da sua formação histórica, ou seja, o perWo pau~, no qual a palavra de CÉisto começou a tomar corpo e consistência na organização eclesiástica, se fixairam. as interpretações autê nticas dos pontos fundamentàs da fé e nasceram os ritos e as h~quias. E, enfim, o x~o aoproselítísmo e à capacidade difusora dos primeiros tempos, à prietensão a um magistério universal do qual não deve excluir-se nenhum,povo da terra. O C"ncílio de Trento negou portanto que ia Sagrada Esffitura bastasse por si só à salvação do homem; negou o princípio dia livre @nterpretação e reafirmou o direito da Igreja (já sustentado e difundido pelos Padres nos primeiros séculos) de dar, ela só , ia interpretação autêntica dos textos bíblicos. ~iirmou. assim o valor e a função me~ora da Igreja, a necessidade da hierarquâa, e portanto a validade dos sacramenOs e dos 224 ritos. Assim se restabelecia o vadíor das obras e a Igreja desenvolvia e ref)orçava. a sua actividadie no mundo mediante a
criação de ordens religiosas que tinham como escopo fundamental a educação, a ~iciênoia e, em geral, a actividade filantrópica. A seiumodo e em conformidade com a sua natureza, a Igreja fazia seu o princípio, afirmado pelo, Renaiscimento e pela Reforma, de que a rokgiosi;IIJ!ade deve aplicar-senci, mundo e pôr-se, ao serviço dos homens. A persionaúdade más @mportante, dia Contra-Reforma é o cardeal Roberto Beliarmino. Nascido em MentepuViano a 4 de Outubro de 1542, e fa-L-cido a 17 de, Setembro de 1621, Beilarmino fo@ jesuíta, professor de teologia no Colégio romano, e consultor do Santo Ofício: como ital tomou parte no processo contra Brum em 1559 e no primeiro processo contra Galileu em 1616. A sua obra princ@paI são as Dísputationes de centroversiis christianae fidei adversus huius temporis, nas quais as deoisões do Concílio de Trentosão ilustradias e de&ndidas com grande clareza e enorgia. Belarmino afirmou também,a superioridade do Papa sobre a Igreja e sobre o concílio, e bem assim a sua idalibiUdiadt; e que o Papa, embora possuindo apenas o poder espiritual, goza, pela superioridade própria deste poder, uma abscêuta. supremaoia sobre todos os reis e príncip.,@s da terra,podendo por issso coroá4os ou destroná-los segundo o seu critério ~vel. O ~mo da Igreja aos seus mais sóLdo@s princípios devia significar, e significou de facto, também um retorno ao tomismo. O Wmismo representava 225 a mais bem sucedida sintese dia fé e da razão e realizava a ipossibilidade daquela jusWicação rwionad do d,ogma cristão que a Igreja sempre pmmovera e que havia sido negada, pela Reforma, a qual seguira o exemplo da Escolástica na sua última fase. O representante principal do wtorno ao tomismo é o espanhol Frawisco Suarez, que nasceu, em Granada em 1548, foi professor em várias universidades espanholas e morreu emljisboa em 1617. A sua obra principal, as Disputationes metaphysicae, é um manual ocimpleito e sl~úco da metafísica escolá~a em que se retomam todos os princípios basilares do tomismo, com algumas, conoessões ao nominalismo occamístico. A concessão diz respeito sobretudo ao reconheeim~ da individualidade do mal. " Toda a substância singular é singular por si mesma ou peda sua própria reailidade" (entitas) e não tem necessidade de outro princípio de individuação além da sua própria realidade ou dos princípios intrínsecos em que tal realidade ~ste" (Met. disp., V, 61). ERte nheciiinento não leva no entanto Suarez a negar a ~ade do universal: ele admite a do~ de Escoto segundo a qual o indirviduo é uma especificação ou contradição de uma natureza comum constkuída de matéria e forma.-Quarito ao resto, a obra de Suarez não se afasta de S. Tomás e não apresenta por isso nenhum in;tOr@sse:. É todavia notável a doutrina política exposta por Suarez no De legibus (1612). A ~ fundamental d~ obra é a de que, enqu~ o poder siá~ deriva imeN 226 diatamente de Deus, o poder temporal, deriva apenas do pwo. De facto, todos os homens nascem, livres e o corpo político resulta da livre reunião dos indivíduos, os quais, explícita ou tàoitamente, reconhecern o dever de se ocuparem do bem comum. Daí que a soberania resida apenas no povo, que é superior ao rei, ao qual ele a confia e a quem pode retirá-la desde que o red a exerça de uma maneira impodifica, isto é, não no @niteresse comum mas
tirânicamente, ou seja, no interesse próprio. Esta doutrina, que ;se apoia um pouco nas ~ias politicas da Idade Média e tamb6m. em S. Tomás possui, um iintuito evidente. A Reforma afirmara o absolutismo do poder político dos príncipes, ao passo que negava o poder e a funçãomesma da Igreja. A Contra-Refórma, fazendo derivar o poder eclesàástico directamente de Deus, pretende subtraí-lo a toda a dúvidia ou bimitação para reafirmar o carácter absoluto dele. Mas ao mesmo tempo, atribuindo ao poder político dos estados apenas o fundamento cont,ingente e rautável da vontade popular, visa a rebaixar o valor de tal poder em ~o ao siástico e a fazer ressaltar assilim a supremacia absoluta deste. O reconhecimento, da origem popular do poder político não é, portanto, em Suarez e nos o~ jesuítas (camo o espanhol Juan Maúana, 1536-1623, autor & um De rege et regis institutione) mia tentativa. positiva de fundar asobemn@a política do ~o, mas antes a tentadva negativa de desvalorizar tal soberania em benefício total do poder eciesliásfico. 227 Sobre ~a grande controvérs@a entre reformistas e católicos, a dia liberdade humana, o ponto de visita dia Igreja é sustentado, pelo jesuíta espanhol Luis Molina (1535-1600) na obra Uberi arbitrii cum gratia e donis, divina praesciencia, providentía, praedestinatione et reprobatione concordia. Como o título, diz, o escríto, propõe-se mostrar o acordo entre ia liberdade humana por um lado, a griaga, a presciência, a providência e a predestinação por outro lado; e a tentativa é feka segundo o modelo das @soluções toraísticas. A graça não elinÍna, segundo Moilina, a liberdade humana mas ~rma-a o garante-a. Deus concedeu a todos os homens a possibilidade de se salvarem; e quiis que a salvação deles dependesse da sua própria boa vontade. De modo que ia graça divina. coopera com o -Iivrk>arbítrio do homem, mas não o abole nem o suplanta. Nem o l,ivxe-iarbkrio abole a presciência, a qual, pelo que mlslye@ha às acções humanas, não as precede mus se lhes segue. A ciê4icia, de Deus é necessiitante com respeito à ordem dias causas naturais e aos acontedimentos que ele próprio determina mediante um acto livre da vontade. Mas há ainda uma ciência média, que concerne às acções humanas, pela qual Deus sabe infalivelmente que acção entre as múltiplas possibilidades o homem realizará efectivamente, embora deixando o homem livre para realizar a acção oposita. Trata-se, como se vê, de uma ~posição das teses, tonústas. Mas a obra de Molina devia ricacender no próprio seio da igreja católica a disputa sobre a liberdade, visto que foi a essa tese 228 que Jansénio (§ 420) buscar o ponto, de ~ida polémico para uma defesa resoluta da predest~ d@vinia e da servidão humana. A atitude do homem da Contra-Reforma no mundo é ilustrada pelas obras do jesuíta espanhol Bal~ Graciano (6 de Janeiro de 1601-6 de Dezembro de 1658), autor de vários escifitos (0 herói, O político, D. Fernando o católico, O Discreto), o maiis famoso dos quais é o Oráculo manual e arte de prudência, publicado em 1647. As máximas de Graciano insipiram-se num realismo, lúcido e cru que recorda o de
Maquiavel e aánd:a mais Guicoiardâni. Graciano, crê na perfectibilidade do homem, na sua progresisiva formação. "Não, se nasce perfeito, diz ele: o homem vai-se aperfeiçoando todos os dias na suiapessoa e na prática dia vida até chegar a ser um exemplo perfeito,, a personificação da virtude e do valor. Revela-se então na fineza do gosto, na segurança do esp~,-, na maturidade do juízo, e na força de viontade" (Or., 6). Mas esta formação não é um facto apenas espiritual e íntimo: é itambém capacidade de triunfar na vida, arte do êx@to. Graciano insiste igualmente nos dotes essenciais da personalidade humana como o saber, a fkmeza, a coragem e a destreza prática que consiste em se desembaraçar nas circunstânclas da vida prática e em prevale= sobre os outros. Exàta o homem deuma só peça que "julga tralção a d-issimu~, que se giorifica mais da sua tenacidade que da asituesa e se enoontra sempre onde se encontra a verdade" (Ib., 29). Mas iao mesmo lempio, 229 ensina a arte de governar a vontade dos ~os ~ecendo a debilidade ou a p~ dorninante de cada um: "A astú cia consiste em intuir os idolos dos o~ para se insinuar: conhecer o impulso de cada um e possuir a chave da vontade dos outros. Deve-se avançar ao pnmeffo movimento, que nem sempre é o mais alto, e o maiis das vezes é o mais baiixo: porquie são mais numerosos no mundo os desregrados do que os que se sujeitam às regras (Ib., 26). Aqui é a "arte da prudência" que avalia, os actos humanos pelo juízo, que os homens fazom deles e dá uma dmp(>rtância es~ à aparêw@a, porque "as coisas não se estimam por aqu@lo que são mas por o que parecem. Wer e sabê-lo mostrar é valer duas vezes" (Ib., 130). As obras de Graciano alcançaram grande sucesso na Europa nos últimos decénáos do século XVII: talve7 porque ofereciam aos espíritos da @poca um quadro imparcial dos meios paria se obter êxito e se inseria naquela concepção arisftw~ da autoridade que era partilhada por muitos. Matis tarde, Schoperihaueir viu em Grac@ano um precursor do ,,,eu pessimismo e traduziu o Oráculo em ale~. Na realidade, não se trata de pessimismo, mas, de uma observação realista e crua da natureza humana, uma reflexão que se impõe como premissa de toda a acção entre os homens que queiram assegurar o sucesso de qualquer empreend=ento. As máximas deste jesuíta são um outro sinal da mundanização do espírito religioso que a Contra-Reforma wem em comum com a Re~. 230 NOTA BIBLIOGRÃFICA § 366. Sobre o Renascimento e a Reforma: BURDAci-i, Deut8che Renaissance, Berlim, 1920; M., Riforma, rinascimento e umanesimo, Florença, 1935; HAUSER e RENAUDET, Les débuts de Páge moderne. La Renaissance et Ia Réforme, Paris, 1929; e bem assim, as obras sobre o Rena-scimento cit~ na nota bibliográfica do cap. I, e especialmente a de DILTHEY. § 367. Noticias e documentos sobre a vida de Erasmo em E. MAJOR, Erasmus von Rotterdam, Basileia, s. d.; as obras de Erasmo foram impressas em Basíleia, em 1540-41 e em Leida em 1703-06; as cartas ao cuidado de Allen, Opus epistolarum, em Oxford, 1906 e segs. O De libero arbitrio teve uma nova ed. ao cuidado de Walker, Leipzig, 1910; o Enchyridion militis christiani e os prefácios ao Novo
Testamento (In Novum Testamentum praefationes, Batio seu methodus compendio, perveniendi ad veram theologiam) tiveram edições criticas ao cuidado de H. Holborn, Mó~, 1933, com o título Ausge-wãhlte Werke. -Elogio da Loucura e Diálogos, trad. ita@I., Bari, 1914. Sobre Erasmo: HuyzINGA, Erasmus, LeIpzig, 1928; MEYER, Étude critique sur les relations d'Erasme et Rotterdam. Milão, 1935; A. RENAUDET, Êtudes era-&miennes (1521-29), Paris, 1939; E. e Utalie, Genebra, 1955. Sobre as relações entre Erasmo e Lutero: A. M=R, Êtude critique sur les relations d'Erasme et de Luther, Paris, 1909. § 368. Uma primeira ed. completa das obras de Lutero faí dada à estampa em Wittenberg, 1539-58. A última é a ed. erítica em 60 vol. publicada em Weimar, de 1883 em diante. O testemunho autobiográfico de Lutero é-nos dado em KROKER, Luther8 Tischreden in der Matheig231 chen SammIung, n.o 590. -E. TROELSTSCH; Prote@stantisches Christentum und Kirche in der Neuzeit, in "Die Kultur des Gegenwart", I, IV, 1; ID., DiBedeutung des Protestantismus für die Entstehung der modernen Welt, ReÉlim, 1925; GRISAR, Luther, 3 vol., Friburgo, 1,912-1913; BUONAIUTi, Lutero e Ia riforma in Germania, Bolonha, 1926. Veja também a obra cit.%da de Dilthey, trad. itali., I p. 70 segs. § 369. As obras de Zwlngli no Corpus reformatorum, Berlim, 1904 e segs., DILTHEY; L'analisi del Uomo, ete., trad. ital, I, p. 83 segs.; 285 segs. § 370. As obras de Calvino no Corpus Reformatorum, Braunschve@g, 1863-84. Institution de Ia religio chrétienne, ed. crítica ao cuidado de J. Pannier (na "Oollection des Universités de France"), Paris, 1936, 4 vol. (cit. no texto).-CAREW HUNT, Calvino, trad. ital. de A. Prospero, Bari, 1939.-MAX WEBER, Die protestanti-sche Ethik und der ~ des Kapitalismus, Tubinga, 1905; DiLTHEY, op. cit., 1, p. 291 segs.; A. OMODEO, G. Calvino e Ia rifornw in Ginebra, Bari, 1947. § 371. As obras de Medancithone tiveram a primeira ed. completa em 5 vols. em Basileia em 1541. Foram republicadas em 28 vol. no Corpus reformatorum, 1834 segs. Uma revalorização da obra de Melanethone foi feita por DILTREY, em L'analisis del uomo, etc., I, p. 207 segs. De S. FRANCK: Chronica, Estraburgo, 1531; Cosmographia, Uinia, 1534; 280, Paradoxa, 2.1 ed., 1542. As obras de V. Weigel foram publicadas isoladamente nos princípios do Século XVU-STOCKL, Gesch. der Phil. des Mittelat, III, Mogúncia, 1866, p. 559 segs. As obras de Bõhme foram editadas nos séculos XVII e XVIH por várias vezes em Amsterdão; nova ed. ao cuidado de Schiebler, Leipzig, 1831-47; 2.1 ed., 232 1861 e segs.; Aurora, os três princípios da essência divina, A tríplice vida do homem, Quarenta questões sobre a alma, foram traduz~ em francês por St. Martin, Paris, 1800.-K. LEESE, Von J. Bõhme zu Schelling, Erfurt@ 1927; E. NOBILE, Jakob Bõhme e i? suo dualismo essencial, Roma, 1928. § 372. Sobre os Socini e Serveto: DILTHEY, L'analisi dell'uomo, etc., I. p. 175 segs. As obras de Fausto Socini foram publicadas em 2 vol. em 1656 na "13ibliorteca Fratrum Poloniae". G. Aconcio, De methodo e Opuscoli re7igiosi e filosofici, ao cuidado de G. Radetti, Florença, 1944; Id., Stratagematum Satanae Libri VIII ao cuidado de G. Radetti, Florença,
1946. § 373. Sobre a Contra-Reforma: E. GOTHEIN, Reformation und Gegenreformation, Mónaco, 1924 (trad. ital.). -As Disputaciones de Belarmino foram editadas em Ingolstadt, 3 vols., 1586, 1588, 1592; nova ed., Mogúnci,a, 1848.-As Disputationes metaphysicae de Suarez foram editadas em Salamanca em 1597 e em Mogúncia por várias vezes no século VII: o De legibus em Coimbra, em 1612. Edições completas das obras: Lião, 1632 segs.; Veneza, 1740-51; Paris, 1856-61. -A obra de Luigi Molma sobre o livre-arbítrio foi editada em Antuérpia em 1535.-B. SPAVENTA, La politica dei gesuiti nel secolo XVI e nei XVII, Milão, 1911. As obras de Graciano foram editadas em Antuérpia em 1669. O Oráculo foi traduzido em todas as linguas, sendo o maior número de traduções em italiano. Ver a trad. de G. Marone com introdução e bibliografia, T-jaxwÀano, 1930. 233 vi RENASCIMENTO E NATURALISMO 374. RENASCIMENTO E NATURALISMO: MAGIA, FILOSOFIA NATURAL; CIÊNCIA O renascer do homem, que é o anúncio o a esperança do Renascimento, é o renascer do homem no mundo. A -relação com o mundo é reconhecida como parte integrante, constitutiva do homem. A elareza que o homem alcança no Renascimento no que respeita à natureza própria é também ao mesmo tempo clareza no que Tespeita à solidariedade que o lága ao mundo: o homem compreende-se como parte do mundo, distingue-se dele por reivindicax a originalidade própria, mas ao mesmo tempo radica-se nele e reconhece-o como o seu próprio domínio. O tema do homem como natureza média, tema comum aos humanistas, platónicos, aristoté235 licos e magos, exprime precisamente a conscí~ com que o homem se reconhece essencialmente inserido no mundo e a sua decisão de se servir da sua posição privilegiada, semelhante à de Deus, para fazer do próprio mundo o seu reino. Revela-se portanto indispensável uma investigação que vise a realizar este domínio. O estudo do mundonatural já não se apresenta no Renascimento como a fuga do homem à interioridade própria ou como inútil distracção da meditação sobre o destino da pessoa. A investigação natural começa a aparecer como um instrumento indispensável para a realização dos fins humanos no mundo, já que só por ela o homem pode obter os meios de tal realização. A invesitigação natural é de facto a parte primeira e fundamental da filosofia do Renascimento. Podem dist@nguir-se nela três aspectos ou fases, que são a magia, a filosofia da natureza e a ciência; mas estes três aspectos, que caracterizam a investigação especulativa ou positiva da natureza no século XVI, são preparados pelo humanismo e pelo aristotelismo do século XV. Pelo humanismo na medida em que não só tornou. possível a disponibilidade dos testes da ciência antiga mas também insistiu na naturalidade do homem e por isso no seu vital interesse em conhecer o mundo natural. Pelo aristotelismo, que pretendeu explicitamente promover o renascimento da investigação natural, como havia sido praticada por Aristóteles, e que veio pôr a claro o fundamento que a tornou possível: o conceito da ordem necessária do mundo. A magia renascentista é caracterizada por dois pressupostos: 1) a universal animação da natureza,
236 que se verifica ser movida por forças intrinsecamente semelhantes às que actuam no homem, coordenadas e harmonizadas por uma simpatia universal; 2) a possibilidade que assim se oferece ao homem de penetrar de golpe, com meios ambíguos ou vãolentos, nos mais ocultos recessos da natureza e de lhes conseguir dominar as forças com lisonjas e encantamentos, isto é, com os mesmos meios com que se atrai a si um ser animado. Com estes dois pressupostos, a magia vai à procuxa de fórmulas ou processos miraculosos que sirvam de chave para os mais impenetráveis mistérios naturais e ponham o homem de golpe na posse de um poder ilimitado em relação à natureza. A filosofia natural, que já se havia manifestado nalguns dos próprios defensores da magia, mas se afirmara pela primeira vez em Telésio, abandona este último pressuposto. A natureza é no entanto sempre considerada como uma totalidade viva, mas considera-se regida por princípios próprios; e a doscoberta destes princípios torna-se a tarefa da filosofia. Renuncia-se à quimérica pretensão de penetrar violentamente nos mistérios naturais, e até se negam tais mistérios; as forças naturais estão patentes e revelam-se na experiência, só é necessário reconhecê-las e secundá-las. A filosofia da natureza destrói as pontes, seja pela magia, seja pelo aristotelismo: pretende penetrar na natureza por intermédio da própria natureza, prescindindo de hipóteses e de doutrinas fictícias. E assim abre o caminho à verdadeira e própria investigação científica. 237 A ciência é o último o mais maduro resultado do naturalismo do Renascimento. A redução naturalística é conduzida ao seu ponto extremo: a natureza nada tem a ver com o homem, nem com a alma nem com a vida; é um conjunto de coisas que se movem mecânicamente; e as leis que regulam * mecanismosão as da matemática. A ciência reduz * natureza à pura objectividade mensufrável, separa-se do homem e torna-a estranha à sua constituição o aos seus interesses: e só assim a abre verdadeiramente e dela faz o regnum hominis. § 375. RENASCIMENTO E NATURALISMO: A MAGIA A primeira figura de mago é a de Johann Reuch,lin ou Capnion (assim grecizou ele o seu nome), que veio a dedicar-se à magia através da Cabala. Nascido a 22 de Fevereiro de 1455 em Pforzheim, morto em Tubinga em 1522, ReuchIm viajou em Itália, onde conheceu Pico de Mirândola pelo qual foi provàvelmente dirigido para os estudos cabalísticos. Em seguida ensinou língua hebraica e grega em Tubinga. As suas obras principais são Capnion sive de verbo mirifico e De arte cabalistica. -0 homem está situado entre dois mundos, o mundo sensível e o suipra-sensível; o como participa com o corpo do mundo sensível, e com a alma do mundo supra-sensível, assim o seu conhecimento se dirige ao mesmo tempo a um e a outro. O conhecimento do mundo sensível atinge-o ele através dos sentidos, da fantasia, do juízo e da razão. o conheci238
mento do mundo supra-sensívei a~ elo ~ da mente (mens). A mente é portanto superior à razão; é o olho da alma para o mundo supra-sensí. vel; mas Como o Olho corpóreo vê o sol e as coisas iluminadas pelo sol só por meio das luzes do sol, assim a mente vê o divino só através da luz divina, que ela encontra imediatamente em si mesma (De arte cab., III, fol. 52). Esta imediata revelação de Deus à mente é a fé, a qual, portanto, é indispensável para o conhecimento do mundo sobrenatural e divino (De verbo mir., I, fol. 11 b). A razão é inútil para tal fim e o procedimento silogístico, do qual se serve, é insidioso e contrário, e de modo nenhum uma ajuda, ao conhecimento divino (De arte cab., 1, fol. 24). Por isso Reuchlin vê na Cabala, entendida como uma imediata revelação divina, a única ciência possível da divindade e a única via para aceder a ela. "A Cabala, diz Reuchlin, é uma teologia simbófica na qual não só as letras e os nomes, mas as próprias coisas são sinais das coisa,,s" (lb., M, fol. 51 b). A arte cabalística é o meio para chegar ao conhecimento desses símbolos. Esta arte eleva o homem do mundo sensível ao supra-sensível: e pela subordinação em que o primeiro se encontra em relação ao segundo, capacita-o a operar efeitos miraculo que espantam o vulgo. O cabalísta é também um taumaturgo; e especialmente o nome de Jesus torna-o capaz de realizar milagres (De verbo mir., III, fol. 52). A condição necessária é apenas uma intensíssima fé, pois que não é o cabalista que opera poir si o milagre, mas sim Deus que o real= 239 através dele pela força desse nome miraculoso (Ib., I, foi. 22). O carácter prático da magia é acentuado por Cornélio Agripa de Nettesheim, nado em Colónia em 1486, e falecido em Grenoble em 1535. Na sua obra fundamental De oculta philosophia, Agripa, tal como Pico de Mirândola e Reuchlin, conformemente à Cabala, admite três mundos: o mundo dos elementos, o mundo celeste e o mundo inteligível. Estes três mundos estão ligados entre si de tal modo que a virtude do mundo superior flui até aos últimos graus do mundo inferior, dissipando a pouco e pouco os seus raios, e pelo canto deles os seres inferiores chegam através da via dos seres superiores até ao mundo supremo. Tal como uma corda tensa que, tocada num ponto, logo vibra toda, assim o universo, quando tocado num ponto dos seus extremos, ressoa também no extremo oposto (De oec. phil., 1, 1 e 37). A via deste influxo que liga o universo o garante a acção recíproca das suas partes é o espírito através do qual a alma do mundo opera em todas as partes do universo visível (Ib., 1, 14). Ora, o homem está situado no ponto central dos três mundos e recolhe em si, como um inicrocosmo, tudo o que está dísseminado nas coisas (lb., 1, 33). Esta situação permite-lhe conhecer a força espiritual que mantém coeso o mundo e servir-se deJa para operar acções miraculosas. Assim nasce a magia, que é a ciência mais alta e completa porque é a que submete ao homem todas as potências omitas da natureza (lb., 1, 1, 2). A ciência e a arte do mago incidem sobre estes três mundos: há aqui uma magia 240 natural, uma magia celeste e uma magia refigiomsa ou cerimonial. A primeira
ensina a servir-se das coisas corpáreas para efectuar acções miracul~; a segunda vale-se das fórmulas da astronoinia e dos influxos dos astros para operar milagres; finalmente, a terceira, com o mesmo fim, estrema as substâncias celestes e os demónios. -Nos últimos anos da sua vida, Agripa acentuou o carácter místico da sua especulação; e no De vanitate et incertitudine scientiarum (1527), condenou em bloco a ciência, considerando-a uma verdadeira peste da alma e apontando a fé como a única via de salvação. Mas, na r"-idade, permaneceu fiel à magia, que havia exaltado primoiro, defendendo ainda a utilidade dela para a sabedoria; e voltou a publicar, em 1533, isto é, dois anos antes de morrer, o De oculta philosophia. Uma das mais famosas figuras de magos foi Teofrasto Paracelso. O seu nome ora Filipe Bombast de Hoenheim, que mudou para Filipe Aurélio Teofrasto Paracelso. Nasceu a 10 de Novembro de 1493 em Einsiodeln, na Suíça, foi médico e cirurgião, ou antes reformador da medicina em sentido mágico. Morreu em Salisburgo, a 24 de Setembro de 1541. Teofrasto é um mago; mas algumas exigências que ele apontou fazem dele um precursor do método científico. O homem foi criado para conhecer as acções miraculosas de Deus e para operar acções semelhantes: a sua tarefa é portanto a pesquisa. Mas a pesquisa deve aliar a experiência à ciência para chegar a um conhecimento verdadeiro e seguro. Teoria e prática devem proceder paralelamente e de acordo, pois que a teoria não é mais que prática espe241 culativa e a prática não é senão a teoria apE cada (De nwrb. caduc., 1, p. 616). Não se pode fazer fé num experimento desprovido de carácter científico; mas quem possui a ciência, além da prática, sabe também porque um fenómeno se deve verificar de um modo ou de outro e pode evitar as suas consequências (Labyr., 6). A investigação, entendida como unidade da teoria e da experiência, será a palavra da nova ciência- Mas tal pesquisa tem em Teofrasto um carácter mágico. O princípio que deve guiá-la é a correspondência entre o macrocosmo e microscosmo. Se queremos conhecer o homem, isto é, o microcosmo, devemos voltar-nos para o macrocosmo, isto é, para o mundo. A modicina que tem como escopo conhecer o homem, para lhe conservar a saúde e libertá-lo das doenças, deve fundar-se em todas as ciências que estudam a natuireza do universo. Esta é a reforma da medicina que Teofrasto tentou o que se, por um lado, lhe proporcionou o ódio e as perseguições dos colegas médicos, o capacitou, ao que se conta, a operar curas milagrosas. A medicina assenta em quatro colunas, que são a teologia, a filosofia, a astronomia e a alquimia. Todas estas ciências possuem carktor mágico. A teologia serve ao médico para utilizar o influxo divino, do qual tudo depende; a astrologia serve-lhe para utilizar os influxos celestes, dos quais dependem as entermidades e por conseguinte as curas respectivas; a alquimàa serve-lhe para conhecer a quinta-essência das coisas e para a a@Plicar nos tratamentos. O mago, com a força da sua fé e da sua imaginação, exerce sobre o
242 espírito dos homens, ou sobre o espírito da natureza, um influxo que suscita potências desconhecidas e ocultas e chega assim a operar coisas consideradas impossíveis (De phil. occ., 11, p. 289). Pelo fiat divino nasceu em primeiro lugar a matéria originária (yliaster ou hyaster) constituída por três princípios materiais (três como a trindade divina): o enxofre, o sal e o mercúrio. Estes princípios são as specie prinúgenie da matéria e poi eles são constituídos os quatro elementos do mundo e em geral todos os corpos da natureza (Meteor., p. 72). A força que move os elementos é o espírito animador ou Archeus. Assim como todas as coisas são compostas por três elementos, assim as forças que os animam são constituídas pelos seus arcanos, isto é, pela actividade inconsciente e instintiva do Archeus (Ib., p. 79 segs.). A quinta-essência é o estrato corpóreo de uma coisa obtido mediante a análise artificial da coisa mesma e separando o elemento dominante dos outros elementos que estilo m@;&turados a ela. A quinta-essência não é um quinto elemento, como o nome diz, mas um dos quatro elementos e precisamente aquele que domina a constituição da coisa e exprime a sua natureza fundamental. Nela estão ocultos os arcanos, isto é, a força operante de um minera@ de uma pedra preeiosa ou de uma planta; e dela, portanto, se deve servir a medicina (que pela alquimia toma conhecimento dela) para operar as curas (De myster. nat., 1, 4). Em Itália, o tema da simpatia univem1 das coisas, que é o fundamento da magia, foi tratado 243 por Jerónilmo Fracastoro (1478-1533) que foi médico, astrónomo e poeta. Na sua obra De sympathia et antipathia, explica o universal influxo recíproco das coisas servindo-se da doutrina empedocleana da atracção entre os semelhantes e da repugnância entre os dissemelhantes. Mas para explicar a modalidade deste influxo, Fracastoro recorre à doutrina atomística e aos fluxos dos átomos. Ele firma-se no pri@ncípio aristotélico de que nenhuma acção pode ocorrer senão por contacto; assim, quando os semelhantes não se tocam e não se movem por natureza um para o outro, é necessário, para explicar a sua simpatia, que de um ao outro se verifique um fluxo de corpúsculos, que transmita a acção (lb., 5). Uma figura de médico mago que se assemelha à de Paracolso é Jorónimo Cardano, nascido em Pavia em 1501 e professor de medicina em Pádua e Milão; morreu em Roma em 1576. Na sua autobiografia De vita propria, apresenta-se a si mesmo como uma personalidade excepcional e demoníaca e relaciona os casos da sua vida com forças arcanas e prodigiosas. As suas obras mais notáveis são o De subtilitate (1552), o De varietate rerum (1556) e os Arcana aeternitatis (póstumo). Trata-se de escritos desconexos e ricos de digressões; uma espécie de encielop6dia sem nenhum plano unitário. Ele admite apenas três elementos: o ar, a água e a terra, e nega que o fogo seja um elemento. Os princípios da geração são o
calor celeste e a humida,de terrestre; o seco e o frio são apenas privações. O calor celeste é o único princípio vital uni244 versaL Ele é a alma que dá vida a todas as coisas do mundo e a via daquela simpatia universal que liga todas as coisas naturais, desde os corpos celestes até ao mais baixo grau do mundo corpóreo (De rer. variet., 1, 1-2). O homem é o grau mais alto das coisas terrestres. Ele não é uma espécie de animal, assim como os animais não são uma espécie de plantas. Foi criado para um triplo fim: conhecer Deus e as coisas divinas; servir de mediador entre o divino e o terreno; e, enfim, dominar as coisas terrestres e servir-se delas para sua utilidade (De subtil., X1, fol. 302). Para atingir estes fins, foram-lhe dadas três faculdades: a mente para o conhecimento do divino, a razão para conhecer as coisas mortais e a mão paira utilizar as coisas corpóreas. A mente está acima das potências sensíveis, é independente da matéria e portanto imortal (De rer. variet., VIII, 40 segs.). A mente, todavia, não é individual mas única em todos os homens: Cardano aceita neste ponto o averroísmo Ub., VUI, 42). Um mago que dava grande importância à observação da natureza foi Giovan Battista Della Porta, nascido em Nápoles em 1535, falecido ern 1615, autor de comédias e cultor de óptica, a ponto de ter disputado a Galileu a descoberta do telescópio. Na sua obra principal Magia naturalis sive de miraculis rerum naturalium (1558), distingue da magia diabólica, que se vale das acções dos espíritos imundos, a magia natural, que é, ao invés, o ápice do saber humano, o coroamento da filosofia natural. Esta não ultrapassa os limites das 245 causas naturais, e as opera~ que efectua parecem maravilhosas só porque as suas causas permanecem ocultas (Mag. nat. 1, 1). A obra é, W11 real-idade, uma recolha desordenada de factos e transmutações miraculosas, que Porta se recusa a submeter a exame com o pretexto de que "aqueles que não fazem fé nos milagres da natureza tendem a destruir toda a filosofia" (Ib., pref.). O mesmo amor do maravilhoso leva Porta a fundar em Nápoles uma "Academia dos segrodos" na qual se podia entrar sob a condição de comunicar algum maravilhoso arcano, superior à inteligência do vulgo. Lirni@ta-se, portanto, a reagrupar os fenómenos e os casos miraculosos segundo tipos gerais como a si,mpatia e a antipatia, as acções e as reacções dos quatro elementos e as influências astrais, sem tentar dar uma explicação deles: daí que Campanella (Del senso delle cose, IV, 1), embora inspirando-se nele, lhe reprove o haver tratado a magia apenas do ponto de vista histórico ou descritivo e queira encontrar (como veremos, § 384) um fundamento dela na universal animação das coisas. Está ligado a Paracelso, Jean Baptiste Helmont, nascido em Bruxelas em 1577 e falecido em 1644. Helmont admite como elementos fundamentais apenas a água e o ar, excluindo o fogo e a terra: a água constitui as coisas terrestres, o ar é a matêria dos céus. A água é constituída de três espécies primigénias que são o sal, o enxofre e o mercúrio. O espírito vital ou aura vital é a força animada que move, anima e ordena os elementos. Ele não age cegamente, mas em virtude de uma ideia ou modelo, 246 em conforraidade com o qual plasma os gêrnw6 ou os desenvolve para constituir as coisas. Há pois uma causa externa (causa excitans) que dispõe a matéria para a geração e facilita a acção da aura vital.-A magia é, segundo Helmont, a arte de operar milagres mediante a aura vital. Todas as coisas exercem
entre si uma simpatia natural que condiciona, a sua acção recíproca. A natureza inteira é mágica e age màgicamente. Não é de admirar que o homem, que é a imagem de Deus, soja, também ele, dotado de força mágica. Ma se se aceita a magia, Hehnont refuta a astrologia. Os astros não exercem nenhuma influência sobre a formação, sobre os costumes e os destinos dos homens: não determinam nem predestinam (De vita longa, 15, 12). São antes os sinais dos acontecinientos que se verificam no futuro, no mundo sublunar; todavia, nenhuma predição certa se pode tirar deles, dado que não influem sobre tais acontecimentos. Concepções semelhantes às que acabamos de expor encontram-se na Philosophia mosalca do médico inglês Robert Fludd (1574-1637), que estudou em Oxford, mas viajou longamente em França, 1.ália e Alemanha. Como já indica o título da obra, a sua doutrina é de inspiração cabalística (fazia-se remontar a Cabala a Moisés). Fludd interpreta a criação do nada como criação de uma matéria originária, que é a própria essência de Deus, de modo que eni Deus as coisas são ab aeterno, não na sua idealidade, mas na sua realidade indistinta e indeterminada (complicada, no sentido de Cusano). 247 A potência e a sabedoria de Deus relacionam-se entre si como a luz com as trovas. A sabedoria de Deus é Cristo, que é o princípio operante de todas as coisas o a única causa eficiente do mundo. A luta entre a luz e as trevas determina a simpatia e a antipatia de todas os coisas naturais, porque ela se encontra em todas, e também no homem, microcosmo que reproduz a natureza do macrocosmo e está em reciprocidade de acção com ele. Tal como os outros magos e cabalistas, Fludd admite três partes da alma huniana, a mente, a alma e o espírito: a mente é a imagem da Palavra divina; a alma é a imagem da mente; o espírito é a imagem da alma, e o corpo a imagem do espírito (Phil. mos. 11, 1, 5). § 376. A FILOSOFIA NATURAL: TELÉSIO A figura de Telésio marca uma viragem decisiva na filosofia do Renascimento. Pela primeira vez nasce, por obra dela, um naturalismo rigoroso, igualmente alheio às velhas concepções aristotêIJeas e às quiméricas pretensões da magia, uma concepção que não vê na natureza senão forças naturais e pretende explicá-la com os seus próprios princípios. Bernardino Telésio nasceu em Cosença em 1509, estudou em Pádua e em 1535 doutorou-se. Em 1565 publicava em Nápoles os primeiros dois livros da obra De rerum naturam juxta propila 248 principia; mas só em 1585, três anos antes de morrer, publicava a obra completa em 9 livros na qual também eram desenvolvidos e refeitos os dois primeiros livros. Faleceu, em Cosença em Outubro de 1588. Dedicara-se também a investigações parti. culares, destinadas a explicar fenómenos naturais, como o atestam certo número de breves escritos, alguns dos quais publicados após a sua morte (De terraemotibus, De colorum generatione, De mari, De cometis, De iride, Quod animal universum ab unica animae substantia gubernatur contra Galenum, De usu respirationis, De saporibus, De somnio, De fulmino, Quae et quomodo febres faciunt, Solutiones Thylesii). Estes escritos menores são importantes porque demonstram que o interesse dominante de Telésio incidiu exclusivamente nos problemas naturais. Ele próprio é consciente de que a sua investigação deveria ser conduzida muito más para lá do ponto a que pôde chegar "a fim de que os homens possam não só saber tudo, mas também exercerem o seu poder sobre tudo" (De rer. nat., 1,
17), e desculpa-se aduzindo não ter podido fazer mais, obrigado como foi a filosofar apenas nos últimos tempos da vida e em meio de muitos impedimentos (que, ao que sabemos, foram de natureza económica). Telésio conseguiu contudo estabelecer com grande evidência os princípios de um novo naturalismo empirista. A natureza é um mundo em si, que se rege pelos seus princípios intrínsecos e exclui toda a força metafísica. Ela é completamente independente de tudo o que o 249 homem pode -imaginar e desejar, subtrai-se a todo o arbítrio e deve ser reconhecida como aquilo que é. Telésio não teiri. outra pretensão senão a de reconhecer a nua objectividade da natureza; assegura que as próprias coisas, quando são rectamente observadas, manifestam a sua natureza e os seus caracteres (Ib., proem.). Esta autonomia da natureza é o fundamento do seu método, que se pode chamar o da redução naturalística, porque tende a encontrar por toda a parte o principio explicativo natural, excluindo todos os outros. É pr"amente deste método que resulta o seu omipirismo. O homem paxa conhecer a natureza tem apenas de fazer falax, por assim dizer, a própria natureza, fiandose na revelação que ela lhe faz de si na medida em que ele é parte dela. O homem pode conhecer a natureza só na medida em que ele próprio é natureza. Daqui deriva a preeminência que a sensibilidade possui como meio de conl=imento: o homem como natureza é sensibilidade. Portanto, "aquilo que a natureza revela" e "aquilo que os sentidos testemunham" coincidem perfeitamente. A sensibilidade não é mais do que a autorevelação da natureza àquela parte de si que é o homem. Perante esta atitude fundamental de Telésio, os resultados da sua filosofia passam para segundo plano. O hilozoismo que Telésio vaí buscar aos primeiros físicos gregos é já um limite da sua posição. Ele impede-lhe de realizar até ao fundo aquela autonomia do mundo natural, que apenas a ciência de Galileu consegulirá estabelecer de 250 modo definitivo. Mas se a ciência galficica se afa~ por completo da orientação animista que Telésio tem em comum com as doutrinas mágicas do seu ten , parte todavia do mesmo pressuposto de autonornk do mundo natural e, portanto, utiliza a grande afirmação de Telésio. § 377. TELÉSIO: OS PRINCIPIOS GERAIS DA NATUREZA Para determinar os princípios gerais da natureza, Teàésio parte de uma observação assaz simples: o sol é quente, luminoso, ténue e móvel; a terra é fria, obscura, densa e imóvel. O sol e a terra são, portanto, as sedes de dois princípios agentes, o calor e o frio: o calor dilata, de facto, as coisas e torna-as mais leves e adaptadas ao movimento, o frio condensa-as, torna-as mais pesadas e, portanto, imóvetis. O calor e o frio são princípios incorpóroos; têm, portanto, necessidade de uma massa corpórea que possa sofrer a acção de iun ou do outro; esta massa corpórea, provida de inércia, é o terceiro principio natural. Todos os fenómenos do mundo são determinados pelas acções opostas do calar e do frio na massa corpórea. Mas a fim de que esta acção possa verificar-se é necessário que os dois
princípios agentes sejam providos de sensibilidade. De facto, se se combatem entre si, é necessário que pere@opoionem as ilmpre~ próprias e as acções do outro, e precisamente que cada 251 um percepcione com prazer as impressões e as acções pelas quais é beneficiado e mantido, e com dor as que possam prejudicá-lo ou destruí-lo. Todas as coisas da natureza são, portanto, dotadas de sensibilidade. Não é necessário, todavia, que todas sejam providas dos órgãos de sentido que são próprios dos animais. Tais órgãos são apenas vias e aberturas através das quais as acções das coisas extern,as chegam mais fàcilmente à substância sentiente; e se são necessárias aos animais, que são compostos de diversas partes, não o são para os outros entes, que não estão revestidos de partes protectoras (De rer. nat., 1, 6). Dos dois princípios agentes, o calor é o verdadeiro princípio activo: a terra, na qual actua o frio, é antes a matéria originária dos entes produzidos. Além do sol e da torra, não existem outros elementos originários; Telésio nega que o sejam a água e o ar (Ib., 1, 12). As duas naturezas agentes bastam, segundo Telésio, para explicar os movimentos dos corpos, a vida e a sensibilidade de todos os seres naturais. Seria necessária uma indagação quantitativa para determinar a quantidade de calor suficiente para produzir determinados efeitos. Telésio manifesta o desejo de que outros possam, empreendê-la para tomar os homens não só sapientes, mas também poderosos (Ib., 1, 17); e é significativo que tenha exprimido tal exigência, embora declarando que a não podia satisfazer ele próprio. Decerto que a sua física quantitativa e animista tornava impossível satisfazê-la. Mas ela constituiria a base da ciência de Galilou. 252 Telésio entrelaça na exposição dos princípios da sua física a crítica à física arisítotélica. Esta cTítica investe todos os pontos da sua exposição, mesmo os funda-mentais. Aristóteles considerava Deus como o motor imóvel do céu. Telésio sustenta que a acção de Deus não se pode limitar a explicar um facto determinado ou um determinado aspecto do universo. Deve ser, pelo contrário, reconhecida como absolutamente universal e presente em todos os aspzctos do universo como fundamento ou garantia daquela oTdem que assegura a conservação de todas as coisas. Nenhuma raça humana, nenhuma esp6cie animal, nenhum ente natural poderia conservar-se por muito tempo sem a acção de uma potência superior, visto que os homens, animais e os ventos naturais se destruiriam màtuamente pela luta contínua a que se abandonariam sem remédio, se não fossem governados por um único ente que provisse à sua salvação; por isso a conservação deles supõe o governo de um ser omnipotente e perfeito (Ib., IV, 25). Deus, portanto, não pode ser invocado como causa directa e imediata de um qualquer evento natural; é simplesmente o garante da ordem do universo. E, como tal, a sua acção idontifica-se com a das forças autónomas da natureza. Telésio, por um lado, mantém firmemente o princípio da autonomia da natureza contra a doutrina aristotélica do primeiro motor, na qual vê uma negação de tal princípio; por outro lado, como fará Descartes, vê na acção divina a garantia da própria ordem natural.
253 § 378. TELÉSIO: O HOMEM COMO NATUREZA E COMO ALMA IMORTAL Telésio tentou a -redução naturalistica da vida intelectual e moral do homem e fez desta redução o fundamento e a justificaç@@o do valor de uma e de outra. Precisamente na medida em que o homem é parte ou elemento da natureza, a natureza reveIa-se ao homem e o conhecimento humano é garantido na sua validade. Precisamente na medida em que o homem é parte da natureza, a sua conduta moral reporta-se a um princípio autónomo e assim a vida moral é justificada no seu valor. Já se disse como todo o conhecimento se reduz, segundo Telésio, à sensibilidade. E, de facto, a alma humana não é senão um produto natural, como a de todos os outros animais; é o espírito produzido pelo gérmen. Veremos então que o homem também é provido, segundo Telésio, de uma alma imortal e infundida directamente por Deus; mas esta alma, que é o sujeito da vida religiosa, não tem nenhum papel na viida natural do homem. A parte predominante que pertence à sensibifidade é devida ao facto de que, através dela, o homem se figa à natureza e por ela é, ele próprio, natureza. Na verdade, através da sensibilidade, a acção das coisas atinge o homem. Esta acção verifica-se por contacto; e, portanto, o tacto tem a prioridade sobre todos os outros sentidos, po@s. que é o único modo por que se pode verificar uma modificação do mpírito, em consequência da acção das coisas externas (De 254 rer. nat., VII, 8). Todavia, a sensação não se reduz nem à acção das coisas externas nem à modificação que ela produz no espírito: implica também a percepção (perceptio) que o espírito tem de uma e de outra. Que o espírito seja modificado pelas coisas não é facto que determine a sensação, se de -tal modificação não se tiver consciência. O sensualismo de Telésio não é de modo algum um matenalismo. A percepção é consciência, provocada decerto pela acção da coisa e pela modificação que ela produz, mas não redutivel a tais faotores materiais. (Ib., VII, 3). À sensibilidade assim entendida se reduz a inteligência. Esta integra e substitui a sensibilidade, que tem sempre um campo de acção limitado. Uma vez que nem sempre todas as qualidades de uma coisa são presentes à sensibilidade, e que, pelo contrário, muitas ~es alguma delas p=anece, oculta ou desconhecida, o perceber esta última, afirmando a sua presença, embora no momento ela não se revele, é o acto específico da inteligência (lb., VII, 3). Este acto é um acto de valoração ou de remeinoração e é por isso, também ele, sensibilidade, embora imperfe;ta e analógica. A inteligência não é, segundo Telésio, senão o substituto mais ou menos adequado da sensiNlidade. Todos os pnncípios da ciência não são mais do que generailizações de percepções sensíveis. Definindo o circulo o o triângulo, a geometria não faz senão atribuir-lhes, a eles e à sua espé cie, aquilo que o sentido percebe como próprio do círculo, do triângulo e da espécie a que p ~em. Outras 255 qualídades são, a3 invés, postuladas porque não são diversas das que se percepcionam nem lhes repugnam e são, pelo contrário, similares e quase idênticas a elas. Outros princípios, os axiomas, derivam, pois, directamente dos sentidos, os quais, por exemplo, nos testemunham que o todo é maior do
que qualquer das partes e que duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si (Ib., VIII, 4). A validade das matemáticas é assim inteiramente fundada na experiência sensível. Telésio afirma, todavia, a superioridade das ciências que mais directamente se ligam à experiência. A matemática procede por meio de sinais e indícios, mas, por exemplo, a evaporação da água pela acção do calor não se faz notar por um sinal qualquer mas pela própria natureza, isto é, pelo calor e pela água percebidos e reconhecidos pelos sentidos (Ib., VIII, 5). Não porque as matemáticas sejam menos certas; também elas extraem os seus princípios dos sentidos ou da analogia com as coisas percebidas pelos sentidos Ub., VIII, 5). Assim, a vida natural do homem é reconduzida por Telésio a princípios puramente -naturais. O bem supremo é a conservação do espírito no mundo. Só na medida em que se podem realizar os movimentos necessários à sua conservação, o homem experimenta prazer: o prazer é o sentido da conservação, a dor o sentido da destruição. Isto não implica que prazer e dor devam ser assumidos como móbiles da acção moral. Faz parte da ordem do mundo, estabelecido e garantido por Deus, que todo o ser tenda à sua conservação. A conservação 256 própria é portanto o fim moral supremo para homem; e uma acção que seja necessária para ck deve ser também realizada, mesmo que seja m~ incómoda, e deve ser considerada boa até que sirva a tal fim (Ib., IX, 4). A valoração das ac~ respeitantos ao fim da conservação é o fundamento da virtude. A medida que o homem impõe às paixões deriva precisamente da exigência de evitar os excessos que possam debiEitá-lo e destruí-lo: a virtude mesma não é portanto outra coisa do que a condição necessária para a conservação do homem no mundo (Ib., IX, 4). Virtude e vício não são, portanto, como queria Aristóteles, hábitos, mas faculdades naturais que o exercício reforça apenas porque os concentra o os torna mais puros (Ib., lX, 3 1). Telésio realizou assim a redução naturalística de toda a vida intelectual e moral do homem. Viu-se como a pró pria divindade não é para Telésio um factor extranatural. Sê-lo-ia no caso em que interviesse na natureza determinando um facto qualquer que pudesse explicar,se únicamente em virtude da sua intervenção. Mas tal não acontece. Opondo-se a Apistóteles, exclui até a directa acção motora de Deus. Deus não faz só isso; Deus faz tudo. Mas precisamente porque faz tudo, a sua acção não é presente num lugar mais do que em outro e é apenas a condição suprema da acção uniforrne e normal dos princípios naturais. Em Deus, Telésio vê apenas (como fará Descartes) o garante da ordem e da uniformidade da natureza. Há, todavia, um elemento que está na natureza mas não per257 tence à natureza: e é a vida religiosa da alma, a aspiração do homem ao transcendente. O sujeito dela não pode ser o espírito produzido pelo gérmen, a alma que o homem tem em C(YMUM com os outros animais e que nele se diferencia apenas por uma pureza maior, e por isso por uma maior eficiência operativa. O sujeito da vida religiosa é uma alma directamente criada e infundida por Deus. A existência dela não é apenas
um dado religioso, mas pode ser reconhecida com razões puramente humanas. O homem, de facto, aspira a conhecer não só as coisas que servem para a sua conservação, mas também a substância e as operações dos entes divinos e de Deus. Aspira, além disso, a um bem que está para lá de todo o bem presente e crê numa vida futura mais feliz do que esta. Julga infelizes os maus, mesmo se dispõem em abundância dos bens do mundo e considera felizes apenas os homens bons. E, enfim, crê que no além será restabelecido aquele equilíbrio moral, que muitas vezes não se realiza no mundo, onde os melhores talvez sofram e os piores abundam de todos os bens Ub., V, 2). Esta alma divina é chamada por Telésio forma superaddita.- ela contribui indubitàvelmente para dar à alma humana aquela grande pureza e facilidade de movimento que é a sua característica em relação à alma dos animais (Ib., VII, 15). Mas nenhuma função específica lhe atribui Telé sio na vida intelectual e moral do homem. No homem, ela não pode agir senão através do espírito pelo gérmen, sem o qual não poderia conhecer os movimentos das coisas percebidas e, 258 através deles, da própria natureza das coisas. E a própria vida moral em nada depende dela: até um leão não se subtrai ao perigo pela fuga mas vai voluntàriamen,te ao encontro da morte, para não se mostrar tímido ou degenerar (Ib., V, 40). A forma "superaddita" dá no entanto ao homem a liberdade que lhe é própria: a escolha entre o bem natural e o bem sobrenatural; e, portanto, constitui a característica original do homem perante todos os outros seres da natureza. Aqui se vê que o reconhecimento da alma imortal como forma "superaddita" não é em Telésio uma concessão às crenças religiosas, mas o reconhecimento da originalidade da existência humana relativamente ao resto da natureza: só ela torna, de facto o homem irredutível aos outros entes naturais, o subtrai ao determinismo e o dispensa da escolha entre o tempora@l e o eterno. Este limite da redução naturalística não consti- tui uma ruptura no naturalismo de Telésio. Na realidade, o seu sistema desenvolveu-se de modo a não requerer continuações ou integrações de ordem metafísica. As continuações e integrações que Telésio expressamente requereu e desejou, lamentando-se de não as ter fornecido ele próprio, são todas de ordem física. O interesse de Telésio é mais científico do que filosófico. O seu continuador natural é Galileu. Bruno e Campanella representam por isso um desvio do rumo tomado por Telésio, pois tentam o enxerto do seu naturalismo no velho tronco da metaiísica neoplatónica e mágica. 259 § 379. BRUNO: O AMOR DA VIDA Giordano Bruno retorna de facto ao neoplatonismo e à magia. Nasceu em 1548 em Nola. Aos 15 anos entrou para o convento dominicano de Nápoles, onde, graças às suas excepcionais qualidades de memória e de engenho, foi considerado um menino
prodígio. Mas aos 18 anos as primeiras dúvidas acerca da verdade da religião cristã levaram-no a chocar-se com o ambiente eclesiástico, e, alguns anos depois (1576), foi obrigado a refugiar-se em Genebra, depois em Toulouse e em Paris. Nesta cidade publicou, em 1582, a sua comédia Candelaio e o seu primeiro escrito filosófico De umbri sidearum, que dedicou ao rei Henrique 111. AE obteve os primeiros êxitos, não como filósofo, mas como mostre da arte luliana 1 da memória, em que precisamente se inspira De umbtis. De Paris passou-se em 1583 para Inglaterra, onde ensinou em Oxford e travou relações com a corte da rainha Elisabeth. A este período pertencem os diálogos italianos e também alguns dos poemas latinos (o De immenso) que terminou em seguida. Regressado a Paris, foi obrigado a ir-se de lá depressa por causa da hostilidade dos ambientes aristotélicos, que àsperamente atacara. Foi então para a Alemanha (1586) e aí ensinou em Marburgo, Wittenberg e Francoforto do Meno, onde 1 Relativa a Raimundo Lúlio, escritor e alquimista espanhol. (N. do T.) 260 terminou os seus poemas latinos. Depois aceitou o convite do patrício, veneziano Giovanni Mocenigo, que desejava ser instruído por ele na arte mágica, e dirigiu,se para Veneza, julgando-se a salvo sob a protecção da República. Mas, denunciado por Mocenigo, foi preso a 23 de Maio de 1592 pela Inquisição de Veneza. Bruno submeiteu-se. Reconhecia a legitimidade da religião como guia da conduta prática, sobretudo daqueles que não podem ou não sabem elevar-se à filosofia. A doutrina da dupla verdade, própria do averroísmo, que durante o Renascimento, se apoiava no sentido aristocrático da verdade, considerada património dos doutos, valeu-lhe como justificação para si mesmo. Mas em 1593 Bruno foi transferido para a Inquisição de Roma, onde permaneceu no cárcere sete anos. Aos repetidos convites para se retractar, opôs sempre uma recusa, afirmando não ter nada que retractar o a 17 de Fevereiro era queimado vivo no Campo das Flores em Roma, sem se ter reconciliado com o Crucifixo, do qual, nos derradeiros momentos, desviou o olhar. Os escritos de Bruno podem ser classificados do seguinte modo: l.'-A cornédia Candelaio (1582); 2.'-Escritos lulianos: De compendiosa architectura et complemento artis Lullii (1582); De lampade combinatoria lulliana (1587); De progresso et lampada venatorum logicorum (1587); Artificium perorandi (1587); Animadversiones circa lampadem 261 lullianam (1587); De specierum scrutinio (1588); Lampas triginta statuarum (1590 ou 91). 3.-Escritos nmernotécnkos: De umbris idea- rum (1582); Ars memoriae (1582); Cantus circaeus (1582); Triginta sigillorum explicatio (1583); Sigillus sigillorum (1583); De imaginum compositione (1591). 4.'-Escritos didácticos que expõem as doutrinas de outros pensadores: Figuratio Aristotelici physici auditus (1586); Acrotismus camoeracensis (1586); Dialogi duo de F. Mordentis prope divina adinventione (1586); CLX articuli adversus huius temporis mathematicos atque philosophos (1588). 5.'-Escritos mágicos: De magia et theses de magia; De magia malhematica; De principás rerum, elementis et causis; Medicina lulliana; De vinculis (comipostos todos eles entre 1589 e 1591). 6'.-Escritos de filosofia natural: La cena de le ceneri (1584); De la causa, principio et uno (1584); De Vinfinito, universo e mondi (1584); Summa
terminorum methaphysicorum (1591); De minimo (1591); De monade (1591); De iminenso et innumerabilis (1591). 7. -Escritos morais: Lo spacio delia bestia trionfante (1584); Cabala del Cavallo Pegaseo con l'aggiunta dell'Asino cillenico (1585), Degli eroici furori (1585). 8.'-Escritos de eIrcunstância: Oratio valedictoria, pronunciada em Wittenberg em 1588; Oratio consolatoria, pronunciada em Hehnstedt em 1589. Já neste prospecto, que não compreende os títulos das obras que se perderam (entre as quais um tra262 tado intitulado Das sete artes liberais), se evidencia a multiplicidade dos interesses que agitaram a mente de Bruno. Mas é também evidente, a quem ler estas obras, que todos os seus múltiplos interesses têm uma nota fundamental comum: o amor da vida na sua potência dionisíaca, na sua infinita expansão. Este amor da vida toí rnou-lhe insuportável o convento, que ele denominou num soneto "prisão estreita e negra" (Opp. it., 1, 285) e fez-lhe nutrir um ódio inextinguível por todos os pedantes, gramáticos, académicos, aristotélicos que faziam da cultura um puro exercício livresco o desviavam os olhos da natureza e da vida. O próprio amor da vida o levou a representar em Candelaio com realismo cru o ambiente napolitano onde transcorrera a sua juventude; e, assim, fustigou na comédia os pedantes, os crédulos e os intrujões, mas sem humorismo nem desprendimento, antes com uma exasperada complacência pelo espectáculo da trivialidade e da raiséria, que apenas se explica pelo apego à realidade viva, qualquer que ela seja. Do amor da vida nasce, enfim, o seu interesse pela natureza, que não arrefeceu nele, como em Telésio, num pacato naturalismo; pelo contrário, exaltou-se num ímpeto lírico e religioso que amiúde encontrou expressão na forma poética. Bruno viu e quis a natureza bem viva, plenamente animada, e o sustentar esta universal animação, o projectar a vida na infinidade do universo, constituiu o alvo mais alto do seu filosofar. Daqui a sua predilecção pela magia que se funda precisamente no pressuposto do pampsiquismo universal e quer conquistar pela força a natureza 263 como ise conquista um ser animado; daí a renúncia à paciente e laboriosa investigação naturalística que Telésio prospectara. Daí, ainda, a sua predilecção pela mnemotéctúca ou arte luliana, que tem a pretensão de tomar de assalto o saber e a ciência, de se assenhorear do saber com artifícios ranemónicos e de fazer progredir a ciência com uma técnica inventiva rápida o miraculosa que se adiante a passos largos à metódica e lenta investigação científica. O naturalismo de Bruno é, na r~ ade, uma religião da natureza: ímipeto lírico, raptus nrentis, contractio mentis, exaltação e furor heróico. Por isso se dá melhor com o simbolismo numérico dos N"itagóricos do que com a matemática cientifica, e melhor com as invenções miraculosas e charlatanescas de um Fabrício Mordente do que com as fórmulas rigorosas de Copérnico. A obra de Bruno marca uma paragem no desenvolvimento do naturalismo científico, mas exprime, na forma mais apaixonada e potente, aquele amor da natureza que foi, indubitávelmente, um dos aspectos fundamentai,s do Renascimento.
Isto toma possível entender a posição de Bruno relativamente à religião: uma posição que é, substancialmente, a de Averróis, mas sem o respeito que a de Averróis implicava relativamente à religião. Como sistema de crenças, esta aparece de facto a Bruno como repugnante e absurda. Ele não reconhece a sua utilidade "para a instituição de povos rudes que devem ser governados" (De 1'inf., in Opp. it., 1, 302), mas nega-lhe todo o valor. Ela é um conjunto de superstições direotamente contrárias à 264 GIORDANO BRUNO razão e à natureza; Pois Pretende fazer crer que é vil o insensato o que à razão parece excelente, que a lei natural é uma ignominia, que a natureza e a divindade têm fins diferentes; que a justiça natuTal e a dMna são contrárias; que a filosofia e a magia são loucuras; que todo o acto heróico é velhacaria e que a ignorância é a mais bela ciência do mundo (Spaccio in Opp. it., H, 207-208). Spaccio della bestia ttionfante, La cabala del Cavallo Pegaseo, L'asino cillenico são obras que se entretocem numa feroz sátira anticristã que nem sequer poupa o mistério da encarnação do Verbo. Nem o cristianismo reformado, que Bruno directamente conhecera em Genebra, em Inglaterra e na Alemanha, se salva da sua condenação, que lhe parece mesmo pior do que o catolicismo, porque nega a liberdade e o valor das obras boas e introduz o cisma e a discórdia entre os povos (Ib., 11, 89 e 95). Mas além desta religiosidade, de que Bruno zomba considorando-a como "santa burrice" e que é directamente contrária à natureza e à razão, há a outra religiosidade, a dos "te@@logos", isto é, os doutos que em todos os tempos e quase em todas as nações têm procurado uma via para chegar a Deus. Esta religiosidade é o próprio filosofar, tal como Bruno o entende e pratica. Quanto ao seu conceito e ao seu conteúdo, estão de acordo, segundo Bruno, os filósofos orientais e cristãos. Bruno faz sua a ideia dominante no Renascimento, expressa na forma mais rigorosa por Pico de Mirândola (§ 357), de uma sabedoria originária que, transmitida por Moisés, foi desenvolvida, acrescida e aclarada por 265 filósofos, magos, teólogos do mundo oriental, do mundo clássico e do mundo cristão. Ele admite, contudo, a possibilidade de que aquela sabedoria originária. possa, em alguns pontos, ser revista, porquanto "nós somos mais velhos e temos idade mais avançada do que os nossos predecessores" e através do tempo o juizo amadurece, a não ser que se renuncie a viver nos anos em que se deve viver e se viva como mortos (Cena, in Opp. it., 1, 31-32). Mas considera que este desenvolvimento histórico da verdade é, na realidade, um renascimento e um regerminar da verdade antiga ("são, amputadas raízes que tornam a germinar, são coisas antigas que voltam, são verdades ocultas que se descobrem" (De 1'inf., em Opp. it., 1, 388); e vai inspirar-se de preferência, para lá de
Aristóteles e de Platão, nos Pré-socráticos, aqueles em que pode encontrar um mais puro e imediato interesse pela natureza. E, na realidade, a natureza, é o termo da religiosidade e do filosofar de Bruno, o objecto do seu ímpeto lírico, do seu "furor". § 380. BRUNO: A RELIGIÃO DA NATUREZA Bruno, desde o princípio toma o mundo natural como objecto da sua investigação e renuncia a toda a especulação teológica. "Não, se requer do filósofo natural, diz ele (Della causa, 11, Opp it., 1, 175), que busque todas as causas e princípios, mas só as físicas, e destas as principais e próprias". 266 utilizando o princípio neoplatónico da transcendência e incognoscibilidade de Deus, rejeita a divindade como tal para fora do campo da sua investigação. A Deus não se pode ascender a partir dos seus efeitos, como não se pode conhecer Apeles pelas suas estátuas. Deus está "acima da esfera da nossa inteligência"; e é mais meritório chegar a ele pela revelação do que tentar coiihecê-lo. Por isso "consideramos princípio e causa aquilo de que haja indício ou seja a natureza mesma, ou reluza no âmbito ou sseio dela" (Ib., 177). Deus, enquanto é objecto de filosofia, não é a substância transwndente de que fala a revelação mas é a própria natureza, no seu principio imanente. Neste sentido, isto é, apenas como natureza, ele é a causa e o princípio do mundo: causa, no sentido de determinar as :coisas que constituem o mundo, permanecendo distinto delas; princípio, no sentido de constituir o próprio ser das coisas naturais. Mas em qualquer caso não se distingue da natureza: "A natureza ou é Deus ou é a virtude divina que se manifesta nas coisas mesmas" (Summa term. met. in Opp. lat., IV, 101). Como princípio do mundo, Deus é o intelecto universal "que é a primeira e principal faculdade da alma do mundo, a qual é forma universal daquele". Ele é o artífice interno da natureza e é causa não só intrínseca, mas extrínseca dela, porquanto, embora opere na matéria, não se multiplica com o multiplicar-se das coisas produzidas. Deus não só anima e informa o inundo, como também o dirige e governa. Bruno pode afirmar assim a universal ani267 mação das coisas e retomar as antigas doutrinas que fazem da natureza um gigantesco animal. E uma vez que a alma é forma, serve-se dos conceitos de matéria e forma para justificar o seu pampsiquismo. Tais conceitos são assumidos na elaboração de Avácebrão (§ 247): há uma única forma e uma única matéria; a única forma é Deus como alma do mundo, a matéria é o receptáculo das formas, o substracto informe, que o intelecto divino anima e Plasma. A matéria não é aipenas corpórea mas também incorpórea (como o dissera Avicebrão) e não subsiste separadamente da forma, como a forma não subsiste separadamente dela. Mas esta conexão em Bruno (que nisto se opõe explicitamente a Aristóteles) torna-se unidade, ou antes
identidade. As formas particulares das coisas nascem do seio da matéria que continuamente as suscka e destrói; de modo que a matéria é princípio activo, como já havia sido reconhecido por David de Dinant (§ 219), o qual o havia identificado como Deus. Por último, matéria e forma resultam idênticas e constituem uma única identidade, que é forma e matéria, alma e corpo, acto e potência. Esta unidade é o universo. Bruno retoma esta conclusão de Parinénides: o todo é uma substância única e imóvel, que, como tal, já não é nem matéria nem forma, porque é tudo, é o supremo, é o uno, é o universo (De Ia causa, III e V, in Opp. it., 1, 223, 247;Sign. sigil., in Opp. lat., 11, 180). Os conceitos de matéria e de forma não servem portanto senão para justificar e fundar a identidade mesma, de que Bruno partiu, da natureza com Deus. 268 Reconthecida tal identidade, pode ele utilizar a especulação teológica de Cusano transferindo para o universo os caracteres que Cusano atribuíra a Deus. Para Cusano (§ 350) o universo é decerto unidade e infinidade; mas unidade e infinidade cotaraída, isto é, determiriando-se e individualizando-se numa multiplicidade de coisas. Esta diferença esbate-se e anula-se em Bruno, que rejeitou desde o princípio Deus como substância transcendente para fora do campo da sua especulação e se limitou a considerar ~, únicamente como natureza, isto é, como princípio imanente. Pode então recorrer à especulação de Cusano para determinar a natureza do Uno cronológico de Parménides; e, em primeiro lugar, tira a este uma das suas características que era, não obstante, fundamental, isto é, a finitude, e afirma, tal como Cusano, a infinidade. Nela distingue então a coincidentia oppositorum, que era a fórmula resõluüva de Cusano. No universo coinci,dem o máximo e o mínimo, o ponto indivisível e o corpo divisível, o centro e a circunferência; e dele se pode dizer que o centro está em toda a parte e a circunferência em parte alguma ou que a circunferência está em toda a parte e o centro em nenhum lugar (De Ia causa, V, in Opp. it., 1, 249-50). Todavia, o atributo fundamental do universo, o que acende e exalta o ímpeto lírico de Bruno e constitui o tema preferido da sua especulação, é a infinidade. A esta consagrou as suas obras Cena delle cenerí, De 1'iiifitúto, utúverso e mondi e, entre os poemas latinos, o De immenso, que Bruno considera o cume e a conclusão da sua trilogia latina (Opp. 269 lat., 11, 196-97). A defesa de Bruno faz, na Cena, do sistema copernicano, é, toda ela, determinada pela possibilidade que este sistema oferece de ent-nder e afirmar a infinidade do mundo. Bruno é totalmente indiferente às vantagens científicas da hipótese copernicana e é bastante duvidoso que haja entendido verdadeiramente o projecto geométrico de Copérnico, do qual ele faz na quinta parte do diálogo uma exposição sobremaneira confusa. Os argumentos em favor do infinito que ele aduz em De 17nfinito não são novos: remontam a Occam (§ 320), a quem pertence aquele argumento fundamental, amplamente desenvolvido por Bruno: o de que à infinita potência da Causa deve corresponder a infinidade do efeito. À predilecção pelo infinito deve-se * desprezo de Bruno por Aristóteles, que fôra decerto * mais decidido e rigoroso adversário do infinito real. Paira Aristóteles, a infinidade significa essencialmente incompletude e, por conseguinte, ausência de determinações precisas e de ordem: e Bruno detém-se longa,mente a responder aos argumentos aristotélicos. A negação de um centro do mundo tira todo o fundamento à
observação aristotélica de que no infinito não haveria uma ordem espacial, isto é, um centro, um alto e um baixo absolutos; como vira Occam e Cusano definitivamente estabelecera, isso não vale como argumento contra a realidade do infinito, que é caracterizado precisamente pela impossibilidade de determinações espac;ais absolutas. Fm De immenso Bruno detém-so a analisar o pressuposto de toda a doutrina aristotélica, isto é, a impossibilidade de entender a perfeição do mundo senão como finitude. 270 Perfeito, diz ele (De inunenso, in Opp. lat., 1, 1, 309), não é aquilo que é completo e fechado em proporções determinadas (certis numeris), mas sim o que compreendo inúmeros mundos e por isso todos os géneros e todas as espécies, todas as medidas, todas as ordens e todos os poderes. Em De l'ffifinito (lb., 298) distingui,ra uma dupla infinidade: a de Deus que é tudo em tudo, mas não em cada parte. Correspondentemente, distingue em De immenso um dupla perfeição, uma na essência, a outra em imagem A primeira é a de Deus como intelecto do mundo * que pertence a primeira infinidade; a segunda é * do imenso simulacro corl)óreo de Deus que é o mundo, ao qual pertence a segunda infinidade (Opp. lat., 1, 1, 312). De modo que a mais alta perfeição é a infinidade do intelecto, isto é, da alma e da vida, a qual Bruno afirma que se estende para lá de todos os limites definildos, em todos os inumeráveis mundos. Aqui está, sem dúvida, o acento novo que transforma a infinita grandeza espacial numa infinita potência de vida e de inteligência: e aqui está o fundamento daquela religião do infinito em que vêm a fundir-se para Bruno o amor da vida e o interesse pela natureza. § 381. Bruno: A TEORIA DO MíNIMO E DA MóNADA A esta consciência rigidamente monística, para a qual tudo se reduz a um Deus-Natureza, que tem em comum os atributos do ser de Parrnénides e do 271 Deus de Cusano, apresenta-se todavia um pro~a c;rucial: como se concilia a unidade imutável do todo com a multiplicidade mutável das coisas? Em De Ia causa (Opp. it., 1, 251) Bruno distinguira o ser, que é o todo, dos modos de ser, que são as coisas: o universo compreende todo o ser e todos os modos de ser, cada coisa singular tem todo o ser, mas não todos os mo-dos do ser. Tal distinção propõe um outro aspecto do problema: como são possíveis tantos modos de ser, se o ser é uno e imutável? "Profunda magia, diz Bruno no mesmo diálogo (Ib., 264), é saber tirar o contrário depois de ter encontrado o ponto de união". O ponto de união é, indubitàvelmente, o Deus-Natureza: mas que magia poderá tirar daqui a diversidade e a oposição dos modos singulares? À resolução do problema dedica Bruno dois poemas latinos, o De triplice minimo et mensura e o De monade numero e figura. A relação reciproca entre estes dois poemas, que são apresentados como a preparação do De immenso é esclarecida por Bruno no sentido de que o primeiro se vale do método matemático, o segundo do método (ut licet) divino (Opp. lat., 1, 1, 197). E, na realidade, o primeiro propõe o problema da conexão entre a unidade do todo e a multiplicidade das coisas, do ponto de vista humano: o segundo propõe o mesmo problema do ponto de vista divino. O primeiro pretende mostrar a via através da qual o homem mediante a própria consideração
das coisas múltiplas pode alcançar a unidade; o segundo pretende mostrar o processo mediante o qual da unidade &vina procede 272 a multiplicidade das coisas. Assim, os dois poemas se integram reciiprocamente e proparam a exaltação lírica da infinidade do todo, que é o tema do De immenso. Há que notar, desde já, que a via matemática proposta por Bruno no De mitúnw não tem nada que ver com a matemática científica. O pressuposto animístico e mágico impede Bruno de apreciar no seu justo valor a análise quantitativa, de que o próprio Telésio, apesar de tudo, adverte a exigência. A matemática de que ele se serve é uma matemática qualitativa e fantástica, uma matemática mágica, que exclui a medida numérica e nega que se possa chegar a uma precisa determinação quantitativa dos fenómenos naturais. Trata-se antes da busca do núnimo, que é para Bruno a substância das coisas consideradas na sua grandeza qualitativa. "0 objecto e escopo da natureza e da arte, isto é, a composição e a resolução a que elas visam no agir e no contemplar, nascem do mínimo, consistem no mínimo e reduzern-se ao mínimo" (De min. 1, 22, in Opp. Lat., 1, 111, 140). O mínimo é a matéria ou elemento de tudo: é ao mesmo tempo a causa eficiente, o fim e a totalidade; é o ponto de uma ou duas dimensões, o átomo nos corpos, a mónada dos números. Não há uma única espécie de mínimo qualitativamente idêntica em todos os aspectos da natureza. Existem tantos géneros de mínimo quantos são tais aspectos: há uma superfície mínima, um ângulo mínimo, um corpo mínimo, uma razão mínima, uma ciência mínima e assim por diante. E todos estes mínimos têm nomes diversos, podem unirse e 273 separar-se, mas não se penetraim nem se misturam, tocam-se apenas (Ib., 176). Assim, o ponto é o mínimo da superfície, o átomo é o mínimo do corpo, o sol o mínimo do sistema planetário, a terra é o mínimo da oitava esfera em que está situada (Ib., 173-174). O mínimo é, portanto, para Bruno, a cnidade última e real, qualitativamente diferenciada, que permite entender em primeiro lug a constituição das coisas particulares, as quais tendem, cada uma, a conservar o próprio mínimo e assim conspi,ram para um mesmo fim; e em segundo lugar, permite o unificar-se das coisas particulares de modo a formarem espécies e géneros sempre cada vez mais vastos até ao último generahssimo e comuníssimo ser, que é o do universo (Ib., 271). O mínimo e, assim, o princípio que consiste em entender a unidade das coisas na sua inultiplicidade e a multiplicidade na unidade; e responde, na forma fantástica e aproximativa que é própria de Bruno, ao problema crucial da sua especulação cosmológica. Na última parte do De minimo, dedicãda à construção e à medida das figuras geométricas, Bruno vale-se da matemática concreta do salerniano Fabrício Mordente, que ele conhecera durante a sua segunda estada em Paris (1585-86) e que era o inventor de um compasso e de uma regra de cálculo. Mas nem a invenção de Mordente nem as especulações de Bruno possuem, na verdade, o mínimo valor científico. O mínimo bruniano, caracterizado, como é, pela diferença qualitativa, não é susceptível de tratamento matemático e não tem significado senão como tentativa para resolver, do ponto de vista da inves274
tigação humana, o problema da relação entre a unidade da natureza e a multiplicidade das coisas. Se o De minimo expõe a vida humana para chegar a entender a relação entre o todo e as partes, o De monade expõe, ao invés, o processo divino através do qual tal relação se constituiu. O poema é inteiramente fundado neste significado simbédico dos números e das figuras geométricas que havia sido o tema preferido dos NeopitagóTicos, e tinha depois passado para os filosofemas da magia renascentista. Elo tende a fazer derivar todo o mundo natural da década, isto é, dos primeiros dez números, que, por seu turno, provêm das m6nadas, ou seja, da unidade. Conformemente ao pressuposto fundamental do neoplatonismo, o Uno ou Mónada é concebido como o princípio de tudo. Uno é o infinito, uma é a primeira essência, uno é o ~íp@o o a causa prima, uno é o mínimo indivisível do qual fluem as espécies naturais; uno é o sol do macrocosmo e uno é o coração do microcosmo. O uno é representado pelo círculo. Do uno brotam as díades como do fluxo do ponto brota a linha. E a díade constitui a estrutura de outros aspeotos fundamentais do universo. A bondade, ao difundir-se. cria o bem, a verdade, ao explicar-se, cria o verdadeiro, do modo que se determina a díade da essência e do ser composto. Matéria e forma consti,tuem uma díade; díade é a potência que pode ser activa ou passiva, o acto que pode ser primo@ro ou segundo. São duas as almas do homem, a intelectiva e a sensível: e, em geral, a díade constitui todas as oposições que se encontram no domínio 275 rnetafísico, físico e humano. A tríade, representada pelo triângulo, constitui os três princípios da unidade, da verdade e da bondade, de que procede a outra tríade da essência, da vida e do intelecto, à qual se seguem inúmeras tríades no mundo físico e no mundo humano. A tétrada, que era sagrada para os Pitagóricos, constitui o bem, o intelecto, o amor e a beleza: as quatro formas do conhecimento que Platão distinguia na República: o inteligível, o pensável, o sensível e o umbroso; os quatro elementos da geometria, ponto, linha, superfície e profundidade, assim como os quatro elementos que Bruno encontra no céu, no mundo intelectual, no mundo espiritual e no mundo sublunar. Anàlogamente, Bruno mostra-nos a presença e a acção da pêntada, da hêxada, da héptada, da óctada, da enéada e, por fim, da década, estabelecendo correspondências simbólicas entre estes números e os aspectos fundamentais do mundo na sua estrutura metafísica, física e humana. Trata-se de correspondências fantásticas, nas quais os elementos do universo metafísico ou físico são ordenados e numerados mais ou menos arbitràriamente para os tornar susceptíveis de entrar no sinal mágico de um ou de outro número. O que importa, porém, é o intento geral do poema: reduzir o universo à estrutura numérica para mostrar que a sua génese depende da mónada, que é a origem de todos os números. Bruno quis demonstrar, com a sua matemática simbólica, a derivação do mundo do uno: e quis mostrar em acto esta derivação, fazendo ver o multiplicar-se do uno e o articular-se das figuras 276 correspondentes, nos sucessivos graus da realidade correspondente. O carácter arbitrário e fantástico desta derivação é evidente, mas é também evidente que Bruno quis com ela responder ao problema que a sua filosofia da natureza suscitava: conciliar a unidade do universo com a multiplicidade dos seus
modos de ser. § 382. BRUNO: O INFINITO E O HOMEM O carácter fantástico destes desenvolvimentos da especulação de Bruno, que deviam e pretendiam ser técnicos e responder a um preciso problema especulativo, confirma a natureza de toda a especulação bruniana, que tem as suas raíws na necessidade de expansão dionisíaca, na vontade de abrir ao homem perspectivas mais amplas o projectar, para lá de todos os horizontes fechados, a vitalidade que o filósofo sente em si mesmo. Bruno não elaborou uma forma de filosofar séria e crítica, apesar de se ter dado conta de tal exigência: filosofar significa para ele lutar contra os limites e as angústias que dilaceram o homem por toda a ,parte e, por consequência, possuir uma visão do mundo mediante a qual o próprio mundo já não seja um limite para o homem, mas o domínio da sua livre expansão. A gnoseologia de Bruno obedece à mesma exigência. Tomando como ponto de partida o neoplatonismo, Bruno integra-o e modifica-o conforniemente a essa divinização da natu277 reza que é o termo último do seu pensamento. É significativo que, enumerando no De umbtis idearum (Opp. lat. 11, 1, 48-49) os graus da ascese mística segundo Plotino, lhe acrescente dois por sua conta: a transformação de si mesmo na realidade e a transformação da realidade em si mesmo. O último grau do homem é, por consequência, não a identificação com Deus, ruas com a res, isto é, com a realidade ou a natureza. No Sigillus sigillorum (Ib., 11, 11, 180), põe como grau mais alto, acima da sensibilidade, da imaginação, da razão e do intelecto, a contractio mentis, pela qual as actividades humanas se concentram e se unificam, tornando-se aptas a compreender a unidade do todo. E esta é também a tarefa da mens, último grau. de conhecimento, na Summa terminorum metaphysicarum, (Ib., 1, IV, 32). Tudo isto sugere que, para Bruno, o termo final do conhecimento humano é a união mais íntima possível com a natureza da sua substancial unidade. E este é, de facto, o significado do mito de Acteon, exposto em De gli eroici furori. Acteon, que chegou a contemplar Diana nua e fo@ transformado em veado, passando de caçador a caça, é o símbolo da alma humana que, andando em busca da natureza e chegando finalmente a vê-la, se torna ela mesma natureza. E, de facto, a natureza é a unidade a que todas as coisas se reduzem na sua substância. Aquele que, como Acteon, vê "a fonte de todos os números, de todas as espéoies, de todas as razões, que é a móriada, verdadeira essência do ser de todos; e se não a vê na sua essência, em absoluta luz, vê-a 278 na sua gonitura que lhe é semelhante, que é a sua àmagem: porque da mónada, que é divindade, provém essa mónada que é a natureza, o universo, o mundo, onde se contempla e espelha, como o sol na lua, mediante a qual ilumina, encontrando-se aquele no hemisfério das substâncias intelectuais" (De glier. fur., in Opp. it., 11, 743). O termo mais alto da especulação filosófica não é, portanto, o êxtase místico de Plotino, a junção com Deus, mas a visão mágica da natureza na sua unidade. O que é expresso também por Bruno no mesmo diálogo, na
alegoria dos cegos, os quaits simbolizam a incapacidade humana de alcançar a verdade e que readquirem a vista e se consideram recompensados quando podem, finalmente, contemplar "a imagem do sumo bem na terra" (Ib., 515). Ora, este identificar-se do homem com a natureza, este fazer-se natureza, é o termo último não só da vida teorética, mas também da vida prática. A natureza, isto é, Deus, age com necessidade inelutável. Uma intrínseca necessidade regula a acção de Deus-Natureza, o qual só pode querer em todos os casos o óptimo e, por consequência, não conhece a indecisão e a escolha (De 1'inf., in Opp. it., 1, 293, De imm., in Opp. lat., 1, 1, 246). Mas isto não quer dizer que Deus não actue livremente; significa antes que nele necessidade e liberdade se identificam e que, na verdade, ele não agiria livremente se porventura agisse diversamente do modo que exige a necessidade da natureza (De imm., Ib., 243). Não se pode confrontar a liberdade perfeita de Deus com a imperfeita do homem nem 279 iazê-la consistir na escolha indiferente entre possibifidades diversas e contingentes. Isto acontece ao homem devido ao estado de ignorância e de imperfeição em que se encontra, estado que lhe impede de conhecer o melhor ou de perseverar nesse conhecimento. Se a liberdade humana f~ perfeita, seria como a de Deus: coincidiria com a necessidade da natureza (De imm., Ib., 246-47). Um aprofundamento deste conceito é efectuado por Bruno no Spaccio. Perguntando-se como as preces de Jove podem influir nos decretos do fado, que é inexorável, responde que o próprio fado quer que se lhe peça aquilo que ele determinou fazer. "Também quer o fado que, conquanto saiba o próprio Jove que ele é imutável, e que não pode ser outro do que o que deve ser e será, não deixe de incorrer por tais meios o seu destino." (Opp. it., 1, 3 1). A verdadeira liberdade humana identifica-se, portanto, com a necessidade natural (com o "fado") e consiste aperias no reconhecimento e na aceitação do próprio fado. A prece é muitas vezes um sinal de futuros efeitos favoráveis e como que a condição de tais efeitos, dado que o fado manifesta a sua necessidade na própria vontade dos homens e não fora dela Ub., 40-41). A verdadeira liberdade humana é, portanto, como a divina, idêntica à necessidade. A liberdade que é contingência e escolha arbitrária não é um prêmio mas apenas uma consequência do estado de imperfeição em que o homem se encontra relativamente a Deus. A tónica da especulação de Bruno recai todavia naquilo que assimila o homem a Deus, não no 280 que o ffistingue de Deus. Bruno apprecia e exalta na condição humana tudo o que leva o homem a adequar-se à natureza de Deus. Na idade de oiro, quando o homem viviia no ócio, já não era virtuoso como os animais e talvez fosse mais estúpido do que muitos deles. A pobreza, a necessidade, as dificuldades aguçaram-lhe engenho, fizeram-no inventar as indústrias e descobrir as artes; e, ainda hoje, fazem nascer das profundidades do intelecto ,humano novas e maravilhosas invenções. E só assim o homem é verdadeiramente e se mantém "Deus da natureza" (Spaccio, III, in Opp. it., II, 152). Mas o que sobretudo exalta e diviniza o homem é o heróico furor: o
ímpeto racional pelo qual o homem, que aprendeu o bem e o belo, se desinteressa daquilo que antes o atraía e não tende senão a Deus. O poder intelectivo do homem não se satisfaz com uma coisa finita e tende à fonte mesma da sua substância, que é o infinito da ,natureza e de Deus. Nisto reside a mais alta dignidâde do homem que não é absorvido e nulificado pelo infinito natural mas pode compreendê-lo, fazê-lo seu e reconhecê-lo como o sinal mais certo da sua natureza divina. § 383. CAMPANELLA: VIDA E ESCRITOS Se o naturalismo de Bruno é uma religião dionisíaca do infinito, o naturalismo de Campanella é o fundamento de uma teologia política ou 281 de uma política teológica. Tomás Campanella nasceu em Stil, o, na Calábria, a 5 de Setembro de 1568. Entrou em 1582 para a ordem dorninic^; mas a sua actividade de escritor atraiu sobre si perseguições e condenações. Nos fins de 1591 foi aprisionado em Nápoles devido às opiniões contidas em Philosophia sensibus demonstrata, que publicara meses antes. Era nesta época um fervoroso sequaz de Telé sio; e ele próprio contou em seguida (Syntagma de libris Propriis, 1) ter deposto uma elegia no ataúde de Telésio, com quem nunca pudera falar. Após alguns meses de encarceramento, foi libertado (1592) e deveria voltar dentro de seis dias para a sua província, mas transgrediu a ordem e d@rigiu-se para Roma e em seguida para Florença e Pâdua, onde se inscreveu na Universidade, e foi de novo preso em 1593 por heresia. Transportado para Roma e torturado, foi em 1595 solto e confinado em S. Sabina, onde continuou a sua actividade de escritor, que nem mesmo no cárcere interrompera. Depois de uma nova prisão e de um novo processo (1597), Camipanolla voltou em 1598 para sua terra. Aí urdiu a conjura que deveria conduzir à realização do seu ideal político-re,liigi',oso: uma república teocrática de que ele próprio seria o legislador e o chefe. Mas em 1599 a conjura foi descoberta. Campanella foi conduzido a Nápoles para lhe ser instaurado um processo; para fugir à condenação capital, fingiu-so louco e sustentou a sua ficção mesmo sob a mais dolorosa das torturas (1601); foi assim condenado a prisão perpétua e irremissível (1602). Permaneceu no cár282 cere cerca de vinte e sete anos. O seu espírito àndómi,to temperou-se nesta terrível prova. Do fundo da sua cela, lancava apelos e conselhos a todos os reis e príncipes da terra, vaticinando a iminente renovação do mundo mediante o retomo a uma única religião e a um único estado. Por convicção ou por oportunismo, converteu-se à tese de que só a monarquia de Espanha poderia realizar a unificação política do género humano e consagrou à defesa desta tese a sua actividade de escritor. Nunca mais abandonou esta actividade, nem mesmo na "hórrida fossa" de Castel Sant'FAmo, nem na prisão mais branda de Castel dell'Ovo ou de Castel Nuovo. Vàu repetidas vezes sequestrarem-lhe ou destruírem-lhe os manuscritos e outras vezes perderem-nos por os haver confiado, na esperança de que fossem publicados, a pessoas que o visitavam na prisão. Mas reescreveu as obras perdidas, conseguiu manter correspondênoia com vários letrados curopeus e publicar na Alemanha algumas das suas obras. Em 1626, é libertado pelo governo espanhol e transfeÈido para o Santo Ofício de Roma. Aí o papa Urbano VIII autoriza-o a dispor de todo o palácio do Santo
Ofício como loco carceris (1628); e Campanella começa a orientar as suas esperanças de renovação política, já não para a Espanha, mas para França. De modo que, quando em 1633, é descoberta em Nápoles uma conjura contra o vice-rei organizada por Tomás Pignatelli, discipulo de Campanella, e este já não se sente seguro em Roma, o embaixador francês favorece a fuga de Campanella, que se refugia em 283 Fiança (1634). Acolhido b(-,ne-vola-mente pelo rei Luís XIII e provido de uma Pensão, Camipanella pôde passar tranquilamente Os últifinos anos da sua vida, preparando a publicação das suas obras. já havia algum tempo que as estrelas lhe t@~ anuinciado que o eclipse do 1.o de Junho lhe seria funesto; quando adoeceu, não lhe valeram os ritos mágicos em cuja eficácia sempre acreditara, e a 21 de Maio desse ano morria. O interesse dominante de Campanella é um só, e é te0lógicO@P0lítico. Pode-se, todavia, dividir as suas obras em duas partes: uma, filosófico-teológica, a outra, pc>lítica. o próprio Canpanella deixou-nos no Syntagma d, librds proprus et recta ratiOne studendi (uma espécie de guia para o estudo da filosofia ditado em 1632 ao francês Gabriel Naudé) um índice das suas obras que indica a Ocasião e a época aproximativa da composição. Estudos recentes vieram ordenar e comipleta!r estas indicações, permitindo que se siga um rumo no emaranhado dos escritos de Camipanella, que foram, quase todos, refeitos várias vezes pelo autor. Escritos filosóficos: Philosophia sensibus demonstrata, composta em 1589 e publicada em 1591. Compendium de rerum natura, composto em 1591 e publicado em 1617. Del senso delle cose e della magia, composto em 1604 e depois traduzido para latim e publicado nesta língua em Francoforte em 1620. Apologia pro Galileo, composta em 1616 e publicada em 1622. Philosophia realis, publicada em Francoforte em 1623, e compreendendo: escritos de física, entre os quais é notável sobretudo o Epilogo 284 magno, composto, na sua feitura definítiva, entre 1604 e 1609; os Afotismi politici, compostos antes de 1606; a Città del sole, composta cerca de 1602, e em seguida revista e depois traduzida em latim e as Quaestiones fisiológicas, morais e políticas compostas antes de 1613. Astrologicorum libri VII, compostos em 1613 e publicados em 1629. Atheismus triumphatus, composto em 1605 e publicado em 1631. De medicina, composta em 1609 e publica em 1635. De gentifismo non retinendo, composto em 1609-10 e publicado em 1636. De praedestinatione, composto em 1628 e publicado em 1636. Philosophia rationalis, publicado em 1638, compreendendo a Poetica, a Rethorica e a Dialectica, escritos várias vezes refundidos. Metaphysica, um dos escritos fundamentais, concluído depois de uma longa elaboração em 1623 e publicado em 1638. Quod remíniscentur, composto cerca de 1615. Theologia, obra vastíssima em 30 livros começada a compor em 1613 e que permaneceu inédita. Escritos políticos: Discorsi sui Pãesi Bassi, compostos em 1594-95 e publicados em 1617. Monarchia di Spagna, composta em 1600 e publicada em 1620 em tradução alemã. Aforismi politici, já citados. Città del sole, já citada. Monarchia del Messia, composta em 1605 e publicada em 1633 na tradução latina. Discorsi della libertà e della felice sugestione allo stato ecelesiastico, compostos em 1627 e publicados em 1633. Discorsi ai principi d'Italia, compostos em 1607. Antiveneti, compostos em 1606.
285 Campanella é também autor de Poesias (compostas na juventude e nos primeiros anos da permanência no cárcere) que não são poesia filosófica no sentido de serem (como as de Bruno) a expressão versificada da sua filosofia, mas poesia autêntica, isto é, expressão de uma sua atitude fundamental. Nelas Campanella atinge a consciência da sua tarefa, da sua missão no mundo. Dirigindo-se a Deus para que o liberte da prisão, (Poesie, ed. Gentile, p. 135), faz o seguinte voto: Se mi sciogli, io, far seuola ti prometto Di tutte nazioni A Dio libertador, verace e vivo, S'a cotando pensier non é disdetto E fine a cui mi sproni: G11 Idoli abbater, far di culto privo Ogni Dio putativo E chi di Dio si serve, ea Dio non serve; Por di ragione il seggio e lo stendardo Contra il vizi-o codardo; A libertà chiamar ranime serve, Umiliar le proterve. Né a tetti ch'avilisce Fulmine o belva, dir canzon. novelle, Por cui Sion languisce; Ma tempio f-arõ il ciolo, altar de stelle. 1 Se me Ubertares, prometo-te / Fazer devotaz,, todas as nações / A Deus libertador, veraz e vivo, / So- a tão grande pensamento não recusas / O f im a que me inicitas: / Os Idolos abater, privar do culto / Todo o Deus suposto / E que de Deus se serve, e Deus não serve; / Pôr pela razão o trono e o estan286 A realização da unidade religiosa do género humano apresenta-se a Campanella como o fim fundamental da sua vida e é a promessa que ele faz a Deus como voto para a sua libertação. Num soneto, esclarece a natureza política deste fim e V~, -0 estreitamente aos princípios fundamentais da sua filosofia (Poes., p. 18): lo nacqui a debellar tre maLi estremi Tiranniffie, soctismi, lpocrisia: On'dor m'aoeorgo con quanta armonia Possanza, senno, amor m'insegnó Temi. Questi principi ssou ver! e supremi Della scoverta gran filosofia, Rimedio contra Ia trina bugia, ~to cui piangendo, mondo, fremi. Carestie, guarre, plesti, invidía. inganni, In~tizia, lussuria, accidia, sdegno, Tutti a que tre gran mali soíttostanno, Che nel eleco amor proprio, figlio degno D'Ignoranza, radice e fomento hanno. Dunque a divelIer Vignoranza io vegno, darbe / Contra o vício cobarde; / A liberdade chamar almas escravas, / Humilhar a soberba. / Nem mesmo aos lares sobre que cal / Fera um raio, direi canções novas, / Que a Sião enIanguesce; / Mas do céu ~ um templo, e das estrelas altar. 1 Eu nasci para debelar três grandes males: Tiranias, sofismas, hipocrisia: / E agora vejo com quanto harmonia / Força, senso, amor me ensinou Temi. / Estes princípios são veros e supremos / Da d~berta grã filosofia, / Remédio contra a trina 287 Força, senso e amor são como veremos, Os três primados, isto é, os princípios metafísicos do ser: a sua descoberta equivale para Campanella à destruição das tiranias, dos sofismas e da hipocrisia e, por conseguinte, de todos os males que destes nascem no mundo. O poder de libertação e de elevação política da sua filosofia é assim clarainente afirmado. A filosofia, para
Campanella, devia ser a alavanca para a realização de uma reforma política que eliminasse os males do mundo e o restituísse à justiça e à paz. E foi esse, na realidade, o interesse dominante de toda a obra de Campanella, a qual se desenvolve gradualmente da física à matemática, da motafísica à teologia, para constituir a teologia à base da unidade religiosa do género humano e da sua unificação política. § 384. CAMPANELLA: FíSICA E MAGIA O ponto de partida de Campanella é a física de Telésio., Mas--- emb ora confirmando os princípios .fundamentais desta física com uma grande massa mentira / Sobre a qual, chorando, mundo, tremes. / Carestias, guerras, pestes, inveja, enganos, / Injus- ,tiça, luxúria, preguiça, desdém, / Todos a estes três males subjazem, / Que no cego amor próprio, filho digno / Da ignorância, ra:,,i e alimento têm. Por isso, eu venho arrancar a ignorância. 288 CAMPANELLA de observações particulares e desordenadas, Campanella não tarda em afastar-se para procurar integrações mágicas e metafísicas que são completamente estranhas ao espírito do seu fundador. Assim o Del senso delle cose e della magia retoma os (princípios da física telesiana só com o objectivo de demonstrar aquela universal animação das coisas que é o fundamento da teoria e da prática da magia. E o Epilogo magno refaz toda a trama do De rerum natura de Telésio transformando-se numa espécie de cosmogonia teológica, que já não tem como escopo pôr a claro os princípios autónomos da natureza, mas sim o de roportar tais princípios a proposições teológicas. A despeito do seu juvenil entusiasmo por Telésio e da sua constante fidelidade à letra da física deste último, Campanella move-se numa esfera de interesses que já não têm relação com os que animavam a obra de Telésio. Telésio repele toda a força mágica, metafísica e teológica nas suas explicações naturalísticas: o seu objectivo é o de entender a natureza na ordem que lhe é própria, e em Deus só vê o garante desta ordem. Campanella vê na natureza a estátua e a imagem de Deus e nas forças que a agitam o campo de acção dos encantamentos e dos milagres dos magos. O seu interesse científico é nulo. Ele não quer compreender a natureza, mas tomá-la de assalto e subjugá-la. Crê na astrologia à qual dedica uma obra e da qual tira a confirmação do seu vaticínio do iminente retorno do mundo à unidade religiosa e política (Ath. triumph., 14, 27; Quod, remin., 1, 2, a. 3). E se defende a otwa de C ~, 289 (na Apologia pro Galileu) defende-a apenas do ponto de vista teológico e visa a demonstrar que a doutrina de Galileu é mais conforme à Sagrada Escritura do que a contrária. Dos princípios do naturalismo telesiano, deduz Campanefia imediatamente a universal sensibilidade das coisas. Uma vez que todos os seres, mesmo os animais e os homens, são formados pelas duas natui"ezas agentes, o calor e o frio, e pela massa corporea, e uma vez que os animais e os homens são dotados de sensibilidade, faz-se mister que as próprias naturezas agentes o a massa corpôrea sejam sentientes. O efeito deve encontrar-se na
causa de que procede: se os animais sentem, isso é sinal de que sentem os elementos ou princípios por que são constituídos (Del senso, 1, 1). Campanel,la sustenta, por conseguinte, que coisa alguma é privada de sensibilidade: nem a matéria, nem o céu e as estrelas, nem as plantas, nem as pedras e os metais e nem mesmo os outros elementos constitutivos do mundo. A sensibilidade que todos estes entes possuem é devida a um espírito quente e subtil que anima a massa corpórea e é ele mesmo corpérco (lb., 11, 4). Mas como o homem, além da alma corpó rea, possui também uma alma infundida por Deus e pela qual efectua as operações mais excelentes, seja embora servindo-se, como de um eficaz instrumento, do espírito corpóreo (lb., H, 27; Epil., 111, 14), assim o mundo tem, na sua totalidade, uma alma que é o instrumento directo de Deus e que dirige todas as operações (Ib., II, 32). A alma do mundo determina o con3enso que 290 as coisas naturais têm entre si, porque as dispõe todas para um único fim e assim as liga todas umas às outras não obstante a dissemelhança delas. (Ib., RI, 14). Por isso Campanella não só não nega a causa final como lhe reconhece a supremacia sobre as outras e considera a causa finalcomo o quente, o frio a matéria, o lugar-como simples meios para chegax ao fim (Epil., 111, 1, av. a). Deste consenso se vale a magia para efectuar as suas operações miraculosas. Ela é a sabedoria * um tempo prática e especulativa porque "aplica * que compreende em obras úteis ao género humano" (Del senso, IV, 1). Campanella distingue: uma magia divina, que opera em virtude da graça divina, como foi a de Moisés e de outros profetas inspirados por Deus; uma magia natural, que é a das estrelas, da medicina e da física, e que adquire, através da religião, a confiança própria de quem espera o favor desta ciência, e uma magia diabólica, que opera pela acção do demónio e logra fazer coisas que parecem miraculosas a quem não as entende. A magia dirvina não exige muita ciênda porque se funda no amor e na fé em Deus. A magia natural, pelo contrário, faz uso de todas as ciências e artes, e Campanella assegura que para ela raras coisas lhe são impossíveis. Mas para ele é também magia o agir sobre os homens e as suas paixões; daí que sejam "segundos magos os oradores e os poetas" (Ib., IV, 12); mas o maior mago é o legislador porque "a maior acção mágica do homem é dar leis aos hornens" (lb., IV, 19). 291 A máxima expressão da fidelidade de CampaneMa à física de Telésio é a supremacia do conhecimento sensível, supremacia que Campanella afirmou constantemente da primeira â última das suas obras. "A sabedoria, diz ele (Ib., 11. 30), é o conhecimento corto de todas as coisas, internamente, sem dúvidas". Ora, o próprio nome de sabe doria deriva dos sabores do gosto, que é o único dos sentidos que não se limita a colher as qualidades extrínsecas da coisa, mas, tríturando-a e assimilando-a, lhe colhe a intrínseca natureza física. Sabedoria, por excelência, é, portanto, a sabedoria fundada nos sentidos, sem os quais não se podem verificar, corrigir ou refutar os conhecimentos incertos. Assim, os antipodas, negados por Santo Agostinho e por outros Antigos, vieram a ser
atestados como seres reais por Cristóvão Colombo, mediante a experiência sensível. "0 sentido é certo e não requer prova, porque ele próprio é prova; mas a razão é conhedimento incerto, o por isso exige prova; e quando se aduz a prova e a causa, vai-se buscá-las a uma sensação certa" (Ib., H, 30). Tal como Telésio, Campanella sustenta que mesmo o intelecto é sensibilidade. "0 compreender em universal é senso amortecido e longínquo, e a memória é senso adormecido, e o discurso é senso estranho e em símile" (Ib., H, 30). O universal, que é o objecto do intelecto, é a semelhança que as coisas particulares têm entre si; e, assim, é o conhecimento indistinto e confuso que se certifica e concretiza com o aguçar-se do conhecimento sensível. (Ib., H, 22). 292 Porêm, esta redução de todo o conhecimento à sensibilidade levanta o problema que determina a passagem da física à m~,sica. A sensiWidade é, de facto, sempre conhocimento das c~ exteriores; como pode a alma, se todo o conhecimento é sensibilidado, conhecer-se a si mesma? "0 que me surpreendia, diz Campanefia (Ib., 11, 30), (era) que a alma se ignorasse a si mesma e ao que fazia". E, na realídade, a alma não pode ignorar-se a si mesma: é nisiter, portanto, que a sensibilidade externa se funde na sensibilidade que a alma tem em relação a si mesma, tal é o problerna que Campanelia defronta na Metafísica. § 385. CAMPANELLA: O CONCEITO DE SI Campanella divide a sua Metafísica em três partes: a primeira, dodlicada aos princípios do sa@ber, a segunda aos princípios do ser, a ~ira aos priric~ do operar. Ele inicia o seu tratado, reproduzindo o movimento de pensamento de Sto. Agostinho no Contra Acadêmicos (§ 160): a própria dúvida supõe uma verdade que está para lá de quaisquer dúvidas. "Sapiente, diz elo (Met., 1, 2, a. 1), é aquele a quem as coisas sabem (sapiunt) tais como são, e saber é perceber a coisa tal como ela é". O céptico que sabe que não sabe nada, reconhece pelo menos essa verdade e assim pressupõe que existem um sabor e uma corteza fundados em princ~ universais que estão paira além de qual293 quer dúvida. Tais principios, ou noções comuns, derivam uns do interior da alma, de uma faculdade inata, outros do exterior, por universal consenso de todos os entes ou de todos os homens. O mais seguro princípio da primeira espécie é aquele pelo qual somos e podemos, sabemos e queremos. O mais seguro princípio da segunda eq3écie é aquele pelo qual somos alguma coisa e não tudo, podemos, sabemos, queremos alguma coisa e não tudo ou de todas as maneiras. Por isso, quando tratamos das coisas particulares e simples, e passamos do conhecimento da nossa presença a nós mesmos ao conhecimento objectivo, começa a incerteza: a alma distrai-se do conhecimento de si para considerar os objectos que nunca se lhe manifestam total e distintamente, mas apenas parcial e confusamente. "Nós podemos, sabemos e queremos coisas diversas de nós, porque podemos, sabemos e queremos o que nós próprios somos: de modo que posso solevar um peso de 50 sestércios porque posso solevar-me a mim próprio, que o carrego, assim como sinto calor porque me sinto afogueado e gosto da luz porque gosto de ser iluminado pela luz" (Ib., 1, 2, a. 5). Por outros termos, o conhecimento das coisas externas pressupõe o conhecimento que a alma tem de si mesma. Deve haver um conhecimento inato de si (notitia sui ipsius innata, Ib., VI, 8, a. 1), uma consciê ncia
originária, em que reside a possibilidade do conhecimento de todas as outras coisas. Dado que a sensação se efectiva através da assimilação do sujeito cognoscente à coisa conhecida e é, como tal, uma paixão da alma, isto é, 294 uma mõdfficação que a alma sofre do exterior, esta modificação permaneceria estranha à alma se a consciência dela não fosse essencial à alma e não constituísse o seu ser. "Nós dizemos, diz Campanella (Ib., VI, 8, a. 4), que a alma e todos os outros entes se conhecem originária e essencialmente a si mesmos; ao passo que conhecem secundária e acidentalmente todas as outras coisas na medida em que se conhecem a si mesmos transformados e assimilados às coisas pelas quais, são transformados. O espírito sentiente não sente, portanto, o calor, mas sente-se em primeiro lugar a si mesmo: sente o calor através de si mesmo na medida em que é transformado pelo calor, sente o corpo na medida em que o substracto do calor é o seu objecto". Esta doutrina reproduz e amplifica a de T~io. Telésilo excluíra, de facto, que a sensação se reduzisse. à acção das coisas ou à modificação produzida no espírito das coisas; e tinha-a, pelo contrário, identificado com a percepção que o espírito tem da acção das coisas e da modificação produzida em si por tal acção. "Resta, portanto, dizia ele, concluindo (De rer. nat., VH, 3), que o sentido é a percepção das acções das coisas, dos impulsos do ar, assim como das próprias paixões, das próprias modificações e dos próprios movimentos; e sobretudo destes. O sentido, de facto, percebe estas acções só na medida em que percebe ser influenciado, modificado e comovido por elas". Mas esta doutrina, que havia sido mantida por Telésio ao nível de uma pura análise naturalística do conhe295 cimento, é elevada por Campanella ao plano metafisico. A autoconsciência não é própria apenas da alma mas de todos os entes naturais enquanto dotados de sensibilidade. "Há uma drupla sapiência nas coisas, diz Campanedla na Theologia (1, 11, a. 1): uma, inata, pela qual elas sabem ser e pela qual o ser lhes agrada e o não ser lhes desagrada, e esta sabedoria é essencia@ de modo que não se pode perder sem perder o ser. A outra, adquirida (illata), pela qual elas sentem as coisas externas porque -são por elas modificadas e a elas tornadas semelhantes. Assim, cada coisa se sente a si mesma por si, e, como sói, dizer-se, essenei alte, enquanto que sente as outras acidentalmente, isto é, na medida em que se toma semelhante às coisas pelas quais é modificada, quer no sentido de ser colrrompida, como acontece quando é afastada do próprio ser e sente dor, quer no sentido de ser aperfeiçoada, como quando é conservada e restituída à sua integridade através da sensação de coisas afins e favoráveis, e experimenta prazer". A primeira espécie de sabedona, o conhecimento inato, é pró. prio de todas as coisas: mas nas coisas e nos homens é diminuída ou impedida pelos conheci. mentos adquiridos. Em Deus, que é privado de todo o conhecimento adquirido, conserva, pelo contrário, toda a sua potência (Theol., ib.). A Metafísica de Campanella foi publicada em Paxis, em 1638, mas só foi completaida, após uma longa elaboração, em 1623. Em 1637 Descartes publicara
o seu Discurso do Método. Tem-se estabelecido com frequência o confronto entre a notítia sui 296 de Campanella e o cogito de Doscartes. Na reakdade, os traços salientes da tcwia de Campanella ind"m claramente o alcance e os limites desta. Ela serve únicamente para fundar a possibilidade do conhecimento sensível e é privada do significado idealístico que intérpretes modernos têm pretendido ver nela. É estranha a Campanefia. a problematicidade da realidade que constitui o traço fundamental da teoria de Descartes. A realidade e a cognoscibilidade das coisas eternas não são um problema para Cam~,a, como o serão para Descartes; a realidade é pressuposta, de tal modo que a autocons~a é atribuída não só ao homem mas a todas as coisas naturais, como seu elemento constitu~. Por isso, não é pensamento (como o é para Dese ~,), mas senso, sensus sui. Não caracteriza a existência específica do homem como sujeito pensante, que se põe o problema de uma realidade divem de si, mas exprime a constituição de cada ente natural como tal, o qual não pode agir sensivelmente ou sensivelmente sofrer a acção dos outros sem se sentir a si próprio. Para Descartes, a autoconsciência é o homem como tal, para Campanella * autoconsciência é tanto o homem como Deus, como * ser mais ínfimo da natureza. Além disso, a autoconsc~a perdeu em Canipanella o ca~ de interiorídade espiritual que tivera em Sto. Agostinho, para o qual ela ora o princípio da investigação que a alma diTigo a si mesma. Pode dizer-se que em Sto. Agostinho a autoconsciência é o princípio de uma metafísica espiritualista; em Campaneija é o princípio de uma metafísica naturalística; em Des297 cartes será o princípio de um idealismo problemático. Mas só na forma que assume em Descartes, a autoconsciência podia tornar-se o princípio da filosofia moderna como investigação directa do homem, em que se manifesta o carácter específico da sua existência no mundo. § 386. CAMPANELLA: A Metafísica Dissemos que a autoconsciência é para Campanella o princípio de uma m~sica naturalistica. Nela, de facto, se fundam as determinações essenciais da realidade natural. Tais determinações são reveladas precisamente pela autoconsciência: nós somos conscientes de poder, de saber e de amar e d~mos admitir que a essência de todas as coisas é constituída precisamente por estes três priinados: o poder (potentia), o saber (sapíenlia) e o amor (anwr) (Met., VI, proem.). Cada coisa é, na medida em que pode, porquanto só é na medida em que pode ser. O poder ser é, portanto, a condição do ser e da acção de todas as coisas (Ib., VI, 5, a. 1.). O segundo primado, o saber (saber de si ou saber do outro) constitui igualmente a essência de todas as coisas. De facto, não só os animais e as plantas, mas também as coisas inanimadas, como se viu, sentem; e nesta sensibilidade se funda o consenso universal das coisas, a harmonia que rege o mundo (Ib., VI, 7, a. 1). Quanto ao terceiro primado, é claro que ele pertence a 298
todos os entes, porque todos amam o seu ser e o desejam conservar (Ib., VI, 10, a. 1). Em cada um destes o primado da relação do ser consigo mesmo precede a sua relação com o outro: podemos exercer uma força sobre o outro ser só na medida em que a exercemos sobre nós, como podemos conhecer e amar o outro ser na medida em que nos conhecemos e amamos a nós mesmos (Ib., H, 5, 1 a. 13). Mas todas as coisas que conhecemos são finitas e limitamos e, como talis, compostas não só de ser mas também de não-ser (Ib., IV, 3, a. 1). Assim como existem três primados do ser, assim existem três primados do não-ser: a impotência, a incipiência e o ódio. São estes três primados que constituem a essência das coisas finitas, que portanto não podem tudo o que é possível, não conhecem tudo o que é cognoscível e não amam apenas, mas odeiam também: e precisamente por isso são finitas (lb., VI, proem.). Mas a finidade das coisas compostas de ser e não-ser pressupõem a infinidade de um ser que exclua o não-ser e seja puro ser. Aquilo que se restringe a uma essência limitada e determinada e exclui todos os outros seres dos seus limites, não é o ser primo, mas antes depende do ser primo. Primo é o ser que exclui toda a limitação, que é ilimitado e infinito e não conhece nem princípio nem fim. Tal ser é Deus Ub., VI, 2, a. 1). A Deus não se chega apenas através das considerações demonstrativas deste género. Ele é também imediatamente testemunhado por aquele conhe299 cimento i-nato e oculto ~a el abdita) pelo qual cada ente sabe ser e ama o seu ser e o seu autor. Se Deus não é de per si conhecido pelo conhecimento adquirido, é todavia sempre conhecido e amado em virtude do conhecimento inato. O conhecimento adquirido só pode chegar a Deus através do raciocínio, partindo das coisas sensíveis, mas o conhecimento inato testemunha-o imediatamente e para lá de toda a dúvida (Theo., 1, 2, a. 1). Testemunha-o outrossim na sua essência, dado que, assim =o revela os três primados das coisas, também revela os três primados de Deus. Como qualquer outro ente, Deus é potência, sabedoria e amor (Met., 11, a. 4). Mas nele a potência não impláca nenhuma impotência, a sabedoría nenhuma incipiência e o arnor nenhum desvio do bem. Os três primados são nele infinitos como infinito é o ser pelo qual é constituído (Ib., VI, ptroem.). Nem em Deus nem n&,,, criaturas eles permanecem separados e diversos nem tãopouco se confundem ou se unificam. Can"neUa admite em relação a eles aquela distinção formal de que falava Duns Escoto (§ 305) que não é distinção de razão nem distinção real, exclui a pluralidade numérica e garante a unidade do ser (Theol., 1, 3, a. 12). Deus cria as coisas do nada o o nada passa a constituir as coisas não por obra efectiva de Deus, mas em virtude da autor@zação de Deus. Criando o homem, Deus não lhe nega positivamente o ser da pedra ou do burro, mas permite ou consente que ele não seja contemporâneamente pedra -burro e assim permite de certo modo que o não 300
ser o constítua. Na sua sabedoria Deus serve-se do próprio não-ser como do ser porque sujeita a limitação própria das criaturas à sua ordenada disposição no universo (Met., VI, 3, a. 2). Através dos três primados, Deus cria o mundo o também o sustém e governa. Deles, de facto, derivam três grandes influxos, que são a necessidade, o facto e a harmonia. A necessidade deriva da absoluta potênc@a de Deus, e devido a ela nenhuma coisa pode ser ou agir diversamente do modo como o prescreive a sua natureza. O facto deriva da absoluta sabedoria de Deus o por isso as coisas tendem, cada tuna, ao seu próprio fim e todas ao fim supremo (Met., IX, 1, Theol., 1, 17, a. 1). O oposto da necessidade é a contingência, o oposto do facto é o acaso, o oposto da harmonia é a fortuna; e estes opostos derivam não já do ser, mas do não-ser que compõe as coisas finitas (Met., IX, 1). § 387. CAMPANELLA: A POLITICA RELIGIOSA A filosofia especulativa de Campanela, seja física, seja já metafísica, não é fim para si mesma. Tem como escopo apenas constituir o fundamento teorético de uma reforma refigbsa que deveiria reuffir (todo o género humano numa única comunidade. Campanella é, por temperan-wnto e vocação, um profeta religioso, para o qual a filosofia vale como instrumento de renovação da consciência relil&isa do homem. -Não se limba apenas a sonhar 301 o àdcal desta renovação nem o restringe ao mundo dos doutos, como se fizera no Renascimento, mas Pretende PrOmovê-40 pràticamente e por toda a parte, reencontrando e indicando o órgão eficaz da sua,realização imediata. Quando, na Cidade do sol, delineou o ideal! Perfeito com que a sua mente sonhava, empenhou-se em traçar as vias que podiam, conduzir à realização desse ideal e não hesitou perante os compromissos inev@táveis. Recluso no cárcere do governo espanhol e condenado a prisão perpétua, apontou precisamente a monarquia de Espanha como o braço secular que devíia levar o governo à unificação religiosa. E então d@rigiu-se aos príncipes de Itália para os convidar a favorecer aquola monarquia (Discurso aos príncipes de Itália, 1606-07): a sua exortação apoiama-se no princípio de que "é mister ligar-se ao partido que seja melhor, ou que pelo menos o fado nos apresenta" (ed. Ancona, p. 46). Saído da prisão e definitivamente desiludido dias esperanças que pusera em Espanha, dirigiu-se à França e esperou então da monarquia francesa aquela realização da unidade religiosa dos homens que era o primeiro dos seus pensamentos. Campanella cons@derava possível que a sua reforma religiosa se tornasse realidade e até estava seguro do próximo advento dela. Aceitava de antemão os compromissos que aquela reallização teria custado no tocante ao Weal descrito na Cidade do Sol, preciisamente porque se considerava mais legislador e 1 feta do que filósofo. Mas se, no;terreno político,isto é, no que res~ à escolha do braço secular que devia traduzir em rea302 lidade a reforma réligiosa, se dispôs a transigir, não parece que tenha sido fruto de transigência a aceitação e a defesa do catolicismo, a que permaneceu fiel desde o princípio até ao fim da sua actividade. Com efeito, viu sempre no catolicismo, que sempre defendeu, a religião autêntica, a religião natural, a única religiosidade conforme à razão e por @sso comum a todos os povos e
universal. E, na realidade, neste ponto, a transigência não teria sido possível, se o intento de Campanella fosse o de conduzir os homens à religião aiutênifica e assim os reunir numa uni,~ comunidade. Aceitaruma forma de religião imperfoita, ou mesmo parcialmente falaz, teria sido uma traição fatal à sua missão de profeta. Esta missão impunha-lhe, todavia, defender e preconizar uma reforma do catolicismo: uma reforma pela qual o catolicismo deveria ser reconduzido à sua natureza, assumindo-se a si mesmo como norma da sua própria renovação. E assim. Campanella se vale do c,onceito axial do Renascimento, o retorno aos princípios, para profetizar por um lado o retorno de todos os povos da terra, quaisquer que sejam as suas crenças, ao catolic@smo e, por outro, o retorno do próprio catolicismo à ;sua verdadeira natureza. O fundamento deste duplo retorno é a religião natural. A prim&ra formulação do conceito de religião natural está na Cidade do Sol. Está aqui delineada a estrutura de um estado idealmente perfeito, governado por um príncipe sacerdote, chamado Sol ou Metafisico, assistido portrês príncipes colaterais, Pon, Sin e Mor, isto é Potessado, Sapiência e Amor, 303 que são os três primados da metafísica campanelliana. As características deste estado, no qual tudo é mmmosamente ordenado e predisposto por homens de ciência, são a comunhão dosbens e das mulheres (segundo o modelo de Platão) e a relligião na~. Os habitantes do estado ~ vivem exclusivamente segundo a razão, isto é , segundo os dita@nos da m&afísiica de Camp~: a sua refi, gião identifica-se com esita metafísica e dlistingue-se do crisfiariwno peda ausência& da @revelação, e, por conseguinte, da íntegração sobrenaturaf1 que o ensino da razão requer e ex@ge. "Aqui, adm-iras-te de que adorem Deus em Trindade, dizendo que é suma Potência, da qual procede a Suma Sapiência, e de ambas, o Sumo Amor. Mas não conhecem as pessoas distintas * não as nomeiam como nós, porque não conheceram * revelaÇão, mas sabem que em Deus há proowsão * relação de si para: si;_ e assim todas as coisas se cccnpõem de potênc@a, sapiênc@a e arax, eNuanto têm ser; de impotência, incipiência e desamor, enquanto dependem do não-wm (edição Bobbio, p. 106). Que a pura pesquisa filosófica conduzia ao reconhecimento da Trindade, era pensan~o bastante anfigo, que se encontra, por exemplo, em Abelardo (§ 209). Em CampancHa, este pensam~ leva a concluir que o crisfianismo "nada acrescenta à lei naturà além dos sacramentos" e que por isso "a verdadeira lei é a cristã e que, eliminados todos os abusos, será senhora do mundo" (Ib., p. 108). A esta conclusão se manteve fiel ao longo de toda a série das obras posteriores. Defendendo nas Questioni sull'ottima republica (ed. D'Ancona, p. 289) 304 os conceitos da Cidade do Sol, afirma que pretendeu nesta obra apresentar uma repáblica, não fundada por Deus trnas pda filosofia e pela razão humana, para demonstrar que a verdade do Evan- ~ é conforme à Natureza. A ~ião natural é po~o fundada sobre a razão e descoberta pela ~fia. Mas é uma refigião paria os doutos, que não seria capaz de promoveir a unidade espíritual do género humano. É ~bém imperfeita, porque carece de @ntegração sobrenatural e, por
conseguinte, do testemunhodas profecias, dos milagres, das graças que dão força difus@va e ~r @naba1áveI à religião revelada. A religião natural poderia bastar no CampaneU a filósofo, mas nunca poderia satisLzer o Carn~ pr~a. E este, na rea& ,, não v@u na religião natural senão a norma que permite pÔr à prova o valor das re@ligiões históricas, escolher entre elas a verdadeira, justificá-la na sua verdade e reconduzi4a ao seu verdadeiro princípio, eliminando os abusos. Porisso Campanella afirma que a re¥,ão natural, que é a indita ou inata, é sempre verdadeira, enquanto que a adquirfida ou adicionadia (addita) é imperfeita o pode por vezes ser falsa (Met., XVI, 3, a.1); mas considera ser impossível que a religião inata possa existir sem a adquirida ou adicionada. A religião inata é própria de todos os seres que, tendo a sua origem em Deus, tendem a retornar a ele, a religião adquirida é própria só dos homens e é por isso a única que implica mérito c valor moral (Met., XVI, 2. a. 1; Theol., VHI, Ia. 2). Como uma norma não vale senão em referência àquilo de que é norma, assim a reEgião indita só vale em 305 relação com a religião addita, de que constitui o fundamento. Camipanella devia por isso mostrar que a religião indita era o fundamento e a norma de todas as ,religiões pos@Úvas para promover o retomo do género humano, dividádo em seitas relágiosas diversas, à única religião verdadeira; mas ao mesmo tempo devia reconhecer esta religião verdadeixa como sendo uma das próprias religiões positivas e, precisamente, aquela que melhor se adequasse à religião natural. Tal foi de facto, a tarefa de que se incumbiu no Atheismus triumphatus o no Quod reminiscentur. Na primeira obra, quetraz o subtítulo Recognitio religionis universalis, pretende de facto demonstrar que a roligião universal é a racional "infundlida em nós por Deus, comprovada pelos filósofos e pelas nações, reveladas pelos profetas e em seguida tornada pública sobrenaturalmente por Deus e ilustrada ,pelas graças, pelos verdadeiros milagres, pela profecia e pela santidade" (Pref.). Esta religião uni,versal funda-se na razão, à qual julgam conformar-se todos os povos da terra e à qual se conformam também todos os seres inferiores da natureza, seja sob uma forma expressiva seja de uma maneira implícita (Ath., 3, p. 23). Porque, entre todas as religiões positivas, cumpre escolher a que não só não repugna à natureza, comotambém lhe agrada e a aperfeiçoa (Ib., 10, P. 105); e tal só a religião cristá. "Toda a lei (listo é, toda a religião) é razão ou regra de razão; portanto, toda a lei é participe ou esplendor da primeira Razão, da Sapiência de Deus, que é o Salvador, uma vez que a Razão é a própria Sabedoria que governa e salva todos os entes segundo o 306 modo próprio de cada qluad" (Ib., 10, p. 107). Aquii, Campianella retoma o antigo conceiso, da patrístícia que identifica Cristo com a razão unwersal, e daí extrai o argumento para identificar a religião natural com o cristianismo. As leis poisitivas são especificações, explicações e aplicações da mesma prima lei natural, A variedade destas não é irracional e não afliena de Deus os povos (Ib., p. 109). Basta, portanto, queos povos tomem consciência do único verdadeiro fundamento da sua religião, qualquer que ela seja, para, que se convertam ao cristianismo
e ponham ~o à diiverWade das rekgiõ-os e dois estados (lb., p. 1051). É o Quod reminiscentur um, apelo a todos os povos da terra para que se decidam a tal retorno. O título é tomado do Salmo 22: quod reminiscentur et convertentur ad Dominum universi fines terrae e inspira-se no princípio fundamental de que todas as coisas retornam ao seu principio. Campanella declara iminente o retorno de todos os povos da terra ao seu princípio, isto é, à reIiigião autêntica, ao crisuiani-smo genuíno do catolicismo. Por isso se dirige aos cristãos e aos não cristãos, nofificando-lhes os signos astrológicos e as profeciais que indicam o iminente retorno, para os convidar a agix em confoTmidade. E em primeiro lugar dirige-se ao sumo Pontífice e a todos os -cristãos. "Eu peço-vos pelo reino dos santos, pela redenção de Cristo, pela esperança da glória futura, a fim de que nos recordemos da nossa origem; e assim faremos com que sodas as nações se convertam a Deus" (Quod rm., 1, 4. a. 1). 307 E úukca os Temédios prático-políticos, que devem provocar ou favorecer este retomo e eliminar, pela reforma dos costumes e práticas do catolicismo, todas as possibilidades de abuso e reconduzu-lo à sua verdadeira natureza. É assim partidário de uma reforma moral do catolicismo, que, deixando inãterados os dogmas e a estrutura hierárquica da Igreja, a restitui à ordem e à s~,*cidade do período patríshico e, por consequência, à sua capacidade de proselitísmo e de difusão unáversal. Assim Campanella se inscr@a nos planos grandiosos da @greja da Chntra-Refornia e acabava -por justificar e defender arenovada força de expansão da própria Igreja. Mas com tudo isto enganar-nos-íamos se supuséssemos a posição de Carapanella caracteriza @, por um conformisno ortodoxo. O plano profético de Campanella vk@a de^ a coincidir com o plano e as exigências da ágreja da Contra-Reforma mas o móbü e a justificação deste plano não eram nem podiam ser os da Igreja. Campanella aceàta o catolicismo porque, o,identifica com a religião natural: aceita a revek-4o porque, sem as pr~as, e os milagres da religião, eJe não possui força persuasiva nem capacidade de difusão universaL O último fundamento da posição de Campanella é filosófico e naturalistico, não religioso. Ele é profeta de uma rel@gião quetem as suas raizes na natureza e na razão crítica; no entanto, se aceita o catolicismo, visa, para além dele, a um fundamento natural, e racional, não tradi<áona,1 nem revelado, que só a tr~ e a Tevedação podem justifikar a seus ~s. 308 NOTA BIBLIOGRMCA § 375. Obras de Reuchlin: Capnion sive de verbo mirifico, Basileéa, 1494; CoMniJa, 1532; Lião, 1552; De arte cabalistica, Spiro, 1494; Tubinga, 1514; Hagenau, 1517. GEIGER J. R., Sein Leben, und 8cine Werke, Leipzig, 1871.
Obras de Agripa: De oculta phiZosophia, Colónia, 1510, 1531-33; De incertitudine et vanitate s~tiarum. Colónia, 1527, 1534; Paris, 1529; obras completas, Lião, 1550, 1600. Obras de Paraoelso: Opecra, Basileira, 1589-91; Estraburgo, 1616-18; ~., 1658; Leipzig, 1903.STRUNTz, T. P., Leipzig, 1903; STILLMANN, T. P.,, 1922; 1. BETsKART, T. P., Zurdque, 1947, K. GOLDAMMER, P., Tubdnga, 1952. Obras de Fraciasboro: De sympathia et antipathia rerum, Lião, 1545; Opera omnia, Veneza, 1555, 1574; Lião, 1591. LASSWITZ; Gesch. der Atomistik, I, Mamburgo, 1890, p. 306 segs.; CASsiRER, Gesch. des Erkenntnisproblems, 1, Berlim, 1906, p. 208 segs.; PAULO Rossi, in "Riv. critica di storia della fil.", 1954. Obras de Cardano: ed. -completa, Lião, 1663, 10 vol. A autobiografia De vita propria foi traduzida paira italiano por Mantovani e foi dada à estampa várias vezes. Obra,9 de Della Porta: Magia naturalis, Nápoles, 1558; 2.1 -ed., 1589; De humana physiognomia, Vico Equense, 1586; De refractione, Nápoles, 1593.-FioRENTINo, Giovani Battista della Porta, in Studi e ritratti della rinwcenza, Bari, 1911, p. 235 segs. Obras de Helmont: ed. completa de Lião, 1667. Obras de Fludd: Philosophia mosaica, Gudae, 1638; ed. completa, 1638. § 376. Sobre a vida da Telésio: BARTELLI, Note biografiche, Cosença, 1906. Ed., De rerum natura: Nápoles, 1586, 1587; Génebra, 1588; Colónia, 1646; 309 nova ed. ao cuidado de Spampanato, vol. 1, Modena, 1910, vol. II, GénGva, 1913; vol. 111, ~a, 1923. § 377. FioRENTINO, B. T., ossia studi storioi su Pi~ della natura nel rinascimento italiano; 2 vol,, Florença, 1872-74; GENTILE; B. T., in Il ~stero italiano nel rinascimento, Florença, 1940, p. 175 segs.; ABBAGNANO, Telésio, Milão, 1941, com bibliografia. § 379. Obras de Bruno: Opere italiane; ed. Wagner, 2 vol., Leipzig, 1829; edição de Lagarde, Gottingen, vol. 1, 1888; vol. 11, 1889; ied. Gentil-e, vol. I, Dia@oghi metafisici, Bari, 1907; 2.a ed., 1925; vol. II, Dialoghi morali, Bari, 1908; 2.1 ed., 1927; vol. IIII, Candelaio, Bari, 1907-09; 2." ed., 1923, Opere látine: ed. n;acional, parte@s 1 e II ao cuidado de Fiorentino, 1880-86; partes 111 e IV ao cuidado -de Tocco e Vitelli, Florença, 1889-91. No texto é citada a 2., ed. GentIle das obras italianas e a ed. nacional das obras latinas. Sobre a vida de Bruno: SPAMPANATO, V#a di G. B., 2 vol, Messina, 1921. Um Bruno profeta religioso é apresentado por CORSANO, 11 pensiero di ~dano Bruno nel suo svolgimento storico, Florença, 1940. O ensaio de OLSCHKi, Giordano Bruno, Bar!, 1927 é uma áspera crítica ao pensamento de Bruno reportado, nas suas características fun~entais, às deficiências psiquicas e por isso reduzido a notações puramente psicológicas. A exposição de Guzzo, 1 dialóghi del Bruno, Turim, 1932, é uma subentendida polémica, com ~hki; L. FIRPO, II proceso di G. B., Nãpoles, 1949; D. WALEY SINGER, G. B., His Life and Thought, Nova lorque, 1950. Sobre o conceito da verdade como filia te~oris (desenvolvido no entantode modo
unilateral): GENTILE, G. B. e il pensiero del rinascimento, Florença, 1920. § 380. Que a exposição bruniana das doutrinas de Copérnico é confusa e incompreensível por defeito de informação científica notou-o Schiapparelii. 310 § 381. Sobre a obras latinas: TOCeo; Le opere latine di G. B. esposte e confrontate con le italiane, Florença, 1889; LASSWITZ; Gesch. der Atomistik, p. 395; CASSIRER, Gesch. des Erkenntnisproblems, I, p. 368 segs. § 382. Sobre as doutrinas gnoseológicas e morais: D1LTREY; Analisi dell'uomo, trad. itali., p. 66 segs.; CASSIRER; Individuo e cosmo, passim. § 383. Sobre a vida de Campanella: AMABILE, Fra T. C., Ia sua congiura, e suoi processi e Ia sua pazzia, 3 vols. Nipoles, 1882; Id... Fra T:,C. nel Castelli di Napolí, in Roma ed in Parigi, 2 vdl., Nápoles, 1887. Sobre os escritos: FiRpo, Bibliografia degli seritti di T. C., Turim, 1940; ID., Ricerche campanelliane, Florença, 1947. Edições: Philosophia sensibus demonstrata, Nápoles, 1591; Compendium da rerum natura, Francoforte, 1617; Del senso delle cose e della magia, Franeoforte, 1620; Paris, 1636; Paris, 1637 (todas ra trad. lat.); @ed. do texto italiano ao cuidado de Bruers, Bari, 1925; Philosophia realis, Francoforte, 1623; Paris, 1637; Epilogo magno (texto ital.), ao cuidado de Ottaviano, Roma, 1939; Città del sole (texto itaL e lat.), ao cuidado de Bobbio, Turini, 1941; Astrologicorum libri VII, Lião, 1629-30; Francoforte, 1630, Atheismus triumphatus, Roma, 1631; Paris, 1636; De gentilismo non retinendo, De praedestinatione, em vol. com o escrito precedente; Philosophia rationalis, Paris, 1638; Poetica (texto itali. e lat.), ao cuidado de Firpo, Roma, 1944; Metaphysica, Paris, 1638;Quod reminiscentur (as primeiras duais das quatro partes), ao cuidado de Amerio, Pádua, 1939; TheoZogia, ao cuidado de Amerlo, livro 1, Milão, 1936, livros XXVIIXXVIH, Roma, 1955: Discorso sui paesi bassi, Lião, 1617, 1626 (texto lat.); texto it&. ao cuidado de Firpo, Turim, 1945; Monarchia di Spagna, Amsterdão, 1640, 1641, 153, texto ital. In Opere di T. C., ao cuidado de D'Ancona, Turim, 1854, vol. II, p. 77 s@egs.; Aforismi politici, ao cuidado de 311 Firpo, Turim, 1941; Monarchia del messia, Iesia, 1633 ,(t~ lat.); Discorso della libertà e della felice suggest"e dello stato ecelesiastico, Iesi, 1633; Discorsi aí principi d'Italia, ed. Firpo, Turim, 1945; Antivenefi, ao cuidado de Firpo, Florença, 1945; Apoloffla pro Galileo, Franeoforte, 1622; Poesie, ed. Gentile, ed. Vindguerra, Bari, 1938; Lettere, ao cuidado de Spampanato, Bari, 1927; Syntagma di libris propriis, ed. Spampanato, Florença, 1937. § 384. Sobre as doutrinas filosóficas: FELICI; Le dotrine filosofico-religioso di T. Campanella, Lanciano, 1895; CORSANO, T. Campanella, Milão, 1944; 2., ed. Bari, 1961. § 385. A interpretação idealística do princípio da autoconsciência foi apresentada por GENTILE, Studi sul rinascimento, Florença, 1936, p. 189 segs.; ID:, Il pensiero italiano del r@nwcimento, Florença, 1940, p. 357 segs.; e é validada como único critério hist6rico-critico por DENTICE di ACCADIA, T. C., Florença, 1921. § 386. Sobre a metafísica especialmente: BLANCHET, Campanella. Paris, 1920, parte IV.
§ 387. AmABiLE, na citada biografia de Campanella, sustenta a tese de que o filósofo Intimamente convicto da verdade da religião natural, privada de toda a estrutura revelada, simulou aderi-r ao catolicismo nunia atitude oportunista. Esta tese apresenta-se atenuada nas monografias citadas de BLANCHET e de DENTICE, segundo os quais a adesão de Campanella ao catolícismo seria fruto de uma transigência considerada necessária pelo filósofo, para conseguir a realização prática de sua reforma filosófica, embora no seu Intimo permaneicesse fiel ao racionalismo. T~ aaiãloga é sustentada por TREVES, La filosolia politica di T. C., Bari, 1930, ao passo que BOBBio, no prefácio à sua ed. da Città del sole (p. 42), retonia, na sua crueza a tese de AmABiLE. A. CORSANO, T. Campanella, Milão, 1944, 312 inclína-se ainda@ embora com mais equilíbrio, para a tese de AmABILE. Em contrapartida. R. AMERIO, em numerosos artigos, entre os quais são particularmente notáveis Di alcune aporie dell'interpretazione deisUca campanelliana al lume degli inediti, in "Riv. di fil. neoaool.", 1934, p. 605 segs., sus@tentou a perfeita ortodoxia de Campanella, negando quer a tese da simulação, quer a da transigência oportunística. r@, difícil impugnar as conclusões de AMERIO, fundadas em textos inéditos de Theologia, pelo que respeita à adesão convicta de Campanella ao ca!tolicismo, que ele reconhecia indubitàvelmente como a religião natural. A não-ortodoxia de Campanella consiste apenas (como resulta no t-e>.@to) do móbil daquela adwão que não é a fé na revelação mas o naturalismo metafisico. Este móbjl exclui todavia qualquer simulação ou transigência oportunística e implica a íntima unidade da posição filGsófi@ca de CampaneUa. 313 ND1CE QUARTA PARTE A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO I-RENASCIMENTO E HUM-ANISMO
...
9
§ 332. O problenia histórico ... ... ... 9 § 333. O Humanismo ... ... ... ... ... 12 § 334. O Renascimento ... ... 21 §335. @@oi@gens d& -* 25, §336. Dante . .. ... ... ... ... ... ... 31 §337. Petrarca ... ... ... ... ... ... 34 §338- Humanistas italianos: Salutati, Bruni, Raimondi, nlelfo ... ... 38 §.339. Lourenço Valla ... ... ... ... 43 §340. Humanistas, italianos: Fazio, Man,etti, Alberti, Palmieri, Sacchi, Nizolio .. . ... ... ... ... ... 47 §341. Bovilo ... ... ... ... ... ... ... 50 §342. Humanistas franceses, espanhóis e aJemães ... ... ... ... ... ... 54 §343. Montaigne ... ... ... ... ... 57 §344. Charron, Sanchez, Lipsio ... 66
...
...
Nota bibliográfica
... ... ... ...
71
315 II - RENASCIMEMTO E POLITICA
...
77
§ 345. Maquiavel ... ... ... ... ... 77 § 346. Guicoiardini, Botero ... ... ... 86 § 347. T. Moro, G. Bodin . .. --- ... ... 92 § 348. O Jusnaturalismo ... ... ... ... 99 Nota bibliográfica
... ... ... ...
ios
UI - RENASCIMENTO E PLATONISMO
... 111
§ 349. Nícolau de Cusa a douta ignorância ... ... ... ... ... ... ... 111 § 350. Nicolau de Cusa: o mundo da conjectura ... ... ... ... ... ... 116 § 351. Nicolau de Cusa: a doutxIna do homem ... ... ... ... ... ... 121 § 352. Nicollau de Cusa: a nova cosmologia ... ... ... ... ... ... ... 124 § 353. O Platonismo italiano ... ... ... 127 § 354. Ficino: a alma, cópula do mundo 131 § 355. Ficino: a doutrina doamor ... ... 136 316 § 356. Leão Hebreu ... ... ... ... ... 139 § 357. Pico de Mirândola: a paz regeneradora ... ... ... ... ... ... 140 § 358. Pico de Mirãndola: Cabala, Magia e Astrologia ... ... ... ...
... ... ... ... ... 145 § 359. Francisco Patrizzi 149
Nota bibliográfica
... ... ... ...
151
IV-RENASCIMENTO E ARISTOTELISMO
155
§ 360. O primeiro aristotelismo ... ... 155 §361. Averroistas e Alexandristas ... 158 §362. Pomponazzi: a ordem natural do mundo ... ... ... ... ... ... 164 §363. Pomponazzi: a naturalidade da aãma ... ... ... ... ... ... ... 169 §.364. Pomponazzi: liberdade e necessídade ... ... ... ... ... ... ... 172 §365. Outros aristotélicos ... ... ... ... 175 Nota bibliográf . ... ... ... ...
181
317 V - RENASCIMENTO E
REFORMA
... ...
185
§ 366. O retorno às origens cristãs ... 185 § 367. Erasmo ... ... ... ... ... ... 187 § 368. Lutero ... ... ... ... ... ... 196 § 369. Zwingli ... ... ... ... ... ... 204 § 370. Calvino ... ... ... ... ... ... 207 § 371. Teólogos e místicos da reforma ... 211 § 372. O racionãl@ismo religioso ... ... 220 § 373. A contra-reforma ... ... ... ... 223 Nota bibliográfica
... ... ... ...
230
VI-RENASCIMENTO E NATURALISMO ...
235
§ 374. Magia, Fil~fia, natura11; Ciéncia, 235 § 375. A Magia ... ... ... ... ... ... 238 § 376. A Filosofia natural; TeIésio ... 248 § 377. Telésio: os princípios gerais da natureza
... ... ... ... ... ...
251
318 §378. Teléoio: o homem como natureza e como alma imortal ... ... ... 254 §379. Bruno: o amor da vida ... ... 260 §380. Bruno: a relígião da natureza ... 266 §381. A teoria do mínimo e da mónada 271 §382. Bruno: o infinito e o homem ... 277 §383. Campan&,Ia: Vida e Escritos ... 281 §384. Campanella: Física e Magia ... 288 §385. Campanella: o conhecimento de si 293 §386. C~anella: a metafísica ... ... 298 §387. Campanella: a política religiosa 301 Nota bibliográfica
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319 Conlposto e impTe'3s0 para a EDITORIAL PRESENÇA na Tipografia Nunes Porto
HistÓrIa da Filosofia Volume sete Nicola Abbagnano DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS: Ângelo Miguel Abrantes (segunda-feira, 30 de Dezembro de 2002) HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME VII TRADUÇÃO DE: ANTóNIO RAMOS ROSA ANTóNIO BORGES COELHO CAPA DE: J. C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto EDITORIAL PRESENÇA * Lisboa 1970 TITULO ORiGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa vi
LEIBNIZ § 436. LEIBNIZ: VIDA E ESCRITOS Se a filosofia de Espinosa é uma doutrina da ordem necessária do mundo, a filosofia de Leibniz pode ser descrita como sendo uma doutrina da ordem livre do mundo. A diferença entre as duas filosofias tem o seu fundamento na diferença entre dois conceitos de razão: a razão é para Espinosa a faculdade que estabelece ou reconhece relações necessárias, ao passo que é para Leibniz a simples possibilidade de estabelecer relações. Gotfried Wilhelm Leibniz nasceu a 21 de Junho de 1646 em Leibniz. Foi um garoto precoce: aprendeu sozinho o latim e muito cedo conseguiu dar soluções pessoais aos problemas que se debatiam nas escolas. Estudou jurisprudência em Leipzig e em Altdorf (perto de Nuremberga), onde se licenciou em 1666. Os seus primeiros escritos são precisamente teses para a obtenção de títulos académicos: uma discussão intitulada De principio individui, vários escritos jurídicos e a Ars combnatoria em que se anuncia já a sua ideia de um "alfabeto dos pensamentos humanos" e de uma lógica organizada matematicamente. Em Nuremberga, Leibniz trava conhecimento com o barão de Boineburgo, um dos mais eminentes homens políticos alemães da época, que o levou a Francoforte e o apresentou ao Eleitor de Mogúncia. Leibniz escreve então o Novo nwthodus discendãe docendaeque jurisprudentiae (1667), que é o mais importante dos seus ensaios jurídicos. Em Mogúncia obtém o cargo de conselheiro do Eleitor e desempenha vários cargos científicos e políticos. Começava assim a actividade política, que ocupou grande parte, da sua vida e que, embora sendo inspirada por circunstâncias ocasionais e pelo interesse das pessoas que se valeram dele, obedece no seu conjunto a um grandioso desígnio: o de uma organização política universal ao serviço da civilizaçã o e da ciência. Entretanto, a sua actividade filosófica incide sobre problemas de ordem teológica, lógica e sobretudo física. Em 1671 compõe a Hypothesis physica nova. Inicia também neste período a correspondência com os maiores cientistas do tempo, na qual se encontra consignada boa parte da sua actividade de escritor. Em 1762, Leibniz foi enviado a Paris com uma missão diplomática destinada a dissuadir Luís XIV da sua projectada invasão da Holanda inspirando-lhe o desejo de conquistar o Egipto. O projecto gorou-se e foi declarada guerra à Holanda. Leibniz foi autorizado a permanecer em Paris, onde estreitou relações com os homens mais importantes da época. Aí permaneceu quatro anos que foram decisivos para a sua formação científica. Em França dominava então o cartesianismo, mas Leibniz interessou-se sobretudo pelas descobertas matemáticas e físicas. Em 1676, descobriu o cálculo integral que no entanto só tornou público em 1684 nos "Acta cruditorum". O cálculo integral havia sido descoberto por Newton uma dezena de anos antes; mas Leibniz fez a sua descoberta independentemente e formulou-a de modo a torná-la mais fecunda, possibilitando uma mais rápida e cómoda aplicação. Em 1676, regressou à Alemanha, onde aceitou o
cargo de bibliotecário junto do duque de Hannover, João Federico de BraunchweigLuneburg. Na viagem de Paris a Hannover, travou conhecimento com Espinosa em Haia e com ele teve longas conversações. Espinosa havia então já terminado a sua Ética e por isso, provavelmente, nada lhe trouxe o conhecimento de Leibniz. Mas Leibniz viu-se, neste encontro com ele, perante uma doutrina que era directa e simètricamente oposta à sua. E esta doutrina tornou-se, nos seus escritos filosóficos e especialmente na Teodiceia, o seu ponto de referência polémico constante. Leibniz acabou por ver nela a expressão típica do ateísmo, do naturalismo e especialmente daquela necessidade cega que nega a liberdade humana e a providência divina. Leibniz permaneceu durante a vida inteira ao serviço dos Duques de Hannover. Primeiro bibliotecário, depois historiógrafo da casa, foi incumbido pelos príncipes de Hannover dos mais variados encargos e foi o defensor teórico da sua política. Numerosos escritos políticos foram com esse intuito compostos por ele. A sua obra maior neste campo é a pesquisa histórica que empreendeu sobre as origens da casa de Braunschweig, que pretendia descender do próprio tronco dos Estc.,di. A fim de demonstrar com documentos a exactidão desta genealogia, Leibniz viajou durante três anos (1687-90) pela Alemanha e Itália para consultar arquivos e descobrir documentos; mas essa viagem proporcionou-lhe também o ensejo de abordar cientistas e homens vários e de nutrir a sua insaciável curiosidade científica. Mais conforme aos seus ideais foi o projecto, em que trabalhou longamente, de reunir a Igreja católica à protestante. Também este projecto lhe foi sugerido pelo interesse dos Duques de Hannover que, sendo católicos, governavam no entanto um país protestante. Leibniz manteve numerosa correspondência com muitos homens da época, e especialmente com Bossuet, que defendia o ponto de vista católico. O projecto falhou, mas as tentativas feitas por Leibniz nesta ocasião revelavam o aspecto fundamental do seu pensamento, que é o de tender a uma ordem universal na qual encontrem lugar e se harmonizem espontâneamente os mais diversos pontos de vista. Esta mesma tendência se revela nas suas tentativas de organizar na Europa uma espécie de 10 República das ciências em que participassem, através das academias nacionais, os homens de ciência de toda a Europa. Em 1700, fundou em Berlim, segundo o modelo da sociedade de Paris e de Londres, uma sociedade das ciências que se tornou depois a Academia Prussiana. Em seguida, tendo sabido, através de padres missionários e especialmente Grimaldi, do grande interesse que o imperador chinês mostrava pelas ciências, bem como das tentativas realizadas por cientistas chineses, pensou também estabelecer contactos culturais com a China. Quando Pedro o Grande empreendeu a renovação cultural da Rússia, Leibniz tornou-se seu conselheiro e fez projectos para as instituições que deviam levar a Rússia a participar daquela organização universal das ciências que Leibniz patrocinava. A pesquisa científica e filosófica constituía a actividade privada de Leibniz. Ela está quase toda consignada na sua vastíssima correspondência e em breves ensaios publicados nas revistas do tempo. Em 1684 publicava nos "Acta cruditorum" o Nova methodus pro maximis et minimis em que tornava conhecida a sua descoberta do cálculo integral. Entretanto perseguia o seu ideal de uma ciência que contivesse os princípios e os fundamentos de todas as outras e determinasse os caracteres fundamentais comuns a todas as ciências e as regras da combinação delas. Os resultados que Leibniz alcançou restas tentativas encontram-se em vários manuscritos, tais como
Mathesis universalis, Iiútia mathenwtica, etc. Quase todos os escritos de Leibniz têm carácter circunstancial. Em 1681 compôs o Discurso de metafísica, um breve ensaio, que todavia é um documento importante do seu pensamento. Seguiram-se-lhe o Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias (1695); os Princípios da natureza e da graça fundados na razão (1714); a Monadologia (1714), dedicada ao Príncipe Eugénio de Sabóia, que ele conhecera em Viena; os Novos ensaios sobre o intelecto humano (1705), que é uma crítica da obra de Locke. O único livro publicado (em 1710) por Leibniz foi o Ensaio de teodiceia que teve o seu ponto de partida nas críticas expostas por Bayle no artigo Rorarius do seu Dicionário histórico e crítico da filosofia. Leibniz nunca escreveu uma exposição completa e sistemática do seu pensamento. Os seus últimos anos foram os mais infelizes. Acumulara uma quantidade de cargos que lhe valiam lautas prebendas mas o distraíam do trabalho de historiógrafo a que o príncipe gostaria de o ver dedicar-se. Quando morreram as suas protectoras (a Rainha Sofia Carlota e sua mãe Sofia), impediram-no de sair de Hannover e procuraram humilhá-lo de todos os modos. Quando morreu, a 14 de Novembro de 1716, era já uma figura esquecida. E no entanto conhece-se o local onde foi sepultado, Embora Leibniz tenha sido um filósofo de profissão, demonstrou nas múltiplas manifestações da sua actividade um espírito sistemático e universalista, que é de natureza genuinamente filosófica. 12 Qualquer que fosse o problema particular considerado, logo ele o reconduzia a um princípio geral e reconhecido corno o elemento ou a expressão de um sistema universal. A sua filosofia não é mais do que a tentativa de fundar e justificar a possibilidade de um tal sistema. § 437. LEIBNIZ: A ORDEM CONTINGENTE E A RAZÃO ]PROBLEMÁTICA Todas as manifestações da personalidade de Leibniz, tanto as científicas e filosóficas como as políticas e religiosas, deixam-se reconduzir a um único pensamento central: o de uma ordem, não geometricamente determinada e por isso necessária, mas espontaneamente organizada e portanto livre. A ordem universal que Leibniz quer reconhecer e fazer valer em todos os campos não é necessária (como a que constituía o ideal de Espinosa), mas é susceptível de se organizar e desenvolver-se do melhor modo, segundo uma regra não necessária. E, todavia, é, como a de Espinosa, uma ordem matemática ou geométrica cujo conteúdo Leibniz exprimiu com toda a clareza no Discurso de metafísica (§ 6): "Nada ocorre no mundo que seja absolutamente irregular nem se pode imaginar nada de semelhante. Suponhamos que alguém marque por acaso num mapa uma quantidade de pontos: digo que é possível encontrar uma linha geométrica cuja noção seja constante e uniforme segundo uma regra determinada e tal que passe por todos estes
13 pontos precisamente na ordem em que a mão a traçou. E se alguém traçar um linha contínua, ora recta, ora circular, ora de outra natureza, é possível encontrar uma noção ou regra ou equação comum a todos os pontos desta linha, em virtude da qual as mutações mesmas da linha vêm a ser explicadas... Assim se pode dizer que fosse de que forma Deus tivesse criado o mundo, o mundo seria sempre regular e provido de uma ordem geral". Um conceito de ordem assim formulado exclui toda a rigidez e necessidade e inclui a possibilidade da liberdade, isto é, da escolha entre várias ordens possíveis. Mas escolha não significa arbítrio, segundo Leibniz. Entre as várias ordens possíveis, Deus escolheu a mais perfeita, isto é, a que é ao mesmo tempo a mais simples e a mais rica de fenómenos. A escolha, portanto, é regulada pelo princípio do melhor, isto é, por uma regra moral e finalística. Uma ordem que inclua a possibilidade de uma escolha livre e que seja susceptível de ser determinada pela melhor escolha é a ordem que Leibniz procurou reconhecer e realizar em todos os campos da realidade. As suas tentativas de criar uma organização universal das ciências, como as de conciliar protestantismo e catolicismo, obedecem à exigência de tal ordem. A sua busca de uma ciência geral, de uma espécie de cálculo que servisse para descobrir a verdade em todos os ramos do saber, nasce da exigência de criar um órgão, um instrumento que permita descobrir e estabelecer aquela ordem em todos os campos. A própria realidade física deve revelar tal ordem. "São precisos, diz Leibniz, filó14 sofos naturais que não só introduzam a geometria no campo das ciências físicas (dado que a geometria carece de causas finais) mas tornem também manifesta nas ciências naturais uma organização por assim dizer civil" (Lett. al Thonjasius, in Gerhadt, 1, p. 33). A própria realidade física é uma "grande república" organizada e nascida de um princípio de liberdade. A ordem, a razão do mundo, é liberdade, segundo Leibniz. Deste ponto de vista é evidente que para Leibniz a categoria fundamental para a interpretação Ja realidade não é a necessidade, mas a possibilidade. Tudo o que existe é uma possibilidade que se realizou: e realizou-se não em virtude de uma regra necessária ou sem qualquer regra, mas em virtude de uma regra não necessária e livremente aceite. O que quer dizer que nem tudo o que é possível se realizou ou se realiza e que o mundo dos possíveis é bastante mais vasto do que o mundo do real. Deus podia realizar uma infinidade de mundos possíveis; realizou o melhor através de uma escolha livre, isto é, segundo uma regra que ele próprio se impôs pela sua sabedoria. O que existe não é, portanto, como na doutrina de Espinosa, uma necessária manifestação da essência de Deus, que deriva ,geometricamente de tal essência, mas apenas o produto de uma escolha livre de Deus. Esta escolha, todavia, não é arbitrária mas racional: tem a sua razão no facto de que é a escolha melhor entre todas as possíveis. Toda a filosofia de Leibniz tende a justificar estes princípios fundamentais. Ela é portanto a pri15 meira grande tentativa para definir a razão como
razão problemática e estabelecer como norma da razão, não a necessidade geométrica, mas a obrigação moral. Só no âmbito da razão problemática e da categoria da possibilidade se pode resolver o contraste que a crítica moderna pôs em relevo na obra de Leibniz. Leibniz, por um lado, contrapôs o princípio de razão suficiente como princípio da ordem real livre ao princípio, de identidade que regula a ordem necessária das verdades eternas; por outro lado, efectuou repetidas vezes a tentativa de reconduzir o próprio princípio de razão suficiente ao princípio de identidade. Esta última tentativa parece à primeira vista negar a aspiração fundamental de Leibniz, porquanto visa aparentemente a concluir que a ordem contingente e livre é urna manifestação provisória e incompleta da ordem necessária. Leibniz seria assim, mau grado seu, reconduzido a Espinosa. Mas, na realidade, quando Leibniz diz que nas proposições idênticas o predicado é imediatamente inerente ao sujeito ao passo que nas verdades contingentes esta inferência só pode ser alcançada e demonstrada com uma análise continuada até ao infinito (Couturat, p. 16), ele não pretende dizer outra coisa senão que a análise das proposições contingentes (que concernem à ordem real) pode ser prosseguida até ao infinito sem alcançar jamais a identidade. Como em geometria duas rectas se dizem paralelas quando se encontram no infinito, porque podem ser indefinidamente prolongadas sem nunca se encontrarem, assim as verdades contingentes dizem-se idênticas no infinito, porque 16 podem ser indefinidamente analisadas sem que se possa alguma vez demonstrá-las -idênticas. O endereçamento teológico da sua doutrina conduzirá Leibniz a sustentar que em Deus tal possibilidade se actualizou e que por isso lhe é dado compreender a identidade analítica das verdades contingentes E, na verdade, a razão problemática não pode ser senão humana, e não é atribuível a Deus. Uma das suas menos despiciendas vantagens é, pelo contrário, a de estabelecer uma diferença radical entre o conhecimento humano e o conhecimento divino; o esta diferença é firmemente fundamentada pela filosofia de Leibniz § 438. LEIBNIZ: VERDADE DE RAZÃO E VERDADE DE FACTO A obra de Leibniz visa portanto a justificar a possibilidade de uma ordem espontânea e de regras não necessitantes. O primeiro aspecto desta justificação é a demonstração de que ordem não significa necessidade. A necessidade, segundo Leibniz encontra-se no mundo da lógica, não no mundo da realidade. Uma ordem real nunca é necessária. Tal é o significado da distinção leibniziana entre verdade de razão e verdade de facto. As verdades de razão são necessárias, mas não respeitam à realidade. São idênticas, no sentido de que não fazem senão repetir a mesma coisa sem dizer nada de novo. Quando são afirmativas fundam-se no princípio de identidade (cada coisa é aquilo que é);
17 quando são negativas fundam-se no princípio de contradição (uma proposição é verdadeira ou falsa). Este último, por seu turno, implica duas enunciações: a primeira é que uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa; a segunda, que é impossível que uma proposição não seja nem verdadeira nem falsa (princípio do terceiro excluído). O próprio princípio de contradição rege, segundo Leibniz, as proposições disjuntas, as quais dizem que o objecto de uma ideia não é o objecto de outra ideia (,por exemplo, homem e animal não são a mesma coisa). Todas as verdades fundadas nestes princípios são necessárias e infalíveis mas nada dizem acerca da realidade existente de facto (Novos ensaios, IV, 2). Estas verdades não podem derivar da experiência e são portanto inatas. Leibniz opõe-se à negação total de todas as ideias ou princípios inatos, como o faz Locke (§ 454). Decerto que as ideias inatas não são ideias claras e distintas, isto é, plenamente conscientes: são antes ideias confusas e obscuras, pequenas percepções, possibilidades ou tendências. São semelhantes aos veios que num bloco de mármore delineiam, por exemplo, a figura de Hércules, de modo que bastam algumas marteladas para arrancar o mármore supérfluo e fazer surgir a estátua. A experiência realiza precisamente a função de martelo: torna actuais, isto é, plenamente claras e distintas, as ideias que na alma eram simples possibilidades ou tendências. Mas as ideias inatas não puderam derivar da experiência porque têm uma necessidade absoluta que os conhecimentos 18 empíricos não possuem. As verdades de razão delineiam o mundo da pura possibilidade que é bastante mais vasto e extenso do que o da realidade. Por exemplo, muitos mundos seriam em geral possíveis desde que a sua noção não implique nenhuma contradição: mas só um mundo é real. E, evidentemente, nem todas as coisas possíveis se realizam: se assim fosse, não haveria senão a necessidade e não haveria escolha nem providência (Gerhardt. IV, p. 341). As verdades de facto são, ao invés, contingentes e concernem à realidade efectiva. Elas delimitam, no vastíssimo domínio do possível, o campo bastante mais restrito da realidade em acto. Tais verdades não se fundam no princípio de contradição: o que quer dizer que o contrário delas é possível. Fundam-se, ao invés, no princípio de razão suficiente. Este princípio significa que "nada se verifica sem uma razão suficiente, isto é, sem que seja possível, àquele que conhece suficientemente as coisas, dar uma razão que baste para determinar que é assim e não de outro modo" (Gerhardt, VI, p. 602). Mas tal razão não é uma causa necessária: é um princípio de ordem ou de concatenação pelo qual as coisas que ocorrem se ligam umas às outras sem todavia formarem uma cadeia necessária. É um princípio de inteligibilidade que garante a liberdade ou contingência das coisas reais. É o princípio próprio daquela ordem que Leibniz se esforçou constantemente por encontrar em todos os aspectos do universo: uma ordem que torne possível a liberdade
de escolha. 19 Este princípio postula imediatamente uma causa livre do universo. De facto, convida-nos a formular esta pergunta: porque é que há algo em vez de nada? Desde o momento em que as coisas contingentes não encontram em si próprias a sua razão de ser, é necessário que tal razão esteja fora delas e se encontre numa substância que não seja, por sua vez, contingente mas necessária, isto é, que tenha em si mesma a razão da sua existência. E tal substância é Deus. Mas se além disso se pergunta por que é que Deus criou, entre todos os mundos possíveis, este que é assim e assim determinado, é necessário encontrar a razão suficiente da realidade do mundo na escolha que Deus fez dele e a razão de tal escolha será que elo é o melhor de todos os mundos possíveis e que Deus devia escolhê-lo. Mas este devia não significa aqui uma necessidade absoluta, mas o próprio acto da vontade de Deus que livremente escolheu em conformidade com a sua natureza perfeita. A razão suficiente, diz Leibniz, inclina, sem obrigar: ela explica o que acontece de modo infalível e certo e todavia sem necessidade, porque o contrário daquilo que acontece é sempre possível. O princípio de razão suficiente implica a causa final; e sobre este ponto Leibniz afasta-se decisivamente de Descartes e de Espinosa para se voltar para a metafísica aristotélico-escolástica. Se Deus criou este mundo por ser o melhor, agiu em vista de um fim e este fim é a verdadeira causa da sua escolha. E se a ordem do universo é uma ordem contingente e livre, deve fundar-se no fim que as 20 actividades contingentes e livros tendem a realizar. Mesmo o mecanismo da natureza deve por fim resolver-se no finalismo. § 439. LEIBNIZ: A SUBSTâNCIA INDIVIDUAL O princípio e razão suficiente conduz Leibniz a formular o conceito central da sua metafísica, o de substância individual. Uma verdade de razão é aquela em que o sujeito e o predicado são em realidade idênticos, onde não se pode negar o predicado sem contradição. Não se pode dizer, por exemplo, que um triângulo não tenha três lados e não tenha os ângulos internos iguais a dois rectos: tais proposições são contraditórias, portanto impossíveis. Mas nas verdades de facto o predicado não é idêntico ao sujeito e pode mesmo ser negado sem contradição. O contrário de uma verdade de facto não é por isso contraditório, nem impossível. O sujeito dela deve portanto conter a razão suficiente do seu predicado. Ora um sujeito deste género é sempre um sujeito real, uma substância (desde o momento que se trate de verdades de facto). Ele é aquilo que Leibniz denomina uma substância individual. "A natureza de uma substância individual ou de um ser completo é tal que a sua noção é tão completa que basta para compreender e fazer deduzir dela todos os predicados do sujeito a que ela é atribuída" (Disc. de met., § 8). A noção individual de Alexandre Magno, inclui, por exemplo, a razão suficiente de todos
21 os predicados que se lhe possam atribuir com verdade, por exemplo, que venceu Dario e Poro, e até o conhecer a priori se ele morreu de morte natural ou envenenado. Naturalmente, o homem não pode ter uma noção tão completa da substância individual e por isso deduz da história ou da experiência os atributos que se lhe referem. Mas Deus, cujo conhecimento é perfeito, tem a capacidade de descobrir na noção de uma qualquer substância individual a razão suficiente de todos os seus predicados, e por isso pode descobrir na alma de Alexandre os resíduos de tudo o que lhe aconteceu, os sinais de tudo o que lhe acontecerá e também os vestígios de tudo o que acontece no universo. Isto não quer dizer que uma substância individual seja obrigada a agir de um certo modo, que por exemplo, Alexandre não possa deixar de vencer Dario e Poro; César, de passar o Rubicão, etc. Estas acções podiam não acontecer, porque o contrário delas não implica contradição. Mas era na realidade certíssimo que teriam acontecido, dada a natureza das substâncias individuais que as realizaram, porquanto tal natureza é a razão suficiente delas. E, por seu turno, a natureza dessas substâncias individuais tem a sua razão suficiente na ordem geral do universo querido por Deus. Tanto a escolha por parte de Deus daquela particular ordem do universo que requer substâncias como Alexandre ou César, como as acções ou as escolhas de Alexandre, são livres: mas é a escolha por parte de Deus de que as substâncias individuais tenham em si mesmas a sua razão suficiente que as explica 22 e as torna inteligíveis. Deus poderia ter escolhido um mundo diferente e César poderia não ter cometido aquela acção, mas a perfeição do universo teria sido afectada; e assim as coisas deviam passar-se tal como se passaram. Toda a doutrina de Leibniz sobre este ponto se apoia sobre a diversidade e contraste entre a conexão necessária que tem lugar nas verdades de razão (como as geométricas), e a conexão contingente que é estabelecida pelo princípio de razão suficiente e implica uma necessidade que é só ex hypotesis (segundo a expressão de Leibniz), isto é, puramente problemática. "Se bem que seguramente Deus faça sempre a melhor escolha, isso não impede que algo menos perfeito seja e se mantenha possível em si mesmo, embora não se verifique; porque não é a sua impossibilidade mas a sua imperfeição que o faz ser rejeitado. Ora nada de que seja possível o oposto, é necessário (Ib., § 13). E no entanto evidente que esta doutrina, se justifica plenamente a liberdade da escolha de Deus, não justifica de igual modo a liberdade do homem. No Ensaio de teodiceia e em numerosas cartas, Leibniz defendeu longamente o seu conceito da liberdade negando que ele ponha termo à necessidade. Decerto que ele exclui aquela liberdade de indiferença que poria o homem em equilíbrio frente a possibilidades diversas e opostas. A ordem do universo exige que toda a substância tenha uma natureza determinada e que esta natureza determinada seja a razão suficiente de todas as acções. E, na realidade, para Leibniz, a substância indivi23 dual não é mais que a razão suficiente na sua realidade. Mas o que torna incerta ou duvidosa a liberdade humana é a certeza e a infalibilidade da previsão divina. Por que razão, pergunta-se Leibniz, tal homem cometerá necessariamente tal pecado? A resposta é fácil: é que, de contrário, não seria o
homem que é. Assim Deus prevê infalivelmente a traição de Judas porque vê, desde toda a eternidade, que haverá um certo Judas cuja noção ou ideia contém aquela acção futura livre. Subsiste, portanto, o problema seguinte: porque é que Deus criou o universo de cuja ordem faz parte integrante aquela determinada substância, problema este que, segundo Leibniz, se deve resolver sustentando que o universo criado é, apesar disso, o melhor possível (Ib., § 30). Ele remete assim o problema para o terreno puramente teológico; e a um dos seus correspondentes, Jaquelot, que apertava com ele sobre este ponto, acabou por responder que as suas objecções eram dirigidas a todos os teólogos, "já que o decreto de Deus não é só para mim a causa eficaz e antecedente das acções, mas para todos eles". E acrescentava: "Tal como eu, todos responderam que a criação das substâncias e o concurso de Deus para a realidade da acção humana, que são os efeitos do seu decreto, não constituem uma determinação necessária" (Gerhadt, VI, p. 568). Na realidade, sobre este ponto Leibniz fazia uma clara distinção entre o ponto de vista de Deus e o ponto de vista dos homens. Do ponto de vista de Deus, é certo e infalível que todas as escolhas e acções humanas procedem da substância individual, 24 LEibniz mas do ponto de vista do homem não existe tal certeza. As determinações de Deus nesta matéria são imprevisíveis e nenhuma alma sabe que é determinada a pecar senão quando peca efectivamente. As queixas post factum, diz Leibniz, são injustas, ao passo que teriam sido justas ante factum. "Talvez esteja fixado desde toda a eternidade que eu peque? Respondeis vós: talvez não. E sem pensar no que não podeis conhecer e que não pode darvos nenhuma luz, agis segundo o vosso dever, que conheceis" (Disc. de met., § 30). Por outros termos, o homem não possui a noção suficiente e completa da sua própria substância individual e portanto não pode descobrir nela a razão suficiente das suas acções senão depois de as ter praticado; de sorte que ele não pode ter qualquer certeza antecipada sobre elas. Para Deus que vê plenamente a substância individual, as acções futuras desta são certas, mas certas apenas em virtude de um decreto seu, portanto não necessárias. A garantia da liberdade humana está, segundo Leibniz, na diversidade e incomunicabilidade do ponto de vista humano com o ponto de vista divino; e, conquanto Leibniz queira ser ao mesmo tempo filósofo e teólogo e parta da filosofia para chegar à teologia, a solução que ele apresenta não oferece teologicamente nada de novo relativamente por exemplo ao tomismo, mas é nova a sua interpretação do princípio de razão suficiente. Em virtude deste princípio, a escolha que o homem faz de uma acção qualquer não é arbitrária porque tem a sua razão na natureza mesma do homem, mas não é determinada, porque essa razão não é neces25
sária. A força da solução de Leibniz reside na energia com que contrapôs à ordem geométrica a ordem moral e ao determinismo da razão cartesiana e espinosana a problematicidade e a obrigatoriedade moral da razão suficiente. § 440. LEIBNIZ: FORÇA E NONISMO A natureza não constitui para Leibniz uma excepção ao carácter contingente e livre da ordem universal. Esta convicção que dominou sempre o espírito de Leibniz levou-o a modificar pouco a pouco as doutrinas físicas que expusera no seu escrito juvenil intitulado Hypothesis physica nova. Neste escrito ainda admitia a diferença que Descartes estabelecera entre a extensão e o movimento e bem assim, tal como Gassendi, a constituição atómica da matéria quando chegou a formular uma das suas grandes máximas, como ele lhe chama, ou seja, a lei de continuidade, o princípio de que "a natureza nunca dá saltos". Segundo este princípio, deve admitir-se que, para passar do pequeno ao grande ou vice-versa, é necessário passar através de infinitos graus intermédios e que, por consequência, o processo de divisão da matéria não pode deter-se em elementos indivisíveis, como seriam os átomos, mas tem de progredir até ao infinito. Em seguida, deixou de ver na extensão e no movimento, que eram os elementos da física cartesiana, os elementos originários do mundo físico e viu, ao invés, o elemento originário na força. Aconteceu isto quando se con26 venceu de que o princípio cartesiano da imutabilidade da quantidade de movimento era falso e que era necessário substituí-lo pelo princípio da conservação da força ou acção motora. Aquilo que permanece constante nos corpos que se encontram num sistema fechado não é a quantidade de movimento mas a quantidade de acção motora que é igual ao produto da massa pelo quadrado da velocidade. A acção motora ou força viva representa a possibilidade de produzir um determinado efeito, por exemplo levantar um peso, e isso implica uma actividade ou produtividade, a qual se exclui do movimento que é a simples translacção no espaço. Leibniz considera por isso a força como bastante mais real do que o movimento. O movimento não é real por si mesmo, como não são por si mesmos reais o espaço e o tempo, que devem antes ser considerados entes de razão. O movimento relativo aos fenómenos é uma simples relação, a força é a realidade deles (Specimen dynamicum, Escritos matemáticos, VII, p. 247). Nos seres corpóreos, diz Leibniz, há algo para além da extensão, e mesmo anterior à extensão: a força da natureza, colocada em toda a parte pelo autor supremo, e que não consiste apenas numa simples faculdade, como diziam os escolásticos, mas também num conatus ou esforço, o qual terá o seu pleno efeito se não for impedido por um conatus contrário... O agir é o carácter essencial das substâncias, e a extensão não determina a substância mesma, senão que indica a continuação ou difusão de uma substância já dada, a qual tende e se opõe, ou seja, resiste" (Ib., VI, p. 325). 77 Deste modo, o único elemento real do mundo natural é a força. A extensão e o movimento, que eram os princípios fundamentais da física cartesiana são por Leibniz, se não negados, reduzidos a um princípio último que é ao mesmo tempo físico e metafísico: a força. Leibniz aceita o mecanismo cartesiano apenas como explicação provisória, que necessita ser integrada por uma explicação físico-metafísica mais alta. "Devo declarar inicialmente, diz ele (Gerhardt, IV, p. 472), que, em meu parecer, tudo acontece mecanicamente na natureza e que para dar uma explicação exacta e completa de qualquer fenómeno particular (como por exemplo do peso ou da elasticidade), bastam as noções de figura ou de movimento. Mas os princípios fundamentais da mecânica e as leis do movimento nascem, a meu
ver, de algo de superior, que depende mais da metafísica do que da geometria e que não se pode atingir com a imaginação, se bem que o espírito o possa conceber perfeitamente". A força é precisamente aquele superior princípio metafísico que funda as próprias leis do mecanismo. Leibniz distingue a força passiva que constitui a massa de um corpo e é a resistência que o corpo opõe à penetração e ao movimento, e a força activa, a verdadeira e genuína força, que é conatus ou tendência para a acção. Esta força activa compara-a Leibniz à enteléquia aristotélica. Mas é evidente que a própria massa material, reduzida a força passiva, já não é nada de corpóreo. De modo que o último resultado das indagações físicas de Leibniz é a resolução do mundo físico num princípio que nada tem de 28 corpóreo. A interpretação leibniziana do mecanismo anula o próprio mecanismo. O elemento constitutivo do mecanismo, reconhecido na força, revela-se-lhe de natureza espiritual. O dualismo cartesiano de substância extensa e de substância pensante é negado e o universo é totalmente interpretado em termos de substância espiritual. Não há verdadeiramente extensão, corporeidade, matéria no universo: tudo é espírito e vida, porque tudo é força. Assim, para Leibniz, o mundo da física, embora reconhecido nas suas leis mecânicas, transforma-se num mundo espiritual, e, portanto, numa ordem contingente e livre. § 441. LEIBNIZ: A MÓNADA Leibniz devia portanto chegar a reconhecer que o único é o elemento último que entra na composição tanto do mundo do espírito como do mundo da extensão. No Discurso de metafísica de 1686 elaborara o conceito de substância individual referindo-se sobretudo à individualidade humana. Como se disse, a substância individual é o próprio princípio lógico da razão suficiente elevado a entidade metafísica, ou seja, a elemento constitutivo de uma ordem contingente e livre. Nesse escrito (§ 12) Leibniz tinha, na verdade, atentado na exigência de que também os corpos físicos possuíam em si mesmos uma "forma substancial" que correspondia à substância individual humana, mas não tinha levado mais longe a sua analogia. Cerca de 1696, começa a introduzir a palavra e conceito de mónada. A aqui29 sição deste termo assinala o momento em que Leibniz teve a possibilidade de estender ao mundo físico o seu conceito de ordem contingente e unificar portanto o mundo físico com o mundo espiritual numa ordem universal livre A mónada é um átomo universal, uma substância simples, sem partes, e por isso privada de extensão e de figura, e indivisível. Como tal, não se pode desagregar e é eterna; só Deus pode criá-la ou anulá-la. Todas as mónadas são diferentes entre si: não há na natureza dois seres perfeitamente iguais que não sejam caracterizados por uma diferença interior. Leibniz insiste neste princípio que ele denomina da identidade dos indiscerníveis. Duas coisas não podem diferir só local ou temporalmente, mas é necessário que exista entre elas uma diferença interna. Dois cubos iguais só existem em matemática, não na realidade. Os
seres reais diversificam-se pelas qualidades interiores; e mesmo que a diversidade deles consistisse apenas nas diferentes posições que ocupam no espaço, esta diversidade de posição transformar-se-ia imediatamente numa diferença de qualidades internas e portanto deixaria de haver uma simples diferença extrínseca (Couturat, p. 8-10). Na sua individualidade irredutível, a mónada implica também a máxima universalidade. Toda a mónada constitui de facto um ponto de vista sobre o mundo e é por isso todo o mundo de um determinado ponto de vista. Este carácter de universalidade que no Discurso de metafísica (§ 14) foi já 30 esclarecido pelo que respeita à substância individual humana, é agora extensivo a todas as mónadas. Nenhuma mónada todavia comunica directamente com as outras: ela não tem janelas através das quais qualquer coisa possa sair ou entrar. As mutações naturais das mónadas derivam apenas de um princípio interno. E uma vez que todas as mutações se dão gradualmente, na mónada qualquer coisa muda e qualquer coisa permanece. Há portanto nela uma pluralidade de estados ou de relações, embora não haja partes. Cada um destes estados, que representa uma multiplicidade como unidade, é uma percepção, termo que Leibniz distingue da apercepção ou consciência que é própria da alma racional. O princípio interno que opera a passagem de uma percepção a outra é a apetição (Mon., § 11-15). Os graus de perfeição das mónadas são determinados pelos graus das suas percepções. Há uma diferença fundamental entre Deus (que é também uma mónada) e os mundos criados, pois estes representam o mundo apenas de um determinado ponto de vista, enquanto que Deus o representa de todos os possíveis pontos de vista e é neste sentido a mónada das mónadas. Mas entre Deus e as mónadas criadas, que o são pela sua natureza finita, há uma diferença ulterior e é que as mónadas criadas não concebem a totalidade do universo com o mesmo grau de clareza. As percepções das mónadas são sempre de algum modo confusas, semelhantes às que se têm quando se cai num estado de delíquio ou de sono. As mónadas puras e simples são as 31 que possuem apenas percepções confusas deste género, ao passo que as mónadas dotadas de memória são as que constituem as almas dos animais e as providas de razão constituem os espíritos humanos. Leibniz admite por isso, ao contrário de Descartes e dos cartesianistas, que os animais têm uma alma, se bem que não idêntica à dos homens e capaz apenas de estabelecer entre as percepções uma conCatenação que imita a razão, mas que permanece distinta dela. (Ib., § 26). Mas também a matéria é constituída de mónadas. Ela não é verdadeiramente nem substância corpórea nem substância espiritual mas antes um agregado de substâncias espirituais, como um rebanho de ovelhas ou um monte de vermes. Precisamente por isso é infinitamente divisível. Mas os seus elementos últimos nada têm de corpóreo, são átomos de substância ou pontos metafísicos, como se poderiam chamar as mónadas (Gerhardt, IV, p. 483). "Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim de plantas ou como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo de planta, cada membro de animal e todas as gotas dos seus humores são ainda um jardim ou um lago do mesmo género" (Mon., § 67).
Leibniz chama Matéria segunda à matéria entendida deste modo, como agregado de mónadas, enquanto que chama matéria prima à potência passiva (força de inércia ou de resistência) que existe nas mónadas e que constitui a mónada juntamente com a potência activa ou enteléquia (Gerhardt, 111, p. 260-61). Nas mónadas superiores, 32 que são os espíritos ou almas humanas, a potência passiva ou matéria prima é o conjunto das percepções confusas, que constituem aquilo que há de propriamente finito, isto é de imperfeito, nas mónadas espirituais criadas. Leibniz observa a propósito que, de um ponto de vista rigorosamente metafísico, considerando como acção o que sucede à substância espontaneamente e a partir do seu próprio fundo, cada substância não faz senão agir, dado que nela tudo provém de si mesma depois de se ter originado em Deus e ela na realidade não sofre a acção de nenhuma outra substância. Mas acrescenta que, considerando como acção um exercício de perfeição e como paixão o contrário, não há acção nas substâncias senão quando a percepção delas se desenvolve e se torna. mais distinta; e não há paixão se não quando se torna mais confusa (Novos Ensaios, 11, 21). De sorte que nas mónadas espirituais as percepções confusas correspondem ao que é inércia ou impenetrabilidade das mónadas corpóreas, isto é, aquilo que Leibniz chama matéria prima. As percepções confusas indicam, diz Leibniz, a nossa imperfeição, as nossas afecções, a nossa dependência para com o conjunto das coisas externas ou da matéria, enquanto a perfeição, a força, o domínio, a liberdade e a acção da alma consistem nos nossos pensamentos distintos. Todavia, no fundo, os pensamentos confusos não mais que uma
são
multiplicidade de pensamentos em si mesmos iguais e distintos, mas tão pequenos que cada um separadamente não excita a nossa atenção nem é dis33 tinguível (Gehrardt., IV, p. 574). Assim as percepções confusas são reconduzidas àquelas pequenas percepções de que Leibniz se servira para justificar a presença inata no espírito de verdade daquilo de que ele não é plenamente consciente. O corpo dos homens e dos animais é, segundo Leibniz, matéria segunda, isto é, agregado de mónadas. Este agregado é mantido e dominado por uma mónada superior e que é a verdadeira alma (mónada dominante.) Mas, não obstante não haver entre o corpo, que é agregado de mónadas, e a alma, que é a mónada dominante, diversidade substancial ou metafísica porque entre umas e as outras existe apenas uma diferença nos graus de distinção das respectivas percepções, Leibniz admite todavia que o corpo e a alma seguem leis independentes. Os corpos, diz Leibniz, actuam entre si segundo leis mecânicas, ao passo que as almas actuam segundo as leis da finalidade. E não há modo de conceber a acção da alma sobre o corpo ou do corpo sobre a alma, uma vez que não se pode explicar de nenhum modo como as variações corpóreas, isto é, as leis mecânicas, fazem nascer uma percepção ou como da percepção pode derivar uma
mudança de velocidade ou de direcção dos corpos. Cumpre concluir, portanto, que a alma e o corpo seguem cada um as suas leis separadamente, sem que as leis corporais sejam perturbadas pelas acções da alma ou que os corpos encontrem janelas para introduzir na alma o influxo deles (Gerhardt, HI, p. 340-41. Surge então o problema de entender o acordo da alma com o corpo. 34 § 442. LEIBNIZ: A HARMONIA PREESTABELECIDA Neste problema se resolve o problema mais geral da comunicação recíproca entre as mónadas que constituem o universo. Todas as mónadas, de facto, são perfeitamente fechadas em si mesmas, sem janelas, isto é, sem possibilidade de comunicarem directamente umas com as outras. Ao mesmo tempo cada uma está ligada à outra, pois cada uma é um aspecto do mundo, isto é, uma representação mais ou menos clara de todas as outras mónadas. As mónadas são como diversas vistas de uma mesma cidade e como tais se conjugam para constituir a vista total e complexa do universo, que é plenamente expressa e reassumida na mónada suprema que é Deus. Mas, embora cada mónada represente o universo inteiro, ainda representa mais distintamente o corpo que se lhe refere particularmente e de que constitui a enteléquia, e visto que tal corpo, constituído por mónadas, exprime todo o universo, assim à alma, ao representar-se-lhe o corpo que lhe pertence, se lhe representa ao mesmo tempo o universo inteiro (Mon., § 62). Deste modo, * problema da comunicação entre os mundos vem * configurar-se na forma particular que ela tinha assumido na filosofia cartesiana, como problema da relação entre a alma e o corpo. Leibniz distingue três possíveis soluções para tal problema. Se se compara a alma e o corpo a dois relógios, o primeiro modo de explicar o acordo entre eles é o de admitir a influência recíproca de um sobre 35 o outro. É esta a doutrina da filosofia vulgar que se choca contra a incomunicabilidade das mónadas e a impossibilidade de admitir um influxo entre duas substâncias cujas acções obedeçam a leis heterogéneas. A segunda maneira de explicar o acordo é a que Leibniz chama assistência, e que é própria do sistema das causas ocasionais: dois relógios mesmo maus, podem manter-se em harmonia um com o outro desde que um hábil operário cuide deles a cada instante. Segundo Leibniz, este sistema incorre no erro de introduzir um Deux ex machina num facto natural e ordinário, no qual Deus não deve intervir senão do mesmo modo em que concorre para todos os outros factos da natureza. Resta então só a terceira maneira, que é supor que os dois relógios tenham sido construídos com tanta arte e perfeição que trabalhem de acordo para todo o sempre. Esta é a doutrina da harmonia preestabelecida sustentada por Leibniz. Segundo ela, a alma e o corpo seguem cada um as suas próprias leis mas o acordo é estabelecido previamente por Deus no acto de estabelecer tais leis. O corpo seguindo as leis mecânicas e a alma seguindo a sua
própria espontaneidade interna estão a cada instante em harmonia, e esta harmonia foi preestabelecida por Deus no acto da criação (Gerhardt, IV, p. 500-501). A doutrina da harmonia preestabelecida é o desfecho e a conclusão derradeira da filosofia de Leibniz, se bem que não seja (como muitas vezes se sustentou) o seu pensamento central e aninia36 dor. Para tal doutrina o corpo orgânico (dos animais ou do homem) é uma espécie de máquina divina ou de autómato espiritual cujas manifestações não sofrem qualquer influência dos actos espirituais. É só pela harmonia preestabelecida, diz Leibniz, que na alma do cão entra e dor quando o seu corpo é atingido (lb., IV, p. 531). Por outro lado, a vida da alma desenvolve-se com perfeita espontaneidade desde o seu interior. Ela é uma espécie de sonho bem arquitectado no qual as percepções se sucedem em virtude de uma lei que está inscrita na própria natureza da mónada e que Deus estabeleceu no acto da sua criação. Leibniz chega mesmo a dizer que até a alma é uma espécie de autómato imaterial (Ib., IV, p. 548). Ele tem, portanto, de defender um inatismo total: a mónada é ,inteiramente inata em si mesma, já que nada pode receber do exterior. Não só as verdades de razão e os princípios lógicos em que ela assenta são inatos, mas também as verdades de facto e mesmo as sensações nascem somente do fundo das mónadas: do seu fundo obscuro, constituído pelas pequenas percepções que se tornam gradualmente, pelo menos em parte, distintas (1b., V. p. 16). A mónada sai assim das mãos de Deus completa na sua natureza e determinada, posto que não necessariamente, em todos os seus pensamentos e em todas as suas acções. Leibniz chama às mónadas fulgurações contínuas da divindade, limitadas, a cada momento, pela receptividade da criatura, à qual é essencial o ser limitada. 37 § 443. LEIBNIZ: DEUS E OS PROBLEMAS DA TEODICEIA A filosofia de Leibniz, rematando no sistema da harmonia preestabelecida, torna-se neste ponto especulação teológica. E em tal especulação, Leibniz acolhe os temas tradicionais da teologia, a começar pelas provas da existência de Deus, que ele elabora a seu modo, e concluindo com um estudo dos problemas inerentes a toda a teologia: o problema da liberdade e da prodeterminação, e o problema do mal. Em primeiro lugar, Leibniz elabora uma das provas tradicionais da experiência de Deus, prova que ele define a posteriori. Ela é a terceira entre as enumeradas por Tomás de Aquino na Summa theologica e precisamente deduzida da razão entre o possível e o necessário. Leibniz formula esta prova recorrendo ao princípio de razão suficiente. Deus, diz ele, é a primeira razão das coisas, visto que as coisas limitadas, como são todas as que vemos e experimentamos, são contingentes e não têm em si nada que torne necessária a sua existência. Cumpre portanto procurar a razão da existência do mundo; e há que procurá-la na substância que traz em si a razão da sua existência e que por isso é necessária e eterna. Se existe só um mundo entre inúmeros mundos todos igualmente possíveis e todos com uma pretensão à existência, a razão suficiente de tal não pode ser senão um intelecto que tem as ideias de todos os mundos possíveis e uma vontade que
escolhe um deles; o intelecto 38 e a vontade de Deus. A potência da substância divina torna portanto eficaz a vontade (Teod., 1, 7*, Mon. § 37-39). Deus é ao mesmo tempo a razão suficiente do mundo que existe de facto e a razão suficiente de todos os mundos possíveis. Mesmo as puras possibilidades devem de algum modo assentar em algo de real ou de actual: assentam na existência do ser necessário, cuja essência implica a existência ou a que basta ser possível para ser actual. Deus é deste modo não só a fonte de toda a realidade, mas também a das essências e das verdades eternas (Mon., § 43-44). Estas últimas todavia não dependem da vontade divina, como Descartes sustentara, mas apenas do intelecto divino de que são o objecto interno. As verdades de facto, que concernem às existências reais, dependem pelo contrário da vontade divina (lb., § 46). Em segundo lugar, Leibniz elaborou o argumento ontológico de Sto. Anselmo, utilizando o seu conceito de possível. À forma cartesiana do argumento ontológico, Leibniz opõe que é possível deduzir a existência (como perfeição) do conceito de um ser que possua todas as perfeições, só depois que se demonstrou que o conceito deste ser é possível (isto é, privado de contradições internas) (Gerhardt, IV, p. 274 segs.). De sorte que, na realidade, aquele argumento não pode inferir da perfeição de Deus a sua existência mas deve inferir da possibilidade de Deus a sua existência. E esta é a forma verdadeira do argumento, segundo Leibniz. "Só Deus, ou o ser necessário, tem este privilégio: que, se é possível, é necessário que exista. 39 E, visto que nada pode impedir a possibilidade daquilo que não implique algum limite, alguma negação, portanto alguma contradição, isso só basta para reconhecer a priori a existência de Deus" (Mon., § 45). Em Deus portanto possibilidade e realidade coincidem: tal é, segundo Leibniz, o significado da necessidade da sua natureza. Desde que seja reconhecido possível, deve ser reconhecido existente; e não há dúvida de que pode e deve ser reconhecido possível, dada a total ausência de limitações intrínsecas que o caracterizam. Os problemas da teodiceia são considerados por Leibniz à luz daquela regra do melhor que ele considera como a norma fundamental da acção divina e por isso da ordem do mundo. Leibniz distingue em Deus uma vontade antecedente que quer o bem em si e uma vontade consequente que quer o melhor. Como efeito desta vontade consequente, Deus quer aquilo que em si não é bem nem mal, e até o mal físico como meio para alcançar o melhor, e permite o pecado com o mesmo fim. A vontade permissiva de Deus com respeito ao pecado é por conseguinte uma consequência da sua vontade consequente, quer dizer da sua escolha do melhor. Por outros termos, Deus escolheu o melhor entre todos os mundos possíveis, o que contém a mínima parte de mal. A sua vontade é a causa positiva das perfeições que este mundo contém, mas não quer positivamente o pecado. Desde o momento em que o pecado faz parte da ordem do mundo, ele permite-o; mas esta vontade 40
permissiva não o torna responsável por ele (Teod., 1, 25). Viu-se já como Leibniz não sustenta que a predeterminação divina, e a presciência que é condição dela, anulem a liberdade humana. Os motivos tradicionais que por tal razão retoma, assumem ressonâncias novas só em virtude do princípio fundamental que inspira toda a sua especulação: o de que a ordem do universo é contingente e livre. Criada por um acto livre da divindade, a ordem do universo é conservada e desenvolvida pela liberdade das mónadas espirituais nas quais melhor se ,reflecte e reconhece a substância divina. O princípio de razão suficiente, sobre o qual assenta a ordem do mundo, conduz Leibniz a ver esta ordem orientada segundo o melhor, que é o fim da vontade divina e da humana. A prodeterminação divina, agindo por meio da vontade que tende para o melhor, não é por isso necessitante mas propendente; e a escolha do melhor por parte das criaturas permanece livre e responsável. São sem dúvida reais as dificuldades que Bayle, Jaquelot e outros contemporâneos, e depois deles inúmeros críticos, encontraram na teologia de Leibniz. Mas a teologia, se é ponto de chegada da especulação de Leibniz, não é toda a sua filosofia. E, indubitavelmente, o princípio inspirador da sua filosofia, como de toda a sua obra política, histórica, jurídica e de toda a sua vida, é a liberdade da ordem universal. Leibniz procurou realizar na sua filosofia a justificação da atitude que assumiu constantemente frente aos problemas de todo o 41 género que teve de defrontar no curso da sua vida: a atitude de quem quer promover e fundar no mundo humano, à semelhança do que reconhece em todo o universo, um conjunto de actividades que livremente se encontrem, se limitem e acabem por encontrar uma pacífica coordenação. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 436. A primeira grande edição das obras de Leibniz é a Opera omnia ao cuidado de L. Dutens, 6 vol., Genebra, 1768.-São fundamentais: Die philosophische Schriften, editados por G. J. Gerhardt, 7 vol., Berlim, 1875 (cit. no texto: Gerhardt) e Die mathematische Schrifen, ao cuidado do mesmo Gerhardt, 7 vol., Berlim e Halle, 1848-63 (cit. no texto: Escritos matemáticos). São notáveis os fragmentos publicados por L. COUTURAT, Opuscules et fragments inédits, Paris, 1903 (Cit. no texto: Couturat). Obras políticas: Historisch-politische und staatswissenschaftlichen Schrifen, ao cuidado de O. Mopp, 11 vol., Hannover, 1864-84. A Academia Prussiana das Ciências iniciara a publicaçáo completa dos escritos de Leibniz; saíram seis vol. desta edição, os quais compreendem: o epistolário geral até 1680 (Série I, vol. 1.1-3.1): o epistol&rlo filosófico até 1685 (S5,rie II, vol. 1.o); os escritos políticos até 1685 (Série IV, vol. l.,); parte dos escritos filosóficos até 1672 (Série VI, vol. 1.o).
Entre as ediç. parciais, são notáveis: La Monadologie, ao cuidado de E. Boutroux, 13.a ed., Paris, 1930; Discours de méthaphysique, ao cuidado de IL Lestienne, Paris, 1929. trad. it. da Monad. por E. Colorni, Florença, 1935 (contém também uma boa antologia leibniziana); Lettres de L. a Arnauld, ed. 42 G. Lewis, 1952; Correspondance L.-Clarke, ed. R<>binet, Paris, 1957. Outras trad. italianas: Nuovi Saggi, de E. Cecchi, 2 vol., Bari, 1910-11; Discorso di metafisica, de G. E. Bari, 1938; Scritti polítici e di diritto naturale, de V. Mathieu, Turim, 1951; Saggi filosofici e jettere, de V. Mathicu, Bari, 1963. § 437. Sobre a formação de Leibniz: W. Y.ABITZ, Die philosophie des jungen L., Heide51berg, 1909. Sobre a actividade político-religiosa de Leibniz: BARUzi, L. e rorganization religieuse de Ia terre, Paris, 1.907. Sobre a obra histórica: DAVILLÉ. L. historien, Paris, 1909; W. CONZE, L. aIs historiker, Berlim, 1951. Sobre as relações com Espinosa: STEIN, L. und Spinoza, Berlim, 1830; G. FRIEDMANN, L. et Spinoza, Paris, 1946. Sobre as relações com Malebranche: A. RoBINET, L. et Malebranche. Relations personnelles, Paris, 1955. Monografias fundamentais: G. E. GUMANER, G. W. Freiherr von L., 2.1 ed., Breslãvia, 1846; K. nsCHER, Gesc. der neuren Phil., IU, L. ed., Heidelberg, 1920; B. Rij.SSFL, A critical exposition of the Phil. of L., Cambridge, 1900, 1937; Cagsirer, L. s System in seinen ~senschaftlichen GrundIagen, Marburg, 1902; COUTURAT, La logique de L., Paris, 1901; 1. PAPE, L., Stocearda, 1949; R. M. YOST, L. and Philosophical AnaIysis, Berkeley and Los Angeles, 1954. Entre os escritos italianos: CARLOTT, Il sistema di L., Messina, 1923; OLGIATI, Il significato storico di L., 1929; BARIR, La spiritualità dellIessere e L., Pádua, 1933; DEL BoCA, Finalismo e necessità in L., Morença, 1936; GALIMBERTI, L., Contro Spinoza, Benevagienna, 1941, G. GALLI, Studi sulla fi7. di L., Pádua, 1948; A. CORSANo, L., Nápoles, 1952, G. PRETI, 11 cristianosimo universale di L., Milão, 1953. § 440. Sobr.- as relações entre matemática e filosofia; MOHNKE; Leibnizens Synthese von Universalmathematik und Individualmetaphysic, Halle, 1925. 43 VIII VICO § 444. VICO: VIDA E OBRA Depois de Leibniz, Vico representa a segunda grande afirmação da razão problemática no
mundo moderno. Leibniz explicara e interpretara em termos de razão problemática toda a realidade física e metafísica; Vico interpreta em termos de razão problemática o mundo da história. As personalidades e as doutrinas dos dois filósofos são diferentes e independentes uma da outra, mas a inspiração fundamental delas é comum e as obras de ambos são complementares, de modo que se torna historicamente significante a sua vizinhança cronológica. João Baptista Vico nasceu em Nápoles a 24 de Junho de 1668. Estudou filosofia escolástica e direito. Durante nove anos (1689-95) foi preceptor dos filhos do marquês Rocca no castelo de Vatolla 45 no Cilento, onde, utilizando a rica biblioteca do marquês, adquiriu a maior parte da sua cultura. Regressado a Nápoles em 1699, obtém a cadeira de retórica naquela universidade; mas em seguida (1723) aspirou debalde a obter uma cátedra de jurisprudência, que teria melhorado muito a sua situação e teria sido mais consoante com a natureza dos seus estudos. Viveu assim uma vida pobre e obscura entre as restrições financeiras e o ambiente familiar, pouco propício ao recolhimento e ao estudo. Assente em 1720 a primeira ideia da sua obra fundamental nela trabalhou tenazmente até à morte, fazendo-lhe incessantemente correcções e acrescentos. Teve, durante a sua vida, escassos e raros reconhecimentos; a originalidade e complexidade do seu pensamento em relação à cultura italiana do seu tempo, a pesada e caótica erudição com que sobrecarregou a sua obra, fizeram que só numa época relativamente recente lhe fosse conferido o lugar que lhe está reservado na história do pensamento. Morreu em Nápoles a 23 de Janeiro de 1744. Com o seu ensino se prendem as cinco Orações inaugurais, das quais a mais importante é a intitulada De nostri temporis studiorum ratione de 1708. Em 1710 prepara-se para dar expressão sistemática ao seu pensamento numa obra intitulada De antiquissima Italorum sap@*entia ex finguae latinae originibus eruenda. Esta obra que devia resultar de três livros, respectivamente dedicados à metafísica, à física e à moral, resultou de facto apenas do primeiro porque os outros não chegaram a ser escritos. Nela Vico 46 procura remontar, através da história de algumas palavras latinas, às doutrinas dos primeiros povos itálicos (os Jónios e os Etruscos), povos estes que transmitiram essas palavras à língua latina. E apresenta por isso a sua metafísica como a verdadeira metafísica daquelas antiquíssimas populações itálicas. A um artigo crítico aparecido no "Giornale dei letterati", Vico responde com um opúsculo polémico intitulado Risposta al giornale dei letterati (1711); e à resposta do jornal replicou com uma Seconda risposta (1712). Em 1716 Vico publicou uma obra histórica De rebus gestis Antonii Caraphei, escrita a pedido do duque Adriano Carafa. E em 1720 deu à estampa o escrito que é a primeira formulação das ideias da ciência nova: De uno universi juris principio et fine uno, à qual fez seguir De constantia jurisprudentis. Em 1725 publicava a primeira
edição da sua obra fundamental Principi di una scienza nuova intorno alla comune natura dele nazioni e a Autobiografia. Em seguida reescrevia inteiramente a Ciência Nova (1730) e desta segunda edição não difere substancialmente a outra que viu a luz em 1744, alguns meses depois da sua morte. § 445. VICO ENTRE OS SÉCULOS XVII E XVIII O ponto de partida explícito de Vico é a crítica da filosofia cartesiana; mas, na realidade, a obra de Vico encontra as suas raízes na cultura filosófica do século XVII, que ele conheceu através das 47 derivações e discussões que suscitava no ambiente napolitano do seu tempo. Na Autobiografia, Vico indicava os quatro grandes autores que inspiraram o seu pensamento. Em primeiro lugar, Platão e Tácito porque "com uma mente metafísica incomparável, Tácito contempla o homem tal qual como é, Platão tal qual deve sem, de modo que ambos lhe deram a primeira ideia de uma "história ideal eterna de acordo com a qual decorresse a história universal de todos os tempos". Depois, Francisco Bacon que lhe teria dado a ideia da complexidade e riqueza do universo cultural e da exigência de descobrir as leis deste universo. E enfim Grócio, que o levara a compreender as leis desse mundo dos homens que permanecera estranho a Bacon. Mas estes quatro autores constituem sobretudo pontos de referência simétrica do quadro da filosofia de Vico na sua plena maturidade, nada dizem sobre as fontes que inspiraram os traços característicos desta filosofia ou que contribuíram para os formar. Ora é precisamente por estes traços que a obra de Vico se liga à cultura filosófica do século XVII. O conceito de uma razão experimentadora e problemática cujo domínio seja o provável e não só o necessário encontrava-se em Gassendi (§ 417) e encontrou a sua codificação na obra de Locke. A contraposição do engenho, como faculdade inventiva, à lógica é um tema humanístico renascentista vivíssimo no século XVII e que se pode reencontrar nos próprios pensadores de Port-Royal. A identidade do verdadeiro e do facto como critério do conhecimento autêntico é uma noção 48 extraída de Hobbes (§ 405), que, por sua vez, a tinha provavelmente extraído de Gassendi. A metafísica de De antiquissima, que Vico refere a Zenão de Eleia, inspira-se em certas formas do neoplatonismo do século XV11; e a noção de Deus como motor da mente humana, que surge repetidas vezes na mesma obra, é claramente extraída de Malebranche. Por outro lado, embora imerso na cultura do século XVII, Vico chega a alguns resultados fundamentais que o ligam ao século seguinte. Ele não tem decerto nada da audácia inovadora dos iluministas. O seu pensamento político-religioso está ancorado no passado e apresenta-se com um intento declaradamente conservador. A mesma característica teorética da sua filosofia que quer o certo, isto é, o peso da autoridade da tradição, mostra-nos que nele há a busca de um equilíbrio que é estranho ao pensamento iluminista. Mas liga-o todavia a este pensamento em primeiro lugar o
carácter limitativo da sua gnoseologia, e a própria polémica contra a razão cartesiana, que recusava ou parecia recusar toda a limitação, é um tema fundamental do iluminismo. A recondução da poesia o do mito à esfera das emoções; a declarada irredutibilidade desta esfera à do pensamento, a importância dela na determinação dos caracteres humanos e das formas do costume, são elementos de doutrina que, no século XVII, por obra dos iluministas, deviam levar ao reconhecimento do sentimento como forma autónoma da vida espiritual 49 e do gosto como critério de juízo dos objectos inerentes a esta forma. Finalmente, o conceito da história de Vico, como curso progressivo de eventos que conduz, ou deve conduzir, à "razão completamente esclarecida", liga-se estreitamente à concepção histórica do iluminismo, se bem que Vico, diversamente deste, não renuncie à linguagem teológica. § 446. VICO: O VERDADEIRO E O FALSO O ponto de partida de Vico é a polémica contra Descartes. Descartes tinha a pretensão de reduzir todo o conhecimento à evidência racional, isto é, à razão necessária ou geométrica. Vico considera tal pretensão impossível. Há certezas humanas fundamentais que não se deixam reconduzir à evidência e à demonstração. Descartes resolve todas as certezas válidas na necessidade da razão geométrica. Vico defende a autonomia e a validez do certo frente ao verdadeiro. E, de facto, manifestações humanas fundamentais como a retórica, a poesia, a história e a própria prudência que rege a vida, não se fundam nas verdades geométricas, mas só no verosímil. O verosímil é a verdade problemática, aquilo que está no meio entre o verdadeiro e o falso: o mais das vezes é verdadeiro, excepcionalmente é falso: mas a sua característica é que não implica uma garantia infalível de verdade (De nostri temp., § 3). Esta problematicidade faz do verosímil a verdade 50 humana por excelência. Será um vão empreendimento querer introduzir mediante o método geométrico uma garantia infalível de verdade no domínio dos conhecimentos respeitantes ao homem. Afora os números e as medidas, diz Vico, todas as outras matérias são insusceptíveis de método geométrico. O próprio pedantismo do método que, quando é aplicado no seu domínio particular, opera sem se fazer sentir, demonstra a sua ineficiência. Conhecer clara e distintamente é mais vício do que virtude do intelecto humano quando se passa do campo das matemáticas para o campo da metafísica (Prima risp. al Giorn. dei Lett., § 3). O fundamento desta última é o provável. Porque a filosofia nunca serviu senão para fazer as nações "ágeis, vigilantes, capazes, agudas e reflexivas, onde os homens fossem nas acções dóceis, pontos, magnânimos, engenhosos e avisados"; e isto não o pode ela conseguir se não se valer do provável, que é o fundamento "de todas as artes e disciplinas
do honesto, do cómodo e do prazer humano". Por isso o "apanágio dos filósofos" é o provável, como o dos matemáticos é o verdadeiro; e o ter querido inverter esta obra e reconduzir a filosofia à verdade demonstrativa das matemáticas foi só causa de dúvida e de desordem (Seconda risp. al Giorn. dei Lett., § 4). À razão cartesiana, órgão da verdade demonstrativa, contrapôs Vico o engenho, que é a faculdade de descobrir o novo; e à crítica, a nova arte cartesiana fundada na razão, contrapõe Vico a tópica, que é a arte que disciplina e dirige o procedimento inventivo do 51 engenho. O engenho tem tanto mais força produtiva e inventiva em relação à razão quanto menos capacidade demonstrativa e certeza apodíctica possui relativamente a ela (De ratione, § 5; De antiquissiina, § 4). A exposição da gnoseologia no De antiquissima assenta inteiramente na antítese entre conhecimento divino e conhecimento humano. A Deus pertence o entender (intelligere) que é o conhecimento perfeito de todos os elementos que constituem o objecto. Ao homem pertence o pensar (cogitare), o ir recolhendo fora de si alguns dos elementos constitutivos do objecto. A razão, que é o órgão do entender, pertence verdadeiramente a Deus; o homem é apenas participe dela. Deus e o homem só podem conhecer com verdade aquilo que fazem: porque as palavras verum e factum têm em latim o mesmo significado. Mas o fazer de Deus é criação de um objecto real; o fazer humano é criação de um objecto fictício, que o homem engendra recolhendo do mundo, @por meio da abstracção, os elementos do seu conhecer. Em Deus as coisas vivem, no homem perecem (De antiq., 1, 1). O conhecimento humano nasce assim de um defeito da mente humana, isto é, do facto de que ela não contém em si os elementos de que as coisas procedem e não os contém porque as coisas estão fora dela. Este defeito converte-se todavia em vantagem, pois o homem procura mediante a abstracção os elementos das coisas que originariamente não possui e dos quais depois se serve para reconstruir as próprias coisas em imagem. O princípio de que o verdadeiro e o facto se 52 identificam e que se pode conhecer tanto quanto se faz, é portanto um princípio que, segundo Vico, restringe o conhecimento humano a Emites assaz estreitos. O homem não pode conhecer o mundo da natureza que, sendo criado por Deus, só pode ser objecto do conhecimento divino. Pode conhecer, pelo contrário, com verdade o mundo da matemática, que é um mundo de abstracções por ele próprio criado. O homem nem sequer pode conhecer o seu próprio ser, a sua própria realidade metafísica. O erro de Descartes está em tê-lo considerado possível. O cogito é a consciência do próprio ser, não a ciência dele. A consciência pode também pertencer ao ignorante: a ciência é o conhecimento verdadeiro fundado nas causas. Ora, o homem não conhece a causa do seu próprio ser porque ele próprio não é essa causa: ele não se cria a si mesmo. O cogito cartesiano seria princípio de ciência só no caso em
que o meu pensamento fosse a causa da minha existência: o que não é, visto que eu sou composto de espírito e corpo e o pensamento não é causa do corpo. E nem sequer é causa da mente. Se eu fosse apenas corpo, não pensaria; se fosse apenas mente, também não pensaria porque teria, como Deus, a inteligência: a união do corpo e da mente é portanto a causa do pensamento. E o pensamento é apenas um sinal e não a causa do facto de que eu sou mente (lb., 1, 3). Descartes quis por outros termos erigir em verdade racional e em princípio de todas as outras verdades um puro facto de consciência não susceptível de ser transformado em verdade. O intuito que move Vico nesta crítica é 53 negativo e limitativo: tende a restringir o conhecimento humano aos limites que lhe são próprios e a reconhecer-lhes aquela validez que em tais limites lhe cabe. Por isso Vico observa que Descartes deveria ter dito não já "eu penso, logo sou", mas "eu penso, logo existo 1". A existência é o modo de ser próprio da criatura: significa estar aí ou ter surgido ou estar sobre e supõe a substância, isto é, tudo o que a sustém e encerra a sua essência (Prinia @isp. al Giorn. dei Lett., § 3). Entre o conhecimento do homem e o conhecimento de Deus há portanto o mesmo desvio que entre a existência e a substância que a rege. § 447. VICO: A NOVA CIÊNCIA Reconduzida pelo princípio da identidade do verdadeiro e do real aos seus limites próprios, o conhecimento humano revela-se capaz de investigar uma certa ordem de realidade e incapaz frente a outras ordens. Ele é impotente ante o mundo da natureza e ante o próprio homem como parte deste mundo, porque a natureza é obra divina. Mas está-lhe aberto o mundo das criações humanas. Em De antiquissinw Vico restringira o mundo da criação humana às abstracções da matemática, apresentando 1 Uma vez que esta é a tradução corrente do célebre Bilogismo cartesiano, a observação de Vico parece não ter sentido em português. O leitor no entanto restituirá imediatamente esse sentido abstraindo dessa evidência curiosa. (N. do T.). 54 uma tese já exposta por Hobbes no De homine (1658). Mas na Ciência nova ele reconhece como objecto próprio do conhecimento humano, enquanto obra humana, o mundo da história. No mundo da história o homem não é substância física e metafísica, mas produto e criação da sua própria acção, de modo que este mundo é o mundo humano por excelência, aquele que decerto foi feito pelos homens e cujos princípios eles podem e devem procurar no próprio homem. Mas considerada a esta luz a história não é uma desligada sucessão de eventos: deve ter em si uma ordem fundamental, à qual o desenrolar dos acontecimentos tende ou aponta como ao seu significado final. A tentativa que o homem tem visto sempre frustrar-se, a de descobrir a ordem e as leis da natureza, só pode ser efectuada com êxito no mundo da
história, uma vez que só este é verdadeiramente obra humana. Vico quer ser o Bacon do mundo da história e efectuar relativamente a este mundo a obra que Bacon realizara com respeito ao mundo da natureza. A ciência nova de Vico é nova precisamente no sentido em que instaura uma indagação do mundo histórico que tem por objecto revelar a ordem e as leis deste mundo. Mas é nova apenas como reflexão sobre a história, visto que a reflexão nasce apenas de um certo ponto e é um post factum relativamente à história. Num outro sentido, ela é antiquíssima e nasceu com o homem e com a sua vida social "As doutrinas, diz Vico (S. N., degn., 106) devem começar a partir do momento em que começam as matérias de que tratam." Ela começou 55 de facto a partir do momento em que os homens começaram a pensar humanamente, e não quando os filósofos começaram a reflectir sobre as ideias humanas (1b., p. 186). Como humano pensar, a ciência que Vico chamou nova é a sabedoria originária da qual derivam todas as ciências e artes que formam a humanidade e o homem mesmo no próprio ser do homem. (lb., p. 198). Nesse sentido, acompanha ela toda a história humana e constitui-a essencialmente: de sorte que se verifica nela do modo mais rigoroso a identidade do verdadeiro e do real: é o próprio homem, que pensa a história, que a faz. As fases da história são intrinsecamente caracterizadas pela menor ou maior clareza daquele humano pensar que a acompanha e que passa a constituir as suas manifestações mais salientes: os costumes e o direito, o governo, a língua, etc. § 448. VICO: A História IDEAL ETERNA O ponto de partida da história e da meditação histórica de Vico é a situação originária do homem: "0 homem desesperado de todos os socorros da natureza, deseja uma coisa superior que o venha salvar" (S. N., p. 182). Vico assume assim o ponto de partida do pensamento religioso. De superior à natureza e ao homem só existe Deus. O homem tendo por isso a sair do seu estado de queda para s-. dirigir para uma ordem divina: ele efectua um conato, um esforço, para se subtrair à desordem dos impulsos primitivos. Ora a filosofia deve aju56 dá-lo neste esforço mostrando-lhe como ele deve ser: indicando-lhe como meta a "república. de Platão" e impedindo-o de cair na "degradação de Rómulo", isto é, no estado bestial. Vico indicou assim o marco inicial e o marco final da existência histórica do homem. Ao considerar o termo final, a ciência da história surge a Vico como "teologia civil e racional da providência divina", isto é, a demonstração de uma ordem providencial que vai actuando na sociedade humana à medida que o homem se subtrai à sua queda e à sua miséria primitiva. A história move-se no tempo, mas tende a uma ordem que é universal e eterna. Os homens deixam de ser movidos pelos seus impulsos primitivos para buscarem as suas conveniências particulares; mas mesmo sem o pretenderem explicitamente ou até contra a sua vontade, a "grande cidade do género humano" vai-se definindo como meta geral da
história. A grande cidade do género humano é a comunidade humana na sua ordem ideal, é aquilo que a vida associada do homem deve ser na sua realização final. À luz dela a sucessão temporal adquire o seu verdadeiro significado. Ao mero reconhecimento do facto substitui-se a valorização; ao foi, é, será sucede-se o devia, deve, deverá; sucede-se a necessidade ideal pela qual, entre as muitas direcções que o curso cronológico dos factos podia assumir, uma só é a que ele devia assumir para realizar a ordem da comunidade ideal. É só uma, na série dos possíveis, a alternativa que deve verificar-se (1b., p. 185). Mas esta necessidade ideal não é uma necessidade de facto que anule 57 a possibilidade das outras alternativas. A história ideal eterna, que é a ordem e o significado universal da história, não se identifica nunca com a história no tempo. Esta decorre segundo aquela. "Segundo a história ideal eterna, diz Vico, decorrem no tempo as histórias de todas as nações nos seus surtos, progressos, estados, decadências e fins". Ela é a substância que rege a história temporal, a norma que permite ajuizar. Neste sentido é o dever ser da história no tempo; mas é um dever ser que não anula a problematicidade de tal história, a qual pode também não adequar-se a ela e não alcançar o termo que ela indica. Isto quer dizer que a história ideal eterna é transcendente relativamente à história particular das nações. Esta transcendência não exclui a relação, antes a implica; mas tratase da relação entre a condição e o condicionado, entre o dever ser e o ser, entre a norma e aquilo que se deve erigir em norma. Por isso Vico reconhece o antecedente do seu pensamento na obra de Platão. A república platónica é a norma para a constituição de um estado ideal, é o termo final a que a história deve tender. Vico exproba a Platão o ter ignorado o estado de queda dos homens e o "ter elevado as bárbaras e rudes origens da humanidade pagã ao estado perfeito das suas sublimes cogitações". Reprova, assim, a Platão o ter fixado a sua atenção na meta final da história humana, no seu término transcendente, e não já no seu ponto inicial, na realidade de facto da qual ela parte. Por isso pretende aliar o ensinamento de Platão ao de Tácito e pode considerar todo o 58 desenvolvimento ideal da história como o projecto que vai da humanidade decaída e dispersa à humanidade restituída à ordem da "razão inteiramente esclarecida". Pondo o vinho novo em velhas pipas, Vico descreve este curso progressivo valendo-se da velha ideia de uma sucessão de idades e fala de uma idade dos deuses, de uma idade dos heróis e de uma idade dos homens. Vico atribui esta divisão das idades humanas ao erudito romano Marco Terêncio Varrão, que a teria exposto na sua grande obra Rerum divinarum et humanarum libri, que se perdeu; na realidade, porém, foi exposta pela primeira vez por Platão no Crítias (109 b segs.), que reduzira assim a divisão das cinco idades estabelecidas por Hesíodo. Em Vico, todavia, este velho conceito apresenta-se com o sinal mudado: para os antigos a sucessão das idades constituía a ordem da decadência ou do regresso, estando a perfeição no princípio; para Vico, essa sucessão é uma ordem progressiva. Além disso, a diferença entre as diversas idades não tem um fundamento histórico-mítico, como para os antigos, mas sim antropológico: cada idade é marcada, segundo Vico, pela prevalência de uma particular faculdade humana sobre as outras. Neste sentido, a ciência nova, como doutrina da história ideal eterna, é considerada também por Vico como "uma história das
ideias humanas sobre a qual parece haver de prosseguir a metafisica da mente humana": ela vem a ser a determinação do desenvolvimento intelectual humano desde as rudes origens até à "razão inteiramente esclarecida" e, inclui uma 59 "crítica filosófica" que mostra a origem das ideias humanas e a sua sucessão. Este é um dos pontos-chave da doutrina de Vico. De facto, a história no tempo pode correr sobre a linha da história ideal porque tem em si, como fundamento e norma de todas as suas fases, uma relação com ela: com a totalidade dela e não apenas com aquela parte que se refere ou corresponde à fase em acto. Por isso, seja qual for a fase de desenvolvimento da história temporal, seja a divina da humanidade rude e bestial, seja a heróica, seja a humana da reflexão inteiramente esclarecida, o que impede a imobilidade, a dispersão e a morte da comunidade humana é a relação com a ordem total da história eterna. História que, precisamente por ser eterna, não tem partes não se distribui na sucessão cronológica de um modo tal que a um período desta sucessão corresponda uma fase só dela. Ela é uma ordem transcendente, uma norma divina, que sustém o homem desde os primeiros passos incertos da sua vida temporal. O que constitui a diferença entre as várias fases desta vida temporal é portanto apenas a modalidade da relação, ou seja, a forma espiritual por que o homem se apercebe dela. E a este propósito Vico estabelece o seu aforismo fundamental: "Os homens primeiro sentem sem se aperceberem, depois apercebem-se com ânimo conturbado e comovido, finalmente reflectem com a mente pura". De sorte que os homens começam por se dar conta daquela história ideal eterna, que é a norma e o dever ser da sua história, sob a forma de um obscuro sentir; têm, assim, um con60 fuso pressentimento dela e só por último chegam a pensá-la distintamente. § 449. VICO: AS TRÊS IDADES DA HISTORIA E A SABEDORIA POÉTICA O que provocou a saída do homem do estado bestial e portanto o início da vida civilizada e da história é o obscuro sentimento da ordem providencial da história eterna. A sabedoria primitiva dos homens não tem nada de racional, não tem a clareza da verdade demonstrada: é uma simples certeza obtida sem nenhuma reflexão. É um juízo comummente sentido por toda uma ordem, por todo um povo, por toda uma nação ou por todo o género humano, juízo que é o senso comum das nações (S. N., 12). Antes que a ordem providencial resplandecesse claramente como verdade na reflexão dos filósofos, ela foi uma certeza humana, testemunhada pelo senso comum e garantida pela autoridade. Assim a ciência nova é também uma filosofia da autoridade, a qual esclarece a consciência que o homem tem da ordem providencial antes de alcançar a ciência dela. Como filosofia da autoridade, a ciência nova não pode prescindir do auxílio da filologia, que é precisamente a consideração
da autoridade e da ciência do certo (lb., 10). Reconhecido o senso comum como guia da existência social anteriormente ao nascimento da reflexão filosófica, deve admitir-se que o que é julgado justo por todos 61 ou pela maioria dos homens deve ser a regra da vida social. Este critério vale como um limite às pretensões da reflexão filosófica, da filosofia em sentido estrito. Estes devem ser, adverte Vico (1b., p. 191-192), os confins da razão humana. "E quem queira fugir a eles, veja se não foge a toda a humanidade". A primitiva sabedoria do género humano foi uma sabedoria poética. Os homens que fundaram a sociedade humana eram "estúpidos, insensatos e horríveis bichos" sem nenhum poder de reflexão, mas dotados de fortes sentidos e de robustíssima fantasia. Eles imaginaram e sentiram nas forças naturais que os ameaçavam divindades terríveis e punidoras, por temor das quais começaram a refrear os impulsos bestiais, criando as famílias e as primeiras disposições civis. Constituíram-se assim as repúblicas monásticas, como Vico lhes chama, dominadas pela potestade paterna e fundadas no temor de Deus. Foi esta a idade dos deuses. Iniciada a vida das cidades, as repúblicas passaram a ser dominadas pela classe aristocrática, que cultivava as virtudes heróicas da Piedade, da prudência, da temperança, da bravura e da magnanimidade. Os homens ainda faziam derivar a sua nobreza de Deus, a fantasia prevalecia ainda sobre a reflexão. É esta a idade heróica. Em seguida, da metafísica sentida ou fantasiada passa-se à metafísica reflectida. A relação com a ordem providencial da história eterna assume a forma da reflexão, que visa a buscar a ideia do bem que deve servir de base a um acordo entre todos os homens. É a 62 fase em que nasce a filosofia platónica, empenhada em encontrar no mundo das ideias a conciliação dos interesses privados e o critério de uma justiça comum (lb., p. 949, 104243). A filosofia nasce assim na idade dos homens e é a última e mais madura manifestação daquela sabedoria originária, daquele humano pensar, daquela metafísica natural que é a estrutura mesma da existência histórica. É evidente que para Vico a história ideal não é um modelo que as comunidades humanas adoptam para todo o sempre, piorando-o, mas sim uma ordem que se revela na sua clareza à medida que as próprias comunidades evoluem e cuja revelação é antes a norma do seu desenvolvimento. Por isso as análises de Vico não versam nem sobre a história ideal eterna, nem sobre a história no tempo, consideradas separadamente, mas sobre a relação entre uma e outra, visto que na relação apenas a primeira se revela e vale como ordem providencial e a segunda se afirma e realiza como história propriamente humana. Vico deu a máxima extensão na Ciência Nova ao estudo da sabedoria poética, que é o produto da sensibilidade e da fantasia dos homens primitivos. Ele afirmou a independência da sabedoria poética em relação à reflexão, isto é, à razão ou ao
intelecto. Visto ser a sua base a fantasia, a sabedoria poética é essencialmente poesia: poesia divina porque o transcendente, visto através da fantasia, toma corpo em todas as coisas e em toda a parte faz ver a divindade. Poesia que é criação, e criação sublime, porque é perturbadora em excesso, e, por conse63 guinte, fonte de emoções violentas; mas criação de imagens corpóreas, não como a divina, de coisas reais. Elemento primeiro e fundamental de tal criação é a linguagem que nada tem de arbitrário porque nasceu naturalmente da exigência que têm os homens de se entenderem entre si: exigência que primeiro se satisfaz com "actos mudos", isto é, com gestos, depois com objectos simbólicos, depois com sons, e, finalmente, com palavras articuladas. A poesia exprime portanto a natureza do primitivo mundo humano. Ela não é "sabedoria restabelecida", não contém verdades intelectuais revestidas ou camufladas por imagens, uma vez que é um modo primitivo, sim, mas autónomo, de entender a verdade, de testemunhar o transcendente. Ela procura entender a realidade dando vida e sentido às coisas inanimadas, procura testemunhar o transcendente escolhendo como matéria própria o "impossível crível" e cantando os prodígios e as magias; procura reportar-se à ordem providencial "representando o verdadeiro na sua ideia óptima" e assim supondo completa aquela justiça, que nem sempre a história realiza, por obra de uma divindade que atribui prémios ou castigos segundo os méritos. Assim Vico reconheceu o valor autónomo da poesia e a sua independência em relação a toda actividade intelectual ou raciocinante. Esta tese devia revelar-se fecunda com o desenvolvimento do pensamento estético setecentista que a fará sua. Na maior poesia de todos os tempos, a de Homero, viu Vico a obra anónima e colectiva do povo grego na idade heróica, quando todos os homens eram 64 poetas pela robustez da sua fantasia e exprimiam nos mitos e nos contos fabulosos as verdades que eram incapazes de pôr a claro pela reflexão filosófica. Mas a poesia extinguese e decai, segundo Vico, à medida que a reflexão prevalece nos homens, porquanto a fantasia, que lhe dá origem, é tanto mais robusta quanto mais débil é o raciocínio e os homens se afastam daquilo que é sensível e corpóreo à medida que se tornam capazes de formular conceitos universais. Isto acontece tanto no desenvolvimento do homem particular como na história da humanidade. Dante, que criou a maior poesia da nação italiana, pertence, ele também a uma época de barbárie e precisamente de "barbárie restabelecida", como o foi a Idade Média. Mas para Vico a sabedoria poética não é senão um modo de testemunhar, embora de uma forma obscura e fantástica, aquela ordem providencial, aquela história ideal eterna, que é a norma da existência histórica. A reflexão filosófica transforma o modo de testemunhar aquela ordem: fá-lo resplandecer como verdade racional e com isso torna-o objecto de filosofia. Mas a filosofia não pode suplantar por completo a religião porque as suas máximas racionais sobre a virtude têm bastante menor eficácia sobre o homem do que a religião, a qual faz sentir imediatamente ao homem a realidade da ordem eterna e o
empenho em agir em conformidade com ela. "As religiões, diz Vico, só o são verdadeiramente quando mediante elas os povos realizam obras virtuosas por meio dos sentidos, os quais eficazmente levam os homens a agir. 65 § 450. VICO: A Providência O "primeiro princípio incontestado" da ciência nova é o de que os homens apenas criaram o mundo das nações. Por outro lado, este mundo não se pode entender senão em relação à ordem providencial, à história ideal eterna. Vico chama monásticos ou solitários os filósofos que tornam impossível entender o mundo da História. Tais são Epicuro, Hobbes e Maquiavel, segundo os quais as acções humanas se verificam ao acaso; e tais são os Estóicos e Espinosa que admitem o facto. Tanto * acaso como o facto tornam impossível a História: * acaso exclui a ordem, o facto a liberdade. A ordem providencial garante, segundo Vico, uma e outra coisa. O mundo das nações, diz ele, "saiu de uma mente amiúde diferente, por vezes totalmente contrária e sempre superior a esses fins particulares que esses homens se tinham proposto; * esses fins restritos, tornados meios para servirem * fins mais amplos, sempre os empregou para conservar a geração humana nesta terra" (S. N., p. 1048). Assim, do impulso da libido nasceram os matrimónios e as famílias; da ambição imoderada dos chefes nasceram as cidades; do abuso da liberdade dos nobres para com os plebeus nasceram as leis e a liberdade popular. A providência dirige para os fins da conservação e da justiça da sociedade humana as acções e os impulsos aparentemente mais ruinosos. Mas a acção dá providência não é uma intervenção externa, com vista a corrigir miraculosamente as aberrações e os erros dos homens. Se 66 assim fosse, o único verdadeiro agente da história seria a providência, isto é, Deus mesmo, não o homem. A doutrina de Vico exclui decerto que a história ideal com a sua ordem providencial seja transcendente relativamente à história temporal no sentido de lhe ser externa e estranha e de a dirigir de fora. Por outro lado, exclui igualmente, que a história ideal eterna seja imanente à história temporal humana e que a ordem desta seja garantida em todos casos por aquela. Se assim fosse, o curso
dos acontecimentos humanos deveria necessariamente modelar-se pela sucessão ideal das idades; e uma vez mais, a única verdadeira protagonista da história humana seria a providência divina. Tal providência não pode pois ser entendida como uma necessidade racional intrínseca aos acontecimentos históricos, como uma razão impessoal que age em cada homem, promovendo as suas acções. Neste caso, o reproduzir-se da história ideal eterna na história particular de cada nação seria necessário e uniforme; nenhuma história particular poderia afastar-se de uma linha da sucessão providencial das idades que é própria daquela. O próprio Vico condenou tal hipótese: ela é o facto racional dos Estóicos e de Espinosa. Na realidade, se Vico negou a transcendência como miraculosa intervenção da providência nos eventos históricos, afirmou e defendeu todavia a transcendência no sentido em que o significado último da história (a sua substância e a sua norma) está continuamente para além dos eventos particulares, de que os homens são os autores. A providência é transcendente como substanciali67 dade de valores que sustém os eventos no seu curso ordenado, portanto como norma ideal a que o curso dos acontecimentos nunca se adequa perfeitamente. Mas a providência transcendente é todavia presente ao homem, que só pela relação com ela logra subtrair-se à sua queda, fundar o mundo da História e conservá-lo. E é presente ao homem primeiro sob a forma da sabedoria poética, isto é, de um obscuro mas certeiro pressentimento, depois sob a forma da sabedoria reflexa, isto é, da verdade racional e filosófica. Mas quer como sabedoria poética, quer como sabedoria reflexa, a sabedoria humana é essencialmente religiosa, porque se refere a uma ordem transcendente e divina; e assim se explica a apaixonada defesa que, na conclusão da Ciência nova, Vico faz da função civil da religião. Se enquanto tem por objecto a transcendência da ordem providencial, a ciência nova é uma "teologia civil e racional da providência divina", enquanto tem por objecto a presença normativa daquela ordem na história humana, ela é uma "história das ideias humanas, através da qual parece dever prosseguir a metafísica da mente humana." § 451. VICO: A PROBLEMATICIDADE DA História A doutrina de Vico da relação entre a história ,ideal eterna e a história temporal e a dos recursos são imediatos corolários, do seu conceito de providência. 68 A presença da ordem providencial na consciência dos homens serve para dirigir esta consciência mas não a determina. Os homens permanecem livres embora conhecendo, obscura ou claramente, o termo para que se dirige o devir da sua história. Por isso a história temporal de cada nação pode também não seguir o curso normal da história ideal. E Vico admite que existem nações que se ficaram pela idade bárbara, outras que pararam na heróica, não alcançando nunca o seu desenvolvimento completo; e até no mundo do seu tempo, que, segundo ele afirma, atingira a sua completude, assinala a
existência de nações bárbaras ou precariamente, civilizadas, o que quer dizer que a humanidade se ficou aqui e ali nos seus estádios primitivos. Em compensação, a história doutros povos chegou de golpe à idade última, como sucedeu à América, pela descoberta que dela fez a Europa. Só os Romanos "caminharam com justos passos, deixando-se regular pela Providência" e tiveram todos os três estádios segundo a sua ordem natural. Nem mesmo o refluxo da história, isto é, o voltar a um período anterior, é necessário. Atingido o estádio perfeito, a ameaça da decadência impende às nações. Quando as filosofias caem no cepticismo e, em consequência disso, os estados populares que neles estão assentes se corrompem, as guerras civis agitam as repúblicas e lançam-nas numa desordem total. Para tal desordem há três grandes remédios providenciais. O primeiro é o estabelecer-se um monarca pelo qual a república se transforma em monarquia absoluta. O segundo 69 é a sujeição a nações mais aptas. o terceiro, que intervém quando os dois primeiros se revelem ineficazes, ou seja, impossíveis, é o reasselvajar os homens, o seu retorno à dureza da vida primitiva que os dispersa e ceifa até que o escasso número de homens que restam e a abundância das coisas necessárias à vida tornem possível o renascimento de uma ordem civil, de novo fundada na religião e na justiça (S. N., p. 1044-47). A história recomeça então o seu ciclo. Mas é evidente que a corrupção e a decadência das nações, assim como a repetição dos acontecimentos históricos, são privadas de qualquer necessidade. Isso depende apenas dos homens; e, conquanto seja um risco sobre eles impendente, a possibilidade de ele se verificar é puramente problemática. É evidente que, se a ordem providencial fosse imanente à história humana, se esta coincidisse e constituísse um todo com a história eterna, a sucessão das três idades, a decadência das nações e o seu refluxo histórico, não poderiam faltar na história de nenhuma nação particular. Além disso, no próprio acine de uma nação dever-se-iam encontrar os elementos e as causas da sua decadência necessária, enquanto que Vico sustenta que a Europa cristã atingiu no seu tempo uma civilidade completa, que a sabedoria cristã garante e que não inclui nenhuma ameaça de decadência (1b., p. 1030). Além disso, se assim não fosse, Vico teria considerado inútil meditar e escrever a Ciência Nova. A obra pretende "auxiliar a prudência humana, onde ela se verifique, para que as nações que estão 70 a decair, ou não se arruinem ou não se apressem para a sua ruína" (1b., p. 1053). Ele quer pôr os homens frente à alternativa de serem a forma ou a matéria da história. A matéria da história é constituída pelos homens que não têm nem conselho próprio nem virtude própria, que buscam somente as suas conveniências e não são capazes de constância. Eles
reduziriam o mundo das nações ao caos de que falam os poetas teólogos, "à vida bestial e insana quando esta terra era uma infame selva de animais". A forma e a mente do mundo das nações é constituída pelos homens que podem aconselhar ou defender-se a si e aos outros, que se empenham na acção ou na tarefa que escolhem, e assim concorrem para a harmonia e beleza .Ias repúblicas (1b., p. 1056-57). A estes poucos vem em auxílio a ordem providencial com a religião e as leis, assistidas pela força das armas, força que é aceite e dirigida pelos fortes, sofrida pelos débeis, que são contidos mau grado seu, para que não dissolvam a sociedade humana. Vico entende assim toda a sua obra como visando a tornar claro o que ele denomina o "a encruzilhada de Hércules" frente à qual as nações, uma vez ou outra, vêm a encontrar-se: a alternativa da sua perda ou da sua conservação. Vico não podia nem devia portanto admitir a ideia do progresso necessário. O progresso necessário implica o enriquecimento contínuo da história humana em virtude de uma sua racionalidade necessária: implica que na história nada é erro, decadência, mal, mas tudo encontra o seu lugar e 71 o seu valor positivo: implica que ela seja justificadora, não justiceira. Mas para Vico a história é e deve ser justiceira. Para Vico há nela sempre a possibilidade da queda e do erro, porque tal possibilidade está na natureza do homem, que é o protagonista da História. Por isso admite que na História possa haver e possam ter-se dado paragens temporâneas ou definitivas, perdas irreparáveis, decadências sem renascimento. Toda a sua doutrina se recusa ao optimismo do progresso inevitável e inspira-se no princípio de uma razão problemática que, através do homem e pelo homem, abre caminho, na História. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 444. A primeira ed. completa das obras de Vico é a de Giuseppe Ferrari, em 6 vol., Milão, 1835-37; 2.1 ed. 1852-54. A melhor é -a publicada na colecção "Seritori d'Italia" do editor Laterza di Bari. Ela compreende, val. 1, 1914, Oraz. inaugurali, De studzorum, De antiquissima e polemica cal Giornale dei Letterati; vai. 11, 1936; Diritto universale, vol. IU, 1931; Scienza Nuava prima; vol. IV, 1928; Seienza Nuova seconda; vol. V, 1929, Autobiografia, Carteggi, Poesie varie; vol. VI, 1940, Scriti vari e pagine sparse. Da Scienza Nuova há a ed. comentada por F. Nicolini, em 3 vol., Bari, 1910-16, que é a citada no texto. Outras ed.: Seienza nuava e opere scelte, ao cuidado de N. Abbagnano, Utet, 1952; Opere, ao cuidado de P. Nicolini, Milão-Nápoles, 1953; Opere, ao cuidado de P. Rossi, Milão, 1959. Sobre a vida e o tempo de Vico: F. NiCOLINI, La giovinezza di G. B. Vico, Bari, 1932; Uomini di spada
72 di chiesa di toga di studio ai tempi di V., Milão, 1942; Saggi vichiani, Nápoles, 1955; Commento storico alla seconda scienza nuovâ, vol., 2, Roma, 1940-50. § 445. Sobre as relações entre Vico e a cultura da época: N. BADALONI, Introduzione a V., Milão, 1961. Estudos principais: MICHELET, Discours sur le système et Ia vie de V., 1827; FERRARI, La mente di V., nova ed., Lanciano, 1916; CATTANEO, Sula Scienza Nuova di V., in "Politwnico", 1839; CANTONi, G. B. V., Turim, 1867; WERNER, G. B. V., aIs Philosoph und Gelehrter Forscher 'Viena, 1879; FLINT, V., Edimburgo, 1885; CROCE, La fil. di V., Bari, 1911, 3.a ed., 1933, GENTILE; Studi vichiani, Messina, 1914, 2.1 ed., Florença, 1927; B. DONATI, Nuovi studi sulla fiosofia civile di G. B. Wco, Florença 1936; A. CORSANo, G. B. V., Bari, 1956. A obra fundamental que subtraiu a filosofia de Vico à alternativa das interpretações ou positivistas ou católicas é a cit. de CROCE. Mas esta obra acaba por fazer de Vico um precursor do historicismo de Hegel e negligencia ou deixa na sombra aspectos fundamentais do seu pensamento. Um Vico aparentado aos cartesianos e sobretudo a Malebranche foi apresentado por Giusso, G. B. V. e Ia fil. delPetà barocca, Roma, 1943. Um Vico aparentado ao neoplatonismo é-nos proposto por A. R. CAPONIGRI, Time aind Idea. The Theory of History in G. B. V., Londres, 1953, Sobre o estilo de Vico e sobre Vico como literato: FUEINI, Stile e umanità di G. B. V., Bari, 1946. B. CROCE-F. NiCOLINI; Bibliografia vichiana, 2 vol., Nápoles, 1947-48. 73 VIII LOCKE § 452. LOCKE: VIDA E ESCRITOS No tronco secular do empirismo inglês, que vai de Rogério Bacon e Ockarri a Bacon de Verulam e Hobbes, enxerta João Locke a exigência problemática do cartesianismo. Nascido a 29 de Agosto de 1632, Locke viveu a sua juventude no período tempestuoso da história inglesa em que ocorreram a primeira revolução e a decapitação de Carlos 1. Estudou na Universidade de Oxford, cujo chanceler John Owen. era defensor de uma política de tolerância para com as diferentes religiões: esta ideia não deixou de influir sobre o jovem Locke. Em 1658
obteve o grau de mestre das artes e foi chamado a ensinar na própria universidade de Oxford. Começou então o período mais importante da sua formação espi75 ritual. A maior influência exercida sobro ele foi a das obras de Descartes, mas estudou também Hobbes e provavelmente Gassendi. Em 1666 começou a ocupar-se de estudos naturais e a estudar medicina; e, conquanto não tomasse nunca o título de doutor, os amigos passaram a tratá-lo de "doutor Locke". Ocupava-se também de problemas económicos e políticos e entrou na política militante por volta dos trinta e cinco anos, quando se tornou secretário de Lord Ashley, que foi em seguida conde de Shaftesbury. Em 1672 Lord Ashley foi elevado a Lord chanceler e Locke participou activamente na vida política, apesar da sua saúde precária. Em 1675 Shaftesbury perdeu a protecção do rei Carlos 111 e Locke retirou-se para França, onde viveu cerca de quatro anos, dedicando-se à preparação do Ensaio. Voltou a Londres pelos fins de 1679 para ser de novo vizinho de Shaftesbury que retornara ao poder. Mas este, inculpado de outra traição, foi obrigado a fugir para a Holanda, onde morreu, pouco depois (1682). Não obstante a sua atitude prudente, Locke tornou-se suspeito e em 1683 exilou-se voluntariamente na Holanda, onde permaneceu por mais de cinco anos. Aí tomou parte activa nos preparativos da expedição de Guilherme d'Orange que se efectuou em Novembro de 1688. No séquito da Princesa Maria, mulher de Guilherme, Locke retornou a Inglaterra em 1689. A sua autoridade tornou-se então extraordinária: ele era o representante Intelectual e o defensor filosófico do novo regime liberal. 76 Começou então o período mais intenso da sua actividade literária. Em 1689 saía anonimamente a sua Epístola de tolerância. Também anonimamente saíram em 1690 os Dois Tratados sobre o governo. E em 1690 apareceu finalmente o Ensaio sobre o intelecto humano, que obteve logo um sucesso extraordinário. Nos anos seguintes Locke ocupou-se de outras obras filosóficas, entre as quais a polémica com Stillingfleet, o tratado publicado postumamente sobre a Conduta do intelecto e o Exame de Malebranche. Em 1693 publicou os Pensamentos sobre a educação; e, entre 1695 e 1697, publicava os ensaios sobre a Racionalidade do cristianismo. Até 1691, Locke aceitara a hospitalidade de Sir Francis Masham no castelo de Oates (Essex), a cerca de vinte milhas de Londres, onde foi rodeado de amorosos cuidados por parte de Lady Masham, que era filha do filósofo Cudworth (§ 419). Ali se extinguiu a 20 de Outubro de 1704. Um certo número de apontamentos ou esboços que Locke deixara inéditos foram publicados recentemente. Entre eles, além de algumas páginas do seu Diário, avultam: o primeiro esboço do Ensaio (Draft A, 1671) publicado em 1936, o segundo esboço do Ensaio, bastante mais completo do que o primeiro (Draft B, 1671), publicado em 1931; os Ensaios sobre direito de natureza (1663-64) publicados em 1954 e dois escritos sobre a tolerância (1660-62) que, juntamente com um Ensaio sobre a tolerância (1667 mas publicado em 1876) e com a
Epístola, dão a ideia completa do desenvolvimento do pensamento de Locke sobre este tema. 77 § 453. LOCKE: A RAZÃO FINITA E A EXPERIÊNCIA O que em primeiro lugar distingue Locke de Descartes é o seu conceito da razão. Para Descartes a razão é uma força única, infalível e omnipotente: única, porque igual em todos os homens e possuída por todos na mesma medida; infalível, porque não pode enganar se se seguir o seu método, que é único em todos os campos das suas possíveis aplicações: omnipotente, porque extrai de si mesma o seu material e os seus princípios fundamentais, que lhe são "inatos", isto é, constitutivos. Para Locke, que se inspira em Hobbes, a razão não possui nenhum destes caracteres. A unidade da razão não é dada nem garantida mas há que formá-la e garanti-la através de uma adequada disciplina. "Há urna grande variedade visível entre as inteligências humanas, dizia Locke na Conduta do intelecto, e as suas constituições naturais estabelecem, a este respeito, uma diferença tão grande entre os homens que a arte e o engenho nunca poderão eliminar" (Conduct, § 2). A infalibilidade da razão torna-se impossível pela limitada disponibilidade das ideias, pela sua frequente obscuridade, pela falta de provas, e é excluída pela presença na mente humana de falsos princípios e pelo carácter imperfeito da linguagem, da qual todavia a razão tem necessidade (Ensaio, IV, 17, 9-13). E quanto à omnipotência, até 1676 Locke excluía-a negando que a razão produzisse por si os princípios e o material de que se serve. "Nada, dizia ele, r)ode fazer a razão, essa poderosa 78 faculdade de argumentar, se alguma coisa não é antes posta e concedida. A razão faz uso dos princípios do saber para construir alguma coisa de maior e de mais alto mas não põe esses princípios. Ela não põe o fundamento, conquanto frequentemente erija uma construção majestosa e erga até ao céu a sumidade do sabem (Essay on the Law of Nature, 11; ed. von Leyden, p. 125). Dadas estas limitações constitutivas, a razão pode compreender no seu âmbito a esfera do saber provável, segundo uma exigência que tinha sido já apresentada por Gassendi. Diz Locke: "Como a razão percebe a conexão necessária e indubitável que todas as ideias ou provas têm umas com as outras, em cada grau de uma qualquer demonstração que produza conhecimento, assim, analogamente, ela percebe a conexão provável que une entre si todas as ideias ou provas de cada grau de uma demonstração a cujos juízos seja devido o assentimento" (Ensaio, IV, 17, 2). Mas com esta extensão ao provável, a razão torna-se o guia ou a disciplina de todo o saber, mesmo modesto, e fora dela permanecem (segundo as palavras de Locke) só as opiniões humanas que são puros "efeitos do acaso , e da fortuna" isto é, "de um espírito que flutua à mercê de qualquer aventura, sem tino e sem norte" (lb., IV, 17, 2). Nem mesmo a fé se subtrai então ao controlo da razão: e Locke, já muito antes da publicação do Ensaio, nas notas do seu diário, atribui à razão mesma a função de orientação na
escolha da fé ("Faith and Reason" in Essays on the Law of Nature, cit., p. 276). E como pertence 79 à razão a disciplina do crer, assim lhe pertence a da convivência humana, isto é, da lei natural e do direito. Nos Ensaios sobre a lei de natureza ele já dizia: "Eu entendo por razão, não a faculdade do intelecto que forma o discurso e deduz os argumentos, mas alguns determinados princípios dos quais emanam as fontes de todas as virtudes assim como tudo o que é necessário para formar bem os costumes, já que o que destes princípios correctamente se deduz, a justo título se diz conforme à recta razão" (Essays, I, p. 111). No Ensaio sobre o intelecto humano estes princípios eram (em resultado da sequência desta exposição) mantidos e reforçados, e sobre eles assentavam as atitudes que Locke assumiu no domínio político e religioso, nas obras da sua maturidade. A reforma radical que Locke operou no conceito da razão tem como finalidade adaptá-la à sua função de guia autónomo do homem num campo que não se restringe à matemática e à ciência natural mas abraça todas as questões humanas. A própria investigação gnoseológica de Locke nasce num terreno que não é o do conhecimento teórico mas o dos problemas humanos. O próprio Locke nos informou desta origem na "Epístola ao leitom anteposta ao Ensaio. Numa reunião de cinco ou seis amigos (ocorrida provavelmente no Inverno de 1670), discutia-se sobre questões que nada tinham a ver com a que depois foi objecto da obra. Na discussão encontravam-se dificuldades por toda a parte e não se conseguia encontrar uma solução para as dúvidas. Veio então à mente de Locke que., 80 antes de se embrenhar em indagações desta natureza, era necessário examinar as capacidades próprias do homem e ver que objectos o seu intelecto seria ou não capaz de considerar. Desde então, Locke iniciou o trabalho para o Ensaio. E a partir daí, pode dizerse, nasceu a primeira investigação crítica da filosofia moderna, isto é, a primeira investigação que tem por objecto o estabelecer as efectivas possibilidades humanas dentro dos limites que são próprios do homem. Tais limites são próprios do homem porque são próprios da sua razão; mas são próprios da sua razão porque ela não é criadora ou omnipotente, mas tem de contar com a experiência. É a acção condicionante da experiência que estabelece os limites dos poderes da razão e, portanto, em última análise, do uso que o homem pode fazer dos seus poderes em todos os
campos das suas actividades. A experiência condiciona a razão em primeiro lugar fornecendo-lhe o material que ela é incapaz de criar ou produzir por si: as ideias simples, isto é, os elementos de qualquer saber humano. E em segundo lugar propondo à própria razão as regras ou os modelos ou, em geral, os limites, segundo os quais este material está ordenado ou pode ser utilizado. Locke tomava assim do cartesianismo e em particular da Lógica de Port Royal (§ 416) o conceito da actividade racional como actividade sintética ou ordenadora tanto das ideias como do material bruto de que esta actividade dispõe. Mas corrigia o ponto de vista cartesiano não só considerando a expe81 riência a fonte deste material, mas também atribuindo à experiência mesma a função de controlo de todas as construções que o espírito humano pode tirar de fora de si. Esta função de controlo é o limite fundamental que a experiência impõe à actividade da razão, impedindo-lhe de se aventurar em construções demasiado audazes ou em problemas cujas soluções num sentido ou noutro não podem ser submetidas a prova. Desde os primeiros esboços do Ensaio Locke insistiu na derivação empírica de todo o material cognitivo, portanto na negação do inatismo (que seria para ele a omnipotência da razão) e na redução das capacidades cognitivas humanas à esfera sensível. Mas no Ensaio (e sobretudo na quarta parte da obra) a função de controlo que a experiência é chamada a exercer sobre a actividade racional em todos os seus graus, um controlo intrínseco que é inerente a esta actividade e não lhe vem de fora, torna-se predominante e constitui aquilo que ainda hoje se pode considerar como o ensino fundamental que do empirismo lockiano passou para o iluminismo setecentista, para o racionalismo kantiano e para boa parte da filosofia moderna e contemporânea. § 454. LOCKE: OS FUNDAMENTOS DO "ENSAIO" No Ensaio sobre o intelecto humano, Locke declara pretender determinar "a origem, a certeza e a extensão o do conhecimento humano" nos seus 82 vários graus, incluindo aqueles em que a certeza é mínima ou em que se não vai além da probabilidade. Declara também pretender conduzir esta investigação "corno método ponderativo e histórico", isto é, analítico o descritivo (o método que Gassendi recomendara à ciência em geral) evitando deter-se nos problemas metafísicos que podem nascer no decurso dela. Ele rejeita por isso a hipótese de Hobbes sobre a natureza material do espírito e das ideias e limita-se a considerar as ideias só como tais, isto é, como objectos de conhecimento. Este é o autêntico pressuposto cartesiano da filosofia de Locke. Pensar e ter ideias são a mesma coisa. Logo, porém, Locke introduz a primeira limitação: as ideias derivam exclusivamente da experiência, isto é, são o fruto, não de uma espontaneidade criadora do intelecto humano, mas da sua passividade frente à realidade. E visto que para o homem a realidade ou é realidade interna (o seu eu) ou é realidade externa (as coisas naturais), assim as ideias podem derivar de uma ou de outra destas realidades e chamarem-se ideias de reflexão se derivam do senso interno, e ideias de sensação se derivam do senso externo. São ideias de sensação, ou mais simplesmente sensações, o amarelo, o quente, o duro, o amargo, etc., e em geral todas as qualidades que atribuímos às coisas. São ideias de reflexão a percepção, o pensamento, a dúvida, o raciocínio, o conhecimento, a vontade e
em geral] todas as ideias que se referem a operações do nosso espírito. Locke mantém-se fiel ao princípio cartesiano que ter uma ideia significa percebê-la, isto é, ser cons83 ciente dela e deste princípio se vale na crítica das ideias inatas exposta no primeiro livro do Ensaio. Este primeiro livro é como que uma introdução ao corpo da obra, visto que a doutrina das ideias inatas constitui uma instância que, se fosse aceite, tornaria impossível o empirismo como Locke o entende. Mediante as ideias inatas, o homem teria à sua disposição possibilidades ilimitadas e incontroláveis de conhecimento e nenhuma definição precisa das suas efectivas possibilidades seria possível. Locke não diz quais são os filósofos contra os quais se dirige a sua crítica do inatismo. Nomeia, é certo, a propósito do inatismo dos princípios práticos, Herbert di Cherbury (§ 419), mas não extrai dele as teses fundamentais que são objecto da sua crítica. É certo também que os argumentos cartesianos não deviam ser-lhe desconhecidas; mas o inatismo de Descartes não tem o sentido explícito e actual que Locke confuta. Provavelmente, pretendeu fixar em forma típica as teses fundamentais de todo e qualquer inatismo de modo que a sua crítica adquirisse a máxima universalidade e valesse contra todos os defensores do inatismo. Esta crítica reduz-se substancialmente a um único argumento. As ideias inatas não existem porque não são pensadas: uma ideia não é se não for pensada. As ideias inatas deviam de facto subsistir em todos os homens e por isso também nas crianças e nos idiotas; ma,; visto que não são pensadas por estas categorias de pessoas, não existem nelas e não podem considerar-se inatas. Diz-se que as crianças chegam à consciência das ideias inatas na idade da 84 razão; mas na idade da razão chega-se também ao conhecimento das que não são consideradas inatas: nada proíbe portanto que se possa chegar àquelas que se consideram inatas. Como não existem ideias inatas, também não existem princípios inatos, nem especulativos nem práticos. Os princípios especulativos que se consideram inatos, por exemplo "tudo o que é é", "é impossível para a mesma coisa ser e não sem não :são em verdade inatos porque não obtêm o consenso universal; mas mesmo se o obtivessem, não poderiam dizerse inatos, já que pode demonstrar-se que os homens chegam a eles por outra via, isto é, por outro meio de experiência (Ensaio, 1, 2, 3). Quanto aos princípios práticos e morais, Locke afirma que "não se pode propor nenhuma regra moral da qual não se possa legitimamente exigir a razão: o que seria perfeitamente ridículo e absurdo se as regras morais fossem inatas ou
tão evidentes, como todo o princípio inato deve ser, que se não tivesse necessidade de nenhuma prova em apoio da verdade que se possui e de nenhuma razão para merecer a aprovação dela" (1b., 1, 2, 4). Toda a força da argumentação de Locke está no princípio de que uma ideia ou noção qualquer para existir no espírito deve ser percebida: princípio estritamente cartesiano. Assim se explica que Leibniz (§ 438), embora admitindo o mesmo princípio, tenha defendido o inatismo distinguindo graus de percepção. Se as ideias inatas não são percebidas claramente pelo espírito, podem, segundo Leibniz, ser percebido, Mas obscuramente e existir por isso no espírito sob a forma de pequenas percepções. É esta 85 a tese sustentada por Leibniz contra Locke nos Novos ensaios sobre o intelecto humano. Leibniz admite por isso, como Locke, o princípio cartesiano da ideia como objecto de consciência e chega à confirmação do inatismo distinguindo apenas graus diversos de consciência. Locke separa-se de Descartes e dos cartesianistas ao negar que "a alma pense sempre". "Não há nenhuma razão para crer, diz ele (1b., 11, 1, 20), que a alma pense antes que os sentidos lhe tenham fornecido as ideias em torno dos quais ela pensa. À medida que estas aumentam e são avaliadas em virtude do exercício, aumenta a faculdade de pensar nas suas várias manifestações, isto é, o compor as ideias e reflectir sobre as próprias operações. Aumenta o seu património e ao mesmo tempo aumenta a sua faculdade de recordar, imaginar e raciocinar, e todos os outros modos do pensamento". A mesma possibilidade do pensamento é portanto condicionada e limitada, segundo Locke, pela experiência. § 455. LOCKE: AS IDEIAS SIMPLES E A PASSIVIDADE DO Espírito Se todo o nosso conhecimento resulta de ideias e se as ideias derivam todas da experiência, a análise da nossa capacidade cognitiva deverá em primeiro lugar fornecer uma classificação, isto é, um inventário sistemático de todas as ideias que a experiência nos fornece. É um tal inventário que visa formular o H Livro do Ensaio. 86 Em primeiro lugar cumpre distinguir as ideias simples e as complexas. A experiência (isto é, a sensação e a reflexão,) fornecem-nos apenas ideias simples; as ideias complexas são produzidas pelo nosso espírito mediante a reunião de várias ideias simples. De facto, quando o intelecto é provido pela sensação e pela reflexão de ideias simples, tem a capacidade de reproduzi-las, compará-las e uni-las de um modo infinitamente vário. Mas nem o intelecto mais poderoso pode inventar ou construir uma ideia simples nova, isto é, não derivada da experiência, nem pode destruir nenhuma das ideias adquiridas. Aqui temos o insuperável limite do intelecto humano. Ignorar ou desconhecer este limite significa, segundo Locke, abandonar-se a sonhos quiméricos (Ensaio, 1, 2, 2). As ideias simples podem derivar ou de um só sentido (como as das cores derivam da vista,
as dos sons do ouvido, etc.); ou de mais sentidos (como as ideias de espaço, extensão, figura, repouso o movimento); ou apenas de reflexão (percepção ou pensamento, volição ou vontade); ou ao mesmo tempo da percepção e da reflexão (prazer, dor, força, existência, unidade). Cumpro distinguir das ideias as qualidades do objecto que são modificações da matéria nos corpos que causam em nós aquelas percepções. Todavia, nem toda a ideia é a cópia ou a imagem de uma qualidade objectiva. "Tudo o que o espírito percebe em si mesmo ou que é o imediato objecto da percepção, do pensamento, do intelecto, chama-se ideia: a força que produz em nós a ideia chama-se 87 qualidade do objecto à qual a força pertence" (1b., 11, 8, 8). Locke retoma a este propósito a distinção entre qualidades objectivas e qualidades subjectivas, que já Galileu e Descartes haviam estabelecido, e que ele vai buscar ao físico Boyle (Origem das formas e das qualidades, 1666), chamando qualidades primárias às objectivas, secundárias às outras. As qualidades primárias, que são originárias dos corpos e inseparáveis deles, produzem em nós as ideias simples de solidez, extensão, figura, movimento, repouso e número. As qualidades secundárias, que não existem nos objectos mas são produzidas em nós pelas várias combinações das qualidades primárias, são as cores, os sons, os sabores e os odores. As qualidades secundárias em nada se assemelham aos corpos, enquanto as primárias são imagens dos corpos mesmos. Outras qualidades dos corpos são as forças, isto é, a sua capacidade de produzir alterações nas qualidades primárias dos outros corpos. Entre as ideias simples de reflexão, Locke considera fundamental a percepção, que é o próprio pensamento, e ao mesmo tempo examina as que s-. referem às outras operações do espírito: a memória, a capacidade de distinguir, de comparar, de compor as ideias e, enfim, a de abstrair, da qual nascem as ideias gerais. "Deste modo, conclui ele (lb., 11, 11, 15), tracei uma breve e verdadeira descrição do primordial início do conhecimento humano, mostrando onde o espírito recebia os seus primeiros objectos e através de que passos efectuava os seus 88 LOCKE quais vem a ser constituído todo o conhecimento , de que é capaz".
O
§ 456. LOCKE: AS IDEIAS COMPLEXAS E A ACTIVIDADE Do ESMITO Ao receber as ideias simples o espírito é puramente Passivo. As ideias simples constituem os materiais e os fundamentos das suas construções. O espírito torna-se activo ao reordenar a seu modo este material e também ao variar e
multiplicar indefinidamente os objectos do pensamento. A actividade do espírito explica-se de três modos fundamentais: 1º - Combinando diversas ideias simples numa ideia composta de modo a formar as ideias complexas; 2.'-Reunindo duas ideias, seja simples, seja complexas, de modo a considerá-las simultaneamente, sem no entanto as unir numa única ideia, e formando assim ideias de relações,3.'-Separando uma ideia das outras que a acompanham na realidade, operação que se chama abstrair e mediante a qual são produzidas as ideias gerais. Locke analisa separadamente cada uma destas três manifestações da actividade racional. As ideias complexas, conquanto infinitas em número, deixam-se reduzir a três categorias fundamentais: modos, substâncias e relações. os modos são as ideias complexas que são consideradas não subsistentes por si mas apenas como manifestações de uma substância (ex. triângulo, gratidão, 89 delito, etc.). Substâncias são, pelo contrário, ideias complexas que são consideradas como subsistentes por si mesmas (por ex. homem, pombo, ovelha, etc.). A relação é o confronto de uma ideia com outra. De todos estes vários tipos de ideias complexas Locke detém-se a considerar as formas principais. Pelo que respeita aos modos, começa por distinguir os modos simples, que são variações ou combinações diferentes da mesma ideia simples (por ex. uma vintena ou uma dúzia, etc.) e os modos mistos, que são combinações de ideias simples diversas (por ex. a beleza, o furto, etc.). Em seguida passa a examinar os principais modos simples como o espaço, o tempo, o número, o pensamento, a força. A propósito do espaço e do tempo, examina também as ideias de finito e de infinito e nega a este propósito que o homem tenha a ideia do espaço infinito ou do tempo infinito. A ideia do infinito nasce em virtude da possibilidade que temos de repetir indefinidamente a ideia de uma extensão espacial ou temporal; mas toda a ideia positiva de tempo ou de espaço é sempre finita (Ensaio, 11, 17, 13). A propósito da ideia de força, examina o problema da liberdade humana que é precisamente a força ou o poder que o homem encontra em si mesmo para começar ou impedir, continuar ou interromper, as suas acções voluntárias. Locke reconhece no homem a liberdade de agir, não a de querer. O homem é livre no sentido de poder fazer ou não fazer o que quer, mas não no sentido de poder querer ou não querer o que quer. "0 espírito, diz Locke (lb., H, 21, 24), não tem, com respeito à vontade, o poder de agir ou de não 90 agir no qual consiste a liberdade. Ele não tem o poder de impedir a vontade; não pode evitar uma determinação sobre a acção prospectada, por muito breve que seja a consideração dela. O pensamento, por muito rápido que seja, ou deixa o homem no estado em que se encontrava antes de pensar ou o muda: ou continua a acção ou termina-a. É por isso evidente que ele ordena e dirige o homem ao preferir uma alternativa ou ao negligenciar outra e que a continuação da acção ou a mudança tornam inevitavelmente voluntárias. Locke encontra-se com Hobbes (§ 408) nesta negação da liberdade do querer humano; mas funda esta negação unicamente no mecanismo psicológico da decisão e não já na relação entre a vontade e as coisas externas, na qual Hobbes a fundava.
Particularmente importante é a análise da ideia complexa de substância. Considerando que várias ideias simples são constantemente unidas entre si, o espírito é levado inadvertidamente a considerá-las como uma única ideia simples; e já que não chega a imaginar como uma ideia simples pode subsistir por si, habitua-se a supor um qualquer substratum que seja o fundamento dela. Este substratum chama-se substância. Locke afirma claramente o carácter arbitrário do conceito de substância, que supera o testemunho da experiência. "Se, diz ele (lb., II, 23, 2), alguém perguntar que coisa é o substracto a que a cor ou o peso aderem, responderse-á que tal substracto são as próprias partes extensas e sólidas; e se se perguntar a que coisa aderem a solidez e a extensão, não se poderá responder, no melhor 91 dos casos, senão como aquele indiano, a quem, depois de haver afirmado que o mundo é sustentado Por um grande elefante, )perguntaram sobre que se apoiava o elefante, ao que respondeu: sobre uma grande tartaruga. E, como lhe perguntassem ainda, que apoio tinha a tartaruga, respondeu: alguma coisa que eu não conheço, na verdade... A ideia a que nós damos o nome geral de substância não é senão tal suposto mas desconhecido sustentáculo das qualidades efectivamente existentes". Essa crítica da substância ficou famosa na tradição filosófica. Todavia, ela toca apenas um aspecto da substância, aquele pela qual ela é hypokeimenon ou subjectum ou, como diz Locke, substratum: que é apenas um dos significados que a substância tem na metafísica clássica, por exemplo, em Aristóteles. Mas há em Locke também a crítica de um alto aspecto ou significado da substância, bastante mais importante do ponto de vista metafísico; e é o aspecto pelo qual a substância é razão de ser ou causa das próprias determinações. Esta crítica encontra-se no terceiro livro do Ensaio a propósito dos nomes das substâncias e assume a forma da crítica das essências reais. Se estas essências, raciocina Locke, fossem acessíveis ao entendimento humano, este deveria ser capaz de deduzir delas, por via de raciocínio, todas as determinações das coisas a que aquelas essências pertencem; por exemplo, deveria ser capaz de deduzir da essência real do ouro a sua fusibilidade ou a sua maleabilidade e as outras suas qualidades sem que tais qualidades fossem sequer conhecidas por experiência. Mas isto, segundo Locke, é impossível 92 ao homem. "Não poderemos nunca saber, diz ele, qual seja o número preciso das propriedades que dependem da essência real do ouro, e por consequência o ouro não existiria a menos que conhecêssemos a essência real do ouro por si mesma e com base nesta determinássemos a espécie em questão." (1b., HI, 6, 19). Aquilo que sabemos do ouro é um conjunto de qualidades e para explicar a coexistência constante destas qualidades recorremos ao termo de substância; mas a substância autêntica, se existisse ou fosse conhecida pelo homem, deveria ser conhecida independentemente das qualidades e constituir aquela razão de ser da qual elas deveriam
ser deduzidas sem recorrer à experiência. É este sem dúvida o aspecto mais importante da crítica de Locke à noção de substância e a um dos princípios fundamentais da metafísica tradicional. A actividade do espírito, manifesta-se não só na produção das ideias complexas como no propor ou no reconhecer as relações. O intelecto de facto não se limita nunca à consideração de uma coisa no seu isolamento: progride sempre para lá dela para reconhecer as relações em que ela está com as outras. Nascem assim as relações e os nomes relativos com que se indicam as coisas que são postas em relação. Entre elas, são fundamentais as de causa e efeito, de identidade e de diversidade, e a propósito destas últimas Locke aborda o problema da identidade da pessoa humana. Ele percebe esta identidade na consciência que acompanha os estados ou os pensamentos diversos que se sucedem no sentido interno. O homem não só percebe como também percebe o 93 perceber; todas as suas sensações ou percepções são acompanhadas da consciência que é o seu eu a senti-las ou a percebê-las. Esta consciência procede de modo a que as várias sensações ou percepções constituam um único eu e é por isso o fundamento da unidade da pessoa (1b., 11, 27, 10). A substância espiritual não pode garantir a identidade se a consciência não intervier: sem esta a substância não pode ser uma pessoa, como o não pode ser uma carcaça (Ib., 11, 27, 23). Entre as relações Locke coloca também as leis morais em virtude das quais julgamos o valor das acções. O bem e o mal moral consistem na conformidade ou não conformidade de uma acção à lei que pode ser lei divina, ou lei jurídica, ou lei do costume. Mesmo as ideias de virtude e de vício derivam por isso da experiência porque consistem numa colecção de ideias simples que o homem recebe da sensação ou da reflexão. § 457. LOCKE: A LINGUAGEM E AS IDEIAS GERAIS A actividade do espírito manifesta-se, não só no formar ideias complexas de modos, de substâncias e de relações, mas também na abstracção que dá origem às ideias gerais. Mas as ideias gerais são condicionadas pela linguagem; e à linguagem e à formação das ideias gerais Locke dedica a terceira parte do Ensaio. A linguagem, nascida da necessidade de comunicação entre os homens, é constituída por palavras que são, segundo Locke, sinais 94 convencionais. Estes sinais referem-se originariamente às ideias existentes no espírito de quem fala; mas quem as emprega supõe, no próprio acto, que eles sejam também sinais das ideias que existem no espírito dos outros homens com que comunica e que além disso signifiquem a realidade das coisas. Ora, conquanto na realidade só existam coisas particulares, a maior parte das palavras são, em todas as línguas, constituídas por termos gerais. As palavras tornam-se gerais quando se tornam sinais de ideias gerais; e as ideias tornam-se gerais quando se separam das circunstâncias de tempo e lugar e de qualquer outra ideia que possa determinar esta ou aquela existência particular. "Por
meio de tal abstracção, diz Locke, as ideias tornam-se capazes de representar mais indivíduos em vez de um, como cada um deles possui em si uma conformidade com a ideia abstracta, é chamado com o nome que indica a ideia mesma". O ponto de vista de Locke é pois rigorosamente nominalístico. "0 geral e o universal não pertencem à existência real das coisas, mas são invenções e criaturas do intelecto, feitas para o seu próprio uso, e concernem só aos sinais, isto é, às palavras ou ideias" (Ensaio, 111, 3, 11). A doutrina de que as palavras e as ideias gerais são sinais havia sido exposta por Guilherme de Ockam (§ 316) no século XIV; a Summa totius logicae do franciscano inglês era ainda lida e estudada em Inglaterra nos tempos de Locke, que adopta a sua doutrina fundamental. Os nomes e as ideias gerais são sinais das coisas: isto é, estão em lugar das coisas mesmas. Os nomes 95 gerais indicam as ideias gerais e as ideias gerais são produzidas pelo intelecto na medida em que este observa a semelhança que existe entre grupos de coisas particulares. Assim, às ideias gerais não corresponde em realidade senão a semelhança que existe entre as próprias coisas. Formada a ideia geral, o intelecto assume-a como modelo das coisas particulares às quais ela corresponde e que portanto são indicadas com um único nome. Formada, por exemplo, a ideia geral do homem mediante a observação da semelhança que existe entre os homens, o intelecto emprega o nome homem para indicar todos os homens e atribui à espécie homem todos os indivíduos semelhantes (1b., 111, 3, 13). A imutabilidade das essências, que são precisamente as ideias gerais, é simplesmente a persistência destas ideias no espírito, persistência independente das mutações que sofrem os objectos reais correspondentes. Mas a essência não implica por si própria nenhuma forma de universalidade real porque é apenas um sinal criado pelo intelecto (Ib., 111, 4, 19): Locke reproduz assim o radical nominalismo de Ockam. § 458. LOCKE: A REALIDADE DO CONHECIMENTO O IV livro do Ensaio aborda os problemas relativos à validade do conhecimento e, por conseguinte, à sua extensão e aos graus da sua certeza, e é nele que se apresentam as conclusões relativas ao escopo geral da obra. A experiência fornece o material 96 do conhecimento, mas não é o próprio conhecimento. Este tem sempre que tratar de ideias porque a ideia é o único objecto possível do intelecto; mas não se reduz às ideias porque consiste na percepção de um acordo ou de um desacordo das ideias entre si. Como tal, o conhecimento pode ser de duas espécies fundamentais. É conhecimento intuitivo quando o acordo ou o desacordo de duas ideias é visto imediatamente e em virtude das próprias ideias, sem a intervenção de outras ideias. Assim se concebe imediatamente que o branco não é negro, que três são mais do que dois, etc. Este conhecimento é o mais claro e o mais certo que o homem possa alcançar e é por isso o fundamento da certeza e da evidência de todos os outros conhecimentos. O conhecimento é, ao invés, demonstrativo quando o acordo ou o
desacordo entre duas ideias não é percebido imediatamente mas se torna evidente mediante o uso de ideias intermediárias que se chamam provas. O conhecimento demonstrativo funda-se evidentemente num certo número de conhecimentos intuitivos. De facto, cada passo de um raciocínio, que tenda a demonstrar a relação de duas ideias à primeira vista afastadas entre si, é feito mediante a relação intuitiva entre estas duas ideias com outras que, por seu turno, estão em relação intuitiva. A certeza da dimensão funda-se na da intuição. Mas especialmente nas longas demonstrações, quando as provas são muito numerosas, o erro torna-se possível; de modo que o conhecimento demonstrativo é bastante menos seguro do que o intuitivo. (Ensaio, IV, 2, 1-7). 97 Além destas duas espécies de conhecimento, há um outro que é o conhecimento das coisas existentes fora de nós. Locke é consciente do problema que emerge da própria orientação da sua doutrina. Se o espírito, em todos os seus pensamentos e raciocínios, não tem de tratar senão com ideias, se o conhecimento consiste na percepção do acordo ou do desacordo entre as ideias, de que modo se pode chegar a conhecer uma realidade diversa das ideias? Reduzido o conhecimento a ideias e relações, não ficará reduzido a um puro castelo no ar, a uma fantasia não diferente do mais quimérico sonho? É certo, segundo Locke, que o conhecimento só é real se houver uma conformidade entre as ideias e a realidade das coisas. Mas como pode ser garantida tal conformidade se a realidade das coisas nos é conhecida só através das ideias? A tais interrogações, valorizadas em toda a força do seu significado (lb., IV, 4, 1-3), Locke prepara a resposta com observações preliminares. Pelo que toca às ideias simples, que o espírito não tem capacidade para produzir por si, é necessário admitir que elas devem ser o produto das coisas que actuam sobre o espírito de modo natural e produzem nele as percepções correspondentes. As ideias complexas, ao invés, exceptuando as de substância, são construções do espírito, portanto não valem como imagens das coisas nem se referem à realidade como ao seu original. As ideias de substância devem, para ser verdadeiras, corresponder, elas também, aos seus arquétipos ou modelos externos. Isto é válido também para as proposições, que devem 98 consistir numa união ou separação de sinais correspondentes ao acordo ou ao desacordo das coisas representadas pelos próprios sinais. Exceptuam-se apenas as proposições universais, cuja verdade consiste simplesmente na correspondência entre a palavra e as ideias e não na correspondência entre as palavras e as coisas; e exceptuam-se também as máximas que são proposições de imediata evidência, não concernentes à realidade existente. Estas considerações preliininares (lb., IV, 4, 5-7) deixam todavia irresolvido o problema da justificação dos conhecimentos que implicam legitimamente uma referência à realidade externa. Este problema é considerado por Locke sob três aspectos, correspondentes a três ordens diversas de realidade. Ele afirma que "nós temos o conhecimento da nossa própria existência por meio da intuição: da existência de Deus por meio da demonstração; e, das outras coisas por meio da sensação".
No que se refere à existência do eu, Locke serve-se do procedimento cartesiano. Eu penso, raciocino, duvido e assim percebo a minha própria existência, que a própria dúvida me reconfirma. Por conseguinte, a experiência convence-nos de que temos um conhecimento intuitivo da nossa própria existência e uma infalível percepção interna da nossa realidade (lb., IV, 9, 3). No que respeita à existência de Deus, Locke adopta com algumas variantes a demonstração causal. O nada não pode produzir nada; se alguma coisa existe (e alguma coisa existe seguramente porque eu existo) quer dizer que foi produzida por 99 outra coisa; e, não se Podendo ascender ao infinito, tem de se admitir que um ser eterno produziu todas as coisas. Este ser eterno produziu mediante o homem a inteligência, deve ter portanto uma inteligência infinitamente superior à que foi por ele criada; e pelo mesmo motivo uma potência superior à de todas as forças criadas que actuam na natureza. Evidentemente, este ser eterno, inteligentíssimo, potentíssimo, é Deus (lb., IV, 10). Quanto à realidade das coisas, o homem não tem outro meio de a conhecer senão pela sensação e, precisamente, pela sensação actual. Não há nenhuma relação necessária entre a ideia e a coisa: só o facto de recebermos num dado momento a ideia do exterior nos faz conhecer que algo existe nesse momento fora de nós e produz a ideia em nós. Não é a sensação mas a actualidade da sensação que permite afirmar a realidade do seu objecto. "Ter a ideia de uma coisa no nosso espírito, diz Locke (Ib., IV, 11, 1), não prova a existência de uma coisa, assim como o retrato de um homem não prova que ele está no mundo ou, as visões de um sonho não constituem uma história verdadeira" . Indubitavelmente, o conhecimento que temos da realidade das coisas exteriores não é tão certo como o conhecimento intuitivo de nós próprios ou o conhecimento demonstrativo de Deus; todavia, é bastante certo para merecer o nome de conhecimento. Ninguém é tão céptico que possa não estar certo da realidade das coisas que vê e sente. E se pode duvidar delas, diz Locke, nunca poderá ter uma discussão comigo, já que nunca estará seguro 100 de que eu diga alguma coisa contra sua opinião (1b., IV, 11, 3). Não é admissível que as nossas faculdades nos enganem a tal ponto; é indispensável confiarmos nas nossas faculdades desde o momento em que só podermos conhecê-las empregando-as. Assim, a certeza que a sensação actual nos dá sobre a realidade da coisa que a produz é suficiente a todos os objectivos humanos. Ademais, pode ser confirmada por razões concorrentes. Em primeiro lugar, de facto, as ideias vêm a
faltar-nos quando nos falta o órgão de sentido adequado: o que é uma prova de que as sensações são produzidas por causas externas que impressionam os sentidos. Em segundo lugar, as ideias são produzidas no nosso espírito sem que nós as possamos evitar; o que quer dizer que não são produzidos por nós, mas por uma causa externa. Em terceiro lugar, muitas ideias são produzidas em nós com dor ou com prazer, ao passo que podemos recordá-las sem que sejam acompanhadas por estes sentimentos; o que quer dizer que só o objecto externo os produz em nós quando impressiona os sentidos. Em quarto lugar, os sentidos são testemunhas recíprocas em relação às coisas externas e assim se confirmam mutuamente. Locke sustenta que a certeza obtida através da sensação actual e dos motivos que a confirmam é suficiente ao homem para as necessidades da sua condição. Uma vez mais, ele reconhece que as faculdades humanas não estão adaptadas para se estenderem a todo o ser nem para alcançarem um conhecimento perfeito e livre de 101 escrúpulos ou dúvidas, mas ao mesmo tempo reconhece que, tais como são, alcançam uma evidência suficiente aos objectivos da vida, isto é, para nos orientarmos frente à felicidade e à miséria; e "para lá disso, nada nos concerne, seja do ser, seja do conhecer" (1b., IV, 11, 8). Por outro lado, aprova o princípio de que a certeza da realidade das coisas é garantida apenas pela sensação actual e que para além desta não há certeza. Mesmo que tenha visto há um minuto aquela colecção de ideias simples que é um homem, não o vejo actualmente, não posso estar certo de que o mesmo homem continue a existir, uma vez que não existe conexão necessária entre a sua existência de há um minuto e a sua existência de agora. De mil modos ele pode ter cessado de existir desde o momento em que a sua existência foi testemunhada pelos meus sentidos. É certamente provável que milhões de homens existam actualmente e é compreensível que as minhas acções sejam inspiradas pela confiança na existência deles; mas tudo isto é probabilidade, não certeza (1b., IV, li, 9). § 459. LOCKE: A RAZÃO E OS SEUS L=ES Para além do conhecimento certo estende-se o domínio do conhecimento provável. O conhecimento certo é muito restrito: consiste apenas na intuição do nosso eu, na demonstração de Deus e na sensação actual das coisas externas. Dada esta 102 restrição, a vida humana seria impossível se dependesse em todos os casos da posse de um conhecimento certo. Providencialmente, portanto, o homem é dotado também de uma faculdade com a qual supre a falta de um conhecimento certo; e esta faculdade é o juízo. O juízo consiste, como o conhecimento, no acordo ou no desacordo das ideias entre si. Mas, diversamente do conhecimento, este acordo não é percebido, mas apenas presumido. No conhecimento a demonstração consiste em mostrar o acordo ou o
desacordo de duas ideias mediante uma ou mais provas que têm uma conexão constante, imutável e visível, uma com a outra. O juízo, ao invés, não faz demonstrações, aponta apenas probabilidades, devidas à intervenção de provas cujo conhecimento não é constante nem imutável mas é ou parece suficiente para induzir o espírito a aceitá-las. A probabilidade, portanto, concerne a proposições que não são certas mas nos oferecem apenas um certo encorajamento a considerá-las verdadeiras. Os fundamentos da probabilidade são dois: 1.* a conformidade de alguma coisa com o conhecimento, a observação e a experiência; 2.' o testemunho dos outros, atestando as suas observações e as suas experiências. Nestes dois fundamentos se baseiam os graus diversos da probabilidade, e aos graus diversos da probabilidade devem corresponder graus diversos do consenso dado às proposições prováveis. O primeiro grau de probabilidade é o de uma proposição sobre a qual se obtém o consenso geral de todos os homens. Esta probabilidade é tão alta que é vizinha do conheci103 mento. Obtém-se o segundo grau de probabilidade quando a nossa experiência coincide com o testemunho de muitas outras pessoas dignas de fé. O terceiro grau da probabilidade respeita às coisas que ocorrem indiferentemente, quando são testemunhadas por pessoas dignas de fé. Nesta última espécie de probabilidade se funda a história, a qual, por conseguinte, exorbita do conhecimento certo e é confinada por Locke no último e mais baixo grau da probabilidade (Ensaio, IV, 16, § 11). O conhecimento demonstrativo e o juízo provável constituem, um e outro, a actividade própria da razão. Evidentemente, o conhecimento intuitivo, que consiste na percepção de um acordo ou de um desacordo entre as ideias, e o conhecimento sensível da realidade externa exorbitam da razão, a qual não tem com respeito a eles nenhum papel. Mas a intuição e os sentidos constituem um campo muito restrito de conhecimento. Este campo é ampliado com seguridade pelo conhecimento demonstrativo no qual a razão intervém para encontrar as provas, isto é, as ideias intermédias e para as ordenar entre si. Na demonstração, a razão apresenta-se como sagacidade, isto é, descoberta de provas e Nacção, isto é, ordenação das próprias provas. Mas no conhecimento provável o papel da razão é igualmente essencial porque lhe impede de encontrar, examinar e valorar os fundamentos da probabilidade. A faculdade que encontrou a necessária e indubitável conexão das ideias na demonstração e a conexão provável das provas no juízo é a razão. Abaixo da probabilidade subsistem apenas opiniões, 104 que são efeitos do acaso e pelas quais o espírito oscila entre todas as aventuras, sem tino nem norte (lb., IV, 17, 2). Locke nega que a razão tenha o seu instrumento mais apropriado no silogismo da lógica aristotélico-escolástica. O silogismo não é necessário para raciocinar rectamente porque não serve nem para descobrir as ideias nem para estabelecer a conexão entre elas. O seu único uso é polémico: pode servir para defender os conhecimentos que supomos ter. Os limites, da razão são dados, como disse, pela limitada disponibilidade do material empírico e pela falibilidade da própria razão. Em primeiro lugar, de facto, a razão nada pode fazer onde faltem as ideias. "Onde quer que careçamos de ideias, diz Locke, o nosso raciocínio pára e estamos nos limites de toda a nossa reflexão" (lb., IV, 17, 9). Em segundo lugar, mesmo dispondo das ideias, a razão é limitada ou impedida pela confusão ou imperfeição delas; e em
terceiro lugar, é limitada ou impedida pela falta, de provas, isto é, pela falta daquelas ideias que deveriam servir para demonstrar a concordância certa ou provável entre duas ideias. Mas a razão é também falível, podendo por isso partir de falsos princípios e, neste caso, em vez de ajudar o homem ainda o embrulhará mais; ou pode valer-se de palavras dúbias e de sinais incertos nos discursos e na argumentação e deste modo ser conduzida a um ponto morto (lb., IV, 17, 10-13). Mas com todos os seus limites e as suas imperfeições, a razão é, segundo Locke, o único guia de 105 que o homem dispõe em todas as circunstâncias da vida. A própria fé não pode passar sem ela. Locke entende por fé o assentimento dado a proposições que não são garantias pela razão mas apenas pelo crédito de quem as propõe, enquanto é inspirado por Deus por meio de uma comunicação extraordinária. A fé funda-se portanto na revelação. Mas nem mesmo ela pode fazer com que os homens adquiram ideias simples que não recebam da sensação ou da reflexão. Nem pode provocar o assentimento a proposições que contradigam a evidência da razão. De modo que é a razão que estabelece de algum modo os limites da fé; e, finalmente, só a razão pode decidir sobre a legitimidade e sobre o valor da revelação em que a fé se funda (lb., IV, 19, 10). A uma fé assim reconduzida ao controlo da razão, opõe-se, segundo Locke, o entusiasmo, que é o fanatismo de quem crê possuir a verdade absoluta e ser inspirado por Deus em todas as suas afirmações. Locke mostra o círculo vicioso em que se envolve o entusiasmo: afirma-se que uma certa verdade é revelada por se crer nela firmemente e crêse nela firmemente porque se a julga revelada. Na realidade, a única "luz do espírito" é a evidência racional de uma proposição; e Locke confirma a este propósito o princípio que dirigiu a sua obra: "A razão deve ser em tudo o nosso juiz e guia" (1b., IV, 19, 14). Uma vez que a razão é limitada e falível nas suas possibilidades, o erro liga-se de algum modo ao seu próprio funcionamento e não deriva, como Descartes afirmava, de uma prevalência da von106 tade sobre o intelecto. O erro é devido, segundo Locke, a quatro razões fundamentais: 1.a a falta de provas, entendendo-se por falta não só a ausência absoluta de provas mas também a temporária ou relativa ausência delas, por exemplo o não tê-las ainda encontrado; 2 a a falta de capacidade para usar as provas; 3 a a falta de vontade de vê-las; 4a finalmente, a errada medida da probabilidade. Esta última, por sua vez, pode ser devida à assunção de princípios que se julgam certos, e que são por vezes dúbios ou falsos; ou a ideias instiladas desde a infância; ou a qualquer paixão dominante; ou, enfim, à autoridade. Em tais casos, a primeira coisa a fazer é suspender o assentimento; e o assentimento pode-se suspender, não quando estamos em presença de um conhecimento evidente, intuitivo ou demonstrativo ou de um conhecimento provável, mas quando precisamente faltam as condições da probabilidade. Nos outros casos, só se pode suspender o assentimento detendo a investigação e recusando-se a empregar os instrumentos que ela requer. § 460. LOCKE: O PROBLEMA POLITICO E A LIBERDADE
O Ensaio sobre o entendimento humano, de que expusemos os princípios fundamentais, é certamente o produto mais maduro e feliz da investigação de Locke. Mas os resultados do Ensaio não tinham, segundo Locke, valor final mas instrumental: deviam servir para limitar e dirigir o uso que em todos os 107 campos da sua actividade o homem pode fazer da razão, seu único guia. O próprio Locke, como se disse (§ 453), foi levado a empreender as investigações cujo resultado foi o Ensaio, porque se lhe punham problemas de uma natureza muito diferente. Sabemos que estes problemas eram de natureza política e moral; e a problemas desta natureza, que lhe foram impostos ou sugeridos pelas próprias circunstâncias da sua vida, Locke mantém-se constantemente atento quer durante a preparação do Ensaio, quer após a publicação dele. Sobre a moral, em sentido estrito, Locke não nos deixou escritos. Sabemos pelo Ensaio que era defensor do carácter racional ou demonstrativo da ética, na medida em que considerava que não se pode propor nenhuma regra moral de que se não deva dar a razão; que a razão de tais regras devia ser a sua utilidade para a conservação da sociedade e a felicidade pública; que, para isso, dada a disparidade das regras morais seguidas nos diferentes grupos em que a humanidade se divide, seria necessário isolar e recomendar aquelas que se revelem verdadeiramente eficientes nesse sentido. Mas uma investigação segundo estas directivas, não a empreendeu Locke. Pelo contrário, no domínio do pensamento político e religioso, Locke deixou-nos contributos fundamentais. As obras por ele publicadas, a Epístola sobre a tolerância, os Dois tratados sobre o governo civil, a Racionalidade do cristianismo são escritos que asseguram a Locke neste campo um lugar tão importante como o que o Ensaio lhe assegura no campo mais estritamente filo108 sófico. Estas obras fazem de Locke um dos primeiros e mais eficazes defensores das liberdades dos cidadãos, do estado democrático, da tolerância religiosa e da liberdade das igrejas: ideais que lhe surgem como teoremas, demonstrados e demonstráveis por obra daquela razão finita sobre cuja natureza e regras de uso nos esclarece o Ensaio. Mas nós sabemos pelos escritos inéditos que as conclusões alcançadas nestas obras são o resultado de uma longa investigação, não isenta de oscilações e contrastes; e que nessa investigação Locke exerceu a sua reflexão racional sobre os eventos e as exigências do mundo político e religioso do seu tempo, isto é, sobre a esfera de experiência própria deste campo. Assim, no seu próprio procedimento, foi de algum modo fiel ao seu conceito de razão; ou, se se prefere, no seu conceito da razão exprimiu e codificou o modo como ele próprio a exerceu. A base de todas as discussões políticas de Locke (como, aliás, das da Antiguidade e da Idade Média) é o conceito de direito natural; e o desenvolvimento das suas ideias políticas é acompanhado pelas interpretações que ele deu deste conceito. Nos dois escritos juvenis sobre a tolerância e nos Ensaios sobre direito natural, a lei de natureza é identificada com a lei divina em conformidade com a tradição histórica e medieval que Locke via reproduzida em
numerosos escritos do seu tempo. Correspondentemente, a origem e o fundamento da autoridade e do poder político eram fundados na vontade divina. Mas já nos primeiros escritos Locke reservava aos homens a faculdade de escolher, mediante um con109 trato, o depositário da investidura divina, que por si é indirecta e impessoal. E nos Ensaios confiava à razão a tarefa de revelar e interpretar a lei divina. "A lei de natureza, dizia ele, pode-se descrever como o mandamento que indica o que está ou não está de acordo com a natureza racional e desse modo mesmo manda ou proíbe... A razão não funda e dita tanto estas leis de natureza quanto a busca e a descobre como uma lei decretada por um poder superior e inato nos nossos corações; de modo que ela não é o autor, mas o intérprete daquela lei" (Essays on the Law of Nafure, 1, p. 110). Para Grócio e para Hobbes é a razão mesma que "indica o que está ou não de acordo com a natureza racional"; passa o Locke dos Ensaios é o mandamento de Deus, que a razão se limita a manifestar. O limite da razão para o seu exercício no campo político é, nestes primeiros escritos, não só um limite inferior, fornecido pelo material sobre que a razão deve operar, mas também um limite superior, constituído pela vontade divina. Nos Tratados sobre o governo civil, isto é, na obra que exprime o ponto de vista em que Locke se fixou na sua maturidade, o limite superior desapareceu: a lei de natureza adquire, aos olhos de Locke, a sua autonomia racional mas o seu limite inferior permanece porque ela recebe o seu conteúdo da experiência que neste caso é a experiência da vida humana associada. O primeiro dos Dois tratados destina-se a refutar as teses contidas no Patriarca ou a potência natural dos Reis (1680) de Robert Filmer (falec@do em 1653) segundo o qual o poder dos reis deriva lio por direito hereditário de Adão, a quem Deus conferiu a autoridade sobre todos os seus descendentes e o domínio do mundo. O segundo dos Dois tratados contém a parte positiva da doutrina. Existe, segundo Locke, uma lei de natureza que é a razão mesma na medida em que tem por objecto as,relações entre os homens e prescreve a reciprocidade perfeita de tais relações. Locke, como Hobbes, afirma que esta regra limita o direito natural de cada um mediante igual direito dos outros. Diz Locke: "0 estado de natureza é governado pela lei de natureza, que liga todos: e a razão, que é esta lei, ensina a todos os homens, contanto que a queiram consultar, que, sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar os outros, na sua vida, na sua saúde, liberdade ou prioridade" (Two Treatises of Government, 11, 26). Esta lei de natureza vale para todos os homens enquanto homens (sejam ou não cidadãos). No estado de natureza, isto é, anteriormente à constituição de um poder político, ela é a única lei válida, de modo que a liberdade dos homens neste estado consiste não em vergar-se à vontade ou autoridade de outro mas em respeitar apenas a norma natural. Nem mesmo neste estado a liberdade consiste para cada um "no viver como lhe apraz" Ub., 11, 4, 22). O direito natural do homem é limitado à própria pessoa e é, portanto, direito à vida, à liberdade e à propriedade enquanto produzida pelo próprio trabalho. Este direito implica, indubitavelmente, também o de punir o ofensor e de ser o executor da lei da natureza; mas nem mesmo este segundo direito implica o uso de uma força 111
absoluta ou arbitrária, mas apenas a reacção que a razão indique como proporcionada à transgressão (lb., 11, 2, 8). O estado de natureza não é por isso necessariamente, como queria Hobbes, um estado de guerra, mas pode tomar-se num estado de guerra quando uma ou mais pessoas recorrem à força, ou a uma intenção declarada de força, para obter aquilo que a norma natural proibiria obter, isto é, um controlo sobre a liberdade, sobre a vida e sobre os bens dos outros. É precisamente para evitar este estado de guerra que os homens formam a sociedade e abandonam o estado de natureza: porque um poder a que se possa fazer apelo para obter socorro exclui a permanência indefinida no estado de guerra. Mas a constituição de um poder civil não tira aos homens o direito de que gozavam no estado de natureza, excepto o de fazerem justiça por si próprios, visto que, pelo contrário, a justificação do poder consiste na sua eficácia para garantir aos homens, pacificamente, tais direitos. Se a liberdade natural consiste para o homem em ser limitado apenas pelas leis de natureza (que é a razão mesma), a liberdade do homem na sociedade consiste " em não se sujeitar a outro poder legislativo senão o estabelecido pelo consenso nem ao domínio de outra vontade ou à limitação de outra lei do que aquela que este poder legislativo estabelecerá conformemente à confiança depositada nele" (lb., H, 4, 22). Por outros termos, o consenso dos cidadãos de que se origina o poder civil faz deste poder um poder escolhido pelos próprios cidadãos e, portanto, ao mesmo 112 tempo um acto e uma garantia de liberdade dos cidadãos mesmos. No entanto, a lei de natureza não implica, como sustentava Hobbes, que o contacto que dá origem a uma comunidade civ,1 forme um poder absoluto ou ilimitado, @senão que exclui este. O homem que não possui nenhum poder sobre a própria vida (que pela lei da natureza tem o dever de conservar), não pode, mediante um contracto, tornar-se escravo de um outro e pôr-se a si mesmo sob um poder absoluto que disponha da vida dele como lhe aprouver. Só o consenso daqueles que participam numa comunidade estabelece o direito desta comunidade sobre os seus membros; mas este consenso, como é um acto de liberdade, isto é, de escolha, visa a manter ou garantir esta liberdade mesma é não pode legitimar a sujeição do homem à inconstante, incerta e arbitrária vontade de um outro homem. O primeiro fim de uma comunidade política é o de determinar como a força da comunidade deve ser empregue para se conservar a si mesma e aos seus membros. Este fim responde à função do poder legislativo, que é por isso limitado pelas exigências intrínsecas ao próprio fim. Em primeiro lugar, de facto, as leis promulgadas não devem variar nos casos particulares mas serem iguais para todos. Em segundo lugar, elas só podem visar ao bem do povo. Em terceiro lugar, não se podem impor taxas sem o consenso do próprio povo. Um dos fins fundamentais do governo civil é a defesa da propriedade que é direito natural do homem; e sem esta limita113 ção do poder do governo o usufruto da propriedade torna-se ilusório. Finalmente, o poder legislativo não pode transferir a outros a sua faculdade de fazer leis (1b., 11, 11, 134 segs.).
Além do poder legislativo, que deve ser exercido por uma assembleia, e separado dele, deve haver um poder executivo ao qual é entregue a execução das leis formuladas pelo primeiro. Locke distingue do poder executivo um poder federativo que tem como tarefa representar a comunidade frente às outras comunidades ou a indivíduos estranhos a ela e ao qual incumbem as decisões sobre a guerra ou a paz, as alianças, as leis, etc. (lb., H, 12, 145-47). O poder executivo e o federativo devem estar nas mesmas mãos, porque são praticamente inseparáveis. Mesmo depois da constituição de uma sociedade política, o povo conserva o supremo poder de remover ou alterar o legislativo. Em caso algum a constituição de uma sociedade civil significa que os homens se fiem cegamente na vontade absoluta e no arbitrário domínio de um outro homem. Por isso, cada um conserva o direito de se defender contra os próprios legisladores, quando eles são tão loucos ou tão maus que maltratam as liberdades e as propriedades dos súbditos. O mesmo direito possuem os cidadãos frente ao poder executivo, o qual, por sua própria natureza, está já subordinado ao poder legislativo e deve dar-lhe conta das suas providências (lb., 11, 13, § 152). E mesmo que possua a prerrogativa de aplicar as leis com a largueza e a elasticidade que se requer nos casos particulares, 114 encontra sempre um limite desta prerrogativa nas exigências do bem público. Um poder legítimo está, portanto, estreitamente vinculado. E a diferença entre a monarquia e a tirania, que é uma usurpação de poder, consiste nisto: o rei faz das leis os limites do seu poder e do bem público o alvo do seu governo; o tirano subordina tudo à sua vontade e ao seu apetite (lb., 11, 18, 199). Contra a tirania. como contra todo o poder político que exceda os seus limites e ponha o arbítrio no lugar da lei, o povo tem o direito de recorrer à resistência activa e à força. Neste caso, a resistência não é rebelião porque é antes a resistência contra a rebelião dos governos à lei e à própria natureza da sociedade civil. O povo torna-se juiz dos governantes e de algum modo apela para o próprio juízo de Deus (lb., 11, 19, 241). § 461. LOCKE: O PROBLEMA RELIGIOSO - É À Tolerância A Epístola sobre a tolerância publicada por Locke em 1689 é um dos mais sólidos monumentos elevados à liberdade de consciência. Como iremos ver, os argumentos aduzidos neste escrito em favor da liberdade religiosa e da não intervenção do estado em matéria religiosa conservam ainda hoje, à distância de séculos, a sua validade. Foi o único escrito sobre este tema publicado por Locke, isto é, o único em que exprime as suas convicções maduras e definitivas. Mas ele compusera anteriormente outros dois 115 escritos (1661-62) e um Ensaio sobre a tolerância (1667) que deixara inéditos. Os primeiros dois escritos são substancialmente contrários à tolerância religiosa. O pressuposto desta
atitude é que o que há de essencial ou " necessário" na religião é o culto interior de Deus; e nesta esfera a liberdade do homem coincide com o respeito da lei natural ou revelada, e está ao abrigo de toda a intromissão do poder porque está salvaguardada pela intimidade da consciência. Os actos externos do culto são igualmente necessários à religião; mas não é necessária esta ou aquela modalidade que eles possam assumir pela diversidade das gentes que os praticam, ou dos tempos, ou dos costumes. A variedade que o culto externo pode assumir torna indiferentes as suas modalidades particulares; e a tese de Locke é a de que "o magistrado pode legitimamente determinar o uso de coisas indiferentes relacionadas com a religião" (Escritos editados e inéditos sobre a tolerância, p. 21). No Ensaio sobre a tolerância, a perspectiva mudou. Locke já não se preocupa, como nos primeiros escritos, em reservar ao magistrado civil aquele direito de intervenção que deveria, a seu ver, evitar discórdias e cisões na sociedade civil; mas preocupa-se, ao invés, em estabelecer solidamente os limites do poder civil em matéria religiosa. Ele divide as opiniões e as acções dos homens em três classes. Na primeira, inclui as "que não respeitam ao governo e à sociedade" e como tais classifica as opiniões puramente especulativas e o culto divino. Na segunda, inclui as que, embora não sendo nem boas nem más, concernem 116 à sociedade e às relações entre os homens, e nesse grupo mete as que concernem ao trabalho, matrimónio, educação dos filhos, etc. Na terceira, inclui as que não só respeitam à sociedade mas são também em si mesmas boas ou más, como as virtudes e os vícios mortais. Para com a primeira classe de opiniões e acções (que compreende também os ritos e os actos do culto externo), Locke defende uma tolerância ilimitada; para com a segunda classe, sustenta uma tolerância limitada pela exigência de não enfraquecer o estado e de não causar danos à comunidade; para com a terceira classe, exclui toda a tolerância. Os papistas, segundo Locke, deveriam ser excluídos do benefício da tolerância na medida em que se considerem obrigados a negar a tolerância dos outros. Mas, na Epístola, o conceito de tolerância é estabelecido através de uma análise comparativa do conceito de Estado e do conceito de Igreja e é reconhecido como ponto de encontro dos deveres e interesses respectivos dessas instituições. O Estado, diz Locke, é " uma sociedade de homens constituída para conservar e promover apenas os bens civis", entendendo-se por "bens civis" a vida, a liberdade, a integridade do corpo, a sua imunidade à dor, a posse das coisas externas. Esta tarefa do Estado estabelece os limites da sua soberania; e a salvação da alma está claramente fora destes limites. O único instrumento de que o magistrado civil na realidade dispõe é a coacção; mas a coacção é incapaz de conduzir à salvação porque ninguém pode ser salvo mau grado seu. A salvação depende da fé, e a fé 117 não pode ser incutida nas almas à força: "Se alguém quer acolher algum dogma, ou praticar algum culto para salvar a alma, deve crer com todo o ânimo que esse dogma é
verdadeiro e que o culto será grato a Deus; mas de modo algum uma pena poderá instilar na alma uma convicção deste género". Por outro lado, nem os cidadãos nem a própria Igreja podem pedir a intervenção do magistrado em matéria religiosa. A Igreja, diz Locke, é "uma livre sociedade de homens que se reúnem espontaneamente para honrar publicamente a Deus de modo que julguem ser aceite pela divindade, para obter a salvação da alma". Como sociedade livre e voluntária, a Igreja não faz nem pode fazer coisa alguma que respeite à propriedade dos bens civis ou terrenos, nem pode recorrer à força seja por que motivo for, desde o momento em que o uso da força é reservado ao magistrado civil. Aliás, a força, mesmo quando exercida pela Igreja, é inútil e nociva à salvação. Certamente, a Igreja tem o direito de expulsar do seu seio aqueles cujas crenças considere incompatíveis com os princípios que defende. Mas a excomunhão não deve de modo algum transformar-se numa diminuição dos direitos civis do condenado. Referindo-se a este, diz Locke, que "devem ser inviolavelmente conservados todos os direitos que lhe cabem como homem e como cidadão; estas coisas não pertencem à religião. Um cristão, tal como um pagão, deve ser poupado a toda a violência, a toda a injustiça". Nem a Igreja pode derivar nenhum direito do Estado, nem o Estado da Igreja. "A igreja, quer nela entre o magistrado ou 118 dela saia o magistrado, permanece sempre o que era, uma sociedade livre e voluntária; nem adquire o poder da espada por nela entrar o magistrado nem, se o magistrado sai dela, perde o direito que já tinha de ensinar e de excomungam. Embora nem mesmo na Epístola, apesar de tudo, a tolerância encontre um reconhecimento radical porque Locke sustenta que "os que negam a existência de Deus não podem ser tolerados de modo algum", o escrito de Locke representa, ainda hoje, a melhor justificação que a história da filosofia nos deus da liberdade de consciência. Por outro lado Locke não pretende negar ou diminuir o valor da religião, reduzindo-o à pura fé no sentido em que a fé se contrapõe à razão. Os escritores libertinos (que Locke conhecia) mostravam a tendência para confinar no domínio da fé as crenças absurdas ou repugnantes à razão (§ 418); Locke, que usa alguns dos argumentos de que eles se servira para negar o valor racional da religião, por exemplo a pluralidade e disparidade da fé e dos cultos religiosos, afirma e defende todavia a possibilidade do carácter racional da religião o considera o cristianismo uma religião racional. A Racionalidade do cristianismo destina-se a pôr em evidência no cristianismo aquele núcleo essencial e limpo de superstições que o torna aceitável pela razão e dele faz o melhor aliado da razão mesma pelo que toca à vida moral do género humano. O núcleo essencial do cristianismo é, segundo Locke, o reconhecimento de Cristo como Messias e o reconhecimento da verdadeira natureza de Deus. Estes são os únicos artigos de fé neces119 sários ao cristianismo e constituem uma religião simples, adaptada à compreensão dos literatos e dos trabalhadores, e livre da subtileza dos teólogos. Naturalmente, a fé em Cristo implica também a obediência aos seus preceitos, conquanto ninguém seja obrigado a conhecer todos estes preceitos, que cada qual deve procurar aprender e compreender por si próprio nas Sagradas Escrituras. A justificação do cristianismo reside, segundo Locke, na sua
racionalidade e utilidade. Sem ele, "a parte racional e pensante do género humano" poderia decerto ter descoberto "o único, supremo e indivisível Deus"; mas, para todo o resto da humanidade, esta descoberta teria permanecido inviável. A revelação cristã difundiu-a em todo o mundo. E, além disso, deu autoridade e força a estes preceitos morais que de outro modo teriam sido apenas o património dos filósofos. Por outros termos, o cristianismo foi para Locke uma nova, mais vasta e eficaz promulgação da lei moral e das verdades fundamentais que regem a vida humana. A característica desta posição de Locke é que o cristianismo não é estranho à razão, de modo que não tem necessidade de ser expurgado do exterior, por obra dela, de uma parte supersticiosa e caduca. A razão é de certo modo intrínseca ao próprio cristianismo, que nasceu como esforço de libertar a humanidade de antigos vínculos e tradições; porque a "racionalidade" lhe é conatural e constitui um traço que lhe assegurou no passado e lhe assegura no presente a função histórica. Uma vez mais, para Locke, a razão não é uma força estranha à 120 experiência humana fazendo em redor de si o vazio e destruindo os campos específicos em que essa experiência se articula, mas é antes uma força que actua no interior destes campos e lhes assegura a vida e a validez. § 462. LOCKE: A EDUCAÇÃO Neste sentido de "razão", a educação do homem é uma educação pela razão. Os Pensamentos sobre a educação de Locke são uma obra circunstancial que tem como escopo declarado o delinear o projecto da educação de um jovem pertencente à aristocracia inglesa. Mas este projecto não tem simplesmente em mira a formação das boas maneiras ou, em geral, de uma cultura que ponha o jovem à sua vontade e lhe permita brilhar no ambiente a que é destinado. Locke é decididamente adverso a uma educação dessas e antes insiste no carácter subordinado da cultura. "Admito que o ler, o escrever e a cultura sejam necessários, diz Locke, mas não que sejam a coisa más importante. Creio que consideraríeis muito estúpido quem não estimasse infinitamente mais um homem virtuoso e sage do que um grande erudito" (Pensamento, § 147). Por outro lado, a educação deve antes ter por alvo o ambiente ou o grupo social a que o indivíduo pertence: não pode ser, segundo Locke, a educação de um indivíduo abstraído dos seus vínculos com a sociedade. Mas isto não quer dizer que ela não deva capacitar o indivíduo a julgar e criticar as opiniões, os costumes, as superstições do 121 ambiente a que pertence. Sob este aspecto, a tarefa fundamental da educação é a de preparar o indivíduo a fazer prevalecer, nos seus comportamentos, as exigências da razão. As virtudes, o carácter, a sageza, são os aspectos com que se configura em
Locke o objectivo da educação; mas este objectivo pode ser reassumido na prevalência da razão. "Parece-me evidente que o princípio de toda a virtude e de toda a excelência consiste em nos privamos da satisfação dos nossos desejos quando estes não sejam autorizados pela razão" (1b., § 38). Conformemente ao conceito que Locke tem da razão, a prevalência desta no homem só se pode obter preparando o homem a exercê-la sobre os conteúdos particulares que a experiência lhe oferece. A razão não fecha o homem em si mesmo, mas abre-o ao mundo. Isto faz com que a educação possa formar, mediante o exercício, um conjunto de habilitações ou de capacidades inteligentes que permitem ao homem afrontar e dominar as mais diversas circunstâncias da vida. Por outro lado, uma educação pela razão não é concebida sem o reconhecimento e a formação do senso da dignidade humana. Desta exigência procede a condenação das punições corporais como meio de educação. Estas punições reforçam mais do que enfraquecem a propensão natural para o prazer porque a estimulam fortemente; tornam odiosas as coisas que querem inculcar; finalmente, produzem uma "disciplina de escravos". "0 pequerrucho, diz Locke, submetese e simula a obediência enquanto se encontra dominado pelo temor do 122 açoite; mas assim que este desaparece como o facto de não ser visto lhe assegura a impunidade, ainda mais dá vazão à sua tendência". Em casos extremos, isto é, quando parece ter-se atingido o resultado desejado, tais punições fazem de um jovem desordenado "uma criatura estupidificada" (Ib., 35, 48, 52). Às punições como instrumentos de educação Locke quer que se substitua o sentimento da honra, isto é, o desejo de obter a aprovação dos outros e de evitar a sua reprovação ou desestima. Trata-se de um incentivo de natureza eminentemente social, que estimula fortemente as relações do jovem educando com o grupo a que pertence; mas trata-se sobretudo, na mente de Locke, de um incentivo que não destrói nem diminui a dignidade da pessoa racional. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 452. A primeira ed. completa das obras de Loeke foi publicada em Londres em 1714; outra ed.: Works, 9 vol., Londres, 1824, 1853. An Essay Concerning Human Understanding, edit. Campbell Fraser, 2 vol., Oxford, 1894; An Essay Concerning the Understanding, KnowIedge, Opinion and Assent (Draft B), edit. B. Rand, Harvard, 1931; An Eark Draft of Lockels Essay (Draft A), edit. R. I. Aaron e J. Gibb. Oxford, 1936; Essays on the Law of Nature, The Latin Text with a translation, introduction and notes, together with transcripts of Locke's shorthand in His Journal for 1676, edit. von Leyden. Oxford, 1954 (com importante introdução); Two Treatise8 Of Governement, edit. P. Laslett, Combridge@ 123
1960; Escritos editados e inéditos sobre a tol--rância, ao cuidado de C. A. Viano, Turim, 1961 (contém dois tratados inéditos sobre os poderes reflígiosos, do magistrado civil, um em inglês (1660), o outro em latim (lC>60-62), com as suas traduções italianas; o texto inglês revisto e a tradução ital. de An Essay Concerning Toleration, e a trad. ital. da Epfstola). Trad. ital.: do Essay, de C. Pellizzi, Bari, 1951; dos Two Treatises, de L. Pareyson, Turim, 1948; do Draft B., de Car,11n1 in La conoscenza uInana, Bari, 1948; do Draft A, de V. Sainati em Apêndice à cit. trad. do Ensaio; dos Escritos sobre a tolerância, de Viano (op. cit.). Sobre a vida: LORD KING, The Life of J. L. with Extracts from his Correspondance. Journal and Common-Place Book, Londres, 1829, 1853; M. CRANSTON, J. L., A Biography, London, 1957. § 453. Sobre a vida e formação filosófica de Locke em relação com a cultura e os acontecimentos políticos do tempo, e bem assim sobre os tenias principais da filosofia de Locke é fundamental: C. A. VIANO, J. L., Dal razionalismo all'Ul~nismo, Turim, 1960. Inóltre: A. CAMPBELL FRAsER, L., Londres@ 1908; DMIER, J. L., Mancliester, 1933; R. I. AARON, J. L., Oxford, 1937. § 460. S. P. LAMI3RECHT, The Moral and Political Theory of J. L., Nova Yorque, 1918. § 461. E. E. WORCESTER, The Religious Opinions of J. L., Geneivra, Nova Yorque, 1889; H. I. MeLAcHLAN, The Religious Opinions of Milton, Locke and Newton, Manchester University Presa, 1941. Bibl.: H. O. Christophersen, A Bibliographical Introduction to the Study of J. L., Oslo, 1930; VIANO, op. cit. 124 Ix BERKELEY § 463. BERKELEY: VIDA EESCRITOS A doutrina de Berkeley é a escolástica do empirismo. O empirismo de Locke é tomado por Berkeley como ponto de partida e fundamento de uma defesa dos valores morais e religiosos. Berkeley encontra-se, frente ao empirismo, na mesma posição em que Malebranche se encontra frente ao cartesianismo: ambos utilizam uma ou outra filosofia para uma defesa da espiritualidade religiosa, ainda que procurem completá-la com as doutrinas do neoplatonismo tradicional. Jorge Berkeley nasceu em Dysert na Irlanda a 12 de Março de 1685. Licenciou-se em Dublin em 1707 e conseguiu rapidamente formular o princípio da sua filosofia, o imaterialismo, que desde o princípio concebeu como esforço dirigido a reforçar 125
a consciência religiosa e a defender os seus valores fundamentais. Aos 24 anos, em 1709, publicava o Ensaio de uma nova Teoria da Visão; e um ano depois (1710), o Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano, cujo intento principal é explicitado pelo subtítulo: "onde se investigam as principais causas do erro e das dificuldades nas ciências com os fundamentos do cepticismo, do ateísmo e da irreligião." Em 1713 Berkeley dirigiuse a Londres onde frequentou a brilhante sociedade do seu tempo e travou amizade com os personagens mais conhecidos da política e da literatura, entre outros com o seu conterrâneo Jonathan Swift. Ali publicou os Três Diálogos entre Hylas e Philonous (1713) onde reproduziu na forma dramática do diálogo as teses do tratado. Nos anos seguintes, Berkeley viajou por Itália (1714, 1716-20) e desta viagem deixou-nos uma narração descritiva no Diário em Itália que só foi publicado em 1871. Regressado a Inglaterra, publicava em 1721 um escrito de filosofia natural De Motu e um Ensaio para Prevenir a Ruína da Grã-Bretanha. Em 1723 formulou o grande projecto de evangelizar e civilizar os selvagens da América. Julgando que o seu projecto havia chamado a atenção do público e do governo, partiu em 1728 para fundar um colégio nas ilhas Bermudas. Deteve-se em Rhode Island para esperar (inutilmente) os subsídios prometidos e permaneceu ali até fins de 1731. Nestes três anos compôs o Alcifrón, diálogo polémico contra os livres-pensadores do tempo, o qual foi publicado em 1732. Regressado a Londres, pediu e obteve a 126 sua nomeação como bispo de Cloyne na Irlanda e estabeleceu-se ali (1734), dedicando-se a numerosas obras filantrópicas e morais. Por ocasião das epidemias que assolaram a Irlanda em 1740, julgou ver na água de alcatrão um remédio miraculoso. Escreveu então a Siris ou "Cadeia de Reflexões o investigações filosóficas em torno da virtude das águas de alcatrão e outros diversos argumentos relacionados entre si e que derivam uns dos outros." Em 1752 estabeleceu-se em Oxford e ali morreu em 14 de Fevereiro de 1753. A preocupação dominante de Berkeley não é a filosófica mas a religião; e a própria religiosidade é considerada por ele de um ponto de vista mais prático do que especulativo, como fundamento necessário da vida moral e política. A doutrina que lhe assegura um lugar eminente na história da filosofia o seu espiritualismo imaterialístico-é por si considerada simplesmente como. um instrumento de apologética religiosa, não como fim em si própria. Por outro lado, ela só ocupa a sua actividade juvenil, até 1713, isto é até à idade de 28 anos. Nas obras seguintes, aquela doutrina, mesmo sem ser expressamente contraditada ou negada, é posta de lado e são procurados noutra parte, isto é, no neoplatonismo tradicional, os elementos de uma apologética religiosa. O Alcifrón e o Siris são as obras principais deste segundo período; mas escritos menores de Berkeley revelam igualmente a intenção da sua actividade filosófica. Assim, no Analista, "discurso dirigido a um matemático incrédulo" (1734), 127 defende a tese de que os últimos fundamentos da matemática são tão incompreensíveis como as verdades do cristianismo e que, por isso, se se tem fé nas matemáticas, com maior razão se deve crer nas verdades religiosas, - tese que retoma na Defesa do livre Pensamento na Matemática (1735), fazendo ressaltar a contradição em que caem alguns matemáticos que " acreditara na doutrina das fluxões"
mas "pretendem, rejeitar a religião cristã porque não podem crer aquilo que não compreendem ou porque não podem assentir sem evidência ou porque não podem submeter a sua fé à autoridade" (Works, 111, p. 66). Vista no seu conjunto, a obra de Berkeley revela claramente o seu carácter apologético e a natureza escolástica do seu aspecto mais propriamente filosófico. Nos escritos juvenis, Berkeley vale-se do empirismo para combater o materialismo e o cepticismo da geração em que nasceu. A conclusão apologética é naquelas obras o resultado de uma crítica filosófica negativa. Nas obras da maturidade, ilustra e defende positivamente os princípios da religiosidade, tal como os entende, recorrendo ao auxílio da literatura tradicional. A unidade da personalidade de Berkeley não está, pois, nem no empirismo dos primeiros escritos nem na metafísica neoplatônica dos escritos posteriores. É a unidade de uma personalidade religiosa que se volta gradualmente da defesa negativa da religiosidade para um esclarecimento positivo das suas exigências e do seu conteúdo doutrinal. 128 § 464. BERKELEY: O NOMINALISMO Numa colectânea juvenil' de pensamento (Commonplace book, publicado em 1871), Berkeley apresentava já sob a forma de apontamentos soltos os temas sobre que devia insistir a sua especulação. Estes temas aparecem claramente no seu primeiro escrito Ensaio de uma Teoria da Visão. A tese de Berkeley é a de que a distância dos objectos ao olho não se vê, mas é somente sugerida ao espírito pelas sensações que derivam dos movimentos do globo ocular. Assim a grandeza dos objectos e a sua situação recíproca não são vistas directamente: são apenas interpretações do significado táctil das cores, as quais são na realidade as únicas coisas verdadeiramente vistas pelos olhos. A coincidência das sensações tácteis e das visuais não é justificada por nada. Umas e outras sensações são simplesmente sinais com os quais é constituída a linguagem da natureza dirigida por Deus aos sentidos e à inteligência do homem. Esta linguagem tem por fim instruir o homem a regular as suas acções para obter aquilo que é necessário à sua vida e evitar aquilo que pode destruí-la (Teoria da Visão, § 147). Já nesta análise da visão Berkeley prescinde de qualquer referência a uma realidade externa e reduz as sensações a sinais de uma linguagem natural que é o meio de comunicação entre Deus e o homem. A negação da realidade externa torna-se um tema das obras seguintes. Na introdução do Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano, Berkeley estabelece as 129 suas premissas gnoseológicas. A causa principal dos erros e das incertezas que se encontram na filosofia é a crença na capacidade do espírito em formar ideias abstractas. O espírito humano, quando reconheceu que todos os objectos extensos têm como tais
qualquer coisa em comum, isola este elemento comum dos outros elementos (grandeza, figura, cor ete.) que diferenciam os próprios objectos e forma a ideia abstracta de extensão que não é linha, nem superfície, nem sólido e não tem figura nem grandeza, mas está completamente separada de todas estas coisas. Do mesmo modo forma a ideia abstracta de cor, que não é nenhuma das cores particulares, e de homem que não possui nenhum dos caracteres particulares, próprios dos homens singulares. Ora Berkeley nega que o espírito humano ,tenha a faculdade de abstracção e que as ideias abstractas sejam legítimas. A ideia de um homem é sempre a de um homem particular, branco ou negro, alto ou baixo, ete. A ideia da extensão é sempre a de um objecto particular extenso com determinada figura e grandeza, e assim sucessivamente. Não há a ideia de homem que não tenha caracteres particulares, como não há na realidade um homem de tal género. Estas considerações servem a Berkeley para defender um nominalismo que é ainda mais radical do que o de Locke e que deriva também directamente de Ockham. As ideias a que Locke chama gerais não são ideias abstractas, como sustenta, mas ideias particulares tomadas como sinais de um grupo de outras ideias particulares afins entre si. O carácter de universalidade que a 130 ideia particular adquire por este modo deriva apenas da sua relação com as outras ideias particulares em lugar das quais pode estar, e deve-se portanto à sua função de sinal. O triângulo que um geómetra tem presente para demonstrar um teorema qualquer é sempre um triângulo particular, por exemplo isósceles; mas dado que desses caracteres particulares não se faz menção no curso da demonstração, o teorema demonstrado vale por todos os triângulos indistintamente, cada um dos quais pode tomar o lugar daquele considerado. Esta é a única universalidade que as nossas ideias podem ter. Quanto às ideias abstractas, a sua origem deve-se simplesmente ao mau uso das palavras e o melhor meio de nos libertarmos dele e de evitar as confusões e os problemas fictícios a que dão origem, é o de incidir a nossa atenção sobre as ideias e não sobre as palavras que as ideias exprimem. Desta maneira se conseguirá facilmente a clareza e a distinção que são os critérios da sua verdade. - Esta redução das ideias gerais a sinais é para Berkeley apenas o ponto de partida de um nominalismo radical cujas etapas seguintes serão: 1.a a redução de toda a realidade sensível a ideia; 2.11 a redução da ideia a sinal de uma linguagem divina. § 465. BERKELEY: O IMATERIALISMO Berkeley adopta o princípio cartesiano, já aceite por Locke, de que os únicos objectos do conhecimento humano são as ideias. Aquilo a que nós 131 chamamos coisa não é mais do que uma colecção de ideias; por exemplo, uma maçã é conjunto de uma certa cor, de um aroma, de uma figura, de uma consistência determinada. Ora, para existirem, as ideias têm necessidade de ser percebidas: o seu esse, diz Berkeley (Princípios, § 3), consiste no
percipi, e não é pois possível que existam num modo qualquer fora dos espíritos que os percebam. Comummente crê-se que as coisas naturais (os homens, as casas, as montanhas etc.) têm uma existência real distinta que o intelecto tem delas: distingue-se o ser percebido de uma coisa do seu ser real. Mas esta distinção não é mais que uma das muitas abstracções que Berkeley condenou antecipadamente. Na realidade é impossível conceber uma coisa sensível separada ou distinta da percepção relativa. O objecto e a percepção são a mesma coisa e não podem ser abstraídas uma da outra. Isto quer dizer que não existe uma substância corpórea. ou matéria, no sentido em que comummente se entende, isto é, como objecto imediato do nosso conhecimento. Este objecto é somente uma ideia e a ideia não existe se não for percebida. A única substância real é, pois, o espírito que percebe as ideias (lb., § 7). Mas além desta primeira forma de materialismo, existe outra mais refinada pela qual se admite que os corpos materiais não são imediatamente percebidos, mas são os originais, os modelos das coisas ideias que seriam cópias suas ou imagens. Berkeley ,Tebate que se estes exemplares externos das nossas ideias são perceptíveis são ideias; e se não são 132 perceptíveis é impossível que possam assemelhar-se às ideias dado que uma cor, por exemplo, nunca será semelhante a qualquer coisa invisível. Assim este ponto de vista (que era o de Locke) é eliminado. Entre as qualidades primeiras e segundas não há nenhuma diferença. Em primeiro lugar, as qualidades primeiras não existem sem as segundas; não há, por exemplo, uma extensão que não seja colorida. E em qualquer caso a forma, o movimento, a grandeza, etc., são ideias exactamente como as cores, os sons, etc. Não podem, pois, subsistir fora de um espírito que as perceba, e não são mais objectivas que as chamadas segundas. O último refúgio do materialismo pode ser o de admitir a substância material como um substracto das qualidades sensíveis. Mas na medida em que este substracto material deve ser por definição diferente das ideias sensíveis, não terá nenhuma relação com a nossa percepção e não terá maneira de demonstrar a sua existência. Tão-pouco poderia ser considerado como a causa das ideias porque não se pode chegar a conceber como é que um corpo age sobre o espírito ou pode produzir uma ideia. A matéria, se existisse, seria inactiva e não poderia produzir nada; muito menos poderia produzir uma coisa não material como a ideia. A afirmação da realidade dos objectos sensíveis fora do espírito é, pois, para Berkeley, absolutamente privada de sentido. Nós podemos indubitavelmente pensar que há árvores num parque ou livros numa biblioteca sem que ninguém os perceba; mas isto equivale a pensá-los como não pensados, pre133 cisamente no momento em que se pensa neles, o que é uma contradição evidente (lb., § 23). As ideias devem indubitavelmente ter uma
causa, mas esta causa não pode ser, como se viu, a matéria; e não podem ser também as próprias ideias. As ideias são essencialmente inactivas: estão absolutamente privadas de força e de acção. Activo é apenas o espírito que as possui. O nosso espírito pode, portanto, agir sobre as ideias e age de facto unindo-as e variando-as à sua vontade. Mas não tem poder sobre as ideias percebidas actualmente, isto é sobre aquelas a que nós chamamos habitualmente coisas naturais. Estas ideias são mais fortes, mais vivas e mais distintas do que as da imaginação. Têm também uma ordem e uma coerência bastante superiores à das ideias agrupadas pelos homens. Devem, pois, ser produzidas em nós por um espírito superior que é Deus. Aquelas a que nós chamamos leis da natureza são as regras fixas e os métodos constantes mediante os quais Deus produz em nós as ideias dos sentidos. Nós aprendemos essas regras da experiência, a qual nos ensina que uma ideia é acompanhada por uma outra no curso ordinário das coisas. Assim estamos em posição de nos regular nas necessidades da vida; e sabemos, por exemplo, que os alimentos nutrem, o fogo queima, etc. A ordem pela qual as ideias naturais se apresentam demonstra, portanto, a bondade e a sabedoria do espírito que nos governa (Ib., § 29-32). Berkeley não pretende com isto retirar toda a realidade ao conhecimento e reduzi-lo a fantasia ou sonho. Considera ter estabelecido solidamente a dife134 rença entre sonho e fantasia, reconhecendo que as ideias a que nós chamamos coisas reais são produzidas nos nossos sentidos por Deus e que as outras, bastante menos regulares e vivas, a que nós chamamos propriamente ideias, são as imagens das primeiras (Ib., § 33). Mas não é contrário ao uso do termo coisas para indicar as ideias reais provenientes de Deus. É uma questão de palavras: o importante é não atribuir às chamadas coisas uma realidade exterior ao espírito (Dial., 111; Works, 1, p. 471). Tão-pouco admite que as ideias não existam de facto nos intervalos em que não são percebidas por cada um de nós e que por isso as coisas seriam aniquiladas e criadas a todo o momento, quando não são percebidas por nós, são percebidas por outros espíritos (Princ., § 48). Neste sentido, as coisas podem dizer-se também externas com respeito à sua origem, na medida em que não são geradas no próprio interior do espírito, mas impressas nele por um espírito diferente daquele que as percebe (1b., § 90). Berkeley admite assim que Deus conhece tudo aquilo que é objecto das nossas sensações; mas nega que em Deus este conhecimento seja uma experiência sensível semelhante à nossa porque tal experiência é incompatível com a perfeição divina. Deus emprega antes as sensações como sinais para exprimir ao espírito humano as suas próprias concepções (Dial., 111; Works, 1, p. 458-59). Berkeley faz ver imediatamente a vantagem que desta negação da matéria deriva para a religião. Se se admite que a matéria é real, a existência de 135 Deus torna-se inútil porque a Própria matéria se torna a causa de todas as Coisas e das ideias que estão em nós. Nega-se assim todo o desígnio providencial, toda a liberdade e inteligência na formação do mundo, a imortalidade da alma e a possibilidade da ressurreição. A existência da matéria é * principal fundamento do ateísmo e do fatalismo * o Próprio Princípio da idolatria depende dela. Uma vez banida a matéria, só se Pode recorrer a Deus para explicar a origem, a ordem e a beleza das nossas ideias sensíveis e a Própria existência das coisas sensíveis se apresenta como a evidência imediata da existência de Deus. A Consideração e o estudo da natureza adquirem neste caso um imediato significado religioso já que dar-se conta das 'leis naturais significa interpretar a linguagem através da qual Deus nos descobre os seus atributos e nos guia para a felicidade
da vida. A ciência da natureza é uma espécie de gramática da linguagem divina: considera mais os sinais do que as causas reais. A filosofia é a verdadeira leitura da língua. linguagem divina da natureza Porque descobre o seu significado religioso (princ.@ §108-109). Por isso a ciência da natureza pára nos sinais desta linguagem e nas suas relações; a filosofia eleva-se à grandeza, à sabedoria e à benevolência do criador (1b., § 109). O imaterialismo torna além disso indubitável a imortalidade da alma. O espírito, isto é a substância que pensa, percebe e quer, não tem qualquer carácter comum com as ideias. As ideias são passivas, o espírito é actividade; as ideias são passa136 geiras e mutáveis, o espírito é uma realidade permanente e simples, estranha a toda a composição. Como tal a alma do homem é naturalmente imortal (1b., § 141). O espírito e as ideias são tão diferentes nem sequer podemos dizer que temos uma ideia do espírito. Conhecemo-lo, sim, e com absoluta certeza; mas este conhecimento deve chamar-se antes noção porque é completamente diferente das ideias que constituem o mundo natural (lb., § 142). Por sua vez, os espíritos distintos do nosso só nos são conhecidos através das ideias que produzem em nós. O conhecimento deles não é imediato como o que temos do nosso próprio espírito; mas mediato e indirecto, isto é, através dos movimentos, das mudanças e das combinações das ideias pelas quais somos informados da existência de certos seres particulares semelhantes a nós. Sendo a maior parte das ideias aquilo a que nós chamamos "obras da natureza", elas revelam-nos directamente a acção de Deus como de um espírito único, infinito e perfeito. A existência de Deus é bastante mais evidente do que a dos homens (Ib., § 147). § 466. BERKELEY: A METAMICA NEoPLATóNICA Os fundamentos doutrinários até agora expostos constituem as teses das obras juvenis de Berkeley. Já nestas obras não são consideradas como fins em si mesmos mas só como meios aptos a defender e a reforçar a religião nos homens. Este fim apologético torna-se cada vez mais dominante nas obras seguintes. Estas não repudiam as teses típicas do 137 imaterialismo e da redução das coisas naturais a simples ideias; mas, de algum modo, põem-nas entre parêntesis, insistindo cada vez mais numa metafísica religiosa tomada do neoplatonismo. A passagem da primeira para a segunda fase d,@ Berkeley pode-se descobrir no breve escrito latino De motu de 1721. A tese deste escrito é a de que "aqueles que afirmam que há nos corpos uma força activa, acção e princípio de movimento, não se fundam em nenhuma experiência, servem-se de termos gerais e obscuros e não compreendem o que querem. Pelo contrário, aqueles que afirmam que o princípio do movimento é a mente, sustentam uma doutrina que é defendida pela experiência e aprovada pelo consenso dos homens mais doutos de todos os tempos" (De motu, § 31). A mente de que aqui se fala é o próprio Deus, "o qual move e contém toda esta mole corpórea e é a causa verdadeira, eficiente do movimento e da própria comunicação do movimento". Berkeley reconhece, contudo, que na filosofia natural é preciso buscar as causas dos fenómenos em princípios mecânicos enquanto que na metafísica se chega à causa verdadeira e activa, isto é ao próprio Deus (1b., § 69-72). As obras seguintes, de Berkeley insistem cada vez mais nesta metafísica que vê em Deus a mente e o princípio informador do universo.
O Alcifron é, como diz o subtítulo, uma "apologia da religião cristã contra os chamados livres-pensadores." É dirigido contra o deísmo iluminista que separava da religião a moral e reduzia a própria religião a princípios racionais independentes de 138 toda a revelação. Se bem que as primeiras obras de Berkeley dêem um conceito da divindade bastante próximo do dos chamados livres-pensadores, porque fundado unicamente na razão natural e não na revelação, o Alcifron afirma decididamente a insuficiência da religião natural. Esta nunca chega a ser uma autêntica e sentida fé que se manifeste em orações e actos externos de culto, nem mesmo naqueles que a professam, nem nunca se pode tornar a religião popular ou nacional de um país (Ale., V, 9). A revelação é necessária à religião para que seja verdadeiramente operante no espírito e nas acções dos homens e exerce uma acção benéfica sobre os seus costumes. Não é possível moral sem religião; e dado que a religião se funda na fé em Deus, o IV Diálogo da obra retoma os argumentos aduzidos na Nova Teoria da Visão que concluem mostrando no universo natural a linguagem que Deus fala aos homens. Os objectos próprios da vista, diz Berkeley (1b., IV, 10), "são luzes e cores com diferentes sombras e graus, as quais, infinitamente variadas e combinadas, formam uma linguagem maravilhosamente adaptada a sugerir-nos e a mostrar-nos as distâncias, as figuras, as situações, as diminuições e as várias qualidades dos objectos tangíveis não por semelhança nem por conexão necessária, mas pela arbitrária imposição da providência, precisamente como as palavras sugerem as coisas que elas significam." Deste modo Deus fala aos nossos olhos e devemos aprender a linguagem divina e reconhecer através dela a sabedoria e a bondade de Deus. Os últimos diálogos do Alcifron 139 são dirigidos a reivindicar a superioridade do cristianismo sobre as outras religiões e a defender os milagres e os mistérios do mesmo cristianismo com o argumento de que eles não são mais incompreensíveis do que os fundamentos das ciências naturais e, portanto, do que toda a experiência humana. Mais afastada ainda da gnoseologia das primeiras obras é a Siris que é todo um tecido de reminiscências e de citações tomadas da tradição religiosa neoplatónica. Depois de ter falado das virtudes medicamentosas da água de alcatrão, Berkeley passa a explicar o modo como ela age e chega a reconhecer que o princípio da sua acção é o mesmo que age em todo o universo: um fogo invisível, luz, éter ou espírito animado do universo. O éter anima todas as coisas comunicando a todos os seres uma centelha vital que, depois do fim do ser singular, torna a fundir-se com ele. Mas o éter é apenas o meio universal de que Deus se serve para explicar a sua acção. A causa primeira não pode ser senão espiritual porque só o espírito é activo. A cadeia dos fenómenos físicos, aos quais permanece limitada a ciência natural, deve até um certo ponto fundamentar-se no entendimento divino como causa de todo o fenómeno e de todo o movimento (Siris, § 237). E a propósito da essência divina,
Berkeley reproduz as especulações do neoplatonismo, reconhecendo nela três hipóstases: a Autoridade, a Luz e a Vida, as quais se integram mutuamente dado que não pode haver autoridade ou poder sem luz ou conhecimento e não pode haver nem uma nem outra coisa sem vida e acção (1b., § 361). 140 Aqui não se faz já referência à irrealidade das coisas materiais e à sua redução às ideias. Todavia, esta metafísica é substancialmente idêntica à pressuposta nas primeiras obras. As coisas são sempre e apenas manifestações da acção divina, sinais naturais do entendimento activo; não têm realidade nem actividade por sua conta, mas nelas age e se revela o próprio Deus. Da primeira à última das suas obras, Berkeley permaneceu fiel ao seu intento fundamental: o de justificar a vida religiosa como um diálogo entre Deus e o homem, diálogo no qual Deus fala ao homem mediante aqueles sinais ou palavras que são as coisas naturais e o homem pode, através destas palavras, chegar até Deus. O empirismo colocou Berkeley em condições de eliminar o obstáculo ao diálogo representado pelo mundo material e descobrir nas coisas naturais as palavras de Deus, os sinais da sua imediata revelação. O carácter nitidamente religioso da obra de Berkeley é por último evidente no princípio por ele proposto como fundamento da moral política: a obediência passiva ao poder constituído. Num discurso publicado em 1712 sobre a Obediência Passiva ou Princípios da Lei da Natureza, Berkeley afirma que o homem não pode alcançar a sua felicidade confiando-se ao seu juízo particular mas apenas conformando-se com leis determinadas e estabelecidas. Estas leis são impressas no seu espírito por Deus e a obediência a elas é portanto a própria obediência a Deus. Berkeley identifica estas leis naturais divinas com as leis da sociedade e, 141 portanto, afirma que "a fidelidade ou submissão à autoridade suprema tem, quando praticada simultaneamente com as outras virtudes, uma conexão necessária com o bemestar de toda a humanidade; e que por consequência é um dever moral ou um ramo da religião natural" (§ 16). Rejeita, portanto, a doutrina do contrato como origem da sociedade civil e a legitimidade moral da rebelião à autoridade do governo. Os inconvenientes a que a obediência passiva pode conduzir não são diferentes dos inconvenientes que podem resultar do cumprimento de qualquer outro dever moral: não podem, portanto, limitar aquela obediência assim como não limitam estes outros deveres. A liberdade de crítica é recuperada pelo indivíduo no caso de mudanças ou flutuações do governo; mas essa liberdade cessa quando a constituição é clara e o objecto da submissão indubitável. Em tal caso, nenhum pretexto de interesse, de amizade ou de bem público pode eximir da obrigação de obediência passiva (lb., § 54). Berkeley colocava como epígrafe do seu escrito o versículo de S. Paulo (Rom., XIII, 2): "Todo aquele que resiste ao Poder resiste à ordem de Deus"; e considerava que esclarecia deste modo a própria essência da moral política do cristianismo. NOTA BIBLIOGRÃFICA § 463. De Berkeley: Works, ed. Campbell Fraser, 4 vols., Landres, 1871; Oxford, 1901; ed.
T. E. Jessap e A. A. Luce, 9 vols., Londres, 1948-57. 142 Traduções italianas: Appunti (Commonplace Book), trad. M. M. Rossi, Bolonha, 1924, Saggio di una nuova teoria della visione, trad. G. AmendGla, Lanciano, 1923; Trattato e Dialoghi, trad. G. Papini, Bari, 1909; Alcifrone (os primeiros cinco diálogos), trad. L. Dêl Boca, Torino, 1932. So-bre a vida de Berkeley: A. Campbe,11 Fraser no vol. IV da citada edição das obras. § 448. A. CAMPBELL FRASER, B., Edimburgo, 1881; A. LEvI, La fi!osofia di Berkeley, Turim, 1922; R. METZ, G. B. Leben und Lehre, Stuttgart, 1925; JOHNSTON, The Development of Berkeley, Philosophy, Londres, 1923; G. DAWES HICKS, BerkeTey, Londres, 1932; M. WILD, G. B., A Study of his Life and Philosophy, Gambridge, 1936; M. BALADI, La Pensée religicuse de Berkeley et Punité de sa philosophie, Cairo, 1945; M. M. Rossi, Saggio su Berkeley, Bari, 1955. Bibliogra,fia: JEssop e LUCE, A Bibliography, of Georgy Berkeley, Oxford, 1934; completada in. "Revue Internacional de Philosophie", 1953, n., 23-24 1. 1 Nota do Tradutor. Edições em língua portuguesa: Jorge Berkeley, Três Diá7ogos entre Hilas e Filonous em oposiÇ&o aos cépticos e Ateus, trad., pref. e notas de Antônio Sérgio, Coimbra Editora, Coimbra, 2.a ed., 1965; J. B., Tratado do Conhecimento Humano, trad. e pref. de Vieira de Almeida, Coimbra Editora, Coimbra, 1958. 143 X HUME § 467. HUME: VIDA E ESCRITOS Ao restringir o conhecimento humano nos limites da experiência, Locke não tinha intenção de diminuir o seu valor; antes lhe reconhecera, em tais limites, plena validade. Hume leva o empirismo a uma conclusão céptica: a experiência não está em condições de fundamentar a validade plena do conhecimento, o qual, encerrado nos seus limites, não é certo mas somente provável. A posição de Hume renova assim, no espírito do empirismo, o probabilismo académico. David Hume nasceu em 26 de Abril de 1711 em Edimburgo. Estudou jurisprudência naquela cidade; mas os seus interesses estavam voltados para a filosofia e a literatura.
Depois de uma débil 145 e brevíssima tentativa de advocacia em Bristol mudou-se para França onde permaneceu três anos (1734-1737) a prosseguir os seus estudos. Estabeleceu então aquele plano de vida que seguiu depois constantemente. "Resolvi suprir a minha fraca fortuna com uma frugalidade rígida, manter intacta a minha liberdade e considerar como desprezível tudo o que estivesse fora da aplicação do meu engenho para as letras." Durante a permanência em França, compôs a sua primeira e fundamental obra, o Tratado sobre a Natureza Humana, que foi publicado em 1738 e não teve nenhum sucesso. Entretanto Hume voltara para Inglaterra e publicava aqui, em 1742, a primeira parte dos seus Ensaios Morais e Políticos que tiveram, em contrapartida, um acolhimento favorável. Entre o ano de 1745 e o de 1748 desempenhou vários cargos políticos, entre os quais o de secretário do general St. Clair que o levou consigo nas suas embaixadas militares junto das cortes de Viena e de Turim. Encontrava-se precisamente em Turim quando, em 1748, saíam em Londres as Investigações sobre o Entendimento Humano que reelaboravam em forma mais simples e chá a primeira parte do Tratado. Em 1752 Hume obteve um lugar de bibliotecário em Edimburgo e começou a compor uma História de Inglaterra. No mesmo ano publicava as investigações sobre os Princípios da Moral, reelaboração da segunda parte do Tratado, obra que ele considerava como o melhor dos seus escritos. De 1757 é a História Natural da Religião. Mas tinha já escrito 146 antes os Diálogos sobre a Religião Natural que foram publicados postumamente (1779). Em 1763 Hume torna-se secretário do conde de Hartford, embaixador da Inglaterra em Paris, e aqui permaneceu até 1766, frequentando, bastante bem acolhido, a sociedade intelectual da capital francesa. Regressado a Inglaterra, hospedou em sua casa Jean-Jacques Rousseau; mas o carácter sombrio do filósofo francês provocou uma ruptura entre os dois. De 1769 em diante, Hume, já rico, levou a vida tranquila do inglês acomodado e morreu em Edimburgo a 25 de Agosto de 1776. Numa breve Autobiografia, que foi composta poucos meses antes da morte (tem a data de 18 de Abril de 1776), Hume, depois de aludir à doença de ventre de que sofria, acrescentava: "Agora conto com uma pronta dissolução. Sofri pouquíssimo por causa do meu mal; e o que é mais estranho, não obstante a grande decadência do meu organismo, o meu espírito nunca teve um momento de abatimento. Se tivesse que indicar o período da minha vida que queria escolher para voltar a viver, estaria tentado a indicar precisamente este último. Tenho ainda o mesmo ardor que sempre tive no estudo e acompanha-me a mesma alegria." A obra principal de Hume continua a ser o Tratado sobre a Natureza Humana ainda que nas Investigações sobre o Entendimento Humano e nas Investigações sobre os Princípios da Moral tenha voltado a expor de modo muito mais rápido e claro os fundamentos essenciais daquela obra.
147 § 468. HUME: A NATUREZA HUMANA E O SEU LIMITE Hume quis ser e é "o filósofo da natureza humana". "A natureza humana - diz ele (Treatise, 1, 4, 7) -, é a única ciência do homem; e contudo tem sido até agora a mais descurada. Terei feito bastante se contribuir para a pôr um pouco mais em moda: esta esperança ajuda-me a dissipar o meu humor melancólico e a dar-me força contra a indolência que às vezes me domina." Na realidade todas as ciências se relacionam com a natureza humana, mesmo aquelas que parecem mais independentes como a matemática, a física e a religião natural porque também estas fazem parte dos conhecimentos do homem e são julgadas pelos poderes e faculdades humanas. Na verdade, o único meio de levar adiante a investigação filosófica é dirigida directamente para o seu centro que é a natureza humana, da qual se poderá depois mover facilmente para a conquista das outras ciências que estão todas mais ou menos ligadas a ela (lb., intr.). Mas para ele a natureza humana é, fundamentalmente, mais do que razão, sentimento e instinto. A própria razão investigadora é uma espécie de instinto que leva o homem a esclarecer aquilo que se aceita ou se crê. Quando a razão descobre que aquelas verdades que se consideram objectivas, isto é fundadas sobre a própria natureza das coisas, são, pelo contrário, subjectivas e ditadas ao homem pelo instinto e pelo hábito, surge um inevitável contraste entre a razão e o instinto. Mas o contraste resolve-se reconhe148 cendo que a própria razão, que duvida a procura, é uma manifestação da natureza instintiva do homem. Na conclusão do primeiro livro do Tratado, perguntando Hume a si próprio se vale verdadeiramente a pena gastar tempo e fadiga para considerar problemas abstrusos e difíceis que as impressões vivazes dos sentidos ou o curso ordinário da vida eliminam de repente da mente, quaisquer que sejam as suas soluções, consegue concluir que não pode agir de outro modo. Sente que a sua mente se recolhe em si própria e tende naturalmente a tomar em consideração os problemas da filosofia. Sente-se descontente ao pensar que aprova uma coisa e desaprova outra, chama bela a uma coisa e feia a outra, decide do verdadeiro e do falso, da razão e da loucura, sem conhecer em que princípios se funda. A investigação filosófica germina naturalmente no seu espírito por uma espontaneidade que é também um instinto. "Estes. sentimentos - diz -, nascem naturalmente na minha disposição presente; e se procurasse bani-los e aplicar-me a outros assuntos ou distracções, senão que perderia nisso prazer. Esta é a origem da minha filosofia". (1b., 1, 4, 7). E esta é, na realidade, para Hume a origem de toda a filosofia, de toda a investigação ou curiosidade humana. A filosofia que desmonta e destrói as crenças fundadas sobre o instinto é também um instinto. Como tal é indestrutível porque faz parte da natureza humana. Hume pretendeu assim radicar na própria natureza humana o objectivo crítico e destrutivo que o 149 iluminismo considerou próprio da razão. Submeteu a crítica radical os dois conceitos
cardiais da metafísica tradicional: os de substância e de causa. Procurou subtrair a ética e a política às suas imposições metafísicas reconduzindo a origem e a validade delas a necessidades ou exigências humanas. Restringiu, sobretudo, a capacidade cognoscitiva da razão ao domínio do provável. Admitiu, além disso, que existe um campo do conhecimento no qual o homem pode alcançar a certeza da demonstração, mas restringe esse campo "à quantidade e ao número", isto é ao domínio abstracto ou formal em que não se faz qualquer referência às coisas reais. A pretensão de estender a demonstração a outros domínios parece-lhe absurda e quimérica; e as suas investigações sobre o Intelecto terminam com palavras que poderiam ser tomadas como o tema de toda a filosofia positiva: "Quando percorremos os livros de uma biblioteca, persuadidos destes princípios, o que é que devemos destruir? Se nos vem às mãos qualquer volume, por exemplo, de teologia ou de metafísica escolástica, perguntemo-nos: contém algum raciocínio abstracto sobre a quantidade ou os seus números? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de facto e de existência? Não. Agora podemos deitá-la ao fogo porque não contém mais que sofismas e enganos." A posição de Hume não é, todavia, simplesmente negativa e destrutiva. O carácter provável das conclusões que a razão pode alcançar nas questões de facto não consente passar, em tais ques150 tões, sem a ajuda da razão. Para Hume, como para Locke, como para todo o iluminismo, a razão é o único guia possível do homem. Assim, juntamente com a ilustração do carácter puramente empírico ou factual (isto é, provável) das conexões causais que se descobrem na natureza, encontra-se em Hume a exclusão da possibilidade de admitir excepções a estas conexões como seriam os milagres. "Dado que uma experiência uniforme - diz ele -, equivale a uma prova, que é uma prova directa e completa, produzida pela natureza do facto, contra a existência de qualquer milagre, nenhuma semelhante prova pode ser destruída ou o milagre só pode tornar-se credível por meio de uma prova oposta e que seja superior" (Inq. Conc. Underst., 10, 1). § 469. HUME: Impressões E IDEIAS Todas as percepções do espírito humano se dividem, segundo Hume, em duas classes que se distinguem entre si pelo grau diferente de força e de vivacidade com que impressionam o espírito. As percepções que penetram com maior força e evidência na consciência chamam-se impressões; e são todas as sensações, paixões e emoções no acto em que vemos ou sentimos, amamos ou odiamos, desejamos ou queremos. As imagens enfraquecidas destas impressões chamam-se ideias ou pensamentos. A diferença entre impressão e ideia é, por exemplo, a que existe entre a dor de um calor 151
excessivo e a imagem dessa dor na memória. A ideia nunca pode alcançar a vivacidade e a força da impressão e, mesmo nos casos excepcionais, quando a mente está desordenada pela doença ou pela loucura, a diferença permanece. Toda a ideia deriva da impressão correspondente e não existem ideias ou pensamentos de que se não tenha tido precedentemente a impressão. A liberdade ilimitada de que parece gozar o pensamento do homem encontra o seu limite invalidável neste princípio. Sem dúvida o homem pode compor as ideias entre si nos modos mais arbitrários e fantásticos e lançar-se com o pensamento até aos limites extremos do universo; mas nunca dará um passo para lá de si próprio, porque nunca terá na sua posse outra espécie de realidade senão a das suas impressões (Treat., 1, 2, 6). Hume mantém-se rigidamente fiel a este princípio fundamental do começo ao fim da sua análise. Locke, mesmo depois de ter admitido que o único objecto do conhecimento humano é a ideia, reconhecera, para lá da ideia, a realidade do eu, de Deus e das coisas. Berkeley, embora negando a matéria, tinha admitido a realidade dos espíritos finitos e do espírito infinito de Deus, ambas realidades irredutíveis às ideias. Só Hume reduz totalmente a realidade à multiplicidade das ideias actuais (isto é das impressões sensíveis e das suas cópias) e nada admite para lá delas. Para explicar a realidade do mundo e do eu, não tem à sua disposição mais do que as impressões, as ideias e suas relações. Para ele toda a realidade deve reduzirse às 152 relações com que se unem entre si as impressões e as ideias. Tal é a tentativa de Hume. Mas é uma tentativa que, pelo seu próprio ponto de partida, não pode conseguir fundar a realidade que examina, mas somente decompô-la nos seus elementos originários. A conclusão céptica é inevitável. Hume aceita e faz sua a negação da ideia abstracta, já defendida por Berkeley. Não existem ideias abstractas, isto é ideias que não tenham caracteres particulares e singulares (um triângulo que não seja equilátero nem isósceles nem escaleno ou um homem que não seja este ou aquele homem, etc.); existem apenas ideias particulares tomadas como sinais de outras ideias particulares e semelhantes a elas. Mas para explicar a função do sinal, isto é a possibilidade de uma ideia evocar outras ideias semelhantes, Hume recorre a um princípio de que se servirá largamente em todas as suas análises: o hábito. Quando descobrimos uma certa semelhança entre ideias que por outros aspectos são diferentes (por exemplo, entre as ideias dos diferentes homens e dos diferentes triângulos), empregamos um único nome (homem ou triângulo) para indicar. Forma-se assim em nós o hábito de considerar unidas de alguma maneira entre si as ideias designadas por Um único nome; assim o próprio nome suscitará em nós não uma só daquelas ideias, nem todas, irias o hábito que temos de considerá-las juntas e, por conseguinte, uma ou outra, segundo a ocasião. A palavra homem suscitará, por exemplo, o hábito de considerar conjuntamente todos os homens, 153
enquanto semelhantes entre si, e permitir-nos-á evocar a ideia deste ou daquele homem singular (lb., 1, 1, 7). A função puramente lógica do sinal conceptual que Locke e Berkeley tinham tomado de Ockham, converte-se em Hume num facto psicológico, num hábito, privado por si de qualquer justificação. 470. HUME: AS CONEXõES ENTRE AS IDEIAS As ideias que constituem o mundo da nossa experiência apresentam indubitavelmente ordem e regularidade. Tais caracteres são devidos aos princípios que as associam e unem entre si. Hume reconhece três únicos princípios desta natureza: a semelhança, a contiguidade no tempo e no espaço e a causalidade. Um retrato, por exemplo, conduz naturalmente os nossos pensamentos para o seu original (semelhança); a recordação dum quarto de uma casa leva a pensar nos outros compartimentos da mesma (contiguidade); uma ferida faz pensar seguidamente na dor que dela deriva (causa e efeito). A relação de semelhança, quando se refere a ideias simples e não a coisas reais, possui a máxima certeza e constitui o domínio do conhecimento verdadeiro, isto é, da ciência. Sobre ela se fundam a geometria, a álgebra, a aritmética cujos objectos são ideias simples que não aspiram a nenhuma rea1;dade de facto. As proposições destas ciências podem-se descobrir por uma pura operação do pensamento e a negação delas é impossível porque 154 implica contradição. "Ainda. que não existisse na natureza um círculo sequer ou um triângulo-diz Hume (Inq. Conc. Underst., 4, 1)-,as verdades demonstradas por Euclides conservariam sempre a sua certeza e a sua evidência. "Na terminologia instaurada por Kant, proposições desta natureza são chamadas analíticas porque nelas "a conexão do predicado com o sujeito é pensada mediante a sua identidade" Pura, Se bem que Hume, insista na extensão e na dificuldade das operações do pensamento que por vezes se tornam necessárias nas matemáticas (Treat., 1, 3, 1; Inq. Conc. Underst., 12, 3), não há dúvida de que para ele as matemáticas são analíticas precisamente nesse sentido. "Nas. ciências propriamente ditas diz -, toda a proposição que não é verdadeira é confusa e ininteligível. Que a raiz cúbica de 64 seja igual a metade de 10 é uma proposição falsa que nunca pode ser concebida de modo distinto" (Inq. Conc. Underst., 112, 3). "Confusa e ininteligível" significa contraditória: de facto, Hume contrapõe às proposições matemáticas, cujo contrário é impossível, as ,proposições que se relacionam com a existência cujo contrário é sempre possível porque "toda. a coisa que é, pode não sem. A certeza das proposições que se relacionam com factos não é, portanto, fundada sobre o princípio de contradição. O contrário de um facto é
sempre possível. "0 sol não se levantará amanhã" é uma proposição não menos inteligível nem mais contraditória do que a outra "o sol levantar-se-á amanhã". Por isso é impossível demonstrar a sua 155 falsidade. Todos os raciocínios que se referem a realidades ou factos fundam-se na relação de causa e efeito. Se se pergunta a uma pessoa por que crê rum facto qualquer, por exemplo, que um seu amigo está no campo ou noutra parte, aduzirá um outro facto, por exemplo, que recebeu uma carta dele ou que conheceu precedentemente a sua intenção. Ora, a tese fundamental de Hume é que a relação entre causa e efeito nunca Pode ser conhecida a priori, isto é com o puro raciocínio, mas apenas por experiência. Ninguém, posto frente a um objecto que para ele seja novo, pode descobrir as suas causas e os seus efeitos antes de os ter experimentado, e só raciocinando sobre eles. "Adão, ainda que as suas faculdades racionais se suponham desde o princípio perfeitas, nunca teria podido inferir, da fluidez e transparência da água, que esta podia afogá-lo, ou da luz e do calor do fogo que podia consumi-lo Nenhum objecto descobre alguma vez, por meio das qualidades que aparecem aos sentidos, as causas que o produzem ou os efeitos que dele surgirão; nem pode a nossa razão, sem a ajuda da experiência, efectuar qualquer ilação que diga respeito a realidades ou factos" (Inq. Conc. Underst., IV, 1). Ora, isto significa que a conexão entre a causa e o efeito, mesmo depois de ter sido descoberta por experiência, permanece privada de qualquer necessidade objectiva. Causa e efeito são dois factos inteiramente diferentes, cada um dos quais nada tem em si que exija necessariamente o outro. Quando vemos uma bola de bilhar que corre em direcção a outra, ainda supondo que nasça por causalidade em nós 156 o pensamento do movimento da segunda bola como resultado do seu encontro, podemos muito bem conceber outras possibilidades diferentes: por exemplo, que as duas bolas ficam paradas ou que a primeira volta para trás ou escapa por algum dos lados. Estas possibilidades não podem excluir-se porque não são contraditórias. A experiência diz-nos que só se verifica uma e que o choque da primeira põe em movimento a segunda; mas a experiência não nos ensina mais que sobro os factos que experimentámos no passado e nada nos diz acerca dos factos futuros. E dado que, mesmo depois de feita a experiência, a conexão entre a causa e o efeito permanece arbitrária, esta conexão não poderia ser tomada como fundamento em nenhuma previsão, em nenhum raciocínio para o futuro. "0 pão que dantes comia alimentava-me; isto é, um corpo com certas qualidades sensíveis estava então dotado de forças secretas; mas segue-se daí que um outro pão deva alimentar-me também noutro tempo e que qualidades sensíveis semelhantes devam ser sempre acompanhadas por iguais forças secretas? A consequência não parece de facto necessária" (lb., IV, 2). Que o curso da natureza possa mudar, que os laços causais que a experiência nos testemunhou no passado possam não se verificar no futuro, é hipótese que não implica contradição e que por isso permanece sempre possível. Nem a contínua confirmação que a experiência faz na maior parte dos casos das conexões causais muda a questão: porque esta experiência diz sempre respeito ao passado, nunca ao futuro. Tudo aquilo que sabemos por experiência
157 é que, de causas que nos parecem semelhantes, esperamos efeitos semelhantes. Mas precisamente esta suposição não é justificada pela experiência: ela é antes o pressuposto da experiência, um pressuposto injustificável. Se houvesse qualquer suspeita de que o curso da natureza poderia mudar e de que o passado não serviria de regra para o futuro, toda a esperança se tornaria inútil e não poderia dar origem a nenhuma inferência ou conclusão. É impossível, portanto, que argumentos tirados da experiência possam demonstrar a semelhança do passado com o futuro: todos estes argumentos estão fundados na suposição daquela semelhança. Estas considerações de Hume excluem que o vínculo entre causa e efeito possa ser demonstrado como objectivamente necessário, isto é, absolutamente válido. Todavia o homem julga-o necessário e funda sobre ele todo o curso da sua vida. A sua necessidade é, no entanto, puramente- subjectiva e deve procurar-se num princípio da natureza humana. Este princípio é o hábito (ou costume). A repetição de um acto qualquer produz uma disposição para renovar o mesmo acto sem que intervenha o raciocínio: esta disposição é o hábito. Quando vimos muitas vezes unidos dois factos ou objectos, por exemplo, a chama e o calor, o peso e a solidez, somos levados pelo hábito a esperar um quando o outro se mostra. É o hábito que nos leva a crer que amanhã o sol se levantará corno sempre se levantou; é o hábito que nos faz prever os efeitos da água ou do fogo ou de qualquer facto ou acontecimento natural ou humano; é o hábito que guia 158 e sustém toda a nossa vida quotidiana, dando-nos a segurança de que o curso da natureza não muda mas se mantém igual e constante, donde é possível regular-se com vista ao futuro. Sem o hábito seríamos inteiramente ignorantes de qualquer questão de facto, fora daquelas que nos estão imediatamente presentes na memória ou nos sentidos. Não saberíamos adaptar os meios aos fins nem empregar as nossas forças naturais a produzir um efeito qualquer. Cessaria toda a acção e assim também a parte principal da especulação (Ib., V, 1). Mas o hábito explica a conjunção que estabelecemos entre os factos, não a sua conexão necessária. Explica porque acreditamos na necessidade dos vínculos causais, não justifica essa necessidade. * verdadeiramente essa necessidade é injustificável. * hábito, como o instinto dos animais, é um guia infalível para a prática da vida, mas não é um princípio de justificação racional ou filosófico. Um princípio deste género não existe. § 471. HUME: A CRENÇA Toda a crença em realidades ou factos, enquanto resultado de um hábito, é um sentimento ou um instinto, não um acto de razão. Todo o conhecimento da realidade carece assim de necessidade racional e entra no domínio da probabilidade, não do conhecimento científico. Hume não pretende anular a diferença que existe entre a ficção e a crença. A crença é um sentimento natural, não submetido 159 ao poder do entendimento. Se dependesse do entendimento ou da razão, dado que esta faculdade tem autoridade sobre todas as ideias, poderia chegar a fazer-nos crer qualquer coisa que lhe agradasse: "Nós podemos - diz Hume (Inq. Cone. Underst., V, 2)-, em nossa
imaginação, juntar a cabeça de um homem a um corpo de cavalo, mas não está no nosso poder crer, que um tal animal exista realmente". O sentimento da crença é, portanto, um sentimento natural que, como todos os outros sentimentos, nasce de uma situação particular em que a mente se encontra. Precisamente como esse sentimento não pode ser definido; mas pode ser descrito como "uma concepção mais vivaz, mais intensa e potente do que a que acompanha as puras funções da imaginação, concepção que surge de uma conjunção habitual do seu objecto com qualquer coisa presente à memória e aos sentidos". A crença é, portanto, devida, em última análise, à maior vivacidade das impressões a' respeito das ideias: o sentimento da realidade identifica-se com a vivacidade e a intensidade próprias das impressões. Mas os homens acreditam habitualmente na existência de um mundo externo que se considera também diverso e alheio às impressões que temos dele. E Hume detém-se longamente no Tratado (1, 4, 2) e brevemente nas Investigações (XII, 1) a explicar a génese natural desta crença. Hume começa a distinguir a este respeito a crença na existência continuada e independente das coisas, que é própria de todos os homens e também dos animais, da crença na existência externa das 160 próprias coisas, a qual supõe a distinção semifilosófica ou pseudofilosófica das coisas e das impressões sensíveis. Pela coerência e pela constância de certas impressões, o homem é levado a imaginar que existem coisas dotadas de uma existência contínua e ininterrupta e, portanto, tais que existiriam mesmo que toda a criatura humana estivesse ausente ou fosse aniquilada. Noutros termos, a própria coerência e constância de certos grupos de impressões faz-nos esquecer ou descurar que as nossas impressões são sempre interruptas e descontínuas e fá-las considerar como objectos persistentes e estáveis. Nesta fase crê-se que as próprias imagens dos sentidos são os objectos externos e não se tem qualquer suspeita de que sejam apenas representações dos objectos. Crê-se, por exemplo, que esta mesa, que vemos de cor branca e sentimos dura, exista independentemente da nossa percepção e seja uma coisa exterior ao nosso espírito que a percebe. Esta crença que pertence à parte irreflexiva e afilosófica. do género humano (e portanto a todos os homens num tempo ou noutro), é, no entanto, rapidamente destruída pela reflexão filosófica, a qual ensina que aquilo que se apresenta à mente é apenas a imagem e a percepção do objecto e que os sentidos são apenas as portas através das quais estas imagens entram, sem que haja alguma vez uma relação imediata entre a própria imagem e o objecto. A mesa que observamos parece diminuir quando nos afastamos, mas a mesa real, que existe independente de nós, não sofre alterações; por isso, na nossa mente estava presente apenas a sua imagem. A reflexão 161 filosófica leva assim a distinguir as percepções, subjectivas, mutáveis, e interruptas das coisas objectivas, externamente e continuamente existentes. Mas a favor desta distinção não joga já o instinto natural que apoiava a primeira crença. Na verdade, trata-se de uma hipótese filosófica que não é necessária à razão nem à imaginação e é, portanto, insustentável. A única realidade de que estamos certos é constituída pelas percepções; as únicas inferências que podemos fazer são as fundadas na relação entre causa e efeito que só se verifica também entre as percepções. Uma realidade que seja distinta das percepções e exterior a elas não se pode afirmar na base das impressões dos sentidos nem na base da relação causal. A realidade externa é, portanto, injustificável; mas o instinto de acreditar nela não se pode eliminar. É verdade que tão-pouco a dúvida filosófica em torno de tal realidade se pode desarreigar, mas a vida liberta-nos desta dúvida e voltamos à crença instintiva. "Aposto - conclui Hume (Treat.
1, 4, 2) que, qualquer que seja neste momento a opinião do leitor, daqui a uma hora estará convencido de que existe tanto um mundo externo quanto um mundo interno". Explicação análoga encontra nas análises de Hume a crença da unidade e na identidade do eu. A identidade que nós atribuímos ao espírito humano é uma identidade fictícia, do mesmo género daquela que atribuímos às coisas externas. Não pode, portanto, ter uma origem diferente, mas é o produto de uma operação semelhante da imaginação sobre objectos semelhantes. O espírito humano é consti152 tuído por uma pluralidade de percepções ligadas juntamente pelas relações de semelhança e de causalidade. Sobre as relações de semelhança se funda a memória, dado que a imagem da memória se assemelha ao seu objecto. E ao apresentar-se percepções semelhantes fornece o primeiro ponto para produzir a ideia da identidade pessoal. A causalidade dá o outro, o decisivo. As percepções diferentes ligam-se entre si pela relação de causa e efeito porque se geram, se destroem, se influenciam e se modificam reciprocamente. Hume compara a alma a uma república cujos diferentes membros estão unidos por um vínculo recíproco de governo e de subordinação e dão vida a outras pessoas, as quais continuam a mesma república na incessante mudança das suas partes. E como uma mesma república não só pode mudar os seus membros, mas também as suas leis e a sua constituição, assim uma mesma pessoa pode mudar caracteres e disposições e também as suas impressões e as suas ideias sem perder a sua identidade. Por muitas mudanças que experimente, as suas partes estão sempre ligadas pela- relação de causalidade (1b., 1, 4, 6). A crença na realidade independente e contínua do mundo externo e na identidade do eu explicam-se, portanto, como produções fictícias da imaginação, mas não se justificam na sua validade objectiva. Existe um contraste entre o instinto da vida por um lado, e a razão pelo outro que nos leva a analisar e a justificar as crenças que aquele instinto produz. Mas o contraste é talvez só aparente: a própria razão, a exigência da investigação filosó163 fica radica-se no instinto. Faz parte da natureza humana a curiosidade que leva a indagar, a necessidade de justificar aquilo que se crê. E Hume que quer esclarecer a natureza humana em todos os seus aspectos, não deixa de ter em conta também aquele pelo qual esta se torna problema para si própria, e com a dúvida e a investigação, tende quanto é possível a iluminar-se e a esclarecer-se. § 472. HUME: OS PRINCíPIOS DA MORAL Hume não toma partido na disputa que quer reconhecer apenas na razão ou apenas no sentimento o fundamento dos valores morais. Quer um quer outro princípio entram nestes valores, entra o sentimento pelo qual nascem todas as inclinações para o bem e o desagrado e aversão ao vício; entra a razão que faz de árbitro em todas as questões que nascem da vida moral. Hume pretende antes analisar todos os elementos que constituem o mérito pessoal: as qualidades, os hábitos, os sentimentos, as faculdades que tornam um homem digno de estima ou de desprezo. Deste modo o problema moral torna-se uma pura questão de facto que pode ser analisada e decidida com o método experimental (Inq. Conc. Mor., 1). Como fundamento das qualidades morais da pessoa está, segundo Hume, a sua utilidade para a vida social. A aprovação que é atribuída a certos sentimentos ou acções funda-se no reconhecimento implícito ou explícito da sua utilidade social. Por exemplo, numa situação em 164
que fosse dada ao género humano a mais pródiga abundância de todas as comodidades e de todos os bens materiais, em que o homem não tivesse de preocupar-se com nenhuma das suas necessidades materiais, a justiça seria inútil e nem alguma vez poderia nascer. Como ninguém pode cometer injustiça pelo uso e o gozo do ar, que é dado ao homem em quantidade ilimitada, assim ninguém poderia cometer injustiça numa condição em que também os outros bens fossem fornecidos ao homem em qualidade ilimitada. Isto quer dizer que as regras da justiça, as quais impõem limites precisos na distribuição e no uso dos bens, dependem da condição particular em que o homem se encontra e devem a sua origem à utilidade que apresentam para a vida da sociedade humana. Isto é tanto mais verdadeiro quanto a obrigação de justiça não se verifica nos confrontos de criaturas misturadas com os homens, mas incapazes de qualquer resistência ou reacção contra eles. Tal é o caso dos animais que Hume considera dotados de capacidades inferiores em grau mas não de natureza em relação às do homem. Ora ninguém sente no confronto com os animais a obrigação da justiça, portanto esta obrigação nasce unicamente da utilidade que a justiça apresenta para a natureza humana. Nem esta obrigação nasceria se o homem se bastasse a si próprio e pudesse viver em completo isolamento dos outros homens. A necessidade da justiça para manter com vida a sociedade humana é o único fundamento desta virtude. E também o fundamento do valor que atribuímos às outras virtudes: à humanidade 165 violência, à amizade, à sociabilidade, à fidelidade, à sinceridade, etc. (1b., 111, 2). A utilidade social é, ademais, o fundamento da máxima virtude política, a obediência. Efectivamente, é a obediência que mantém os governos e os governos são indispensáveis aos homens, que frequentemente não têm a sagacidade suficiente para se darem conta dos interesses que os ligam aos seus semelhantes ou força espiritual suficiente para se manterem fiéis ao interesse geral. As regras da justiça são menos respeitadas entre as nações que entre os homens, dado que os homens não podem viver sem sociedade enquanto as nações podem existir sem estreitas relações entre si (1b., IV). Todas as virtudes se radicam assim na natureza do homem que não pode ficar indiferente ao bemestar dos seus semelhantes nem julgar facilmente por si sem ulterior cuidado ou consideração de que é um bem aquilo que promove a felicidade dos seus semelhantes, e mal aquilo que tende a provocar a sua miséria (1b., V, 2). Não é verdade que o único móbil do homem seja o egoísmo: o bem-estar e a felicidade individual estão estreitamente ligados ao bem-estar e à felicidade colectiva. Hume quer tirar à moral o vestido de luto com que a têm vestido teólogos e filósofos e quer mostrá-la "gentil, humana, benéfica, afável e também, em certos momentos, jocosa, alegre e contente". A moral não fala de inúteis austeridades e rigores, de sofrimentos e humilhações; o seu único fim é tornar os homens contentes e felizes em cada instante da sua existência. "A única importunidade que impõe é a de calcular justamente e de preferir 166 constantemente a felicidade maior. E se se aproximam dela pretendentes austeros, inimigos da alegria e do prazer, vêem-se rechaçados como hipócritas ou enganadores; ou, se os admite no seu séquito, põe-nos entre os menos favorecidos dos seus sequazes" (1b., IX, 2).
Estas palavras de Hume demonstram o espírito não apenas do filósofo moralista, mas do homem: um espírito aberto e humano que vê nas mais rígidas exigências da moral limitações benéficas a si próprio e aos outros, a que o homem pode de livre vontade submeter-se. § 473. HUME: A RELIGIÃO A análise a que Hume submete a religião é decisiva para aquela corrente do deísmo que dominou a filosofia inglesa do século XVIII e inspirou o pensamento religioso do iluminismo de todos os países. Ã análise da religião dedicou os Diálogos sobre a Religião Natural, publicados postumamente em 1779, e a História Natural da Religião, publicada em 1757, mas posterior aos Diálogos. Já nas Investigações sobre o Entendimento Humano, num capítulo sobre os milagres, (Sect., X), afirmara que só era de admitir o milagre no caso em que a falsidade do testemunho a seu favor fosse mais miraculosa do que o milagre testemunhado; e num capítulo sobre a providência (lb., XI) mostrara as dificuldades de toda a consideração teológica. Além disso, num ensaio publicado postumamente (1777) Sobre 167 a Imortalidade da Alma, criticara as razões metafísicas, morais e físicas aduzidas para sustentar a imortalidade e reduzira a crença nesta última a puro objecto de fé. Nos Diálogos sobre a Religião Natural, que se desenvolvem entre três personagens, o céptico Fílon faz de mediador entre Demeas que defende a mais rígida ortodoxia e Cleanto que representa um ponto de vista mais moderado. A crítica das provas da existência de Deus que vem desenvolvida nestes diálogos preludia a estabelecida por Kant na Dialéctica transcendental da Crítica da Razão Pura. Contra toda a espécie de prova, Hume opõe um argumento que se liga aos princípios fundamentais da sua filosofia. "Nada é demonstrável sem que o seu contrário implique contradição. Nada que seja distintamente concebível implica contradição. Tudo aquilo que nós concebemos como existente podemos também concobêlo como não existente. Por isso não existe um ser cuja não existência implique contradição. Consequentemente, não existe um ser cuja existência esteja demonstrada" (Dial., 11, p. 432). Este princípio, pelo qual a existência é sempre matéria de facto, e portanto nunca matéria de demonstração ou de prova, exclui imediatamente a prova ontológica que pretende demonstrar a existência de Deus partindo do conceito de Deus. O argumento cosmológico tenta fugir a esta dificuldade introduzindo a consideração da experiência. Mas Hume nega que os vínculos causais entre os fenómenos possam ser utilizados para demonstrar a existência de uma causa primeira. Se se mostra a causa 168 de cada indivíduo de uma série que compreende vinte indivíduos, é absurdo perguntar depois a causa de toda a série; esta está já dada quando são dadas as causas particulares (lb., II, p. 433). O mesmo vale para o mundo: se são dadas as causas particulares, é inútil e absurdo pedir a
causa total do conjunto: esta investigação conduziria a um processo ao infinito. Hume está disposto a reconhecer maior valor à prova físicoteológica, a qual, considerando o universo como uma máquina, pretende chegar até ao autor desta máquina. A prova defronta com um prejuízo que é inerente à doutrina de Hume sobre a causalidade. O vínculo causal deriva, segundo Hume, do hábito que se formou observando a sucessão constante de dois factos. Mas como poderia formar-se este hábito a respeito do mundo e de Deus que são objectos singulares, individuais, sem semelhança específica ou paralela, (1b., II, p. 398). Além. disso, o argumento pode elevar-se apenas a uma causa proporcionada ao efeito; e dado que o efeito, isto é, o mundo, é imperfeito e finito, a causa deveria ser também imperfeita e finita. Mas se a divindade se reconhece imperfeita e finita, tão-pouco há motivo para supô-la única. Se uma cidade pode ser construída por muitos homens, porque não poderá o universo ser criado por muitos deuses ou demónios? (1b., 11, p. 413). Também este género de prova não pode concluir outra coisa senão admitir uma causa do universo que tenha uma qualquer analogia longínqua com o homem. Mas então a disputa entre teístas e ateístas torna-se puramente verbal. "0 169 teísta admite que a inteligência originária é bastante diferente da razão humana; o ateísta admite que o princípio originário da ordem tem uma remota analogia com ela". (Ib., 11, p. 459). A diferença entre os dois pontos de vista que parecem tão opostos revela-se por último constituída apenas por palavras. Tudo isto demonstra que uma justificação teórica da religião é impossível. Todavia, pode fazer-se a história natural da religião, pode-se encontrar as suas raízes na natureza humana, ainda que estas raízes não nasçam de um instinto, de uma impressão originária, mas dependam de princípios secundários (St. nat. d. rel., intr.). As ideias religiosas não nascem da contemplação da natureza mas do interesse pelos acontecimentos da vida e portanto das esperanças e dos temores incessantes que agitam o homem. Suspensa entre a vida e a morte, entre a saúde e a doença, entre a abundância e a privação, o homem atribui a causas secretas e desconhecidas os bens de que goza e os males com que é continuamente ameaçado. A variedade e a disparidade dos sucessos fá-lo pensar em causas diferentes e contrastantes do mundo: numa multiplicidade de divindades, umas vezes benignas e outras vingativas. O politeísmo está, portanto, na origem de todas as religiões. O primeiro conceito da divindade não implica de maneira nenhuma o poder ilimitado e a infinidade de natureza da própria divindade. Ao conceber a divindade como infinita e, portanto, absolutamente perfeita, os homens são em seguida conduzidos, não pela reflexão filosófica. mas 170 pela necessidade de a adular para a tornar propícia Ub., 7). Também o conceito filosófico de Deus como ser infinito e perfeito tem, pois, o seu fundamento num instinto natural do homem. "À medida - diz Hume - que o modo e a ansiedade se tornam mais prementes, os homens inventam novos
modos de adulação; e também quem superou o seu predecessor no acumular de títulos para a sua divindade, é certo que será superado pelo sucessor na descoberta de novos e mais pomposos títulos de louvor. Assim procedem os homens até chegar ao próprio infinito para lá do qual não se pode proceder mais (lb., 6 in Essays, H, p. 330). A reflexão filosófica confirma e esclarece o monoteísmo nascido deste modo, mas não impede as recaídas no politeísmo e não elimina o risco que as recaídas arrastam consigo como o demonstra a tendência de todas as religiões para admitir seres intermédios entre Deus e o homem, seres que acabam por tornar-se os objectos principais do culto e que conduzem gradualmente à idolatria que fora banida pelas pregações ardentes e pelos panegíricos dos mortais temerosos e indigentes (lb., 7, p. 335). O teísmo que desterra a idolatria é sem dúvida superior à própria idolatria; mas oferece, por sua vez, um gravíssimo perigo que é o da intolerância. Reconhecido como único objecto de devoção, o culto de outras divindades é considerado absurdo e ímpio e fornece o pretexto para perseguições e condenações. Pelo contrário, ao politeísmo é estranha a intolerância. O final do ensaio oferece-nos a última convicção de Hume em matéria de religião, 171 "0 todo é uma adivinha, um enigma, um mistério inexplicável. Dúvida, incerteza, suspensão do juízo parecem os únicos resultados das nossas mais aturadas indagações em torno deste argumento. Mas tal é a fragilidade da razão humana e tal o irresistível contágio da opinião que também esta dúvida deliberada só dificilmente pode ser sustentada. Não indaguemos mais e, opondo uma espécie de superstição a outra, abandonemo-las todas às suas querelas. Nós, enquanto dura a sua fúria e a sua disputa, refugiemo-nos felizmente nas calmas, se bem que obscuras, regiões da filosofia". § 474. HUME: O GOSTO ARTÍSTICO O cepticismo de Hume a respeito dos poderes da razão põe-no em situação de abolir ou diminuir a distância entre os produtos da razão e os do sentimento e a reconhecer a este último, e especialmente à arte, um novo valor. Com efeito, posto que a razão não seja tão universal e infalível nos seus juízos, como a filosofia muitas vezes acreditou, posto que ela em última análise dependa do próprio sentimento, as valorizações do sentimento, mesmo na sua multiplicidade e variedade, não constituem já a antítese da pretensa universalidade das valorizações racionais, e um mesmo destino domina umas e outras. Já nas Investigações sobre o Entendimento Puniano (111), Hume eliminara a antítese, estabelecida por Aristóteles na sua Poética (vol. II, § 02), 172
entre a poesia e a história. A unidade de acção que se pode encontrar na biografia ou na história difere da poesia épica, não em espécie, mas em grau, Na poesia épica as conexões entre os acontecimentos é mais estreita e sensível dado que nela as imaginações e as paixões têm uma parte maior. E as imaginações e as paixões implicam que a representação seja mais particularizada e vivaz e forneça todos os pormenores que são próprios para acentuar o colorido passional da narração. unicamente por este motivo, a poesia épica e dramática escolhem como seu objecto acontecimentos mais restritos. e determinados, dado que a extensão da narrativa a tornaria necessariamente genérica e pouco adaptada para suscitar interesse e paixão. Mas prescindindo desta diferença, a poesia e a história têm, ao contrário do que considerava Aristóteles, a mesma forma de unidade; e a diferença entre uma e outra não se pode assinalar exactamente e é mais questão de gosto do que de razão. Assim Hume chegava a reconhecer o mesmo valor à narração verídica da história e à fantástica da poesia. O mesmo pressuposto anima o Ensaio sobre o Critério do Gosto. Aqui ele considera legítimo inverter precisamente a relação que o racionalismo estabelece entre juízo e sentimento. "Todo o sentimento é justo porque o sentimento não se refere a nada para lá de si e é sempre real posto que um homem não se dê conta dele. Mas nem todas as determinações do intelecto são justas; porque elas referem-se a qualquer coisa para lá delas, isto é, a um facto real; e nem sempre se conformam com este crité173 rio. Entre as mais diferentes opiniões que os homens sustentam em torno do mesmo argumento, há uma e uma só que é justa e verdadeira; a única dificuldade é fixá-la e acertar nela. Pelo contrário, os mil diferentes sentimentos excitados pelo mesmo objecto são todos justos porque nenhum sentimento representa aquele que existe realmente no objecto" (Essays, 1, p. 268). Ora a beleza é precisamente um sentimento: existe apenas no espírito que a contempla, e cada espírito percebe uma beleza diferente. Mas isto não impede que haja um critério do gosto porque existe certamente uma espécie de sentido comum que restringe o valor da tradicional expressão "gostos não se discutem". Mas este critério não pode ser fixado mediante raciocínios a priori ou conclusões abstractas do entendimento. Se se quisesse fixar o tipo da beleza reduzindo as suas variadas expressões à verdade e à exactidão geométrica, só se conseguiria produzir a obra mais insípida e desagradável. Só se pode determinar o critério do gosto recorrendo à experiência e à observação dos sentimentos comuns da natureza humana, sem pretender que, em todas as ocasiões, os sentimentos dos homens estejam conformes com aquele critério. O critério do gosto deve, pois, buscar-se em determinadas condições da natureza humana. "Em cada criatura há um estado são e um estado defeituoso; e só o primeiro nos dá um verdadeiro critério do gosto e do sentimento. Se no estado são do órgão existe uma completa ou considerável uniformidade de sentimento entre os homens, podemos derivar dela uma ideia da beleza perfeita, tal como a aparência dos 174 objectos na luz do dia, aos olhos de um homem de boa saúde, é considerada como a verdadeira e real dos objectos, ainda que se admita que a cor é apenas um fantasma dos sentidos" (Ib., p. 272). A condição humana que torna possível a apreciação da beleza é, segundo Hume, especialmente a delicadeza da imaginação. É esta delicadeza que faz notar imediatamente no objecto estético as qualidades que são mais aptas para produzir o prazer da beleza. Outras condições são a prática e a ausência de preconceitos. Hume reconheceu
assim o critério do gosto em condições puramente subjectivas que, contudo, podem ser determinadas com suficiente exactidão pelas análises da experiência. § 475. HUME: A POLÍTICA As ideias políticas de Hume são o resultado de uma análise da vida social conduzida com o mesmo critério das precedentes, isto é, procurando encontrar na natureza humana os fundamentos da sociabilidade e da vida política. Num ensaio intitulado O Contrato Originário, examina as duas teses opostas da origem divina do governo e do contrato social e afirma que ambas são justas se bem que não no sentido que elas pretendem. A teoria do direito divino é justa em tese geral porque tudo aquilo que acontece no mundo entra nos planos da providência, mas ela justifica ao mesmo tempo toda a espécie de autoridade, a de um soberano legítimo ou a de um usurpador, a de um magistrado ou a de 175 um pirata. A teoria do contrato social é também justa enquanto afirma que o povo é a origem de todo o poder e jurisdição e que os homens voluntariamente e com vistas à paz e à ordem abandonam a liberdade natural e aceitam leis dos seus iguais e companheiros. Mas esta doutrina não se encontra verificada por toda a parte nem nunca completamente. Os governos e os estados nascem o mais das vezes de revoluções, conquistas e usurpações. E a autoridade destes governos não se pode considerar fundamentada sobre o consentimento dos súbditos. Hume divide os deveres humanos em duas classes. Há deveres aos quais o homem é impulsionado por um instinto natural que opera nele independentemente de toda a obrigação e de toda a consideração de utilidade pública ou privada. Tais são o amor dos filhos, a gratidão para com os benfeitores e a piedade para com os desafortunados. E há deveres que derivam pelo contrário unicamente de um sentido de obrigação, derivado da necessidade da sociedade humana que seria impossível se eles fossem descurados. Tais são a justiça ou respeito pela propriedade de outrem, a fidelidade ou observância das promessas e tal é também a obediência política ou civil. Esta última deve nascer da reflexão de que a sociedade não pode manter-se sem a autoridade dos magistrados e que esta autoridade é nula se não for seguida da obediência dos cidadãos. O dever da obediência civil não nasce, portanto, como sustenta a doutrina do contrato social, da obrigação de fidelidade ao pacto originário dado que também 176 esta última obrigação não se entenderia sem a exigência de manter viva a sociedade civil. A única razão da obediência civil está em que sem ela a sociedade não poderia subsistir (Essays, 1, p. 456).' Consequentemente, Hume assume uma posição intermédia entre a doutrina da resistência à tirania proclamada por Locke e a da obediência passiva afirmada por Berkeley. Hume, que é um Tory, refuta as consequências que Locke tirou da sua doutrina do contrato social e que lhe parecem incitar à rebelião. Mas, por outro lado,
considera que a doutrina da obediência não deve ser levada ao extremo e que é necessário insistir nas excepções que ela comporta e defender os direitos da verdade e da liberdade ofendida (lb., p. 462). NOTA BIBLIOGRÁFICA § 467. A primeira edição completa das obras filosóficas de Hume foi publicada em Edimburgo em 1827; The Philosophkal Works of D. H., ed. T. H. Green e T. H. Grose, 4 vols., Londres, 1874; Treatise of Human Nature, ed. Selby-Bigge, Oxford, 1896; Enquiries Concerning Human Understanding and the Principles of Horals, ed. Selby-Bigge, Oxford, 1902; Dialogues Concerning Natural Religion, ed. N. Kemp Smith, Oxford, 1935; Writings ou Economics, ed. E. Rotwein, Londres, 1955. Traduções italianas: Trattato sul11 intelligenza umana, de A. Carlini, Bari, 1926;Trattato sulle passioni, di M. Dal Pra, Turim, 1949; Ricerche sulllinte17ecto umano e sui principi della morale, de G. Prezzolini, Bari, 1910; di M. Dal. Pra, Bari, 1957; Storia naturale della religione e saggio sul suieMio, de U. Porti, Bari, 177 1928; Dialoghi sulla religione naturale, de M. Dai Pra, Milão, 1947; La regola del gu-sto, de G. Preti, Milão, 1946. Sobre a vida: J. Y. T. GREIG, D. II., Londres, 1931; E. C. MOSSNER, The Life of D. H., Edimburgo, 1954. § 468. A. RIEHL, Die philosophische Kritizismus, 1, 2.1 edição, Lipsia, 1908; J. DIDIER, H., Paris, 1912; HENDEL, Studies in the Philosophy of D. H., Princeton, 1925; R. METZ, D. H., Leben und Philosophie, Stuttgart, 1929; G. DELLA VOLPE, H. o il Genio delllempirismo, 1, Florença, 1939; KEMP SMITH, The Phil of D. H., Londres, 1941; DAL PRA, H., Milão, 1949; A. L. LEROY, D. H., Paris, 1953; F. ZABEM, H. Precursor of Modern Empiricism, Haia, 1960. § 470. Sobre as matemáticas na doutrina de Hume: MEYER, H.Is und. Berkeleys Philosophie der Mathematik, Halle, 1894; C. MAUND, H.Is Theory of KnowIedge, Londres, 1937. § 471. H. H. PRICE, Ws Theory of the External World, Oxford, 1940; D. G. C. MACNABB, D. H., His Theory of KnoxArledge and Morality, Londres, 1951. § 472. Sobre as doutrinas morais: INGEMAR HEDENIUS, Studie8 in H.Is Ethics, Upsala, 1937; R. M. KYDD, Reason and Condu-ct in Hume's Tr-,atise, Oxford, 1946. § 473. Sobre as doutrinas religiosas: A. E. TAYLOR, D. H. and the Miraculous, Cambridge, 1927; A. LERoY, La critique et Ia religion chez D. H., Paris 1930. § 475. Sobre as doutrinas polítioas: C. E. VAuGHAN, Studies in the History of Political Philosophy,
1, Manchester, 1925, cap. 6; L. BAGOLINI, Esperienza giuridica e politica nel pensiero di D. H., Siena, 1947. Bibl.: T. E. JFssop, A BibZiography of D. H. and of Scottish Philo&oph-y fro-in Hutcheson to Lord Balfour, Londres, 1938; DAL PRA, op. Cit. 178 XI O ILUMINISMO INGLÊS § 476. ILUMINISMO INGLÊS: CARACTERÍSTICAS DO ILUMINISMO Com Grócio e Descartes, Hobbes, Espinosa e Leibniz, a razão celebrou no século XVII os seus máximos triunfos. Ela pretendeu estender o seu domínio a todos os aspectos da realidade e não fixou práticamente limites a tal domínio e às suas possibilidades de desenvolvimento. O século XVIII, o século do iluminismo, conserva intacta a confiança na razão e é caracterizado pela decisão de se servir dela livremente. "O iluminismo, escreveu Kant (Was ist Aufklãrung? in Opere, ed. Cassirer, IV, p. 169), constítuii a emancipação de uma menoridade que só aos homens se devia. Menoridade é a incapacidade de se servir do seu próprio intelecto sem a orientação de um outro. Só a eles 179 próprios se deve tal menoridade se a causa dela não for um defeito do intelecto mas a falta de decisão e de coragem de se servir dele sem guia. "Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio intelecto!", tal é a divisa do iluminismo. O exercício autónomo e soberano da razão é decerto o próprio lema do iluminismo. Mas de que razão? A razão cartesiana como força única, infalível e omnipotente sofrera, por obra de Locke, uma transformação do seu âmbito que a reconduzira aos limites do homem. Em virtude de tal transformação, a razão não pode desvincular-se da experiência, uma vez que é a força directiva e organizadora da experiência mesma. Por isso, não estende os seus poderes para além dos limites da experiência, fora dos quais apenas subsistem problemas insolúveis ou fictícios. O iluminismo faz sua esta lição de modéstia e polemiza. contra o dogmatismo da razão cartesiana. Um dos aspectos desta polémica é a condenação do "sistema" ou do "espírito de sistema", isto é, das tentativas da razão para traçar planos gerais do universo a que os fenómenos observados se ajustem de qualquer forma. A filosofia da natureza de Newton, como generalização conceptual dos dados da observação e recusa de proceder para além de tais generalizações, admitindo <6ipóteses" que valham corno explicação metafísica delas, é, em geral, considerada pelos iluminIstas como o mais consumado produto da razão e contraposta aos "sistemas" da filosofia tradicional e do próprio Descartes. Portanto, problemas como o da essência metafísica da natureza e do espírito, ou como os debatidos pela teologia 180 tradicional, cessam de ser, para o iluminismo, problemas filosóficos; e as suas soluções,
num sentido ou noutro, são consideradas equivalentes e reciprocamente destruidoras nas suas afirmações contraditórias; ou são consideradas puras @superstições que nasceram e se mantiveram só devido a forças que não têm o mínimo fundamento na razão. O iluminismo é, pois, caracterizado, em primeiro lugar, pela rigorosa autolimitação da razão nos limites da experiência. Em segundo lugar, é caracterizado pela possibilidade, que se atribui à razão, de investigar todo o aspecto ou domínio que se contenha dentro de tais limites. Até por este segundo aspecto, o iluminismo se contrapõe ao cartesianismo que, se por um lado, se recusava a toda e qualquer ingerência no domínio moral e político, por outro havia pretendido fundar racionalmente as próprias verdades religiosas. O iluminismo não aceita esta renúncia cartesiana: o seu primeiro acto foi o de estender ao domínio da religião e da política a investigação racional. A esta investigação atribui o iluminismo, a defesa e a realização da tolerância religiosa e da liberdade política: ideais que condicionam e solicitam a revolta contra as estruturas feudais e os privilégios sociais e políticos. Sob este aspecto, a razão é para os iluminIstas a força a que se deve fazer apelo para a transformação do mundo humano, para encaminhar este mundo para a felicidade e a liberdade, libertando-o da servidão e dos preconceitos. Porém, a razão não é, segundo os iluminIstas, a única força que habita o mundo; nem é uma força absoluta, omnipotente 181 ou providencial. Ã razão opõe-se a tradição, que apresenta como verdadeiros os erros e os preconceitos e justos os privilégios e as injustiças, que têm as suas raízes no longínquo passado. O iluminismo é, pois, essencialmente, ou constitucionalmente, antitradicionalismo: é a recusa em aceitar a autoridade da tradição e em lhe reconhecer qualquer valor; é o empenho em levar perante o tribunal da razão toda a crença ou pretensão, para que seja julgada, ou rejeitada se se provar ser contrária à razão. A crítica da tradição é, em primeiro lugar, uma crítica da revelação religiosa, da qual se faz o princípio e a justificação da tradição religiosa; e à religião o revelada os iluminIstas contrapõem, quando não se voltam para o ateísmo ou o materialismo, a religião natural, que é a religião reconduzida (como dirá Kant) "aos limites da razão". A atitude critica em relação à tradição, resolvendo-se na crítica de factos, de testemunhos e de documentos (a partir dos escritos bíblicos), empenhada em determina: a sua autenticidade ou validez, estabelece, sobretudo por obra dos iluminIstas franceses, as primeiras bases da metodologia historiográfica, tal como hoje é entendida e empregada nas disciplinas históricas. Por outro lado, a obra iluminadora e transformadora da razão não seria possível num mundo que lhe fosse impermeável e deve promover o progresso da razão no mundo. O conceito de uma história em que o progresso é possível, isto é, em que a razão, embora através de lutas e contrastes, pode afirmar-se ou prevalecer, 182 é um dos resultados fundamentais da filosofia iluminista.
Esta filosofia afasta-se, pois, bastante do intelectualismo, porque não tem a mínima pretensão de reduzir à razão a vida particular ou associada do homem. Também ela, enquanto se empenha na obra de crítica e de reconstrução racional da realidade humana, é levada a reconhecer os limites que tal obra encontra no próprio espírito do homem, isto é, no3 sentimentos ou nas paixões que muitas vezes apoiam ou reforçam a tradição ou se opõem à obra libertadora da razão. A descoberta da categoria do sentimento e a análise das paixões é outro dos resultados fundamentais do iluminismo. § 477. O ILUMINISMO INGLÊS: NEWTON, BOYLE O iluminismo encontrou indubitavelmente em França as manifestações que lhe proporcionaram a máxima difusão na Europa, e teve na Enciclopédia o seu órgão principal. Mas a origem de todas as doutrinas que o enciclopedismo francês aceitou e difundiu deve procurar-se na filosofia inglesa a partir de Locke. A doutrina física do iluminismo é substancialmente a de Newton. Isaac Newton (16421727) fizera nos Princípios matemáticos da fil~ia natural (1687) a exposição completa de um sistema puramente mecânico de todo o mundo celeste e terreno. Tal exposição não é sintética e dedutiva, mas analítica 183 e indutiva. Newton encontra-se na via de Galileu, não na de Descartes. Ele não se propõe partir de hipóteses gerais sobre a natureza para chegar ao conhecimento particular dos factos, considerados como confirmações ou manifestações das próprias hipóteses. Parte, pelo contrário, dos factos dados pela experiência e procura chegar gradualmente às primeiras causas e aos elementos últimos dos factos mesmos. A própria história da gravitação universal, que lhe permitiu exprimir por unia única lei factos considerados até então muito diversos (a queda dos graves, os movimentos celestes, as marés) não é para ele um ponto de chegada definitivo, nem o fundamento de uma qualquer doutrina metafísica da realidade, mas a sistematização matemática de certos dados da experiência. Ele encontrou a fórmula matemática que permite descrever os fenómenos da experiência que dizem respeito à gravidade, mas recusa-se a formular hipóteses sobre a natureza da gravidade mesma porque considera isso estranho ao escopo da física, que é a descrição dos fenómenos. A sua famosa afirmação hypotheses non fingo (que se encontra no fim do terceiro livro dos Princípios) exprime a orientação que ele pretende dar à investigação física. Orientação que, noutro passo famoso da óptica (1704), contrapõe à causa das qualidades ocultas a que se referia a física aristotélica. "Tais princípios, diz ele (aludindo à força de gravidade e às outras), não os considero como qualidades ocultas que resultem das formas específicas das coisas mas corno leis gerais da natureza em conformidade com as quais as coisas mesmas se formam. 184 A verdade delas manifesta-se-nos através dos fenómenos, embora as suas causas não tenham sido descobertas. De facto, estas qualidades são manifestas e só as suas causas estão ocultas; enquanto os aristotélicos deram o nome de qualidades ocultas não a qualidades manifestas mas às que supunham existirem nos corpos como causas desconhecidas dos seus efeitos manifestos, como seriam as causas da gravidade e da
atracção magnética e eléctrica e das fermentações, se supuséssemos que tais forças ou acções nasceriam de qualidades que nos são desconhecidas e não seriam susceptíveis de serem descobertas e tornadas manifestas. As qualidades ocultas poriam termo ao progresso da filosofia natural (Optiks, HI, 1, q. 31). Com estas afirmações de Newton, a exigência de uma descrição da natureza vem a tomar o lugar da explicação da natureza com que se preocupava a física antiga e medieval. Os iluminIstas insistiram, como veremos, nesta contraposição. O próprio Newton, nem sempre se mantém fiel ao espírito dela. No fim da óptica, insistindo na "maravilhosa uniformidade do sistema planetário", afirma que ela deve ser "o efeito de uma escolha", como deve ser o efeito de uma escolha (entenda-se: de Deus) a uniformidade dos corpos animais e a sua constituição, sensibilidade e instinto. E como trâmite da acção de Deus nas várias partes do universo, Newton considera o espaço que seria portanto "o infinito e uniforme sensório" de Deus (Ib., HI, q. 31), aceitando uma doutrina que havia sido exposta pelo neoplatónico Moro (§ 419). Com estas especulações, 185 § 478. ILUMINISMO Inglês: A Polémica SOBRE O Deísmo Uma boa parte da especulação filosófica do século XVIII em Inglaterra é dedicada à polémica em torno do valor respectivo da religião natural e da religião revelada. Por religião natural entende-se a que é fundada unicamente na razão ou pela razão e que, por isso, se limita a ensinar apenas as verdades que a razão pode demonstrar ou, pelo menos, compreender. É a religião do deísmo, a qual se funda num conceito da divindade inteiramente acessível às forças da razão e que, portanto, exclui toda a conotação "misteriosa" ou inconcebível ou, de qualquer modo, não acessível à razão. As doutrinas de numerosos deístas ou
O Cristianismo não misterioso revela já no título o intento do autor. Como Newton, Toland declara: "Elim-ino da minha filosofia todas as hipóteses" (p. 15). Só a razão deve ser o fundamento da certeza. E por razão entende ele a razão definida por Locke, a qual procede mostrando o acordo ou o desacordo entre as ideias. Tal critério exclui que possam fazer parte do conhecimento humano ideias misteriosas ou incompreensíveis. "Poderá julgar-se verdadeiramente de posse de um conhecimento, pergunta ele (p. 128), 189 quem, tendo a certeza infalível de que alguma coisa chamada Blictri existe na natureza, não sabe de facto que coisa é Blictri?". Tudo quanto entra no âmbito do conhecimento deve ser inteligível e claro. E inteligíveis e claras são, na realidade, segundo Toland, as verdades do cristianismo, as quais não são mistérios se não no sentido de serem proposições conhecidas por nós apenas mercê da revelação. Porém, a revelação nada nos diz que seja inconcebível ou contraditório; e nós devemos e podemos exigir a prova de todas as afirmações históricas contidas nas Sagradas Escrituras. Toland está convencido de que as verdades do cristianismo podem sofrer sem danos o mais rigoroso exame da razão. Todavia, não estendeu a sua análise àquelas verdades que o cristianismo, nas suas várias confissões, considera verdadeiros mistérios, como a Trindade e a Encarnação; afirma, contudo, que, no que respeita a Deus, "nada compreendemos melhor do que os seus atributos" (p. 86). Tem carácter geometrizante a especulação teológica de Samuel Clark (1675-1729), autor de Uma demonstração do ser e dos atributos de Deus (1705), dirigida polemicamente contra Hobbes e Espinosa. Valendo-se do mesmo método geométrico que Hobbes e Espinosa haviam adoptado para chegar a conclusões contrastantes com o cristianismo, Clarke pretende, pelo contrário, chegar a uma confirmação do cristianismo. O seu objectivo é o de construir um edifício teológico que assente em bases de verdades intuitivas, cimentadas ao mesmo tempo com demonstrações rigorosas, e que seja essencialmente indepen190 dente de qualquer revelação externa. A demonstração da existência de Deus é corroborada pela prova cosmológica, isto é, pela impossibilidade de admitir uma cadeia infinita de seres que dependam uns dos outros. No princípio desta cadeia haverá um ser eterno cuja não existência implicaria contradição. Clarke, deduz também os atributos de Deus e defende a liberdade deste que define como sendo o poder de se mover e de se determinar por si. No mesmo sentido, o homem é livre; e Clarke contrapõe a sua tese da liberdade divina e humana à tese espinosana da necessidade. Também a vida moral é regida por leis que são eternas, e necessárias. Negar os deveres morais seda negar as verdades matemáticas (Works, 11, p. 609). O código moral é o código natural do homem. Onde está a utilidade da revelação? Em tornar mais claro e evidente ao homem o código natural da moral. Existem bem fundados motivos para crer que Deus nem sempre deixa o homem privado de um auxílio tão necessário; mas, por outro lado, isto não quer dizer que Deus seja obrigado a fazer a todos uma revelação. Clarke conclui a sua obra afirmando que só o cristianismo pode ter a pretensão de ser uma revelação divina porque só ele encerra um ensinamento moral conforme a todas as exigências da recta razão. Esta identidade entre o cristianismo e a religião natural é posta em relevo por outra via, numa obra intitulada O cristianismo tão velho como a criação (1730), da autoria de Matthew Tindal (1656-1733). Deus é infinitamente sábio, bom, justo e imutável. A natureza humana criada por ele é, pois, igual191
mente imutável; e os princípios racionais que ela traz inscritos em si não têm necessidade de correcções ou modificações. Uma revelação é, portanto, supérflua, já que, na realidade, Deus se revela à razão do homem a partir do momento da criação. A religião natural e a revelada não diferem entre si se não no modo da comunicação: "Uma. é a revelação interna, a outra a revelação externa da vontade de um Ser que é em todos os tempos igualmente bom e sábio" (lb., p. 2). O Evangelho foi apenas uma "nova publicação da lei de natureza". E a razão permanece em todos os casos o único guia do homem. "A própria tentativa de destruir a razão com a razão é uma demonstração de que os homens não podem fiar-se senão na razão" (1b., p. 1,8). O único princípio de vida é, assim, a obediência à lei natural e racional; e não há nenhuma diferença entre religião e moralidade, a não ser no sentido de que a moralidade consiste em agir conforme a razão das coisas considerada como lei de Deus. Deste ponto de vista, vê-se que Tindal, como Toland, tenta excluir da religião qualquer elemento misterioso ou incompreensível. Na mesma linha de considerações se move o outro defensor do deísmo Anth@ony Collins (1676-1792), que foi o discípulo favorito de Locke. O seu Discurso sobre o livre- pensamento, publicado em 1713, suscitou a reacção polémica de Jonathan Swift que lhe respondeu, à sua maneira, num escrito intitulado O discurso sobre o livre-pensamento de Collins reduzido a palavras simples. O grande ironista não podia simpatizar com a pretensão dos livre-pensadores 192 que considera o homem como o único guia da razão. "A grande maioria dos homens, dizia ele (Works, ed. 1819, 11, p. 197), é capaz tanto de pensar quanto de roubar". Todos os homens são loucos, portanto o livre-pensamento é uma absurdidade e reduz-se a atribuir a todo o homem ignorante e estúpido a capacidade de resolver sem ajuda os maiores problemas. Os livres-pensadores são também loucos e velhacos e por isso as suas conclusões são desprezíveis. Vê-se que o discurso de Collins, reproduzido por Swift com uma espécie de fidelidade literal, é como que reflectido num espelho deformante e reduzido a uma caricatura. "Os padres dizem-me, afirma Swift (1b., 11, p. 195), que eu devo crer na Bíblia, mas o livre-pensador diz-me algo diferente em muitos pontos. A Bíblia diz que os Hebreus foram uma nação favorecida por Deus; mas eu, que sou um livre-pensador, digo que não pode ser, porque os Hebreus viveram num canto da terra e o livrepensamento faz-me ver que os que vivem num canto da terra não podem ser favorecidos por Deus. Só o Novo Testamento garante a verdade do cristianismo, mas o livrepensamento nega-o porque o cristianismo foi comunicado apenas a poucos e aquilo que é comunicado a poucos não pode ser verdadeiro; porque é como que um cochichar e o provérbio diz que onde se cochicha não pode haver verdade". Em 1724 Collins publicava o Discurso sobre os fundamentos e as razões da religião cristã, no qual reconhecia como único fundamento e razão do cristianismo a validade das profecias. A prova da missão 193
divina de Cristo e dos apóstolos reside apenas no facto de que a sua obra vem realizar e cumprir a profecia contida no Velho Testamento. Mas as profecias, segundo Collins, já não se realizam literalmente; e por isso a única maneira de salvar o valor do cristianismo é a interpretação alegórica da própria profecia. Ao optimismo sobre a natureza humana que domina os escritos dos livre-pensadores contrapõe-se a amarga diagnose que sobre tal natureza pronuncia Joseph Bufler (16921752). É autor de dois livros: Quindici sermoni sulla natura umana, publicados em 1726, e A analogia da religião, natural e revelada, com a constituição e curso da natureza, publicada em 1736. Bufler, como Pascal, está convencido da miséria e da corrupção da natureza humana. O homem vive continuamente sob o peso do pecado e da morte o aquilo a que ele pode aspirar não é mais do que uma mitigação da infelicidade e da dor da sua condição (Serm ., VI, in Works, II, p. 82). Todavia, é dotado de um instinto natural que lhe faz sentir a vergonha da sua miséria e o faz tremer como um culpado em presença do seu criador. Este instinto é a consciência, que é a própria "voz de Deus dentro de nós". Bufler compara a natureza humana a uma constituição civil, em que a consciência faz o papel de soberano (lb., HI, in Works, II, p. 34). Mas a consciência distingue-se de todas as outras forças naturais do homem e revela a sua origem sobrenatural. "É só por esta faculdade natural que o homem é um agente moral, e é lei para si próprio; porém, esta faculdade não é apenas um 194 princípio do seu coração que tenha sobre ele a mesma influência que os outros, mas é, pela espécie e pela natureza, superior a todas as faculdades e faz sentir como tal a sua autoridade" (1b., 111, em Works, II, p. 27). Na outra obra, a Analogia, Butler propõe-se estabelecer a identidade entre o Deus da Natureza e o Deus da revelação. Todas as ordens de Deus são ao mesmo tempo divinas e naturais. O governo civil é, ele também, natural, e as punições que ele comina fazem parte da punição natural do pecado. Por outro lado, a punição na vida futura pode ser considerada no mesmo sentido em que o são as punições nesta vida. Mas, depois de ter admitido a identidade entre as leis de natureza e as leis de Deus, Bufler preocupa-se em estabelecer uma distinção entre Deus e a Natureza. Deus é o governador do mundo, como tal distinto do próprio mundo. E esta distinção é comprovada pelo plano moral do mundo. De tal plano, nós vemos apenas uma pequena parte. "0 curso das coisas, diz Bufler (Works, 1, p. 162), que a nossa visão abrange, está ligado a alguma coisa que está para além dele, no passado, no presente e no futuro. De modo que nós estamos situados no meio de um esquema, que não é fixo mas progressivo e, de qualquer modo, incompreensível: incompreensível por igual, seja a respeito do que foi, seja a respeito do que é agora, seja a respeito do que será. "0 que podemos dizer deste esquema, valendo-nos do princípio de que Deus é o governador e o regulador dele, é que ele deverá progredir para um cada vez maior equilíbrio moral. Se mesmo 195 hoje vemos que os homens são regidos por uma disciplina de vício, mais do que por uma
disciplina de virtude, devemos admitir que tal condição não é definitiva mas pode encontrar na outra vida, ou mesmo nesta, uma correcção adequada. Em qualquer caso, a natureza não pode opor-se à revelação: uma e outra conduzem à mesma conclusão, que é a única que cumpre ter bem presente: o governo moral do mundo. Graças a este princípio, que o caracteriza, conserva o cristianismo a sua validez contra os ataques que lhe desferem e representa a única, alternativa para o ateísmo, cujo princípio é a negação do governo moral do universo. Como se vê, a especulação de Butler, como a dos livres- ,pensadores, funda-se na identidade entre a natureza e Deus mediada pela identidade destes dois termos na razão. O seu traço característico é a fé no progresso moral do mundo: uma fé activa e operante que é, sobretudo, empenho pela realização desse progresso. § 479. ILUMINISMO Inglês: SHAFTESBURY Aquele que deu a expressão mais apropriada aos temas mais populares e mais conhecidos do iluminismo europeu e formulou Q defendeu os seus instrumentos de luta, foi Anthony AshIey Cooper, terceiro conde de Shaftesbury, neto do primeiro conde de Shaftesbury (o amigo de Locke), nascido em Londres a 20 de Fevereiro de 1671 e falecido em Nápoles a 15 de Fevereiro de 1713. O primeiro escrito de Shaftesbury, que participou na vida política 196 inglesa nas fileiras dos Whigs e viajou muito pela Europa, foi a Investigação sobre a virtude, publicada abusivamente por Toland em 1669. A esta obra seguiram-se: Carta sobre o entusiasmo (1708). Sensus communis (1709); Os moralistas (1709); Solilóquio ou conselho a um autor (1710). Em 1711, Shaftesbury reunia estes cinco escritos, ajuntava-lhes as Reflexões diversas sobre os precedentes tratados e dava ao conjunto da obra o título de Características de homens, maneiras, opiniões, tempos. Os escritos de Shaftesbury, traduzidos inúmeras vezes em francês e alemão, contribuíram poderosamente para a formação do espírito iluminístico. O iluminismo, que sob este aspecto foi o herdeiro do libertinismo, valeu-se frequentemente, na crítica das crenças e das instituições tradicionais, da sátira, da irrisão, do sarcasmo e da ironia. Shaftesbury é, em primeiro lugar, um bom defensor destes instrumentos polémicos e, ao mesmo tempo, um eficiente estudioso dos seus limites e do seu alcance. Segundo Shaftesbury, tais instrumentos polémicos fazem parte integrante da razão, cujo uso não se aprende nos tratados dos doutos ou nos discursos dos oradores mas apenas pelo livre exercício da crítica e da discussão. "A liberdade de fazer ironia, diz, e de exprimir dúvidas em relação a tudo com correcção de linguagem, a possibilidade de examinar ou de refutar qualquer argumento sem ofender o adversário, são os métodos que se devem usar para tornar agradáveis as conversações filosóficas. De facto, para dizer a verdade, elas tornaram-se enfadonhas pela estreiteza das leis que lhes são prescritas 197 e pela pedantaria e farisaísmo daqueles que as consideram prerrogativas próprias e que se arrogam o direito de reinar como déspotas em tais províncias do sabem (Sensus communis, I, IV). Que as críticas e as discussões filosóficas devem ser "agradáveis", isto é, interessantes para qualquer homem; que a ironia é o melhor instrumento para tal fim, assim como para mortificar a arrogância dos pedantes que supõem ter o monopólio da verdade, são duas exigências que se tornaram constitutivas do espírito iluminístico no século XVIII. À ironia, como sua antítese e sua cabeça-de-turco, opõe-se o entusiasmo, ou seja, o fanatismo, que consiste em se crer directamente inspirado pela divindade em todas as atitudes, em poder falar em nome da verdade mesma e em poder condenar inapelavelmente todas as crenças
diferentes. Ao entusiasmo, que é muitas vezes pânico, pois que tende a difundir-se por "contágio simpático", atribui Shaftesbury as manifestações mais chocantes da superstição popular e da intolerância religiosa. "Estou convencido, diz Shaftesbury, de que o único método para conservar o bom-senso dos homens e manter alerta o espírito no mundo, é deixá-lo livre. Mas o espírito nunca é livre onde se suprime a livre ironia: contra as extravagâncias melindradas e contra os humores melancólicos não existe de facto melhor remédio" (A Ietter Concerning Enthusiasm, 11). Mas a eficácia negativa da ironia em relação ao entusiasmo está no facto de que ela se situa, para o combater, no próprio terreno do entusiasmo, 198 isto é, no terreno das emoções. A ironja é, pode dizer-se, a emoção guiada ou apoiada pela razão, a emoção racional, que acompanha a livre crítica e lhe assegura a aceitação e a difusão, como o entusiasmo é a emoção tornada instrumento de escravidão intelectual, religiosa e política. A obra de Shaftesbury conduz, por conseguinte, ao reconhecimento (que é uma das características fundamentais do iluminismo) da função das emoções na vida individual e na vida social dos homens: reconhecimento que faz parte da razão, não já a substância única e total do mundo humano, mas uma força finita, e não obstante eficaz, que dá ordem e disciplina a este mundo. Esta é, com efeito, a hipótese de que Shaftesbury parte nas suas análises morais. A coincidência que estas análises tendem a mostrar entre a virtude e o interesse é apresentada por Shaftesbury como o resultado das escolhas racionais, que o homem pode e deve efectuar no emaranhado das tendências, das emoções e das paixões que constituem a sua vida. Entre estas tendências, emoções e paixões, algumas são nocivas ao indivíduo e à comunidade; outras nocivas à comunidade, não ao indivíduo; outras, enfim, são úteis a uma e a outra. Na escolha estas últimas para guias da acção e na rejeição das outras é que consiste a virtude. A virtude não pode, pois, pertencer a um ser que aja apenas à base dos estímulos sensórios, pois é uma prerrogativa só de quem, como o homem, pode reflectir sobre as próprias emoções para as reforçar ou enfraquecer. A condição desta escolha é a posse da noção de um interesse comum a todos 199 os homens. Só tal noção, com efeito, permite esta. ~r o acordo entre interesse privado e interesse comum, o qual constitui o critério das escolhas racionais. "As criaturas que estão sujeitas apenas a estímulos provenientes de objectos sensíveis, diz Shaftesbury, são boas ou más conforme as suas inclinações sensíveis. Não sucede o mesmo com as criaturas capazes de forjarem conceitos racionais sobre o bem moral. Nelas, se as inclinações dos sentidos, conquanto possam ser perversas, não levam a melhor graças àquelas outras inclinações racionais de que falámos, a índole permanece boa no conjunto e a pessoa é, a justo título, considerada virtuosa por todos" (Inquiry Concerning Virtue, 1, 11, 4). Este conceito de moralidade conduz Shaftesbury a afirmar a autonomia da moral relativamente à religião. "Uma criatura, antes de ter uma clara e precisa noção de Deus, pode possuir uma concepção ou um sentido do justo e do injusto e vários graus de vícios ou
virtudes" (Ib., I, 111, 3). O próprio ateísmo não é um obstáculo à virtude: "Quem não compartilha plenamente uma hipótese teística pode reconhecer e apreciar as vantagens da virtude e formar na sua alma um alto conceito dela" Ub., 1, 111, 3). Por outro lado, uma conduta inspirada apenas pela esperança de um prémio ou pelo temor de um castigo futuro é destituída de valor moral. "Há tanta rectidão, piedade e santidade numa criatura assim subjugada, diz Shaftesbury, quanta mansuctude e docilidade num tigre enjaulado ou quanta espontaneidade e correcção num macaco submetido a disciplina do chicote" b., 1, 11, 3). Mesmo que 200 em alguns casos esta crença possa ser útil, a religião deve, fundar-se antes no amor desinteressado por Deus que na solicitude pelo bem privado. "Enquanto Deus é amado apenas como causa do bem privado, não é amado senão como um qualquer instrumento ou meio de prazer por parte de uma criatura viciosa" (lb., 1, 111, 3). A religião autêntica consiste, segundo Shaftesbury, em se dar conta da unidade e da harmonia do universo e em remontar desta consideração à perfeição e à benevolência do Criador. Mesmo considerando um único ser, por exemplo, o homem ou outro animal, vê-se logo que, conquanto ele seja em si mesmo um sistema autónomo de partes, não pode ser considerado autónomo em relação a todo o resto: importa observar que está estreitamente ligado à sua espécie. Por seu turno, o sistema da sua espécie está ligado ao sistema animal; este está ligado ao mundo, à nossa terra; e esta, por sua voz, ao cosmo mais amplo, que é o universo. Assim tudo está unido e harmonizado de tal modo que ordem, verdade, beleza, harmonia e proporção são termos sinónimos e caracterizam simultaneamente a conduta virtuosa do homem e a estrutura geral do universo. Shaftesbury repudia como blasfemas as afirmações de um Deus que pune ou atemoriza ou que tem necessidade de suspender as leis por ele estabelecidas para demonstrar, mediante milagres, o seu poder. "Deus não podia testemunhar-se a si mesmo ou demonstrar aos homens a própria existência de outro modo que não fosse revelando-selhes através da razão, fazendo apelo ao espírito deles e submetendo as suas obras ao 201 exame e à fria deliberação dos homens. A contemplação do universo, as suas leis e a sua ordenação são as únicas bases sobre as quais é possível fundar uma sólida fé na divindade" (MoraIis@s, 11,5). Pelo seu conceito do universo como "sistema geral", isto é, como ordem, harmonia e racionalidade e pelos acentos optimistas que a sua filosofia por vezes assume ao formular ou defender esse conceito, foi Shaftesbury por vezes considerado como o precursor do romantismo. E não há dúvida de que os românticos beberam nos escritos dele algumas das suas inspirações. Porém, os temas filosóficos fundamentais de Shaftesbury constituem a trama mesma do pensamento iluminístico, que os desenvolveu e difundiu e os animou de modos vários, respeitando-lhe todavia o espírito informador. A própria ética de Kant é devedora a Shaftesbury de muitos dos seus temas. Além disso, a linguagem fluida e fantasiosa em que tais temas foram expressos constituiu para o iluminismo, e para as
suas exigências de difusão, um modelo exemplar. § 480. HUTCHINSON MANDEVILLE Os motivos fundamentais da filosofia de Shaftesbury vêm a ter uma sistematização escolástica na obra de Francis Hutchinson (1694-1747), que foi desde 1729 professor de filosofia moral na Universidade de Glasgow. É o autor de uma Investigação sobre as ideias de beleza e de virtude (1725), de um Tratado sobre as paixões (1728), e de um Sistema de filosofia moral, publicado postumamente 202 em 1755, que é a sua obra fundamental. Hutchinson acentua o optimismo de Shaftesbury. "A felicidade, diz ele (System, 1, p. 190), é assaz superior à miséria, mesmo no mundo presente". Deus revela-se em toda a parte. As "estupendas. órbitas" dos céus, a harmonia da terra e do sistema solar, a estrutura dos animais, testemunham a bondade do criador. Os nossos sofrimentos são apenas avisos e exortações do Pai universal, que não permite nenhum mal no mundo senão aquele que a constituição dele requer ou necessariamente traz consigo (lb., 1, p. 215). A filosofia moral de Hutchinson encontra o seu centro na elaboração do conceito de senso moral, como fundamento da vida moral e revelação no homem da harmonia universal. Hutchinson admite, para além e antes dos sentidos que nos revelam o mundo exterior e nos fornecem o material do conhecimento, um certo número de percepções mais subtis que nos fazem advertir os valores interiores ou espirituais do homem. Há o senso da beleza e da harmonia, que é a imaginação, senso da simpatia, o senso que nos proporciona prazer na acção, o senso moral, o senso da conveniência e da dignidade, o senso familiar, o senso social e o senso religioso. Cada um deles é uma determinação da vontade e tende à felicidade. A unidade destes diversos sensos é, pois, determinada exclusivamente pelo fim comum a que são dirigidos pelo criador. O senso moral é considerado por Hutchinson uma faculdade independente porque não pode ser resolvida em elementos mais simples. Não pode ser reduzida à simpatia, porque nós aprovamos 203 também a virtude dos nossos inimigos; nem ao prazer que deriva da acção virtuosa, porque é a raiz e não o fruto deste prazer; nem à percepção da utilidade, porque também as más acções podem ser úteis. Além disso, não pode ser derivado da conformidade de urna acção à vontade divina, porque os atributos morais de Deus devem ser conhecidos antes do juízo que reconhece tal conformidade; nem da conformidade à verdade das coisas, porque esta seria uma definição aparente (1b., 1, cap. 4). O senso moral percebe a virtude e o vício como os olhos percebem a luz e a obscuridade. A variedade nos juízos morais não se deve a ele, que é regular e imutável, mas aos juízos que nós emitimos sobre as acções. O sou
objecto é, de facto, apenas o sentimento interior: os juízos sobre as acções dos outros podem variar indefinidamente, uma vez que lhes cabe inferir o motivo que as sugeriu. Hutchinson identifica todavia o senso moral com a tendência para o bem público. Primeiro, adopta a fórmula " a máxima felicidade do maior número" para caracterizar a melhor acção possível (Enquiry, 111, 8), fórmula que se encontra em Beccaria e em Bentham. O senso moral não é mais do que a aprovação, daqueles sentimentos e, portanto, daquelas acções que conduzem ao bem público. Como Hutchinson não encontra outros motivos que possam justificar a aprovação de tais sentimentos e acções, recorre ao senso moral com que Deus dotou o homem. Mais do que juiz supremo, Deus é assim o garante da harmoniosa inserção do homem no sistema do mundo. 204 Constitui uma contrapartida ao optimismo de HaWhinson o pessimismo de Bernard de Mandeville (1670-1733), autor de uma Fábula das abelhas publicada em 1705. Esta obra consta de um breve poema em que se narra como uma colmeia era próspera e viciosa e como, devido a uma reforma de costumes, perdeu a prosperidade ao perder o vício. Ao poema seguem-se longas notas; e, em sucessivas edições, foram também acrescentados, um Ensaio sobre a caridade e sobre as escolas de caridade, uma Investigação sobre a natureza da sociedade, e alguns diálogos sobre a mesma Fábula. O paradoxo em que o livro assenta é expresso no subtítulo "Vícios privados, benefícios públicos". Na conclusão da Investigação sobre a natureza da sociedade, Mandeville afirma ter demonstrado que "nem as qualidades sociais, nem as disposições benévolas que são naturais ao homem, nem as virtudes reais que é capaz de adquirir com a razão e com a abnegação, são o fundamento da sociedade; mas que aquilo que nós denominamos mal neste mundo, mal moral ou natural, é o grande princípio que nos torna criaturas sociáveis, a sólida base, a vida e o suporte de todos os comércios e empregos sem excepção"; por consequência, se o mal cessasse, a sociedade encaminhar-se-ia para a dissolução. O motivo que mais frequentemente se aduz em favor desta tese é que a tendência para o luxo aumenta os consumos e, portanto, leva ao incremento dos negócios, das indústrias e de todas as actividades humanas. Por luxo entende Mandeville tudo quanto não é necessário à existência de 205 um "nu selvagem". E uma vez que a virtude consiste essencialmente na renúncia ao luxo, assim ela é directamente contrária ao bem-estar e ao desenvolvimento da sociedade civil. Todas as argumentações de Mandeville se baseiam no contraste entre o conceito rigoroso da virtude como mortificação de todas as necessidades naturais, e a observação de que a sociedade humana é organizada essencialmente, para servir a tais necessidades. O conceito rigoroso da virtude leva-o a negar que haja verdadeira virtude no mundo. O que nós chamamos virtude é, as mais das vezes, um egoísmo mascarado.
Simplesmente, as interessadas adulações dos legisladores, dos moralistas, dos filósofos, induzem os homens a crer nas próprias virtudes e a tornarem-se assim mais dóceis e manejáveis. A doutrina de Mandeville é a antítese simétrica da de Shaftesbury. Para Shaftesbury, a virtude corresponde a uma harmonia que impregna todas as obras da natureza e é reconhecível pelo intelecto. Para Mandeville é apenas uma moda que muda tão rapidamente como o gosto no vestir ou na arquitectura (Fable, p. 209). Para Shaftesbury a natureza é uma divina harmonia em que todas as coisas encontram o seu lugar e a sua beleza. Para Mandeville, a natureza é uma força inprescrutável, um segredo impenetrável que se furta a toda a pesquisa, mas que se manifesta de preferência nos dolorosos, desagradáveis ou desconcertantes aspectos da vida. A decisão de Mandeville de ter os olhos bem abertos a todos os aspectos obscuros ou desagradáveis da existência é decerto estimável; mas 206 esta decisão permanece inconcludente, porque se acompanha de uma espécie de cínica satisfação que impede de extrair dela as devidas consequências. Cumpre todavia reconhecer que a atitude assumida por Mandeville é bastante mais profícua para uma avaliação autêntica do mundo humano. Enquanto Shaftesbury rejeita desdenhosamente a teoria da origem selvagem do homem por ser incompatível com o desígnio providencial (Moralists, 11, 4). Mandeville descreve a luta pela existência através da qual gradualmente o homem se eleva acima dos animais selvagens e forma a sociedade para a protecção comum. E assim reconhece a origem da religião no feiticismo natural mercê do qual as crianças julgam que todas as coisas são animadas (Fable, p. 409); e observa que muitas das conquistas que são atribuídas ao génio do homem são, na realidade, o resultado dos esforços somados e prosseguidos no curso do tempo por muitas gerações de homens que têm inconscientemente contribuído para as alcançar Ub., p. 361). § 481. HARTLEY, PRIESTLEY, SMITH Entro o ponto de vista de Hutchinson, que assenta o fundamento da vida moral numa inata tendência altruística (o chamado senso moral), e o de Mandeville, que vê em todas as atitudes morais máscaras e disfarces do egoísmo, uma espécie de mediação e de conciliação é efectuada pela doutrina associacionista 207 de David Hartley (1705-57). Hartlcy foi médico, mas começou a dedicar-se à investigação filosófica por influência das obras de Newton e de Locke. Em 1479 publicou em dois volumes a sua obra fundamental Observações sobre o homem, a sua constituição, o seu dever e as suas expectativas. Hartley é um materialista: para ele o homem é somente um, feixe de "vibraçõezinhas" produzidas por forças que lhe são exteriores. A lei que o domina é a que domina todo o mundo natural: a necessidade. Deus comunicou ao mundo um certo impulso e este impulso transmite-se a todas as coisas em virtude de leis imutáveis, e a todas as determina e produz com perfeita necessidade.
A esta necessidade não se subtraem as manifestações propriamente humanas e espirituais; ea forma que a necessidade reveste no interior do homem é a lei da associação. A associação é para o homem o que a gravitação é para os planetas: ela é a força que determina a organização e o desenvolvimento de toda a vida espiritual do homem. De facto, as ideias, derivadas da sensação (Hartley reduz a sensação à reflexão, que Locke distinguiria dela), são gradualmente transformadas pela associação em produtos mais complexos. O prazer e a dor da sensação são os factos últimos e irredutíveis; deles procedem os da imaginação; e de uns e de outros combinados nascem o prazer e a dor da ambição. Da ulterior combinação destes últimos com os primeiros nascem os outros produtos da vida espiritual: a simpatia, a teopatia e o senso moral. No desenvolvimento deste processo, o prazer isola-se 208 e purifica-se pela dor; de modo que a própria tendência do homem para o prazer o conduz ao amor de Deus e à vida moral que lhe garantem o máximo prazer possível depurado pela dor. O amor a Deus (teopatia) é o ponto mais alto deste processo; mas o sentido moral resume-o e compreende-o todo. Hartley resume a sua doutrina numa fórmula matemática. Se M, diz ele (Observations, H, 72, escol.), representa o amor do mundo, T o temor, e A o amor de Deus, podemos dizer que M:T = T:A, isto é: M=T. No nosso estádio inicial tememos a Deus bastante mais do que o amamos; e amamos o mundo bastante mais do que tememos a Deus. No nosso estádio final, a relação é invertida e o amor do mundo é tragado pelo temor, e este, por sua vez, pelo amor a Deus. M aproximase indefinidamente de zero; e A deve por isso ser indefinidamente maior do que T. Hartley julga ter encerrado nesta simples fórmula matemática o segredo da vida moral. A mesma bizarra mistura de materialismo e de teologismo se encontra na obra de um discípulo de Hartley, Joseph Priestley (1733-1804), autor das Investigações sobre a matéria e o espírito (1777). O tom deste escrito é dado pela esperança expressa de que se possa um dia observar o processo mecânico através do qual se geram as sensações. "Não é impossível, diz Priestley (Disquisitions, p. 153), que no curso do tempo, venhamos a saber como é que a sensação resulta da organização". A psicologia poderá e deverá tomar-se numa parte da fisiologia, numa espécie de física do sistema nervoso. 209 Priestley coloca-se assim decididamente no terreno do materialismo e do determinismo que ele defende polemicamente contra o platónico Richard Price (1723-91), contra o qual são dirigidas as suas Livres discussões das doutrinas do materialismo (1778). O que, aliás, não lhe impede de admitir a origem divina do mundo e a imortalidade da alma, como já Hartley o fizera. O pressuposto optimista de Shaftesbury é retomado na obra de Adam Smith (1723-90), que foi o sucessor de Hutchinson na cadeira de filosofia moral de Glasgow, e que ocupa um
lugar eminente na história da economia política, dado que a sua Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações (1776) constitui a primeira exposição científica desta disciplina. A Teoria dos sentimentos morais (1759) destina-se a explicar o funcionamento da vida moral do homem mediante um princípio :simples de harmonia e de finalidade. Um Ser grande, benévolo e omnisciente, é determinado pelas suas próprias perfeições a manter no universo, em todos os tempos, "a maior quantidade possível de felicidade" (Theory, VI, 2, 3). Tal Ser deu ao homem um Guia infalível que o dirige para o bem e a felicidade, e esse guia é a simpatia. A simpatia é o dom de nos vermos a nós próprios como os outros nos vêem; é a capacidade de sermos espectadores imparciais de nós mesmos e de aprovarmos ou desaprovarmos a nossa conduta conforme sentimos que os outros simpatizam ou não simpatizam com ela. "Quando examino a minha conduta e a quero julgar, diz Smith (1b., 111, 1), e procuro condená-la ou 210 aprová-la, é evidente que me divido de qualquer modo em duas pessoas e que eu, apreciador e juiz, tenho uma tarefa diferente daquele outro eu de quem ele aprecia e julga a conduta. A primeira destas duas pessoas, reunidas em mim, é o espectador de quem procuro assumir os sentimentos, pondo-me no seu lugar e considerando através dele a minha conduta. A segunda é o próprio ser que agiu, aquele a que precisamente chamo eu e de que procuro julgar a conduta do ponto de vista do espectador". É evidente que, se a simpatia deve servir como critério de avaliação moral, importa pressupor o acordo entre aquele espectador que cada um traz em si e os outros espectadores, isto é, as outras pessoas que julgam a nossa conduta. Tal acordo é, de facto, pressuposto por Smith, que vê na simpatia a manifestação de uma ordem ou harmonia providencial que Deus estabeleceu entre os homens. Smith, todavia, não nega que o acordo entre o espectador interior e os externos possa também, nalguns casos, não ocorrer, e que por isso a consciência interior do indivíduo, o seu tribunal interior, possa estar em contradição com o juizo que sobre ele pronunciam os outros. Nestes casos, o juízo da consciência é obscurecido e agitado pelo juízo dos outros, e o seu testemunho interior hesita em aprovar-nos ou em absolver-nos. Ele pode, todavia, permanecer firme e decidido, como pode também ser abalado e confundido pelo juízo dos outros. "Neste último caso, diz Smith (lb., 111, 2), a única consolação eficaz que resta ao homem abatido e desventurado é invocar o supremo tribunal do juiz clarivi211 dente e incorruptível dos mundos". O apelo a este tribunal inacessível esconde a dificuldade em que vem a encontrar-se a doutrina moral de Smith perante a hipótese de um imperfeito funcionamento da ordem preestabelecida por Deus entre o juizo moral do indivíduo e o dos espectadores. Mas, na realidade, este imperfeito funcionamento permanece na mente de Smith uma hipótese abstracta, uma vez que ele está profundamente convencido da infalibilidade da ordem preestabelecida. Esta convicção domina também a sua doutrina económica. A Riqueza das nações é, de facto, fundada no pressuposto de uma ordem natural, de origem providencial, a qual garante em todos os casos a coincidência do interesse particular com o interesse da colectividade. Todas as análises económicas de Smith tendem a demonstrar que se deve deixar ao indivíduo a liberdade de perseguir o seu interesse para que os interesses
particulares se coordenem e se harmonizem espontaneamente com os objectivos do bemestar colectivo. O esforço natural de todo o indivíduo para melhorar a sua condição é o único princípio apto a criar uma sociedade rica e próspera. Deste pressuposto extraía Smith a condenação de toda e qualquer interferência, política na actividade económica dos cidadãos e a confirmação do princípio, defendido pelos fisiocratas franceses, da ilegitimidade de toda a regulamentação estatal da actividade económica. Com as doutrinas de Smith o princípio da harmonia universal era aplicado no domínio das doutrinas económicas. Fundadas como estão neste princípio, tais doutrinas revelam a sua 212 insuficiência logo que se considera a outra face das coisas e se põe em dúvida a estabilidade e a finalidade providenciais da ordem que as sociedades humanas apresentam. Viu-se já que outros filósofos ingleses (Butler, Mandeville, Hume) haviam posto em dúvida o princípio mesmo da ordem providencial. Robert Malthus iria em breve pôr em luz as mais clamorosas anomalias da ordem económica. § 482. A ESCOLA ESCOCESA DO SENSO COMUM As análises gnoseológicas e psicológicas dos filósofos da escola escocesa são dominadas pela segurança de uma ordem providencial que já inspirara alguns dos pensadores examinados. O senso moral de Hutchinson, a simpatia de Smith, são manifestações da ordem infalível que estes filósofos reconhecem como a natureza mesma da realidade. Era fácil, obedecendo ao mesmo princípio, admitir uma manifestação desta ordem no domínio do conhecimento: tal é o senso comum da escola escocesa. O fundador da escola escocesa foi Thomas, Reid (1710-96), que foi o sucessor de Smith na cadeira de filosofia moral de Glasgow. O primeiro escrito de Reid é o Ensaio sobre a quantidade publicado em 1748 na Actas da Sociedade Real de Londres. Mas a sua obra principal é a Investigação sobre o espírito humano segundo os princípios do senso comum (1764), a que se seguiram os Ensaios sobre as forças intelectuais do homem (1785), os Ensaio5 sobre as forças activas do homem (1788), e outros escritos menores. A filosofia de Reid. contrapõe-se 213 polemicamente ao cepticismo de Hume e tende a restabelecer e a garantir os princípios que Hume havia negado: a existência da realidade externa e as leis da causalidade. Mas não as restabelece e garante mediante uma reinterpretação dos problemas relativos (como fará Kant), mas sim apenas recorrendo ao testemunho do senso comum, isto é, das crenças tradicionais da humanidade. Reid faz derivar o cepticismo de Hume de Berkeley, Berkeley de Locke, e Locke de Descartes. As conclusões que Hume tornou explícitas estavam já implícitas na doutrina cartesiana das ideias (Enquiry, 1, 7). O erro fatal de Descartes foi o de admitir que o único objecto do nosso conhecimento é a ideia. Reid nega tal pressuposto. O objecto da percepção sensível é a coisa mesma, pois que à percepção está ligada a convicção irresistível da existência actual da coisa, A realidade do mundo exterior não é reconhecida em virtude de um raciocínio, mas em virtude do acto imediato da percepção, e é uma crença originária do espírito humano, estabelecida pelo
criador. Esta doutrina da percepção, apesar do seu carácter superficial, é a parte mais notável da filosofia de Reid. Quanto ao resto, Reid limita-se a contrapor às análises de Berkeley e de Hume a pretensa testemunha do senso comum. Berkeley negara a existência de um substracto material das sensações, e negara, até, que a crença neste substracto estivesse implícita nas afirmações do homem comum; Reid afirma que os homens crêem nele e que esta crença é um princípio eterno do senso comum. Hume afirmara que a substância, seja material, seja espiritual, 214 é apenas uma ficção da imaginação. Reid replica que Deus não poderia induzir-nos a crer numa ficção, Mas porque se crê em Deus? Evidentemente por causa do desígnio providencial que o universo mani. festa, segundo Reid. Hume pusera em luz a dificuldade de remontar deste desígnio à existência de Deus. Reid replica então que a crença de que a ordem inteligível implica um criador, é um dos primeiros princípios da nossa natureza (Intelectual Powers, VI, 6). Reid aplica também este procedimento simplista à vida moral, considerando os princípios éticos como outras tantas manifestações de uma "força intelectual e activa" que é, evidentemente, o próprio senso comum aplicado às questões morais. A doutrina de Reid foi retomada em Inglaterra por William Hamilton e, fora de Inglaterra, por pensadores franceses e italianos. O mais notável dos sequazes da escola escocesa foi Dugald Stewart (1753-1828), autor de uma obra intitulada Elementos da filosofia do espírito humano (em três volumes, 1792, 1814, 1827). A primeira das crenças fundamentais que são as condições de todo o raciocínio é, segundo Stewart, a crença na existência do eu. Tal crença surge à luz no acto da percepção mas não deriva dela. Naquele acto apreendemos ao mesmo tempo a existência da sensação e a nossa própria existência de seres sensíveis. A crença na existência do eu é originária e irredutível e não pode ser ulteriormente explicada. A par dela coloca Stewart a crença na realidade do mundo material, a crença na uniformidade das leis de natureza, e além disso, a confiança no testemunho da memória 215 e na identidade pessoal. Tais verdades são denominadas por Stewart leis fundamentais da crença que os primeiros elementos da razão humana. Não são princípios no sentido de serem pontos de partida de raciocínios indutivos que conduzem a outras verdades. Tais verdades originárias não permitem que delas se deduzam quaisquer verdades ulteriores. De proposições como "eu. existo", ou "o mundo material existe independentemente de mim", não se pode extrair nenhuma verdade nova, por muito que o espírito as combine. Tais verdades são apenas as condições necessárias de todas as deduções e valem pois como os elementos essenciais da própria razão. Devem ser, e são-no na realidade, reconhecidas por todos os homens, mesmo sem uma enunciação formal ou um acto reflexo da consciência.
à escola escocesa pertence também Thomas Brown (1778-1820). Porém, Brown apercebese da debilidade das posições de Reid e tende a defender as de Hume, embora sem partilhar o cepticismo deste último. Na sua obra Sobre a natureza e a tendência da doutrina de Hume (1804) nota que afirmar, como Reid faz, que se deve crer na realidade exterior sem que se possa dar uma prova da sua existência, implica substancialmente partilhar a tese de Hume de que aquela crença é injustificável. São, pois, notáveis os contributos de Brown para a psicologia da associação na obra publicada postumamente e intitulada Filosofia das forças activas e morais do homem (1828), contributos que foram utilizados pela psicologia posterior, de Stuart Mill e Spew@r a William James. 216 NOTA BIBLIOGRÁFICA § 476. Sobre o iluminismo em geral: CASSIRER, Die Phi?<>sophie der Aufklãdung, Tubinga, 1932; trad. ital., Plorenço, 1935; P. HAZARD, La crise de Ia conscience européenne (1680-1715), Paris, 1934; Trad. ital. Turim, 1946; La pensée européenne au XVIII Wcle: de Montesqui--u à Lessing, Paris, 1946; C. "ANKEL, The Faith of Reason, New York, 1948; R. V. SAMPSON, Progress in. the Age of Reason, Cambridge (Mass.), 1956. § 477. De Newton: Opuscu27a mathematica, phitosophica et philologica, Lausana, 1744; Opera, 5 vol., Londres, 1779-85. Sobre a biografia: L. T. More, I. N., A Biography, Nova lorque, 1934. L. BLOCH, Lu philosaphie de N., Paris, 1890; J. SNOW, Matter and Gravity in Ns Philosophy, LGndres, 1927; P. BURETT, The Metaphysics of &ir I. N., Londres, 1930; S. 1. VAVILOV; I. N., Moskva-Leningrad, 1943, trad. ital., Turim, 1954; G. PRETI, N., Milão, 1950. De BoYLE: Works, esd- brit. Birch, 5 vol., Londres, 1744; 2., e@d., 6 vol., Londres, 1772; trad. ital., do Quiinico ceptico, de M. Borella, Turim, 1962. Sobre Boy!e: L. T. More, The Life and Works of the Han. R. B., Nova Iorque, 1944. Sobre as relações com Locke: C. A. VIANO, John Locke. Dal razionalismo all i7!uTnii?,ismo, p. 42628; 438-45. Sobre a filos. inglesa de Setecentos é fundamental a obra de LnSLIE STEPUEN, English in the Eighteenth, 3.1 ed., 2 vol., Londres, 1902. Clarke: WORS, 4 vol. in-foIio, Londres, 1896; 2,1 ed1910. § 479. De Sliaftesbury, a única ed. moderna da,9 Characteristics é a J. M. ROBERTSON, Londres, 1900. Sobre os escritos de estética: B. RAND, Second Characters, or the Language oi Forms, Cainbrid.-e, 1914.217 Saggío 6u11a virtu sul merito, trad. ital., Garin, Turim.,
1945; Saggi morali, trad. ital., T. Casini, Bar4 1962. Sobre Shaftesbury, além. da cit. obra de Leslie Steph,en: GARIN, LIMuminismo inglese. Imoralisti, 3ffilão, 1941; L. BANDINI, S., Bar!, 1930; R. L. Brett, The Third Earl of Shaftesbury. A Study in Eighteenh-Century Literary Theory, Londres, 1951. § 481. Smith: Collected Works, 5 vol. Edinburgo, 1811-12-. LiMENTANI, La morale della simpatia di A. Smith nella storia del pe"ero inglese Génova, 1914; C. R. FAY, A. S. and the Scotland of His Day, Cambridge, 1956. § 482. Reid: TIorks, ed. D. Stewart, Edinburg, 1804; ed. Hamilton, E-dinburg, 1846-63; trad. franc. Jouffroy, Paris, 1828-35.-M. F. SIACCA, La fil. di T. R., Nãpoles, 1935. Sobre a escola escocesa: A. SETH PRINGLE-PATINSON, Scottish Philosophy, Londres, 1885, 2.- ed-, 1890; H. LAURIE, Scottish Phil., Its National Dev~ment, Londres, 1902; F. H-"RiSON, The Phil. of Common Sense, Londres, 1907. 218 xii O ILUMINISMO FRANCÊS § 483. ILUMINISMO FRANCÊS: TRADIÇÃO E HISTÓRIA: BAYLE Todos os temas especulativos do iluminismo francês foram tomados ao iluminismo inglês. Todos, excepto um: o da História. A elaboração do problema da História através da contraposição entre História e tradição é o contributo mais notável e original do iluminismo francês no âmbito do pensamento filosófico do século XVIII. Sob este aspecto, a primeira grande figura do iluminismo francês é Pedro BayLe. Pedro Bayle (1647-1706) nasceu no seio de uma família protestante e ao protestantismo voltou após uma breve incursão juvenil no catolicismo. Professor, primeiro na Academia protestante de Sedan, depois na de Roterdão, desenvolveu uma intensa 219 actividade de publicista dando a lume cartas e opúsculos sobre variados temas, defendendo sobretudo a tolerância religiosa e a liberdade de pensamento. A tolerância religiosa encontra o seu fundamento, segundo Bayle, na obrigação de cada um de seguir unicamente o juízo da sua própria consciência, obrigação que não pode ser contrariada ou Impedida com a violência, mesmo quando se trata de uma consciência "errante". Um dos escritos mais significativos de Bayle sobre este tema (o Comineniaire philosophique sur ces paroles de J. C.: Contrains-les d'entrer, 1686), abre com a afirmação "Tudo o que contém a obrigação de cometer delitos é falso": afirmação que leva a ver na intolerância religiosa um delito contra a própria consciência religiosa. Além disso, segundo Bayle, uma multiplicidade de fés religiosas coexistentes numa mesma comunidade seria um contributo fundamental para o bem-estar e a vida moral dessa comunidade.
Em 1682, Bayle publicava os Pensamentos diversos sobre o cometa, que constituem a sua primeira tomada de posição contra o valor da tradição como critério ou garantia de verdade. O pretexto do escrito é a crítica da crença popular de que os cometas seriam presságios de desventuras. O motivo fundamental aduzido para esta crítica é que a aceitação de uma crença por parte da maioria dos homens ou a sua transmissão de geração para geração não constitui o mínimo sinal da sua validade. "É uma pura e simples ilusão, diz Bayle pretender que uma convicção transmitida de século em século e de geração em geração não possa ser 220 inteiramente falsa "(Pensées diverses sur la comète, § 100). Mas o escrito de Bayle contém também outras teses que Bayle partilhava com a corrente libertina (§ 418): a negação dos milagres, a negacão da identidade entre ateísmo e imoralidade, a possibilidade de uma sociedade de ateus, a origem puramente convencional de muitos costumes ou práticas sociais. A crítica de Bayle ao sistema das crenças e das instituições tradicionais torna-se ainda mais radical no Dicionário histórico e crítico (1697), que é a sua obra fundamental. O próprio projecto desta revela a sua característica princi@pal: foi concebida como uma " recolha dos erros cometidos tanto por aqueles que fizeram os dicionários como por outros escritores, e que reproduzisse sob cada nome de homem ou de cidade os erros concernentes a esse homem e a essa cidade" (Lett. a Naudé, 22 de Maio de 1692). Mas o modo como o dicionário foi realizado revela opapel crítico e negativo que Bayle atribuía à razão. A razão é incapaz de dirimir as disputas: dela afirma Bayle aquilo que os teólogos diziam da economia mosaica, isto é, que ela se destinava apenas a dar a conhecer ao homem as suas trovas e a sua impotência. Todavia, esta conclusão negativa não é o único ensinamento do dicionário. Há uma conclusão positiva que Bayle exprime dizendo: "Não há nada mais insensato do que raciocinar contra os factos" (Dict., art. Manichéens, D. ). E ao modo de averiguar os factos, isto é, à metodologia histórica, Bayle dá um contributo importante. Remontar às fontes de cada 221 testemunho, joeirá-lo, criticamente, com vista ao intento explícito ou subentendido do seu autor, e rejeitar e pôr de parte toda a afirmação que pareça infundada ou suspeita, é uma atitude que Bayle assumiu constantemente no curso da sua. obra. A justo título, pois, se disse ser ele o verdadeiro fundador da crítica histórica. Um facto é para ele um problema para cuja solução se devem utilizar todos os possíveis meios de verificação e de crítica de que dispõe o historiador., Ele compara aos vendedores os historiadores que suprimem os factos (1b., art. Abdas), condena os panfletários que "cortam as pernas aos factos históricos" (Discs. sur les libelles diffamatoires, in Dict., V, p. 661-62), e, numa página do Dicionário (art. Usson, rem. F), resume assim os deveres do historiador: "Todos os que conhecem os deveres do historiador estão de acordo em que um historiador que queira cumprir fielmente as suas funções deve despojar-se do espírito de lisonja e do espírito de maledicência e pôr-se o mais possível no estado de um estóico que nenhuma paixão agita. Insensível a todo o resto,
deve estar atento só aos interesses da verdade e deve sacrificar a esta o ressentimento provocado por qualquer injúria, a recordação de quaisquer benefícios e o próprio amor da pátria. Deve esquecer que pertence a um determinado país, que foi educado numa certa comunidade, que deve a sua fortuna a isto ou aquilo, e que estes e aqueloutros são os seus pais ou os seus amigos. Um historiador, enquanto tal, é, como Melquisedeque, um ser sem pai, sem mãe, sem genealogia. Se se lhe perguntar: donde és? deverá 222 responder: não sou nem francês, nem alemão, nem inglês, nem espanhol, etc.; sou habitante do mundo. Não estou nem ao serviço do imperador nem ao serviço do rei de França, mas só ao serviço da verdade. É a minha única rainha, e só a ela prestei o juramento de obediência... Tudo o que o historiador dá ao amor da pátria tira-o aos atributos da História, e torna-se um mau historiador na medida em que se mostre um bom súbdito". Esta atitude crítica para com a tradição investe também contra todo o arsenal da tradição filosófica, e põe a nu, sem complacência, todas as contradições que se anicham nas diversas e contrastantes soluções dos problemas tradicionais. Sobretudo o3 problemas do mal, da providência, da liberdade e da graça, são por ele continuamente debatidos nos artigos do Dicionário, e a sua conclusão é sempre a de que eles são radicalmente insolúveis. Perante eles "eis, sem dúvida, a justa opção e a verdadeira via para tirar as dúvidas: Deus o disse, Deus o fez, Deus o permitiu; portanto, é verdadeiro e justo, está sabiamente feito e é sabiamente permitido" (Dict., art. Rufin, rem. 6). É mais honesto reconhecer a incapacidade da razão e aceitar humildemente a palavra de Deus do que enganar-se a si mesmo com provas fictícias e demonstrações inconcludentes. Bayle considera desonesto o filósofo, ou o teólogo, que feche os olhos perante as contradições da sua doutrina, pelo menos tanto quanto o é o historiador que ignora ou altera os factos. O seu Dicionário é o cemitério de todas as doutrinas tradicionais, implacavelmente, criticadas; mas é ao 223 mesmo tempo o berço do método histórico e a afirmação vigorosa do valor da história perante a tradição. Bayle não se propôs todavia abordar o problema da ordem histórica. Tal problema não tinha sentido para ele, porque na história não via mais do que "uma série de delitos e de desventuras do género humano" (1b., art. Man@ichéens, rem. D.). Mas tal problema tornase o tema especulativo dos filósofos franceses que, de algum modo, continuam a sua obra, iniciando e levando avante a investigação sobre o problema da ordem histórica ou sobre a ordem problemática da história. São eles Montesquieu, Voltaire, Condorcet, Turgot. § 484. ILUMINISMO FRANCÊS: MONTESQUIEU
Charles de Sécondat, barão de Montesquieu, nado em Brède, próximo de Bordéus, a 18 de Janeiro de 1689, e falecido em Paris a 20 de Fevereiro de 1757, é autor das Cartas Persas (1721), das Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos Romanos (1734) e do Espírito das leis (1748), sua obra fundamental. Nas Cartas Persas, sob a máscara de um jovem persa, Usb&.c, Montesquieu faz a sátira da civilização ocidental da época, mostrando a sua incongruência e superficialidade, e combatendo sobretudo o absolutismo religioso político. Na obra sobre a grandeza e a decadência dos Romanos, Montesquieu afirma ser a causa da grandeza dos Romanos o amor à liber224 MONTESQUIEU dade, ao trabalho e à pátria, em que foram criados desde a infância; e como causas da sua decadência aponta o excessivo engrandecimento do estado, as guerras em territórios distantes, a extensão do direito de cidadania, a corrupção devida à introdução do luxo asiático, a perda da liberdade sob o império. Mas a obra em que ele aborda o problema da História é o Espírito das leis. Esta obra parte do pressuposto de que, sob a diversidade caprichosa dos eventos, a História possui uma ordem que se manifesta em leis constantes. "Eu estabeleci os princípios, diz Montesquieu no Prefácio, e vi que os casos particulares se amoldavam a eles por si próprios, que as histórias de todas as nações derivam deles como consequências e cada lei particular se liga a uma outra lei ou depende de uma outra mais geral". Montesquieu. define a lei como "a relação necessária que deriva da natureza das coisas", e considera que cada ser tem a sua lei, e, por conseguinte, também o homem. Mas as leis a que o homem obedece na história nada têm de obrigatório. "0 homem, com(, ser físico, é, tal como os outros corpos, governado por leis imutáveis, como ser inteligente viola incessantemente as leis que Deus estabeleceu e muda aquelas que ele próprio estabelece. Precisa de ser dirigido, pois, é um ser limitado; está sujeito à ignorância e ao erro, como todas as inteligências finitas; os fracos conhecimentos que possui, pode ainda perdê-los; como criatura sensível, está sujeito a mil paixões. Um tal ser pode a cada instante esquecer o seu criador; Deus 225 chama-o a si com as leis da religião. Um tal ser pode a cada instante esquecer-se de si próprio; os ,filósofos advertem-no com as leis da moral. Feito para viver em sociedade, pode esquecer os outros; os legisladores reconduzem-no aos seus deveres mediante as leis políticas e civis" (1, 1). Deste ponto de vista, é evidente que a ordem na história já não é um facto, nem um simples ideal superior e estranho aos factos históricos: é a lei de tais factos, a sua normatividade, o dever ser a que eles podem, mais ou menos, aproximar-se ou conformar-se. Quando Montesquíeu fixou os tipos fundamentais de governo, a república, a monarquia e o despotismo, e reconheceu como princípio da república a virtude, entendida como virtude política, isto é, como amor da pátria e da igualdade e como princípio do despotismo o temor, advertiu: "Tais são os princípios dos três governos: isto não significa que numa certa república se seja virtuoso,
mas que se deve sê-lo. Isto não prova, no entanto, que numa certa monarquia se tenham em conta a honra e que num estado despótico particular domine o temor; mas apenas que cumpriria que assim fosse, sem o que o governo será imperfeito" (111, 11). Este dever ser, impondo-se incessantemente como uma exigência intrínseca de todas as formas históricas do estado, recondu-las ao princípio que as rege e garante-lhes a conservação; mas pode ser negligenciado ou esquecido. A pesquisa de Montesquieu visa mostrar como cada tipo de governo se realiza e se articula num conjunto de leis específicas, referentes aos mais diversos aspectos da actividade humana e constituintes 226 da estrutura do próprio governo. Estas leis concernem à educação, administração da justiça, luxo, matrimónio, e, em suma, a todos os costumes civis. Por outro lado, todo o tipo de governo se corrompe quando infringe o princípio que o rege (VIII, 1): e uma vez corrompido, as melhores leis tornam-se más e voltam-se contra o próprio estado (VI11, 11). Assim os eventos da história, o nascimento e decadência das nações não são frutos do acaso ou do capricho, mas podem ser entendidos mediante as suas causas, que são as leis ou os princípios da própria História; e, por outro lado, são destituídos de qualquer necessidade fatal e conservam aquele carácter problemático em que se reflecte a liberdade do comportamento humano. Montesquieu foi um dos primeiros a pôr em relevo a influência das circunstâncias físicas e, especialmente, do clima sobre o temperamento, sobre os costumes, sobre as leis e sobre a vida política dos povos; mas está longe de crer que perante tais influências o homem seja puramente passivo. Tudo depende da sua reacção à influência do clima. "Quanto mais as causas físicas conduzem o homem ao repouso, tanto mais as causas morais o devem afastar dele" (XIV, 5). Quando o clima leva os homens a fugir ao trabalho da terra, as religiões e as leis devem compeli-los a trabalham (XVI, 6). Assim, na luta com os próprios agentes físicos vem a configurar-se a liberdade finita dos homens na História. Tal liberdade inspira também o objectivo prático que Montesquieu tem em vista no Espírito das 227 leis. Esta obra, com efeito, propõe-se expor e justificar historicamente as condições que garantem a liberdade política do cidadão. Tal liberdade não é inerente por natureza a nenhum tipo de governo, nem mesmo à democracia; ela é própria apenas dos governos moderados, isto é, dos governos em que todo o poder encontre limites que o impeçam de prevaricar. "É necessário para a própria ordem das coisas que o poder refreie o podem (XI, 4). A esta exigência corresponde a divisão dos três poderes, legislativo, executivo e judiciário, realizada na constituição inglesa. A reunião de dois destes poderes nas mesmas mãos anula a liberdade do cidadão, porque torna possível o abuso dos poderes. Mas a liberdade do cidadão deve ser também garantida pela natureza particular das leis que devem dar-lhe a segurança no exercício dos seus direitos (XII, 1). Contribuem para isso, sobretudo, as leis que regulam a prática do poder judiciário.
§ 485. VOLTAIRE: VIDA E ESCRITOS François Marie Arouct, que adoptou o nome de Voltaire, nasceu em Paris a 21 de Novembro de 1694. Foi educado num colégio de jesuítas e ingressou bastante jovem na vida da aristocracia cortesã francesa. Mas uma disputa com um nobre, o cavaleiro de Rohan, fê-lo ir parar à Bastilha. Nos anos de 1727-29 viveu em Londres e assimilou a cultura inglesa da época. Nas Cartas sobre os ingleses, 228 ou Cartas filosóficas (1734), regista os vários aspectos daquela cultura insistindo especialmente sobre os temas mais característicos da sua actividade filosófica, histórica, literária e política. Defende assim a religiosidade puramente interior e alheia a ritos e cerimónias dos Quacres (Lett., I-IV); põe em relevo a liberdade política e económica do povo inglês (1b., lX, X); analisa a literatura inglesa e traduz poeticamente alguns trechos da mesma (1b., XVI11-XX111); e, na parte central, exalta a filosofia inglesa nas pessoas de Bacon, de Locke e de Newton (Ib., XII-XVII). Comparando Descartes a Newton, exalta os méritos de matemático de Descartes, mas reconhece a superioridade da doutrina de Newton (Ib., XIV). Descartes "fez uma filosofia como se faz uni bom romance: tudo parece verosímil e nada é verdadeiro". No mesmo ano de 1734, Voltaire publicou o seu Tratado de metafísica, no qual versa os temas filosóficos que já abordara nas Cartas sobre os ingleses. Em 1734 foi viver para Cirey, em casa da sua amiga Madame de Châtelet, e foram esses os anos mais fecundos da sua actividade de escritor. Voltaire publicou então numerosíssimas obras literárias, filosóficas e físicas. Em 1738 apareceram os Elementos da filosofia de Newton, e em 1740 a Metafísica de Newton ou paralelo entre as opiniões de Newton e Leibniz. Em 1750, aceitou a hospitalidade de Federico da Prússia em Sans-Soucie e aí permaneceu cerca de três anos. Após o rompimento das suas relações de amizade com Federico e várias peregrinações, estabeleceu-se na Suíça, no castelo de Ferney (1760), onde pros229 seguiu a sua infatigável actividade graças à qual se tornou o chefe do iluminismo europeu, o defensor da tolerância religiosa e dos direitos do homem. Só aos 84 anos voltou a Paris para dirigir a representação da sua última tragédia Irene, tendo sido acolhido com honras triunfais. Faleceu a 30 de Maio de 1778. Voltaire escreveu poemas, tragédias, obras de história, romances, além de obras de filosofia e de física. Entre estas últimas, além das citadas, são importantes o Dicionário filosófico portátil (1764), que nas edições subsequentes se tornou uma espécie de enciclopédia em vários volumes, e O filósofo ignoranie (1766), o seu último escrito filosófico. Mas também é bastante notável pelo seu conceito de história o Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações (1740), a que antepôs mais tarde uma Filosofia da história (1765) em que procura caracterizai os costumes e as crenças dos principais povos do mundo. Outros escritos menores de um certo relevo são citados adiante. Shaftesbury dissera que não há melhor remédio contra a superstição e a intolerância do que o bom humor. Voltaire pôs em prática melhor do que ninguém este princípio com todos os inexauríveis recursos de um espírito genial. O humorismo, a ironia, a sátira, o sarcasmo, a irrisão aberta ou velada, são por ele empregados de vez em quando contra a metafísica escolástica o as crenças religiosas tradicionais. Na novela Candide ou de
l'optimisme, Voltaire narra as incríveis peripécias e desditas que põem à prova o optimismo de Cândido, o qual 230 encontra sempre maneira de concluir, com o seu mestre, o doutor Pangloss, que "tudo corre o melhor possível no melhor dos mundos". Num outro romance, o Mícrómegas, do qual é protagonista um habitante da estrela Sírius, zomba da crença da velha metafísica segundo a qual o homem seria o centro e o fim do universo e, nas pisadas do Swift das Viagens de Gulliver, aborda o tema da relatividade dos poderes sensíveis, relatividade que pode ser superada somente pelo cálculo matemático. Num Poema sobre o desastre de Lisboa (1755), escrito a propósito do terremoto de Lisboa do mesmo ano, combate a máxima de que "tudo está bem" considerando-a como um insulto às dores da vida, e contrapõe a esperança de um melhor futuro construído pelo homem. "Muda é a natureza que em vão interrogamos. ,k preciso um Deus que fale ao género humano. Só a ele cabe sua obra explicar, Cons~ o débiJ, o sábio iluminar... Nossa esperança é que algum dia tudo esteja bem: Mera ilusão é que hoje tudo esteja bem. § 486. VOLTAIRE: O MUNDO, O HOMEM E DEUS Diz-se habitualmente que Voltaire, no decurso de toda a sua vida, passou do optimismo ao pessimismo e que, sob este aspecto, os seus últimos escritos marcam uma orientação diferente da dos primeiros. Na realidade, não é possível distinguir 231 Oscilações dignas de relevo na atitude de Voltaire sobre este ponto. Ele sempre esteve convencido de que o mal do mundo é uma realidade tão inegável como o bem; que é uma realidade impossível de explicar à luz da razão humana e que Ba@4e tinha razão ao afirmar a insolubilidade do problema e criticar implacavelmente todas as possíveis soluções do mesmo. Mas, por outro lado, esteve também sempre convencido de que o homem deve reconhecer a sua condição no mundo tal qual ela é, não já para se lamentar e para negar o próprio mundo, mas para alcançar uma serena aceitação da realidade. Nas Anotações sobre os Pensamentos de Pascal (1728), que é um escrito juvenil, não pretende refutar o diagnóstico de Pascal sobre a condição humana, mas apenas extrair dela um ensinamento muito diferente. Pascal, com efeito, inferia desta situação a negação do mundo e a exigência de se refugiar no transcendente. Voltaire reconhece que tal condição é a única condição possível para o homem e que, portanto, o homem deve aceitá-la e dela tirar todo o partido possível. "Se o homem fosse perfeito, diz ele, seria Deus; e as pretensas contrariedades a que vós chamais contradições são os ingredientes necessários de que se compõe o homem, o qual é, como o resto da natureza, aquilo que deve sem. É inútil desesperar por não ter quatro pés e duas asas. E as paixões que Pascal condenava, em primeiro lugar o amor próprio, não são no homem simples aberrações porque o movem a agir, visto que o homem é feito para a acção. Quanto à tendência do homem para se.
divertir, Voltaire 232 VOLTAIRE observa: "A nossa condição é Precisamente Pensar rn@-,cl'asçãOobinecetcGesssáerixaterno, com É falso que-s quais temos unia se Possa desviar um homem de Pensar na condição humana, já que seja a que for a que ele aplique o seu espírito, o aplica * qualquer coisa que se prende com a condição humana. Pensar em si, abstraindo das coisas natu. rais, é não pensar em nada: digo absolutamente em nada, note-se bem" (38). Pascal e Voltaire reconhecem ambos que O homem, pela sua condição, está ligado ao mundo; mas Pascal quer que ele se liberte e afaste do mundo, ao passo que Voltaire Pensa que ele o deve reconhecer e amar. A diferença está toda nisto; o pessimismo ou o Optimismo Pouco têm a ver com a questão. Voltaire toma os traços fundamentais da sua concepção do mundo dos empiristas e dos deistas ingleses- Decerto que Deus existe como autor do mundo; e, conquanto se encontrem nesta opinião muitas dificuldades, as dificuldades com, que depara a opinião contrária são ainda maiores. Voltaire repete a este propósito a argumentação de Clarke e dos deístas (que reproduz o velho argumento cosMológico): "Existe alguma coisa, Portanto existe alguma coisa de eterno já que nada se produz a partir do nada. Toda a obra que nos mostre meios e um fim revela um artifício: portanto, este universo composto de meios, cada um dos quais tem o seu fim, revela uni artífice potentíssimo e inteligentíssimo" (Dict. phil., art. "Dieu"; Tra@té de Mét., 2). Voltaire repudia, portanto, a opinião de que a matéria se tenha criado e organizado por si 233 mesma. Mas, por outro lado, recusa-se a determinar os atributos de Deus, considerando ambíguo também o conceito de perfeição, que não pode decerto ser o mesmo para o homem e para Deus. E não quer admitir qualquer intervenção de Deus no homem e no mundo humano. Deus é apenas o autor da ordem do mundo físico. O bem e o mal não são ordens divinas, mas atributos do que é útil ou nocivo à sociedade. A aceitação do critério utilitarista da verdade moral permite a Voltaire afirmar terminantemente que ela não interessa de modo algum à divindade. "Deus pôs os homens e os animais sobre a terra, e eles devem pensar em conduzir-se o melhor possível". Tanto pior para os carneiros que se deixam devorar pelo lobo. "Mas se um carneiro fosse dizer a um lobo: tu desprezas o bem moral e Deus castigar-te-á, o lobo responder-lhe ia: eu procedo de acordo com o meu bem físico e, pelo visto, Deus pouco se importa que eu te coma ou não" (7aiité de Mét., 9). É do interesse dos homens conduzirem-se de modo a tornar possível a vida em sociedade; mas isto requer o sacrifício das paixões pr6prias, que são indispensáveis, como o sangue que lhes corre nas veias; e não se pode tirar o sangue a um homem, porque pode ser acometido de uma apoplexia (1b., 8). No que toca ao conhecimento, Voltaire considera, tal como Locke, que o seu ponto de partida são as sensações e que de se desenvolve mantendo-as e dando-lhes forma. Voltaire repete os argumentos que Locke empregou sobre a existência dos objectos exteriores; e
acrescenta um, por sua conta: o homem 234 é essencialmente sociável e não poderia ser sociável se não houvesse uma sociedade e, por consequência, outros homens fora de nós (Ib., 4). As actividades espirituais que se encontram no homem não permitem afirmar a existência de uma substância imaterial chamada alma. Ninguém pode dizer, de facto, o que é a alma; e a disparidade das opiniões a este propósito é muito significativa. Sabemos que é algo de comum ao animal chamado homem e àquilo que se chama animal. Este algo poderá ser a própria matéria? Diz-se que é impossível que a matéria pense. Mas Voltaire não admite tal impossibilidade. "Se o pensamento fosse um composto da matéria, eu reconheceria que o pensamento deveria ser extenso e divisível. Mas, se o pensamento é um atributo de Deus dado à matéria, não vejo que seja necessário que tal atributo seja extenso e divisível. Vejo, de facto, que Deus comunicou à matéria outras propriedades que não têm nem extensão nem divisibilidade: o movimento, a gravitação, por exemplo, que actua sem corpo intermediário na razão directa da massa o não da superfície, e na inversa do quadrado das distâncias, é uma qualidade real demonstrada, cuja causa é tão oculta como a do pensamento" (lb., 5). Além disso, é absurdo sustentar que o homem pense sempre; sendo assim, é absurdo admitir no homem uma substância cuja essência seja pensar. Será mais verosímil admitir que Deus organizou os corpos tanto para pensar como para comer e para digerir. Posta em dúvida a realidade de uma substância pensante, a imortalidade da alma converte-se em pura maté235 ria de fé. A sensibilidade e o intelecto do homem nada têm de imortal; como se poderia, pois, chegar a demonstrar a eternidade? Não existem certamente demonstrações válidas contra a espiritualidade e a imortalidade da alma; tais demonstrações são destituídas de toda a verosimilhança e é injusto e despropositado pretender efectuar uma demonstração onde somente são possíveis conjecturas. Além disso, a mortalidade da alma não é contrária ao bem da sociedade, como o provaram os antigos hebreus que consideravam a alma material e mortal (1b., 6). O homem é livre, mas dentro de limites bastante restritos. "A nossa liberdade é débil e limitada, como todas as nossas faculdades. Nós fortificamo-la habituando-nos a reflectir e este exercício torna-a um pouco mais vigorosa. Mas, apesar de todos os esforços que façamos, nunca poderemos conseguir que a nossa razão impere como senhora de todos os nossos desejos; existirão sempre na nossa alma, como no nosso corpo, impulsos involuntários. Se fôssemos sempre livres, seríamos o que o próprio Deus é" (Ib. 5). Na sua última obra filosófica, Le philosophe ignorant (1766), Voltaire insiste na limitação da liberdade humana, que não consiste nunca na ausência de qualquer motivo ou determinação. "Seria estranho que toda a natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas, e que houvesse um pequeno animal com a altura de cinco pés que, a despeito destas leis, pudesse agir sempre como lhe aprouvesse, segundo o seu capricho. Agiria ao acaso, e sabe-se que o acaso não é nada; nós inventámos 236 esta palavra para exprimir o efeito conhecido de toda a causa desconhecida" (Phil. ign., 13). § 487. VOLTAIRE: A HISTÓRIA E O PROGRESSO
No decurso da sua actividade historiográfica, Voltaire dilucidou sempre os conceitos em que ela se inspirava. É como filósofo que ele pretende tratar a História, isto é, colhendo, para lá do amontoado dos factos, uma ordem progressiva que revele o significado permanente deles. A primeira exigência é a de depurar os factos de todas as superstruturas fantásticas de que o fanatismo, o espírito romanesco e a credulidade os revestiram. "Em quase todas as nações, a História é desfigurada pela fábula até ao momento em que a filosofia vem iluminar os homens; e quando, por fim, a filosofia surge no meio destas trovas, encontra os espíritos tão obnubilados por séculos de erros que mal logra esclarecê-4os; deparam-se-lhe cerimónias, factos, monumentos, estabelecidos para sustentar mentiras" (Essais sur les moeurs, cap. 197). A filosofia é o espírito crítico que se opõe à tradição e separa o verdadeiro do falso. Voltaire manifesta aqui com idêntica força a exigência histórica e antitradicionalista que Bayle representara. Mas a esta primeira exigência junta-se uma segunda, a de escolher, entre os próprios factos, os mais importantes e significativos para delinear a "história do espírito humano". Deste modo, cumpre escolher, na massa do material 237 bruto e informe, o que é necessário para construir um edifício; é mister eliminar os pormenores das guerras, tão nocivos como falsos, as pequenas negociações que são apenas velhacarias inúteis, as aventuras particulares que abafam os grandes acontecimentos, o é preciso conservar apenas os factos que, pintam os costumes e fazem nascer desse caos um quadro geral e bem articulado (Ib., fragmento). Voltaire seguiu este ideal, sobretudo no Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações. em que dá o máximo relevo precisamente ao nascimento e morte das instituições e das crenças fundamentais dos povos. Mas em toda a sua obra historiográfica o que importa a Voltaire é pôr em luz o renascimento e o progresso do espírito humano, isto é, as tentativas da razão humana para se libertar dos preconceitos e erigir-se em guia da vida social do homem. O progresso da história consiste precisamente e apenas no êxito progressivo de tais tentativas, já que a substância do espírito humano permanece inalterada e imutável. "Resulta d"e quadro, diz Voltaire (lb., cap. 197), que tudo o que concerne intimamente à natureza humana se assemelha de um extremo ao outro do universo; que tudo o que pode depender dos costumes é diferente e se assemelha apenas por acaso. O império do costume é muito mais vasto do que o da natureza; estende-se aos hábitos e a todos os usos, e expande-se na sua variedade por todo o universo. A natureza manifesta assim a sua unidade: estabelece por toda a parte um pequeno número de princípios invariáveis, de modo que o fundo é em toda a parte 238 o mesmo, mas a cultura produz frutos diversos". Na verdade, o que é susceptível de progresso não é o espírito humano nem a razão, que é a essência dele, mas sim o domínio que a razão exerce sobre as paixões em que se radicam os preconceitos e os erros. A História apresenta-se assim a Voltaire como história do iluminismo, do esclarecimento progressivo que o homem faz de si mesmo, da progressiva descoberta do
princípio racional que o rege; e implica uma alternância incessante de períodos sombrios e de renascimentos. o conceito voltairiano da História liga--se estreitamente ao iluminismo, porque, na realidade, não é mais do que a historicização do iluminismo, o seu reconhecimento no passado. Mas com isto não se pretendeu aniquilar a problematicidade da História, e Voltaire sente-se ele mesmo um instrumento daquela força libertadora da razão, cuja história pretende descrever. § 488- ILUMINISMO FRANCÊS: A IDEIA DE PROGRESSO: TURGOT,CONDORCET A obra de Montesquieu esclarecera dois conceitos importantes: a presença na História de uma ordem, regida por leis; 2.' o carácter não determinante de tais leis, que condicionam os eventos históricos mas não os determinam numa única direcção. Voltaire, Turgot e Condorcet formularam e esclareceram outros dois conceitos que, juntamente com os precedentes, constituem o quadro que os 239 iluminIstas. franceses formaram da História ou seja: 3.' a ordem da História é progressiva, embora não necessariamente; 4.' o progresso da História consiste na crescente prevalência da razão como guia das actividades humanas. Robert Turgot (1727-81) foi economista e por breve tempo ministro reformador de Luís XVI. No Plano de dois discursos sobre a História universal (1751), Turgot define a história universal como "o estudo dos progressos sucessivos do género humano e o exame particular das causas que contribuíram para eles" (Plan de deux discours, ed. Schelle, 1, p. 2766). Deverá, portanto, descobrir a acção recíproca das causas gerais e necessárias, das causas particulares e das acções livres dos grandes homens, bem como a relação de todos estes elementos com a própria constituição do homem. A história universal é, pois, o estudo dos progressos sucessivos do género humano, interrompidos por frequentes períodos de decadência, o esmiuçar das causas ou condições naturais e humanas que os produziram. É uma história do "espírito humano", ou seja, essencialmente da razão que se elevou por graus através da análise e da combinação das primeiras ideias sensíveis. Turgot considera, por isso, que o progresso consiste sobretudo no desenvolvimento das artes mecânicas, com as quais o homem controla a natureza, e na libertação do despotismo: isto é, o progresso consiste na liberdade do homem, em relação à natureza e aos outros homens. Este conceito de liberdade inspira também Turgot na sua obra de economista. Nas suas Reflexões sobre 240 a formação e a distribuição das riquezas (1766), que é a melhor formulação das ideias dos fisiocratas, Turgot interpreta o mundo económico nos mesmos termos em que interpretara o mundo histórico: é uma ordem em que agem por igual as causas naturais e as acções livres dos homens e que só pode alcançar o seu equilíbrio e realizar os seus progressos se for entregue ao livre jogo das suas
causas e das suas forças imanentes, e não coagido e violado por superstruturas artificiosas. A liberdade económica, ou seja, o fim das restrições feudais na economia, era o ensinamento que procedia desta perspectiva na ordem económica. Jean Caritat, marquês de Condorcet (1743-94), é o autor do Ensaio de um quadro histórico dos progressos do espírito humano (1794), no qual as ideias de Voltaire e Turgot sobre a história são sistematicamente reformuladas. Condorcet, que escreve a sua obra depois da vitória da Revolução Francesa, é mais optimista do que os seus predecessores sobre as possibilidades de aperfeiçoamento indefinido do espírito humano. Segundo Turgot, "o género humano permanece sempre o mesmo como a água do mar nas tempestades" (Plan, cit., p. 277): o que muda são as condições da sua existência no mundo. Segundo Condorcet, o espírito humano é capaz de aperfeiçoamento indefinido. "Ao aperfeiçoamento das faculdades humanas, diz ele, não é fixado nenhum limite, e a perfectibilidade - doravante desvinculada de todo o poder que pretenda sustá-la não tem outro termo senão a duração do planeta sobre o qual a natureza nos colocou" 241 (Esquisse d'un tableau historique, ed. 1289, p. 7-8). Sem dúvida que este progresso poderá ser mais ou menos rápido mas retrocederá, a não ser que mudem as condições gerais do globo terrestre por uma transformação radical. Condorcet está certo de que aquilo que ele denomina "a marcha do espírito humano" conduzirá inevitavelmente o homem à máxima felicidade possível, e, depois de ter delineado as etapas principais dessa marcha a partir da época pré-histórica da humanidade, detém-se a determinar-lhe os progressos futuros. "0 único fundamento da crença nas ciências naturais, diz Condorcet (Ib., p. 247), é a ideia de que as leis gerais, conhecidas ou ignoradas, que regulam os fenómenos do universo, são necessárias e constantes. Porque razão tal princípio seria menos verdadeiro para o desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais do homem do que para as demais operações da natureza?". As esperanças quanto à condição futura da espécie humana reduzem-se a três pontos importantes: a destruição da desigualdade entre as nações, os progressos da igualdade no mesmo povo e, enfim, o aperfeiçoamento real do homem. Estes progressos realizam-se com o triunfo da razão, que será reconhecida como única senhora dos homens. Assim, Condorcet vê as condições destes progressos no desenvolvimento indefinido do conhecimento científico, do qual extrai o ideal de progresso. A extensão e multiplicação dos factos conhecidos tomará do mesmo passo possível classificá-los, reduzilos a factos mais gerais, submetê-los a relações mais extensas e apresentá4os em expressões mais simples. 242 "0 vigor, a dimensão real do espírito humano continuará sendo a mesma, mas os instrumentos que o mesmo poderá empregar multiplicar-se-ão e aperfeiçoar-se-ão, a língua que fixa e determina ideias adquirirá maior precisão e generalidade" (lb., p. 265). Condorcet não hesita em retomar a esperança de Descartes de um prolongamento indefinido da vida orgânica do homem (lb., p. 285 segs). § 489. ILUMINISMO FRANCÊS: A ENCICLOPÉDIA O instrumento máximo de difusão das doutrinas iluminIstas foi a Enciclopédia ou Dicionário racional das ciências, das artes e dos misteres. Nasceu da ideia modesta do livreiro parisiense Le Breton que pretendia traduzir para francês o Dicionário universal das
artes e das ciências do inglês Chambers, publicado em 1227. Diderot mudou o plano inicial tornando-o bastante mais ambicioso, rodeou-se de numerosos colaboradores e permaneceu até ao fim * director da obra. O primeiro volume apareceu * 1 de Julho de 1751. Depois do segundo volume (1752), a obra esteve suspensa por causa das oposições que suscitara nos ambientes religiosos; mas, graças ao apoio de Madame Pompadour, pôde continuar a ser publicada, e em 1753 saiu o terceiro volume. Outros volumes até ao sétimo sucederam-se, regularmente até 1757; nesse ano, a Enciclopédia sofreu uma crise, não só devido às oposições externas mas também devido às discórdias internas dos seus compiladores, entre os quais alguns dos mais 243 importantes, como d'Alembert, se retiraram da empresa. A partir de 1758, Diderot ficou sendo o único a dirigi-la, e em 1772 terminou-a. Importa notar que alguns dos mais notáveis representantes da filosofia iluminista. não figuram na Enciclopédia ou figuram com escassos e insignificantes contributos. Assim, Montesquieu escreveu um único artigo sobre o gosto o qual versa sobre um tema inteiramente diferente dos temas das suas obras fundamentais. Turgot colaborou com dois artigos, um intitulado a Etimologia, o outro a Existência, no qual desenvolveu os pontos de vista de Locke sobre a existência do eu, do mundo exterior e de Debs. O famoso naturalista Buffon só figura nela com um ou outro artigo. Voltaire colaborou apenas nos primeiros volumes. O próprio d'Alembert, como se disse, abandona o empreendimento. Mas o espírito destes homens, assim como o de Locke, de Newton e dos filósofos ingleses da época, domina igualmente a Enciclopédia, pois as doutrinas que eles não expunham pessoalmente inspiravam os artigos da obra através da pena de uma multidão de colaboradores anónimos. Além disso, a Enciclopédia não é propriamente um toque de clarim contra a tradição, como Comummente se julga; ela inclui numerosos artigos que deviam tranquilizar as almas piedosas e constituir um alibi para os seus colaboradores. Nem tão-pouco está isenta, de incongruências e de erros, mesmo relativamente à cultura do tempo. Todavia, a sua eficácia foi imensa e a ela se deve, em 244 grande parte, uma das mais vastas e radicais revoluções da cultura europeia. A Enciclopédia é dominada pela figura de Diderot, em torno do qual se formou, sobretudo a partir de 1753, um grupo de escritores, de que faziam parte Rousseau, Grimm, d'Holba6 e Helvetius. § 490. ILUMINISMO FRANCÊS: DIDEROT Denis DidErot (6 de Outubro de 1713-31 Julho de 1784) foi, como Voltaire, um espírito universal. Filósofo, poeta, romancista, matemático, crítico de arte, consubstancia na sua pessoa a exigência de renovação radical de todos os campos da
cultura e da vida que é característica do iluminismo. Começou por traduzir em francês o escrito de Shaftesbury Sobre o mérito e a virtude (1745). No mesmo ano começou a trabalhar para a Enciclopédia, o que, o ocupou vinte anos. Mas simultaneamente continuou a sua obra filosófica. Em 1754, apareceram os Pensamentos sobre a interpretação da natureza. Outros escritos filosóficos notáveis permaneceram inéditos, como as Conversações entre D'Alembert e Diderot e o O sonho de D'Alembert (compostos em 1769). As doutrinas de Diderot ilustram os temas fundamentais do iluminismo e, em primeiro lugar, a fé na razão e o exercício da dúvida mais radical. A razão é o único guia do homem e cabe-lhe também ajuizar sobre os dados dos sentidos e sobre os factos. "Uma única demonstração exige-me mais 245 de cinquenta factos", afirma Diderot; e "quando o testemunho dos sentidos contradiz, ou não com. pensa, a autoridade da razão, não há nenhum problema de escolha: segundo uma lógica correcta, é necessário ater-se à razão" (Pensées philosophiques, 50 e 52). As dúvidas que a razão aduz, mesmo em matéria de religião, não podem por isso deixar de ser benéficas e o cepticismo mais radical é o único método a que a razão deve ater-se (1b., 31). Contudo, Diderot insiste com igual energia sobre os poderes da razão. "Quando se compara a multidão infinita dos fenómenos da natureza com os limites do nosso intelecto e a debilidade dos nossos órgãos, que podemos esperar da lentidão dos nossos trabalhos, das suas longas e frequentes interrupções e da raridade dos génios criadores, senão fragmentos separados da grande cadeia que liga todas as coisas?" (De 1'interprétation de la nature, 6). É necessário acrescentar que o homem nem sequer utilizou da melhor maneira as modestas possibilidades que possui. As ciências abstractas têm ocupado demasiado tempo e com muito pouco fruto os melhores espíritos. Não se estudou o que mais importava saber nem se tem usado método nem escolha nos estudos; assim, as palavras multiplicaram-se infinitamente e o conhecimento das coisas sofreu um grande atraso. A filosofia deve doravante dedicar-se ao estudo dos factos, que são "a sua verdadeira riqueza" (lb., 20). Perante a exigência de reconhecer e estudar os factos da experiência, a própria matemática é insuficiente. Diderot diz que "a religião dos matemáticos é um mundo intelectual em 9t-i que o que se toma por verdade rigorosa perde absolutamente essa vantagem quando se aplica às coisas da torra" e afirma que, em vez de corrigir o cálculo geométrico com a experiência, é mais rápido ater-se aos resultados desta última (Ib., 2). Profetiza que antes de cem anos não existirão sequer três grandes geómetras na Europa: a moral, a literatura, a história natural e a física experimental tomarão o lugar das matemáticas (1b., 4). No domínio da natureza, Diderot não refuta todavia a possibilidade de formular hipóteses gerais, mas considera tais formulações inevitáveis. "0 acto da generalização é para as hipóteses do metafísico o que as observações e as experiências são para as conjecturas do
físico. São justas as conjecturas? Quanto mais experiências se fazem, tanto mais as conjecturas se verificam. São verdadeiras as hipóteses? Quanto mais se estendem as consequências, mais verdades elas abraçam, mais evidência e força adquirem" (1b., 50). A generalização para a qual Diderot progride é uma espécie de espinosismo, ou melhor, é o espinosismo interpretado por Bayle: o mundo é um grande animal e Deus é a alma deste animal (1b., 50). Diversamente de Espinosa, porém, Diderot considera que Deus, como alma do mundo, não é um intelecto infinito mas uma sensibilidade difusa, que tem graus diversos e que pode também permanecer bastante obscura. No Réve de d'Alembert, compara Deus a uma aranha cuja teia é o mundo e que, através dos fios da teia, percebe mais ou menos, conforme a distância, tudo o que está em contacto com a própria teia. 247 Deste ponto de vista, também os elementos do universo devem ser considerados como sendo animados, isto é, providos de urna corta sensibilidade, por mínima que seja; sensibilidade que os impele a encontrar uma combinação ou coordenação que é a mais apropriada à sua forma e à sua tranquilidade (De l'interprétation: de a nature, 51). Ã base desta doutrina, torna-se bastante lógico admitir que os próprios organismos vivos se desenvolvem gradualmente e se transformam uns nos outros, hipótese de que Diderot admite a possibilidade, anunciando assim o evolucionismo biológico (lb., 58). Mas trata-se ainda e sempre de hipóteses, de que Diderot acentua o carácter problemático e que os materialistas (contra os quais escreve Réfutation d'Helvetius, 17, 7, 3) transformam em doutrinas dogmáticas. Diderot prefere manter nas hipóteses que formula o carácter problemático ou interrogativo. Se, no reino vegetal e animal, um indivíduo nasce, cresce, e morre, porque não sucederia a mesma coisa à espécie inteira? A matéria viva é sempre vivente? A matéria morta é verdadeiramente e sempre morta? E a matéria viva não morre de facto? A matéria morta não poderá começar a viver? Diderot formula estas perguntas, mas sem lhes. dar respostas. São questões que abrem à ciência novas possibilidades e que sobretudo demonstram como é impossível à ciência fechar-se num determinado esquema ou sistema (lb., 58). "Guardai-vos, diz Diderot, no Sonho de d'Alembert, do sofisma do efémero" , isto é, do preconceito de que o mundo deve 248 desnecessariamente ser aquilo que é neste instante. O mundo nasce e perece sem cessar, e está a cada instante no seu princípio e no seu fim. No tocante ao conceito da divindade, o pensamento de Diderot oscilou entre o deísmo e o panteísmo. Na sua obra Pensées philosophiques, Diderot afirma que a existência de Deus é mais bem confirmada pela física experimental do que pelas meditações sublimes de Malebranche e de Descartes. Graças aos trabalhos de Newton e de outros cientistas "o mundo já não é um Deus mas uma máquina que tem as suas rodas, as suas cordas, as suas
roldanas, as suas molas e os seus pesos" @Pensées, 18). Nos escritos seguintes, Deus aparece, conforme se viu, como a alma do mundo, a aranha de uma teia gigantesca. Seja como for, Deus age, segundo Diderot, no âmbito da natureza e só no âmbito dela. No homem, e no mundo dos homens, a natureza age através dos instintos e das paixões. "0 cúmulo da loucura, diz Diderot, é pretender debelar as paixões. Não passa de um belo sonho a tentativa do devoto que se obstina furiosamente em não desejar nada, em não amar nada, em não sentir nada, pois acabaria por se tornar num verdadeiro monstro, se conseguisse o que pretende" (Pensées phil., 5). O equilíbrio moral consiste na justa harmonia entre as paixões: se a esperança fosse contrabalançada pelo temor, o ponto de honra pelo amor da vida, a tendência ao prazer pelo interesse pela saúde, não haveria nem libertinos, nem temerários, nem velhacos (Ib., 4). Por isso, a ética de Diderot é, substancialmente, um 249 retorno à natureza. No Suplemento à viagem de Bougainville, descreve uma ilha de fantasia em que a vida humana se abandona aos instintos primitivos, independentemente de qualquer prescrição moral e religiosa; e demonstra que tais instintos garantem a liberdade e a felicidade dos indivíduos e da sua comunidade. No Tratado sobre o belo (1772), Diderot delineáa a géae,se e o valor da noção do belo. O homem é levado pelas suas próprias necessidades a formular as ideias de ordem e de simetria, de proposição e de unidade; ideias que são, como todas as ideias, puramente experimentais, que nasceriam no espírito do homem mesmo que Deus não existisse, e que precederam de muito a da sua existência. De tais ideias nasce a noção do belo. "Eu chamo belo, diz Diderot, tudo aquilo que fora de mim contém em si algo capaz de despertar no meu entendimento a ideia de relação; é belo, em relação a mim, tudo quanto desperta essa ideia". A distinção entre "o que contém algo capaz de despertar" e "aquilo que desperta" a ideia da relação é a distinção entre as formas que os objectos possuem e a noção que eu tenho delas, já que, acrescenta Diderot, "o meu intelecto nada põe nas coisas nem lhes tira coisa alguma. A indeterminação própria das relações que constituem o belo, a facilidade de intuí-las e o prazer que acompanha a percepção delas, fez supor que o belo fosse antes uma questão de sentimento do que de razão. Mas o juízo sobre o belo é. segundo Diderot, um juizo intelectual, como resulta evidente quando se trata de objectos não familiares. 250 Conforme os objectos relacionados, haverá uma beleza moral, uma beleza literária, uma beleza musical; ou então uma beleza natural, uma beleza artificial. O belo real é, pois, o que consiste nas relações entre os elementos que constituem intrinsecamente um objecto, por exemplo, uma flor; o belo relativo é o que resulta das relações de um objecto com outros objectos. As relações que constituem o belo distinguem-se todavia das que são
objecto da pura actividade intelectual. Estas últimas são fictícias e criadas unicamente pelo próprio intelecto, ao passo que as relações que constituem o belo são as reais, que o intelecto chega a conhecer somente por intermédio dos sentidos. § 491. ILUMINISMO FRANCÊS: D'ALEMBERT A par de Diderot, a outra grande figura da Enciclopédia é Jean le Rond d'Alembert (16 de Novembro de 1717-29 de Outubro de 1783), autor do Discurso preliminar da Enciclopédia e dos artigos matemáticos. Em 1743 publicou o Tratado de Dinâmica; e em 1759 o Ensaio sobre os elementos de filosofia: a pedido de Frederico da Prússia. O Discurso preliminar da Enciclopédia apresenta, como justificação do plano da obra, uma classificação das actividades espirituais e das disciplinas fundamentais. Depois de ter afirmado, de acordo com Locke, que todos os nossos conhecimentos derivam dos sentidos e que a passagem das sensações aos objectos externos não é fruto de um raciocínio, mas de "uma. espécie de instinto, mais seguro do que a 251 própria razão", D'Alembert distingue, tal como Bacon, três modos diversos de actuar sobre os objectos do pensamento: a memória, a razão e a imaginação. Enquanto a memória é a conservação passiva e mecânica dos conhecimentos, a razão consiste no exercício da reflexão em torno dos mesmos, e a imaginação na imitação livre e criadora desses conhecimentos. A estas três faculdades correspondem os três ramos fundamentais da ciência: a história, que se funda na memória, a filosofia que é o fruto da razão, e ais belasartes que nascem da imaginação. Tal como Diderot, d'Alembert considera que a ciência deve ater-se aos factos em todos os seus ramos. "A física limita-se unicamente às observações e aos cálculos; a medicina, à história do corpo humano, das suas enfermidades e dos remédios para elas; a história natural, à descrição pormenorizada dos vegetais, dos animais e dos minerais; a química, à composição e à decomposição experimental dos corpos; numa palavra, todas as ciências, tanto quanto possível circunscritas aos factos e às consequências que se possam extrair deles, não contemporizam com a opinião, a não ser que sejam forçadas" (Disc. prél.). D'Alembert admite também, a exemplo da "filosofia prima" de Bacon, uma metafísica positiva que analise os conceitos comuns a todas as ciências e discuta a validez dos princípios em que se funda cada ciência. Diz ele: "Uma vez que os seres espirituais e os materiais têm em comum propriedades gerais, como a existência, a possibilidade, a duração, é justo que este ramo da filosofia, do qual todos 252 os outros ramos tomam em parte os seus princípios, se denomine ontologia, ou seja, a ciência do ser ou metafísica geral> (lb.). A esta disciplina pertence também o exame dos princípios de todas as ciências porquanto " não existe nenhuma ciência que não tenha a
sua metafísica, se por tal s@- entende os princípios gerais sobre que é construída uma determinada doutrina e que são, por assim dizer, os germes de todas as verdades particulares" (É claircíssemeni, 16). A esta metafísica. é todavia completamente estranho o estudo dos problemas que se consideram próprios da metafísica tradicional e que d'Alembert declara insolúveis. A natureza da alma, a união da alma e do corpo e a própria essência dos corpos são questões sobre as quais, diz d'Alembert, a inteligência suprema estendeu um véu que a nossa débil vista não penetra e que debalde tentaríamos rasgar. "É um triste destino para a nossa curiosidade e para o nosso amor próprio, mas é este o destino da humanidade. Devemos, ao menos, concluir que os sistemas, ou antes os sonhos dos filósofos sobre a maioria das questões metafísicas não merecem lugar algum numa obra destinada Unicamente a abranger os conhecimentos reais adquiridos pelo espírito, humano" (EI. de phil., 4). D'Alembert é deista; mas para ele, como para Voltaire e para Diderot, Deus é apenas o autor da ordem do universo e é, por conseguinte, revelado pelas leis imutáveis da natureza. Assim, Deus é totalmente estranho ao homem e às relações humanas. Por consequência, a vida moral da humanidade não 253 depende de modo algum da religião. "0 que pertence essencial e unicamente à razão e que, por isso é uniforme em todos os povos, são os deveres que nos cabe assumir para com os nossos semelhantes... A moral é uma consequência necessária do estabelecimento da sociedade, já que tem por objecto o que devemos aos outros homens... A religião não desempenha papel algum na primeira formação das sociedades humanas e, embora se destine a estreitar os laços, pode dizer-se que é principalmente folíta para o homem considerado em si mesmo" (1b., 5). Nós sabemos pelos sentidos quais são as nossas relações com os outros homens e as nossas necessidades reciprocas e, através das nossas necessidades recíprocas, chegamos a conhecer o que devemos à sociedade e o que ela nos deve. D'Alembert define a injustiça ou mal moral como "o que tende a prejudicar a sociedade perturbando o bem-estar físico dos seus membros" (lb., 5). § 492. ILUMINISMO FRANCÊS: CONDILLAC A mais coerente e completa formulação da gnoseologia do iluminismo francês encontra-se na obra de Condillac. Etienne Bonnot, que foi abade de Condillac, nasceu em Grenoble a 30 de Setembro de 1714 e faleceu num castelo, perto de Be-augency, a 3 de Agosto de 1780. Viveu primeiro em Paris. onde travou relações com os filósofos iluminIstas e publicou as suas obras fundamentais. Em 1746, apareceu o seu Ensaio sobre as origens dos conhe254 cimentos humanos, "obra em que se reduz a um só princípio tudo o que concerne ao entendimento". Em 1749, Condillac retomava no Tratado dos sistemas o estudo dos princípios metodológicos indicados na introdução do Ensaio. A sua obra fundamental, o Tratado das sensações, apareceu em 1754, e a esta seguiu-se cm 1755 um Tratado dos animais, escrito polémico contra Buffon. Seguiram-se dois breves escritos: uma Dissertação sobre a liberdade e o Extracto fundamentado do Tratado das sensações. Em 1758 Condillac foi chamado a Parma para assumir o cargo de preceptor do infante D. Fernando e aí permaneceu nove anos, até 1767. Este encargo permitiu-lhe redigir um
Curso de estudos, que compreende: a gramática, a arte de escrever, a arte de raciocinar, a arte de pensar, a história antiga e a história moderna. Regressado a França, publicou este Curso (1775). Em seguida, escreveu uma obra de economia política (0 comércio e o governo considerados relativamente um ao outro, 1776), uma Lógica (1780) e um estudo intitulado Língua dos cálculos, que ficou incompleto e só foi publicado depois da sua morte (1798). Dois autores sobretudo inspiraram Condillac: Locke e Newton. De Locke tomou o método analítico e as teses fundamentais da sua gnoseologia. De Newton tomou a exigência de reduzir à unidade o mundo espiritual do homem, assim como Newton reduzira à unidade, mediante as leis da gravitação, o mundo da natureza física. Na Introdução ao Ensaio, Condillac distingue duas espécies de meta255 física: "uma, ambiciosa, quer penetrar todos os mistérios: a natureza, a essência dos seres, as causas mais ocultas, eis o que a lisonjeia e pretende descobrir; a outra, mais modesta, proporciona as suas investigações à debilidade do espírito humano e, preocupando-se pouco com o que por força lhe escapa e ávida ao mesmo tempo de tudo quanto pode alcançar, sabe conter-se nos limites que lhe são próprios". Conformemente a este princípio, Condillac distingue no Tratado dos sistemas três espécies de sistemas, segundo os princípios que lhes servem de fundamento. Há sistemas que tomam como princípios máximos gerais e abstractas; outros, que tomam como princípios suposições ou hipóteses para explicar aquilo de que não se poderia dar outra explicação; e existem, enfim, sistemas que têm como princípios somente factos bem comprovados. Condillac critica na sua obra os sistemas da primeira e da segunda espécie, entre os quais inclui, juntamente com outros mais antigos, os de Descartes, Malebranche, Espinosa e Leibniz. Quer ater-se, por seu lado, a uma metafísica que tenha por princípio apenas "uma experiência constante cujas consequências sejam, todas elas, confirmadas por novas experiências". No Ensaio Condillac afirma (1., 1, 8) que a alma é distinta e diferente do corpo e que este talvez não seja senão a causa ocasional do que parece produzir nela. Parte do princípio de Locke de que todos os conhecimentos procedem da experiência e mantém a distinção lockiana entre sensação e reflexão. O escopo que se propõe é mostrar que o 256 desenvolvimento integral das faculdades humanas deriva da experiência sensível; e este objecto mantém-se inalterado no Tratado das sensações. Mas nesta última obra persegue tal finalidade com maior rigor e propõe-se fazer derivar da sensação, que é um modo de ser da alma, o reconhecimento da realidade exterior e independente dos objectos. Abandona a distinção entre sensação e reflexão e considera a sensação como o princípio que determina o desenvolvimento de todas as faculdades humanas, porque, sendo as sensações necessariamente agradáveis ou desagradáveis, o homem está interessado em gozar das primeiras e libertar-se das outras (Traité, plano). E dá como exemplo a estátua, do qual se havia já servido Buffon e Diderot (sendo por isso Condillac: acusado, mas
injustamente, de plágio), ou seja, um ser organizado interiormente como nós mas com o exterior inteiramente de mármore de forma a que nela se possam estudar os efeitos devidos à aquisição sucessiva dos vários sentidos. Condillac começa por supor que a estátua adquiriu apenas o sentido do olfacto e que dela se aproxime uma rosa. A estátua reduzir-se-á para si própria ao cheiro da rosa porque toda a sua consciência ficará ocupada por esta sensação, da qual não terá possibilidade de se distinguir. A concentração da capacidade, de sentir da estátua no cheiro da rosa será a atenção; e a impressão que o cheiro da rosa deixará na estátua será a memória. Se o cheiro muda, a estátua recordar-se-á de todos os cheiros percebidos 257 e desse modo poderá compará-los, discerni-los e imaginá-los; e assim adquirirá, embora possua um único sentido, todas as faculdades fundamentais. Poderá formar também ideias abstractas como as de número e de duração; e nascerão nela desejos, paixões, hábitos, etc. Por outros termos, nas sensações de um único sentido, estão contidas todas as faculdades da alma. A combinação do olfacto com os outros sentidos fornecerá à estátua o modo de enriquecer e de alargar o domínio dos seus conhecimentos, que permanecerão no entanto, sempre encerrados no interior dela, já que a estátua nunca poderá ter a noção de uma realidade diversa das sensações que percebe. De onde lhe poderia vir tal ideia? Do sentido do tacto. Se se supuser a estátua privada dos outros sentidos mas provida de tacto, ela terá o sentimento da acção reciproca das partes do seu corpo, bem como dos seus movimentos. Condillac chama a este sentimento fundamental. Neste caso, o eu da estátua identificar-se-á com o sentimento, fundamental e nascerá para a própria estátua no momento da sua primeira mudança. Mas, mesmo assim, a estátua não terá ideia alguma do próprio corpo nem dos corpos externos. Se, no entanto, movendo ao acaso a mão, tocar o corpo, a sua sensação imediatamente se desdobrará: por um lado, sentirá, por outro, será sentida; a parte do corpo e a mão serão imediatamente situadas uma fora da outra. E se tocar um corpo externo, o ou que se sente modificado 258 na mão, não se sente modificado no corpo: a estátua sentirá, mas não será sentida por si mesma (11, 5, 5). Ela deverá, portanto, distinguir entre o seu próprio corpo, para o qual a sensação é recorrente, e os corpos externos, em que a sensação não se reflectirá nela. "Quando um grande número de sensações distintas e co-existentes são circunscritas pelo tacto no âmbito em que o eu responde a si mesmo, a estátua toma consciência do seu corpo; quando um grande número de sensações distintas e coexistentes são circunscritas pelo tacto nos limites em que o eu não responde a si mesmo, ela adquire a ideia de um corpo diferente do seu. No primeiro caso, as sensações continuam a ser
qualidades próprias dela; no segundo caso, convertem-se nas qualidades de um objecto completamente distinto" (11, 5, 6). A sensação do tacto desdobra-se assim em sentimento e ideia. "É sentimento pela relação que tem com a alma que ela modifica, é ideia pela relação que tem com algo de extremo" (Extrait raisonné, IV). É evidente, como acrescenta Condillac, que as ideias não nos fazem conhecer o que os seres são em si mesmos, senão que no-los, ,representam através das relações que têm connosco; o isto demonstra quão supérfluos são os esforços dos filósofos que pretendem penetrar na natureza das coisas. O aspecto mais notável da análise de Condillac é que a sensação não constitui para ele uma modificação estática e passiva, senão que está afectada de um desequilíbrio interno e de um dinamismo de 259 que derivam todos os seus desenvolvimentos subsequentes. "Se o homem, diz ele (1b., .), não tivesse qualquer interesse em se ocupar das suas sensações, as impressões que os objectos produzem nele passariam como sombras sem deixar vestígios. Mesmo passados muitos anos, encontrar-se-ia como no primeiro instante, sem ter adquirido qualquer conhecimento e sem ter outra faculdade senão o sentimento. Mas a natureza das suas sensações não lhe permite ficar imerso neste letargo. Uma vez que estas são necessariamente agradáveis ou desagradáveis, está interessado em procurar umas e em subtrair-se às outras; e quanto mais vivo é o contraste dos prazeres e das penas, tanto mais sorve de estímulo à actividade da alma. Por isso, a privação de um objecto que julgamos necessário à nossa felicidade nos causa mal-estar, aquela inquietação a que nós chamamos necessidade, e da qual nascem os desejos. Estas necessidades repetem-se segundo as circunstâncias, criam amiúde novas necessidades, e é isto que desenvolve os nossos conhecimentos e as nossas faculdades" (e f. Traité, 1, 3, 1; 1, 7, 3). Condillac reporta o princípio da inquietação a Locke (ef. Essays, 11, 21, segs.) ' e reprova-o por ter feito derivar a inquietação do desejo, quando se trata precisamente do contrário. Mas o espírito das suas análises, que consideram a necessidade o princípio do desenvolvimento humano. deve antes atribuir-se a Hume do que a Locke. Condillac é, na verdade, o Hume do Iluminismo francês. 260 As suas últimas obras, a Lógica e a Língua dos cálculos, constituem uma tentativa de reconhecer e formular em suas regras fundamentais o método analítico que o próprio Condillac seguiu nas suas primeiras obras. Este método consiste numa dupla operação: a decomposição pela qual se distinguem num conjunto os elementos que o constituem, e a recomposição pela qual se reencontra a ordem que concatena os elementos que se
separam. "Se pretender conhecer uma máquina, diz Condillac (Loguique, 1, 3), decompôla-ei para estudar separadamente cada peça. Quando tiver adquirido de cada uma delas uma ideia exacta e puder repô-las na mesma ordem em que estavam, então poderei perfeitamente conceber esta máquina, porque a terei decomposto e recomposto. "Mas este duplo processo requer uma linguagem, porque só se pode fazer a análise mediante sinais. "As línguas não são mais do que métodos analíticos mais ou menos perfeitos e, se fossem levadas à máxima perfeição, as ciências perfeitamente analíticas seriam conhecidas por aqueles que falassem perfeitamente a língua delas". (Langue des calculs, 1, 16). Mediante a elaboração de uma linguagem universal, "cada ciência poderia reduzir-se a uma primeira verdade que, transformando-se de proposição idêntica em proposição idêntica, nos oferecia, numa série de transformações, todas as descobertas que se fizeram e todas as que estão por fazer." (Ib., 1, 12). É o ideal da ciência universal como única linguagem das ciências que Leibniz formulara e defendera. 261 § 493. ILUMINISMO FRANCÊS: OS NATURALISTAS As polémicas naturalistas do iluminismo francês são dominadas pelas doutrinas físicas e metodológicas de Newton. Tais doutrinas, a principio acolhidas com certa desconfiança por serem inconciliáveis com as de Descartes, suplantaram rapidamente estas últimas. Fontenelle, que, com o Elogio de Newton, de 1727, fora o primeiro a divulgar em França as doutrinas de Newton, pronunciou-se, no entanto, num escrito de 1752 (Teoria dos turbilhões cartesianos) em favor de Descartes, acusando Newton. de ser ainda fiel, na teoria da atracção, ao principio das qualidades ocultas. O primeiro a defender a física de Newton, foi Maupertuis num discurso apresentado na Academia francesa em 1732 intitulado Sobre as leis da atracção e noutros escritos subsequentes. Voltaire popularizava a física newtoniana a que dedicou um escrito de divulgação em 1738 (Elementos da física de Newton). Pier,re-Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759), que foi presidente da Academia prussiana de Berlim, tentou no seu Ensaio de cosmologia (1750) uma síntese da doutrina de Newton e da de Leibniz. Embora aceitando a física e a cosmologia de Newton, imprimiu-lhe uma feição espiritualista e finalista. Dado que seria absurdo explicar o aparecimento da consciência pela reunião de átomos privados de qualquer qualidade psíquica, resta somente atribuir aos próprios materiais um certo 262 grau de consciência que depois, mediante a combinação desses materiais, se aperfeiçoa e se eleva. Estes átomos dotados de espiritualidade ou de consciência não são, todavia, as mónadas Ioffinizianas. A mónada de Leibniz é uma substância espiritual; o átomo de Mauportuis é matéria a que se acrescenta a consciência. Mauportuis. chega, todavia, a uma concepção finalista porque considera como lei fundamental do universo a mínima quantidade de acção. Todas as vezes que uma
mutação se verifica na natureza, é necessária para tal mutação a mínima quantidade possível de força. A natureza tem, portanto, um fim, que é exactamente o mínimo dispêndio da sua força, e em tal fim se manifesta a obra do seu criador. A par desta física de carácter metafísico, Maupertuis sustenta um nominalismo radical que deriva provavelmente dos ingleses. Reduz toda a realidade objectiva à simples. percepção sensível e vê no predicado "há" ou "existe", que atribuímos às coisas, apenas um simples sinal, isto é, um nome colectivo de percepções sensíveis repetidas. Assim, a frase "existe uma árvore" significa apenas que eu a vejo, a vi e poderei voltar a vê-la; e por isso não é mais do que o juízo abreviado de um complexo de percepções (10euvres, ed. 1782, 1, p. 178 segs.). Maupertuis distingue todavia nitidamente a coisa assim entendida, que é o fenómeno ou a aparência, da "coisa em si", isto é, do objecto real a que as percepções se referem mas com a qual elas não têm nenhuma relação necessária de semelhança (L£ttres, IV). Além disso, este tema da "coisa em si", que 263 era já presente em Descartes, o qual usa também a expressão (Princ. de fil., 11, 3), constitui um dos temas mais comuns da filosofia do iluminismo, da qual o próprio Kant o toma. No Ensaio de filosofia moral (1749), Maupertuís. estabelece um cálculo do prazer e da dor para servir de guia ao homem para a felicidade da vida e funda-o na consideração da intensidade e da duração da dor, intensidade e duração que podem compensar-se reciprocamente, de modo a que um prazer mais intenso e de menor duração tenham o mesmo valor que outro menos intenso e de maior duração. Este cálculo leva, porém, Maupertuis, a uma conclusão pessimista: a soma dos males na vida tende a superar a dos bens. Georges-Louis Leclerc de Buffon (1707-88), na ,sua História natural, geral e particular, publicada de 1749 a 1788, imprime novo rumo ao estudo do mundo animal e vegetal. Defende a necessidade de abandonar as velhas classificações sistemáticas, hierarquicamente organizadas, para se ater unicamente à experiência na busca da unidade que liga na natureza todos os seres vivos. Buffon considera que, na realidade, não existem nem géneros nem espécies, mas apenas indivíduos e que, portanto, o papc1 da filosofia natural é o de determinar a série ou a cadeia que reúne os indivíduos que apresentem maiores semelhanças entre si. Buffon é partidário da fixidez das espécies vivas, que, segundo ele, foram criadas uma por uma, à medida que o esfriamento da terra tornava possíveis as suas condições de vida (Époques de Ia nature, 1779). 264 Todavia, as suas ideias inspiraram a Diderot os seus pressentimentos sobre a génese evolucionista das espécies vivas. Ideias análogas às de Buffon foram defendidas por Jean-Baptiste Robinot (1735-1820) numa obra intitulada Sobre a natureza (1761-66), conquanto admitisse a possibilidade de que a ordem serial dos seres vivos não fosse simples mas lançasse para um lado e outro ramificações principais que, por seu turno, se dividiriam em ramificações subordinadas.
O naturalista suíço Carlos Bonnet (1720-93) serviu-se da ideia da série ou da cadeia para determinar também o desenvolvimento das faculdades psíquicas do homem, mercê de um procedimento analítico que lembra o de Condillac. A sua obra mais notável é o Ensaio de psicologia ou considerações sobre as operações da alma (1755). Roger Joseph Boscovich (1711-87), que foi professor em Roma, Pavia, Flaris e Milão, numa obra redigida em latim Philosophiae naturalis theoria (1759), procurou, ele também, conciliar a física newtoniana com a hipótese leibniziana dos centros de força. A matéria é constituída por pontos descontínuos entre si, cada um dos quais é um centro de força, não em si mesmo, mas apenas relativamente aos outros pontos que atrai ou repele do mesmo modo que é atraído ou repelido pelos outros. O espaço é sempre descontínuo e limitado porque, na realidade, existe sempre um determinado limite e uni determinado número de pontos e intervalos. A infinidade do espaço é a pura possibilidade de 265 poder continuar até ao infinito o exame dos, modos de ser próprios dos pontos naturais; mas mesmo como pura possibilidade pode o espaço ser reconhecido (como Newton fizera) como eterno e necessário, uma vez que ab aeterno é necessariamente verdadeiro que estes pontos possam existir em todos ,os seus modos infinitos. O que há de notável nesta concepção é que o espaço mesmo não é considerado riem como uma realidade em si, nem como puramente ideal; mas a sua objectividade é reduzida a uma simples possibilidade metodológica. § 494. ILUMINISMO FRANCÊS: OS MATERIALISTAS Como se viu, nenhum dos grandes filósofos e sábios do iluminismo francês professa o materialismo. O ideal que domina o iluminismo é o de uma descrição do mundo natural que se atenha aos factos e conceda o menos possível às hipóteses metafísicas. Os filósofos do iluminismo (Voltaire, Diderot, d'Alembert, Maupertuis) admitem geralmente, na esteira de Locke, a possibilidade de que a matéria, cuja essência nos é desconhecida, tenha recebido de Deus, entre outras qualidades, também a de pensar; mas recusam-se a admitir a dependência causal da actividade mental da matéria. A medicina setecentista havia no entanto acumulado um grande número de observações e de factos que mostravam essa dependência; isto é, mostravam que não só as sensações e as emoções, mas também a imaginação, a memória e a inteligência são condicio266 nadas por certos órgãos corpóreos e pelo estado em que os mesmos se encontram, ou, mais precisamente, pela sua estrutura analítica, assim como pela idade, pela saúde, pela nutrição, etc. Em tais factos se apoia o materialismo, que é a tese segundo a qual no homem e fora do homem, age, uma única causalidade, que é a da matéria; esta tese é adoptada pelos três maiores representantes, do materialismo, La Mettrie, d'Holbach e Helvetius como instrumento de libertação, não só contra as concepções metafísicas e religiosas tradicionais, mas também, e sobretudo, contra as concepções morais e políticas. O materialismo setecentista não se apresenta portanto (como o século seguinte) como uma concepção do mundo fundada nos grandes princípios da ciência mas antes como um naturalismo que pretende colocar a conduta humana sob a alçada da lei (ou da força) que age em toda a natureza. Com tais características se apresenta o materialismo pela primeira, vez na obra de Julien Offray de Ia Mettrie (1709-51), que foi médico e, à medicina do seu tempo foi buscar
precisamente as bases da sua especulação. No seu primeiro escrito, História natural da alma (1745), faz ainda algumas concessões à medicina tradicional, considerando como meios da causalidade corpórea. as "formas substanciais"; mas, na sua obra principal O homem máquina (1748), a tese materialista de uma única causalidade corpórea. é desenvolvida em toda a sua coerência. Além de numerosos escritos de medicina, La Mettrie compÔs durante a sua estadia na Corte de Frederico 11 da Prússia outros escritos filosó267 fícos, entre os quais: O homem planta (1748); Discurso sobre a felicidade (1748); Os animais mais do que máquinas (1750); O sistema de Epicuro (1750)-, A arte de gozar (1751), Vénus metafísica ou ensaio sobre a origem da alma humana (1751). Na página final de L'homme machine, a tese do escrito é apresentada como uma
da obra de La Mettrie, que é toda ela animada por uma espécie de espírito dionisíaco, em violenta polémica com as formas restritivas da moral tradicional. A tese de La Mettrie, não é mais do que uma extensão da de Descartes. Segundo Descartes, o corpo humano é uma máquina a que é espontâneo o atributo do pensamento. Segundo l_a Mettrie, todas as actividades humanas são produtos desta máquina. Esta tese é adoptada também pelos outros materialistas da época. Cada um deles a assume, mas de um modo particular. Na obra de d'Holhach, tornase uma consequência da férrea necessidade que liga o homem à causalidade geral da natureza. Paul-Henri Dietrich d'Holbach, nasceu na Alemanha, no Palatinato, em 1723, mas viveu sempre em Paris e aí faleceu a 21 de Fevereiro de 1789. É autor (sob o pseudónimo de Mirabaud) do Sistema da natureza e de numerosos outros escritos (Ensaio sobre preconceitos, 1770; O Bom senso, 1772; Sistema social, 1773; A política natural, 1773; A moral universal, 1776; Etocracia ou governo na moral, 1776). A autenticidade de alguns destes escritos é, porém, duvidosa. D'Hol-bach parte do princípio de que "o homem é um ser puramente físico; o homem moral é este mesmo ser físico considerado sob um certo ponto de vista, isto é, relativamente a alguns dos seus modos de agir, devidos à sua organização particulam (Système, 1, 1). Como ser físico, o homem está submetido à férrea necessidade que liga entre si todos os fenómenos naturais pela relação de causa e efeito. O 270 fogo queima necessariamente as matérias combustíveis que se encontram na sua esfera de acção. o homem deseja necessariamente aquilo que é ou lhe parece útil ao seu bem-estar. A liberdade é uma ilusão (1b., 1, 4). Em todos os fenómenos que o homem apresenta, desde o nascimento até à morte, não há senão uma série de causas e efeitos necessários conformes às leis comuns a todos os seres da natureza. "Tudo o que faz e tudo o que lhe acontece são efeitos da força de inércia, da gravitação, da virtude da atracção ou repulsão, da tendência para se conservar, em suma, da energia que tem em comum com todos os outros seres" (1b., 1, 6). Por conseguinte, todas as faculdades que se consideram intelectuais são modos de ser e de agir que resultam da organização do corpo. Segundo tais teses, que, para d'Holbach, são ditadas pela razão e pela experiência e que mesmo os filósofos mais esclarecidos, como Locke, foram incapazes de reconhecer claramente, os princípios tradicionais da religião, como a existência de Deus, a imaterialidade da alma, a vida futura, etc., são superstições estúpidas, que apenas a má fé de uma casta sacerdotal interessada pôde manter vivas. D'Holbach vitupera os temores, as inibições, os preconceitos, que impedem o homem de seguir os impulsos da sua natureza física, impulsos que são o seu único guia legítimo. O prazer é um bem e é próprio da nossa natureza amá-lo; é razoável quando nos torna grata a natureza e não prejudica os outros. As riquezas são o símbolo da maioria dos bens do mundo. O poder político é o maior dos bens quando 271 aquele que o detém recebeu da natureza e da educação as qualidades necessárias para estender a sua influência benéfica sobre a nação inteira (1b., 1, 16). O vínculo social funda-se na coincidência do interesse particular com o interesse colectivo. A conduta de cada um deve ser tal que granjeie a
benevolência dos seres necessários à sua própria felicidade e deve por isso visar ao interesse e à utilidade do género humano. O escopo dos governos é encorajar os indivíduos por meio de recompensas ou sanções a seguir este plano ou afastar os que pretendem estorvá-lo (Ib., 1, 17). Todos os erros do género humano derivam de se ter renunciado à experiência, ao testemunho dos sentidos e à recta razão, para se deixar guiar pela imaginação quase sempre enganadora e pela autoridade sempre suspeita. D'Holbach termina a sua obra com uma exaltação do ateísmo. "0 ateu é um homem que conhece a natureza e as suas leis, que conhece a sua própria natureza e sabe o que ela lhe impõe" (lb., 11, 12). E conclui com um apelo da natureza ao homem. "ó vós que, seguindo o impulso que vos dei, tendeis para a felicidade em todos os instantes da vossa vida, não resisti à minha lei soberana. Trabalhai pela vossa felicidade; gozai sem temor, sede felizes; encontrareis os meios impressos no vosso coração. Debalde, ó supersticioso, procurarás o teu bem-estar para lá dos limites do universo em que a minha mão te colocou" (1b., H, 14). Esta exortação revela o espírito do materialismo de d'Holbach, que é movido por um interesse ético político, como o de La Mettrie é movido por um 272 interesse ético individualístico. Também o materialismo de Helvetius é movido por um interesse ético-político. La Mettrie e d'Holbach são sensualistas e vêem na origem sensível de todas as faculdades humanas uma prova do materialismo. Na realidade, o sensualismo não se liga necessariamente ao materialismo, e um dos seus mais coerentes e firmes partidários, Condillac, é declaradamente espiritualista. Mas todas as consequências que o sensualismo implicava para a vida moral do homem manifestam-se claramente na obra de um outro materialista, ClaudeAdrien Helvetius (1715-71), Do espírito (1758). Da tese que afirma que a sensibilidade física é a única origem das ideias e que mesmo julgar ou avaliar significa sentir, Helvetius deduz o seu princípio de que o único móbil do homem é o amor próprio. "Se o universo físico está submetido às leis do movimento, o universo moral está, por sua vez, sujeito às do interesse. O interesse é sobre a torra o poderoso mágico que muda, aos olhos de todas as criaturas, a forma de todos os objectos" (De l'esprit, 11, 2). O homem qualifica de honradez, nos outros, as acções habituais que lhe são úteis; cada sociedade chama boas às acções que lhe são particularmente úteis (1b., 11, 5). Amizade, amor, simpatia, estima, todas estas qualidades são reduzidas ao comum denominador do interesse. As nações mais fortes e mais virtuosas são aquelas cujos legisladores souberam aliar o interesse particular ao interesse público (1b., HI, 22). Nos países 273 em que certas virtudes eram encorajadas com a esperança dos prazeres dos sentidos, tais virtudes foram mais comuns e atingiram um maior esplendor. Assim sucedeu em Esparta onde a virtude militar era premiada com o
amor das mulheres mais belas (1b., 111, 15). Em conclusão: "0 homem virtuoso não é o que sacrifica os seus prazeres, os seus hábitos, as suas mais fortes paixões ao interesse público, uma vez que um tal homem é impossível, mas sim aquele cuja paixão mais forte concorda de tal modo com o interesse geral que é quase sempre compelido à virtude" (1b., 111, 16). No fundo de toda esta análise há um pressuposto nominalístico; para Helvetius a virtude é um puro nome que designa uma única realidade fundamental: o interesse ou o amor próprio. Das suas análises Helvetius extrai a consequência de que a moralidade dos povos depende da legislação e do costume e que, portanto, os que regem os estados podem, mercê de uma educação oportuna, conduzir todos os homens à virtude. Esta tese é defendida especialmente na obra póstuma Do homem, das suas faculdades intelectuais e da sua educação (1774). Uma secção desta obra (a V), é dedica4da à crítica do Emílio de Rousseau. À tese de Rousseau da bondade originária do homem, Helvetius contrapõe que a bondade do homem é o produto de uma educação apropriada que faz coincidir o interesse privado com o interesse público. 274 § 495. ILUMINISMO FRANCÊS: OS MORALISTAS Atribui-se habitualmente ao iluminismo, como um dos seus rasgos fundamentais, o intelectualismo, isto é, a tendência para reduzir à actividade intelectual os poderes fundamentais do homem e para desconhecer e ignorar todos os outros. Viu-se que esta tendência não se pode detectar nos autores examinados, os quais, todos eles, de Voltaire a Condillac, de Diderot a Helvetius, reconhecem e esclarecem a função e o valor da necessidade, do instinto, das paixões, na vida do homem. Com efeito, a razão não é para o iluminismo uma realidade em si, cujo predomínio deva devorar e destruir todos os aspectos da vida humana, mas é antes a ordem a que a vida intrinsecamente tende, e que não pode realizar-se senão através do concurso e da disciplina de todos os elementos sentimentais e práticos que constituem o homem. O iluminismo deu-se portanto conta da resistência ou da ajuda que a tarefa da razão pode encontrar nas emoções do homem. E estas emoções foram submetidas pelo iluminismo a análises famosas que corrigiram e actualizaram as velhas análises de Aristóteles e dos Estóicos. Um dos resultados fundamentais destas análises é, precisamente, a descoberta, devida aos iluminIstas ingleses e franceses, do seguimento como categoria espiritual em si, irredutível por um lado à actividade cognitiva, por outro à actividade prática: Kant devia pois sandonar esta descoberta instituindo na Crítica do juízo a indagação crítica desta faculdade. Assim, os 275 iluminIstas franceses procuraram esclarecer o conceito de paixão, entendida não como simples emoção mas, segundo a expressão de Pascal, como emoção dominante, isto é, emoção capaz de colorir a personalidade inteira de um homem e de lhe determinar as atitudes. Tal é o objectivo dos moralistas do iluminismo francês, os analistas das paixões mais cáusticos, mais subtis e mais desprovidos de preconceitos. Como moralista se deve considerar a obra de Bernard Le Bovier de Fontenelle (1657-1757), que foi expositor e divulgador ágil de teorias físicas e cosmológicas (Conversações sobre a
pluralidade dos mundos, 1686-, Dúvidas sobre o sistema físico das causas ocasionais, 1686) e, como secretário da Academia de Paris, autor de numerosos Elogios das personalidades científicas mais eminentes da época; mas o seu interesse incidiu sobretudo no estudo dos costumes humanos, aqueles que ele chama de gostos "que se sucedem insensivelmente uns aos outros, numa espécie de guerra que movem uns aos outros perseguindo-se e destruindo-se reciprocamente, numa revolução eterna de opiniões e de costumes" (Oeuvres, od. 1818, 11, p. 434). A este interesse particular se devem os seus escritos História, Origem das fábulas, História dos oráculos. Fontenelle distingue duas partes na História: a história fabulosa dos tempos primitivos, que é completamente inventada pelos homens, e a história verdadeira dos tempos mais próximos. Uma e outra revelam-nos "a alma dos factos"; para a primeira, esta alma consiste nos erros, para a segunda nas paixões (1b., 11, 431). 276 A História é, portanto, o domínio das paixões humanas. "A física segue e revela os traços da inteligência e da sabedoria infinita que produziu tudo, ao passo que a História tem por objecto os efeitos das paixões e dos caprichos dos homens" (1b., 1, 35). Assim, já em Fontenelle aparece nitidamente aquele princípio que se tornará característico de todos os iluministas: Deus é o autor da ordem do mundo mas nada tem a ver com o homem e com a sua história. O predomínio das paixões é examinado a uma luz crua nas Reflexões ou Sentenças e máximas morais (1665) de François de La Rouchefoucauld (1613-80), que visam, todas elas, a desmascarar o fundo passional das atitudes que parecem mais alheias às paixões. "Se resistimos às nossas paixões, diz La Rouchefoucauld (Maximes, 122), é mais pela debilidade delas do que pela nossa força". A paixão exerce sobre o homem um poder quase ilimitado: o próprio desprezo pela morte é devido a ela. "No desprezo que os grandes homens nutrem pela morte, é o amor à glória que lhes nubla a vista dela; nas pessoas vulgares, tal desprezo é um efeito da sua escassa inteligência que as não deixa ver a profundidade do seu mal e as deixa livres para pensarem noutras coisas" (1b., 504). Os Caracteres de La Bruyère (1645-96) revelam um intuito análogo. Com maior consciência filosófica realizou o mesmo intento Luc de CUapiers de Vativenargues (171547), autor de uma Introdução ao conhecimento do espírito humano (1746), a que se seguiram as Reflexões críticas sobre alguns poetas e 277 as Reflexões e máximas. Vativenargues pretende reportar toda a vida interior do homem ao princípio que a rege e afirma que este princípio reside, na paixão. "As paixões, diz Vauvenargues. (Réfiexions, 154), ensinaram aos homens a razão". A origem das paixões consiste no prazer e na dor, que dão ao homem a consciência da sua imperfeição e da sua força. "A consciência das nossas misérias move-nos a sair de nós mesmos e a consciência dos nossos recursos encoraja-nos e conduz-nos à esperança. Aqueles que sentem apenas a miséria própria sem a força que possuem, nunca
se apaixonam muito, já que nada se atrevem a esperar; e bem assim, os que sentem apenas a sua força sem a impotência, já que uns e outros têm pouco que desejar. É necessário, pois uma mistura de coragem e de fraqueza, de tristeza e de presunção" (introduction, 22). Por isso, a força do espírito reside no coração, isto é, na paixão; a razão mais iluminada não leva a agir e a querer. "Bastará porventura ter a vista boa para caminhar? Não é necessário ter também os pés e a vontade com a capacidade de os mover?" A razão e o sentimento aconselham-se e suprem-se mutuamente. "Quem consulta apenas um dos dois e renuncia ao outro, priva-se inadvertidamente de uma parte do auxílio que nos é concedido para nos dirigirmos". "Devemos quiçá às paixões os maiores benefícios do espírito" (Réflexions, 149-151). Tal como Hume, Vativenargues considera que a solidez dos nossos conhecimentos se deve mais ao instinto do que à 278 razão. "0 espírito do homem, que só conhece imperfeitamente, não é capaz de dar uma prova perfeita. Mas a imperfeição dos seus conhecimentos não é mais clara do que a sua realidade, e se lhes falta alguma coisa para convencer por meio do raciocínio, o instinto supre-o com vantagem. Aquilo que * reflexão demasiado déNI não se atreve a decidir, * sentimento força-nos a crê-lo". Nas análises destes moralistas, não menos do que nas doutrinas dos filósofos, revela-se um aspecto fundamental do iluminismo. § 496. ROUSSEAU: VIDA E ESCRITOS Rousseau merece um lugar à parte no iluminismo. o iluminismo não considerava a razão a única realidade humana, porquanto reconhecia os limites dela bem como a força e o valor das necessidades, dos instintos e das paixões. No entanto, via na razão a verdadeira natureza do homem, isto é, a ordem normativa a que a vida humana se reduz na multiplicidade dos seus elementos constitutivos. Rousseau parece infringir neste ponto o ideal iluminista. A natureza humana não é razão, é instinto, sentimento, impulso, espontaneidade. A razão mesma transvia-se e perde-se quando não tem por guia o instinto natural. Os seus produtos e criações mais importantes não impedem o transvio do homem, se a razão não se firma no instinto e não se adequa à espontaneidade natural. O iluminismo pretende 279 confiar o instinto à razão, Rousseau a razão ao instinto. Porém, o resultado final é o mesmo. Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra a 28 de Junho de 1712. Filho de um relojoeiro, teve uma educação desordenada e caprichosa. Em 1728, fugiu de Genebra, onde era aprendiz na loja de um gravador, e, após numerosas peripécias (entre outras, foi cáado em Turim), encontrou um refúgio em casa de Madame
Warens, que foi para ele ao mesmo tempo mãe, amiga e amante e exerceu uma influência decisiva sobre a sua vida. Na sua estadia na casa desta senhora, Aux Charmettes, nas cercanias de Chambéry, pôde ler e instruir-se, passando aí os únicos anos felizes da sua vida. Em 1741 domiciliou-se em Paris, onde travou alguns anos mais tarde relações com os filósofos, especialmente com Diderot. Foi precisamente quando ia visitar Diderot, que fora arbitrariamente encarcerado, que Rousseau leu (1749), no "Mercure de France" o tema proposto pela Academia de Dijon para um concurso: "0 progresso das ciências e das artes terá contribuído para a melhoria. dos costumes?". Rousseau, mais tarde, descreveu, numa carta (11 Carta a Malesherbes, 12 de Janeiro de 1762) a luz que naquele momento se fez na sua mente e que decidiu da orientação da sua doutrina. O Discurso sobre as ciências e as artes, publicado no ano seguinte (1750), constituiu um grande êxito. A brilhante sociedade de Paris estava pronto a acolhê-lo, mas o temperamento tímido, taciturno e suspicaz do filósofo não era feito para as relações sociais. Conhecera em 1745 unia mulher gross6ra e inculta, Teresa Levas280 seur, que mais tarde desposou e da qual não se separou até à morte. Depois de ter regressado por algum tempo a Genebra, onde as suas extravagâncias e o seu carácter misantrópico lhe valeram muitos inimigos, fixou-se de novo em Paris, numa casa que Madame d'Epinay pusera à sua disposição, junto do bosque de Montmorency; posteriormente, foi hóspede do Marechal de Luxemburgo, no seu castelo de Montmorency (1758-62). Neste período escreveu e publicou as suas obras fundamentais: Nova Heloísa, Contracto Social e Emí lio. Após a publicação desta última obra, (1762), que foi condenada como impia, Rousseau foi, obrigado a fugir de França. Expulso de vários lugares, aceitou em 1765 a hospitalidade que Hume lhe oferecia em Inglaterra; mas não tardou a incompatibilizar-se também com ele, a quem acusou de conspirar com os seus inimigos. Regressado a Paris, levou aí a existência inquieta e atormentada descrita nos Sonhos de um viandante solitário. Foi, finalmente, acolhido em Ermenonville pelo Marquês de Girandin e ali veio a falecer a 2 de Julho de 1778. Na obra de Rousseau o entusiasmo e a oratória prevalecem em larga medida sobre o raciocínio e a demonstração. E até é lícito duvidar (e muitas vezes se tem duvidado) se os diversos aspectos do seu pensamento se deixam reduzir a uma coerência que assegure a unidade da sua personalidade de filósofo. Por um 1a4o (nos Discursos e na Nova Heloísa), Rousseau erige-se em defensor de um individualismo radical para o qual o homem não pode nem deve reconhecer outro guia do que o seu 281 sentimento interior. Por outro lado (no Contracto social), defende um absolutismo político radical pelo qual o indivíduo é inteiramente submetido à vontade geral do corpo político. Naquelas obras, considera a sociedade humana como uma construção artificiosa que limita ou destrói a espontaneidade da vida humana; na última, coloca o estado civil acima do estado natural e mostra as vantagens do ;primeiro. Este contraste, à primeira vista insuperável, pode talvez ser eliminado ou resolvido por um esclarecimento das relações existentes, segundo Rousseau, entre o estado natural e o estado actual do homem. § 497. ROUSSEAU: O ESTADO NATURAL O motivo dominante da obra de Rousseau é o contraste entre o homem natural e o homem artificial. "Tudo está bem, diz ele no início de Emílio, quando sai das mãos do Autor das coisas: tudo degenera entre as mãos do homem". Desta degeneração, faz Rousseau uma análise amarga e implacável, que lembra a de Pascal. Os bens que a
humanidade crê ter adquirido, os tesouros do saber, da arte, da vida requintada não contribuíam para * felicidade, para a virtude do homem, senão que * afastaram da sua origem e o extraviaram da sua natureza. As ciências e as artes devem a sua origem aos nossos vícios e contribuíram para os reforçar. "A astronomia nasceu da superstição; a eloquência da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a 282 geometria, da avareza; a física, de uma vã curiosidade; todas, incluindo a moral, nasceram do orgulho humano" (Discours sur les sciences, 111). Além disso, contribuíram para estabelecer a desigualdade entre os homens, desigualdade de que nascem todos os males sociais. O lustro que a civilização deu ao homem é apenas aparência e vaidade. O homem engana-se quando supõe fugir à sua pobreza interior refugiando-se no mundo; por isso, tem medo do repouso e não tolera estar só consigo mesmo. O egoísmo, a vaidade e a necessidade de domínio governam as relações entre os homens, de modo que a própria vida social se rege mais pelos vícios do que pelas virtudes. Todavia, esta situação em que o homem se encontra não é, como considerava Pascal, uma coisa intrínseca ao homem nem devida ao modo original. "A perfectibilidade, as virtudes sociais, as outras faculdades que o homem natural possui em potência, não teriam podido desenvolver-se por si mesmas, porquanto necessitavam o concurso fortuito de mais causas estranhas que podiam nunca ter nascido e sem as quais o homem teria permanecido eternamente na sua condição primitiva". Foram, pois, causas estranhas e acidentais "que aperfeiçoaram a razão humana deteriorando a espécie, tornando o homem mau ao torná-lo sociável e conduzindo, enfim, o homem e o mundo ao ponto em que hoje o vemos" (Discours sur 1'inégalité, 1). As circunstâncias acidentais que aperfeiçoaram a razão e arruinaram a natureza humana originária são, segundo Rousseau, o estabelecimento da pro 283 ~ade em primeiro lugar, depois a instituição da magistratura, finalmente, a mutação do poder legítimo em poder arbitrário; à primeira deve-se a condição de ricos e de pobres, à segunda a de poderosos e de fracos, e à terceira a de patrões e de escravos, que é o último grau da desigualdade (1b., 11). É evidente que o homem pode remontar do estado em que se encontra ao estado originário, de facto, a decadência é devida a causas acidentais e estranhas sobre as quais a vontade humana pode agir. Por isso, Rousseau entende o progresso como um retomo às origens, isto é, à natureza; e detém-se a delinear com complacência a meta e
o término ideal deste retorno: a condição natural do homem. Porém, não entende tal condição como um estado efectivo. "Esta condição, conforme diz no prefácio do Discurso sobre a desigualdade", é um estado que já não existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, mas de que é necessário todavia ter noções justas para julgar também * nosso estado presente". O estado de natureza ou * natureza humana primitiva é, portanto, apenas uma norma de juizo, um critério directivo para subtrair o homem à desordem e à injustiça da sua condição presente e reconduzi-lo à ordem e à justiça que devem ser-lhe próprias. O estado natural não é, mas deve ser, não no sentido em que o homem é infalivelmente dirigido para ele, mas apenas no sentido de que tem a possibilidade e a obrigação de tender para ele. 284 A Nova Heloísa, o Contracto Social e o Emílio são as obras em que Rousseau estabelece as condições pelas quais a família, a sociedade e o indivíduo poderão retornar à sua condição natural, saindo da degeneração artificial em que caíram. § 498. ROUSSEAU: O RETORNO À NATUREZA A Nova Heloísa, que narra as aventuras de dois jovens amantes a quem os pais e as convenções sociais impedem a realização do seu amor, é a afirmação da santidade do vínculo familiar fundado na livre escolha dos instintos naturais. Eis como Rousseau faz falar uma personagem (Milord Eduardo) que defende o jovem par: "0 vínculo conjugal não será acaso o mais livre, bem como o mais sagrado, dos contractos? Sim, todas as leis que o coaretam são injustiças, todos os pais que ousam formá-lo ou rompê-lo são tiranos. Este casto nó da natureza não está submetido nem ao poder soberano nem à autoridade paterna, mas apenas à autoridade do Pai comum que sabe comandar os corações e que, ordenando-lhes que se unam, os pode obrigar a amarem-se... A verdadeira ordem social é aquela em que o nível é dado pelo mérito e a união dos corações determinada pela escolha; aqueles que atribuem o seu nível ao nascimento e às riquezas são os verdadeiros perturbadores desta ordem e são eles que são condenados e punidos" (Nouv. Hél., II lett. 2.R). Para o vínculo conjugal, 285 o retomo conjugal significa pois a liberdade da escolha guiada pelo instinto. O Contracto Social pretende ser em relação à sociedade política o que a Nova Heloísa é relativamente à família: o reconhecimento das condições pelas quais a comunidade pode volver à natureza, isto é, a uma norma de justiça fundamental. A obra é, de facto, a descrição de uma comunidade ético-política na qual cada indivíduo obedece, não a uma vontade estranha, mas a uma vontade geral que ele reconhece como sendo-lhe própria e, portanto, em última análise, é a si mesmo que obedece. A ordem social não é uma ordem natural (1, 1), nasce, todavia, de uma necessidade natural quando os indivíduos já não se sentem capazes de vencer as forças que se opõem à conservação de si @próprios: neste ponto, o género humano pereceria se não modificasse a sua maneira de viver. O problema que então se levanta é o seguinte: "Encontrar urna forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a
pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se com todos, não obedeça senão a si próprio e permaneça tão livre como dantes" (1, 6). Este problema é resolvido com o pacto, que está na base da sociedade política. A cláusula fundamental deste pacto é a alienação total dos direitos de cada associado a favor de toda a comunidade. Em troca da sua pessoa privada, cada contraente recebe a nova qualidade de membro ou parte indivisível do todo; e assim nasce um corpo moral e colectivo, composto de tantos membros quantos votos tem a assembleia, 286 corpo que tem a sua unidade, o seu eu comum, a sua vida e a sua vontade (1, 6). Com a passagem do estado natural ao estado civil, o homem substitui na sua conduta a justiça ao instinto e dá às suas acções a moralidade de que antes careciam. "Só então a voz do dever substitui o impulso físico e o direito o apetite, e o homem, que até aí só tivera em conta a sua pessoa, vê-se obrigado a agir segundo outros princípios e a consultar a razão antes de escutar as suas tendências" (1, 8). A passagem do estado natural ao estado civil não é, pois, uma decadência do homem, se o estado civil é, como deve ser, a continuação e o aperfeiçoamento do estado natural. E toda a obra de Rousseau, é dedicada a expor condições pelas quais este estado há-de manter-se tal qual é. A vontade própria do corpo social ou soberano é a vontade geral que não é a soma das vontades particulares, mas a vontade que tende sempre ao bem geral e que por isso não se pode enganar (11, 3). Desta vontade emanam as leis, que são os actos da vontade geral; e não são, por isso, as ordens de um homem ou de vários homens, mas sim as condições paira a realização do bem público (11, 6). O governo é o intermediário entre os súbditos e o corpo político; a ele se deve a execução da liberdade civil e política (111, 1). Os governos tendem a degenerar quando se opõem à soberania do corpo político com uma vontade particular que se opõe à vontade geral. Mas os depositários do poder executivo não exercem nenhuma autoridade legítima sobre o povo, que é o verdadeiro 287 soberano. "Eles não são os senhores do povo, mas sim os seus empregados e o povo pode nomeá-los e destituí-los quando lhes aprouver. Não lhes cabe contratar, mas obedecer; e, encarregando-se das funções que o estado impõe, não fazem mais do que cumprir os seus deveres de cidadãos, sem terem de modo algum direito a discutir as condições" (111, 18). O pacto social estabelecido em tais condições assegura, segundo Rousseau, a liberdade dos cidadãos, pois constitui a garantia de que cada um dos seus membros só obedece a si próprio. De facto, a vontade geral não é mais do que a vontade dirigida para o interesse de todos, é ao obedecer à vontade geral o indivíduo não sofre nenhuma diminuição ou limitação. Assim, por um lado, Rousseau distingue a vontade geral das decisões que, efectivamente, o povo toma, e bem assim da vontade de todos (11, 3); por outro lado, exige a completa subordinação do indivíduo à vontade geral, porque fora da vontade geral ele não pode ter senão interesses ou móbeis particulares e, portanto, injustos. Por outros termos, a verdadeira natureza do estado não consiste em dar aos indivíduos um substituto
da liberdade natural, mas sim 'uma outra forma de liberdade que assegura ao indivíduo o que a liberdade natural lhe garantia, enquanto lhe era " possível, ou seja, a sua vida e a sua felicidade. Sob este ponto de vista, as teses do Contracto social não se opõem às das outras obras. A natureza do homem é a liberdade, porém, a comunidade política não pode assegurar ao indivíduo a liberdade do instinto desordenado, mas só a de um instinto disciplinado e 288 ROUSSEAU pela razão, o que precisamente acontece moralizado coincidência da vontade Particular com mediante a necessidade de uma a vontade geral. Admitida a n vida associada, o retorno à natureza desta vida associada apresenta-se a Rousseau como a ordem e a disciplina racional do instinto espontân`-0* Também aqui a natureza só vale como norma, isto é, como _m e de justiça-
soda], Rous- _Im critério de ordP
Contracto
Na Nova Heloísa e no ado do retorno seau expôs as condiç5es. eo signif ic à natureza no que respeita à sociedade familiar e à sociedade política. No Emílio formula as mesmas condições para o indivíduo. Aqui tudo depende da io substituir a educação tradieducaÇãO: é necessár . . iiva cional, que oprime e destrói a natureza primit com uma suporstrutura artificial, por unia educação que se proponha corno único fim a conservação c O reforço de tal natureza.Eniffio é a história de um garoto educado precisamente Para esse fim. A obra do educador deve ser, pelo menos a princiPio, negar a virtude e a verdade mas tiva: não deve ensina oração e do erro a mente. A proteger do vício O c nte dirigida no acção do educador deve ser única, e espisentido de fazer que O desenvolvimento físico ritual da criança 'Ira. de uni modo espontâneo, isIÇão seja unia criação, que nada que cada nova aqu mas tudo do interior, isto é, proceda do exterior, cando. Na dosdo sentimento e do instinto do edu irinento espontâneo ROussCau crição deste desenvOlv disse-se com razão segue a, orientação sensualistadesenvolvimento de Emílio é comparável ao que o
primeiras faculdP, famosa e@,,tátua de Condillac- "As
289 dades, diz Rousseau (Émile, 11), que se formam e se aperfeiçoam em nós são os sentidos, que por isso deveriam ser cultivados em primeiro lugar e que, ao invés, são esquecidos ou negligenciados. Exercitar os sentidos não quer dizer apenas usá-los, mas começar a julgar bem. através deles, aprender, por assim dizer, a sentir, porque não sabemos tocar, ver ou ouvir, senão da maneira como tivermos aprendido." O impulso de aprender, isto é, de transformar os dados sensíveis em conhecimentos intelectuais, deve vir a Emílio da natureza; e o critério que o deve orientar na escolha dos conhecimentos a adquirir é a
utilidade. "Logo que o nosso aluno adquira o conceito da palavra útil, teremos um novo meio extremamente valioso para o guiar, porquanto tal palavra terá para ele o sentido de alguma coisa que interessa imediatamente ao seu bem-estar actual" Ub., 111). Emílio terá a primeira ideia da solidariedade social e das obrigações que ela impõe aprendendo um trabalho manual, e será levado a amar os outros pelo amor próprio, que, quando não é artificiosamente desviado ou exagerado, é a fonte de todos os sentimentos benévolos. Quando na adolescência as suas paixões começarem a despontar, convém deixar que se desenvolvam a fim de que tenham possibilidade e tempo de se equilibrarem pouco a pouco, e assira não será o homem que as ordenará, mas a própria natureza que modelará a sua obra (Ib., IV). Da própria disciplina na-tuira,1 das paixões nascem em Emílio os valores morais. " Formar o homem da natureza não significa fazer dele um selvagem que haveria que abandonar no 290 meio dos bosques, mas uma criatura que, vivendo no turbilhão da sociedade, não se deixa arrastar nem pelas paixões nem pelas opiniões dos homens, uma criatura que vê com os seus próprios olhos e sente com o seu coração, e que não reconhece outra autoridade senão a da própria razão" (Ib., IV). O princípio de que tudo deve nascer com perfeita espontaneidade do foro íntimo do educando contrasta, na obra de Rousseau, com todo o conjunto de advertências, de artifícios e de fidelidade que o preceptor urde por toda a parte em torno dele para lhe proporcionar o ensejo favorável a determinados desenvolvimentos. O motivo de tal contraste é que a educação não é, segundo Rousseau, o resultado de uma liberdade desordenada e caprichosa, mas sim de uma
bondade não é anulada pela fúria das paixões... Até agora só tens sido livre na aparência, fruíste unicamente da liberdade precária de um escravo a que nada se lhe impôs. Agora, é tempo de seres realmente livre, mas hás-de saber ser senhor de ti mesmo, governa o teu coração: só com este pacto se adquire a virtude" (1b., V). Assim também no Emílio a natureza humana não é o instinto ou a sua imediatez, mas antes a ordem racional e o equilíbrio ideal do instinto e das paixões. Porém, não é uma condição primitiva de que o homem esteja de posse, mas uma norma a reconhecer e a fazer valer; não é um facto mas um dever ser. E assim se explica como Kant pôde inspirar-se em Rousseau na sua doutrina moral e nele ver o Newton do mundo moral (Werke, Ed. Hartonstein, VIII, 630). § 499. ROUSSEAU: A RELIGIÃO NATURAL A religião natural exposta na Profissão de fé do Vigário Saboiano (Emílio, IV), embora apelando para o instinto e o sentimento natural, dirige-se sobre292 tudo à razão, a qual só pode iluminar e esclarecer o que o instinto e o sentimento obscuramente testemunham. A regra de que se serve o vigário saboiano consiste de facto em interrogar a luz interior, em analisar as diversas opiniões e em admitir apenas as que apresentem a maior verosimilhança. A luz interior, que é a consciência ou sentimento natural, não é aqui senão a razão, como equilíbrio ou harmonia das paixões e dos interesses espontâneos da alma. O primeiro dogma da religião natural é a existência de Deus, que se deduz da necessidade de admitir uma causa do movimento que anima a matéria bem como da necessidade de explicar a ordem e a finalidade do universo. O segundo dogma é a espiritualidade, a actividade e a liberdade da alma. Rousseau opõe-se ao princípio, cuja possibilidade fora admitida por quase todos os iluminIstas, de que a matéria pode pensar. Tal como Condillac, defende a imaterialidade da alma, que nos assegura a imortalidade; a imortalidade justifica a providência divina. "Se não houvesse outra prova da imaterialidade da alma senão o triunfo dos maus e a opressão dos justos neste mundo, isso me bastaria para não duvidar dela. Uma contradição tão manifesta, uma dissonância tão discrepante na harmonia do universo faz-me pensar que nem tudo acaba para nós na vida, e que, ao invés, tudo com a morte entra na ordem". A religião natural é apresentada no Emílio como uma aquisição ou uma descoberta que cada qual pode e deve fazer por si, mas que não se pode 293 ~r a ninguém. "Agora cabe-vos julgar, diz no fim da sua Profissão o Vigário ao seu interlocutor. Começais a pôr a vossa consciência em estado de poder ser esclarecida; sede sincero convosco, Q das minhas ideias aceitai aquelas que vos persuadir era e rejeitai as outras, porque não estais ainda tão corrompido pelo vício que tenhais de recear escolher mal". Mas no Contracto social Rousseau. admite que haja "uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos cabe ao soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão e súbdito fiel (IV, 8). O Estado não pode obrigar a crer nestes axugos, mas pode desterrar aquele que não acredita neles, não por ser ímpio, mas
por ser insociável. Os artigos deste credo civil são os mesmos da religião natural tendo a mais "a santidade do contracto social e das leis" e um dogma negativo, a intolerância. Deve notar-se (como já o fizemos) o contraste entro a absoluta liberdade religiosa que parece o pressuposto do Emílio e a obrigatoriedade do credo civil no Contracto social. Mas convém notar que no Contracto social Rousseau. supõe realizada com todas as suas consequências a ordem racional da natureza humana, cujo órgão é a vontade geral- A religião civil não faz senão tornar explícitas as condições de tal realização que não podem deixar de ser reconhecidas pelos indivíduos. Com efeito, infringir o credo civil, comportando-se como se não o admitisse, é para Rousseau o crime mais grave porque significa ser 294 perjuro para com as leis (logo, para consigo mesmo) e isto pune-se com a morte (1b., IV, 8). Deste modo, Rousseau liga-se à corrente principal do iluminismo e revela-se a voz mais apaixonada e mais profunda deste movimento. A sua polémica contra a razão é, na realidade, a polémica contra uma razão que pretende anular os instintos e as paixões e substituí-las por uma superestrutura, artificial. Mas de semelhante razão, como se viu, * iluminismo não sabia que fazer. Rousseau deu * forma mais paradoxal e enérgica ao ~to do iluminismo francês: o ideal de uma razão como ordem e equilíbrio de todos os aspectos o atitudes do homem e, portanto, como condição do retorno e da restituição do homem a si mesmo. NOTA BIBLIOGRÁFICA 483. Sobre o iluminismo francês, além das 0~ citadas no § 476: D. MORNET; I~ seiences e Ia nature en France au XVIU e siècle, Paris, 1911; J. P. BELIN, Le mouvement philosophique de 1748 à 1789, Paris, 1913; D. MORNET, Les origines intellectuelles de Ia révolution française, Paris, 1933; A. VARTANIAN, Diderot and Descartes, Princeton, 1953, trad. ital. Milão, 1956; PIETRO ROSSI, Gli iNuministi francesi, Turim 1962 (óp~ antologia com introiduções e bibliografia). Bayle: Dictionnaire historique et ethique, 3.1 ed., 4 vol. Roterdão, 1715; nova ed. em 16 vol., Paris, 18920. Oeuvres, 4 vol., Roterdão, 1715; nova ed. em 16 vol., Paris, 1820; Oeuvres, 4 vol. Haia, 1737. 295 J. DEVOLVÉ, Bóligion, critique et philosophie positivo chez P. B., Paris, 1906; H. ROBINSON, B. the SCeptic, Nova Iorque, 1931; P. B. Le philosophe de Rotterdam, ao cuidado de P. Dibon, Paris, 1959. § 484. Montesquieu: Oeuvres complètes, 7 vol., Paris, 1875-79; Oeuvres inédites, Paris, 1892-1900; ed. crit. A. Marson, 3 vol., Paris, 1950-55; Lo 8pirito deIlé leggi, trad. Ual. de S. Cotta, Turim, 1952.
J. DE SIEU, M., Paris, 1913; S. COTTA, M. e Ia scienza della società, Turim, 1953; R. Shackeleton, M. (A Critical Biograph), Londres, 1961. § 485. Voltaire: Oeuvres, ed. KehI, 92 voL, Paris, 1785-89; ed. Beuchot, 72 vol. Paris, 1929-34. G. LANSON, V., Paris, 1906; N. L. TORREY, V. and the English Deists, New Haven, 1930; A. NOYES, V., Londres, 1936; N. L. TORREY, The Spirit of V., Nova lorque, 1938; R. NAVES, Le goút de V., Paris, 1938; J. R. CARRÉ, Co~tance de V. le philosophe, Paris, 1938; C. LuPORINI, V. e Ie "Lettres philosophiques", Florença, 1955; R. PomEAu, La religion de V., Paris, 1956; F. DIAZ, V. storico, Turim, 1958. M. M. BARR, A Bibliography of Writing on V. (1825-1925), Nova Iorque e continuação ín
R. RENoiR, C. Paris, 1924; G. LE Roy, La psychologie de C., Paris, 1937; M. DAL PRA, C., Milão, 1942; G. SOLINAS, C. e Viluminismo, Cagliari, 1955. § 493. Maupertuis: Oeuvres, Lyon, 1756 e 1758, 4 vol., Dresde, 1782. Buffon, Histoire naturelle, générale et particulière, Paris, 1749, sgs.; Nouveaux Extraits, ed Golin, Paris, 1905. Robinet, Oeuvres, 8 vol. Neufchâtel, 1779-&3. Sobre Boscovich: D. NEDELKOVITC11, La phil. nat. et relativiste de R. T. B., Paris, 1922., e,.d. A. Vartaman, 297 Pr~ton, 1960, com Intr. e bibl.; L'hamme plante, ed. F. L. Rougier, Nova Iorque, 1936; L'uomo machina e altri scriti, tra& ital., G. Preti, Iffilão, 1955. BOUISSIER, L. M., Paris, 1931, P. LEmÉE J. O. de L. M. Mortain, 1954. Sobre as obras de d'Holbach: A. Rock, in "Archiv für Geschichte der Philoso~.', >, 1917@ p. 270 sgs. M. P. CUSHING, Baron d'Holbach, Nova Iorque, 1914; R. HUBERT, D'Holbach et ses amis, intr. e textos, Paris, 1928. Hekétius, Oeuvres, 7 vol., Deux Pontes, 1784; 5 vol., Paris, 1792-A. YEimH, Paris, 1907; M. GROSSMAN; The philosophy of H., Nova lorque, 1926; 1. CumMING; M. Loondres, 1955. Sobre o materialismo: LANGE, Geschichte des Materialismus, 2 voL, 8.1 ed. Lipsia, 1908, trad. frane. Pari.% 1910. - G. PLECHANOV; Beitrãge zür Geschichte des Materialismus, 3.1 ed. Estugarda, 1921. Fontenelle, Oeuvres, 12 võI. DELBos; La phil. franc., Paris, 1919, p. 13 sgs. Os escritos de La Rouchefoucauld, La Bruyère e VauvenaT-gues foram recolhidos em Moralistes français, Paris, (Firmin-Didot), 1841. Vauv~~, Oeuvres, ed. Varillon, 3 võl., Paris, 1929; Oeuvres choiMes, ed. 1-1. Gaillard de Champris, Paris, 1942. -A. BOREL, Essai sur V., Neuehâtel, 1931; R. LENOIR, Les Historiens de 11 esprit humain, Paris, 1926. § 496. Rousse-au, Oeuvres, ed. C. Lahure, 13 vol. Paxis, 1865; Corespondance génerale, ed. T. Dufour, 20 vol., Paris, 1924-34; Table de Ia correspondance de J. J. R., de P. P. Plan, Genebra, 1953. H. HOFFDING, R. und Seine Philosophie, Estugarda, 1897; J. LEMAITRE; J. J. R., Paris, 1907; E. FAGUET, R. penseur, Paris, 1911; E.
CASSIRER; Da& Problem J. J. R., 1932; trad. ital. 1938; C. W. MNDEL, R. Moralist, 2 vol., Londres e Nova Iorque@, 1934; 1962; F. C. GREEN; J. J. R. Cambridge, 1955; R. DERAT.HÉ, Le 298 rationaUs?n de J. J. R. Paris, 1948; B. GRoEníuysEN, J. J. R., Paris@ 1949; P. BURGELINY; La phil. de Ilexisteme de J. J. R., Paris, 1952; J. STAROBINSKI, J. J. R., Paris; H. RORRS, J. J. R., He~berga, 1957. § 498. R. HUBERT, R. et Z'Encyclopédie, Paris, 1928. § 449. W. CUENDET, La philosophie reJigie"e de J. J. R., Genlebr.4 1913; P. M. MASSON, La pmsée religieuse de Rousseau et ses rcents interprètes, Paris, 1927. Bibl.: A. SCHINZ, Êtat présent des travaux sur J. J. R., Paris, 1941. 299 íND1CE VI - LEMNIZ ... ... ... ... ... ... ... 7 § 436. Vida e Escritos ... ... ... ... 7 § 437. A ordem contingente e a razão problemãtica, ... ... ... ... ... f acto
... ... ... ... ... ...
13 § 438. Verdade de razão e verdade
de
17
§ 349. A substância individual . .. ... 21 § 440. Força e mecanismo ... ... ... 26 § 441. A mónada, ... ... ... ... ... 29 § 442. A harmonia preestabelecída ... 35 § 443. Deus e os problemas da teociceia, 38 Nota bibliográfica, VII - VICO
... ... ...
42
... ... ... ... ... ... ... ...
45
§ 444. Vida e Obra ... ... ... ... ... 45 § 445. Vico entre os séculos XVII e XVIIII ... ... ... ... ... ... 47 § 446. O verdadeiro e o facto
50
301 § 447. A nova ciência ... ... ... ... 449. As três idades da história e a sabedoria poética ... ... ... ... probleanaticidade da hi~ria Nota bibliogrUica VIII - LOCKE
54 § 448. A hist6ria Ideal, eterna
61 § 4W. A Providência 68
... ... ... 72 ... ... ... ... ... ... ... ...
75
... ... ... ...
... ...
56 §
66 § 451. A
§452. Vida e Escritos ... ... ... ... 75 §453. A razão finita e a experiência 78 §454. Os fundamentos do "Ensino" ... 82 §455. As Ideias simples e a ~vidade do espírito ... ... ... ... 86 §456. As ideias complexas e a actividade do espírito ... ... ... ... 89 §457. A linguagem e as ideias gerais 94 §458. A realidade do conhecimento ... 96 §459. A razã o e os seus limites ... ... 102 302 § 460. O proble= politico e a liberdade 107 § 461. o probleina religioso e a tolerância ... ... ... ... ... ... 115 § 462. A Educação ... ... ... ... ... 121 Nota bibliográfica IX - BERKELEY
... ... ... 123 ... ... ... ... ... ... 125
§ 463. Vida e Escritos ., . ... ... ... 125 § 464. O nominalismo ... ... ... ... 129 § 465. O imaterialismo ... ... ... ... 131 § 466. A metaf"ca neoplatõnica ... ... 137 Nota bibliográfica X - J-JUXE
... ... ... 142
... ... ... ... ... ... ... ... 145
§ 467. Vida e Escritos ... ... ... ... 145 § 468. A natureza humana e o seu límite ... ... ... ... ... ... ... 148 § 469. Impressões e Ideias; ... ... ... 151 303 §470. As conexões entre as ideias ... 154 §471. A Crença ... ... ... ... ... 159 §472. Os princípios da moral ... ... 164 §473. A Religiã o ... ... ... ... ... 167 §474. O gosto artístico ... ... ... ... 172 §475. A Política ... ... ... ... ... 175 Nota bibliográfica XI-O
... ... ... 177
ILUMINISMO INGLÊS
.. . ... ... 179
§476. Características do iluminismo
... 179 §477. O ilumínismo inglês: Newton,
Boyle ... ... .. . ... ... ... 183 §478. A po'@énú<@a sobre o deismo, .. . 188 §479. Shaftesbury ... ... ... ... ... 196 §480. Hutchinson Xandeville ... ... 202 §481. Hartley, Priestley, Smith ... ... 207 §482. A escola escocesa do ~o comum
... ... ... ... ... ... 213 Nota bibliográfica
... ... ... 217
304 XII - o iLUMI,-.@ISMO FRANC]@S § 483. Tradição e história: Bayle §485. Voltaire: Vida e Escritos
... ...
... 219
... 219 §484. Montesquieu ... ... ... ... ... 224 ... ... 228 §486. Voiltaire: O Mundo, o Homem e
Deus ... ... ... ... ... ... ... 231 §487. Voltaire: A História e ... ... 237 §488. A ideia de progresso: Turgot,
o Progresso
... ...
... ...
Condorect ... ... ... ... ... 239 §489. A Encielopédia ... ... ... ... 243 §490. Diderot ... ... ... ... ... ... 245 §491. D'Alembert ... ... ... ... ... 251 §492. Condillae ... ... ... ... ... ... 254 §493. Os naturalistas ... ... ... ... 261 §494. Os materialistas ... ... ... ... 266 §495. Os moralistas ... ... ... ... 274 496. Rousseau: Vida
e Escritos
... 279
305 § 497. Rousseau: O estado de natureza 282 § 498. Rousseau: O retorno à natureza 284 § 499. Rousscau: A redigião naturai ... 292 Nota bibMográfica ... ... ... 295 306 Composto e Impresso para a EDITORIAL PRESENÇA na Tipografia Nunes Porto
História da Filosofia Volume oito Nicola Abbagnano Digitalização e arranjos: Ângelo Miguel Abrantes (quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003)
HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME VIII TRADUÇÃO DE: ANTóNIO RAMOS ROSA ANTóNIo BORGES COELHO CAPA DE: J. C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 197o TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILoSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa X111 O ILUMINISMO ITALIANO § 500. O ILUMINISMO EM NÁPOLES O que caracteriza o Iluminismo italiano, que está estreitamente ligado ao francês, é prevalência dos problemas morais, políticos e jurídicos.
a
O seu principal contributo reside na obra de César Beccaria, Dos delitos e das penas, obra que incorpora no domínio do direito penal os princípios fundamentais da filosofia moral e política do iluminismo francês. No que se refere à gnoseologia, o iluminismo italiano visou sobretudo moderar as teses extremistas do iluminismo francês, optando por um prudente celectismo, mediante o qual aquelas teses perdem grande parte da sua virulência e da sua força renovadora. Os dois centros do iluminismo italiano foram Nápoles e Milão. Em Nápoles, o espírito do iluminismo encontra a sua primeira realização na História civil do Reino de Nápoles (1723) de .Pedro Giannone (1676-1748), obra que pretendia mostrar como o poder eclesiástico tinha, através de sucessivas usurpações, limitado e enfraquecido o poder político, e quanto convinha a este confinar o poder eclesiástico no puro âmbito espiritual. Um dos fins da obra de Giannone era "o esclarecimento das nossas leis pátrias e das nossas instituições e costumes" (História, intr., ed. 1823, 1, p. 213).
Uma figura que pertence mais ao iluminismo francês do que ao italiano é a do abade napolitano Fernando Galiani (1728-87) que foi durante dez anos (1759-69) secretário da Embaixada do Reino de Nápoles em Paris e dominou os salões da capital francesa com o seu espírito e o seu brio. Galiani foi especialmente economista. O ensejo do seu tratado Da moeda (1751) era o de criticar a tese do mercantilismo de que a riqueza de uma nação consistia na posse de metais preciosos. As suas ideias filosóficas, não expostas de forma sistemática, mas lançadas aqui e ali como ditos de espírito, estão contidas nas Cartas (escritas em francês) e são em tudo conformes às ideias dominantes no ambiente francês em que Galiani viveu. Os filósofos que afirmam que tudo vai bem no melhor dos mundos, considera-os Galiani verdadeiros ateus que, com receio de serem queimados, não chegam a concluir o seu silogismo. E eis aqui, segundo ele, o silogismo: "Se um Deus tivesse criado o mundo, este seria sem dúvida o melhor de todos os mundos; mas não é, nem de longe; portanto, Deus não existe". A estes ateus camuflados cumpre responder, segundo Galiani, da maneira seguinte: "Não sabeis que Deus criou este mundo do nada? Pois bem, nós temos portanto Deus por pai e o nada por mãe". Decerto que o nosso pai é unia grandíssima coisa, mas a nossa mãe não vale nada. Temos algo do pai, mas recebemos também alguma coisa da nossa mãe. O que há de bom no mundo vem do pai e o que há de mau da senhora nada, nossa mãe, que não valia grande coisa (Carta ao Abade Mayeul, 14 de Dezembro de 1771). Contra os ateus e os materialistas, aduz o argumento dos dados chumbados. "Se dez ou doze lances de dados vos fizerem perder seis francos, credes firmemente que isso é devido a uma manobra hábil, a uma combinação artificiosa, a uma artimanha bem urdida; mas vende neste universo um número tão prodigioso de combinações mil e mil vezes mais difíceis e complicadas, mais elaboradas e úteis, não supondes, de facto, que os dados da natureza estejam igualmente chumbados e que haja lá em cima um grande trampolineiro que se diverte a enganar-vos". Galiani está convencido de que o mundo é uma máquina que se move e caminha necessariamente e que, por consequência, nele não há lugar para a liberdade dos homens. Todavia, o homem julga-se livre e a persuasão da liberdade constitui a própria essência do homem. Como resolver a contradição? "Se houvesse um único ser livre no universo, não poderia haver Deus, não poderia haver laços entre os seres. O universo desintegrar-se-ia. E se o homem não estivesse íntima e essencialmente convencido de ser sempre livre, a moral humana não seria o que é. A convicção da liberdade é suficiente para estabelecer uma consciência, um remorso, uma justiça, recompensas e castigos. Ela basta paira tudo, e eis assim o mundo explicado em duas palavras". Está demonstrado que nós não somos livres, mas agiremos sempre como se o fôssemos do mesmo modo que veremos sempre quebrado um pau submerso na água, conquanto o raciocínio nos diga que o não está (Carta, a Madame d'Epinay, 23 de Novembro de 177 1).
Do sensualismo francês extraiu o fundamento das suas doutrinas Antonio Genovesi (171269), que foi o primeiro na Europa a professar na universidade a nova ciência da economia. Leccionou, de facto, a partir de 1754 a disciplina de lições de comércio na Universidade de Nápoles. Genovesi considera como princípio motor, quer dos indivíduos, quer dos corpos políticos, o desejo de evitar a dor que deriva da necessidade insatisfeita e chama a tal desejo interesse, considerando-o como o que incita o homem, não só à sua actividade económica, mas também à criação das artes, das ciências e a todas as virtudes (Liç. de Comércio, ed. 1778, 1, 57). Genovesi é também autor de obras filosóficas: Meditações filosóficas sobre a religião e sobre a moral (1758); Lógica (1766), que é um resumo italiano de um manual latino de lógica que Genovesi publicara em 1745 e que conheceu um grande êxito na Europa; Ciências metafísicas (1766); Diceosina, ou seja, doutrina do justo e honesto (1776). Nas Meditações retoma à sua maneira o procedimento cartesiano, considerando, porém, que o primeiro princípio não é o pensa10 mento mas o prazer de existir. "Eu existo, de facto. Este pensamento e o prazer que implica, enche-me por completo; e, visto que é belo e grande, de hoje em diante esforçar-me-ei tanto quanto puder por me deter nele e fazer, se possível, por que se converta, tanto por reflexão como por natureza, na substância de todos os meus pensamentos e dos outros prazeres meus" (Meditações, 1). Deste modo, o prazer vem a ser para Genovesi o acto originário do ou, o fundamento e a substância de toda a sua vida. E a própria razão toma-se numa "faculdade calculadora" de tudo o que existe ou é possível. Esta orientação, que parece proceder de Helvétius, não impede Genovesi de defender a tese do espiritualismo tradicional: a espiritualidade e a imortalidade da alma, o finalismo do mundo físico e a existência de Deus. Caetano Filangieri (1752-88) inspirou-se em Montesquieu ao escrever Ciência da legislação (1781-88), em que se vale da obra do filósofo francês para extrair dela o que se deve fazer para o futuro, ou seja, para tirar dela os princípios e as regras de uma reforma da legislação de todos os países. Da reforma da legislação, espera Filangieri o progresso do género humano para a felicidade e a educação do cidadão.
função formativa e criadora da lei, Filangieri delineia o seu plano de legislação, em que se deve salientar a defesa da educação pública, defesa que parte do princípio de que só ela pode garantir a uniformidade das instituições, das máximas e dos sentimentos e que por isso só a menor parte possível dos cidadãos s-- deixa à educação privada. Mas em relação às ponderadas análises de Montesquieu, o optimismo de Filangieri com respeito à acção legislativa parece utópico. Mário Pagano (1748-99), nos Ensaios políticos dos princípios, progressos e decadência da sociedade (1783-85), retoma a doutrina de Vico sobre as três idades e sobre os fluxos e refluxos históricos, dentro do espírito do iluminismo. Mas Pagasio é completamente alheio à problematicidade da história que domina a obra de Vico. O fluxo e refluxo das nações é para ele uma ordem fatal, que se deve mais a causas físicas do que a causas morais. Pagano considera o mundo da história como um mundo natural, cujas leis não são diferentes das do mundo físico. "A natureza é uma contínua e ininterrupta passagem da vida à morte e da morte à vida. A geração o a destruição, com ritmo veloz, num perpétuo circuito, sucedem-se sem interrupção. E os componentes que constituem a grande massa do 12 universo unem-se e dissolvem-se numa perene sucessão; o tudo perece, tudo se renova, por meio das diversas catástrofes que corrompem a ordem antiga das coisas e produzem novas formas, que se assemelham inteiramente às velhas, e assim repetem os mesmos tempos" (Ensaios, 1, 3). A decadência e a morte das nações é pois inevitável depois de alcançarem o estádio do máximo florescimento. O maior triunfo da razão é o princípio do fim Qb., i, 4). O homem não tem o poder de afastar as catástrofes que ameaçam a sociedade pela força das coisas. E o motivo é que ele é um ser sensível e que, por isso, está ligado à natureza e à mercê de todos os seus movimentos acidentais. "A função natural da razão é a de dirigir, e não extinguir o sentimento (isto é, a sensibilidade), purificá-lo, e não oprimi-lo. O homem vive tanto como sente. E, dado que as sensações se produzem em nós pela impressão dos objectos exteriores, é o homem, quando sente assim, um ser passivo e escravo das coisas externas de que está rodeado; a sua existência é precária e depende da existência dos objectos exteriores. A cadeia dos acontecimentos acidentais envolve-o e arrasta-o como o torvelinho das ondas faz rodopiar os corpos que nelas flutuam" (1b., VI, 1). Somente pelas suas convicções naturalistas e sensualísticas Pagano adere à tese de Vico sobre o carácter primitivo da poesia. No seu Discurso sobre a origem e natureza da poesia, interpreta o nascimento da poesia a partir das paixões como o efeito da "impressão produzida na máquina pelo objecto" (Discurso, 2); na máquina, isto é corpo hw 13 'mano. E atribui a causas puramente físicas o ressurgir da poesia na idade da razão. "E agora que as
nações são cultas e educadas, e a razão acabou com o império da fantasia, se por uma força de temperamento em ninguém despertar e ressurgir aquele fantástico furor que experimentaram naturalmente as primeiras nações, teremos versificadores o não poetas, cópias e não originais" (lb., 12). § 501. O ILUMINISMO EM MILÃO O outro centro do iluminismo italiano foi Milão, onde uma plêiade de escritores, se reuniu em torno de um periódico, 11 café, que teve vida breve e intensa (1764-65). O jornal, concebido segundo o modelo do Spectador inglês, foi dirigido pelos irmãos Verri, Pedro e Alexandre, e nele colaborou, entre outros, César Beccaria. Alexandre Verri, (1741-1816) foi literato e historiador. Pedro Verri (1728-97) foi filósofo e economista. No seu Discurso sobre a índole do prazer e da dor (1781), Podro Verri sustenta o princípio de que todas as sensações, agradáveis ou dolorosas, dependem, não só da acção imediata dos objectos sobre os órgãos corpóreos, mas também da esperança e do temor. A demonstração desta tese começa por uma análise do prazer e da dor moral reportados a um impulso da alma para o futuro. O prazer do matemático que descobriu um teorema deriva, por exemplo, da esperança dos prazeres que colherá no futuro, da estima e dos benefícios que a sua descoberta lhe trará. A dor causada por uma desgraça é semelhante ao temor das 14 dores e das dificuldades futuras. Ora, como a esperança é para o, homem a probabilidade de viver melhor rio futuro do que no presente, supõe sempre a carência de um bem e é portanto o resultado de um efeito, de uma dor, de um mal (Disc. 3). O prazer moral não é mais do que a rápida cessação da dor e é tanto mais intenso quanto maior for a dor da privação ou da necessidade (lb., 4). Verri estende a sua doutrina também aos prazeres, mostrando que frequentemente o prazer físico não é mais do que a cessação o de uma privação natural ou artificial do homem (Ib., 7). À objecção de que a tese se pode inverter, dado que parece também verosímil que toda a dor consista na rápida cessação do prazer, Verri responde que uma semelhante geração recíproca não pode dar-se, porque "o homem nunca poderia começar a sentir prazer nem dor; de contrário, a primeira das duas sensações deste género seria a primeira hipótese, o que é absurdo" (1b., 6), Verri chega a confirmar a conclusão que Maupertuis (§ 493) extraíra do seu cálculo, e que é a de que a soma total das dores é superior à dos prazeres. De facto, a quantidade do prazer nunca pode ser superior à da dor porque o prazer não é mais do que a cessação da dor. "Mas todas as dores que não terminam rapidamente são uma quantidade de mal que na sensibilidade humana não encontra compensação, e em todos os homens ocorrem sensações dolorosas que cedem lentamente" (1b., 6). Também os prazeres que as belas artes proporcionam têm a mesma origem: o fundamento delas reside naquelas dores que Verri designa por dores inominadas. A
15 arte nada diz aos homens que teMam. de contentamento, mas, em contrapartida, fala aos que se deixam dominar pela dor ou pela tristeza. o magistério da arte consiste sobretudo em "espalhar as belezas consoladoras da arte de modo que exista um intervalo suficiente entre, uma e outra para se poder voltar à sensação do alguma dor inominada, ou em fazer nascer de quando em quando, propositadamente, sensações dolorosas e em acrescentarlhes depois uma ideia risonha, que docemente surpreenda e rapidamente faça cessar a dor" (1b., 8). A conclusão é que "a dor é o princípio motor de todo o género humano". E deste pressuposto parte a outra tese que Verri defende na sua obra Sobre a felicidade. Para o homem é impossível a felicidade pura e constante, e, ao invés, é possível a miséria e a infelicidade. O excesso dos desejos relativamente às nossas capacidades, é a medida da infelicidade. A ausência dos desejos é mais um indício de simples vegetar, do que de viver, ao passo que a violência dos desejos pode ser experimentada por todos e é talvez um estado duradouro. A sabedoria consiste em proporcionar em todos os campos os desejos com as possibilidades, e por isso só pode ser feliz o homem esclarecido e virtuoso. § 502. ILUMINISMO ITALIANO: BECCARIA A obra de César Beccaria. (15 de Março de 1738-28 de Novembro 1794) Dos delitos e das penas (1764) é o único escrito do iluminismo italiano que teve uma repercussão europeia. Traduzido para fran16 cês pelo Abade Morellet e publicado em Paris em 1766, traduzido em seguida nas demais línguas europeias, pode dizer-se que representa o ponto de vista do iluminismo no campo do direito penal. Os princípios de que a obra parte são os de Montesquieu. e de Rousseau. O escopo da vida social é "a máxima felicidade repartida pelo maior número"; fórmula ulteriormente adoptada por Bentham. O estado nasce de um contracto e a única autoridade legitima é a dos magistrados que representam a sociedade unida pelo contracto (Dos delitos, § 3). As leis são as condições do pacto originário e as penas são o motivo sensível para reforçar e garantir a acção das leis. Destes princípios deriva a consequência fundamental, que inspira todo o ensaio. "As penas que ultrapassam a necessidade de manter a conservação da saúde pública, são injustas por sua natureza; e tanto mais justas são as penas quanto mais sagrado e inviolável é a segurança, e maior a liberdade que o soberano reserva para os súbditos" Qb., § 2). Deste ponto de vista nascem os problemas debatidos por Beccaria. Será a morte verdadeiramente uma pena útil e necessária para a segurança o a boa ordem da sociedade? A tortura e os tormentos são justos e atingem o Em que as leis se propõem? As mesmas penas serão igualmente úteis em todos os tempos? Ora, o fim da pena não é outro senão o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e evitar que outros pratiquem danos iguais. É necessário, pois, escolher aquelas penas e o modo de as infligir que, mantendo a proporção com o delito cometido, exerçam uma impressão mais 17 c6caz e duradoura sobre a alma dos homens e sejam menos dolorosas para o corpo do réu (lb., § 15). Mas o réu não é tal antes da sentença do juiz, nem
a sociedade lhe pode tirar a protecção pública antes que se tenha decidido que ele violou os pactos com os quais; ela lhe foi concedida. A tortura é portanto, ilegítima: e é também inútil pois é vão supor que "a dor se torne cadinho da verdade, como se o critério dela residisse nos músculos e nas fibras de um miserável". A tortura é o meio seguro de absolver os criminosos robustos e de condenar os fracos inocentes, é uma questão de temperamento e de cálculo que varia em cada homem consoante a sua robustez e sensibilidade. E coloca o inocente em piores condições do que o réu, que, se resiste à tortura, é declarado inocente, ao passo que ao inocente reconhecido como tal ninguém lhe pode tirar o mal produzido pela tortura (lb., § 12). Quanto à pena de morte, Beccaria pergunta-se que direito é esse que os homens se arrogam, de matar os seus semelhantes? Tal direito não pode provir do contrato social, porque é absurdo que os homens tenham neste contrato conferido aos outros o poder de lhes tirar a própria vida. A pena de morte não é um direito, mas "uma guerra da nação com um cidadão". Justificar-se-ia apenas no caso de ser o verdadeiro e único freio para impedir os homens de praticarem delitos, mas é precisamente isto que Beccaria nega. Não é a intensidade da pena que produz o efeito mais forte sobre a alma humana, mas a extensão dela, porque a nossa sensibilidade é mais fácil e estavelmente movida por mínimas e 18 continuadas impressões do que por um forte mas passageiro impulso. As paixões violentas surpreendem os homens, mas não por muito tempo; por isso, num governo livro e tranquilo, as impressões devem ser mais frequentes do que fortes. "A pena de morte toma-se um espectáculo para a maioria das pessoas e um objecto de compaixão e de desdém para alguns; ambos estes sentimentos dominam mais a alma dos espectadores do que o poderá fazer o salutar terror que a lei pretendo inspirar. Mas nas penas moderadas o contínuas, o sentimento dominante é este último, porque é o único. O limite que o legislador deveria fixar ao rigor das penas parece consistir no sentimento de compaixão, quando este começa a prevalecer sobre qualquer outro na alma dos espectadores de um suplício, mais feito para eles do que para o réu (lb., § 16). Aquele que vê perante si o grande número de anos que há-de passar na escravidão, faz uma comparação útil de tudo isso com a incerteza do êxito dos seus delitos e com a brevidade do tempo que gozaria os frutos do seu crime. Não é necessário que a pena seja terrível; é necessário, isso sim, que ela seja certa e infalível. "A certeza de um castigo, se bem que moderado, produzirá sempre uma impressão mais forte do que um outro mais terrível, aliado à esperança da impunidade" (1b., § 20). Seja como for, a verdadeira medida dos delitos é o mal que causam à sociedade. Não se deve tomar em consideração o intuito, que é diferente de indivíduo para indivíduo e não se presta a entrar nas normas gerais de um código; e tão-pouco a consideração do pecado. O pecado diz 19
respeito à relação entre o homem e Deus, ao passo que a única base da justiça humana é a utilidade comum (1b., § 24). A exigência geral da legislação penal é indicada por Beccaria no fim da obra. "Para que toda a pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão particular, deve ser essencialmente pública, imediata, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcionada aos delitos e ditada pelas leis" (Ib., § 42). Em face do escrito agora examinado, as outras obras de Beccaria têm escasso relevo. Nas Investigações em torno da natureza do estilo (1770) utiliza pressupostos sensualistas. Distingue as ideias principais ou necessárias que asseguram a verdade de um juizo, das ideias acessórias destinadas apenas a aumentar a força e a impressão do mesmo juizo. O estilo consiste na escolha e no uso das ideias acessórias. Tal escolha deve considerar sobretudo o interesse ligado às ideias, isto é, à sua relação com o prazer e com a dor. Beccaria vale-se aqui dos elementos da psicologia de Condillac. § 503. ILUMINISMO ITALIANO: ROMAGNOSI. GiOIA A influência de Condillac é também evidente nos escritores do iluminismo italiano que abordaram o problema gnoseológico. Giovanni Domenico Romagnosi (1761-1835) foi sobretudo um jurista, que seguiu as pisadas de Filangieri e de Beccaria. As questões com que deparou na sua ciência conduziram-no aos problemas gnoseológicos, que procurou resolver no 20 sentido de um empirismo revisto e corrigido (Que é a mente sã?, 1827; Pontos de vista fundamentais sobre a arte da lógica, 1832). Romagnosi não considera possível extrair da sensação todas as faculdades e conhecimentos humanos, como o fez Condillac. Na sensação não vê mais do que uma simples modificação passiva, em relação à qual a percepção Representa já um progresso, porquanto consiste na apropriação activa de um modo determinado e discernível de sentir (Vedute, 1. 6). Nas percepções, na memória e bem assim na dúvida, no juízo e em todos os actos da inteligência actua, segundo Romagnosi, um poder concreto, simples, uniforme, imutável, universal, que ele chama de sentido racional o que constitui a unidade de desenvolvimento do espírito humano desde o sentido e o instinto até à razão inteiramente desenvolvida ou "razão dominante". As funções do sentido racional não são criadas espontaneamente pela alma, mas são sempre estimuladas por uma intuição externa e a ela associadas. Constituem a reacção que o nosso eu pensante opõe à acção das coisas exteriores (Que é a mente sã?, § 10). O sentido lógico é pois um produto natural e as suas leis são leis naturais, semelhantes às que determinam a acção de um espelho reflector (1b., § 10). A lei fundamental da inteligência é a que estabelece a relação entre a acção do objecto e a reacção analítica do sentido lógico, relação da qual nasce a percepção do ser e da acção das coisas (b., § 12). É fácil notar o carácter naturalista e determinista desta concepção gnoseológica. Aliás, naturalismo e 21
determinismo dominam, também as concepções morais e políticas de Romagnosi. A sociedade vive e desenvolve-se segundo leis naturais e através de fases constantes, precisamente como o indivíduo. A moralidade é o conjunto das condições necessárias para que o homem viva em sociedade e persiga de harmonia com a sociedade os seus fins naturais que são a conservação, a felicidade e o aperfeiçoamento. Conquanto Romagnosi tenha conhecido (e criticado mal) a doutrina de Kant, a sua doutrina ainda está ligada à orientação sensualista do iluminismo francês. Uma variante análoga do sensualismo de Condillac patenteia-se nas obras filosóficas (Elementos de filosofia, 1818; Ideologia, 1882) de Melchiorre Gioia (1767-1828), mais benemérito pelos seus estudos sobre estatística o pela defesa que fez da utilidade desta ciência para fins sociais. Gioia combate a tese de que os fenómenos da consciência dependam apenas da acção dos sentidos. Se assim fosse, a inteligência deveria ser proporcionada à intensidade das sensações, ao passo que a experiência nos mostra que esta não aumenta, mas sim, diminui, a energia das faculdades intelectuais. Uma força independente dos sentidos é necessária, não só para decompor, isto é, para considerar separadamente as qualidades dos corpos e descobrir as suas relações, mas também para decompor, isto é, para dar lugar a produtos que não existem na natureza. Da mesma forma que não se pode confundir a madeira com o machado que a corta, também não se pode confundir a força 22 intelectual com o material que os sentidos oferecem ao hornem (Ideologia, ed. 1822, 11, p. 175 sgs.). Deve recordar-se, uma vez que os seus manuais introduziram nas escolas italianas a fil, osofia de Locke e de Condillac, o Padre Francisco Soave, (1743-1816), professor da Universidade de Parma, quepermaneceu sempre, fiel à filosofia de Condillac, que elo conheceu durante a estadia do filósofo francês na corte de Parma. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 500. Giannone, opere, Milão (Clássicos italianos), 1823.-Nicohni, Gli scritti e Ia fortuna li P. G., Bari, ID., Le teorie politiche di P. G., Nápoles, 1915. Gãliani, Della moneta, ed. Nicolini, Bari, 1915; Correspondance, ed. Perey e Maugras, 2 vol., Paris 1881; 11 pen~ro dellIab. G., ant. -a cargo de Nicolini, Bari, 1909. Genovesi, Sul vero fine delle lettere e delle scienze, 1753; De jure et officiis, 1764 (além das ob. ctt. no texto). Fil-angieri, Seienza della legislazione, ed. P. VillIari, 2 vol., Florença, 1864. - S. COTTA, G. F. e il problema della legge, Turim, 1954. Pagano, Saggi politici, reimp., Calpolago, 1837; ed. Colletti, Wonha, 1936. § 501. Pietro Verri, Op. filos, e di econ. politica, 4 vol., Milão, 1818; Opere varie, ao cuidado de N. VaJeri, vol. I, Florença, 1947. -
OTTOLINI, P. V. e suoi tempi, Palermo, 1921; N. VALERI, P. V., Milão, 1937. § 502. Beccaria, Opere, 2 vol,. Milão (Clássicos ital,ianos), 1821; Seritii e lettere inedite, Milão, 1910; Opere seelte, ed. Mondolfo, Wonha, 1924. DE RuGGIERO, Il pensiero político meridionale nei sec. XVIII e XIX, Bari, 1922. 23 § 503. Romagnosi, Opere, ed. Marzucchi, 19 vGI., Florença, 1832-39; ed. De Giorgi, 8 vol. Milão, 1841-52. -A. NORSA, II pens. filos, di G. D. R., Milão, 1930; CABOARA, La ftl. del diritto di G. D. R. Città di Castello, 1930; SOLARI, in "Riv. di Filos". 1932. Gioia, Del merito e delle ricompenze, 1818; Esercizio logico sugli errori di ideologia e di zoologia, 1823; Filosofia della statistica, 1822. Soave, Elementi di filos.; Istruzioni di logica, metalisica ed etica, Milão, 1831. G. CAPONE BRAGA; La fil. franc. e it. del 700, cit.. 24 XIV O ILUMINISMO ALEMÃO § 504. ILUMINISMO ALEMÃO: WOLFF o iluminismo alemão deve a sua originalidade, relativamente ao inglês e ao francês, mais do que a novos problemas ou temas especulativos, à forma lógica com que apresenta e trata tais temas e problemas. O ideal de uma razão que tem o direito de atacar, com as suas dúvidas e os seus problemas, o mundo inteiro da realidade, é transformado pelo iluminismo alemão num método de análise racional, a um tempo cauteloso e decidido, que avança demonstrando a legitimidade de cada passo e a possibilidade intrínseca dos conceitos de que se serve, o seu fundamento (Grund). É este o método da fundamentação que devia ser característico da filosofia alemã posterior e que alcançou o seu grande triunfo na obra de Kant. O fundador deste método 25 foi Wolff que, sob este aspecto, é o máximo representante do Iluminismo alemão. As obras de Wolff, tão escrupulosas e pedantes na sua construção sistemática, contrastam de maneira estranha com o carácter inspirado, genial e divertido dos escritos dos maiores iluministas ingleses e franceses. Mas a exigência iluminista concretiza-se e incorpora-se precisamente na forma dessas obras, pois se trata do objectivo de uma razão que pretende justificar-se por si e reencontrar em si própria, isto é, no próprio procedimento analítico, o fundamento da sua validez. Christian Wolff nasceu em Breslau a 24 de Janeiro de 1679. Nomeado professor em Halle em 1706, foi destituído em 1723,pelo rei Frederico Guilherme 1 a pedido dos seus colegas pietistas, Francke e Lange. O pietismo era uma corrente protestante, fundada em
fins de 1600 por Ph. J. Spencer (1635-1705), que insistia no carácter prático e místico do cristianismo e combatia as tendências intelectualistas e teológicas. O que escandalizou especialmente os colegas de Wolff foi o seu Discurso sobre a filosofia prática dos Chineses, na qual, à maneira dos iluministas franceses, punha Confucio entre os profetas, ao lado de Cristo. Subido ao trono Frederico H, Wolff foi restabelecido na sua cátedra de Halle (1740), onde ensinou até à sua morte (1754). A obra de Wolff exerceu sobre toda a cultura alemã uma influência extraordinária. Num primeiro período, escreveu em alemão; posteriormente, em latim, pois queria falar como "preceptor de todo o género humano". Na realidade, a sua eficácia mais durável foi a que demonstrou no domínio da 26 linguagem filosófica. Grande parte da terminologia filosófica, dos séculos XVIII e XIX e da que ainda hoje está em uso sofreu a influência das definições e das distinções wolfianas. As obras alemãs de Wolff são as seguintes: Pensamentos racionais sobre as forças do entendimento humano (1712); Pensamentos racionais sobre Deus, o mundo e a alma dos homens (1719); Pensamentos racionais sobre a acção humana (1720); Pensamentos racionais sobre a vida social dos homens (1721); Pensamentos racionais sobre as operações da natureZa1723); Pensamentos racionais sobre a finalidade das coisas naturais (1724); Pensamentos racionais sobre as partes dos animais, dos animais e das plantas (1725). As suas obras latinas são: Philosophia rationalis sive Logica (1728); Philosophia prima sive Ontologia (1729); Cosmologia generalis (1731); Psychologia empirica (1723); Psychologia racionalis (1734); Theologia naturalis (1736-37); Philosophia practica universalis (173839); Jus naturae (1740-48); lus gentium (1749); Philosophia moralis (1750-53). O objectivo final da filosofia é, segundo Wolff, iluminar o espírito humano de modo a tornar possível ao homem o uso da actividade intelectual na qual consiste a sua felicidade. A filosofia tem, portanto, uma finalidade prática, que é a felicidade humana; mas só se pode atingir esta finalidade através de um conhecimento claro e distinto. Tal objectivo não poderá ser atingido se não existir a "liberdade filosófica" que consiste na possibilidade de manifestar publicamente o que se pensa sobre as questões filosóficas (Lógica, § 151). Sem liberdade filosófica, 27 não é possível o progresso do saber, já que então "cada um é obrigado a defender como verdadeiras as opiniões comummente transmitidas, mesmo se lhes parecem falsas" (1b., § 169). Wolff aceita e perfilha, a exigência iluminista da liberdade e interpreta-a como libertação da tradição. A filosofia é "a ciência das coisas possíveis enquanto tais" assim como das "razões pelas quais as coisas possíveis se realizam", entendendo-se por "possível" o que não implica contradição. As regras do método filosófico devem pois ser idênticas, segundo Wolff, às do método matemático. "No método filosófico, diz Wolff, não há necessidade de fazer uso de termos que não se tenham tornado claros através de uma definição exacta, nem se pode admitir como verdadeiro algo que não tenha sido suficientemente demonstrado; nas proposições, cumpro determinar com igual cuidado o sujeito e o predicado e tudo deve ser ordenado de modo a que sejam premissas aquelas coisas em virtude das quais as seguintes são compreendidas e justificadas" (lb., § 139).
Wolff divide a filosofia em conformidade com as actividades fundamentais do espírito humano e, uma vez que tais actividades são substancialmente duas, o conhecer e o querer, assim os dois ramos fundamentais da filosofia são a filosofia teorética ou metafísica e a filosofia prática. Ambas pressupõem a lógica como sua propedêutica. A metafísica dividese, por sua vez, nos seguintes ramos: ontologia, que concerne a todos os objectos em geral, enquanto existem; psicologia, que tem por objecto a alma, cosmologia, que tem por objecto o 28 mundo e teologia racional, que tem por objecto a existência e os atributos de Deus. Na lógica, Wolff considera como princípio supremo o princípio de contradição, que não é apenas uma lei do pensamento mas também de todo o objecto possível. Em conformidade com o princípio de contradição, os conceitos podem ser utilizados só nos limites do que contêm e os juízos só são verdadeiros na medida em que fazem a análise dos seus sujeitos. Wolff não exclui no entanto a experiência, que nas ciências naturais se deve aliar ao raciocínio e que mesmo nas ciências racionais deve ser utilizada para formar as definições empíricas das coisas. Contudo, sobre tais definições podem-se fundamentar apenas demonstrações prováveis, não necessárias; e tais demonstrações assumem na obra de Wolff uma grande importância. A par das proposições necessárias, cujo contrário é impossível, Wolff coloca as proposições contingentes (as verdades de facto de Leibniz) cuja negação não implica contradição. A ontologia, ou filosofia prima, é a ciência do ser em geral, isto é, do ente enquanto é. O seu objecto é o de demonstrar as determinações que pertencem a todos os entes, seja absolutamente, seja sob determinadas condições (Ontologia, § 8). Baseia-se em dois princípios fundamentais que são o princípio de contradição e o princípio de razão suficiente: por razão suficiente entende-se "aquilo que nos faz compreender a razão por que algo acontece" (1b., § 56). Com algumas modificações que a actualizam, encontra lugar no tratado de Wolff toda 29 a metafisica arístotélico-escolástica, que ele de facto declara querer resgatar do desprezo que se lhe votou depois de Descartes. Isto quer dizer que os conceitos; centrais da ontologia são para ele os de substância e de causa. Todavia, pode notar-se a tentativa de apoiá-los numa certa base empírica. Assim Wolff afirma que as determinações de uma coisa que não resultam de outra e não derivam uma da outra constituem a essência da coisa mesma (1b., §§ 143, 144). A substância é o sujeito, duradouro e modificável, dos atributos essenciais e dos modos variáveis de tais atributos (lb., § 770). Toda a substância é dotada de uma força que produz as mudanças dela: mudanças que são as suas acções e têm o seu fundamento na essência da substância (1b., § 776). Na cosmologia, Wolff considera o mundo como um relógio ou máquina em que nada
sucede por acaso e que por isso depende de uma ordem necessária. Dado que esta ordem necessária foi produzida por Deus e é, portanto, perfeita, é impossível que Deus mesmo intervenha para a suspender ou mudar, assim o milagre é posto de parte. Wolff divide a psicologia em empírica e racional. A primeira considera a alma tal como ela se manifesta no corpo e emprega o método experimental das ciências naturais. A segunda considera a alma humana em geral, elimina, segundo o procedimento cartesiano do cogito, a dúvida sobre a existência da alma mesma e estuda as duas faculdades fundamentais, o conhecer e o agir. Wolff exclui a redução da substância corporal à substância espiritual, operada por Leibniz mediante o conceito de mónada. A alma 30 não está desde o princípio unida ao corpo, mas foi. lhe agregada de fora, ou seja, por Deus. Sobre as relações entre alma e corpo, Wolff admite a doutrina da harmonia preestabelecida, mas torna-a independente da vontade de Deus admitindo que cada alma vê o mundo apenas dentro dos limites dos seus órgãos corporais e segundo as mutações que se verificam na sua sensibilidade. Na teologia, que Wolff chama natural (ou racional, contrapondo-a à fundada sobre a revelação sobrenatural, Wolff dá o máximo valor ao argumento cosmológico da existência de Deus, aceita o ontológico, e exclui o teológico. Na realidade, a ordem do mundo é para ele a ordem de uma máquina e a finalidade das coisas não é intrínseca às coisas mesmas, mas sim extrínseca e devida à acção de Deus. Wolff remonta aos atributos da essência divina mediante uma reflexão sobre a alma humana. E quanto aos problemas da teodiceia, serve-se sistematicamente das soluções de Leibniz. Na filosofia prática mantém-se a divisão aristotélica de ética, economia e política. A sua ética, completamente diversa da de Leibniz, é deduzida do seu racionalismo. As normas da ética teriam valor mesmo que Deus não existisse, porque o bem é bem por si mesmo, e não pelo querer de Deus. Tais normas deduzem-se do Em mesmo do homem, que é a perfeição, e reduzem-se a uma única máxima: "Faz o que contribui para a tua perfeição, a da tua condição e do teu próximo, e não faças o contrário". Para a perfeição do homem contribui tudo o que é conforme à sua natureza, e por isso também o 31 prazer que Wolff define como a percepção de uma real ou suposta perfeição. O conceito da perfeição funda-se no pressuposto da possibilidade do progresso do homem individual e da sociedade: progresso que Wolff de facto considera necessário e que se realizará à medida que a sociedade se organizar de modo a tornar possível que cada um dos seus membros trabalhe para o aperfeiçoamento dos outros. . O sistema de Wolff costuma ser designado como leibniziano-wolffiano. Na realidade, apresenta características, bastante distintas do de Leibniz. Em primeiro lugar, nega o conceito de mónada, como substância espiritual que constitui tanto a matéria como o espírito; deste modo, abandona-se o conceito dominante de Leibniz, o de uma ordem universal e livre, fundada na 'escolha do melhor. A ordem do mundo é para Wolff a de uma máquina, sendo por isso necessária e não admitindo liberdade de escolha. Daí deriva ainda uma terceira diferença que é a negação da finalidade interna das coisas: estas são, decerto, úteis, porque se prestam a ser utilizadas para o aperfeiçoamento do homem, mas não estão intrinsecamente constituídas para tal fim. Neste ponto está bastante mais próximo de um
Diderot ou de um Voltaire do que de um Leibmiz. Mas também se afasta , de Leibniz pela renúncia em estabelecer um acordo entre a filosofia e a religião revelada, acordo que Leibniz procurou por todos os meios realizar, conformemente ao seu princípio de harmonia universal. No sistema de Wolff só existem dois pontos verdadeiramente leibnizianos: 1.o a doutrina da harmonia universal, que, no entanto, se limita à 32 WOLFF relação entre alma e corpo e é interpretada naturalisticamente; 2.a as justificações da teodiceia. O espírito do iluminismo prevalece na doutrina de Wolff sobre a inspiração leibniziana. § 505. PRECURSORES DO ILUMINISMO ALEMÃO Podem considerar-se precursores do Iluminismo alguns pensadores contemporâneos de Leibniz que preanunciam alguns dos temas desse movimento Assim o holandês Walther de Tschirnhaus (1651 _1708), que foi matemático e físico, além de autor de um livro de lógica intitulado Medicina mentis sive artis inveniendi praecepta generalia (1687). Este livro pretende ser uma espécie de introdução à investigação científica e prescreve as regras que ela deve seguir. A origem de todos os conhecimentos é a experiência, mas a experiência entendida no sentido característico, como consciência interior. Esta revela-nos quatro factos fundamentais que podem servir para a descoberta de todo o saber: 1.* Somos conscientes de nós mesmos como de uma realidade distinta, este, facto, que nos conduz ao conceito do espírito, é o fundamento de todo o conhecimento. 2.' Temos consciência de que somos movidos por algumas coisas que nos interessam e por outras que não nos interessam. Deste facto deduzimos os conceitos de vontade, conhecimento, bem e mal, e, por. consciência de poder compreender algumas coisas e,. por consequência, o fundamento da ética. 3.O Temos, 33 consciência de poder compreender algumas coisas t não poder compreender outras. Mediante este facto alcançamos o conceito de entendimento, a distinção entre o verdadeiro e o falso, e, portanto, o fundamento das ciências racionais. 4.' Sabemos que, através dos sentidos, a imaginação e o sentimento formam uma imagem dos objectos externos. Neste facto @c fundam o conceito dos corpos e as ciências naturais. Tschirnhaus está convencido de que estes factos da experiência interior, se forem adoptados como princípios gerais de dedução e desenvolvidos sistematicamente, podem conduzir à aquisição de um método útil à verdade em todas as ciências. Por outras palavras, partilha o ideal de uma ciência universal, tal como o entendia Leibniz, com o qual manteve relações pessoais. No campo da filosofia do direito é notável a obra de Samuel Pufendorf (1632-94), De iure naturae et gentium libri octo (1672), que é a justificação do absolutismo esclarecido. O direito natural nasce, segundo Pufendorf, em primeiro lugar do amor-próprio que compele o homem à sua conservação e ao seu bemestar; e, segundo lugar, do estado de indigência a que a natureza reduz o homem. Uma vez que o homem é por natureza um ser racional, o direito natural é a resposta que a razão
humana dá ao problema posto ao homem pelo amor-próprio e pela inteligência: e o seu princípio pode ser formulado da seguinte maneira. "Cada qual, na medida das suas possibilidades, deve promover e manter com os seus semelhantes um estado pacífico de socialismo, 34 conforme em geral à índole e finalidade do género humano (De iure, H, 3, 10). Consequentemente, devem considerar-se impostas pelo direito natural todas as acções necessárias para promover tal sociabilidade e proibidas as que a estorvam ou a dissolvam. Pela necessidade da sociabilidade é o homem conduzido a estabelecer convenções o pactos de que nascem em primeiro, lugar a propriedade e o Estado e, em seguida, os sucessivos desenvolvimentos e as sucessivas determinações destas duas instituições fundamentais. Nas ideias de Pufendorf se inspira outro jusnaturalista, Christian Thomas (Thomas ius) (1655-1728), autor dos Fundamenta iuris naturae et gentium ex sensu communí deducta (1705). Nesta obra Thomasius vê os fundamentos da vida moral e social na própria natureza humana e, precisamente, nas suas três tendências fundamentais; a de viver o maior número de anos o do modo mais feliz possível, a de evitar a morte o a dor, e a tendência à propriedade e ao domínio. Sobre estas três tendências se fundam respectivamente o direito, a política e a ética. O direito, fundado na primeira tendência, visa à conservação de uma ordem pacífica entre os homem. A política, fundada na segunda tendência, visa a promover esta ordem pacífica por meio de acções que visem esse fim. A ética, fundada na terceira tendência, visa à aquisição da paz interior dos indivíduos. Em Thomasius patenteiam-se já as tendências iluministas. Ele afirma resolutamente que a filosofia se funda na razão e tem como escopo Somente o 35 bem-estar terreno dos homens, enquanto a teologia, que se funda na revelação, visa ao bem-estar celeste. Ademais, vê-se claramente no seu pensamento a independência da esfera do direito em relação à esfera teológica. § 506. O ILUMINISMO WOLFFIANO Depois de Wolf, os problemas filosóficos foram tratados na Alemanha de uma maneira mais ou menos conforme com as soluções que este filósofo lhe dera, mas sempre conformemente ao método que elo empregara. A filosofia wolffiana dominou durante largo tempo nas universidades germânicas; mas não muitos dos seus representantes conservaram um autêntico interesse histórico. Entre os menos servis adeptos de Wolff conta-se Martin Knutzen (1713-51) que foi professor em Conisberga e mestre de Kant. É autor de um Systema causarum efficientium, no qual substitui a doutrina do influxo físico entre os corpos pela da harmonia preestabelecida, clarificando e levando ao seu termo uma tendência que era já evidente no sistema de Wolff. Entre os adversários de Wolff, o mais notável é Christian August Crusius (1715-75). No seu Esquema das verdades de razões necessárias (1745) Crusius combate o optimismo e o determinismo. Nega que o mundo seja o melhor de todos os mundos possíveis e que nele domine uma ordem necessária (como queria Wolff) ou uma harmonia preestabelecida
(como queria Leibniz). Crusius critica também, noutro 36 escrito, o princípio de razão suficiente, ao qual contrapõe como lei fundamental do pensamento que o que não pode ser pensado é falso e o que não pode ser pensado como falso é verdadeiro. Maior relevo tem a personalidade de João Henrique Lambert (1728-77), que manteve com Kant uma importante correspondência e que, além de filósofo, foi matemático e astrónomo. A sua primeira obra filosófica é o Novo órgão (1764), dividido em quatro partes. A primeira, Dianoiologia, estuda as leis formais do pensamento; a segunda, Aletiologia, estuda os elementos simples do conhecimento; a terceira, Semiótica, aborda as relações das expressões linguísticas com o pensamento; e a quarta, Fenomenologia, as fontes dos erros. Enquanto a dianoiologia reproduz substancialmente a lógica formal de Wolff, a aletiologia é a parte mais original da obra de Lambert. Esta parte é uma espécie de análise dos conceitos, que tem por fim chegar aos conceitos mais simples e indefiníveis. Os conceitos simples são por natureza não contraditórios, porquanto carecem de multiplicidade interna. A sua possibilidade consiste, portanto, na sua imediata "pensabilidade". Só são conhecidos através da experiência, mas são independentes dela porque a sua possibilidade não é empírica, e neste sentido são a priori. Aos conceitos simples pertencem: solidez, existência, duração, extensão, força, consciência, vontade, mobilidade, unidade, e bem assim as qualidades sensíveis, luzes, cores, sons, ete. O problema que nasce do reconhecimento dos conceitos simples é o da sua possível combinação. Assim como a geometria, combinando 37 os pontos, as linhas, as figuras, constitui todo o seu sistema, também deve ser possível construir, mediante a combinação dos conceitos simples, todo e qualquer sistema de conhecimento. Bastará encontrar os princípios e os postulados que exprimem (como acontece na geometria) as relações existentes entre os elementos simples. O conjunto destes postulados constituiria o que Lambert chama o "reino da verdade" a que pertenceriam a aritmética, a geometria, a cronometría, a foronomia (doutrina das leis do movimento), e todas as ciências possíveis. A Semiótica, terceira parte do Novo órgão, é a investigação das condições que tornam possível exprimir por palavras e sinais o reino da verdade. A outra obra de Lambert, Arquitectónica ou teoria dos elementos simples e primitivos no conhecimento filosófico e matemático (1771), apresenta um problema que foi na mesma altura tratado por Kant: o da passagem do mundo do possível ao mundo real, do que é simplesmente pensável, enquanto isento de contradição, ao que existe. Lambert observa que se o problema da lógica é o de distinguir o verdadeiro do falso, o problema da metafisica. é o de distinguir a verdade do sonho. Ora, o que é pensável, não existe necessariamente. A metafisica deve juntar à demonstração da pensabilidade, a demonstração da existência real, sem a qual se reduz a um sonho (Arquit., § 43). Ora, os elementos objectivos do saber só podem ser procurados, segundo Lambert, "nos sólidos e nas forças" pois só eles constituem "algo categoricamente [real" e só eles, portanto, podem constituir a base de um juízo sobre a existência 38 (1b., § 297). Porém, as forças não se deixam alcançar e aprisionar pela pura lógica, mas tão-só pela sensibilidade (1b., § 374), de maneira que só a experiência pode conferir o
carácter de (realidade aos nossos conhecimentos. Ora, a experiência dá-nos apenas confirmações parciais dos sistemas cognitivos que constituem o reino da verdade. Isto não implica a garantia de uma correspondência constante entre este reino e a realidade mesma. Tal garantia, segundo Lambert, só Deus a pode dar. "0 reino da verdade lógica, sem a verdade metafísica que se radica nas coisas mesmas, seria um puro sonho, e sem a existência de um suppositum intelligens, não só seria um s,3nho, como não existiria de facto. Assim se chega ao princípio de que há uma verdade necessária, eterna e imutável, do qual se infere que deve haver um terno e imutável suppositum intelligens e que o objecto desta verdade, isto é, o sólido e a força, têm uma necessária possibilidade de existir" (1b., § 29). Deus é, assim, a garantia de toda a verdade: só ele garante a relação entre o mundo lógico e o mundo real, e, por consequência, a objectividade real do pensamento. Apesar da garantia metafísica a que Lambert recorre, a sua doutrina é um claro apelo à experiência como fundamento de todo o conhecimento válido. E igualmente apelam para a experiência as investigações psicológicas de João Nicolau Tetens (1736-1807). A obra principal de Tetens intitula-se Investigação filosófica sobre a natureza humana e o seu desenvolvimento (1776-77), e é dominada pela necessidade de conciliar o ponto de vista do empirismo 39 inglês, que reduzira a vida psíquica ao conjunto dos elementos empíricos, com o ponto de vista de Leibniz que insistira no seu carácter activo e dinâmico. Esta preocupação condu-lo bastante próximo da solução que Kant dará ao problema: o reconhecimento de funções a priori que dominam e formam a matéria sensível. Com efeito, Tetens considera as representações originárias como a matéria das representações derivadas. A alma tem o poder de escolhê-las, de as dividir e separar umas das outras para depois de novo misturar, punir e compor os fragmentos e as partes assim obtidas. Esta capacidade activa revela-se sobretudo no poder criativo da poesia, que é semelhante à força criadora da natureza corpórea que, embora não crie novos elementos, produz sempre novos corpos mediante a mistura das partículas elementares da matéria mesma (Philow. Vers., 11, 1, 24). As análises empíricas daqueles que Tetens chama "novos investigadores", como Locke e Condillac, Bonnet e Hume, não podem explicar as funções do espírito, aquelas que dão origem, por exemplo, à poesia e à geometria, nas quais há algo que transcende o puro dado da experiência. Os princípios da ciência natural, como o da inércia, da igualdade entre acção e reacção, e todos os outros, têm uma certeza que não procede da observação dos factos empíricos dos quais foram extraídos. "Existem sem dúvida sensações que proporcionam a descoberta de tais princípios, mas estes só se alcançam através de um raciocínio, de uma actividade autónoma do entendimento, pela qual foi produzida cada (relação de ideias... Estes pensamentos universais são pensamen40 tos verdadeiros, anteriores a toda a experiência. Não os apreendemos através da abstracção nem é possível que um exercício repetido amiúde haja ocasionado tais conexões de ideias" (1b., 11, 1, p. 320 sgs.). Os empiristas ingleses e franceses consideraram sobretudo os produtos mais simples do espírito; Tetens considera, pelo contrário, os mais elevados. A geometria, a óptica, a astronomia, estas obras do espírito humano, estas indubitáveis provas da sua grandeza, são conhecimentos sólidos e reais. Com que regra fundamental construiu a razão humana estes prodigiosos edifícios? Onde pode encontrar-
se o terreno o como podem sair de simples experiências, as ideias e os princípios fundamentais que constituem os fundamentos indestrutíveis de obras tão altas? É precisamente aqui que se deve demonstrar na sua máxima energia a força do pensamento (Ib., 11, 1, p. 427 sgs.). O problema é aqui equacionado nos mesmos termos em que será retomado por Kant na Crítica da razão pura. Tetens conduziu-o até ao ponto em que era possível no plano da pura análise empirista, no qual se movia. Kant, retomando-o, levá4o-á ao plano da análise transcendental. Mas já na análise de Tetens começam a delinear-se "o encontro e os Emites do entendimento humano". Poderá ser o entendimento, humano a norma da realidade em geral? "Poderemos porventura afirmar que outras Mações universais objectivas não são pensáveis por outros espíritos, dos quais não temos ideia alguma como não a temos de um sexto sentido e da quarta dimensão?" (1b., 11, 1, p. 328 sgs.). A pergunta de Tetens implica já uma resposta negativa; e desta 41 resposta negativa parte Kant para estabelecer a sua distinção entre fenómeno e númeno. § 507. ILUMINISMO ALEMÃO: BAUMGARTEN O mais notável dos seguidores de Wolff foi Alexander Gottfried Baumgarten (1714-62), autor de uma Metaphysica (1739) que compendia. em 1.000 parágrafos a filosofia wolffiana e foi adoptado por Kant como manual para as suas lições universitárias. Mas a sua fama é devida sobretudo à Aesthetica (1750-58), que o converteu no fundador da estética germânica e num dos mais eminentes representantes da estética do século XVIII. O próprio termo de estética foi introduzido por Baumgarten. A metafísica é definida por Baumgarten como a "ciência das qualidades das coisas, cognoscíveis sem a fé". Antepõe à metafísica a teoria do conhecimento que ele foi o primeiro a designar pelo termo de gnoseologia. Esta divide-se em duas partes fundamentais: a estética, que tem por objecto o conhecimento sensível, e a lógica, que trata do conhecimento intelectual. A originalidade de Baumgarten reside no relevo que ele deu ao conhecimento sensível, o qual não é por ele considerado Somente como grau preparatório e subordinado do conhecimento intelectual, mas também, e sobretudo, como dotado de um valor intrínseco, diverso e independente do do conhecimento lógico. Este valor intrínseco é o valor poético. Os resultados fundamentais da estética de Baumgarten são substancialmente dois: ].' O reconhecimento do 42 valor autónomo da poesia e, em geral, da actividade estética, isto é, de um valor que não se reduz à verdade que é própria do conhecimento lógico. 2.' O reconhecimento do valor de uma atitude ou de uma actividade humana que era considerada inferior e, portanto, a possibilidade de uma mais completa valoração do homem na sua totalidade. Foi devido a este segundo ponto que Baumgarten se tomou num dos mais notáveis representantes do espírito do Iluminismo. A estética é definida por Baumgarten como a "ciência do conhecimento sensível" e é também considerada como "teoria das artes
liberais, gnoseologia inferior, arte de bem pensar, arte do análogo da razão, Aest., § 1). O fim da estética é "a perfeição do conhecimento sensível enquanto tal" e esta perfeição é a beleza (Ib., § 14). Por isso não pertencem ao domínio da estética, quer aquelas perfeições do conhecimento sensível que estão tão ocultas que permanecem sempre obscuras para nós, quer as que não podemos conhecer senão por meio do entendimento. O domínio da estética tem um limite inferior representado pelo conhecimento sensível obscuro e um limite superior representado pelo conhecimento lógico distinto; a ele pertencem apenas as representações claras mas confusas. A beleza, como perfeição do conhecimento sensível, é universal, mas de uma universalidade diversa do conhecimento lógico, porque abstrai da ordem e dos sinais e realiza uma forma de unificação puramente fenoménica. A beleza das coisas e dos pensamentos é distinta da beleza da consciência e da beleza dos objectos e da matéria. As coisas feias podem ser pensadas 43 de uma maneira bela e as coisas belas podem ser pensadas de uma maneira feia (1b., § 18). Baumgarten crê que a facúndia, a grandeza, a verdade, a clareza, a certeza e, numa palavra, a vida do conhecimento, podem contribuir para formar a beleza desde que se reunam numa única percepção fenoménica e sejam, por assim dizer, presentes e vivas no seu conjunto (1b., § 22). Neste sentido, o conhecimento estético é um "análogo da razão; assim, não devem ser-lhe necessariamente estranhos os caracteres que são próprios do conhecimento racional; mas, para constituir uma obra de beleza, estes caracteres devem estar presentes em sua vida total e serem, precisamente na sua totalidade, intuídos como um fenómeno. Requer-se para isso uma disposição natural, com que se nasce, e que só pelo exercício se pode desenvolver e manter, disposição que Baumgarten chama engenho beloconatural (ingetdum venustum connatum, § 29). Requer-se outrossim, para se obter um feliz carácter estético, o ímpeto estético, isto é, a inspiração ou o entusiasmo (1b., § 78); e, além disso, a disciplina da investigação e do estudo (Ib., § 97). Estas determinações esclarecem * que Baumgarten pretende dizer quando define * beleza como o fim do conhecimento sensível. Enquanto no domínio da investigação científica o elemento sensível é o ensejo ou o meio para atingir o conceito, na estética o elemento sensível é ele mesmo o fim da investigação que tende a individuá-lo e a aperfeiçoá-lo no seu puro valor fenoménico. O principio de que a beleza é determinada pela atitude mediante a qual a aparência 44 se converte no verdadeiro fim de si própria, iria inspirar e dirigir a Crítica do Juízo de Kant. Mas ao mesmo tempo este princípio permite conferir, conformemente ao espírito do iluminismo, uma nova dignidade a aspectos da vida humana que, na época precedente, estavam condenados a uma irremediável inferioridade. Alguns críticos da época, e outros mais recentes, tinham chegado a acusar Baumgarten de ter relegado a faculdade do belo para o domínio das faculdades inferiores, pelo que quase não valia a pena desejá-la; e um historiador da estética alemã, Lotze, afirmou que "a estética alemã começa com o manifesto desprezo pela sua própria matéria". Na realidade, porém, Baumgarten respondeu antecipadamente a tais objecções. No prefácio do seu primeiro ensaio, Meditações filosóficas sobre argumentos
concernentes à poesia (1735), defendera a dignidade e o valor das suas investigações sobre um tema "por muitos considerado ligeiro e muito pouco próprio do engenho de um filósofo". Mas nos "Prolegómenos" da Estética a sua defesa converte-se na defesa de uma parte ou de um aspecto fundamental do homem ao afirmar decididamente que "o filósofo é um homem entre os homens e não pode crer verdadeiramente que uma parte tão grande do conhecimento humano lhe seja estranha" (1b., § 6). Ã objecção de que o conhecimento distinto (isto é, racional) é superior ao estético, responde que " num espírito finito isso é verdadeiro apenas nas coisas de maior importância (lb., § 8); e à observação de que as faculdades inferiores devem ser antes dominadas que estimuladas e 45 fortalecidas, contrapõe ele que "se requer domínio sobre as faculdades, mas não a tirania" (Ib., § 12). Desta maneira, a defesa da estética como ciência autónoma coincide, na obra de Baumgarten, com a defesa da dignidade e do valor de uma atitude humana fundamental. § 508. ILUMINISMO ALEMÃO: O ILUMINISMO RELIGIOSO O carácter peculiar do Iluminismo alemão, conforme se apresenta em Wolff e nos filósofos wolffianos (incluído Baumgarten), para. os quais a razão se identifica com o método analítico da fundamentação, é explicado algumas vezes como resultante do carácter alemão. Esta é uma explicação digna da metafísica escolástica, porquanto recorre a uma qualidade oculta. Ademais, é uma explicação falsa no terreno dos factos, porque o iluminismo alemão encontrou também expressão numa literatura ágil e popular, semelhante à francesa. E esta literatura não tem menos valor do que a outra, dado que entre os seus cultores figura Lessing. Esta segunda corrente do iluminismo alemão discutiu principalmente o problema religioso e, tal corno as expressões análogas do iluminismo inglês e francês, está dominada pelo deísmo, que encontrou alguns dos seus defensores entre os próprios pietistas. O primeiro defensor declarado do deísmo foi Hermann Samuel Reimarus (1694-1678), autor de um Tratado das principais verdades da religião natural (1754), cuja tese fundamental é a de que 46 o único milagre de Deus é a criação. São impossíveis ulteriores milagres porque seriam correcções ou mutações de uma obra que, por ter saído das mãos de Deus, deve considerar-se perfeita. Deus não pode querer senão a imutável conservação do mundo na sua totalidade. Se os milagres são impossíveis, também é impossível uma revelação sobrenatural que seria ela mesma um milagre. E conquanto a religião não deva ser negada, deve fundar-se unicamente no conhecimento natural. A religião natural deve cortar as pontes com a religião revelada porque a verdade não deve contemporizar com o erro e a verdade está só do lado da religião natural. Na sua Defesa ou apologia de um racional adorador de Deus e noutros escritos e fragmentos publicados postumamente, Reimarus extraji e defende todas as consequências do deísmo com um vigor que nada fica a dever aos seus colegas ingleses e franceses e ainda com maior rigor lógico do que eles.
Afirma explicitamente a falsidade de toda a revelação, incluída a do Velho e do Novo Testamento. "Só a religião natural é verdadeira, ora, a religião bíblica está em contradição com a religião natural; portanto, é falsa". Com este simples silogismo Reimarus rejeita em bloco to-do o ensino da tradição. "Só o livro da natureza, criação de Deus, é o espelho no qual todos os homens, cultos ou incultos, bárbaros ou gregos, judeus ou cristãos, de todos os lugares e de todos os tempos, podem reconhecer-se a si mesmos". Os temas filosóficos e religiosos do iluminismo foram expostos e defendidos de uma maneira simples 47 e popular por Moisés Mendelssohn (1729-86), que foi amigo pessoal de Lessing e manteve correspondê ncia com Kant. Os seus escritos principais são: Cartas sobre as sensações (1755); Considerações sobre, a origem e relações das belas artes e das ciências (1757); Tratado sobre a evidência das ciências metafísicas (1764); Fédon 'ou sobre a imortalidade da alma (1767); Jerusalém ou sobre o poder religioso e o judaísmo (1783); Aurora ou sobre a existência de Deus (1785). O pensamento de Mendelssohn reúne' eclèticamente a gnoseologia empirista de Locke, o ideal ético de perfeição de Wolff e o panteísmo de Espinosa. Assim como Reimarus condena em bloco toda a revelação, também Mendelssohn condena em bloco todas as igrejas e todo o poder eclesiástico. A religiosidade existe, tal como a moral, nos sentimentos e pensamentos íntimos do homem, mas os pensamentos e sentimentos íntimos não se deixam coagir por forma alguma de poder jurídico. Toda a organização jurídica supõe uma imposição; e a religião escapa por natureza a qualquer imposição. A tese principal da obra Jerusalém ou sobre o poder religioso e o judaísmo, é a de que sobre os fundamentos da moral e da religião não se pode erguer nenhuma forma de direito eclesiástico e que um tal direito existe apenas em detrimento da, religião. Daí que o estado deva defender a mais absoluta, liberdade de consciência, quer dizer, é preciso que a igreja e a religião percam todo o poder político e sejam completamente separadas do estado. Mendelssohn é também contrário ao ideal da unificação religiosa propagado por Leibniz, já que a 48 LESSING unificação religiosa supõe um símbolo ou uma fórmula a que se reconheça validez jurídica e que por isso se impõe com a força do poder político. Ela conduziria à limitação ou à negação da liberdade de consciência. Mendelssohn vê realizado o seu ideal de religião natural na religião de Israel; nesta não há nenhum direito eclesiástico, nenhum credo obrigatório nem nenhuma revelação divina das crenças fundamentais, as quais pelo contrário assentam no conhecimento natural. O único objectivo da revelação judaica foi o de dar uma legislação prática e normas de vida. No Fédon, Mendelssohn procura actualizar o diálogo platónico, desfiando a trama das demonstrações em favor da imortalidade que se encontram nessa obra e acrescentando-lhe uma sua; a alma tende por si ao aperfeiçoamento indefinido; Deus teve portanto de criá-la imortal, pois, de contrário, tal tendência, por ele próprio criada, não chegaria a realizar-se. Mas se Mendelssohn admite o progresso do homem para a perfeição, recusa-se a admitir o progresso de todo o género humano, em que o seu amigo Lessing insistia. "0 progresso, diz ele em Jerusalém, é só para os homens individuais. Que também o todo, a humanidade
inteira deva no curso dos tempos progredir e aperfeiçoar-se, não me parece que tenha sido esse o escopo daprovidência divina". Em Aurora, defende o panteísmo espinosano, considerando-o conciliável com a religião e a moral. Nas Cartas sobre as sensações e nas Considerações sobre as belas artes, aceita a dou49 de Bau~en e considera a beleza como ~manifestação confusa" ou "representação sensível Perfeita". § 509. ILUMINISMO ALEMÃO: LESSING A mais genial figura do Iluminismo alemão é Gottfreid Efraim. Lessing (22 de Janeiro de 1729 - 15 de Fevereiro de 1781). Lessing representou poeticamente nos seus dramas o ideal de vida do iluminismo; estudou a natureza da poesia e da arte, especialmente a poesia e a arte clássica (Laocoonte, 1766; Dramaturgia de Hamburgo, 1767-69); debateu amplamente o problema religioso numa série de escritos breves e fragmentários, mas extremamente eficazes, o último e mais importante dos quais é A educação do género humano (1780). O seu pensamento, que a princípio girava em tomo das ideias wolfianas e do deísmo, orientou-se, numa segunda fase, através da leitura de Shaftesbury, para Espinosa. Jacobi, nas suas Cartas sobre a doutrina de Espinosa a Moisés Mendelssohn (1785), referiu, depois da morte de Lessing, as palavras que, segundo consta, pronunciou pouco antes de morrer e que são provavelmente autênticas: "Os conceitos ortodoxos da divindade já não são para mim; não consigo gostar deles. En kai Pan! Nada mais sei." O Uno4odo, a imanência de Deus no mundo como o espírito da sua harmonia, da sua unidade-tal foi a última convicção de Lessing. Mas foi uma convicção que para ele não se restringe, como Espinosa, só ao mundo natural: estende-se ao mundo 50 da história, como o demonstra o seu escrito sobre a educação do género humano. Este escrito marca uma fase extraordinariamente significativa da elaboração que o conceito de história sofreu no iluminismo. A ela chegou Lessing após longas investigações, cujas primeiras fontes se podem reencontrar em Wolff. O conceito de Wolff de que toda a actividade humana é dirigida para a perfeição, permite ver em todos os aspectos do homem um aperfeiçoamento incessante que lhes dá um novo significado. E assim Lessing, num escrito de 1778 (Eine Duplik), atribui o valor do homem, mais do que à verdade alcançada, ao esforço paira alcançá-la, esforço que põe em movimento todas as suas forças e revela toda a perfeição de que é capaz. E nesta ocasião faz a célebre afirmação: "Se Deus tivesse na sua mão direita toda a verdade e na esquerda apenas a tendência para a verdade com a condição de errar eternamente perdido e me dissesse: - Escolhe -, eu precipitar-me-ia com humildade para a sua mão esquerda e diria: Senhor, escolhi; a pura verdade é só para ti". Em que consiste propriamente o valor desta tendência eterna, que é o quinhão de cada homem e a lei da história, foi o problema que ocupou longamente Lessing e que foi debatido em todos os seus
escritos teológicos. Leibniz distingue as verdades de razão, universais e necessárias, das verdades de facto, particulares e contingentes. Lessing parte precisamente desta distinção para se perguntar a qual das duas espécies de verdade pertencem as verdades religiosas. Estas assentam sempre em factos particulares como o milagre e a revelação; como podem tais factos particulares constituir o fundamento de verdades eternas e universais, como são as que a religião ensina? "Todos nós cremos, diz Lessing (Ueber den Beweis des Geistes und Kraft, Werke, ed. Matthias, H, p. 139), que tenha existido um Alexandre que em breve tempo conquistou toda a Ásia. Mas quem arriscaria nesta crença algo de grande e capital importância, cuja perda não pudesse ser reparada? Quem abjuraria para sempre, para seguir tal crença, todo o conhecimento que a contradissesse? Eu não, decerto." Os milagres do cristianismo ocorridos há muitos séculos, são paira nós simples notícias que nada têm de miraculoso; mas ainda que admitíssemos como verdadeiras tais notícias, será que delas deriva a verdade eterna do cristianismo? Que relação tem a nossa incapacidade de rebater qualquer objecção fundada no testemunho bíblico com a obrigação de crer nalguma coisa a que a razão repugna. Mesmo se se admite que Cristo tenha ressuscitado, dever-se-á por isso admitir que o Cristo ressuscitado seja filho de Deus? Lessing considera impossível "passar de uma verdade histórica para uma classe totalmente diferente de verdades e pretender que eu modifique por este preço todos os meus conceitos metafísicos e morais." Constitui de algum modo uma resposta a estas dúvidas e interrogações o escrito intitulado Educação do género humano. O conceito fundamental desta obra é que a revelação é educação. Com efeito, na educação, cada homem aprende dos outros o que a sua razão 52 ainda não é capaz de entender. O que ele aprende não é todavia contrário à razão, só que não pode ser captado e entendido plenamente pela sua razão ainda débil e pueril. Ora, a história da humanidade tem um desenvolvimento idêntico ao do indivíduo. A humanidade foi educada através da revelação, a qual lhe comunica aquelas verdades que ela ainda não é capaz de entender, enquanto não se torne capaz de as alcançar e possuir de maneira autónoma, Deste ponto de vista, a própria revelação historiciza-se, já que não incide num ponto único da história mas acompanha todo o curso dela, anunciando e antecipando os desenvolvimentos autónomos da razão. Assim como a natureza é uma contínua criação, assim também a religião é uma contínua revelação. Toda a religião positiva é um grau desta revelação, que compreende em si mesma todas as religiões e as unifica no curso da sua história progressiva. A coincidência total da revelação com a razão, da religião positiva com a religião natural, é o último termo a que a humanidade é destinada pela divina providência. Dado que a religião cristã é a mais elevada religião positiva, os seus dogmas - a encarnação, a trindade, a redenção- transformar-se-ão finalmente em verdades de razão; e a "razão do cristianismo" dilucidar-se-á por último volvendo-se "o cristianismo da razão". ,Esta doutrina de Lessing que esclarece em sentido religioso e especulativo a ideia da história como
53 imagem progressiva, que o iluminismo elaborou, iria ter a mais ampla ressonância no período romântico. No domínio da estética, Lessing permanece substancialmente fiel à concepção aristotélica, cujas regras considera tão infalíveis como os elementos de Euclides (Hamburgische Dramartugie). No Laocoonte propõe-se pôr a claro a diferença entre pintura e poesia. A primeira emprega formas e cores no espaço e pode exprimir apenas objectos que coexistem ou cujas partes coexistam. A poesia usa sons articulados no tempo e dessa maneira exprime objectos sucessivos ou cujas partes são sucessivas. Ora, os objectos que coexistem ou cujas partes são sucessivas chamam-se acções: os corpos e as suas qualidades visíveis são, portanto, os objectos da pintura, enquanto as acções são os objectos próprios da poesia. Mas as regras fundamentais da poesia e da pintura são idênticas porque ambas são artes imitativas. "A pintura nas suas composições coexistentes pode utilizar apenas um único momento da acção e deve por isso escolher o mais significativo, pelo qual se torna mais compreensível o que o antecede e o que se lhe segue. De igual modo a poesia nas suas imitações sucessivas pode utilizar apenas uma única propriedade dos corpos e deve por isso escolher a que suscite a imagem mais sensível do corpo segundo o ponto de vista por que o considera. Daqui se tira a regra da unidade dos adjectivos pictóricos e da economia na representação dos objectos corpóreos" (Laoc., ap., 4). A divisão entre poesia 54 e pintura não é todavia absoluta. A pintura pode representar também movimentos indicando-os mediante corpos; e a poesia pode representar também corpos indicando-os mediante movimentos. A regra aristotélica da unidade domina a estética de Lessing. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 504. Os escritos alemães de Wolff tiveram várias edições, além da primeira, cuja data vem indicada no texto. As obras latinas (títulos e datas indicados no texto) constituem um "corpus" de 23 vol., in-4.1, Francofort, Leipzig, 17.36. Nova edição fotocopiada, Hildesheim, 1962, sgs.-M. CAmpo, C. W. e il razionalismo pre-critico, Milão, 1939, com bibl.; F. BARONE, Logica formale e logica trascendentale, I, Turim, 1957, pp. 83-119. K. FiSCHER, Geschichte der neuern PhiZosiphie, III, Leibniz, 4.1 ed., Heidelberg, 1902, p. 627 %gs. Sobre o Iluminismo alemão: E. ZELLER, Geschichte de-r deutschen Philos. seit Leibniz, 2.1 ed. Münehen, 1875; Cassirer, Das ErkenntnissprobTem, cit., II, Berlim, 1922. § 505. Sobre Tschirnhaus: G. RADETTI, Cartesianismo e spinozismo nel pensiero di E. W, v. T., Roma,
1939. Sobre Pufendorf: P. MEYER, S. P., Grinuna, 1895; E. WOLFF, Grosse Rechtsdenker der deutschen Geistesgeschichte, Tübingen, 1939. Sobre Thomasius A. NICOLADONI, C. T., Berlini, 1888. § 506. Knutzen, Dissertatio metaphysica de aeternitate mundi imposstbili, Kõnigsberg, 1733; Commen5,5 tatio Philosophka de commercio mentis e corporis, Kõnigsberg, 1735; COmmentaU0 phi;osQVhica de hun~ae mentis índividua natura sive immate@ialitate, Kõnigsberg, 1741, Elementa philosophiae rationaZis seu logicae cum generalis tUm sPecia7is mathematica methodo demonstrata. 56 XV KANT § 510. KANT: A VIDA A orientação crítica que O empirismo inglês havia iniciado, reconhecendo e assinalando à razão os limites do mundo humano, e que o iluminismo havia feito sua, torna-se na obra de Kant uma viragem decisiva da história da filosofia. A construção de uma filosofia essencialmente crítica, na qual a razão humana, levada ante o tribunal de si própria, delimita de modo autónomo os seus confins e as suas possibilidades efectivas, tal é o objectivo próprio de Kant. Este objectivo é por isso o de um racionalismo que se propõe, em primeiro lugar, a elaboração do próprio conceito de razão. Kant identifica este racionalismo com o iluminismo; e na realidade o conceito da razão que ele alcança está na linha daquela elaboração que começara com Hobbes e 57 que o iluminismo aceitara de Locke: isto é, na linha que vê na razão um órgão autónomo e eficaz para guia da conduta humana no mundo mas não uma actividade infinita e omnipotente que não tenha limites nem condições. Manuel Kant nasceu, de família originária da Escócia, em Kõnigsberg, a 12 de Abril de 1724. Foi educado no espírito religioso do pietismo, no Collegium Fridericianum, do qual era director Francisco Alberto Schultz, a mais notável personalidade do pietismo naquele período. Ao sair do colégio (1740), Kant estudou filosofia, matemática e teologia na Universidade de Kõnigsberg, onde teve como mestre Martin KnutZen. que o encaminhou para os estudos de matemática, de filosofia e da física newtoniana. Depois dos estudos universitários, foi perceptor nalgumas casas patrícias. Em 1755, com a dissertação Principiorum primorum cogníltionis tnetaphysicae nova dilucidatio obteve a docência livre na Universidade de Kõnigsberg e durante quinze anos desenvolveu na Uníversidade os seus cursos livres sobre várias disciplinas. Em 1766 tornou-se bibliotecário de Schlõssbibliothek de Kõnigsberg; e só em 1770 foi nomeado
professor ordinário de lógica e metafísica naquela Universidade. Kant exerceu este cargo até à sua morte, cumprindo com grande escrúpulo todos os seus deveres 'académicos, mesmo quando devido à debilidade senil se lhe tornaram extremamente penosos. Herder, que foi seu aluno nos anos 1762-1774, deixou-nos dele esta imagem (Briefe zur Mefõrderung 'der Htímatútãt, 49): "Tive a felicidade de conhecer um 58 filósofo que foi meu mestre. Nos anos juvenis, tinha a alegre vivacidade de um jovem e esta creio eu que nunca o abandonou nem mesmo na mais avançada velhice. A sua fronte aberta, feita para o pensamento, ora a sede de uma imperturbável serenidade e alegria; o discurso mais rico de pensamento fluia dos seus lábios; tinha sempre pronta a ironia, a argúcia e o humorismo e a sua lição erudita oferecia o andamento mais divertido. Com o mesmo espírito com que examinava Leibniz, Wolff, Baumgarten, Crusius, Hume e seguia as leis naturais descobertas por Newton, por Kepler e pelos físicos, acolhia também os escritos que então a-pareceram de Rousseau, o seu Emílio e a sua Heloísa, como qualquer outra descoberta natural que viesse a conhecer: valorizava tudo e reconduzia tudo a um conhecimento sem preconceitos da natureza e ao valor moral dos homens. A história dos homens, dos povos e da natureza, a doutrina da natureza, a matemática e a experiência eram as fontes que davam vida à sua lição e à sua conversação. Nada que fosse digno de ser conhecido lhe era indiferente; nenhuma cabala, nenhuma seita, nenhum preconceito, nenhum nome soberbo, tinha para ele o menor apreço frente ao incremento e ao esclarecimento da verdade. Encorajava e obrigava docemente a pensar por si; o despotismo era estranho ao seu espírito. Este homem, que nomeio com a máxima gratidão e veneração, é Manuel Kant: a sua imagem está sempre diante dos meus olhos." A vida de Kant carece de acontecimentos dramáticos e de paixões, com poucos afectos e amizades 59 inteiramente concentrada num esforço contínuo de pensamento. Todavia Kant não foi alheio aos acontecimentos políticos do seu tempo. Simpatizou com os americanos na sua guerra da independência e com os franceses na sua revolução que considerava encaminhada para a realização do ideal da liberdade política. O seu ideal político, tal qual o delineou na obra Pela Paz Perpétua (1795), era uma constituição republicana " fundada, em primeiro lugar, no princípio de liberdade dos membros de uma sociedade, como homens; em segundo lugar, sobre o princípio de independência de todos, como súbditos; em terceiro lugar, sobre a lei da igualdade como cidadãos." O único episódio notável da sua vida foi o conflito em que se encontrou com o governo prussiano depois da publicação da segunda edição (1794) da Religião nos Limites da Razão. O rei Frederico Guilherme 11, sucessor de Frederico o Grande, restringira em 1788 a liberdade de imprensa, submetendo a censura prévia as publicações de carácter religioso. Apesar de a obra de Kant ter sido vista pela censura, a 14 de Outubro de 1794 o filósofo recebia uma carta do rei assinada pelo ministro WõlIner na qual se afirmava que as ideias contidas naquele escrito estavam em contradição com pontos fundamentais da Bíblia e do cristianismo e se proibia a Kant ensiná-las ulteriormente sob pena de graves sanções. Na sua resposta, Kant, embora rejeitando a acusação, prometia ater-se à proibição "como súbdito de Sua Majestade": frase com a qual entendia limitar a sua promessa à duração da vida do rei.
60 E de facto, com a subida ao trono de Frederico Guilherme HI (1797) e a demissão do ministro Wõllner, a liberdade de imprensa foi restaurada e Kant podia, no Conflito das Faculdades (1798), reivindicar a liberdade de pensamento e de palavra contra as arbitrariedades do despotismo, mesmo a respeito da religião. Todavia, não leccionou mais cursos sobre filosofia da religião. Nos últimos anos Kant caiu numa debilidade senil que o privou gradualmente de todas as suas faculdades. Depois de 1798 não pôde mais continuar os seus cursos universitários. Nos últimos meses perdia a memória e a palavra. E assim este homem que vivera para o pensamento, morreu mumificado a 12 de Fevereiro de 1804. § 511. KANT: OS ESCRITOS DO PRIMEIRO PERIODO Na actividade literária de Kant podem distinguir-se três períodos. No primeiro, que vai até 1760, prevalece o interesse pelas ciências naturais. No segundo período, que vai até, 1781 (ano em que, foi publicada a Crítica da Razão Pura), prevalece o interesse filosófico e determina-se a orientação para o empirismo inglês e o critiCismo. O terceiro período, de 1781 em diante, é' o da filosofia transcendental. O primeiro período começa com um escrito que Kant compôs quando era ainda estudante e publicou em 1746, Pensamentos sobre o Verdadeiro Valor 61 das Forças Vivas. Seguidamente, publicou uma Investigação sobre a Questão da Causa da Variação da Terra no seu Movimento em torno do Eixo (1754) e um outro em torno da questão Se a Terra envelhece (1754). De 1755 é a obra principal deste período História Natural Universal e Teoria dos Céus. O escrito, que apareceu anónimo, descreve a formação de todo o sistema cósmico a partir de uma nebulosa primitiva em conformidade com as leis da física newtoniana. Divide-se em três partes: na primeira descreve-se a formação das estrelas fixas e explica-se a multiplicidade dos sistemas estelares. Na segunda, descreve-se o estado primitivo da natureza, a formação dos corpos celestes, a causa dos seus movimentos e das suas relações sistemáticas, tanto no que se refere à constituição dos planetas como no que se refere a todo o universo. Na terceira parte estudam-se as analogias dos planetas para fazer um confronto entre os habitantes dos diferentes planetas. A hipótese desenvolve-se de modo puramente mecânico: a matéria primitiva tem já em si mesma a lei que deve conduzi-la à organização dos mundos e revela portanto uma certa ordem que permite reconhecer a marca do seu criador. -0 escrito de Kant foi pouco conhecido. Em 1761 Lambert, nas suas Cartas Cosmológicas, formulava uma doutrina análoga; e em 1796 Laplace, na
Exposição do Sistema do Mundo, chegava a uma hipótese semelhante à kantiana relativamente à formação do sistema solar. Estas analogias explicam-se observando que a hipótese fora sugerida, a Kant como aos outros, pela história Natural de Buffon. 62 Em 1755 Kant publicava outra investigação física, De Igne; e no mesmo ano a dissertação para a docência livre Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova dilucidatio, na qual se reconhece e se reduz também a este último o princípio da razão suficiente que Kant com Crusius chama princípio de razão determinante. Em 1756 apareceram: três escritos de Kant sobre os Terramotos, um sobre a Teoria dos Ventos e a Monadologia Física. Neste último, em lugar das mónadas leibnizianas, Kant fala em mônadas físicas, corpos simples que ocupam uma quantidade mínima de espaço. O espaço de mónada é defendido pela sua esfera de actividade que impede as mônadas que a rodeiam de aproximar-se mais (Prop. 6). A impenetrabilidade dos corpos é defendida pela força de atracção e repulsão (Ib., 10). Em 1757, Kant publicava o Projecto de uni Colégio de Geografia Física com outras observações sobre os ventos. Em 1759, imprimia um ensaio sobre Movimento e Repouso e o escrito sobre o 0~ismo. Neste discute a questão que Voltaire havia tratado no Poema sobre o Terramoto de Lisboa, mas resolve-a a favor do optimismo radical. Pretende-se colocar-se no ponto de vista de quem considera o mundo na sua absoluta totalidade e, precisamente deste ponto de vista, afirma que Deus não teria podido escolher outro melhor. O pressuposto de uma visão total e exaustiva de todo o universo é tal que se explica que Kant tenha repudiado seguidamente o, escrito 63 (como testemunha o seu contemporâneo Borowski, Leben KantS, p. 58), o qual termina com uma espécie de canto lírico de exaltação do mundo e dos homens. § 512. KANT: OS ESCRITOS DO SEGUNDO PERÍODO Neste período que assinala a preponderância decisiva no pensamento de Kant dos interesses filosóficos, começam a delinear-se temas e movimentos que confluirão no criticismo. Num grupo de quatro escritos compostos entre 1762-1764, Kant chega a conclusões que lhe servirão como ponto de partida e de referência dos seus escritos críticos. No escrito A Falsa Subtileza das quatro Figuras Silogísticas (1726), critica o valor da lógica aristotélica-escolástica, comparando-a com um colosso "que tem a cabeça nas nuvens da antiguidade e cujos pés são de argila". A lógica deveria ter como fim não complicar as coisas, mas aclará-las; não descobri-las, mas expô-las claramente. No único Argumento Possível para uma Demonstração da Existência de Deus (1763), Kant chama à metafísica " um abismo sem fundo", um "oceano tenebroso sem margem e sem faróis"; e diz que há ocasiões em que se atreve a explicar tudo e a demonstrar tudo; e outras, pelo contrário, só com temor e desconfiança se aventura em semelhantes empresas. "0 escrito parte da distinção clara da existência dos outros predicados ou determinações
das coisas. Os predicados ou determinações são 64 posições relativas de um quid, isto é caracteres de uma coisa; a existência é a posição absoluta da coisa em si própria. Por isso no existente não há mais qualidades ou caracteres que no simples possível; aquilo que há a mais é a posição absoluta. O princípio de contradição é a condição formal da possibilidade; mas a possibilidade intrínseca das coisas supõe sempre uma existência qualquer porque, se não existisse nenhuma de facto, nada seria pensável e possível (1, § 2). Desta, consideração tira Kant a sua demonstração da existência de Deus que é uma reedição do velho argumento a contigentia mundi. Todas as outras demonstrações são reduzidas por Kant a esta, inclusive a prova ontológica de Descartes. Numa Investigação sobre o Conceito das Grandezas Negativas (1763), na qual Kant procura utilizar na filosofia os conceitos e os processos da matemática, reforça-se a distinção entre o domínio do pensamento lógico e o da realidade a propósito da diferença que há entre a contraposição lógica e a contraposição real. As Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime (1764) procuram distinguir do ponto de vista psicológico o sublime do belo, na medida em que o primeiro comove e exalta e o segundo atrai e arrebata. A influência de Shaftesbury é evidente no escrito em que se estabelece como fundamento da moral "o sentimento da beleza e da dignidade da natureza humana". Na primavera de 1764 apareceu a investigação sobre a Clareza dos Princípios da Teologia Natural e da Moral em resposta ao tema de um concurso aberto pela Academia de Berlim: "Se as verdades 65 metafísicas podem ter a mesma evidência que as das matemáticas, e qual é a natureza da sua certeza", A metafisica é definida no escrito como "nada mais que uma filosofia sobre os primeiros fundamentos do nosso conhecimento". Kant é um decidido defensor da aplicação do método matemático à filosofia; mas vê também as diferenças que existem entre uma e outra disciplina. As matemáticas dão definições, sintéticas, a filosofia analíticas; a matemática considera O Universal em concreto, a filosofia em abstracto. Na matemática existem poucos conceitos não expressos e princípios não demonstrados, na filosofia existem muitos. O objecto das matemáticas é fácil e simples, o da filosofia é difícil e complexo. "A metafísica é sem dúvida o mais difícil de todos os conhecimentos humanos; por isso ela não foi ainda escrita". Contudo, a certeza da metafísica deve ser da mesma natureza da das matemáticas; e a filosofia pode realizar esta certeza com o mesmo procedimento, isto é com a análise da experiência o com a redução dos fenómenos a regras e a leis. Só que, enquanto a matemática parte das definições, a filosofia chega ao fim quando alcançou o
esclarecimento dos dados sensíveis. Por outras palavras, a filosofia deve fazer seu, segundo Kant, o método que Newton empregou nas ciências naturais. Deste método, o próprio Kant deu uma amostra na última parte da obra, destinada a ilustrar os fundamentos da teologia natural e da moral. Dado que a existência é um conceito empírico, deve existir alguma coisa sem a qual nada é possível e nada pode ser pensado: isto é um ser necessário. Pelo que respeita à moral, detém-se a 66 considerar sobretudo o conceito de obrigação. Este conceito não lhe parece provado pela doutrina de Wolff que estabelece como fim da acção moral a perfeição. O bem identifica-se com a necessidade moral, por isso o conhecimento nada diz sobre a sua natureza que é, em contrapartida, revelada, pelo simples "sentimento moral". Kant alude explicitamente às análises de Hutcheson; e assim o escrito demonstra uma nova orientação do seu pensamento que se dirige para as análises do empirismo inglês. Esta orientação é ainda mais clara na Notícia sobre a Orientação das suas Lições, de 1765. É necessário não já aprender à filosofia, mas aprender a filosofar: o método do ensino filosófico, deve ser o da investigação. As indagações de Shaftesbury, Hutcheson e Hume, ainda que incompletas e defeituosas, mostram na realidade o verdadeiro método que torna possível aproximar-se da natureza dos homens e descobrir, não Somente o que são, mas o que devem ser. -0 afastamento do dogmatismo da escola wolfiana é neste ponto decisivo; e coincide com a adesão ao espírito de investigação e ao empirismo dos filósofos ingleses. O documento mais significativo deste afastamento é o escrito de 1765, Sonhos de um Visionário Esclarecidos com os Sonhos da Metafísica. As razões que moldaram este escrito foram as visões místicas e espiritístas do sueco Manuel Swedenborg (1688-1772); e é uma sátira burlesca destas visões e das doutrinas que lhos servem de, fundamento. A metafísica de Wolff e de Crusius é comparada às visões fantásticas de Swodenborg porque também aquele 67 1 se encerra no seu próprio mundo, que exclui o acordo com os demais homens. "Frente aos arquitectos dos diferentes mundos ideais que se movem no ar, dos quais cada um ocupa tranquilamente o seu, com exclusão dos outros, situandose um deles na ordem das coisas que Wolff construiu com poucos materiais de experiência mas com muitos conceitos sub-reptícios, e o outro, que Crusius produziu do nada com a força mágica de algumas palavras como "pensável" e " impensável", nós, ante o contraditório das suas visões, aguardaremos pacientemente até que estes senhores hajam saído do seu sonho" (1, 3). Frente à inutilidade deste sonhar acordado, Kant considera que a metafísica deve em primeiro lugar considerar as próprias forças e por isso "conhecer se o objectivo
está em proporção com aquilo que se pode saber e que relação tem esta questão com os conceitos da experiência, sobre os quais devem apoiar-se todos os nossos juízos". A metafísica é a ciência dos limites da razão humana; para ela, como para um pequeno país, importa mais conhecer bem e manter as suas próprias possessões que ir às cegas em busca de conquistas (H, 2). Os problemas que a metafisica. deve tratar são os que preocupam o homem e que portanto, se encerram nos confins da experiência. É vão crer que a sabedoria e a vida moral dependem de certas metafísicas. Não pode dizer-se honesto aquele que se abandona aos vícios se não for ameaçado com um pena futura. É portanto mais conforme com a natureza humana fundar a espera do mundo futuro no sentimento de 68 numa alma bem nascida, que fundar, pelo contrário, o seu bem obrar sobre a esperança no outro mundo. Na sua simplicidade, a fé moral é a única que se conforma com o homem em qualquer condição (H, 3). Nesta obra existem já os fundamentos da orientação crítica. No breve ensaio Sobre o Primeiro Fundamento da Distinção das Regiões do Espaço (1768), Kant faz ver como as posições recíprocas das partes da matéria supõem já as determinações espaciais o que, por conseguinte, o conceito do espaço é algo originário, se bem que não seja puramente ideal, mas tenha sempre em si uma realidade qualquer. Estas são as considerações que levam Kant a formular a doutrina da Dissertação de 1770. Do ano 1769, que ocorre entro este escrito e a Dissertação, o próprio Kant disse: "0 ano de 69 trouxe-me uma grande luz". Efectivamente, a dissertação & mundi sensibilis atque intelligíbilis forma et principUs, que Kant apresentou para a nomeação como professor titular de lógica e metafisica, em 1770, assinala a solução crítica, do problema do espaço e, do tempo. Kant começa por estabelecer a distinção entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual. A primeira, que é devida à receptividade (ou passividade) do sujeito, tem como objecto o fenómeno, isto é a coisa tal como aparece na sua relação com sujeito. A segunda, que é uma faculdade do sujeito, tem como objecto as coisas tais como são, na sua natureza inteligível, isto é como númeno (§ 3). No conhecimento sensível deve distinguir-se a matéria da forma. A matéria é a sensação, que é uma 69 modificação do órgão do sentido, e por isso testemunha. a presença do objecto pelo qual é causada. A fornia é a lei, independentemente da sensibilidade, que ordena a matéria sensível. O conhecimento sensível, anterior ao uso do entendimento lógico, chama-se aparência; e o conhecimento reflexivo que nasce da comparação, feita pelo entendimento, de múltiplas aparências, chama-se experiência. Da aparência à experiência vai-se, portanto, através da reflexão que se serve do entendimento. Os objectos da experiência são os fenómenos (§ 5). A forma, isto é a lei; que contêm o fundamento do nexo universal do mundo sensível, é constituída pelo
espaço e pelo tempo. Tempo e espaço não derivam da sensibilidade que os pressupõe e não são tão-pouco conceitos gerais e comuns que tenham as coisas singulares sob si. São, pois, intuições, mas intuições que precedem todo o conhecimento sensível e são independentes dele, portanto puras (§ 14, 3; § 15, c). Por isso não são realidades objectivas, mas unicamente condições subjectivas e necessárias à mente humana para coordenar por si, em virtude de uma lei, todos os dados sensíveis. Com efeito, o tempo torna possível intuir a sucessão e a contemporaneidade e coordenar, segundo estes dois modos--- todos os objectos sensíveis. O espaço permite intuir os fenómenos num nexo universal, isto é, como partes de um todo cujas leis e princípios são os da geometria. - Estes esclarecimentos sobre o conhecimento sensível permaneçam quase imutáveis na Crítica da Razão Pura Quanto ao conhecimento intelectual, Kant distingue nele um uso real e um 70 uso lógico. O uso real é aquele pelo qual os conceitos das coisas e das suas relações são dados; o uso lógico é aquele pelo qual os conceitos dados são subordinados uns aos outros e unificados entre si segundo o princípio de contradição (§ 5). Kant insiste no facto de que o uso lógico do entendimento não elimina o carácter sensível dos conhecimentos que é devido à sua origem. Mesmo as leis mais gerais são sensíveis e os princípios da geometria não saem dos limites da sensibilidade. Pelo contrário, na metafísica, não se encontram princípios empíricos, os seus princípios são inerentes à própria natureza do entendimento puro, porquanto não são inatos,' mas abstraídos das leis inerentes à mente e, por isso, adquiridos (§ 8). O conhecimento intelectual não dispõe de uma intuição apropriada pela qual a mente possa ver os seus objectos imediatamente, isto é, singularmente. Este é unicamente um conhecimento simbólico e obtém-se por meio do raciocínio, isto é por meio dos conceitos gerais. "0 conceito inteligível, enquanto tal, carece de todos os dados da intuição humana. Com efeito, a intuição da nossa mente é sempre passiva; e por isso é possível Somente enquanto algo pode excitar os nossos sentidos. A intuição divina, em contrapartida, que é o princípio dos objectos, em vez de ser causada por eles, é independente dos mesmos, é o arquétipo dos objectos e é, por isso, perfeitamente intelectual> (§ 10)_ Pelo que respeita aos princípios a priori do conhecimento intelectual, Kant repete substancialmente, nesta dissertação, quanto tinha dito já na única demonstração. Uma totalidade de substân71 cias unidas entre si pela relação de causa e efeito é uma totalidade de substâncias contingentes porque o que é necessário não pode depender de nada. E uma totalidade de substâncias contingentes deve a sua unidade à dependência comum de um único ente necessário (§ 20). Todavia, também nesta parte ainda dogmática do seu tratado, Kant introduz uma exigência critica. Na metafisica, a diferença de todas as outras ciências, o método não pode ser fornecido pelo uso, mas deve ser determinado independentemente e antes do próprio uso. Este método deve assumir como sua regra fundamental esta: os princípios do conhecimento sensível não devem transpor os seus limites e invadir o campo dos conceitos intelectuais (§ 24).'Ura conceito sensível é a condição sem a qual não é possível o conhecimento sensível do próprio conceito. Não pode por isso estender-se para qualificar ou determinar uma realidade não sensível. Assim não se pode dizer, por exemplo: "Tudo aquilo que existe, está em algum lugar", porque o conceito de lugar é conceito sensível que condiciona o conhecimento" sensível, não o conhecimento intelectual que é mais extenso. Pode-se dizer em contrapartida: "Tudo o que está era algum lugar
existe", porque o conceito de existência é um conceito intelectivo que condiciona quer o conhecimento sensível quer o intelectual. Conformemente a este princípio, Kant aplica-se na última parte (a V) da Dissertação a esclarecer algumas falácias que nascem precisamente da extensão dos conceitos sensíveis para lá do seu campo. Mas imediatamente este princípio, que deveria servir-lhe para dar ao conheci72 mento intelectual liberdade de movimento frente ao conhecimento sensível, é usado por ele como princípio limitativo do próprio conhecimento intelectual. Diz ele: "Tudo aquilo que não pode ser conhecido por intuição não pode ser pensado absolutamente, portanto é impossível. E dado que não podemos, com nenhum esforço da mente nem mesmo com a imaginação, alcançar outra intuição senão aquela que se tem segundo a forma do espaço e do tempo, resulta que consideramos impossível toda a intuição que não esteja ligada a' estas regras (exceptuando aquela intuição pura e intelectual que não está submetida à lei do tempo, como é a intuição divina, a que Platão chama ideia) e, por isso, submetemos todos os possíveis aos axiomas sensíveis do espaço o do tempo" (§ 25). Assim a preocupação de - salvar de qualquer modo a metafísica dogmática leva Kant a formular o próprio princípio que na Crítica da Razão Pura devia servir-lhe para destruir toda a metafísica dogmática. § 513. KANT: OS ESCRITOS DO PERIODO CRITICO Nos dez anos que se seguiram à publicação da Dissertação, Kant andou lenta e intensamente elaborando a sua filosofia crítica. Neste tempo publicou muito poucas coisas e nada que dissesse respeito aos temas da sua meditação: uma recensão de uma obra de anatomia, (1711), um artigo sobre raças 73 humanas (1775), dois artigos pedagógicos sobre o "Philant.hropin" de Basodow (1777); nada mais. A Crítica da Razão Pura apareceu em 1781. Nesta obra Kant (como ele próprio escrevia a Moisés Mendelssohn a 16 de Agosto) levou a cabo "o fruto de uma meditação de doze anos em quatro ou cinco meses, quase em voo, pondo assim a máxima atenção no conteúdo mas com pouco cuidado na forma em tudo quanto é necessário para ser facilmente compreendido pelo leitor". As cartas a Marco Herz dão algumas notícias sobre a génese e os progressos da obra. A 7 de Junho de 1771 escrevia Kant: "Estou agora a trabalhar numa obra a qual, sob o título de Os Limites da Sensibilidade e da Razão, não só deve tratar dos conceitos e das leis fundamentais que concernem ao mundo sensível, mas deve ser também um esboço do que constitui a natureza da doutrina do gosto, da metafísica e da moral. "0 tema fundamental das três Críticas estava assim já claro na mente de Kant, mas este tema devia depois cindirse e articular-se no decurso do trabalho. Numa carta de 21 de Fevereiro de 1772, Kant aponta o título definitivo da sua obra. "Estou agora em condições de propor uma Crítica da Razão Pura que trata da natureza do conhecimento quer teorética quer prática, enquanto
puramente intelectual. Da primeira parte que trata primeiramente das fontes da metafísica, do seu método e dos seus limites, e depois dos princípios puros da moralidade, publicarei aquilo que se refere ao primeiro argumento em cerca de três meses." A doutrina do gosto está já separada 74 na mente de Kant da metafísica e da moral que, no entanto, se mantinham ainda unidas. Todavia, Kant só cumpre a sua promessa cerca de nove anos depois. Cartas sucessivas a Herz justificam os seus atrasos com a dificuldade e a novidade do argumento e a necessidade de alcançar, antes de completar urna parte da sua obra, uma visão de conjunto de todo o sistema de que faz parte. E assim só no dia 1.* de Maio de 1781 Kant podia anunciar ao amigo a próxima publicação da Crítica da Razão pura que de facto apareceu naquele ano. A segunda edição surgiu em 1787 e contém importantes modificações e adições com respeito à primeira, sobretudo no que se refere à parte central e mais difícil da obra, a dedução transcendental. As diferenças entre as duas edições e a preferência outorgada à primeira por estudiosos e historiadores (a começar por Schopenhauer) é um dos motivos da diversidade das interpretações que têm sido dadas ao kantismo. Por outra parte, o próprio valor das diferenças está sujeito a discussão, A Crítica da Razão Pura abre a série das grandes obras de Kant. Em 1783 saíam os Prolegómenos para toda a Metafísica Futura que se apresenta como Ciência, exposição mais breve e em forma popular da mesma doutrina da Crítica. Seguiram-se: Fundamentação da Metafisica dos Costumes (1785); Crítica do Juízo (1790); A Religião dentro dos Limites da Simples Razão (1793); A Metafísica dos Costumes (1797) que contém, na primeira parte, os "Fundamentos Metafísicos da Doutrina do Direito"; e na segunda parte os "Fundamentos Metafísicos da 75 Doutrina da Virtude"; Antropologia do Ponto de Vista Pragmático (1798). No prefácio desta última obra, Kant distingue a antropologia pragmática da fisiológica: esta última destina-se a determinar qual é a natureza do homem enquanto a antropologia pragmática estuda o homem tal como ele mesmo se faz em virtude da sua vontade livre. Nos mesmos anos em que apareciam as suas obras fundamentais, Kant publicava artigos, opúsculos, recensões críticas e esclarecimentos do seu pensamento em pontos particulares. Em 1782 publicava uma breve Notícia da edição de J. Bernoulli do Epistolário de Lambert; e uma Notícia para os Médicos que trata da epidemia da gripe. Em 1783 publicava uma Recensão da obra de SchuIz, Para a Doutrina Moral. Em 1784 publicava dois ensaios: Ideias para uma História Universal do Ponto de Vista Cosmopolita; e Resposta à Pergunta: que é o Iluminismo?
Em 1785 apareceram: uma Recensão do escrito de Herder, Ideias sobre a Filosofia da História para a Humanidade; e três breves ensaios: sobre Vulcões da Lua; sobre a Ilegitimidade da Falsificação de Imprensa; Caracteres do Conceito de uma Raça Humana. Em 1786 publicava Kant um ensaio Conjectura sobre o Começo da História Humana; uma recensão da obra de Hufeland, Princípios do Direito Natural; um outro ensaio intitulado: Que significa orientar-se no Pensar? com que intervém na polémica sobre o panteísmo entre Jacobi e Mendelssohn; 76 algumas Observações sobre o escrito de Jakob, Exame da Aurora de Mendelssohn; e uma obra mais importante, Princípios Metafísicos da Ciência Natural. Em 1788 apareceu o artigo Sobre o uso dos Princípios Teológicos na Filosofia e um breve ensaio sobre um escrito de A. H. Urich, Eleuteriologia. Pertence provàvelmente ao mesmo ano o discurso De medicina corporis quae philosophorum est. Em 1790 apareceu o pequeno escrito Sobre o Fanatismo,- um opúsculo Sobre uma Descoberta segundo a qual toda a Nova Crítica da Razão deve ser feita através de uma Velha e não Necessária Crítica,- um artigo de resposta e, de recensão a três escritos de Kãstner. É de 1791 um artigo Sobre a Falta de Toda a Investigação Filosófica em Teodiceia. Aos anos 1788-91 pertencem também sete pequenos escritos comunicados por Kant ao Prof. Kiesewetter (1.', Resposta à pergunta: é uma experiência que pensamos?; 2.', Sobre o milagre; 3.', Refutação do idealismo problemático; 4.', Sobre a Providência particular; 5.', Sobre a oração; 6.O, sobre o momento da velocidade no instante inicial da queda; 7.O, Sobre o significado formal e material de algumas palavras). Em 1793 Kant escreveu e deixou incompleta uma resposta ao tema do concurso da Academia de Berlim: "Quais são os progressos reais que a metafisica fez desde o tempo de Leibniz e Wolff?" (publicada por F. T. Rink em 1804). E publicou um artigo sobre o dito comum Aquilo que vale em Teoria não vale na Prátíca. 77 Em 1794 publicou dois artigos Sob a Influência da Lua sobre o Clima; O fim de todas as Coisas. Em 1795 apareceu o escrito Para a Paz Perpétua que exprime o pensamento político de Kant. E no mesmo ano foram publicadas algumas observações em apêndice ao escrito de Soemmering, Sobre o órgão da Alma. Em 1796 Kant publicava alguns artigos polémicos: Sobre o tom nobre da Filosofia, recentemente exaltado, no qual a propósito de um escrito de J. G. Schlosser critica o apelo para a intuição intelectual e para o sentimento místico; um artigo de resposta às críticas de J. A. H. Reimarus contra as afirmações matemáticas contidas no escrito precedente: Composição de uma Polémica
Matemática Fundada num Malentendido, e um artigo de réplica à resposta de SchIosser, Anúncio da Próxima Conclusão de um Tratado para a Paz Perpétua em Filosofia. Em 1797 apareceu um artigo dirigido contra uma afirmação de Benjamim Constant: Sobre o Presumível Direito de Mentir por Amor dos Homens. Em 1798 Kant escrevia um artigo Sobre o Poder do Sentimento, que voltou a publicar no mesmo ano, formando a terceira parte do Conflito das Faculdades. Ao mesmo ano pertencem também duas cartas Sobre a Impressão de Livros, dirigidas contra as críticas que F. Nicolai dirigira contra a sua filosofia. Em 1799, em resposta à afirmação contida numa recensão da Doutrina da Ciência de Fichte, Kant publicava um Esclarecimento no qual definia a 78 doutrina de Fichte como "um sistema absolutamente insustentável". Em 1800, no Prefácio a um escrito de R. B. Jachmann, polemizava de novo contra a mística que pretende valer como experiência supra-sensível. A estes escritos é necessário acrescentar aqueles que nos últimos anos da vida de Kant foram publicados. pelos seus discípulos. Assim publicaram-se: por J. B. Jãsche a Lógica, manual para lições (1800); por F. T. Rink, a Geografia Física (1802), lições dadas por Kant sobro este ponto; pelo mesmo Rink, a Pedagogia, também recolhida das lições de Kant. Depois da morte do filósofo, foram publicadas as suas lições sobre a Doutrina Filosófica da Religião (1817) e sobre Metafísica (1821). A obra em que Kant se ocupava nos últimos anos da sua vida e que ficará fragmentária nos seus manuscritos (Opus postumum) foi publicada parcialmente por Reicke em 1882, por Krause, em 1888 com o título Passo dos princípios Metafisicos da Ciência da Natureza à Física, por Adickes em 1920; e finalmente, em forma completa e nos três últimos volumes da grande edição das obras de Kant da Academia de Berlim (1936, 1938, 1955). Esta ediçã o contém também o Epistolário do filósofo. § 514. KANT: A FILOSOFIA CRITICA A simples enumeração dos escritos de Kant mostra como a orientação crítica da sua filosofia se vinha determinando através da influência, cada vez 79 mais decisiva, do empirismo inglês. Contudo, esta influência integrava-se na orientação que constituiu a estrutura fundamental da filosofia kantiana, orientação que é a do iluminismo wolfiano. Vimos já (§ 504) como o ideal racionalista do iluminismo se concretiza, na obra de Wolff e dos seus numerosos seguidores alemães, no método da razão fundamentadora, a qual procede mostrando a cada passo o fundamento dos seus conceitos na sua possibilidade. A coincidência de fundamento e possibilidade é a característica deste método, o qual portanto dá como fundado (isto é justificado) um conceito quando se possa demonstrar a possibilidade desse conceito, isto é, a falta de contradições internas. No ideal deste método incorporava-se sem dúvida a filosofia leibniziana que procurara elaborar o princípio de uma razão problemática, oposta à razão geométrica ou necessária dos cartesianos e de Espinosa; mas incorporava-se e vivia principalmente a
exigência iluminística de limitar e individualizar em cada campo as possibilidades autênticas do homem. Kant manteve-se sempre fiel a este princípio e a este método. Que Kant se tenha servido constantemente para as suas lições da Metafísica de Baumgarten é coisa que só para fazer espírito se pode explicar como explicava Schopenhauer: pela exigência de ter separada e distinta a sua obra de filósofo da sua actividade docente, para evitar que esta última contaminasse a primeira. Na realidade a metafisica de Baumgarten, que tem a honra de ser um dos mais lúcidos e concisos exemplos do método da 80 fundamentação, realizava uma exigência que Kant considerava essencial na filosofia, isto é a de que deve buscar o fundamento dos seus objectos (quaisquer que sejam) na sua possibilidade. Todavia, o que faltava neste método, Kant viu-o rapidamente: a possibilidade não pode ser compreendida no aspecto puramente lógico-formal, como simples ausência de contradição. Já no único Argumento Possível para a Existência de Deus (1763), ele reconhece claramente que uma possibilidade não é tal em virtude da simples, ausência de contradição. "Toda a possibilidade cai, diz ele (1, § 2), não só quando há uma contradição intrínseca, que é o aspecto lógico da impossibilidade, mas também quando não há um material, um dado que se possa pensar." E acrescentava: "Que exista uma possibilidade e, contudo, não haja nada real, é contraditório, dado que se não existe nada não é dado nada que seja pensável, e existe contradição se todavia se pretende que qualquer coisa é possível." Aquilo que é possível deve conter, para ser verdadeiramente possível, além da pura formalidade lógica da não-contraditoriedade, uma existência, uma realidade, um dado; e a existência, a realidade, o dado, nunca se reduzem a simples predicados lógicos. São estas as proposições base da filosofia crítica kantiana. Kant, no escrito citado, dirigia-as a um objectivo tradicional, o da demonstração da existência de Deus, mas já naquele escrito têm uma importância superior ao fim para que servem. Nos escritos posteriores o problema do real, do dado, a que a filosofia deve referir-se, é ulteriormente debatido e 81 esclarecido. A analogia que Kant estabelece, na Investigação dos Princípios da Teologia Natural e da Moral (1764), entre a filosofia e a ciência natural de Newton, leva-o a ver precisamente na experiência, à qual se dirige a ciência, a realidade de que a filosofia deve partir. O apreço positivo que no mesmo escrito e no de 1765, Notícia sobre a Orientação das suas lições, dedica ao empirismo inglês, demonstra como se vai reforçando nele a orientação para considerar a experiência como o aspecto real de toda a possibilidade fundamentadora. As primeiras conclusões desta orientação são tratadas nos Sonhos de um Visionário (1765). O método da razão fundamentadora não pode ser empregado no vazio e no abstracto, mas unicamente no terreno sólido da experiência. A metafísica não aparece já a Kant, como a Wolff e a Baumgarten, como "a ciência de todos os objectos possíveis enquanto possíveis", mas antes como "a ciência dos limites da razão humana", pois que ela deve determinar em
primeiro lugar o Emite intrínseco do possível que é a experiência. "Não tenho aqui determinado exactamente esses Emites, dizia ele (11, § 2), mas indiquei-os quanto basta para que o leitor reflectindo verifique que pode dispensar-se de todas as investigações inúteis em torno de cada questão cujos dados se deveriam encontrar num mundo distinto do que ele sente". E reconhecia o mérito da sabedoria "no escolher, entre os inumeráveis problemas que se apresentam, aqueles cujas soluções preocupam o homem" (H, § 3). 82 Kant aceitava assim plenamente o ponto de vista inglês, ponto de vista que se pode exprimir em que Locke tinha feito prevalecer no empirismo duas proposições fundamentais: LO, A razão não pode ir mais além dos limites da experiência. 2.*, A experiência é o mundo do homem, o mundo daqueles problemas que "preocupam" o homem. Mas este ponto de vista articulava-o e fundia-o ao mesmo tempo com o método do iluminismo wolfiano: a razão deve fundamentar, precisamente nestes limites, a capacidade e os poderes do homem. Com o enxerto e a fusão destas duas exigências nascia a filosofia crítica de Kant. § 515. KANT: A ANÁLISE TRANSCENDENTAL Esta análise encontrava-se assim frente ao problema da natureza e da extensão dos limites da razão humana. Donde pode vir a indicação desses limites? Qual é a sua extensão efectiva? São tais estes limites que podem assegurar o valor do conhecimento e, em geral, de qualquer atitude humana que os reconheça explicitamente? São estas as perguntas em torno das quais se afadiga a meditação de Kant a partir da Dissertação de 1770. Já nesta é evidente a resposta de Kant à terceira daquelas perguntas: o reconhecimento dos limites que a actividade humana encontra em qualquer campo não tira valor a essa actividade, mas é antes a única garantia possível da sua validade. Noutros termos, uma "ciência dos limites da razão 83 humana" não é apenas a certificação ou a verificação de tais limites, mas também e sobretudo a justificação, precisamente em virtude destes limites e sobre o seu fundamento, dos poderes dá razão. É este o aspecto fundamental da filosofia critica de Kant, aspecto pelo qual ela foi compreendida e praticada pelo seu autor como análise transcendental. Acerca da primeira questão, um ponto ficou sempre firme na obra de Kant: os limites da razão humana. só- podem ser determinados pela própria razão. Estes limites não lhe podem ser impostos de nenhuma maneira de fora porque a actividade da razão é autónoma e não pode assumir do exterior a direcção e guia do seu procedimento. Por isso Kant devia combater como fez incansavelmente, não só nas suas obras principais, mas também nos escritos menores - toda a tentativa para assinalar limites à razão em nome da fé ou de uma experiência mística ou supra-sensível qualquer. Elo foi sempre- o adversário resoluto de toda espécie de fideísmo, misticismo e transcendentalismo: os limites da razão são para ele os limites do homem; e querê-los atravessar em nome de uma coisa superior à razão, significa apenas aventurar-se em sonhos arbitrários e fantásticos. Não obstante, sobre o modo pelo qual a razão possa assinalar os seus próprios limites e
erigir-se em juiz de si própria, Kant esteve evidentemente longo tempo indeciso. A Dissertação apresenta sobre este problema uma solução diferente da que foi dada na Crítica da Razão Pura. Na carta a Lara84 bert (2 de Setembro de 1770), com a qual acompanhava o envio da Dissertação, Kant previa a necessidade de uma ciência especial, puramente negativa, dita Fenomenologia Geral que deveria determinar * valor e os limites da sensibilidade para evitar toda * confusão entre os objectos de própria sensibilidade e os do entendimento. E na realidade, na Dissertação, Kant serviu-se da distinção nítida entre, mundo sensível e mundo inteligível com o fim explícito de assinalar os limites da sensibilidade mas com o resultado involuntário (que se toma depois voluntário e explícito na Crítica) de estabelecer também limites à razão. O resultado principal da Dissertação é, por um lado, a delimitação exacta da extensão do conhecimento sensível, o qual vem a compreender em si também a geometria que, embora derivada do uso lógico do entendimento, diz sempre, respeito aos fenómenos, isto é, aos objectos da sensibilidade; e pelo outro, é a contraposição nítida entre o conhecimento intelectual próprio do homem e uma intuição intelectual, como seria a de Deus, criadora dos próprios objectos. Kant diz efectivamente (§ 10): "Toda a nossa intuição é limitada originariamente a uma certa forma, a única sob a qual a mente pode ver alguma coisa imediatamente, isto é singularmente, e não apenas conceber discursivamente por meio dos conceitos gerais. Mas este princípio formal da nossa intuição (espaço e tempo) é a condição pela qual qualquer coisa pode ser objecto dos nossos sentidos, mas, como condição do conhecimento sensível, não pode servir de intermediário 85 para a intuição intelectual. Além disso, toda a matéria do nosso conhecimento é dada unicamente pelos sentidos mas o númeno como tal não é concebível por meio de representações obtidas dos sentidos; de maneira que o conceito inteligível, enquanto tal, é privado de todos os dados, da intuição humana. A intuição da nossa mente é sempre passiva; e por isso só é possível enquanto qualquer coisa pode excitar os nossos sentidos. Pelo contrário, a intuição divina, que é o princípio dos objectos e não deriva deles o seu principio, é independente e arquétipo e é por isso inteiramente intelectual." Estes pensamentos que retomam em forma quase idêntica ao longo de toda a Crítica da Razão Pura constituem a directriz que inspirou o desenvolvimento ulterior da obra de Kant. Todavia, na Dissertação, o fim que Kant se propõe explicitamente é o de fazer que a certeza dos limites da sensibilidade sirvam não só para garantir o valor da própria sensibilidade, mas também e principalmente para garantir a liberdade do conhecimento intelectual frente à sensibilidade. Neste escrito Kant realizou pela primeira vez a análise transcendental do mundo sensível, mas não ainda a do mundo intelectual que permanece ligado no seu pensamento à metafísica dogmática e aos seus processos. Se se examinam, porém, os princípios que estabelece, na quarta parte do escrito, em tomo do método da metafísica vê-se imediatamente que estes princípios implicam também uma limitação essencial das possibilidades desta ciência. Com efeito, Kant' consegue admitir 86 como regra que tudo aquilo que não pode ser conhecido pela intuição não pode ser pensado absolutamente, e, portanto, é impossível" (§ 2'@). E este, será depois o princípio da crítica de toda a metafísica, instaurada na Crítica da Razão Pura. Esta obra assinala a decisão de Kant de estender a análise transcendental a todo o domínio
das possibilidades humanas, a começar pelo conhecimento racional. Kant convenceu-se, nos dez anos que decorrem entre a Dissertação e a Crítica, que não só para a sensibilidade, mas também para o conhecimento racional, para a vida moral, para o gosto, vale o princípio da filosofia transcendental de que toda a faculdade ou atitude do homem pode encontrar a garantia da sua validade, o seu fundamento, unicamente no reconhecimento explícito dos seus próprios limites. O reconhecimento e a aceitação do limite torna-se em qualquer campo a norma que dá validade e fundamento às faculdades humanas. A impossibilidade do conhecimento em transcender os limites da experiência torna-se agora base da validade efectiva do conhecimento; a impossibilidade da actividade prática de alcançar a santidade (como identidade perfeita da vontade e da lei) torna-se a norma da moralidade que é própria do homem; a impossibilidade de subordinar a natureza ao homem torna-se a base do juizo estético e teleológico. Kant renunciou neste ponto a toda a vida de evasão dos limites do homem. Como ele próprio reconhece, deve esta renúncia a Hume que o despertou do seu sono dogmático, mas ao mesmo tempo afastou-se também de toda a 87 possibilidade de cepticismo. O reconhecimento dos limites não é para ele, como para Hume, a renúncia a fundamentar a validade do conhecimento e, em geral, das manifestações do homem, mas antes a exigência de fundamentar o seu valor nos próprios limites. o Podemos recapitular do seguinte modo o caminho seguido por Kant até alcançar completamente o ponto de vista transcendental da @sua filosofia. Nos estudos juvenis da filosofia natural, Kant foi-se familiarizando com a filosofia naturalística do iluminismo inspirada por Newton. Esta filosofia, com o seu ideal de 'uma descrição dos fenómenos e com a renúncia a admitir causas e forças que transcenderiam tal descrição, levantou-lhe a exigência de uma metafísica que se constituísse como base dos próprios critérios limitativos. Tal metafisica poderia, sem embargo, valer-se .do método da razão fundamentadora que dominava o ambiente filosófico em que Kant se formara. As considerações dos empiristas ingleses, para as quais se orienta devido a essa exigência, puseram ante os seus olhos pela primeira vez essa metafísica como ciência limitativa e negativa, portanto, como uma autocrítica da razão. Este ponto de vista é já alcançado nos escritos publicados entre 1726 e 1765. Sucessivamente, e pela primeira vez na Dissertação (1770), o ponto de vista crítico esclarece-se como ponto de vista transcendental, limitadamente ao conhecimento sensível: a validade deste conhecimento é fundamentada nos seus próprios limites. Depois de 1781, o ponto de vista transcendental é alargado a todo o mundo do homem. 88 § 516. KANT: A CRITICA DA RAZÃO PURA A conclusão das análises de Hume é a de que o homem não pode alcançar, nem mesmo nos limites da experiência, a estabilidade e a segurança de um
saber autêntico. O saber humano é, no máximo, um saber provável - mas mesmo este saber provável vem a faltar quando ó homem transpõe os limites da experiência e se aventura pelos caminhos da metafísica. Estas duas conclusões do cepticismo de Hume são rebatidas por Kant. Em primeiro lugar, segundo Kant, existe um saber autêntico e é a nova ciência matemática da natureza. Em segundo lugar, embora a metafísica seja quimérica, o esforço do homem para a metafísica é real; e se é real, deve ser de algum modo explicado. A própria metafísica, mesmo na sua vã pretensão de conhecimento, levanta um problema que é resolvido procurando na constituição do homem o móbil último da sua tendência para transcender a experiência. A indagação crítica que nega a possibilidade de resolver certos problemas não pode descuidar a explicação da génese destes problemas e a sua raiz no homem. Ela institui o tribunal que garante a razão nas suas pretensões legítimas e condena aquelas que não têm fundamento na base do limite que é intrínseco à própria razão como lei imutável. Tal tribunal é a Crítica da Razão Pura, isto é uma auto-crítica da razão em geral a respeito de todos os conhecimentos a que pode aspirar independentemente da experiência. A tal crítica cabe decidir sobre a possibilidade ou impossibilidade da metafísica como também sobre as suas 89 fontes, sobre a sua extensão e sobre os seus limites (K. r. V., pref. A XI). Que haja conhecimentos independentes da experiência é um facto, segundo Kant. Todo o conhecimento universal e necessário é independente da experiência, dado que a experiência, como Hume e Leibniz haviam reconhecido em pontos de vista opostos, não pode dar valor universal e necessário aos conhecimentos que derivam dela. Mas o conhecimento "independente da experiência" não significa conhecimento "que precede a experiência". Todo o nosso conhecimento começa com a experiência, mas pode acontecer que não derive todo da experiência e que seja um composto das impressões que derivam da experiência e daquilo que lhe acrescenta a nossa faculdade de conhecer, por ela estimulada: Em tal caso, é necessário distinguir no conhecimento uma matéria, constituída pelas impressões sensíveis, e uma forma, constituída pela ordem e unidade que a nossa faculdade cognoscitiva dá a tal matéria. A matemática e a física pura (os princípios da física newtoniana) contêm indubitavelmente verdades universais e necessárias, portanto independentes da experiência. Efectivamente contêm juízos sintéticos a priori: sintéticos no sentido do que neles o predicado acrescenta algo de novo ao sujeito (o que não acontece nos juízos analíticos); a prior!: porque têm uma validade necessária que a experiência não pode dar Ora o primeiro problema de uma crítica da razão pura é ver como são possíveis os juízos sintéticos a priori - o que equivale ao problema de saber como é possível uma matemática e uma física pura. A crítica da 1
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razão pura deve alcançar e realizar a possibilidade fundamentadora da ciência, do autêntico saber humano. É evidente que esta possibilidade não pode ser reconhecida na matéria do conhecimento, constituída pela multiplicidade desordenada e amorfa das impressões sensíveis. Deve ser, pois, recomendada na forma do conhecimento, isto é nos
elementos ou funções a priori que dão ordem e unidade a essas impressões. O primeiro objectivo da crítica da razão será o de descobrir, isolando-os, quais os elementos formais do conhecimento que Kant chama puros e a priori, no sentido de que estão privados de qualquer referência à experiência e não independentes dela. @@Deste modo, a investigação da razão, embora mantendo-se rigorosamente nos limites da experiência, estará em grau de justificar a própria experiência na sua totalidade, portanto também os conhecimentos universais e necessários que se encontram no seu âmbito. O segundo objectivo da crítica da razão pura será o de determinar o uso possível dos elementos a priori do conhecimento, isto é o método do próprio conhecimento. Assim a crítica da razão pura dívidir-se-á em duas partes principais (que são de facto as duas partes da obra homónima de Kant): a doutrina dos elementos e a doutrina do método. E dado que. se chama transcendental todo o conhecimento enquanto concerne, "não já os objectos, mas o nosso modo de conhecê-los enquanto deve ser possível a priori", assim haverá uma doutrina transcendental dos elementos e uma doutrina transcendental do método. E chamar-se-ão transcendentais também 91 as ulteriores divisões destas duas divisões fundamentais. Ora o primeiro resultado que nasce do conceito do conhecimento humano como composição ou síntese de dois elementos, um formal ou a priori, o outro material ou empírico, que é o objecto do próprio conhecimento, não é o ser em si, mas o fenómeno. Para o homem conhecer não significa criar: o entendimento humano não produz, conhecendo-a, a realidade que é seu objecto. Neste sentido, não é um entendimento intuitivo como é talvez o entendimento divino para. o qual o acto de conhecer é um acto criativo.- O entendimento humano não intui, mas pensa; não cria, mas unifica; deve ser-lhe dado, portanto, por outra fonte o objecto do pensar, o múltiplo a unificar. Esta fonte é a sensibilidade. Mas a própria sensibilidade é substancialmente passividade; aquilo que ela possui recebe-o, e não pode recebê-lo senão nos modos que lhe são próprios. Tudo isto significa que o objecto do conhecimento humano não é a coisa em si, mas aquilo que da coisa pode aparecer ao homem: o fenómeno. Significa também que o conhecimento humano, enquanto é sempre e apenas conhecimento de fenómenos, é sempre e apenas experiência. Mas o fenómeno não é aparência ilusória; é um objecto e um um objecto real apenas na relação com o sujeito cognoscente, *isto é como o homem (K. r. V., § 8, B 60, A 43). A investigação crítica é investigação transcendental enquanto versa sobre a possibilidade condicionante de todo o conhecimento autêntico e, portanto, sob as formas a priori da experiência. Estas formas são, 92 por um lado, sensíveis (intuições puras, espaço e tempo), pelo outro, intelectuais (conceitos puros, categorias). A experiência é a totalidade concreta do conhecimento: ela é constituída não apenas pela sensibilidade mas também pelo entendimento e é condicionada igualmente pelas formas de uma e outra. Desta maneira, Kant efectuou a sua revolução copernicana. @Como Copérnico, que não podendo explicar os movimentos celestes com a suposição de que todo o exército dos astros gira em redor do espectador, o conseguiu explicar melhor supondo que o observador
gira sobre si mesmo, do mesmo modo, Kant, em vez de admitir que a experiência humana se modela sobre os objectos, em cujo caso a sua validade seria impossível, supõe que os próprios objectos enquanto fenómenos se modelam sobre as condições transcendentais da experiência. § 517. KANT: AS FORMAS DA SENSIBILIDADE Na Crítica da Razão Pura, a Estética Transcendental é dedicada à determinação dos elementos a priori da sensibilidade, a Analítica Transcendental (primeira parte da Lógica Transcendental que compreende também a Dialéctica Transcendental) é dedicada à determinação dos elementos a priori do entendimento e à sua justificação. As formas a priori da sensibilidade ou intuições puras são o espaço e o tempo, os quais não são, portanto, nem conceitos, nem qualidades das coisas, mas condições da nossa intuição delas. Nós não podemos perceber nada se não no espaço e no tempo: todas 93 as coisas que percebemos existem, portanto, no espaço e no tempo, se bem que estes sejam puros elementos subjectivos do conhecer sensível. No espaço, é fundamentada a validade da geometria, a qual pode determinar as propriedades espaciais de todos os objectos possíveis da experiência, precisamente porque não se fundamenta na consideração de alguns desses objectos, mas no da forma universal que os condiciona. O tempo é, depois, a forma do sentido interno, isto é a ordem da sucessão na qual nós percebemos os nossos estados internos e, portanto, nós próprios e, através dos estados internos, as coisas no espaço. Por isso, espaço e tempo não são nem conceitos empíricos, isto é retirados da experiência externa ou interna (como sustentava Locke, por exemplo); nem conceitos discursivos, isto é universais, das relações das coisas entre si (como sustentava Leibniz, por 1 exemplo); mas "representações, necessárias a priori" que estão no fundamento de todas as intuições, Como tais são "subjectivos"; e, em tal sentido, Kant afirma a sua idealidade transcendental isto é não dizem respeito às coisas tais como são em si próprias. São todavia reais de uma realidade empírica no sentido de que pertencem efectivamente às coisas tais como são percebidas por nós. As coisas percebidas são por isso enquanto tais já constituídas no espaço e no tempo e os seus caracteres espaciais e temporais são nelas impressos pela forma subjectiva que a sua percepção consente. Esta doutrina limita, segundo Kant, de modo radical a pretensão do conhecimento sensível. "Toda 94
a nossa intuição, diz ele, não é mais que a representação de um fenómeno; as coisas que nós intuimos não são em si próprias como nós as intuimos nem as relações entre elas são em si próprias tais como nos aparecem; e se tirássemos do centro o nosso sujeito ou mesmo só a constituição subjectiva da sensibilidade em geral, toda a constituição, todas as relações dos objectos no espaço e no tempo, bem corno o espaço e o tempo desapareceriam porque como fenómenos não podem existir em si próprios mas apenas em nós" (K. r. V., § 8). Quando Kant diz "em nós" não entende, todavia, os homens: pode acontecer, afirma ele, que cada ser pensante finito se encontre em idênticas condições do homem. Mas também neste caso a intuição sensível, como intuição derivada, não diria nada sobre as coisas em si próprias, dado que sobre estas só poderia dizer qualquer coisa a intuição originária, isto é não sensível mas intelectual, de um Ser do qual as coisas dependeriam quanto à sua própria existência (1b., B 72). § 518. KANT: AS CATEGORIAS E A lógica FORMAL Todavia, o nosso conhecimento não se fixa na sensibilidade que é passividade ou receptividade. É também pensamento, isto é actividade ou espontaneidade. "Todas as intuições, enquanto sensíveis, repousam sobre as afecções; e também os conceitos sobre as funções", diz Kant (K. r. V., B 93). Mas nem tal espontaneidade é criadora, no sentido de pro. duzir os objectos; é, pelo contrário, discursiva, no 95 sentido de acontecer por meio de conceitos. Ora a actividade discursiva é aquela por meio da qual se julga: assim a actividade fundamental do entendimento, enquanto faculdade dos conceitos, é juízo, Pensar significa julgar. Portanto, se se querem isolar as condições formais que presidem à actividade intelectual, deve-se considerar os próprios produtos desta actividade, isto é os juízos, mas prescindindo de todo o seu conteúdo particular e considerando-os na sua forma simples, como faz precisamente a lógica. Reconhecidas assim as classes dos juízos, pode-se fazer corresponder a cada uma delas uma determinada função intelectual que será a categoria. Kant dá assim as seguintes tábuas dos juízos e das categorias: TÁBUAS DOS JUIZOS Quantidade Qualidade Relação Modalidade Particular Singular Universal Afirmativo Negativo Infinito Categórico Hipotético Dísjuntivo
Problemático Assertórico Apodictico TÁBUA DAS CATEGORIAS Quantidade Qualidade Relação Modalidade Multiplicidade Realidade Substancialidade e inerência Possibilidade e impossibilidade Unidade Negação Causalidade e dependência Existência e não Existência Totalidade Limitação Comunidade ou reciprocidade de acção Necessidade e causalidade 96 O uso da palavra "juizo" para significar aquilo que na lógica tradicional, a que Kant faz referência, se chamava "proposição", indica que Kant toma em consideração não a fórmula linguística em que um juizo se exprime, mas, segundo a orientação que a lógica de Port Royal (§ 416) havia feito prevalecer, o acto mental que consiste no unir entre si duas representações. Além disso, Kant afasta-se da lógica tradicional em alguns pontos da sua classificação. Insere entre os juízos de quantidade um "juízo singular que, para a lógica tradicional, era idêntico ao universal (de facto, para ela "o homem é mortal" significa "todos os homens são mortais"). Distingue o juízo infinito, por exemplo, "a alma é não-mortal" do juízo afirmativo. Insere nos juízos de relação, que são as proposições hipotéticas da tradição estóica, o "juizo categórico" que é o oposto do hipotético; e entre as proposições modais o "juizo assertórico" que era tradicionalmente contraposto a este. Todavia, com estas modificações, Kant aceitou substancialmente a
tradição da lógica formal e aceitou-a porque considerou que a lógica geral pura (isto é não aplicada), dado que abstrai todo o conteúdo de conhecimento e toda a consideração psicológica, tem apenas como objecto princípios a priori * é, portanto, um cânon do entendimento e da razão * respeito de qualquer uso, tanto empírico como transcendental (K. r. V., B 78). No curso de Lógica (que foi publicado por um aluno), Kant afirma que a lógica tem como objecto as regras necessárias do entendimento, isto é aquelas sem as quais a própria função do entendimento não seria possível: não as 97 acidentais que dependem de um determinado objecto de conhecimento e são, por isso, tantas quantos são os objectos. "A ciência destas regras universais e necessárias, diz elo, é, portanto, simplesmente a ciência da forma da nossa consciência intelectual ou do nosso pensamento. Podemos fazer uma ideia da possibilidade de uma tal ciência do mesmo modo que fazemos a ideia de uma gramática geral que não contenha senão a forma simples da linguagem em geral e não as palavras que pertencem à matéria da linguagem> (Logik, A 3-4). Desta maneira Kant pressupunha a validade da lógica formal como ciência a priori das funções do entendimento nas suas regras essenciais de funcionamento. Mas negava que tal ciência constituísse um órgão de conhecimento, isto é um instrumento para produzir conhecimento autêntico. Esta pretensão é antes reconhecida por ele como o fundamento da dialéctica, isto é do uso impróprio ou arbitrário do conhecimento a priori e, portanto, como arte puramente sofística. Da lógica geral, distingue a lógica transcendental. Esta última refere-se apenas a objectos, a priori, enquanto a primeira pode referir-se indistintamente a qualquer tipo de conhecimento; e, mais especificamente, propõe-se como seu problema específico o da validade de tal conhecimento: o problema fundamental da Oltica. A parte da lógica transcendental destinada a este objectivo é aquele que Kant chamou "dedução transcendental": e nela vê Kant "o mais difícil problema da Crítica" (K. r. V., pref. A XVI). 98 § 519. KANT: A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL A dedução transcendental não foi "um problema difícil" apenas para Kant: foi-o e é ainda para os historiadores e os expositores do seu pensamento dado que a sua interpretação comanda toda a interpretação da filosofia kantiana. A maior dificuldade deriva do facto de que, a partir de Fichte, o idealismo clássico alemão adoptou o termo "dedução" para indicar uma exigência que é bastante mais genérica e geral do que aquela que Kant compreendia com o mesmo termo -, isto é a exigência de que "todo o demonstrável deve ser demonstrado, todas as proposições devem ser deduzidas, através do primeiro e supremo princípio fundamental" (FICHTE, WissenschaftsIehre, 1794, § 7); ou que todas as determinações do pensamento são para mostrar na sua necessidade, são essencialmente para deduzir" (HEGEL, Ene., § 42). Este sentido genérico ou generalizado do termo, que pode encontrar a sua aplicação apenas no âmbito
do idealismo segundo o qual tudo deriva do Eu ou da razão e, por isso, tudo pode ser deduzido de um ou de outra, é completamente estranho à filosofia de Kant na medida em que é estranha a este tipo de idealismo. Kant afirma explicitamente assumir o termo no significado jurídico, segundo o qual significa a demonstração da legitimidade da pretensão que se avança e respeita por isso ao quid júris não ao quid facti de uma questão. Noutros termos, provar que a pessoa X está na posse do objecto y não é uma dedução; mas é 99 uma dedução demonstrar que x tem sobre o objecto y um direito de propriedade. Kant ateve-se sempre a este significado restrito e específico da palavra "dedução", embora com algumas oscilações terminológicas. Uma destas oscilações está na contraposição da dedução empírica que consistiria em mostrar o modo como um conceito é adquirido por meio da experiência ou da reflexão e diria respeito, portanto, o facto de posse, à dedução transcendental: contraposição que está no § 13 da Crítica da Razão Pura. Mas pouco mais adiante, no mesmo parágrafo, a propósito de Locke, Kant observa que, nesse caso, para falar com propriedade, não se pode usar o termo "dedução" porque se trata apenas de uma questão de facto. Por outra banda, Kant recorreu ao termo "dedução" todas as vezes que se tratava de justificar a legitimidade do uso de certos conceitos. Assim formulou a exigência de uma "dedução" da lei moral como "justificação da validade objectiva e universal da lei", embora admitindo que, neste caso, ela não é possível (Crit. R. Prática, § 3, nota 2); formulou a exigência da dedução dos princípios da faculdade do juizo como demonstração da sua "necessidade lógica objectiva" (Crit. do Juízo, § 31 e Intr. § V); falou da dedução da divisão de um sistema" como "prova do seu acabamento e da sua continuidade" (Metaf, dos Costumes, 1, lntr., § II, nota). Noutros termos, a exigência da dedução apresenta-se na obra de Kant, sempre que se trata de justificar a validade de uma pretensão qualquer: a referência objectiva das categorias, o valor universal e necessário da lei moral, a validade 100 objectiva do juizo do gosto, o acabamento e continuidade de uma classificação sistemática. Em todos estes casos, não se trata de deduzir (isto é de fazer derivar logicamente) qualquer coisa de um princípio primeiro, absoluto e incondicionado, segundo a exigência indicada por Fichte e acolhida pelo idealismo romântico, mas de encontrar o fundamento de uma pretensão, isto é a condição ou o conjunto das condições que tomam possível qualquer coisa; ou mais brevemente, a possibilidade real ou transcendental de qualquer coisa, enquanto distinta da sua simples possibilidade formal ou lógica. Deste ponto de vista, a dedução, no único, significado legítimo do termo, é sempre dedução transcendental, isto é detem-Linação do fundamento e da possibilidade validificante. E não se pode chamar dedução a descoberta, a descrição e a classificação dos objectos a deduzir porquanto tais operações podem às vezes, segundo Kant, chamarem-se "demonstrações". Efectivamente, Kant não chamou dedução à formulação da tábua das categorias que ele considera consignada à reflexão sobre a experiência científica e cuja demonstração completa foi para elo obtida mediante considerações de lógica formal. Nem chamou dedução a descoberta da lei moral que, para ele, é um factum da razão; ou das formas do juizo do gosto descobertas mediante a reflexão sobre a actividade sentimental do homem. Pelo contrário, compreende como dedução a demonstração da validade das formas cognoscitivas, da lei moral e do juizo estético teleológico, demonstração alcançada mercê
da de101 monstração do seu fundamento, isto é das suas condições de possibilidade. Em segundo lugar, é claro que não há uma única dedução transcendental: isto é, não há um único processo dedutivo que constitua, no seu conjunto, o sistema inteiro da filosofia. Pelo contrário, existem tantas deduções quantos são os campos a que pertencem os objectivos a deduzir e tais deduções são autónomas umas em relação às outras. Em qualquer campo, como no da moral, também se apresenta a exigência da dedução, mas não pode ser satisfeita. Em terceiro lugar e consequentemente, o princípio da dedução, isto é o fundamento, não é único ou absoluto, mas deve ser formulado, em cada campo, de modo específico, ou seja em conformidade com a estrutura do campo e das pretensões que nele se apresentam. Não existindo um único fundamento, não surge tão-pouco a questão de qual seja o fundamento: se é Deus ou a natureza, o sujeito ou o objecto, o eu ou a razão etc. Efectivamente, a dedução transcendental não põe à cabeça um princípio absoluto e incondicionado deste género, mas apenas a possibilidade validificante da pretensão que se apresenta num território qualquer do saber humano: possibilidade que adquire caracteres reais ou transcendentais, segundo a natureza e os caracteres do próprio território. Prescindindo destes caracteres, isto é na sua natureza pura e simples de fundamento em geral, o próprio fundamento não é mais que a possibilidade de ordens várias de condicionamento e reconduz por isso à categoria do possível que Kant 102 pretendeu esclarecer nos seus escritos pré-críticos. Portanto, o processo da dedução não põe à cabeça uma necessidade incondicionada em que se reflicta a necessidade incondicionada do seu princípio (como no caso da dedução idealística), mas uma necessidade condicionada no sentido de que os objectos da dedução (categorias, leis, juízos) são esclarecidos necessariamente por si e na medida em que são relacionáveis com a possibilidade que está no seu fundamento. O resultado mais importante da dedução é por isso, em última análise, o de limitar e regular o uso dos conceitos de que são possíveis usos diversos: ou seja determinar, entre os vários usos possíveis, aquele realmente possível no sentido de que assegura a eficácia e a validade do conceito. § 520. KANT: A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL DAS CATEGORIAS A dedução transcendental das categorias, isto é dos conceitos puros do entendimento, não é, como se viu, a ú nica dedução transcendental, mas é a primeira em que Kant defronta - e a mais difícil e em torno da qual trabalhou mais longamente. A segunda edição da Crítica da Razão Pura (1787) contém uma reelaboração radical da exposição kantiana deste ponto. Dado que esta exposição é, pelo menos relativamente, a mais clara e completa, em todo o caso aquela na qual o próprio Kant considera mais autenticamente expresso o seu pensamento. não há motivo para descurá-la a favor daquela con103 tida na primeira edição. A preferência atribuída a esta última, sobretudo pelos idealistas ou pelos críticos idealistas de Kant, explica-se facilmente considerando que, pela sua ambiguidade, ela se presta a ser interpretada mais
facilmente como dedução idealística. Kant começa por observar que o problema da dedução não se apresenta em relação às formas da sensibilidade espaço e tempo. Estas não são susceptíveis de usos diferentes, mas de um único uso que é o válido. Efectivamente, um objecto não pode aparecer ao homem, isto é ser percebido por ele senão através destas formas. A sua referência necessária aos objectos de experiência está assim garantida: um objecto que não é dado no espaço e no tempo não é um objecto para o homem porque não é intuído. O problema da dedução subsiste, pelo contrário, para aquilo que respeita às formas do entendimento porque os usos possíveis destas formas sã o diferentes e a dedução deve determinar qual é o válido. As categorias do entendimento, por exemplo a causalidade, poderiam também não condicionar os objectos da experiência e, por outro lado, podem ser usadas também em relação aos objectos que não fazem parte da experiência (por exemplo, Deus ou as coisas em si). A dedução transcendental deve mostrar-se, e quando estes objectos se referem à experiência, deve pôr a claro a legitimidade e os limites da s a pretensão e as regras do seu uso legítimo. Ora, para fazer isto, Kant começa por distinguir a conexão necessária, isto é objectiva, dos objectos 104 de experiência, da ligação subjectiva que pode existir entre as percepções daqueles objectos. Que duas percepções estejam de qualquer modo ligadas, por exemplo, sejam dadas no mesmo espaço ou também contemporaneamente ou sucessivamente no tempo, não implica de modo nenhum que os fenómenos correspondentes devam ter entre si uma relação necessária. Esta relação necessária é, todavia, segundo Kant, a "forma lógica de todos os juízos". Por exemplo, o juízo "o corpo é pesado" não significa que "todas as vezes que levo um corpo, sinta uma impressão de peso". O juízo exprime uma relação objectiva, independente da minha percepção, entre o corpo e o peso. Portanto, Kant considera inadequada a definição (introduzida pela Lógica de Port Royal) do juízo como relação entre duas representações. Esta relação seria puramente subjectiva na medida em que a unidade própria do juízo, expressa pela cópula "é", é uma unidade objectiva, inerente aos próprios objectos de que se trata (ou seja, no exemplo citado, ao corpo e ao peso) (K. r. V., § 19). Toda a experiência (e Kant tem em mente principalmente a experiência científica) é constituída por relações objectivas desta natureza. Ora, segundo Kant, estas relações têm o seu fundamento no eu penso ou "unidade sintética originária da apercepção". Kant afirma: O "eu penso" deve poder acompanhar todas as minhas representações, de outro modo seria necessário imaginar alguma coisa que não poderia ser pensada; e, em tal caso, a representação ou seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria" (lb. § 16). Isto quer dizer que, se existe uma 105 síntese objectiva, como é a do juizo, deve existir uma possibilidade de síntese, ou seja uma função unificante; e o "eu penso", que é esta função, deve poder acompanhar todas as representações a unificar. O deve poder acompanhar (muss begleiten kõnnen) exprime uma possibilidade, ou antes a possibilidade fundamental da unificação. O deve refere-se ao modo por que se estabelece ou se reconhece tal possibilidade: ela deve existir, se existe (como existe no juízo) a unidade objectiva das representações. Como possibilidade de
síntese, o eu penso pode juntar as representações numa unidade que é a estrutura objectiva da experiência; e não só da experiência externa. isto é. dos fenómenos naturais, mas também da experiência interna, ou seja, desse fenómeno que é o eu para si mesmo na consciência. A síntese do eu penso é, portanto, "o princípio supremo de todo o conhecimento humano" (1b., § 16): expressão que se deve entender, não no sentido de que ela seja o único princípio de que a consciência humana, na sua totalidade, se pode deduzir, mas sim no sentido de que constitui a condi4o ou a possibilidade de validez objectiva de todo o conhecimento. De facto, a primeira característica do "eu penso" ou, como também Kant diz, da "unidade da apercepção", é que ela é uma unidade objectiva: por outros termos, não é mais do que a possibilidade da experiência como unidade. Nas notas fragmentárias em que Kant consignou as meditações fatigantes dos seus últimos anos e que deveriam explicar a passagem dos princípios transcendentais à física e constituir ao mesmo tempo a última exposição da sua 106 doutrina filosófica, Kant insiste continuamente no carácter objectivo da apercepção transcendental. A experiência, como unidade necessária dos fenómenos, contrapõe-se continuamente, nestas notas, ao conjunto das representações que podem ter entre si formas de unidade casuais e variáveis. A subjectividade transcendental, o "eu penso", não é mais do que a pura possibilidade da experiência (Opus Postumum, IX, 2. p. 280, 308, 418, 438, 469, etc.). Mas este mesmo aspecto da unidade transcendental em que Kant insistia nos últimos anos da sua vida, encontra-se já suficientemente elucidado na exposição da primeira e da segunda edição da Crítica da Razão Pura. Pode-se exprimir sucintamente este aspecto da dedução transcendental dizendo que o "eu penso", como acto originário do entendimento, é a possibilidade de experiência como conexão necessária entre os fenómenos. Sobre a natureza subjectiva do "eu penso", há, pelo contrário, uma diferença substancial entre a exposição da primeira e da segunda edição da Crítica. Na primeira edição, a apercepção pura é definida como o eu estável e permanente que constitui o correlato de todas as vossas representações, com respeito à simples possibilidade de ter consciência delas"; de modo que "todo o conhecimento pertence a uma apercepção pura e omnicompreensiva, assim como toda a intuição sensível, enquanto representação, pertence a uma intuição pura interna, isto é, ao tempo" (K r. V., A 123-124). Na segunda edição, ao invés, o carácter subjectivo da unidade transcendental é definido sobretudo em relação à sua pura forma107 lidade, mediante o contraste, que se repete frequentemente (1b., §§ 16, 17, 21), com o carácter intuitivo de uma problemática inteligência divina. Ora, o eu estável e permanente, de que falava a primeira edição, é uma realidade e, precisamente, uma realidade psicológica; o eu formal da segunda edição não é mais do que uma possibilidade, a possibilidade originária da unificação da experiência. Esta possibilidade de unificação pressupõe o múltiplo da experiência, que por isso deve ser dado, de maneira que esta pode
agir e concretizar-se apenas nas modalidades particulares que o múltiplo põe à sua disposição. Com isto define a condição, não de, todo o entendimento possível, mas de um entendimento finito, isto é, humano. "Este principio, diz Kant (1b., § 17) não é um principio para qualquer entendimento possível em geral, mas apenas para aquele por cuja apercepção pura na representação eu sou não se dá nenhuma multiplicidade. Ao invés, o entendimento por cuja autoconsciência fosse dado ao mesmo tempo o múltiplo da intuição, um entendimento para cuja representação já existissem ao mesmo tempo os objectos dessa representação, não teria necessidade de um particular acto de síntese do múltiplo na unidade da consciência, do qual pelo contrário, tem necessidade o entendimento humano, que apenas pensa e não intui. Mas este acto é, inevitavelmente, o primeiro princípio do entendimento humano, de modo que ele não pode sequer fazer a mínima ideia de outro entendimento possível que o intua por si mesmo ou possua uma intuição sensível mas de natureza diferente daquela que cons108 titui fundamento do espaço e do tempo". Nestas considerações, frequentemente repetidas, Kant insiste no carácter finito do entendimento humano e do acto originário em que ele se exprime. No parágrafo 25 encontram-se esclarecimentos conclusivos sobre este acto originário. Kant explica no parágrafo precedente o paradoxo (de que não existe vestígios na primeira edição) que consiste em o homem se conhecer não como é em si mesmo mas como aparece a si mesmo. Conhece-se a si mesmo, isto é, tal como conhece todos os outros objectos, como um simples fenómeno. O paradoxo é inevitável, dada a natureza puramente formal do "eu penso", o qual, por si mesmo, não faz conhecer nada como tão-pouco o poderá fazer uma pura categoria que prescinda de toda a intuição sensível. Para se conhecer a si mesmo, portanto, o homem tem necessidade não só do "eu. penso", que é a possibilidade deste e de qualquer outro conhecimento, mas também da multiplicidade sensível que lhe é fornecida através da forma pura do sentido interno, o tempo. Conhece-se apenas como determinado pela multiplicidade do sentido interno, numa palavra como fenómeno. Posto isto, Kant acrescenta (§ 25): "Na síntese transcendental do múltiplo das representações em geral, e, portanto, na unidade sintética originária da apercepção, eu tenho consciência de mim mesmo, não como eu apareço a mim mesmo, nem como sou em mim mesmo, mas apenas de que eu sou. Esta representação é um pensar, não um intuir. Ora, dado que para o conhecimento de nós mesmos se requer, além da operação do pensamento 109 que reduza a multiplicidade de toda a possível intuição à unidade da apercepção, também um determinado modo de intuição através do qual o múltiplo seja dado, assim a minha própria existência não é uma aparição (o muito menos uma aparência). Mas a determinação da minha existência só pode efectuar-se segundo a forma do sentido interno, nesse modo particular em que o múltiplo, que eu unifico, pode ser dado na intuição interna; e é por isso que eu não adquiro um conhecimento de mim tal qual sou, mas apenas como apareço a mim mesmo. A consciência de si mesmo está, portanto, muito longe de ser um conhecimento de si mesmo, não obstante todas as categorias que constituem o pensamento de um objecto em geral mediante a unificação do múltiplo numa apercepção". A consequência disto é que, no acto da apercepção, "eu existo como inteligência que é consciente apenas da sua capacidade de unificação". E, numa nota, Kant
reforça de modo explícito e definitivo o último significado do "eu penso". "0 eu penso, diz Kant exprimo o acto de determinar a minha existência (Dasein). A existência é já dada por ele, mas o modo por que eu a devo determinar, isto é, pôr em mim o múltiplo que lhe pertence, ainda não está dado. Para isso, é necessária uma auto-intuição que tem por fundamento uma dada forma a priori, isto é, o tempo, que é sensível e pertence à receptividade do determinável. Ora, se eu não tenho também outra auto-intuição, que dê em mim o que é determinante e da qual eu tenha consciência só enquanto espontaneidade, de modo que este elemento determinante se dê antes do acto lio de determinar, tal como o tempo existe antes do determinável, eu não posso determinar a minha existência como a de um ser espontâneo; porém, ponho-me apenas como espontaneidade do meu pensamento, isto é, do determinar, e a minha existência permanece sempre determinável. apenas de maneira sensível, isto é, como existência de um fenómeno. Esta espontaneidade faz, todavia, que eu me chame inteligência". A preocupação dominante de Kant nestes textos que representam a formulação mais clara que ele logrou fazer sobre a natureza do "eu penso" é a de salvaguardar o carácter finito, isto é, não criativo, da actividade intelectual do homem. O eu penso é o acto da autodeterminação existencial do homem como ser pensante e finito. Esta autodeterminação é apenas a possibilidade de determinar uma multiplicidade dada e é por isso activa e concreta só no acto de aplicar-se a tal multiplicidade (que é a da intuição interna) e unificá-la de algum modo. Por isso, considerada em si mesma, no seu aspecto Somente subjectivo, esta possibilidade não é senão a consciência de uma espontaneidade (da capacidade de determinar) que tem o nome de inteligência. Revela-se aqui o significado daquela possibilidade condicionante e fundamental que a investigação crítica de Kant, aprofundando e desenvolvendo a tendência do iluminismo europeu, pretende pôr a claro. O "princípio supremo de todo o conhecimento humano", a possibilidade última da experiência humana, é uma possibilidade a um tempo subjectiva e objectiva; dado que é ao mesmo tempo a possibilidade que o homem tem de se determinar como determinante 111 em relação a um material determinável em geral, e a possibilidade que este material tem de se determinar em conformidade com a capacidade determinante do homem. O homem é inteligência (espontaneidade) em virtude da mesma possibilidade pela qual os fenómenos constituem uma totalidade organizada (experiência). Com o reconhecimento desta possibilidade, Kant fundava o valor do conhecimento humano precisamente sobre a natureza finita do homem, isto é, sobre o carácter não criativo da sua actividade cognitiva. De facto, em virtude da sua natureza finita, o homem é, subjectivamente, uma pura possibilidade de unificação, que só se torna concreta e activa perante uma multiplicidade sensível que lhe seja dada; mas, por outro
lado, este ser-lhe dado da multiplicidade sensível não é mais do que a possibilidade de ele mesmo se organizar em unidade. A doutrina de Kant exclui assim toda a possibilidade de interpretar o "eu penso" ou apercepção transcendental como uma autoconsciência criadora, no sentido que se tornará próprio do idealismo pós-kantiano de Fichte em diante. Não é por acaso que a segunda edição da Crítica, que apresenta a exacta elucidação transcendental do "eu penso", além dos apoios psicológicos ("o eu estável e permanente") que ainda se imiscuíam na primeira edição, contém também, entre os seus mais significativos aditamentos, uma "Refutação do idealismo" que é um corolário directo da dedução transcendental. A refutação de Kant é dirigida quer contra o idealismo problemático de Descartes que só declara indubitável o eu existo, quer contra o idealismo dogmático de Ber112 keley, que reduz as coisas no espaço a simples ideias. O teor desta refutação, o princípio a que obedece, é pelo próprio Kant posto a claro numa nota ao prefácio da segunda edição da Crítica (K. r. V., B 274 sgs.). "Se à consciência intelectual da minha existência na representação eu existo, que acompanha todos os meus juízos e as operações do meu intelecto, pudesse aliar uma determinação da minha existência através de uma intuição intelectual, a esta pertenceria necessariamente a consciência de uma relação com qualquer coisa fora de mim. Mas, conquanto essa consciência intelectual preceda verdadeiramente a intuição interna, a única na qual se pode determinar a minha existência, é sensível e está ligada à condição do tempo; e esta determinação, e com ela a própria experiência interna, depende de qualquer coisa de imutável que não está em mim e, por consequência, depende de alguma coisa fora de mim com que devo considerar-me em relação. De sorte que a realidade do sentido externo está necessariamente ligada à do sentido interno pela possibilidade de uma experiência em geral: o que quer dizer que eu sou consciente de que existem coisas fora de mim e que estão em relação com os meus sentidos, com a mesma certeza com que sou consciente de que eu próprio existo determinado no tempo". Por outros termos, se o "eu. penso" fosse o acto de uma autoconsciência criadora, não teria nada fora de si e não haveria coisas que lhe fossem exteriores. Dado que, pelo contrário, é o acto existencial de um entendimento finito, implica sempre uma relação com qualquer coisa fora de si; e a realidade feno113 ménica das coisas externas é tão certa como a realidade da consciência e do próprio "eu penso". Assim se delineia a característica essencial do ser pensante finito: a sua relação com o exterior. A possibilidade originária que constitui este ser, leva-o para além de si, para a exterioridade fenoménica, da qual o torna dependente: esta dependência é a sensibilidade. Mas a dependência é de algum modo recíproca: a possibilidade originária transcendental é sempre simultaneamente a possibilidade da espontaneidade subjectiva (,inteligência) e da organização objectiva dos fenómenos (natureza). A dedução transcendental permite a Kant justificar a ordem necessária dos fenómenos naturais, Esta ordem é condicionada pela síntese originária do entendimento (eu penso) e pelas categorias em que esta síntese se determina o articula. De facto, como simples representações, os fenómenos não podem sujeitar-se a outra lei que .não seja a que lhes prescreve a faculdade unificadora. Por isso, a natureza em geral, como ordem necessária dos fenómenos (natura formaliter spectata) é
condicionada pelo eu penso e pelas categorias. e modela-se por elas em vez de constituir o seu modelo. O "eu penso" o as categorias não podem todavia revelar senão o que é a natureza em geral, como regularidade dos fenómenos em geral, como regularidade dos fenómenos no espaço e no tempo. As leis particulares, nas quais esta regularidade se exprime, não podem ser deduzidas das categorias, mas devem ser extraídas da experiência. Esta não é senão a própria natureza no seu aspecto subjectivo, devendo-se entender por natureza a totalidade organizada dos fe114 nómenos e por experiência esses fenómenos mesmos tal como aparecem ao homem. A dedução transcendental elimina assim a dúvida de Hume sobre a validez das proposições extraídas da experiência. Hume considerava possível que a experiência de um momento ao outro desmentisse aquelas verdades de facto, que ela mesma sugere. Kant julga que tal possibilidade não existe. A experiência, condicionada como é pelas categorias do intelecto o pela apercepção transcendental, não pode desmentir aquelas verdades que se fundam precisamente nestes factores condicionantes. As leis da natureza são assim garantidas na sua validez. A experiência que as revela nunca poderá desmenti-las, já que elas se fundam nas condições que tornam possível toda a experiência. § 521. KANT: A Analítica DOS PRINCIPIOS Determinadas as categorias que presidem à constituição da experiência e justificadas tais categorias pela dedução transcendental, Kant passa a determinar "o cânone do seu uso objectivamente válido", isto é, as regras segundo as quais devem aplicar-se aos casos particulares. Esta é a tarefa da Analítica dos princípios ou Doutrina transcendental do juízo. Esta última expressão exprime o facto de que o uso das categorias é precisamente o juízo. A analítica transcendental compreende o esquematismo, dos conceitos puros e o sistema dos princípios do entendimento puro. 115 A doutrina. do esquematismo responde à necessidade de encontrar um termo médio entre as categorias e as intuições empíricas. Categorias e intuições são entro si heterogéneas; e é precisamente esta heterogeneidade que faz nascer o problema da possibilidade da aplicação das categorias às intuições. Ora, segundo Kant, o termo intermédio, que é homogéneo por um lado à categoria, por outro, à intuição empírica ou fenómeno, é o esquema transcendental; e o modo como o entendimento se comporta com os esquemas é o esquematismo do entendimento puro. O esquema é um produto da imaginação, mas não é uma linguagem porque contém já em si algo do conceito puro. É definido como "o procedimento geral pelo qual a imaginação fornece a um conceito a sua imagem" (K. r. V., B 179). Ao passo que a imagem é um produto da imaginação, o esquema é a pura possibilidade da imagem: por isso, esta só é reduzida ao conceito através do esquema, mas em si mesma nunca coincide perfeitamente com ele. Kant. enumera os esquemas em relação com cada categoria. Assim o esquema das categorias de quantidade é o número, o das categorias de qualidade é a coisa, o das categorias de relação é a permanência ou a sucessão ou a simultaneidade; o das categorias de modalidade é a existência no tempo e precisamente num tempo qualquer (possibilidade), num tempo determinado (realidade) e em todos os tempos (necessidade). Em geral, os esquemas não são senão determinações a priori do tempo segundo regras; e estas regras referem-se ou à série do tempo (esquema de quantidade) ou ao seu conteúdo (esquema de quali116 dade) ou à sua ordem (esquema de relação) ou, enfim, ao conjunto do tempo (esquema da modalidade).
Reconhecido assim o esquematismo como a condição geral do uso das categorias, Kant passa a determinar os juízos a que este uso dá lugar. Evidentemente, não se trata aqui de juízos analíticos, cuja verdade é suficientemente garantida pelo princípio de contradição, mas de juízos sintéticos, a que é indispensável uma referência à experiência. O conhecimento humano, de facto, no que tem de positivo e construtivo, não se estende para lá da experiência, porque é sempre conhecimento de fenómenos. Porém, a experiência não é apenas o limite do conhecimento, mas também o fundamento do seu valor. Um conhecimento que não se refira a uma experiência possível não é conhecimento, mas sim pensamento vazio que nada conhece, simples jogo de representações. Por outro lado, sobre o fundamento da possibilidade da experiência, o conhecimento adquire a sua plena validez, porquanto as condições, que tomam possível a experiência, tornam também possível o objecto da experiência, o fenómeno. Ora a experiência não é um simples agregado de percepções, mas sim a conexão necessária entre os fenómenos. A possibilidade da experiência reside, pois, nas regras fundamentais desta conexão, que Kant chama de princípios do entendimento puro. A função de tais princípios consiste essencialmente em eliminar o carácter subjectivo da percepção dos fenómenos, reduzindo a percepção à conexão necessária que é própria da experiência objectivamente válida. Estes princípios substituem os simples liames das percepções no 117 tempo pelas relações necessárias que conglobam a experiência num todo coerente. Kant, como de ordinário, recorre à sua tábua das categorias para dar a série sistemática dos princípios do entendimento puro, os quais, em última análise, não são outros senão os pressupostos fundamentais da ciência newtoniana. Os axiomas da intuição (correspondentes às categorias da quantidade) transformam o facto subjectivo de podermos perceber a quantidade espacial ou temporal (por exemplo, uma linha ou duração) percebendo apenas as partes sucessivas, no princípio objectivamente válido segundo o qual toda a quantidade é composta de partes; e assim justificam a aplicação da matemática ao domínio inteiro da experiência. As antecipações da percepção (correspondentes às categorias da qualidade) transformam a intensidade subjectiva da percepção num grau da qualidade objectiva e garantem assim a continuidade dos fenómenos (porquanto todo o fenómeno pode ter infinitos graus). As analogias da experiência (correspondentes às categorias da relação) permitem reconhecer por sob a mutabilidade das percepções um substracto permanente que é a substância dos fenómenos; substituem a simples sucessão temporal das percepções pela relação necessária de causalidade entre os fenómenos, a qual explica e fundamenta aquela sucessão; e permitem justificar objectivamente, mediante a relação da acção recíproca, a simultaneidade dos fenómenos, a qual não pode aparecer nas percepções que são sempre sucessivas. São precisamente estas três ana118 logias da experiência que constituem a natureza, a qual é a própria conexão objectiva entre os fenómenos. os postulados do pensamento empírico em geral esclarecem, finalmente, os conceitos de possibilidade, de realidade e de necessidade das coisas, dando a tais conceitos o seu valor objectivo.
Os princípios do entendimento puro garantem a validez objectiva da experiência, subtraindo-a à sua objectividade da percepção. Constituem a natureza mesma. A percepção que se lhes furta é um puro jogo da imaginação e não tem outra realidade objectiva senão a de um sonho. Estes problemas da analítica transcendental são o tema constante das últimas meditações de Kant recolhidas no Opus postumum. Nestas meditações, bastante pouco concludentes, pois Kant continuamente lhes interrompe o fio, e continuamente o retoma do princípio, na incapacidade de o desenvolver e de o conduzir até ao fundo, o velho filósofo propunha-se aplicar os princípios transcendentais da ciência da natureza à física e, por conseguinte, justificar em particular as bases da física de Newton: um tempo absoluto que flui uniformemente sem relação com nada de exterior; um espaço absoluto também, não relativo a qualquer coisa de exterior, mas permanente e imóvel, uma matéria única e uniforme, animada por uma força única e simples na variedade das suas manifestações. O princípio de que Kant pretendia valer-se nesta espécie de dedução da física newtoniana é o da possibilidade da experiência como sistema total dos fenómenos. Assim, da unidade da experiência, de119 Ouzia a unidade a matéria, que é objecto da física. Assim, como há uma única experiência de modo quando se fala de diversas experiências se alude na realidade a grupos de percepções, assim há um único objecto da experiência, que é a matéria; e quando se fala de diversas matérias, aludese na realidade às substâncias (Stoffen) diversas que constituem os elementos da matéria (Op. post., VIII, 1, p. 235-538, etc.). Estas meditações de Kant são importantes porque revelam a exigência que sempre dominou a sua investigação crítico-transcendental: a de justificar a possibilidade, e portanto o valor, do saber positivo do homem (que para ele se identifica com a ciência newtoniana) precisamente sobre o fundamento dos limites de tal saber, isto é, no âmbito das possibilidades que constituem o entendimento finito do homem. § 522. KANT: O NúMENO Juntamente com a dedução transcendental e estreitamente vinculada a ela, a doutrina do númeno constitui o fundamento da filosofia kantiana. Não é por acaso que também neste ponto Kant hesitou muito antes de chegar à expressão definitiva do seu pensamento, e também sobre este ponto são particularmente significativas as diferenças entre a exposição da primeira edição e a da segunda edição da Crítica. A distinção entre fenómeno e númeno é introduzida na Dissertação (1770) como distinção entre mundo sensível e mundo inteligível. "0 que é pensado de um modo sensível, dizia então Kant (Dissert., § 4) é a representação das coisas tal como aparecem, 120 o que é pensado intelectualmente é a representação das coisas, como são". A esta distinção que Kant atribuía à metafísica tradicional, a Crítica da Razão Pura dá um significado inteiramente novo. Esta obra havia já reconhecido e estabelecido solidamente que o conhecimento humano está encerrado dentro dos limites da experiência e que a experiência não se
refere a outra realidade que não seja o fenómeno. Este princípio exclui que as categorias tenham (segundo a terminologia de Kant um uso transcendental, pelo qual se referem às coisas em geral e em si mesmas, e implica que o seu uso possível é o empírico, pelo qual se referem só aos fenómenos, isto é, aos objectos de urna experiência possível. Mas este pressuposto, que fica definitivamente estabelecido para Kant a partir de 1781, dá origem a um duplo problema. Em primeiro lugar, ao de explicar a ilusão pela qual se propende a estender as categorias para lá dos limites da experiência possível, isto é, às coisas em si mesmas; o em segundo lugar, ao de explicar a função do númeno relativamente à própria experiência, isto é, ao conhecimento humano. Sobre o primeiro problema, a atitude de Kant é clara e definida desde o princípio. Tal ilusão nasce do facto de as formas a priori do entendimento não dependerem da sensibilidade, e isto fá-las parecer aplacáveis mesmo para além da sensibilidade, como se o pensamento pudesse atingir o ser em si. Na realidade, as formas do entendimento são apenas a faculdade lógica de unificar o múltiplo da sensibilidade e, onde tal multiplicidade falte, a função delas torna-se impossível. Já na primeira edição 121 Kant distinguia claramente a possibilidade transcendental ou real, constitutiva do conhecer autêntico, da possibilidade lógica de um conhecimento puramente fictício. "0 jogo de prestígio pelo qual a possibilidade lógica do conceito (que não se contradiz a si mesmo) se substitui à possibilidade transcendental das coisas (pela qual ao conceito corresponde um objecto) pode iludir e satisfazer apenas os inexperientes" (A 244). E uma nota de segunda edição acrescenta: "Todos estes conceitos [as categorias] não podem ser justificados nem, portanto--- demonstrados na sua real possibilidade, quando se abstraia de toda a intuição sensível, a única que possuímos" (B 303). Todavia, o númeno não é apenas uma ilusão Reconhecer como fenómenos os objectos da experiência significa implicitamente contrapor-lhe. objectos não-fenómenos. Estes objectos são, pois, possíveis. Mas sobre o significado da sua possibilidade e, por conseguinte, sobre a função que tal possibilidade exerce nas relações do conhecimento humano, as ideias de Kant só lentamente se foram aclarando. Numa primeira fase
(1.a edição da Crítica e
Prolegómenos) Kant não atinge plenamente o significado da sua própria distinção entre possibilidade lógica e possibilidade transcendental. O númeno, embora tenha sido reconhecido como uma simples possibilidade lógica, é chamado a exercer uma função positiva no conhecimento e tratado como uma realidade, embora desconhecida. "Todas as nossas representações, dizia Kant na primeira edição da Crítica (A 251), são na realidade referidas pelo entendimento a um dado objecto, e, visto que os 122 fenómenos, não são senão representações, o entendimento refere-os a algo que seja objecto da intuição sensível; mas este algo, enquanto tal, não é mais do que objecto transcendental. Este significa um algo =x, de que nada sabemos e de que (pela presente constituição do nosso entendimento) nada podemos absolutamente saber, mas que pode servir apenas como correlato da unidade da apercepção, com vista àquela unidade do múltiplo na
intuição sensível por meio da qual o entendimento unifica o múltiplo no conceito de um objecto". Aqui, o númeno é um x, uma realidade desconhecida, é certo, mas em todo o caso uma realidade, que serve de correlato àquele "eu estável e duradouro" de que falava a dedução transcendental da primeira edição. A esta realidade desconhecida, que é o númeno, se atribui nos Prolegómenos (1, obs. 2 a) a função de influir sobre a sensibilidade e de ser o substracto dos corpos materiais empiricamente percebidos. "Eu admito, diz aqui Kant, refutando o idealismo de Berlçeley, que fora de nós existam corpos, isto é, coisas que, conquanto nos sejam completamente desconhecidas quanto ao que são em si mesmas, conhecemos por meio das representações que o seu influxo sobre * nossa sensibilidade nos fornece e às quais damos * denominação de corpo; tal palavra significa, portanto, apenas o fenómeno daquele objecto que nos é desconhecido mas que nem por isso é menos real." O númeno seria, deste ponto de vista, a substancia dos corpos materiais enquanto fenómenos. o conceito do númeno é aqui apresentado como resultado do processo que induz a considerar sub123 jectivas algumas qualidades dos corpos; até certo ponto, a própria intuição de corpo se torna subjectiva, mas permanece a realidade desconhecida, o x que está por detrás dessa intuição e que não é semelhante a ela, como não é semelhante a sensação do vermelho à propriedade do cinábrio que a produz. É evidente que nestas considerações o númeno não é apenas, como Kant todavia reconhecera explicitamente na primeira edição da Crítica, uma possibilidade lógica, mas uma realidade, isto é uma possi-bilidade transcendental, de que Kant se serve positivamente para explicar a constituição e a origem do conhecimento. Esta incongruência é eliminada na segunda edição da Crítica. Aqui, assim como se eliminam os passos que fazem da apercepção transcendental uma realidade psicológica, ou seja, um "eu estável e duradouro", são também eliminadas as passagens que respeitam à função positiva do númeno na constituição e na origem do conhecimento humano e é desenvolvido coerentemente o conceito do númeno como pura possibilidade negativa e limitativa. Esclarece-se então explicitamente que, em sentido positivo, o númeno não é mais do que o objecto de uma intuição não-sensível, isto é, de uma intuição intelectual que não é a nossa e "da qual não podemos compreender sequer a possibilidade" (K. r. V., B 309). Em sentido positivo, o númeno é, portanto, pelo menos para o homem, impossível, e qualquer uso do conceito dele está fora de discussão. A conclusão é que "aquilo que chamamos númeno deve entender-se apenas em sentido negativo,>, como aquilo que não é objecto 124 da nossa intuição sensível. Neste sentido negativo, assume um novo relevo a função que já se atribuía ao númeno na primeira edição da Crítica: a de conceito Emite. "Enfim, diz Kant (13 311), nem sequer é possível reconhecer a possibilidade de tais númenos, e o território para lá da esfera dos fenómenos é (para nós) vazio; isto é, possuímos um entendimento que se
estende para lá dessa esfera problematicamente, mas não temos nenhuma intuição pela qual nos possam ser dados objectos para lá do campo da sensibilidade nem o entendimento possa ser usado em relação a eles de modo assertivo. O conceito de númeno é, pois, apenas um conceito limite (Grenzbegriff) para circunscrever as pretensões da sensibilidade e, por isso, de uso puramente negativo. Todavia, não é um conceito forjado arbitrariamente, uma vez que se liga à limitação da sensibilidade, sem no entanto estabelecer nada de positivo fora do domínio dela". Aqui o número já não é mais que um x, uma realidade desconhecida mas positiva, capaz de exercer uma função positiva com respeito ao conhecimento humano. É a pura possibilidade negativa e limitativa conexa aos limites deste conhecimento enquanto é sempre experiência. Que o conhecimento humano seja conhecimento de fenómenos, e não de númenos, não significa que os númenos estejam atrás dele como aquilo que o suscita, o sustém e o justifica, mas Somente que não é conhecimento divino, que não cria realidade, mas se move no âmbito de possibilidades determinadas, empiricamente dadas, e que fora de tais possibilidades nada existe. Kant 125 foi-se libertando assim, lenta e exaustivamente, de todos os resíduos ingenuamente realisticos do seu criticismo. A edição de 1787 marca verdadeiramente a sua vitória definitiva neste ponto. Mas a vitória sobre o realismo não significou, para Kant, idealismo. A dissolução do númeno como realidade positiva, a qual se foi operando gradualmente no seu pensamento, não implica de modo algum que ele tenha reduzido toda a realidade ao sujeito. O sujeito é para ele a inteligência Enita, isto é, o homem, cujo acto de autodeterminação existencial (o eu penso) é ao mesmo tempo uma relação possível com a realidade objectiva da experiência. O ensinamento, que se extrai da dedução transcendental e da doutrina do númeno, na forma definitiva que estes fundamentos assumiram na segunda edição da Crítica, é que o acto originário constitutivo da subjectividade pensante do homem é ao mesmo tempo o acto instaurador de uma relação bem fundada entre o homem e a realidade objectiva do mundo da experiência. A subjectividade humana revela-se assim como uma relação com o objecto: com um objecto que não é uma realidade desconhecida, mas sim a empírica multiplicidade do mundo em que o homem vive. É significativo que os pensamentos dispersos do Opus postumum não modifiquem o ponto de vista que Kant defende na segunda edição da Crítica, antes aduzam alguns esclarecimentos notáveis a esse respeito. De facto, aí é amiúde referido (Op. post. ed. cit., 11, p. 20, 27, 33, etc.) o conceito da coisa em si como correlato da unidade originária do 126 entendimento, e, portanto, como um x que não é uni objecto particular, mas o puro princípio do conhecimento sintético a priori. Esta ora a doutrina da primeira edição da Crítica. Mas esta doutrina está entretecida e misturada com a afirmação, que se repete continuamente (Ib., p. 4, 25, 31, 32, etc.), de que a coisa em si é "um puro pensamento sem
realidade" (Gedankending ohne Wirklichkeit), um ens rationis. E esta afirmação é defendida no sentido de que a coisa em si representa o aspecto negativo do objecto da intuição empírica, aquilo a que Kant chama (1b., p. 24) o negativo sintético da intuição a priori. A coisa em si não é um objecto diverso do objecto sensível mas apenas no ponto de vista negativo pelo qual tal objecto pode ser considerado" (Ib., p. 42). De modo que a distinção entre fenómeno e coisa em si não é uma distinção entre objectos, mas entre as relações existentes entre o sujeito e o objectivo fenoménico. O objecto fenoménico é tal em virtude da relação positiva que ele tem com o sujeito a que aparece, relação pela qual elo é uma intuição e precisamente uma intuição empírica. Mas tem também com o sujeito uma relação negativa (não é coisa em si) e precisamente em virtude desta relação negativa pode ser considerado como fenómeno e por isso submetido à unidade da apercepção e das categorias (Ib., p. 44, 412). Kant afirma que somente: esta relação negativa toma possível a filosofia transcendental: afirmação que exprime por outras palavras aquela que aparece continuamente na Crítica, e é que, se os objectos do conhecimento fossem coisas em si, seria 127 impossível aplicar-lhes as funções subjectivas do conhecer e tais funções não teriam significado. É, portanto, evidente que a doutrina em que Kant insiste ao longo das páginas do Opus postumuni, a da coisa em si como ens rationis e relação negativa do sujeito com o objecto empírico, não é mais do que uma reafirmação da coisa em si como conceito-limite que torna possível o conhecimento empírico do homem o a filosofia transcendental que analisa as condições desse conhecimento. § 523. KANT: A DIALÉCTICA TRANSCENDENTAL Com as duas secções da Analítica transcendental (Analítica dos conceitos e Analítica dos princípios) se conclui a parte positiva da Lógica transcendental. A segunda parte desta lógica, a Dialéctica transcendental, é negativa: tende a mostrar a impossibilidade daqueles conceitos que a razão humana é levada a formular, prescindindo da experiência, mediante o uso transcendente das categorias. A dialéctica transcendental é, portanto, a crítica da dialéctica, isto é, da lógica assumida como órgão de conhecimento. Kant diz a este propósito: "Por muito que varie o significado que os antigos deram ao nome de ciência ou arte dialéctica, pode-se todavia inferir do sentido em que o empregaram que a dialéctica, para eles, não é mais do que a lógica da aparência. foi a arte sofística de dar à própria ignorância, e até às voluntárias ilusões, a aparência 128 - 11
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KANT da verdade imitando o método da fundamentação que a lógica em geral prescreve, e servindo-se da sua tópica para colorir todos os raciocínios ocos. Agora podemos fazer uma advertência segura e úlil: a lógica geral, considerada como órgão, é sempre lógica da aparência, isto é,
dialéctica" (K. r. V., B 87). Isto acontece porque a lógica por si só, ou seja, sem a ajuda da experiência, não pode produzir conhecimentos: e produz apenas noções aparentes ou fictícias que se substituem aos conhecimentos. A dialéctica transcendental, todavia, não se ocupa da crítica de todas estas noções, mas apenas das que nascem de uma "ilusão natural e inevitável da razão humana" e que, por consequência, persistem mesmo depois de se ter provado o seu carácter ilusório. Kant identifica estas noções com as de alma, de mundo e de Deus que eram o objecto da metafísica tradicional. A dialéctica transcendental é, substancialmente, a crítica desta metafísica. A crítica de Kant é, no entanto, dirigida à forma que aquelas noções assumiram na metafísica especial de Wolff, que ele considerava a mais ordenada o rigorosa exposição de tais noções. Mas importa notar que Wolff distinguira da metafísica especial, que compreende a psicologia, a cosmologia e a teolologia, uma metafísica geral ou ontologia, que Kant nunca põe em causa. É que ele considera que os resultados fundamentais da ontologia de Wolff podem ser fundamentalmente aceites por aquela "metafísica crítica" ou "científica" que, segundo Kant, coincide com a crítica da razão pura (1b., B 870) e que, num escrito de 1793, em que versou 129 um tema proposto pela Academia de Berlim (Quais Não os progressos reais que a metafísica fez desde o tempo de Leibniz e Wolff?, A 156), denominou pelo próprio nome de ontologia. Como se disse, as noções fictícias da metafísica são produzidas pelo uso natural, mas não disciplinado, da razão. Ora, assim como o acto do entendimento é o juizo, assim a actividade da razão é o silogismo; e do mesmo modo que Kant extraíra das diferentes classes de juízo as categorias do entendimento, assim extraiu das diferentes classes de silogismo os conceitos da razão. Ora, o silogismo pode ser categórico, hipotético e disjuntivo (segundo a classificação aristotélica e estóica que a lógica escolástica adoptou). Os conceitos da razão fundados sobre esta divisão contêm, portanto, em primeiro lugar, a ideia do sujeito completo (substancial), que é a da alma; em segundo lugar, a ideia da série completa das condições, que é a do mundo; em terceiro lugar, a ideia de um conjunto perfeito de todos os conceitos possíveis, que é a de Deus. Cada uma destas ideias representa à sua maneira a totalidade absoluta da experiência, mas uma vez que a totalidade da experiência nunca é uma experiência, nenhuma delas tem valor objectivo, e precisamente por isso é ideia, e não realidade. A ideia da alma representa a totalidade da experiência em relação ao sujeito; a ideia do mundo representa esta totalidade em relação aos objectos fenoménicos; e a ideia de Deus representa-a em relação a todo o objecto possível, fenoménico ou não A crítica destas três ideias é ao mesmo tempo a crítica das três disciplinas que 130 constituíam a metafísica especial de Wolff, ou seja, da psicologia racional, da cosmologia racional e da teologia racional. Kant considera que o fundamento da psicologia racional e, portanto, do conceito de alma em que ela assenta, é um simples paralogismo, isto é, um raciocínio falso. Este raciocínio consiste em aplicar ao eu penso a categoria da substância e, consequentemente, em transformar este acto originário do entendimento numa substância
simples, imaterial e incorruptível e por isso também espiritual e imortal. Mas a categoria de substância, como todas as demais categorias, só se pode aplicar a objectos empíricos, e o eu penso não é um objecto empírico mas apenas, como se viu, a função lógica do sujeito pensante em relação a um múltiplo empírico determinável. A aplicação da categoria de substância não pode por isso usar-se com respeito ao "eu penso": assim, todas as dificuldades da psicologia racional provêm de um silogismo falso, porquanto se toma a palavra "sujeito" em dois sentidos diferentes. E, de facto, o eu que pensa é, desde logo, sujeito, mais não é substância, quer dizer, ser subsistente por si. É, sem dúvida, um eu singular, uma vez que não pode ser resolvido numa pluralidade de sujeitos, mas nem por isso é substância simples, já que a simplicidade não pode predicar-se senão de substâncias empíricas. Isto garante a identidade do eu como função sintética, mas tal identidade nada diz sobre a entidade do eu fenoménico que é o único que é objecto de conhecimento. Enfim, o eu penso estabelece a distinção entre si e as coisas exteriores; 131 mas nada diz acerca da possibilidade de poder subsistir sem tais coisas. Confundindo estas duas afirmações, a psicologia racional manifesta o seu carácter ilusório e falaz. A ideia de mundo como totalidade absoluta de todos os fenómenos, que é o objecto da cosmologia racional, revela a sua ilegitimidade ao motivar afirmações antitéticas que se apresentam revestidas de igual verosimilhança. Tais afirmações são as antinomias da razão pura, verdadeiros conflitos da razão consigo mesma, dos quais ela não pode salvar-se senão abandonando o princípio de que nascem, a própria ideia de mundo. Desta ideia (que nada tem a ver com natureza, que é a conexão causal dos fenómenos) nascem de facto quatro antinomias. A primeira é a que existe entre finitude e infinitude do mundo com respeito ao espaço e ao tempo; com efeito, pode sustentar-se seja que o mundo tenha tido um início no tempo e tenha um limito no espaço, seja que não tem nem um nem outro e seja infinito. A segunda antinomia nasce da consideração da divisibilidade do mundo: pode sustentar-se seja que a divisibilidade se interrompe num certo limite e que, por isso, o mundo é composto de partes simples, seja que a divisibilidade pode ser levada até ao infinito e que, portanto, nele nada existe de simples, isto é, de indivisível. A terceira antinomia diz respeito à relação entre causalidade e liberdade: pode admitir-se uma causalidade livre além da causalidade da natureza ou negar qualquer causalidade livre. A quarta antinomia concerne à dependência do mundo para com um ser 132 necessário: pode admitir-se que exista um ser necessário como causa do mundo, ou pode negar-se tal ser. Entro a tese e a antítese destas
antinomias é impossível decidir, porque ambas podem ser demonstradas. O defeito reside na própria ideia do mundo, a qual, estando para lá de toda a experiência possível, não pode fornecer nenhum critério para se decidir por uma ou por outra das teses opostas. As antinomias demonstram portanto a ilegitimidade da ideia de mundo. Tal legitimidade resulta evidente se se observa que as teses das ditas antinomias apresentam um conceito demasiado pequeno para o entendimento e as antíteses um conceito demasiado grande para o próprio intelecto. Assim, se o mundo teve um princípio, regredindo empiricamente na série dos tempos, seria preciso chegar a um ponto em que este regresso terminasse; e este é um conceito do mundo demasiado pequeno para o entendimento. Se, ao invés, o mundo não teve um princípio na série dos tempos já não @ pio, o regresso pode esgotar a eternidade; e este é um conceito demasiado grande para o entendimento. O mesmo se pode dizer da finitude e da infinitude espacial, da divisibilidade, etc. Em qualquer caso se chega a um conceito de mundo que, ou reduz a limites apertados a possibilidade do homem de avançar de um termo a outro na série dos eventos, ou estendo estes limites a tal ponto que torna insignificante esta mesma possibilidade. A terceira ideia da razão pura, a de Deus, é denominada por Kant o ideal da razão pura. Com efeito, é o conjunto e todas as @@s@b_iIQWèS' isto 133 é, o ser determinado por, pelo menos, um dos possíveis predicados opostos das coisas. Este ideal é o modelo das coisas que, como cópias imperfeitas daquele, dele extraem a matéria da sua possibilidade. Por isso se chama o Ser originário; e chama-se Ser supremo enquanto não tem nenhum ser sobre si e Ser dos seres enquanto qualquer outro ser é condicionado por ele. Estas determinações, no entanto, são puramente conceptuais e nada dizem sobre a essência real do ser de que se trata. Kant analisa a este propósito as provas aduzidas sobre a existência de Deus, e redulas a três: a prova físico-teológica, a prova cosmológica e a prova ontológica. Começa a sua análise por esta última, a qual pretende deduzir a existência de Deus do conceito de Deus como ser perfeitíssimo. Esta prova, segundo Kant, é contraditória ou impossível: é contraditória se se crê que no conceito está já implícita a sua existência, porque nesse caso já não se trata do simples conceito; e é impossível se não a considerarmos implícita porque nesse caso a existência deverá ser acrescentada ao, conceito sinteticamente, isto é, por via da experiência, ao passo que Deus está para lá de toda a experiência possível. A prova cosmológica que passa da contingência do mundo à necessidade do ser supremo funda-se na prova ontológica, já que o ser necessário é precisamente o ser cujo conceito implica a sua existência, de modo que a demonstração da necessidade de Deus pressupõe a prova ontológica. Quanto à prova físico-teológica que remonta da ordem do mundo ao seu ordenador, essa, segundo Kant, não conclui, .134 porque não é dado ao homem estabelecer uma relação entre a ordem do mundo e o grau de
perfei. ção divina que deveria explicar tal ordem. Também esta prova implica um salto, em que só a pode ajudar a prova cosmológica e a prova ontológica, de modo que sofre o mesmo triste destino que estas duas. Esta crítica basta, segundo Kant, para tirar todo o fundamento não só ao teísmo, que admite um Deus vivo, cujos atributos podem ser determinados por uma teologia natural, mas também ao simples deísmo, que admite apenas um ser originário ou uma causa suprema, furtando-se a determiná-lo ulteriormente. 4, Todavia, as ideias da razão pura, ainda que negadas no seu valor objectivo, na sua realidade, apresentam-se incessantemente como problemas. Reconhecida a ilusão a que o homem está sujeito no uso dialéctico da razão, cumpre remontar à raiz de tal ilusão que se radica na própria natureza do homem e dar a esta raiz um uso positivo e construtivo ao serviço do próprio conhecimento empírico. Por outros termos, negada a solução dogmática do problema metafísico, cumpre propor uma solução crítica, para que o problema mantenha e preserve a sua problematicidade. De que maneira? A tal pergunta responde o uso regulador das ideias transcendentais. Es titutivo, pois não servem para conhecer nenhum objecto possível; mas podem e devem ter um uso regulador, orientando a busca intelectual para aquela unidade total que representam. Toda a ideia é, para a razão, uma regra que a induz a dar ao 135 seu campo de investigação, que é a experiência, não só a máxima extensão, mas também a máxima unidade sistemática. Assim, a ideia psicológica leva a procurar os nexos entre todos os fenómenos do sentido interno e a descobrir neles uma cada vez maior unidade como se eles fossem manifestações de uma única substância simples. A ideia cosmológica leva a passar incessantemente de um fenómeno natural a outro, do efeito à causa e à causa dessa causa e assim por diante até ao infinito, precisamente como se a totalidade dos fenómenos constituísse um único mundo. A ideia teológica, enfim, acrescenta à experiência um ideal de perfeita organização sistemática, que ela nunca atingirá, mas que perseguirá sempre, precisamente como se tudo dependesse de um único criador. As ideias, deixando de valer dogmaticamente como realidade, valerão neste caso problematicamente, como condições que levam o homem a empenhar-se na investigação natural e o solicitam de acontecimento em acontecimento, de causa em causa, na tentativa incessante de estender o mais possível o domínio da sua própria existência e de dar a este domínio a máxima unidade. No entanto tratar-se-á sempre de uma unidade problemática, que se' apresentará como um problema nos problemas concretos da investigação científica, mas que nunca poderá ser substituída por uma realidade ou um objecto e afirmada como tal. A única via para garantir à unidade total da experiência o seu carácter problemático e para evitar que ela pretenda erigir-se numa reali136 dade ilusória, é considerála. segundo Kant, corno o guia e a regra da investigação que se move nos limites mesmos da experiência. § 524. KANT: A DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO
A Estética e a Lógica transcendental (nas suas duas partes de Analítica e Dialéctica) constituem no seu conjunto a Doutrina transcendental dos elementos, a qual é, segundo a imagem de Kant, o cálculo e a determinação dos materiais que constituem o edifício do conhecimento humano. A Doutrina transcendental do método deve, ao invés, dar os planos deste edifício, planos que devem estar em relação com as possibilidades e os limites do material a utilizar. Kant define a doutrina transcendental do método como "a demonstração das condições formais de um sistema completo dia razão pura". E nela trata da disciplina, do cânone, da arquitectónica e da história da razão pura. Na realidade, esta última parte da obra de Kant já havia sido quase toda exposta no curso do estudo dos elementos, de modo que ela assume o simples relevo de uma recapitulação ou repetição, do ponto de vista das aplicações práticas, da primeira parte da Crítica. Na Disciplina da razão pura, Kant preocupa-se em primeiro lugar em estabelecer a diferença entre filosofia e matemática. A filosofia, diz, é conhecimento racional mediante conceitos, ao passo que 137 a matemática é um conhecimento racional mediante construção de conceitos. Para construir um conceito é necessária uma intuição não empírica, e esta é a intuição do espaço-tempo de que o matemático se vale nas suas construções. A filosofia, que não tem à sua disposição nenhuma intuição pura adequada aos seus conceitos, não procede por construção mas por análise. O seu método deve por isso diferenciar-se do da matemática. Não pode partir de definições, como o faz a matemática, mas sim da experiência, com a condição de demonstrar por fim a legitimidade desta; não conhece os axiomas, de que a matemática extrai os seus fundamentos, não tem sequer verdadeiras demonstrações, porque não atinge nunca a certeza apodíctica. O conhecimento filosófico pode, é certo, denominar-se um sistema, mas somente como sistema de investigação e busca daquela unidade a que só a experiência pode fornecer a matéria. Tudo isto concerne ao uso positivo da razão. Quanto ao seu uso negativo, isto é, polémico, para a defesa das proposições contra as negações dogmáticas, Kant considera que a razão deve evitar igualmente o dogmatismo e o cepticismo e assumir em todos os casos uma atitude critica. O dogmatismo é o primeiro passo na razão pura; o cepticismo é o segundo. A crítica é o passo definitivo com o qual se assinalam precisamente os limites do poder e da capacidade da razão e sobre estes limites se estabelecem firmemente esse poder e capacidade. A disciplina da razão compreende também as suas hipóteses e as suas demonstrações. Os conceitos da razão são, como se viu, apenas 138 princípios reguladores, isto é, ficções heurísticas, de que o entendimento se serve para estender e organizar a investigação empírica. Não podem converter-se em hipóteses que expliquem os factos empíricos ou as coisas naturais, porque isso constituiria, na realidade, unia renúncia a toda a explicação e um pretexto da razão preguiçosa para desistir da investigação. Em geral, toda a hipótese
pode ser formulada apenas à base da experiência possível e, por conseguinte, não pode conter "outras coisas ou princípios fora daqueles que segundo as já conhecidas leis dos fenómenos estão em relação com os fenómenos dados" (K. r. V., B. 801). Ademais, uma hipótese deve bastar para determinar a priori as próprias consequências sem hipóteses subsidiárias (1b., B 802). E nenhuma destas condições é satisfeita por uma
Na História da razão pura Kant esboça uma espécie de classificação das doutrinas filosóficas, distinguindo-as no que respeita ao objecto em sensualistas, como as de Epicuro, e intelectualistas, como as de Platão; no que respeita às origens do conhecimento, em empíricas, como as de Aristóteles e de Locke, e neologísticas (inatistas) como as de Platão e Leibniz; no que respeita ao método, em naturalistas (ou dogmáticas), cépticas, e científicas (isto é, críticas). § 525. KANT: ANALITICA DA RAZÃO PRÁTICA: MORALIDADE E SANTIDADE A doutrina moral de Kant parece à primeira vista que elimina todos os limites que a razão encon141 tra no seu uso teorético e que, portanto, abre ao homem as portas proibidas do númeno. A razão prática confere realidade objectiva às ideias transcendentes que a razão teórica devia considerar apenas como problemas. O homem como sujeito da v 'da moral coloca-se no domínio do númeno; e a , consciência que teorèticamente o referia só a si mesmo apenas como fenómeno, põe-no aqui em presença da sua essência numénica. O homem liberta-se, em virtude dia lei moral, do determinismo causal a que está sujeito como ente que vive na natureza e se considera positivamente livre, isto é, capaz de iniciar uma nova série causal, independente da causalidade da natureza. As ideias de alma e de Deus deixam de ser "transcendentes e reguladoras" para se tornarem "imanentes: e ~ti"vas" do objecto da razão prática, o sumo bem. Parece, por isso, que a vida moral abole um por um os limites que a vida teórica impõe ao homem e dos quais extrai todos os valores possíveis. Mas, por outro lado, este contraste entre a Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática esfuma-se ou assume outro significado quando se confrontam os ternas fundamentais das duas obras. Apercebemo-nos então da unidade fundamental da sua inspiração. Na Razão pura o tema dominante é constituído pela polémica contra a arrogância da razão que pretende ultrapassar os limites humanos. Na Razão prática o tema dominante é o da polémica contra o fanatismo moral como veleidade de transgredir os limites da conduta humana. A Razão pura opõe o conhecimento humano, fundado na intuição 142 sensível dos fenómenos a um conhecimento problemático divino fundado na intuição intelectual da coisa em si. A Razão prática opõe a moralidade humana, que é o respeito da lei moral, à santidade divina, que é a conformidade perfeita da vontade com a lei. Enfim, a Razão pura apresenta o númeno como sendo a condição do agir do homem na investigação empírica; a Razão prática apresenta o númeno como condição do empreendimento moral. O conceito kantiano da vida moral do homem funda-se na tese da natureza finita do homem, isto é, na falta de um acordo necessário entro vontade e razão. Se a vontade do homem estivesse já em si mesma necessariamente de acordo com a lei da razão, tal lei não valeria para ele como um mandamento e não lhe imporia a constrição do dever. A acção executar-se-ia infalivelmente em conformidade com a razão. Mas a lei da razão é um imperativo e obriga o homem ao dever. Portanto, o próprio princípio da moral implica um
limite prático, constituído pelos impulsos sensíveis, o por isso a finitude de quem deve realizá-la. "Para um ser, diz Kant (K. p. V., V, A 37, p. 20), para quem o motivo determinante da vontade é Somente a razão, a regra da razão é um imperativo, isto é, uma regra que é caracterizada por um dever ser que exprime a necessidade objectiva da acção e significa que, se a razão determinasse inteiramente a vontade, a acção efectuar-se-ia infalivelmente segundo esta regra". A moralidade, por outros termos, não é a racionalidade necessária de um ser infinito que se identifica com a razão, mas sim a racionalidade possível 143 de um ser que tanto pode assumir, como não assumir, a razão como guia da sua conduta. Estes fundamentos são a base de toda a doutrina moral de Kant. Por eles, a moralidade está tão afastada da pura sensibilidade como da racionalidade absoluta. Se o homem fosse apenas sensibilidade, as suas acções seriam determinadas pelos impulsos sensíveis. Se fosse só racionalidade, seriam determinadas pela razão. Mas o homem é ao mesmo tempo sensibilidade e razão, tanto pode seguir o impulso como pode seguir a razão: nesta possibilidade de escolha consiste a liberdade que dele faz uni ser moral. Para viver moralmente, o homem deve transcender a sensibilidade. Isto implica não só que ele se subtrai aos impulsos sensíveis, mas também que evita assumir como regra de acção qualquer objecto de desejo. Como ser racional mas finito, o homem deseja a felicidade: mas precisamente, enquanto objecto de desejo, a felicidade não pode ser o fundamento de um imperativo moral. O desejo não é um imperativo; tudo o que é objecto de desejo pode dar lugar a máximas subjectivas, privadas de validez necessária, a imperativos hipotéticos, que ordenam alguma coisa em vista de um fim, não a uma lei objectivamente necessária, isto é que valha para todos os seres racionais finitos. Os imperativos hipotéticos são os de qualquer técnica ou mesmo os da prudência, que indicam os meios para se ser feliz. A lei moral é, ao invés, um imperativo categórico que não tem em vista nenhum objecto, nenhum escopo determinado, mas apenas a conformidade da acção à lei. DevWo a esta. exclu144 são de qualquer objecto do desejo, isto é, de qualquer escopo particular, o imperativo categórico é puramente formal. Constitui, como lei, a própria exigência de uma lei: obriga a vontade não a acções particulares, mas a toda a acção que esteja conforme com a lei da razão. A lei moral não pode mandar outra coisa senão proceder de acordo com uma máxima que possa valer para todos. E, de facto, uma máxima que não possa valer para todos, destrói-se a si mesma e introduz a cisão e o conflito entre os seres racionais. A fórmula do imperativo categórico é então a seguinte: "Age de modo a que a máxima da tua vontade possa sempre valer como principio de uma legislação universal". Esta fórmula é a lei moral; vale para todos os seres racionais, quer sejam finitos ou infinitos; mas Somente para os homens é um imperativo porque no homem não se pode supor uma vontade santa, isto é, uma vontade que não seja capaz de uma máxima contrária à lei moral. Para os seres finitos, a lei moral é, pois, um imperativo e obriga categoricamente, porque a lei é incondicionada. A relação de uma vontade fiai@a com esta lei é uma relação de dependência que se exprime numa obrigação, isto é, em obrigar a uma acção conforme à lei. Esta acção denomina-se dever; e a lei moral é assim a origem e o fundamento do dever no homem.
A lei moral não procede do exterior. É um facto da razão pura no sentido do que "somos consequentes dela a priori e que é apodicticamente certa, mesmo se se supõe que na experiência não se pode encontrar nenhum exemplo da sua exacta observân145 cia" (K. p. V. § 7; A 56). Sendo um facto, exclui a dedução, que, como se disse (§ 519), não se aplica à questão de facto. Ã Crítica da razão prática não se apresenta por isso, como na Crítica da razão pura, o problema da dedução transcendental sob a forma de uma demonstração da validez da lei moral; esta validez faz parte do facto racional em que a lei moral consiste. Mas uma dedução transcendental apresenta-se igualmente no âmbito da Crítica da razão prática num sentido que Kant denomina de paradoxal: a saber, no sentido de que "o próprio princípio moral serve de princípio na dedução de uma faculdade imprescrutável, que nenhuma experiência pode provar mas que a razão especulativa deve admitir como possível, ou seja, a faculdade da liberdade" (lb., A 56). Assim, na medida em que a lei moral, como facto da razão, não tem necessidade de nenhum fundamento que a justifique, demonstra que a liberdade é não só possível mas real nos seres que reconhecem a lei como obrigatória. A dedução transcendental, no domínio moral, assume, portanto, a forma da dedução da liberdade à base da presença, no homem, da lei moral como facto de razão. Tu deves, portanto podes, é a fórmula que, segundo Kant, resume a dedução transcendental no domínio moral. A lei moral permite estabelecer quer a liberdade negativa do homem, isto é, a sua dependência para com a natureza, quer a sua liberdade positiva, ou seja, a sua legislação autónoma. No entanto, tem um carácter puramente formal, visto que, na realidade, apenas prescreve a renúncia por parte do 146 homem aos impulsos da sensibilidade e o seu determinar-se em virtude da pura universalidade da razão. o carácter formal da lei, a qual não obriga senão à conformidade com a lei, tem sido frequentemente considerado uma abstracção e valeu à doutrina moral de Kant a censura de negar a humanidade da vida moral. Na realidade, esse carácter deriva precisamente da consideração de que a vida moral é vida essencialmente humana e, portanto, supõe a presença da sensibilidade e o perigo, para o homem, de se abandonar aos seus impulsos. Precisamente por isso Kant afirmou a necessidade de subtrair a lei moral a todo o conteúdo e de a reconhecer na sua forma. Um ser cujos desejos tivessem já a validez objectiva da lei, que não pudesse desejar senão aquilo que a razão impõe, não teria ideia do carácter formal da lei moral, e nem sequer da própria lei como imperativo. Mas, dado que o homem é não só razão, mas também sensibilidade, a sua vida moral é, em primeiro lugar, o abandono da sensibilidade como motivo de acção e o decidir-se em conformidade com a pura forma da lei. Isso explica a função essencial que o carácter formal da lei exerce em toda a doutrina moral de Kant. Kant serve-se dele em primeiro lugar para a crítica de todas as doutrinas morais que se
fundam no princípio material, isto é, que deduzem a lei moral de qualquer objecto do desejo. Kant estabelece a seguinte tábua dos 147 MOTIVOS MATERIAIS DETERMINANTES DA VIDA MORAL (dada a sua complexidade, deverá ser compulsada pelo livro) Subjectivos OBJECTIVOS Externos Internos Internos Externos da edudo governo do sentido sentide perfeida vontade cação civil mento mento ção (wolff de Deus (Mandepolítico moral e os estói(Crusius e ville) (Epicuro) (Hutebecos) os demais son) 1 teólogos)
Os motivos subjectivos, quer exteriores quer internos, são todos empíricos e não podem, por isso servir de fundamento a uma obrigação moral incondicional. Tal obrigação seria de facto condicionada por circunstâncias externas (de educação ou de governo) ou então por um sentimento e não se justificaria na sua validez universal. Tais motivos subjectivos poderiam, quando muito, explicar efectivamente a presença da moralidade em certos homens ou grupo de homens, mas não justificaria o carácter absolutamente obrigatório da lei moral. Que a educação ou o governo ou um sentimento meu qualquer me determinem a agir de um modo determinado, isso nada me diz ainda acerca do valor deste modo de agir, isto é, sobre a minha obrigação real para com ele. Mas o mesmo se pode dizer também dos movimentos objectivos. A perfeição ou a vontade de Deus só podem tomar-se como motivos de acção se as considerarmos como factores ou elementos da nossa felicidade. Dependem, portanto, do desejo da 148 felicidade e não justificam a validez de uma lei que obriga incondicionalmente. Em segundo lugar, o formalismo da lei moral permite a Kant estabelecer o princípio de que "o conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral, mas apenas depois dela e mediante ela". O homem é um ser dotado de necessidades enquanto faz parte do mundo sensível e a sua razão tem também o encargo, que não pode recusar, de converter-se em instrumento de tais necessidades e, por consequência, de contribuir para a satisfação destas e para a sua felicidade. Mas a razão não é apenas unia maneira particular de que a natureza se serve para orientar o homem para o mesmo fim para que encaminhou os animais, isto é , o bem-esW, . O homem pode e deve servir-se da razão para um fim superior e, por conseguinte, considera o que é bem em si mesmo, e não apenas relativamente às suas necessidades; neste caso, a razão é usada para um juizo que, do ponto de vista sensível, é absolutamente desinteressado, e que é o único juizo verdadeiramente moral. Neste juizo sobre o bem e sobre o mal em si, a razão determina a vontade imediatamente, isto é, não em vista dos objectos do desejo, e a vontade convertese em razão pura prática. A vontade, cuja máxima está conforme com a lei moral, é portanto boa absolutamente, a todos os respeitos, e é condição suprema de todo o bem É evidente, de facto, que todos os outros bens, até mesmo a habilidade ou o engenho humano, podem ser mal usados, e por isso não são bens em sentido absoluto; a vontade boa é, ao invés, bem em sentido 149 absoluto e é a única coisa incondicionalmente boa. Mas para ser tal, não basta que se conforme com a lei, é necessário ainda que actue unicamente em vista da lei. Se a acção escolhida pela vontade, embora se conforme com a lei moral, não se executa em vista da lei mas por um outro fim sugerido pelo modo ou pela esperança, não é uma acção moral porque não é uma acção determinada imediatamente pela lei moral Isto leva a considerar os móbeis da acção moral. Kant distingue a este propósito a legalidade da moralidade: a legalidade é a conformidade
com a lei de uma acção que todavia se faz por um outro motivo de natureza sensível, por exemplo, a fim de evitar um dano ou obter uma vantagem.
fim, é dada pela subjectividade dos próprios seres racionais. @,, De facto, o imperativo categórico implica o reconhecimento dos outros sujeitos morais para as quais a lei deve poder valer, e, portanto, inclui, o respeito pela sua dignidade. De sorte que o imperativo categórico pode também. assumir esta segunda forma: "Procede de modo a tratar a humanidade, na tua pessoa como na dos outros, sempre como fim, nunca como simples meio". Esta segunda fórmula supõe que a universalidade da lei moral é o acordo sobre um determinado objecto, nem a uniformidade da acção dos vários sujeitos, mas apenas o reconhecimento da dignidade humana das demais pessoas como da própria. Tal reconhecimento faz com que todos os homens como sujeitos morais constituam um reino dos fim, isto é, 152 uma "união !sistemática de seres racionais", da qual todo o membro é legislador e súbdito. Neste reino, nenhum ser racional finito pode aspirar ao lugar de soberano, porque nenhum é perfeitamente independente, sem necessidade, e cujo poder não seja limitado. Mas todos participam nele, mediante o a~ da liberdade que os constitui em pessoas. Todavia, dado que cada membro do reino dos fins é não só súbdito mas também legislador, o imperativo categórico pode exprimir-se por esta terceira fórmula: "Age de modo a que a vontade possa considerar-se a si mesma, mediante a sua máxima, como legisladora universal" (lb., A 84), que é a fórmula que exprime da maneira mais completa a autonomia do homem como sujeito moral. As três fórmulas do imperativo categórico mostram como a actividade moral do homem tende à realização de um mundo que não é o da natureza em~ e das suas leis necessárias. Todavia, este mundo não pode realizar-se se se opuser à natureza sensível e às leis que a regem: a sua própria possibilidade não tem outro horizonte nem outra via para se afirmar senão a própria natureza -sensível. Aqui está a raiz da exigência paradoxal de que o homem como sujeito da liberdade valha como númeno. A moralidade supõe o encontro de duas causalidades independentes, a da li@bertação e a do niccanisino natural; e este encontro verífica-se no homem. O homem deve ser, por um lado, relativamente à liberdade, um ser em si, por outro, relativamente ànecessidade , natural, um fenómeno (K. p. V., A 6 e nota). Mas afirmando-se como númeno, o homem não 153 anula a sua natureza sensível. A sua numenalidade mobiliza a sua fenomenalidade; o mundo supra-sensível que estabelece no acto da sua liberdade, é a forma da própria natureza sensível. A causalidade livre, que dá lugar à natureza supra-sensível é, decerto, espontaneidade, mas não é criação. A numenalidade do sujeito moral não significa o abandono da sensibilidade nem a ruptura de todos os laços com o mundo sensível. o homem, como sujeito moral, não se identifica. com a razão, a moralidade nunca é conformidade completa da vontade com a lei, nunca é santidade. A oposição entre moralidade e santidade é o tema dominante da Crítica da razão pura e o fundamento da sua última parte, a "Doutrina do método". A santidade exclui a possibilidade de se subtrair à lei e torna inútil o imperativo e a coacção do dever. Mas a moralidade é uma obrigação e implica uma violência feita aos impulsos. Dever e obrigação são os únicos nomes apropriados à relação do homem com a lei moral. "Nós somos, decerto, membros legisladores de um reino moral tornado possível pela liberdade e representado pela razão prática como objecto de respeito; mas somos os súbditos, não o
soberano desse reino, e assim o desconhecer a nossa condição inferior de criaturas, o recusar presunçosamente a autoridade da lei, é já uma infidelidade ao espírito da lei, mesmo quando se lhe observe a letra" (K. p. V. A 147). A santidade é, pois, reservada a Deus e é reconhecida, juntamente com a beatitude e a sabedoria, uma das propriedades que só lhe pertencem a Ele, porque supõem a ausência 154 de limites ( Ib., A 237, no-ta). Mas nem o homem nem nenhuma criatura racional pode atribuir-se a santidade senão por uma presunção ilusória. Tal presunção é o fundamento do fanatismo moral. Este pretende cumprir a lei de bom grado, em virtude de uma inclinação natural, e assim substitui a virtude, que é a intenção moral em luta com o mundo, pela santidade de uma suposta pureza' de intenções absoluta. O fanatismo moral incita os homens às acções mais nobres, mais sublimes, mais magnânimas, apresentando-as como puramente meritórias; e assim substitui o respeito por um móbil patológico,, porque se funda no amor de si e determina uma maneira de pensar leviana, superficial e fantástica, pela qual o orgulho de uma bondade espontânea, que não necessita nem de esporas nem de freio, aniquila a humildade da simples submissão ao dever (K. p. V., A 15152). O preceito cristão que manda amar Deus e o próximo pretende, ao invés, subtrair este amor à inclinação natural; e assim garante a pureza da moralidade e a sua proporção aos limites dos seres finitos; submete o homem à disciplina de um dever que não o deixa vangloriar-se de perfeições morais imaginárias e lhe impôs os limites da humildade, isto é, da sinceridade consigo mesmo (lb., A 152). consequentemente , o método da razão prática, isto é, a via para assegurar ao imperativo moral a máxima eficácia sobre o homem, visa fundamentalmente à destruição do fanatismo moral. Deve promover, a "representação clara e severa do dever, mais conforme com a imperfeição humana e o Progresso do bem". 155 § 526. KANT: DIALÉCTICA DA RAZÃO PRÁTICA: POSTULADOS E FÉ MORAL A acção moral do homem tem como objectivo ou termo final o sumo bem. O sumo bem para o homem, que é um ser finito, consiste, não só na virtude, mas também, na união da virtude e da felicidade. A virtude é, de facto, o bem supremo, quer dizer, a condição de tudo o que é desejável; mas não é o bem completo e perfeito para seres racionais finitos, que têm também necessidade de felicidade. "Ter necessidade da felicidade e ser digno dela, e todavia não participar dela, não é compatível com o querer perfeito de um ser racional que tivesse ao mesmo tempo a omnipotência: somente, procuramos figurar um tal sem. Mas virtude e
felicidade não estão por si mesmas unidas. O esforço em ser-se virtuoso e a busca da felicidade são duas acções diferentes: uma não implica a outra. A identidade entre virtude e felicidade foi admitida pelos epicúreos e pelos estóicos, pois, que os primeiros consideram implícita a virtude na busca da felicidade e os segundos consideram a felicidade implícita na consciência da virtude. Mas, na realidade, virtude e felicidade constituem uma antinomia, e a condição que toma possível a primeira (o respeito pela lei moral) não @influi sobre a segunda, nem a condição que torna possível esta (o adequar-se às leis e ao mecanismo causal do mundo sensível) torna possível a virtude. De certo modo, a felicidade deve ser uma consequência da virtude, não no sentido de que esta pode produzir a felicidade segundo o mecanismo das 156 leis naturais, mas no sentido de que torna o homem digno dela e por isso justifica a esperança de a obter. Contudo, para ser propriamente digno da felw-1lade o homem deve,poider promover até ao infinito o seu aperfeiçoamento moral. Só a santidade, isto é, a conformidade completa da vontade à lei, torna o homem digno da felicidade e constitui a condição do sumo bem, isto é, da união perfeita da virtude com a felicidade. Mas, diz Kant (K. p. V. 2 220), a santidade é uma perfeição de que nenhum ser racional do mundo sensível é capaz em momento algum da sua existência. Só se pode alcançar tal perfeição mediante um progresso até ao infinito desde os graus inferiores até aos graus superiores da perfeição moral. Mas este progresso até ao infinito ,só é possível se se admitir a imortalidade da alma; a imortalidade é, portanto, um postulado da razão prática, isto é, "uma. proposição teórica, mas como tal indemonstrável, enquanto está indissoluvelmente ,unida a uma lei prática que vale incondicionalmente a priori". Ademais, dado que a união da virtude com a felicidade não se verifica segundo as leis do mundo sensível, só pode ser o fruto de uma vontade santa e omnipotente, isto é de Deus. De sorte que, assim como a realização da primeira condição do sumo bom, isto é, da virtude, implica a imortalidade da alma, assim a realização do segundo elemento do sumo bem, isto é, da felicidade proporcionada à moralidade, implica a existência de Deus. Kant nota que não é um dever crer na existência de Deus, mas apenas uma necessidade; e que nem sequer a existência de Deus é necessária para o dever, uma 157 vez que este se funda na autoridade da razão. O postulado, como necessidade da razão prática, é antes urna fé, e precisamente uma fé racional porque é sugerido por aquele conceito do sumo bem a que o homem tende como ser racional finito. Os postulados da razão prática permitem reconhecer com segaridade o que à razão especulativa parecia simplesmente problemático: a realidade da alma como substância indestrutível, a do mundo como domínio da liberdade humana, e a de Deus como garante da ordem moral. O que ora transcendente para a razão especulativa, torna-se inwnente para a razão prática. Todavia, esta extensão da razão pura ao plano prático não implica uma similar extensão do conhecimento teórico. Admitir os postulados não significa conhecer os
objectos nuMÉnicos a que se referem. "Com tais conceitos, diz Kant (K. p. V., A 240), nós não conhecemos nem a natureza da nossa alma, nem o mundo inteligível, nem o ser supremo, no que em si mesmos são, mas conglobamos apenas os conceitos destas coisas no conceito prático do sumo bem como objecto da nossa vontade completamente a priori, com a razão pura, e também fizemos isto apenas mediante a lei moral e só, relativamente a ela, em vista do objecto a que ela se refere". Chegámos aqui, certamente, a um ponto crucial da filosofia de Kant, um ponto que parece encerrar uma dificuldade insuperável. Por que é que o homem - pode-se perguntar - uma vez certo, embora só no plano prático, da realidade suprasensível, não pode fazer valer tal certeza também no domínio teórico? Se, 158 como diz Kant, esta certeza nada nos diz acerca do modo por que os seus objectos são possíveis, acerca do modo, por exemplo, como se pode representar positivamente a acção causal da vontade livre, diz-nos todavia, dos objectos numénicos, que existem, e existem absolutamente. Assim, o limite da experiência é superado e o homem adquire uma certeza positiva para lá da experiência e parece ilegítimo encerrar o conhecimento nestes limites. O "primado da razão prática parece contrastar de modo evidente com a limitação do conhecimento humano dentro das possibilidades, empíricas, que é o grande ensinamento da Crítica da razão pura4, Não é de admirar, deste ponto de vista, que os intérpretes e seguidores de Kant que tomaram à letra a doutrina do primado da razão prática, nunca tenham tomado à letra as limitações que Kant lhe impôs, proibindo qualquer uso teórico da mesma e recusando-se a considerá-la, sob qualquer ponto de vista, como uma extensão do conhecimento. Todavia, as afirmações de Kant são tão instantes e repetidas a este propósito que fazem supor que os motivos que as sugeriram deviam decerto parecerlhe decisivos; e decisivos são na realidade, com respeito aos pressupostos fundamentais da filosofia de Kant. O postulado é, na sua expressão, "uma proposição teórica"; mas, não é um acto teórico da razão, isto é, um acto que, do ponto de vista teórico, tenha qualquer validade. Kant adverte que, mesmo depois de a razão haver dado um grande passo, admitindo a realidade dos objectos numénícos, não lhe resta, com respeito a tais objectos, senão uma tarefa negativa, isto é, 159 o impedir, por um lado, o antropomorfismo, que é a origem da superstição, ou seja, da extensão aparente daqueles conceitos mediante uma pretensa experiência, e, por outro lado, o fanatismo que promete tal extensão mediante uma intuição supra-sensível ou um sentimento do mesmo género (K. p. V., A 244-45).+A realidade é atribuída às ideias numénicas unicamente "no que respeita ao exercício da lei moral",4Ib., A 248). Não é possível fazer nenhum uso delas para os fins de uma teologia naitura,1 ou da física. O postulado nada mais é do que uma necessidade do ser moral finito; e a palavra "necessidade" revela o carácter prático do mesmo.*4W-ma necessidade da razão pura ,prática tem como fundamento o dever de fazer de algo (do sumo bem) o objecto da minha vontade, para o promover com todas as minhas forças: mas neste caso eu devo supor a possibilidade dele e, portanto, também as
suas condições, isto é, Deus, a liberdade e a imortalidade, porque não as posso demonstrar mediante a minha razão especulativa, conquanto nem sequer as possa refutar., A 256). E tal necessidade não implica nenhuma certeza mas apenas uma fé problemática que é a única adequada à condição do homem. No parágrafo final da Dialéctica da razão prática, intitulado "Da @proposição sabiamente conveniente das faculdades de conhecer do homem com respeito à sua determinação prática", parágrafo muitas vezes esquecido para a elucidação deste ponto de vista da doutrina kantiana, Kant mostra como qualquer certeza que o homem possa ter da realidade supra-sensível destruiria a vida moral do ho160 mem. Neste caso, de facto, "Deus e a eternidade, perante os nossos ' olhos (já que o que podemos demonstrar perfeitamente equivale certamente ao que podemos descobrir mediante a vista). A transgressão da lei seria certamente impedida, tudo quanto se manda-se seria cumprido; mas como a intenção, que origina as acções, não nos pode ser imposta por um mandamento e o aguilhão da actividade seria aqui sempre imediato e exterior, a razão nunca teria necessidade de esforçar-se e de reunir as forças às inclinações mediante a viva representação da dignidade da lei, assim a maior parte das acções conformes à lei seriam feitas por temor, apenas umas tantas por esperança e nenhuma pelo dever; de modo que o valor moral das acções, o único de que depende o valor da pessoa e do mundo aos olhos da sabedoria suprema, não existiria para nada. A conduta do homem (desde que a sua natureza permanecesse como é), transformar-se-ia num puro mecanismo, no qual, como no teatro de fantoches, todos gesticulariam sem que as figuras tivessem vida. Ora, as coisas passam-se de uma maneira muito diferente: apesar de todo o esforço da nossa razão, temos uma visão do mundo obscura e duvidosa, e aquele que rege o mundo deixanos apenas conjecturar, e não ver nem demonstrar claramente, a sua existência e a sua majestade; a lei moral, sem nada de certo nos prometer e sem nos ameaçar, exige de nós o respeito desinteressado; e só quando este respeito se torna activo e dominante, só então, e só graças a ele, se, pode lançar um olhar, e, mesmo assim, com vista dé bil, ao reino do supra-sensível. 161 Deste modo pode ter lugar uma intenção verdadeiramente moral e consagrada imediatamente à lei, e a criatura racional pode tornar-se digna de participar no sumo bem, que é adequado ao valor moral da sua pessoa e não apenas as das suas acções" (1b., A 265-266). Estas palavras de Kant que lembram as de Pascal sobre o "Deus, que se esconde" (§ 425) esclarecem com exactidão o alcance do chamado primado da Razão prática. Convertem os postulados da razão prática no analogon exacto das ideias da razão pura; assim como estas últimas são simplesmente as condições da investigação científica que em virtude delas pode progredir em extensão e em unidade até ao infinito, assim os postulados são as condições do empenho moral do homem e do seu indefinido aperfeiçoamento. E como condições do empenho moral, os postulados devem ter o mesmo carácter que as ideias da razão pura: devem valer problematicamente, quer dizer não podem dar uma certeza inabalável que seja directamente contrária à condição do homem e que tornaria
impossível à própria vida moral. O postulado não autoriza a dizer eu existo mas apenas eu quero. "0 homem justo pode dizer: eu quero que haja um Deus; que a minha existência neste mundo, mesmo para lá da conexão natural, seja também uma existência num mundo puro do entendimento e, enfim, que a minha duração não tenha fim; eu insisto nisto e não deixo roubarem-me esta fé, sendo este o único caso em que o meu interesse, já que nada posso descurar, determina inevitavelmente o meu juizo, sem ligar a sofismas, 162 mes~ que não seja capaz de os deixar ou de lhes contrapor outros mais especiosos" (lb., A 258). § 527. KANT: O MUNDO DO DIREITO E DA HISTÓRIA Vimos que a simples conformidade de uma acção com a lei constitui a legalidade, ao passo que na moralidade a acção é feita unicamente pelo respeito da lei À legalidade falta, pois, para ser moralidade, a intenção moral: ela é compatível também com a conformidade à lei por uma razão diferente do simples respeito da lei, isto é, por uma inclinação natural de temor ou de esperança. O direito funde-se no conceito da legalidade. Kant expõe a doutrina do direito na primeira parte da Metafísica dos costumes (1797), cuja segunda parte é a "Doutrina da virtude", isto é, uma análise dos deveres do homem para consigo mesmo e para com os outros, assim como uma "metodologia moral" que comprende uma "didáctica moral" e uma "Ascética moral". A segunda parte da Metafísica dos costumes é uma minuciosa causística da vida moral, construída de harmonia com as doutrinas éticas de Kant, e oferece pouco interesse. A doutrina do direito apresenta, ao invés, aspectos notáveis que vamos examinar. Por legislação jurídica entende Kant a legislação que admite como motivo da acção um impulso diferente, da ideia de dever. Os deveres impostos pela legislação jurídica são, portanto, deveres exteriores, porquanto ela não exige que a 163 ideia interna do dever seja por si mesma um motivo determinante da vontade do agente. Ao passo que a legislação ética é a que não pode ser externa, a legislação jurídica é a que pode ser também externa e por isso se serve de uma imposição não puramente moral, mas de facto, e actua como força obrigatória. O direito trata da relação externa de urna pessoa para com outra, enquanto as suas acções ,podem, de facto, exercer influências umas sobre as outras. É o conjunto das condições pelas quais a vontade de um concorda com a vontade do outro, segundo uma lei de liberdade; e a fórmula desta lei é a seguinte: "Age eternamente, de modo que o livre uso do teu arbítrio possa harmonizar-se com a liberdade de todos os outros, segundo uma lei universal".
Todavia, esta lei, não espera obter a sua realização mediante a boa vontade dos indivíduos particulares; implica a possibilidade de uma imposição exterior que intervém para impedir, ou pelo menos anular, o efeito de possíveis violações. Kant divide o direito em direito inato, dado a todos pela natureza, independentemente de qualquer acto jurídico, e em direito adquirido, que nasce apenas de um acto jurídico. O único direito inato é a liberdade, a liberdade de todos os outros. O direito adquirido é, pois, o direito privado, que define a legitimidade e os limites da posse das coisas exteriores, ou direito público, que trata da vida social dos indivíduos numa comunidade juridicamente ordenada. Esta comunidade é o estado. Kant distingue, tal como Montesquieu, três poderes do estado: o legislativo, 164 O executivo e o judicial, e atribui, tal como Rousseau, o poder legislativo à vontade colectiva do povo. Este poder deve de facto ser tal que não possa praticar injustiças contra ninguém; e esta garantia só se obtém se cada um decidir o mesmo para todos e todos para cada um, mas só mediante a vontade colectiva do povo. Kant, no entanto, nega a legitimidade da rebelião do povo contra o soberano legítimo e condena as revoluções inglesa e francesa que processaram e executaram os seus soberanos. É notável que Kant tenha extraído dos seus conceitos morais uma justificação da pena jurídica que se afasta muito da dos juristas do iluminismo. A punição jurídica (diferente do castigo natural do vício que se pune a si mesmo) deve aplicar-se aoréu, não como um meio para obter um bem, seja em proveito do criminoso, seja em proveito da sociedade civil, mas unicamente porque cometeu um delito. De facto, o homem nunca é um meio mas sempre um fim; não pode ser, portanto, ser utilizado como exemplo pelos outros, mas deve ser considerado merecedor de punição antes ainda que se possa pensar em extrair de tal punição qualquer utilidade para ele próprio e para os seus concidadãos. Kant chega a dizer que, mesmo que a sociedade civil se dissolvesse com o consenso de todos os seus membros (no caso, por exemplo, de o povo de uma ilha decidir separar-se e dispersar-se pelo mundo), o último assassino que se encontrasse preso deveria antes ser justiçado; e isto a fim de que o sangue derramado não recaia sobre o povo que não aplicou 165 o castigo o que poderia então ser considerado cúmplice desta violação pública da justiça. Na última secção da doutrina do direito, Kant considera a possibilidade de um direito cosmopolíta, fundado na ideia racional de uma perpétua associação pacífica de todos os povos da terra. Kant observa que não se trata de ver se tal fim pode ser alguma vez atingido praticamente, mas antes de dar-se conta do seu carácter moralmente obrigatório. A razão moralmente prática, diz, opõe em nós o seu veto irrevogável: não deve haver guerra nem entre os indivíduos nem entre os estados. Não se trata, pois, de ver se a paz perpétua é real ou algo sem sentido; em qualquer caso, devemos agir como se ela fosse possível (o que talvez não seja) e estabelecer as instituições que pareçam mais aptas a alcançá-la. Pois, ainda que isto não passasse de um desejo Piedoso, nunca nos enganaríamos impondo-nos a máxima de tender à sua realização a todo o custo, porque se trata de um dever. A este dever obedecera Kant, indubitavelmente, alguns anos antes
(1795) ao escrever o seu projecto Para a paz perpétua, no qual reconhecia as condições da paz na constituição republicana dos estados particulares, na federação dos estados e, finalmente, no direito cosmopolita, isto é, no direito de um estrangeiro a não ser tratado por inimigo no território de outro estado. Mas, acima de tudo, via a maior garantia da paz no respeito por parte dos governantes das máximas dos filósofos (segundo o ideal platón3co) e no acordo entre política e moral, efectuado mediante a máxima "a honestidade é melhor do que toda a política". 166 O ideal racional de uma economia pacífica de todos os povos da terra é, segundo Kant, o único fio condutor que pode e deve orientar o homem através das vicissitudes da sua 1iistór@a. Kant não considera que a história. dos homens se desenvolva segundo um plano preordenado e infalível como a vida das abelhas ou dos castores. Nu-ma recensão (1785) sobre o escrito de Horder, Ideias sobre a filosofia da história dá humanidade, Kant nega a possibilidade de descobrir na história uma ordem harmónica e progressiva, um desenvolvimento natural e contínuo de todas as potências do espírito. O plano da história humana não é uma realidade, mas antes um ideal orientador em que os homens devem inspirar as suas acções e que o filósofo pode apenas aclarar na sua possibilidade, mostrando-a conforme ao destino natural dos homens. Tal é precisamente o intuito de Kant nas Ideias para uma história universal do ponto de vista cosmopolita (11784). Aqui propõe-se Kant ver se o livre jogo das acções humanas torna possível, no decurso da história, um plano determinado, embora não necessário, que sirva de escopo final do desenvolvimento histórico da humanidade. Começa por observar que todas as tendências naturais dos seres criados tendem a desenvolver-se completamente em conformidade, com o seu corpo. Um órgão, por exemplo, que não deva ser usado, uma ordenação que não atinja a sua finalidade, são contrárias à ordenação teleológica da natureza. Ora, a tendência natural do homem é a de alcançar a felicidade ou a perfeição através do uso da razão, isto é, através da liberdade: e o homem 167 só pode alcançá-las verdadeiramente numa sociedade política universal, na qual a liberdade de cada um não encontre outro limite senão a liberdade dos outros. O plano natural da história humana não pode ser, portanto, senão a realização de uma sociedade política, universal que compreenda sob uma mesma legislação os estados diversos e garanta assim o desenvolvimento completo de todas as capacidades humanas. A natureza, para atingir os seus fins, vale-se do antagonismo que existe em todos os homens entre a sua tendência para a sociabilidade e a tendência para o isolamento, antagonismo que, sem que os homens o pretendam, os impele à actividade e ao trabalho e, por consequência, ao empenho de todas as suas forças. "As árvores num bosque - diz Kant a este propósito - procuram tirar umas às outras o ar e a luz e por isso crescem belas e direitas, ao passo que em liberdade e afastadas umas das outras estendem os seus ramos para todos os lados e crescem enroscadas e retorcidas. Da mesma maneira, a civilização e a arte, que são os ornamentos da humanidade, e a ordem social evoluída, são fruto da insociabilidade que por si mesma é compelida a disciplinar-se e a desenvolver plenamente, através da arte, o germe da natuireza". Estas considerações exprimem de maneira característica o procedimento fundamental de Kant. Precisamente no limite que a
tendência para a sociabilidade encontra na tendência oposta, Kant vê a garantia de todo o possível progresso da mesma sociabilidade e, assim, de um caminho da história humana para uma organização política universal em que se garante a cada indivíduo 168 a máxima liberdade compatível com igual liberdade dos outros. É de notar que se trata de um progresso possível, não necessário e infalível. Por isso, o único uso que se pode fazer deste plano é que o seu conceito torne possível uma investigação filosófica que tenha por fim mostrar como a história universal deve dirigir-se para a unificação política do género humano. § 528. KANT: O Juízo ESTÉTICO Assim como a Crítica da razão pura analisa as condições do conhecimento teórico e a Crítica da razão prática a da conduta social, assim a Crítica do juízo analisa as condições da vida sentimental. Com a terceira obra de Kant faz o seu ingresso na filosofia esta nova categoria espiritual que era desconhecida na divisão tradicional das faculdades da alma, fundada na distinção entre faculdade teórica e faculdade prática. Os pressupostos históricos desta inserção são as análises dos empiristas ingleses, e especialmente de Schaftesbury e de Hume, bem como dos moralistas franceses e especialmente de Rousseau. Kant afirma: "Todos os poderes ou faculdades da alma podem reduzir-se a três, os quais não podem ser ulteriormente reduzidos a um princípio comum: o poder cognitivo, o sentimento do prazer ou da dor e o poder de desejar (K. d. U., Int., § 111). Kant caracteriza o sentimento como o aspecto irredutivelmente subjectivo de toda a representação, e à análise dos sentimentos e das paixões dedicou depois inúmeras páginas na sua Antropologia pragmática. 169 Na Crítica do Juízo o seu primeiro escopo é o de determinar a natureza do critério ou do cânone dos juizos fundados no sentimento, isto é, no gosto. Kant chama reflexivo ao juizo próprio da faculdade do sentimento. O homem que deve realizar a sua liberdade na natureza e sem se opor ao mecanismo dela, tem necessidade de que a própria natureza esteja de acordo com a sua liberdade e de algum modo a torne possível com as suas próprias leis. Mas o acordo entre a natureza e a liberdade, que é, além disso, a exigência e o princípio fundamental da vida moral, não resulta de um juizo objectivo porque as exigências da vida moral não constituem os objectos naturais que estão condicionados apenas pelas categorias do entendimento. Pode resultar, de uma reflexão sobre os objectos naturais que são já, como tais, determinados pelos princípios do entendimento. O juizo do sentimento não determina, como o do entendimento, a constituição dos objectos fenoménicos mas reflecte sobre estes objectos já constituídos para descobrir o seu acordo com as exigências da vida moral. Kant chama determinante ao juizo do entendimento, e reflexivo ao juizo do sentimento. Ora, tal acordo pode ser
apreendido imediatamente sem o trâmite de um conceito, e então é um juizo estético; pode ser pensado, mediante o conceito de fim, e então o juizo é teleológico. O juizo estético e o juizo teleológico são as duas formas, uma subjectiva, a outra objectiva, em que se realiza o juizo reflexivo: a primeira tem por objecto o prazer do belo e a faculdade com que se julga tal prazer, isto é, o gosto. A segunda tem ZD 170 por objecto a finalidade da natureza, que exprime o acordo desta com as exigências da liberdade, isto é, da vida moral do homem. O juizo reflexivo não tem valor cognitivo porque contém apenas os princípios do sentimento de prazer e de desprazer, independentemente dos conceitos e das sensações que determinam. a faculdade de desejar; também nada tem em comum com a razão, a qual determina o homem (mediante o imperativo categórico) independentemente de qualquer prazer. É evidente que a faculdade do juizo pode ser própria apenas de um ser finito como é o homem. Radica-se, de facto, na necessidade de harmonizar o acordo da natureza com as exigências da liberdade; e esta necessidade deriva da impossibilidade, em que a subjectividade humana se encontra, de constituir a natureza até ao ponto de a tornar dócil e pronta às necessidades fundamentais. Evidentemente, se o conhecimento pudesse criar ou constituir as coisas com v3sta, a essa liberdade que é própria do homem, as coisas estariam constitutivamente dispostas a dirigir-se para a liberdade como seu escopo final, e o acordo entre natureza e liberdade seria objectivo, isto é, intrínseco e essencial às coisas mesmas: mas neste caso, o juizo reflexivo, que funda apenas subjectivamente o acordo, seria inútil. O homem não teria necessidade de sentir ou de figurar subjectivamente "mediante o conceito de fim" a conformidade das coisas com as próprias necessidades, se conhecesse esta conformidade como lei objectiva da natureza. O limite do conhecimento, devido ao qual este não é criação mas síntese da multiplicidade, impede 171 que entre na constituição dos seus objectos tudo quanto se refere à estrutura moral do homem. E então a conformidade entre os objectos com tal estrutura é apenas uma necessidade do homem, necessidade que é satisfeita, é certo, pela função reflexiva do juízo mas apenas subjectivamente e não dá lugar ao conhecimento. A Crítica do juízo é, por consequência, desprovida daquele aspecto polémico que domina a Critica da razão pura e a Crítica da razão prática, ambas dirigidas contra a arrogância teórica e o fanatismo moral. No âmbito do seu objecto nem sequer é possível a ilusória veleidade de transpor os limites do homem; e este objecto funda-se inteiramente em tais limites. O juizo estético, como imediata apreensão da conformidade da natureza com a liberdade, é o prazer do belo. Este prazer é puramente subjectivo: não dá qualquer conhecimento, nem
claro nem confuso, do objecto que o provoca. Ao mesmo tempo, carece de interesse porque não está ligado à realidade do objecto, mas apenas à representação dele. O prazer sensível é interessado porque é a satisfação de um desejo ou de uma necessidade, tornada possível pela realidade do objecto a que o desejo ou a necessidade se refere. Mas no prazer estético a realidade do objecto é indiferente, porque o que satisfaz é a pura representação do objecto mesmo. Ora, o órgão para julgar os objectos do sentimento é o gosto. O gosto é, portanto, a faculdade de julgar um objecto ou uma representação mediante um prazer ou um desprazer isento de interesse; e o objecto de, um prazer semelhante diz-se belo. A natureza subjec172 tiva do sentimento do belo não exclui a sua universalidade; só que esta universalidade não consiste na validez objectiva própria do conhecimento intelectual, mas na comunicabilidade, isto é, na possibilidade de ser partilhado por todos os homens. Kant define o belo como sendo "o que, agrada universalmente sem ZD conceito" (K. d. U., § 9). E distingue a beleza livre (por exemplo das flores) que não pressupõe nenhum conceito, e a beleza aderente (por exemplo, a de um homem ou de uma igreja), que pressupõe o conceito daquilo que a coisa deve ser, isto é, da sua perfeição. Evidentemente, a beleza aderente não é um puro juizo de gosto, precisamente porque supõe o conceito do fim a que a coisa julgada deve adequar-se; mas é um conceito de gosto aplicado, e complicado com critérios intelectuais. Neste sentido, diz que "a beleza é a forma da finalidade de um objecto na medida em que é nele precedida sem a representação de uma finalidade" (1b., § 17). O juizo do gosto, sendo puramente subjectivo, não tem a necessidade do juizo intelectual, sobre o qual todos estão de acordo, Se se quer admitir a sua necessidade é necessário admitir que existe um senso comum, em virtude do qual todos devem estar de acordo sobre o juizo de gosto. Mas este senso comum é uma pura norma ideal, que não pode ter a pretensão de determinar de facto o acordo universal. Kant exprime a necessidade subjectiva do juizo de gosto dizendo que "o belo é o que é reconhecido sem conceito como objecto de um prazer necessário" (1b., § 18). O sentimento estético como sentimento do belo tem, como se viu, a sua raiz na impotência do ho173 mem como sujei-to moral, perante a natureza; o homem transforma esta impotência, aceitando-a como tal, numa faculdade positiva: a que garante subjectivamente o acordo entre a natureza e a liberdade e a apreensão imediata da finalidade danatureza. Este carácter do sentimento estético rei ainda mais clara-mente no sentimento do sublime. Este sentimento é suscitado ou pela grandeza desmesurada da natureza (sublime matemático) ou pela sua desmesurada potência (sublime dinâmico). A grandeza desmesurada da natureza determina no homem a consciência da sua insuficiência para apreciá-la mediante os sentidos e, por consequência, um sentimento de pena. Mas o reconhecimento desta insuficiência, conformando-se com as ideias da razão, que estabelecem precisamente o limite da sensibilidade, transforma a pena no prazer do sentimento do sublime. "A qualidade ido sentimento do sublime, diz Kant (K. d. U., § 27) é a de ser, em relação a um
objecto, um sentimento de pena, que é representado, ao mesmo tempo como final; isto é possível, porque a nossa própria impotência revela a consciência de um poder ilimitado do próprio sujeito, e o sentimento pode julgar esteticamente esta última só por meio da primeira". Do mesmo modo, perante o desmesurado poder da natureza, o homem sente o seu poder reduzido a uma pequenez insignificante e é tomado de temor. Mas ao reconhecer a impossibilidade de resistir ao poder da natureza e a própria debilidade, descobre a sua superioridade e a independência do seu destino em relação a esse poder desmesurado, dado que, ainda que tivesse de sucumbir, o seu valor pró174 priamente humano permaneceria intacto (K. d. U., § 28). O sentimento do sublime dinâmico transforma em poder humano, em superioridade de valor moral humano, a inferioridade física em que o homem se sente perante a natureza. O sublime, em geral, é definido por Kant como "um objecto da natureza cuja representação leva a pensar a inacessibilidade da natureza como representação de ideias" (1b., 28, Observação). A Crítica do juízo adopta o procedimento e as divisões da Crítica da razão pura: contém, portanto, uma Analítica e uma Dialéctica do juizo estético, e uma Analítica do juízo teleológico. A analítica do juízo estético contém também uma Dedução dos juízos estéticos, dedução que no entanto se refere apenas aos juízos do belo porque a dedução sobre os juizos do sublime está já implícita, segundo Kant, na exposição do princípio que os rege. Com efeito, tais juízos, referem-se, não aos objectos mas às suas relações de proporção ou de desproporção com as nossas faculdades cognitivas; de sorte que a referência ao objecto, que a dedução deveria justificar, está já justificada pelo facto de que o objecto, como pura relação das faculdades cognitivas, é interior a estas últimas. O juizo do belo, pelo contrário, refere-se aos objectos externos e por isso necessita de dedução. Esta dedução deve ter em conta o significado particular que a universalidade e a necessidade têm nos juizos de gosto, os quais são universais só no sentido de poderem ser comunicados aos outros e necessários só como fundamento de um sentido comum a todos os outros homens. Assim, Kant 175 estabelece que o juízo do gosto pode pretender legitimamente à universalidade porque se funda nas condições subjectivas da possibilidade de um conhecimento em geral e a proporção destas faculdades cognitivas, que o gosto requer, também a requer a inteligência comum, a qual se pode supor em toda a gente. "Precisamente por isso aquele que julga em matéria de gosto (sempre que tenha uma justa consciência do seu juízo e não confunda a matéria com a forma, a atracção com a beleza) pode exigir de todos os outros a finalidade subjectiva, ou seja, o prazer que nasce do objecto, e consMerar o seu sentimento como universalmente comunicável, sem a intervenção de conceitos" (K. d. U., § 39). Quanto ao senso comum, que é o fundamento da necessidade dos juízos de gosto, deve entender-se por tal "a ideia de um senso comunicável, isto é, de uma faculdade de julgar que na sua reflexão consMera a priori o modo de representação de todos os demais, a fim de manter o juízo nos limites da razão humana e
evitar a ilusão de considerar como objectivas as condições subjectivas e particulares que possam facilmente ser confundidas com as objectivas (1b., § 40). Kant, estabelece a este propósito, três máximas que valem para o senso comum estético como para senso comum em geral, ou seja, para o uso racional e fundamentado das faculdades humanas. A primeira máxima é a de pensar por si e evitar a passividade da razão. A passividade da razão leva à heteronimia da razão, ou seja, ao preconceito; e o pior de todos os preconceitos é a superstição que con176 siste em supor que a natureza não está submetida às regras necessárias do entendimento. A libertação da superstição, e, em geral, dos preconceitos, é o iluminismo; e assim o próprio Kant vê na sua obra crítica uma expressão e uma exigência próprias do ilumi*nismo. A segunda máxima é a de pensar pondo-se no lugar dos outros e alargar o modo de pensar do homem elevando-o acima das suas condições particulares de juizo. A terceira máxima é a de pensar de modo a estar sempre de acordo consigo mesmo; esta é a máxima da coerência. A doutrina do juízo estético só se refere verdadeira à beleza natural. Mas Kant identifica a beleza artística com a natural, e chama arte bela a uma arte que tem a aparência da natureza. "Perante um produto da arte bela - diz (K. d. U., § 45), é necessária ter consciência de que se trata de arte e não de natureza; mas a finalidade da sua forma deve apresentar-se livre de toda e qualquer imposição de regras arbitrárias, precisamente como se fosse um produto da natureza. A natureza é bela quando tem a aparência da arte, e, por sua vez, a arte não pode ser considerada bela senão quando a consideramos como natureza, embora sendo cônscios de que é arte. O mediador entre o belo natural e o belo artístico é o género na medida em que é a disposição inata (ingenium) por meio da qual a natureza fornece a regra da arte. Para julgar os objectos é necessário o gosto; mas para a produção de tais objectos é necessário o génio. Este é constituído, segundo Kant, pela união (numa determinada rela177 Ção) entre a imaginação e o entendimento; união na qual o entendimento, como princípio do gosto, intervém para disciplinar a liberdade sem freio da imaginação. Da imaginação procede a riqueza e a espiritualidade da produção artística; do entendimento ou do gosto derivam a ordem e a disciplina desta. As artes belas exigem, pois, imaginação, entendimento, espírito e gosto (1b., § 50). A Dialéctica do juizo estético tropeça na antinomia segundo a qual, por um lado, se afirma que o juizo de gosto se funda nos conceitos enquanto não pode ser provado mediante demonstrações e, por outro, se diz que deve fundar-se nos conceitos, pois, de contrário, não poderia obter a necessária aprovação dos outros. A antinomia resolve-se facilmente observando que, se o juizo de gosto não se funda nos conceitos na medida em que não é um juizo de conhecimento, se funda no entanto na faculdade do juízo que é comum a todos os homens, e na medida em que constitui o acordo das representações sensíveis com um fim implícito desta faculdade. Kant põe a claro a este propósito a idealidade do finalismo que se revela na beleza, tal como pôs em relevo na Crítica da razão pura a idealidade (a fenomenalidade) dos objectos dos sentidos. Assim como esta última torna possível que eles sejam determinados pelas formas a priori da sensibilidade e do entendimento, assim a
primeira torna possível a validez do juizo de gosto, que pode pretender à universalidade, ainda quando não se funde nos conceitos. 178 § 529. KANT: O Juízo TELEOLóGICO o acordo entre a natureza e a liberdade, além de ser percebido imediatamente no juízo estético, pode também ser pensado mediante o conceito de fim. Em virtude deste conceito, o escopo da natureza vem a ser o de tornar possível a liberdade como vida do sujeito, ou soja, do homem: esta consideração forma o juízo teleológico. Ora, o juízo teleológico é, como o estético, um juízo reflexivo: não determina a constituição dos objectos mas prescreve apenas uma regra para a consideração subjectiva dos mesmos. Não se pode descobrir e estabelecer dogmaticamente a finalidade da natureza; não só não se pode decidir se as coisas naturais exigem ou não, para a sua produção, uma causalidade inteligente, como tão-pouco se pode pôr o problema de tal causalidade porque a realidade objectiva do conceito de fim não é demonstrável (K. d. U., § 74). Todavia, o homem deve admitir que, segundo a natureza particular da sua faculdade cognitiva, não pode conceber a possibilidade das coisas naturais, e especialmente dos seres vivos, se não admitirmos uma causa que actue segundo fins e, por isso, um ser com inteligência. Desta maneira, toma-se legítimo como juízo, reflexivo o que é ilegítimo como juízo intelectual, pois que, enquanto para o juizo intelectual a finalidade deveria ser determinante e constituir a ordem objectiva da natureza, para o juízo reflexivo, é uma simples ideia que é destituída de realidade e vale apenas como 179 norma de reflexão, a qual permanece todavia aberta à explicação mecânica da natureza e não saí do mundo sensível (1b., § 71). Com o juízo intelectual o homem afirmaria o finalismo como sendo próprio do objecto e seria obrigado a demonstrar a realidade objectiva do conceito de fim. Mediante o juizo teleológico não faz mais do que determinar o emprego das próprias faculdades cognitivas, conformemente à sua natureza e às cond."- s essenciais do seu alcance e dos seus limites (1b., § 75). O juízo teleológico não constitui de modo algum um preconceito e um limite para a investigação do mecanismo natural. Não pretendo substituir esta indagação, mas tãosomente suprir à sua deficiência com uma investigação diferente, que não proceda segundo leis mecânicas, mas segundo o conceito de fim (K. d. U., § 68). Mas esta pesquisa não permite afirmar verdadeiramente seja o que for em sentido objectivo e teórico. Nem mesmo a teleologia mais perfeita poderia demonstrar que existe um ser inteligente , causa da natureza. Se se quisesse exprimir de modo objectivo dogmático o juízo teleológico, dever-se-ia dizer: "Há um Deus, mas a nós, homens, só nos é permitido empregar esta fórmula limitada: não podemos pensar e compreEnder a finalidade que deve estabelecer-se como fundamento da possibilidade intrínseca de muitas coisas naturais sem a fígurarmos e sem figurar o mundo em geral, como o produto de uma causa inteligente (Deus)". (1b., § 75). Esta expressão satisfaz perfeItamente as exigências especulativas e práticas da razão do ponTo de vista 180 humano e pouco importa que não seja possível demonstrar a sua validade para seres
superiores, ou seja, de um ponto de vista objectivo (Ib). Tudo isto demonstra que a consMeração finalístich é própria unicamente do homem, isto é, de um ser pensante finito. Uma faculdade de intuição perfeitamente espontânea (criadora), como poderia ser a de um entendimento divino, não veria nada que fosse causalidade mecânica, mesmo onde (como nos organismos vá vos) o entendimento humano sente a necessidade de recorrer à causalidade inteligente do fim. Um entendimento intuitivo determinaria necessariamente as coisas até nas suas últimas particularidades e assim as subordinaria a si mesmo na sua constituição intrínseca. O entendimento humano, que procede discursivamente, não determina a constituição das coisas particulares mas só as condições gerais de qualquer objecto: a sua conformidade com as coisas particulares é, por isso, não necessária, mas contingente, e enquanto tal representável como um fim (K. d. U., § 77). Disse-se já que a consideração finalística deve coexistir com a explicação mecânica dos fenómenos da natureza. Devemos procurar explicar mecanicamente o que consideramos um fim da natureza (por exemplo, um ser vivo); mas não poderemos prescindir da consideração teleológica porque "não há nenhuma razão humana (e nem mesmo nenhuma razão superior à nossa em grau, mas semelhante em qualidade) que possa esperar compreender por causas mecânicas a produção, quer de um 181 solo, quer de uma erva" (K. d. U., § 77). A explicação mecânica e a consideração teleológica, na medida em que se opõem, são entre si complementares. A consideração teleológica não pode servir de explicação da natureza". Mesmo que se admitisse que um supremo arquitecto teria criado instantaneamente as formas da natureza, tais como existiram sempre, ou predeterminado as que no curso da natureza se realizam continuamente segundo o mesmo modelo, o nosso conhecimento da natureza não progrediria de modo algum, porquanto nós não conhecemos de facto o modo de agir daquele ser nem as suas ideias, as quais devem conter os princípios da possibilidade das coisas naturais e não poderíamos por isso explicar por elas a priori a natureza em toda a sua amplitude" (1b., § 78). E se se quisesse passar das coisas particulares aos seus fins e tomar estes como princípios de explicação, obter-se-ia apenas uma explicação tautológica e verbal e o homem desvanecer-se-ia no transcendente, onde só pode fantasiar poeticamente mas não elaborar uma explicação qualquer (1b.). Por outro lado, querer a todo o custo uma explicação mecânica completa e excluir inteiramente o princípio teleológico, significa abandonar a razão a divagações tão quiméricas como
as que surgem nas tentativas de explicação teleológica. O valor de tal explicação é o de um princípio heurístico para a busca de leis particulares da natureza. Resta, pois, o dever de explicar mecanicamente, tanto quanto as nossas faculdades o permitem, todos os produtos e acontecimentos da natureza, mesmo os 182 que revelem a maior finalidade, sem que, no entanto, este dever exclua (dada a deficiência daquela explicação) a consideração teleológica (1b., § 78). Na Metodologia do juizo teleológico, Kant determina o uso que se pode fazer de tais juizos relativamente àquela fé racional que já a Crítica da razão pura esclarecera do ponto de vista prático. Começa por observar que a teleologia como ciência não pertence nem à teleologia nem à ciência da natureza, mas sim à crítica, e à crítica de uma faculdade particular do conhecer, isto é, à crítica do juizo. Com efeito, ela não é doutrina positiva, mas antes ciência de limites ( K. d. U., § 79). Contudo, permite reconhecer no homem o escopo final da criação: sem o homem, isto é, sem um ser racional, a criação inteira seria um deserto inútil (1b., § 86). Mas o homem é o fim da criação como ser moral, de modo que a consideração teleológica serve para demonstrar que para o homem a consecução dos fins, que ele se propõe como sujeito moral não é impossível, dado que tais fins são os mesmos que os da natureza em que vive. Neste sentido, a teleologia torna possível uma prova moral da existência de Deus. A moralidade é, sem dúvida, possível mesmo sem a fé na existência de Deus, porque é fundada unicamente na razão, mas esta fé garante também a possibilidade da sua realização no mundo (1b., § 9). Não obstante, insiste, a este respeito, sobre a impossibilidade de utilizar teorèticamente, isto é, como um saber objectivo, o resultado da consideração teleológica. 183 § 530. KANT: A NATUREZA DO HOMEM E O MAL RADICAL A análise crítica de Kant reconheceu em todos os campos os limites do homem e fundou precisamente sobre estes limites as efectivas possibilidades humanas. Assim, o limite do conhecimento, restringido aos fenómenos, garante a validez do saber O intelectual e científico; o limite da vontade, que não atinge nunca a santidade do perfeito acordo com a razão, constitui o carácter imperativo da lei moral * faz da moralidade o respeito da lei mesma; enfim, * limite da espontaneidade subjectiva do homem, que não chega a determinar a constituição intrínseca das coisas, torna possível a vida do sentimento e garante a validade do juizo estético e teleológico. Ora, o próprio problema do Ilimite constitutivo da natureza humana é abordado por Kant na sua última obra fundamental, A religião nos limites da pura razão (1793), obra que resume e conclui a longa investigação de Kant e lança por isso a luz mais viva sobre os interesses que
constantemente a dominaram. Em primeiro lugar, em que sentido se pode falar de uma natureza do homem? Não se pode decerto entender por este termo o contrário da liberdade, isto é, um impulso necessário, como seria, por exemplo, um impulso natural; quer dizer, neste caso, a natureza humana não poderia receber a qualificação de boa ou má em sentido moral, porque tal qualificação só pertence propriamente a um acú0 livre o responsável. Por natureza do homem deve, pois, entender-se apenas "o princípio subjectivo do uso da 184 liberdade" e tal princípio deve ser, por sua vez, entendido como um acto de liberdade. Se o não fosse, o uso da liberdade seria determinado e a própria liberdade seria impossível (Die Religion, B 7). Neste princípio deve, portanto, radicar-se a possibilidade do mal e a inclinação do homem para o mal. Ora, se tal princípio é um acto de liberdade, esta inclinação não é uma disposição física, que não poderia imputar-se ao homem, nem uma tendência necessária qualquer. Portanto, não pode ser senão uma máxima contrária à lei moral, máxima aceite pela liberdade mesma e, portanto, de per si continente. ,C A afirmação "o homem é mau" significa apenas que o homem tem consciência da lei moral e, não obstante, adoptou a máxima de por vezes, se afastar, dela. A afirmação o homem é mau por natureza" significa que o que se disse vale para toda a espécie humana, o que não quer dizer que se trate de uma qualidade que possa ser deduzida do conceito da espécie humana (ou de homem, em geral), já que seria neste caso necessária, mas só que o homem, tal como se oonhece por experiência, não pode ser julgado diferentemente e, por isso, pode supor uma tendência para o mal em todos os homens e mesmo no melhor dos homens. Dado que tal tendência para o mal é moralmente má e, portanto, livre e responsável, enquanto consiste apenas em máximas de livre arbítrio, pode por isso ser chamada um mal radical e i~o na natureza humana, ma@J de que, todavia, o próprio homem é a causa (1b., B. 72). O mal radical não pode ser destruído 185 pelas forças humanas porque a destruição deveria ser obra das boas máximas, o que é impossível se o princípio subjectivo supremo de todas as máximas estiver corrompido; mas deve ser vencido, a fim de que o homem seja verdadeiramente livre nas suas acções. O mal radical é devido à fragilidade da natureza humana que não é bastante forte para pôr em prática a lei moral; à impureza que impede de separar uns dos outros os motivos das acções e de agir só por respeito à lei; e, enfim, à corrupção pela qual o homem se determina por máximas que subordinam o móbil moral a outros móbiles. O mal radical não se encontra, portanto, como se crê comummente, na sensibilidade do homem e nas inclinações naturais que nela se fundam. O homem não é responsável pelo facto de haver uma sensibilidade e
de existirem inclinações sensíveis, ao passo que é responsável pela sua inclinação para o mal. Com efeito, esta inclinação é um acto livre que se lhe deve imputar como um pecado de que é culpado, conquanto tenha raízes profundas na própria liberdade, graças à qual ela deve ser reconhecida como naturalmente intrínseca ao homem. O mal radical nem sequer é uma perversão da razão, como legisladora moral. Tal perversão suporia que a razão poderia, ela própria, destruir em si a autoridade da lei e renegar a obrigação que procede desta, mas isto é impossível. Como princípio do mal moral, a sensibilidade é suficiente, uma vez que, eliminando-se o móbil da liberdade, reduzir-se-ia o homem à pura a ~dade. A razão perversa, ou seja, liberta comPletarnente da lei, é, ao invés, excessiva, porque 186 erigiria em motivo de acção a oposição à lei moral e reduziria o homem a uma vontade diabólica. Ora, o homem, diz Kant (1b., B 332) não é nem besta nem diabo. Dado que está radicado na própria natureza do homem, o mal não pode ser eliminado. Pouco importa que o homem tenha adoptado uma intenção boa e se lhe mantenha fiel; ele começou pelo mal e este é um débito que não lhe é possível liquidar. Mesmo supondo que, após a sua conversão, não contraia novas dívidas, isto não o autoriza a crer que se encontre livre da dívida antiga. Tão-pouco pode com o seu bom comportamento adquirir uma reserva, fazendo mais do que é obrigado a fazer de cada vez, já que o seu estrito dever é fazer sempre tudo quanto pode fazer. Além disso, trata-se de um débito que não pode ser resgatado por outro, de uma dívida intransferível, que é a mais pessoal de todas as obrigações; o homem contraiu-a com o pecado e mais ninguém, a não ser ele próprio, pode carregar com o peso dela. Por isso, o resgate total da dívida originária não pode seu senão um acto de graça, que não é devido ao homem, mas lhe é concedido mercê de um salvador: o Verbo, o filho de Deus, no qual se personifica a ideia da humanidade na sua perfeição moral. À ideia do Filho de Deus como personificação da humanidade perfeita se opõe a ideia do diabo, que é a representação popular do mal radical. O sentido desta representação é o de que a única salvação para os homens consiste em aceitar intimamente os verdadeiros princípios morais; e que a esta aceitação se opõe não a 187 sensibilidade, que tão frequentemente se condena, mas uma certa perversidade, que é, em si mesma culpada, e pode também chamar-se falsidade (o engano do demónio com o qual entrou o mal no mundo), perversidade inerente a todo o homem e que só pode ser vencida com a ideia do bem moral na sua perfeita pureza. A confiança nesta vitória, diz Kant, não pode ser suprida supersticiosamente por expiações que não provenham de uma mutação interior; ou fanaticamente por iluminações interiores, puramente passivas, que afastam (em vez de aproximarem) do bem fundado na actividade pessoal (Die Religíon, B 116). E também é inútil a crença nos milagres. O homem pode de bom grado admitir que influências celestes colaborem com ele na sua obra de aperfeiçoamento moral; mas, uma vez que não é capaz de as distinguir das naturais nem de as atrair sobre si, nunca pode comprovar um milagre e deve por isso limitar-se a comportar-se como se toda a conversão e todo o melhoramento dependessem apenas dos seus esforços (1b., B. 121). Quanto à origem última do mal radical, Kant considera que é incompreensível. Uma vez que é imputável ao homem enquanto princípio fundamental de todas as máximas, deveria ser, por sua vez, o resultado da adopção @de uma máxima má; mas assim vemo-nos
evidentemente lançados num processo até ao infinito, de máxima em máxima, não se podendo encontrar um princípio de determinação do livre arbítrio que não seja uma máxima. Com o reconhecimento desta impenetrabílidade termina a análise kantiana da natureza humana originária. 188 § 531. KANT: RELIGIÃO, RAZÃO, LIBERDADE Os conceitos fundamentais de uma religião considerada nos limites da razão derivam todos do princípio do mal radical, enquanto constitutivo da natureza humana. Na verdade, tais conceitos não exprimem senão as condições que tomam possível ao homem combater com êxito o princípio do mal que nele existe. Se o homem se encontra na perigosa condição de ser exposto continuamente às agressões do princípio do mal e de dever salvaguardar a sua liberdade perante os contínuos ataques daquele deve-o a uma culpa própria; deve, por isso, nos limites do possível, empregar a força de que dispõe para sair de tal situação. Ora, uma vez que o homem sofre ,os mais perigosos assaltos do mal na vida social (Kant aqui faz sua a análise de Rousseau), o triunfo do bem só é possível numa sociedade governada pelas leis da virtude e que tenha por fim estas mesmas leis. Evidentemente, esta não é uma sociedade jurídico-civil mas uma sociedade ético-civil, ou melhor, uma república moral. A república moral - simples ideia de uma sociedade que compreenda todos os homens justos - é uma igreja que, enquanto não é objecto de experiência possível, se chama igreja invisível. A igreja visível é a união efectiva dos homens num todo que concorda com este ideal (Die Religion, B 142). A igreja invisível é universal porque se funda na fé religiosa pura, que é uma pura fé racional e por isso pode comunicar-se a todos com força persuasiva. Não tem necessidade de revelação. 189 Mas a debilidade particular da natureza humana impede de fundar uma igreja visível unicamente sobre a fé racional. Os homens não se persuadem facilmente de que esforçarse por viver moralmente é a única coisa que Deus lhes pede para os considerar como súbditos do seu reino. Só sabem conceber a sua obrigação sob a forma de um culto que é necessário prestar a Deus; culto em que não se trata do valor moral das acções, mas antes do seu cumprimento ao serviço de Deus e para que Deus as aceite, mesmo que se tratem de acções moralmente indiferentes. Torna-se assim necessário admitir que Deus estabeleceu outras leis, além das puramente morais que ressoam claramente no coração do homem; e uma vez que tais leis não podem ser conhecidas pela pura razão, requer-se uma revelação que, enquanto feita a alguém privadamente ou anunciada publicamente para ser difundida por tradição, é sempre uma crença histórica e não uma pura crença racional. A fé revelada pressupõe, no entanto, a fé racional pura e deve fundar-se nesta. "A fé eclesiástica, diz Kant (1b., B 174), como fé
histórica, começa por causa da fé na revelação, mas, uma vez que esta é apenas o veículo da fé religiosa pura (que é o verdadeiro fim) é necessário que aquilo que nesta última, como crença prática, é a condição (ou seja, a máxima da acção) constitua o ponto de partida e que a máxima da ciência ou da crença especulativa actue apenas como confirmação e coroamento dela". Por outros termos, o critério e o guia de toda a religião histórica é a fé racional pura, ou seja, o agir moral nas suas condições. Só 190 esta se deve considerar a religião natural (Ib., B 23 7). Ademais, só esta é uma fé livremente adoptada por todos (fides elicita), ao passo que a religião revelada implica uma fé comandada (fides imperata) (Ib., B 248). Quem admite apenas a religião natural é um racionalista. Mas o racionalista deve, em virtude do seu próprio nome, encerrar-se nos limites das possibilidades humanas. Deve por isso evitar o naturalismo que exclui em absoluto a realidade do supra-sensível e não contestar dogmaticamente a possibilidade intrínseca de qualquer revelação (racionalismo puro) (1b., B 230-31). Consequentemente, Kant afirma que considerar a fé regulamentada (que em todos os casos se restringe a um povo só e não pode valer como religião universal) essencial a todos os cultos divinos e dela fazer a condição suprema da benignidade de Deus para com o homem é urna loucura religiosa que dá lugar a um falso culto, isto é, a uma maneira de adorar a divindade directamente, contrária ao verdadeiro culto divino. Exceptuando um bom comportamento, tudo o que os homens julgam dever fazer para merecerem a benevolência de Deus é pura ilusão religiosa e falso culto (Die Religion, B 255). A ilusão de poder, com actos de culto, contribuir para uma justificação de si perante Deus é a superstição religiosa. A ilusão de poder atingir tal objectivo com a aspiração a um pretenso comércio com Deus, é a fantasmagoria religiosa. Kant não exclui nem condena as práticas do culto, mas tais práticas nunca devem tomar o lugar do verdadeiro culto, que é a conduta moral. "0 verdadeiro iluminismo, diz Kant 191
(,b., B 276), está nesta distinção; o culto de Deus torna-se graças a ele um culto divino e, portanto, um culto moral. Se, em lugar da liberdade dos filhos de Deus, se impõe ao homem o jugo de uma lei positiva e a obrigação absoluta de crer em coisas que só podem ser conhecidas historicamente e que, por conseguinte, não podem convencer a todos, criase um jugo que para o homem consciencioso é ainda mais pesado do que todo o fardo das práticas piedosas com que se sobrecarrega". A conclusão da análise kantiana da religião é uma confirmação dos resultados da Crítica da razão pura e da Crítica da razão prática. Não se pode conceber outra forma de fé que não seja a fé racional, a fé prática, que reconhece a possibilidade do supra-sensível unicamente enquanto tal possibilidade reforça a acção moral do homem. Transformar esta possibilidade numa afirmação dogmática significa
tornar impossível ao homem, não só a sua vida teorética e moral, mas a própria religião, que se converte em superstição. Neste empenho em manter ao mesmo tempo os limites da razão e a autonomia dos seus poderes, consiste o que Kant chamava o seu racionalismo. Os escritos dos seus últimos anos são, na sua maioria, dirigidos contra as tentativas de evasão que escritores e filósofos contemporâneos vinham efectuando para fugir aos limites da razão e para alcançar um domínio em que fosse possível conhecer com exactidão o que a razão não pode atingir. O domínio a que habitualmente recorriam era o da fé ou da intuição mística; contra tal recurso escreveu Kant. Que significa orientar-se no pensar, (1786), Sobre o 192 fanatismo, (1790), Sobre o tom nobre da filosofia, (1795), e o prefácio ao escrito de Jachmann, (1800). O mais importante destes escritos é Orientar-se no pensamento, com o qual Kant, intervindo na polémica entre Mendelssohn e Jacobi, reivindica uma vez mais para a razão o papel de guia único do homem na filosofia e na vida. Mendelssohn e Jacobi haviam travado polémica um com o outro, mas estavam de acordo, como veremos (§ 535), em atribuir à fé o que é negado à razão, ou seja, a capacidade de um contacto directo, e absolutamente certo, com a realidade e sobretudo com a realidade suprema: com Deus. Ora, segundo Kant, mesmo que houvesse um órgão como o que Mendelssom e Jacobi denominavam de fé, tal órgão seria incapaz de provar a existência de um Ser cuja grandeza não é comparável com a de nenhuma experiência ou intuição humana; e esse órgão poderia apenas servir de estímulo à razão para ver se pode chegar a provar a existência de um ser dessa espécie. Em última análise, porque só a razão permanece o árbitro da noção de Deus e da convicção da sua existência (Wass heisst: Sich im denken orientieren?, A 320-21). Em qualquer caso, segundo Kant, subtrair-se à razão significa cair no fanatismo e o fanatismo é a negação da liberdade. É bem certo que a liberdade, se limitada à esfera interna da consciência, não é coercível por meios externos. Mas também é verdade que tal liberdade interior é pouco ou nada se se tira aos homens a de comunicarem abertamente entre si os seus pensamentos. Uma doutrina que faz apelo a uma revelação interior tende a tornar inútil e a negar esta 193 Uberdade e tende, antes, a provocar uma inquisição nas consciências que impeça à razão de se afastar da pretensa verdade revelada. Kant termina o seu escrito com um apelo patético, que é, por assim dizer, o resumo da sua filosofia: "Amigos da humanidade e do que há de mais santo para ela, aceitai também o que vos parecer mais digno de fé após um exame atento e sincero, quer se trate de factos, quer se trate de princípios racionais, mas não recuseis à razão o que a torna o bem mais alto sobre a terra: o privilégio de ser a última pedra de toque da verdade" (lb., A 329).
NOTA BIBLIOGRÃFICA § 510. Sobre a vida de Kant a obra fundamental continua a ser a do seu contemporâneo L. E. BOROWSKI, Dar8telIung der Lebm und Charakter I. K. s, Conisbeorga, 1804. Além desta: F. W. SCHUBERT, I. K. s. Biographie na ed. de Rosenkranz das obras de Kant, XI, 2. Leipzig, 1842: e todas as monografias citadas mais adiante. § 511-513. As primeiras edições completas dos ~tos de Kan@t foram as de G. Haitenstein, 10 vol., Leipzig, 1838-39; e de K. Rosenkranz e F. W. Schubert, em 12 vol., Le@pzig, 183842. Entre as numerosas edições sucessivas, é notãv& a de E. Cassirer, 10 vol., Berlim, 1912,22, a que se seguiu outro volume. o 11.1 CASSIRER, Kants leben und L-ehre. Mas a mais completa edição crítica é a publicada pela Academia das Ciêncías de Berlim, que compreende os seguintes volumes: vol. 1, Vorkritische Schriften (1747-56), 1910; vol II, Vorkritische Schriften (1757-77), 1912; vol Ul@ Kritik der "n--r Vernunft (2.@ ed., 1787), 1911; vol. rV, Kri194 tik der reinen Vernunft (1.1 ed., 1781), Prolegomena, GrundlL--gun zur Metaphysik der Sitten, Metaphysi&che Anfangsgründe des Natu~senschaft, 1911, voL V, Kritik der pTaktischen Vernunft (1788), Kritik der Urteilskraft (1790), 1913; vol. VI, Die ReUgion inuerhalb der Grenzen der Blossen Vernunft (179,3), Die Metaphysik, der Sitten, (1797), 1915; vol. VII, Der Streit der P4kultãten (1798), Anthropologie in pragnwtischer Hinsicht (1798), 1917; vol. VIII, AbhandIungen nach 1781, 1923; vol. IX, Logik, Physische Geographie und Pãdagogik, 1923; vol. X, Briefwechsel (1747-88), 1922; vol. XI, Briefwechsel, (1789-194), 1922; vol. XIII, Briefwechsel (1795-1803), 1922; vod. XIII, BriefwechseZ, Anmerkungen und Register, 1922; voL XIV, Handscriftlicher Nachlass I, Math~tik, Physik und Chem@e, Physische Geographie, 1911, vod,. XV, Handschriftlicher Nachlass 11, AntropoZogie, 1913; vol. XVI, Handschriftlicher Nachlass III, Logik, 1924; vol. XVII, Handschriftlicher Nachl"s IV, Metaphysik, 1926; vol XVIII, Handschriftlicher Nachl"s V, Metaphysik, 1928; vol. XIX, Handschriftlicher NachIass VI, 1M4; voll. XX, Handschrftlieher Nachkss, VII, 193,5, vol. XX1, Handschriftlicehr NwhIass VIII, Opus postumum, 1936; HandschriftUcher NachIass IX, Opus postumum, 11, 1938; vol. XXIII, Vorbereiten und Nachtrãge, 1955. Nas citações do texto referem~ as pá~ destas edições; as letras A e B referem-se respectivaniente à 1.1 e à 2.1 ed. dos ~tos de Kant. § 514. Bibliografias: E. ADICHES; Bibliography of writings by and on K. which have appeared in Germany up to the end of 1877, in "Philoisophical P,eview", 1893-94, ed. em vol. Boston, 1896; Supplments in
Cambridge, 1922; P. LAMANNA, K. Milão, 1925; E. ADICKES, H. aIs Naturforscher, 2 vol., Berlim, 1924-25; BouTROUX, La phil. de K., Paris, 1926; L. GOLDMANN, Mensch, Gemeinschaft und Welt in der Phil. I. K. s, Zurique, 1945; A BANFI, La filosofia critica di K., Milão, 1955. Entre monografias inspiradas no pensamento hegeliano: K. FISCHER, I. K. und seine Lehre, Heidelberga, 1860, que no entanto conserva o seu valor como exposição de conjunto da obra de Kant; E. CAIRD; The Critical Phil. of X., Londres, 1889. Monografias inspiradas no neocriti~o: H. COHEN, K. s Theorie der Erfahrung, Berlim, 1871; B. 'CAS:S@RER; E. s Leben und Lehre, Berlim, 1918. A monografia de P. CARABELLEsE, La fil. di K. Morença, parte do ponto de vista do ontologismo rosminiano; e a de A. RENDA; Il criticismo, fondamenti etico-religiosi, Palermo, 1927, tende a pôra claro a inspiração ético-religiosa da filosofia teorética de Kant. O importante comentário de HANS VAIHINGER; Kommentar zur Kritik der reinen Vernunft, 2 vol., Estugarda, 1881-92, parte do ponto de vista de um relativismo pragmatista (filosofia do como se). § 515. Sobre o período precrítico: B. ERDMANN, Die Entwicklungsperioden von K.s theoretischer Phil., introdução à sua ed. das K.s Reflexionen zur Kritik der reinen Vern., Leipzig, 1884; E. ADICKW, Die bewegenden Krafte in K.s Entwick1. und die beiden Pole seines Systems, in "Kanstudien", I;A- Guzzo, K. pre196 -critico;Turim, 1924; M. CAMPO, La genesi del critieis~ kantiano, 1953. Sobre a Opus Postumum: E. ADICKE.9; K.s. Opus Post. dargestellt und beurteilt, Berlim, 1920; N. KEMP SMITH, A Cammentary to K.& Critique of Pure Reason, Londres, 1918; V. MATHIEu, La filosofia trascendental e o "Opus postumum" di K., Turim, 1958. § 516. Sobre a Crítica da razão pura: H. VAIHINGER, Koinmentar zur K. d. r. V., cit.; Th. GREEN, Lectures on the Philos. of K., in Works, Londres% 1893; H. HOFFDING, in "Archiv fur Gesebichte der Philw.", VII, 1894; E. BOUTROUX, ia "Revue de Cours et Conférences>, Julho, 1896; C. CANTOSI, in "P.iv~ Filos.", 1901; F. Tocoo, Studi Kant~ ' PalerMO, 1910; H. COHEN, Kommentar zur 1. K.s Kritik d. r. V., Leipzig, 1907; E. CASSIRER, Eant und dio moderne Mathematik, in "Ka71 tudien", XIr, 1907; H. CORNELIUS, Kommentar zur K. d. r. V., Erlangee, 1926. Sobro as duas edições da Crítim: B. ERDMANN, Kant Kritizismus in der er8ten und der zweiten Auflage der K. d. r. V., Leipzíg, 1878; E DICHKES, Ueber die Abfassungzeit der K. d. r. V., in "Kanstudien", 1895. § 518. Sobre a lógica: C. LuGARINI; La logica trascendentale di K., Iffilão, 1950; F. BARONE, Lógica formate e logica transcendentale Deduktion de Kategorien, HaJ@e, 1902; BIRDEN; Kants transzendentale Deduktio,n, Beillím, 1913; 1-1. S. VLEESCHAUWER, La déduction transcendentale dans Voeuvre de K., Paris, 1934; P. CHIODi, La deduzione nelllopera di K., Turim, 1960. § 522. Sobre a c~ em si: W. WINDELBAND, in "Viert&jahrwchriften fur wissensschafUische Philosophie), 1, 1877; J. G. SCHURMAN, in " Archiv für Geschichte der Philos.", 32, 1910.
§ 523. Sobre a dialéctica transeendentaâ: F. EVELLIN, La raison pure et les antinomies, Paris, 1907. 197 525. Sobre a filosofia moral: A. CRESSON, La morale de Kant, Paris, 1897; V. BRUNSCHVIGG, in "Revue de M~. et de Morale>, 1907; A. M.ESsER, Hommentar zur E.s ethischen und relígionsphisolopischen, Hauptschriften, Leipzig, 1929; O Estrada, La etica formal y los vaiores, La Plata, 1938. § 527. Sobre a doutrina do direito e da Iústória: E. SYDOM, Der Gendanke des IdealBeichs in der Idealist. Philos. von Kant bis Hegel, Leipzig, 1914; W. METUGER, GeseIsschaft, Recht und Staat in der Etnik des deuschen Idealismus, Heidielberga, 1917; K. BORRIEs, Kant aIs Politiker, Leipzig, 1928. § 528. Sobre o juizo CStétiCO: H. COHEN, K.S. Regründun der Aesthetik, Berlim, 1889; V. BASCI-1, Essai critique sur 1'esthétique de Kant, Paris,, 1897; ROSENTHAL, in "Kantstudien" 20, 1915; M. SouRiAu, Le jugen^t réfléchi@ssant dans Ia phil". crit. de Kant, Paris, 1926. § 529. Sobre o juizo tCl~ógiCO: A. PPANNKUCHE in "Kant;studicai", 5, 1901; E. -UNGERR; in "Abhandlungen zur theoretische Biólogie" , 14, 1922. § 530. Sobre -a doutrina da religião: E. TROELSCH, in "Kantstudien", 9, 1904; C. SENTROUL, La phil. real de K., Bruxelas, 1912; C. J. WEBB, Kant's Philosophy of Religion, ~ord, 1926; W. REINIIARD; Ueber das Verhdltnis von Sittlichkeit und Religion bei K., Bern, 1927. 198 SEXTA PARTE A FILOSOFIA DO ROMANTISMO A POLÉMICA SOBRE O KANTISMO § 532. POLÉMICA SOBRE O KANTISMO: REINHOLD A doutrina de Kant é a grande protagonista da filosofia de oitocentos. Ela veio abrir uma nova problemática que será susceptível de desenvolvimento nas mais diversas direcções. No âmbito desta mesma problemática, surgiram doutrinas diferenciadas e até mesmo opostas. Verificaram-se afastamentos, desvios e regressos e isto, com a pretensão, frequente de se conseguir um retomo ao "verdadeiro" espírito do kantismo e de se avançar nas suas linhas fundamentais. Na Alemanha, a filosofia de Kant aparece como conclusão definitiva de uma crise secular do pensamento humano e como início de uma nova época 201
na qual a filosofia alemã iria assumir a função de guia de todo o pensamento europeu. Reinhold levou o criticismo às consequências últimas do processo de libertação da razão, iniciado com o Renascimento e continuado com a Reforma protestante e defendia substancialmente a sua identificação com o cristianismo, com o protestantismo e com o iluminísmo (Briefe uber die kantische Philosophie, 1, p. 150 e segs.). Esta atitude foi aceite por grande parte da filosofia alemã do século XVIII e deu origem a uma tradição historiográfica que só nos últimos tempos começou a ser posta em dúvida. O romantismo fez sua essa atitude, deu-lhe um âmbito maior, insistindo sobretudo na nova importância histórica que o kantismo conferia à nação alemã. Hõlderlin podia afirmar: "Kant é o Moisés da nossa Nação, porque do estado de abandono em que havia caído no Egipto, a conduz pelo deserto árido e solitário da sua especulação até receber na Montanha Sagrada a lei eficaz e revivificante" (Carta ao irmão, de 1 de Janeiro de 1799). Karl Leonhard Reinhold (nascido em Viena em 1758 e falecido em Kiel em 1823) veio dar grande impulso à difusão do criticismo na Alemanha, ao mesmo tempo que lançava bases para o estabelecimento de uma interpretação que deveria influenciar fortemente a história posterior. Foi professor em Jena e começou a fazer desta cidade o centro dos estudos kantianos, a que mais tarde vieram beber as doutrinas de Fichte, Schelling, Hegel, Fries, Herbart. Reinhold é mais do que o simples autor das Cartas sobre a filosofia kantiana, aparecidas 202 entre 1786 e 1787 numa revista e mais tarde ampliadas e reelaboradas em dois volumes (1790-92). Foi também autor de uma vasta obra intitulada Nova teoria da faculdade representativa humana (1789). Segundo Reinhold, a filosofia de Kant assinala a passagem do progresso para a ciência ao progresso na ciência (Briefe, cit., 11, p. 117-18); por outras palavras, assinala o ponto em que a filosofia se transforma definitivamente em ciência para além da qual, portanto, todo o progresso ulterior já não poderá já conduzir a uma outra filosofia, mas a um simples desenvolvimento implícito no próprio kantismo. E isto acontece porque Kant baseou a filosofia num princípio único, e sobre um princípio único apenas se pode erguer um sistema único. Esse princípio único é a consciência. Na Nova Teoria da faculdade representativa humana, Reinhold identifica a consciência com a faculdade representativa, por conseguinte, com a representação: assim o princípio único e fundamental da filosofia como ciência surge expresso do modo seguinte: "A representação é na consciência distinta do representante e do representado e referida a ambos". Deste princípio Reinhold procura extrair toda a "filosofia dos elementos", que é, no fim de contas, a análise da consciência. O representante e e representado são o sujeito e o objecto da consciência; sem objecto e sujeito não existe representação, eles constituem portanto, as condições intrínsecas da própria representação. A parte que na representação
se refere ao objecto é a matéria da representação, a que se refere ao 203 sujeito é a fornia da representação. A forma é produzida pelo sujeito, pela sua espontaneidade; a matéria é dada através da receptividade do próprio sujeito. Esta receptividade não é mais que a capacidade de ter impressões sensíveis que se aparecem referidas ao sujeito se chamam sensações, mas se aparecem referidas ao objecto se chamam intuições. A primeira e essencial condição do conhecimento é, portanto, a intuição. Só em virtude do material por ela fornecido, pode a representação ser referida a qualquer coisa que não seja representação, a um objecto independente de toda a representação. Este objecto é a coisa em si. Sem a coisa em si, deixa de existir a primeira e fundamental condição da imediata representação de um objecto. Por outro lado, a coisa em si é irrepresentável, por conseguinte, incognoscível: uma vez que não existe representação sem uma forma subjectiva, tudo o que é exterior e independente das formas subjectivas não pode ser representado. Como é possível então falar-se na coisa em si e introduzi-la como elemento da investigação filosófica? Reinhold responde: a coisa em si é representável, não como coisa ou objecto, mas como puro conceito (Theorie, 11, § 17). Com esta redução da coisa em si a um simples conceito, Reinhold eliminou (sem querer) um dos pilares do criticismo e abriu caminho a uma interpretação idealista. A dependência desta interpretação da primeira edição da Crítica, na qual a distinção entre representação e fenómeno tinha sido insuficientemente estabeleci, aparece evidente. O objecto do conhecimento reduzido a um "representado" que 204 existe na consciência aparece, a partir da Reinhold como um dos pontos menos discutidos na interpretação do kantismo: um ponto, no entanto que permanece estranho ao pensamento de Kant, tal como este nos surge do conjunto da sua obra. Através do Enesidemo a interpretação de Reinhold passou a ser geralmente aceite pelo ambiente filosófico do tempo e a ela se referem, positiva ou polemicamente, Fichte, Maimon, Schelling, Hegel e Schopenhauer. § 533. Prenúncio DO IDEALISMO Em 1792 surgia uma obra anónima chamada Enesidemo ou sobre os fundamentos da filosofia elementar ensinada em Jena pelo prof. Reinhold, com um defesa do cepticismo contra a arrogância da Crítica da razão. O autor da obra era, como mais tarde se veio a saber, GottIob Emst Schulze (1761-1833), professor da Universidade de Helmstãdt e de Gottingen. O cepticismo de Schulze não é dogmático mas metodológico porque assume como "lei eterna e imutável do uso da nossa razão, não aceitar por verdade nada sem razão suficiente e levar a cabo todos os passos da especulação em conformidade com este critério". Schulze opõe-se às teses fundamentais do kantismo (tal como haviam sido interpretadas por Reinhold) baseando-se numa orientação radicalmente
empirista. O que ele reprovava em Kant era precisamente o não ter permanecido fiel ao espírito do empirismo e ter-se servido do mesmo raciocínio ontológico dos escolás205 ticos que Kant pretende ter refutado a propósito da existência de Deus. Kant, segundo Schulze, pro _ cedeu da forma seguinte: o conhecimento pode ser pensado apenas como juízo a priori, daí a existência de um tal juízo; a necessidade e a universalidade devem ser pensadas como sinais das formas do conhecimento, daí a existência de tais sinais; a universalidade e a necessidade não podem pensar-se com outro fundamento que o da razão pura, daí ser esta o fundamento do conhecimento. Este procedimento é, segundo Schulze, idêntico ao dos escolásticos: pois se uma coisa deve ser pensada assim e não de outro modo, ela é assim e não de outro modo. Kant caiu assim numa gritante contradição. Com efeito, a valer o processo ontológico (o que deve ser pensado ser) as coisas em si são cognoscíveis. Mas Kant demonstra que não são cognoscíveis. Ora a sua teoria do conhecimento baseia-se no pressuposto do qual se infere a cognoscibilidade da coisa em si. Por conseguinte, a incognoscibilidade da coisa em si surge demonstrada através de um princípio sobre que se baseia a cognoscibilidade da coisa em si. É sobre esta contradição que gira toda a crítica kantiana e a ela vem Schulze contrapor o cepticismo de Hume, ou seja, a impossibilidade de se explicar, seja de que forma for, o carácter objectivo do conhecimento. Esta crítica afastava-se, evidentemente, do essencial da doutrina de Kant, mas abordava um conceito o da coisa em si, que iria polarizar à sua volta os posteriores desenvolvimentos críticos do kantismo. Sobre esse desenvolvimento, teve enorme influência 206 a obra de Salomon Maimon (1753-1800), um judeu polaco de vida aventurosa, narrada por ele próprio numa Autobiografia. Os seus principais trabalhos são: Investigação sobre a filosofia transcendental (1709); Dicionário filosófico (1791); Incursões no campo da filosofia (1793); Investigação sobre unia nova lógica ou teoria do pensamento (1794); Investigação crítica sobre o espírito humano (1797). Maimon cedo chega à conclusão a que inevitavelmente levava a interpretação, dada ao kantismo por Reínhold: a impossibilidade da coisa em si. Segundo a doutrina Kant-Reinhold, tudo o que é representável de um objecto, está contido na consciência; mas a coisa em si está e deve estar fora da consciência e independente dela: portanto, é uma coisa não representável nem pensável, uma nãocoisa. O conceito de coisa em si é, segundo Maimon, o fundamento da metafísica dogmática, só existe na medida em que ela existe. É semelhante aos números imaginários da matemática; aqueles números que não são nem positivos nem negativos, como os radicais quadrados dos números negativos. Assim como a Vida é uma grandeza impossível, também a coisa em si é conceito impossível, um nada (Kritische Untersuchungen, p. 158). Com esta negação da coisa em si, está dado o passo decisivo para o idealismo. Com efeito, Maímon afirma explicitamente que todos os princípios do conhecimento se devem buscar no interior da consciência, até mesmo o elemento objectivo (ou matéria) do próprio conhecimento. O que é objectivo, o que é dado na consciência, não pode ter uma causa externa à consciência, pois fora da 207 consciência nada existe. Mas também não pode ser um puro produto da consciência, porque desse modo não teria as características do dado, que jamais é produzido pela própria consciência. Todo o conhecimento objectivo é uma consciência determinada, mas
na sua base existe uma "consciência indeterminada" que procura determinar-se num conhecimento, objectivo, tal como o X matemático ao assumir os valores particulares de a, b, c, etc. O dado é, por conseguinte, o que não é resolúvel às puras leis do pensamento e que o pensamento considera como algo de estranho, a si, mas algo que procura continuamente limitar e assumir de forma a poder gradualmente anular-lhe o carácter irracional. "0 dado, afirma Maimon (Transcendentaphil., p. 419 e segs.) é apenas aquilo em cuja representação se conhece não só a causa mas também a essência real; o que vale dizer que é aquilo de que temos apenas uma consciência incompleta. Mas esta consciência incompleta pode ser pensada por uma consciência determinada como um nada absoluto apenas através de uma série infinita de graus; já que o puro dado (o que está presente sem qualquer consciência de força representativa) é pura ideia do limite desta série (tal como uma raiz irracional) de que nos podemos aproximar mas que nunca conseguimos atingir. O conhecimento dado é um conhecimento incompleto; o conhecimento completo jamais pode ser dado, é apenas produzido e a sua produção acontece segundo as leis universais do conhecimento. E isso é possível quando podemos produzir na consciência um objecto real de conhecimento. Uma tal produção será uma 208 actividade da consciência ou um acto do pensamento a que Maimon chama "o pensamento real". O pensamento real é o único conhecimento completo. Tal conhecimento supõe portanto um múltiplo (o dado) que não é senão um determinável, e que, no acto do pensamento real, surge determinado e reduzido à unidade de uma síntese. O pensamento real age, por conseguinte, através do princípio da determinabilidade: o que dá origem ao objecto do conhecimento através da síntese perfeita do múltiplo determinável. O espaço e o tempo são as condições da determinação; e uma vez que a faculdade da consciência em reter objectos dados é a sensibilidade, o espaço e o tempo são as formas da sensibilidade e, por conseguinte, as condições de todo o pensamento real. - A característica principal desta doutrina de Maimon é que, para ela, o objecto não é o antecedente do conhecimento mas antes o consequente, na medida em que é o termo final do acto criador do pensamento. O próprio objecto da intuição sensível não é pressuposto do pensamento, pressupõe-no, uma vez que é um produto do próprio pensamento. Maimon admite, por outros termos, a faculdade da intuição intelectual (produtora ou criadora) que Kant, de forma tenaz, sempre excluíra como sendo superior e estranha às faculdades humanas. Deste modo se abre a via ao idealismo; e nesta via se coloca decididamente Beck. Jakob Sigismund Beck (6 de Agosto de 1761 - 29 de Agosto de 1840) tinha sido aluno de Kant em Künisgsberg e foi professor em Rostock. Os seus principais trabalhos são: Compêndio expli209
cativo dos textos críticos do Professor Kant, por sugestão do próprio (1793-96), cujo terceiro volume, o mais importante, tem o título O único ponto de vista possível pelo qual a filosofia crítica pode ser
julgada (1796); Esboço de filosofia crítica (1796); Comentário à metafísica dos costumes de Kant (1798). O ponto de partida de Beck é a interpretação de Reinhold. O problema que Beck levanta surge, com efeito, da interpretação do kantismo em termos de representação: como pode ser entendida a relação entre a representação e o objecto. Esta relação só é possível, segundo Beck, se o objecto é ele próprio uma representação. E, como tal, deve existir um acordo entre a representação e o objecto de forma a que uma se refira ao outro como a imagem ao original; o próprio objecto deve ser representação originária, um produto do representar, isto é, um representar originário. Por conseguinte, o único ponto de vista pelo qual a filosofia crítica deve ser julgada é aquele a que BecIç chama o ponto de vista transcendental, o ponto de vista de quem considera a pura actividade do representar, que produz originariamente o objecto. A pura actividade do representar é identificada por Beck com a kantiana unidade transcendental da percepção, ou seja, do que eu penso. Beck afirma assim, por sua conta, o ponto de vista de Fichte, de que o seu transcendental produz, mediante a sua pura actividade, a totalidade do saber. O eu produz, através de um acto de síntese, essa conexão originária do múltiplo que é o objecto ou a representação originária; e num segundo momento reconhece nesse objecto a sua representação. Este 210 N acto posterior é, segundo a expressão de Beck, o reconhecimento da representação, ou seja, o reconhecimento de que há um objecto sob o conceito que o exprime ou que existe a representação de um objecto através de um conceito. Esta representação surge criada por dois actos que constituem a actividade originária do intelecto: o primeiro é a síntese originária efectuada através das categorias; o segundo é o reconhecimento originário efectuado através do esquematismo das categorias (Einzig m<5glicher Standpunkt, 11, § 3. Beck percorreu deste modo uma larga tirada do caminho que, contemporâneamente, era percorrido também por Fichte. A interpretação do kantismo iniciada por Reinhold encontra neste último o seu desfecho lógico e conclusivo. § 534. POLÉMICA SOBRE O KANTISMO: A FILOSOFIA DA FÉ A filosofia de Kant era racionalista e iluminista. Fazia da razão o único guia possível do homem em todos os campos da sua actividade; mas ao mesmo tempo impunha à razão limites precisos e em tais ,limites baseava a legitimidade das suas pretensões. O racionalismo kantiano foi outro aspecto que levantou polémicas na Alemanha nos últimos anos do século XVIIII. As exigências a que se referiam estas polémicas foram em geral as da fé e da tradição religiosa. A filosofia kantiana parecia muda ou hostil perante tais exigências, uma vez que era uma filosofia da razão: à razão se contrapõe então, como órgão de 211
conhecimento, a fé, a intuição mística, o sentimento, ou em geral, qualquer faculdade postulada ad hoc e que se julgue capaz de actuar para lá dos limites da razão, na direcção dessa realidade superior que parece ser o objecto específico da experiência mística ou em geral da razão. Esta polémica obtém as suas armas conceptuais especialmente em Hume e em Shaftesbury; mas atribui-lhes um alcance que estava muito além da esfera de experiência a que estes dois filósofos se haviam limitado, já que vê neles os instrumentos de uma revelação sobrenatural ou divina. A filosofia da fé, dentro deste desígnio, inicia-se com a obra de um conterrâneo de Kant, Joham George Hamann. (1730-88), um funcionário de alfândega que manteve relações de amizade com Kant, Herder e Jacobi e foi chamado o "mago do Norte". Hamman desencadeia as suas invectivas contra as pretensões da razão. "0 que é a celebrada razão com a sua universalidade, infalibilidade, exaltação, certeza e evidência? Um ens rationis, um ídolo, ao qual a superstição impudente e irracional assinala atributos divinos". Não é a razão mas a fé que constitui o homem na sua totalidade. Hamman, ao dizer isto, pensava em Hume que tinha reconhecido na crença a única base da consciência. Mas a crença de Hume é uma crença empírica que tem por objecto as coisas e as suas relações causais. A crença de Hamman, ao invés, é uma fé mística, uma experiência misteriosa na qual têm lugar não apenas os factos naturais e os testemunhos dos sentidos como também os factos históricos, os testemunhos da tra212 dição, e os factos divinos testemunhados pela revelação. A fé de Hamman é a revelação imediata da natureza e de Deus. E Hamman não faz nenhuma divisão ou distinção entre o que é sensível e o que é religioso, entre o que é humano e o que é divino. Tal como Bruno, reconhece na coincidentia oppositorum o mais alto princípio do saber. No homem coincidem todos os princípios opostos do mundo; e, por mais que busque com a filosofia entender e abarcar a sua unidade, jamais conseguirá compreendê-la através de conceitos ou alcançá-la através da razão. Só a fé poderá revelar-lha, na medida em que ela é uma relação entre o homem e o Deus; uma relação que não tem :a mediação dos conceitos, porque se trata de uma relação individualizada e singular e em razão da qual eu, na minha individualidade, me encontro perante o meu Deus. Compreende-se como Hamman pretendia rejeitar em bloco as análises kantianas que procuram introduzir distinções sobre distinções onde ele não via mais que a continuidade de uma vida ou de uma experiência vivida que concilia os extremos opostos. Na Metacrítica do purismo da razão (publicada postumamente em 1788), Hamman censurava Kant por ter separado a razão da sensibilidade. A própria existência da linguagem desmente a doutrina de Kant: na linguagem a razão encontra, na verdade, a sua existência sensível. Hamman entende a linguagem não como uma simples articulação de sons mas como revelação da própria realidade, uma revelação da natureza e de Deus. A linguagem é o Logos, o Verbum: a razão como auto-revelação do ser. Linguagem e 213
razão são assim identificadas e ambas se identificam com a fé. Hamman vê na I-Estória,
como na Natureza, a incessante revelação de Deus e nos ventos e nas personalidades da História, como nos factos da Natureza, outros tantos símbolos e manifestações de um desígnio providencial. Podemos encontrar em Hamman motivos que também se encontram em Kierkgaard (excepto o panteísmo romântico): a fé como totalidade da existência individual, a sua irredutibilidade à razão, o cristianismo como loucura e escândalo para a razão. Para ele, como viria a ser para Kierkgaard, a religião apoia-se na nossa existência total, independentemente das forças do conhecimento. Sobre a mesma linha se move o pensamento de Johann Gottfried Herder (25 de Agosto de 1744 18 de Dezembro de 1803) que foi aluno de Kant e amigo de Hamman. Herder censurava a ICant (Metacrítica à crítica da razão pura, 1799) o dualismo de matéria e forma, de natureza e liberdade; e a este dualismo contrapunha a essencial unidade do espírito e da natureza que ele descobre na obra de Espinosa (a quem dedicou um diálogo intitulado Deus). Tal como Hamman, Herder sustenta que é impossível explicar a actividade racional do homem prescindindo da linguagem: nela, ele descobre a origem da própria natureza humana, na medida em que surge de uma livre e desinteressada consideração das coisas. Mas enquanto para Hamman a linguagem é a própria razão, ou seja, o ser que se revela, para Herder ela é um instrumento indispensável, mas que não deixa de ser um instrumento 214 da razão. O homem, privado como está do instinto, que é o guia seguro dos animais, supre a sua inferioridade através de uma força positiva da alma que é sagacidade ou reflexão (Besonnheit); e o livre uso da razão leva à invenção da linguagem. A linguagem é, portanto, "um órgão natural do intelecto", o sinal exterior distintivo do género humano, tal como a razão é o sinal interior do mesmo (Werke, V, p. 47). Mas a mais notável manifestação filosófica do fantástico espírito de Herder é o seu conceito de cristianismo como a religião da humanidade, e da história humana como um desenvolvimento progressivo no sentido da total realização da própria humanidade. Na sua obra, Ideias para uma filosofia da história da Humanidade (1784-91), Herder afirma o princípio de que na história, como na natureza, todo o desenvolvimento está submetido a determinadas condições naturais e a leis mutáveis. A natureza é um todo vivo, que se desenvolve segundo um plano total de organização progressiva. Nela agem e lutam forças diferentes e opostas, O homem, como todos os outros animais, é um seu produto: mas o homem está no cume da organização, porque com ele nasce a actividade racional, e, por conseguinte, a arte e a linguagem que conduzem à humanidade e à religião. A história humana não faz mais que seguir a própria lei ido desenvolvimento da natureza que provém do mundo inorgânico e orgânico até ao homem para levar finalmente o homem à sua verdadeira essência. Natureza e história actuam ambas no sentido de educarem o homem para a humanidade. E essa
educação é fruto não da razão, mas da religião que 215
ligada à história humana desde os primórdios e revela ao homem o que há de divino na natureza. A este conceito de um progresso contínuo e necessário do género humano na sua história, Herder é levado. por. analogia entre o mundo da natureza e o mundo da história, analogia baseada na profunda unidade destes dois mundos que são ambos criação e manifestação de Deus. Deus, que ordenou da forma mais sábia o mundo da natureza, garantindo de maneira infalível a sua conservação e desenvolvimento, poderia permitir que a história do género humano se desenvolvesse sem um plano qualquer, independente da sua sabedoria e da sua bondade? A esta pergunta deve responder a filosofia da história, a que deve demonstrar que o género humano não é um rebanho sem pastor e que para ele valem as próprias leis que determinam a organização progressiva do mundo natural. "Tal como existe um Deus na natureza, existe também um Deus na história; o homem faz parte da natureza e deve seguir, mesmo nas suas intemperanças e paixões mais selvagens, as leis que não são menos belas e excelentes do que aquelas que regulam todos os céus e corpos terrestres". É fácil distinguir nestas palavras o reflexo do panteísmo de Shaftesbury, O fim das leis da história é o de conduzirem o homem à sua própria humanidade. "Se considerarmos a humanidade, tal como a conhecemos através das leis que nela existem, não poderemos imaginar nada de mais elevado que a humanidade existente nos homens; pois mesmo quando pensamos em anjos ou deuses, pensamo-los como homens ideais ou superiores. Com este objectivo 216 foram dados aos homens sentidos e impulsos mais refinados, a razão e a liberdade, uma saúde delicada e durável, a linguagem, a arte e a religião. Em todas as condições e em todas as sociedades, o homem não pode ter outra coisa em vista que não seja a construção da humanidade, tal como em si próprio ele a pensa". No seu esforço de investigar a ordem e as leis do mundo da história, a especulação de Herder faz lembrar a de Vico. Mas para Vico não existe um progresso contínuo e inevitável do género humano, comparável ao curso fatal da natureza. Para Vico, a história é verdadeiramente feita pelos homens e conserva todo o carácter problemático que deriva da liberdade das acções humanas. A ordem providencial da história é para o filósofo italiano uma ordem transcendente a que a história temporal pode mais ou menos adequar-se, sem jamais coincidir. Herder, pelo contrário, considera a história como um plano divino e necessário no seu inevitável progresso. A sua filosofia da história é, por conseguinte, a extensão ao mundo histórico do,panteísmo de Sohaftesbury e prenuncia o conceito da história próprio do idealismo romântico. § 535. FILOSOFIA DA FÉ: JACOBI A filosofia da fé, tal como tinha sido desenvolvida por Hamman e Herder, levava a uma conclusão panteísta: parecia até tornar impossível qualquer distinção entre natureza e Deus e fazer sua a tese
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clássica do panteísmo, distinguir em Bruno. Espinosa, a filosofia da fé de Jacob@ pelo contrário dentro de um rigoroso teismo: retira Deus da natureza de forma tão decidida como os outros o tinham unido a ela. Friedrich Heirich Jacobi, nasceu em Dusseldórfia a 25 de Janeiro de 1743 e morreu a 10 de março de 1819. Os seus trabalhos compreendem dois romances filosóficos, Epistolário de Allwill e Woldemar, as Cartas sobre a doutrina de Espinosa a Moisés Mendelssohn (1785) e nas quais Jacobi descreve os colóquios que teve com Lessing a 7 e 8 de Julho de 1780, em que Lessing manifestava a sua adesão ao espinosismo; David Hume e a fé (1787) na qual Jacobi se pronuncia também sobre o kantismo; Cartas a Fichte (1709); Tratado sobre o propósito do criticismo em conferir a razão ao intelecto (1802); J As coisas divinas (1811), contra Schelling, que Jacobi censurava por usar uma linguagem cristã num sentido panteísta. O objectivo da especulação de Jacobi é o de defender a validade da fé como sentimento do incondicionado, ou seja, de Deus. Rejeita a especulação "desinteressada"; pretende defender não a verdade, mas "uma determinada verdade". "Quero tornar claro, através do entendimento, uma única coisa, afirma - Cartas sobre Espinosa, trad. ital., p. 4), a minha devoção natural a um Deus incógnito". Mas a razão não serve este objectivo. Jacobi levanta a pergunta crucial: É o homem quem possui a razão ou é a razão que possui o homem? Para ele não existe 218 dúvidas: a razão é um instrumento, não é a própria existência humana. Esta última resulta de duas representações originárias: a do incondicionado, que é a de Deus, e a do condicionado, que é a de nós próprios. Mas esta última pressupõe a primeira. Temos portanto uma certeza do incondicionado bastante maior do que a que temos do condicionado, ou seja, da nossa própria existência. Mas esta certeza não nos é dada pela razão e não se baseia nas provas ou nas demonstrações que a mesma nos possa fornecer. É uma certeza da fé. Para demonstrar a existência de uma divindade criadora, a razão já não pode ligar-se nem nunca poderá ligar-se a uma filosofia que se arrogue de tal. Descartes pretendeu demonstrar a existência de um criador do mundo; mas, na realidade, só conseguiu demonstrar a unidade de todas as coisas, a totalidade do mundo. Espinosa tornou claro o significado implícito da demonstração cartesiana na expressão por ele utilizada "Deus sive Natura". E o que vale para a filosofia de Espinosa vale para qualquer sistema que faça apelo à razão para compreender Deus: inclusive o de Leibniz. O próprio Lessing., o representante máximo do iluminismo, é uma prova desta mesma tese: Jaoobi vale-se dos colóquios que teve com ele para afirmar que Lessing era conscientemente adepto da doutrina de Espinosa e que a fórmula em que acreditava era En kai Pan, o Todo-Uno, o Deus-Natureza. Este é o argumento da polémica entre Jacobi e Mendelssohn sobre o espinosismo de Lessing, polémica em que intervém igualmente
Herder com a sua obra, Deus. A doutrina de Espinosa representa para 219 Jacobi a essência de todas as doutrinas racionalistas, já que todas as doutrinas deste género, quando coerentemente desenvolvidas, se identificam com o espinosismo. E o espinosismo é ateísmo, na medida em que o ateísmo não é mais que a identificação de Deus com o mundo, do incondicionado com o condicionado. Cortar as ligações com o ateísmo significa cortar as ligações com o racionalismo e fazer apelo à fé. Só a fé torna certa a existência de nós próprios, das outras coisas e de Deus: "Todos nós nascemos na fé, afirma Jacobi (Cartas sobre Espinosa, trad. ital. p. 123), e na fé devemos permanecer, tal como nascemos na sociedade e na sociedade devemos permanecer". Mas a fé significa revelação. "Afirmamos com absoluta convicção que as coisas existem realmente fora de nós. E eu pergunto: em que se baseia esta nossa convicção? Em verdade, apenas numa revelação a que verdadeiramente podemos chamar milagrosa" (Hume, uber den Glauben, em Werke, H, p. 165 e sgs.). Jacobí mostra-se portanto de acordo, tal como Hamman, com Hume, ao afirmar que o conhecimento sensível não é outra coisa senão a fé. Mas além disso, para ele, é a fé na revelação, assumindo portanto um significado religioso. Uma existência que se revela pressupõe uma existência que revela, uma força criadora que só pode ser causa de toda a existência, isto é. Deus. A nossa fé sensível é necessariamente uma fé na revelação e esta é necessariamente a fé em Deus, é portanto unia religião (1b., p. 274, 284 e sgs.). Esta fé é natural, não arbitrária; trata-se de uma 220 lei escrita no coração dos homens e que os homens seguem mesmo quando a negam. Ao negar a possibilidade de qualquer demonstração da existência de Deus e ao considerar Deus como objecto de fé, Jacobi concorda evidentemente com Kant. Mas Kant fala de uma fé racional, problemática, fechada nos limites das possibilidades humanas, enquanto que Jacobi vê na fé uma revelação efectiva entre o homem e o mundo supra-sensível. Se o homem não tivesse a percepção originária do supra-sensível, não seria possível nem a religião nem a liberdade e o homem seria um animal como todos os outros, uma coisa entre as outras coisas. Mas se não existisse nem religião, nem liberdade, nem fé em Deus, nem consciência de si, como poderia o próprio homem existir com uma existência de tal modo mutilada? Jacobi segue, na sua especulação, um processo característico: por um lado, afirma a coerência e a força dos sistemas racionalistas, defendendo-se contra os seus adversários (com efeito assim procedera em relação a Espinosa, a Kant e também a Fichte), por outro lado pretende demonstrar como os mesmos se debatem com a impossibilidade de explicar a existência e todos pressupõem a fé. A fé incondicionada e original num ordenamento do mundo paternal e amorável: tal é, para Jacobi, o único dado seguro de que o homem deve partir. "Assim sinto, afirma, e não posso sentir de outra maneira; se os sistemas de filosofia tivessem razão, o meu sentimento seria impossível".
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A filosofia da fé constitui uma primeira tentativa para se fugir aos limites que Kant tinha assinalado às possibilidades humanas, tentativa que faz apelo a uma relação directa com o supra-sensível. Contra esta tentativa reagiu o próprio Kant na sua obra O que significa orientar-se no pensar (1786), e, ao intervir na polémica MendelssohnJacobi-Herder, replicou enèrgicamente que a fé não pode basear-se senão num postulado da razão prática e que a mesma não envolve uma certeza teorética, mas apenas uma verosimilhança que basta a todas as exigências da conduta moral. § 536. O "STURM UND DRANG". SCHILLER. GOETHE A filosofia da fé pode considerar-se, na sua complexidade, como expressão filosófica do movimento literário-políteo que se chamou STURM UND DRANG (título de um drama de Maximiliano Minger, escrito em 1776), ou seja, "tempestade é ímpeto". A razão que sofre a crítica desta filosofia é a razão finita, a razão cujos limites e competência haviam sido determinados por Kant; à qual contrapõe a fé como órgão capaz de alcançar o que àquele é inacessível. Nos ideais do Sturm und Drang comungaram, na sua juventude, Schiller e Goethe. Todavia, o conhecimento da filosofia kantiana tem neles uma influência positiva, encaminhando-os para o reconhecimento da função da razão e ainda para a com222 preensão e esclarecimento daquilo que a razão não abarca, a vida, o sentimento, a arte e a natureza. A actividade filosófica do poeta Friedrich Schiller (10 de Novembro de 1759 - 9 de Maio de 1805) inicia-se com a denominada Teosofia de Julius, incluída nas Cartas filosóficas de 1786. Podemos encontrar nesta obra os temas neoplatónicos caros aos poetas e aos filósofos do Sturm und Drang. O universo é a manifestação ou revelação de Deus, o "hieroglifo de Deus", e a única diferença entre Deus e a natureza é que Deus é a perfeição indivisa, enquanto que a natureza é uma perfeição dividida. "A natureza é um Deus dividido ao infinito", diz Schiller (Werke, X, p. 190). Em 1787, Schiller entra em contacto com as obras de Kant. e especialmente com a Crítica do juízo. Neste período, Schiller dedicava-se a pesquisas de natureza estética que vieram a dar frutos nos seus escritos Sobre o fundamento do prazer produzido pelos objectos trágicos (1791), Sobre a arte trágica (1792), Sobre o sublime (1793). Mas os primeiros frutos amadurecidos da filosofia de Schiller são o inteligente ensaio Sobre a graça e a dignidade (1793), no qual a crença na unidade harmónica entre a natureza e o espírito leva Schiller a modificar substancialmente o ponto de vista kantiano que tinha contraposto a razão ao instinto. Afirma Schiller: "Não tenho um bom conceito do homem que se fia tão pouco na voz do instinto que a obriga a calar todas as vezes perante a lei moral; mas respeito e estimo aquele que se abandona com uma certa confiança ao instinto, sem recear que este o amesquinhe: porque assim parece demonstrar que
223 nele os dois princípios se encontram já em harmonia,,, o que é sinal de uma humanidade completa e perfeita" (Werke, XI, p. 202). O homem no qual se realiza a harmonia da razão com o instinto e que, por esse motivo, age moralmente por instinto é uma 11 alma bela, cu tural é a graça, ou seja; ja expressão na a beleza em movimento. Numa nota à segunda edição da Religião nos limites da razão (13 10-11), Kant, respondendo às observações de Schiller, afirmava que se é impossível que a graça surja acompanhada do conceito de dever, em virtude da dignidade deste últim03 não é impossível todavia que aquela surja acompanhada da virtude, ou seja: da intenção de cumprir fielmente o dever. A graça, segundo Kant, pode ser uma das felizes consequências da virtude que transmite sobretudo a força da razão e acaba até por arrastar no seu jogo a própria. imaginação. - 1.O tema da unidade entre a natureza e o espírito encontra. a sua melhor expressa wo na obra-prima filosófica, de Schiller, as Cartas sobre a educação ,estética (1793-95). Nesta obra, Schiller começa por discernir , no homem uma dualidade que aparece conciliada: a do homem físico que vive sob o domínio das necessidades e se descobre em virtude da sua existência na sociedade dos homens, e o homem moral,, que afirma a sua liberdade. Mas o homem físico é real, enquanto que o homem moral é apenas problemático. A razão tende a suprimir a natureza no homem e a furtá-la aos vínculos sociais existentes para lhes, fornecer aquilo que ele poderia e deveria possuir, mas não pode substituir completamente a GOETHE 224 sua realidade física e social. Schiller ilustra os vá. rios aspectos deste contraste. A razão exige a unidade, a natureza exige a variedade; e o homem é chamado a obedecer a ambas as leis, uma sugerida pela consciência e a outra pelo sentimento (Cartas, 4). No homem, o eu é imutável e permanente, mas os estados singulares sofrem mutações. O eu é fruto da liberdade, os estados singulares são produto da acção das coisas exteriores. Por isso existem no homem duas tendências que constituem as duas leis fundamentais da sua dupla natureza racional e sensível. A primeira exige a absoluta realidade.- o homem deve tomar sensível tudo o que é pura forma e manifestar exteriormente todas as suas atitudes. A segunda exige a absoluta formalidade: o homem deve extirpar tudo o que nele existe de exterior e criar a harmonia entre os seus sentimentos (1b., 11). Estas duas tendências são também chamadas por Schiller instintos: o instinto sensível deriva do seu ser físico e liga o homem à matéria e ao tempo, o instinto da forma aparece no homem por virtude da sua existência racional e procura torná-lo livre. Se o homem sacrifica o instinto racional ao sensível, deixará de ser um eu, permanecendo disperso na matéria e no tempo; se sacrifica o instinto sensível ao formal será uma pura forma sem realidade, ou seja: uni puro nada (lb., 13). Deve portanto conciliar os dois instintos de modo a um limitar o outro e dar lugar ao instinto do jogo que levará a forma à matéria e a realidade à pura forma rwiOnal (1b., 14). Se o objecto do instinto sensível é a vida no sentido mais lato e o objecto do instinto
formal é a 225 forma, o objecto do instinto do jogo será a forma viva ou seja: a beleza (lb., 15). Por meio da beleza, o homem sensível é guiado para a forma e para o pensamento, o homem espiritual é reconduzido à matéria e restituído ao mundo dos sentidos. A presença dos dois instintos é condição fundamental da liberdade. Enquanto o homem se mantiver submetido ao instinto sensível que é o primeiro a surgir, não existe liberdade; só quando o outro instinto se afirma, ambos acabam por perder a sua força constritiva e a posição entre ambos dará origem à liberdade (1b., 19). Para Schiller a liberdade não é como para Kant o produto da pura razão; é antes um estado de indeterminação no qual o homem não se sente constrangido nem física nem moralmente, se bera que possa ser actuante num modo como no outro. Ora se o estado de determinação sensível se chama físico e o de determinação racional, moral, o estado de determinabilidade real e activa deve chamar-se estético (lb., 20). O estado estético é um estado de pura problematicidade, no qual o homem pode ser tudo o que quiser, embora nada sendo de determinado. Neste sentido se afirma que a beleza não oferece qualquer resultado, seja moral seja intelectual; no entanto, só através dela o homem aufere a possibilidade de fazer de si aquilo que quiser; a liberdade de ser aquilo que deve ser. Neste sentido a beleza é uma segunda criação do homem (1b., 21). O estado estético é o ponto zero do homem físico e do homem moral, mas é ao mesmo tempo a possibilidade, a unidade e a harmonia de ambos. Com ele, o poder da sensação surge vencido e o homem físico aparece 226 de tal modo notabilizado que o espiritual pode facilmente desenvolver-se nele segundo, a lei da liberdade. A passagem do estado estético ao lógico ou moral, a passagem à verdade ou ao dever é infinitamente mais fácil do que a passagem do estado físico ao estado estético (lb., 23). No estado estético o homem separa-se do mundo com o qual se encontrava confundido durante o estado físico; e assim o mundo começa a existir para ele como objecto; objecto que, enquanto belo, faz ao mesmo tempo parte da sua subjectividade, sendo portanto simultaneamente um estado e um acto seus (lb., 25). Noutro ensaio fundamental, Sobre a poesia ingénua e sentimental(1795-96), Schifier interpretava a educação progressiva do género humano através da poesia como reconquista de uma perfeição perdida. O ensaio esboça uma história da humanidade concebida como passagem de uma unidade harmónica e originária entre o ideal e o real para uma cisão entre estes dois aspectos e por fim a uma reconquista da unidade. A poesia ingénua é aquela em que a unidade entre o real e o ideal é imediatamente apreendida e vivida; a poesia sentimental é a busca ou a reconquista dessa unidade. O poeta ingénuo não tem necessidade de ideal, imita a natureza real e com esta imitação encontra a sua perfeição; o poeta sentimental procura erguer a realidade até ao ideal (Wer.ke, XII, 126).
A filosofia de Schiller é substancialmente a tentativa de interpretar o homem, o seu mundo e a sua história nos termos de uma teoria da poesia. 227 A mesma ideia de um acordo intrínseco ou substancial entro a natureza e o espírito, o mundo e Deus, está contida na actividade filosófica de Wolfgang Coethe (1794-1832) que, diversamente de Schiller, parte não de uma teoria da poesia mas de pesquisas, observações e hipóteses naturalistas. Não foi a arte, mas a própria natureza que serviu de tema inspirador à reflexão filosófica de Goethe. Goethe estava convencido de que a natureza e Deus se encontram intimamente ligados, constituindo um todo único. "Tudo o que o homem pode ambicionar na vida é que o Deus-natureza se lhe revele", afirma. A natureza não é senão "a roupagem viva da divindade" . Não se pode alcançar Deus senão através da natureza, como não se pode alcançar a alma senão através do corpo. Se Goethe é contrário aos materialistas que fazem da natureza um puro sistema de forças mecânicas, é também contrário a Jacobi que coloca Deus, de forma absoluta, para além da natureza. "Quem quer o ser supremo deve querer o todo; quem se interessa pelo espírito deve pressupor * natureza, quem fala da natureza deve pressupor * espírito. O pensamento não se deixa separar daquilo que é pensado, a vontade não se deixa separar de tudo o que é movido. A existência de Deus, como a de uma força espiritual, de uma razão, que domina todo o universo, não precisa de demonstração. A existência de Deus é o próprio Deus" afirma ele numa carta a Jacobi (datada de 9 de Junho de 1785). Deus é uma força impessoal e suprapessoal que actua 228 nos homens através da razão e determina o seu destino. A um tal destino, que é ao mesmo tempo ordem providencial, não se furta nem mesmo Prometeu que, na sua titânica revolta contra o Olimpo, encontra na consciência de si o auxilio e a força para tal. - Nestas concepções panteístas se inspiram as investigações e as hipóteses naturalistas de Goethe, que pretendem investigar na natureza o fenómeno originário (Urphãnomenon) em que se manifesta e se concretiza, num determinado tipo ou forma, a força divina que tudo rege. Flor isso Goethe não compartilha do ponto de vista de Kant, segundo o qual a finalidade da natureza pertence a uma consideração puramente subjectiva do mundo, e não tem valor objectivo. Para Goethe, a finalidade é a própria estrutura dos fenómenos naturais e as ideias que a exprimem são os símbolos dos mesmos. Arte e natureza distinguem-se apenas em grau e não em qualidade; o fim que a arte e o artista prosseguem, actua sobre o mundo de forma menos consciente, mas igualmente eficaz. - Uma outra expressão da unidade entre a natureza e espírito, que é a fé de Goethe, é o equilíbrio, que ele defende explicitamente e que constitui uma característica da sua personalidade, entre sensibilidade e razão. A vida moral não é para ele, como é para, Kant, o predomínio da razão sobre os impulsos sensíveis, mas a harmonia de todas as actividades humanas, a relação equilibrada entre as forças contrastantes que constituem o homem. É neste equilíbrio que Goethe reconhece a normalidade da natureza humana 229
§ 537. HUMBOLDT No ideal humanístico de Schiller e Herder se inspira a obra de Wilhelra Humboldt (22 de Junho 1767 - 8 de Abril de 1835), que é o criador da moderna ciência da linguagem. Os problemas que ocupam Humboldt dizem respeito à história, à arte e à linguagem, sem esquecer também os problemas políticos. Aos primeiros dedicou alguns ensaios e breves tratados que em parte se mantiveram inéditos e em parte se encontram incluídos nos seus escritos de crítica literária e filológica: Sobre a religião (1789); Sobre a lei de desenvolvimento das forças humanas (1791); Teoria da formação do homem (1793); Plano de lima antropologia comparada (1795); Sobre o espírito da humanidade (1797); Considerações sobre a história universal (1814); Considerações sobre as causas eficientes da história universal (1818); Sobre a tarefa dos historiadores (1821). As suas ideias sobre arte estão contidas nos ensaios literários, especialmente no que se intitula Sobre o Armínio e Doroleia de Goethe (179798), enquanto que as suas ideias políticas se encontram expostas num vasto texto Ideia de uma investigação sobre os limites da acção do estado (1792). O princípio fundamental de Humboldt é de que nos mesmos homens e na sua história vive, age e se realiza gradualmente a forma ou o espírito da humanidade, que vale como ideal e critério valorativo de toda a individualidade e de toda a manifestação humana. Como Schiller e Herder, Humboldt sustenta que o objectivo dos homens está nos próprios homens, na sua formação progressiva, 230 no desenvolvimento e na realização da forma humana que lhes é própria. Sob este aspecto o estudo do homem deve ser objecto de uma ciência - a antropologia - que, embora interessada em determinar as condições naturais do homem (temperamento, sexo, nacionalidade, ete.,), porque também descobrir, através da mesma, o próprio ideal da humanidade, a forma incondicionada, a que nenhum indivíduo jamais consegue adequar-se perfeitamente, mas que não deixa de ser o objectivo para que tendem todos os indivíduos (Schriften, 1, p. 388 e sgs.). Esta ciência deverá tratar o material empírico de modo especulativo, organizar filosoficamente o estudo histórico do homem e considerar a verdadeira condição do homem do ponto de vista dos seus possíveis desenvolvimentos. Humboldt designa por espírito da humanidade a forma humana ideal que não se encontra nunca realizada empiricamente, ainda que seja o termo de toda a actividade humana; e reconhece neste espírito da humanidade a força espiritual de que dependem todas as manifestações do homem no mundo. Os grandes homens foram aqueles que, de forma mais vincada, afirmaram o espírito da humanidade, como aconteceu com Goethe, por exemplo; e os grandes povos os que mais se aproximaram no seu progresso da realização integral daquele espírito, como foi o caso dos Gregos (M., 11, p. 332).
A investigação e a realização da forma incondicionada da humanidade é também o objectivo da arte. Esta transforma a realidade numa imagem da fantasia e por isso se desvincula da própria realidade, dando lugar a um reino ideal; mas na medida em que 231 tal, acontece, a arte supera os limites da realidade, purifica-a e idealiza-a; representando-a através da fantasia faz dela uma totalidade, um mundo harmonioso e compósito. O carácter de totalidade é, com o da fantasia transfiguradora, elemento essencial da arte (lb., 11, p. 133 e sgs.; p. 284). Sob este aspecto, a poesia tem unia verdade que não é redutível à da história ou à da ciência. Essa mesma verdade consiste no seu acordo com o objecto da imaginação, ao passo que a verdade da história consiste no acordo com o objecto da observação (1b., H, p. 285). 1 A história - apresenta-se a Humboldt como "o esforço da ideia para conquistar a sua existência na realidade" (Ib., IV, p. 56). A ideia manifesta-se na história numa individualidade pessoal, numa nação, e em geral em todos os elementos necessários e determinantes que os historiadores se encarregam de separar e de dar relevo dentro do conjunto dos aspectos insignificantes ou acidentais. Para o homem que não pode conhecer o plano total que governa o mundo, a ideia só se pode revelar através do curso dos acontecimentos, dos quais constitui, ao mesmo tempo, a força produtiva e o objectivo final. "0 fim da história pode ser apenas a realização da ideia representada pela humanidade, em - todos os seus aspectos, c em todos os modos nos quais a forma finita possa ser ligada à ideia; e o curso dos acontecimentos pode ser interrompido quando nem uma nem outra estão em situação de reciprocamente, se interpenetrarem" (lb., IV, p. 55). Com a ideia de humanidade se associa a linguagem. A linguagem é a própria actividade das forças 232 HUMBOLDT espirituais do homem. Como não existe nenhuma força da alma que não seja activa, nada existe no íntimo do homem que não se transforme em linguagem ou não se reconheça nela (Schriften, VII, 1, p. 86). Em razão destas raízes humanas comuns, todas as linguagens têm na sua organização intelectual qualquer coisa de semelhante. A diversidade intervém no que respeita a essa organização, quer pelo ,grau em que a força criadora da linguagem se exerce, grau que é diferente de povo para povo e em tempos diferentes, quer porque outras forças actuam na criação da linguagem além do intelecto, como seja a fantasia e o sentimento. Fantasia e sentimento que, na medida em que determinam a diversidade dos caracteres individuais, também determinam a diversidade dos caracteres nacionais e por conseguinte a multiplicidade das linguagens. A linguagem é o próprio sentido interno enquanto reúne o conhecimento e a expressão, e por conseguinte está ligada ao mais íntimo do espírito nacional; e na diversificação deste espírito encontra a raiz última das suas divisões (1b.,
V11, 1, p. 14). Além disso. ela forma um organismo que vive apenas na totalidade e na conexão das suas partes: a primeira palavra de uma língua prenuncia-a e pressupõe-na na sua totalidade. Em virtude desta mesma ideia, Humbold-t conseguiu transformar o estudo da linguagem de pura actividade de recolha de elementos numa compreensão do fenómeno da linguagem na sua totalidade. A exigência de garantir a livre realização do espírito e da humanidade no homem leva Humboldt 233 a restringir os limites da acção do Estado. O seu escrito político (que só foi publicado em 1851) res- @tringe a função positiva do Estado à garantia da segurança interna e externa, mas exclui, como excedendo os limites do Estado, toda a acção positiva no sentido de promover o bem-estar e a vida moral e religiosa dos cidadãos. Tudo o que diga respeito directamente ao desenvolvimento físico, intelectual, moral e religioso do homem cai fora dos limites do estado, é tarefa própria dos indivíduos e das nações. O estado pode favorecer essa tarefa quando se limita a garantir as condições em que esse mesmo desenvolvimento se verifique com segurança, mas toda a sua intervenção positiva é prejudicial porque contrária às condições indispensáveis a que se alcance o desenvolvimento completo dos indivíduos singulares, ou seja: a liberdade. Esta doutrina é a antítese antecipada da concepção ética do estado que irá ser defendida por Hegel. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 532. K. L. Reinho@d, Leben und literarischcs Wirken nebst ciner Aus~I von Briefen Kants, Fichtes, Jacobi8 und allen phil~phischen Zeitgenossen an ihn (ao cuidado do seu filho Emst), Jena, 1925. Sobre Reinháld: B. Kroner, Von Kant bis Hegel, Tübingen, 1821; Guéroult, Llévolution et ta strwture de Ia Doetrine de Ia Se@ence chez Fichte, Paris, 1930, 1, pgs. 1, 153; V. Verra, Dopo Kant, Il criticisma ne,111~ pre-romantica, Turim, 1957 (para esta obra se, remete tanibéni quanto aos autores seguintes). 234 § 533. Sobre o Enes~o: H, Wilegershausen, Aenes~-Schulze, Berlim, 1910. De Malmon: Versuch einer neuen Logik, Bei-ffim, 1912 (com bibl.) Sobre Maimon: P. Kuntze, Díe Phílosophíe S. M.S, Heidolberg, 1912; M. Guéroult, La philosophie transcendentale de S. M., Paris 1929; G. Durante, Gli epigoni di Kant, Florença, 1943. Sobre Beck: W. Withey, em "Archiv. für Geschichte der Phiposophie", 2, p. 592-6,556; W. F>ottschel, J. S. B. und Kant, Bresiau, 1910.
§ 534. Ramman, Werke, 42d. Roth, Berlim, 1821-1843; ed. Gildmeister, Gota, 1857-73; ed, NaMer, Viena, 1949-53. - Escritos e fragmentos de estética, trad. itál., S, Lupi, Roma, 1938. Sobre Hamann: Burger, I. F. H.s Schõpfung und ErIõsung im Irrationalismus, Gõttingen, 1929; Metzke, I. G. H.s Stellung in der Philosophie des 18. Jahrunderts Halle, 1934; Nadlier, I. G. H. Der zeuge des Corpus Mysticum, Salzburg, 1949; Schreiner, Die Menschwerdung Gottes in der Theologie I. G. H.s, Tübingen, 1950; J. C. O'FIaherty, Unity and Language: a Study in Philosophy of J. G. H., Chalml Hilil, 1952. De Herder: Werke, ed. B. Suphan, 32 vols. Beillim, 1877-99; Zur philosophie der Geschichte, ed. Harich, Berlim, 1952; Metakritik der reinen Vernunft, ed. Bassenge, Berlim, 1955; Werke, ed. Ger&d, 2 vdls., Munique,, 1953; Ancora una filosofia della storia per delFumanità, trad. ital., F. Ventur@, Tirum, 1951; Saggio sulllorigine del linguaggio, tra4. ital., G. Necco, Roma, 1954. Sobre Herder: R. Havin, H., nach seinen Leben u*d seinen Werken dargesteAlt, 2 voIs., Berárn, 1954; A. Bo~rt, H., sa vie et son oeuvre, Paris, 1916; E. KüImemann, H., 3.a ed. Munique, 1927; M. Rouche, La philosophie de L'Histoire, de H., Paris, 1940; T. 235 Litt, Kant und H. al,& Deuter der geistigen Welt, H~Iberg, 1949; H. Salmony, Die Philosophi.- des jungen H., Zurique, 1949; W. Dobbe@k, J. GG. H.s Humanitãtsidec aIs Ausdruck seines WeltbiJdes und seiner Pers6nlichkeit, Braunschweig, 19,49: R. T. Clark, H.: His life and Thought, Berkeley - Los Angeles, 1955. § 535. De Jacobi: Werke, 6 vols. Leipsig, 1812-25; Aus J.s NachIass, ed. Zoppritz, 2 vols., Leipzig, 1869. Lettere sulla dottrina di Spinoza, trad. itaj. F. Capra, Bari, 1914; Idealismo e realismo, trad. itaâ. N. Bobbio, Turim, 1948 (contém: David Humie e Ia fede Lettere a Fichte, Cose divine e outros escritos). Sobre Jacobi: L. Levy-Bruffi, La philosophie de J., Paris, 1894; F. A. Schmidt, F. H. J, Heidelberg, 1908. § 536. De Schiller: Werke, ed. G. Kaxpeles, Leipzig, s.a. -;9., Philos. Schriften und Gedichte, antologia de E. Kühnemann, Leipzig, 1909; Lettere sull'educazione estetica ed altri scritti, a cargo de G. Oaló, 1937. Sobre Schiller: K. Fischer, S. al,& Philosoph, Heidelbarg, 1891; K. Engel, S. aIs Denker, Berlim, 1908; E. Kühnemqjnn, S. sein Leben und seine Werke, Munique, 1911; K. Vorlander, Kant, Schiller, Goethe, Leipzig, 1922. Unia escolha dos textos filosóficos de Goethe foi feita por M. Heynacher, G.s Phiplosophiea" seinem Werken, Leipzig, 1905. Em itaã~: Teoria della natura, recolha de textos e tradução de M. Montinari, Turim, 1958. Sobre Goethe: H. Siebeck, G., aIs Denker, Stuttgarda, 1902; G. Sinunel, G., L~ig, 1913; P. Carus, G., Chicago, 1915; A. Schweitzer, G., 1952.
§ 537. De Humboldt: Gesammelte Schiften, ed. a cargo da Academia de Berlim, 16 voda., Berlim, 1904 e sgs. -Em italiano: Seritti di estetica, escolha e trad. da G. Marcovaldi, Roma, 1934; Antologia degli scritti politici, a cargo de P. SerrN Bolonha, 1961. 236 Sobra Humboldt: E. Spranger, W. v. H. und die Humanitdt~e, Berlim, 1909; O. 1-la~k, W. V. H., Berliin, 1913; Bins-Wlanger, W. v. H., Le@pzig, 1937; E. Ho~d, W. v. H., ErlenbachZürich, 1944; F. Schaffs~, W. v. H., Frankfort, a. M., 1956. 237 H O ROMANTISMO § 538. ORIGENS E CARACTERES DO ROMANTISMO Com o termo "romantismo", que na sua origem se referia ao romance de cavalaria, rico em aventuras e amores, pretende-se indicar o movimento filosófico, literário e artístico que se iniciou na Alemanha nos últimos anos do século XVIII, teve o seu período de florescimento máximo, em toda a Europa, nos primeiros decênios do século XIX, e que constitui o cunho próprio deste século. O significado corrente do termo "romântico" que significa "sentimental" deriva de um dos aspectos mais salientes do movimento romântico, ou seja, o reconhecimento do valor atribuído por ele ao sentimento: uma categoria espiritual que a antiguidade clássica havia ignorado ou desprezado, categoria que 239 o iluminismo de setecentos tinha reconhecido e que viria a adquirir com o romantismo um valor predominante. Este valor predominante é a principal herança que o romantismo recebe do movimento do Sturm und Drang (§ 536) que tinha contraposto o sentimento, e com ele a fé, a intuição mística ou acção, à razão, considerada incapaz, nos limites que lhe haviam sido prescritos por Kant, de alcançar a substância das coisas ou as coisas superiores e divinas. Mas propriamente neste sentido, a razão continuava a ser para os defensores do Sturin und Drang o que era para o iluminismo: uma força humana finita capaz no entanto de transformar gradualmente o mundo, mas não absoluta nem omnipotente e por conseguinte sempre mais ou menos em contradição com o próprio mundo e em luta com a realidade que tinha como objectivo transformar. O romantismo, pelo contrário, nasce quando este conceito de razão começa a ser abandonado e se passa a entender por razão uma força infinita (omnipotente) que habita o mundo e o domina, e por conseguinte constitui a própria substância do mundo. Esta passagem surge com nitidez em Fichte que identificou a razão com o Eu infinito ou
Autoconsciência absoluta e que constitui a força que deu origem ao mundo. A infinitude neste sentido é uma infinitude de consciência e de potência, mais que de extensão e de duração. Ainda que diversamente designado pelos filósofos românticos (Fichte chamou-lhe Eu, Schelling Absoluto, Hegel Ideia ou Razão Autoconsciente). o Princípio Infinito foi sempre enten240 dido como consciência, actividade, liberdade, capacidade criadora incessante. Mas apesar de existir uma base comum quanto às características apontadas atrás, o Princípio Infinito é interpretado pelos românticos de dois modos diversos e fundamentais. A primeira interpretação, mais próxima da ideia do Stunn und Drang, considera - o infinito como sentimento, como actividade livre, isenta de determinações ou para além de qualquer determinação, revelando-se no homem naquelas actividades mais estritamente ligadas com o sentimento, como seja a religião e a arte. A segunda interpretação define o infinito como Razão Absoluta que se move com uma necessidade rigorosa de uma determinação para outra, de forma que todas as determinações podem ser deduzidas umas das outras necessariamente e a priori. É esta interpretação que prevalece nas grandes figuras do idealismo romântico, Fichte, Schelling e Hegel,ainda que Schelling tenha insistido na presença, no Princípio Infinito, de um aspecto inconsciente, análogo ao que caracteriza a experiência estética do homem. As duas interpretações do infinito foram frequentemente contraditórias e Hegel especialmente orienta a polé mica contra o primado do sentimento. Mas até mesmo esse contraste e essas polémicas constituem um dos traços fundamentais do movimento romântico na sua complexidade. Ao romantismo do sentimento pertence corno traço fundamental a ironia. O conceito de ironia é uma consequência directa do princípio romântico de que o finito é uma manifestação do infinito. Com 241 efeito, o infinito pode ter infinitas manifestações e nenhuma delas, segundo os românticos do sentimento, lhe é verdadeiramente essencial. A ironia consiste em não tomar a sério e não deixar de refutar, como coisa limitada, as manifestações particulares do infinito, (a natureza, a arte, o eu, o próprio Deus) na medida em que não passam de expressões provisórias do mesmo. Um outro traço do romantismo do sentimento é o primado reconhecido à poesia, em geral à arte, sobre a ciência, a filosofia e, em geral, toda a actividade racional. Com efeito, a arte, segundo os românticos, é a expressão do sentimento; e se o infinito é sentimento, a sua melhor expressão é, portanto, a arte. Muitos românticos fazem sua esta tese, a qual adere também Schelling que vê no mundo a obra de arte do Absoluto e considera a experiência estética a melhor via de acesso à compreensão do próprio Absoluto. A outra interpretação fundamental do principio romântico, a que o considera como infinita Razão, vê na filosofia a mais elevada revelação da mesma. Foi este o ponto de vista defendido pelas grandes figuras do idealismo romântico a que dedicaremos os próximos capítulos. E foi este o ponto de vista que mais fortemente influenciou toda a filosofia de Oitocentos, mesmo quando o grande florescimento do primeiro romantismo perde
audiência e o pensamento europeu parece tomar outros caminhos. Com efeito, manter-seão dominantes os caracteres gerais e fundamentais do romantismo: o optimismo, o providencialismo, o tradicionalismo e o titanismo. 242 O optimismo é a convicção de que a realidade é tudo aquilo que deve ser e é, em qualquer momento, racionalidade e perfeição. Com esta sua característica, o romantismo opunha-se polemicamente ao iluminismo, ou seja, à pretensão de transformar a realidade, de dar lições aos factos. Para o romantismo, a realidade é tudo aquilo que deve ser, e a razão não deixa de ser uma potência só em virtude de não se realizar os factos. Foi por causa desta característica que o romantismo teve a tendência para exaltar a dor, a infelicidade e o mal como manifestações parciais e necessárias de uma totalidade que, na sua complexidade, permanece pacífica e feliz. Com o optimismo metafísico se relaciona o providencialismo histórico do romantismo. Para os românticos, a história é o processo necessário no qual se manifesta ou realiza a própria Razão infinita, nada havendo nela, por conseguinte, que seja irracional ou inútil. Segundo este ponto de vista, a história ou é um progresso necessário e incessante no qual todos os momentos superam os anteriores em perfeição e racionalidade; ou é, na sua complexidade, uma totalidade perfeita cujos momentos são todos igualmente racionais e perfeitos. Hegel (como mais tarde Croce) elaborou esta segunda concepção; e contrapõe ao "falso infinito", que é o infinito da duração ou da extensão ou do progresso, o "verdadeiro infinito", aquele que se realiza integralmente em todos os momentos finitos e que, por conseguinte, têm o mesmo valor do infinito. O outro conceito, o do progresso necessário e inevitável, surge pelo contrário exterior ao idealismo em toda a filosofia oitocentis-ta; e um dos seus 243 reflexos é aquele conceito de evolução que, primeiramente elaborado pela ciência biológica, se estendeu depois a toda a realidade, surgindo esta como um único e ininterrupto desenvolvimento progressivo. Ao providencialismo se liga um outro aspecto do romantismo, o tradicionalismo. O iluminismo tinha sido uma filosofia crítica e revolucionária: pretendia libertar-se do passado porque no passado podíamos descortinar, quase exclusivamente, o erro, o preconceito, a violência e :a fraude. O romantismo, pelo contrário, reconhecendo a bondade de todos os momentos da história, regressa ao passado e exalta-o. O passado para o romantismo nada tem que deva ser abandonado ou perdido, contém sim, potencialmente, o presente e o futuro. Por isso as instituições que o passado criou e transmitiu (o Estado, a Igreja e tudo aquilo que com elas se relaciona) apaixonam os românticos como se fossem dotadas de um valor absoluto e destinadas à eternidade. Desta
mesma posição deriva a reabilitação da Idade Média que o Iluminismo (como o Humanismo) tinha considerado uma época de decadência e de barbárie, com a consequente literatura em que a Idade Média é representada de forma idealizada e sentimental, bastante longe da realidade histórica. Um outro corolário do tradicionalismo romântico é o nacionalismo. Ainda que a noção setecentista de "povo" fosse definida em termos de vontade e de interesse comuns, a "nação" é defendida em termos de elementos tradicionais como a raça, a língua, os costumes e a religião. Por outras palavras, o povo consiste na coexistência dos indivíduos que querem viver em 244 conjunto; a nação refere-se à coexistência de indivíduos que devem viver em conjunto, de tal modo que o não podem deixar de fazer sem renegarem ou traírem a sua própria personalidade. Finalmente, entre os traços mais salientes do romantismo está ainda o titanismo. O culto e a exaltação do infinito têm como contrapartida o carácter insuportável de tudo o que é finito. E este carácter insuportável está na base da rebelião perante tudo o que é um limite ou uma regra e no des-ako incessante a tudo o que, pela sua finitude, surge como incompatível ou inadequado em comparação com o infinito. Prometeu é assumido pelos românticos como o símbolo deste titanismo, através de uma interpretação que está muito afastada do espírito do antigo mito grego, uma vez que tende a exaltar uma rebelião que é fim de si própria. Os Gregos viam em Prometeu o titã que paga justamente o castigo de ter rompido com a ordem fatal do mundo, dando aos homens o uso do fogo e a possibilidade da sobrevivência. O romantismo, pelo contrário, exalta em Prometeu o rebelde à vontade do destino. O titanismo não pretende que uma situação de facto seja ou possa ser superior ou preferível a outra; empenha-se antes num protesto universal e genérico que não pode no entanto traduzir-se em qualquer decisão concreta. Todos os caracteres acima enumerados e que correspondem ao espírito romântico, excepto evidentemente aqueles que mais directamente se referem aos aspectos literários do romantismo (como seja a ironia e o titanismo) se encontram no positivismo HÕDERLIN 245 quando sonha, um mendigo quando pensa", diz Hõlderlin. Só a beleza lhe revela o infinito; e a primeira filha da beleza é a arte, a segunda filha é a religião, que é o amor da beleza. A filosofia nasce da poesia porque só através da beleza está em relação com o Uno infinito. "A poesia é o princípio e o fim da filosofia. Assim como Minerva surge da cabeça de Júpiter, também a filosofia surge da poesia de um ser infinito, divino". "Do simples intelecto não nasce nenhuma filosofia porque a filosofia é mais do que o não limitado conhecimento do contingente. Da simples razão não nasce nenhuma filosofia, porque a filosofia é mais do que a exigência cega de um infinito progresso na síntese ou na análise de uma dada matéria". Nestas palavras o princípio do infinito de Fíchte encontra já a sua crítica e a sua correcção romântica. E em Hõlderlin se encontra também a outra característica do espírito romântico: a exaltação da dor. "Não deve tudo sofrer? Quanto mais elevado é o ser maior o sofrimento. Não sofre a sagrada natureza?... A vontade que não sofre é sono, e sem morte não há vida". Hiperion acaba por exaltar a sua própria dor:
"õ alma, beleza do mundo, indestrutível, enfeitiçante! Com a tua eterna juventude existes; mas o que é a morte e toda a dor do homem? Muitas palavras vãs fizeram os homens estranhos. Tudo nasce portanto da alegria e tudo termina na paz". Esta conciliação do mundo que Hegel consegue através da dialéctica da ideia, consegue-a Hõlderlin com o sentimento da beleza infinita. 248 SCHLEGEL § 540. SCHLEGEL A criação do romantismo literário, na sua derivação fichtiana, pode-se distinguir claramente na obra de Friedrich SchIegel (1772-1829). Depois de uma série de ensaios sobre a poesia antiga, SchIegel publicava em 1789 uma História da poesia dos gregos e dos romanos e dava início, no mesmo ano, em colaboração com o irmão August WilheIra, à publicação do "Atheneum" que foi o órgão da escola romântica e durou até 1800. Nesta revista foram publicados os escritos filosóficamente mais significativos de Schlegel (Fragmentos, 1798; Ideias, 1800; Diálogo sobre a poesia, 1800). Outros Fragmentos de Schlegel haviam sido publicados no periódico "Lyceum" em 1797. Depois de 1795, nas cartas ao seu irmão Guilherme (Briefe, ed. Walzel, p. 236, 244), SchIegel pronuncia-se do modo mais entusiástico sobre a doutrina de Fichte. E no final do ensaio Sobre o estudo da poesia grega (1795, mas publicado em 1797) depois de ter delineado três períodos da teoria estética, o primitivo, dominado pelo princípio da autoridade, o dogmático da estética racional e empírica, e o crítico, SchIegel reconhece em Fichte aquele que poderá conduzir a bom termo a estética críflica. "Depois de Fichte descobrir (afirma ele em Jugendschriften, ed. Minor, 1, p. 172-73) o fundamento da filosofia crítica, passou a existir um princípio seguro para rectifficar, completar e levar a cabo o Plano kantiano da filosofia prática; e deixa de ter justificação a dúvida sobre a possibifidade de um sistema objectivo das ciências estéticas, práticas e 249 teóricas". Na verdade, o conceito da poesia romântica, tal como foi definido por SchIegel, não é mais que a transferência para o campo da poesia, considerada como mundo em si, do princípio fiffitiano do infimito. A poesia romântica é a poesia infinita. Ela é universal e progressiva. "0 seu fim não é o de reunir novamente os géneros poéticos que se sopararam e de pôr em contacto a poesia com a filosofia e com a retórica. A poesia quer e deve mesmo misturar, combinar poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia de arte e poesia ingénua, tornando viva e social a poesia, poétiica a vida e a sociedade, poetizando a argúcia, preenchendo e saturando as formas de arte como o mais variado e puro material de cultura e animando-a com vibrações de humour". Identificada com o infinito, a poesia absorve em si o mundo todo e encarrega-se de tarefas que surgem fragmentadas e dispersas nos váilios aspectos da cultura. "Só ela é infinita, como só ela é livre, reconhecenJo como sua primeir lei a seguinte: o arbítrio do poeta não suporta lei alguma" (Fragm., 116). A poesia transfigura o homem no infinito e no eterno; por isso a sua função é essencialmente religiosa. À volta deste tema, o da religiosidade da poesia, se
debate o ensaio Ideias. "Toda a relação do homem com o infinito é religião, acto do homem em toda a plenitude da sua humanidade". Se o matemático calcula o infinitamente grande, não quer dizer que isso seja religião. Só o infinito pensado com aquela plenitude é a divindade" (Ideen, 81). Mas "só pode ser artista aquele que tem unia religião, uma intuição original do infinito" (1b., 13); por isso o 250 artista verdadeiro é também o verdadeiro mediador religioso do género humano. "Mediador é aquele que exorta em si o divino, sacrificando-se e apagando-se para anunciar esse mesmo divino, para o participar e representar a todos os homens por meio dos costumes e das acções, com palavras e com obras. Se este impulso não existe, então é porque o que foi exaltado não era divino ou não era particularmente forte. Ser mediador entre o humano e o divino é tudo quanto de mais superior pode haver no homem; e todo o artista é mediador entre o divino e todos os outros homens" (Ib., 44). A ideia de infinito reúne a poesia, a filosofia e a religião de modo tal que nenhuma destas actividades pode subsistir sem a outra. "Poesia e filosofia são, conforme se entender, esferas e formas diferentes ou ainda factores da religião. Com efeito, tentai reuni-las verdadeiramente: não obtereis senão religião" (Ib., 46). No Díálogo sobre a poesia a própria filosofia de Espinosa é considerada como expressão de um sentimento verdadeiramente poético, o sentimento ida divindade do homem. A separação entre o que é eterno e o que é individual e simples, própria do espinosismo, é, segundo SchIegel, o ponto de partida da fantasia poética; e a nostalgia do divino, a grandeza calma da contemplação, que são os traços do sentimento espinosiano, constituem "a centelha de toda a poesia". No mesmo Diálogo, o romântico é definido como "o que representa uma matéria sentimental numa forma fantástica", definição em que se entende por sentimental sobretudo o movimento espiritual do 251 amor, que é "uma substância infinita" e perante a mesma, tudo o que o poeta pode abarcar "é apenas um sinal do que mais alto, infinito e hieroglífico existe no único e eterno amor: a sagrada plenitude de vida da natureza criadora". O sentimento implica, portanto, uma outra coisa que caracteriza a tendência da poesia romântica: indistinção entre aparên- cia e verdade, entre o sério e o jocoso. Numa palavra, implica e justifica a ironia. "A ironia, afirma SchIegel (Ideen, 69), é a clara consciência da agilidade eterna, do caos infinitamente pleno": palavras que implicam, nitidamente, o infinito como indefinido e como movimento no indefinido. "Uma ideia é um conceito levado até à ironia, uma síntese absoluta das sínteses absolutas, a contínua alternância auto-geradora de dois pensamentos em conflito entre si". A ideia não permanece confinada à esfera do ideal, mas implica o facto. No entanto, isso implica também uma liberdade absoluta perante o facto, e esta absoluta liberdade é a ironia. "Transferir-se arbitrariamente ora para esta, ora para aquela esfera, como para um outro mundo, não apenas com o intelecto e com a imaginação, mas com toda a alma; renunciar livremente ora a esta, ora àquela parte do próprio ser, e limitar-se completamente a uma outra; aproximar-se e encontrar o próprio uno e o todo,
ora neste, ora naquele indivíduo, e olvidar voluntariamente todos os outros: isto só pode ser conseguido por um espírito que contenha em si como que uma pluralidade de espíritos e todo um sistema de pessoas, e em cujo íntimo o universo, que como se diz, está em germe em todas as mónadas, se desen252 volveu e alcançou toda a sua maturidade" (Fragm., 1211). Aquilo que em Fichte era a liberdade do princípio infinito é em Schlegel o arbítrio absoluto do génio poético. Face a todas as suas criações, o génio poético mantém a sua posição irónica e recusa-se a Tomá-la a sério: porque sabe que elas são finitas, logo irreais, e que a realidade é ele próprio, o génio, ou a actividade infinita que se manifesta no seu arbítrio. O romantismo foi nestes termos a aspiração dos anos de juventude de SchIegel; depois da morte de Novalis, começou a aproximar-se do catolicismo até acabar por fazer da sua filosofia uma defesa da revelação, da Igreja e do Estado. Nas Lições sobre a filosofia da vida (1828) e nas Lições sobre a filosofia da história (1829), SchIegel reconhece como princípio do saber a revelação que Deus faz de si no mundo da natureza, no mundo da história, e nas Sagradas Escrituras. A unidade do finito e do infinito aparecia em SchIegel, nesta última fase da sua especulação, entendida como revelação no infinito; e este conceito acabaria por adquirir, no posterior desenvolvimento do espírito romântico, uma importância cada vez maior. § 541. ROMANTISMO: NOVALIS Juntamente com Frederico Schlegel, Tieck e Novalis são os arautos do romantismo literário. Ludwig Tieck (1773-1853) foi poeta e literato e representou nas personagens dos seus romances o espírito do romantismo. No seu William Loveel, a ironia encontra a sua mais perfeita incarnação. "Nós somos, 253 afirma, o destino que rege o mundo. Os seres existem porque nós os pensamos; a própria virtude é apenas um reflexo do meu sentimento interior (Werke, VI, p. 178). Esta concepção do homem como um mago invocador do mundo, criador e destruidor da realidade, encontra a sua melhor expressão na obra de Friedrich von Hardenberg, Novalis (1772-1801). Num romance, Heinrich von Hofterdingen, num outro romance incompleto, os discípulos de Sais, e nos Fragmentos, alguns publi- cados no "Atheneum", este sonhador que morreu tísico aos 29 anos celebra com palavras entusiásticas o poder infinito do homem sobre o mundo. Como SchIegel, Novalis parte também de Fichte; mas recusa-se a reconhecer ao não-eu. qualquer poder sobre o eu. "Aos homens, afirma Novalis (Schriften, ed. Heiborn, 1, p. 385), nada é impossível: eu posso aquilo que quero". Na raiz do mundo existe a força criadora da vontade divina, e o homem pode e deve coincidir com ela. Esta coincidência é a fé. "Toda a crença é maravilhosa e milagrosa. O próprio Deus existe no momento em que creio nele. Com a crença podemos em qualquer momento produzir, para nós e também para os outros, o milagre da criação" (lb., p. 571). Este milagre pode realizar-se através dos sentidos, que são apenas modificações do órgão do pensamento, do elemento absoluto em que se origina a realidade. O pintor tem já, em certo grau, o seu poder no olhar, o músico no ouvido, o poeta na imaginação, o filósofo no pensamento. Mas estes génios particulares devem unir-se: o génio deve ser total e passar a
ser dono do próprio corpo 254 e também do mundo (1b., p. 176). Com efeito, para Novalis o mundo é "um índice enciclopédico e sistemático do nosso espírito, uma metáfora universal, uma imagem simbólica daquele" (Ib., p. 142). O mundo tem, por conseguinte, uma capacidade originária de ser vivificado pelo espírito. "0 mundo é vi,v~o por num a priori, faz comigo uma só coisa, e eu tenho uma capacidade originária para vivificai-lo" (lb., p. 315). Esta vivificação do mundo é a transformação do sistema da natureza no sistema da moral, transformação que pertence ao homem. "0 sentimento moral, afirma Novalis (1b., 11, p. 375), é em nós o sentimento do poder absoluto de criar, o da liberdade produtiva, da personalidade infinita do microcosmos, da divindade propriamente dita que em nós existe". Este dilatar-se do homem no sentido do infinito, este seu transformar-se em vontade divina criadora da natureza e omnipotente, é o fundamento do idealismo mágico de Novalis. Mago é pois aquele que sabe dominar a natureza até ao ponto de colocá-la ao serviço dos seus fins arbitrários. Este é o ponto que o homem pode atingir, segundo Novalis, através da poesia. E que o pode atingir, demonstra-o a matemática. Novalis vê na matemática a explicação do poder infinitamente criador do pensamento. Ela é a própria vida divina; é portanto religião: Mas acima de tudo é arte porque é "a escola do génio". Se a matemática encontra limites ao seu poder, é porque nela entra o saber, e a actividade criadora cessa com o saber. A poesia é uma matemática que não tem limites e é por conseguinte uma arte infini255 tamente criadora. Só ela, segundo a imagem dos Discípulos de Sais, consegue levantar o véu de Iside e penetrar no mistério. A própria filosofia não é mais que a teoria da poesia: serve para demonstrar o que ela é e como é o uno e o todo (Ib., 11, p. 89-90). Tratar a história do mundo corno, história dos homens, descobrir por toda a parte e apenas factos e relações humanas, é uma ideia que deve estar presente; a própria causalidade da natureza se liga quase de per si à ideia da personalidade humana, e a natureza torna-se mais compreensível quando considerada como um ser humano. Por isso x poesia foi sempre o instrumento favorito do verdadeiro amigo da natureza, e na poesia surge com maior clareza toda a espiritualidade da natureza (lb., 1, p. 215). Esta animização da natureza é, como se vê, o princípio da magia; e o idealismo de Novalis é na verdade um idealismo mágico, mas só no sentido de que a magia é a própria poesia. Nestas teses tão ingenuamente extremistas, o princípio do infinito surge em toda a sua força, se bem que arrancado à necessidade dialéctica que o limitava na expressão racional que tinha encontrado em Fichte. § 542. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER O carácter religioso do romantismo revela-se de forma típica na obra de Friedrich Daniel Ernst SchLeiermacher, que foi amigo de SchIegel e colaborador do "Atheneum". Schleiermacher nasceu em Breslavia a 21 de Novembro de 1768 e estu256 dou teologia em Hafi, e. Em BePlirn, onde era pregador, conheceu, no salão de Henriette Herz, mulher de Marcus Herz, o discípulo de Kant, Friedrich SchIegel, com quem se ligou de amizade e entrou para o grupo romântico. Em 1799, publicou o seu primeiro trabalho, Discursos sobre a religião, a que se seguiram em 1800, os Monólogos. No mesmo ano de 1800 publicava as Cartas Confidenciais sobre o
romance de SchIegel, Lucinda, em que sustentava de acordo com SchIegel, a unidade do elemento espiritual e do elemento sensível no amor, e daí o carácter sagrado e divino deste sentimento. Estas ideias, e talvez a relação, ainda que puramente espiritual, com a mulher de um colega, Eleanore Grunow, fizeram com que fosse obrigado (em 1802) a deixar Berlim. Em 1903 publicava a Crítica da doutrina moral; no ano seguinte foi designado professor de teologia e filosofia em Halle: neste período leva avante e termina a tradução dos diálogos de Platão e de alguns estudos platónicos. Em 1810, com a fundação da Universidade de Berlim, passa a ser professor de teologia nesta Universidade até morrer, em 12 de Fevereiro de 1834. Em 1821-22, publicava a sua maior obra teológica, A fé cristã. Depois da sua morte foram publicados os cursos de filosofia que deu em Halle e em Berlim, cursos que comprendem uma História da filosofia, uma Dialéctica, uma Ética, uma Estética, uma Doutrina do Estado e uma Doutrina da Educação. As investigações de Dilthey sobre as cartas e manuscritos de juventude (inéditos) de Schleiermacher vieram trazer luz sobre as primeiras orientações 257 do seu pensamento. A primeira atitude de Schleiermacher foi a de um marahsmo crítico e circunspecto: mantinha o ponto de vista kantiano da limitação da consciência ao mundo da experiência e da moralidade autónoma, mas recusava-se a aceitar as integrações metafísicas e religiosas que o próprio Kant tinha dado ao seu ponto de vista. Assim, sustentava ser impossível qualquer acesso ao supra-sensível, mesmo pela via da moralidade e contrária à pureza da vida moral a crença numa recompensa extra-terrena. A leitura das Cartas sobre Espinosa de Jacobi, e em seguida, das obras de Espinosa, veio produzir uma alteração no seu pensamento encaminhando-o na direcção desse princípio do infinito que viria a dominar depois a Doutrina da ciência de Fichte. De início Schleiermacher opõe-se ao racionalismo de Fichte; mas o princípio fichtiano do infinito foi por ele utilizado como fundamento de uma doutrina da religião, que exprime o mesmo ideal da escola romântica. Esta doutrina influenciou fortemente o protestantismo alemão e anglo-saxónico e constitui indubitavelmente uma das soluções típicas do problema religioso no mundo moderno. § 543. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A DOUTRINA DA RELIGIÃO Schleiermacher preocupa-se, antes de mais, em estabelecer a autonomia da religião perante a filosofia. e a moral. A religião não aspira a conhecer e a explicar o universo na sua natureza, como faz a metafísica; não aspira a continuar o seu desenvolvimento e a aperfeiçoá-lo mediante a liberdade e a vontade 258 do homem, como faz a moral. A sua essência não é nem o pensamento nem a acção, mas a intuição e o sentimento. A religião aspira a intuir o universo na forma do sentimento. A filosofia e a moral, do universo não vêem senão o homem; a religião no homem, como em todas as outras coisas particulares e finitas, não vê senão o infinito (Reden, 11, trad. ital., p.
36). A religião não é mais que o sentimento do infinito. Segundo este ponto de vista, Schleiermacher vê em Espinosa a mais elevada expressão da religiosidade. "0 sublime espírito do mundo penetrava nele, o infinito era o seu princípio e o seu fim, o universo o seu único e eterno amor" (1b., p. 38-39). No entanto ele distingue-se de Espinosa ao sustentar que a expressão necessária do infinito é apenas o sentimento. Resolver o finito no infinito, considerar todos os acontecimentos do mundo como acções de Deus, é religião. Mas gastar-se o cérebro procurando provas sobre a existência de Deus, anterior e exterior ao mundo, é coisa que está para lá da religião. Esta está necessariamente conexa com a forma do sentimento porque só o sentimento nos pode revelar o infinito. A infinitude na religião é a infinitude no sentimento. "A religião é infinita não só porque as acções e as paixões, ainda que através da mesma matéria finita e do espírito, mudam infinitamente, não só porque é por demais indeterminável no interior como a moral, mas é também infinita e na sua forma, no seu ser, na visão e na ciência em todos os lados; é um infinito na sua matéria e na sua forma, no seu ser, na visão e na ciência que nela existem" (lb., p. 43). Por meio desta infi259 nitude, a religião descobre-se e reconhece-se na história, mas na história enquanto tende a progredir para além da própria humanidade, na direcção do infinito. A humanidade tem com o universo a mesma relação que cada um dos homens tem com aquela: é uma forma particular, uma modificação individual do todo. Como tal, é apenas um anel intermédio entre o indivíduo e o Uno, uma etapa na via que conduz ao infinito. Por isso todas as religiões apontam para algo que está fora e acima da humanidade, para algo de incompreensível e de inexprimível. Segundo este ponto de vista, o milagre e a revelação perdem a sua importância. Estas palavras apenas implicam uma referência entre certo fenómeno e o infinito, são os nomes que as religiões dão àquilo que, fora da religião, se chamam factos. Do ponto de vista da religião, tudo é milagre e revelação; mas por isso nada o é de forma especial. Schleiermacher combate no entanto o princípio de que "som Deus não há religião": de Deus e da sua existência pode-se falar no âmbito de uma particular intuição religiosa; mas todas as especiais intuições religiosas implicam a religião. "Deus não é tudo na religião, é uma parte, e o universo, representa nela mais que Deus". Assim a imortalidade individual não é uma aspiração religiosa; há-de ser sempre uma aspiração ao infinito, a sair, por conseguinte, dos limites da individualidade finita e a renunciar a uma vida miserável. "Tornar-se-á uma só coisa com o infinito, e estar no entanto no finito, ser eterno num momento do tempo, tal é a imortalidade da religião" (1b., p. 86). 260 Da aspiração ao infinito, que constitui a religião, nasce a tendência para a comunicação e daí a existência da organização eclesiástica. O sentimento do infinito toma o homem capaz de poder abarcar apenas uma pequena parte, e leva-a o perceber através da mediação dos outros aquilo que ele não pode perceber imediatamente. A organização desta recíproca comunicação é a igreja, a sociedade religiosa, que nenhum indivíduo pode abarcar na totalidade que, pela sua complexidade, é tanto quanto a religião, a religião infinita, que nenhum indivíduo pode abarcar na sua totalidade e na qual ninguém pode ser educado ou criado (lb., IV, p. 125). A infinidade da religião explica e justifica a diversidade de religiões. A religião infinita não pode existir senão na medida em que todas as infinitas intuições religiosas são reais, e reais na sua diversidade e na sua recíproca independência. Todo o indivíduo tem a sua religião; e esta pode integrarse mais ou menos nas religiões já estabelecidas. E ainda que permaneça obscura a intuição de um indivíduo, é todavia sempre um elemento da infinita religiosidade universal (1b., V,
p. 173-74). Mas já não é religião, a religião natural do iluminismo, que é demasiado genédea e descarnada, e cuja substância não passa da polémica contra o elemento positivo e característico da religiosidade. Podemos ver como a lógica intrínseca do princípio do infinito leva Schleiermacher, no domínio da religião, a uma conclusão análoga a que o mesmo princípio tinha levado Hegel no domínio da realidade em geral. A conclusão é a justificação do finito, 261 Dão enquanto finito, mas enquanto é, na sua substância, infinito. Todas as manifestações singulares igualmente se justificam porque exprimem todas o sentimento do infinito e constituem no seu conjunto a religião infinita. Mas enquanto que para Hegel o infinito é razão, ainda que absorvendo e anulando a individualidade, para Schleiermacher o infinito é sentimento e daí exaltar a individualidade. O romantismo está destinado a oscilar entre a negação da individualidade e a sua exaltação, ignorando o equilíbrio da fundação da própria individualidade. Os Monólogos de Schleiermacher (como os Fragmentos de Novalis) constituem neste ponto a exaltação religiosa da individualidade. " Cada homem, afirma ele "Mon., II, trad. ital. p. 231), está destinado a representar a humanidade de um modo que lhe é próprio, mediante uma combinação original dos seus elementos, de forma a que aquela se possa revelar de todas as maneiras e tudo o que pode derivar do seu seio possa realizar-se na plenitude de um tempo e de um espaço ilimitados". A variedade dos indivíduos é necessária à infinita vida da humanidade, porque é a realização da mesma. "Tornar-me cada vez mais naquilo que sou, esta é a minha vontade". Mas tornar-me naquilo que sou significa ser infinitamente livre, e o poder tudo arrasta consigo uma consequência: não se ser o próprio. "A única impossibilidade de que tenho consciência é a de transcender os limites que ponho à minha natureza com o primeiro acto da minha liberdade". Em razão deste limite intrínseco, determinado pela escolha originária de si próprio, o homem pode tudo. Aquilo 262 que a realidade lhe recusa, concede-lhe a fantasia. "Oh, se os homens soubessem usar esta divina faculdade da fantasia, que pode libertar o espírito e colocá-lo acima de todas as limitações e de todas as coacções, e sem a qual a vida do homem é tão mesquinha e angustiante!" (1b., p. 268). E deste modo, o poder e a infinita liberdade do homem se transformam em evasão, tipicamente romântica, do mundo e da realidade, no mundo da fantasia, do romance e da fábula. Vimos como as diversas religiões todas se justificam porque todas no seu conjunto constituem a religião infinita. Schleiermacher distingue três tipos diferentes de religiões, que são determinados por três diversas intuições do mundo. A primeira é aquela com que o mundo é um caos e na qual portanto a divindade surge representada ou numa
forma pessoal como fetiche ou numa forma impessoal como um destino cego. A segunda é aquela em que o mundo surge representado na multiplicidade dos seus elementos e das suas forças heterogéneas, e a divindade é concebida ou sob a forma de politeísmo (religião greco-romana) ou como reconhecimento da necessidade natural (Lucrécio). A terceira forma é aquela em que o ser surge representado como totalidade e unidade do múltiplo, e a consciência da divindade assume a forma de monoteísmo e de panteísmo. Esta última forma é a mais elevada, e os homens tendem a alcançá-la através da história. O judaísmo e o cristianismo são considerados por, Schleiermacher como manifestações superiores de religiosidade. A ideia central do judaísmo 263 é a de "uma retribuição universal imediata, de urna reacção automática do infinito contra qualquer facto particular finito que derive do livre arbítrio, por meio de um outro facto finito não considerado como derivando do livre arbítrio". A ideia central do cristianismo é pelo contrário "a intuição da oposição geral do finito contra a unidade do todo e do modo como a divindade trata esta oposição, do modo como reconcilia a inimizade contra si e põe ter-mo ao afastamento cada vez maior de si mediante pontos particulares, disseminados por toda a parte, e que são no seu conjunto algo de infinito e de finito, de humano e de divino". O cristianismo tende a intuir o infinito na religião e na sua história, e por conseguinte, faz da própria religião a matéria da religião. Ele é essencialmente porque impele continuamente os homens para o infinito e para o eterno. Jesus é portanto o mediador da reconciliação do finito com o infinito. A unidade da natureza divina e da humana existente nele é a própria unidade que a religião realiza entre o finito e o infinito. Sendo superior a todas as outras religiões, o cristianismo não está todavia, segundo Schleiermacher, destinado a observar as outras e a tornar-se a única forma de religião. "Assim como não há nada de mais irreligioso que existir uniformidade na humanidade em geral, também nada existe de menos cristão que procurar uma uniformidade na religião". O desenvolvimento da vida religiosa exige liberdade, e por conseguinte, a separação da Igreja e do Estado. 264 SCHLEIERMACHER § 544. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A DIALÉCTICA Do sistema filosófico que Schleiermacher expõe nos seus cursos universitários e que deixou inédito, as partes mais vivas são a Dialéctica e a Ética. MEW Ir, 1=. MP-- é a de 1822) mostra, por um lado, uma subentendida intenção polémica contra a lógica de Hegel, por outro uma tentativa de reconduzir esta disciplina ao seu originário significado platónico. O estudo dedicado de Platão devia ter sugerido a Schleiermacher esta tentativa, cujos pontos principais são os da refutação do princípio hegeliano da identidade do pensamento e do ser. A dialéctica surge definida por Schleiermacher como a "arte de conduzir um discurso de forma a suscitar representações que sejam baseadas apenas na verdade" (Dialektik, od. Oderbrecht, p.
48). Neste sentido, a dialéctica é mais extensa que a filosofia porque as suas regras têm valor para qualquer objecto, independentemente do seu conteúdo filosófico. Mas por outro lado, a filosofia, na medida em que se ocupa imediatamente dos princípios e da coerência do saber, é necessária à dialéctica e condiciona-a em todos os campos. O carácter que assinala a dialéctica moderna perante a antiga é o da sua religiosidade. Para a dialéctica moderna a unidade e a totalidade do saber só é possível em conexão com a consciência religiosa de um ser absoluto (1b., p. 91). Uma tal consciência é pressuposto originário da dialéctica, que deve partir de uma situação de diversidade e de conflito das representações entre si 265 e que deve alcançar a unidade e a coerência das representações. Mas para prosseguir do seu ponto de partida até ao seu ponto final, da multiplicidade à unidade, do conflito à coerência, deve pressupor um saber originário e regras de combinação originárias, que devem ser admitidas como interiores em todos os homens e que a própria dialéctica deve esclarecer e trazer à luz. Com um tal fundamento a dialéctica tem como fim a construção de todo o saber na sua coerência. Neste objectivo está implícita a eliminação de todo o conflito e a unificação do saber fragmentário num todo coerente. Schleiermacher divide por isso a dialéctica em duas partes: a parte transcendental que diz respeito ao saber originário que é o guia e a norma da construção do saber, e a parte formal que diz respeito a esta mesma construção, ou seja, as operações de divisão e de unificação do pensamento. O transcendental é entendido como condição do processo dialéctico, como saber originário que o encaminha e constitui a norma. Mas o saber possui duas características, uma subjectiva, outra objectiva: é produto comum da razão humana por um lado, e do organismo humano, por outro. A oposição entre estes dois pólos (entre o material orgânico das impressões e a forma da razão) é a oposição entre o real e o ideal. O ser como objecto do pensamento, enquanto está ou pode estar presente em nós através da função orgânica, é o real. O pensamento é o próprio processo a - través do qual o ser se torna interior no que pensa, é o ideal. Ideal e real constituem a 266 unidade do ser (Id., p. 177). Tempo e espaço estão entre si como ideal e real: o ser ideal é o próprio conceito do tempo concreto, tal como o ser real é o conceito do espaço concreto. Como se disse, o saber originário deve ser de qualquer modo a unidade destes dois pólos. Esta unidade é o sentimento (Gefühl) como autoconsciência imediata. Schleiermacher considera o sentimento como identidade do pensar e do querer. Todo o pensamento, considerado como um acto ' se relaciona com um querer porque é sempre vontade de discurso e de comunicação com outros; e todo o querer, se é claro e determinado, tem na sua base um claro e determinado pensamento (Ib., p. 126), Mas a identidade do pensar e do querer é uma contínua passagem de um ao outro, e esta passagem é a pura autoconsciência imediata ou sentimento (lb., p. 287). Enquanto é imediatidade, o sentimento distingue-se do eu, que é autoconsciência reflexa. Enquanto unidade ou coerência e superação de oposições, o sentimento refere-se ao Ser absolutamente uno e coerente que está na base de todo o outro ser. Esta referência é particularmente clara no sentimento religioso, no qual o fundamento transcendente ou ser
supremo encontra a sua representação mais elevada. O sentimento religioso é o sentimento de independência do finito em relação ao infinito, do condicionado em relação ao incondicionado, ou seja. do ser dilacerado e eternamente em conflito em relação ao ser uno e perfeitamente coerente (1b., p. 298 sgs.). o sentimento religioso é o reflexo do Ser. Schleiermacher recusa a tese hegeliana (sem 267 referir expressamente) de que a mais alta representação do fundamento transcendente do ser seja a filosofia. Mas, por outro lado, também se recusa a subordinar a actividade especulativa à religião. As duas actividades são complementares, porque a autoconsciência ou sentimento imediato não existe por si, é sempre condicionada pelas duas outras funções do pensar e do querer. A autoconsciência não subsiste na sua pureza, daí a sua impossibilidade de realizar a pura representação do fundamento transcendente, porque é sempre autoconsciência finita, deve encontrar o seu complemento nas funções finitas do pensar e do querer. A análise da autoconsciência como tal é a doutrina da fé: mas dada a natureza da autoconsciência, esta doutrina jamais consegue alcançar o fundamento transcendente e acaba por cair sempre no antropomorfismo. "Em todas as doutrinas da fé, sejam monoteístas, sejam poiliteístas, domina uma mescla inextrincável do fundamento transcendente e de uma analogia com a consciência humana. Este antropomorfismo tem o seu fundamento na consciência do finito com o qual a autoconsciência se encontra misturada" (1b., p. 296-297). Quanto à natureza do fundamento transcendente, este tem um valor duplo: um valor real enquanto ideia do mundo, totalidade do ser, que pode assumir ou a forma de conceito (força absoluta e plenitude absoluta dos fenómenos) ou a forma de juizo (sujeito absoluto e absoluta multiplicidade dos predicados); e um valor aproximativo e simbólico, enquanto exprime o próprio fundamento transcendente, ainda que nunca de forma adequada (sentimento ou autoconsciência). 268 Daqui resulta que o fundamento transcendente pode assumir ou a forma da ideia de Deus ou a forma da ideia do mundo: mas qual é a relação entre estas duas ideias? Schleiermacher recusa-se a estabelecer uma relação de dependência, que está implícita no conceito de criação. "Não há Deus sem mundo, como não há mundo sem Deus", diz ele (1b., p. 303). Lógicamente poder-se-ia dizer que Deus é "unidade com exclusão de toda a oposição", mas esta fórmula deixaria de fora o x porque o mundo não pode existir sem Deus e Deus sem o mundo. Com efeito, se Deus tivesse preeminência sobre o mundo é porque haveria nele algo que não concUdonaria o mundo; e se o mundo tivesse preeminência sobre Deus é porque haveria naquele algo que não estava condicionado por Deus. A conclusão é de que a ideia do mundo e a de Deus devem estar sempre conexas; e só nesta conexão valem como fundamento transcendente e por conseguinte como norma absoluta do saber. A ideia do mundo é o terminus ad quem do saber que procura adequar-se àquela no seu infinito processo. A ideia de Deus é o terminus a quo do pensamento que deve reconhecer como fundamento toda a realidade temporal e espacial um
ser eterno. "0 fundamento transcendente permanece sempre fora do pensamento e do ser real, ainda que seja o fundamento transcendente de ambos. Por isso não pode existir outra representação desta ideia que não seja a da imediata autoconsciência: em ambas as formas da função do pensamento, aquela jamais poderá ser alcançada, nem como terminus ad quem nem como terminus a quo" (Ib., p. 307). 269 Nesta parte transcendental da dialéctica, Schleiermacher pretendeu determinar a primeira condição do saber humano e reconheceu-a num fundamento transcendente que surge representado, na sua forma mais adequada, pelo sentimento. Depois de longa explanação, acaba por confirmar assim a tese fundamental dos Discursos e dos Monólogos; mas esta tese adquire também uma limitação importante. Se o sentimento religioso ou autoconsciência é a unidade do finito com o infinito, ela só é na forma do finito, e não do infinito. A polémica com Hegel levou-o provàvelmente a esta limitação. A dialéctica de Schleiermacher não conduz, corno a de Hegel, à dissolução do finito, mas antes à determinação de uma representação finita, religiosa, do infinito. Daí a definição do sentimento religioso como sentimento de dependência. A parte formal da Dialéctica considera o pensamento no seu devir, o pensamento em movimento, enquanto se socorre da ideia de mundo e de Deus como d-. um princípio construtivo do saber. Esta parte da Dialéctica subdivide-se em duas outras partes que são: a construção de um pensamento em si e por si através de conceitos e juízos; a combinação de um pensamento com outros pensamentos, através da eurística e da arquitectónica. A eurística é a combinação com o exterior de um pensamento dado com outros pensamentos dados; a arquitecitóritica é uma combinação com o interior, é a redução de uma multiplicidade à unidade, a construção de uma ordem. Esta segunda parte da Dialéctica de SchIeier270 macher teve uma influência importante nas pesquisas lógicas e gnoseológicas dos neokantianos. § 545. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A ÉTICA A ética de Schleiermacher é de inspiTaÇão kantiana: move-se no âmbito do finito e precisamente na posição entre o ser espiritual e o ser natural, o primeiro interpretado como ser cognoscente, o segundo como ser conhecido (Ethik, ed. Schiele, p. 8). A actividade ética é a que tende a superar esta <>p~o e a realizar a unidade. Consiste na acção da razão, no sentido de produzir a unidade da natureza e do espírito que sem esta acção não seria possível; ela é ao mesmo tempo uma acção da razão sobre a natureza e traduz-se numa naturalização, sempre iniciada e nunca totalmente conseguida, da própria razão. Daqui resulta que a pura razão e a vida puramente espiritual ou santa não entram no domínio da ética, que apenas diz respeito à razão natural e à vida que luta sobre a terra (1b., p. 15). Segundo este ponto de vista a antítese, recolhida em Kant, entre natureza e liberdade, atenua-se até desaparecer. "No domínio do ser, tudo é ao mesmo tempo livre e necessário: livre enquanto há identidade e unidade de forças e manifestações; necessário, enquanto forças e manifestações se distinguem" (1b., p. 18). Esta conexão entre liberdade e necessidade veriflica-se no próprio campo da ética, que por isso não se opõe
como domínio da liberdade ao domínio da necessidade natural. 271 Schleiermacher admite um paralelelismo perfeito entre a física e a ética. A ética é a representação do ser finito sob o poder da razão, a física a representação do ser finito sob o poder da natureza: a oposição é apenas relativa ao ser finito, mas absolutamente, ou seja, no completo desenvolvimento das duas ciências, a ética é física e a física é ética (1b., p. 6 1). Daqui não deriva no entanto uma anti-razão, um antideus, e a oposição entre o bem e o mal é sempre relativa. "0 bem e o mal, afirma Schleiermacher (Ib., p. 63), não exprimem mais que os factores positivos e negativos no processo de unificação entre a natureza e a razão, e por isso não podem ser compreendidos senão através da pura e completa representação desse processo". Como já acontecera nos Monólogos, Schleiermacher defende na Ética o valor da personalidade individual. A razão existe apenas na forma da personalidade; por isso "a razão que se encontra completamente unida à personalidade é a força elementar de que resulta o processo ético em toda a sua totalidade" (Ib., p. 67). A ética pode ser considerada segundo três pontos de vista que são também aqueles sob os quais ela sempre se apresentou historicamente, como doutrina, do bem, doutrina da virtude e doutrina do dever. O bem supremo é a unificação total da natureza com a razão, e os bens particulares são os resultados desta unificação. A virtude é a função da natureza humana que se tornou força racional. O dever é o conceito da acção moral. A acção da razão sobre a natureza pode ser ou organizadora e formativa ou simbólica. No primeiro 272 caso dá lugar ao domínio das relações comerciais e sociais, no segundo caso ao domínio do pensamento e do sentimento. Assim surgem as quatro éticas fundamentais: direito, sociabilidade, fé e revelação; a que correspondem os quatro organismos éticos: estado, sociedade civil, escola e igreja, ~smos que têm na família o seu princípio comum. A tude aparece considerada em Schleiermacher o ponto de vista da intenção e o da e os deveres aparecem divididos em amor e deveres de direito. deveres .'Á Z~ e deveres de consciência- Mas estas &~,a o" sificações puramente escolástica de Schleiermacher não apresentam senão um escasso interesse. NOTA BIBLIOGRÃFICA § 5,38. sobre o romantismo: R. Haym, Die romantische Schule, Berlim, 1870, 4.a ed. ao cuidado de
O. Walzei, 1920; J. H. Schlege@l, Die Neuc RonwntW in ihreM Entstehen und ihrem Beziehungen zur Fichtschen Philosophie, Rastatt, 1862-64; W. DiltheY, Die Erlebnis und die Dichtung. Lessing, Goethe, Novalis, H61derlin, Leipzig, 19(>6, trad. iW. N. Accolti Gil VItale, Milão, 1947; O. WaJzel, Deutsche Romantik, trad- ital. Sa,ntoli, Florença, s. d.; A. ParinClUi, II romant~O in Germania, Bari, 1911; M. Deutschboin, Das Wesen des Romantischen, Gothen, 1921; G. stefansky, Das Wesmi der deutschen Romantik, Stuttgart 1923; N. Hartn~, Di,e Philosophie des deutschen IrealiSMUS, Berlim, 19-23; A. Korff, in "Studi germanici", 1937, fase. 4.'. § 539. Hõ~lin, SãmNiche Werke, ed. 1-101lingrath, Munique, 1913; ed. Zinkernagel, Leipsig, 1914; Hi~ne, trad. itaL Altero, Turim, 1931. 273 Dilthey, Die Erlebnis und die Dichtung, cit.; G. V. Amoretti H., Turim, 1926; E. Fischer, H., Berlám, 1938; i. Hoffmeister, H. und die Philosophie, ~ig, 1912. § 540. F. Sehlegel, Sãmtliche Werke, 10 vols., Viena, 1822-25; 15 vols., Viena, 1864; Seine prosaischen Jug~chriften, ed. 1~r, Viena, 1822; Briefe, ed. Walzel, Berlim, 1890; Neue philos. Schiften, ed. Kurner, Frankfurt, 1935; Fragmenti critici e scritti di estetica, intr. e trad. Santoli, Florenç a, 1937. F. Lede-rbogen, F. SeUs [email protected], Leipzig, 1908; J. Rouge, F. SchI, et Ia genèse du romantisme allemand, Bordeaux-Paris, 1905; H. Hrowitz, Das Ich-Problem der Romantik; die historische Ste"ng P. Sch1.s innerhalb der modernen G-eistgeschischte, Muniquo% 1916. § 541. Novalis, Schriften, ed. Mnor, 4 vols., Jena, 1907; 1 discepolí di Sais, trad. de Alfero, Lanciano, 1912; Fram77wnti, tra@d. Prezzolini, Laneiano, 1922; Frammmti, trad. Prezzolini, Lanciano, 1922; Frammenti, trad. integ. de E. Paci, Milão, 1948. - Dilthey, Die Erlebnis und die Dichtung, cit.; E. Spenlé, Novalis, essai sur Vídéalisme romantique en Allemagne, Paris, 1904. § 542. SchIetermacher, Werke, Berlim, 1835-64, dividida em três partes: Escritos teológicos, Prédicas e Escritos filosóficos, este últinio compreendendo 9 vo!s.; Grun4riss der philosophischen Ethik, ed. Schiele, Leipzig, 1911; Dialektik, ed. Odebrecht, Leipzig, 1942; Discorsi sulla religione e monologhi, trad. Durante, Morença, 1947. Dilthey, Leben Schl.s Berlim, 1870; Selú., in "AlIge- ~e 1890.
deutseh@ Biographie", XXXI,
§ 543. Troeltseh, Titius, Natorp, Hensel, EcIr, Rade, Sch1. der Philosophe des Glaubens, Rerlim, 1910. § 544. Weissenborn, Vorlesungen über Sch.s Dialektik und Dogmatik, Leipzig, 1847-49; Lipsins in "Zeit- .<@ehirjt für wissenschaftliche Theologie", 1869. 274 § 545. Heinrich, Sch.s ethische Grundgedanken,
1890; Ungem Stemberg, Frei7?,eit und Wirklichkeit, Schl.s Philosophie, 1931; Odebrer-ht, Sch1.s System der Aesthetik, 1931; Croce, Storia delllestetica per saggi, Paris, 1942. 275 íND1CE XM_O ILUI~MO
... ... ... ... ... ...
7
§ 500. o ihmibúsmo em Náp~ ... ... 7 § 501. O iLuminismo em mIão 14 § 502. Beccaria ... ... ... ... ... ... 16 § 503. Romagnosi, Giola ... ... ... ... Nota bibliogrãfica ... ... ... ...
... ... 20
23
XIV - O ILUM=SMO ALEMÃO
... ... ...
25
§ 504. WoafC ... ... ... ... ... ... 25 § 505. Precursores do iluminismo ... ... 33 § 506. o iluminismo Wolffiano ... ... 36 § 507. B=garten ... ... ... ... ... 42 § 508. O ilunúnisino religioso ... ... ... 46 § 509. Lessing ... ... ... ... ... ... 50 Nota bibliogrãfica ... ... ... ... xv - KA=
55
... ... ... ... ... ... ... ...
57
§ 510. A Vida ... ... ... ... ... ... 57 § 511. os ~tos do primeiro período512. os egeritos do segundo período, 64
61 §
277 3. 4. 5. 6.
Os escritos do período crItico@_ 73 . A filIDSOfia Critioa' ... ... ... ... 79 @'A análise tranq~elta, ... ... 83 IA critica da raz ão pura ... ... 89 r. As formas da s~bilidade
... ...
93
As categorias e a lógica, fornia@ 95 A de dução transaendental . ... ... 9 A dedução t@anscendeIItaJ das categorias ... ... ... ... ... ... 103 A analítica dos princípiGs ... ... 115 O númeno ... ... ... ... ... 120 *-A,,' dialéctica transcendental 128 A 6utrina. transcendentEW do mé_@ todo ... ... ... ... ... ... 137 'Analítica, da razão prática: moralidade e santidade ... ... ... 141 Diajéctica da 'razão prática: postulado e fé moral ... ... ... ... 156 O mundo, do direito e da história 163 O juízó estético ... ... ... ... 169 O juiz, tel@P_ol6gic0 ... ... .... ... 179 A natureza do homem e o mal radical ... ... ... ... ... ... 184 Relligião, Razão, Liberdade ... ... 189 Nota bibliográfica ... ... ... ... 194 278 SEXTA PARTE A FILOSOFIA DO ROMANTISMO I_A POInmICA SOBRE O KANTISMO, 201
§ 532. Reinhold ... ... ... ... ... ... 201 § 532. Prenúncio do idealismo ... ... 205 § 534- A filosofia da fé ... ... ... ... 211 § 535. Jacobi ... ... ... ... ... ... 217 § 536. O "Stunn und Drang". Schialer. Goethe
... ... ... ... ... ... 222 § 537. Humboldt ... .... ... ... ... ... 230
Nota bibliográfica ... ... ... ... 234 II - O ROMANTISMO
... ... ... ... ... 239
§ 538. Origens e caracteres do romantismo ... ... ... ... ... ... 239 § 539. Hõlderlin ... ... ... ... ... ... 245 § 540. SchIegel ... ... ... ... ... ... 247 § 541. Novalis ... ... ... ... ... ... 251 § 542. Schleierniacher ... ... ... ... 254 § 543. Schleiermacher: a Doutrina da Religião ... ... ... ... ... ... 256 § 544. Schleiermacher: a Dialéctica Schleiermacher: a ]@tica ... ... 269 Nota bibliográfica ... ... ... ... 271 279
HistÓria da Filosofia Volume nove Nicola A bbagnano Digitalização e Arranjos: Ângelo Miguel Abrantes (quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003) HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME IX TRADUÇÃO DE: ARMANDO DA SILVA CARVALHO CAPA DE: J. C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
... 263 § 545.
TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa t97o TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILDSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. R. Augusto Gil, 2 cIE. Lisboa 111 FICHTE § 546. FICHTE: A VIDA Johann Gottlieb Fichte nasceu em Rammenau a 19 de Maio, de uma família paupérrima. Concluiu os estudos de teologia em Jena e em Leipzig, lutando com a miséria. Mais tarde, tornou-se perceptor em diversas casas particulares, tanto na Alemanha como em Zurich, onde conheceu Johanna Rahn que depois foi sua mulher (1793). Em 1790, Fichte regressou a Leipzig e nesta cidade tomou contacto pela primeira vez, com a filosofia de Kant que irá decidir da sua formação filosófica. "Vivo num mundo novo, escrevia entusiasmado numa carta, depois que li a Crítica da Razão Prática. Os princípios que julgava inconfundíveis foram desmentidos; as coisas em que não acreditava passaram a ser demonstradas; por exemplo, o conceito de liberdade absoluta, de dever, etc., foram demonstrados e por isso me sinto muito mais contente. É inconcebível o respeito pela humanidade, a força, que existe neste sistema". Um ano depois, em 1791, Fichte dirige-se a Koenigsberg para dar a ler a Kant o manuscrito da sua primeira obra, Tentativa de uma crítica de toda a revelação. O trabalho foi escrito inteiramente dentro do espírito do kantismo, de, tal modo que, quando surgiu, anónimo, em 1792, passou por ser um trabalho de Kant. Então Kant intervém para revelar o verdadeiro nome do autor. Mas ainda em 1791, em Danzig, Fichte, que procurava defender as medidas do governo prussiano que limitavam a liberdade de imprensa e instituíam a censura, teve a surpresa de ver recusado o imprimatur à edição da sua obra: e meses mais tarde foi também proibida a publicação da segunda parte de A religião dentro dos limites da Razão de Kant. Indignado, Fichte passou imediatamente da defesa do regime paternalista à defesa da liberdade; e publicava, anónima, uma Reivindicação da liberdade de pensamento (1793). Em 1794, Fichte é nomeado professor em Jena e aí permanece até 1799. Pertencem a este período as obras a que se deve a importância histórica da especulação de Fichte (Doutrina da Ciência, Doutrina da moral, Doutrina do direito). Em 1799, desencadeou-se a chamada "polémica sobre o ateísmo" que iria provocar o afastamento de Fichte da cátedra. Na sequência de um artigo publicado, no "Jornal filosófico" de Jena, Sobre o fundamento da nossa crença no governo divino do mundo (1798), que
identificava Deus com a ordem moral do mundo, Fichte foi acusado de ateísmo num libelo anónimo. O governo prussiano proíbe o jornal e encarrega o governo de Weimar de punir Fichte e o director do Jornal Forberg, com a ameaça de que, se não o g fizesse, proibiria os seus súbditos de frequentar a Universidade de Jena. O governo de Weimar pretendia que o Senado académico formulasse uma enérgica censura, pelo menos formal, contra o director do Jornal. Mas Fichte, tendo conhecimento deste projecto, escrevia a 22 de Março uma carta inflamada * um membro do governo, advertindo-o de que se * censura fosse formulada ele se retiraria da Universidade acrescentando ainda que em tal caso também outros professores abandonariam com ele a Universidade. Depois desta carta o governo de Jena, com o parecer favorável de Goethe (que, segundo se diz, teria afirmado: "quando um astro desaparece, um outro nasci convidou Fichte a pedir a sua demissão, não obstante o filósofo ter lançado entretanto um Apelo ao público e não obstante uma petição dos estudantes a seu favor. Os outros professores continuaram a ocupar os seus lugares. Saindo de Jena, Fichte dirigiu-se a Berlim onde estabeleceu relações com os românticos, Friedrich Schlegel, Schleiermacher, Tieck. Designado professor em Erlangen, em 1805, retirou-se para Koenigsberg no momento da invasão napoleónica e daí passou a Berlim onde pronunciou, apesar da cidade se encontrar ocupada pelas tropas francesas, os Discursos à nação alemã (1807-8) nos quais apresentava, como meio de a nação germânica sair da servidão política, uma nova forma de educação e afirmava o primado do povo alemão. Em seguida, Fichte foi professor em Berlim e reitor daquela Universidade. Morreu em 29 de Fevereiro de 1814 com uma febre infecciosa que a mulher lhe transmitiu e que esta tinha contraído quando tratava dos soldados feridos. A característica da personalidade de Fichte é constituída pela força com que ele sente a exigência das acções morais: O próprio Fichte diz de si: "Tenho apenas uma única paixão, uma só necessidade, um só sentimento cheio de mira mesmo: agir para além de mim. Quanto mais ajo, mais me sinto feliz". O primado da razão prática transforma-se em Fichte no primado da acção moral; e a justificar a acção moral como superação incessante do limite criado ao mundo sensível, se dirige toda a primeira fase do seu pensamento. Na segunda fase, toda a exigência da acção moral se substitui pela fé religiosa; e a doutrina da ciência acaba por servir de justificação da fé. Mas de uma ponta à outra da sua especulação e na própria fractura doutrinal que esta especulação apresenta nas suas fases principais, Fichte surge como uma personalidade ético-religiosa, não isenta de um certo fanatismo. "Fui designado, afirma em Werke, VI, p. 333, para dar testemunho da verdade... Sou um padre da verdade; estou ao seu serviço, obriguei-me a fazer tudo, a arriscar tudo, a sofrer tudo por ela". Mas nessa aventura, Fichte não admite de forma alguma aquela humildade e aquela consciência dos limites humanos que, segundo Kant, são indispensáveis à vida moral. Daí o ter sido censurado (por exemplo, por Hegel,
10 Carta a Schelling de 3 de Jan. de 1807) de camuflar com palavras de um ideal moral incorruptível, os próprios impulsos egoístas e o desmesurado orgulho; e esta censura não deixa de ser merecida. O certo é que o apelo ao ideal moral dificilmente consegue dissimular nele a deficiência de uma verdadeira compreensão humana e moral: como acontece quando, por ocasião de uma grave doença da mulher que ele havia abandonado com o filho em Berlim durante a invasão francesa, lhe aponta o facto de ela não ter cumprido o dever moral de se precaver contra a doença (Cai-ta a Johanna de 18 de Dez. 1806 em Briefwechsel, p. 477). § 547. FICHTE: ESCRITOS A vocação filosófica de Fichte surgiu, como já foi dito, do contacto com os textos de Kant. Mas Fichte pouco seguiu os ensinamentos do mestre. Kant pretendera construir uma filosofia do finito; Fichte quer construir uma filosofia, do infinito: do infinito que existe no homem, que é também o próprio homem. A influência kantiana pode discernir-se apenas no primeiro período da sua actividade literária: período a que pertencem a Procura de uma crítica de todas as revelações (1793), a Reivindicação da liberdade de pensamento aos Príncipes da Europa que até agora têm oprimido (1792), o Contributo para a rectificação do juízo do público sobre a revolução francesa (1793), e poucos escritos menores. A Crítica de todas as revelações foi escrita inteiramente dentro do espírito kantiano. A 11 revelação é possível, mas não é demonstrável, e por conseguinte só pode ser objecto de uma fé, que no entanto não deve faltar a ninguém. Mas a separação do kantismo é já nítida na Recensão ao Enesidemo, de Schulze, que Fichte publicou em 1794. Nela afirma que a coisa em si é "uma fantasia, um sonho, um não pensamento", e estabelece os princípios da sua doutrina da ciência. A esta recensão segue-se um longo ensaio Sobre o conceito da doutrina da ciência ou da chamada filosofia (1794) e a obra fundamental deste período Fundamentos de toda a doutrina da ciência, que Fichte publicou como "manuscrito para os seus auditores" no mesmo ano de 1794. Seguiram-se: Esboço sobre as propriedades da doutrina da ciência em relação às faculdades teoréticas (1795); Primeira introdução à doutrina da ciência (1797); Tentativa de uma nova representação da doutrina da ciência (1797); que são exposições e reelaborações mais breves. Ao mesmo tempo Fichte estendia os seus princípios ao domínio da ética, do direito e da política; e publicava, em 1796, os Fundamentos do direito natural segundo os princípios da doutrina da ciência; em 1798 o Sistema da doutrina moral segundo os princípios da doutrina da ciência; em 1800 o Estado comercial fechado; e alguns escritos morais menores: Sobre a
dignidade dos homens (1794), Lições sobre a missão do sábio (1794). Entretanto Fichte ia alterando lentamente os pontos fundamentais da sua filosofia, o que se verificava através da exposição da doutrina da ciência que dava nos cursos universitários de 1801, 1804, 12 1806, 1812, 1813; nos seus cursos sobre Os factos da consciência (1810-11, 1813) e nas suas reelaborações do Sistema da doutrina do direito (1812) e Sistema da doutrina moral (1812). Estes cursos e lições mantiveram-se inéditos e foram publicados pelo filho (1. G. Fichte) depois da sua morte. No entanto, a orientação que os mesmos apresentavam é semelhante à das exposições populares da sua filosofia, que Fichte publicou ao mesmo tempo que as escreveu: A missão dos homens (1800), Introdução à vida feliz (1806), Características fundamentais da época actual (1806). § 548. FICHTE: A INFINITUDE DO EU Kant tinha Reconhecido no eu penso o princípio supremo de todo o conhecimento. Mas o eu penso é um acto de autodeterminação existencial, que supõe já dada a existência; é, por conseguinte, actividade ("espontaneidade" afirma Kant), mas actividade limitada e o seu limite é constituído pela intuição sensível. Na interpretação dada ao kantismo por Reinhold surge o problema da origem da matéria sensível. SchuIze, Maimon e Beck demonstraram ser impossível a sua derivação da coisa em si e afirmaram ser quimérica a própria coisa em si enquanto exterior à consciência e independente dela. Maimon e Beck tinham já tentado atribuir à actividade subjectiva a produção do material sensível e resolver no eu o mundo total do conhecimento. Fichte desenvolve pela primeira vez as Consequências destas premissas. Se o eu é o único 13 princípio, não só formal como também material do conhecer, se à sua actividade se deve não só o pensamento da realidade objectiva, mas a própria realidade objectiva no seu conteúdo material, é evidente que o eu é não apenas finito mas também infinito. Se é finito enquanto a ele se opõe uma realidade exterior, é infinito enquanto é a única ordem dessa mesma realidade. A sua infinita actividade é o único princípio que pode explicar a realidade exterior, o eu finito, e a contraposição entre um e outra. Tal é o ponto de partida de Fichte, o filósofo da infinitude do eu, da sua absoluta actividade e espontaneidade, e por conseguinte, da sua absoluta liberdade. A dedução de Kant é uma dedução transcendental, destinada a justificar a validade das condições subjectivas do conhecimento. A dedução de Fichte é uma dedução metafísica, uma vez que faz derivar do eu quer o sujeito quer o objecto do conhecer. A dedução de Kant dá origem a uma possibilidade transcendental (assim se explica o eu penso) que implica sempre uma relação entre o eu e o objecto fenoménico. A dedução de Fichte parte de um princípio absoluto que situa ou cria o sujeito e o objecto fenoménico por virtude de uma actividade criadora, de uma intuição intelectual. E assim a intuição intelectual, excluída por Kant como incompatível com os limites constitutivos do intelecto humano, surge reconhecida por Fichte como princípio supremo do saber. A Doutrina da ciência tem como
objectivo deduzir deste princípio todo o mundo do saber e de o deduzir necessariamente, de forma a criar o sistema único e completo do mesmo. No 14 entanto não deduz o próprio princípio da dedução, que é o eu. E o problema com o qual choca é o que se refere à natureza do eu. As sucessivas elaborações da Doutrina da ciência diferenciam-se substancialmente na relação que estabelecem entre o infInito e o homem. Na primeira Doutrina da ciência (1794) e nas obras que com ela se relacionam, o infinito é o eu, a autoconsciência, o saber reflexo ou filosófico ou, numa palavra, o homem na pureza e no grau absoluto da sua essência. Nas obras sucessivas, o infinito é o Ser, o Absoluto é Deus e o eu, a autoconsciência, o saber tornado imagens, cópias ou manifestações do mesmo. Estas duas fases do pensamento de Fichte constituem as duas alternativas fundamentais que a filosofia romântica apresenta em todo o século XIX. Hegel sintetizou-as na sua doutrina; mas o mais frequente é contraporem-se polemicamente na obra de um único filósofo ou na obra de vários filósofos. Fora da filosofia alemã, é a segunda alternativa que prevalece no desenvolvimento sofrido pelo pensamento romântico em Oitocentos. Mas quer uma quer a outra destas alternativas são dominadas pelo espírito da necessidade: tanto o Eu ou o Absoluto como as suas manifestações ou aparências, são necessários. Fichte exprimiu este principio numa passagem que vale a pena recordar: "O que quer que seja que existe, existe por absoluta necessidade; e existe necessariamente na precisa forma em que existe. É impossível não existir ou existir de modo diverso daquele que é" (Grundzuge des gegenwartigens Zeitalters, 9). 15 § 549. FICHTE: A DOUTRINA DA CIÊNCIA E OS SEUS TRÊS PRINCIPIOS O conceito da Doutrina da ciência é o de uma ciência da ciência, de uma ciência que evidencie o princípio em que se baseia a validade de toda a ciência e que por sua vez se baseie, quanto à sua validade, sobre o mesmo princípio. E isso deve dar origem a um princípio que actua em toda a ciência e a condiciona, mas que na Doutrina da ciência surge como objecto de uma livre reflexão e encarado como único princípio de que deve ser deduzido todo o saber. "Nós não somos legisladores, somos historiadores do espírito humano", diz Fichte (Ueber den Begriff der Wiss., Werke, 1, p. 77). O princípio da doutrina da ciência é o eu ou autoconsciência. Na Segunda introdução à doutrina da ciência (1797) Fichte introduz de forma mais clara este princípio. Daquilo que tem valor objectivo nós dizemos que é; o fundamento do ser é portanto a inteligência, desde que não se trate do ser em si, de que fala o dogmatismo, mas apenas do ser para nós, do ser que tem para nós valor objectivo. O que baseia e o que é baseado, são duas coisas distintas. O fundamento do ser não é o próprio ser, mas a actividade pela qual o ser é baseado; e esta actividade não pode ter outra relação que não seja consigo própria e não pode ser senão uma actividade que regressa a si própria. Trata-se de uma actividade originária que é no
seu conjunto o seu objecto imediato, e que se intui a si própria. É portanto uma autointuição ou autoconsciência. O ser para nós 16 (o objecto) só é possível sob a condição da consciência (do sujeito) e esta apenas sob a condição {Li autoconsciência. A consciência é o fundamento d.) ser, a autoconsciência é o fundamento da consciênc@1@ (Werke, 1, 1, p. 463). A primeira Doutrina da ciência é a tentativa sistemática de deduzir do princípio da autoconsciência a vida teorética e prática do homem.. Fichte começa por estabelecer os três princípios fundamentais desta dedução. O primeiro princípio '@ obtido da lei da identidade, própria da lógica tradicional. A proposição A é A é certíssima, apesar de nada nos dizer sobre a existência de qualquercoisa. Isso significa apenas que um conceito é idêntico a si próprio ("o triângulo é triângulo") e exprime uma relação absolutamente necessária entre o sujeito e o predicado. Ora esta relação é função do eu, pois, é o eu que julga sobre tal. Mas o eu não pode estabelecer essa relação, se não se implicar a si próprio. ou seja, se não se colocar como existente. A existência do eu tem por conseguinte a mesma necessidade da relação puramente lógica A = A. Isto quer dizer que o eu não pode afirmar nada sem afirmar em primeiro lugar a própria existência; e que autoconsciência é o princípio de todo o conhecimento. Daqui extrai Fichte a explicação da palavra eu. enquanto designa o sujeito absoluto: "Aquilo eu, ser (essência) consiste apenas em colocarse como existente, é o eu como absoluto sujeito" (Wiss., 1, 1; Werke, 1, p. 97). O eu não é mais que pura actividade autoprodutora ou autocriadora; e isso é, identificado por Fichte com a Substância de Espinosa. 17 a quem Fichte apenas censurava o ter colcado a consciência pura para lá da consciência empírica, apesar de aquela ser colocada e reconhecida própriamente nesta última (1b., p. 100-101). O eu de Fichte não é senão uma actividade criadora e infinita, reconhecida como intrínseca à própria consciência finita do homem. O segundo princípio é o da oposição. O eu não só se coloca a si próprio como também opõe a si próprio algo que, enquanto lhe é oposto, é não-eu (objecto, mundo, natureza). O nãoeu é colocado pelo próprio eu e existe por conseguinte no eu. Mas isso não absorve totalmente o eu, mas só em parte, isto é, limita-o. Uma parte do eu é destruída pelo nãoeu; mas nunca o eu na sua totalidade. Assim surge o terceiro princípio: o eu opõe, no eu, ao eu divisível, um não-eu divisível. Estes três princípios delineiam os pontos fundamentais da doutrina de Fichte, uma vez que estabelecem: U-A existência de um Eu infinito, actividade absolutamente livre e criadora. 2.'-A existência de um eu finito (porque limitado pelo não-eu), a existência de um sujeito empírico (o homem como inteligência ou razão). 3.o A realidade de um não-eu, de um objecto (mundo ou natureza) que se opõe ao eu finito, mas que é integrado no Eu infinito, pelo qual é colocado. Ora o Eu infinito não é uma coisa diferente do eu finito: é a sua substância, a sua actividade última, a sua natureza absoluta. "O eu de cada um é ele próprio a única substância suprema", diz Fiohte (lb., I, § 3; p. 122) referindo-se à doutrina de Espinosa. Reconhece-se e afirma-se 18 no sentimento de uma plena e absoluta liberdade e autonomia do sujeito humano.
Na Primeira introdução à doutrina da ciência (1797), Fichte estabelece a diferença entre o dogmatismo pelo qual a coisa precede e condiciona o eu, * o críticismo pelo qual o eu precede e condiciona * coisa, como uma diferença de inclinação e de interesse que determina a diferença entre dois graus de humanidade. Existem homens que não se elevaram ainda ao sentimento da própria liberdade absoluta e por isso se descobrem apenas nas coisas, determinando a própria autoconsciência pelo reflexo dos objectos externos, como se se tratasse de um espelho; estes são dogmáticos. Mas aquele que, pelo contrário, toma conhecimento de si como sendo independente do que existe fora dele, não tem necessidade da fé nas coisas porque a fé em si próprio é imediata. Este é o idealista"A escolha de uma filosofia, observa a este propósito Fichte, depende do que se é como homem, pois um sistema filosófico não é uma coisa inerte que se pode pegar ou largar sempre que se quer, é algo animado com o espírito do homem que o possui. Um carácter fraco de natureza ou enfraquecido pelo que é superficial, pelo luxo refinado e pela escravidão espiritual, jamais poderá atingir o idealismo". Por outro lado, no entanto, o não-eu não é uma mera suposição. O objecto é uma realidade, ainda que seja tal em virtude do eu.
uma determinação recíproca": um conceito que se mantém fundamental na especulação romântica e que foi assumido por Hegel como determinação do carácter próprio da dialéctica. Na representação, é o próprio eu que se coloca como determinado por um não-eu; esta posição é uma passividade ou limitação inerente à actividade do não-eu. Com efeito, o eu é determinado (por conseguinte finito e passivo perante o não-eu), precisamente enquanto finito: a sua infinitude consiste em determinar-se, em estabelecer um limite, e em proceder incessantemente para lá desse limite. "Sem infinitude não existe limitação; sem limitação não existe infinitude; infinitude e limitação estão unificadas num único e mesmo termo sintético. Se a actividade do eu não procedesse para o infinito, o eu não poderia limitar esta sua actividade; não existiriam limites, como devem existir. A actividade do eu consiste num colocar-se ilimitadamente; e contra tal surge uma resistência. Se cedesse a esta resistência, então aquela 21 actividade que ultrapassa os limites da resistência seria aniquilada e destruída e o eu não poderia resistir. Mas isso deve certamente colocar-se para além desta linha" (Ib., 11, § 4; p. 214). Esta actividade através da qual o eu é ao mesmo tempo finito e infinito, porque coloca um objecto e ao mesmo tempo procede paira lá do mesmo na ~o de um outro objecto, ou seja na direcção de uma limitação que de novo irá superar, e assim por diante, é a imaginação produtiva pela qual nascem as coisas do mundo. "Toda a realidade - o que para nós significa o que significa num sistema de filosofia transcendental é produzida apenas pela imaginação" (Ib., p. 227). O produto flutuante da imaginação surge fixado pelo intelecto e assim é verdadeiramente intuído como real: por isso surge ao intelecto como qualquer coisa de dado. "Daqui, anota Fichte, deriva a nossa firme convicção da realidade das coisas fora de nós e sem qualquer intervenção nossa: com efeito, nós não somos conscientes de podermos produzi-las. Se na reflexão comum nós fôssemos conscientes, como certamente podemos sê-lo na reflexão filosófica, de que as coisas exteriores surgem no - intelecto apenas par intermédio da imaginação, então pretenderíamos explicar tudo como ilusão" (1b., p. 234). Se a actividade do não-eu constitui a representação, isto é, o conhecimento em geral, a actividade do eu sobre o não-eu constitui a acção moral. A acção moral é, com efeito, a causalidade do eu, que é própria da sua infinitude. Enquanto o eu opõe a si um não-eu, está a limitar-se, e torna-se finito e sujeito à acção do não-eu que nele produz a 22 representação. Como tal, o eu é inteligência. Mas enquanto considerado na sua infinitude, nada existe fora do eu e tudo é colocado por ele. Neste sentído a sua actividade é infinita: não coloca nenhum objecto, e regressa a si próprio (Ib., 111, § 5; p. 256). Ora esta actividade livre e limitada do eu deve ela própria reclamar a actividade finita e limitada que coloca o
objecto. Pois se a não reclamasse, eliminá-la-ia do todo: com efeito eliminaria todo o limite e toda a passividade, e não existiria no eu qualquer oposição do não-eu. Mas isto só acontece com a consciência de Deus (que é impensável) não com a do homem (1b., p. 253). Por conseguinte, a própria infinitude do eu deve implicar a exigência, da posição do nãoeu, de um objecto que o limite. O eu, para se realizar na suainfinitude, deve descobrir-se na resistência que o objecto lhe opõe e dar lugar assim a um esforço. Mas o esforço que tende a reconduzir o objecto (a natureza) à pura actividade do eu, ao triunfo deste e à afirmação do poder da razão, é a actividade moral, a razão prática de Kant. Daí ser de natureza moral a última raiz da actividade absoluta do eu. O não-eu, o objecto, a natureza, são colocados pelo eu enquanto condição necessária da actividade absoluta do eu: ao passo que o eu não se pode colocar a si próprio na sua infinita actividade, senão vencendo-se e superando-se, colocando-se continuamente para lá do limite que lhe é imposto. O eu deve actuar assim em virtude da sua infinita actividade que é lei para si própria. Este dever é o que Kant chamou o imperativo categórico: é a exigência de que o eu se determine 23 (, 3 forma absolutamente independente de qualquer (,bjecto, como actividade livre. O objecto do qual o eu se deve tornar independente, antes de ser objecto exterior, é um elemento inconsciente do eu, impulso, inclinação, sentimento, pelo qual o eu é impelido para fora de si pelo reconhecimento do objecto que condiciona. § 550. FICHTE: INFINITO E FINITO: O PANTEISMO Fichte reconheceu na exigência moral o verdadeiro significado da infinitude do eu. O eu é infinito enquanto se torna tal, desvinculando-se dos próprios objectos que lhe são levantados; porque sem eles a sua liberdade infinita não seria possível. Fichte sente-se profeta da vida moral e sustenta que conseguiu basear de modo mais sólido o imperativo categórico descoberto por Kant. Na realidade, essência da vida moral perdeu para ele um carácter específico: identifica-se com o pensamento. A actividade moral a actividade pura do eu; a acção de que Fichte @_da é, como ele explicitamente adverte (lb., 111, § 1, p. 238), uma acção ideal, que não se distingue da especulação. No entanto, Fichte nesta primeira fase do seu pensamento quis permanecer no terreno da finitude, do homem. As suas advertências a este respeito são repetidas e explícitas. A concepção kantiana de que a vida moral apenas vale para um ser racional i finito, está sempre presente na sua mente e inspira-lhe toda a prática (a 111 parte) da Doutrina da ciência. 24 "Para a divindade, diz Fichte (1b., HI, § 5, p. 253), ou seja, para uma consciência na qual tudo fosse posto pela simples actividade do eu (mas o conceito de uma tal ciência é para nós impensável), a nossa doutrina da ciência não teria qualquer conteúdo porque numa tal consciência não existiria outro poder além do eu; mas isso teria mesmo para Deus a sua legitimidade formal porque a sua própria forma é a própria forma da razão pura". Por outras palavras, a Deus não poderia pertencer a oposição do eu e do não-eu que implica a finitude do eu. "Em relação a um eu a que nada se opusesse, diz ainda Fichte, Ub., p. 254), que é a ideia impensável da
divindade uma tal contradição não teria lugar". E ainda: "Suponha-se, para esclarecimento, que se deva explicar a autoconsciência de Deus: isto só será possível com o pressuposto de que Deus reflecte o seu próprio ser. Mas porque em Deus aquilo sobre que se reflecte seria o todo no uno e o uno no todo, e aquilo que reflecte seria igualmente o todo no uno e o uno no todo, assim em Deus e por Deus não se poderá distinguir aquilo sobre que se reflecte e o que reflecte, a consciência e o objecto da mesma, e a autoconsciência de Deus não se explicaria como de resto permanecerá eternamente inexplicável e inconcebível para qualquer razão finita, para qualquer razão que esteja ligada à lei da determinação daquilo sobre que se reflecte" (1b., p. 285). Por outro lado, o próprio esforço em que se resolve a actividade moral do eu não tem nada a ver com uma causalidade absoluta. "No próprio conceito do esforço está compreendida a finitude, porque aquilo 25 que não sofre contraste não se pode chamar esforço. Se o eu fosse mais que um esforçar-se, se tivesse uma infinita causalidade, não seria um eu, não se poderia colocar a si próprio e seria por conseguinte o nada" Qb., p. 270). Mas não obstante estes reconhecimentos explícitos, Fichte pretendeu reconduzir a finitude à infinitude: no eu descobriu uma actividade infinita que se limita por uma exigência interna que coloca e cria o seu limite. De tal modo que a finitude autêntica, sobre a qual Kant tinha baseado todos os poderes do homem, é para Fichte algo que se esquiva. Os ulteriores desenvolvimentos da Doutrina da ciência são disso uma demonstração. É evidente que, apesar de se manter agarrado à posição expressa na Doutrina da ciência de 94, Fichte não podia ter da divindade senão um conceito panteísta-espinosiano. As referências a Espinosa são nesta obra frequentes e tinham sido já previsíveis no decorrer da exposição precedente. O Eu infinito é a substância do eu finito. Segundo este ponto de vista, a religião não podia ser entendida a não ser no sentido que Fichte esclarece no ensaio que deu origem à polémica sobre o ateísmo, Sobre o fundamento da nossa fé no governo divino do mundo (1798), e num outro escrito, quase contemporâneo, intitulado Reminiscências, respostas, perguntas (1799). Neste último (deixado incompleto) Fichte, depois de ter afirmado que, para explicar um objecto qualquer, é necessário colocar-se fora desse objecto já que "viver significa não filosofar e filosofar não vivem, reconhece que a dedução da religião consiste em demonstrar que a mesma pertence neces 26 sariamente ao eu, que a fé no governo dmno do mundo faz parte da natureza absoluta do eu. Esta demonstração é dada num outro escrito. A doutrina da ciência demonstrou como o eu faz da liberdade o seu objectivo absoluto. Mas a liberdade, que é o objectivo final do eu, deve ser possível no mundo; o mundo deve possuir portanto qualquer ordenamento moral que a torne possível e esse mesmo ordemento moral é o objectivo final de toda a acção livre. A certeza da inseparabifidade entre o fim moral do eu e a ordem do mundo é a fé na ordem moral. Mas a ordem moral do mundo é o próprio Deus: a verdadeira religião, aquela que vive no sentimento moral, revela-se na acção moral. "O ordena,mento vivo e operante é o próprio Deus; não temos necessidade de um outro Deus e não podemos falar de outro Deus". Se Deus surge como distinto da ordem moral e considerado como sua causa, passa
* ser uma substância particular, um ser igual a nós, * quem atribuímos personalidade e consciência e que se ~sforma, por conseguinte, em nós próprios. "O conceito de Deus como de uma particular substância é impossível e contraditório; seja-me concedido dizer isto claramente e cortar pela raiz esta questiúncula escolástica, para encarar assim a verdadeira religião no sentido da jubilosa acção mGral". § 551. FICHTE: A DOUTRINA MORAL No Sistema da doutrina moral de 1798 Fichte alarga os princípios da ciência ao mundo moral. A obra é verdadoiramente uma reelaboração de toda 27 a Doutrina da ciência de 94 e revela com esta uma estreUa unidade de inspiração. O princípio supremo e o fim supremo da actividade moral é actividade infinita do eu puro. Quando a actividade não surge já considerada como finita (nesse caso contrapõe.se-lhe um objecto e é actividade cognoscitiva), mas como infinita, toma o nome de vontade. Diz Fichte: "Descobri-me a mim próprio enquanto eu, apenas como ser volitivo" (Sittenlehre, § 1; Werke, IV, p. 18). Mas decobrir-se como vontade significa também descobrir-se impelido para os objectos por tendências que, ao nível do eu empírico, são tendências sensíveis; e enquanto surgem independentes da livre vontade estas tendências são "natureza"; daí o princípio "Eu sou natureza e esta minha natureza é uma tendência" (1b., § 8, p. 110). Como natureza, a tondência é um termo do mecanismo natural; e como tendência o próprio homem é um produto deste mecanismo e insere-se na sua totalidade como parte dela. "A natureza em geral é um todo orgânico e surge colocada como tal" (1b., p. 115). Ora a tendência sensível dirige-se sempre a um objecto natural que, como tal, é sempre espacial: por conseguinte o próprio eu, que pela tendência atinge a natureza, deve assumir a forma de um corpo articulado, capaz de ser movido e utiliizado como instrumento da vontade. Com isto, Fichte pretendeu ter deduzido a natureza sensível e corpórea do eu finito. Mas súbitamente, do plano do eu finito e corpóreo, regressa ao plano do Eu absoluto. O eu não só tem tendências pelas quais alcanç a necessariamente as coisas naturais, 28 mas também é consciência de tais tendências: por isso, observa Fichte, se seguisse também sem excepções a tendência natural, mas a seguisse com consciência, seria livre igualmente porque "o fundamento último do seu agir não seria a tendência natural mas a sua consciência da natureza" (1b., § 10, p. 135). Parece por conseguinte que a liberdade consiste para o eu, não no destruir da cadeia da causalidade natural (cadeia que em última análise é também um produto do eu), mas apenas em tornar-se consciente, mediante a reflexão, da necessidade dessa cadeia. O homem tende assim a tornar-se independente dela, mas uma vez que a sua dependência é infinita, esta independência só se pode realizar no infinito. "O eu não pode nunca tornarse independente com risco de se deixar de ser eu; o objecto final do ser racional encontrase necessariamente no infinito e é tal que nunca pode ser alcançado, ainda que pretendamos aproximarmo-nos dele segundo a nossa natureza espiritual" (1b., § 12, p. 149). O princípio da doutrina moral exprime-se do seguinte modo: "Cumpre de qualquer
modo o teu destino (Bestimmung)"; e o destino, ou seja o objectivo ou a missão a que o homem se deve dedicar, é em qualquer caso determinado pelas circunstâncias em que cada indivíduo venha a encontrar-se e revela-se a cada indivíduo com uma certeza imediata, ou seja como "um sentimento de certeza" que já não engana porque "está presente só quando existe pleno acordo entre o nosso eu empírico e o Eu puro; e este último é o nosso único e verdadeiro ser e o único ser 29 possível e a única verdade possível" (1b., § 14, p. 169). Segundo este ponto de vista, o mal consiste em recusar este sentimento e a consciência reflexa que o faz nascer. O mal radical é por conseguinte a inércia em que o homem subjaz como ser natural e pela qual se adapta permanecendo num grau embrionário de reflexão. Da inércia ou preguiça nasce a objecção, que é a preguiça em afirmar a própria liberdade; e por fim nasce a não-sinceridade (insinceridade) pela qual o homem se engana a si próprio. No entanto, Fichte não explica de que modo o eu empírico, cuja essência, natureza orgânica e a própria situação no mundo são determinadas pelo Eu puro, pode não querer adequar-se ao Eu puro e recusar-se à reflexão libertadora. Mas Fichte insiste na coincidência da determinação e da liberdade. "Todas as acções livres, afirma, estão predestinadas pela eternidade, através da razão e independentemente de qualquer tempo; todo o indivíduo livre, relativamente à percepção, é colocado em harmonia com estas acções... Mas a sucessão e o conteúdo temporal não são predestinados, pela razão suficiente de que o tempo não é nada de eterno e de puro mas é simplesmente uma forma de intuição dos seres finitos; não são por conseguinte predestinados o tempo no qual algo há-de acontecer, nem os actores. Assim se resolve, por si, desde que se preste um pouco de atenção, a pergunta que parecia insolúvel: a predeterminação e a liberdade estão completamente unificadas" (1b., § 18, p. 228). 30 É muito significativo verificar no final da caracterização da doutrina moral de Helite, como a mesma foi estabelecida e construída sem qualquer referência às relações existentes entre os homens. A actividade moral para Fichte esgota-se na relação entre o eu empírico e o Eu absoluto, na relação que o Eu absoluto tem consigo próprio atrás do eu empírico e da natureza que lhe é própria. Apenas na última ,parte da Doutrina moral quando desce a determinar o sistema dos deveres particulares, Fichte se preocupa em "deduzir a existência dos outros eus e em estabelecer o princípio das suas
relações. E é preciso afirmar que nunca como neste caso a dedução de Fichte nos surge tão fraca e tão pouco convincente. O dever único e fundamental é para o eu o de realizar a própria e absoluta actividade ou autodeterminação. Mas uma vez que esta autodeterminação é apenas obra do eu, não existe nada antes do que tenha lançado mão a tal obra, a não ser como um conceito que contém uma exortação à autodeterminação. Só a necessidade de explicar esta exortação nos leva a admitir a existência dos outros. "Não posso conceber esta exortação à auto-actividade, afirma Fichte (1b., p. 220-21), sem a atribuir a um ser real exterior a mim, que quer comunicar-me um conceito, e que é portanto o da acção requerida; a um ser portanto que é capaz do conceito de um conceito; ora um tal ser é razoável, é um ser que se coloca a si próprio como eu, portanto é um eu. Esta a única razão suficiente para concluir sobre a existência de uma causa razoável exterior a nós". Por que é que este 31 apelo deve ser atribuído a um real exterior, ainda que na própria interioridade do eu empírico, o eu absoluto urge com toda a força da sua absoluta exigência de realização, isso não nos diz Fichte. De qualquer modo, segundo Fichte, bastaria para explicar essa exortação a existência de um só outro indivíduo apenas; que exista, pode ser, se bem que não se possa demonstrar que assim deva ser. Todavia, ainda que admitida a sua simples cumplicidade, deriva daí imediatamente um limite para a actividade do eu: a sua tendência para a independência não pode negar a liberdade dos outros eu. O reconhecimento destes limites originários da liberdade fazem do eu um indivíduo particular. É por conseguinte necessário que o eu seja em geral um indivíduo, porque esta é uma das condições da sua liberdade; mas que este indivíduo seja determinado no espaço e no tempo, é coisa puramente casual, que tem apenas um significado empírico. É necessário pois que os diversos eu se limitem através do reconhecimento recíproco da sua liberdade; é portanto necessário que esta liberdade se realize na reciprocidade das suas acções e que por isso sejam predeterminadas todas as acções livres. A reciprocidade de acções através das quais se realiza a liberdade dos indivíduos e na qual cada indivíduo tem o dever de entrar, chama-se igreja, isto é: comunidade ética, e o conjunto de princípios comuns nos quais os indivíduos inspiram as suas convicções, é o símbolo da igreja (1b., p. 236). O acordo sobre o modo em que os homens devem poder agir entre si no mundo sensível, o acordo sobre os seus direitos comuns, é o 32 contrato estadual e a comunidade que estabelece o contrato chama-se estado. Ao lado da igreja e do estado Fichte admite a comunidade dos sábios, caracterizada pela liberdade que existe nela de cada um reivi"car de frente, a si próprio e à própria consciência a, de tudo pôr em dúvida e de investigar livremente. Nesta comunidade restrita, que nenhum estado pode excluir sem negar o próprio fim, deve ser admitida a absoluta liberdade de comunicação de pensamento que o estado e a igreja legitimamente limitam.
A ideia de uma missão social dos sábios, do seu dever de proteger e de solicitar o progresso da humanidade, foi sempre cara a Fichte. Em 1794, em Jena, pronunciou as suas Cinco Lições sobre a missão do sábio. Em 1805, em Erlangen, pronunciou outras Lições sobre a essência do sábio e as suas manifestações no campo da liberdade. Em 1811, em Berlim, também pronunciou Cinco Lições sobre a missão do sábio. E a mesma ideia existe nos Discursos à nação alemã e em vários discursos académicos. O tom geral destes escritos que se torna cada vez mais religioso e teologizante, ressente-se do avanço que Fichte tinha alcançado na sua doutrina da ciência. A ideia central continua no entanto a ser a mesma: o único e verdadeiro fim da sociedade humana é a realização da perfeição moral, através de um progresso infinito. Sobre a via deste progresso, a sociedade pode ser guiada e iluminada pelos sábios. Nas lições de. 1794 (e precisamente na quinta), Fichte explica a condenação que Rousseau tinha pronunciado sobre as artes e as ciências 33 com ilusão e ressentimento porque as mesmas até então não tinham servido para o aperfeiçoamento moral a que estão intrinsecamente destinadas; e contrapõe ao pessimismo de Rousseau a fé na possibilidade progressiva do género humano e na eficácia da acção dos sábios. § 552. FICHTE: DIREITO E POLITICA A dedução da existência do eu individual que surge apenas no fim da Doutrina moral, aparece no início dos Fundamentos de direito natural segundo os princípios da doutrina da ciência (1796). Nesta obra, que precede em dois anos a Doutrina moral, a existência dos outros eus surge justificada da mesma forma que nesta, ou seja, com a exigência de uma exortação voltada para o eu pela realização da sua absoluta liberdade. As coisas corpóreas, afirma Fichte, constituem os limites ou condições do esforço moral, mas não implicam qualquer solicitação ao próprio esforço. Das coisas eu posso e devo servir-me para a vida corpórea; mas daí não me pode vir a solicitação e o convite ao dever. Uma tal solicitação só me pode surgir por seres exteriores a mim, que sejam como eu naturezas inteligentes; por outros eus, nos quais eu deva reconhecer e respeitar a mesma lei de liberdade que é norma da minha. actividade (Rechtslehre, § 4; Werke, 111, p. 44-45). Este reconhecimento é recíproco e abre assim a via de acção recíproca dos eus entre si. A lei desta acção recíproca é a lei jurídica. Dife34 rentemente da moralidade, que é apenas baseada na boa vontade, o direito vale também sem a boa vontade: diz respeito exclusivamente às manifestações exteriores da liberdade no mundo sensível, às acções, e implica, por isso, uma constrição exterior, que a moralidade exclui. Isso estabelece os limites e a extensão do direito. As relações jurídicas intercedem apenas entre pessoas e o direito diz respeito às pessoas, e só através destas, às coisas; o direito considera por conseguinte, apenas, as acções que se verificam no mundo sensível, e não as intenções (1b., p. 55). Em virtude das relações de direito, o eu determina a si próprio uma esfera de liberdade que é a esfera das suas possíveis acções exteriores e distingue-se de todos os outros eus que têm cada um a sua própria esfera. Neste acto de distinção coloca-se como pessoa ou indivíduo. O eu é indivíduo (ou pessoa) na medida em que exclui da esfera de liberdade, que reconhece como própria, qualquer outra vontade. A limitação de uma esfera de liberdade
constitui portanto o carácter da individualidade como tal (1b., 11, § 5, p. 56-57). Mas toda a limitação do eu é, como se viu, uma oposição e toda a oposição é a posição de um não-eu; e assim a determinação do eu na sua esfera de liberdade produz imediatamente um não-eu, e é com aquela esfera que o eu se coloca como mundo ou parte do mundo. Como tal se institui e se acha como corpo. Na limitação da esfera da liberdade o eu coloca-se ao mesmo tempo como liberdade e corpo. O corpo não é mais que o fenómeno da vontade, e como toda a acção 35 da vontade é uma mudança, o corpo no qual a Vontade Surge C se exprime é necessariamente mutável. Por outro lado, deve ser de tal modo que se possa prestar a ser um instrumento ou um veículo do eu que nele se realiza; deve ser portanto um corpo orgânico, visível e articulado, plasmáve@l segundo as exigências da liberdade. Assim é, com efeito, segundo Fichte, o corpo humano, diferente do de todos os outros animais (1b., § 6, p. 80 e segs.). Mas não basta que o eu tenha um corpo para entrar em relação recíproca com os outros eus; ocorre também que este corpo seja dotado de sentidos a fim de que a acção dos eus seja percebida pelo eu. Por outro lado, é necessário que a sensibilidade corpórea seja igual em todos os eus, que todos tenhamos a mesma intenção sensível ou, por outras palavras, percebamos o mesmo mundo sensível (Ib., p. 68-72). A existência das pessoas, o seu carácter corpóreo, orgânico e sensível e as suas acções recíprocas através da sensibilidade, são as condições exteriores do direito. A sua condição interna é o seu carácter coactivo pelo qual se garante a cada um a sua esfera de liberdade e se impede as violações. A realização do direito não pode ser confiada ao arbítrio das pessoas; deve ser garantida por uma força predominante, que deve estar estreitamente conexa com o próprio direito. Esta força é o Estado. O Estado é, assim, segundo Fichte, a condição fundamental do direito. Não existem portanto condições de direito sem uma força coactiva; e uma vez que uma força coactiva não pode ser exercida por pessoas singula36 res, mas apenas pelo seu. conjunto, isto é, pela comunidade que constitui o Estado, o direito identifica-se com o Estado. No entanto, o Estado não se traduz na eliminação do direito natural, é a sua realização, é o próprio direito natural realizado (1b., 15, p. 145 e segs.). No âmbito do Estado, e em virtude dos seus poderes, são possíveis os direitos originários das pessoas. A pessoa individual não pode agir no mundo se o seu corpo não está livre de qualquer coacção, se não pode dispor de um certo número de coisas para os seus objectivos e se não está garantida a conservação da sua existência corpórea. OS direitos originários e naturais do indivíduo são três: a liberdade, a propriedade e a conservação. A condição
fundamental do Estado é a formação de uma vontade geral na qual estejam unificadas as vontades das pessoas singulares. Isto acontece mediante o contrato político, que dá origem à vontade geral mediante a legislação. Esta tem dois objectivos fundamentais: a determinação do direito e a determinação das punições contra a violação, do mesmo; * primeiro constitui a legislação política, o segundo * legislação penal. Mas as leis, uma vez estabelecidas, devem ter validade e ser executadas. Para este objectivo, servem os poderes do Estado que são três: o poder de polícia que impede a violação do direito; o poder judiciário que determina se uma violação foi praticada; e o poder penal que pune a violação. O conjunto destes três poderes constitui o poder executivo ou governo (1b., RI, § 16, p. 153 e segs.). O poder executivo deve ser considerado 37 responsável pelas suas acções; deve por conseguinte estar submetido à vigilância de um eforado, e não existe Estado de direito onde o executivo Q o eforado coincidem nas mesmas pessoas (lb., p. 158 e segs.). Apesar de Fichte se ter afastado de Rousseau e das ideias do iluminismo francês, admitindo que os direitos originários do indivíduo não têm valor quando não integrados pelo Estado, permanece no entanto fiel àquelas ideias quando reivindica a relativa independência do indivíduo frente ao Estado. O indivíduo não é apenas um membro do Estado; ao Estado pertence apenas uma parte da sua esfera de liberdade, uma vez que só em relação aos serviços que o Estado concede este tem perante o indivíduo uma legitima pretensão. Fora destes limites, o indivíduo é livre e depende apenas de si próprio. Assim se estabelecem portanto os limites entre o homem e o cidadão, entre a humanidade e a politicidade. O Estado tem o dever de ajudar cada uma das pessoas em todos as domínios da sua liberdade, mas a extensão desta liberdade não cai inteiramente no âmbito do Estado. Estabelecidos estes princípios fundamentais, Fichte lança-se na dedução dos objectivos do direito público e privado. Mas no que se refere às funções e à natureza do Estado, as ideias da Doutrina do direito são completadas pelas que foram expostas no escrito chamado O Estado comercial fechado (1800). Aqui, Fichte não limita os poderes do Estado à realização dos direitos originários; pretende também que o mesmo acabe com a pobreza e garanta a todos os cidadãos trabalho e bem-estar. 38 Fichte prospecta, assim, um Estado socializado no qual a produção e a distribuição de mercadorias devem ser reguladas estadualmente, e que portanto constitua um sistema fechado, sem comércio com o exterior. O isolamento comercial é possível quando o Estado tem dentro das suas fronteiras tudo o que é necessário para o fabrico dos produtos de que precisa; mas quando tal não é possível, o Estado pode chamar a si o comércio externo e fazer dele um monopólio. O isolamento, segundo Fichte, é necessário para se regular, segundo a justiça, a
distribuição dos réditos e dos produtos. § 553. A CRISE DA ESPECULAÇÃO DE FICHTE A primeira Doutrina da ciência (e as obras que com ela se relacionam e a alargam ao campo do direito e da moral) pretende manter-se fiel ao espírito do criticismo. Assim, põe em evidência um eu infinito, com autoconsciência absoluta; mas reconhece, todavia, que a infinitude do eu não se pode realizar senão através da colocação de um não-eu... O eu infinito é sempre, por conseguinte, o homem: na sua verdadeira substância espiritual e pensante. O conceito de uma "divindade na qual tudo fosse colocado pelo simples facto de o eu ser também colocado" é considerado "impensável". Como se viu (§ 550), Fichte repete mais vezes estas declarações na 39 primeira Doutrina da Ciência; e as obras que se lhe seguiram mantêm-se fiéis a princípio. Mas gradualmente, a partir da polémica sobre o ateísmo (1798), Fichte volta-se para uma maior consideração da vida religiosa. O interesse moral que domina no seu primeiro período complica-se com motivos teosóficos que acabam por prevalecer. Podem reconhecer-se e aduzir@se diversas circunstâncias que explicam a crise que a especulação de Fichte sofreu a certa altura e que a encaminhou para uma via que devia levá-la muito além das suas primeiras conclusões. Entre esses motivos podemos enumerar: a hostilidade de grande parte do ambiente cultural alemão relativamente ao seu subjectivismo, hostilidade que será manifestada abertamente durante a polémica sobre o ateísmo e que muito o impressionou; a polémica com Schelling e com os românticos, cuja influência receava e combatia; o desejo de transformar a sua especulação numa "doutrina de vida" que fosse capaz de reacender o entusiasmo que a Doutrina da Ciência tinha suscitado quando surgira pela primeira vez e que começava a extinguir-se. Estes motivos agiram indubitavelmente sobre Fichte e forneceram-lhe a ocasião para um ulterior desenvolvimento da sua especulação. Mas estes não são motivos filosóficos. A pergunta que, segundo o ponto de vista da história da filosofia, deve colocarse sobre este assunto é * seguinte: existem razões filosóficas que justifiquem * crise de Fichte e a nova direcção da sua especulação? Fichte tinha em 1798 completado o seu sis40 tema em todos os aspectos: a Doutrina da ciência, a Doutrina do direito e a Doutrina moral constituem um bloco unitário que não exige ulteriores determinações. Por outro lado, o Ensaio sobre o fundamento da nossa crença no governo divino do mundo tinha esclarecido o seu pensamento nos confrontos da religião. Se, no entanto, subsistem motivos intrínsecos da crise de Fichte e da exigência de uma viragem na sua especulação, estes motivos surgem relacionados com a posição fundamental de que Fichte linha partido e com o carácter de instabilidade dessa mesma posição. Nesse sentido devemos orientar a nossa investigação. Fichte volta a reelaborar incessantemente a doutrina da ciência a partir de 1801; e apesar de declarar explicitamente (por exemplo no prefácio à Introdução à vida feliz (Werke, IU, p. 399) que nada tinha a alterar nas suas primitivas afirmações, as suas conclusões
doutrinais vão-se afastando cada vez mais desses mesmos princípios. Evidentemente que o sentido destas declarações é o de que o próprio princípio da doutrina da ciência (a que são dedicadas quase exclusivamente as sucessivas reeilaborações) apresentava, a seus olhos, um problema que ele sucessivamente procurou resolver. De que problema se trata? Poderse-á reconhecê-lo facilmente na relação existente entre o infinito e o finito. A primeira Doutrina da ciência identificou os dois termos quando colocou e recolheu o infinito no homem. Desse modo exclui qualquer consideração teológica e declara impensável o próprio conceito de Deus. Mas essa mesma identidade faz surgir o 41 problema da sua própria extensão. Se o finito se identifica com o infinito, isto não quer necessariamente dizer que o infinito se identifique com odivino. Se o homem é, em certa medida, participante da divindade e é (em certos limites) a própria divindade, isto não significa que a divindade se extinga no homem e viva apenas nele. Pode haver no infinito e no divino uma margem (por sua vez infinita) que está para além daquela parte que se realiza ou se revela no homem. Fichte procura determinar e definir esta possibilidade de forma filosófica e através de diversas elaborações que dá à doutrina da ciência a partir de 1801. É evidente que se trata de uma possibilidade que pode ser determinada e definida apenas negativamente, porque se refere àquela margem de não-coincidência entre o infinito e o finito (entre o homem e Deus) que por definição está para além do homem e da qual o homem nada sabe. Fichte encontrava-se perante a difícil posição de se servir do saber (e da doutrina da ciência que o exprime) para procurar alcançar aquilo que está para lá de qualquer saber possível e que, por conseguinte, não pode encontrar na doutrina da ciência uma expressão positiva. Esta dificuldade é-lhe claramente levantada num colóquio por Jean Paul Richter que, depois de ter escrito uma sátira sobre a filosofia de Fichte (Clavis fichtiana, 1800), se ligou a ele de amizade. Eis como Jean. Paul Richter se referia, numa carta de Jacobi de Abril de 1801, a uma conversa que tivera com Fichte: "Fichte, com quem 42 me encontro nas melhores relações, ainda que o nosso diálogo seja uma contradição perpétua, dizia-me que admite, na sua última exposição, um Deus superior e exterior ao Eu absoluto (no qual até agora eu via o seu Deus). Mas então, disse-lhe eu: Vós filosofais, no fim de contas fora da filosofia". Não se poderá exprimir melhor a tarefa assumida por Fichte nas numerosas reelaborações da sua doutrina da ciência. Com efeito, o que ele faz é filosofar fora da filosofia. Porque a filosofia é a doutrina do saber e não pode superar os limites do saber possível. Mas Deus, como ser absoluto, está fora e para lá do saber; e para filosofar sobre ele é necessário verdadeiramente filosofar fora da filosofia. E tal não se pode fazer; a menos que se reconheça uma quebra na filosofia de Fichte entre a primeira e a segunda fase. Na primeira fase, esta filosofia é uma doutrina do infinito no homem. Na segunda fase, uma doutrina do infinito fora do homem. Na primeira fase, o infinito (ou Absoluto, que é o mesmo) surge identificado com o homem. Na segunda fase o infinito ou absoluto surge identificado com Deus. A quebra doutrinal é portanto ,inegável. Mas esta quebra é indubitàvelmente devida ao próprio interesse éticoreligioso que domina de uma ponta à outra, a obra de Fichte. Precisamente para realizar e garantir cada vez mais o valor da vida ético-religiosa do homem, Fichte cindiu, sem ter plena consciência disso, a unidade doutrinal do seu sistema.
43 § 554. FICHTE: O EU COMO IMAGEM DE DEUS A tentativa de se servir do saber para alcançar um Absoluto que está para além do saber é levada a cabo pela primeira vez por Fichte na Doutrina da ciência de 1801. Aqui, Fichte parte do princípio de que o saber não é o Absoluto (Wiss., 1801, § 5; Werke, 11, p. 12-13). "O absoluto é absolutamente aquilo que é, repousa sobre e em si mesmo absolutamente, sem mutação nem oscilação, firme, completo, e fechado em si próprio". Ele é , por outro lado, "aquilo que é absolutamente porque é por si próprio, em razão de si próprio, sem qualquer influência exterior estranha; porque ao lado do Absoluto nada permanece de estranho, uma vez que tudo quanto não é absoluto desaparece" (1b., § 8, p. 16). A doutrina da ciência, como doutrina do saber, não pode no entanto actuar para além de qualquer saber possível; por isso deve partir não do Absoluto mas do saber absoluto. Mas o saber, enquanto absoluto, é também um saber da própria origem; e a origem do saber, (a origem absoluta) não é o saber mas o próprio Absoluto. Por conseguinte, enquanto o saber é saber da própria origem, é também um saber da própria origem do Absoluto, ou seja. da criação que o Absoluto faz do saber. No acto de alcançar a própria origem o saber é por conseguinte, e ao mesmo tempo, saber e mais que saber, é conjuntamente saber e Absoluto. A unidade destes dois termos não é indiferença porque os dois termos permanecem opostos (o absoluto não é o saber e o 44 saber não é absoluto). Fichte polemiza sobre este assunto com Schelling ainda que extraia dele, sem dúvida, o princípio da identidade entre o saber e o Absoluto. "Se o subjectivo, (ou seja o saber), afirma, e o objectivo (o Absoluto) fossem originariamente indiferentes como poderiam ser diferentes no mundo?" Diferenciando-se, o Absoluto anular-se-ia a si próprio e daria lugar ao nada absoluto (lb., p. 66). E Fichte julga também aproximar-se, bastante melhor que Schelling, do espírito da doutrina de Espinosa. Esta era incapaz de explicar a passagem da substância aos acidentes. Esta passagem não pode ser explicada senão pela forma fundamental do saber, pela reflexão. Esta é acto de liberdade que divide o saber do ser absoluto e, no entanto, o faz derivar dele: "Se se pergunta, afirma Fichte (1b., p. 89), qual é o carácter da doutrina da ciência nos confrontos do unitarismo (En kai Pan) e do dualismo, a resposta é esta: é o do unitarismo no sentido ideal porque sabe que, como fundamento de todo o saber, para além de todo o saber, existe o eterno Uno; é dualismo em sentido real, em relação ao saber na medida em que ele é realmente colocado. Com efeito, existem dois princípios fundamentais: a absoluta liberdade e o absoluto ser; e sabese que o absoluto Uno não se pode alcançar em nenhum saber real ou de, facto, mas apenas pensando". Apesar do Absoluto e do saber surgirem assim contrapostos, o mundo, pelo contrário, surge ligado ao saber e reduzido por Fichte a uma manifestação 45 ou cópia do mesmo. Como tal, para Fichte aparece privado de realidade própria. "Se se fala do melhor mundo e dos caracteres da divindade que se encontram neste mundo, a resposta é esta: o mundo é o pior de todos os possíveis porque ele, em si próprio, não tem qualquer
sentido (Ib., p. 157)". Desta nulidade intrínseca do mundo resulta a possibilidade de libertar-se dele. Uma vez que o mundo é condicionado por um acto de liberdade que surge pela reflexão, pode também ser superado pela reflexão e encarado gradualmente como meio. Um ideal místico e religioso, surge, agora, como última conclusão de Fichte. "Elevar acima de todo o saber, afirma (Ib., p. 161), até ao puro pensamento do Ser absoluto e da acidentalidade do saber e enfrentar esse mesmo Ser, tal é o ponto mais alto da Doutrina da ciência". A orientação mística, que pretende negar qualquer valor ao mundo e ao próprio saber humano, acentua-se mais na Doutrina da ciência exposta em 1804. Se no escrito de 1801 o Absoluto é o limite iniciai ou superior do saber, e por conseguinte este pode alcançá-lo intuindo a sua própria origem ou o não-ser de que emerge, no escrito de 1804 o Absoluto é justificação do princípio de destruição de todo o saber possível e como tal só pode ser alcançado com a negação do saber, da consciência e do eu, na luz divina. Esta é a tarefa que Fichte se propõe levar a cabo: reconduzir todo o múltiplo, sem excepção, à absoluta unidade (Wiss., 1804, § 1; Werke, X, p. 93), e esta tarda implica a destruição total do 46 saber e, por conseguinte, o alcance da absoluta inconceptibilidade. A construção da doutrina da ciência surge, segundo este ponto de vista, como a anulação do conceito pela evidência que é a própria luz divina. E Fichte repete aqui o movimento dialéctico de que se tinha socorrido na primeira Doutrina da ciência a propósito do não-eu. Uma vez que o nãoeu deve ser colocado para que o eu possa servir-se dele como meio e triunfar sobre ele através da acção moral, também agora o saber conceptual deve ser colocado para que a evidência da luz divina possa destruí-lo e realizar-se por meio dessa destruição (1b., § 4, p. 117). Essa operação envolve o eu, que é o princípio do saber, mas não é obra do eu, é obra da própria luz divina. "O ser possuído e arrebatado à evidência, afirma Fichte (1b., § 8, p. 148), não é obra minha, mas da própria evWêneia e é a aparente imagem do meu ser anulado e dissolvido na pura luz". Fichte nega que o Absoluto seja a consciência ou que a consciência possa valer como fundamento do Absoluito. O fundamento da verdade não é a consciência, se bem que se revele através dela (lb., 14, p. 195). Em 1806, Hohte voltava novamente, e desta vez em polémica aberta com Schelling, a delinear os pontos fundamentais da sua doutrina da ciência num escrito intitulado Relação sobre o conceito da doutrina da ciência e sobre o destino que teve até agora. Fichte afirma nele a sua pretensão de não haver alterado o sistema e de se manter fiel, nos seus últimos escritos, às suas primeiras especulações. 47 E responde às acusações movidas contra a Doutrina da ciência. Falou-se de subjectivismo porque o mesmo é a demonstração da nulidade de todos os produtos da reflexão. Mas esta é precisamente a
tarefa da Doutrina da ciência, que deve pôr em evidência a falsidade daquilo que vulgarmente se tem como real e demonstrar que o Absoluto, como Kant havia ensinado, não pode ser determinado pelo pensamento e continua inconcebível, para além de qualquer pensamento. A teoria da ciência destrói a pretensa realidade do conhecimento comum mas substitui-a pela verdadeira realidade que é a vida do Absoluto ou de Deus (Bericht über die Wiss.; Werke, VIII, p. 361 e segs.). À afirmação de que a doutrina da ciência, ainda que tendo a pretensão de valer como uma doutrina da vida, não se apresenta senão um puro conceito do ser, um esquema morto e abstracto do Absoluto, Fichte responde que o Absoluto não pode viver e realizar-se senão na consciência dos homens. Mas com este pacto deixa de ser uma pura projecção do pensamento e passa a ser verdadeiramente uma actividade produtiva. Das sucessivas elaborações da Doutrina da ciência, a mais notável é a de 1810 intitulada: A Doutrina da ciência no seu esboço geral, da qual não se afastam substancialmente as reelaborações de 1812-13. Nela o ser é identificado com Deus, enquanto uno, imutável, indivisível. O saber, que substitui na unidade divina a separação entre sujeito e objecto, não é Deus e existe fora de Deus. Mas uma vez que o ser divino é tudo em tudo, o saber é o ser de 48 Deus fora de Deus, ou seja, a exteriorização de Deus. Tal não é um efeito de Deus, mas a imediata consequência do ser absoluto, ou seja a sua imagem ou esquema (Wiss., 1810, § 1; Werke, 11, p. 693). Por sua vez, a autoconsciência é a imagem ou sombra do saber, pelo que, em relação a Deus, passa a ser a sombra de uma sombra (1b., § 14). Estamos muito longe, como se vê, da tese da primeira Doutrina da ciência segundo a qual a autoconsciência é o princípio de toda a realidade. Conceitos semelhantes a este surgem nos cursos que Fichte dá em Berlim no Inverno de 1810 e 1811 e no Verão de 1813 sobre Os factos da consciência. Os factos da consciência são os graus de desenvolvimento através dos quais a consciência se ergue das formas primitivas às mais elevadas. Mas a forma mais elevada da consciência é, segundo Fichte, aquela em que a consciência reconhece a sua própria nulidade perante Deus e se considera simples imagem ou aparência de Deus. O objectivo da doutrina da ciência é portanto o de tornar inteligível esta aparência; e não se trata de uma doutrina do ser mas da aparência. "O compreender-se, diz Fichte, é a forma de ser da aparência". A doutrina da ciência é a aparência na sua totalidade. Assim afirma: "Eu sou o compreender-se da aparência, pertenço por isso à aparência" (Die Thatsachen, 1813; Werke, X, p. 563 e segs.). Por outro lado, tal aparência é sempre aparência do ser, ou seja, do próprio Deus. Deus é portanto o objecto do saber e ao mesmo tempo está para além do saber. É o objecto do saber na medida em que o saber é a sua imagem,
49 a sua aparição ou manifestação; está para além do saber porque está para além da mutação e da multiplicidade que são próprias da forma reflexiva do saber mas que não podem pertencer a Deus. Este ponto de vista é repetido com energia no curso, sobre o sistema da doutrina do direito e no curso sobre o Sistema da doutrina moral dados em 1812. Estas duas novas exposições diferendara-se das de 1796 o de 1798 porque reconduzem respectivamente o direito à moral e a moral à religião. Enquanto que na Doutrina do direito de 1796 a esfera do direito surgia caracterizada independentemente da vida moral, no Sistema de direito de 1812 é caracterizada como traço de união que liga a natureza à moral. O direito é a condição preparatória da moral. Se esta fosse universalmente realizada, o direito seria supérfluo; mas uma vez que tal não acontece e para que possa acontecer, há necessidade de assegurar a cada pessoa as condições para a sua realização através de uma disciplina obrigatória; esta disciplina é o direito (System der Rechtsl., Werke, X, p. 508 e segs.). Analogamente, o Sistema da moral de 1812 reconduz a moral à religião. A razão prática passa a ser nesta obra a própria expressão de Deus, a sua imagem viva, o instrumento da sua realização no mundo; e a negação metafísica da realidade da natureza, a afirmação do regresso à vida espiritual como única vida verdadeira, surgem reconduzidas às exigências religiosas da renúncia ao mundo, da ressurreição e às excepções do evangelho de S. João (System der Sittenl., Werke, 11, p. 31 e sgs.). 50 § 555. FICHTE: AS Exposições POPULARES DA FILOSOFIA RELIGIOSA Excepto o escrito de 1810 (A Doutrina da ciência nos seus caracteres gerais) todas as outras exposições e reelaborações que acabamos de examinar do sistema de Fichte permanecem inéditas. É preciso também dizer que são de leitura bastante ingrata e que nelas o processo de Fichte surge lento, tortuoso, e baseado frequentemente em puros artifícios verbais. Estes defeitos deverão parecer evidentes ao próprio Fichte que, apesar de descurar a publicação desses escritos, publicava outros destinados a expor, em forma popular, o novo rumo do seu pensamento. Estes escritos populares são: A missão dos homens (1800), A introdução à vida feliz ou doutrina da religião (1806), Sobre a essência do sábio e as suas manifestações no campo da liberdade (1805), Cinco lições sobre a missão do sábio (1811). Nestes escritos, a orientação religiosa e misticista das últimas especulações de Fichte encontra uma expressão livre e surge expressa em palavras apropriadas. O trabalho intitulado Missão do homem está dividido em três partes: a dúvida, a ciência e a fé, e Fichte descreve a libertação do homem do domínio do mundo natural através da ciência e da passagem da ciência à fé. A fé, afirma Fichte, (Werke, 11, p. 254) ao dar realidade às coisas, impede-as de serem ilusões vãs: nisso consiste a ratificação da ciência. Quase se podia dizer, ~o com propriedade, que não existe realmente ciência mas apenas certas determinações da
51 vontade que se configuram como ciência porque a fé as constitui como tal; e repete a palavra de Jacobi "Todos nascemos na fé" (1b., p. 255). A fé é entendida aqui no sentido religioso como fé em Deus, numa Vontade suprema na qual confluem as vontades dos seres finitos quando conformes com o dever. Mais explicitamente religioso ainda é o tom do escrito (o mais importante entre os que nomeámos) Introdução à vida feliz. Fichte propõe a beatitude na união de Deus, mas adverte também que esta união não transforma Deus no nosso ser; Deus permanece fora de nós e nós apenas abraçamos a sua imagem. Chega-se à religião através da negação do valor da realidade sensível, vendo no mundo a simples imagem de Deus e sentindo agir e viver Deus em nós próprios. Na união com Deus, Fichte preocupa-se em aprender o significado contemplativo que a mesma parece implicar. A religião não é um sonho devoto; é o íntimo que purifica o pensamento e a acção e é por conseguinte moralidade operante (Anweisung, 5; Werke, V, p. 474). O pensamento alcança a existência de Deus, pela sua revelação ou pela sua imagem: o ser de Deus permanece sempre além. A existência de Deus identifica-se com o saber ou autoconsciência do homem; mas a forma como a mesma deriva do ser de Deus permanece inconcebível. "A existência deve compreender-se por si como pura existência, reconhecer-se e formar-se como tal, e, perante si própria, deve colocar e formar um Ser absoluto, de que seja simples existência: através 52 do próprio ser deve anular-se perante uma outra existência absoluta: e tal atitude forma o carácter da pura imagem, da ideia ou da consciência do ser" (lb., 3, p. 441). Fichte vê no Evangelho de S. João a exposição de uma doutrina análoga e daí deduz o acordo do seu idealismo com o cristianismo. Com efeito, no Evangelho afirma-se que ao princípio era a Palavra ou Logos; e na Palavra ou Logos, Fichte reconhece aquilo a que chamou existência ou revelação de Deus: o saber, a imagem, de que a vida divina é fundamento (1b., 6, p. 475 e segs.). Deste momo se completa o ciclo do desenvolvimento da doutrina de Fichte. Partindo do reconhecimento do infinito como princípio de dedução da natureza finita do homem, Fichte é levado, por último, a reconhecer o princípio infinito para além do eu, no Ser ou Deus, concebido como o Uno de Plotino. Nesta passagem entre duas teses doutrinais contraditórias, a única unidade é constituída pelo interesse ético-!religioso que sempre dominou na especulação de Fichte. Este interesse assinala verdadeiramente a sua personalidade. A ele se deve a ,introdução o sinal característico, do idealismo de Fichte e o distingue daquele (análogo em muitos aspectos) que contemporaneamente era defendido por Beck. Não há dúvida que esta característica determinou o sucesso da doutrina de Fichte. Mas foi também o mesmo que terminou a exigência de uma progressiva acentuação do carácter religioso e teosófico desta doutrina e, por conseguinte, a transformação que veio a sofrer no final.
53 § 556. FICHTE: O INFINITO NA HISTÓRIA A obra publicada por Fichte em 1806, Características principais da época presente, expõe uma filosofia da história que reproduz a seu modo e não sem intuitos polémicos (como frequentemente aconteceu nas últimas obras do filósofo) as ideias expostas por Schelling no Sistema do idealismo transcendental (1800) e nas Lições sobre o ensino académico (1802). Fichte começa por declarar que "o objectivo da vida da humanidade neste mundo é o de conformar-se livremente à razão em todas as suas relações" (Grun£lzüge des gegenw. Zeital., l; Werke, VII, p. 7). RADIativamente a este fim, distingue-se na história da humanidade dois estádios fundamentais: um, em que a razão é ainda inconsciente, instintiva, e é a idade da inocência; o outro, aquele em que a razão se assume e domina inteira e livremente, é a idade da justificação e da santificação, o kantiano reino dos fins. O desenvolvimento integral da história verifica-se entre estas duas épocas e é o produto do esforço da razão em passar da determinação do instinto a uma liberdade plena. As épocas da história são determinadas, num modo puramente a priori o independentemente do acontecer dos factos históricos, por este esforço. A primeira época é a época do instinto, em que a razão governa a vida humana sem a participação da vontade. A segunda época é a época da autoridade, em que o instinto se exprime em personalidades poderosas, em homens superiores, que impõem, caoticamente, a razão a uma humanidade incapaz de segui-la por sua conta. A terceira época 54 é a da revolta contra a autoridade e da libertação do instinto, de que é expressão a própria autoridade. Sob o domínio da reflexão desperta no homem o livre arbítrio, mas a sua primeira manifestação é uma crítica negativa de toda a verdade e de toda a regra, uma exaltação do indivíduo para lá de qualquer regra e de qualquer coacção. A quarta época é aquela em que a reflexão reconhece a própria lei e o livre arbítrio aceita uma disciplina universal; é a época da moral. A quinta época é aquela em que a lei da razão deixa de ser um simples ideal para se tornar totalmente real num mundo justificado e santificado, no autêntico reino de Deus (1b., p. 11 e segs.). As duas primeiras épocas são as do domínio cego da razão, as duas últimas a do domínio vidente da razão. No meio, está a época da libertação em que a razão deixa de ser cega mas não é ainda consciente. A esta época pertence a presente idade, segundo Fichte; nela existe o domínio cego da razão e ainda não se alcançou o domínio vidente da própria razão. Perdeu-se o paraíso, a autoridade foi violada, mas não domina ainda o conhecimento da razão. É esta a idade do iluminismo que Fichte chama a do vulgar intelecto humano; é a idade em que prevalecem os interesses individuais e pessoais e em que se faz continuamente apelo à experiência porque só a experiência pode manifestar quais os interesses e quais os objectivos para que se tende (1b., 2, p. 21 e segs.). Como realizar-se progressivo da razão na sua liberdade, a história consiste no desenvolvimento da consciência ou do saber. Mas o saber é a existência,
55 a expressão, a imagem integral do poder divino. Considerado na totalidade e ria eternidade do seu desenvolvimento, o saber não tem outro objecto a não ser Deus. Mas para os simples graus deste desenvolvimento Deus é inconcebível e o saber divide-se pela multiplicidade dos - objectos empíricos que constituem a natureza ou na multiplicidade de eventos temporais que constituem a história. A existência de facto no tempo surge como tal, podendo ser diferente e portanto acidental; mas esta aparência deriva apenas da inconceptibilidade do Ser que é o seu fundamento; inconceptibilidade que condiciona o infinito progresso da história (lb., 9, 6. 131). Na realidade, nem na história nem em outro lugar, existe algo de acidental pois tudo é necessário e a liberdade do homem consiste em reconhecer esta necessidade. Afirma Fichte: "Nada é como é porque Deus queira arbitrariamente assim, mas porque Deus não pode manifestar-se de outro modo senão assim. Reconhecer isto, submeter-se humildemente e ser feliz na consciência desta nossa identidade com a força divina, é desígnio de todos os homens" (1b., 9). NOTA BIBLIOGRÃFICA § 546. Sobre a vida de Fichte a obra principal é a do filho, Immanuel Hermann Fichte, J. C., F.s Leben und literarischer Briefwechesel, 2 vols., Leipzig, 1862; todas as monografias abaixo indicadas têm partes ou capítulos dedicados à biografia do filósofo. Um ensaio psicanalítico sobre F. é o de G. Kafka@ Erlebnis und Theorie in Fichtes Lehre vom Verhaltniss der Ges56 cILlechter, in "Zeitsehr. für angewanclte Psyeh", 16.' 11920, p. 1-24. § 547. "Sãmtliche Werke, a cargo do filho, I. H. Fichte, 8 vols., Berlim, 1845-46; Nachgelassen6 Werke, a. cargo do filho L H. F., 3 vols., Bonn, 1834-35 (cátados no texto como Werke, IX, X, XI); Werke, escolha em 6 v&.s., a -cargo de Fritz Medicus, Leipzig, 1908-12. Traduções italianas: Doutrina da Ciência (1791), trad. Tilgher, Bari, 1910; Doutrina da Ciência (1801), trad. Tjlgher, Pádua, 1939: Doutrina moral, trad. Ambrosi, Milão, 1918; Introdução à vida feliz, trad. parcial Quilici, Lanclano, 1913; A missão do homem e do sábio, trad. Pertioone, Turim, 1928; Discurso à nação a'emã, trad. Burich, Palormo, 1927; Essência do sábio (1805), trad. A. Cantoni, Florença, 1935; O estado segundo a razdo, trad. anónima, Turim, 1909; Reivindicação da liberdade do pensamento, trad. Pareyson, Turim, 1945; Primeira introdução à doutrina da ciênciatrad. Pareyson, in "Riv. di Fil,", 1946, p. 175 e sgs.; Guia para a vida feliz, trad. A. Cãntoni, Milão, 1956; O sistema da doutrina moral, trad. R. Cantoni, Miorença, 1957; Teoria da ciência de 1798, trad. A. Cantoni, Milão, 1959. § 548. Xavier IAon, Fichte et son temps, tomo II, parte II, p. 297 e sgs. A obra de Léon é a mais vasta monografia sobre Fichte. A amplitude das particularidad,es biográficas não corresponde, nesta obra, à amplitude da exposição das doutrinas filosóficas referidas quase exclusivamente aos limites da polémica Fichte-Schelling. K. Fischer, F.s Leben, Werke und
Lehre, Heid&berg, 1868, 3.ed., 1900; X. Leson, La pholosophie de F., Paris, 1902; A. Ravà, Introdução ao estudo da filosofia de F., Modena, 1909; F. Medícus, F., Leipzig, 1911; A. M~cr, F., Leipzig, 1920; N. Hartui =,, Die Phil. des deutschen Idealismus, vol. 1, Berlim, 1923, p. 43-123; H. Heimsoe@th, F. Munique, 1923; M. Wundt, FichteForschungen, Stuttgart, 1929; M. Gueiroult, L'évoluti-on et structure de la doctrine de la sciéwe, Paris, 57 1930; W. Doering, F. der mann und sein Werke, Hani burgo, 1948; L. Pareyson, F., Turim, 1950. § 553. A carta de ~Paul, a que se alude existe em Ernest Reinhold, K. L. Reinhold Leben und literarisches Wirken, Jena, 1825, p. 265-66. 58 IV SCHELLING § 557. SCHELLING: VIDA Friedrich Wilhehn Joseph Schelling nasce em Lomberg a 21 de Janeiro de 1775. Aos 16 anos entrou para o seminário teológico de Tubinga; e nesta cidade liga-se de amizade com Holderlin e Hegel, mais velhos que ele cinco anos. Em seguida estudou matemática e ciências naturais em Leipzig e esteve durante certo tempo em Jena, onde assistiu às lições de Fichte. Em 1798 (com 23 anos), foi designado, com o apoio de Goethe, professor em Jena, onde vive os anos mais fecundos da sua vida e mantém estreitas relações com os românticos A. W. SchIegel, Tieck e Novalis. Nesta cidade casou com Caroline Schlegel (1803) depois desta se divorciar do marido, A. W. Schlegol. Em seguida, Schelling passou 59 a ensinar em Wilrzburg, (1803) onde permaneceu até 1806, ano em que, estando a cidade ocupada por um príncipe austríaco, a estadia de professores protestantes na Universidade se torna impossível. Dirige-se então a Mónaco onde se faz secretário da Academia das Belas Artes e em seguida secretário da classe de filosofia da Academia das Gências. Neste período, vive isolado e quase ignorado. Estabelece relações de amizade com o naturalista teósofo Baader que chama a sua atenção para a obra de Jacob Bochme. Em 1809 morre-lhe a mulher Caroline e três anos depois casa com a filha de uma amiga. Em 1820, Schelling regressa ao ensino em Erlangen e em 1827 passa a ensinar em Mónaco onde permanece até 1841. Neste ano é chamado a suceder a Hegel na cátedra de Berlim e de certo modo passa a comandar o movimento contra o hegelianismo que tinha surgido na Alemanha. Em 1847 deixa de ensinar e a 20 de Agosto de 1854 morre em Ragaz na Suíça, onde se encontrava para se tratar. O interesse dominante de Schelling diz respeito à natureza e à arte; e nos seus primeiros trabalhos, que se ressentem da influência de Fichte, este interesse predomina. Situada entre o subjectivismo absoluto de Fichte e o racionalismo absoluto de Schelling, a
especulação de Schelling iria exprimir-se em duas frentes e, aceitando o mesmo princípio da infinitude que estava na base de um e de outro, iria procurar garantir a este princípio um carácter de objectividade ou de realidade que lhe permitisse explicar o mundo da natureza e da arte. Ligado de amizade 60 com Hegel nos anos de juventude, Schelling considerou esta amizade terminada quando Hegel no prefácio à Fenomenologia do Espírito (1807) declarou o seu afastamento de Schelling. Hegel tinha colaborado no "Jornal crítico da filosofia" que Schelling tinha publicado em 1802-03. Mas o afastamento de Hege-l, e mais ainda o sucesso que o seu amigo e rával obtinha, fizeram com que se virasse contra Hegel, o que levou Heinfich. Heine a afirmar, depois de um colóquio que teve com Schelling: "Se o sapateiro Jacob Bolieme falou como um filósofo, Schelling fala agora como um sapateiro" (Werke, ed., 1861, VI, p. 157). § 558. SCHELLING: TEXTOS Esta situação contribui certamente para suster a pena de Schelling depois dos primeiros anos de intensa produção literária. O primeiro escrito de Schelling é a dissertação Antiquissimi de prima malorum origine philosophematis explicandi tentamen criticum (1792), uma tentativa de interpretação alegórica do pecado original. Depois de um escrito sobre os Mitos do mundo antigo o um outro de crítica neo-testamentária, Schelling publicou o seu primeiro ensaio filosófico, inspirado em Fichte, Sobre a possibilidade de uma forma da filosofia em geral (1795). No mesmo ano segue-se o escrito O eu cotno princípio da filosofia ou o incondicionado no saber humano. Seguiram-se: Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e criticismo (1796), Perspectiva universal 61 da nova literatura filosófica (1797); Ideias sobre uma filosofia da natureza (1797); Em 1800 publicava um Sistema do idealismo transcendental que é o seu trabalho mais completo e melhor organizado. Em 1800-01, Schellíng publicou a "Revista de física especulativa" que contém a sua Exposição do meu sistema. Em 1902 publicou o diálogo Bruno e o princípio natural e divino das coisas; e em 1802-03 o "Jornal critico da filosofia", onde os seus escritos apareceram ao lado dos de Hegel. As Lições sobre o método do estudo académico (1803) são uma exposição popular do seu sistema. A este, seguiram-se em 1804 o escrito Filosofia e religião, um ensaio Sobre as relações do real e do ideal na natureza e um outro Sobre a verdadeira relação da filosofia da natureza com a doutrina de Fichte revista e corrigida (1806). Em 1807 é o discurso Sobre as relações das artes plásticas com a natureza. A orientação teosófica inicia-se com o escri-to Investigação filosófica sobre a essência da liberdade humana, aparecido em 1809. Com ele pode dizer-se que se encerra a produção literária que Schelling pretende tornar pública. Com efeito, além de um escrito contra Jacobi (1812) e um Sobre a divindade de Samotracia (1815), Schelling não publicou nos últimos dos Fragmentos filosóficos de Cousin (1834) e sua lição introdutória em Berlim. Os cursos, que deu em Berlim e que representam a última fase, que ele chamou positiva, do seu pensamento, Filosofia da mitologia e Filosofia da revelação, foram publicados pelo filho, depois da sua morte, 62
§ 559. CHELLING: O INFINITO E A NATUREZA O princípio que tinha assegurado o sucesso da filosofia de Fichte é e, do infinito. a infinita actividade que actua na consciência do homem e explica e determina todas as manifestações, infinita actividade que, mesmo reconhecida por Fichte como transcendente à consciência, acaba sempre por encontrar no infinito progresso do sabor a sua imagem adequada. O reconhecimento e a afirmação do infinito determinam o entusiasmo que a doutrina de Fichte suscitou, porque exprimem a aspiração da época. A filosofia de Kant é uma filosofia do finito e por isso se move no âmbito do iluminismo. A filosofia de Fichte é uma filosofia do infinito dentro e fora do homem e abre a época do romantismo. Schelling e os românticos descobrem que a filosofia de Fichte abre um novo caminho ou, como eles dizem, uma nova era da especulação, e ainda que se mostrem depressa impacientes por darem ao princípio fichtiano novas interpretações incompatíveis com a doutrina de Fichte, não é menos verdade que essas interpretações partem todas desse mesmo princípio do infinito que, através da doutrina de Fichte, tinha feito a sua clamorosa aparição na filosofia. No que diz respeito a Schelling, desde a primeira e entusiástica aceitação dos princípios de Fichte, vê-se uma procura da sua parte em fazer dele a ilustração e a defesa dos interesses que lhe são mais caros, os naturalistas-estéticos. Desde o início que Schelling relaciona, com muito mais vigor ainda que Fichte, o Eu absoluto com a substância de Espinosa: 63 a substância de Espinosa é o princípio da infinita objectividade. Schelling pretende unir as duas infinitudes no conceito de um Absoluto que não é redutível nem ao sujeito nem ao objecto, porque deve ser o fundamento de um e de outro. Bem cedo se dá conta de que uma pura actividade subjectiva (o Eu de Fichte) não poderá explicar o aparecimento do mundo cultural, e de que um princípio puramente objectivo (a substância de Espinosa) não poderá explicar a origem da inteligência, da razão e do eu. O princípio supremo deve ser, por conseguinte, um Absoluto que soja ao mesmo tempo objecto e sujeito, razão e natureza; que seja a unidade, a identidade ou a Diferença de ambos. Na realidade, se Fichte recorria à natureza apenas para obter o cenário das acções morais ou para declará-la "um puro nada", Schelling recusa-se a sacrificar a realidade da natureza e com ela a da arte. A natureza, segundo Schelling, tem vida, racionalidade, e por conseguinte tem valor em si própria. Deve ter em si um princípio autónomo que a explique em todos os seus aspectos. E este princípio deve ser idêntico ao que explica o mundo da razão ou do eu, por conseguinte, a história. O princípio único deve ser conjuntamente sujeito e objecto, actividade racional e actividade insciente, idealidade e realidade. Tal é, com efeito, o Absoluto para Schelling. Quando Hegel, levando aos seus limites a filosofia da natureza de Schelling, não vê na natureza mais que uma manifestação imperfeita o provisória da razão subtraía à filosofia da natureza aquilo que nela constituía o interesse de Schelling: a afirmação 64
da autonomia e da validade da natureza em si mesma. Nas mãos de Hegel, a filosofia da natureza de Schelling volta-se contra o próprio Schelling. Mas como, por outro lado, a solução hegeliana devia parecer aos olhos de Schelling consequência inevitável das premissas, que ele mesmo tinha reconhecido e feito valer, Schelling encontrou-se perante um beco sem saída e a sua actividade literária, iniciada de forma tão brilhante, foi repentinamente truncada. No silêncio, não isento de rancor, em que se encerra, Schelling vai examinando o princípio de que Hegel se serviu para chegar à sua conclusão, a identidade do real e do racional. Contra esta tese se dirige a última, fase da sua filosofia, por ele designada filosofia positiva, que obedece ao principio de que a essência racional não alcança nunca a existência e de que a razão, ainda que se desenvolva completamente em si própria, não alcança nunca e em nenhum ponto a realidade positiva. Tratava-se da inversão exacta das teses de Hegel. Mas era ao mesmo tempo a representação da segunda das alternativas da filosofia romântica: aquela segundo a qual o homem e o seu saber, a natureza e a história, são a manifestação ou a relação de Deus. § 560. SCHELLING: O ABSOLUTO COMO IDENTIDADE Em 1794, logo após a publicação do Conceito da doutrina da ciência de Fichte, Schelling publicava o escrito Sobre a possibilidade de uma forma da 65 ia em geral, no qual reconhecia no Eu infinito o princípio incondicionado de todo o saber. o incondicionado é o Eu, tudo aquilo que é condicionado é não-eu e como o não-eu é colocado pelo Eu, tudo o que é condicionado é determinado pelo incondicionado. Era esta, segundo Schelling, a forma absoluta de todo o saber. Em 1795, depois da publicação da Doutrina da ciência, Schelling publicava o seu segundo ensaio O eu como princípio da filosofia ou o incondicionamento no saber humano. A tese do ensaio é de que o Eu absoluto deve ser pensado como Espinosa tinha pensado a sua substância única. O incondicionamento não pode ser objecto, não pode ser um sujeito condicionado, finito, mais deve ser um sujeito absoluto, que seja causa de si próprio. Um tal sujeito absoluto abarca toda a realidade na sua unidade e é por isso o Uno - todo, de que falava Espinosa: no seu absoluto poder coincidem necessidade e liberdade. "Tornei-me espinosiano, escrevia na altura Schelling a Hegel; quer saber porquê? Porque para Espinosa o mundo é tudo, para mim tudo é Eu". Nas cartas filosóficas sobre o dogmatismo e criticismo, Schelling acentua ainda o seu espinosismo que, nesta primeira fase do seu pensamento, constitui já uma primeira, ainda que subtil, barreira entre ele e Fichte. O problema que ele levanta neste escrito é o da possibilidade da passagem do infinito ao finito, do sujeito ao objecto, ou noutros termos, da possibilidade da existência do Mundo. o problema pode ser resolvido apenas com O reconhecimento da identidade ou unidade entre sujeito e objecto; mas esta identidade por sua vez 66
é pensável ou como objecto absoluto (coisa em si) ou como absoluto sujeito (sujeito em si). A primeira solução dá lugar ao dogmatismo (ou realismo), a segunda dá lugar ao criticismo (ou idealismo). Os dois sistemas têm portanto o mesmo problema e o mesmo objectivo final, que é a identidade entre sujeito e objecto. Mas enquanto o dogmatismo postula esta identidade como uma condição absoluta, o criticismo faz dela uma tarefa infinita; por isso enquanto aquele implica a ilimitada passividade do sujeito, este exige a ilimitada actívidade do mesmo. O primeiro afirma: anula-te, deixa de ser! O segundo afirma: sê! (Werke, série 1, vol. 1, p. 335). Os dois sistemas apesar de coincidirem. no reconhecimento da identidade, opõem-se no da liberdade. Sobre este ponto, um nega o que o outro afirma. Estas afirmações de Schelling estão já muito distantes das de Fichte em virtude do relevo que, quase involuntariamente, Schelling dá ao objecto, ou seja, ao mundo natural. A distância aumenta ainda nos ensaios que Schelling publicou em 1797 com o título Perspectiva universal da nova literatura filosófica. Se a verdade consiste no acordo do conhecimento com o objecto, o conhecimento é impossível, diz Schelling, se o objecto é uma coisa em si, a ele completamente estranho. O conhecimento é possível apenas como identidade da representação e do conceito; e por esta identidade o objecto não é senão o próprio eu, ou seja, aquilo que faz e intui. Nada é dado na consciência, mas tudo se origina, e se origina no eu. A própria matéria nasce do espírito, (Werke, 1, 1, 67 p. 374). A consciência comum vê no conhecimento dois factores, o subjectivo e o objectivo, o conceito e a intuição, a representação e a coisa, que estão entre si, como a cópia e original. Mas a consciência filosófica reconhece no próprio original, no objecto, um produto necessário do espírito; e na cópia a repetição deste produto "O mundo infinito, afirma Schelling (1b., p. 360), não é mais do que o nosso espírito criador, nas suas infinitas produções e reproduções." Segundo este ponto de vista, a natureza é a história do espírito; o qual, como auto-intuição ou autoprodução é objecto e fim de si próprio. Mas a auto-intuição ou autoprodução da natureza é um acto inconsciente que, por isso, surge ao próprio espírito como produto. Através da vida e da organização, a natureza tende a produzir a consciência e a liberdade. Os graus de desenvolvimento da natureza podem assim ser compreendidos apenas como criações ou produtos do espírito. "A série dos graus de organização e a passagem da natureza viva revelam claramente uma força produtiva que se desenvolve gradualmente até à plena liberdade (lb., p. 387). Uma vez que é inconsciente, a actividade produtiva do espírito não é conhecimento mas vontade. Enquanto que o conhecimento depende da vontade, a vontade é independente do conhecimento e não é condicionada por ele. A vontade é o princípio espiritual inconsciente de toda a produção e, por conseguinte, o fundamento da natureza e, em geral, de todas as manifestações do espírito. Schelling julga reconhecer nela, aquele ponto fora do mundo de que Arquimedes necessi68
tava para poder erguer o mundo. "Fora do mundo" significa fora do conhecimento teorético, na consciência pura da actividade, que é o querer (1b., p. 396). Com o reconhecimento do querer como actividade inconsciente, Schelling tinha colocado o fundamento da sua filosofia da natureza. § 561. SCHELLING: A FILOSOFIA DA NATUREZA Nos escritos examinados, Schelling vinha elaborando o conceito de infinito como absoluta identidade de sujeito e objecto, de espírito e de natureza. Nesta elaboração, a natureza espiritualiza-se e torna-se subjectividade ou eu: e nela Schelling segue as pisadas de Fichte. Mas, ao mesmo tempo, o espírito objectiva-se e passa a ser, no seu princípio criador ou produtivo, actividade inconsciente ou querer. Aos olhos de Schelling este segundo aspecto do Absoluto assume uma importância que não tinha para Fichte já que Schelling não se propõe, como Fichte, justificar a actividade da natureza. Os escritos posteriores levaramno a reconduzir as numerosas descobertas científicas do tempo no campo da química, da electricidade, do magnetismo e da biologia, ao conceito de Absoluto como identidade e a construir, através de tais descobertas, uma visão única e simples do mundo natural como realização e revelação de um absoluto que é ao mesmo tempo, natureza e espírito, actividade inconsciente e razão. As Ideias para uma filosofia da natureza (1797) partem do fenómeno da combustão no qual Lavoisier tinha descoberto (1783) um fenómeno de oxida69 ção, destruindo a velha teoria logística que se refere a uma matéria especial que intervinha na produção do fenómeno. Schelling propõe-se a observar qual a consequência que a descoberta do oxigénio tinha para a investigação natural e não apenas em relação à química, mas no domínio integral da vida vegetativa e animal, à qual o oxigénio é indispensável (Ideen., 1, 1; Werke, 1, 11, p. 79). Unia vez que os fenómenos que acompanham a combustão são a luz e o calor, estreitamente unidos, Schelling sustenta poder reconduzi-los a um fluido elástico, que reconhece no ar, e que é provàvelmente o meio universal pelo qual a natureza actua sobre a matéria morta. Deste modo, Schelling volta, sem reparar, a uma teoria do tipo flogístico. Mais afortunada é a sua intuição da unidade da força magnética e da força eléctrica, que não se mantêm distintas entre si, mas são devidas a um princípio, reconhecendo ao mesmo tempo este princípio na força de atracção e de repulsa dos corpos (1b., 1, 5, p. 156 e segs.). Atracção e repulsa são por eles consideradas como os princípios do sistema natural. Com efeito, todo o fenómeno, natural é efeito de uma força que como tal é limitada e por isso condicionada pela acção de uma força oposta; por conseguinte, todo o produto natural se origina numa acção e numa reacção e a natureza actua através da luta de forças opostas, Se estas forças se consideram já existentes nos corpos, a sua acção é condicionada ou pela quantidade (massa) ou pela qualidade dos próprios corpos; no primeiro caso, as forças operam mecanicamente; no segundo, quimicamente; a atracção mecânica é a 70 gravitação, a atracção química é a afinidade (1b., p. 187). Se a luta entre as duas forças opostas é considerada nas relações do produto, são possíveis três casos: que as forças estejam em equilíbrio e se façam então corpos não-vivos; que o equilíbrio surja desfeito e
seja restabelecido, e dá-se então o fenómeno químico, que o equilíbrio não surja restabelecido e que a luta das forças seja permanente e se produza então a vida (Ib., p. 186-87). Desse modo, o mundo total e natural, desde a matéria bruta aos orer surge reconduzido à acção de duas mecanismos vivos, forças originárias. E estas mesmas forças são reconduzidas por Schelling aos próprios fundamentos do conhecer e, por conseguinte, da consciência. A consciência origina-se apenas no distinguir-se pela intuição, isto é: pelo objecto intuído; e tudo o que se origina pela intuição surge ao intelecto como unidade, como um produto, que o próprio intelecto analisa e cujos factores surgem transformados em conceitos e representados como causas que actuam independentemente do intelecto e das condições subjectivas do conhecer, ou seja: como forças. Deste modo, os factores da intuição valem para o intelecto como forças fundamentais da natureza. Ora a intui"Ção origina-se através de uma actividade originária e em si ilimitada, que permanece privada de forma que não surge limitada, reflectida e repelida por uma outra actividade. A direcção da primeira actividade é centrífuga, a da segunda é centrípeta; uma actua repulsivamente e gera o espaço que tende a desenvolver-se de um ponto em todas as direcções possíveis, a outra é atractiva e gera o 71 ponto que se desenvolve numa só direcção, o tempo; uma e outra conjuntamente, geram a acção da força que preenche o espaço e o tempo. Este produto da intuição surge ao intelecto como objecto independente; e assim se origina a matéria em cujos factores se apoia o intelecto constituído por forças fundamentais de repulsão e de atracção (1b., p. 213-27). Mas estas forças materiais não só estão, segundo Schelling radicadas na intuição, como também são, por seu lado, forças intuidoras. A própria natureza deve ser, por outros termos, um processo de intuição e de conhecimento, e, por isso, não um puro objecto, mas um sujeito-objecto. Em todos os produtos naturais a subjectividade e a objectividade são colocadas e unificadas e os modos em que são colocadas e unificadas constituem um processo de contínuo fortalecimento através do qual a identidade do sujeito e do objecto se realiza de forma cada vez mais completa. Schelling conseguiu, neste ponto, ilustrar de forma bastante clara a sua doutrina do Absoluto como identidade, e conseguiu-o através da filosofia da natureza. O trabalho subsequente, Sobre a alma do inundo (1798), a que deu o subtítulo de "hipótese da mais alta física para a explicação do organismo universal", destinava-se a demonstrar a continuidade do mundo orgânico e do mundo inorgânico num todo que é ele próprio um organismo vivo; aquilo que segundo Schelling, os ant3gos entendiam com a expressão alma do inundo. Schelling admite que a alma do mundo constitua a unidade das duas forças opostas (atracção-repulsa) que actuam na natureza, 72 que o conflito destas forças constitua o dualismo, e a sua unificação a polaridade da natureza (Werke, 1, 11, p. 381). E avança a hipótese de que a alma do mundo se manifesta materialmente no fluido que os antigos chamavam éter, o dualismo na oposição entre a luz e o oxigénio em que se divide o éter, e a polanidade na força magnética. Mas a tese fundamental da obra é a de que a natureza é
um todo vivo e que toda a coisa é dotada de vida. "As coisas, afirma Schelling (lb., p. 500), não são princípios do organismo, pelo contrário, o organismo é o princípio das coisas". E acrescenta: "O essencial de todas as coisas (que não são puras aparências, antes se reúnem numa série infinita de graus de individualidade) é a vida; o acidental é apenas a espécie de vida, e aquilo que está morto na natureza não está em si morto, é apenas a vida extinta". A vida é "a respiração universal da natureza". Existe uma única vida e um único espírito. O espírito distingue-se do espírito pelo seu princípio individualizante, a vida distingue-se da vida pelo modo do viver. A vida está para o indivíduo como o universal para o particular, o positivo para o negativo. Todos os seres são idênticos no princípio positivo, distintos no negativo; e, segundo este mecanismo, se origina em toda a criação a unidade e a multiplicidade da vida (1b., p. 506-507). Estes conceitos inspiram a mais ordenada e completa exposição da filosofia da natureza de Schelling, o Primeiro projecto de um sistema da filosofia da natureza (1799). Aqui a natureza aparece explicitamente reconhecida como o incondicionado, o infinito, 73 a que pertence o ser, mas de que não se pode dizer que é, porque só na manifestação singular da mesma se pode dizer que é. O ser da natureza é actividade e as manifestações particulares da mesma são formas determinadas ou limitações da sua actividade originária. O princípio e as leis que produzem tais determinações ou limitações surgem da investigação da própria natureza. A natureza é, por conseguinte, autónoma porque atribui a si própria as suas leis; é autárquica porque se basta a si própria na medida em que tudo o que nela acontece pode ser explicado pelos seus próprios princípios imanentes (Werke, 1, 111, p. 17). A infinitude da natureza manifesta-se como impulso para um desenvolvimento infinito, como infinita produtividade; é preciso defendermo-nos de considerar as suas acções como puros factos e, pelo contrário, discernir na acção a própria acção (1b., p. 13). Os pontos de paragem da infinita actividade da natureza são as qualidades originárias, que por isso são manifestações negativas da actividade da natureza. Estas qualidades são acções de determinado grau e constituem as unidades indivisíveis da natureza, unidades que, segundo um ponto de vista da mecânica atomista, surgem como átomos mas que, segundo um ponto de vista dinâmico, devem ser reconhecidas como acções originárias que representam graus distintos de uma só e mesma -actividade. Os corpos naturais são combinações destas acções; o conjunto destas acções constitui a coesão e os 'limites da mesma constituem a forma do corpo no espaço; Coesão e forma são pois as duas primeiras condições dos corpos individuais: A organização dos 74 corpos, enquanto organização da sua forma, pressupõe uma condição de informidade porque a passagem de uma forma a outra acontece sempre através da perda de uma forma. Ora a matéria é a matéria fluida, por isso, todo o devir da natureza se reduz * uma luta entre o que é fluido e o não fluido, entre * que está privado de forma e a forma (1b., p. 33). Todas as formas singulares são graus diversos do desenvolvimento de uma ú nica organização absoluta; e esta organização absoluta tende a realizar-se de forma cada vez mais completa através de uma unificação cada vez maior dos produtos e acções particulares. Todos os produtos, como graus determinados do desenvolvimento natural, são uma tentativa mal conseguida de unificação absoluta das acções naturais. Os produtos singulares (os indivíduos singulares) são apenas meios, no que se refere a este objectivo para que tende intrinsecamente a natureza. "O indivíduo, afirma Schelling, (1b., p. 51),
deve surgir como meio, e a espécie como fim da natureza o indivíduo passa, a espécie fica a ser, verdade que os produtos singulares da natureza devam ser considerados como tentativas mal sucedidas de representar o absoluto". Por isso o momento mais alto da vida individual é o acto de geração, com o qual o indivíduo se alia ao objectivo da espécie e, depois do qual, a natureza deixa de ter interesse em conservá-lo. Quanto mais elevada é a organização individual, maior é a diferença dos sexos e, por conseguinte, a imperfeição dos seres individuais. Esta conexão pela qual o mundo da natureza orgânica e inorgânica constitui um todo em dever, um 75 organismo vivo que renova ao infinito, nos seus produtos individuais, a tentativa de se realizar infinitamente, acha-se perante a dificuldade de explicar a razão porque a natureza orgânica é condicionada pela inorgânica. A resposta de Schelling é de que a actividade orgânica não é determinada necessariamente pelas condições físicoquímicas (como defende o materialismo) nem é inteiramente independente delas (como defende o vitalismo), mas é antes estimulada por elas. A actividade orgânica é imutabilidade, que é síntese de receptividade e de actividade e, com efeito, a insensibilidade a todos os estímulos externos não é senão a morte. O mundo inorgânico exterior condiciona assim a vida orgânica, mas apenas como um estímulo que suscita e limita a actividade produtiva do organismo (1b., p. 89). Por outro lado, a vida inorgânica não o é verdadeiramente; segundo Schelling também ela própria é organização e evolução. A diferença entre o orgânico e o inorgânico consiste nisto: enquanto que o primeiro contém em si a própria organização ou a própria forma de vida, o segundo está privado dela e faz parte de uma organização que o compreende. Schelling aplica-se em estabelecer as leis da organização ou evolução do inorgânico. Os corpos da natureza inorgânica não são gerados pela reunião de elementos originariamente distintos, isto é por composição, mas através da produção ou emanação de uma unidade originária, ou seja, por evolução. Mas organização e evolução significam a mesma coisa. Deve-se por conseguinte afirmar que também os corpos celestes têm a sua genealogia e a 76 sua geração; e que a gravitação, que é a lei fundamental que regula a sua produção, é efeito de um processo de divisão, de diferenciação pelo qual aqueles passam a constituir um sistema hierarquicamente ordenado, no qual existe uma massa central a que estão subordinadas as massas subalternas (1b., p. 106 e sgs.). Por outras palavras, a génese dos corpos celestes é fruto de um processo substancialmente análogo à génese dos corpos vivos; e Schelling justifica-se com isso para afirmar a unidade das forças que actuam em todas as partes do mundo natural. Ora as forças universais da natureza são: o magnetismo, a electricidade e o processo químico, e estas forças são análogas às três que actuam na natureza orgânica: sensibilidade, irritabilidade, reprodução. Do magnetismo universal brota a sensibilidade, do processo
eléctrico a irritabilidade, do químico a reprodução, que é actividade formativa. A polaridade, definida por Schelling como "identidade na duplicidade e duplicidade na identidade", é a causa do magnetismo e da sensibilidade e constitui a sua afinidade. Como tal, é a origem universal e dinâmica da actividade e por isso também "a origem da vida na natureza" (1b., p. 19). Num trabalho muito mais pequeno, Introdução ao projecto de um sistema da filosofia da natureza (1799), Schelling determina a relação entre a filosofia da natureza e a investigação experimental. Esta, por si, jamais pode atingir o valor de ciência. A natureza é um a priori, no sentido de que as suas manifestações singulares sã o determinadas antecipadamente pela sua totalidade, ou seja, pela ideia de 77 uma natureza em geral (Werke, 1, IU, p. 279). "A experienciação, afirma Schelling, (1b., p. 176), é uma pergunta feita à natureza, à qual a natureza é obrigada a respondem. Mas tal não passará de dúvida e de confusão se for não iluminada e orientada por uma concepção geral da natureza. Por isso só "a física especulativa, que é a alma das verdadeiras experienciações, foi e continua a ser a mãe de todas as grandes descobertas sobre a natureza" (1b., p. 280). Mas, deste modo, a filosofia da natureza tinha levado Schelling bastante longe da fichtiana doutrina da ciência sobre a qual se tinha baseado ou julgava ter-se baseado. Num trabalho de 1800, Deduções universais do processo dinâmico, reivindica contra Fichte o valor autónomo da natureza. A natureza não é um simples fenómeno mas uma realidade que tem o seu fundamento em si própria e cujo desenvolvimento procede a consciência e acondiciona (Werke, 1, IV, p. 76). Num outro escrito de 1801, Sobre o verdadeiro conceito de filosofia da natureza, Schelling afirma que a natureza como autoprodução ou autodesenvolvimento é o puro sujeito-objecto e como tal surge e se manifesta na consciência, que é apenas um grau mais elevado da subjectividade-objectividade natural. "Para mim, afirma Schelling (Werke, 1, IV, p. 86), o próprio objectivo é simultaneamente ideal e real; estas duas coisas não estão divididas, estão originariamente unidas também na natureza. O ideal-real torna-se objectivo só através da consciência que por si se origina e na qual o subjectivo se eleva à sua mais alta potência". Final78 mente um trabalho de 1806, Exposição da verdadeira relação entre a filosofia da natureza e a doutrina de Fichte revista e corrigida, Schelling ataca a filosofia religiosa de Fichte na trilogia Sinais característicos do tempo presente, A essência do sábio e Introdução à vida feliz, trilogia que, ironicamente, designa por "inferno, purgatório e paraíso da filosofia de Fichte". Neste trabalho, Schelling censurava Fichte por considerar a natureza ou com o sentimento do mais rude e louco asceta, ou seja, como um puro nada, ou do ponto de vista puramente mecânico e utilitário, ou seja, como um meio de que o eu se serve para realizar a sua liberdade. Fichte não procurou entender a vida dinâmica da natureza e a beleza do mundo (Werke, 1, VH, p. 94, 193). E verdadeiramente sobre este ponto, a antítese entre Fichte e Schelling não podia ser mais radical, tendo-se em conta a enorme distância entre os interesses espirituais que faziam mover um e outro. Schelling reconhecia na natureza, de forma cada vez mais clara, a realidade incondicionada, o próprio Deus. No apên. díce à Introdução às ideias (1803) e mais ainda nos Aforismos (1805-07), Schelling reconhece o
carácter divino da natureza e identifica-a com Deus. Mas as ideias de Deus são tudo, por conseguinte Deus é tudo, é a totalidade do devir que se realiza em infinitas formas. "O Absoluto não é apenas um querer em si. próprio, é também um querer em infinitos modos, por conseguinte em todas as formas, em todos os graus e em todas as potências da realidade. A expressão deste eterno e infinito querer é o mundo" (Werke, 1, 11, p. 362). A relação entre o mundo das 79 ideias divinas e o mundo sensível é a relação entre o infinito e o finito. "A forma da objectivação do infinito no finito como forma da manifestação do em si ou da essência, é a corporeidade em geral. Na medida em que as ideias aparecem na objectivação do finito elas são necessariamente corpóreas; mas na medida, e nesta relativa identidade apresentam-se, no entanto, como formas do todo, nas suas manifestações são ideias e são corpos, e conjuntamente mundos, ou seja: corpos celestes. O sistema dos corpos celestes, ,portanto, não é mais que o reino das ideias, visível e cognoscível pelo finito" (Werke, 1, 11, p. 187). § 562. SCHELLING: A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL O reconhecimento do valor autónomo da natureza e, por conseguinte, do Absoluto como identidade ou indiferença de natureza e espírito, leva Schelling a admitir duas direcções possíveis na investigação filosófica: uma, filosofia da natureza, destinada a demonstrar como a natureza se resolve no espírito, a outra, a segunda, a filosofia transcendental, destinada a demonstrar como o espírito se resolve na natureza. Uma vez que não existe uma natureza que seja puramente natureza (pura objectividade) e não existe um espírito que seja puramente espírito (pura subjectividade), assim uma investigação que se dirija apenas à natureza acaba sempre por alcançar o espírito e uma investigação que se debruce sobre o espírito, alcança necessariamente a natureza. Schelling tinha-se ocupado do primeiro tipo de investi80 SCHELLING gação nos trabalhos até aqui examinados de filosofia da natureza, o segundo tipo de investigação é tentado por ele na obra Sistema de idealismo transcendental publicada em 1800. Nesta obra, Schelling parte, como te, do Eu ou autoconsciência absoluta; mas reconhece rapidamente no eu unia dualidade de forças. Se o eu ao produzir (e por conseguinte ao limitar-se através do objecto produzido) fosse consciente de produzir, não existiria para ele um objecto que se opõe porque esse objecto revelar-se-lhe-ia como sua própria actividade. Mas o acto com que o eu produz o objecto, intuindo-o, e o acto que o torna consciente do objecto, reflectindo, são dois actos diferentes. O segundo acto encontra o objecto já produzido e por conseguinte reconhece-o como estranho a si. O primeiro acto, o da produção ou intuição, é por isso inscielde. Schelling distingue no eu uma actividade real que produz o objecto e uma actividade ideal que o percebe ou conhece. Mas como a actividade real (imaginação produtiva) não ~WWVMM, a actividade ideal percebe o objecto como algo de estranho, de não colocado por si, de externo. A realidade identifica-se portanto com a produção inconsciente, a idealidade com o conhecimento do produto e com a consciência (filosófica, não originária) do produzir. O carácter insciente da produção originária que o eu faz do objecto serve de fundamento, segundo Schelling, à realidade do conhecimento. "Anularia a realidade do conhecer, afirma
ele (Werke, 1, 111, p. 408), apenas um idealismo que fizesse nascer a originária limitação livre e consciente, no ponto em que o idealismo 81 transcendental nos faz ser tão pouco livres em relação às próprias limitações quanto o próprio idealista poderia desejar". O eu sente, encontra em si algo de oposto, uma negação da sua actividade, uma real passividade. Mas não pode ter consciência daquilo que sente, como de uma sensação que lhe é própria, senão através de uma sua actividade que proceda para além do Emite constituído pela própria sensação. O empirismo, afirma Schelling, explica a passividade do eu, não a actividade através da qual ele se torna consciente de si e regressa a si próprio, referindo a si a própria sensação exterior. Esta actividade apenas se pode explicar se, depois de ter reconhecido na própria sensação a actividade limitada (pouco producente) do eu, se reconhece que a mesma procede idealmente para além do limite, próprio no mesmo acto com que é colocado. Deste modo, o eu real finito (porque limitado pelo objecto sentido) e o seu ideal infinito (porque procedente para além do limite constituído pelo objecto) se identificam constituindo um único. Esta identificação não é, no entanto, um acto imóvel, mas um acontecimento que se reproduz infinitamente. "O eu como sujeito da actividade infinita é dinamicamente (potencialmente) infinito; a própria actividade, enquanto é colocada como actividade do eu, passa a ser finita; mas enquanto se transforma em finita é de novo alargada para além do limite, e enquanto alargada é novamente limitada e esta situação perdura indefinidamente" (1b., p. 432). Que o eu produza deste modo todas as coisas é a conclusão a que chega a reflexão filosófica livre82 mente conseguida, que não pertence no entanto ao acto originário do eu: neste, a actividade inconsciente persiste mesmo quando a reflexão filosófica demonstra a total derivação das coisas do eu. O reconhecimento de uma coisa em si, estranha e oposta ao eu e como tal intervenha do exterior para limitar o eu e para determinar a passividade, pertence àquela condição do eu em que ele ainda não se elevou à reflexão filosófica. Para esta última, portanto, "a coisa em si não é senão a sombra da actividade ideal, ultrapassando os limites, sombra que, mediante a intuição, é reenviada ao eu, sendo por isso um produto do eu" (lb., p. 422). Mas se se considerar o eterno acontecer da realidade finita e da actividade ideal infinita, nos aspectos de produto desta actividade, verifica-se que este produto reflecte em si tanto uma como outra. O produto da actividade do eu é a matéria; e já vimos, através da exposição da filosofia da natureza, que na verdade os factores da matéria, ou seja: as forças que a constituem, são os mesmos factores da intuição produtiva. Este postulado da filosofia da natureza surge agora justificado por Schelling. Tal como na actividade do eu pela qual o produto é construído - existe um aspecto que tende para o infinito, assim também um dos factores da matéria é uma força expansiva infinita (atracção); e como a outra actividade do eu é uma actividade ,limitada, que contrasta com a primeira, assim também existe na matéria uma força oposta negativa e inibitória (repulsa). A acção recíproca destas forças explica (como se viu no parágrafo precedente) a 83
constituição de todas as forças fundamentais da natureza. Mas o que por ora Schelling pretende evidenciar é o facto de a construção da matéria proceder de pari passo com a construção que o eu faz de si próprio e que constitui com ela um todo. Como a matéria é paralela ao acto pelo qual o eu sente e intui como sensível que se eleva à inteligência, também o mundo orgânico é paralelo ao acto pelo qual o eu, como inteligência, se intui a si próprio na variedade das suas manifestações e procura integrar estas manifestações num todo orgânico, num organismo. O mundo da organização é o produto de um acto de reflexão à segunda potência, do acto pelo qual a consciência depois de ter reflectido sobre o objecto sentido (primeiro tempo) reflecte sobre si própria, reconhecendo-se a si própria na mesma organização a que dá lugar com este acto (segundo tempo). Neste segundo tempo, a inteligência reconhece-se na mesma organização que o seu produto, ponto mais elevado da mesma organização. O terceiro tempo será aquele em que a inteligência se torna consciente da pura forma da sua actividade, separando-a, pela abstracção transcendental, de toda a matéria. "Na medida em que o eu produz por si todas as coisas, e não apenas este ou aquele conceito ou forma de pensamento, mas todo o uno e indivisível saber, existe a priori. Mas enquanto somos inscientes de tal se produzir, nada existe em nós a priori, tudo é a posteriori". (lb., p. 528-29). Mas nós não podemos -tornarmo-nos conscientes de que tudo é a priori se não separarmos o acto de produzir do produto. 84 Nesta separação (abstracção transcendental) desaparece todo o elemento material e não fica senão a pura forma que é portanto o a priori. No entanto, o único a priori é verdadeiramente a actividade â1o consciente. " Não são os conceitos, afirma Schelling, mas a nossa própria natureza e todo o seu mecanismo que são inatos em nós. Esta natureza é uma natureza determinada e opera de determinada maneira de modo completamente insciente, porque não é mais que esse mesmo operar, o conceito deste operar não existe nela, porque de outro modo seria, desde a origem, algo de diferente desse operar; e se o alcança, isso acontece apenas mercê de um novo acto que toma como seu objecto o primeiro" (1b., p. 529). O terceiro tempo é portanto o tempo da filosofia. Ora a filosofia, que (como vimos) consiste no acto pelo qual a inteligência se liberta de todo e qualquer objecto e se reconhece na sua pura forma, só é possível através da vontade. A vontade é, com efeito, a autodeterminação da inteligência, enquanto prescinde dos objectos (1b., p. 533). A vontade surge introduzida por Schelling apenas como princípio da reflexão filosófica. A mesma, todavia, exige a existência de outros seres inteligentes. Com efeito, a autodeterminação da inteligência, desvinculando a inteligência de toda a limitação objectiva, passaria a ser uma actividade ilimitada (que como tal não poderia querer nada em particular) se não fosse também o reconhecimento de outras actividades livres, de outras inteligências, que limitam a autodeterminação da própria inteligência (lb., p. 547). "Em virtude da originária auto-intuição da minha livre 85 actividade, esta livre actividade pode ser colocada apenas quantitativamente, dentro de limitações, as
quais, uma vez que a actividade é livre e consciente, são possíveis apenas por obra de inteligências existentes fora de mim; por isso eu, nas influências das inteligências existentes fora de mim não encontro senão os limites originários da minha própria individualidade, e deverei intuí-la também como se efectivamente não existissem outras inteligências para mim" (lb., p. 550). A existência das outras inteligências garante a realidade independente do mundo. "Para indivíduo, as outras inteligências são quase os eternos sustentáculos do universo, outros tantos espelhos indestrutíveis do mundo objectivo" (1b., p. 556). § 563. SCHELLING: A HISTórIA E A ARTE O Absoluto ou Deus, como identidade ou indiferença de duas forças, uma subjectiva, espiritual ou ideal, consciente, a outra objectiva, natural e real, insciente, acha-se e manifesta-se no domínio que é próprio da liberdade humana, no domínio da história. O homem não é livre enquanto se identifica com o Absoluto, que é superior à própria liberdade, nem é livre enquanto é pura objectividade natural, porque como tal é simplesmente determinado; é livre apenas quando oscila entre a subjectividade e a objectividade e se reporta ao princípio absoluto de ambos. "Se reflectido sobre a actividade objectiva como tal, no eu existirá apenas a necessidade natural; se reflectido sobre a actividade subjectiva, no eu existirá apenas o absoluto querer que, pela sua natureza, não tem 86 por objecto senão a autodeterminação em si; mas se reflectido sobre a actividade que vai para além de uma e de outra e que determina conjuntamente tanto a subjectiva como a objectiva, no eu existe arbítrio e com ele, a liberdade de querem (lb., p. 578-79). A liberdade humana é portanto a síntese de necessidade e liberdade e o domínio em que esta síntese se manifesta e realiza é o da história. A história é para a filosofia prática aquilo que a natureza é para a filosofia, teorética. Existe nela o mesmo desenvolvimento orgânico, o mesmo incessante progresso que Schelling tinha descoberto no mundo natural: desenvolvimento orgânico e progresso que fazem da história um plano providencial que se realiza gradualmente no tempo. A liberdade deve ser necessidade, a necessidade deve sei liberdade, afirma Schelling (1b., p. 594). Mas a necessidade que se opõe à liberdade não é senão o inconsciente. Aquilo que em mim é inconsciente, é involuntário; aquilo que em mim se relaciona com a consciência é em mim obra do meu querer. Na liberdade deve encontrar-se a necessidade; isto significa portanto que por meio da própria liberdade e apesar de eu julgar que actuo livremente, deve surgir de forma inconsciente algo sem a minha cooperação, algo que eu não propunha a mim próprio. " Pelo jogo livre e aparentemente ordenado da vontade individual, delineia-se, progressivamente, através da história, um plano ordenado e
harmónico, por obra da actividade inconsciente que, nela actua". Este eterno inconsciente que, semelhante ao eterno sol no reino dos espíritos, se esconde na sua própria luz serena, não se tor87 nando no entanto jamais objecto, imprime a sua identidade a todas as acções livres, é o mesmo para todas as inteligências, é a raiz invisível da qual todas as inteligências são meras potências e é o eterno intermediário entre o subjectivo, que se determina a si próprio em nó s, e o objectivo ou o que intui como ainda o fundamento da conformidade com a lei na liberdade, e da liberdade na conformidade como lei própria do objectivo (Ib., p. 600). A história é como um drama no qual todos declamam o seu papel em plena liberdade e segundo o capricho próprio e ao qual apenas o espírito do poeta dá unidade no seu desenrolar. Mas o poeta da história o Absoluto ou Deus não é independente do seu drama: através da livre acção dos homens, ele próprio actua e se revela e assim os homens são colaboradores de toda a &ora e inventores da parte especial que declamam (1b., p. 602). Retomando nas Lições sobre o método do estudo académico (1803) este conceito da história, Schelling determinava-o consagrando respectivamente no Estado e na Igreja, a expressão real e ideal da harmonia perfeita da necessidade e da liberdade. No Estado perfeito o que é necessário é ao mesmo tempo livre e reciprocamente; e o mesmo acontece subjectivamente ou idealmente na Igreja. A unidade do Estado e da Igreja constitui o Estado absoluto, que Schelling distingue na monarquia (Werke, 1, V, p. 314). Viu-se já como Schelling, quando quis explicar a identidade da liberdade e da necessidade na história, recorreu à imagem de Deus como poeta criador da história. E, na realidade, para ele a poesia e, em 88 geral, a arte é o único meio que permite apreender esta identidade de sujeito e objecto, de ideal e real, de consciente e de inconsciente, de liberdade e de necessidade, que constitui o Absoluto. O artista é levado à sua criação por uma força insciente que o inspira e entusiasma: força que o impele a exprimir ou a descrever coisas que ele próprio não atinge inteiramente e cujo significado é infinito (System, Werke, 1, 111, p. 617). Se a arte é devida a duas actividades diferentes entre si, o génio não é nem uma nem outra, e está acima de ambas. Se se chama arte à actividade consciente que na realidade é apenas uma parte da actividade estética, dever-se-á reconhecer na poesia o elemento inconsciente que é a outra parte essencial da mesma, aquele que não se pode obter pelo exercício e não se pode aprender de forma alguma (Ib., p. 618). Em relação a este último elemento, o carácter fundamental da obra de arte surge como uma infinidade inconsciente, síntese de natureza e liberdade. A mitologia grega, por exemplo, encerra em si um significado infinito e símbolos para todas as ideias, sem que se possa supor no povo que a criou uma intenção consciente dirigida nesse
sentido (1b., p. 619-20). O mesmo acontece com todas as obras de arte que conseguem a unificação do consciente e do inconsciente depois da sua separação, e nisso se distinguem do produto orgânico que apresenta estas duas forças ainda indivisas, antes da sua separação. O produto da natureza orgânica é, por conseguinte, belo mas acidentalmente, não necessariamente; e Schelling inverte a regra artística da imitação da natureza, afirmando que não é a natureza bela 89 que oferece a regra em arte, mas vice-versa, é a arte que produz na sua perfeição princípio e norma que permite a valorização da beleza natural (1b., p. 622). A intuição estética que actua na obra de génio, que é sempre génio estético ainda que se manifeste na ciência, é o verdadeiro instrumento da filosofia. Trata-se de uma intuição intelectual tornada por sua vez objecto de intuição e que por isso tem uma validade universal que a intuição intelectual, própria do filósofo, não possui. "A filosofia, ainda que atinja o seu ponto mais elevado, nunca consegue no entanto abarcar senão um fragmento do homem. Ao passo que a arte leva o homem na sua liberdade, tal como é, ao conhecimento mais elevado e nisso consiste a eterna diversidade e o milagre da arte" (lb., p. 630). Com esta doutrina de Schelling, a arte passa a assumir pela primeira vez na história da filosofia um significado universal e total. Kant tinha visto na arte uma atitude possível do homem perante a natureza; Schiller, a forma original e suprema do homem. Schelling vê nela a própria vida do Absoluto e a raiz de toda a realidade. A exaltação romântica do valor da arte apodera-se desta ideia fundamental de Schelling que será rapidamente retomada e desenvolvida por A. W. Schlgel. Entretanto, o próprio Schelling retomava e desenvolvia a sua doutrina num curso de Filosofia de arte dado em Jena em 1802-4, em Würzburg em 1805 e que ficou inédito. Nele, Schelling retoma e desenvolve, em forma de teoremas concatenados, o princípio de que "o universo está em Deus como abso90 luta obra de arte e como eterna beleza" (Werke, 1, V, p. 385). A arte apresenta as coisas tal como elas são em si, tal como são no absoluto as formas absolutas das coisas; e a imediata causa de toda a arte é o próprio Deus. As formas das coisas que a arte descobre e nos apresenta são as ideias e estas últimas, como imagens do divino, quando consideradas reais surgem como divindade. As ideias são o próprio Deus numa forma particular por isso toda a ideia é Deus mas um Deus particular. E assim aquilo que para a filosofia são ideias, para a arte é divindade, e reciprocamente (1b., § 28, p. 390-91). Mas o mundo da divindade não é objecto do intelecto ou da razão, mas da fantasia e constitui, na sua complexidade, a mitologia. A mitologia é, por conseguinte, a condição necessária e a matéria-prima de toda a arte (1b., § 38, p. 405). Uma vez que o desenvolvimento cósmico se cinde no domínio da natureza e no do espírito, também a mitologia e a
arte, que o exprimem na sua forma absoluta, se dividem numa corrente real e numa corrente ideal A mitologia realista alcança o seu mais alto cume com os Gregos, a mitologia idealista alcança a plenitude dos tempos com o cristianismo. A essência da ~a consiste em ter interpretado de tal modo o infinito e o finito que tornou impossível qualquer simbolização de um por parte do outro e em ter alcançado a forma perfeita e absoluta da poesia (1b., p. 422). A essência do cristianismo é o conceito da história do mundo como libertação do mundo, do filho de Deus como símbolo da eterna humanização de Deus. Desta ideia brota o reino de Deus sobre 91 a terra, representado pela Igreja e simbolizado no culto. A Igreja e o seu culto surgem assim, aos olhos de Schelling, com uma "obra, de arte viva" (lb., p. 434). Tal como a mitologia, assim a arte se desenvolve numa direcção real ou numa direcção ideal Esse sentido realista é constituído pelas artes figurativas, o sentido idealista pela poesia. As artes figurativas são a música, a pintura e a &stica. que compreende a arquitectura, o baixo-relevo e a escultura. A arte poética, distingue-se em lírica, épica e dramática que comprende a comédia e a tragédia. A música é colocada entre as artes figurativas porque a sua essência, que é o ritmo, é a primeira e mais pura forma do movimento do universo; e sob este aspecto Schelling vê no sistema solar a expressão de todo o sistema da música (lb., p. 503). § 564. SCHELLING: A ORIENTAÇÃO RELIGIOSO-TEOSÓFICA Em 1801, Schelling publicava uma nova Exposição do meu sistema filosófico segundo o método geométrico de Espinosa. Nela, em lugar de partir do eu, como no Sistema do idealismo transcendental, Schelling parte da razão, definida desde o princípio (Darstellung meines Systems, § 1) como "indiferenciação total entre o subjectivo e o objectivo". Esta indiferenciação surge pois esclarecida como identidade e a identidade reconhecida (Ib., § 32), não como causa do universo, mas como o próprio universo. Em relação à identidade absoluta que representava a infinitude autoconsciente da vida divina, os 92 fenómenos singulares constituem a diferença quantitativa entre o subjectivo e o objectivo (1b., § 37). A matéria é a totalidade relativa, a primeira manifestação da identidade absoluta; e Schelling parte deste pressuposto para deduzir as forças singulares da matéria. Em 1802 num diálogo intitulado Bruno ou o princípio divino e natural das coisas, Schelling expunha numa forma popular o seu conceito de divindade como artífice do mundo e do mundo como devir da revelação divina. O diálogo mostra já indícios do crescente interesse de Schelling pelo problema religioso, que debateu pouco depois no seu trabalho Filosofia e religião. A unidade entre a filosofia e a religião só é possível se existir um conhecimento imediato do Absoluto. Mas o conhecimento imediato do Absoluto não existe fora do Absoluto: é o próprio absoluto no seu auto-objectivar-se e auto-intuir-se. Tal auto-objectivação do Absoluto é o processo intemporal da sua revelação, "a verdadeira teogonia transcendental" o surgir de um mundo de ideias que é a condição de todo o conhecer (Werke, 1, VI, p. 35). Mas como nasce, através deste mundo puramente espiritual, o mundo da matéria? Se se considerar este mundo como dependente de Deus, não se fará de Deus a causa das imperfeições e do mal que nele existe? (1b., p. 47).
No modo como são formadas estas perguntas se revela uma nova orientação da especulação de Schelling. Até então, ele vira na matéria apenas vida, perfeição e beleza e por isso não tinha de forma alguma sentido a exigência de separá-la da vida 93 divina, e sempre repetira a tentativa de deduzi-la da própria natureza de Deus. Mas esta dedução é declarada agora impossível. Schelling admite que o mundo da matéria seja fruto de uma queda, de um afastamento da vida divina; e refere-se explicitamente a Platão. Deus implica a possibilidade desta queda e implica-a não através da sua natureza absoluta, mas através da imagem original que lhe é própria enquanto se intui ou se objectiva, imagem que é dotada, como ele próprio, de liberdade (1b., p. 39). A possibilidade da queda não significa a sua realidade, esta realidade é fruto da liberdade da imagem em que Deus ao mesmo tempo se revela e se redobra, dando lugar à natureza finita, ao mundo material. Por essa razão, depois do afastamento de Deus, o mundo material procura regressar e com este regresso justifica a sua queda e o seu afastamento. Deste modo, a história se identifica com um epos representado poeticamente no espírito de Deus, a Ilíada traduz o afastamento das coisas em relação a Deus, a Odisseia o seu regresso. Neste regresso reside a verdadeira imortalidade que não é já uma imortalidade individual pois o indivíduo como finitude é por si próprio afastamento e unição; mas é palingénese ou seja: dissolução do mundo sensível e sua resolução total no mundo espiritual (Ib., p. 62-64). No espírito desta doutrina, que reproduz velhas especulações da patrística, se baseiam as Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana e dos objectos que existem conectos, publicadas por Schelling em 1809. Hegel, no prefácio à Fenomeno94 logia do espírito (1807), tinha criticado rudemente o conceito schellinguiano do Absoluto como identidade ou indiferença, descobrindo nele um "abismo absoluto" em que se perdem todas as determinações concretas da realidade, comparando-o à noite "na qual todos os gatos são pardos". Em substância, Hegel sustentava que o Absoluto de Schelling parecia privado de qualquer vida e consistência interior e por conseguinte incapaz de valer como princípio explicativo da realidade. As Investigações são uma resposta, ainda que parcial, de Schelling às objecções de Hegel. Schelling propõe-se demonstrar nesta obra: 1º - que o Absoluto, ainda que entendido como identidade, não deixa de implicar uma articulação interior e portanto, vida e devir; 2.O-que o Absoluto assim entendido poderá explicar a existência humana como liberdade e como moralidade. Quanto ao primeiro ponto, Schelling faz suas algumas teses de Jacob Bõhme (§ 371). Em Deus existe não só o ser mas, com fundamento neste ser, um substracto ou natureza que é distinto dele e se
traduz num desejo obscuro e inconsciente de ser, de sair da obscuridade e de alcançar a luz divina (Werke, 1, VII, p. 359). Em Deus, o ser e o fundamento, o intelecto e a vontade, estão unidos e harmonizados; no homem podem estar separados. "Se no espírito do homem, afirma Schelling, a identidade dos dois princípios fosse entretanto indissolúvel como em Deus, não existiria qualquer distinção e Deus, como espírito, não se revelaria. Esta mesma unidade que em Deus é inseparável, deve ser separável no homem e daí resulta a possibilidade do 95 bem e do mal" (1b., p. 364). O homem pode permanecer ligado ao querer obscuro que é o individual e recusar-se a erguer a sua vontade à luz do ser de Deus, tornando-a universal. É esta a possibilidade do pecado e do mal. Esta possibilidade é traduzida na realidade por uma solicitação ou tentação que surge no homem pelo próprio fundamento de Deus, que possui uma vontade diferente da de Deus. O querer do amor e o querer do fundamento são dois quereres diferentes e nenhum deles' existe por si; mas o querer do amor não pode contrastar com o querer do fundamento nem suprimi-lo, porque assim contrastaria consigo próprio. Com efeito, o fundamento deve actuar, para que se possa exercer o amor e deve actuar independentemente dele para que ele possa realmente existir (1b., p. 375). A própria exigência da revelação de Deus exige a acção independente e a acção contrastante do fundamento. Assim a possibilidade humana de pecar é baseada sobre a própria natureza de Deus, mas não no próprio Deus. E o homem decide-se pelo bem ou pelo mal no acto em que emerge, com a criação, por esta natureza. Ninguém actua em conformidade com aquilo que é; mas em conformidade com aquilo que decidiu ser quando se formou no fundamento de Deus. Daqui resulta a inconsciência e a irresistível inclinação para o mal que se manifesta em alguns homens; os quais, no entanto, são igualmente livres e responsáveis pelo seu agir, em virtude da escolha que fizeram do seu ser no acto da criação. 96 Schelling coloca deste modo em Deus, como nas criaturas que dele derivam, dois princípios; e para além e antes deles, como princípio originário, reconhece ainda a indiferenciação de que se servira antes para definir a natureza de Deus. O princípio originário é a diferenciação entre o real e o ideal, as trevas e a luz, o inconsciente e o consciente, e na medida em que é indiferenciação é estranho às suas oposições e torna-as possíveis (1b., p. 407). Sebelling procurou encher com uma vida concreta e articulada esse vazio da indiferenciação que Hegel lhe havia reprovado; mas só o conseguiu à custa de fazer da mesma uma dualidade de princípios e de determinar essa dualidade pela oposição problemática e puramente humana entre o bem e o mal. § 565. SCHELLING: A FILOSOFIA POSITIVA As Investigações (1809) interrompem a actividade literária de Schelling que se fecha num mutismo despeitado a partir daí, assistindo ao triunfo de Hegel que identificava claramente a realidade com a razão e desenvolvia sobre este fundamento as várias partes de um sistema organizado e completo. Schelling rompe o silêncio só três anos depois da morte de Hegel com uma publicação ocasional: um breve prefácio à tradução alemã dos Fragmentos filosóficos de Cousin (1834). Mas já neste escrito se anuncia a nova direcção tomada pela sua filosofia, a que ele chamou positiva e que expõe nos cursos que permanecem inéditos e dados na Universidade de Berlim.
97 Schelling jamais fora levado a identificar o real com o racional. Ainda que designando o Absoluto com o nome de eu ou de razão havia sempre incluído nele uma referência à realidade, ao objecto, ao existente como tal e tinha-o sempre reconhecido como indiferenciação entre idealidade e realidade. A doutrina de Hegel surge-lhe, por conseguinte, como uma caricatura, um exagero unilateral do seu sistema. Hegel destruiu a distinção entre racional e real, colocou o racional em lugar do real, reduziu tudo ao conceito, e teve a pretensão de derivar deste toda a realidade, a existência do mundo e a de Deus. Este procedimento, segundo Schelling, é impossível. Pode-se, sem dúvida, começar um sistema filosófico com um princípio puramente racional. " Mas do mesmo modo que todas as formas que se chamam a priori exprimem apenas o lado negativo do conhecimento, sem as quais o conhecimento não é possível, e não o lado positivo, aquilo porque ela surge, também o seu carácter de universalidade e necessidade é apenas um carácter negativo; do mesmo modo, que o prius absoluto que, na sua universalidade e necessidade é apenas o que não pode conceber-se, o ser em si, não é senão o carácter universal negativo, sem o qual nada existe, mas não é ele que faz com que qualquer coisa exista" (Werke, 1, X, p. 201 e sgs.). Esta distinção entre as condições negativas sem as quais nada pode existir, e as condições positivas pelas quais qualquer coisa existe na realidade, constitui o princípio que anima os dois cursos de Schelling sobre a Filosofia da mitologia e sobre a Filo98 sofia da revelação. As condições negativas são as formas necessárias do ser e do pensamento. Se o ser é (existe) não pode ser e não ser pensado senão assim: estas formas constituem uma necessidade do pensamento e exprimem aquilo sem o qual não se pode pensar; dizem respeito ao quid sit, à essência da realidade. Pelo contrário, condição positiva, aquela pela qual o ser existe, é a criação, a vontade de Deus em revelar-se e desta vontade completamente incondicionada e livre depende a existência do que quer que seja: só ela diz respeito ao quod sit, à existência. A identidade entre pensamento e ser vale apenas em relação à essência, nunca em relação à existência (Werke, 1, 111, p. 57 e sgs.). A filosofia negativa ou racional consegue determinar as possibilidades ou potências do ser que são três: a primeira, puramente negativa, é o simples poder ser, a segunda, positiva, é o dever ser necessário, (mússen), a terceira, que liga as duas primeiras, é o dever ser obrigatório (sollen). Schelling identifica estas três potências respectivamente com a causa material, a causa eficiente e a causa final de Aristóteles (Werke, 11, 1, p. 286 e sgs., 317 e sgs.). O princípio que unifica estas três potências é aquilo a que Aristóteles chamou a substância ou o fundamento, o quod quid erat esse. No âmbito da própria filosofia negatívo-racional se coloca todavia a distinção entre possibilidade e realidade, entre essência e existência; e a realidade ou existência surge introduzida com a consideração da razão activa autoconsciente, a que Aristóteles tinha chamado nous e que Fichte chamou eu. O eu, primeiramente, quer ser seme99 lhante a Deus e rivalizar com Deus; daqui nasce o mito de Prometeu; depois, subordina-se a Deus e reconhece-se perante Deus como nada. Com este reconhecimento a filosofia racional alcança o seu
limite. Na auto-negação do eu se encontra o limite constituído por uma realidade autêntica: um Deus existente, real, pessoal, senhor do ser e acima do ser, por conseguinte, supraterreno (1b., p. 566). nesta altura impõe-se a passagem da filosofia negativa à filosofia positiva; mas esta passagem é um trasbordamento da actividade, que deve deixar de ser teorética e especulativa para se tornar prática e religiosa. A filosofia positiva leva a colocar-se no campo de uma religião filosófica que tem como objectivo reconhecer a religião natural, que é a mitológica e a revelada (1b., p. 571). A filosofia da mitologia e filosofia da revelação dividem entre si o terreno da filosofia positiva. A criação é a progressiva revelação de Deus, mas não se identifica com a revelação no seu sentido próprio, que pressupõe a consciência humana de Deus (religião) e portanto a existência do mundo espiritual e humano. Deus revela-se primeiramente na sua natureza e na sua necessidade, em seguida, ria sua absoluta personalidade e liberdade. A revelação da natureza de Deus acontece na religião natural ou mitologia, a revelação da absoluta personalidade e liberdade de Deus, acontece na religião revelada, na qual Deus se manifesta em toda a sua verdade. Por isso, a mitologia e a filosofia da revelação descrevem o desenvolvimento gradual através do qual a religião atinge de forma cada vez mais perfeita 100 a profundidade da vida divina (Werke, 1, VIII, p. 345 e sgs.). Segundo este ponto de vista, o ponto mais elevado que a filosofia pode alcançar é a fé porque é através dela que alcança o repouso, e finalmente, repousa. A fé não é apenas o objectivo final da revelação: é também o da filosofia da revelação; é fé filosófica ou religião filosófica. Assim Schelling, que tinha começado por defender a autonomia da natureza perante o subjectivismo de Fichte, termina a sua actividade filosófica defendendo a autonomia da existência real - tanto a de Deus como a do mundo - contra o racionalismo de Hegel. Nesta segunda posição, os pressupostos doutrinais de que tinha partido e que serviram para construir a filosofia da natureza e a filosofia transcendental são agora invertidos. O espírito que anima Schelling é, nesta última fase da sua especulação, o que tinha animado Hamman e Jacobi, os filósofos da fé. As imaginosas reconstruções da mitologia e as interpretações bíblicas e teológicas de que se serve neste período, oferecem escasso interesse. O único princípio que ainda permanece soldado e constitui a inspiração genérica das suas posições doutrinais é o princípio próprio do romantismo: o reconhecimento do infinito, manifestando-se na ordem progressiva e necessária da natureza e da história. E este princípio liga-o a Fichte e a Hegel numa só família. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 557. Sobre a vida de Schelling: X . F. A. Schellimg (filho do fil~o), Aus Schelhings Leben, In Briefen, Leipsig, 1869-70; e as monografias citadas 101 em baixo. W. Dilthey (com o pseudóniino de Hoffner) em "Westernianns Monats,chefte",
1874-75. § 558. SãmmUiche Werke, a cargo do filho, duas série@s: L, série (obras editadas), 10 vols.; 11.1 Série (obras inéditas) 4 vols., Stuttgart und Augsburg, 1856 e sgs.; Werke, recolha em 3 vols., a cargo de A. Dr&ws, Leipsig, 1907. Traduç&es itálianas: Sist. do Ideal Transe. trad. Losaeco, Bari, 1908; Bruno, trad. Florenzi Waddington, Florença; Rec. Filos. sobre a Essência da liberdade humana, trad. Losacco, Lanciano, 1910; 14 lições sobre o ~no académico, ;trad. Viscontí, Pã@ernio, 1913; Exposição do meu sistema filosófico, trad. De Ferri, Bari, 1923; As artes figurativas e a natureza, trad. G. Preti, Milão. § 559. K. Fischer, S.s Leben, Werke und Lehre, HeidOlberg, 1872, 3.1 ed., 1902; E. Von. Hartmann, 8.s philos. System, Leipsig, 1897; O Braun, S., Leipsig, 1911; Bréffier, S., Paris, 1912; N. Hartmann, Die phi?os. des deutschen Ideal., vol. I, BerIlim, 1923, p. 123-86; KnIttermeyer, S. und die romantische Schule, München, 1929; S. Prago del Boes, A filosofia de S., Flovença, 1943; H. Zeltner, S., Stuttgart, 1954; H. FhuTmanns, 8.s Philosophie der Weltalter, Düsseldorf, 1954; K. Jaspers, S., München, 1955; E. Benz, S., Zurich-Stuttgart, 1955; A. Dempf-A Wenzel, S., Mü nchen, 1955; W. Wieland, S.s Lehre von der Zeit, Heidelberg, 1956; G. Semerari, Interpretação de S., I, NápÓles, 1958. § 561 R. Kobeir, Die Grundprinzipien der Schellingschen Naturphilos., Berlim, 1881. § 563. M. Adam, S.s Kunstphilos., Leipsig, 1907; G. Mehlis, S.s Geschichtephilos. in den Jahren 1799-1804, Heidelberg, 1907; A. Faggi, S. e a filosofia da arte, Modena, 1909. § 565. DelbGs. De posteriore Schellingii philosophia hegelianae doctrinae adversatur, Paris, 1902; Croce, Do primeiro ao segundo S., in Crítica, 1909. 102 v HEGEL § 566. HEGEL: A VIDA Georg Wilhem Friedrich HEGEl, -nasceu a 27 de Agosto de 1770 em Stuttgart. Seguiu os cursos de filosofia e de teologia da Universidade de Tubingen (1788-93), onde se ligou de amizade a Schelling e Hõrderlin. Os acontecimentos da Revolução Francesa suscitaram nele grande entusiasmo e exerceram sobre o seu pensamento uma influência duradoura. Com os amigos de Tubingen, plantou uma árvore da liberdade e foi um dos oradores mais entusiastas na defesa dos princípios revolucionários da liberdade e da igualdade. Quando Napoleão entrou em Jena (a 13 de Outubro de 1806), Hegel escreveu uma carta: "Vi o Imperador-essa alma do mundocavalgar através da cidade em missão de reconhecimento: é deveras um sentimento maravilhoso con103 templar um tal indivíduo que, concentrado em determinado ponto, sentado num cavalo, abarca e domina o mundo" (Werke, XIX, p. 68). E este entusiasmo não diminui quando Hegel dá a sua adesão ao Estado prussiano e reconhece nele a incarnação da razão absoluta. Com efeito, comparava mais tarde a revolução a "um nascer do sol esplendoroso, um sentimento sublime, um entusiasmo de espírito que fez estremecer o mundo de
emoção, como se só naquele momento tivesse sido conseguida a reconciliação entre o divino e o terreno" (Ib., lX, p. 441). Terminados os estudos Hegel tornou-se, como era costume, preceptor em casas particulares e permaneceu durante certo tempo em Berna (1793-96). As páginas de um diário de viagens pelos Alpes (publicadas postumamente) revelam-no completamente insensível ao espectáculo da natureza. Não encontra "nada de grande nem de pacífico" no aspecto dos picos nevados, e nas montanhas não vê mais que "massas informes", onde o olhar não pode repousar pacificamente nem a imaginação encontrar objecto de interesse ou de divertimento. "O aspecto destas massas eternamente mortas, afirma, deram-me apenas uma impressão monótona e, com o tempo, entediante" (Rosenkranz, H.s Leben, p. 482). Durante a sua estadia em Berna escreveu os primeiros trabalhos que permanecerão inéditos: uma Vida de Jesus (1795) e um ensaio Sobre a relação entre a religião racional e a religião positiva (1795-96). Depois de permanecer três anos na Suíça, Hegel voltou à Alemanha e ocupou o lugar de preceptor particular 104 em Fraticoforte sobre o Meno (1797). Aqui escreveu em 1798 um pequeno trabalho que permaneceu inédito Sobre as mais recentes relações internas de Württenberg e no mesmo ano publicou, anónima, a tradução comentada e reelaborada de um trabalho de J. J. Cart, surgido em Paris em 1793, sobre a antiga situação política em Berna, trabalho que é uma crítica à aristocracia suíça e de que Hegel tinha experiência pessoal. Em 1798-99, Hegel escreve alguns trabalhos que ficaram inéditos, de natureza teológica; em 1800 o primeiro e breve esboço do seu sistema que também permaneceu inédito. Entretanto, tendo-lhe morrido o pai, que lhe havia deixado um pequeno capital, voltou a Jena e aqui surge publicamente com a Diferença dos sistemas de filosofia de Fichte e de Schelling (1801). Ao mesmo tempo, escrevia e mantinha inéditos outros escritos políticos. Em 1801 publicou a dissertação De orbitis planetarum e em 180203 colaborou com Schelling no "Jornal crítico de filosofia". Em 1805 torna-se professor em Jena e redactor-chefe de um jornal bávaro inspirado na política napoleónica. Em 1808 é nomeado director do Ginásio de Nuremberga e neste posto se mantém até 1816. Neste ano, foi nomeado professor de filosofia em Heidelberg; e em 1818 foi chamado para a Universidade de Berlim. Começou então o período do seu maior sucesso. Passa a ser o filósofo do estado prussiano e o ditador da cultura alemã. Nas suas dissertações em Berlim havia afirmado que existia uma "afinidade electiva" entre o seu sistema e o estado prussiano; por seu lado, este aceitou a aliança e não hesitou em 105 intervir energicamente, após solicitação do próprio Hegel, para proteger contra todas as críticas a filosofia que tinha adoptado e o respectivo autor. Além disso, Hegel não deixa de
formular o projecto de uma revista oficial que deveria levar os professores a ensinar "o saber realmente adquirido" e a defenderem-se "de uma falsa originalidade"; revista cuja comissão de redacção deveria ter a dignidade de órgão de governo (Werke, XVII, p. 383). Hegel morreu em Berlim, provàvelmente de cólera, a 14 de Novembro de 1831. § 567. HEGEL: ESCRITOS Os escritos do período de juventude dão a entender (como Dilthey aliás salientou) um interesse dominante por questões religioso-políticas. Este interesse transforma-se nas grandes obras da maturidade num interesse histórico e político. A realidade que não deixa no entanto de estar continuamente presente em Hegel e em cujos confrontos ele formula as suas categorias interpretativas é a da história humana e da vida dos povos. O próprio filosofar de Hegel é essencialmente histórico: procede mediante a assimilação das mais diversas doutrinas (que interpreta livremente) e mediante a incessante polémica com pensadores contemporâneos (Kant, Jacobi, Schelling). Os escritos de juventude (redigidos entre 1793 e 1800) permanecerão inéditos e são quase todos de natureza teológica: Religião do povo e cristianismo; 106 Vida de Jesus; A possibilidade da religião cristã; O espírito do cristianismo e o seu destino. Inéditos permanecerão também um primeiro esboço do Sistema, escrito em Jena em 1800: uma Lógica e metafísica, uma Filosofia da natureza e um Sistema de moralidade. O primeiro escrito filosófico publicado por Hegel é, como se disse, a Diferença dos sistemas de Filosofia de Fichte e Schelling (1801) no qual Hegel se pronuncia a favor do idealismo de Schelling que, apesar de ser subjectivo ao mesmo tempo, surge a seus olhos como o verdadeiro e absoluto idealismo. Do mesmo ano de 1801 é a dissertação do concurso para professor livre, De orbitis planetarum. Com Schelling Hegel colaborou em dois anos sucessivos no "Jornal crítico da filosofia" e é difícil distinguir os trabalhos que pertencem a um e a outro. São atribuídos a Hegel os seguintes escritos: 1.11 Sobre a essência da filosofia crítica em geral; 2.o Como encara a filosofia o intelecto comum; 3.o Relação do cepticismo com a filosofia; 4.o Fé e saber; 5.o Sobre o tratamento científico do direito natural. A primeira grande obra de Hegel é a Fenomenologia do espírito (1807) em cujo prefácio (1806) Hegel afirmava o seu afastamento da doutrina de Schelling. Em Nuremberga, Hegel publicou a Ciência da lógica, cujas duas partes surgiram respectivamente em 1812 e em 1816. Em Heidelberg surge, em 1817, a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio que é a mais completa formulação do sistema de Hegel. Nas duas edições sucessivas de 1827 e de 1830, o próprio Hegel 107 aumentou bastante o projecto da obra; a ela os alunos que organizaram a primeira edição completa das obras de Hegel (1832-45) acrescentaram longas anotações extraídas dos apontamentos ou das lições dadas por ele.
Em Berlim, Hegel publicava a obra que, em certo sentido, é a mais significativa, Traços Gerais de uma filosofia do direito ossia direito natural e ciência do estado em compêndio (1821). Durante o período em que ensinou em Berlim, Hegel, além desta obra, publicou bastante pouco: algumas breves recensões, o prefácio a um trabalho de um seu aluno e um artigo sobre a Reformbill inglesa (1831). Depois da sua morte os alunos recolheram, ordenaram e publicaram os seus cursos de Berlim: A filosofia da história; A filosofia da arte; A filosofia da religião; A história da filosofia. § 568. HEGEL: A DISSOLUÇÃO DO FINITO E A IDENTIDADE ENTRE REAL E RACIONAL O tema fundamental da filosofia de Hegel, como em Fichte e em Schelling, é o infinito, na sua unidade com o finito. Esta unidade, que nos escritos teológicos da juventude surge reconhecida e celebrada na religião, nos escritos posteriores é reconhecida na filosofia. Mas tanto nuns como noutros, é entendida no sentido de que o infinito, como única e exclusiva realidade das coisas, não existe para além do finito, supera-o e anula-o em si pró108 prio. Assim se estabelece a. diferença essencial entre a doutrina de Hegel por um lado, e a de Fichte e Schelling por outro. O Eu de Fichte e o Absoluto de Schelling (ambos actividade infinita) colocam eles próprios o finito como tal e de certo modo justificam-no fazendo-o subsistir como finito; deste modo o finito, para se adequar ao infinito e unir-se a ele encontra-se projectado num progresso em direcção ao infinito ( o mundo da natureza e da história), que, como tal, jamais alcançará o seu termo. Este progresso em direcção ao infinito é , segundo Hegel, o falso infinito ou infinito negativo; não supera verdadeiramente o finito porque o faz continuamente ressurgir e exprime apenas a exigência abstracta da sua superação (Enc., § 94). O infinito não pode ser colocado ao lado do finito, pois nesse caso este último seria obstáculo e o limite do primeiro não seria verdadeiramente infinito mas finito. Aquilo que, segundo Hegel, é "o conceito fundamental da filosofia", o verdadeiro infinito, deve por isso anular o finito, reconhecendo e realizando, atrás das aparências deste, a sua própria infinitude. "O infinito é afirmativo e só o finito é superado", afirma Hegel, que reconhece na idealidade, isto é, na não realidade do finito 'a proposição fundamental da filosofia (lb., § 95). A fórmula que melhor exprime a total abolição do finito na filosofia hegeliana é a que o próprio Hegel deu no prefácio à Filosofia do direito: "Aquilo que é racional é real; e aquilo que é real é racional". Esta fórmula não exprime a possibilidade da realidade ser atravessada ou entendida pela 109 razão, mas a necessária, total, e substancial identidade da realidade e da razão. A razão é o princípio infinito autoconsciente; a identidade absoluta do finito no infinito. Por isso Hegel não leva a cabo a tentativa (que condena em Fichte) de deduzir toda a realidade dum único princípio; pois em tal caso a própria realidade seria de certo modo não idêntica ao seu princípio racional. Nem a tentativa ( que condena em Schelling) de anular as determinações da realidade num Absoluto indiferente. Hegel pretende conservar e garantir toda a riqueza da realidade e não reduzi-la a esquemas intelectuais pressupostos. Afirma o seu acordo com o empirismo no princípio de que aquilo que é verdadeiro deve existir na
realidade e não pode reduzir-se a um puro dever ser, que consinta assumir situações desprezíveis para o que é real e presente (Enc., § 38). Mas a própria realidade, na sua vida concreta é, para Hegel, intrinsecamente razão; e como tal se revela ao sujeito que a investiga. Por seu lado, a razão não é pura idealidade, abstracção, esquema, dever ser; é aquilo que realmente e concretamente existe. Os resultados imediatos da dissolução do finito ou identidade entre realidade e razão, são pois: 1.o o infinito não tem qualquer realidade como finito; 2.o enquanto real, o finito não é tal, é o próprio infinito. Através desta segunda proposição a realidade, tal como é, surge inteiramente justificada e toda a pretensão em contrapor-lhe um dever ser cai no nada. O ser e o dever ser coincidem. . Daí a tenaz oposição de Hegel a Kant. Kant ~a querido, como se viu, construir uma filosofia do finito, e antítese entre o dever ser e o ser (entre a razão e a realidade) faz parte integrante de uma tal filosofia. Para Kant, as ideias da razão são meras ideias, regras obrigacionais que dirigem a investigação científica para o infinito, para uma plenitude e uma sistematização jamais alcançadas. Por outro lado, no domínio da moral, a vontade não coincide com a razão, e jamais alcança a santidade, que é o termo de um progresso para o infinito, mas que na sua actualidade é apenas pertença de Deus. Numa palavra, o ser jamais se adequa ao dever ser, a realidade à racionalidade. Segundo Hegel, pelo contrário, esta adequação, é sempre necessária. Separar a realidade do racional significa, segundo Hegel, não ver nas ideias e nos ideais nada a não ser puras quimeras e na filosofia um sistema de fantasmas cerebrais; ou então que as ideias e os ideais são algo demasiado excelente para ter realidade ou demasiado impotente para ser alcançado "A separação entre realidade e a ideia, diz Hegel (Enc., § 6) é especialmente cara ao intelecto, que assume os sonhos das suas abstracções como algo de verídico e sente-se orgulhoso pelo seu dever ser, que até no campo político vai predicando com satisfação: como se o mundo tivesse esperado tais ditames para aprender como deve ser e não é; mas onde estaria portanto a presunção desse dever ser, se o mundo fosse como deve ser?" A filosofia deve, por conseguinte, ocupar-se exclusivamente do ser: "nada sabe daquilo que apenas deve ser e que portanto não é" (lb., § 38). A razão não é assim tão impotente que não seja capaz de se realizar, afirma Hegel, a razão 111 é a própria realidade. "A razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade: assim o idealismo exprime o conceito da razão" (Fen. do espírito, C V, 3). O dever ser, e o finito que com ele está intimamente ligado (Ciência d. Lóg. trad. ital., I, p. 138 e segs.), acabam por cair fora do âmbito da filosofia. Todas as obras de Hegel estão eivadas de observações cheias de ironia e de escárnio a propósito do dever ser que não é, do ideal que não é real, da razão que se supõe impotente para se realizar no mundo. "Entender aquilo que é, tal é o objectivo da filosofia, pois aquilo que é, é a razão", afirma Hegel na Filosofia do direito (Werke, VIII, p. 19). Para dizer como deve ser o mundo, a filosofia chega sempre tarde de mais; surge quando a realidade já completou o seu processo de formação e está já criada. Ela é como o morcego de Minerva que inicia o seu voo ao anoitecer Qb., p. 21). E isto vale para toda a realidade, seja para a Natureza seja para o Estado. Se em relação à natureza se admite que ela é racional em si e que o saber deve procurar e compreender a razão presente na natureza real, o mesmo se deve admitir
para o mundo ético, isto é, para o Estado. A verdade deixa de ser um problema (Ib.,). A filosofia deve portanto "manter-se em paz com a realidade", e renunciar à pretensão absurda de determiná-la e guiá-la. Deve apenas integrar na forma de pensamento, elaborar em conceitos, o conteúdo real que a experiência lhe oferece, demonstrando através da reflexão a sua intrínseca racionalidade (Enc., § 12). 112 Estes esclarecimentos esboçam as características essenciais da filosofia e da personalidade de Hegel. O único objectivo que Hegel entendeu atribuir à filosofia (e pretendeu levar a cabo com a sua filosofia) foi o da justificação racional da realidade, da presencialidade, do facto, qualquer que seja. Este objectivo confronta-o Hegel com mais energia precisamente quando ele corre o risco de confinar-se com o cinismo: nos confrontos da realidade política, do Estado. "Sobre o direito, sobre a ética e sobre o Estado, a verdade é tanto mais antiga quanto surge enunciada e reconhecida publicamente nas leis públicas, na moral pública e na religião pública. De que mais necessita esta verdade, na medida em que o espírito pensante não é capaz de possuí-la de forma imediata, senão que a entendam conquistando-se a forma racional para o conteúdo já racional em si próprio, a fim de que este surja justificado pelo pensamento livre? Qi1. d. dir., p. 6). O objectivo do direito é, por outras palavras, a simples justificação racional da realidade política em acto e a transformação em conceitos filosóficos dessa racionalidade que já se realizou nas instituições vigentes. Tal é a posição de Hegel perante a realidade política, como perante outra qualquer realidade. Nesta posição se concretiza a dissolução do finito no infinito que é o alfa e o ómega da sua filosofia. "O finito é apenas isto, afirma Hegel (Cien. d. lóg., I, p. 147): tornar-se ele próprio infinito pela sua natureza. A infinitude é o seu fim afirmativo, aquilo que ele é verdadeiramente em si. Assim o finito se dissolve no infinito, e aquilo que é, é apenas o infinito". 113 § 569. HEGEL: A DIALÉCTICA Uma razão que é a própria realidade, que algumas vezes se acha alienada e estranha a si própria e que portanto tem o objectivo, na filosofia, de reconhecer-se a si própria e de unificar-se consigo própria para além de qualquer afastamento ou alienação, é o tema fundamental da filosofia de Hegel. Precisamente neste sentido a razão é designada por Hegel como Autoconsciência ou Ideia. Uma tal razão é, obviamente, considerada sob o signo da necessidade. Se toda a coisa que é, é razão, toda a coisa é necessariamente aquilo que é; e não pode ser entendida ou conhecida senão integrada nessa mesma necessidade. O saber é portanto saber necessário e do necessário; e como tal é ciência. Daí a oposição de Hegel a toda a filosofia da fé ou do sentimento, como a de Jacobi ou dos outros românticos. Hegel partilha com estes o princípio da identidade do finito e do infinito; mas nega que a tal identidade possa ser dada a forma de intuição imediata ou sentimental: deve ser antes demonstrada na sua necessidade, deve ser por isso uma ciência. E como ciência é dialéctica. A dialéctica não é para Hegel apenas o método do saber; nem é apenas a lei do
desenvolvimento da realidade: é uma e outra coisa ao mesmo tempo. É, em primeiro lugar, o processo mediante o qual a razão se reconhece na realidade que surge como estranha ou oposta à razão, suprimindo ou conciliando essa oposição; mas é ainda o processo mediante o qual a realidade se concilia consigo própria 114 e age na sua unidade racional, superando as diferenças, as divisões, as oposições que constituem os aspectos particulares e apaziguando-se na unidade do Todo. Hegel faz derivar sem dúvida de Fichte o conceito da dialéctica como "síntese dos opostos" estabelecido na Doutrina da ciência de 1794. Mas desde os seus primeiros escritos que surge evidente a exigência de um processo conciliador e sintético, no qual as divisões ou as oposições da realidade apareçam ao mesmo tempo justificadas como tais e superadas na unidade de uma síntese. A superioridade do amor e da religião é justificada nestes trabalhos pela capacidade que ambos têm de unificar o que está dividido, apesar de, de qualquer modo se conservar a variedade e a riqueza da divisão. Mais tarde, a partir do ensaio sobre a Diferença dos sistemas de filosofia de Fichte e de Schelling,,..o objectivo de justificar a variedade e a oposição e de conciliá-las é atribuído à filosofia; e da razão filosófica, que possui tal objectivo, se distingue o intelecto como faculdade que, ao contrário, se mantém fechado às diferenças e às oposições inconciliadas.'"A filosofia, diz ainda Hegel, enquanto constitui a totalidade do saber originada pela reflexão, passa a ser um sistema, um conjunto orgânico de conceitos, cuja lei suprema é, não o intelecto, mas a razão. O intelecto deve apresentar de forma correcta os opostos a que dá lugar, o limite, o fundamento e a condição de todos os opostos; pelo contrário a razão reúne estes elementos em contradição, considera-os a ambos conjuntamente e resolve-os conjuntamente. (Erste Drukschriften, editor Lasson, p. 25-26). 115 Este ponto de vista mantém-se firme durante todo o desenvolvimento da filosofia de Hegel. Na Enciclopédia Hegel contrapõe ao conceito aristotélico-escolástico de dialéctica, aceite por Kant, como "uma arte extrínseca que mediante o arbítrio leva à confusão entre conceitos determinados e introduz neles uma simples aparência de contradição", o seu conceito de dialéctica como uma síntese necessária e racional de oposições simples e autênticas. "A dialéctica, segundo ele, é esta resolução imanente, na qual a unilateralidade e a limitação das determinações intelectuais se exprime como aquilo que é, ou seja, como sua negação. Todo o finito consiste nisto, que se suprime a si próprio. O momento dialéctico constitui, por conseguinte, a alma motriz do progresso científico e o princípio pelo qual só são introduzidas no conteúdo da ciência as conexões imanentes e a necessidade; nisso consiste a verdadeira, e não extrínseca, construção sobre o finito" (Encic. § 8 1). A dialéctica é para Hegel a lei do mundo e da razão que o domina. Ela é a transcrição filosófica do conceito religioso de providência. Tem como objectivo o de unificar o múltiplo, conciliar as oposições, pacificar os conflitos, reduzir as coisas à ordem e à perfeição do todo. Multiplicidade, oposição, conflitos, são sem dúvida reais, segundo Hegel, como formas ou aspectos da alienação em que a razão acaba por se encontrar perante si própria; mas por isso, são apenas reais como instrumentos de passagem, formas de mediação do processo através do qual a razão se constitui na sua unidade 116 e identidade consigo própria, como Autoconsciência absoluta. Portanto, a dialéctica, tal
como a providência, justifica tudo: a particularidade, a acidentalidade, a imperfeição, o mal, a doença, a morte, porque tudo acaba por se resolver na perfeição da Autoconsciência pacificada e feliz. Mas diferentemente do conceito religioso de providência, para o qual esta justificação se mantém geral e abstracta não podendo descer ao pormenor das determinações particulares, a dialéctica tem a pretensão de efectivar os pormenores desta justificação de modo tal que nada deve permanecer fora dela e de demonstrar a forma precisa da sua realização. § 570. HEGEL: A FORMAÇÃO DO SISTEMA Os escritos de juventude de Hegel compreendem a sua produção literária entre 1793 e 1800, produção que deixou inédita e cuja importância para compreender a personalidade do filósofo só foi apreciada e esclarecida há muito pouco tempo. Estes trabalhos são de conteúdo teológico ou político e revelam, com grande clareza, a natureza dos interesses que desde o início dominaram a actividade filosófica de Hegel. O primeiro problema que neles se debate é o da possibilidade de transição da originária religiosidade cristã para uma religião do povo que seja a base de uma cultura religiosa e moral em vias de progresso. Já nos fragmentos que pertencem ao período de Tubingen, Hegel se mostra insatisfeito com a oposição que o iluminismo tinha estabelecido 117 entre a fé eclesiástica e a religião racional. Hegel preocupa-se em estabelecer uma continuidade no desenvolvimento religioso da humanidade, que vai do fetichismo até à religião racional; e vê o estádio preparatório desta última na religião do povo, que é baseada no amor. Uma religião baseada no amor está com efeito em condições de constituir o fundamento de uma vida moral que permita a unidade de um povo; e é por isso "a alma do Estado". O seu escrito seguinte, A Vida de Jesus, é um contributo posterior para a determinação dessa religião do povo. A doutrina de Cristo surge identificada com a religião racional de Kant e os factos da vida de Cristo aparecem interpretados como a luta entre a religião racional, por uni lado, as crenças eclesiásticas e o cerimonial farisaico por outro. No ensaio Sobre a religião racional como religião positiva, Hegel detém-se na forma como a religião de Cristo desembocou numa fé positiva e histórica baseada na autoridade. A sua resposta é a de que esta transformação aconteceu devido a exigências práticas e políticas, que reconduziram o ensinamento de Cristo às formas do cerimonial e da vida nacional dos Judeus. Outros fragmentos sobre a religião do povo mostram a constante preocupação de Hegel neste período: fazer da religião racional, que se constituía pela primeira vez na doutrina de Cristo, uma religião do povo que seja o fundamento da vida política, sem que por isso recaia na religiosidade exterior da fé eclesiástica. Com a estadia em Francoforte (1797), o pensamento de Hegel orienta-se de forma mais nítida para 118 o panteísmo, sobretudo devido à influência que sobre ele exerceram os trabalhos de Fichte e de Schelling. Nos fragmentos deste período surge o que deverá ser o tema de toda a filosofia, hegeliana: a unidade de Deus e do homem. Esta unidade está expressa no cristianismo através do amor. O amor é a própria vida de Deus no homem e na comunidade humana. O amor unifica Deus e o homem e unifica os homens na verdadeira igreja de Deus. A unidade do divino e do humano não se verificou uma vez só na pessoa de Jesus, verifica-se
no espírito humano sempre que ele assume a religião de Jesus, a religião do amor. Hegel obtém nestes fragmentos uma fórmula que para ele será definitiva: a religião é a própria unidade do espírito divino e do espírito humano. "Como poderá reconhecer o Espírito o que não é espírito? A relação de um espírito com um outro espírito é um sentimento de harmonia e de unidade; como poderão os heterogéneos unificar-se? A fé no divino só é possível na medida em que o próprio crente é divino, encontrando-se a si próprio e a sua própria natureza naquilo que crê, mesmo que não tenha consciência de ter encontrado a sua própria natureza". Hegel, no entanto, sustenta que esta unidade, real na forma do sentimento, não é exprimível na linguagem da reflexão. A linguagem objectiva da sensibilidade e do intelecto é diferente da própria vida: " Aquilo que no reino da morte é contradição, não o é no reino da vida". Num escrito sobre o Destino de Jesus deparamos com uma outra característica fundamental da especulação de Hegel: a exigência em unificar o ideal e o real é portanto 119 a tendência para considerar como "vazia" toda a idealidade que não se transforme em realidade. O destino de Jesus foi, segundo Hegel, o de separar a sua predicação do reino de Deus do destino do seu povo, da sua nação e do mundo, e portanto o de "encontrar no vazio a liberdade" de que andava à procura. A existência de Deus foi assim, em parte, a realização do divino na luta pelo reino de Deus e em parte, a fuga do mundo em direcção ao céu, ou seja, em direcção a uma idealidade vazia e irreal. A exigência de que o ideal não permaneça como tal mas adquira o poder de realizar-se e passar a ser uma realidade actual, é a que anima ainda os dois escritos políticos de Hegel sobre a Constituição de Wurttenberg e sobre a Constituição da Alemanha. Essa vida melhor de que os homens se serviram para conceberem o ideal deve tomar-se a partir de agora, segundo Hegel, uma realidade viva. O mundo interior deve produzir uma ordem jurídica externa, na qual se transforme em "universalidade dotada de força". Nestes escritos políticos, como nos fragmentos que contêm o primeiro esboço do sistema de Hegel (Systemfragment), o carácter fundamental da realidade é reconhecido no conceito de vida. Vida é aquilo que mais tarde Hegel virá a chamar Ideia; o ideal que se manifestou e actuou na realidade, a unidade que se realizou no múltiplo sem se dispersar e sem se dividir. A vida é o infinito, é o próprio Deus, a totalidade que tudo compreende. Ela é mais que o espírito, que é apenas a lei viva e imobilizada da unificação do múltiplo. É mais que a natureza, que é vida fixa e imobilizada pela reflexão. Não 120 pode ser apreendida pelo pensamento pois este permanece marcado pela oposição entre sujeito e objecto, oposição que se mantém aquém da vida, enquanto absoluta unidade. A resolução da vida finita do homem na vida infinita de Deus só pode ser efectuada pela religião. "A filosofia deve acabar com a religião porque ela é o pensar e assume a oposição, por um lado, do não pensar, por outro, entre o pensante e o pensado; e tem por objectivo demonstrar em todo o finito a finitude e de alcançar um remate final através da razão, reconhecendo especialmente, através do infinito da sua competência, os enganos, colocando assim o verdadeiro infinito para lá da sua esfera". Este reconhecimento da superioridade da religião, que aproxima o pensamento do Hegel da juventude do de Schleiermacher (§ 543), conclui, de forma característica, o período de formação da filosofia hegeliana. Na religião, Hegel reconheceu a unidade do finito e do infinito e o princípio de realização dessa unidade na vida associada.
No entanto, quando sobe à ribalta com o seu primeiro trabalho, Diferença entre os sistemas de Fichte e de Schelling (1801), Hegel está convencido de que não é a religião mas a filosofia o que deve ser e é a expressão mais elevada do absoluto. "É preciso que surja, segundo ele (Werke, 1. ed. Lasson, p. 34), a necessidade de se conseguir uma totalidade do saber, um sistema da ciência. Só quando existir um tal pacto, a multiplicidade das relações se pode libertar da acidentalidade, conseguindo o seu lugar no conjunto da totalidade objectiva do saber e atingindo a sua plenitude objectiva. O filosofar que 121 não se constitui em sistema é uma contínua fuga às limitações, é mais uma luta da razão pela liberdade do que um puro autoconhecimento da mesma, um autoconhecimento que se tenha tornado seguro de si e esclarecido em torno de si próprio. A razão livre e o seu facto são uma única coisa, e a sua actividade é o seu puro representar-se". A exigência de uma ciência absoluta que seja autoconhecimento da razão absoluta, isto é, da realidade infinita, é aqui colocada de forma nítida, precisamente no início da actividade pública e filosófica de Hegel. § 571. HEGEL: A FENOMENOLOGIA DO ESPIRITO O princípio da dissolução do finito no infinito ou da identidade entre racional e real foi ilustrado por Hegel por duas formas diferentes. Em primeiro lugar, Hegel empenhou-se em ilustrar a via a seguir pela consciência humana para alcançar tal princípio; ou, o que é o mesmo, a via que o referido princípio deverá percorrer, através da consciência humana, para se alcançar a si próprio. Em segundo lugar, Hegel ilustrou o princípio que surge em acto em todas as determinações fundamentais da realidade. A primeira ilustração é a que Hegel nos oferece na Fenomenologia do espírito; a segunda é a que nos oferece na Enciclopédia da ciência filosófica e nas obras que desenvolvem as várias partes daquela (Ciência da Lógica, Filosofia da Arte, Filosofia da Religião, Filosofia do Direito, Filosofia da História). É eví122 dente que a via que o espírito infinito deverá seguir, para se reconhecer na sua infinitude através de manifestações finitas, também faz parte da realidade, e, portanto, a fenomenologia do espírito deve representar-se como parte do sistema geral da realidade da filosofia do espírito. E como tal é representada por Hegel na Enciclopédia. No entanto não deixa de ser evidente que, como parte da filosofia do espírito, a fenomenologia não é já a mesma coisa; e isto porque se trata de um conjunto de determinações imutáveis, de categorias absolutas, nas quais o carácter dramático da primeira ilustração acabou por se perder. A filosofia do espírito encontra já o espirito pacificado consigo próprio na série dos seus desenvolvimentos necessários; a fenomenologia do espírito apresenta o espírito na sua luta dramática para alcançar-se e conquistar-se na sua infinitude, e por conseguinte descreve também os seus erros e os seus contrastes. A confusão que o próprio Hegel provocou, ao incluir a fenomenologia do espírito como uma secção da filosofia do espírito, surge inesperadamente eliminada se tivermos em conta a intenção explícita de Hegel na Fenomenologia do espírito. Os factos do espírito nesta obra são os factos do princípio hegeliano do infinito nas suas primeiras aparições e indícios, nas manifestações mais dispares da vida humana, no seu progressivo afirmar-se e desenvolver-se.
Com efeito, a Fenomenologia é a história romanceada da consciência que, através de desaires, contrastes, cisões, e por conseguinte, infelicidade e dor, se ergue da sua individualidade, para alcançar a 123 universalidade e reconhecer-se como razão que é realidade e realidade que é razão. Por isso o ciclo integral da fenomenologia pode ver-se resumido numa das suas figuras particulares que se tornou a mais popular: a da consciência infeliz. A consciência infeliz é aquela que não consegue ser a realidade total e por conseguinte se encontra cindida em diferenças, oposições ou conflitos pelos quais é internamente dilacerada e dos quais consegue sair quando alcança a consciência do ser na sua totalidade, ou seja: a autoconsciência e a justificação absoluta da própria totalidade interna. A fenomenologia tem portanto um objectivo protréptico e pedagógico. "O particular, afirma Hegel, (Fenomenologia, Pref., 28), deve tornar a percorrer os graus de formação do espírito universal, segundo o conteúdo, mas também como figuras do espírito já depostas, como graus de uma via já traçada e nivelada. Também nós, observando como, no campo cognoscitivo, o que numa precedente época mantinha precavido o espírito dos adultos passou agora a cognição, a exercitação e até a divertimento de rapazes, podemos reconhecer no progresso pedagógico, em projecção, a história da civilização. Tal existência passada é propriedade adquirida do espírito universal; propriedade que constitui a substância do indivíduo e que, surgindo-lhe exteriormente, constitui a sua natureza inorgânica. Encarada segundo este ângulo do indivíduo, a cultura consiste na conquista daquilo que se acha à sua frente, consiste em consumar a sua natureza inorgânica e em apropriar-se dela. Mas ela pode ser também considerada 124 segundo o ângulo do espírito universal, enquanto substância; em tal caso, dá-se a própria autoconsciência que produz em si o próprio devir e a própria reflexão". A fenomenologia é portanto o Protreptikem de Hegel. Como não existe outra forma de se chegar à filosofia como ciência a não ser através do devir, a fenomenologia, como devir da filosofia, prepara e introduz o singular na filosofia: tende a fazer com que aquele se reconheça e resolva no espírito universal. O ponto de partida da fenomenologia é a certeza sensível. Esta surge à primeira vista como a certeza mais rica e mais segura; na realidade, é a mais pobre. Apenas torna certa uma coisa individual, esta coisa, que pode ser um albergue, uma casa, etc., de que estamos certos, não enquanto albergue ou casa, mas na medida em que se trata deste albergue ou desta casa, ou seja: na medida em que estão presentes aqui e agora perante nós. Isto implica que a certeza sensível não é certeza da coisa particular, mas do este, a que a particularidade da coisa é indiferente e por conseguinte é um universal (um genérico este). Ora o este não depende da coisa mas do eu que a considera. Por isso, no fundo, a certeza sensível não é senão a certeza de um eu ainda que ele próprio universal, uma vez que também ele não é senão este ou aquele eu, um eu em geral.
Se da certeza sensível passarmos à percepção verificamos o mesmo reenvio ao eu universal: um objecto não pode ser percebido como uno, na multiplicidade das suas qualidades (por exemplo branco, 125 cúbico, saboroso), se o eu não assumir em si uma tal unidade, se não reconhecer que a unidade do objecto é por ele próprio estabelecida. Se, finalmente, se passar da percepção ao intelecto, este reconhecerá no objecto apenas uma força que actua segundo uma lei determinada. É levado por isso a ver no próprio objecto um simples fenómeno, a que se contrapõe a verdadeira essência do objecto, que é ultrasensível. Uma vez que o fenómeno existe apenas na consciência e aquilo que existe para lá do fenómeno ou é nada ou é alguma coisa para a consciência, nesta fase a consciência integra todo o objecto dentro de si própria e torna-se consciência de si, autoconsciência. Os graus da consciência-certeza sensível, percepção, intelecto-são dileguati na autoconsciência. Mas, por sua vez, a autoconsciência, na medida em que é considerada como objecto, ou seja: como algo além de si, cinde-se em autoconsciências diversas e independentes; e daqui nasce a história da autoconsciência do mundo humano. A primeira figura que então surge é a de senhor e escravo, própria do mundo antigo. As autoconsciências diversas devem enfrentar a luta, porque só assim conseguem alcançar o pleno conhecimento do seu próprio ser. A luta implica um risco de vida e de morte; porém não se resolve com a morte das autoconsciências contendentes, mas sim com o subordinarse de uma à outra nas relações senhor-escravo. Nesta relação, a autoconsciência vencedora coloca-se como liberdade de iniciativa perante o escravo, que está ligado ao trabalho e à matéria. Isso acontece 126 até o servo alcançar ele próprio a consciência da sua dignidade e independência; então o senhor sucumbe e a responsabilidade da história mantém-se submetida à consciência servil. O estoicismo e o cepticismo representam os ulteriores movimentos de libertação da autoconsciência. Mas no estoicismo, a consciência que pretende libertar-se do vínculo da natureza, desprezando-o, apenas consegue uma liberdade abstracta, uma vez que o vínculo permanece na medida em que a realidade da natureza não é negada. O cepticismo nega esta realidade e coloca a realidade na própria consciência. Mas esta consciência é ainda a consciência individual, que está em contradição com as outras consciências individuais, negando o que elas afirmam afirmando o que elas negam. Assim, a autoconsciência (que é em si uma) está em contradição consigo própria; e através desta contradição, dá lugar a uma nova figura, que é a da consciência infeliz. A consciência infeliz interpreta a contradição como compresença de duas consciências, uma imutável, que é a divina, a outra mutável, que é a humana. É esta precisamente, a situação da consciência religiosa medieval; a qual, mais que pensamento, é devoção, isto é: subordinação ou independência da consciência individual da consciência divina, da qual a primeira reconhece receber todas as coisas como um dom gratuito. Esta consciência devota culmina com o ascetismo, no qual a consciência reconhece a infelicidade e a miséria da carne e tende a libertar-se unindo-se com o intransmutável (ou seja, com Deus). Mas, através desta união, a consciência reconhece ser
127 ela própria a consciência absoluta. E com este reconhecimento começa o ciclo do sujeito absoluto. Como sujeito absoluto a autoconsciência passa a ser razão e assume em si toda a realidade. Enquanto que nos momentos anteriores a realidade do mundo lhe surgia como algo de diferente e de oposto (como a negação de si), agora, pelo contrário, pode suportá-la: porque sabe que nenhuma realidade é diferente de si. "A razão, afirma Hegel, é a certeza de ser toda a realidade". No entanto, esta certeza para se tornar verdade tem de justificarse; e a primeira tentativa para justificar-se traduz-se num "procurar inquieto", que se dirige, a principio, ao mundo da natureza. É esta a fase do naturalismo do Renascimento e do empirismo. Nesta fase, a consciência julga aproximar-se da essência das coisas, mas na verdade limita-se a aproximar-se de si própria; e isso deriva de não ter feito ainda da razão o objecto da própria procura. Assim se determina a observação da natureza que, partindo da simples descrição, se aprofunda com a pesquisa da lei e com a experimentação, que se transfere em seguida para o domínio do mundo orgânico, para passar por fim ao da consciência com a psicologia. Hegel examina demoradamente, a este propósito, duas chamadas ciências que estavam em moda no seu tempo: a fisiognómica de J. K. Lavater (1741-1801) que tinha a pretensão de determinar o carácter do indivíduo através dos traços da sua fisionomia e a frenologia de F. J. Gall (1758-1828) que pretendia conhecer o carácter pela forma e pelas protuberâncias do crâneo. Em todas estas pesquisas, a razão, ainda que procurando apa128 HEGEL rentemente outra coisa, na realidade procura-se a si própria: procura reconhecer-se na realidade objectiva que tem à sua frente. As deambulações da razão chegam a seu termo quando alcança esse mesmo reconhecimento; e isso acontece na fase da ética. Hegel entende por ética a razão que se tomou consciente de si, na medida em que se realiza nas instituições histórico-políticas de um povo e sobretudo no Estado. O eticismo é diferente da moralidade que contrapõe o dever ser (lei ou imperativo racional) ao ser, à realidade, e tem a pretensão de reconduzir o real ao ideal. O eticismo é a moralidade (ou seja, a razão) que se realiza em formas históricas e concretas e que é, por conseguinte, substancial e plenamente, razão real ou realidade racional. Mas antes de alcançar o eticismo, a autoconsciência errante lança-se noutras aventuras. Desiludida da ciência e da investigação naturalista, tal como o Fausto de Goethe, entra decididamente na vida à procura do prazer. "As sombras da ciência, das leis, dos princípios, que estão entre ela e a sua efectivação, desmoronam-se como névoa inerte que não consegue sustentar a autoconsciência com a certeza da sua realidade. A autoconsciência colhe a vida como se colhe um fruto maduro" (Fen., V, B, a). Mas na procura do prazer, a autoconsciência encontra um destino estranho que a altera inexoravelmente. Procura então apropriar-se desse destino apreendendo-o como uma lei do coração (e Hegel alude aqui aos românticos). Mas a lei do coração colide com a lei de todos, que lhe surge como uma potência supe129 rior e inimiga. Por isso procura vencer essa potência com a virtude; e assim constitui uma terceira figura. Mas o contraste entre a virtude, que é o bem abstractamente desejado pelo indivíduo, e o movimento do mundo, que é o bem realizado e concreto, não pode
conseguir-se senão pela derrota da própria virtude. "O curso do mundo consegue uma vitória sobre aquilo que, em contraposição consigo, constitui a virtude ... ; mas esse triunfo não diz respeito a algo de real ... ; o seu triunfo recai sobre o pomposo discorrer do bem supremo da humanidade e da opressão desta, sobre o pomposo discorrer do sacrifício pelo bem e pelo abuso dos bens... O indivíduo que dá a entender que age por tão nobres objectivos e tem na boca frases tão bombásticas, vale perante si como essência excelente, mas, na verdade, tudo isso não passa de vaidade que lhe sobe à cabeça e à cabeça dos outros, enchendo-a de vento (1b., V., B, c). Por isso o movimento do mundo acaba por ter sempre razão; e o esforço da pessoa moral, na qual Kant colocava o ponto mais alto da dignidade humana, surge para Hegel vazio de sentido. Ã consciência nada mais resta que libertar-se definitivamente da individualidade, por quem, nesta figura, é ainda dominada e oprimida. O primeiro passo é o da acção através da qual a individualidade dá lugar a uma obra que, de repente, lhe surge como exterior e se integra no círculo das relações recíprocas entre as diversas individualidades. A obra ou o objectivo do indivíduo não depende, quanto aos resultados, do próprio indivíduo; mantém-se, sim, na consciên130 cia da própria honestidade, que lhe garante ter querido tal objectivo. Uma vez ainda no indivíduo que se furta à realidade, se descobre a presencialidade do seu ser. E esta realidade e presencialidade só as pode alcançar por meio do eticismo no qual a razão legisladora e examinadora das leis (que ainda pretenderá opor-se à realidade destas leis) encontra a sua correcção e a sua completa realização. "A inteligente e essencial prática do bem, afirma Hegel, (Fen., V, C, c) é, na sua mais rica e importante figura, o inteligente e universal actuar do Estado actuar esse perante o qual o actuar do individual como individual surge como algo de mesquinho de que praticamente nem vale a pena falar. Esse actuar tem tanta força que se o actuar individual quisesse opor-se-lhe e quisesse afirmar-se unicamente por si como causa ou enganar por amor de outrem o universal no que diz respeito ao direito e ao lugar que nele tem, este actuar individual seria de todo inútil e acabaria por ser irredutivelmente destruído". As leis éticas mais indubitáveis: "dizer a verdade", "amar o próximo" não têm significado se não se conhecer o justo modo de as realizar. Mas não está nas mãos do indivíduo determinar este justo modo, ele existe já determinado na própria substância da vida associativa, no costume, nas instituições e no Estado. Só com o reconhecer-se e colocar-se no Estado, a autoconsciência abandona, com a individualidade, todas as cisões internas, toda a infelicidade e alcança a paz e a segurança de si própria. E assim, os factos romanceados da autoconsciência chegam a seu termo; o ciclo da fenomenologia 131 está completo. Hegel acrescentou ainda à sua obra três secções (o espírito, a religião, o saber absoluto) que antecipam o conteúdo da filosofia do espírito e, em parte, da filosofia da história. Mas este acréscimo (como ficou esclarecido em estudos recentes) foi-lhe sugerido por meras razões editoriais que constituem uma irónica intromissão do acidental e do contingente num domínio que, segundo Hegel, é o da pura necessidade. O objectivo protréptico da obra foi no entanto atingido: as figurações da autoconsciência contraditória e infeliz na sua individualidade, estão completas. A autoconsciência está, a partir de então,
apta a considerar-se a si própria não nas suas figuras errantes, mas nas suas determinações imutáveis e necessárias, nas suas categorias. § 572. HEGEL: A lógica A diferença capital entre a Fenomenologia do espírito e as ciências da Enciclopédia pode facilmente ser determinada através desta mudança de terminologia: a primeira diz respeito às figuras, as outras dizem respeito aos conceitos ou categorias. Uma figura é uma situação histórica ou espiritual, ou mesmo simplesmente fantástica ou poética, que constitui um acontecimento do processo através do qual a autoconsciência infinita alcança o reconhecimento de si própria. Um conceito ou uma categoria é um momento necessário da realização da consciência infinita. Se a fenomenologia que considera as figuras é um romance, as ciências filosóficas que 132 consideram as categorias são a história: a história da autoconsciência infinita nos seus momentos imutáveis universais e necessários. Com efeito, assim concebeu Hegel o sistema da sua filosofia nas suas três partes: lógica, filosofia da natureza e filosofia do espírito, Mas Hegel não desenvolveu com igual extensão estas três partes. À lógica dedicou a segunda das suas obras fundamentais, a Ciência da Lógica (1812-16) que depois recapitulou na primeira parte da Enciclopédia. Ã filosofia da natureza dedicou apenas (além do primeiro esboço de Jena) a segunda parte da Enciclopédia que os seus alunos enriqueceram com apontamentos das suas lições. Ã filosofia do espírito se referem, pelo contrário, além da terceira parte da Enciclopédia e da Filosofia do Direito os cursos das suas lições de Berlim. Hegel indica a razão infinita com o nome de Ideia e distingue a história ou devir da ideia em três momentos que constituem a fragmentação da sua filosofia: 1.<> - A Lógica ou ciência da ideia em si e por si; ou seja, do seu primitivo ser implícito e do seu gradual explicar-se. 2.11-A Filosofia da Natureza, que é a ciência da Ideia no seu ser outro, isto é, no seu tornar-se estranha e exterior a si própria no mundo natural. 3.o - A Filosofia do Espírito que é a ciência da ideia que, após o seu afastamento, regressa a si própria, à sua completa autoconsciência. Hegel obtém esta concepção tripartida no neoplatonismo antigo e especialmente em Procio. E do platonismo antigo Hegel faz derivar também a forma do seu sistema: o que consiste num processo 133 único e continuador que actua e revela nos seus graus necessários um princípio absoluto. Contudo, Hegel não coloca o absoluto fora do processo, como uma Unidade inalcansável, antes o identifica com o próprio processo, e deste modo o torna imanente. Transformando o infinito progressivo de Fichte e de Schelling num infinito actual e concluído, Hegel referiu-o à forma da metafísica escolástica e exprimiu nessa forma o pensamento fundamental da sua filosofia: que o próprio finito é, na sua realidade, o infinito. A lógica é definida por Hegel como "a ciência da ideia pura, isto é, da ideia no elemento abstracto do pensamento" (Enc., § 19). Mas não se trata de uma disciplina puramente formal: o seu conteúdo é-lhe imanente e é a absoluta verdade ou realidade, o próprio Deus.
O reino da lógica é Deus antes da criação do mundo. "O reino do puro pensamento é a verdade, tal como é em si e por si, sem qualquer véu. Só pode ser exprimido afirmando-se que ele é a exposição de Deus, tal como ele é na sua eterna essência, antes da criação da natureza e de um espírito finito" (Cien. d. lóg., p. 32). Portanto, os conceitos da lógica não são pensamentos subjectivos perante os quais a realidade se mantém exterior e contraposta mas... pensamentos objectivos que exprimem a própria realidade na sua essência necessária, na sua verdade absoluta (Enc. § 24). A lógica é a própria metafísica; e tem um lugar predominante no sistema de Hegel, porque oferece, com os seus conceitos, a ossatura ou substância de toda a realidade. O princípio da identidade do real e do 134 racional faz dois conceitos da razão os graus e as determinações necessárias da própria realidade. Mas é evidente que a razão, neste sentido, não é intelecto finito. Hegel chama intelecto ao "pensamento que produz apenas determinações finitas e que se move nelas" e designa finitas as determinações do pensamento que apenas são subjectivas e estão em contraste com o objectivo, que, além disso, em razão do seu conteúdo limitado, estão em contraste entre si e, por maioria de razão, com o absoluto (1b., § 25). O intelecto, deste modo entendido, é apenas um aspecto parcial, é o primeiro momento da razão. É o momento intelectual, no qual o pensamento se confina às determinações rígidas, limitando-se a considerá-las nas suas diferenças recíprocas. A ele deve seguir-se o momento dialéctico, que nos mostra como aquelas determinações são unilaterais e limitadas e exigem ser colocadas em relação com as determinações opostas ou negativas. O terceiro momento, o especulativo ou positivo racional, dá-nos a unidade das determinações diversas precisamente nas suas oposições. A mola propulsora deste processo, através do qual a razão real ou a realidade racional se desenvolve e determina num conteúdo cada vez mais rico e concreto, é o segundo momento, o dialéctico, pelo qual todas as determinações perdem a rigidez, passam a ser fluidas e a constituir momentos de uma Ideia única e infinita. O momento dialéctico representa a crise da dissolução do finito. "Todo o finito tem isto que lhe é próprio: suprimir-se a si mesmo (lb., § 81). Através do momento dialéctico, o finito nega-se e resolve-se no infinito. 135 O ponto de partida 6 lógica é o conceito mais vazio e abstracto, o do ser, do ser absolutamente indeterminado, privado de qualquer conteúdo possível. Nesta abstracção, o ser é idêntico ao nada; e o conceito desta identidade, a unidade do ser e do nada, é o devir, que já os antigos definiam como a passagem do nada ao ser. Esta primeira tríade hegeliana, ser, nada, devir, que tantas discussões fez nascer como termo de comparação da validade e da legitimidade de todo o processo dialéctico, não apresenta na verdade qualquer interesse particular. O próprio Hegel definiu de forma bem clara o seu significado. Precisando de justificar o início do seu sistema, Hegel começou pelo próprio conceito de início. "O início não é o puro nada, mas um nada de que deve sair qualquer coisa. Por isso no próprio início está já contido o ser. O início tem, portanto, um e outro, o ser e o nada; é a unidade do ser com o nada" (Cien. d. Log., 1, p. 62). A mola da dialéctica hegeliana não é a relação ser-nada, que vale apenas para o ser absolutamente
indeterminado e não passa do esclarecimento puramente verbal de um pretenso início absoluto, mas é, como vimos já, a auto-dissolução do finito que incessantemente se supera no infinito. O ser e o nada, como puras abstracções, são o oposto do ser determinado que, em virtude de tal oposição, surge em evidência; e o ser determinado é-o em razão da qualidade que o especifica e torna finito, da quantidade e finalmente da medida, determinante da quantidade da qualidade. Todas estas categorias consideram o ser no seu isolamento, fora, portanto, de qualquer relação. Do ser passa-se à essência 136 quando o ser, reflectindo sobre si próprio, distingue as relações que lhe são próprias; reconhece-se idêntico e diverso e descobre a própria razão suficiente. As categorias fundamentais da essência são: a essência como razão da existência, o fenómeno e * realidade em acto. Reconhecendo-se como idêntica * si própria e diferente das outras essências, a essência descobre a própria razão de ser; e em virtude desta razão de ser torna-se existência. O aparecimento da sua existência traduzse no fenómeno, que, é, segundo Hegel, não uma mera aparência, mas a manifestação adequada e plena da essência daquilo que existe. Aquilo que existe, a realidade em acto, é, por conseguinte, a unidade da essência e da existência, ou seja, do interior e do exterior. As três relações que a caracterizam são a substancialidade, a causalidade, e a acção recíproca (as categorias kantianas da relação). Assim determinado e enriquecido pela reflexão sobre si, o ser passa a conceito: que já não é o conceito do intelecto, diferente da realidade e oposto a ela, mas o conceito da razão, isto é, w espírito vivo da realidade" (Enc., § 162). O conceito é em primeiro lugar conceito subjectivo ou puramente formal; depois conceito objectivo que se manifesta nos aspectos fundamentais da natureza; finalmente é Ideia, unidade do subjectivo e do objectivo, razão autoconsciente. O conceito subjectivo determina-se, em primeiro lugar, nos seus três aspectos de universalidade, particularidade, individualidade; em seguida, exprime-se e articula-se no juízo e finalmente no silogismo que exprime, dum ponto de vista formal, 137 a racionalidade do todo. Todas as coisas são silogismos, porque todas as coisas são racionais; mas, desta racionalidade, o silogismo apenas exprime o aspecto formal e subjectivo, que se concretiza e actua dentro do conceito objectivo, que é o da natureza. A passagem do conceito subjectivo ao conceito objectivo é exemplificada por Hegel como passagem do conceito de Deus à sua existência; com a advertência de que a existência de Deus apenas se revela na sua obra, ou seja, na natureza (Cien. d. Log., III, p. 180 e sgs.). O conceito como objectividade constitui as categorias fundamentais da natureza: mecanismo, quimismo e teleologia, sendo esta categoria última a categoria fundamental da natureza orgânica. A última categoria da lógica é a Ideia. "A ideia, afirma Hegel, pode ser concebida como razão (este é o significado propriamente filosófico de razão); por outro lado, pode ser concebida como sujeito-objecto, como unidade do ideal e do real, do finito e do infinito, da alma e do corpo; como possibilidade que tem em si própria a sua realidade; como aquilo através do qual a natureza pode ser concebida apenas como existente, etc., uma vez que
nela todas as relações do intelecto estão contidas, mas no seu infinito regresso e identidade em si" (Enc., § 214). A ideia é, assim, a totalidade da realidade em toda a riqueza das suas determinações e relações internas. "O ser individual é uma parte qualquer da ideia: através desta verificam-se ainda outras realidades que, por sua vez, surgem como existentes particularmente por si; e é no conjunto de todas as coisas e das suas relações que se realiza o conceito. O singular por 138 si não corresponde ao seu conceito: esta limitação da sua existência constitui a finitude e a ruína do individual" (lb., § 213). A ideia não é a substância de Spinoza, ou melhor, encontra nessa substância apenas um seu aspecto parcial; já que ela é também subjectividade, espiritualidade, processo. Nela "o infinito excede o finito, o pensamento, o ser a subjectividade, a objectividade" (Ib., § 215). Na sua forma imediata a ideia é a vida, ou seja, uma alma realizada num corpo (Ib., § 216); mas na sua forma mediata, e no entanto finita, é o conhecer; neste, o subjectivo e o objectivo surgem distintos (uma vez que o conhecer se refere sempre a uma realidade diversa de si própria) e no entanto unidos (uma vez que se refere sempre a essa realidade). O contraste entre o subjectivo e o objectivo constitui portanto a conclusão do conhecer, que pode assumir ou a forma teórica, na qual o impulso é dado pela verdade, ou a forma prática (o querer) em que o impulso é dado pelo bem. Para além da vida e do conhecer e como unidade de ambos está a Ideia absoluta, a ideia que se reconhece no sistema total da logicidade (1b., § 237). Ela traduz-se na identidade da ideia teórica e da ideia prática e é vida que por isso superou todas as imediatidades e todas as finitudes. "Todo o resto é erro, confusão, opinião, esforço, arbítrio e caducidade, só a Ideia absoluta é o ser, a vida que não passa, verdade consciente de si, a verdade total" (Cien. d. Log., 111, p. 335). Com ela dá-se por concluído o desenvolvimento lógico da ideia. A ideia atinge então a sua máxima determinação e concretização, realmente o seu método como sistema e de139 terminando a sua forma como conteúdo e o seu conteúdo como forma. Por outras palavras, a Ideia, na sua forma absoluta, não é mais que a própria lógica de Hegel na totalidade e na unidade das suas determinações. § 573. HEGEL: A FILOSOFIA DA NATUREZA O texto fundamental da filosofia da natureza de Hegel é a segunda parte da Enciclopédia que, tal como as outras partes, foi enriquecida na edição a cargo dos seus alunos (Vol. VII, 1, 1847) por numerosos acréscimos provenientes das lições de Hegel. Um primeiro esboço desta filosofia da natureza é a brevíssima exposição (cerca de 7 páginas) do Curso propedêutico (1808-11) que Hegel escreveu para os estudantes do liceu de Nuremberga. Nele Hegel dividia a filosofia da natureza em três partes: matemática, física e física do orgânico, divisão que aparece também na primeira edição (1817) da Enciclopédia. Hegel não tem pelo mundo natural nenhum interesse verdadeiro nem estético, nem científico. Já vimos (§ 566) como o deixava indiferente e entediado um dos mais soberbos espectáculos naturais, o dos Alpes. Também o dos céus não o comovia ou exaltava. As palavras de Kant que tão bem exprimem os interesses fundamentais do filósofo de Kõnigsberg "Duas coisas me enchem a minha alma com uma admiração sempre nova e sempre crescente, o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de
140 mim" (K. p. V., concl.) não têm sentido para ele. A infinitude do céu pode interessar o sentimento, na medida em que acalma as paixões, mas nada diz à razão; porque "é exterior, vazia, negativa, infinita". Quanto aos astros, trata-se de uma explosão de luz, que não é mais digna de admiração que a explosão que derrama pontos vermelhos na pele de um corpo orgânico, ou de um exame de moscas ou de um formigueiro (Enc., § 267, 341; Werke, VII, LO, p. 92-93, 461). No que diz respeito ao aspecto científico da natureza, Hegel admite que a filosofia da natureza tenha por pressuposto e condição a física empírica; mas esta deve fornecer-lhe o material e fazer o trabalho preparatório da qual depois se socorre livremente para mostrar a necessidade, com a qual as determinações naturais se vão concatenando num organismo conceptual. Por seu lado, os resultados da indagação empírica não têm o mínimo significado. " Se a física, afirma Hegel (1b., § 246, p. 12), devesse basear-se nas percepções e as percepções não fossem mais que os dados dos sentidos, o processo da física consistiria em ver, auscultar, cheirar, etc., e assim os animais poderiam ser também físicos". Dadas estas premissas, não é de admirar que a filosofia da natureza seja a parte mais fraca da obra de Hegel; nela se serve, de forma arbitrária e fantástica, dos resultados da ciência do seu tempo, interpretando-os e concatenando-os de tal modo que os mesmos perdem o seu valor científico sem que por isso adquiram qualquer significado filosófico. O conceito da natureza no entanto, tem na doutrina de Hegel uma função importante e não poderia 141 ser eliminado ou alterado sem se eliminar ou alterar toda a doutrina. O próprio princípio da identidade entre realidade e razão coloca, com efeito, esta doutrina na obrigação de justificar e resolver na razão todos os aspectos da realidade. Hegel rejeita como exterior à realidade, considerando como tal aparência, aquilo que é finito, acidental e contingente, ligado ao tempo e ao espaço, e a própria individualidade naquilo que ela tem de próprio e de irredutível à razão. Mas tudo isso deve no entanto encontrar um qualquer lugar, uma justificação qualquer, ainda que a mero título de aparência, se, pelo menos como aparência, é real, e encontra lugar e justificação justamente na natureza. A natureza é "a ideia na forma do ser outro" e como tal é essencialmente exterioridade. Considerada em si, na ideia, é divina; mas no modo em que existe, o seu ser não corresponde ao conceito: é por conseguinte a contradição insolúvel. O seu carácter próprio é o de ser negação, non ens. Ela é a decadência da ideia de si própria, porque a ideia na forma da exterioridade é inadequada a si própria; e só à consciência sensível, que é antes de mais exterior, a natureza surge como algo de real. Portanto é absurdo querer tentar conhecer Deus através das obras naturais; as mais baixas manifestações do espírito servem melhor um tal objectivo. "Na natureza, não só o jogo das formas sofre o domínio de uma acidentalidade desregrada e desenfreada, mas as próprias formas estão privadas do conceito de si próprias. O ponto mais elevado que a natureza pretende atingir na sua existência é a vida; mas esta, como ideia apenas natural, está sob 142 o domínio do irracional, da exterioridade, e a vitalidade individual está, em qualquer
momento da sua existência, sob o domínio de uma individualidade diversa da sua; sempre que em qualquer manifestação espiritual se trate do momento da relação livre e 1universal consigo própria" (Enc., § 248). Hegel fala de uma "impotência da natureza" como se a natureza não fosse a própria Ideia, que não pode ser impotente e reconhece que a filosofia encontra nesta impotência um limite que impede uma explicação integral. "A impotência da natureza impõe limites à filosofia; e o que se pode imaginar de mais inconveniente é julgar que ela deva compreender conceptualmente a referida acidentalidade, e, como foi dito, construí-la, deduzi-la; parece portanto que o objectivo se torna tanto mais fácil quanto mais mesquinho e mais isolado é o produto a construir. Características da determinação conceptual podem ser distinguidas certamente até nas coisas mais particulares; mas o particular não se extingue com essa determinação" (1b., § 250). Poderá parecer que na natureza se deve passar algo aquém ou além da Ideia, da pura racionalidade; que coisa é precisamente, e como descobri-la, isso não nos diz Hegel. As divisões fundamentais da filosofia da natureza são: a mecânica, a física e a física orgânica. A mecânica considera a exterioridade que é a essência da natureza, ou na sua abstracção (espaço e tempo), ou no isolamento (matéria e movimento), ou na sua liberdade de movimento (mecânica absoluta). O espaço é "a universalidade abstracta da exterioridade", isto é: a exterioridade considerada na sua forma uni143 versal e abstracta. O tempo é "o ser que enquanto é, não é, enquanto não é, é: o devir intuído". A matéria, considerada primeiramente na sua inércia e depois no seu movimento (colisão e queda) é a realidade fraccionada e isolada que determina e unifica entre si o espaço e o tempo, que em si são abstracções. Finalmente, a mecânica alcança o verdadeiro e próprio conceito de matéria que é o da gravitação. A gravitação é, segundo Hegel, um movimento livre e por isso os corpos nos quais se realiza, os corpos celestes, se movem livremente. "O movimento dos corpos celestes não é algo que surja daqui e dali, é o movimento livre; os corpos celestes surgem, como já afirmavam os antigos, como divindades sagradas. A corporeidade celeste não é assim pelo facto de ter fora de si o princípio do repouso ou do movimento" (1b., p. 97). Por essa razão não é semelhante à dos corpos terrestres. A segunda divisão da filosofia da natureza, a física, compreende a física da individualidade universal, a dos elementos da matéria, a física da individualidade particular, isto é, das propriedades fundamentais da matéria (peso específico, coesão, som, calor) e a física da individualidade total, ou seja, das propriedades magnéticas, eléctricas e químicas da matéria. A terceira razão, física orgânica, compreende a natureza geológica, a natureza vegetal e o organismo animal. Para Hegel também faz parte da física orgânica a particular conformação da terra, estudada pela geografia física. A distinção entre velho e novo mundo não é causal ou convencional, mas 144 racional e eg@encial. O mundo novo é-o de forma absoluta devido à sua configuração física e política. Ainda que seja geologicamente tão antigo como o velho, o mar que o separa do antigo apresenta uma "imaturidade física". O velho mundo,
nas suas três partes África, Ásia e Europa é um todo completo no qual a Europa, em cujo centro se encontra a Alemanha, constitui a parte racional da terra (lb., p. 242; Fil. d. Hist., trad. ital., 1, p. 220 e sgs.). Quanto ao organismo animal, é interessante verificar o que Hegel diz da morte: "A inadequação do animal à universalidade constitui a sua doença original; e nela se encontra o germe inato da morte. A negação desta inadequação traduzse, portanto, no cumprimento do seu destino. O indivíduo nega-se na medida em que modela a sua singularidade sobre a universalidade; mas em virtude de esta ser abstracta e imediata, alcança apenas uma objectividade abstracta na qual a sua actividade se materializa, se ossifica, e a vida passa a ser um hábito privado de processo, e assim o indivíduo se mata a si próprio" (Ene., § 375). Por outras palavras, o indivíduo morre porque a sua actividade limitada se solidifica em hábitos que tornam impossível a universalização da sua vida. Mas, na medida em que as suas actividades se universalizam verdadeiramente, os indivíduos deixam-no de ser, deixam de ser natureza, são espírito, e o espírito é eterno porque é a própria verdade (Werke, VII, LO, p. 693 e sgs.). A morte do indivíduo constitui, deste modo, a passagem do domínio da natureza ao do espírito. 145 § 574. HEGEL: A FILOSOFIA DO ESPIRITO A filosofia do espírito foi exposta por Hegel, não só na terceira parte da Enciclopédia, como ainda na Filosofia do direito e nas lições, publicadas postumamente, de Estética, de Filosofia da Religião e de Filosofia da História. O espírito é a Idade que, depois de se afastar de si no mundo natural, acaba por regressar a si própria. O pressuposto do espírito é, por isso, a natureza que no espírito revela a sua finalidade última e nele desaparece como natureza, como exterioridade, para se tornar subjectividade e liberdade. A essência do espírito é a liberdade através da qual o espírito consegue abstrair de tudo o que é exterior e da sua própria existência, podendo assim suportar a negação da sua individualidade e manifestar-se como espírito nas suas particulares determinações que são outras tantas revelações suas (Ene., § 381-84). Os graus através dos quais o espírito se desenvolve não permanecem como realidades particulares para os graus superiores, como acontece na natureza; são reintegrados pelos graus superiores e, por sua vez, estes últimos encontram-se presentes nos graus inferiores (1b., § 380). O desenvolvimento do espírito dá-se através de três momentos principais: o espírito subjectivo, o espírito objectivo e o espírito absoluto. Espírito subjectivo e espírito objectivo constituem o espírito finito (individual), caracterizado pela inadequação entre o conceito e a realidade. Por outras palavras, não são ainda, explícita e totalmente, aquilo 146 que o espírito é na sua essência infinita. Pelo contrário, o espírito absoluto constitui a total
e explícita revelação do espírito a si próprio. O espírito subjectivo é o espírito enquanto cognoscitivo. É a alma (e constitui objecto da antropologia) enquanto permanece sujeito à individualidade e às condições naturais (geográficas, físicas, etc.). A alma desenvolve-se, como alma sensitiva, através do sentimento imediato, que é o seu génio particular, e o sentimento de si própria, que surge mecanizado pelos hábitos; e alcança, como alma real, a própria expressão exterior nas manifestações corpóreas e na linguagem. O espírito subjectivo é consciência (e constitui o objecto da fenomenologia do espírito) na medida em que reflecte sobre si próprio e consegue colocar-se como eu ou autoconsciência. Pela imediata certeza que a consciência tem de si própria na sua singularidade, passa a autoconsciência universal que, na medida em que é universal, é razão. Finalmente, o espírito subjectivo é, em sentido estrito, espírito (e constitui o objecto da psicologia) enquanto é considerado nas suas manifestações universais que são o conhecer teórico, a actividade prática e o livre querer. O conhecer aparece entendido por Hegel como a totalidade de todas aquelas determinações intuição, representação (que por sua vez pode ser recordação, imaginação ou memória), pensamento que constituem o processo concreto pelo qual a razão se encontra a si própria no seu conteúdo. A actividade prática é entendida como unidade dessas manifestações (sentimento prático, impulsos, felicidade) através das quais o espírito alcança o domínio de si e passa 147 a ser livre. O espírito livre é, com efeito, o momento culminante da espiritualidade subjectiva. Ele é o querer racional que se determina independentemente das condições acidentais e limitativas em que vive o indivíduo. O espírito livre é a vontade de liberdade, tornada essencial e constitutiva do espírito. Esta vontade de liberdade só encontra no entanto a sua realização na esfera do espírito objectivo. A liberdade realiza-se em instituições históricas concretas, caracterizadas pela unidade do querer racional com o querer individual: unidade, cujo valor necessário é o poder ou autoridade em que essas instituições estão investidas. Os momentos do espírito objectivo são: o direito, a moralidade, e a eticidade. No direito, o espírito é pessoa, constituído essencialmente pela posse de uma propriedade. Na moralidade, é sujeito dotado de uma vontade particular, mas que deve pretender ser universal, uma vontade do bem. A moral é caracterizada pela distinção entre o interior e exterior, entre a pura intenção moral e a acção. Na esfera da eticidade esta distinção é superada. Nela o dever ser e o ser coincidem. "A substância que se sabe livre, e na qual o dever ser absoluto é igualmente ser, tem a sua realidade como espírito de um povo" (Enc., § 514). A substância ética realiza-se na família, na
sociedade civil e no Estado. A família implica um momento natural porque tem a sua base na diferença de sexos; ela é, do ponto de vista do direito, uma só pessoa, A totalidade das pessoas (famílias ou indivíduos) no sistema dos seus interesses particulares, constitui a sociedade civil. Esta realiza-se no sistema 148 de necessidades e de meios que a satisfazem, na administração da justiça e na política, que são as características fundamentais e comuns de todo o viver civil. O Estado é a unidade da família e da sociedade civil porque possui a unidade que é própria da família e realiza e garante esta unidade nas formas que são próprias à sociedade civil. No Estado é preciso considerar: 1.o o direito interno, a sua constituição; 2.o o direito internacional, as suas relações com os outros Estados; 3.o a história do mundo ou história universal, como sucessiva incarnação nos Estados singulares da Ideia absoluta. A constituição do Estado é a própria realidade da justiça. O Estado é com efeito "a realidade ética consciente de si" Ub., § 535); e fora do Estado, liberdade, justiça, igualdade, são abstracções que só em virtude da lei, e como lei, encontram a sua realidade. O Estado é a realidade de um povo singular, determinado naturalmente por particulares condições geográficas e históricas. As relações entre os diversos Estados, segundo Hegel, estão sob o domínio da casuística e do arbítrio porque um direito universal dos Estados é um dever ser sem realidade (1b., § 545). Estas relações de paz e de guerra dão lugar, com os acontecimentos, à história universal, que é também o juízo universal, porque de vez em quando dá a vitória ao Estado que exprime e realiza em si o espírito do mundo (1b., § 549). No espírito absoluto, o conceito do espírito, que no seu processo resolveu em si toda a realidade, encontra a sua realização final. O espírito é, nesta esfera, aquele que se realizou na forma da ética, é o 149 espírito de um povo; e nas formas do espírito absoluto o espírito de um povo manifesta-se a si próprio e compreende-se na sua espiritualidade. Estas formas são: a arte, a religião e a filosofia. Mas estas não se diferenciam pelo seu conteúdo que é idêntico, mas pela forma em que cada uma representa, por si, o próprio conteúdo, que é o Absoluto ou Deus. A arte conhece o absoluto na forma de intuição sensível, a religião na forma de representação, a filosofia na forma do puro conceito. § 575. HEGEL: A FILOSOFIA DA ARTE A arte tem em comum com a religião e a filosofia o seu objectivo final, que é a expressão e a revelação do divino. Mas a arte dá a esta expressão uma forma sensível. Precisa, portanto, de uma matéria externa constituída por imagens e representações e precisa também de formas naturais, nas quais deve exprimir o seu conteúdo espiritual (Enc., § 558). Mas o material externo e as formas naturais não valem na arte como tal, valem apenas como expressões e revelações de um conteúdo; por isso a imitação da natureza, não exprime, de forma alguma, a essência da arte. "A arte bela, afirma Hegel (1b., § 562), tem por condição a autoconsciência do espírito livre; e, por conseguinte, a consciência da dependência do elemento sensível e meramente natural do espírito: faz do elemento natural apenas uma expressão do espírito, que é a forma interna pela qual ela própria .se manifesta". O
aparecimento da arte anuncia o 150 fim de uma religião que está ainda ligada à exterioridade sensível. Ao mesmo tempo que parece dar à religião a sua transfiguração, expressão e esplendor máximos, a arte eleva-a acima das suas limitações furtando-a às formas a que a religião estava ainda ligada na aparência sensível. Perante estas aparências, a beleza da arte é infinitude e liberdade. A arte ergue-se para lá do ponto de vista do intelecto e do finito que com ela está necessariamente conexo. Pelo intelecto, o sujeito e o objecto são igualmente finitos porque exteriores e opostos um ao outro, e por conseguinte limitando-se reciprocamente. Pela arte bela, o sujeito e o objecto compenetram-se e constituem um todo. O objecto deixa de ser uma realidade exterior e independente porque é a manifestação do conceito, ou seja, da própria subjectividade; o sujeito deixa de contrapor-se ao objecto e realiza-se nele constituindo com ele um todo. "Assim, afirma Hegel, (Werke, X, LO, p. 145), se suprime a referência puramente finita do objecto, que fazia deste um meio útil para fins exteriores, um meio que, ou se opunha às suas execuções de forma privada de liberdade, ou era obrigado a assumir em si esses objectivos estranhos. E é ao mesmo tempo suprimida a referência não livre do sujeito, porque este renuncia à distinção entre as próprias intenções subjectivas e a matéria e os meios exteriores, e, com a realização das intenções subjectivas mediante os objectos, deixa de ater-se à relação finita do simples dever ser, porque tem perante si o conceito e o fim perfeitamente realizados". 151 Hegel distingue três formas fundamentais na arte., a arte simbólica, a arte clássica e a arte romântica. A arte simbólica é caracterizada pelo equilíbrio entre a Ideia infinita e a sua forma sensível. A Ideia procura apropriar-se da forma; mas, como não encontrou ainda a verdadeira forma, esta apropriação tem o carácter de violência. Na tentativa de tomar a matéria sensível adequada a si própria, a Ideia maltrata-a, fragmenta-a, dispersa-a, dando lugar ao sublime, que representa tipicamente a forma de arte simbólica, própria dos povos orientais. Na arte clássica, pelo contrário, existe uma plena e livre adequação entre a ideia e a sua manifestação sensível. O ideal da arte encontra aqui a sua realização integral. A forma sensível foi transfigurada, subtraída à finitude e tornada perfeitamente conforme com o conceito. Isto acontece porque a Ideia infinita encontrou finalmente a sua forma adequada: a figura humana. A figura humana é a única forma sensível na qual o espírito pode representar-se e manifestar-se completamente. "A forma que tem em si própria a ideia enquanto espiritual ou melhor a espiritualidade individualmente determinante, e deve exprimir-se na aparência temporal, é a forma humana. A personificação e a humanização da mesma tem sido frequentemente caluniada como degradação do espiritual. Mas a arte, na medida em que integra o espírito nas formas sensíveis para o tomar acessível à intuição, deve proceder a essa humanização, porque só no
seu corpo o espírito se manifesta sensivelmente de forma adequada" (1b., p. 99). A fase sucessiva da arte, que é a terceira, é assinalada pela ruptura da 152 unidade entre conteúdo e forma, por um regresso ao simbolismo, mas um regresso que é também um progresso. A arte clássica alcançou o seu desenvolvimento mais elevado enquanto arte; o seu defeito é o de ser apenas arte, e nada mais que arte. Na sua terceira fase, pelo contrário, a arte procura elevar-se a um nível superior: torna-se arte romântica ou cristã. A unidade da natureza divina e da natureza humana, que na arte clássica é uma unidade directa e imediata, torna-se uma unidade consciente na arte romântica; através dela, o conteúdo deixa de ser dado pela forma humana e passa a ser dado mediante a interioridade consciente de si própria. O cristianismo, ao conceber Deus como espírito, não individualizável ou particular, mas absoluto, e pretendendo representá-lo em espírito e verdade, renunciou U representação puramente sensível e corpórea, a favor da expressão espiritualizada e interiorizada. A beleza, nesta fase da arte, não é já a beleza corpórea e exterioridade, mas a beleza puramente espiritual, a da interioridade como tal, da subjectividade infinita em si própria. A arte romântica é , por conseguinte, indiferente à beleza do mundo sensível; não o idealiza, como faz a arte grega, mas representa-o na sua realidade indiferente e banal e vale-se dela nos limites em que ela se presta a exprimir a interioridade como tal (Werke, X, 2.O, p. 133). Daí a diferente situação da arte clássica e da arte romântica perante a morte. Esta é para a arte clássica o mal supremo (Odiss. XI, v. 482491). "Na arte romântica, pelo contrário, a morte é representada 153 como um morrer da alma natural e da subjectividade finita, um morrer que é negativo só em relação àquilo que é negativo em si e tem por objecto a superação daquilo que é desprovido de valor, a libertação do espírito da sua finitude e do seu desdobramento e a conciliação espiritual do sujeito com o absoluto" (1b., p. 128). Indubitavelmente, também a arte romântica tem os seus limites; mas são os próprios limites da arte como tal. Esta está sempre ligada à forma sensível e a forma sensível não é a revelação adequada e completa da Ideia infinita, do espírito como tal. As três formas de arte, simbólica, clássica e romântica, são os três graus através dos quais se realiza o ideal da arte, ou seja, a unidade do espírito e da natureza. A arte simbólica é ainda uma procura do ideal, ao passo que a arte clássica já o atingiu, e a arte romântica já o ultrapassou (Ib., X, LO, p. 103-04). Ora se este ideal surge considerado, não já nos graus do seu desenvolvimento, mas nas determinações necessárias em que se realiza, encontramo-nos perante o reino da arte, constituído pelo sistema das artes particulares. A primeira realização da arte é a arquitectura. Em razão dela, o mundo inorgânico externo sofre uma purificação, ordena-se segundo as regras da simetria, aproxima-se do espírito e passa a ser o templo de Deus, a casa da sua comunidade. Com a escultura, o próprio Deus introduz-se na objectividade do mundo exterior e torna-se imanente na imagem sensível, num estado de calma imóvel e de feliz serenidade. Arquitectura e escultura estão entre 154
si como a arte simbólica e a arte clássica: a arquitectura é arte clássica por excelência. A arte romântica é a unidade da arquitectura com a escultura, uma unidade que se serve de novos meios expressivos porque pretende seguir o movimento da pura espiritualidade em todas as suas particularidades e na diversidade das suas manifestações. Esta arte tem à sua disposição três elementos: a luz e a cor, o som como tal e, finalmente, o som como signo da representação, ou seja, da palavra. A arte romântica manifesta-se por conseguinte na pintura, na música e na poesia. Destas três artes, a poesia é a mais elevada. "A poesia é a arte universal, a arte do espírito tomado livre em si, já não ligado pela sua realização à matéria sensível exterior; do espírito que se move apenas no espaço interior e no tempo interior da representação e da sensação. No entanto, precisamente neste grau supremo, a arte ultrapassa-se também a si própria, na medida em que abandona o elemento sensível do espírito e, da poesia da representação, passa à prosa do pensamento (Ib., X, LO, p. 112). Em todas as suas formas e em todas as suas determinações, a arte não deixa, no entanto, de manter-se no domínio da aparência. Como já vimos em relação à lógica, a aparência não é algo de enganador, mas a manifestação necessária do ser e da realidade em si. A arte, no entanto, não é a manifestação mais elevada da realidade, isto é, da Ideia infinita. Os seus limites são os da intuição sensível, da qual deduz a forma das suas manifestações. Na sua realidade mais profunda, a Ideia infinita furta-se 155 à expressão sensível e manifesta-se de forma mais adequada na religião e na actividade racional da filosofia. Os bons tempos da arte grega e da idade de ouro da Idade Média passaram há muito. Hoje ninguém pode ver nas obras de arte a expressão mais elevada da Ideia; respeita-se e admira-se a arte, mas a mesma é submetida à análise do pensamento para se reconhecer a sua função e o seu lugar. O próprio artista não pode subtrair-se à influência da cultura racional de que depende, em última análise, o juizo que se faz sobre a sua obra. "Submetida a todas estas correlações, afirma Hegel (lb., 1, LO, p. 15-16), a arte é e continua a ser para nós, quanto ao seu destino supremo, uma coisa do passado. A arte perdeu para nós a sua verdade própria, a sua vitalidade, foi relegada para a nossa representação, uma vez que já não exprime na realidade a sua necessidade e já não ocupa o lugar mais elevado". O "futuro da arte" está na religião (Enc., § 563.). Mas isto não quer dizer, de forma alguma, (como já alguém interpretou) que a arte esteja destinada a desaparecer do mundo espiritual dos homens. O que desapareceu e não pode mais voltar é, segundo Hegel, o valor supremo da arte, a consideração que fazia dela a mais elevada e completa manifestação do absoluto. Por outras palavras, a forma clássica da arte essa, sim, desapareceu para sempre. Mas a arte é e continua a ser uma categoria do espírito absoluto; e todas as categorias são necessárias e imutáveis porque constituem na sua totalidade a autoconsciência viva de Deus. 156 § 576. HEGEL: A FILOSOFIA DA RELIGIÃO
A religião é a segunda forma do espírito absoluto, aquela precisamente em que o absoluto se manifesta na forma de representação. As Lições de filosofia da religião abrem com a discussão do problema das relações entre a filosofia da religião e a própria religião. A solução de Hegel é a de que a filosofia da religião não deve criar a religião, deve simplesmente reconhecer a religião que já existe, a religião determinada, positiva, presente. A posição de Hegel perante a religião é a mesma que assume perante qualquer outra realidade: reconhecer a realidade presente, tal como é, e justificá-la pela demonstração nela da ideia infinita em acto. O objecto da religião é Deus, o seu sujeito a consciência humana dirigida a Deus, o seu fim ou objectivo é a unificação da consciência com Deus, ou seja: o da consciência plena e penetrada por Deus. Os momentos da religião são por conseguinte Deus, a consciência de Deus e o serviço de Deus ou culto. A filosofia da religião é o mais alto culto divino, pois que nela Deus se manifesta e revela na forma mais elevada que é a do pensamento; e a revelação de Deus como pensamento é o próprio Deus. Uma vez que a religião é essencial à acção entre Deus e a consciência, a primeira forma da religião é a da imediatidade desta relação, que é própria do sentimento. Mas o sentimento, ainda que nos dê a certeza da existência de Deus, não tem possibilidades de justificar esta certeza e de a transformar em verdade objectivamente válida. Quando se afirma 157 que é preciso ter-se Deus no coração exige-se algo mais do pensamento, porque o coração é um pensamento que permanece e constitui o carácter ou forma universal da existência (Werke, p. 129). O sentimento é individual, acidental, e mutável: por isso não é a forma adequada para a revelação de Deus. Um passo mais sobre o sentimento é já representado pela intuição de Deus que existe na arte, na qual Deus é representado objectivamente sob a forma de intuição sensível. Mas esta intuição é caracterizada pelo dualismo entre o objecto intuído e o sujeito que intui. Pelo contrário, a religião exige a unidade da consciência religiosa e do seu objecto e, por conseguinte, a interiorização do objecto e a espiritualização da intuição, o que acontece na representação. É próprio da representação apresentar as suas determinações (que estão essencialmente conexas) como justapostas, como se fossem independentes uma da outra, e reuni-las de forma puramente acidental. Deste modo se obtém a representação dos atributos divinos considerados individualmente, das relações entre Deus e o mundo na criação, das relações entre Deus e a história do mundo na providência, etc. Todas estas representações surgem unidas de modo puramente exterior, e assim se consegue alcançar a inconceptibilidade da essência divina que as unifica. A exterioridade em que se mantêm as determinações da religião é característica da consciência religiosa comum e contradiz a exigência de espiritualizar a intuição religiosa e de unificar as representações religiosas.
158 A contradição só pode ser resolvida à medida em que a religião se transforma num verdadeiro e próprio saber. A este saber o homem deve no entanto elevar-se através da fé, que é o princípio da educação religiosa. O conteúdo da religião deve ser dado e não pode ser dado senão através do abandono da consciência religiosa ao seu objecto, a Deus; este abandono é a fé. E só quando a fé procura esclarecer-se e tornar-se ciente deve intervir a reflexão filosófica a justificá-la (1b., p. 146 e sgs). Nesta fase, em que a fé se transforma em saber e intervém a mediação, como em todo o saber, para justificar a imediatidade do sentimento, encontram a sua função as provas da existência de Deus. Hegel, que dedicou no verão de 1829 seis lições a estas provas (lb., MI., p. 357-553; ed. Lasson, vol. XIV), resgata-as, de certo modo, da condenação total que tinham sofrido pela pena de Kant. No entanto, não as considera como puros produtos da actividade racional, mas apenas como graus de desenvolvimento do saber religioso; elas traduzem a vida pela qual a consciência humana se eleva a Deus. O ponto de partida da prova cosmológica é a consciência da nossa existência finita e acidental num mundo de coisas finitas e acidentais; a prova vem mostrar a via pela qual a consciência humana pode elevar-se até ao ser infinito e necessário, causa do mundo. O ponto de partida da prova teológica é a consciência do nosso corpo situado num mundo inorgânico, do finalismo interno do nosso corpo, e do acordo finalista entre o mundo orgânico e o inorgânico; a prova demonstra a via pela qual a consciência reli159 giosa se ergue ao ser infinito e necessário, causa final e inteligente do mundo. O ponto de partida da prova ontológica é o conceito ou a consciência de Deus como de um ser absolutamente perfeito e a prova apresenta a via pela qual a consciência religiosa se ergue de forma a conceber a unidade do infinito e do finito, de Deus e do mundo, do saber divino e do saber humano de Deus. Esta última prova é a mais profunda e significativa, segundo Hegel, que a opõe à crítica kantiana; pois se a unidade do pensamento e do ser não se verifica nas coisas finitas, e que por este motivo são finitas, ela constitui, no entanto, o próprio conceito de Deus. (Enc., § 51). Na verdade a prova ontológica exprime precisamente o princípio da filosofia hegeliana, a resolução do finito no infinito. O conceito que o homem tem de Deus é o próprio conceito que Deus tem de si. "O homem conhece Deus na medida em que Deus se conhece a si próprio nos homens. Este saber é a autoconsciência de Deus, mas é também o saber que Deus tem dos homens e o saber que os homens têm de Deus. O espírito dos homens, na medida em que conhecem Deus, e o espírito do próprio Deus" (Vorlesungen über die Beiveise des Daseins Gottes, in Werke, ed. Lasson, XIV, p. 117). O desenvolvimento da religião é o desenvolvimento da ideia de Deus na consciência humana. No primeiro estádio de tal desenvolvimento, a ideia de Deus surge como o poder ou a substância absoluta da natureza e a religião é uma religião natural; assim acontece com as religiões orientais (chinesa, indiana, budista). No segundo estádio, a ideia de 160 Deus surge com a passagem da substancialidade à individualidade espiritual, e criam-se as
religiões naturais que depois passam a religiões da liberdade (religião persa, síria, egípcia). No terceiro estádio, a ideia de Deus surge como individualidade espiritual e constituem-se as religiões da individualidade espiritual (judaica, grega, romana). O quarto estádio é aquele em que a ideia de Deus aparece como espírito absoluto, e constitui a religião absoluta, a cristã. A religião absoluta é a religião perfeitamente objectiva, no sentido em que já realizou o seu conceito: o conteúdo deste conceito, a unidade do divino e do humano, isto é, a conciliação de ambos, a incarnação de Deus, passaram a objecto e tema da consciência religiosa. Deus, que é espírito, revelou-se plenamente como tal nesta religião. Mas o espírito é pensamento e, enquanto tal, distingue-se de si e coloca um outro por si, do qual, no entanto, não se mantém separado, assim como o pensamento nunca se mantém separado do objecto que reconhece e faz seu. O espírito não é por conseguinte apenas uma unidade, é também uma trindade, cujos momentos são os seguintes; 1.o o permanecer imutável de Deus, que, ainda que revelando-se, continua eternamente senhor de si em tal revelação; 2.o a distinção da manifestação de Deus pelo próprio Deus, através da qual essa manifestação passa a ser o mundo da aparência (natureza e espírito finito); 3.o o regresso do mundo a Deus e a sua conciliação com ele. Estes três momentos existem eternamente em Deus; mas a criação que Deus faz do mundo, distinguindo-se de si e colocando o seu outro como manifestação própria, é 161 eterna como esta mesma manifestação. Hegel reproduz aqui simplesmente a dialéctica de Proclo (vol. I, § 127), mas serve-se da terminologia cristã e fala do reino do Pai, do reino do Filho e do reino do Espírito Santo. O reino do Pai é Deus antes da criação do mundo, na sua eterna ideia em si e por si (Werke, XII, p. 233 e sgs.). O reino do Filho é o mundo no espaço e no tempo, a natureza e o espírito finito, em todo o desenvolvimento que vai da natureza ao espírito, do espírito finito ao estado, ao espírito do mundo, à religião, e da religião finita à religião absoluta ou cristã. No ponto central deste mundo está Cristo como redentor, Homem-Deus ou Filho de Deus (1b., XII, p. 247 e sgs.). O reino do Espírito, é a total conciliação em Cristo e através de Cristo de uma vez para sempre, mas que a religião desenvolve e vive pela presença de Deus na sua comunidade (1b., XII, p. 308 e sgs.). O reino de Deus realiza-se de forma completa e total neste mundo. A penetração da religião cristã no mundo é a consciência da liberdade que se realiza no domínio da eticidade e do Estado. "A verdadeira conciliação, pela qual o divino se realiza no campo da realidade, consiste na vida jurídica e ética do Estado... Na eticidade está a conciliação da religião com a realidade, o mundo presente e completo" (lb., p. 344). Mas a liberdade do espírito é, antes de mais, liberdade da razão, consistindo o seu livre uso na filosofia; por isso da religião cristã brota uma nova filosofia que não se deixa limitar ou circunscrever por nenhuma autoridade e por nenhum pressuposto. Esta filosofia é o termo final do desenrolar 162 histórico da religião. "Tem-se reprovado à filosofia o facto de se colocar acima da religião; mas isto é falso porque a filosofia tem como conteúdo só a religião e não outra coisa. A filosofia exprime esse mesmo conteúdo na forma do pensamento e assim se coloca acima da forma da fé; mas o conteúdo é sempre o mesmo" (Ib., p. 355). § 577. HEGEL: A HISTÓRIA DA FILOSOFIA
É portanto na filosofia que culmina e desemboca o devir racional na realidade. Ela traduz a unidade entre a arte e a religião e é o conceito de ambas, ou seja, o conhecimento daquilo que elas necessariamente são. Na filosofia, a Ideia pensa-se a si própria como Ideia e alcança por essa razão a autoconsciência absoluta, a autoconsciência que é razão e pensamento, e, como tal, absoluta infinitude. Como já se viu, a diferença entre religião e filosofia consiste apenas no modo de representar o absoluto, modo esse que para a filosofia é especulativo e dialéctico, e para a religião é representativo e intelectual. Através desta diferença, a filosofia pode compreender e justificar a religião, mas a religião não pode compreender e justificar a filosofia. "A filosofia, afirma Hegel (Enc., § 573), pode portanto reconhecer as suas próprias formas nas categorias do mundo religioso do representar, e assim reconhecer o seu conteúdo e render-lhe justiça. Mas o inverso não se verifica, porque o modo religioso de representar não aplica a si próprio a crítica do pensamento 163 e não se compreende a si próprio, uma vez que na sua imediatidade exclui os outros modos". Ligada à filosofia, a ideia voltou à forma lógica do pensamento, concluindo o ciclo do seu devir; mas voltou enriquecida com todo o seu devir concreto e, por conseguinte, com toda a sua infinitude e necessidade. "Toda a filosofia que se explica está baseada em si própria: é uma ideia única no todo e em todos os seus membros, é algo de análogo ao ser vivo, em cujos membros se agita uma vida única e bate uma única pulsação... A Ideia é a um tempo o ponto central e a periferia, é a fonte luminosa, que se expande sem jamais sair de si, permanecendo presente e imanente em si própria. Ela é, por conseguinte, o sistema da necessidade, da sua própria necessidade, que é ao mesmo tempo a sua liberdade (Liç. sobre a hist. da fil. trad. ital. I, p. 39). Deste modo a ideia é, além de objecto da filosofia, objecto da história da filosofia. A história da filosofia não é mais que a filosofia da filosofia. Não é, de forma alguma, a sucessão desordenada e acidental de opiniões que mutuamente se destroem e excluem; é o necessário desenvolvimento da filosofia como tal. Tal como as formas históricas da arte e da religião se sucedem na ordem da sua necessidade especulativa, também os sistemas filosóficos se sucedem na ordem das determinações conceptuais da realidade. "O que eu digo, escreve Hegel (1b., p. 41), é que a sucessão de sistemas filosóficos, que se manifesta na história, é idêntica à sucessão que se verifica na dedução das determinações conceptuais da ideia. O que eu afirmo é que, se os conceitos fundamentais 164 dos sistemas surgidos na história da filosofia forem despojados daquilo que diz respeito à sua formação exterior, à sua aplicação ao particular, se obtém precisamente os vários graus da determinação da ideia no seu conceito lógico". Por conseguinte, o desenvolvimento dos sistemas na história da filosofia é determinado unicamente pelas exigências da dialéctica interna da ideia. "O finito não é verdadeiro, não existe como dever ser; porque se existisse, logo ocorreria o determinado. Ainda que a ideia interna destrua as formações finitas, uma filosofia cuja forma não seja absoluta e idêntica ao conteúdo, acaba por desaparecer, porque a sua forma não é a verdadeira" (Ib., p. 48). Pelo mesmo motivo, todas as filosofias são necessárias; nenhuma desaparece verdadeiramente porque todas se mantêm positivamente como momentos de uma totalidade integral. Hegel entende portanto a historicidade da filosofia como tradição. A história da filosofia
traduz-se no aumento de um património que se acumula incessantemente e que não é de ninguém. "Aquilo que cada geração fez no campo da ciência, da produção espiritual, traduz-se numa herança para a qual contribuiu, com as suas poupanças, todo o mundo anterior... E este acto de herdar traduz-se ao mesmo tempo num receber e num fazer frutificar a herança. A herança plasma a alma de todas as gerações seguintes, forma a sua substância espiritual sob a forma de hábitos, determina as suas máximas, os seus preconceitos, a sua riqueza; e, ao mesmo tempo, o património recebido torna-se por sua vez material disponível que surge transformado pelo espírito. De 165 tal modo que aquilo que foi recebido acaba por ser modificado, e a matéria elaborada, graças portanto ao trabalho de elaboração, enriquece-se sem no entanto deixar de se conservar como antes" (lb., p. 11-12). Ã historicidade entendida num sentido iluminista que refuta e critica a tradição, Hegel substitui o ideal romântico da historicidade como uma herança, como um revi .ver, que é, ao mesmo tempo, um renovar e um conservar todo o património espiritual já adquirido. Consequentemente, a sua história da filosofia que começa com a filosofia grega (Hegel refere-se às filosofias orientais, chinesa, indiana, mas sustenta que deve excluí-las da verdadeira e própria tradição filosófica), e termina com as de Fichte e de Schelling, acaba verdadeiramente na sua própria filosofia. "A filosofia que é a última no tempo, é o resultado de todas as precedentes e deve conter os princípios de todas: ela é por isso se se trata de uma verdadeira filosofia, evidentemente a mais desenvolvida, a mais rica e concreta" (Enc., § 13). A última filosofia é a de Hegel. "O actual ponto de vista da filosofia é o de que a ideia deve ser conhecida na sua necessidade... Assim o exige o presente momento do espírito universal, e cada estádio tem, num verdadeiro sistema de filosofia, a sua forma especifica. Nada se perde, todos os princípios se conservam; a filosofia última é, com efeito, a totalidade das formas. Esta ideia concreta é a conclusão dos esforços do espírito, durante quase dois milénios e meio de labor seriíssimo, a fim de que ele próprio se torne objectivo, e se conheça" (Liç. de hist. da filos., trad. ital., 111, 11, p. 440-11). 166 § 578. HEGEL: A FILOSOFIA DO DIREITO Já várias vezes foi dito que o interesse dominante de Hegel estava relacionado com o mundo ético-político, com o mundo da história. Neste mundo se realiza, de forma efectiva e total, a razão autoconsciente, a Ideia. As mesmas formas do espírito absoluto, arte, religião, filosofia, não passam de abstracções que estão fora da realidade ético-política, fora do espírito novo que lhes dá existência. A última obra publicada por Hegel, a Filosofia do Direito (1821), reafirma com decisão cortante o irónico desprezo de Hegel pelo ideal que não é real, pelo dever ser que não é ser, por todas as considerações problemáticas da realidade política e da história. No domínio desta realidade não há lugar para o problema, segundo Hegel. Como todos admitem que a natureza deve ser reconhecida como aquela que é, e ela é intrin3ecamente racional, assim se deve admitir também que no mundo ético, no Estado, a razão está intimamente ligada ao facto como força e potência e que nele se mantém e habita.
No mundo ético (família, sociedade civil, Estado) a liberdade tornou-se realidade. "O sistema do direito é o reino da liberdade realizada, o mundo do espírito expresso por si mesmo, como uma segunda natureza" (Fil. do direito, § 4). Mas para que o direito como tal se realize e subsista, é preciso que a vontade finita do indivíduo se resolva numa vontade infinita e universal, que se tenha a si como objecto, que pretenda portanto livre a sua própria vontade. Tal é o 167 conceito, a ideia da vontade, a vontade na sua forma racional ou autoconsciente infinita. "A vontade que existe em si e por si é verdadeiramente infinita, porque o seu objecto é ela própria; tal objecto não é para ela coisa diferente, nem um limite, é apenas a vontade que regressa a si. Mas ela não é também simples possibilidade, disposição, poder (potentia) mas o realmente infinito (infinitum actu), uma vez que a existência do conceito ou a sua objectiva exterioridade, é a própria interioridade" (Ib., § 22). Por outras palavras, a vontade infinita é aquela que realizou historicamente a sua liberdade e que assumiu uma existência concreta. "Uma existência em geral, que seja existência da vontade livre, é o direito. Ele é, portanto, a liberdade enquanto ideia" (1b., § 29). A ciência do direito deve partir, como qualquer outra ciência, da existência do direito, uma vez que a existência é a ideia que se realizou e o objectivo da ciência é dar-se conta do processo dessa mesma realização (1b., § 31). Hegel divide a sua filosofia do direito em três partes: o direito abstracto, a moral, e a eticidade. O direito abstracto é o da pessoa individual e exprime-se na propriedade que é "a esfera exterior da sua liberdade" (1b., § 41). A moralidade é a esfera da vontade subjectiva, que se manifesta na acção. O valor que a acção possui para o sujeito que a realiza é a intenção o fim que tem em vista é o bem-estar. Quando a intenção e o bem-estar alcançam a universalidade, o fim absoluto da vontade transforma-se em bem. Mas o bem que é ainda uma 168 ideia abstracta, que não existe por si, e espera passar à existência por obra da vontade subjectiva (1b., § 131). E nesta relação entre o bem e a vontade subjectiva, ainda exterior e formal, consiste a possibilidade da própria vontade em ser nefasta cedendo a um conteúdo não resolúvel na universalidade do bem (Ib., § 139). Por outras palavras, o domínio da moralidade é caracterizado pela superação abstracta entre a subjectividade, que deve realizar o bem, e o bem, que deve ser realizado. Em razão desta separação, a vontade não é uma vontade boa desde o início, só poderá sê-lo através da sua actividade; por outro lado ainda, o bem não é real sem a vontade subjectiva que pretende realizá-lo (1b., § 131, Zusatz). Esta separação é anulada e resolvida pela eticidade onde o bem se realiza de forma concreta e se torna existente. Ela é a esfera da necessidade e os seus momentos são as forças éticas que regem a vida dos indivíduos e constituem os seus deveres. Os deveres éticos são efectivamente
obrigatórias e surgem como unia limitação à subjectividade indeterminada ou à liberdade abstracta do indivíduo, mas na realidade são a redenção do próprio indivíduo, dos seus impulsos naturais e ainda da sua subjectividade abstracta ou individual (Ib., § 149). A eticidade realiza-se primeiramente, como já vimos, na família e na sociedade civil; e só nesta última, ou seja do ponto de vista das necessidades, a pessoa jurídica ou sujeito moral passa a ser propriamente um homem, "a concretização da representação" (Ib., 169 § 190). Por outras palavras, o homem é, segundo Hegel, o indivíduo ético integrado no sistema de necessidades, que constitui o aspecto fundamental da sociedade civil. Mas é só no Estado que se realiza plenamente a substância infinita e racional do espírito. "O Estado é a realidade da liberdade concreta", afirma Hegel (1b., § 260). Ele representa, por um lado, uma força externa para o indivíduo que reclama e a subordina a si, e por outro, é o seu fim imanente, assim como é o fim da família e da sociedade civil que, em relação a ele, são organismos particulares e imperfeitos e devem depender do Estado. "O Estado é a vontade divina, enquanto espírito actual e explicativo da forma real e da organização de um -mundo" (lb., § 258). Hegel rejeita portanto a doutrina do contrato social que faz depender o Estado do arbítrio dos indivíduos e vê nela consequências que destroem o divino em si e por si e a sua absoluta autoridade e majestade" (1b., § 258). Pelo contrário, o Estado está estreitamente ligado à religião porque é a suprema manifestação do divino no mundo, tal facto integra em si a religião, como as outras formas absolutas do espírito, a arte e a filosofia, fazendo-as valer como interesses próprios, defendendo-as e consolidando-as (lb., § 270). Quanto à soberania, o Estado não a obtém do povo, que externa e anteriormente a ele é uma multidão desorganizada, mas de si próprio, da sua própria substancia. "O povo, afirma Hegel (lb., § 279), considerado sem o seu monarca e sem a organização necess4ria, e imediatamente integradora da totalidade, é a 170 multidão informe, não é o Estado, à qual não pertence já qualquer das determinações que existem apenas na totalidade formada em si: soberania, jurisdição, magistratura, classes, ou qualquer outra". Hegel exclui portanto, e pelo mesmo motivo, o princípio democrático da participação de todos nos negócios do Estado. Neste princípio, Hegel vê o produto de uma abstracção pela qual o indivíduo se afirma, simplesmente como tal, componente do Estado. Na realidade, segundo Hegel, o indivíduo participa na formação do Estado só enquanto desenvolve uma actividade concreta num determinado círculo (classe, corporação, etc.) e portanto não subsiste uma sua participação directa no Estado fora desse mesmo círculo (lb., § 308). Como vida divina que se realiza no mundo, o Estado não pode encontrar nas leis da moral um limite ou impedimento à sua acção. O Estado tem exigências diversas e superiores às da moral. "O bem-estar de um Estado tem um direito completamente diferente do bemestar do indivíduo", afirma Hegel. O Estado, como substância ética, "tem a sua
existência, o seu direito, numa existência não abstracta mas concreta, e é essa existência concreta, e não uma das muitas proposições gerais designadas por preceitos morais, que pode ser o princípio do seu agir e do seu comportamento" (1b., § 337). Deste modo, o princípio do maquiavelismo aparece justificado. É finalmente na história que o Estado encontra o juizo (juízo universal) que decide do seu nascimento, do seu desenvolvimento e da sua morte. 171 § 579. HEGEL: A FILOSOFIA DA História O princípio fundamental, que é ao mesmo tempo o ponto de partida e o termo final da filosofia hegeliana a resolução do finito no infinito, a identidade entre o real e o racional -, levou Hegel a identificar em todos os domínios o desenvolvimento cronológico da realidade com o devir absoluto da Ideia. Nos estádios sucessivos por onde passaram, na sua história temporal, a arte, a religião e a filosofia, Hegel reconheceu as formas eternas, as categorias imutáveis e necessárias do espírito absoluto. As Lições de Filosofia da História que se propõem demonstrar em acto a plena e total racionalidade da história, recapitulam, se assim se pode dizer, todo o pensamento de Hegel e revelam claramente o interesse que sempre o dominou. Hegel não nega que, de certo ponto de vista, a história possa parecer um tecido de factos contingentes, insignificantes e mutáveis e por conseguinte privada de qualquer plano racional ou divino e dominada pelo espírito da desordem, da destruição e do mal. Mas isso só acontece do ponto de vista de um intelecto finito, ou seja, do indivíduo, que mede a história pela bitola, ainda que respeitável, dos ideais próprios, e não consegue erguer-se ao ponto de vista puramente especulativo da razão absoluta Na realidade, "o grande conteúdo da história do mundo é racional, e racional deve ser: uma vontade divina domina de forma poderosa o mundo e não é tão impotente que não saiba determinar o grande conteúdo" (Liç. de filos. d. hist. trad. ital., I, p. 11). 172 A própria fé religiosa na providência, ou seja, no governo divino do mundo, implica a racionalidade da história; mas acontece que esta fé é genérica e desculpa-se frequentemente com a incapacidade humana em compreender os desígnios providenciais. Mas ela deve ser subtraída a essa limitação, segundo Hegel, e erguida a um saber que reconheça as vias da providência divina e esteja em situação de determinar os seus fins, os meios e os modos da racionalidade da história. O fim da história do mundo consiste em "o espirito alcançar o saber daquilo que verdadeiramente é, e objective esse saber, o realize tomando o mundo existente, manifestando-se objectivamente a si próprio" (Ib., 1, p. 61). Este espírito que se manifesta e se realiza num mundo existente - isto é, na presencialidade, no facto, na realidade histórica é o espírito do mundo que se incarna nos espíritos dos povos que se sucedem na vanguarda da história. "Os princípios dos espíritos dos povos, numa necessária e gradual sucessão, não são eles mesmos senão momentos do único espírito universal, que, através deles, na
história, se eleva e determina numa totalidade autocompreensiva" (1b., p. 62). O fim da história realiza-se, é real, em todos os seus momentos individuais. Por isso as lamentações sobre a não realização do ideal dizem apenas respeito aos ideais do indivíduo e não podem valer como lei para a realidade universal. São as imaginações, as aspirações e as esperanças dos indivíduos que fornecem matéria à s ilusões destruídas, aos sonhos desfeitos. "Por si próprias podem sonhar-se muitas coisas que 173 depois se reduzem a uma ideia exagerada do seu real valor. Pode também acontecer, certamente, que assim fiquem sacrificados os direitos do indivíduo; mas isso não diz respeito à história do mundo, para a qual os indivíduos apenas servem como meio para o seu progresso" Ub., 1, p. 63). A filosofia não deve preocupar-se com os sonhos dos indivíduos, deve manter firme o seu pressuposto de que o ideal se realiza e só possui realidade quando está conforme com a ideia. A filosofia deve reconciliar o real, que parece injusto, com o racional e dar a entender que o seu fundamento reside na ideia e que portanto deve satisfazer a razão (Ib., p. 66). Os meios da história do mundo são os indivíduos e as suas paixões. Hegel está longe de condenar ou de excluir as paixões; e, deste modo, afirma que "nada de grande se alcançou no mundo sem paixão" (1b., p. 74) e reconhece na paixão o lado subjectivo ou formal da actividade do querer, quando o seu fim está ainda indeterminado. Mas as paixões são simples meios que na história conduzem a fias diversos daqueles a que explicitamente se referem. "Os homens procuram transformar em acto aquilo que lhes interessa, e, ao fazê-lo, algo surge também de diferente, algo que está implícito e que não existe nas suas consciências ou intenções" (Ib., p. 77). O que está implícito nas paixões e nas vontades individuais dos homens é tornado explícito e realizado pelo espírito do mundo. Mas como o espírito do mundo é sempre o espírito de um povo determinado, a acção do indivíduo será tanto mais eficaz quanto mais conforme for com o espírito do povo a que o indivíduo pertence. 174 "Todo o indivíduo é filho do seu povo, num momento determinado do desenvolvimento desse povo. Ninguém pode ir para além do espírito, assim como não pode sair da terra" (lb., p. 86). Hegel reconhece na tradição toda a força necessitante de uma realidade absoluta. Mas a tradição não é apenas conservação, é também progresso; e como a tradição encontra os seus instrumentos nos indivíduos conservadores, também o progresso encontra os seus instrumentos nos heróis ou indivíduos da história do mundo. Estes são os videntes: através deles se conhece quer a verdade do seu mundo e do seu tempo, quer o conceito, o universal que está prestes a surgir; e os outros reúnem-se à volta da sua bandeira, porque eles exprimem que a sua hora assome, "Os outros devem obedecer-lhe porque assim o sentem" (Ib. p. 98). Só a esses indivíduos reconhece Hegel o direito de enfrentar as condições das coisas presentes e de trabalhar para o futuro. O sinal do seu destino excepcional é o sucesso: resistir-lhes é tarefa vã. Aparentemente tais indivíduos (Alexandre, César, Napoleão) não fazem mais que seguir as suas
próprias paixões e ambições; mas trata-se, segundo afirma Hegel, de uma astúcia da razão que se serve dos indivíduos e das suas paixões como meios onde os seus fins actuam. O indivíduo a certa altura acaba por soçobrar ou é levado à ruína pelo seu próprio sucesso: a ideia universal, que o tinha suscitado, alcançou já o seu fim. Em relação a um tal fim, indivíduos e povos, são apenas meios. "As individualidades, afirma Hegel (1b., p. 44) separam-se de nós; atribuímos-lhes valor na 175 medida em que elas traduzem na realidade aquilo que quer o espírito do povo". Mas também o espírito particular de um povo pode desaparecer; só o espírito universal não desaparece; e aquele é apenas um elo deste último: "Os espíritos dos povos são os membros do processo através do qual o espírito alcança o livre conhecimento de si próprio" (1b., p. 49). O desígnio providencial da história revela-se com a vitória que, de vez em quando, é obtida pelo povo que concede o mais elevado conceito do espírito. "O espírito particular de um povo subjaz na transitoriedade, entra em ocaso, perde a sua importância para a história do mundo, deixa de ser o conceito supremo que o espírito obteve para si. O povo do momento, o dominador, é de tempos a tempos aquele que concebeu o mais elevado conceito do espírito. Pode acontecer que os povos portadores de conceitos não tão elevados continuem a existir. Na história do mundo, surgem colocados à margem" (1b., p. 55). Afirmou-se que o fim último da história do mundo é a realização da liberdade do espírito. Ora esta liberdade realiza-se, segundo Hegel, no Estado; o Estado é, portanto, o fim supremo. O homem só tem existência racional no Estado, e só através dele age segundo unia vontade universal. Por isso só no Estado podem existir a arte, a religião, e a filosofia. Estas formas do espírito absoluto exprimem o mesmo conteúdo racional que se realiza na existência histórica do Estado; por conseguinte, só através de uma dada religião pode subsistir uma dada forma estatal e só num dado Estado pode subsistir uma dada filo176 sofia e uma dada arte (1b., p. 119). O Estado é o objecto mais especificamente determinado da história universal do mundo, "aquele onde a liberdade adquire a sua objectividade e vive na fruição da mesma" (1b., p. 109). A história do mundo é, segundo este ponto de vista, a sucessão de formas estatais que constituem momentos de um devir absoluto. Os três momentos dessa sucessão, o mundo oriental, o mundo greco-romano, o mundo germânico, são os três momentos da realização da liberdade do espírito do mundo. No mundo oriental só um é livre; no mundo greco-romano a liberdade é de alguns; no mundo germânico todos os homens são seres livres, porque é livre o homem enquanto homem. Hegel ilustra e determina em todos os particulares geográficos e históricos esta divisão; mas o tratamento que lhes dá é, como já acontecera com a filosofia da natureza, uma manipulação arbitrária do material usado e uma contínua violação dos cânones científicos que presidem à respectiva recolha e utilização nas disciplinas correspondentes. Na realidade, a investigação historiográfica baseia-se no interesse pelo passado enquanto tal; e
Hegel não tem interesse pelo passado, como não tem interesse pelo futuro. A sua única categoria historiográfica é a do presente, que é portanto a eternidade. "Na ideia, mesmo aquilo que parece passado é conservado eternamente. A ideia é presente, o espírito é imortal; não existe tempo algum em que ela não tenha existido ou deixará de existir, ela não é nem passado nem presente, é sempre agora. Assim se afirma que o mundo actual, a actual forma 177 e autoconsciência do espírito, compreende em si todos os graus que se manifestam como antecedentes na história. Certamente que estes se desenvolveram independentemente uns dos outros; mas aquilo que o espírito é, foi-no sempre em si, e a diferença reside apenas no desenvolvimento deste em si" (1b., I. p. 189). Hegel levou deste modo à sua expressão mais crua e mais radical o conceito de história que, surgindo fugazmente na fantasia de Lessing e Herder, tinha encontrado a sua formulação preparatória em Fichte e Schelling. É o conceito de história como profecia ao contrário, como desenvolvimento necessário de um todo completo e por conseguinte como uma totalidade imóvel e privada de desenvolvimento, como um eterno presente, sem passado e sem futuro. NOTA BIBLIOGRÃFICA § 566. Sobre a vida de Hegel K. Posenkram H. s Leben, Berlim, 1844; R. Hiaym, H. und sein Zeit, BerIlâm, 1857; W. Dilthey, Die Jugendgeschichte Hegels, e outros trabalhos @em GesammeUc Schriften, IV, Leipzig, 1921. § 567. As obras completas de Hegel surgem depois da morte do filósofo a cargo de um grupo de amigos: Marheineke, Schulze, Ganz, Hotho, Michelet, Forster, com o Utulo Werke, VolIstandige Ausgabe, em 19 vols., Berlim, 1832-45. Esta obra foi reeditada vári" vezes sem alterações substanciais. Uma nova edição critica é a de 26 vols., a cargo de G. Lasson e J. Hofimeister, Leipzig, 1920, e segs. Uma boa ediÇão é igualmente a de H. Glk>--kner em 20 vols., Stuttga^ 1931, de que fazem parte aInda uma monograflia 178 sobre Hegel do mesmo Glockner, em 2 vols., e um Hegel-Lexikon em 4 volumes. Traduções italianas: Enciclopedia das ciências filosóficas, trad. Croce. Bari, 1907; Filosofia do direito, trad. Messinco, Bari, 1913; Ciência da lógica, trad. Móni, Ba^ 1925; História da filosofia, trad. Codignola e Sanna, Perugia-Veneza, 1930; Fenomewologia, do espírito, trad. De Negri, Florença, 1933; Filosofia da história, trad. Calogero, e Fatta, Florença, 1941; Os Princípios de Hegel (Fragm. de juventude, escritos do período de Jena, prefácio à Fenomenologia), trad. De Negri, Florença, 1919; Escritos de filosofia do direito, trad. A. Negri, Bari, 1962; Propedêutica filosófica (vol. XVIIII da edição original), trad. Radetti, Florença, 1951; Escritos de filosofia do dii@eito, trad. A. Negri, Bari 1962; Estética, trad. N. Merker e N. Vaccaro, Milão, 1963. § 568. Bibliografia em Croce, O que está vivo e o que está morto na filosofia de Hegel, Bari, 1906. Para um @exame da mais recente literatura hegelinT, : N. Bobbio, em "Belfagor", 1950.
Haym, op. cit., J. H. Stirling, The secret of H., Londres, 1865; K. Rosenkranz, H. aIs deutscher Nationa?philosoph, Leipzig, 1870; E. Caird, H., Loondres, 1883, trad. itaJ., Palermo, 1912; K. Fischer, H. s Leben, Werke und Lehre, 2 vols. Heidelberg, 1901; Roques, H., sa vie et oeuvres, Paris, 1913; Croce, Ensaio sobre Hegel, Bari, 1913; B. R. Kroner, Von Kant bis H., Tubingen, 1921-24; T. Haring, H. sein Wollen und sein Werk, Ledpzig, 1929-38; E. De Negri, Interpretação de H., Florença 1943; 11. Niel, De Ia mediation dans Ia philoso,phie de H., Paris, 1945; T. Litt@ H., Heidelberg, 1953; ACresson, R. Serreau, H., Paris, 1955. § 570. Os escritos de juventude de Ileged foram editados por H. Nobl, H. s Theologische Jugendschriften, Tubingen, 1907. Cfr. também Hoffnicister, Dokumente zur H.s Entwick1ung, Stuttgart, 1936. 179 Sobra os,escritos de Hegel e a formação do sistema hegeliano: DUthey, Jugendgeschichte H. 8, oit.; Delia VõIpe, H. romântico e místico, Florença, 1929; e especialmente: Haering, H., sein Wollen und sein Werke, 1, Leipzig, 1929, que é um comentãrio aos trabalhos de juventude; De Negri, O nascimento da dialéctica hegeliana. Florença, 1930; G. Lukaes, Der junge H., Zurique, 1948; P. Asveld, La p"sée religieuse du jeune H., Lovaina, 1953; A. T. Peperzak, Le jeune H. et Ia vision moral du monde, Ilaia, 1960; N. Merker, As origens da lógica hegeliana, Milão, 1961. § 571. Sobre a fenomenologia do espirito: J. Walil, Le malheur de Ia conscience dans Ia philosophie de H., Paris, 1929; Th. Hacring, in Verhandlugen des dritten Hegelkongresses in Rom, Tubingon, 1934, p. 118 e segs; De Negri, Interpretação de H., Florença, 1943; A. Kojève, Introduction à Ia lecture de H., Paris, 1947; J. Hyppolite, Genese et structure de Ia Fénoménologie de IlEsprit de Hegel, Paris, 1947. § 572. Sobre a lógica: P. Janet, Êtudes sur Ia dialectique dans Platon et dans HegeZ, Paris, 1860; W. Wallace, Prolegomena to the Study of H.Is Philosophy and Especially of his Logic, Oxford, 1894; J. B. Baillie, The Origin and the Significance of H.Is Logic, Londres, 1901; Hibben, H. s Logic, Nova lorque, 1902; G. Mure, A Study of HegelIs Logic, Oxford, 1950; J. Ilyppolite, Logique et existence. Essais sur Ia logique de H., Paris, 1953; N. Merker, As origens da lógica hegeliana, Milão, 1961. § 573. Sobre a filosofia da natureza: S. Alexander, in "Mind", 1866; E. Meywson, De rexplication dans les sciences, Paris, 1927, p. 343 e segs. § 575. Sobre a estética: Croce, t-TItimos ensaios, Bar!, 1935, p. 147-160. § 576. Sobre a filosofia da religião: J. M. Steret, Studies in U.Is Philosophy of religion, Londres, 1891. 180 § 578. Sobre a Moaofia do direito: K. Maj@er-Moroau, H. s Socialphilosophie, Tubingen, 1907; S. Brie, Der Volkgeist bei H., in "Archiv. fur Rechts-und-Wdxtschaf,tsphilosophie", 1908-09; e especialmente: R,osenzweig, H. und der Staat, 2 vols. Berlim, 1920. § 579. Sobre a filosofia da história: G. Lasson, H. aIs Geschichtephilosoph., Leipzig, 1920; K. Leese, Die Geschichtephilo8ophie Ws, Berlim, 1922; Hyppolite, Introduction à Ia Phil.
de Phistoire de Hegel, Paris, 1948; A. Plebe, H., Filósofo da História, Turim, 1952. 181 vi SCHOPENHAUER § 580. SCHOPENHAUER: VIDA E ESCRITOS Adversário do idealismo no campo do racionalismo optimista, Arthur Schopenhauer compartilha com ele o espírito romântico e a aspiração do infinito. Schopenhauer nasceu em Danzig a 22 de Fevereiro de 1788: o pai era banqueiro e a mãe, Joana, uma conhecida romancista. Viajou, na juventude, por França e Inglaterra; e depois da morte do pai, que pretendia destiná-lo ao comércio, frequentou a Universidade de Gottingen. onde teve como professor de filosofia o céptico Schulze. Influíram na sua formação as doutrinas de Platão e de Kant; Kant foi sempre considerado por Schopenhauer como o filósofo mais original e mais importante que existiu na história do pensamento. Em 1811, em Berlim, Schopenhauer ouvia as lições de Fichte; em 1813 for183 mava-se com a tese Sobre a quádrupla raiz do princípio da razão suficiente. Nos anos seguintes (1814-18) Schopenhauer vive em Dresda. Escreve então um trabalho intitulado Sobre a visão e sobre as cores (1816) em defesa das doutrinas científicas de Goethe, de quem ficara amigo depois de uma estadia em Weimar; e preparou a edição da sua obra principal, O inundo como vontade e representação, que foi publicada em 1819. Depois de uma viagem a Roma e a Nápoles, candidatou-se em 1820 ao ensino livre na Universidade de Berlim; e até 1832 mantém os seus cursos livres, sem demasiado zelo e sem qualquer sucesso. Entre 1822 e 1825 encontra-se novamente em Itália. A epidemia de cólera de 1831 apanha-o em Berlim; estabelece-se depois em Francoforte sobre o Meno onde permanece até morrer, em 21 de Dezembro de 1861. E@m 1836 publicava a Vontade na natureza, e em 1841, Os dois problemas fundamentais da ética, A sua última obra Parerga e paralipomena, foi publicada em 1851, e é um conjunto de dissertações e ensaios, alguns dos quais pela sua forma popular e brilhante, contribuíram para a difusão da sua filosofia. Compreendem entre outros: A filosofia da Universidade, Aforismos sobre a sabedoria da vida, Pensamentos sobre argumentos diversos. A obra de Schopenhauer não consegue sucesso imediato e mais de vinte anos separam a primeira da segunda edição de O mundo como vontade e representação. Esta segunda edição é enriquecida com um segundo volume de notas e aditamentos. Estava-se 184 no período do máximo florescimento do idealismo, contra o qual Schopenhauer se irritava
e zangava, endereçando a Fichte, Schelling e Hegel e aos seus sequazes, os mais violentos sarcasmos. O idealismo é tratado por ele depreciativamente como uma "filosofia universitária", uma filosofia farisaica, que não está ao serviço da verdade, mas de interesses vulgares, preocupando-se apenas em justificar sofisticamente as crenças e os preconceitos que servem a Igreja e o Estado. No entanto, Schopenhauer reconhece quer em Fichte quer em Schelling um certo talento, ainda que mal empregado; mas para ele, Hegel, não passa de um "charlatão pesado e enfadonho" e a sua filosofia uma <@palhaçada filosófica", "a más vazia e insignificante tagarelice que saiu de uma cabeça de madeira" expressa na "salganhada mais repugnante e insensata que faz lembrar o delírio dos loucos". Schopenhauer não poupa Schleiermacher, nem Herbart, nem Fries. Na linguagem florida e pitoresca em que exprime o seu pouco benévolo veredicto sobre a filosofia contemporânea, manifesta-se no entanto a exigência, nele bastante viva, de liberdade da filosofia, exigência que o leva a indignar-se violentamente contra a divinização do Estado feita por Hegel. "Haverá melhor preparação para os futuros burocratas do Estado do que esta filosofia que ensina a dar vida ao Estado, pertencendolhe de corpo e alma como a abelha ao cortiço, e a não ter outro objectivo que não seja o de tornar-se uma peça capaz de cooperar e manter de pé a grande máquina do Estado? O amanuense e o homem são uma e a mesma coisa ... " 185 § 581. SCHOPENHAUER: A VONTADE INFINITA o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer é a distinção kantiana entre fenómeno e nómeno. Mas esta distinção é entendida por Schopenhauer num sentido que nada tem de comum com o genuinamente kantiano. Para Kant o fenómeno é a realidade, a única realidade acessível ao conhecimento humano; e o nómeno é o limite intrínseco desse conhecimento. Para Schopenhauer o fenómeno é aparência, ilusão, sonho, aquilo que na filosofia indiana é designado pelo "Véu de Maia"; e o nómeno é a realidade que se esconde por detrás do sonho e da ilusão. Desde o início que Schopenhauer faz reconduzir o conceito de fenómeno a um significado que era totalmente estranho ao espírito de Kant, e que é extraído da filosofia indiana e budista, apreciada por Schopenhauer. E, nesta base, apresenta a sua filosofia como integração necessária da de Kant: Schopenhauer descobria a via de acesso ao nómeno que Kant declarava inatingível. Schopenhauer não dá qualquer importância à doutrina moral de Kant, que indicava a fé moral e as suas condições (postulados da razão prática) como possibilidade de uma relação entre o homem e o mundo dos nómenos. Mas para ele, Kant é o Kant da Crítica da razão pura, e apenas o da primeira edição dessa Crítica; A via de acesso ao nómeno descoberta por Schopenhauer é a vontade; não a vontade finita, individual e ciente, mas a vontade ínfinita e por isso una e indivisível, independente de toda a individuação, Uma tal vontade, que vive no homem como em qualquer 186 outro ser da natureza, é portanto um princípio infinito, de franca inspiração romântica. Schopenhauer pretende decantar a filosofia dos "aborrecidos idealistas"; no entanto a sua filosofia continua a manter estreitas relações com o idealismo. Se para Hegel a realidade é razão, para Schopenhauer é vontade irracional; mas tanto para um como para outro só o infinito é real, não sendo o
finito mais que aparência. Hegel chega a um optimismo que justifica tudo aquilo que é; Schopenhauer desemboca num pessimismo que pretende negar e suprimir toda a realidade. Mas, tanto um como outro estão dominados pelo anseio de infinito, e têm o mesmo desinteresse pz-4a individualidade, que também para Schopenhauer é mera aparência. Se em Hegel a liberdade surge identificada com a necessidade dialéctica, em Schopenhauer surge explicitamente negada porque contrária ao determinismo que reina no mundo dos fenómenos. A vontade infinita está internamente dividida e é discordante e devoradora de si própria: é essencialmente infelicidade e dor. Schopenhauer faz-se arauto e profeta da libertação da vontade de viver e indica a via do ascetismo para tal libertação. No entanto, ele próprio não se sente muito empenhado num tal objectivo. Não obstante o carácter profético da sua filosofia, Schopenhauer na filosofia apenas vê um somatório de conceitos abstractos e genéricos que não passam de "uma completa repetição e são como que um reflexo do mundo em conceitos abstractos" (Mundo, 1, § 15). No entanto, o filósofo pode não estar interessado em pôr em prática os 187 princípios da sua filosofia. "Que o santo seja um filósofo é tão pouco importante, como pouco importante é que o filósofo seja um santo: ou como é importante que um homem belo seja um grande escultor ou que um grande escultor - seja um homem belo. Seria por outro lado uma coisa singular pretender que um moralista não deva recomendar senão a virtude que por ele é praticada. Representar abstractamente, universalmente, limpidamente, em conceitos a essência do mundo, e deste modo, qual imagem reflexa, colocá-la nos permanentes e sempre proporcionados conceitos da razão: isto sim é a filosofia e não outra coisa" (1b., 1, § 68). E assim Schopenhauer nem chegou a propor a si próprio a possibilidade de empreender a via da libertação ascética por ele tão eloquentemente defendida como último resultado da sua filosofia. Na verdade, mantém-se aferrado a essa mesma vontade de viver da qual afirmava a necessidade de se libertar. E quando, depois da morte de Hegel, decai a moda do hegelianismo a atenção do público começa a voltar-se para Schopenhauer, este não parece ficar satisfeito com isso. A sua personalidade mantém-se inteiramente fora da sua filosofia, que por isso mesmo se apresenta privada do melhor trunfo de qualquer filosofia: o testemunho vivo do filósofo que a elaborou. § 582. SCHOPENHAUER: O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO "O mundo @é a minha representação": com esta afirmação se inicia a obra principal de Schopenhauer. Trata-se de um princípio semelhante aos axiomas de 188 Euclides: ninguém reconhece a verdade, apenas a entende. A filosofia moderna, de Descartes a Berkeley, tem o mérito de generalizar este princípio. Tal princípio implica que a verdadeira filosofia deve sempre ser idealista. "Nada
é mais certo, afirma Schopenhauer (Mundo, 11, c. 1): ninguém poderá jamais sair de si próprio para se identificar imediatamente com as coisas que são diferentes de si; tudo aquilo de que tem conhecimento seguro, portanto imediato, acha-se dentro da sua consciência". A representação tem dois aspectos essenciais e inseparáveis, cuja distinção constitui a forma geral do conhecimento, seja abstracto ou concreto, puro ou empírico. Por um lado, existe o sujeito da representação, que é o que tudo conhece e não é conhecido por ninguém, porque nunca poderá ser objecto de conhecimento. Por outro lado, existe o objecto da representação, condicionado pelas formas a priori do espaço e do tempo que produzem a multiplicidade. O sujeito está fora do espaço e do tempo, é uno e indiviso em todos os seres capazes de lerem representação. "Cada um destes seres integra com o objecto o mundo como representação e de forma perfeita em milhões de seres existentes. Mas se esse único desaparecesse, deixaria de existir o mundo como representação" (lb., 1, § 2). Não pode existir objecto sem sujeito, nem sujeito sem objecto. O materialismo deve ser excluído porque nega o sujeito reduzindo-o ao objecto (à matéria). O idealismo (o de Fichte) deve ser excluído porque desenvolve a tentativa oposta e igualmente impossível de negar o objecto reduzindo-o ao sujeito. 189 Ora a realidade do objecto reduz-se à sua acção. A ideia de que o objecto tem uma existência exterior à representação que dele faz o sujeito é por conseguinte falha de sentido e contraditória. A acção causal do objecto sobre outros objectos constitui toda a realidade do próprio objecto. Por conseguinte, se chamarmos matéria ao objecto do conhecimento, a realidade da matéria extingue-se na sua causalidade. Deste reconhecimento, Schopenhauer obtém como primeira conclusão a eliminação de qualquer diferença importante entre vigília e sonho. Aquilo que foi dito na antiquíssima filosofia indiana, o que foi dito pelos poetas de todos os tempos, desde Píndaro a Calderon, encontra, segundo Schopenhauer, uma confirmação decisiva na conclusão idealista da filosofia moderna: a vida é sonho, e difere do sonho propriamente dito pela sua maior continuidade e conexão internas (Mundo, 1, § 5). A segunda consequência é a de que a função fundamental do intelecto é a intuição imediata da relação causal intercedente entre os seus objectos: a realidade destes objectos consiste, como já se viu, exclusivamente na sua causalidade. O intelecto é portanto essencialmente intuitivo nos confrontos da razão que é, pelo contrário, essencialmente discursiva e diz respeito apenas aos conceitos abstractos (lb., 1, § 8). Os conceitos abstractos são irredutíveis às intenções intelectuais, ainda que derivem delas e as pressuponham (lb., 1, § 10). O saber propriamente humano é conhecimento abstracto, é feito mediante conceitos; mas tal saber não tem outro fundamento da sua certeza que a própria intuição intelectual. Schopenhauer sus190 tenta que a própria geometria deve ser inteiramente baseada na intuição que deste modo adquiria uma evidência tanto maior se assumisse explicitamente como método próprio o método da intuição (1b., 1, § 15). . Espaço, tempo e causalidade constituem as formas a priori da representação, isto é, as condições * que deve estar sujeito qualquer objecto Intuído. Daí * importância que Schopenhauer dá ao princípio de causalidade, cujas várias formas determinam as categorias dos objectos cognoscíveis. No ensaio Sobre a
quádrupla raiz do princípio da razão suficiente, Schopenhauer tinha distinguido quatro formas do princípio da causalidade e, correspondentemente, quatro classes de objectos cognoscíveis. 1.o O princípio da razão suficiente do devir regula as relações entre as coisas naturais e determina a sucessão necessária causa-efeito. Esta forma abrange a classe das representações intuitivas, completas e empíricas: das coisas ou dos corpos naturais. Nos diferentes modos desta forma de causalidade se baseia a diferença entre o corpo inorgânico, a planta e o animal: o corpo inorgânico é determinado nos seus momentos pelas causas (e no sentido estrito da palavra), a planta por estímulos, o animal por motivos. 2.' O princípio da razão suficiente do conhecer regula as relações entre os juízos e faz depender a verdade das conclusões da das premissas. Esta forma do princípio abrange a classe de conhecimentos que é possuída apenas pelo homem, trata-se portanto de conhecimentos racionais verdadeiros e próprios. 3.' o prin191 cípio da razão suficiente do ser regula as relações entre as partes do tempo e do espaço e por isso determina a concatenação lógica dos aritméticos e geométricos. Nela se baseia portanto a verdade dos conhecimentos matemáticos, 4.' O princípio da razão suficiente do agir regula as relações entre as acções e fá-las depender dos seus motivos. A motivação é deste modo uma espécie particular da causalidade e precisamente a causalidade vista do próprio interior do sujeito que actua. Estas quatro formas do princípio de causalidade constituem quatro formas de necessidade que dominam todo o mundo da representação: a necessidade lógica segundo o princípio da ratio cognoscendi; a necessidade física segundo a lei da causalidade; a necessidade matemática segundo o princípio da ratio essendi; e a necessidade moral segundo a qual o homem, como o animal, deve praticar a acção sugerida pelo motivo, quando este motivo se lhe apresenta. Esta última forma de necessidade exclui evidentemente a liberdade da vontade humana que, segundo Schopenhauer, efectivamente não subsiste. O homem, como representação, é apenas um fenómeno entre os outros fenómenos, e subjaz à lei geral dos próprios fenómenos, a causalidade, na forma específica que lhe é própria, a da motivação. Mas uma vez que a realidade não se reduz totalmente à representação, que é apenas um fenómeno, existe para o homem uma outra possibilidade de se reconhecer livre, possibilidade que está ligada à essência noménica do mundo e de si próprio. 192 SCHOPENHAUER § 583. SCHOPENHAUER: O MUNDO COMO VONTADE Se o mundo fosse apenas representação ficaria reduzido a uma visão fantástica ou a um sonho inconsciente. Mas o mundo não é apenas representação; possui também um fenómeno, que é a vontade. Com efeito, o homem como sujeito cognoscente está fora do mundo da representação e da sua causalidade; como corpo, está integrado no mundo e submetido à sua acção causal. Mas o próprio corpo não é dado ao homem apenas como fenómeno, não é por ele intuído apenas como uma representação entre as outras representações. No entanto é-lhe dado numa forma mais intrínseca e imediata, como vontade. Em regra sustenta-se que os actos e movimentos do corpo são os efeitos da vontade; para Schopenhauer são a própria vontade na sua manifestação objectiva, na sua
objectivação. O corpo não é mais que a objectividade da vontade, a vontade tornada objecto de intuição, ou representação. A vontade é portanto a coisa em si, a realidade interna cuja representação é o fenómeno ou aparência. "O fenómeno é representação e nada mais: toda a representação, seja de que espécie for, todo o objecto, é fenómeno. Pelo contrário, coisa em si é apenas a vontade: como tal não é representação mas algo de género completamente diferente. Toda a representação, todo o objecto, é fenómeno, extrinsecamente visível, objectividade da vontade. Mas esta é o ser íntimo, o núcleo de tudo o que é singular, e também do todo. Manifesta-se em qualquer força cega da natureza, manifesta-se igualmente na mediata con193 duta do homem. A diferença que separa a força cega do proceder reflexo diz respeito ao grau da manifestação, não à essência da vontade que se manifesta". (Mundo, 1, § 21). Como coisa em si, a vontade subtrai-se às formas próprias do fenómeno, ou seja: ao espaço, ao tempo e à causalidade. Estas formas constituem o principium individuationis, porque individualizam e multiplicam os seres naturais. A vontade que se subtrai a essas formas subtrai-se ao princípio de individuação: é portanto única em todos os seres. Por outro lado, uma vez que se subtrai à causalidade, a vontade actua de modo absolutamente livre, sem motivação, e é por conseguinte irracional e cega. Schopenhauer identifica-a com as forças que actuam na natureza; forças que assumem aspectos e nomes diversos (gravidade, magnetismo, electricidade, estímulo, motivo), nas suas manifestações fenoménicas, mas que, em si, são uma e idêntica força, a vontade de viver. A objectivação da vontade na representação tem graus diversos. Cada grau é unia ideia no sentido platónico: uma forma eterna ou um modelo, uma espécie, que surge depois indivíduada e multiplicada no mundo da representação, como obra do tempo, do espaço e da causalidade. A lei natural é a relação entre a ideia e a forma do seu fenómeno. O grau mais baixo da objectivação da vontade é constituído pelas forças gerais da natureza. Os graus superiores são as plantas e os animais até ao homem, nos quais começa a surgir a individualidade verdadeira e própria. Através destes graus, a vontade única tende 194 para uma objectivação cada vez mais elevada. Cada @ u de objectivação da vontade contende com outro gra na matéria, no espaço e no tempo, e implica, por isso, luta, batalha e, alternadamente, vitária. Isto acontece quer na natureza inorgânica, quer no mundo vegetal e animal, quer entre os homens. Nos graus ínfimos, a vontade surge como um impulso cego, uma surda agitação. Nos animais, torna-se representação intuitiva, e deixa de actuar como "pulso cego, uma surda agitação. Nos animais, torna-se razão que age em virtude dos motivos. Mas aquilo que a vontade adquire em clareza, perde em segurança: a razão está sujeita ao erro, e, como guia da vida, frequentemente falha no seu objectivo. Mas isso não impede que esteja ao serviço da vontade e seja sua escrava (1b., § 27). E desta escravidão apenas se poderá libertar através da arte e através da ascese. § 584. SCHOPENHAUER: A LIBERTAÇÃO DA ARTE
A primeira e imediata objectivação da vontade é a ideia, no sentido de espécie, de essência universal e genérica. A ideia existe fora do espaço e do tempo, fora do princípio de causalidade em todas as suas formas. É, por conseguinte, exterior ao conhecimento comum e científico que está ligado ao espaço, ao tempo e à causalidade. Existe igualmente fora do indivíduo como tal, aquele que conhece apenas os objectos singulares, objectos que são a objectivação mediata da vontade, e mediata também das ideias. Os objectos singulares as coisas e os seres exis195 tentes no espaço e no tempo - pela sua multiplicidade e pela sua mutação, não constituem a objectivação plena e adequada da vontade. Esta objectivação adequada e plena é apenas a ideia. E a ideia não é o objecto do conhecimento, mas apenas da arte, que é obra do génio. Ora, enquanto o conhecimento, e por conseguinte a ciência, existe continuamente enredado nas formas do princípio da individuação e submetido às necessidades da vontade, a arte é conhecimento livre e desinteressado. Quem contempla as ideias não é já o indivíduo natural, sujeito às exigências da vontade, mas o puro sujeito do conhecer, o puro olho do mundo. O génio é a atitude de contemplação das ideias no seu grau mais elevado. "Enquanto para o homem comum, afirma Schopenhauer (Mundo, I, § 36), o património cognoscitivo é a luz que ilumina a estrada, para o homem genial é ele mesmo quem revela o mundo". A contemplação estética subtrai o homem à cadeia infinita das necessidades e dos desejos com uma satisfação inamovível e total. Esta satisfação não se consegue nunca de outro modo. ",Nenhum objecto da vontade, uma vez obtido, pode dar uma satisfação duradoura que não se altere; pelo contrário, assemelha-se antes à esmola dada ao mendigo, que lhe prolonga hoje a vida para continuar amanhã o seu tormento" (1b., § 38). Na contemplação estética, pelo contrário, a cadeia de necessidade é interrompida porque o próprio indivíduo é de certo modo anulado. "A pura objectividade da intuição, pela qual a coisa singular não é já conhecida como tal, mas sim a própria ideia na sua espécie, é determinada 196 por aquilo que é consciente já não de si próprio, mas dos objectos intuídos; por conseguinte, a consciência mantém-se simplesmente como sustentáculo da existência objectiva desses objectos (1b., 11, cap. 30). Nisso consiste a analogia da arte com a anulação da vontade através do ascetismo. Quando o caminho no sentido da contemplação se faz só através de uma luta contra, os impulsos discordantes da vontade, tem-se então o sentimento do sublime: - mas é por esta luta no entanto que se distingue do sentimento do belo, onde ela não existe (Ib., 1 § 39). As diversas artes correspondem aos graus diversos da objectividade da vontade. Vão desde a arquitectura, que corresponde ao grau mais baixo da objectividade (ou seja, à matéria inorgânica), passam pela escultura, pela pintura, pela poesia até atingirem a tragédia que é a arte mais elevada. A tragédia revela o dissídio intimo e a luta da vontade consigo própria. "A dor sem nome, a angústia da humanidade, o triunfo da perfídia, o domínio discernível do caso, e a fatal derrocada dos justos e dos inocentes, surgem, na tragédia, à luz de uma verdade autêntica e assim se obtém um indício significativo da natureza do mundo e do sem (Ib., I, § 51). Entre as artes, a música merece um lugar à parte. A música não corresponde às ideias, como as outras artes, mas, tal como as próprias ideias, é a imediata revelação da vontade tão directamente como o mundo, ou antes, como as próprias ideias, cujo fenómeno multiplicado constitui o mundo dos objectos singulares" (lb., 1, § 52). A música é assim a arte mais universal e profunda, a linguagem universal num
197 grau elevadíssimo "que está para a universalidade dos conceitos quase como os conceitos estão para as coisas singulares". Todas as artes são libertadoras: o prazer que as Artes oferecem corresponde à cessação da dor, da necessidade, cessação que se alcança quando o conhecimento se desvincula da vontade para se colocar como desinteressada contemplação. Mas a libertação pela arte é sempre temporária e parcial. A arte não retira o homem da vida senão por breves instantes, e não é um caminho para se sair da vida; é apenas um consolo para a própria vida. A vida da libertação total é portanto diferente e independente da arte. § 585. SCHOPENHAUER: A VIDA COMO DOR No limiar do estudo da ética, que deve indicar o caminho da libertação humana, Schopenhauer defronta-se com o problema da liberdade. Como pode o homem libertar-se da vontade, se não é livre perante ela, se é escravo da própria vontade? No Ensaio sobre o livre arbítrio (1840) incluído nos Dois problemas fundamentais da ética, Schopenhauer tinha-se já pronunciado, de forma breve, contra uma liberdade entendida como liberum arbitrium indifferenciae. Ao mesmo tempo tinha reconhecido, interpretando a seu modo a doutrina de Kant, a liberdade da essência noménica ou inteligível do homem. E a esta solução se mantém agarrado também na sua obra principal. O fenómeno, qualquer fenómeno, está submetido a 198 uma das formas do principio da razão; portanto é necessidade. Mas o nómeno está fora dessas formas; portanto é liberdade, e é liberdade no sentido mais vasto, é liberdade como omnipotência. Omnipotente é portanto a vontade em si, o nómeno de todas as coisas, por conseguinte também do homem. Mas o ,homem é apenas um fenómeno da vontade, que é em si una e indivisível; como pode, portanto, ser livre? Schopenhauer distingue o carácter empírico do homem, que é puro fenómeno e portanto necessário e determinado, e o carácter inteligível, que é um acto de vontade fora do tempo e por conseguinte indivisível e imutável. O carácter inteligível manifesta-se nas acções e determina a substância do carácter empírico, mas isso não é um poder humano, porque não é o homem que o escolhe, é a vontade que escolhe por ele. Ao carácter inteligível, e ao carácter empírico vem juntar-se depois o carácter adquirido, que se
forma à medida que se vive, em contacto com o mundo, e que consiste no conhecimento claro e abstracto do próprio carácter empírico. Em tudo isto, não encontramos ainda qualquer sinal de liberdade. E, contudo, a vontade é em si própria livre, e pode promover no homem e para o homem a sua própria libertação. Isso só acontece no acto em que a vontade alcança "a plena consciência de si, o claro e integral conhecimento do seu próprio ser e que se espelha no mundo" (Mundo, 1, § 55). Mas como pode esta consciência da vontade, este seu autoconhecimento ou auto- objectivação, que não passa de um produto da própria vontade, anular ou bloquear 199 a vontade omnipotente, é coisa que Schopenhauer não se esforça por explicar. A autonegação da vontade deve ser, portanto, o produto do claro límpido conhecimento que a vontade tem em si própria. O princípio deste conhecimento é o de que a vida é dor e de que a vontade de vida é o princípio da dor. Querer significa desejar, e o desejo implica a ausência daquilo que se deseja. Desejo é privação, deficiência, indigência, e por conseguinte, dor. A vida parece lançada num esforço incessante de afastar a dor, esforço que se mostra vão no preciso momento em que chega a seu termo. Com a satisfação do desejo e da necessidade surje um novo desejo e uma nova necessidade, e a satisfação jamais terá um carácter definitivo e positivo: o prazer é a cessação da dor e tem portanto um carácter negativo e transitório. Por outro lado, quando o aguilhão dos desejos e das paixões se torna menos intenso, substitui-se o tMio, que é ainda mais insuportável que a dor. A vida é portanto um contínuo oscilar entre a dor e o tédio; dos sete dias da semana, seis pertencem à fadiga e à necessidade, o sétimo ao tédio i(Ib., 1, § 57). Contra a tese de Leibniz, de que este é o melhor dos mundos possíveis, Schopenhauer afirma precisamente o princípio oposto, de que ele é o pior dos mundos possíveis. Possível não é aquilo que se pode fantasiar, mas aquilo que pode realmente existir; e se o mundo fosse apenas um pouco pior, não poderia mais existir. Portanto, uma vez que um mundo pior, não podendo existir, não é possível, este é precisamente o pior dos mundos possíveis. "O optimismo 200 não é, afirma Schopenhauer, repetindo a seu modo uma tese de Hume, senão o auto-elogio injustificado do verdadeiro criador do mundo, isto é, da vontade da vida que, complacentemente, se espelha na sua obra: portanto trata-se de uma doutrina não apenas falsa como ainda perniciosa" (Mundo, 11, cap. 46). Schopenhauer admite, no entanto, o finalismo na natureza e fala de uma
finalidade interna através da qual todas as partes de um organismo singular convergem na conservação dele e da sua espécie; e de uma finalidade externa que consiste na relação entre * natureza orgânica e a inorgânica que torna possível * conservação de toda a natureza orgânica (1b., 1, § 28). Como se concilia este finalismo com o pessimismo da tese de que este nosso mundo é o pior dos mundos possíveis, Schopenhauer não nos diz. Apenas observa que esse mesmo finalismo garante a conservação da espécie, não a dos indivíduos de qualquer espécie, que são presa de incessantes guerras de extermínio que a vontade de viver conduz contra si própria. Mas é óbvio que um certo número de indivíduos deve no entanto salvar-se, caso a espécie deva ser conservada; e a salvação de tais indivíduos deve, por conseguinte, fazer parte do finalismo ,geral. Pelo contrário, no que diz respeito ao mundo da história, o pessimismo de Schopenhauer é mais coerente. Schopenhauer afirma que a verdadeira filosofia da história não consiste em transformar os objectos temporais dos homens em objectivos eternos e absolutos e em construir artificiosamente o progresso; mas em saber que a história, do princípio ao 201 fim do seu desenvolvimento, repete sempre o mesmo acontecimento, sob diversos nomes e diversas roupagens. Esse acontecimento único é o seu movimento, o agir, o sofrer numa palavra, o destino do género humano, que nasce das propriedades fundamentais do homem, muitas más, poucas boas. Portanto, a única utilidade que pode ter a história é a de dar ao género humano a consciência de si e do seu próprio destino. Um povo que não conheça a sua história vive como o animal; sem se dar conta do seu passado, limitado e submerso no presente. E o que a razão faz em relação ao indivíduo, faz a história em relação a uma totalidade de indivíduos, refere o presente ao passado e antecipa o futuro. Por isso as lacunas da história são como as lacunas na autoconsciência do homem; e perante um monumento da antiguidade que tenha sobrevivido à sua história, o homem mantém-se ignaro e estúpido, como o animal perante as acções humanas ou como o sonâmbulo que descobre de manhã o que ele próprio fez durante o sono (Ib., 11, cap. 38). § 586. SCHOPENHAUER: O ASCETISMO O fundamento da ética de Schopenhauer é a contínua dilaceração que a vontade provoca em si própria: dá laceração que, no indivíduo, se traduz no contraste e na contínua rebelia das necessidades, e fora dele, no contraste e na rivalidade permanente entre os indivíduos, na injustiça. A injustiça é a condição da vontade de viver dividida e discor202 dante que existe nos diversos indivíduos, Para ela só existe um remédio: o conhecimento da unidade fundamental da vontade = todos os seres, e por conseguinte, o reconhecimento dos outros por sua vez, como sujeitos. o homem mau não é apenas o que atormenta, é também o atormentado; só em virtude de qualquer sonho ilusório ele se julga separado dos outros e da dor. O remorso temporário ou a angústia duradoura, que acompanha a malvadez, são a obscura consciência da unidade da vontade em todos os homens. Toda a
malvadez é injustiça, desconhecimento dessa unidade. Toda a bondade é justiça, reconhecimento dessa unidade, para lá do véu de Maia, da ilusória multiplicidade do principium individuationís. Mas a justiça é apenas o primeiro grau desse (reconhecimento; o grau superior é a bondade, que é o amor desinteressado pelos outros. Quando este amor é perfeito, faz com que o outro e o seu destino sejam iguais a nós próprios e ao nosso destino: mais além não se pode chegar, não existindo razão para preferir a outra individualidade à nossa. Assim entendido, o amor não é mais que compaixão; "é apenas e sempre o conhecimento da dor de outrem tornada compreensível através da dor própria e colocadas lado a lado" (Mundo, 1, § 67). Neste grau o indivíduo vê em todas as dores dos outros a sua própria dor, porque reconhece em todos os outros seres o seu mais verdadeiro e intimo eu. Então o véu de Maia acaba por ser completamente rasgado e ele está pronto para a libertação total. 203 Esta libertação, é a ascese. Através dela, a vontade muda de direcção, não se dirige já à sua própria existência reflectindo-se no fenómeno; pelo contrário, renega-a. A ascese é "o horror do homem pelo ser de que é expressão, o seu próprio fenómeno, pela vontade de viver, pelo núcleo e pela essência de um mundo que se reconhece pleno de dom Qb, 1, § 68). O asceta deixa de querer a vida, não prende a sua vontade ao que quer que seja, consolida em si próprio a máxima indiferença por tudo. O primeiro passo para a ascese é a castidade perfeita. É ela, com efeito, que o liberta da primeira e fundamental manifestação da vontade de vida, o impulso reprodutor. Segundo Schopenhauer, este impulso domina todas as formas do amor sexual. que, por mais etéreo que possa parecer, está sempre dominado pelo choque de interesses e exigências da reprodução. A escolha individual do amor não é verdadeiramente individual, é uma escolha da espécie e feita no interesse da espécie. A vontade de vida surge para Schopenhauer nesta função como "génio da espécie" que suscita e determina a escolha, o namoro, a paixão, com vista a garantir a continuidade e a prosperidade da própria espécie. Em todas as relações, mesmo as mais elevadas entre indivíduos de sexo diferente, não existe senão "a meditação do génio da espécie sobre o indivíduo possível, através dessas duas pessoas e da combinação das suas qualidades" (lb., II, cap. 44). Por conseguinte, entende-se como primeira exigência da libertação ascética, da vontade de vida, a libertação total do impulso sexual, portanto a casti204 dade absoluta. A resignação, a pobreza, o sacrifício e as outras manifestações de ascetismo têm todas o mesmo objectivo: libertar a vontade de viver da própria cadeia, extingui-la e anulá-la. Se a vontade de viver fosse destruída totalmente num único indivíduo, ela desapareceria na sua totalidade, porque é uma só. O homem tem como objectivo esta libertação radical da realidade da dor: e através do homem todo o mundo será redimido. Schopenhauer procura a confirmação desta tese na filosofia indiana, no budismo e nos místicos cristãos. E vê na supressão da vontade de viver o único e verdadeiro acto de liberdade que é possível ao homem. O suicídio não serve este objectivo. Porque não é negação da vontade mas uma enérgica afirmação da mesma. Com efeito, o suicida quer a vida; está apenas descontente
com as condições que lhe couberam: por isso destrói o fenómeno da vida, o seu corpo, mas não destrói a vontade de viver, que não fica atingida ou diminuída com o seu gesto. (Ib., 1, § 69). O homem é, como fenómeno, um elo da cadeia causal: o que ele faz está necessariamente determinado pelo seu carácter e o seu verdadeiro carácter é imutável. Mas quando reconhece a vontade como coisa em si, subtrai-se à determinação dos motivos que actuam sobre ele como fenómeno; esse conhecimento é, não um motivo, mas um quietivo do seu querer e o carácter do homem pode ser assim eliminado e destruído (lb., 1, § 70). Através dele o homem torna-se livre, regenera-se e entra no estado a que os cristãos chamam estado de graça. O termo, que pode 205
alcançar e onde pode repousar, é o nada, o puro nada, a eliminação total de tudo aquilo que é, enquanto vida e vontade de vida. "O que permanece após a supressão completa da vontade, afirma Schopenhauer no fim da sua obra (Ib., 1, § 71), é certamente o nada para todos aqueles que estão ainda totalmente absorvidos pela vontade. Mas para os outros, nos quais a vontade é destruída e renegada, este nosso universo tão real, com todos os seus "s e as suas lácteas é, ele próprio, o nada". Schopenhauer é tão decididamente contrário ao panteísmo como ao ateísmo. Se um Deus pessoal é para ele "uma fábula judaica", o Todo-Uno do panteísmo é um simples fenómeno acidental de um princípio mais vasto. "O mundo não encerra todas as possibilidades do ser, deixa fora de si tudo aquilo que indicamos de forma negativa, como renegação da vontade de vida" (Ib., II, cap. 50). O mundo do panteísmo é o mundo do optimismo, precisamente onde o mundo de Schopenhauer existe apenas para tomar possível a sua própria negação. NOTA BIBLIOGRAFICA § 580. Schopenhauer, Sã-mUiche Werke, editor F'rauen~dt, 6 vols., Leipzig, 1873-74; ed. Grisebach, 8 vols., Leipzig, 1891; ed. Steiner, 12 volg., Stuttgart, 1894 e segs.; ed. Prischeisen KõhIer, 8 vols., Berlim, 1913; ied. Deussen, 14 vols., Berlim, 1911 e oegs. Esta última é umia edição crftica e completa. § 581. Th. Ribot, La philosophie de S., Paris, 1874; W. Wa~, S., Lon1891; E. G~bach, S., ncue Beitrage zur Lebens, Berlim, 1905; O. Siebert, A. S., 206 Stuttgart, 1906; A. Covotti, La vita e il pensicro di A. S., Turim, 1909; Th. Ruyssen, S., Paris, 1911; E. Seilliere, S., Paris, 19k12; M. Becr, S., Berlim, 1941; P. Martinetti, S., Milão, 1941; F. Copleston, A. S., Londres, 1946; A. Cresson, S., Paris, 1946; M, Gueroult, S. et Fichte., Paris, 1946. § 582. L. Ducros, S., les origines d-sa metaphy.sique ou " transformations de Ia chose en
soi de Kant à S., Paris, 1884; M. Mery, Essai sur Ia causalité phenomenale seZon S., Paris, 1948. § 584. A. Fauçonnet, L'esthetique de S., Paris, 1914. § 585. Renouvier, S. et Ia metaphysique du. pessimisme, in "Llannéo philosophique", 1893; K. Fischer, Die Philosophie des Pessi~mus, in "KlSchriften", I, Heidelherg, 1897. § 586. E. Bergmann, Die Erlósungsl--hro, S. s, Munique, 1921. 207 Vil[ A POLÉMICA CONTRA O IDEALISMO § 587. HERBERT: VIDA E OBRA Aos grandes sistemas idealistas e à atitude romântica junta-se, na Alemanha, um movimento de reacção anti-idealista e, em certos aspectos, anti-romântico, que tem direcções diversas; nenhuma delas, no entanto, retoma ou faz seu qualquer dos temas que o idealismo julgava ter superado e destruído. É evidente que para estes movimentos o idealismo, em ambas as suas formas, não existiu em vão: a própria polémica oculta frequentemente uma maior ou menor afinidade de aspirações, e portanto as posições que se contrapõem ao idealismo mostram todas possuir, em graus diversos, algumas relações com ele. 209 o tema polémico do realismo contra o idealismo é desenvolvido por Friedrich Herbart. Nascido em Olderiburg a 4 de Maio de 1776, Herbart foi aluno de Fichte em Jena, mas assume desde logo uma posição exítica perante as doutrinas do mestre. Um seu trabalho de 1794 é dirigido contra o segundo princípio da Doutrina da ciência de Fichte, e um outro, escrito alguns anos mais tarde (e que é a crítica a uma dissertação de Rist, Os ideais éticos e estéticos), ainda que ilustrando o princípio da filosofia de Fichte, revela uma tentativa de lhe dar outra significação, afirmando que o eu de Fichte leva a um círculo infinito, no sentido em que se coloca sempre de novo como sujeito da sua subjectividade, e que este círculo faz do próprio eu uma unidade sintética. Em 1796, numa crítica a Schelling, Herbart pronuncia-se claramente a favor do realismo; e repete a sua convicção num trabalho seu escrito na Suíça onde se encontrava como preceptor particular. Através da obra do pedagogo suíço H. Pestalozzi (1746-1827), Herbart foi levado a considerar o problema educativo, a que dedicou em 1806 a Pedagogia geral e, mais tarde, o Esboço de lições de pedagogia (1835): obras que exerceram uma vasta e duradoura influência sobre a teoria e a prática da educação na Alemanha. Em 1805,
Herbart foi nomeado professor de filosofia e pedagogia em Kõnisgberg; e, em 1833, depois de ter em vão espera o sue er a eg na cátedra de Berlim, passou a ensinar em Gottingen onde permaneceu até morrer, em 14 de Agosto de 1841.-As suas principais obras são: Filosofia prática universal, 1808; Introdução à filosofia, 1813; 210 Manual de psicologia, 1816; Psicologia como ciência, 1824-25; Metafísica geral, 1828-29. A Introdução à filosofia, por ele renovada e ampliada em quatro edições sucessivas, contém um resumo de todo o seu sistema. § 588. HERBART: METAFÍSICA E lógica A tese fundamental de Herbart é a oposição pura e simples da do idealismo: para o idealismo a realidade é colocada pelo eu, para Herbart a realidade é uma posição absoluta, isto é, absolutamente independente do eu. No entanto, Herbart reconhece à reflexão filosófica a capacidade de atingir e determinar a natureza e os caracteres gerais da realidade; e para isso não deve fazer mais que transformar em conceitos e depurar e libertar das contradições, os dados da experiência interna e externa. Deste modo, a filosofia não é mais que a elaboração de conceitos. Como tal, deverá em primeiro lugar dirigir-se directamente a todos os objectos quaisquer que sejam (a natureza ou o eu, a arte ou o estado), sem se preocupar em incluí-los no eu ou em qualquer outra misteriosa intuição; e em segundo lugar deve levar os conceitos à forma de clareza e de distinção que se torna explícita nos juízos e fornecer as regras de unificação dos próprios juízos dentro do esquema silogístico. Da filosofia faz parte integrante, portanto, a lógica, que estabelece os preceitos mais gerais, para separar, ordenar e unir os conceitos, e que é a propedêutica geral de qualquer ciência. A lógica de 211 Herbart é a lógica tradicional, aristotélico-escolástica com certas influências kantianas. A advertência fundamental que a ela preside é a de que nela os conceitos não valem nem como objectos reais, nem como actos de pensamento, mas simplesmente em relação àquilo que mediante eles surge pensado, ou seja em relação à sua referência objectiva (Intr., §§ 34-35). O ponto de partida de toda a filosofia, de toda a elaboração conceptual, é a experiência; mas a experiência surge em Herbart, como já acontecia com os Eleatas e com Platão, enxameada de contradições e não podendo portanto ser assumida como a própria realidade. Ela é aparência, mas é aparência de algo que é. O próprio facto de alguma coisa aparecer demonstra que alguma
coisa existe; e ainda que não tenha os caracteres e as qualidades que se apresentam, é, no entanto, na sua realidade, revelada pela aparência. Que coisa possa ser esta realidade que a experiência pressupõe e que revela ao manifestar-se, cabe à filosofia determinar; e, neste aspecto, a filosofia é metafísica. Através da reflexão sobre a experiência da eliminação das contradições, e da sua elaboração em conceitos, a metafísica deve alcançar a verdadeira realidade. A experiência é contraditória porque contraditórias são as realidades que ela revela como experiência interna e externa: as coisas e o eu. Uma coisa é uma unidade; mas se se pergunta que coisa possa ser, dever-se-á responder enumerando as suas qualidades, que são muitas, e que, no entanto, devem ser inerentes à sua unidade: essa coisa é Portanto una e múltipla. O mesmo acontece com o 212 eu que, ainda que 'sendo um eu, possui uma pluralidade de determinações originais; e, além disso, é multiplicado infinitamente pela própria autoconsciência, já que a autoconsciência é a representação de um eu que é por sua vez um representar que reenvia para uma outra representação e para um outro representar e assim até ao infinito. Esta crítica do eu é a crítica do idealismo: longe de constituir a sólida base de todo o saber, o próprio eu é um nó de problemas que não se resolvem no seu âmbito (Intr. § 124). O espaço, o tempo, a causalidade e sobretudo o carácter fundamental da experiência sensível, a mutação, dão lugar a contradições e aporias. Herbart distingue três formas de mutação: aquela que não tem causa, ou seja, o devir absoluto; aquela que tem uma causa interna, ou seja, a autodeterminação; aquela que tem uma causa externa, ou seja, o mecanismo. Todas estas três formas de mutação subjazem, à própria dificuldade fundamental. Toda a mutação supõe um elemento ou um principio que muda (a causa, interna ou externa, ou o sujeito do devir absoluto); mas este elemento ou princípio, ao dar lugar à mutação, alterase por sua vez internamente e cinde-se de novo num princípio de mutação e na mutação que daí deriva; e assim até ao infinito. A consideração dessa mutação dá lugar portanto a uma multiplicação infinita de termos sem que se consiga compreender a própria mutação. A mutação é essencialmente contraditória e por conseguinte irreal. Na condenação da mutação está implícita a condenação da liberdade moral entendida como autodeterminação e do idealismo 213 que resolve a realidade no devir absoluto do eu. São por isso igualmente impossíveis, segundo Herbart, a liberdade transcendental de que fala Kant e a liberdade infinita de que fala Fichte. Estas considerações excluem do ser toda a multiplicidade e toda a relação. A pluralidade e as relações pertencem ao pensamento do ser, não ao próprio ser. Que algo, por exemplo A, exista, isso significa apenas que é preciso contentarmo-nos com a simples situação, de A. Atribuir a A um complexo de anotações e características, por exemplo a, b, etc., é possível, mas só com o compromisso de imediatamente se advertir que a, b, etc., traduzem conceptualmente A e que portanto devem desaparecer logo que se fale do ser de A. Neste sentido, o ser é uma posição absoluta: e está absolutamente independente da multiplicidade de observações conceptuais em que surje traduzido e expresso, sendo
também privado de negação e de relação. A conclusão é de que "existe efectivamente, fora de nós, unia quantidade de seres, cuja natureza simples e própria é desconhecida, mas que possuem condições internas sobre as quais nós podemos adquirir uma série de conhecimentos que podem ir até ao infinito". Estes seres são considerados diferentes entre si e não relativos; todas as relações que se possam estabelecer entre eles devem ser consideradas como uma visão acidental, que não qualifica e não modifica a sua natureza. Essas visões acidentais multiplicam o ser através do pensamento; mas como essas perspectivas são acidentais nos confrontos com o ser, não conseguem multiplicar o ser em si próprio. X
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A doutrina das visões acidentais constitui o ponto central da filosofia de Herbart, que sem ela se acharia reduzida a um puro e simples eleatismo, a um simples reconhecimento da unidade e da imutabilidade do ser, sem qualquer possibilidade de explicar o mundo fenoménico. Essa mesma doutrina vem introduzir no entanto um certo contraste na própria filosofia herbartiana, que por um lado se baseia na capacidade do pensamento em alcançar a natureza do real através dos conceitos, e por outro, considera os próprios conceitos como acidentais perante o real e, por isso, incapazes de implicar, com a sua multiplicidade, uma multiplicidade do próprio real. Ora se o real se revela no conceito, não se compreende que a multiplicidade interna do conceito não possa implicar a multiplicidade interna do real; ou, no caso desta implicação não subsistir, que se possa ainda interpretar o conceito como relacionado com o real. Além da doutrina das perspectivas acidentais, outros conceitos subsidiários são necessários para que o mundo fenoménico, possa ser explicado com a hipótese dos reais simples. Esses conceitos são o do espaço inteligível, o do tempo e o do movimento inteligível. Estes conceitos nada têm a ver com as correspondentes determinações empíricas. Por exemplo, o movimento inteligível, que é o movimento originário dos seres e nã6 implica qualquer mutação no interior dos seres, pode produzir no entanto uma mutação quando põe em contacto seres de qualidades diferentes e que, em virtude do princípio de contradição, não podem coexistir num único ponto. Em 215 tal caso a reacção de todos os seres afectados traduz-se num acto de autoconservação. No ser simples, como a alma, a autoconservação é uma representação; nos outros seres, a autoconservação é um estado interior do ser que deve ser pensado como análogo e correspondente à representação. Neste ponto, passa-se da metafísica à psicologia e à filosofia da natureza. Os conceitos subsidiários de que a metafísica se socorre para determinar a natureza dos seres simples encontram a sua explicação imediata nestas duas ciências. A primeira delas é, por isso, a psicologia, porque só através das representações desse ser
simples que é a nossa alma se verificam as " autoconserva~" dos outros seres simples que fenomenicamente surgem como naturais. Psicologia e filosofia da natureza constituem o termo de comparação dos conceitos fundamentais da metafísica, assim determinados. § 589. HERBART: PSICOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA Das teses fundamentais da metafísica resulta imediatamente que a representação não pode ser senão a autoconservação de um ser simples, chamado alma. Posto isto, a ideia capital da psicologia é a seguinte: "as representações, compenetrando-se alternadamente na alma, que é una, lutam entre si enquanto opostas e unem-se numa força comum quando não são opostos". Toda a vida da alma pode ser explicada, segundo Herbart, por esta ideia fundamental. Duas 216 HERBART representações opostas tendem a desaparecer porque se enfrentam reciprocamente; mas quando unia delas cede ou se toma ineficiente por qualquer outra representação, logo surge a representação contrária. Por outras palavras, as representações transformam-se, mediante uma recíproca pressão, numa tendência para representar, e que toma o nome de apetite, vida, estímulo, actividade real, vontade, etc. Por conseguinte, não existem faculdades diferentes na alma. Nem o sentimento, nem a vontade, estão de forma alguma fora das representações e ao lado delas. Um e outra consistem apenas em estados transitórios das representações e são antes "conceitos de classe" segundo os quais se ordenam os fenómenos observados. Esta doutrina implica a ideia de que as representações são forças e como forças actuam sobre o espírito humano. Com efeito, Herbart fala de uma estática e de uma mecânica do comportamento das representações, conseguindo alcançar a fórmula que deverá exprimir as leis gerais dos fenómenos psíquicos. A introdução do cálculo em psicologia deveria portanto ser admitida a partir dos ulteriores desenvolvimentos desta ciência. A mecânica das representações explica todos os aspectos da vida espiritual. Dada a restrição imposta pela consciência, nem todas as representações podem estar presentes em todos os instantes da consciência de um homem. As representações, em virtude da sua acção, recíproca, reúnem-se numa série ou grupo, cujo comportamento determina todos os poderes do homem. Se estes grupos não actuam completamente, 217 e uma parte é expulsa e a outra se reúne de forma ilícita, acontece surgirem então as conexões ininteligíveis que se verificam no sonho e na ilusão. Se, pelo contrário, os grupos representativos se organizam completamente, se existe um intelecto, que pode ser definido como "a faculdade de conectar os pensamentos segundo a natureza do pensado", esse intelecto garante assim o acordo entre os pensamentos e
os factos da experiência. Se os grupos representativos aparecem, por outro lado, ligados e coordenados de forma a alcançarem uma completa unidade e cada uma das suas séries se encontra no respectivo lugar, então estamos em presença da razão como "capacidade de reflexão e de compreensão de razões e contra-razões". Com a razão se ligam o sentido interno e o livre arbítrio. O sentido interno é a relação com mais grupos de representações, de tal modo que um grupo se pode apropriar de outro, da mesma forma que as novas percepções do sentido externo aparecem integradas e elaboradas pelas representações homogéneas mais velhas. Este fenómeno, pelo qual um grupo representativo acolhe em si uma nova representação homogénea, é designado por Herbart como apercepção. O sentido interno não é mais que a própria apercepção. Pelo mecanismo da representação se explica a liberdade. Ela é apenas o domínio dos grupos representativos mais fortes sobre a excitação e sobre o movimento do, mecanismo psíquico. As crianças não são livres porque não alcançaram ainda um carácter, ou seja, um grupo de representações 218 dominantes. O próprio carácter, o eu, é, por conseguinte, constituído por um grupo compacto de representações: o que nos pode dar a ideia de que é possível também ao eu destruir-se, cindir-se, como acontece na demência. A filosofia da natureza de Herbart não é mais que a tradução exacta, numa outra linguagem, destes conceitos fundamentais da psicologia. O pressuposto metafísico é sempre o encontro acidental de seres simples com as autoconservações imanentes. O encontro de dois seres opostos determina, a tendência para a sua interpenetração que é a atracção: o encontro de dois seres cuja oposição não é bastante forte para determinar a sua interpenetração produz a repulsa. Atracção e repulsa (que no seu conjunto constituem a matéria) são portanto o resultado do estado interno de um ser, da sua autoconservação, da sua reacção ao encontro causal com outro ser. Todas as forças da natureza se explicam pela oposição em que acabam por se descobrir os seres simples nos seus encontros casuais. Os graus e os modos diversos de oposição determinam a coesão, a elasticidade, a configuração, o calor, a electricidade. Herbart, no entanto, não considera suficiente a pura mecânica das forças - para explicar toda a vida orgânica. O desenvolvimento finalista desta vida e sobretudo a constituição dos organismos mais elevados, pressupõe unia inteligência divina que, sem ser ela própria um Ser simples, deve ser fundamento das relações que se verificam entre os seres.
219 § 590. HERBART: ESTÉTICA Sob o nome de estética, Herbart compreende a teoria da arte bela e a moral. Belo é tudo o que é objecto de aprovação; a teoria do belo, a estética, compreende portanto todas as disciplinas genericamente valoravas. O objecto da estética é o de individualizar e expor ordenadamente os conceitos-modelo ou ideias que devem ser depurados e todos os elementos subjectivos e transitórios, colocando-os acima das emoções e dos apetites. Por isso a ideia do belo não se identifica com o conceito de útil ou de agradável. A característica do belo artístico é a de que agrada espontaneamente e suscita imediatamente efeitos extremamente variados, mas passageiros, fixos ou permanentes no juízo estético. No domínio moral, os conceitos-modelo ou ideias exprimem relações entre vontades diversas, entendendo-se por vontade, já não a faculdade do espírito, mas os actos singulares e individualizados do querer. A primeira ideia moral é a da liberdade interna que exprime a harmonia entre a vontade e o juízo que obre ela se forma, Esta harmonia é o consenso entre o acto e a valoração do acto, consenso que "agrada absolutamente", e que é a liberdade interna do sujeito agente. A segunda ideia moral é a da perfeição: não existe uma medida absoluta da perfeição; a ideia que dela se pode ler não exprime senão uma referência entre o mais e o menos. A terceira ideia moral é a da benevolência, que exprime a harmonia entre a vontade própria e a vontade estranha: nela se baseia o pensamento capital da 220 moral cristã, o amor. A quarta ideia é a do direito que tem a origem na resolução do conflito de vontades de diversas pessoas e cuja validade se baseia no facto de esse mesmo conflito
experiência permite estabelecer os limites e a modalidade de realização das ideias morais nos múltiplos acontecimentos da vida. A doutrina da virtude depende por isso da psicologia, que lhe fornece o 221 conhecimento daquilo que o homem é empiricamente; e na medida em que a psicologia depende da metafísica, ela depende também, indirectamente, desta. Os dois ramos principais da doutrina da virtude são a política e a pedagogia. A política assume como seu fundamento o ideal do direito, sem o qual não se pode conceber nenhuma estrutura social que esteja conforme com a razão. A pedagogia baseia-se em todas as ideias morais, mas dá maior relevo à ideia de perfeição, fazendo dela uma aplicação contínua. Ao lado da ética que, com as ideias morais, fornece à psicologia os seus fins, para os quais deve ser dirigida a educação, Herbart coloca a psicologia como ciência dos meios da própria educação. Precisamente da psicologia, Herbart extrai o princípio da possibilidade de educar, por ele reconhecido na relação dos grupos representativos do educando seja entre si, seja com o organismo físico (,Uç. de ped., § 33). Este princípio fornece o fim próximo da educação, cujo fim remoto é a vida moral. O fim próximo é o interesse, que nasce do acto com que os grupos representativos se desenvolvem e unificam, ou seja, da percepção. O interesse deve ser plurilateral, deve dirigir-se a todos os aspectos da experiência sem descurar nenhum. A pluralidade do interesse é o Em daquilo a que Herbart chama a instrução educativa ou educação por meio da instrução. Com a doutrina da virtude tem estreitíssima afinidade a religião. A própria ideia de Deus não é mais que o conjunto das ideias éticas simples. Mas a religião não implica apenas a ideia de Deus; implica, também, a fé no governo providencial; e esta fé pode 222 e deve ser baseada na metafísica, na medida em que leva a uma consideração teológica da natureza. A fé, segundo Herbart, vem ao encontro de uma necessidade essencial do homem, uma vez que o ajuda no seu aperfeiçoamento moral e que lhe concede uma confiança repousante nos acontecimentos do mundo. É no entanto impossível um sistema de teologia natural, para o qual faltam, ao homem, dados que lhe são sabiamente negados. Pelo contrário, aquilo que se pode dizer de Deus em virtude das ideias práticas e da teologia natural, não é lícito afirmar sobre o ser primeiro. Herbart opõe-se à especulação de Schelling, que pretende fixar de muito perto os contornos da divindade, e à tese de Jacobi, que vê no saber uma ameaça para a fé. § 591. PSICOLOGISMO: FRIES Herbart realizou uma precisa antítese do idealismo no campo do realismo. Fries pretende realizar a antítese do idealismo no campo do empirismo psicológico. Jacob Friedrich Fries nasceu a 23 de Agosto de 1773 em Barby. Professor de Heidelberg, e depois de Jena, foi em 1819 suspenso das suas funções pelo governo prussiano. Mas em 1824 volta novamente a ser professor de física e matemática e, em 1825, pode retomar também os seus cursos de
filosofia. Morre em Jena a 10 de Agosto de 1844. As suas obras principais são: Reínhold, Fichte e Schelling @(1803; 2.a ed., com o título Escritos polémicos, 1824); Sistema de filosofia como ciência evi223 dente (1804); Saber, fé e pressentimento (1805), Nova crítica da razão 0818-32); Manual de antropologia psíquica (1820); Sistema de metafísica (1824), Manual de doutrina da natureza (1826); História da filosofia (1837-40). A ideia mestra de Fries é a de que o homem não possui outro meio de investigação filosófica que não seja a auto-observação (a introspecção), não havendo portanto outra via para basear qualquer verdade que não seja a que reconduz essa mesma verdade aos elementos subjectivos revelados pela auto-observação. Enquanto que para Herbart a experiência é apenas o ponto de partida da elaboração de conceitos, para Fries a experiência é a única via de investigação filosófica, que não pode fazer senão torná-la transparente a si própria mediante a auto-observação. A experiência de que fala Fries é, por consegu@ntc, o objecto da observação interior, e portanto uma experiência puramente psicológica. Compreende-se como, segundo este ponto de vista, a única verdadeira ciência filosófica é a psicologia, a descrição da experiência interior, psicologia a que Fries chama antropologia psíquica, para a distinguir, por um lado, da antropologia pragmática (de que se tinha ocupado Kant) e que diz respeito à conduta do homem, e, por outro, da antropologia somática (ou fisiologia) que diz respeito à natureza corpórea do próprio homem. Todavia, Fries não está de acordo com Herbart quanto à possibilidade de um tratamento matemático da psicologia. É impossível aplicar cálculos à vida espiritual, porque nesta falta sempre uma unidade de me224 FRIES dida; com efeito, trata-se de grandezas intensivas (e não extensivas como as espaciais) e quanto a elas não existe medida. Perante uma filosofia concebida como psicologia, as construções especulativas do idealismo romântico perdem todo o valor. Estas construções são, para Fríes, um passo atrás em relação, a Kant que, pela :primeira vez, afirmou a exigência de um autoconhecimento da razão como condição preliminar da aplicação da própria razão a um objecto qualquer. Mas Kant, por seu lado, não desenvolveu em profundidade, até alcançar um psicologismo radical, a sua investigação. A sua crítica contém o erra de querer alcançar o fundamento transcendental da verdade, a verdade objectiva do conhecimento humano. Mas esta pesquisa está vedada ao homem, afirma Fries (Polem. Schríften, 11, p. 352-, Neue Krítik, 11, P. 179 e segs.). "A crítica da razão é uma ciência de experiência baseada na autoobservação" (Metaph., p. 110); não é senão psicologia, antropologia psíquica. Esta é "a ciência fundamental de toda a filosofia". O seu objectivo é o de reconduzir os fenómenos internos do espírito humano às leis fundamentais da vida da razão" (Anthrop., 1, p. 4). A auto-observação revela imediatamente ao homem as suas três actividades fundamentais: o conhecimento, o sentimento e a vontade. Mas revela-lhe também que ele próprio, como espírito, é a causa desta actividade. Neste testemunho da experiência interior existe já, segundo Fries, a refutação de Fichte: o eu não é um acto mas um agente, não é actividade
mas a causa da actividade. Por isso 225 se torna impossível negar, como fez Herbart, a faculdade da alma; esta negação é o resultado de uma falsa doutrina metafísica (Ib., § 5). Sobre as três actividades que a experiência interna revela baseiam-se as três faculdades fundamentais do espírito humano: o conhecimento, o coração e a força de acção (lb., § 14). O conhecimento humano é inteiramente representação e a lei da verdade, que a regula, exige que ela represente os objectos e a sua existência tal como são. Mas o único fundamento desta lei é um facto imediato na nossa vida espiritual: a autoconfiança na razão. A razão tem confiança por conter em si própria a verdade: e neste testemunho psicológico Fries baseia a validade objectiva de todo o conhecimento humano. A esta reconhece os mesmos limites reconhecidos por Kant: a visão humana das coisas, formada pela intuição sensível e pelos conceitos, nada tem a ver com as ideias da essência eterna das coisas. Esta essência eterna é antes o objecto da fé. "Nós, afirma Fries (1b., § 32), sabemos apenas aquilo que diz respeito às aparências sensíveis; acreditamos na verdadeira essência das coisas, é o sentimento da verdade que faz pressentir em nós o significado da fé nas aparências". Por isso todo o conhecimento do homem é saber, fé e pressentimento (Ahndung). A espacialidade e a temporalidade do mundo corpóreo, a temporalidade dos fenómenos da vida espiritual, pertencem apenas aos fimitos subjectivos do espírito humano e, por conseguinte, à razão humana, cuja observação é limitada à aparência. A verdade eterna consiste nas ideias de absoluto, de liberdade e 226 de eternidade, ideias que não são dadas pelo saber, mas pela fé (lb., § 96). Ã fé se reduzem as próprias ideias estéticas do sublime e do belo: o sublime é, com efeito, o símbolo da verdade eterna e perfeita; o belo é aparência, o símbolo ou o análogo da virtude (1b., § 66). Fries unifica assim o ideal estético com o ideal religioso, que, para ele, fazem igualmente apelo à fé. Quanto à vida moral, o seu mais alto ideal é o da dignidade do homem. A máxima fundamental da vida moral é "o respeito pela dignidade pessoal do espírito humano" (Anthrop., 1, § 58; Systent der Phil., § 419). O absoluto valor da dignidade pessoal é a raíz de todos os deveres, porque impõe à vontade exigências necessárias que não deixam escolha. No mesmo princípio se deve inspirar a doutrina do direito cuja máxima é: "Trata os homens de modo a não ofenderes em nenhum a lei da igualdade da dignidade pessoal" (System der Phil., § 431). O objectivo do estado é o de fazer valer o direito baseado nesta máxima e o de garantir igualmente a máxima uniformidade do bem-estar, compatível com a liberdade máxima possível. Fries sustenta o ideal ,liberal da participação do povo na vida do Estado. "O governo coage os indivíduos com o seu poder através da lei; o povo coage, com o receio das suas opiniões claramente expressas, os governantes por meio da lei" (Ib., § 466). A sua confiança no poder do povo em inspirar a acção do governo e em participar directamente nos negócios públicos foi objecto de uma crítica bastante depreciativa por parte de Hegel, que (no prefácio à Filosofia do Direito) (vê nela a ten227
tativa de fazer ruir a rica constituição do ethos em si que é o estado, a arquitectónica da sua racionalidade "na água chilra do coração, da amizade e da inspiração". Hegel definia ainda como "vaidade a que se dá o nome de filosofia" a doutrina do seu colega Fries; mas não há dúvida que esta doutrina fez valer, e não sem eficácia, certas exigências que a doutrina de Hegel deixava por resolver. Na realidade, a antítese entre Hegel e Fries era radical; e como tal se revela sobretudo no que diz respeito ao conceito que era o remate final da filosofia hegeliana, o conceito de história. Neste domínio, Fries nega a possibilidade de qualquer concepção teleológica e de qualquer progresso. "A história dos homens está submetida à lei de um desenvolvimento natural, no qual a força vence sobre a força ou a prudência sobre a prudência". Um progresso real só é possível no domínio intelectual a que se deve portanto restringir uma filosofia da história. § 592. PSICOLOGISMO: BENEKE Na mesma linha da reacção psicologística ao idealismo especulativo, se desenvolve o pensamento de Friedrich Eduard BENEKE (17 de fevereiro de 1798 1.* março de 1854). Dedicando-se ao ensino ,livre em Berlim, Beneke vê-lhe retirada em 1822, depois da publicação do seu escrito Fundamentos da física de costumes, a autorização para ensinar na Universidade. Acusou Hegel do sucedido, pois aquele era amigo do ministro prussiano Altenstein, e, ao 228 que parece, com razão. Hegel não gostava que na sua própria Universidade se viesse ensinar doutrinas contrárias à sua. Beneke passou a ensinar em Gottingen (1824-27), mas mais tarde pôde regressar a Berlim, onde, depois da morte de Hegel, obteve uma cátedra (1832). Os seus principais trabalhos são: Doutrina do conhecimento (1820); Doutrina da experiência interna (1820), Novo fundamento da metafísica (1822); Fundamento da física dos costumes (1822); Rudimentos de psicologia (1825); Manual de psicologia como ciência natural (1833) A filosofia nas suas relações com a experiência, a especulação e a vida (1833); Doutrina da educação e do ensino (1835-38); Sistema de metafísica e de filosofia da religião (1840); Sistema de lógica (1842); Psicologia pragmática (1850). Como Fries, Beneke retoma as concepções de Kant, libertando essas concepções dos seus erros e desenvolvendo-as nos seus princípios fundamentais. O erro de Kant foi, segundo Bencke, o de instituir uma investigação independente da experiência, a fim de alcançar o conhecimento das formas a priori da intuição e das categorias. Pelo contrário. a investigação deverá basear-se exclusivamente na experiência e precisamente na experiência psicológica. A psicologia é a disciplina filosófica fundamental. Todos os conceitos filosóficos aquilo que é ou não logicamente válido, o que é moral ou imoral e assim por diante são apenas formas estruturais distintas da vida psíquica. Por isso a lógica, a moral, a metafísica, a filosofia da religião, a filosofia do direito e a pedagogia, não passam de "psicologia" ou "psi229 cologia aplicada". "Através dos conceitos das disciplinas filosóficas só pode ser pensado
aquilo que se formou na alma humana e segundo as leis do seu desenvolvimento; se essas leis forem reconhecidas com segurança e clareza, então alcançar-se-á um seguro e claro conhecimento dessas disciplinas" (Die Phil., p. XV). Mas a psicologia não pode basear-se na metafísica porque a precede; e, neste ponto, Beneke serve-se de Herbart. A psicologia deverá seguir o mesmo método das ciências naturais: deve portanto partir da experiência para isolar os últimos elementos psíquicos e determinar, mediante a indução, as leis da vida psíquica. Deste modo a psicologia poderá reconstruir a vida psíquica do mesmo modo que a física reconstrói o mundo natural com os elementos e as leis extraídos da experiência. E assim Bencke se mostra defensor de uma psicologia construtiva e genética, que tem por objecto todas as percepções internas da alma que, portanto, pode prescindir de qualquer relação dessas mesmas percepções com o mundo exterior. As próprias impressões dos sentidos externos podem ser consideradas pela psicologia na medida em que são ao mesmo @empo percepções internas. Como se disse, todas as disciplinas filosóficas são partes ou aplicações da psicologia. A lógica não é ,mais que a consideração dos processos psíquicos do pensamento, cujos elementos mais simples são os conceitos. Estes surgem como representações comuns nas quais acabam por se formar os elementos semelhantes das representações diversas que se encontram ao mesmo tempo na consciência. Os princípios 230 lógicos são "as fórmulas mais universais dos juízos analíticos": exprimem a identidade das representações conceptuais. A metafísica não é mais que a relação existente entre as próprias representações e a realidade exterior. Mas também este problema só pode ser colocado e resolvido no âmbito da experiência interna. Mas esta não surge senão através de representações: como se poderá portanto falar de uma relação entre as próprias representações e uma realidade independente? Beneke recorre ao testemunho da consciência. Na percepção de nós próprios o ser é-nos dado de forma imediata sem haver qualquer intervenção de alguma forma estranha. Nas representações dos sentidos, pelo contrário, o objectivo e o subjectivo unemse de forma tão estreita que é impossível distingui-los com segurança (Metaph., p. 534); por isso, ainda que não se possa negar que na sua base haja algo de real, também não é possível determinar qual a natureza desse real (1b., p. 252). No entanto, o devir deve ser uma forma essencial desta realidade em si Qb,, p. 261). A vida moral e a religião estão baseadas no sentimento. A religião origina-se no sentimento de dependência do homem em relação a Deus, sentimento que é justificado pela fragmentaridade da vida humana e pela exigência de um remate final que só pode vir de
Deus. Não é o panteísmo. mas o teísmo o que poderá satisfazer, segundo Beneke, um sentimento religioso desta natureza. O fundamento da ética é um sentimento moral de natureza especifica. Beneke rejeita a moral universalista de Kant, em virtude da exigência de todos 231 os indivíduos deverem agir em conformidade com os princípios da própria individualidade. A moral exige de homens diferentes acções diferentes. Essa é a razão porque não pode determinar uma lei universal subjectiva da conduta moral, mas - pode e deve determinar a ordem dos valores que devem ser preferidos nas escolhas individuais; e os valores são determinados pelo sentimento. Com efeito, a apreciação dos valores é obra dos confrontos e comparações que são realizados pela alma em conformidade com as leis do seu desenvolvimento. Assim acaba por ser determinada a superioridade de certos valores em relação a outros; e os valores superiores surgem sentidos, e por conseguinte pensados, como obrigatórios, o que os torna obrigatórios e assim transformam em dever a acção que lhes é conforme. O sentimento moral não é, portanto, inato; é antes uma formação psíquica, o produto de um desenvolvimento devido às leis gerais da experiência interna. § 593. A DIREITA HEGELIANA. ESCOLÁSTICA DO HEGELIANISMO Ã data da sua morte, Hegel deixava um vasto número de discípulos que, durante os anos seguintes, formaram o clima filosófico e cultural da Alemanha. Mas esse vasto número de seguidores bem cedo sofreu uma cisão que determinou a formação de duas correntes antagónicas, em 1837, David Strauss (em Streitsehriften, 111, Tubingen, 1837) designava 232 BENEKE estas duas correntes com os termos que foi buscar aos hábitos do Parlamento francês, a direita e a esquerda hegeliana. A cisão devia-se às diferentes posições assumidas pelos discípulos no que se refere à religião. Hegel tinha afirmado de forma enérgica que religião e filosofia têm o mesmo conteúdo; mas tinha proclamado também energicamente a distinção entre uma e outra, afirmando que enquanto a primeira exprime o conteúdo na forma de representação, a segunda exprime-o na forma de conceito (§ 576). É verdade que Hegel não se tinha pronunciado sobre os problemas especificamente religiosos, como os de Deus, da encarnação e da imortalidade da alma; no entanto, é preciso reconhecer que os princípios da sua doutrina não só não exigiam, como, de certo modo, não lhe permitiam que se pronunciasse sobre o assunto. Com efeito, por um lado Hegel reconhecia à religião histórica plena validade no âmbito da sua forma, portanto no campo da representação, por outro, sustentava que o conteúdo da religião devia ser retomado pela filosofia e integrado no plano dos conceitos, onde esses problemas deixam de ter o mesmo significado. Todavia, Hegel tinha apresentado a sua filosofia como justificação especulativa das realizações históricas do espírito do povo: a Igreja e o Estado; assim se explica a posição de muitos discípulos em manterem-se fiéis ao espírito, do mestre, utilizando a sua filosofia para justificarem as crenças religiosas tradicionais.
A direita hegeliana é portanto a escolástica do hegelianismo. Utiliza a razão hegeliana (ou seja, a sistemática da especulação hegeliana) do mesmo 233 modo que a escolástica medieval tinha utilizado a razão aristotélica: o seu fim é o de justificar a verdade ireligiosa. Numerosíssimos professores da Universidade alemã @(e especialmente prussiana, dado que o governo prussiano considerava como filosofia oficial a filosofia de Hegel), teólogos, pastores, dedicam-se à tarefa de demonstrar a concordância intrínseca do hegelianismo com as crenças fundamentais do cristianismo, socorrendo-se, para isso, de uma chamada justificação especulativa de tais crenças. Assim, Karl Friedrich Goschel (1781-1861), num escrito louvado pelo próprio Hegel, Aforismos sobre o não saber e sobre o absoluto saber (1829), tinha tentado demonstrar que uma justificação do sobrenatural só pode ser conseguida através de uma teologia especulativa no sentido hegeliano. Em seguida, no trabalho Sobre as provas da imortalidade da alma à luz da filosofia especulativa (1835), Goschel desenvolve as três provas da imortalidade, correspondentes às três provas da existência de Deus e aos três graus do indivíduo, do sujeito e do espírito. O tema da imortalidade volta a surgir com frequência nas polémicas da escola hegeliana, sobretudo em relação à radical negação da imortalidade feita por Feuerbach nos Pensamentos Sobre a morte e sobre a imortalidade. Na polémica intervieram Friedrich Ric@hter (nascido em 1802), com um escrito A nova imortalidade (1833), negando que se pudesse falar da imortalidade segundo o ponto de vista de Hegel, e Kasimir Conradi (17841849), que, pelo contrário, defende a imortalidade (Imortalidade e vida eterna, 1837), como defende, em todas as cir234 cunstâncias, o acordo entre o hegelianismo e o cristianismo. À direita hegeliana pertence, numa primeira fase, Bruno Bauer (1809-1882) que, depois da publicação da Vida de Jesus (1835) de Strauss, fundou, em polémica com aquela obra, a Revista de teologia especulativa que se publicou durante três anos (1836-38) e foi o órgão da direita hegeliana. Nela colaboraram Goschel, Conradi, Erdmann e Georg Andreas Gabler (1786-1853), um dos mais firmes defensores da intrínseca concordância entre hegelianismo e cristianismo. Nos anos seguintes Bruno Bauer, juntamente com o irmão Edgard (1820-86), passou a defender a exigência de unia crítica bíblica radical e proclamou-se ateu (A doutrina hegeliana da arte e da religião, 1842; A crítica do Evangelho de S. João, 1840; A crítica dos evangelhos sinópticos, 1841-42). À direita hegeliana pertence também o historiador da filosofia Johann Eduard Erdrnann (1805-92), autor das Lições sobre a fé e o saber (1837), de um escrito sobre Corpo e alma (1837) e de um outro sobre Natureza ou criação? (1840) no qual o conceito de criação surge defendido e esclarecido de acordo com a especulação hegeliana. Erdmann escreve também uma obra de Psicologia (1840) que, segundo ele, foi escrita a simples título de "entretenimento", além dos Lineamentos de lógica e metafísica (1841) e outros escritos
teóricos, cujas divergências em relação ao hegelianismo são insignificantes. No desenrolar histórico da filosofia, Erdmann admite uma dupla necessidade; uma histórica, para a qual todo o sistema de filosofia é a expressão do carácter 235 do tempo em que surge; a outra, filosófica, para a qual todo o sistema deve assumir como premissas as conclusões do sistema anterior. No centro da escola hegeliana Strauss tinha colocado Kapl Friedrich Rosenkranz (1805-79) que replicou rapidamente a tal designação numa comédia intitulada precisamente O centro da especulação, (1840). Rosenkrans foi obiógrafo entusiasta de Hegel (Vida de Hegel, 1844; Apologia de Hegel, 1858, contra a monografia publicada por Haym em 1857). Nas suas obras, numerosíssimas, desenvolve os pontos fundamentais da especulação hegeliana,por ele reformadas quase exclusivamente na distribuição das partes do sistema. Assim, no Sistema da Ciência (1850), Rosenkranz divide a enciclopédia em três partes: Dialéctica, Física e Ética; na Dialéctica a ideia como razão coloca o ser como pensamento na universalidade dos conceitos ideais; na Física a ideia como natureza coloca o pensamento como ser na particularidade da realidade material; na Ética a ideia como espírito coloca o ser como pensante e o pensamento como existente por si, na subjectividade que livremente se conhece a si própria. Por sua vez, a Dialéctica surge dividida por Rosenkranz (Ciência da ideia lógica, 1858-59) em três Partes: Metafísica, Lógica e Doutrina da ideia, esta última unificadora do ser e do pensamento que nas duas partes anteriores são contrapostos. O resultado mais notável é a limitação da lógica à doutrina do conceito, do juizo e do silogismo e, por conseguinte, a afirmação da sua relativa independência da metafísica (que é Ontologia, Eziologia e Teleologia). 236 Rosenkranz pretendeu, deste modo, levar a efeito um regresso parcial à lógica e à metafísica aristotélicas. A mesma redistribuição de conteúdo da especulação hegeliana énos apresentada no seu escrito sobre a Filosofia da Natureza de Hegel (1868), que é um exame da reelaboração da filosofia da natureza de Hegel feita pelo italiano Augusto Vera na sua tradução francesa da Enciclopédia (P&ris, 1863-66). Também Kuno Fischer (1824-1907) se inspirou na filosofia hegeliana para a reconduzir àquilo que ele considerava as obras primas de toda a filosofia, a lógica aristotélica e o cristianismo kantiano. Mas a obra mais importante de Fischer é a histórica. A História da filosofia moderna (1854-77) é uma série de monografias imponentes que vão de Descartes a Hegel e que teve enorme influência na cultura filosófica da época No Sistema de lógica e metafísica ou Doutrina da ciência (1852), Fischer, depois de ter delineado numa Propedêutica a história da lógica até Hegel, esclarece, no sentido hegeliano, o método da lógica entendido como desenvolvimento genético das categorias. Este desenvolvimento é dominado pela contradição que, continuamente, coloca ao pensamento problemas de cuja solução nascem novos conceitos e novos problemas. Assim, da primeira pergunta: o que é o ser?, nascem sempre novos problemas até se chegar ao do fundamento do ser; e do desenvolvimento deste último
nasce por fim o do objectivo, que é a auto-realização da ideia. A lógica está por isso dividida em três partes que dizem respeito ao ser, ao fundamento (ou essência) e ao conceito (ou objectivo). 237 A maior personalidade da chamada escola de Tubingen de crítica teológica e bíblica foi Ferdinand Christian Bauer (1792-1860) que, nos seus trabalhos de crítica bíblica e sobre as origens do cristianismo (Simbólica e Mitologia ou a religião natural da antiguidade, 182425; A gnose cristã, 1835; A doutrina cristã da trindade, 1841), utiliza o princípio hegeliano do desenvolvimento histórico necessário, no qual vêm a colocar-se os graus de formação da consciência religiosa. § 594. A ESQUERDA HEGELIANA. STRAUSS Enquanto que a direita hegeliana é, na sua tendência fundamental, a elaboração de uma escolástica do hegelianismo, a esquerda hegeliana pretende, pelo contrário, uma reforma radical do próprio hegelianismo, contrapondo-lhe aqueles traços e caracteres do homem que no hegelianismo não tinham encontrado um reconhecimento adequado. No plano religioso, esta tendência dá lugar a uma crítica radical aos textos bíblicos e a uma tentativa de reduzir o significado da religião a exigências e necessidades humanas (Strauss, Feuerbach); no plano histórico-político, à tentativa para interpretar a história em função das necessidades humanas e à negação da função directiva da consciência (Marx). David Friedrich Strauss,(27 de Janeiro de 1808 8 de Fevereiro de 1874) foi aluno de Ferdínand Bauer em Tubingen e teve estreitas relações com a escola hegelliana. Em 1835 publicou a Vida de Jesus, obra 238 que em breve se torna famosa, suscitando violentas polémicas que cristalizaram a divisão da escola hegeliana. Esta obra é a primeira tentativa radical, sistemática e completa, de aplicar o conceito hegeliano da razão à crítica dos textos bíblicos. O resultado desta tentativa é a redução do conteúdo da fé religiosa, ou à filosofia ou à história, ou então a um simples mito. "Se, como diz Strauss (Leben Jesus, § 14), a religião dá à consciência o mesmo fundo de verdade absoluta que a filosofia, mas sob a forma de imagens e não de conceitos, o mito pode surgir aquém ou além do ponto de vista próprio da religião; no entanto, é necessário à sua essência". o mito é uma ideia metafísica expressa na forma de um conto imaginado ou fantástico. Tem, por conseguinte, dois aspectos: um negativo, na medida em que não é história, o outro positivo, na medida em que é uma ficção produzida pela direcção intelectual de uma dada sociedade (lb., § 15). O mito é diferente da lenda, que é a transfiguração ou invenção, operada pela tradição, de um facto histórico, sem significado metafísico. Os mitos encontram-se em todas as religiões e constituem a parte essencial da própria religião; na verdade, aquilo que na religião não é mito, ou é história ou é filosofia. Um mito evangélico é uma narração que se refere, mediata ou imediatamente, a Jesus e que se deve considerar, não como expressão de um facto, mas como expressão de uma ideia feita pelos seus primitivos correligionários. As duas fontes dos mitos evangélicos são: 1.* a espera do Messias em todas as suas formas, espera que existia no povo hebreu 239
anteriormente a Jesus e independentemente dele; 2.' a impressão particular produzida por Jesus em virtude da sua personalidade, da sua acção, do seu destino, @impressão que modificou a ideia que os seus compatriotas faziam do Messias. Partindo destas ideias principais, Strauss leva por diante a análise filosófica e histórica dos textos evangélicos, rejeitando no mito e na lenda todos os elementos sobrenaturais e tudo o que não estivesse baseado no testemunho controlado e concorde com as fontes. O corpo da obra pretende demonstrar a diferença entre a religião cristã, caracterizada pelos seus mitos, e a filosofia. Este conteúdo idêntico é constituído pela unidade do finito com o infinito, de Deus com o homem. "A verdadeira e real existência do espírito não é nem Deus nem o homem em si, mas o Homem-Deus; não é nem o finito, nem a natureza infinita, mas o movimento que vai de um para o outro, movimento que, por parte do divino, se traduz na revelação, e, por parte do humano, na religião" (1b., § 147). A exigência de que esta unidade saia do campo das simples possibilidades e se realize como uma certeza sensível, é a que nos leva ao princípio cristão da incarnação, ao DeusHomem. Mas a incarnação, entendida como um facto particular, na pessoa de um indivíduo histórico e determinado, é ela própria um mito. Só "a humanidade é a reunião das duas naturezas, o Deus feito homem, isto é, o espírito infinito que se alienou de si para encontrar a natureza finita, e a natureza finita que regressa à sua infinitude" (lb., § 148). Por isso Jesus não pode ser senão um desses indivíduos cósmicos nos quais 240 se realiza, segundo Hegel, a ideia substancial da história. Jesus "é aquele em quem a consciência da unidade do divino e do humano desabrocha pela primeira vez com toda a energia e que, neste sentido, é o único inigualável na história do mundo, sem que a consciência religiosa, conquistada e promulgada por ele pela primeira vez, possa subtrairse, no entanto, às ulteriores purificações e extensões que hão-de resultar do desenvolvimento progressivo do espírito humano" (lb., § 149). Num outro trabalho seu, A fé cristã no seu desenvolvimento e na luta com a ciência moderna (1841-42), Strauss contrapõe o panteísmo da filosofia moderna ao teísmo da religião cristã. A história do dogma cristão é a crítica ao próprio dogma, já que revela o progressivo afirmar-se do panteísmo sobre o teísmo, e que, em Hegel, acaba por reconhecer, de forma nítida, não ser Deus senão o pensamento que pensa em tudo e os atributos de Deus, as leis da natureza, o todo imutável e o absoluto o reflexo da eternidade nos espíritos finitos. O carácter naturalista deste panteísmo acentua-se no último trabalho significativo de Strauss, A antiga e a nova fé (1872). Nele, Strauss levanta quatro perguntas: Seremos ainda cristãos? Teremos ainda uma religião? Como concebemos o mundo? Como ordenamos a nossa vida? À primeira pergunta responde negativamente, à segunda afirmativamente. Também o panteísmo é uma religião. "Exigimos para o nosso universo a mesma veneração que as pessoas mais velhas ainda exigem para o seu Deus. O nosso sentimento perante o Todo reage, em caso de ofensa, 241
de forma ainda religiosa" (Der alte und der neue Glaube, § 44). Mas o Todo, o Universo, é, nesta obra de Strauss, o mesmo que o dos materialistas ou, pelo menos, pode ser confundido com ele. A disputa entre materialismo e idealismo, afirma Strauss, é sobretudo verbal. Ambos se opõem ao dualismo tradicional alma-corpo, que é o seu inimigo comum. E se um fala em termos de átomos e de forças mecânicas, e o outro em termos de representação e de forças espirituais, mantém-se o facto de que o aspecto espiritual e o aspecto físico da natureza humana são uma e a mesma coisa considerada de formas diferentes (1b., § 66). Strauss é levado pela teoria evolucionista de Darwin a inclinar-se para a concepção materialista do desenvolvimento cósmico que, nas suas primeiras obras, considerava como o devir da @razão. E também a sua moral se torna naturalista. "Toda a acção do homem consiste no determinar-se dos indivíduos segundo a ideia da espécie. Realizar esta ideia em si próprio, construir-se e manter-se conforme o conceito e o destino da humanidade, é o dever do homem para consigo próprio. Reconhecer e estimular praticamente em todos os outros a espécie humana, é nosso dever para com eles" (1b., § 74). Em conformidade com este ideal o homem deve dominar a sensibilidade, mas não deve mortificá-la. O domínio sobro a natureza exterior só poderá conseguir-se mediante a solidariedade entre os homens; e esta solidariedade realiza-se através da firme estruturação da família e do EStado. Strauss é favorável a uma política conserva242 dora e declara-se contrário ao movimento socialista (1b., § 84). § 595. FEUERBACH: HUMANISMO Se a obra de Strauss, nos seus aspectos mais vivos, se acha ainda ligada ao hegelianismo, a obra de Feuerbach, pelo contrário, combate energicamente ao hegelianismo e é o seu oposto. Ludwig Feuerbach nasceu a 28 de Julho de 1804 em Landshut na Baviera e morreu em Rechenberg a 13 de Setembro de 1872. Aluno de Hegel em Berlim, professor livre em Erlangen, vê a sua carreira universitária interrompida por causa da hostilidade às ideias religiosas expostas num dos seus primeiros trabalhos, Pensamentos sobre a morte e sobre a imortalidade (1830). Retirou-se então e viveu solitariamente e para o estudo em Bruckberg. No inverno de 1848-49, a convite de alguns estudantes de Heidelberg, dá, nesta cidade, as suas Lições sobre a essência da religião. O convite fora possível em razão dos acontecimentos de 48 e foi apenas um parênteses na vida de Feuerbach que passou os últimos anos na miséria. em Rechenberg. Primeiramente hegeliano convicto, Feuerbach veio depois a atacar o hegelianismo na sua obra Crítica da filosofia hegeliana (1839), seguindo-se no mesmo sentido as Teses provisórias para a reforma da filosofia (1843) e Princípios da filosofia do futuro (1844). Mas entretanto tinha publicado, em
1841, a sua obra fundamental, A essência do cristianismo, à qual se segue, em 1845, uma outra também importante, A essência da religião. As obras 243 posteriores não fazem mais que retomar e desenvolver as teses contidas nestas duas obras e são: Lições sobre a essência da religião (dadas em 1848-49, como se disse, mas publicadas em 1851); Teogonia segundo as fontes da antiguidade clássica judaico-cristã (1857); Divindade, liberdade e imortalidade do ponto de vista da antropologia (1866); Espiritualismo e materialismo (1866); O eudemonismo (póstumo). Feuerbach começa por apresentar a sua filosofia ou "filosofia do futuro" como o inverso exacto da de Hegel. "O objectivo da verdadeira filosofia não é o de reconhecer o infinito como finito, mas o de reconhecer o finito como não finito, como infinito; ou seja, o de colocar não o finito no infinito, mas o infinito do finito". A filosofia de Hegel é, portanto, uma teologia porque considera o ser infinito; mas uma teologia é sempre uma antropologia, e o objectivo da filosofia consiste em reconhecê-la como tal. Com Hegel, Feuerbach admite a unidade do infinito e do finito, mas esta unidade para ele realiza-se, não em Deus ou na ideia absoluta, mas no homem. Mas - e reside aqui a principal característica de Feuerbach - o homem, ainda que seja definido por essa unidade, não se reduz a ela; o homem é um ser natural, real e sensível e como tal deve ser considerado pela filosofia, que não pode reduzilo a puro pensamento; deve considerá-lo, pelo contrário, na sua totalidade "da cabeça aos pés" (Nachlass, ed. Grun, 1, p. 93). Segundo este ponto de vista, as necessidades, a natureza, a materialidade do homem, não são exteriores à s considerações filosóficas, devem ser por elas integradas; e, ao mesmo tempo, o 244 homem deve ser considerado na sua comunhão com os outros homens, uma vez que só através dela encontra a liberdade e infinitude. "A verdadeira dialéctica não é um monólogo do pensador solitário consigo próprio, mas um diálogo entre o eu e o tu" (Fil. do futuro, § 62). Ora, só a religião teve sempre em conta o homem na sua totalidade e de forma concreta; daí o interesse de Feuerbach. pela religião e a sua tentativa de criar uma filosofia que suplantasse a religião precisamente nas suas características essenciais. Neste sentido se dirige a crítica religiosa contida na Essência do cristianismo e na Essência da religião. O fundamento e o objecto da religião é o ser do homem. "Mas a religião é a consciência do infinito: por isso não é nem pode ser outra coisa senão a consciência que o homem tem, não da sua limitação, mas da infinitude do, seu sem (Essenc. do crist., § 1). A consciência, em sentido próprio, é sempre consciência do infinito; e é, por conseguinte, a consciência que o homem tem na infinitude da sua natureza. Nesta tese fundamental está já implícita toda a filosofia de Feuerbach. "O ser absoluto, o Deus do homem, é o próprio ser do homem". Toda e qualquer limitação da razão ou, em geral, da natureza humana, é uma ilusão. O homem individualmente poderá sentir-se limitado, e nisto se distingue do animal; mas isso acontece apenas porque ele tem
o sentimento ou o pensamento da perfeição e da infinitude da sua espécie. Afirma Feuerbach: "Pensas o infinito? Então pensas e afirmas a infinitude do 245 Poder do pensamento. Sentes o infinito? Então sentes e afirmas a infinitude do poder do sentimento". Neste sentido, a consciência que o homem tem de Deus é a consciência que tem de si próprio; a consciência que tem do ser supremo é a consciência que tem do seu próprio ser. "A religião é a primeira mas indirecta consciência que o homem tem. de si próprio; por isso a religião procede a filosofia, não só na história da humanidade como também na dos indivíduos". A análise que Feuerbach faz da religião em geral e do cristianismo em particular é, por conseguinte, a redução dos atributos 6vinos a atributos humanos da teologia à antropologia. A razão como unidade, infinitude e necessidade do ser é o primeiro atributo do homem que, referindo-o a Deus, toma, ele próprio, consciência de si. Do mesmo modo, a ideia da perfeição divina não é senão uma ideia directiva e constitutiva do homem, ela faz-lhe ver aquilo que ele deveria ser e não é, coloca-o num estado de tensão e de desacordo consigo próprio e impele-o ao amor, através do qual Deus se reconcilia com o homem, ou seja: o homem com o homem. "Deus é amor, esta é a proposição mais sublime do cristianismo, pois exprime a certeza que o coração tem em si próprio, do seu poder como do poder legitimo, isto é, divino... A expressão "Deus é amor" significa que o coração é o Deus dohomem, o ser absoluto. Deus é o optativo do coração transformado num presente feliz" (1b., § 13). Deste ponto de vista terá de ser entendido o mistério da incarnação e da paixão. Que Deus tome a carne do homem e sofra por ele, isso só pode signi246 ficar a excelência do homem e do amor humano, e não a natureza divina do sofrimento suportado pelo bem dos homens. Por isso a fé em Deus é o Deus do homem, e a Trindade cristã, fé, amor e esperança, tem o seu fundamento no desejo humano de ver realizados os seus próprios votos. Por conseguinte, o milagre é um voto realizado sobrenaturalmente e é fruto da fantasia que vê realizados, sem obstáculos, todos os desejos do homem. Cristo é Deus conhecido pessoalmente, Deus na sua revelação, na sua manifestação sensível. O cristianismo, unindo intimamente o homem a Deus, é a religião ,perfeita. Quanto à fé na vida eterna, ela é apenas fé na vida terrestre que deveria existir; não diz respeito a uma vida desconhecida e diferente, mas à verdade, à infinitude e à eternidade da vida humana. Todas as religiões, e portanto também o cristianismo, contêm, no entanto, um elemento de erro e de ilusão. Se elas são o conjunto das relações do homem com o seu próprio ser - e nisso consiste a sua força e o seu poder moral consideram também esse ser como algo de diferente do homem e esta é a sua fraqueza, a origem do erro e do fanatismo. Por isso Feuerbach dedica a segunda parte do seu trabalho sobre a Essência do cristianismo às "contradições" implícitas na existência de Deus e aos pontos fundamentais do cristianismo. No escrito sobre a Essência da religião (1845), começa a delinear-se o sentido naturalista da filosofia de Feuerbach. Deus surje identificado com a natureza; e o sentimento de dependência em que (como em Scbleíermacher) surge reconhecida a essên247
cia da religião, é entendido como dependência do homem em relação à natureza. A natureza é o primeiro e originário objecto da religião, como o demonstra a história de todos os povos e de todas as religiões (Ess. da relig., § 2). Ora a dependência da natureza é sentida sobretudo na necessidade. A necessidade é o sentimento e a expressão do não ser do homem sem a natureza; e a satisfação da necessidade é o sentimento oposto da independência da natureza e do domínio sobre ela. Da necessidade e da dificuldade em satisfazê-la nasce a religião que, em virtude disso, tem como pressuposto a oposição entre o querer e o poder, entre o desejo e a satisfação, entre a intenção e o efeito, entre a representação e a realidade, entre o pensamento e o ser. "No querer, no desejar, no representar, o homem é ilimitado, livre, omnipotente Deus; mas no poder, na satisfação, na realidade, é condicionado, dependente, limitado - é homem, no sentido de um ser finito" (Ib., § 30). Ora Deus é o principio imaginado ou fantástico da realização total de todas as vontades e de todos os desejos humanos. Deus é o ser a quem nada é impossível; e por isso a representação imaginada de um absoluto domínio da vontade humana sobre a natureza, de uma completa realização dos desejos 'humanos (1b., § 42). A Deus se atribui a criação do mundo natural precisamente para se lhe atribuir o mais absoluto domínio da natureza e, por conseguinte, a capacidade de o colocar ao serviço dos homens. "Deus é a causa, o homem é o objectivo do mundo; Deus é o ser primeiro em teoria, mas o homem é o ser primeiro na prática" (1b., § 53). 248 FELTERBACH Daí o principio: "como é o teu coração, assim é o teu Deus". Como são os desejos dos homens, assim são as suas divindades. Os Gregos tinham divindades limitadas porque os seus desejos eram limitados. Os desejos dos cristãos não têm limites; querem ser mais felizes que os deuses do Olimpo, querem que se realizem todos os desejos possíveis, a eliminação de todos os limites e de todas as necessidades; por isso a divindade cristã é uma divindade infinita e omnipotente (1b., § 55). Mas para todas as religiões, indistintamente, é verdadeiro o princípio de que "a divindade dos homens é o fim principal da reli-'gião" (1b., § 29). As @Lições sobre a essência da religião (1848-49) retomam e fundamentam os trabalhos anteriores, mas não contêm nada de novo. Os escritos subsequentes de Feuerbach insistem em expressões violentamente polémicas, algumas vezes paradoxais, sobre uma antropologia pela qual o corpo e a alma, o espírito e a carne, estão inseparáve,1 e necessariamente conexos. A importância que as necessidades, e com elas o aspecto material ou físico do homem, têm nas suas considerações antropológicas faz com que Feuerbach . emita opiniões paradoxais, como aquela que está contida no título do seu trabalho de 62, O mistério do sacrifício ou o homem é aquilo que come. Mas Feuerbach jamais chegou ao materialismo, à redução do espírito à matéria, da alma ao corpo. O que lhe interessa é reivindicar, de forma mais enérgica, a
integralidade do homem, que não é puro espírito ou pensamento, como também não é pura matéria. O aspecto fisiológico do pensamento, afirma Feuer249 bach, só surge na consciência nos momentos patológicos quando o pensamento é obstruído e perturbado por necessidades não satisfeitas ou pela doença; mas "a alma onde ama, ama mais do que vive" (Espiritualismo ou materialismo, Werke, X, p. 163-164). Os últimos escritos de Feuerbach, Espiritualismo e materialismo (1866), Eudemonismo (póstumo), contêm a sua doutrina moral. A vontade não é livre, porque se identifica com o impulso total do ser humano no sentido dá felicidade pessoal. Mas a felicidade não se restringe apenas a uma pessoa, do mesmo modo que o indivíduo não vivo no seu isolamento; a felicidade envolve o eu e o tu e tende a repartir-se numa pluralidade de pessoas. O princípio da moral é portanto a felicidade bilateral ou multilateral. Feuerbach não justifica a coincidência entre a felicidade pessoal e a felicidade dos outros, coincidência em cujo âmbito, como ele expressamente afirma, é possível a transformação da felicidade em virtude. Limita-se a reafirmar, mais num sentido político que filosófico, a estreita ligação do homem com os outros homens: e afirma de si que não é "nem materialista nem idealista, nem filósofo da identidade. Que coisa é então? Ele é com o pensamento aquilo que existe no facto; no espírito o que existe na carne, na essência o que existe nos sentidos, homem; ou antes, uma vez que reconduz a essência do homem à sociedade, é homem social, comunista" (Werke, VII, p. 310). A filosofia de Feuerbach é a tentativa de transformar a teologia de Hegel numa antropologia basca250 da no mesmo princípio, a unidade do finito e o infinito. Mas este princípio não serve para basear uma antropologia autêntica, que não pode ser mais do que a investigação do fundamento e da estrutura do finito como tal. Por isso a obra de Feuerbach, apesar de haver prospectado com força e vivacidade polémica a exigência de uma doutrina do homem, não pode dizerse que tenha contribuído em larga medida para a construção de tal doutrina. § 596. STIRNER: O ANARQUISMO Uma oposição extrema ao universalismo de Hegel, que tinha pretendido negar e dissolver o indivíduo, é representada pelo individualismo anárquico de Stimer. Max Stirner, pseudónimo de Johann Kaspar Schmidt, nasceu em Bayreuth a 25 de Outubro de 1906 e morreu a 25 de Junho de 1856. Foi aluno de Hegel em Berlim. A sua obra O único e a sua propriedade foi publicada em 1845 e é o único trabalho representativo. É ainda autor de uma História da reacção (1852) e de outros escritos polémicos ocasionais publicados e recolhidos depois da sua morte. A tese fundamental de Stirner é a de que o indivíduo é a única realidade e o único valor; a consequência que Stirner tira desta tese é o egoísmo absoluto. O indivíduo, na sua singularidade, pela qual é único e irrepetível, é precisamente a medida de tudo. Subordiná-lo a Deus, à humanidade, ao espírito, a um
ideal qualquer, seja mesmo ao do próprio homem, 251 é impossível, já que tudo o que é diferente do eu singular, toda a realidade que se lhe contraponha e dele se distinga, não passa de um espectro, de que ele acaba por ser escravo. Stimer partilha a tese de Feuerbach de que Deus não existe fora do homem e que é a própria essência do homem. Mas esta tese é insuficiente, e simplesmente preparatória, em relação à tese radical que dela deriva. A essência do homem é já algo de diferente do homem individual, é já um ideal que pretende subordiná-lo a si. Dessa forma o homem passa a ser ele próprio um fantasma, porque deixa de valer na sua singularidade para passar a valer como ideia, como espírito, como espécie, como qualquer coisa de superior a que deve subordinar-se. E Stirner recusa-se a reconhecer algo que seja superior ao próprio homem. Stirner não faz qualquer distinção entre os ideais da moral, da religião e da política e as ideias fixas da loucura. O sacrifício de si, o desinteresse, são formas de "obsessão, que se encontram tanto nas situações morais como nas imorais". "O desinteresse pulula orgulhoso como a obsessão, tanto nas possessões do demónio como naquelas que possuem espírito benigno; tanto nos vícios e nas loucuras, como na humildade e no sacrifício, etc". (O único, trad. ital. p. 46). Que o homem deva viver e actuar subordinado a uma ideia é, segundo Stimer, o mais Pernicioso preconceito que o homem pode cultivar, uma vez que é o preconceito que o torna escravo de uma hierarquia. A igreja, o estado, a sociedade, os partidos, são hierarquias deste género que preten252 dem submeter o individual acrescentando-lhe qualquer coisa que está acima dele. O próprio socialismo, ainda que pretendendo subtrair o homem à escravidão da propriedade privada, pretende submetê-lo à sociedade. A liberdade que predica é portanto ilusória. A verdadeira liberdade não pode ter outro centro e outro fim que não seja o eu singular. "Mas, uma vez que aspira à liberdade por amor do eu, porque não fazer do eu o princípio, o centro, o fim de todas as coisas? Não valho eu mais que a liberdade? Não sou eu certamente que me faço livre a mim próprio, não sou eu certamente o primeiro?", (lb.,p. 121-122). A liberdade, por outro lado, é uma condição puramente negativa para o eu; a condição positiva é a propriedade: "Mas o que é a minha propriedade? Aquilo que é o meu poder. O direito é-me conferido por mim ao tomar-me como minha propriedade e ao declarar-me, sem necessidade de outrem, proprietário" (1b., p. 189). O fundamento da propriedade não é mais que o poder do eu singular. Por isso a verdadeira propriedade é a vontade. "Não é aquela árvore, mas a força de dispor dela como me parecer, o que constitui a minha propriedade". Neste sentido, também os sentimentos constituem a propriedade do eu singular; constituem a propriedade não enquanto orientados ou idealizados, mas na medida em que são espontâneos e intimamente conexos com o egoísmo do eu. "Também, eu amo os homens, afirma Stirner (Ib., p. 215), mas amoos com a consciência do egoísta, amo-os porque o seu amor me torna feliz, porque o amor se encarna na minha natu.
253 reza, porque -isso me agrada. Não reconheço nenhuma lei que me imponha o amar". Mas, segundo este ponto de vista, outro homem pelo qual eu tenha interesse ou amor, não é uma pessoa, é um objecto. "Ninguém é para mim uma pessoa que tenha direito ao meu respeito, cada um é, como qualquer outro ser, um objecto pelo qual sinto simpatia, um objecto interessante ou não interessante, um objecto de que me posso ou não servir (Ib., p. 231). Por conseguinte, não é possível uma sociedade hierarquicamente ordenada e organizada, mas uma associação em que o indivíduo se integra para multiplicar a sua força e não vendo nela senão um meio. A associação só pode nascer com a dissolução da sociedade, que representa para o homem o estado de natureza; e pode ser apenas o produto de uma insurreição que seja a revolta do indivíduo e tenha em vista a abolição de todas as coacções políticas; isto não acontece com as revoluções porque estas têm em vista substituir uma constituição por outra. As ideias de Stimer, ainda que na forma paradoxal e frequentemente chocante com que são formuladas, exprimem uma exigência que se afirma sempre que a mesma é negada ou iludida; a da unicidade, da insubstituibilidade, da singularidade do homem. E esta exigência deu glória ao livro de Stirner (que está traduzido em todas as línguas) dentro da cultura contemporânea. Mas o próprio Stimer, esclarecendo o pressuposto último das suas afirmações, sublinhou o carácter abstracto e imperfeito que deu à reivindicação dessa exigência. Para ele o homem, o singular, é um dado, uma realidade 254 inexprimível, unia pura força natural. Não pode ser o mais ou menos homem, não pode transformar-se num verdadeiro homem, tal como a ovelha não se pode transformar numa verdadeira ovelha. "Julgais certamente que eu quero aconselhar-vos a imitar os animais. Mas não, - isso seria ainda um novo objectivo, um novo ideal> (1b., p. 245). Não é possível qualquer distinção, qualquer conflito entre o homem ideal e o homem real. "Eu, o único, sou o homem. A pergunta "o que é o homem?" transforma-se na pergunta "quem é o homem?". Na primeira pergunta procurava-se o conceito, na segunda encontra-se a própria resposta que é dada pelo próprio que interroga" (1b., p. 270). O homem é uma força, uma força natural que se expande: eis tudo. O problema não consiste em saber como é que !deve conquistar a vida, mas como deve ele gastá-la e gozá-la; não consiste em saber como deve formar o seu, mas como deve esgotá-lo e dissolvê-lo (Ib., p. 237). Por isso Stirner fecha o seu livro com esta frase: "Repus a minha causa no nada" O único faz de si próprio a sua propriedade e consome-se a si próprio: esta é a última palavra de Stirner. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 587. Herbart: Samtliche Werke, ed. Hartenstein, 12 vols., Leipzig, 1850-52; editor Kehrbach, 19 vols., Langensaiza, 1887 e segs.; Philosophische Hauptschriften, ed. Flugel e Fritzseh, 3 vols., Leipzig, 1913-14. Traduções itaLanas: Introduzi"e alla filosofia trad. G. Vidossi, Bari, 1907; Pedagogia generale, trad.
255 Marpillero, Pailermo; Disegno di lezioni di pedagogia, trad. Marpillero, Palermo. § 588. W. Kinkel, H., Glessen, 1903-, O. Flugel, H.s Leben und Lehre, Leipzig, 1921. § 591. Th. Henke, FrieIs Leben aus seinem handschrifflichen NachIass dargestelIt, Leipzig, 1867. Sobre as relações de Fries com Fichte, Schealing e Hiegel: K. Fischer, Akadámische Reden, Stuttgart, 1862. Sobre Fries ver alguns artigos publicados em
§ 596. Stirner, LIunico, trad. ital. E. Zoecoli, Milão, 4.1 ed. Sobre Stirner: Marx, IdeoZogia tedesca (1845-46), trad. !tal., p. 190 @e segs.; J. 11. Mackay, M. S. s Leben und seinen Werk, Berlim, 1898; V. Basch, Llindividuali.anarchiste de M. S., Paris, 1904; A. Ruest, M. H., Berlime Leipzig, 1906; Schultheiss M. S., 2., ed., Leipzig, 1922. 257 1ND1CE 111 FICHTE
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§ 546. A vida .. . ... ... ... ... ... 7 § 547. Escritos ... ... ... .. . ... ... 7 § 548. A infinidade do Eu ... ... ... 13 § 549. A doutrina da ciêneda e os seus três prInc@pios ... ... ... ... ... 16 § 550. Infinitoe Finito: o Panteismo ... 24 § 551. A doutrina moral ... ... ... ... 27 § 552. Direito e POlitios, ... ... ... ... 34 § 553. A crise da especulação, de Fichte 39 § 554. O Eu ~o imagem de Deus ... 44 § 555. As exposições populare@s da filosofia religiosa ... ... ... ... ... 51 § 556. O infinito na história ... ... ... 54 Nota bibliográfica IV SCHELLING
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§ 557. Vida ... ... ... ... ... ... ... 59 § 558. Textos infinito @e a natureza ... ... 63
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61 § 559. O
259 §560. O absoluto como ~tk ... 65 §561. A filosofia da natureza §562. A filosofia transcendental ... ... 80 §563. A HistSria e a Arte §564. A orientação religioso tewõfica 92 §565. A filosofia positiva Nota bibliográfica V HEGEL
... ... 69 ... ... ... 86 ... ... ... 97
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§566. A vida ... ... ... ... ... ... 103 §567. Escritos ... ... ... ... ... ... 106 §568. A dissolução, do finito e a identidade @entre real e racional ... ... ios §569. A dialéctica ... ... ... ... ... 114 §570. A formação do sistema ... ... 117 §571. A fenomenol<>gia do espirito ... 122 §572. A lõglca ... ... ... ... ... ... 132 §573. A filosofia da natureza ... ... 140 §574. A filosofia do espirito ... ... ... 146 §575. A filosofia da arte ... ... ... ... 150 §576. A filosofia da religião ... ... ... 157 260 § 577. A história da filosofia 579. A filosofia da história Nota bibliográfica
... ... ... 163 § 578. A filosofia do direito ... ... ... 172
... ... ... ... 178
... ... ... 167 §
VI SCHOPENHAUER § 580. Vida e escritos
... ... ... ... 183 ... ... ... ... 183
§ 581. A vontade infinita ... ... ... ... 186 § 582. O mundo como representação 188 § 583. O mundo como vonItade ... ... 193 § 584. A libertação da ax@te ... ... ... 195 § 585. A vida como dor ... ... ... ... 198 § 586. O asoetismo ... ... ... ... ... 202 Nota bibliográfica
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VII-A POInMICA CONTRA
O IDEALISMO
... ... ... ... ... ... ... ... 209
§ 587. Herhart: Vida e obra ... ... ... 209 § 588. Herbart: 211 § 589. Herbart: Psicologia e filosofia da natureza
...
Metafiísica e lógica
...
... ... ... ... ... ... 216
261 §590. Herbart: Estética ... ... ... ... 220 §591. Psicologismo: "es ... ... ... 223 §592 Pistcologiusmo: Beneke. ... ... ... 228 §593. A direita hegeaiana. Escolástica do hegel~mo ... ... ... ... ... 232 §594. A esquerda hegeliana. Strauss §595. Feuerbach: Humanismo ... ... 243 §596. Stimer: O anarqudsmo ... ... ... 251 Nota bibliográfica
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262 Composto e impresso para a EDITORIAL PRESENÇA na Tipografia Nunes Porto
HISTÓRIA DA FILOSOFIA Décimo volume Nicola Abbagnano Digitalização e Arranjos: Ângelo Miguel Abrantes (quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003) HISTÓRIA DA FILOSOFIA
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VOLUME X 3ª Edição TRADUÇÃO DE: Armando da Silva Carvalho Antônio Ramos Rosa EDITORIAL PRESENÇA Titulo original STORIA DELLA. FILOSOFIA @ Copyright by Nicola Abbagnano Capa de F. C. Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à Editorial Presença, Lda. Rua Augusto Gil, 35-A - 1000 LISBOA VIII KIERKEGAARD 597. KIERKEGAARD: VIDA E OBRA A obra de Kierkegaard não pode ser reduzida certamente a um momento da polémica contra o idealismo romântico. No entanto, muitos dos seus temas constituem uma antítese polémica exacta dos temas desse idealismo. A defesa da singularidade do homem contra a universalidade do espirito; da existência contra a razão; das alternativas inconciliáveis contra a síntese conciliadora da dialéctica; da liberdade como possibilidade contra a liberdade como necessidade; e por fim da própria categoria de possibilidade são pontos fundamentais da filosofia kierkegaardiana que, no seu conjunto, constituem uma alternativa radicalmente diversa daquela que o idealismo tinha apontado para a filosofia europeia. Trata-se, no entanto, de uma alternativa que permanece relativamente inoperante na filosofia de Oitocentos e que só no fim do século começou a alcançar ressonância primeiro no pensamento religioso e depois no filosófico. Sõren Kierkegaard nasceu na Dinamarca, em Copenhaga, a 5 de Maio de 1813. Educado por um pai já velho no clima de uma religiosidade severa, inscreve-se na Faculdade de Teologia de Copenhaga, onde dominava, entre os jovens teólogos, a inspiração hegeliana. Em 1840, dez anos depois do seu ingresso na Universidade, licenciava-se com uma dissertação Sobre o conceito de ironia especialmente em Sócrates, que publicava no ano seguinte. Mas não inicia a carreira de pastor a que ficara habilitado. Em 1841-1842 foi a Berlim e ouviu as lições de Schelling, que aqui ensinava a sua filosofia positiva, baseada (como já vimos, § 565) na radical distinção entre realidade e razão. Entusiasmado, a principio, com Schelling, Kierkegaard em breve se mostra desiludido. A partir de então passa a viver de um capital deixado pelo pai, absorvido em escrever os seus livros. Os incidentes exteriores da sua vida são escassos e aparentemente insignificantes: o noivado, que ele próprio frustrou, com Regina Olsen; o ataque de um jornal humorístico "0 corsário"; a polémica, que ocupou os últimos anos da sua vida, contra o ambiente teológico de Copenhaga e especialmente contra o teólogo hegeliano Martensen. Kierkegaard morreu a 11 de Outubro de 1855.
Mas estes episódios tiveram, quer na sua vida interior (como nos testemunha o seu Diário), quer nas suas obras, uma profunda ressonância, aparentemente desproporcionada com a sua real existência. Kierkegaard fala no Diário de um "grande terramoto" que em certa altura se produziu na sua vida e que o obrigou a mudar a sua posição perante o mundo (Tagebücher, II, A 805). Só vagamente se refere à causa desta alteração ("Uma culpa devia pesar sobre toda a família, um castigo de Deus descera sobre ela; por isso ela deveria desaparecer, banida como uma tentativa mal sucedida pela poderosa mão de Deus"); e apesar dos seus biógrafos haverem procurado, tão indiscreta quanto inutilmente, descobrir essa culpa, ela continua a ser, mesmo em relação ao próprio Kierkegaard, uma ameaça simultaneamente vaga e terrível. Kierkegaard fala no seu Diário, e também no seu leito de morte, de um "um espinho cravado na carne" que ele fora destinado a suportar; e também neste caso, perante a ausência de qualquer dado preciso, se pode descobrir o carácter grave e obsessivo do problema. Provavelmente seria esse espinho na carne que o impediu de levar a bom termo o noivado com Regina Olsen, com quem rompe, depois de alguns anos, por sua própria iniciativa. Também neste caso nenhum motivo preciso, nenhuma causa determinada; apenas o sentimento de uma ameaça obscura e incompreensível, mas paralisante. No entanto, Kierkegaard não segue a carreira de pastor nem qualquer outra; e mesmo em relação à actividade de escritor sente perante ela uma "relação poética", uma relação longínqua e alheia: acentuada ainda pelo facto de haver publicado os seus livros sob pseudónimos diversos, impedindo assim qualquer relação entre o seu conteúdo e a sua própria pessoa. Estes elementos biográficos devem estar continuamente presentes para se compreender a posição filosófica de Kierkegaard. Eis as suas obras principais: O conceito de ironia (1841); Aut-Aut, de que faz parte o Diário de um sedutor (1843); Temor e tremor (1843); A repetição (1843); Migalhas-filosóficas (1844); O conceito de angústia (1844); Prefácio (1844); Estádios no caminho da vida (1845); Postilha conclusiva não científica (1846); O ponto de vista sobre a minha actividade de escritor (póstumo, mas escrito em 1846-47); A doença mortal (1849). Kierkegaard é também autor de numerosos Discursos religiosos, e publicou em 1855 (Maio-Setembro) o periódico "0 momento" no qual dirigiu os seus ataques contra a Igreja dinamarquesa. § 598. KIERKEGAARD: A EXISTÊNCIA COMO POSSIBILIDADE Aquilo que constitui sinal característico da obra e da personalidade de Kierkegaard é o facto de ele ter procurado reconduzir a compreensão de toda a existência humana à categoria de possibilidade e de ter evidenciado o carácter neRamente aparente da possibilidade como Já Kant tinha reconhecido como fundamento de todo o poder humano uma possibilidade real ou transcendental; mas Kant, que tinha apenas destacado o aspecto positivo de tal possibilidade, faz dela uma efectiva capacidade humana, limitada sim, mas que encontra nos seus próprios limites a sua validade e a sua promessa de realização. Kierkegaard descobre e acentua, com uma energia até então nunca alcançada, o aspecto negativo de toda a possibilidade que entra na construção da existência humana. Com efeito, todas as possibilida9 des além de serem possibilidades-de-sim são também possibilidades-de-não: implicam a nulidade possível daquilo que é possível, por conseguinte a ameaça do nada. Kierkegaard vive e escreve, sob o signo desta ameaça. Vimos já como todos os passos característicos da
sua vida se revestiram, para ele, de uma obscuridade problemática. As relações com a família, a promessa de noivado, a sua actividade de escritor, surgem-lhe carregadas de alternativas terríveis, que acabam por paralisá-lo. Ele próprio viveu, em absoluto, a figura descrita de forma tão impressionante nas páginas finais do conceito de angústia: a do discípulo da angústia, daquele que sente em si a possibilidade aniquiladora e terrível, latente em qualquer alternativa da existência. Perante qualquer alternativa, Kierkegaard sente-se paralisado. Ele próprio afirma ser "uma cobaia de experiências da existência" e de reunir em si os pontos extremos de toda a oposição. "Aquilo que eu sou é um nada; este procura em mim e no meu génio a satisfação de conservar a minha existência no ponto zero, entre o frio e o calor, entre a sabedoria e a estupidez, entre alguma coisa e o nada como um simples talvez" (Stadien auf dem Lebensweg, trad. Schrempf-Pfleiderer, pp. 2467). O ponto zero é a indeterminação permanente, o equilíbrio instável entre as alternativas opostas que se abrem a qualquer possibilidade. E este foi sem dúvida o espinho na carne de que Kierkegaard falava: a impossibilidade de reduzir a própria vida a um objectivo preciso, de escolher entre as alternativas opostas, de reconhecer-se e actuar numa possibilidade -única. Esta impossibilidade traduz-se, para ele, no conhecimento de que o próprio objectivo, a unidade da própria personalidade, está precisamente nesta condição excepcional de indecisão e de instabilidade e de que o centro do seu eu está em não haver um centro. A sua actividade literária não teve outro fim que não fosse o de esclarecer as possibilidades fundamentais que se oferecem ao homem, os estádios ou momentos da vida que constituem as alternativas da existência, entre as quais o homem geralmente é levado a escolher, apesar de ele, Kierkegaard, não poder escolher. A sua actividade foi a de um contemplativo; afirmou e julgou ser, antes de tudo, um poeta. E multiplicou a sua personalidade com pseudónimos, de ]o forma a acentuar a distância entre si e as formas de vida que ia descrevendo, para que desse a entender claramente que ele próprio não estava empenhado em escolher entre elas. Só no cristianismo Kierkegaard vislumbra uma âncora de salvação: na medida em que o cristianismo lhe parecia encarnar a mesma doutrina da existência que a seus olhos surgia como única verdadeira e ao mesmo tempo oferecer, com a ajuda sobrenatural da fé, um modo de se subtrair ao peso de uma escolha demasiado penosa. Por seu lado a filosofia hegeliana é, para Kierkegaard, a antítese do ponto de vista sobre a existência por ele vivido, e uma antítese ilusória. As alternativas possíveis da existência não se deixam reunir e conciliar na continuidade de um único processo dialéctico. Neste, a oposição das próprias alternativas é apenas aparente, porque a verdadeira e única realidade é a unidade da razão consigo própria. Mas o homem singular, concretamente existente, é absorvido e dissolvido pela razão. Perante isto, Kierkegaard diz-nos que "A verdade, afirma ele (Tagebücher, 1, A 75), só é verdade quando é uma verdade para mim". A verdade não é o objecto do pensamento, mas o processo pelo qual ele se apropria dela, fazendo-a sua e vivendo-a: a apropriação da verdade é a verdade. À reflexão objectiva, própria da filosofia de Hegel,_Riçrkegg4r ntrapõe ar fiçxa aoa à existência: a re exão ** -o. subject.ivg,-jiga @@_que.o homem singular çst"Lrectamente envolvido qqqRIQ_@@@ destino e que n&Q @,obj@ctiva_.e desinteressada, mas apaixonada e paradoxaL Hegel fez do hornem um género animal, uma vez que só nos géneros animais o género é superior ao singular. Mas o género humano tem como característica o facto de o indivíduo ser superior ao género. (Ib., X, A, 426). É isto, segundo
Kierkegaard, o que nos ensina fundamentalmente o cristianismo; é o ponto em que se deve travar a batalha contra a filosofia hegeliana e em geral contra toda a filosofia que se baseie na reflexão objectiva. Kierkegaard considera como aspecto essencial do objectivo a que se propôs a inserção da pessoa singular, com todas as suas exigências, no plano da investigação filosófica. Não é sem razão que ele teria mandado gravar no seu túmulo esta única inscrição: "Um individuo" (Ib., 18). 11 § 599. KIERKEGAARD: ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA O primeiro livro de Kierkegaard intitula-se significativamente Ou... Ou... Trata-se de uma recolha de escritos com pseudónimos e que apresentam a alternativa de dois estádios fundamentais da vida: a vida estética e a vida moral. O próprio titulo indica já como estes dois estádios não são dois graus de um desenvolvimento único que passe de um ao outro e os concilie. Entre um estádio e o outro existe um abismo e um salto. Cada um deles forma uma vida em si que, pelas suas oposições internas, se apresenta ao homem como uma alternativa que exclui a outra. O estádio estético é a forma de vida que existe no átomo, furtivo e irrepetível. O esteta é aquele que vive poeticamente, que vive de imaginação e de reflexão. É dotado da sensibilidade delicada que lhe permite descobrir na vida o que ela tem de interessante e sabe tratar os casos vividos como se fossem obra da imaginação poética. Assim o esteta forja um mundo luminoso, donde está ausente tudo o que a vida tem de banal, insignificante e mesquinho; e vive num estado de embriaguês intelectual contínua. A vida estética exclui a repetição, que implica a monotonia e exclui o interessante dos factos mais prometedores. A vida estética é concretamente representada por Kierkegaard na figura de João, o protagonista do Diário de um sedutor, que sabe colocar o seu prazer, não na busca desenfreada e indiscriminada do gozo, mas na limitação e na intensidade da satisfação. Mas a vida estética revela a sua insuficiência e a sua miséria no aborrecimento. Todo o que vive esteticamente é um desesperado, tenha ou não consciência disso; o desespero é o último termo da concepção estética da vida (Entweder-Oder, trad. Hirsch, 11, p. 206). É o desejo de uma vida diferente que se projecta como uma outra alternativa possível. Mas para alcançar essa alternativa, o esteta precisa de se lançar no desespero, optando por ele e entregando-se a ele com todo o empenho, para romper o invólucro da pura esteticidade e alcançar, num salto, a outra alternativa possível, a vida ética. "Escolhe portanto o desespero, diz Kierkegaard; o próprio desespero é uma escolha, pois pode duvidar-se sem se optar pela dúvida, mas não se pode desesperar sem que haja uma 12 escolha. Quem desespera, escolhe de novo e escolhe-se a si próprio, não na sua imediatidade, como indivíduo acidental, mas escolhe-se a si próprio dentro da própria validade eterna" (Ib., p. 224). A vida ética nasce portanto com esta escolha. Ela implica uma estabilidade e uma continuidade que a vida estética, como incessante busca da variedade, exclui por si. A vida ética é o domínio da reafirmação de si, do dever e da fidelidade a si próprio: o domínio da liberdade pela qual o homem se forma ou se afirma por si. "0 elemento estético é aquele para o qual o homem é imediatamente aquilo que é; o elemento ético é aquele para o qual o homem se transforma no que transforma" (Ib., p. 190). Na vida ética, o homem singular sujeita-se a uma forma, adequa-se ao universal e renuncia a ser excepção. Tal como a vida estética é incarnada pelo sedutor, a vida ética é incarnada pelo marido. O matrimónio é a expressão típica da eticidade, segundo Kierkegaard: é um objectivo que pode ser comum a todos. Enquanto que na concepção
estética do amor, duas pessoas excepcionais só podem ser felizes por força da sua excepcionalidade, na concepção ética do matrimónio todos os esposos podem ser felizes. Além disso, a pessoa ética vive do seu trabalho. O seu trabalho é também a sua vocação porque trabalha com prazer: o trabalho põe-na em relação com outras pessoas, e ela ao realizar a sua tarefa realiza tudo aquilo que pode desejar no mundo (Ib., p. 312). A característica da vida ética, neste sentido, é a escolha que o homem faz de si próprio. A escolha de si próprio é uma escolha absoluta porque não se trata da escolha de uma qualquer determinação finita mas a escolha da liberdade: ou seja, o fundo da própria escolha (Ib., p. 228). Uma vez efectuada esta escolha, o indivíduo descobre em si uma riqueza infinita, descobre que existe em si uma história onde reconhece a identidade consigo próprio. Esta história inclui as suas relações com os outros, mesmo nos momentos em que o indivíduo parece isolar-se mais, penetrando mais profundamente na raiz que o une a toda a humanidade. Pela sua escolha, o indivíduo não poderá renunciar a nada da sua história, nem mesmo aos aspectos mais dolorosos e cruéis; e ao reconhecer-se nesses aspectos, arrepende-se. O arrependimento é a última palavra da escolha ética, e faz com que 13 essa mesma escolha pareça insuficiente, entrando no domínio religioso. "0 arrependimento do indivíduo, afirma Kierkegaard, envolve o indivíduo, a família, o género humano, até se encontrar com Deus. Só com esta condição ele poderá escolher-se a si próprio; e tal condição é para ele a única indispensável porque só através dela se pode escolher a si próprio num sentido absoluto" (Ib., p. 230). A escolha absoluta é portanto arrependimento, reconhecimento da própria culpa, da culpa de tudo aquilo de que se sente herdeiro. "Mas esse encontrar-se a si próprio não é algo de íntimo, deve verificar-se fora do indivíduo, deve ser conquistado; e o arrependimento é o seu amor porque o escolhe, de forma absoluta, pela mão de Deus" Ob., p. 230). É esta a jogada final da vida ética, a jogada que, pela sua própria estrutura, tende a alcançar a vida religiosa. No entanto não existe continuidade entre a vida ética e a vida religiosa. Entre elas existe igualmente um abismo ainda mais profundo, uma oposição ainda mais radical do que a existente entre a estética e a ética. Kierkegaard esclarece esta oposição em Temor e Tremor, concretizando a vida religiosa na pessoa de Abraão. Tendo vivido até aos setenta anos no respeito pela lei moral, Abraão recebe-de Deus ordem para matar o filho Isaac, infringindo assim a lei que até então o tinha governado. O significado da figura de Abraão reside no facto de o sacrifício do filho lhe ser sugerido não por uma qualquer exigência moral (corno acontece, por exemplo, com o cônsul Brutus) mas por um puro comando divino que está em contraste com a lei moral e com o afecto natural e não encontra qualquer justificação, mesmo perante os familiares de Abraão. Por outras palavras, a afirmação do principio religioso suspende inteiramente a acção do princípio moral. Entre os dois princípios não existe possibilidade de conciliação ou de síntese. A sua oposição é radical. Mas se é assim, a escolha entre os dois princípios não pode ser facilitada por nenhuma consideração geral, nem decidida com base em qualquer regra. O homem que tem fé como Abraão optará pelo principio religioso, seguirá a ordem divina, ainda que à custa de uma ruptura total com a generalidade dos homens e com a norma moral. Mas a fé não é um princípio geral; é uma relação privada entre o ho14 mem e Deus, uma relação absoluta com o absoluto. Estamos no domínio da solidão: nele não se entra "acompanhado", não se ouvem vozes humanas e não se distinguem regras. Dai
o carácter incerto e perigoso da vida religiosa. Como pode o homem estar certo de ser a excepção justificada? Como pode saber que é ele o eleito, aquele a quem Deus encarregou de uma tarefa excepcional, que exige e justifica a suspensão da ética? Existe apenas um sinal indirecto: a força angustiante com que se apresenta esta pergunta ao homem que foi verdadeiramente eleito por Deus. A angústia da incerteza é a única segurança possível. A fé é por isso a certeza angustiante, a angústia que se torna certa de si e de uma relação oculta com Deus. O homem pode implorar a Deus que lhe conceda a fé; mas a possibilidade de implorar não é ela própria um dom divino? Daí a existência, na fé, de uma contradição não eliminável. A fé é paradoxo e escândalo. Cristo é o sinal desse paradoxo: é aquele que sofre e morre como homem, apesar de falar e agir como Deus; é-aquele que é e deve ser reconhecido como Deus, ainda que sofra e morra como um mísero homem. O homem é colocado perante um dilema: crer ou não crer. Por um lado, é ele quem deve escolher; por outro, toda a iniciativa fica excluída porque Deus é tudo e dele deriva também a fé. A vida religiosa encontra-se nas malhas desta contradição inexplicável. Mas esta contradição é também a da existência humana. Kierkegaard vê deste modo revelada, através do cristianismo, a própria substância da existência. Paradoxo, escândalo, contradição, necessidade e ao mesmo tempo impossibilidade de decidir, dúvida, angústia, são as características da existência e são ao mesmo tempo os factores essenciais do cristianismo. Um cristianismo, todavia, de que Kierkegaard se apercebe (nos últimos anos da sua vida) ser bastante diferente do cristianismo das religiões oficiais. "Estou na posse de um livro, escreve ele, que neste pais se pode considerar desconhecido e cujo título não posso deixar de enunciar: "0 Novo Testamento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo". A polémica contra o pacifico e acomodado cristianismo da Igreja dinamarquesa, polémica onde Kierkegaard declarou descer a terreiro, mais pela sinceridade e honestidade do que pelo cristianismo, demonstra como, na verdade, 15 ele defendeu no cristianismo o significado da existência que tinha reconhecido e feito seu. Mas este significado, ainda que se encontre expresso e, por assim dizer, incarnado historicamente no cristianismo, não está limitado ao domínio religioso mas ligado a todas as formas ou estádios da existência. A religião integra-o, mas não o monopoliza: a vida estética e a vida ética incluem-no igualmente, como se viu. E as obras mais significativas de Kierkegaard são as que o tratam de forma directa e o fixam no seu significado humano. § 600. KIERKEGAARD: O SENTIMENTO DO POSSÍVEL: A ANGúSTIA Kierkegaard começou por pretender delinear os estádios fundamentais da vida, apresentando-os como alternativas que se excluem e como situações dominadas por irremediáveis contrastes internos. O aprofundamento da sua investigação leva-o ao ponto principal em que se enraízam as próprias alternativas da vida e os seus contrastes: a existência como possibilidade. Kierkegaard enfrenta directamente, nas suas duas obras fundamentais, o Conceito de angústia e A doença mortal, a situação de radical incerteza, de instabilidade e de dúvida, em que o homem se encontra constitucionalmente, pela natureza problemática do modo de ser que lhe é próprio. No conceito de angústia esta situação é esclarecida nos confrontos das relações do homem com o mundo; na Doença mortal, nos confrontos das relações do homem consigo próprio, ou seja nas relações constitutivas do eu. A angústia é a condição gerada no homem pelo possível que o constitui. Está estreitamente ligada ao pecado e na base do próprio pecado original. A inocência de Adão é ignorância; mas é uma ignorância que contém um elemento que determinará a queda. Este elemento
não é nem calma nem repouso; mas também não é perturbação ou luta, porque nada existe contra que lutar. É apenas um nada; mas mesmo este nada é gerador de angústia. Diferentemente do temor e de outros estados análogos que se referem sempre a algo de determinado, a angústia não se refere a nada de preciso. Ela 16 é o puro sentimento da possibilidade. "A proibição divina, afirma Kierkegaard, torna Adão inquieto porque desperta nele a possibilidade da liberdade. Aquilo que se oferecia à inocência como o nada da angústia, penetra agora dentro dele, mas permanecendo ainda um nada: a angustiante possibilidade de poder. Em relação àquilo que pode, Adão não tem ideia alguma, pois de outra forma seria um pressuposto tudo o que iria seguir-se, ou seja, a diferença entre o bem e o mal. Em Adão apenas existe a possibilidade de poder, uma forma superior de ignorância, uma expressão superior de angústia, uma vez que neste grau mais elevado ela é e não é, e Adão ama-a e furta-se a ela". Na ignorância daquilo que pode, Adão possui o seu poder na forma de pura possibilidade; e a experiência vivida desta possibilidade é a angústia. A angústia não é nem necessidade nem liberdade abstracta, livre-arbítrio; é liberdade finita, limitada e manietada e deste modo se identifica como o sentimento da possibilidade. A conexão da angústia com o possível revela-se na conexão do possível como o futuro. O possível corresponde completamente ao futuro. "Para a liberdade, o possível é o futuro, para o tempo o futuro é o possível. E assim tanto a um como ao outro, corresponde, na vida individual, a angústia". O passado só pode causar angústia na medida em que se representa como futuro, ou seja, como possibilidade de repetição. Deste modo, uma culpa passada faz nascer a angústia, mas só no caso de não ser verdadeiramente passada, pois se assim fosse poderia fazer nascer o arrependimento,; não a angústia. A angústia está ligada àquilo que não é mas poderia ser, ao nada que é possível ou à possibilidade que origina o nada. Está intimamente ligada à condição humana. Se o homem fosse um anjo ou um ser bruto, não conheceria a angústia; com efeito, ela desaparece ou diminui nos estádios que degradam ou levam à bestialidade, e na espiritualidade através da qual o homem se sente extremamente feliz e privado de espírito. Mas também nestes estádios a angústia está sempre pronta a surgir: existe oculta e dissimulada, mas sempre pronta a retomar o seu domínio sobre o homem. "É provável que um devedor consiga libertar-se do seu credor e apaziguá-lo com palavras, mas existe um credor que jamais se deixa enganar, esse credor é o espirito". Com 17 efeito, a espiritualidade é a reflexão do homem sobre si próprio, sobre a sua própria condição humana, sobre a impossibilidade de adequar-se a uma vida puramente bestial. A consciência da morte é parte essencial da espiritualidade. "Quando a morte se apresenta com a sua face descarnada e truculenta, não há ninguém que a não considere com receio. Mas quando ela, para se divertir com os homens que se gabam de se divertirem à sua custa, avança camuflada, quando só a nossa meditação consegue desvendar que, sob os despojos de certa desconhecida, cuja doçura nos encanta e cuja alegria fulgura no ímpeto selvagem do prazer, existe a morte - então somos tomados por um terror sem limites". As páginas conclusivas do Conceito de angústia exprimem, de modo poderosamente autobiográfico, a natureza da angústia como sentimento do possível. A palavra mais terrível que foi pronunciada por Cristo não é a que impressionava Lutero: Meu Deus porque me abandonaste? mas a outra, referindo-se a Judas: Aquilo que tens a fazer fá-lo depressa! A primeira palavra exprime o sofrimento pelo que estava a acontecer, a segunda
a angústia por aquilo que podia acontecer; e só nesta última se revela verdadeiramente a humanidade de Cristo; porque humanidade significa angústia. A pobreza espiritual subtrai o homem à angústia; mas o homem que se subtrai à angústia é escravo de todas as circunstâncias que o impelem de um lado para o outro, sem parar. A angústia é a mais terrível de todas as categorias. Kierkegaard liga intimamente a angústia ao principio de infinidade ou de omnipotência do possível; principio que ele exprime mais frequentemente, afirmando: "No possível tudo é possível." Segundo este principio, toda a possibilidade favorável ao homem é destruída pelo infinito número de possibilidades desfavoráveis. " Geralmente, afirma Kierkegaard, diz-se que a possibilidade é coisa-ligeira porque é entendida como possibilidade de felicidade, de fortuna, etc. Mas tal não é verdadeiramente possibilidade; é uma invenção falaz que os homens, com a sua corrupção, embelezam para terem um pretexto de se lamentarem da vida e da providência e de terem ocasião de se tornarem importantes a seus próprios olhos. Não, na possibilidade tudo é igualmente possível e aquele que foi realmente educado pela possibili18 dade compreendeu tanto o lado terrível como o lado agradável da mesma. Quando se frequenta a sua escola sabe-se, melhor que a criança que aprende as suas lições, que da vida não se pode pretender nada e que o lado terrível, a perdição, o aniquilamento habitam paredes meias com cada um de nós; e quando se aprendeu a fundo que qualquer das angústias que receamos pode tombar sobre nós, de um instante para o outro, então somos obrigados a dar à realidade uma outra explicação: somos obrigados a louvar a realidade ainda que ela se erga sobre nós como mão pesada e a recordar que ela é de longe mais fácil que a própria possibilidade (Der Begriff Angst, V). É a infinitude ou indeterminação da possibilidade que torna insuperável a angústia e faz dela a situação fundamental do homem no mundo. "Quando a sagacidade fez todos os seus inumeráveis cálculos, quando os dados estão lançados, então surge a angústia, ainda antes do jogo se considerar ganho ou perdido na realidade; porque a angústia faz uma cruz em frente do diabo, este já não pode avançar e a mais astuta das combinações desaparece como um brinquedo, perante esse caso criado pela angústia através da omnipotência da possibilidade" (Ib., V). E assim a omnipotência da possibilidade liberta-se dessa sagacidade que se move entre as coisas finitas e vai ensinando o indivíduo "a encontrar descanso na providência". Do mesmo modo, faz surgir o sentimento de culpa que não pode ser apreciado através da finitude: "Se um homem é culpado, é infinitamente culpado" (Ib., V). § 601. KIERKEGAARD: O POSSíVEL COMO ESTRUTURA DO EU: O DESESPERO A angústia é a condição em que o homem é colocado pelo possível que se refere ao mundo; o desespero é a condição em que o homem é colocado pelo possível que se refere à sua própria interioridade, ao seu eu. A possibilidade que provoca a angústia é inerente à situação do homem no mundo: é a possibilidade dos factos, das circunstâncias, dos laços, que ligam o homem ao mundo. O desespero é inerente à personalidade do homem, à relação do eu consigo próprio e à 19 possibilidade desta relação. Desespero e angústia estão, por conseguinte, intimamente ligados, mas não são idênticos: ambos são todavia baseados na estrutura problemática da existência.
"0 eu, afirma Kierkegaard, é uma relação que se relaciona consigo própria; é na relação, o sentido interno dessa mesma relação. O eu não é relação, é o regresso da relação a si própria". Por isso o desespero está intimamente ligado à natureza do eu. Com efeito, o eu pode querer, como pode não querer ser ele próprio. Se quer ser ele próprio, uma vez que é finito, portanto insuficiente a si próprio, jamais alcançará o equilíbrio e o repouso. Se não quer ser ele próprio, procura então quebrar a relação que tem consigo, que é constitutiva e debate-se igualmente com uma impossibilidade fundamental. O desespero é característica quer de uma quer de outra alternativas. Ele é portanto a doença mortal, não porque conduza à morte do eu mas porque consiste no viver da morte pelo eu: é a tentativa impossível para negar a possibilidade do eu, quer tornando-o auto-suficiente quer destruindo-o na sua natureza concreta. As duas formas de desespero apelam uma para a outra e identificam-se: desesperar de si, no sentido de querer desfazer-se de si, significa querer ser o eu que não se é na verdade; querer ser o próprio a todo o custo significa ainda querer ser o eu que não se é verdadeiramente, um eu auto-suficiente e completo. Num e noutro caso, o desespero é a impossibilidade da tentativa. Por outro lado, o eu, segundo Kierkegaard, é "a síntese da necessidade e da liberdade" e o desespero nasce dele ou da deficiência da necessidade ou da deficiência da liberdade. A deficiência da necessidade é a fuga do eu para possibilidades que se multiplicam indefinidamente e que jamais se materializam. O indivíduo passa a ser "uma miragem". Por fim, diz Kierkegaard, é como se tudo fosse possível, e é precisamente este o momento em que o abismo devora o eu" (Die Krankheit zum Tode, I, C, A, b). O desespero é aquilo a que hoje chamamos "evasão", ou seja, o refúgio em possibilidades fantásticas, ilimitadas, que não tomam forma, nem se radicam em nada. "Na possibilidade tudo é possível. Por isso a possibilidade se pode subdividir em todos os modos possíveis, mas essencialmente em dois. Uma destas for20 mas é a do desejo, da aspiração, a outra é a melancólico-fantástica (a esperança, o temor ou angústia)" (Ib., 1, C, A, b). O desespero é portanto devido à deficiência do possível. Neste caso, a possibilidade é a única coisa que salva. Quando alguém desmaia pede-se água, água de Colónia, gotas de Hoffmann; mas quando alguém quer desesperar-se então haverá que pedir: "Descobri uma possibilidade, descobri-lhe uma possibilidade. A possibilidade é o único remédio; dai-lhe uma possibilidade e o desesperado retoma a respiração, reanimase, porque o homem que permanece sem possibilidade é como se lhe faltasse o ar. Às vezes a invenção da fantasia humana pode bastar para que se descubra uma possibilidade; mas no fim, quando se trata de acreditar, serve apenas isto: "que a Deus tudo é possível" (Ib.). Precisamente porque a Deus tudo é possível, o crente possui o antídoto seguro contra o desespero: "o facto da vontade de Deus ser possível, faz com que eu possa rezar, mas se ela fosse necessária, o homem seria essencialmente mudo como o animal" (Ib.). Como oposto da fé, o desespero é o pecado: por isso o oposto do pecado é a fé, e não a virtude. A fé consiste na eliminação total do desespero, é a condição em que o homem, ainda que orientando-se para dentro de si próprio, deixa de iludir-se sobre a sua autosuficiência para reconhecer a sua dependência em relação a Deus. Neste caso, a vontade de se ser o próprio não colide com a impossibilidade da auto-suficiência que determina o desespero, porque é uma vontade que se socorre do poder em cujas mãos o próprio homem se colocou, o poder de Deus. A fé substitui o desespero pela esperança e pela crença em Deus. Transporta o homem para lá da razão e de qualquer possibilidade de compreensão: ela é o absurdo, o paradoxo, o escândalo. Que a realidade do homem seja a do indivíduo isolado perante Deus, que todo o indivíduo como tal, quer seja um poderoso da terra quer
um escravo, exista na presença de Deus, - este é o escândalo fundamental do cristianismo, escândalo que nenhuma especulação poderá destruir ou diminuir. Todas as categorias do pensamento religioso são impensáveis. Impensável é transcendência de Deus, que implica uma distância entre Deus e o homem e assim exclui qualquer familiaridade entre 21 Deus e o homem, mesmo no acto da sua relação mais intima. Impensável é o pecado na sua natureza concreta, como existência do indivíduo que peca. A fé crê, não obstante, em tudo, e assume todos os riscos. A fé, para Kierkegaard, é o inverso paradoxal da existência; perante a radical instabilidade da existência constituída pelo possível, a fé liga-se à estabilidade do princípio de toda a possibilidade, a Deus - no qual tudo é possível. Deste modo, a fé apenas se subtrai à ameaça da possibilidade, transformando a negação implícita nessa ameaça numa afirmação de crença. § 602. KIERKEGAARD: A NOÇÃO DE "POSSíVEL" As características que Kierkegaard reconheceu como próprias da existência humana no mundo, a angústia e o desespero, derivam da própria estrutura de possibilidade que a constituem. Nas obras em que Kierkegaard descreveu dramaticamente essas características, e que são as mais famosas, não existe no entanto uma análise da noção do possível. Essa análise é feita por Kierkegaard no seu trabalho Migalhas de filosofia de 1844, ainda que, como veremos, os esclarecimentos que vem aduzindo nem sempre sejam coerentes com o uso que Kierkegaard fez da noção do possível no Conceito da angústia e na Doença mortal. No Entremez daquele escrito (§ 1) Kierkegaard observa correctamente que o erro de Aristóteles quando trata do possível (De interpretatione, 13, cfr. § 85) foi o de considerar o próprio necessário como possível; e uma vez que o possível pode não ser e o necessário não pode não ser, Aristóteles foi levado a admitir, além do possível "mutável", que pode não ser, um possível imutável que significa simplesmente "não impossível". Kierkegaard observa que Aristóteles deveria ter simplesmente negado que o possível possa incluir-se no necessário ou que o necessário se inclua no possível. Portanto, também a tese de Hegel que afirma que a necessidade é a síntese do possível e do real é, segundo Kierkegaard, fruto de uma confusão. Se o possível e o real, diz ele, formassem na sua síntese o necessário, passariam a constituir uma essência absolutamente diferente e, tornando-se tal, excluiriam o devir 22 (o necessário). Se os conceitos de possível e de necessário se mantêm individualizados é porque, segundo Kierkegaard, o "necessário não devém" e o "devir não é nunca necessário". Com efeito, o necessário não pode mudar porque se refere sempre a si próprio e sempre do mesmo modo. O necessário é por definição. Nada dele pode ser destruído, ao passo que o devir é sempre uma destruição parcial, no sentido em que o possível que ele próprio projecta (não só o que é excluído, como também o que é recuperado) é destruído pela realidade que lhe dá origem. Estas considerações estão presentes na análise de Kierkegaard sobre o conceito de história. Mas nos seus dois trabalhos que já examinámos, o uso que Kierkegaard faz da noção de possível não está perfeitamente coerente com ela. Na Doença mortal recorre, como exemplo, à definição da realidade como "unidade da possibilidade e da necessidade": uma definição que combina duas categorias que, segundo As Migalhas, devem manter-se separadas. Além disso, em ambas as obras se afirma a infinitude do possível, no sentido em que se admite que as possibilidades são "infinitas" ou, por outras palavras, "a
omnipotência da possibilidade". Com efeito a angústia nasce do número infinito das possibilidades e da sua radical negatividade; e o desespero nasce do excesso ou da deficiência de possibilidades do eu. Esta infinitude do possível atribuída ao homem, esta "omnipotência" do possível parecem no entanto contrastar com a finitude que Kierkegaard reconhece ser própria do homem. Provavelmente Kierkegaard pretende afirmar que todas (ou quase todas as possibilidades humanas estão destinadas ao fracasso, a não ser que estejam apoiadas na possibilidade de Deus ou garantidas por ela. Mas, em primeiro lugar, uma possibilidade destinada ao fracasso não é possibilidade, como não é uma possibilidade a que se destina ao sucesso. A forma da possibilidade é a da alternativa, do Ou... Ou..., em que tanto insistiu Kierkegaard. Se para o homem as possibilidades não têm esta forma, então o homem não vive na possibilidade mas na necessidade; na necessidade do fracasso. E se vive na necessidade, nem mesmo Deus pode salvá-lo a não ser alterando a natureza e fazendo-o igual a si: uma vez que o necessário é aquilo que não pode ser diferente do 23 que é. Por outro lado, que "a Deus tudo é possível" significa isto: por mais desastrosa ou desesperada que seja a situação em que o homem se encontre, Deus pode encontrar para ele, para esse homem singular, uma possibilidade que lhe dê ânimo e o salve. Mas Deus pode fazer isto porque tem à sua disposição infinitas possibilidades. Se o homem se encontrasse na mesma situação não teria, obviamente, necessidade de Deus. A doutrina da infinitude e da omnipotência do possível de que Kierkegaard se serviu no Conceito de angústia e na Doença mortal não é, portanto, muito coerente com a noção de possível que Kierkegaard tinha estabelecido nas Migalhas da filosofia e pode considerar-se como uma espécie de contaminação conceptual entre esta doutrina e a noção romântica do infinito. § 603. KIERKEGAARD: O INSTANTE E A HISTóRIA Como se disse, as Migalhas da filosofia contêm a noção kierkegaardiana de história. Como domínio da realidade que devém, a história é, segundo Kierkegaard, o domínio do possível. O devir pode incluir em si uma duplicação, ou seja, uma possibilidade de devir no interior do próprio devir: este segundo devir é propriamente o lugar da história. Verifica-se em virtude de uma liberdade de acção relativa, que por sua vez se liga a uma causa dotada de liberdade de acção absoluta. Na história, o passado já não tem necessidade do futuro. Se o passado, pelo facto de se encontrar realizado, se tornasse necessário, o próprio futuro seria necessário quanto à sua realização posterior. Querer predizer o futuro (profetizar) e querer entender a necessidade do passado são uma e a mesma coisa; e é apenas uma questão de moda o facto de uma geração achar mais plausível um que outro. O passado não é necessário no momento em que devém; não se torna necessário, devindo (isto seria contraditório) e ainda menos se torna no acto de ser compreendido e interpretado. Se se tornasse necessário no acto de ser compreendido, ganharia aquilo que a sua compreensão perdia, uma vez que esta en24 tenderia coisa diferente daquilo que o passado é, e seria uma má compreensão. Se o objecto entendido se transforma com o entendimento, este último transforma-se em erro. A conclusão é de que a possibilidade, pela qual o possível se torna realidade, acompanha sempre o próprio real e mantém-se ao lado do passado, mesmo que, entretanto, tenham
decorrido milénios. Portanto, a realidade do passado não é mais que a sua própria possibilidade. Daqui deriva que o meio de conhecimento da história é a fé. A percepção imediata não pode enganar e não está sujeita à dúvida; mas o seu objecto é sempre o que devém, não o devir, por conseguinte o presente, não a história, que é passado. A história exige um meio que seja conforme à sua natureza que inclui uma dupla incerteza, enquanto é o nada do não ser ou a destruição da possibilidade que se realizou, e ao mesmo tempo a destruição de todas as outras possibilidades que foram excluídas. Esta é portanto a natureza da fé, uma vez que a certeza da fé implica sempre a abolição de uma incerteza análoga à do devir. A fé crê naquilo que não vê; não crê que a estrela exista, porque a estrela vê-se, mas crê que essa mesma estrela tenha sido criada. O mesmo acontece com qualquer outro acontecimento. Aquilo que aconteceu, é imediatamente cognoscível, mas não é cognoscível imediatamente o acto de acontecer. A duplicidade dos factos acontecidos consiste no terem acontecido e em serem o lugar de passagem do nada a uma possibilidade múltipla. A percepção e o conhecimento imediato ignoram a incerteza com que a fé se dirige ao seu objecto, mas ignoram também a certeza que surge dessa incerteza. Kierkegaard conclui que a fé é uma decisão e que por isso exclui a dúvida. Fé e dúvida não são dois géneros de conhecimento, entre os quais existe continuidade, são antes duas paixões contrárias. A fé é o significado do devir, a dúvida é o protesto contra uma conclusão que pretende ultrapassar o conhecimento imediato. Segundo este ponto de vista, não é de forma alguma uma teofania a revelação e autorevelação de Deus. A relação entre o homem e Deus verifica-se não na história, na continuidade do devir humano, mas antes no instante, entendido como súbita inserção da verdade divina no homem. Neste sentido, o cristianismo é paradoxo e escândalo. Se a relação 25 entre o homem e Deus se verifica no instante, isso quer dizer que o homem, por sua conta, vive na não-verdade; e o conhecimento desta condição é o pecado. Kierkegaard contrapõe o cristianismo assim entendido ao socratismo, segundo o qual o homem, pelo contrário, vive na verdade e o problema consiste apenas em torná-la explícita, em arrastá-la para fora, maieuticamente. O mestre, para o socratismo, é uma simples ocasião para o processo maiêutico, uma vez que a verdade habita, desde o início, no próprio discípulo. Por isso Sócrates refutava a ideia de ser chamado mestre e declarava que nada ensinava. Mas, segundo o ponto de vista cristão, uma vez que o homem é a não-verdade, trata-se de recriar o homem, de fazê-lo renascer, para o tornar adaptado à verdade que lhe vem de fora. Por isso o mestre é um salvador, um redentor, aquele que determina o nascimento de um homem novo, capaz de captar no instante a verdade de Deus. A relação instantânea entre o homem e e Deus, na qual a iniciativa é toda divina, porque o homem é a não-verdade, exclui a hipótese do homem poder, com as suas forças, elevar-se até Deus, demonstrando a sua existência. "Se Deus não existe - afirma Kierkegaard demonstrá-lo é absolutamente impossível; mas se existe será também empresa insensata. No instante em que a prova começa, já eu pressupus a sua existência; e não como algo que se ponha em dúvida, pois um pressuposto não pode ser tal, mas como algo que está fora de questão, senão não teria empreendido a prova, compreendendo a impossibilidade". Desde que se permaneça no campo dos factos sensíveis e palpáveis ou no das ideias, nenhuma conclusão poderá alcançar a existência, mas só a partir dai. Não se prova, por exemplo, a existência de uma pedra, prova-se apenas que esta coisa existente é uma pedra; o tribunal não prova a existência de um criminoso mas prova que o acusado, que certamente existe, é
um criminoso. Se se quisesse alcançar Deus através dos seus actos concretos, ou seja, através daquilo que imediatamente se percebe na natureza e na história, permanecer-se-ia sempre em suspenso no receio de que acontecesse qualquer coisa de tão terrível que lançasse pelos ares todas as provas. Mas se tal não se verifica, isso deve-se ao facto de não se considera26 rem as coisas imediatamente presentes, mas determinados conceitos das mesmas. E em tal caso a prova não parte dos actos concretos, apenas desenvolve um idealismo, que é pressuposto; baseados na confiança em tal, podemos pretender então desafiar as objecções futuras. Mas isto não é uma prova, é apenas o desenvolvimento de um pressuposto idealista. Deus permanece sempre para lá de qualquer possível ponto de chegada da investigação humana. A sua única definição possível, segundo Kierkegaard, é aquela que o assinala como diferença absoluta,- mas é uma definição aparente, porque uma diferença absoluta não pode ser pensada, e portanto essa diferença absoluta não significa senão que o homem não é Deus, que o homem é a não-verdade, o pecado. E neste caso a investigação sobre Deus não avançou um passo. O instante é portanto a inserção paradoxal e incompreensível da eternidade no tempo, e realiza o paradoxo do cristianismo, que é a vinda de Deus ao mundo. Só neste sentido o cristianismo pode ser considerado um facto histórico; e se qualquer facto histórico faz apelo à fé, este particular facto histórico implica uma fé à segunda potência porque exige uma decisão que supere a contradição implícita na eternidade que se faz tempo, na divindade que se faz homem. Mas este facto histórico não tem testemunhos privilegiados, uma vez que a sua historicidade se representa, no instante, sempre que o homem singular recebe o dom da fé. Kierkegaard afirma a este propósito que não existe nenhuma diferença entre o "discípulo em primeira mão", e o "discípulo em segunda mão" de Cristo. O homem que vive muitos séculos depois da vinda de Cristo, crê na afirmação dos contemporâneos de Cristo apenas em virtude de uma condição que ele próprio deriva directamente de Deus. Por conseguinte, para ele verifica-se originalmente a vinda de Deus ao mundo, e isso acontece por virtude da fé. A divindade de Cristo não era mais evidente para a testemunha imediata, para o contemporâneo de Jesus, do que para qualquer cristão que tenha recebido a fé. Em qualquer caso, essa revelação só pode acontecer no instante, e pressupõe um meio dado, a fé, e um dado necessário, a consciência do pecado. Pressupõe tam27 bém um conceito de mestre diferente do do socratismo: Deus no tempo. § 604. KIERKEGAARD: BALANÇO DA OBRA KIERKEGAARDIANA A filosofia de Kierkegaard é, na sua complexidade, uma apologética religiosa e precisamente a tentativa para basear a validade da religião na estrutura da existência humana como tal. Trata-se todavia de uma apologética bastante distante da racionalização da vida religiosa que tinha sido feita por Hegel e que, depois de Hegel, se havia tornado o principal objectivo da direita hegeliana. A religião não é, para Kierkegaard, uma visão racional do mundo, nem a transcrição emotiva ou fantasia de tal visão; é apenas a via da--.salvação, o único modo de o homem se furtar à angústia, ao desespero e ao fracasso, mediante a instauração de uma relação imediata com Deus. O regresso a Kierkegaard na
filosofia contemporânea foi iniciado pelo chamado "renascimento kierkegaardiano" que tem em vista precisamente este aspecto da filosofia de Kierkegaard. Por outro lado, Kierkegaard ofereceu à investigação filosófica instrumentos que se revelaram eficazes; como seja, os conceitos de possibilidade, de escolha, de alternativa, e de existência como modo de ser próprio do homem; e insistiu naquele aspecto da filosofia pelo qual ela é não tanto um saber objectivo, mas antes um projectar-se total da existência humana e por conseguinte o compromisso de tal projecção. Esta dimensão foi posteriormente assumida por todas as correntes do existencialismo contemporâneo. A categoria de "singular", na qual Kierkegaard tanto insistiu em toda a sua obra, constitui um dos seus outros contributos para a problemática do pensamento moderno. Em primeiro lugar, o singular contrapõe-se à universalidade impessoal do Eu de Fichte, do Absoluto de Schelling e da Ideia de Hegel e exprime a irredutibilidade do homem, da sua natureza, dos seus interesses e da sua liberdade a qualquer entidade infinita, imanente ou transcendente, que o pretenda absorver. Em segundo lugar, o singular contrapõe-se à "massa", ao "público", à "multidão", enquanto entidade 28 diferenciada e individualizada, que tem um valor em si, não redutível à da unidade indiferenciada do número. Neste sentido, Kierkegaard contrapõe a comunidade, na qual o singular é, à multidão em que o singular é um nada. "A multidão, afirma Kierkegaard, é um não-senso, um conjunto de unidades negativas, de unidades que não são unidades, que são unidades em razão do conjunto, quando o conjunto deveria ser e tornar-se conjunto em razão da unidade" (Tagebücher, X, A 390). Nestes dois contextos a categoria do singular serve a Kierkegaard para enfrentar problemas que passaram a ser, à distância de um século, ainda mais urgentes: e principalmente o da salvaguarda do indivíduo contra o conformismo e a demissão na mentalidade das " massas". Mas a mesma categoria do singular surge também em Kierkegaard oposta a "povo" e em geral aos ideais igualitários e democráticos que começavam a surgir nas revoluções e nos movimentos de há um século; e é utilizada para defender a força e os privilégios do estado e uma espécie de governo de "sacerdotes cristãos" não muito bem identificados (Das eine was not tut (1847-487, trad. Ulrich, in Zeitwende, 1, p. 1 e sgs.). Neste aspecto, a categoria do singular serve a Kierkegaard para a defesa de posições politicamente conservadoras. Finalmente, essa categoria tem um significado sobretudo religioso. Kierkegaard não ignora certamente que do "singular" fazem parte as relações com os outros e com o mundo que definem a esfera do seu "objectivo" ou do seu trabalho; mas o que lhe interessa é a solidão do indivíduo perante Deus. A própria definição que dá do eu (ou seja, da personalidade humana): uma relação que se relaciona consigo própria e que surge na Doença mortal, parece encerrar o indivíduo na sua intimidade privada. Por isso as relações com os outros e as relações de trabalho em Kierkegaard estão limitadas ao estádio da ética que, no entanto, é sempre um estádio provisório da existência; no estádio religioso, que é o definitivo, o indivíduo encontra-se isolado perante Deus. "Como singular, afirma Kierkegaard, o homem está só: só em todo o mundo, só na presença de Deus" (Tagebücher, VIII, A 482). Em contraste com este último aspecto do pensamento de Kierkegaard, o marxismo e o existencialismo, ainda que assumindo a defesa do indivíduo, pro29 curam integrá-lo nas suas relações com o mundo e com os outros e compreendê-lo na sua historicidade.
NOTA BIBLIOGRÁFICA § 597. Das obras de Kierkegaard existe a edição dinamarquesa Samiede Vaerker, a cargo de A. B. DRACHMANN, J. L. HEILBERG, H. O. LANGE, Kõbenhavn, 1901-06, 2! ed., 192031; a tradução alemã Gesammelte Werke, a cargo de H. GOTTSCHED e CHR. SCHREMPF, Jena, 1909-22 e sucessivas reedições; e uma outra tradução alemã a cargo de E. HIRSCH, 36 vols., Dusseldórfia, 1956 e sgs. A uma e outra se faz referência no texto. Traduções italianas: Il diário dei seduttore, trad. REDAELLI, Turim, 1910; In víno veritas, trad. K. FERLOV, Lanciano, 1910; Lora. Atto accusa ai Cristianesimo dei regno di Dinamarca, 2 vols., Milão-Roma, 1931; Il concetto dell'angoscia, trad. M. CORSSEN, Florença, 1942; Don Giovanni, trad. K. M. GULDBRANSEN e R. CANTONI, Milão, 1945; La ripetizione, trad. E. VALENZANI, Milão, 1945; Diario, 3 vols., escolha e trad. de C. FABRO, Brescia, 1948-51; Timore e tremore, Milão, 1948; li concetto dell'angoscia, La Malatia mortale, trad. C. FABRO, Florença, 1953; Briciole difilosofia, Postilia non scientifica, trad. C. FABRO, 2 vol., Bolonha, 1962. Acerca das investigações efectuadas nestes últimos anos sobre alguns aspectos da biografia de Kierkegaard, especialmente sobre o seu modo de viver e sobre o uso pródigo do seu dinheiro, v. Alf Nyman, La vita di S. K. alia luce delia moderna ricerca, in " Séritti di sociologia e politica ín onore di Luigi Sturzo", 11, Bolonha, 1953. § 598. G. BRANDES, S. K., Leipsig, 1879; H. HOFFDING, S. K. ais Philosoph, Stuttgart, 1896; T. B0HUN, S. K., GütersIoh, 1925; E. L. ALLEN, S. K, His Life and Thought, Londres, 1925; E. GEISMAR, S. K.' Gottingen, 1929; W. RUTTENBECK, S. K., Berlim, 1929; J. A. BAIN, S. K., His Life and Religious Teaching, Londres, 1935; CHR. SCHREMPF, S. K., 2 vol., Jena, 1927-28; E. PRZYWARA Das Geheimnis, S. K., München, 1929; F. LOMBARD, K., com uma escolha de textos traduzidos, Florença, 1936; J. WAHL, Études kierkegaardiennes, Paris, 1937; W. LowRIE, A Short Life of. K., Princeton, 1946; P. MESNARD, Le vrai visage de K., Paris, 1948; R. CANTONI, La coscienza inquieta (S. K.) Milão, 1949; C. FABRO, Tra K. e Marx, Florença, 1952; J. COLLINS The Mind of K., Chicago, 1954; J. HOHLENBERG, S. K, New York, 1954; Symposion Kierkegaardianum, a cargo de S. STEFFENSEN, e H. SORENZEN, Copenhaga, 1955; Kierkegaardiana, vol. colectivo a cargo de N. THULSTRUP, Copenhaga, 1955; T. H. CROXALL, K. COMMENTAR Y, New York, 1956; Studi Kierkegaardiani, volume colectivo a cargo de C. FABRO, Brescia, 1957. 30 IX MARX § 605. MARX: FILOSOFIA E REVOLUÇÃO A filosofia de Marx é, à primeira vista, a última e a mais conseguida expressão do movimento da esquerda hegeliana que foi a primeira reacção ao idealismo romântico e que a este mesmo idealismo contrapõe uma reabilitação do homem e do seu mundo. Mas nos próprios confrontos da esquerda hegeliana a filosofia de Marx distingue-se pelo seu carácter antiteórico e comprometido, empenhado como está em promover e dirigir o esforço de libertação da classe operária nos confrontos dessa sociedade burguesa que se
havia formado após a revolução industrial do século XVIII. Ao idealismo de Hegel que, partindo da ideia, entendia justificar toda a realidade post factum, Marx contrapõe uma filosofia que, partindo do homem, se disponha transformar, activamente, a própria realidade. A acção, a "praxis" revolucionária faz parte integrante desta filosofia, que não se esgota com a elaboração de conceitos, ainda que (obviamente) não possa prescindir deles. A polémica de Marx contra a esquerda hegeliana é ditada por esta exigência, que Marx exprimiu uma vez de forma paradoxal ao afirmar: "A filosofia e o estudo do mundo real estão entre si em relação como 31 estão o onanismo e o amor sexual" (Ideologia tedesca, 111, trad. ital., p. 229). O "estudo do mundo real" não tem nada a ver como o "mundo das ideias puras": deve tomar em consideração a realidade efectiva ou, como afirma Marx, "empírica e material" do homem e do mundo em que ele vive. Marx prevê (ou pressente) o tempo em que a "ciência natural compreenderá a ciência do homem como a ciência do homem compreenderá a ciência natural", e em que "não haverá senão uma única ciência" (Manoscritti economico-filosofici del 1844, 111, trad. ital., p. 266). Mas aquilo que poderemos chamar a sua "filosofia" é constituído substancialmente por uma antropologia, por uma teoria da história e por uma teoria da sociedade; esta última partindo da redução da própria sociedade à sua estrutura económica não é senão uma teoria económica. Depois da publicação das obras de juventude (o que se verificou à volta de 1930) e que tornou possível um melhor conhecimento das primeiras duas partes da sua filosofia, a influência desta filosofia começou a ser cada vez mais extensa e profunda mesmo fora dos movimentos políticos que nela tiveram origem e que a consideraram frequentemente mais como um instrumento definitivo de luta do que uma via aberta para ulteriores desenvolvimentos. § 606. MARX: VIDA E OBRAS Karl Marx nasceu em Treviri a 15 de Maio de 1818. Estudou na Universidade de Bona e depois em Berlim, onde se torna um hegeliano entusiasta; formou-se em filosofia em 1841 com uma tese sobre a Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Renunciando à carreira universitária, Marx dedicou-se à política e ao jornalismo. Colaborou na "Gazeta renana" que foi o órgão do movimento liberal alemão. Uma vez suprimido o jornal, Marx, cujas ideias haviam entretanto evoluído do liberalismo para o socialismo, colaborou numa revista, os "Anais franco-alemães", que foi também proibida. Em 1843 dirige-se a Paris onde permanece até 1845, colaborando no órgão dos refugiados alemães o "Avante". Obrigado a ausentar-se de 32 Paris, passa a viver em Bruxelas (de 1845 a 1848) e em 1848 publicava com Engels, a quem se tinha ligado de grande amizade em Paris, o Manifesto do partido comunista que assinalou o inicio do despertar político da classe operária e levou o socialismo do domínio utópico à realização histórica, dando à classe operária o instrumento que deve promover e solicitar a evolução da sociedade capitalista no Sentido da própria negação. Os acontecimentos de 1848 levaram Marx a Colónia e a Paris; mas em 1849 estabelecia-se com a família em Londres, onde continuou a inspirar e a dirigir o movimento operário internacional e onde faleceu a 14 de Março de 1883. Os trabalhos filosoficamente mais significativos de Marx são os seguintes: Crítica da
filosofia do direito de Hegel, escrito em 1843 e cuja introdução foi publicada em Paris em 1844 nos "Anais franco-alemães", Economia e filosofia, escrito em 1844, mantido inédito e só publicado postumamente; A sagrada família ou crítica da crítica crítica (1845), escrita em colaboração com Engels, e dirigida contra Bruno Bauer e os seus amigos hegelianos de esquerda que tinham erigido a guia da história o "poder critico da razão"; Teses sobre Féuerbach, brevíssimo, mas importante trabalho, escrito em 1845 e publicado postumamente por Engels; Ideologia alemã, escrita em 1845-46, dirigida contra Feuerbach, Bruno Bauer e Stirner, mantido inédito e publicado postumamente; A miséria da filosofia (1847), contra a obra de Proudhon, A filosofia da miséria; Crítica da economia política (1859); O Capital, vol. 1, 1867; vols. 11 e III, publicados postumamente por Engels (1885, 1895). § 607. MARX: ANTROPOLOGIA O ponto de partida de Marx é a reivindicação do homem, do homem existente, na totalidade dos seus aspectos, feita já por Feuerbach. Engels partilha do entusiasmo que a obra de Feuerbach tinha suscitado nele e em Marx, como em muitos dos jovens hegelianos alemães. "Quem foi que descobriu o mistério do "sistema"? - Feuerbach. Quem negou a dialéctica do conceito, essa guerra dos deuses que só os 33 filósofos conheciam? - Feuerbach. Quem foi que apresentou não "o significado dos homens" - como se o homem pudesse ter outro significado além de ser homem - mas "os homens" no lugar do velho xaile com que se embrulhava a autoconsciência infinita? Feuerbach e só Feuerbach" (Sagrada família, Gesamtausgabe, 111, p. 265). Mas Marx não se agarra a este aspecto negativo da filosofia de Feuerbach, como também não se agarra ao aspecto positivo, que é a valorização das necessidades, da sensibilidade, da materialidade do homem. Feuerbach fechou-se numa posição teórica ou contemplativa: ignorou o aspecto activo e prático da natureza humana que se constitui e realiza apenas nas relações sociais. Só estas relações, já não contempladas, mas realizadas e compreendidas na sua realização histórica, abrem a via àquilo que Marx chama o novo materialismo, que se opõe ao velho materialismo especulativo ou contemplativo. "Os filósofos, afirma Marx (Teses sobre Feuerbach, I?) até agora limitaram-se a interpretar o mundo; de agora em diante é preciso, pelo contrário,'transformá-lo". O ponto de vista do novo materialismo é o de uma praxis revolucionária (Ib., 3?); o homem alcança a solução dos seus problemas, não através da especulação da acção criticamente iluminada e dirigida. Aquilo que Marx pretendeu realizar, não apenas na sua obra de filosofia e de economista, como também na própria actividade política, traduz-se numa interpretação do homem e do seu mundo que fosse simultaneamente compromisso de transformação e, neste sentido, actividade revolucionária. Ora esta interpretação só é possível se no homem deixar de se reconhecer uma essência determinável de uma vez por todas, em abstracto, essência que surge das suas relações privadas consigo próprio, na sua interioridade ou consciência; pois só se descobre o ser do homem nas suas relações exteriores com os outros homens e com a natureza que lhe fornece os meios de subsistência. Ora estas relações não são determináveis de uma vez para sempre porque são historicamente determinadas pelas formas de trabalho e de produção. Por outras palavras, a personalidade real e praticamente activa do homem é apenas aquela que se resolve nas relações de trabalho em que o homem se encontra. "Po34
demos distinguir os homens dos animais, afirma Marx, pela consciência, pela religião, por tudo aquilo que se quiser; mas os homens começaram a distinguir-se dos animais quando começaram a produzir os seus meios de subsistência, um progresso que foi condicionado pela sua organização física. Produzindo os seus meios de subsistência, os homens produzem indirectamente a sua própria vida material" (Ideologia alemã, trad. ital., p. 17). Por conseguinte, é através do trabalho, como relação activa com a natureza, que o homem é, de certo modo, criador de si próprio; e criador não apenas da sua "existência material" mas também do seu modo de ser ou da sua existência específica, como capacidade de expressão ou de realização de si. "Este modo de produção não se deve julgar apenas enquanto reprodução da existência física dos indivíduos; ele é também um modo determinado da actividade de certo indivíduo, um modo determinado de tornar extrínseca a sua vida, um modo de vida determinado. Como os indivíduos exteriorizam a sua vida, assim são" (Ib.). O ser humano é o que é na sua exterioridade, na relação activa com a natureza e com a sociedade que é o trabalho, ou a produção de bens materiais; não na sua interioridade ou consciência. A produção e o trabalho não são, segundo Marx, uma condenação que recai sobre o homem: são o próprio homem, o seu modo especifico de ser ou de se fazer homem. Deste modo a natureza passa a ser "o corpo inorgânico do homem"; deste modo também, o homem pode referir-se a si como natureza universal ou genética e assumir a consciência de si, não tanto como indivíduo, mas como "espécie ou natureza universal". Com efeito, enquanto o animal produz apenas imediatamente e sob o domínio da necessidade "o homem produz mesmo quando é livre da necessidade física e só produz verdadeiramente quando se encontra livre de tal necessidade"; enquanto o animal "produz apenas segundo a medida e a necessidade da espécie a que pertence, o homem sabe produzir segundo a medida de todas as espécies e sobretudo sabe conferir ao objecto a medida inerente e criar também segundo as leis da beleza" (Manuscritos económico-políticos de 1844, trad. ital., pp. 230-3 1). 35 O trabalho é portanto, segundo Marx, uma manifestação, a única manifestação da liberdade humana, da capacidade humana de criar a própria forma de existência específica. Não se trata, certamente, de uma liberdade infinita porque a produção está sempre relacionada com as condições materiais e com as necessidades já criadas; e estas condições actuam como factores limitativos em qualquer fase da história. Mas trata-se de um condicionamento que não é exterior mas interior aos próprios indivíduos humanos. "As condições sob as quais os indivíduos, até ao momento em que não surge ainda a contradição, têm relações entre si, são condições que pertencem à sua individualidade e não a qualquer coisa de exterior a eles próprios: são condições sob as quais apenas esses indivíduos determinados, existentes em situações determinadas, podem produzir a sua vida material e aquilo que com ela está ligado; essas são, por conseguinte, as condições das suas manifestações pessoais e por estas são produzidas" (Ideol. alemã, p. 70). Nas relações de produção, que são relações dos homens entre si e com a natureza, a actividade humana é simultaneamente condicionada e condicionante e, por conseguinte, a iniciativa respeitante a tais relações é, em última análise, autocondicionante. Cord efeito, quando a forma assumida pelas relações de produção, forma que até certo ponto condicionou as manifestações pessoais dos indivíduos, surge como um obstáculo a tais manifestações, acaba por ser substituída por uma outra forma, que se presta melhor ao condicionamento dessas manifestações mas que, por sua vez, poderá tornar-se um obstáculo e ser igualmente substituída. "Como em todos os estádios, segundo Marx, estas condições correspondem ao desenvolvimento contemporâneo das forças produtivas, a sua história é portanto a história das forças produtivas que se desenvolvem e que são retomadas por uma
nova geração; é portanto a história do desenvolvimento das forças dos próprios indivíduos" (Ib., pp. 70-71). Nas relações produtivas, e, por conseguinte, na determinação da existência historicamente condicionada, insere-se o homem na sua totalidade, com as suas necessidades e com a sua razão, com os seus interesses e a sua ciência; mas insere-se na sua situação prática e activa, enquanto se manifesta ou actua no trabalho - na 36 sua posição de contemplativo teórico como homem moral, religioso, filosófico, como "consciência": uma vez que a consciência (como veremos em breve) é o reflexo da sua actividade produtiva. Marx entendeu de forma articulada, não rígida, a relação entre as forças produtivas dos indivíduos e as formas, que elas determinam, das relações sociais e da consciência que as reflecte. O desenvolvimento das forças produtivas desenrola-se de modo diverso, de acordo com a diversidade dos povos ou grupos humanos; e só lentamente, e de modo bastante desigual, determina o desenvolvimento das formas institucionais correspondentes. Acontece que estas formas continuam por vezes a sobreviver mesmo quando se esboçaram novas forças produtivas que tendem a destruí-Ias e a suplantá-las com novas formas; ou então, no próprio interior do grupo, "haver indivíduos com um desenvolvimento diverso do todo"; ou, em geral, a consciência surgir mais avançada no que respeita à situação empírica contemporânea, de modo a que nas lutas de um período posterior possa haver apoio, como autoridade, em teóricos anteriores" Ob., p. 71). Noutros casos, como na América do Norte, o processo do desenvolvimento inicia-se "com os indivíduos mais evoluídos dos velhos países e portanto como forças de relações mais desenvolvidas, correspondentes a estes indivíduos, mesmo antes dessas formas de relações se haverem imposto aos outros países" (Ib., p. 7 1). Isto quer dizer que a redução, operada por Marx, do indivíduo (ou seja, do ser do homem) às relações sociais, não implica de forma alguma a dissolução do próprio indivíduo em formas já realizadas de tais relações, nem o determinismo rigoroso de tais formas sobre a estrutura dos indivíduos singulares. Tudo isto não serve senão para demonstrar, segundo Marx, o carácter social do homem. "Tal como a sociedade produz o homem enquanto homem, afirma Marx, também ela é produzida por ele" (Manuscritos económico-políticos de 1844, 111, trad. ital., p. 259). A própria natureza, com a qual todo o homem, como ser vivo, está em relação, só se humaniza na sociabilidade tornando-se um elo entre cada homem e o fundamento da existência comum. "A sociedade, afirma Marx, é a total consubstanciação do homem com 37 a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, a realização do naturalismo do homem, e a realização do humanismo da natureza" Ob., p. 260). As mesmas actividades individuais (por exemplo, a actividade científica) não são menos sociais que as actividades colectivas públicas: não só porque adoptam instrumentos, por exemplo a linguagem, que são produtos sociais, mas também porque o seu fim, o seu obj ectivo, é a própria sociedade. "0 indivíduo é um ser social. A sua manifestação de vida - ainda que não surja como forma de uma manifestação de vida comum, realizada em conjunto com as outras - é uma manifestação e uma afirmação de vida social" Ob., p. 260). Aquilo que distingue o indivíduo é simplesmente o seu modo mais especifico ou mais particular de viver a vida do género humano. "A morte, afirma Marx, surge como uma dura vitória do género sobre o indivíduo e uma contradição da sua unidade; mas o individuo determinado é apenas um ser determinado e como tal mortal" (Ib., p. 261). Talvez possamos agora recapitular, da forma seguinte, os pontos principais da
antropologia de Marx: 1) Não existe uma essência ou natureza humana em geral. 2) O ser do homem é sempre historicamente condicionado pelas relações em que o homem entra com os outros homens e com a natureza, pelas exigências do trabalho produtivo. 3) Estas relações condicionam o indivíduo, a pessoa humana existente; mas os indivíduos por sua vez condicionam-se promovendo a sua transformação ou o seu desenvolvimento. 4) O indivíduo humano é um ser social. § 608. MARX: O MATERIALISMO HISTóRICO A terceira tese é o fundamento da concepção marxista da história, ou seja, do materialismo histórico. Marx insiste no carácter "empírico" do pressuposto em que se baseia. Este pressuposto é o reconhecimento de que a história é feita por "seres humanos vivos" que se acham sempre em certas "condições materiais de vida" que já encontraram existentes ou produziram com a sua própria acção (Ideologia alemã, I, p. 17). Na base deste pressuposto Marx avança a 38 tese fundamental da sua doutrina da história: o único sujeito da história é a sociedade na sua estrutura económica. Marx formulou esta tese em oposição polémica com a doutrina hegeliana segundo a qual o sujeito da história é, pelo contrário, a Ideia, a consciência ou espírito absoluto. Ele próprio afirma que, na revisão crítica da filosofia do direito de Hegel, chegou à conclusão de que "tanto as relações jurídicas como as formas do estado não podem ser compreendidas nem por si próprias nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas têm as suas raízes nas relações materiais da existência, cuja complexidade Hegel assume, seguindo o exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, sob a designação de "sociedade civil"; e que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política" (Para uma crítica da economia política, pref. trad. ital., p. 10). Mais precisamente, com base na antropologia, a tese surge apresentada da seguinte forma: "Na produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, em relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças positivas materiais. O conjunto destas relações constitui a estrutura económica da sociedade, ou seja, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas da consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser mas é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência" (Ib., pp. 10- 11). Segundo este ponto de vista, o único elemento determinante da história, e por isso também o único elemento que se autodetermina, é a estrutura económica da sociedade; enquanto que a superstrutura, com tudo o que a constitui, é uma espécie de sombra ou reflexo da estrutura e só de forma indirecta participa da sua historicidade. Por "superstrutura" Marx entende, além das formas do direito e do estado, a moral, a religião, a metafísica, e todas as formas ideológicas e as formas de consciência correspondentes. Todas estas coisas, afirma, "não têm história, não têm desenvolvimento, mas os homens que desenvolvem a sua produção mate39 rial e as suas relações materiais, transformam, juntamente com esta sua realidade, o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência" (Ideologia alemã, 1, trad. ital., p. 23). Marx insiste
continuamente no facto de que "os próprios homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem também os princípios, as ideias, as categorias, de acordo com as suas relações sociais. Assim estas ideias, estas categorias, são tão eternas como as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios. Existe um movimento continuo de acréscimo nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação das ideias; de imutável não existe senão a abstracção do movimento, mors immortalis" (Miséria da filosofia, trad. ital., 11, 1, p. 89). Utilizar categorias, ideias ou "fantasmas" semelhantes da mente para explicar a história significa inverter o seu processo efectivo, fazer da sombra a explicação das coisas, quando são as coisas a explicação da sombra. Uma verdadeira teoria da história não explica a praxis partindo das ideias, mas, pelo contrário, explica a formação das ideias partindo da praxis material e assim consegue chegar à conclusão de que "todas as formas e produtos da consciência podem ser eliminados, não mediante a crítica intelectual, resolvendo-se na autoconsciência ou transformando-os em espíritos, fantasmas ou espectros, etc., mas só através da transformação prática das relações sociais existentes, de que derivam essas mesmas fantasias idealistas"; e que, portanto, "Não é a critica mas a revolução a força motriz da história, e também da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria" (Ideologia alemã, I, trad. ital., p. 34). Segundo este ponto de vista, as ideias que dominam numa época histórica são as ideias da classe dominante: " A classe que tem o poder material dominante da sociedade é ao mesmo tempo a que tem o poder espiritual dominante" (Ib., p. 43). Com efeito, tais ideias não são mais que "a expressão ideal das relações materiais dominantes; as relações materiais dominantes tomadas como ideias". A dependência das ideias dominantes da classe dominante surge obliterada ou oculta; em primeiro lugar, devido ao facto de 40 essas próprias ideias serem elaboradas, no interior da classe, pelos "ideólogos activos" cujo objectivo é o de promoverem a ilusão da classe sobre si própria; e em segundo lugar ao facto de que toda a classe que assume o poder deve representar o seu interesse como interesse comum de todos os membros da sociedade, deve assim "dar às próprias ideias a forma da universalidade e representá-las como as únicas racionais e universalmente válidas" (Ib., p. 44). Kant, por exemplo, não fez mais que transformar "os interesses materiais e a vontade condicionada e determinada por relações materiais de produção" da burguesia contemporânea em "autodeterminações puras da livre vontade, da vontade em si e por si", isto é: em "determinações ideológicas puramente conceptuais e em postulados morais" (Ib., trad. ital., III, pp. 189-190). Como se disse, só a estrutura económica da sociedade tem, propriamente, história. A moda desta história, e portanto da história geral, é constituída pela relação entre as forças produtivas e as relações de produção (as relações de propriedade). Quando as forças produtivas alcançam um certo grau de desenvolvimento entram em contradição com as relações de produção existentes, que deixam por isso de ser condições de desenvolvimento para se transformarem em condições de estagnação. Entra-se então numa época de revolução social. No entanto, uma formação social só se extingue quando se tiverem desenvolvido todas as forças produtivas a que pode dar lugar; as novas relações de produção entram em acção quando se encontram amadurecidas, no seio da velha sociedade, as condições materiais da sua existência. Marx admite a este propósito o progresso incessante da história: "Os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno, podem ser designados como épocas que marcam o progresso da formação económica da sociedade" (Para a crítica da economia política, Pref., trad. ital., p. 11). Marx admite no entanto que este progresso se encontra dirigido para uma forma final e
conclusiva: "As relações de produção burguesas são a última forma antagónica do processo de produção social... Mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para a solução deste 41 antagonismo. Com esta formação social encerra-se portanto a pré-história da sociedade humana" (Ib., pp. 11-12). Mas na verdade, segundo este ponto de vista, depois da "préhistória" não será a "história" o progresso futuro: uma vez que deixa de existir a única mola para tal: a contradição entre as forças produtivas e as relações económicas. § 609. MARX: O COMUNISMO Se o homem, como ser social, é constituído por relações de produção, a sua natureza e o seu desenvolvimento dependem das formas assumidas por tais relações. É evidente que, segundo este ponto de vista, o progresso da natureza humana não é um problema puramente individual ou privado, resolúvel por via de um aperfeiçoamento espiritual, através da moral, da religião ou da filosofia; mas é um problema social, resolúvel apenas através da transformação da estrutura económica da sociedade. Marx acentuou com frequência as características daquilo que é hoje um dos teoremas mais estruturados no campo da psicologia social: a intima conexão da personalidade humana com o ambiente social. Um indivíduo cujas circunstâncias apenas permitem desenvolver uma qualidade à custa de outras terá um desenvolvimento unilateral e mutilado. Um indivíduo que vive num ambiente restrito e imóvel apenas será capaz - caso sinta a necessidade de pensar - de um pensamento abstracto que lhe servirá de evasão ao seu desolado quotidiano. Um indivíduo que tenha com o mundo relações múltiplas e activas será, pelo contrário, capaz de um pensamento universal e vivo. Em qualquer caso, afirma Marx, as "prédicas moralizantes" não servem para nada (Ideologia alemã, 111, trad, ital., p. 255 e segs.). O comunismo apresenta-se então como a única solução para o problema do homem porque é a única solução que faz depender a realização de uma personalidade humana, unificada e livre, de uma transformação da estrutura social que condiciona a própria personalidade. A sociedade capitalista, originada pela divisão do trabalho, que dividiu distintamente capital e trabalho, produz uma dilaceração interna na personalidade 42 humana. Com efeito, nesta sociedade as forças produtivas são completamente separadas dos indivíduos e constituem um mundo independente, o da propriedade privada. A estas forças se contrapõe a maioria dos indivíduos que, privados de qualquer conteúdo de vida, se tornaram indivíduos abstractos, ainda que colocados na situação de se aliarem entre si. O trabalho, que é o único modo em que os indivíduos podem ainda querer entrar em relação com as forças produtivas, deixou de lhes permitir a ilusão de poderem manifestarse pessoalmente e limita-se a dar-lhes o sustento a troco de uma vida sem a menor alegria (Ib., 1, p. 65). O comunismo, conseguindo a supressão da propriedade privada, do capital, elimina a frustração que este veio trazer à estrutura social e à personalidade dos indivíduos. O trabalho passa então a ser actividade autónoma, pessoal do homem, o instrumento da solidariedade humana. Por isso o comunismo surge como "o integral e consciente regresso do homem a si próprio, como homem social, como homem humano" (Manuscritos económico-filosóficos de 1844, 111, trad. ital., p. 258). Por um lado, suprime a oposição entre a natureza e o homem, resolvendo a favor desta toda a complexidade das forças naturais; por outro, suprime a oposição entre os homens, instituindo a solidariedade no trabalho comum. Assim realiza a naturalização do homem e a humanização da natureza
(Ib., p. 260). Esta realização será possível de forma gradual. Numa primeira fase da sociedade comunista salda, após um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista, será inevitável uma certa desigualdade entre os homens, em particular uma desigual retribuição com base no trabalho prestado. Só numa fase elevada da sociedade comunista, com o desaparecimento da divisão do trabalho e por conseguinte do contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual e quando o trabalho se tornar não apenas um meio de vida, mas uma necessidade da vida e as forças produtivas tiverem alcançado o seu desenvolvimento, a sociedade, afirma Marx, "poderá escrever na sua própria bandeira: A cada um segundo a sua capacidade, e a cada um segundo as próprias necessidades" (Para a crítica do programa de Gotha, 1875). 43 antagonismo. Com esta formação social encerra-se portanto a pré-história da sociedade humana" (ib., pp. 11-12). Mas na verdade, segundo este ponto de vista, depois da "préhistória" não será a "história" o progresso futuro: uma vez que deixa de existir a única mola para tal: a contradição entre as forças produtivas e as relações económicas. § 609. O COMUNISMO Se o homem, como ser social, é constituído por relações de produção, a sua natureza e o seu desenvolvimento dependem das formas assumidas por tais relações. É evidente que, segundo este ponto de vista, o progresso da natureza humana não é um problema puramente individual ou privado, resolúvel por via de um aperfeiçoamento espiritual, através da moral, da religião ou da filosofia; mas é um problema social, resolúvel apenas através da transformação da estrutura económica da sociedade. Marx acentuou com frequência as características daquilo que é hoje um dos teoremas mais estruturados no campo da psicologia social: a Intima conexão da personalidade humana com o ambiente social. Um indivíduo cujas circunstâncias apenas permitem desenvolver uma qualidade à custa de outras terá um desenvolvimento unilateral e mutilado. Um indivíduo que vive num ambiente restrito e imóvel apenas será capaz - caso sinta a necessidade de pensar - de um pensamento abstracto que lhe servirá de evasão ao seu desolado quotidiano. Um indivíduo que tenha com o mundo relações múltiplas e activas será, pelo contrário, capaz de um pensamento universal e vivo. Em qualquer caso, afirma Marx, as "prédicas moralizantes" não servem para nada (Ideologia alemã, III, trad, ital., p. 255 e segs.). O comunismo apresenta-se então como a única solução para o problema do homem porque é a única solução que faz depender a realização de uma personalidade humana, unificada e livre, de uma transformação da estrutura social que condiciona a própria personalidade. A sociedade capitalista, originada pela divisão do trabalho, que dividiu distintamente capital e trabalho, produz uma dilaceração interna na personalidade 42 humana. Com efeito, nesta sociedade as forças produtivas são completamente separadas dos indivíduos e constituem um mundo independente, o da propriedade privada. A estas forças se contrapõe a maioria dos indivíduos que, privados de qualquer conteúdo de vida, se tornaram indivíduos abstractos, ainda que colocados na situação de se aliarem entre si. O trabalho, que é o único modo em que os indivíduos podem ainda querer entrar em relação com as forças produtivas, deixou de lhes permitir a ilusão de poderem manifestarse pessoalmente e limita-se a dar-lhes o sustento a troco de uma vida sem a menor alegria (Ib., 1, p. 65). O comunismo, conseguindo a supressão da propriedade privada, do capital, elimina a frustração que este veio trazer à estrutura social e à personalidade dos
indivíduos. O trabalho passa então a ser actividade autónoma, pessoal do homem, o instrumento da solidariedade humana. Por isso o comunismo surge como "o integral e consciente regresso do homem a si próprio, como homem social, como homem humano" (Manuscritos económico-filosóficos de 1844, 111, trad. ital., p. 258). Por um lado, suprime a oposição entre a natureza e o homem, resolvendo a favor desta toda a complexidade das forças naturais; por outro, suprime a oposição entre os homens, instituindo a solidariedade no trabalho comum. Assim realiza a naturalização do homem e a humanização da natureza (Ib., p. 260). Esta realização será possível de forma gradual. Numa primeira fase da sociedade comunista saída, após um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista, será inevitável uma certa desigualdade entre os homens, em particular uma desigual retribuição com base no trabalho prestado. Só numa fase elevada da sociedade comunista, com o desaparecimento da divisão do trabalho e por conseguinte do contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual e quando o trabalho se tornar não apenas um meio de vida, mas uma necessidade da vida e as forças produtivas tiverem alcançado o seu desenvolvimento, a sociedade, afirma Marx, "poderá escrever na sua própria bandeira: A cada um segundo a sua capacidade, e a cada um segundo as próprias necessidades" (Para a crítica do programa de Gotha, 1875). 43 Mas deste comunismo, o autêntico, Marx distingue o comunismo grosseiro que não consiste na abolição da propriedade privada mas na atribuição da propriedade privada à comunidade e na redução de todos os homens a proletários. Este comunismo é, segundo Marx, "uma manifestação de inferioridade da propriedade privada que pretende colocar-se como comunidade positiva" (Manuscritos económico-filosóficos de 1844, 111, trad. ital., p. 257). Trata-se de uma expressão daquilo que hoje, depois de Nietzsche e Scheler, chamamos ressentimento. Afirma Marx: "Este comunismo na medida em que nega a personalidade do homem, é apenas a expressão consequente da propriedade privada que é a sua negação. A inveja geral, que se torna uma força, é apenas a forma oculta onde a cupidez se instala e se satisfaz duma outra forma: o pensamento de toda a propriedade privada como tal transforma-se, pelo menos em relação à propriedade mais rica, em inveja e desejo ardente de nivelamento" (Ib., p. 256). Faz parte deste comunismo a substituição do matrimónio pela comunhão de mulheres, uma vez que a mulher passa a ser propriedade comum; a este aspecto ilustra o carácter degradante desta forma de comunismo porque é precisamente na relação entre o homem e a mulher que melhor se manifesta o grau em que o homem realizou a sua própria humanidade (Ib., p. 257). Mas, como se disse, o aparecimento, a afirmação e a vitória do comunismo estão condicionados pelo desenvolvimento económico. O comunismo não pode ser um dever ser, um ideal, uma utopia que se contraponha à realidade histórica e pretenda dirigi-Ia no sentido que pretende. Marx afirmou energicamente que a classe operária "não tem que realizar qualquer ideal" (A guerra civil em França, trad. ital., Roma, 1907, p. 47). E no Manifesto do partido comunista escreveu: "Os enunciados teóricos dos comunistas não se baseiam em ideias ou princípios que tenham sido inventados ou descobertos por este ou por aquele reformador do mundo. Eles não são mais que expressões gerais das relações efectivas de uma luta de classes já existentes, de um movimento histórico que se vai desenvolvendo sob os nossos olhos". O fim da sociedade capitalista e o advento do comunismo dever-se-ão ao desenvolvimento inevitável da própria 44 economia capitalista; a qual, sendo por um lado incapaz de assegurar a existência dos trabalhadores assalariados, por outro reúne esses mesmos trabalhadores na grande
indústria e com isso cria uma força que está destinada a destruí-Ia. É a própria burguesia que produz os seus coveiros. Esta eliminação total do elemento ético, este submeter a realização da exigência humana do comunismo apenas ao desenvolvimento da estrutura económica da sociedade capitalista, é a consequência inevitável do materialismo histórico; que seria totalmente negado quando se admitisse que uma qualquer ideologia (entre elas, o comunismo) pudesse nascer e realizar-se independentemente da estrutura económica da sociedade ou contra ela. Mas, em razão dessa exigência, toda a validade do comunismo como ideologia política depende da demonstração da tese de que tal será o desembocar inevitável do desenvolvimento da sociedade capitalista; e compreende-se porque é que Marx se sentia permanentemente empenhado na demonstração desta tese, a que dedicou a sua obra principal, O Capital. Esta obra, na qual Marx reuniu e levou a cabo todas as suas investigações no campo da economia, não pode ser compreendida isoladamente; pressupõe a filosofia da história de Marx, sem todavia ser dela dependente quanto à sua estrutura e aos seus pontos principais. O materialismo histórico afirma que nenhuma mutação social se verifica por acção de uma ideologia ou de um ideal utópico porque a ideologia não faz mais que exprimir relações sociais historicamente determinadas. O Capital pretende demonstrar que o comunismo exprime as relações sociais que se vão formando na sociedade capitalista e que portanto ele será o desembocar inevitável do desenvolvimento dessa sociedade. Como é evidente, Marx parte do principio de Adam Smith e de Ricardo de que o valor de um bem qualquer é determinado pela quantidade de trabalho necessário à sua produção. Por essa razão, se o capitalista correspondesse ao assalariado com o produto total do seu trabalho, não teria para si qualquer margem de lucro. O que acontece é que ele compra ao assalariado a força de trabalho, pagando-a, como se paga outra qualquer mercadoria, com base na quantidade de trabalho que chega para produzi-Ia, ou seja, com 45 base naquilo que é necessário para o sustento do operário e da sua família (que representa a força de trabalho futura). Deste modo se torna possível o fenómeno da mais-valia, que é aquela parte do valor produzido pelo trabalho assalariado de que o capitalista se apropria. E a mais valia torna possível a acumulação capitalista, a produção do dinheiro através do dinheiro, que é o fenómeno fundamental da sociedade burguesa (0 Capital, 1, 3). Marx defende esta tese apresentando uma rica e minuciosa análise do nascimento da moderna sociedade capitalista. E dirige esta análise no senti- do de demonstrar as duas teses fundamentais que deveriam justificar o comunismo do ponto de vista do materialismo histórico: a lei da acumulação capitalista, pela qual a riqueza tenderia a concentrar-se em poucas mãos; e a lei da miséria progressiva do proletariado, pela qual, correspondentemente à acumulação do capital, se verificaria o nivelamento na miséria de todas as classes produtivas; as quais, em certa altura, estariam prontas e preparadas para a expropriação da exígua minoria capitalista e para assumir todas as funções e poderes sociais. Deste modo a produção capitalista, sendo negação daquela propriedade privada que é corolário do trabalho independente, a certa altura terá de produzir a sua própria negação. A sociedade capitalista será destruída pela sua própria contradição interna: pela contradição das forças produtivas que, depois de haverem procurado desenvolver as suas máximas possibilidades e alcançar o máximo incremento do capital, entram em conflito com esse objectivo e rompem com o invólucro capitalista, levando à expropriação dos expropriadores. "A produção capitalista, afirma Marx, (Cap. 1, 24, § 7) gera a sua própria negação, com a fatalidade que preside aos fenómenos da natureza".
A discussão destas teses económicas, que foram contrariadas pelo ulterior desenvolvimento da economia politica, excede os limites da presente obra. Basta ter assinalado essa característica para ficar esclarecida a relação entre a filosofia e a doutrina económica marxista, relação que é fundamental para a compreensão da personalidade histórica de Marx. 46 § 610. MARX: A ALIENAÇÃO A condição do homem na sociedade capitalista foi caracterizada por Marx, especialmente nas suas obras de juventude, como alienação. Marx fora buscar este conceito a Hegel que o tinha utilizado nas últimas páginas da Fenomenologia para ilustrar o processo pelo qual a Autoconsciência coloca o objecto, ou seja, se coloca a si própria como objecto e assim se aliena de si para em seguida regressar a si própria. "A alienação da Autoconsciência, afirma Hegel, coloca, deste modo, a coisidade: dai que essa alienação tenha um significado não apenas negativo mas também positivo e isto não só para nós ou em si mas também para a Autoconsciência. Para esta, o negativo do objecto ou o auto-limitar-se deste último tem um significado positivo, porque sabe qual a nulidade do objecto uma vez que, por um lado, se aliena a si próprio; com efeito, nesta alienação coloca-se a si própria como objecto, ou, em razão da incindível unidade do ser-por-si coloca o objecto como se fosse ela própria. E por outro lado, existe também o outro momento pelo qual ela se limitou e chamou em si mesma essa alienação e objectividade, permanecendo portanto dominada por si no seu ser-outro como tal. Este é o momento da consciência que é, por isso, a totalidade dos seus momentos" (Fenomenologia do espírito, VIII, ed. Glockner, pp. 602-03). Nas mãos de Marx esta noção transforma-se completamente. Em primeiro lugar, o sujeito da alienação não é a autoconsciência que, segundo Marx, é um conceito abstracto e fictício, mas o homem, o homem real ou existente; e a alienação não é figura especulativa mas a condição histórica em que o homem acaba por se descobrir nos confrontos da propriedade privada e dos meios de produção. A propriedade privada, com efeito, transforma os meios de produção de simples instrumentos e materiais da actividade produtiva humana, em fins a que fica subordinado o próprio homem. "Não é o operário que utiliza os meios de produção, afirma Marx, são os meios de produção que utilizam o operário; em lugar de surgirem consumidos por ele como elementos materiais da sua actividade produtiva, são eles que o consomem como fermento do seu processo vital; e o processo vi47 tal do capital consiste no seu movimento de valor que se valoriza a si próprio" (Capital, 1, cap. lX, trad. ital., p. 339). Por outras palavras, a propriedade privada aliena o homem de si porque o transforma de fim em meio, de pessoa em instrumento de um processo impessoal que o domina sem olhar às suas exigências e às suas necessidades. "A produção produz o homem não só como mercadoria, a mercadoria humana, o homem com o carácter de mercadoria, mas produ-lo, de acordo com este carácter, como um ser desumano quer espiritual quer fisicamente" (Manuscritos económico-filosóficos de 1844, trad. ital., p. 242). A característica mais grave desta alienação, aquela em que Marx mais insistiu, especialmente nas obras de juventude, é a cisão ou a dilaceração que ela produz no próprio ser humano. Como vimos, o homem é constituído por relações de produção que são relações com a natureza e com os outros homens; estas relações, na forma que assumem por efeito da propriedade privada, tendem a cindir-se e deste modo a cindirem o homem da natureza e dos outros homens, a afastá-lo das suas relações com eles e, por conseguinte, consigo próprio. "A propriedade privada, afirma Marx, é apenas a expressão sensível do
facto de o homem se tornar objectivo em relação a si próprio, um objecto estranho e desumano, sendo a sua manifestação de vida a sua expropriação de vida e a sua realização a sua privação, portanto uma realidade estranha" Ib., 111, trad. ital., p. 261). É este o erro, segundo Marx, de toda a civilização moderna: que "separa do homem o seu ser objectivo como se fosse um ser meramente exterior ou material; e não assumindo o conteúdo do homem como sua verdadeira realidade" (Crítica da filosofia hegeliana do direito, trad. ital., p. 114). Ao contrário, o comunismo na medida em que é "a efectiva supressão da propriedade privada como auto-alienação do homem", é "a real apropriação da essência humana por parte do homem e pelo homem" e portanto "a verdadeira solução do contraste entre o homem e a natureza e os outros homens; a verdadeira solução do conflito entre a existência e a essência, entre objectivação e afirmação objectiva, entre liberdade e necessidade, entre o indivíduo e o género" (Ib., p. 258). 48 KIERKEGAARD MARX Assim entendida a alienação, como condição histórica do homem na sociedade capitalista, enfraquecendo e obliterando o sentido concreto da relação do homem com o objecto (natureza e sociedade), determina a noção de uma "essência humana" universal e abstracta, privada de qualquer relação com o próprio objecto: é a noção de autoconsciência, espirito ou consciência, que Hegel colocou como único sujeito da história e que a crítica anti-hegeliana, segundo Marx, manteve intacta continuando a falar da essência do homem e recusando-se a reconhecer o ser do homem nas relações objectivas que o constituem. Esta consequência da alienação é por sua vez designada por Marx como "alienação religiosa" (Ib., p. 259); e na Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx considera, sob este aspecto, a religião como imagem de um'"mundo invertido": ou seja, de um mundo em que no lugar do homem real se colocou a essência abstracta do homem. "A religião, afirma Marx, é a teoria geral deste mundo às avessas, o seu compêndio enciclopédico, a sua lógica na expressão popular,.o seu point-dhonneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu completamento solene, o fundamento universal da consolação e da justificação do mesmo". Sob este último aspecto a religião é "o ópio do povo", "a felicidade ilusória do povo". Mas a alienação religiosa é, segundo Marx, própria de todas as filosofias idealistas porque nestas, como na religião, faz-se do "mundo empírico um mundo simplesmente pensado ou representado, que se contrapõe aos homens como coisa estranha" (Ideologia alemã, 111, trad. ital., p. 151). É também própria do chamado "estado politico" no qual a essência do homem como cidadão é contraposta à sua vida material. No estado político o homem, afirma Marx, "leva uma dupla vida, uma vida no céu outra na terra, a vida da comunidade política onde ele se considera natureza social e a vida na sociedade civil onde ele actua como homem privado, considerando os outros homens como meios, degradando-se a si próprio até transformar.,se num instrumento e num joguete de forças que lhe são estranhas". Deste modo o homem "é subtraído à vida real e individual e surge transformado numa universalidade irreal": consequência da própria alienação (A questão judaica, 1). 49 Em qualquer caso, portanto, a alienação consiste para o homem na obliteração das suas relações objectivas e no seu automistificar-se como uma essência universal e espiritual. Segundo este ponto de vista, a alienação de que fala Hegel é, se se pode dizer, uma alienação na alienação. Marx reconhece a Hegel o mérito de haver apreendido a essência
do trabalho como processo de objectivação e de ter concebido o homem como "resultado do próprio trabalho" (Manuscritos económico-políticos de 1844, 111, trad. ital., p. 289). Mas Hegel concebeu também o homem como autoconsciência, a alienação do homem como alienação da autoconsciência e a recuperação do ser alienado como uma incorporação na autoconsciência (Ib., pp. 299-300). Esta não é mais que uma fórmula mistificada para exprimir a alienação: mistificada a ponto de ela própria pressupor a alienação que pressupõe o afastamento do homem da sua natureza objectiva. "Parece de todo óbvio, afirma Marx, que um ser vivo, natural, munido e dotado de forças essenciais objectivas, isto é, materiais, se desaposse dos objectos naturais e reais do seu ser, como também que a sua autoalienação seja o colocar-se em um mundo real mas tendo a forma de exterioridade, portanto, não pertencente ao seu ser, e predominantemente o objectivo. Não existe nisto nada de inconcebível ou misterioso; o contrário seria, sim, um mistério. Mas é igualmente claro que uma autoconsciência, ou seja, a sua alienação, possa apenas colocar a coisidade, ou seja, uma coisa abstracta, uma coisa de abstracção e nenhuma coisa real" (Ib., p. 301). Como a alienação autêntica não é uma figura de pensamento mas uma situação histórica, também a supressão da alienação é o regresso do ser homem à sua objectividade natural, ou melhor, a uma objectividade que é ao mesmo tempo natural e humana (Ib., p. 303). § 611. MARX: A DIALÉCTICA A necessidade da passagem da sociedade capitalista à sociedade comunista é, segundo Marx, de natureza dialéctica: é a própria dialéctica. A noção de dialéctica é, juntamente com a de alienação, a maior herança que Marx aceitou de 50 Hegel. Mas num e noutro caso o sentido das noções hegelianas foi por Marx modificado. No que se refere à dialéctica, o prefácio à segunda edição (1873) de O Capital contém o reconhecimento explícito daquilo que Marx devia a Hegel e daquilo que não devia. "Para Hegel, o processo do pensamento, que ele transforma em sujeito independente com o nome de Ideia, é o demiurgo do real, que constitui apenas o fenómeno externo da Ideia ou processo do pensamento. Para mim, pelo contrário, o elemento ideal não é mais que o elemento material transferido e traduzido no cérebro dos homens... A mistificação a que está submetida a dialéctica nas mãos de Hegel não impede de forma alguma que seja ele o primeiro a expor de forma ampla e racional as formas gerais do movimento da própria dialéctica. Nele, encontra-se invertida. É preciso colocá-la ao contrário para se descobrir a substância racional entre o que é juízo místico". Na sua forma racional, a dialéctica inclui "dentro da compreensão positiva do estado de coisas existente, também a compreensão do mesmo, a compreensão do seu necessário ocaso, porque concebe todas as formas que possam surgir no fluir do movimento e por conseguinte também o seu lado em transição, porque nada a pode deter e ela é crítica e revolucionária por excelência". Daqui resulta que para Marx: 1) a dialéctica é um método para compreender o movimento real das coisas, não as abstracções intelectuais; 2) este modo consiste em compreender não apenas o estado das coisas "existentes" mas também a sua "negação"; 3) a conclusão a que este método chega, o seu resultado, é a "necessidade", ou seja, a inevitabilidade, da negação, por conseguinte, a destruição do estado de coisas existente. Noutros textos, Marx reconhece a Hegel o mérito de "dar inicio à oposição das determinações" (Crítica da filosofia hegeliana do direito, trad. ital., p. 77); apesar de reivindicar para O Capital o mérito de ser a "primeira tentativa de aplicação do método dialéctico à economia politica" e caracterizar este método como o que mostra a "Intima
correlação das relações sociais" (Id., pp. 45-46), Marx sustenta que o método dialéctico constitui a lei do desenvolvimento da realidade histórica, ou seja, da sociedade na sua estrutura eco51 nómica; e que esta lei exprime a inevitabilidade da passagem da sociedade capitalista à sociedade comunista, por conseguinte, da alienação humana que é inerente à primeira à supressão da alienação que se há-de verificar na segunda. Mas a Marx mantém-se estranho um dos pontos principais da dialéctica hegeliana: aquele que nos diz que as suas fases, não sendo realidades empíricas ou históricas, mas momentos de um processo externo que é o da Autoconsciência, são eternas como essa mesma Autoconsciência. A sua "superação" não é, para Hegel, a sua destruição empírica e histórica ou especulativa, mas antes a sua manutenção na unidade conciliada do conjunto. Dizia Hegel: "0 verdadeiro é o devir de si próprio, o círculo que pressupõe e tem desde o inicio o seu fim como fim próprio e que só mediante a actuação é efectivo" (Fenomenologia, pref., ed. Glockner, p. 23); e neste sentido afirmava que "o verdadeiro é o todo" e que "do Absoluto se deve afirmar que ele é essencialmente resultado e que só no fim é o que é em verdade" (Ib., p. 24). No fim, no resultado, é que não só se "superam" como também se conservam os momentos precedentes: que constituem "o todo" a mesmo título, ou seja, com a mesma necessidade, que os fins. Na doutrina de Marx, obviamente, nada existe de semelhante: como nada existe que se assemelhe à "unidade" ou "síntese" dos opostos em que Hegel distingue o terceiro e conclusivo momento da dialéctica. Aquilo que verdadeiramente permanece da dialéctica hegeliana na interpretação de Marx é apenas a necessidade da passagem de uma certa fase à sua negação; e não a exigência genérica de compreender todas as fases ou determinações na sua correlação com fases ou determinações diversas e eventualmente negativas em relação a elas. Esta última é uma exigência metodológica válida à qual dificilmente poderá ser aplicado o termo "dialéctica" que é rico, em toda a sua longa história, de muitas outras determinações. A herança mais específica que Marx recebeu de Hegel pode reconhecer-se no conceito de necessidade da história, isto é, na inevitabilidade do seu fim que nega a sociedade capitalista e se mostra desalienante. Trata-se de uma herança bastante forte e cujo peso não foi diminuído pelas 52 "alterações" que Marx inseriu na dialéctica hegeliana. Esta herança foi aceite voluntariamente pelos movimentos políticos que se inspiraram no marxismo porque se revelou dotada de notável força pragmática como mito da inevitabilidade do comunismo. Segundo o ponto de vista conceptual, pode dizer-se, todavia, que é de certo modo estranha à proposição fundamental de Marx: que, como se viu, sempre sustentou que o homem e a história são produto da liberdade com que o homem se constrói a si próprio, e que no desaguar da história viu a afirmação definitiva da liberdade humana. § 612. ENGELS Marx tinha chamado à sua filosofia "materialismo" para opor ao idealismo de Hegel, mas o termo não tinha qualquer referência às correntes positivistas que começavam a prevalecer na filosofia contemporânea.
Foi Engels quem procurou relacionar o marxismo com o positivismo. Engels nasceu a 28 de Novembro de 1820 em Barmen na Alemanha e morreu em Londres a 5 de Agosto de 1895. Durante quarenta anos foi amigo e colaborador de Marx. A obra principal de Engels é o Anti-Dühring (1878) dirigida contra o filósofo positivista Dühring. Mas ele é também autor, além de numerosos escritos histórico-políticos, de um livro sobre Féuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1888) e de uma Dialéctica da natureza, publicada postumamente em 1925. Para Marx a dialéctica é um método para interpretar a sociedade e a história; para Engels é, em primeiro lugar, um método para interpretar a natureza. A preocupação dominante de Engels é a de enquadrar o marxismo nas concepções da ciência positivista do seu tempo. "A dialéctica é para a ciência natural moderna a forma de pensamento mais importante, porque só ela oferece as analogias e com isso os métodos para compreender os processos do desenvolvimento que se verificam na natureza, os nexos gerais, as passagens de um campo de investigação a outro" (Dialéctica da natureza, trad. ital., p. 39). No entanto as leis da dialéctica 53 devem ser extraídas "por abstracção" quer da história, quer da natureza ou da sociedade humana. São fundamentalmente três: 1) a lei da conversão da quantidade em qualidade e vice-versa; 2) a lei da compenetração dos opostos; 3) a lei da negação da negação. "Todas estas três leis, afirma Engels, foram desenvolvidas por Hegel nas suas formas idealistas, como puras leis do pensamento: a primeira na primeira parte da lógica, na teoria do ser; a segunda ocupa toda a segunda, e de longe a mais importante parte da sua lógica, a teoria da essência; a terceira, finalmente, figura como lei fundamental para a construção de todo o sistema" Ib., p. 56). Estas leis são ilustradas por Engels com exemplos tirados das ciências elementares; exemplos baseados em analogias ou imagens superficiais (por exemplo, a semente nega-se transformando-se em planta que por sua vez produz a semente, negação da negação). No que se refere à interpretação dos opostos, um exemplo será a relação entre atracção e repulsa pelas quais a dialéctica científica poderá demonstrar "que todas as oposições polares são condicionadas pelo jogo alternado dos dois pólos opostos um sobre o outro, que a separação e a oposição dos pólos subsiste apenas pelo recíproco pertencer-se, na sua união, e que vice-versa a sua união pode existir apenas na sua separação, a sua relação na oposição" Ib., p. 66). E assim por diante. Engels partilha das previsões de alguns cientistas quanto ao fim do universo; mas declara a sua certeza de que "a matéria **o!m todas as suas mutações" permanece eternamente a mesma, que nenhum dos seus atributos alguma vez poderá perder-se, uma vez que terá sempre que criar, noutro tempo e noutro lugar,'"o seu mais alto fruto, o espírito pensante, em virtude dessa mesma necessidade férrea que levará ao seu desaparecimento da terra" Ib., p. 35) - uma certeza consoladora na verdade: mas mais "mística" que "materialista" . Segundo o ponto de vista do materialismo de Engels, também o materialismo histórico muda de fisionomia. A formação das relações de produção, das estruturas sociais e das superstruturas ideológicas, que para Marx eram o produto da actividade humana autocondicionando-se, para Engels passam a ser produtos naturais, determinados por uma 54 dialéctica materialista. E a inserção do homem em tais relações e a sua capacidade de transformá-los activamente tornam-se um transbordar da "praxis" histórica, uma reacção da consciência humana às condições materiais, inversa da acção desta sobre aquela. É
evidente que este transbordar da praxis se torna necessário para conceber as relações económicas como naturalisticamente determinadas e por conseguinte independentes do homem: a actividade do homem seria a correcção ou a transformação de tais relações. Mas para Marx as relações de produção constituem o homem, a sua personalidade concreta, e exprimem assim (como se viu) a actividade autocondicionante do próprio homem. A sua transformação e o seu desenvolvimento não dependem desse transbordar da pracis mas da própria praxis: é inerente ao seu intrínseco autocondicionamento. A doutrina do materialismo histórico que, pelo escasso conhecimento dos escritos filosóficos de Marx (que permanecem em parte inéditos) foi apresentada habitualmente como obra colectiva de Marx e Engels, surge distinta na formulação que Marx lhe deu e na interpretação positivista que Engels procurou dar-lhe o que limita o seu significado originário e a sua força. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 605. A edição principal das obras de Marx é a Historisch-kritische Gesamtausgabe do Marx-Engels-Institut de Moscovo, 1927 e segs. A tradução italiana completa está editada em "Clássici dei marxismo", Ed. Rinascita, Roma, 1950 e segs. e é citada no texto. K. V0RI@ÃNDER, K M., Leipzig, 1929 (trad. ital., Roma, 1946); A. CORNU, K. M., Paris, 1934; K. M. et Friedrich Engels, Paris, 1955; B. NICOLAJEVSKI e O. MAENcHENHELFEN, K. M., trad. franc., Paris, 1937; G. PISCHEL, M. Giovane, Milão, 1948; R. SCI---1LESINGER, M., Histime and Curs, Londres, 1950 (trad. ital., Milão, 1961); DELLA VOLPE, M. e lo stato moderno rappresentativo, Bolonha, 1947; ld., Rousseau e M., Roma, 1957; J. Y. CALVEZ, Lapensée de K. M., Paris, 1956. § 606. Sobre vários aspectos do pensamento de Marx: H. MARCUSE, Reason and Revolution, New York, 194 1; Marxismusstudien, 1, 3, Tubingen,1954,1957. § 608. H. LEFEBVRE, A Ia lumière du materialisme dialectique, Paris, 1947; Id., Le materialisme dialectique, Paris, 195 1. 55 § 609. J. ROBINSON, An Essay in Marxián Economics, Londres, 1942; Guilheneuf, La theorie marxiste de Ia valeur, Paris, 1949. § 610. H. BARTOLI, La doctrine economique et sociale de K. M., Paris, 1950; M. Rossi, in "Societa", 1957, pp. 639-685; e in "Opinioni", 1957, pp. 17-42. § 611. N. BOBBIO, in " Studi sulla dialetica", Turim, 195 8, pp. 218-238. § 612. Os trabalhos de EngeIs foram publicados juntamente com os de Marx na citada Historisch-kritische Gesamtausgabe do Marx-Engels-Institut de Moscovo. M. ADLER, E. aIs Denker, Berlim, 182 1; G. MAYER, F. T., 2 vols., La Haye, 1934. 56 X
O REGRESSO ROMâNTICO À TRADIÇÃO § 613. A SEGUNDA FASE DO ROMANTISMO: REVELAÇÃO E TRADIÇÃO A palavra de ordem do romantismo é a identidade entre finito e infinito. Esta identidade aparece expressa nas filosofias românticas de vários modos: como identidade do Eu e do não eu, do Espírito e da natureza, do racional e do real, do ideal e do real, de Deus e do mundo: todos estes pares de termos têm praticamente o mesmo significado. Em virtude desta identidade, o finito (o não-eu, a natureza, o real, o mundo) surge como realidade ou existência do Infinito (do Eu, do Espírito, do Racional, do Ideal, de Deus); por conseguinte, se por um lado o finito não tem realidade fora do infinito e nada é sem ele, por outro, o próprio Infinito (a menos que não seja concebido como "falso" infinito) não tem realidade fora do finito. Do ponto de vista religioso essa concepção traduz-se num imanentismo rigoroso; ainda do ponto de vista religioso é um panteísmo. Podemos ver tal posição no primeiro Fichte, nos Fragmentos de Schlegel, no primeiro Schelling e em Hegel, além de Novalis, Sclileiermacher, etc. Mas as filosofias românticas apresentam uma outra concepção da relação entre finito e infinito: uma concepção pe57 Ia qual o Infinito acaba de certa forma por distinguir-se do finito ainda que manifestandose ou revelando-se através dele. Neste caso, o finito (o mundo, a natureza, história) não é a realidade do infinito mas a sua revelação mais ou menos adequada. Hegel recusou-se constantemente a distinguir a Ideia da sua manifestação, por isso se mantém estranho a esta concepção da relação entre infinito e finito. No entanto, ela verifica-se no segundo Fichte, no segundo Schelling, e no segundo Schlegel; e inspirou as correntes românticas da filosofia europeia de 800. Se o primeiro romantismo era imanentismo e panteísmo, o segundo romantismo, em que prevalece a distinção entre o infinito e a sua manifestação, é transcendentalismo e teismo; admite a transcendência do Infinito em relação ao finito e considera o próprio Infinito como um Absoluto ou Deus que está para além das suas manifestações terrenas. Em alguns autores, como em Schlegel, esta segunda fase do romantismo é acompanhada da aceitação do catolicismo; e nesta forma, com efeito, o romantismo está de acordo fundamentalmente com o pensamento religioso e presta-se para ser adaptado aos fins da apologética religiosa. Como já foi dito, um dos aspectos fundamentais do romantismo é a defesa da tradição. Enquanto que o Iluminismo opunha tradição e historicidade e via na historicidade a critica da tradição, o reconhecimento e a eliminação dos erros e dos preconceitos que a tradição transmite e faz aceitar sem discussão, o romantismo tende a considerar a própria historicidade como tradição, como um processo onde não existem erros, preconceitos ou prejuízos e em razão do qual todos os valores e conquistas humanas se conservam e transmitem com o decorrer do tempo. Este aspecto do romantismo acentua-se no que designámos segunda concepção ou segunda fase do mesmo. Nesta, a história é concebida como manifestação progressiva do Infinito, ou seja, de Deus: por conseguinte não pode existir nela decadência, imperfeição ou erro que não encontre resgate ou correcção na totalidade do processo. 58
§ 614. O TRADICIONALISMO FRANCÊS Com a intervenção do romantismo na cultura francesa, dominada no século XVIII pelo antitradicionalismo iluminista, esboça-se um regresso à tradição que, na sua manifestação mais óbvia e combativa, consiste numa defesa explicita da tradição (tradicionalismo). Arautos da tradição são em França os primeiros românticos: Madame de Stael (1766-1817) que, na sua obra sobre a Alemanha (1813), vê na história humana uma progressiva revelação religiosa, à maneira de Schiller e de Fichte; e Renê de Chauteaubriand (17691848) que, no Génio do Cristianismo (1802), divaga sobre a defesa da tradição ao serviço do catolicismo, assumido como único depositário da tradição autêntica da humanidade. No campo filosófico-político, a defesa da tradição é obra dos chamados pensadores teocratas ou ultramontanistas, de Bonald, de Maistre e Lamennais. Louis de Bonald (1754- 1840) autor de uma Teoria do poder político e religioso na sociedade civilizada (1796) e de uma Legislação primitiva (1802), é contrário igualmente ao sensualismo e ao espiritualismo. Se a natureza do homem não pode ser compreendida a partir dos seus órgãos dos sentidos, também não poderá ser compreendida a partir da consciência. O trabalho do pensamento sobre si próprio surge aos olhos de Bonald como "um trabalho ingrato" e improdutivo que ele lamenta ter escapado à atenção de Tissot (autor de uma famosa obra sobre o Onanismo, 1760). O ponto de partida deve ser a linguagem primitiva que Deus deu ao homem no momento da criação. Esta linguagem, que a tradição conserva de uma geração para outra, e que é o trâmite da revelação divina, desperta na mente dos homens a verdade original que Deus ai colocou. Como a linguagem é o intermediário entre a verdade e o homem, assim o estado é o intermediário entre o povo e Deus; e a sua origem é também divina. De Deus deriva a soberania que é atributo do estado; e de Bonald substitui a teoria iluminista dos direitos do homem pela teoria dos deveres do homem perante Deus e a autoridade que o representa. A função mediadora da linguagem sugere a de Bonald uma espécie de fórmula trinitária que ele aplica em to59 dos os campos; a de causa, meio e efeito. Na cosmologia a causa é Deus, o movimento é o meio, os corpos o efeito. Em política, os termos correspondentes são: rei, ministros, súbditos; na família: pai, mãe, filho. A aplicação desta fórmula à teologia traduz a necessidade de um mediador e portanto de incarnação: Deus está para o Verbo incarnado como o Verbo incarnado está para o homem. A mesma defesa da tradição e daquilo que nela se baseia, a autoridade da Igreja e do estado, encontra-se na obra de Joseph de Maistre (1753-1821). O trabalho mais significativo de de Maistre são os Serões de S. Petersburgo ou o governo temporal da providência (publicado postumamente em 1821). E também autor de outros trabalhos históricos e filosóficos quase todos póstumos (Considerações sobre a história de França, 1797; A Igreja gaulesa, 1821; Ensaio sobre a filosofia de Bacon, '1826; O Papa, 1829; Estudo sobre a soberania, 1870). De Maistre nega ao homem, irremediavelmente marcado pelo pecado original, qualquer capacidade de fazer de si o caminho na direcção à verdade e a uma vida associativa justa e ordenada. Todos os males que recaem sobre o homem são merecidos e justos, porque devidos ao pecado original. O dogma da reversibilidade exige e justifica que por sua vez o justo sofra em lugar do pecador, do mesmo modo que o rico deve pagar pelo pobre. A reversibilidade do pecado e a oração são os únicos meios pelos quais o homem poderá resgatar-se da sua servidão ao mal. Por outras palavras, o homem não pode fazer mais que inclinar-se perante os misteriosos desígnios da providência divina, perante as instituições que sã o instrumentos de tais desígnios: a Igreja e o Estado. Qualquer tentativa por parte do homem para levar
uma vida diversa da que lhe é imposta pela autoridade é-lhe ruinosa. De Maistre considera toda a filosofia do século XVIII uma aberração culposa, e utiliza nos seus confrontos a mesma linguagem que os iluministas tinham adoptado para com a tradição e a política. As doutrinas destes escritores não têm valor senão como indício de uma reafirmação daquele princípio da tradição que o iluminismo tinha impugnado de forma válida. Ao conceito de tradição - que tinha sido criado pelo romantismo alemão - como revelação e realização progressiva da 60 verdade divina no homem, se refere por sua vez Robert de Lamennais (1782-1854). Num Ensaio sobre a indiferença em matéria religiosa (1817-23), Lamennais vê na indiferença religiosa "a doença do século" e reconhece nela a origem da crença na infalibilidade da razão individual. A razão individual (que seria a de Descartes e da filosofia iluminista) Lamennais contrapõe a razão comum, uma espécie de intuição das verdades fundamentais, comum a todos os homens, e que seria o fundamento da própria fé católica. Por outras palavras, para Lamennais, a razão comum é uma tradição universal que tem origem numa revelação primitiva, de que a Igreja não é senão a depositária. Lamennais julgava deste modo conseguir fundamentar de modo inegável a tradição eclesiástica; na realidade tinha retirado à Igreja a prerrogativa de ser a única depositária da tradição autêntica e à própria tradição a possibilidade de se apoiar na razão humana. E com efeito, quando a Igreja em 1834 condenou a sua doutrina, Lamennais, nas Palavras de um crente (1834), fez apelo, em oposição à Igreja, à tradição autêntica, revelando assim o carácter revolucionário do seu princípio. E tornou-se a arauto do advento de uma sociedade religiosa livre, que deveria nascer da queda das tiranias políticas e dos privilégios sociais. Procurou então aprofundar os princípios filosóficos da sua doutrina no Ensaio de uma filosofia (1841-46), onde fez referência ao ontologismo de Rosmini. A ideia suprema do intelecto humano é a ideia do ser infinito e indeterminado, anterior a qualquer especificação. Esta ideia, que é a própria ideia de Deus, entra na formação de toda a realidade. Com efeito, toda a realidade se radica na tríplice natureza, através da qual ela surge como potência que realiza, uma forma que se imprime à realidade criada e finalmente uma vida pela qual todas as coisas são reconduzidas à unidade original. Força, forma, vida, ou seja, poder, inteligência e amor, são os três elementos da essência divina que se integram em todas as coisas criadas, ainda que de forma imperfeita e limitada, constituindo o seu fundamento real. Neste sentido, a verdade, a beleza e o bem sã o a revelação, nas coisas sensíveis e em graus e formas diversas, das potências divinas que constituem a própria natureza do ser. 61 § 615. A IDEOLOGIA O tradicionalismo constitui a primeira reacção violenta contra a filosofia do iluminismo francês. Mesmo nos primeiros decénios de oitocentos, esse tradicionalismo continuou a manifestar uma certa validade e adquiriu o nome de ideologia, que significava "a análise das sensações e das ideias", segundo o modelo de Condillac. No próprio seio da ideologia deveria, no entanto, manifestar-se o regresso à tradição espiritualista. O fundador da ideologia é Destut de Tracy (1754-1836), autor dos Elementos de ideologia, de que apareceram sucessivamente as várias partes: Ideologia (1801); Gramática geral (1803); Lógica (1805); Tratado sobre a vontade (1815); Comentário ao espírito das leis (1819). O principio em que se baseia Tracy é o mesmo de Condillac: a redução de todo o poder espiritual à sensibilidade. A diversidade dos poderes espirituais depende da
diversidade das impressões sensíveis; e Tracy enumera quatro classes de impressões: 1! aquelas que resultam da acção presente dos objectos sobre os órgãos dos sentidos; 2! as que resultam da acção passada dos objectos e consistem numa disposição particular que a mesma deixou nos órgãos; 3! as dos objectos que estão em relação entre si e que podem ser comparadas; 4! as que nascem das necessidades e levam à sua satisfação. Quando a sensibilidade recebe impressões do primeiro género diz-se que sente, simplesmente; quando recebe impressões do segundo género, diz-se que recorda; quando recebe impressões do terceiro género diz-se que julga; quando recebe impressões do quarto género diz-se que deseja ou quer. Deste modo, percepção, memória, juízo, vontade (ou seja, todas as faculdades humanas) ficam reduzidas à pura e simples sensibilidade. Tracy destaca-se de Condillac apenas por afirmar que a ideia do mundo exterior nasce, já não das sensações tácteis, mas das de movimento. É o movimento que, fazendo com que se choque num obstáculo exterior, faz com que se manifeste a existência de objectos externos; e um ser que fosse privado de movimento ou de sensações relativas, poderia conhecer-se a si próprio, mas não a matéria. Como Condillac, Tracy sustenta que os sinais são indispensáveis a qual62 quer processo de análise e por isso inclui a gramática, como estudo dos sinais verbais, na sua enciclopédia ideológica. A ética e a política são ideologia aplicada: não fazem mais que demonstrar a derivação dos sentimentos morais e sociais (ódio ou simpatia) das impressões sensíveis, e portanto das condições do sistema nervoso. Sobre as relações entre a actividade psíquica e o organismo corpóreo, Pierre Cabanis (17571808) escreveu uma obra intitulada Relações entre o físico e o moral do homem, que surge pela primeira vez nas Memórias do Instituto de França (1798-99) e foi depois reeditada em separado (1802). Admitido o pressuposto de Condillac da redução à sensibilidade de todo o poder psíquico, Cabanis passa a considerar a dependência da sensibilidade do sistema nervoso. No homem, como nos animais superiores, a sensibilidade está intimamente ligada ao aparelho nervoso; e não consiste apenas nas impressões produzidas pelos objectos externos mas também nas reacções dos órgãos a essas impressões. Cabanis reconhece na sensibilidade dois momentos distintos, sendo o primeiro passivo e o segundo reactivo; o primeiro consiste numa corrente que vai da periferia ao centro do órgão, o segundo regressa do centro à periferia. Cabanis apresenta também uma série de observações sobre a influência que as condições físicas (idade, sexo, temperamento, doença, clima) exercem sobre a vida intelectual e moral do homem. Estas observações vêm confirmar-lhe a intima dependência da vida psíquica da física, mas não o levam a admitir a redução daquela a esta. Cabanis não é materialista. A póstuma Carta sobre as causas primeiras (1824) apresenta-o como defensor de uma metafísica espiritualista. Nela, a alma é concebida como uma substância que imprime aos órgãos os movimentos de que resultam as suas funções e reúne as partes do corpo, que se decompõem quando ela se separa dele. Nela se repetem também as razões que militam a favor de uma primeira causa inteligente do mundo e de uma interpretação finalista do próprio mundo. 63 § 616. REGRESSO AO ESPIRITUALISMO TRADICIONAL (ECLECTISMO) O caso da Carta póstuma de Cabanis vem demonstrar que a ideologia não torna impossível um regresso às posições do espiritualismo tradicional. Este regresso, todavia, só poderia ser justificado desde que se verificasse um afastamento do rígido sensualismo de Condillac ou então uma nova consideração de consciência, que já Locke tinha admitido (sob o nome
de reflexão ou experiência interna) como fonte de conhecimento humano ao lado das sensações e que se havia tornado o texto fundamental da chamada filosofia do senso comum de Reid e da escola escocesa (§ 482). O gradual reaparecimento do princípio da consciência pode ser observado claramente naquele grupo de pensadores franceses que constituíram o clima filosófico do eclectismo e prepararam o desabrochar do espiritualismo contemporâneo. Pierre Laromiguière (1756-1837) reconhecia já a reflexão ou consciência como uma das formas fundamentais da sensibilidade (ao lado da sensação, do juízo sobre as relações e dos sentimentos morais) e colocava o principio originário da alma não já na sensação, mas antes na atenção, que é a reacção activa da consciência à sensibilidade (Projecto de elementos de metafísica, 1793; Os paradoxos de Condillac, 1805; Lições de filosofia, 1815-18). Professor, como Laromiguière, na Universidade de Paris, Pierre-Paul Royer-Collard (17631843) inspirou o seu ensino na filosofia escocesa do senso comum; e o mesmo fez também Théodore Jouffroy (1796-1842), que traduz para francês as obras de Dugald Stewart (1826) e de Reid (1835). Em Jouffroy é já evidente a influência da metafísica espiritualista de Maine de Biran. Num Ensaio sobre a legitimidade da distinção entre psicologia e fisiologia (1838), define a consciência como o "sentimento que o eu tem de si próprio", definição que se relaciona com Biran e com a escola escocesa, ainda que supere o significado da reflexão lockiana que é a simples advertência que a consciência tem das suas actividades. Jouffroy adverte explicitamente, na sequência de Biran, que o homem não tem apenas consciência das suas manifestações, mas também das causas dessas ma64 MAINE DE BIRAN ROSMINI nifestações, da sua Intima espiritualidade. Amigo pessoal de Biran foi o grande físico André Marie Ampère (1775-1836). Na sua correspondência com Biran (Saint-Hilaire, Philosophie des deux Ampères, 1866), Ampère insiste no carácter activo do conhecimento: as próprias impressões sensíveis são integradas pela memória de impressões precedentes e constituem complexos a que Ampère chama concreções. O sujeito é activo e tem consciência de si próprio na sensação do esforço que, no entanto, não é necessariamente (como sustentava Biran) uma sensação muscular. Ampère aceita a doutrina escocesa de que a sensação é uma intuição imediata do objecto externo; mas para além da realidade fenoménica destes objectos admite uma realidade nuinénica, que Ampère identifica com a que foi descoberta pela física e subjacente aos fenómenos que ela exprime nas suas fórmulas matemáticas. No Ensaio sobre a filosofia das ciências (1834-43), Ampère distingue duas classes fundamentais de ciências: a cosmológica e a noológica, que se dividem ambas em subclasses e famílias. O carácter espiritual do caminho seguido por este cientista revela-se na sua afirmação de que a religião tem o mesmo grau de certeza da ciência. A existência da matéria, da alma e de Deus são hipóteses tão legitimas como as científicas. Mas a figura principal deste tradicionalismo é Victor Cousin (1792-1867) que foi aluno de Laromiguière e professor em Paris na Escola Normal e na Sorbonne. Cousin representa em França um fenómeno análogo àquele que contemporaneamente era representado por Hegel no Estado prussiano. Par de França, conselheiro de Estado, e director da Escola Normal, reitor da Universidade e ministro da Instrução Pública (por pouco tempo), Cousin
foi o representante filosófico oficial da monarquia de Luis Filipe e exerceu uma profunda influência na filosofia do século XIX. O seu chamado eclectismo é na realidade um espiritualismo tradicionalista ao serviço das "boas causas"; e tem como principal objectivo justificar filosoficamente a autoridade religiosa e política. No entanto, Cousin possui mérito notável como historiador da filosofia. Durante três viagens à Alemanha (1807, 1818, 1824-25), teve possibilidade de conhecer Jacobi, Schelling, Goethe e Hegel; e o seu Curso de 65 história da filosofia moderna está impregnado de espírito. hegeliano. Publicou também estudos sobre a metafísica de Aristóteles (1835) e sobre Pascal, e ainda sobre a filosofia antiga e medieval (Fragmentos de filosofia, 1826; Novos Fragmentos filosóficos, 1829), traduziu para francês as obras de Platão e de Proclo e organizou uma edição das obras de Descartes e de alguns escritos inéditos de Maine de Biran. A melhor exposição das ideias de Cousin é o trabalho Do verdadeiro, do belo e do bem que, publicado pela primeira vez como segunda parte do Curso de história da filosofia moderna, foi depois reelaborado e publicado separadamente em numerosas edições. Eis como Cousin esboça o intento da sua filosofia no prefácio à edição de 1835: "A nossa verdadeira doutrina, a nossa verdadeira bandeira é o espiritualismo, essa filosofia tão sólida quanto generosa, que começa em Sócrates e Platão, que o Evangelho propagou pelo mundo, que Descartes integrou nas formas severas do génio moderno, que foi no século XVII uma das glórias e das forças da pátria, que se perdeu com a grandeza nacional no século XVII e que no princípio deste século Royer-Collard veio a reabilitar no ensino público, enquanto Chauteaubriand e Madame de Stael a transportavam para os domínios da literatura e da arte... Esta filosofia ensina a espiritualidade da alma, a liberdade e a responsabilidade das acções humanas, as obrigações morais, a virtude desinteressada, a dignidade da justiça, a beleza da caridade; e para lá dos limites deste mundo, dá-nos a ver um Deus, autor e modelo da humanidade que, depois de a haver criado evidentemente com um desígnio excelente, não mais a abandonará durante o desenrolar misterioso do seu destino. Esta filosofia é aliada natural de todas as boas causas. Dá vida ao sentimento religioso, secunda a verdadeira arte, a poesia digna deste nome, a grande literatura; é o apoio do direito; repele igualmente a demagogia e a tirania; ensina a todos os homens a respeitarem-se e amarem-se e conduz, pouco a pouco, a sociedade humana para a verdadeira república, sonho de todas as almas generosas, e que nos nossos dias, na Europa, só pode ser conseguido pela monarquia constitucional". O método desta filosofia é, segundo Cousin, o da consciên66 cia, ou seja, da observação interior; por isso se identifica com a psicologia. Cousin aceita como verdades e princípios imutáveis as confirmações da consciência, segundo o processo que já tinha sido utilizado pela escola escocesa do senso comum, a que ele faz referência. E para justificar as confirmações da consciência recorre a Deus, identificado com o verdadeiro, com o belo, com o bem, e portanto com o princípio que estabelece na consciência humana as verdades eternas, os princípios imutáveis e os valores absolutos. "Não posso conceber Deus senão pelas suas manifestações e através dos sinais que ele me dá da sua existência, assim como não posso conceber um ser senão pelos seus atributos, uma causa senão pelos seus efeitos, como não posso conhecer-me a mim próprio senão mediante o exercício das minhas faculdades. Retirai-me as minhas faculdades e a consciência que mas confirma, deixarei de existir para mim. O mesmo acontece com Deus: retirai-lhe a natureza e a alma e todo o sinal de Deus desaparece. Portanto só na natureza e
na alma é preciso procurá-lo e só nelas pode ser encontrado" (Du vrai, du beau, et du bien, 1858, pp. 458-59). § 617. MAINE DE BIRAN: O SENTIDO iNTIMO O fruto mais amadurecido desse regresso ao espiritualismo efectuado pelo eclectismo francês do século XIX é a filosofia de François Pierre Maine de Biran (1766-1824). Nela os temas desse espiritualismo surgem tratados com uma maior profundidade teórica e justificados pela sua fecundidade especulativa. Através de Maine de Biran, a filosofia francesa volta a unir-se à tradição que vai de Montaigne e Descartes, a Pascal, a Malebranche, fechando o parêntesis do pensamento iluminista. Maine de Biran só publicou uma obra sobre o hábito (Influências do hábito sobre a faculdade de pensar, 1803) e dois escritos menores (Análise das lições de filosofia de Laromiguière, 1817; Exposição da doutrina filosófica de Leibniz, 1819); mas deixou bastantes manuscritos dos quais Cousin, Naville e outros editores organizaram numerosos volumes. Os seus trabalhos fundamentais, além daquele so67 bre o hábito, são os seguintes: Ensaio sobre os fundamentos da psicologia e sobre as suas relações com o estudo da natureza (1812); Fundamentos da moral e da religião (1818); Exame crítico da filosofia de Bonald (1818); Novos ensaios de antropologia ou da ciência do homem interior (1823-24). A estes trabalhos é preciso acrescentar um conjunto de fragmentos, cartas e discursos que constituem os 14 volumes da edição nacional; e além disso o Diário íntimo, que exprime tipicamente a personalidade filosófica do Biran debruçada sobre a sua própria interioridade. "Desde há muito, afirma Biran no seu último escrito (Anthropologie, in Oeuvres, ed. Naville, 111, 1859, pp. 334-35), que me ocupo do estudo sobre o homem ou antes, do estudo sobre mim próprio; e no fim de uma vida já avançada posso dizer em verdade que nenhum outro homem se viu ou observou na sua caminhada como eu o fiz, ainda que estivesse mais ocupado corri assuntos que ordinariamente conduzem os homens para fora de si próprios. Durante a infância, lembrome que me maravilhava por sentir-me existente; era já levado como que por instinto, a observar-me por dentro para saber como poderia viver e ser eu próprio. " O aspecto fundamental do filosofar de Biran surge aqui expresso com toda a clareza possível. O mesmo acontece com o seu objectivo, nem sempre reconhecido pela critica. Este objectivo não deixa de ser, como acontece nos seus amigo; espiritualistas ou eclécticos, a justificação da tradição religiosa e política. Tem-se frequentemente limitado o interesse religioso da sua filosofia a uma última fase da sua obra, a que começaria a partir de 1818 (Naville, in Oeuvres de Biran, 1, 1859, p. CXXVII e segs.). Na realidade, o Diário íntimo demonstra que a preocupação religiosa foi sempre a mola do filosofar de Biran. e que o sentido intimo (a reflexão interior) foi por ele entendido sempre como instrumento adequado para justificar a tradição religiosa. Em 1793 Biran escrevia: "Deixemos de errar na incerteza, abandonemos todas as opiniões fúteis, deixemos de parte todos os livros e ouçamos apenas o sentido Intimo; ele nos dirá que existe um Ser ordenador de todas as coisas... O sentido Intimo que nos faz ver Deus na ordem do universo. Deixemos desabrochar o seu impulso" (Jour. int., ed. De Ia Val68 let Monbrun, 1, pp. 13-14; Oeuvres, ed. Tisserand, 1, p. 15). Mais tarde, na critica às doutrinas de de Bonald e de Lamennais, Biran iria entender o sentido intimo como uma
"revelação interior", que não contradiz a exterior baseada na autoridade e que lhe serve de base e critério. A consciência, portanto, era para ele uma forma de revelação, a revelação original de Deus. Mas essa consciência não deixava de ser também o fundamento da tradição política e, por conseguinte, das instituições históricas verdadeiramente vitais. Não só nos escritos filosóficos, mas também nos discursos e nas posições políticas, Biran (que participou activamente na política depois da restauração da monarquia bourbónica em França), exprime a convicção de que a autoridade política, que incarna nas instituições históricas, não se justifica senão com base na consideração do homem, ou seja do sentido Intimo. Tal como a religião, as instituições políticas assentam no sentimento do infinito que é "idêntico ao sentimento religioso ou está na sua base". Tudo o que o homem faz é necessariamente finito. "Portanto o homem não tem o poder de fundar uma religião ou de criar uma instituição, a que possa ligar-se o mínimo sentimento religioso. Num século em que se raciocina sobre tudo ou se exige que tudo seja demonstrado, não pode viver nem religião, nem qualquer instituição propriamente dita; a análise faz desaparecer o sentimento" (Journ., I, p. 228). No entanto, relativamente aos outros defensores do tradicionalismo espiritualista francês, a filosofia de Biran distingue-se vantajosamente pela riqueza e pela fecundidade das análises que faz nascer no âmbito da percepção interior. O ensaio sobre o Hábito e os Fundamentos da psicologia dão-nos o desenvolvimento desta análise no que diz respeito às relações do homem com o mundo; os Novos Ensaios de antropologia (que no entanto retomam os resultados das duas obras precedentes) desenvolvem a análise no confronto da relação do homem com Deus. As duas primeiras obras constituem uma tentativa simétrica e oposta à de Condillac e dos ideologistas em fazer derivar toda a vida psíquica do homem do facto primitivo que é a sensação; nessas obras pretende-se derivá-la da consciên69 cia. "Sem o sentimento da existência individual que nós chamamos, em psicologia, consciência (conscius sui, compos sui) não há um facto que se possa dizer conhecido, nem conhecimento de qualquer espécie; já que um facto nada é se não for conhecido, se não existe um sujeito individual permanente que conhece" (Fondements, in Oeuvres, ed. Naville, 1, p. 36). Deste princípio resulta que um ser puramente sensível não teria consciência, e portanto a tentativa do sensualismo parecerá impossível. Mas o facto primitivo da consciência não revela, segundo Biran, uma substância pensante, como queria Descartes, mas a existência do eu como causa ou força produtiva de certos efeitos. "Acausa ou força actualmente aplicada na locomoção do corpo é uma força agente a que chamamos vontade. O eu identifica-se completamente com esta força agente" (Ib., p. 47). Por outro lado, a força só se actualiza na relação com o seu termo de aplicação, do mesmo modo que este se determina como resistente ou inerte em relação à força que o move ou que tende a imprimir-lhe o movimento. O facto desta tendência é o esforço ou volição e este esforço é "o verdadeiro facto primitivo do sentido intimo". Biran faz sua, a este propósito, a doutrina de Destut de Tracy que via no movimento a condição de conhecer. "Se o indivíduo não quisesse inteiramente ou não fosse determinado para começar a mover-se, nada conheceria. Se nada lhe resistisse, não conheceria nada igualmente, não suspeitaria de nenhuma existência, nem havia portanto a ideia da própria existência" (De Lhabitude, in Oeuvres, ed. Tisserand, 11, p. 26). O esforço primitivo, como facto do sentido Intimo, constata-se por si, imediatamente, e é ao fundamento desse princípio de causalidade, que Maine de Biran não se cansa de chamar o "pai da metafísica"
(Fondements, Ib., p. 53). O princípio cartesiano "Penso, logo sou urna substância pensante", Biran substitui-o pelo princípio que melhor exprime a evidência do sentido intimo: "Eu actuo, quero, ou penso em mim a acção, portanto, sou a minha causa, portanto sou, existo realmente a título de causa ou de força". A percepção primitiva prova imediatamente que o eu actual é por si uma causa livre, uma força que se distingue dos seus efeitos transitórios e de todos os seus modos passivos. O facto primiti70 vo do sentido Intimo identifica-se com o próprio principio de causalidade e é a sua justificação absoluta (Anthr., in Oeuvres, ed. Naville, III, pp. 409-410). Verdadeiramente o ponto principal da investigação de Maine de Biran é a passagem da psicologia à metafísica. Maine de Biran identifica imediatamente um dado da experiência interna, o esforço, com um princípio metafísico, a causalidade, e assume esta identificação com uma justificação absoluta do princípio metafísico. A sua psicologia é por isso metafísica; mas é uma metafísica que se move no âmbito do testemunho interior e, por essa razão, não tem outro fundamento que não seja este último. A identificação do dado imediato do esforço com o princípio metafísico de causalidade consente-lhe no entanto apresentar a derivação das outras ideias do esforço como uma sua justificação metafísica. Assim as ideias de força e de substância são por ele derivadas do esforço que, considerado exterior à consciência, se transforma em força; e, considerado como tal, assim se mantém idêntico nas mutações da consciência passando a ser substância (Fondements, Ib., p. 249 e segs.). O esforço como sentimento do eu é a própria liberdade, que, no horizonte do eu, deixa de ser um problema. " A liberdade ou ideia de liberdade, encarada na sua origem real, não é mais que o próprio sentimento da nossa actividade ou do poder de agir, de criar o esforço constitutivo do eu. A necessidade é o sentimento da nossa passividade; e não é um sentimento primitivo ou imediato; uma vez que para sentir-se ou reconhecer-se como passivo precisa, em primeiro lugar, de ser-se reconhecido com a consciência de um poder" (Ib., p. 284). Sobre este ponto de partida, Biran baseia a análise de todas as faculdades humanas (sistema afectivo, sistema perceptivo, sistema reflexivo), e também o raciocínio. Esta análise é a resolução total da lógica na psicologia. " Todas as teorias lógicas, afirma Biran (Fond. de Ia psyh., Oeuvres, ed. Naville, II, p. 273), se reduzem à análise exacta das nossas faculdades intelectuais ou dos nossos verdadeiros meios de conhecer". Em todo o caso, é preciso partir de facto primitivo, que permite a intuição dos princípios que estão na base de toda a ciência; e utilizar a memória intelectual para 71 deduzir destes princípios aquilo que não é intuído imediatamente. Assim, da ideia do esforço e da resistência que o mesmo implica, se deduz necessariamente a ideia de extensão como "continuidade de resistência" que tem, como tal, um vínculo necessário com um primeiro termo que não é extenso. A ideia de extensão liga-se sinteticamente a este primeiro termo e do mesmo modo se ligam os de impenetrabilidade, de imobilidade, etc. A necessidade do raciocínio consiste em compreender que todos os atributos sucessivos, sinteticamente ligados ao termo originário (o eu como esforço ou o não-eu como resistência) dependem do primeiro termo ou são suas funções particulares. A relação das ideias com o facto primitivo ou a sua dependência deste facto é portanto a condição primeira do raciocínio; o qual, por conseguinte, não poderá reduzir-se (como sustentavam
Condillac e os ideologistas) a uma simples tradução ou substituição de sinais Ib., p. 272). Biran define o raciocínio como "uma série de juízos sintéticos que têm todos um sujeito comum, simples, uno, universal e real, e estão ligados de modo a que o espírito perceba a sua dependência necessariamente reciproca, sem recorrer a nenhuma ideia ou noção estranha à essência do sujeito ou aos atributos que dai possam derivar" (Ib., p. 263). Mas uma vez que o "sujeito comum, simples, uno, universal, real" não pode ser senão o eu (como esforço) ou a resistência (como aquilo que se opõe ao esforço), o raciocínio baseia-se directamente no sentido Intimo que revela, juntamente, o eu e a resistência. § 618. BIRAN: O SENTIDO iNTIMO COMO REVELAÇÃO Pela primeira vez na sua última obra, os Novos ensaios de antropologia (1823-1824), Biran levanta o problema do homem total, do homem que não é apenas organismo e consciência (e por conseguinte sensibilidade e raciocínio), mas também relação com Deus. Nas duas primeiras partes da obra (tal como as outras, deixada incompleta) Biran reassume e retoma os resultados por ele alcançados nos escritos precedentes sobre a vida orgânica e sobre a vida consciente 72 do homem. Na terceira parte, que é mais importante, inicia a análise da terceira vida do homem, a religiosa ou mística. Sem dúvida, esta terceira vida sempre se mantivera latente na análise de Biran; que dada a sua própria orientação, pretende justificar-se tanto a si como ao seu objectivo final. "A segunda vida do homem, afirma Biran (Anthr., in Oeuvres, ed. Naville, III, p. 5 19) parece ser-lhe dada apenas para ele poder erguer-se até à terceira, na qual fica livre do jogo dos afectos e das paixões; então o génio ou demónio que dirige a alma e a explica como um reflexo da divindade, faz-se ouvir no silêncio da natureza sensível; na qual nada acontece nos sentidos ou na imaginação que não seja querido pelo eu e sugerido ou inspirado pela força suprema na qual o eu se absorve e se confunde. Tal é o estado primitivo de que provém a alma humana e ao qual aspira voltar a unir-se". A vida do espírito começa a dar sinais de si com o primeiro esforço voluntário: o eu manifesta-se interiormente, o homem conhece-se; compreende aquilo que lhe é próprio e distingue-se daquilo que pertence ao corpo. Mas o homem exterior prevalece e acaba por reinar exclusivamente; o hábito de agir oculta e quase anula o sentimento da actividade. Mas o homem interior acaba por levar a melhor sobre o exterior, mercê de um processo de renovação que não é espontâneo mas deriva de uma acção inteiramente livre, absolutamente estranha às disposições sensíveis e a qualquer impulso externo; processo esse que se consegue sobretudo através de uma firme meditação que emprega toda a energia da actividade intelectual e se encaminha depois pela via da oração, através da qual a alma humana se ergue até à origem da vida, a ela se unindo intimamente, identificandose com o amor. A meditação e a oração são as duas vias pelas quais a Intima espiritualidade do homem se ergue à sua absoluta liberdade, à vida religiosa. "Parece-me, afirma Biran (Ib., p. 541), que tendo por ponto de partida o facto psicológico, sem o qual o espírito humano se perde nas excursões ontológicas na direcção do absoluto, se poderá afirmar que a alma, força absoluta que é sem se manifestar, tem dois modos de manifestação essenciais: a razão (logos) e o amor. A actividade pela qual a alma se manifesta a si própria como pessoa ou eu está na base da razão; é a vida própria da alma, 73 uma vez que toda a vida é manifestação de uma força. O amor, origem de todas as faculdades afectivas, é a vida comunicada à alma como condição da sua própria vida, a vida
que lhe vem do exterior e de cima, do espirito do amor, que sopra onde quer". Nesse sentido, Deus está para a alma como a alma para o corpo. O corpo, além de ter funções e movimentos próprios, é dirigido pela alma que quer, pensa ou sabe aquilo que faz; do mesmo modo a alma, ainda que possuindo faculdades próprias, possui também intuições, aspirações, movimentos sobrenaturais, pelos quais se encontra sob a acção de Deus e como que absorvida por ele. A graça de Deus é para a alma aquilo que a vontade da alma é para o corpo (Fond., de ta morale et de Ia refigion, in Oeuvres, ed. Naville, III, p. 53). Deste modo, o sentido intimo, a consciência, surge a Biran como a própria revelação de Deus. Em polémica com de Bonald, que tinha reduzido todas as revelações à revelação exterior e tinha feito da própria linguagem a imediata criação de Deus, Biran afirma a superioridade da revelação interior, que só vale como critério. "A consciência, afirma Biran (Opinions de M. de Bonald, in Oeuvres, ed. Naville, 111, p. 93), pode ser considerada como uma espécie de manifestação interna, de revelação divina; e a revelação ou palavra de Deus pode exprimir-se na própria voz da consciência". A revelação não é apenas a que provém externamente da tradição oral e escrita, é também a que surge no intimo da consciência. Uma e outra têm a sua origem em Deus e uma e outra têm o seu fundamento fora da razão e excluem da sua esfera o cepticismo religioso e filosófico (M., p. 96). Estão entre si como a letra e o espirito, e o seu acordo é garantido pela origem comum que é Deus (Ib., p. 217). "Sem uma revelação imediata feita a cada povo, ou antes, sem a acção da graça que actua sobre os corações de modo diferente das palavras, qual poderia ser o critério público e social que distinguisse a verdade do erro, quando todas as nações pretendessem possuir para si, com uma linguagem inspirada, o tesouro das verdades intelectuais e morais? " (Ib., p. 24 1). No seu ponto culminante, a análise de Maine de Biran revela a sua preocupação fundamental: a justificação da tradição. "As instituições morais e religiosas, afirma, (Fond. 74 de Ia mor. et de Ia rei., Ib., pp. 63-64), poderão ser desnaturadas, prevertidas ou separadas da sua origem para não serem mais que instituições políticas e convenções humanas relativas à civilização da sociedade, à natureza do governo, ao solo, ao clima, etc.: variáveis segundo essas relações tanto na forma como no fundamento. Mas segundo a tendência oposta, as instituições políticas de todos os lugares e de todos os tempos estarão sempre mais próximas do absoluto, através de uma moral e de uma religião divinas; e o destino da sociedade e dos indivíduos estará completamente realizado quando essas leis do absoluto, derramando-se sobre todo o mundo político, lhe imprimirem todas as direcções possíveis, regulando-lhe todos os movimentos e determinando a forma constante e invariável da sua órbita". Estas palavras revelam o centro da personalidade de Maine de Biran e a natureza dos seus interesses não apenas filosóficos, mas também políticos e religiosos. Maine de Biran entendeu o sentido íntimo como instrumento de justificação da tradição. Isto faz com que esteja ligado intimamente ao espiritualismo ecléctico dos seus contemporâneos, dos quais se distingue apenas pela perfeição que soube dar a esse instrumento. E o próprio interesse fundamental faz dele o mestre e o exemplo do espiritualismo contemporâneo. § 619. O REGRESSO À TRADIÇÃO EM ITáLIA. GALLUPPI O espiritualismo italiano da primeira metade do século XVIII é um movimento de pensamento análogo e paralelo à filosofia francesa do período contemporâneo. Das quatro figuras deste movimento - Galluppi, Rosmini, Gioberti, Mazzini -, Galluppi retoma a
tentativa (já levada a cabo por Laromiguière, Royer-Collard e Cousin) de se servir da ideologia para defender o espiritualismo tradicional; Rosmini e Gioberti estão mais próximos do tradicionalismo de de Bonald e Lamennais; Mazzini inspira-se no humanitarismo de Lamennais da segunda fase e no socialismo de Saint-Simon. 75 Pasquale Galluppi nasceu em Tropca na Calábria, a 2 de Abril de 1770 e morreu em Nápoles (onde foi professor na Universidade) a 1 de Dezembro de 1846. Servia a cultura filosófica italiana ao ter feito conhecer, com exposições precisas e lúcidas, a filosofia europeia do século XVII, quer através de trabalhos dedicados a esse fim (Cartas filosóficas, 1827; Considerações filosóficas sobre o idealismo transcendental e sobre o racionalismo absoluto, 1841) quer através de trabalhos de carácter especulativo (Sobre a análise e a síntese, 1807; Ensaio filosófico sobre a crítica do conhecimento, 1819-32; Lições de lógica e de metafísica, 1832-36; Filosofia da vontade, 1832-40). De Condillac e dos ideologistas, Galluppi extrai o principio de que a análise é a actividade fundamental do espirito e, por conseguinte, o único método possível em filosofia. O ponto de partida desta análise é para ele o da consciência, que já o grupo dos eclécticos franceses tinha valorizado contra o sensualismo iluminista, ligando-se, por sua vez, à filosofia escocesa do senso comum: O facto primitivo da consciência é, segundo Galluppi, a existência do eu cognoscente, que está presente de forma imediata na consciência em todos os seus actos e existe como "verdade primitiva e experimental". Esta verdade primitiva é uma intuição imediata, no sentido de que se trata de uma imediata apreensão do seu sujeito, do eu existente (Ensaio, 1, 1, § 16). Intuições neste sentido são também as sensações enquanto se referem directamente aos objectos externos. Galluppi distingue o sentimento da sensação, como consciência da sensação; o sentimento (que na terminologia de Locke é denominado reflexão) tem por objecto a sensação; a sensação, não podendo estar privada de objectos, não pode ter por objecto imediato a própria coisa Ib., II, § 9). O testemunho da consciência pode exprimir-se através da afirmação "eu sinto um eu, que sente qualquer coisa", o que implica uma distinção entre o eu e o que está fora de mim e a realidade de ambos. "Os objectos da nossa percepção são o eu e o que está fora de mim. O eu é aquilo que percebe o que está fora de si e o que se percebe a si próprio. O sentimento da consciência é a própria consciência, ou seja, a própria consciência do eu" (Ib., 11, p. 7, § 119). 76 A existência do eu e a realidade do mundo exterior são portanto, segundo Galhippi, directamente testemunhadas pela consciência e, como tal, estão para além de qualquer dúvida. O testemunho da consciência é por ele entendido, segundo o exemplo da filosofia do senso comum, como "verdade primitiva", que a filosofia deve simplesmente aceitar, evitando submetê-la a dúvidas ou a análises posteriores. Do mesmo modo procede para justificar a verdade dos conhecimentos universais, que tinham sido postos em dúvida desde Berkeley a Hume. As ideias existem no espírito; são confirmadas pela "consciência íntima". As verdades universais extraem-se do seu confronto e é a consciência que realiza esse confronto; sendo também elas verdades experimentais no sentido em que são reveladas pela experiência interna (Ib., 1, 2, § 5 1). E a experiência interna é o fundamento que torna certa a existência de Deus, a propósito da qual Galhippi repete substancialmente a demonstração de Locke: "Eu sou um ser mutável: esta verdade é um dado da experiência. Um ser mutável não pode existir por si; esta verdade é um resultado do raciocínio, que mostra a identidade entre a ideia do ser por si próprio e a ideia do ser imutável. Destas duas verdades resulta esta consequência: eu não existo por mim próprio, eu sou um efeito. Levado a este conhecimento por uma análise indesmentível, procuro saber se a causa que me produziu é inteligente ou não; descubro que a minha razão pode alcançar a inteligência
da primeira causa do meu ser" (Ib., 1, 4, § 121). Esta demonstração, mostrando em acto a eficiência do princípio de causalidade, serve também, segundo Galhippi, para justificar a validade deste princípio contra as dúvidas que Hume tinha levantado sobre este assunto. Em razão desta demonstração o principio de causalidade é directamente testemunhado pela consciência e, por conseguinte, vale como "uma verdade primitiva". "0 eu não pode existir independentemente de qualquer existência externa; ele é, portanto, um efeito que supõe a causa eficiente. No sentimento do meu eu variável é-me dada a objectividade do princípio de causalidade e do absoluto" (Ib., 11, 4, § 75). Sobre este ponto de partida Galhippi estabelece o seu sistema das faculdades do espírito. A experiência fornece ao 77 homem o material dos seus conhecimentos; e a experiência é de duas espécies, experiência do eu e experiência do fora de mim. O material assim conseguido, conservado pela imaginação e iluminado pela atenção, surge decomposto pela análise; a Vontade, guiada pelo desejo, reúne-o de novo através da síntese. À síntese abrem-se duas vias: ou recompor o material sensível livremente, prescindindo da unidade desse material formada na experiência antecedente à análise; ou recompor o próprio material em conformidade com a unidade que ele próprio possuía anteriormente à análise. No primeiro caso, obter-se-ão sínteses imaginativas, desprovidas de valor real: a síntese imaginativa civil de que o homem se serve para modificar a natureza segundo os seus ideais e as suas necessidades, e a síntese imaginativa poética de que se serve para criar obras de poesia. @ evidente que o conhecimento consiste apenas na síntese real. Para conhecer, o espírito deve reunir o material resultante da análise própria e apenas em conformidade com a unidade que o mesmo possuía já na experiência primitiva. A verdade de qualquer síntese deriva unicamente da correspondência da própria síntese com a unidade objectiva que, no que se refere aos corpos, é designado por Galluppi como unidade física e no que se refere ao sujeito, por unidade metafísica (Ib., 111, 9, §§ 51-52). Segundo este ponto de vista, a doutrina kantiana devia surgir aos olhos de Galluppi como um mero "cepticismo"; e assim acontece. Galluppi pretende substituir os juízos sintéticos a priori pelas "verdades primitivas" obtidas da experiência interior através da análise. Não obstante este processo o levar a considerar todas as entidades da metafísica tradicional, Galluppi mantém-se apegado a um certo agnosticismo iluminista. Nós ignoramos, afirma ele, a natureza das substâncias particulares: ignoramos o modo como actuam as causas eficientes; ignoramos como actua o nosso próprio espírito (Ib., IV, §§ 98-100). E desse agnosticismo se serve para admitir a criação, que, apesar de incompreensível, não é absurda. As doutrinas morais de Galluppi expostas na obra Filosofia da vontade têm o mesmo ponto de partida das suas doutrinas gnoseológicas: o sentido íntimo ou consciência. Gal78 luppi explicitamente reconhece nesta obra o seu parentesco com os eclécticos franceses, especialmente com Royer-Collard e Cousin (FU., vol. 6, § 60); mas, como acontece com estes eclécticos, repete substancialmente o ponto de vista da escola escocesa. Testemunho da consciência e, por conseguinte, verdade primitiva, é a actividade do eu na vontade (Ib., 1, 6, § 60); testemunho da consciência, por conseguinte verdade primitiva, é a própria liberdade humana. "0 testemunho da consciência deve encarar-se como sendo infalível; é
portanto necessário admitir no nosso espirito o poder de não querer algo que se queira e de querer algo que não se queira. Neste poder consiste, portanto, a liberdade da necessidade da natureza" (Ib., 1, 9, § 108). Testemunhos da consciência e por isso verdades primitivas são também o mal e o bem. "A exigência do bem e do mal morais e portanto de uma lei moral natural é uma verdade primitiva confirmada pela nossa consciência, tal como a existência e a realidade do nosso conhecimento são uma verdade primitiva e indemonstrável" (Ib., 11, 1, § 1). A própria noção de dever, que está implícita nessa verdade é, por conseguinte, simples e não derivada. Galluppi fala de razão prática, mas este termo não tem, na sua filosofia, qualquer significado Kantia~ no. A razão prática não é mais que a noção imediata do dever que se manifesta no sentido intimo (Ib., 11, 1, § 6). No entanto, para Galluppi a moral é independente da religião. Basta para seu fundamento a simples consideração da natureza humana, consideração que permite também estabelecer a sua independência do principio do útil e da felicidade, a que o empirismo pretende reduzi-Ia. A lei moral é no entanto um mandamento de Deus. "Sendo a nossa natureza um efeito da divina vontade, sendo nós assim porque assim o quis Deus, este pretendeu que a nossa razão apresentasse os deveres que apresenta, manifestando assim os seus divinos preceitos através dela. É esta a lei escrita por Deus nos nossos corações" (Ib., 11, 2, § 28). As verdades morais são necessárias; mas a sua necessidade é indemonstrável porque se trata de verdades primitivas. A diferença entre as verdades teoréticas e as práticas reside no facto de que a necessidade das primeiras é baseada na sua natureza idêntica, ao passo 79 que a necessidade das segundas se baseia na sua natureza sintética (Ib., 11, § 29). § 620. ROSMINI: O SER IDEAL COMO REVELAÇÃO Na defesa da tradição católica e por conseguinte na construção de um sistema de filosofia que "possa ser recebido pela ciência teológica como seu auxiliar", se orienta a obra de António Rosmini Serbati, Tendo nascido em Rovereto a 24 de Março de 1797, sacerdote católico e fundador de uma congregação religiosa a que ele chamou Instituto de Caridade, Rosmini viveu quase sempre absorvido pelos seus estudos (teve uma breve intervenção na vida pública através de uma missão do governo piemontês ao papa Pio IX em 1848) e morreu em Stresa no dia 1 de Julho de 1855. Entre os seus numerosos escritos, os principais são os seguintes: Opúsculos filosóficos (1827-28); Novo ensaio sobre a origem das ideias (1830) que continuava a ser a sua obra fundamental; Princípios da ciência moral (1831); Antropologia (1838); Tratado de ciência moral (1839); Filosofia da política (1839; Filosofia do direito (1841-45); Teodiceia (1845); Psicologia (1850); Introdução à filosofia (1850); Lógica (1854). A esta quantidade enorme de obras publicadas segue-se a não menor de obras póstumas: Do princípio supremo da mitologia (1857); Aristóteles, exposição e análise (1857); Teosofia (1859-74); Ensaio histórico-crítico sobre as categorias e a dialéctica (1882); Antropologia sobrenatural (1884); além de um grande número de escritos menores e de cartas. A preocupação fundamental de Rosmini é a de defender a objectividade do conhecimento e em geral da vida espiritual do homem, contra o subjectivismo empirista dos iluministas e dos ideologistas e contra o subjectivismo absoluto de Kant e dos idealistas pós-kantianos. Esta preocupação coincide com uma outra, propriamente escolástica, de restabelecer o acordo intrínseco e substancial entre a especulação filosófica e a tradição religiosa cristã, levando a primeira a basear-se no próprio principio que rege a segunda; Deus e a revelação divina. Em resposta a estas preocupações fundamen-
80 tais, a posição filosófica de Rosmini é a de todos os espiritualistas: a reflexão sobre a consciência, ou seja, sobre dados do sentido Intimo. Rosmini explicitamente reduz todas as certezas extrínsecas, baseadas num sinal da verdade (por exemplo, a autoridade) à certeza intrínseca que é conhecimento intuitivo da própria verdade. "0 principio último da certeza reduz-se a um só, ou seja, à verdade em que a mente acredita como intuição imediata, evidente por si, sem sinais, sem argumentos de mediação" (Novo ensaio, § 1055). No entanto, a intuição imediata não é pura subjectividade. É a intuição da ideia do ser, isto é, de um principio objectivo que constitui a própria forma da subjectividade racional; e permite a Rosmini reconhecer o fundamento de toda a objectividade na própria razão que, depois de Descartes, vinha sendo considerada como principio da subjectividade. Deste modo Rosmini acaba por ligar-se explicitamente à tradição do agnosticismo medieval e especialmente a S. Boaventura Ib., § 473). Como forma originária da mente humana, a ideia do ser é inata e não-derivada. Não deriva das sensações, que são modificações subjectivas do homem; é pressuposta por todos os juízos que o homem formula sobre as coisas reais que são causa destas sensações. De nada se pode afirmar que é (ou existe) se se possui preventivamente a ideia do ser ou da existência em geral. Por outro lado, esta ideia universalíssima está implícita em todas as outras ideias; uma vez que, por exemplo, a ideia de um homem ou de um livro é a ideia de um ser que existe determinado, que possui, além do ser, um certo número de outras determinações. A ideia de ser precede portanto não apenas as sensações, mas também todas as outras ideias. E não pode ser fruto de uma operação do espírito humano, por exemplo, da abstracção, já que a abstracção não faz mais que limitar a uma ideia certas determinações particulares, mas não a ideia do ser, que permanece assim pressuposta. É pois necessário que a ideia do ser seja inata e colocada no homem directamente por Deus. Não se trata da ideia de Deus, mas apenas do ser possível e indeterminado; é a forma da razão, o principio que a guia, a própria luz da inteligência humana (Ib., § 396). 81 Da ideia de ser assim entendida Rosmini pretende derivar todo o sistema do conhecimento. Com efeito, na ideia do ser se baseia todo o conhecimento humano, através daquilo a que Rosmini chama percepção intelectiva. Conhecer significa, de qualquer modo, determinar o ser possível através da síntese do mesmo com uma ideia particular; ou, o que é o mesmo, universalizar uma ideia particular através da síntese da mesma com a ideia do ser possível Ib., §§ 537, 492). Este acto de determinação ou universalização é a percepção intelectiva que supõe três elementos: I?, a ideia do ser; 2?, uma ideia empírica derivada da sensação (das coisas exteriores) ou do sentimento (que o eu tem de si); 3?, a síntese ou relação, expressa num juízo entre a ideia do ser, por um lado, e a sensação ou o sentimento por outro. Desta doutrina fundamental podem extrair-se várias consequências importantes: a primeira é a de que o conhecimento que o eu tem de si não é mais originário e mais certo que o conhecimento que ele tem de uma qualquer realidade. Com efeito, para afirmar-se como existente, o eu tem necessidade não apenas do sentimento da sua própria existência como ainda da ideia de ser, exactamente como acontece para a afirmação das outras coisas Ib., § 440). A segunda consequência é a de que a realidade dos corpos exteriores perde o carácter problemático, que tinha assumido em Descartes, e surge como indubitável e certa. Com efeito, da ideia do ser podemos extrair necessariamente não só os princípios lógicos da identidade e da contradição, como também o principio da causalidade, uma vez que na base da mesma não se pode admitir que exista uma mutação sem haver um ser que a produza; por isso, quando se produzem no homem as
manifestações que são as sensações, é preciso admitir as causas destas sensações, ou seja, os corpos. Tais corpos deverão ser concebidos como substâncias porque só a substância é uma energia operante (M., § 677). Pelo mesmo motivo o sentimento fundamental, ou seja a sensação da própria vida orgânica, implica a existência de um corpo com o qual estamos unidos e pelo qual no próprio acto nos distinguimos Ib., § 669). A terceira consequência é de que o erro é possível apenas como ausência de um ou de outro elemento de percepção intelectiva, do elemento ideal (ideia do ser) ou do elemento real (sen82 timento ou sensação) Ib., § 1359) e é sempre um produto da vontade (Ib., § 1356). Rosmini parece atribuir aqui à vontade o poder de dissociar a razão da ideia do ser, ou seja, da sua própria forma. A ideia do ser consente portanto, segundo Rosmini, a formação das ideias (ou seja, das noções universais) dos objectos, mediante o processo de universalização. Este consiste, como se viu, em ligar à sensação a ideia de um ser que seja a sua causa (percepção intelectiva); o que permite considerar este ser como possível, logo universal. A universalização obtém-se prescindindo, na percepção intelectiva, do ente particular que nela é dado; é portanto uma forma de abstracção, mas uma abstracção sui generis, que não obriga o ser a perder nenhuma das suas determinações, e apenas se distingue pelo juízo de subsistência pronunciado sobre tal Ib., § 498). A universalização vem, deste modo, evidenciar que as espécies são ideias no sentido platónico, ou seja, tipos perfeitos. A abstracção verdadeira e própria, pelo contrário, altera a forma e o modo de ser das ideias e dá origem a géneros que empobrecem as próprias ideias, limitando-lhes algumas das determinações que possuem Ib., § 493). Estes pontos principais de doutrina são utilizados por Rosmini na criação de uma enciclopédia filosófica que compreende as ciências ideológicas, as ciências metafísicas e as ciências deontológicas. Enquanto que as ciências ideológicas têm por objecto o ser ideal, as ciências metafísicas têm por objecto o ser real; mas se em relação a este último se prescinde daquilo que nele diz respeito à física, isto é, o estudo empírico da natureza, a metafísica não poderá ter por objecto senão o espírito finito ou o espírito infinito e será, por conseguinte, ou psicologia ou teosofia (Psic., § 26; Teos. § 2). Por último, as ciências deontológicas têm por objecto a moral, o direito e a politica. A psicologia e a teosõfia de Rosmini são substancialmente uma reposição e uma defesa da metafísica aristotélico-escolástica. A psicologia é desenvolvida no sentido de demonstrar a natureza substancial, espiritual, simples e imortal da alma humana. A teosofia é por ele dividida em três partes, ontologia, cosmologia e teologia racional, que são três especificações de um todo. "Corno falar do ser na sua 83 essência universal e em todas as suas possibilidades que se integram no domínio da Ontologia, sem ter em consideração a infinitude e o absoluto do ser, argumento da Teologia? Ou então como formular uma doutrina filosófica do mundo, objectivo da Cosmologia, sem levar em conta a causa que lhe deu existência, e a forma de actuar dessa causa, o que transporta o raciocínio para um campo teológico? Portanto o centro e a substância de todas as investigações é e será sempre a doutrina de Deus, sem a qual não se chega a conhecer a doutrina do ser ou a explicar o mundo" (Teos., § 30). No desenvolvimento das suas doutrinas metafísicas, Rosmini serve-se continuamente do principio do ser ideal: princípio que, apesar de não surgir enriquecido ou modificado com
tal desenvolvimento, aparece no entanto esclarecido no seu significado e revela melhor a posição fundamental do filósofo. Rosmini, desde as primeiras tentativas de juventude (ver, por exemplo, Epistol., 1, 96) até mais tarde às amadurecidas especulações, teve sempre a intenção de basear a objectividade do conhecimento, e em geral a validade de todas as posições espirituais do homem, na revelação directa ou indirecta de Deus. A primeira e original revelação de Deus é o ser ideal ou possível que constitui a luz do intelecto humano e lhe permite alcançar a objectividade nos seus juízos e a validade nas suas valorações práticas. O ser ideal limita à subjectividade humana a autonomia e a capacidade de iniciativa que a filosofia moderna, de Descartes em diante, lhe vinha reconhecendo, e permite a Rosmini retomar a tradição ontológica que se tinha desenvolvido na escolástica medieval. Daí resulta a afinidade e a declarada simpatia de Rosmini pela doutrina de Malebranche que é uma verdadeira e própria escolástica cartesiana. Para Malebranche, todo o conhecimento é "uma visão de Deus". Rosmini acentua a distância entre o homem e Deus: o homem não consegue ver Deus na sua totalidade e em tudo, mas traz gravada em si, como luz da razão, a ideia do ser, que é uma visão indeterminada e abstracta do tributo fundamental de Deus. O homem só intui de Deus aquilo que lhe basta para iluminar a actividade da sua razão; daí a parte importante que Rosmini, em confronto com Malebranche, atribui 84 ao homem, que reconhece ser capaz de edificar, com tal auxílio, a sua vida espiritual. § 621. ROSMINI: A PESSOA HUMANA, O DIREITO E O ESTADO A ideia do ser é também o fundamento da moral, do direito e da política. A fórmula mais geral da moral é: "Quando agires segue a luz da razão". A luz da razão não é a razão que é apenas a faculdade do espírito humano de pôr em prática a ideia do ser; é a própria ideia do ser, que não está submetida à limitação da inteligência humana porque é a própria verdade na sua eternidade e necessidade (Princ. d. Ciência moral, ed. nac., p. 28). Tornam impossível a lei moral, por um lado, aqueles sistemas (como o de Kant) que identificam a luz da razão com a própria razão, autonomizando o homem e divinizando-o, por outro lado os sistemas (empiristas) que identificam a luz da razão com o homem e tornam assim variável e contingente a própria lei moral. O homem, afirma Rosmini, "é meramente passivo em relação à lei moral; recebe em si essa lei, não a cria; é um súbdito a quem a lei se impõe, não é um legislador que a imponha" Ob., p. 35). A ideia de ser revela ao homem o bem, porque o bem (como pretendia a velha metafísica) é o próprio ser. Como objecto da vontade, o ser revela uma ordem intrínseca que é o guia objectivo da acção moral. A máxima desta acção pode formular-se do seguinte modo: "Querer e amar o ser onde quer que seja conhecido e segundo a ordem que ele apresente à inteligência" Ob., p. 78). Ora na ordem dos seres alguns têm razão de fim e são pessoas, outros têm razão de meio e são coisas. As próprias coisas portanto são bens que como tal reentram numa ordem objectiva, disposta no sentido da realização humana, da sua felicidade. Mas bens superiores são as pessoas que têm sempre valor de fim; e a essas deverá dirigir-se o acto moral, que deve ser acto de amor, enquanto que o intelecto não poderá reconhecer nenhum ser superior a ele dotado de inteligência. Mas uma vez que a dignidade das naturezas inteligentes deriva, em razão 85 da ideia do ser, de Deus, é a Deus, em suma, que se dirige o acto moral do homem como seu fim último e absoluto.
A doutrina rosminiana do livre-arbítrio baseia-se, tal como a do erro, inteiramente na distinção entre conhecer e reconhecer. "0 homem quando percebe um objecto imediatamente o conhece tal qual ele é: este é o acto do simples conhecimento. Mas quando se detém mais sobre esse objecto já percebido e diz para si próprio: sim, este objecto é assim, tem esta importância; então reconhece-o: então reafirma-o perante si próprio, e reafirma com um acto voluntário e activo aquilo que primeiramente conhecia através de um acto necessário e passivo; este é o acto da consciência reflexa" (Fil. do direito, ed. 1865, 1, p. 64). No acto da consciência reflexa se radica a valoração, a escolha, a liberdade; mas por isso também a possibilidade do erro. "É a simples faculdade do conhecer imediato e primitivo aquela que conserva também no homem, desencaminhando entre mil enganos, a profunda ciência do verdadeiro; pois tal corno existem e agem no espírito, assim ele recebe os objectos; por outro lado, é a faculdade do conhecer reflexo e sucessivo aquela que arrasta o homem pela via do sofisma, do erro, da ilusão e que o induz obstinadamente a negar a si próprio a possibilidade de ver, de ouvir e de tocar aquilo que no entanto vê, ouve e toca" (Ib., p. 64). É característica da ética rosminiana o relevo por ela conferido à personalidade moral: e é este ponto que a une é ética de Kant. Mas a personalidade moral não é, para Rosmini, subjectividade: é o nó em que objectividade e subjectividade se ligam para fazerem um todo. O bem da pessoa humana, que é um sujeito inteligente, consiste em aderir à entidade objectiva tomada na sua plenitude, por conseguinte na sua ordem. Por isso " não é a pessoa humana que produz o objecto! é antes o objecto que produz a pessoa humana e que a essa pessoa impõe as suas leis no acto que a informa". A obrigação moral de que deriva a dignidade da pessoa surge imposta à pessoa pela natureza do ser, por essa razão é que só da natureza do ser objectivo deriva, para a pessoa, a necessidade moral de o reconhecer, e por conseguinte o mérito ou demérito próprios (Ib., p. 8 1). 86 Sobre o conceito de pessoa se apoia a filosofia do direito, que é uma das partes mais vivas e interessantes do pensamento de Rosmini. Definido o direito como uma "autoridade moral" e precisamente como "uma faculdade de actuar segundo aquilo que agrada, e que está protegida pela lei moral que impõe aos outros o respeito" (M., p. 130). Rosmini considerao ligado indissoluvelmente à pessoa moral. Apesar do direito se referir à fruição e ao uso (não no sentido grosseiro, mas humano) dos bens materiais, ele é um atributo inseparável da pessoa moral e tem a sua origem última no dever moral. Direito significa limitação e é o dever que limita a actividade pessoal de cada um dentro das fronteiras que constituem a esfera do direito e torna obrigatório, perante os outros, o respeito dessa mesma esfera (Ib., p. 153). Rosmini identifica direito e pessoa: a pessoa é "o direito subsistente, a essência do direito" Ob., p. 225). A liberdade da pessoa é o principio formal de todos os direitos que se especificam e determinam através do conceito de propriedade. A propriedade, como "domínio que uma pessoa tem sobre uma coisa" constitui a esfera dos direitos de que a pessoa é centro e, como tal, é fundamento de todos os direitos que Rosmini chama conaturais, aqueles que estão conexos com a propriedade do homem sobre si próprio. Perante esta origem puramente moral do direito, a sociedade civil e o estado (que é a sociedade civil existente de facto) não têm outro objectivo que o de regularem a modalidade dos próprios direitos, a fim de protegerem o seu exercício harmónico, evitando as colisões e garantindo a todos os indivíduos a máxima liberdade possível Ob., 11, p. 527). Rosmini sustenta que só a sociedade teocrática (a Igreja) existe de pleno direito independentemente da vontade humana. A sociedade doméstica (a família) e a sociedade civil não existem de direito, senão através de um acto de vontade humana que livremente as criam. Em particular, a sociedade civil, resultando de uma reunião de famílias, ou de
pais de família, obtém o seu principio, não da consciência espontânea e natural, mas da livre reflexão; e o seu fim essencial é o de regular a modalidade de direitos de que gozam naturalmente as pessoas que a constituem. De acordo com este fim, a sociedade civil deve, sem dúvida, possuir uma força dominan87 te sem a qual a regulamentação da modalidade dos direitos seria ineficaz. Deve tender para a igualdade; mas não para uma igualdade absoluta. Esta última pressupõe que todos os indivíduos possam colocar na sociedade o mesmo capital, o que é contra a natureza; a desigualdade cai portanto na esfera do direito. A sociedade, pelo contrário, deve igualizar a quota-parte de utilidade que da sua instituição e gestão deriva para os indivíduos. Esta forma de igualdade é o bem comum, para o qual deve tender toda a sociedade juridicamente organizada (Ib., 11, p. 549). Na própria Filosofia do direito, como na obra precedente, Filosofia da política, Rosmini subordina a estrutura política da sociedade à sua estrutura social, que deve tender para o bem comum (Ib., 11, p. 934). Ainda que não podendo propor, como vimos, a abolição da desigualdade de fortunas, a sociedade deve providenciar quanto aos males a que dá origem antes de mais pela extrema miséria de outra parte da escala social (Ib., 11, p. 947). Esta é uma das condições fundamentais para o aperfeiçoamento da sociedade. Aperfeiçoamento que não pode ser entendido como um progresso necessário e fatal que, a existir, tornaria inútil a actividade dos homens e dos governos (Filosofia da pol., ed. 1837, p. 435), mas antes como perfectibilidade do homem e da sociedade no sentido do ideal cristão de uma comunidade livre e justa. § 622. GIOBERTI: VIDA E OBRA A obra de Vincenzo Gioberti está dirigida no sentido da defesa da tradição espiritual italiana, reconhecida no catolicismo e no papado. Gioberti nasceu em Turim a 5 de Abril de 1801, foi sacerdote católico de ideias liberais e republicanas e obrigado a exilar-se em 1833 quando a difusão da propaganda mazziniana tinha provocado uma violenta reacção policial em todo o reino sardo. Gioberti dirige-se a Paris onde permanece desde Outubro daquele ano até Dezembro de 1834. Neste último ano vai para Bruxelas onde ensina filosofia e história no Instituto Gaggia até Julho de 1845. Em 1837 publica a sua primeira obra Teoria do sobrenatural, a 88 que se seguia a Introdução ao estudo da filosofia (1840) que é o seu trabalho filosófico fundamental. Depois um longo ensaio, Considerações sobre as doutrinas filosóficas de Victor Cousin (1840), uma Carta sobre as doutrinas filosóficas e políticas de Lamennais, publicada em francês em 1841, um longo escrito Sobre os erros filosóficos de António Rosmini (1841-43), um escrito Acerca do Bem (1843) e o Primado moral e civil dos italianos (1842). Esta última obra exerceu uma profunda influência no clima espiritual e politico no risorgimento italiano. Ao reeditá-la em 1844, Gioberti escreveu um longo prefácio, Prolegómenos ao Primado, no qual acentuava numa forma liberal e progressiva as ideias do Primado. Em 1846-47, Gioberti, que entretanto se tinha estabelecido em Paris, publicou o Jesuíta moderno: obra que estava destinada a fazer de contraponto ao Primado, pois enquanto este insistia em fazer da tradição alavanca para o progresso e para a liberdade em Itália, o resulta destinava-se a eliminar da tradição o peso da inércia, dos hábitos e preconceitos que Gioberti via concretizados nos resultas. Uma Apologia do
Jesuíta moderno foi escrita por Gioberti defendendo a sua obra anterior. Entretanto os acontecimentos de 1848 em Itália permitiram um regresso triunfal de Gioberti à sua pátria, onde foi deputado, ministro e presidente do Conselho; mas o fracasso da politica neo-guelfa leva-o novamente ao exílio, em Paris, onde permanece até morrer, em 26 de Outubro de 1852. Nesta última parte da sua vida, Gioberti publicou o seu segundo trabalho politico, Sobre a renovação civil em Itália (1851) que surge como precursor da obra politica que Cavour iria traçar no decénio 1849-59. Além desta obra não publicou senão alguns escritos de polémica violenta (última réplica aos municipais, 1852) e um Discurso preliminar à Teoria do sobrenatural (1850), também polémico. Mas Gioberti continuou a trabalhar numa obra de filosofia, a Protologia. Dos seus manuscritos que ficaram inéditos o seu amigo Massari traduz e publica as obras que constituem o seu último trabalho de especulação: a Protologia (1857), a Filosofia da revelação (1856) e a Reforma católica (1856). Em seguida foram publicados: uma Teoria da mente humana (1856), situada entre a Teoria do sobrenatural e a Introdu89 ção; as primeiras tentativas filosóficas (Pensamentos de V. C., 1859-60); Meditações filosóficas inéditas de V. C., 1909); o Epistulário (1927-37), útil para se conhecer a história interna e externa das suas obras; e um Curso de filosofia (1947) escrito em francês em 1841-42 durante o tempo em que ensinou no Instituto Gaggia. § 623. GIOBERTI: A VERDADE COMO REVELAÇÃO E TRADIÇÃO Já nos textos de juventude, publicados postumamente, vai abrindo caminho, entre incertezas e oscilações, o princípio fundamental da filosofia giobertiana: a verdade é tradição e revelação. "Para manter a verdadeira via o filósofo deve persuadir-se que não poderá encontrar na ciência nada que não tenha já sido revelado por uma grande e infalível autoridade", afirmava Gioberti (Med. fil. méd., p. 60), que via na tradição não apenas a palavra de Deus que comunica a verdade de geração em geração, mas, em sentido lato, a própria racionalidade humana, que é um dom divino e uma tradição que se exprime e enriquece com os séculos, quer através da linguagem falada pelas ciências e pelas letras, quer pela linguagem muda das instituições e das artes, ou seja, da civilização (Pensamentos, 1, p. 108). Não é por acaso que o seu primeiro escrito publicado se intitula Teórica do sobrenatural, nele se podendo depreender a tese fundamental de de Bonald de que "a criação da linguagem primitiva foi uma revelação de ideias, divina, sendo o principio da civilização humana absolutamente sobrenatural" (Cap. 45, p. 41). Compreende-se assim, segundo este ponto de vista, que Gioberti haja concebido a sua obra capital, a Introdução ao estudo da filosofia, como uma condenação total e sem apelo de toda a filosofia moderna. "Sei que Descartes e toda a filosofia moderna que dele procede, afirma Gioberti, (Intr., 1, pp. 9-10) têm a pretensão de introduzir a investigação e, por conseguinte, a livre eleição de princípios, mas demonstrarei, no desenrolar desta obra, quanto é ridícula e irracional uma tal pretensão. Os princípios são fornecidos pela intuição que, não podendo transformar-se em cognição refle90 xiva sem a intervenção da palavra, depende necessariamente dela no que respeita à
filosofia. A palavra é dupla, religiosa ou social; esta nasce daquela; porque em todos os lugares e tempos a sociedade foi criada, educada e civilizada pela religião. A palavra religiosa é o dogma tradicional; por isso a filosofia, ao ir buscar os seus princípios à tradição sagrada, serve-se da fonte mais legítima, mesmo que tenha sido alterada; porque a palavra social, derivando da primeira, jamais poderá superá-la em integridade e em pureza". A filosofia, que é reflexão e se serve da palavra, pressupõe portanto a revelação de que nasce a própria palavra. Mas a filosofia é reflexão sobre o acto original do conhecimento humano, que é intuído. Neste, o espírito humano é puramente passivo; o objecto do intuído, que Gioberti designa com o nome platónico de Ideia, manifesta-se ao homem na própria criação do intuído, uma vez que, neste, subsistir e conhecer são inseparáveis e a verdade absoluta e eterna se manifesta ao homem de forma imediata (Intr., 11, p. 46, 1). Deste modo, o acto originário do conhecimento, a intuição, é uma relação imediata, total e necessária da mente humana com a verdade absoluta, com a Ideia. Mas a Ideia enquanto objecto do intuído não pode reduzir-se, segundo Gioberti, ao ser possível de Rosmini. A ideia rosminiana do ser é sempre um dado subjectivo e portanto insuficiente para fundamentar a objectividade do conhecimento. A intuição deve ter por objecto não o ser ideal e possível, mas o ser real e absoluto: o próprio Deus. Ao "cepticismo" de Rosmini, Gioberti contrapõe a doutrina de Santo Agostinho, de São Boaventura, de Malebranche, segundo a qual o homem é uma relação directa e imediata com Deus (Dos erros fil. de A. Rosmini, ed. nacio. 1, p. 74). No entanto, a intuição não é perfeita: apenas revela aos homens os elementos naturais e racionais da Ideia e não os sobrenaturais. Para os primeiros, a revelação só é necessária na medida em que fornece a palavra que é o instrumento indispensável da sua explicação reflexa; mas para os segundos a revelação é necessária na medida em que só através dela podem ser manifestados. As verdades sobrenaturais dependem apenas da palavra revelada; não são a sua prova, surgem por ela provadas, não se intuem, acredita-se nelas; o conceito que se obtém é meramente ana91 lógico; e esta analogia não é baseada na intuição ou no discurso, mas na simples autoridade da revelação" (Ib., p. 43). A filosofia explica os elementos racionais da Ideia, a teologia revelada ou positiva os elementos sobrenaturais. Filosofia e teologia reunidas formam a ciência ideal perfeita, representando uma a face iluminada da Ideia, a outra, a face naturalmente obscura mas parcialmente iluminada pela palavra divina. A intuição é condição de todo o conhecimento mas não é o próprio conhecimento, que só se inicia com a reflexão. A reflexão circunscreve e determina o objecto da intuição através da expressão sensível, mediante a palavra. Dai a possibilidade de encerrar numa fórmula a revelação que através da intuição o Ser absoluto faz de si próprio. Esta fórmula é a fórmula ideal. trata-se de "uma proposição que exprime a Ideia de forma clara, simples e precisa, através de um juízo" (Ib., p. 147). Uma vez que o homem não pode pensar sem julgar, não lhe é dado pensar a Ideia sem fazer um juízo, cuja expressão é a fórmula ideal. Eis o primeiro juízo contido nesta fórmula: o Ser é necessariamente. Uma vez que pela intuição o homem é absolutamente passivo, o autor deste juízo é o próprio Ser que, segundo Gioberti (Ib., p. 174) "se revela a si mesmo e exprime a própria realidade ao nosso pensamento através da inteligibilidade co-natural à sua essência e que é necessária ao exercício da virtude cognitiva em todo o espírito criado". O Juízo, o Ser, é um juízo reflexo formulado pela razão humana através da palavra, e exprime o Eu sou que o próprio Ser pronuncia de forma imediata à intuição pelo homem. Por isso a filosofia parte de um juízo divino e objectivo, que ela repete através da reflexão e circunscreve por meio da palavra. Gioberti afirma que "Deus, no rigor da palavra, é o primeiro filósofo e a filosofia humana é a continuação e a repetição da filosofia divina"; e diz ainda que "o trabalho filosófico não
começa com o homem mas com Deus; não vai do espírito ao Ser, desce do Ser ao espírito" (Ib., p. 175). Isto implica a condenação do psicologismo que pretende seguir o processo oposto; dai a falsidade radical da filosofia moderna, e a verdade do ontologismo. 92 O juízo, o Ser, constitui apenas uma parte da fórmula ideal porque na realidade constitui apenas um só termo, apesar de a fórmula ideal ser a unidade orgânica e completa de três termos, sujeito, cópula e predicado. O segundo termo da fórmula é o existente, isto é, uma realidade que não é por si e requer como sua causa o Ser absoluto. O existente não pode ser produzido senão pelo Ser: o Ser é por necessidade criador, entendendo-se por criação "uma acção positiva e real mas livre, pela qual o Ser (ou seja, a substância e causa primeira) cria as substâncias e as causas segundas, ordena-as e contém-nas em si próprio, mantém-nas no tempo com a imanência da acção causante que, em relação às coisas produzidas, é uma continua criação" (Ib., p. 190). Na fórmula que exprime adequadamente a intuição, o Ser cria o existente, existem três realidades independentes da mente humana: uma substância ou causa primeira, uma multiplicidade orgânica de substâncias e de causas segundas, e um acto real e livre da substância primeira e causante pelo qual o Ser único se liga à multiplicidade das existências criadas. Com esta fórmula surge evidente, segundo Gioberti, que o espírito humano "é em todos os instantes da sua vida intelectiva espectador directo e imediato da criação" Ob., 11, p. 183). Todo o conhecimento racional do homem é uma explicação da fórmula ideal, que contém já em si, como se viu, os axiomas de substância e de causa que dela extraem o seu valor apodíctico. E em geral todo o raciocínio, toda a concatenação de uma ideia com outra, não é mais que o conhecimento sucessivo que o homem tem do acto criador e do processo cósmico. O processo psicológico da mente, que se move no sentido da verdade, repete por conseguinte o processo ontológico pelo qual o objecto desta verdade se constitui por virtude da acção directa de Deus. Segundo este ponto de vista, Gioberti afirma que a verdade e a ciência são, por natureza, católicas, já que só o catolicismo unifica filosofia e teologia colocando entre ambas o acto criador de Deus. Dessa fórmula ideal deriva portanto toda a enciclopédia das ciências. O seu sujeito, o Ser absoluto, dá lugar à filosofia e à teologia; o seu predicado, o existente, dá lugar às ciências físicas que estudam a natureza sensível, a existência finita; a 93 cópula, o conceito de criação, forma a matéria das matemáticas, da lógica e da moral (Ib., pp. 3-5). Mas o homem não é apenas espectador, é também autor no ciclo criativo. Com efeito, este não termina com a criação do existente, pois o homem refere o existente a si próprio e fá-lo participante da sua perfeição. Isto acontece por virtude da vida moral, através da qual o homem, livremente, se torna merecedor da santidade que é o seu regresso ao Ser. O existente regressa ao Ente (ser), tal é a segunda parte da fórmula ideal que exprime a perfeição e o remate do ciclo criativo. Enquanto que na primeira parte o ciclo é apenas divino, na segunda parte é simultaneamente humano e divino, porque as forças criadas concorrem, como causas segundas, para o conseguirem, com a acção promotora e governante da causa primeira. "Saída de Deus e regresso a Deus, tal é a filosofia e a natureza, a ordem universal das cognições e da existência. A ontologia que é a ciência dos princípios diz respeito principalmente ao primeiro ciclo e a ética ao segundo: uma é a base, a outra o cume do saber. A religião, que é a filosofia e a sabedoria levadas ao extremo, estende-se para ambas e envolve-as no mesmo abraço" Ob.,
111). O progresso do homem no sentido da perfeição é por conseguinte um regresso no sentido da perfeição e da unidade primitiva. Mas este progresso não é possível senão com a ajuda da revelação que renova a verdade primitiva entre os homens. Gioberti defende explicitamente o sobrenatural entendendo-o como "o domínio da Ideia sobre o conceito e sobre o sentido e do Ser sobre as existências materiais e espirituais" (M., III, p. 161). O milagre torna-se necessário e inteligível pelo predomínio da ordem moral sobre a ordem espiritual, predomínio que justifica a intervenção directa e imediata de Deus. O progressivo aperfeiçoamento do homem, tendendo para um termo infinito e não atingível no tempo, implica o conceito de supra-inteligível. A supra-inteligência não é mais que "o sentimento da virtude intelectiva não explicável no decurso do tempo e que surge no fim do segundo ciclo criativo" (Ib., IV, p. 10). Segundo este ponto de vista, a morte é "a conversão do supra-inteligível em inteligível e o remate da cognição ideal". O suprainteligível só é conhecido positivamente através de analogias re94 veladas. Fora da revelação, apenas se pode ter dele um conceito muito geral, formado pela noção abstracta do Ser e da sua relação negativa com o inteligível. Ao supra-inteligível corresponde, na ordem dos factos, o sobrenatural que Gioberti justifica com o "sentido especial dado pelo Ser ao existente de modo a reconduzir este àquele como a um fim último" Ob., IV, p. 33). O sobrenatural é portanto um convite e uma solicitação continua ao homem para que regresse ao Ser que lhe dá origem. Só o homem, entre todos os seres existentes, consegue, pela sua liberdade, este regresso. Com efeito, se o primeiro cicio é fatal e apenas ontológico para o homem, como é para todos os outros seres existentes, o segundo ciclo, o do regresso ao Ser, é psicológico, voluntário, moral, e fruto de uma livre escolha. Se o homem, em vez de aspirar ao Ser, se afasta dele e se considera como fim, perturba a ordem moral do universo, coloca-se no mesmo piano da matéria e aproxima-se do nada. O divórcio espontâneo do Ser está na base da imoralidade, do mal e do regresso, do qual nasce a culpa, a dor e o castigo Ob., IV, p. 38). Com esta doutrina, Gioberti reproduziu os traços mais evidentes de um neoplatonismo cristão, que se encontra na patrística oriental (por exemplo, em Gregório de Nisa) e em Escoto Erígena. De original nesta doutrina neoplatónica apenas existe a concepção de intuição, ou seja, a pretensão de que o homem "é espectador directo e imediato da criação". Mas esta pretensão chega a Gioberti através da própria filosofia moderna que ele procura combater e eliminar; ela é, com efeito, a transcrição objectiva do valor da subjectividade humana, que é o princípio daquela filosofia. § 624. GIOBERTI: A DIALÉCTICA DA MIMESIS E DA METHEXIS Os escritos póstumos e sobretudo a Protologia dão origem ao problema da relação entre a doutrina de Gioberti e a de Hegel. Não há dúvida que as duas doutrinas se ligam uma à outra em razão da unidade da sua inspiração histórica: ambas se reconduzem ao neoplatonismo alexandrino e 95 às suas revivescências cristãs. É evidente que as referências polémicas a Hegel, pouco frequentes nas obras anteriores de Gioberti, passam a ser contínuas e incessantes nas obras póstumas, como se Gioberti sentisse a necessidade de diferenciar, a todo o passo, o seu pensamento de uma doutrina afim e fortemente sugestiva. Por outro lado, não é menos certo que os pontos fundamentais do pensamento giobertiano expostos na Introdução se mantêm defendidos com a mesma firmeza nas obras póstumas e que também nestas
podemos encontrar uma linha panteísta, que atribui um significado fundamental e central ao conceito de criação. Tudo o que se pode dizer a este propósito é que Gioberti procurou exprimir na Protologia o seu pensamento fundamental através duma nova linguagem, tendo em consideração, sempre que possível, as instâncias fundamentais do hegelianismo. O primeiro ponto dessa nova expressão do pensamento giobertiano numa diferente linguagem é o conceito de pensamento imanente, que vem substituir o de intuição. "0 Ser intuído no estado imanente do pensamento, afirma Gioberti (Prot., 1, p. 173), é perfeitamente objectivo. A imanência do pensamento consiste portanto no facto de ela excluir todas as propriedades subjectivas no objecto contemplado, e transferindo no próprio pensamento a imanência (não digo eternidade) do objecto e excluindo a sucessão contemporânea". As características do pensamento imanente são recapituladas por Gioberti da forma seguinte: "l? - o Ser inteligível cria o pensamento humano por meio de uma acção imanente e cria-o dando-se-lhe a conhecer; 2? - esta criação é continua como o pensamento; 3? - o Ser não existe fora ou dentro do espírito, mas sacia-o com a sua imensidade, de tal modo que se pode afirmar que o ser imanente existe no ser inteligível" (Ib., p. 175). Gioberti reafirma assim o carácter puramente passivo do pensamento imanente, no qual não existe reacção por parte do homem à acção do objecto inteligível; e distingue-o de todas as formas de reflexão que, pelo contrário, são uma actividade livre do homem, têm lugar no tempo e necessitam da palavra (ou seja, do elemento sensível) para que possam ser possíveis. Mas é evidente que o pensamento imanente, como criação que Deus faz do espírito humano no acto de se manifestar, não é idên96 tico ao próprio Ser, ou seja, a Deus; e Gioberti afirma explicitamente que o erro de Schelling, de Hegel e de outros filósofos alemães está em terem formulado tal identidade (Ib., p. 174). A criação-revelação é portanto aquilo que distingue o pensamento imanente de Gioberti da Ideia hegeliana. Na Ideia hegeliana, o ser é pensamento; no pensamento imanente giobertiano, o ser cria o pensamento e cria-o revelando-se-lhe como ser. Segundo este mesmo ponto de vista surge a nova versão de Gioberti da relação entre finito-infinito. A síntese do finito com o infinito é uma síntese de criação, não de continência ou identidade. "0 infinito não é limitado pelo finito, é dele distinto substancialmente, porque este último foi criado do primeiro". (Ib., 1, p. 406). A infinitude de Deus consiste na unidade e na plenitude do acto criador. "0 infinito de Hegel, sendo indeterminado e consistindo numa mera potência destituída de verdadeira força criadora não pode ser um acto e, por conseguinte, não é um infinito intensivo, que é o verdadeiro infinito. Aquilo que se costuma designar por infinito determinado e pessoal é o acto infinito: ora o acto infinito é a criação substancial" (Ib., p. 437). Ao conceito da infinita potência criadora liga-se o de cronotopo, o de espaço e tempo puros, intuídos no acto de pensamento imanente. O cronotopo é infinito como o próprio Deus; mas a imaginação circunscreve-o necessariamente, e uma vez que não o pode representar senão num lugar e num tempo determinados, num centro, numa época, etc., só poderá representá-lo através do existente (Prot., 1, pp. 453-54). O cronotopo é o próprio Deus; mas é Deus como ideia ad extra, como possibilidade infinita da criação; porque não é de natureza subjectiva e humana, mas objectiva e divina (Ib., pp. 526-27). Como possibilidade da criação, o cronotopo reside no pensamento divino, na mentalidade pura e é portanto eterno enquanto condição do tempo. Uma vez mais, Gioberti contrapõe à relação de identidade estabelecida pelos panteístas entre o eterno e o tempo, uma relação da derivação e subordinação tornada inteligível pelo acto criativo (Ib., p. 545).
97 Estabelecido o ponto crucial da distinção entre a sua doutrina e o idealismo absoluto, Gioberti pode reconhecer a exigência e a validade de uma dialéctica que exprima os dois momentos do ciclo criador (0 Ser cria o existente, o existente regressa ao Ser). No entanto, trata-se de uma dialéctica do finito, do existente, do mundo criado como tal; e os termos que a exprimem são extraídos, significativamente, do platonismo. O primeiro momento da dialéctica é a mimesis ou imitação; o aspecto pelo qual o mundo se afasta de Deus, ainda que imitando imperfeitamente a natureza, e através do qual se apresenta como multiplicidade, mutação, luta, temporalidade, contingência, sensibilidade. O segundo momento, correspondente ao segundo ciclo criador, é a methexis ou participação, pela qual o mundo regressa, em razão do homem, a Deus e reencontra a sua unidade, a sua harmonia e a sua paz, numa palavra, a sua plena inteligibilidade. A methexis representa o ciclo da palingénese que tem por objectivo final o reino de Deus. A dialéctica da mimesis e da methexis permite a Gioberti reproduzir a divisão hegeliana dos três mundos, lógica, natureza e espírito. "Três mundos: pré-sensível, sensível, supra-sensível. O primeiro é a methexis inicial e virtual; o segundo a mimesis; o terceiro a methexis final e actual. A mimesis é o esforço da methexis inicial para alcançar o final. Os dois mundos da methexis estão fora do tempo. O mundo pré-sensível é o género abstracto; o ultra-sensível é o género concreto e plenamente individualizado" (Prot., 11, p. 107). Sob a sugestão e exemplo de Hegel, Gioberti socorre-se dos conceitos dialécticos de mimesis e methexis para a solução, muitas vezes arbitrária e verbal, dos mais diversos problemas. Assim, por exemplo, a civilização é "o progresso methexis do espírito humano", ao passo que o regresso corresponde à mimesis (Ib., 11, pp. 273-75); o corpo é a mimesis, a alma a methexis, a mulher é mimesis, o homem é methexis (Ib., p. 319); a geração é um acto metésico; o movimento é próprio da masculinidade, a passividade pertence ao que é feminino (Ib., pp. 396-97). As próprias raças humanas estão hierarquicamente ordenadas segundo o mesmo princípio (Ib., p. 557 e segs.), o que leva Gioberti a pronunciar a condenação da raça negra pela seguinte razão (Ib., p. 221): "0 negro é a pri98 vação da luz, mimesis da inteligibilidade. A estirpe negra é a mais degenerada das três linhagens humanas, e a menos inteligível e inteligente, a menos apta para a civilização". Motivos análogos e opostos levam-no a exaltar a raça branca e dentro dela sobretudo a chamada "estirpe pelágica", a italiana. A tendência, já manifestada nas primeiras obras de Gioberti, para mitificar e para fornecer justificações pseudo-filosóficas das mais incríveis noções e preconceitos, encontrou um poderoso encorajamento no exemplo de Hegel. No que se refere à palingénese, ao regresso final e perfeito da existência ao Ser, Gioberti altera de certo modo a distância que separa o mundo de Deus; mas aqui a sua distinção do panteísmo está verdadeiramente suspensa por um fio. Gioberti afirma que a deificação do mundo, ainda que seja o termo final e absoluto do ciclo, jamais poderá ser conseguida no tempo; mas reconhece ao mesmo tempo que "Deus, presumindo na sua actual infinitude a infinitude potencial do mundo, vê tal infinitude realizada; e por isso é verdadeiro afirmar que em relação a ele o mundo é Deus e, por conseguinte, Deus não vê no mundo outra coisa senão ele próprio" (Prot., 11, p. 665). Noutras palavras, o panteísmo, falso em relação ao homem, é verdadeiro do ponto de vista de Deus. No segundo ciclo, o homem actua como um Deus inferior que imita o Deus supremo. "Os panteístas egoístas (Fichte) são mais razoáveis que os naturalistas porque, na verdade, o homem é Deus; mas um Deus criado. Deus é criador e incriado; o homem é criador e criado. Deus é infinito no presente; o homem é-o potencialmente" (Ib., p. 670). As características neoplatónicas 'da doutrina
de Gioberti estão aqui ainda mais acentuadas: as próprias frases são de Escoto Erigena. Um ponto no entanto continua a separar a doutrina de Gioberti da de Hegel, também esta dominada pela inspiração neoplatónica: a contingência do mundo em relação a Deus, contra a necessidade, afirmada por Hegel, da manifestação de Deus no mundo. Se se prescinde deste ponto, que em Gioberti deriva da inspiração católica do seu pensamento, as duas doutrinas acabam praticamente por coincidir. Com efeito, Gioberti pode entoar um hino à consciência e ao pensamento que mais parece ter saldo da pena de Hegel. "Toda a realidade é consciência ou 99 inicial e potencial ou actual e completa. Com efeito, a realidade não é realidade se não se possui a si própria, se não se reflecte em si, se não é idêntica a si própria. Esta identidade e reflexão intrínseca é a consciência. Daí serem sinónimos consciência e realidade. Deus e universo são ambos consciência; uma infinita actualmente, outra potencialmente. Fora da consciência nada existe, nem nada pode ser. Existência, pensamento, consciência, fazem um todo único. Os vários graus, estados e processos da realidade são os mesmos da consciência. E a consciência é a alma; logo a alma é tudo. Este psicologismo transcendente é o verdadeiro ontologismo. A intuição é a parte peregrina e profunda do sistema de Fichte. O resto é antropomorfismo" (Ib., II, pp. 725-26). No entanto, o carácter contingente e livre da criação reveladora permite a Gioberti justificar também a outra revelação, a histórica, e de se professar católico. A Filosofia da revelação coloca explicitamente uma ao lado da outra: a revelação criadora da intuição e a revelação histórica. "Duas revelações: uma racional, imanente, universal, natural, imediata, interna, potencial, existente na intuição; a outra positiva, transitória, particular, sobrenatural, mediata, externa, actual, consistindo no ensino interno e sobrenatural feito por Deus a certos homens e por eles comunicado exteriormente aos outros homens... A revelação imanente é idêntica à criação da mentalidade pura, assim como criar uma mente e revelar-lhe o criado e o criador e o acto que cri@ é uma só coisa" (Fil. da revel., pp. 5455). Este conceito de revelação aproxima a doutrina giobertiana, por um lado, do espiritualismo ecléctico francês e de Maine de Biran, por outro, do idealismo romântico alemão. Ele fornece-nos o ponto de convergência e de unificação de todo o pensamento romântico de oitocentos: que, de uma forma ou de outra, pretende referir o finito ao infinito, o homem a Deus, e que nas suas ramificações procura distinguir ou identificar os dois termos. 100 § 625. GIOBERTI: AS DOUTRINAS POLITICAS As primeiras obras de Gioberti, A teórica do sobrenatural e a Introdução continham já os princípios políticos que ele iria demoradamente demonstrar no Primado. O Primado dos italianos é deduzido por Gioberti da sua forma ideal, "o Ser cria o existente". Aplicada à sociedade humana, esta fórmula: "a religião cria a moral e a civilização do género humano". Como o cristianismo é a única religião que mantém e conserva integra a revelação divina e como a Igreja católica é a única depositária e intérprete da revelação divina, Gioberti vê no catolicismo toda a civilização do género humano e na história do catolicismo a história da humanidade como tal. Mas o catolicismo tem o seu centro na Itália onde reside o seu chefe; a história da Itália está ligada mais que a de qualquer outro pais à história do catolicismo e por conseguinte da civilização universal. Gioberti descobre os primórdios da história do catolicismo na própria civilização da Grécia, ou seja, na "estirpe pelágica" que ele, como Vico, sustenta ser a primeira depositária da ciência itálica.
Nos outros países da Europa, o principio da liberdade de investigação, afirmado por Descartes e por Lutero, rompeu com a unidade da tradição universal e constitui uma ameaça de anarquia e de guerra. Dai o interesse de toda a civilização em regressar à tradição católica; e este regresso não pode ser senão um regresso à Itália, que é o centro desta tradição. A Itália deverá portanto retomar a sua missão hierática e civilizadora, conciliar tradição e progresso, unificar o elemento laico e o elemento sacerdotal que aparecem divididos e em oposição. Tal é o objectivo que Gioberti atribui ao Risorgimento italiano por ele concebido como uma exigência da civilização universal que deve reencontrar na tradição autêntica da humanidade os elementos da sua vida e do seu progresso. De acordo com estes conceitos, Gioberti apresentava o seu programa político concreto: o de uma federação de estados italianos que tivesse como chefe o papa e como instrumento secular a força militar do Reino da Sardenha. Parece inútil reafirmar o carácter utópico e arbitrário de tais locubrações, que na mente de Gioberti se apresentavam como filosoficamente e politicamente realistas. Os entusias101 mos suscitados e, mais ainda, a função histórica exercida pelo Primado nos anos do Risorgimento devem-se à tese geral da obra; que, pela primeira vez, colocava o problema do Risorgimento italiano, já não em termos de insurreição ou de ruptura violenta com a tradição religiosa e política, mas precisamente nos termos dessa tradição, fazendo surgir uma solução que não parecia lesiva dos interesses espirituais e políticos das classes dominantes e dos estados italianos. Fracassada em 1848-49 a política do neoguelfismo, Gioberti publicava em 1851 a Renovação política de Itália que, deixando de pé a estrutura filosófica das obras anteriores, vem modificar substancialmente as directrizes políticas. Enquanto que no Primado Gioberti limitava o seu apelo aos estados e às classes dirigentes, na Renovação volta-se para o povo e faz-se porta-estandarte de uma renovação democrática da vida italiana e da Europa em geral. A soberania deve expandir-se até se identificar com o povo: mas isto exige a instrução das classes populares e a sua elevação económica. Ao contrário do principio comunista da abolição da propriedade privada, Gioberti afirma o carácter e a finalidade social e moral da mesma; e reconhece a exigência de que o estado intervenha na transmissão e na distribuição da riqueza de forma a favorecer o bem-estar do género humano. Gioberti via essa renovação italiana no quadro da renovação europeia e reafirmava a espiritualidade do movimento histórico através do qual uma Nação pode reconhecer-se e afirmar-se como realidade. Reconhecida a impossibilidade de submeter o papado às exigências da unificação nacional, Gioberti via no Piemonte o estado que deveria assumir o objectivo de levar a cabo essa mesma unificação. Ao mesmo tempo, nos aspectos que permaneciam inéditos, Gioberti defendia uma reforma católica, que deveria reconduzir o catolicismo à pureza da revelação original, reunindo de certo modo a tradição interna com a externa, a palavra revelada com a pronunciada directamente por Deus no espírito do homem. Gioberti fala na Reforma católica de uma poligonia do catolicismo, ou seja, na defesa da existência da palavra revelada na individualidade de cada um, ainda que a mesma se mantenha na sua totalidade (que é a Igreja) harmónica e una, tal é um polígono de infinitas faces 102 (Ref. cat., ed. Balsamo-Crivelli, pp. 147-48). "Dir-se-á, acrescenta Gioberti, que o Papa, os Bispos, etc., não entendem o catolicismo à minha maneira. Mas os que levantam esta
objecção são os que não me compreendem; por isso respondo que se eles entendessem o catolicismo à minha maneira, era eu quem estava errado. Com efeito, aqueles, como homens que são, pertencem a uma face mais ou menos larga do polígono, e não podem abraçá-lo na sua totalidade. Ninguém o consegue, a não ser Deus. Mas à medida que os graus se elevam, quem se coloca neles alcança um maior número de faces". Esta poligonia ou multilateralidade do catolicismo não anula no entanto o seu elemento subjectivo, imutável e permanente. Os dogmas católicos são imutáveis, mas apenas como potencialidades, como capacidades de promover o progresso da tradição histórica. "Os dogmas católicos são imutáveis, mas apenas potenciais; não podem alterar-se porque são potências. Nas forças criadas a potência é a única coisa imutável; o acto varia continuamente no tempo" (Ib., p. 32). A reforma católica deverá consistir em retirar a Igreja da sua rigidez medieval e fazer dela uma civilização, uma força propulsora do progresso civil (Ib., p. 37). Deste modo a defesa da tradição, da qual Gioberti tinha partido nas suas primeiras tentativas filosóficas, passa a ser, por último, a defesa do progresso civil que surge identificado com ela. "A ideia católica passando do que fala para o que ouve, através da tradição, consistindo essa passagem no facto de o ouvinte excitado pela palavra fazer nascer a ideia, deverá variar segundo os tempos, os lugares, os indivíduos. E tal como o espírito humano existe em progressão, segundo a linha sucessiva do tempo, também a ideia ao transmitir-se se explica, e de um modo geral, o ouvinte sendo de uma geração mais nova, recebe uma ideia mais ampliada. Portanto a tradição é progressiva" (Ib., p. 56). Estas conclusões de Gioberti evidenciam as afinidades fundamentais que se verificam sob os contrastes violentos e as acerbas polémicas da época entre o panteísmo e os defensores do transcendentismo, entre o progresso e a tradição. O conceito romântico de uma revelação infinita que domine a realidade e a história e constitua o valor de ambos está na 103 base destes contrastes. Segundo ele, a única realidade é o Infinito, o Absoluto, a Ideia, Deus, manifestando-se infinitamente ou revelando-se na história. O conceito de progresso é um dos corolários dessa doutrina fundamental e um dos sinais pelos quais se reconhece o parentesco ou afinidade existente entre os pensadores em polémica. § 626. MAZZINI As concepções de Rosmini e de Gioberti são dominadas pela ideia de tradição; o pensamento de Mazzini é dominado pela ideia de progresso. Mas a aparente antítese das duas concepções, e a violenta polémica que entre elas se estabelece, não consegue fazer desaparecer a identidade de aspirações existentes em ambas: o próprio progresso é a tradição ininterrupta do género humano, assim como a tradição é o seu progresso incessante. Acentuar no entanto, como faz Mazzini, o conceito de progresso, implica uma diferença importante do ponto de vista prático-politico; uma vez que significa colocar a ideia de tradição ao serviço da transformação da sociedade e das instituições. Giuseppe Mazzini (Génova, 22 de Junho de 1805 - Pisa, 10 de Março de 1872) foi o profeta e o apóstolo da unidade do povo italiano, unidade entendida por ele no quadro da cooperação e da harmonia entre todos os povos do mundo. O mais próximo e directo inspirador de Mazzini é Lamennais, de quem em 1839 traçava um perfil entusiástico (Escritos, ed. nacion. 17?, p. 345 e segs.). O mérito de Lamennais consiste, segundo Mazzini, em haver reconhecido, e desenvolvido na filosofia, o valor da tradição. "Restituiu os seus direitos à tradição sem a qual não existe filosofia; insuflou na própria filosofia um sopro de nova vida, integrando-a com as forças sociais das quais ela se
encontrava cada vez mais afastada. Perturbado então por fortes tendências políticas, Lamennais confundia a extensão e as consequências dos princípios por ele enunciados e encarava a tradição de modo arbitrário e limitado; mas reabria o caminho, e isso nos basta para darmos valor ao seu trabalho" (Ib., pp. 365-66). O factor que corrige o que de imóvel e limitado possui 104 a tradição renovando-a e impelindo-a para a frente é, segundo Mazzini, a consciência individual. "Os dois únicos critérios que para nós conseguem atingir o verdadeiro (são) a consciência e a tradição. Sendo progressiva a manifestação do Verdadeiro, os dois meios que possuímos para descobri-lo devem transformar-se continuamente e aperfeiçoar-se, mas não podemos suprimi-los sem nos condenarmos às trevas eternas; também não podemos suprimir um ou submetê-lo a outro, sem dividirmos irreparavelmente a nossa potência. A individualidade, a consciência, exercida isoladamente conduz à anarquia; a sociedade, a tradição, quando não interpretadas e integradas nos caminhos do futuro da intuição da consciência, geram o despotismo e a imobilidade. A verdade está no ponto de intercepção dos dois elementos" (Condições e futuro da Europa, 1872, ed. nac., vol. 6?). Consciência e tradição constituem para Mazzini, na sua síntese, a "manifestação do Verdadeiro" , ou seja, a revelação da verdade no decurso da história humana. Esta revelação é aquela a que Mazzini chama também, com a famosa frase de Lessing, "educação progressiva da humanidade" (Deveres do homem, 1841-60, ed. nac. 69?, p. 88), que considera como lei fundamental da humanidade a lei pela qual a humanidade se traduz' na própria manifestação de Deus. "Deus incarna-se sucessivamente na humanidade. A lei de Deus é una tal como Deus; mas nós descobrimo-la artigo por artigo, linha por linha, na medida em que se vai acumulando a experiência educadora das gerações que nos precedem, e cresce em amplitude e em intensidade a associação entre as raças, entre os povos, entre os indivíduos" (Ib., p. 46). O seu progresso é a própria revelação de Deus. "Deus é Deus e a humanidade é o seu profeta" (Esc. inéd. e publ., XIV, p. 92). Por isso o conceito mais elevado a que o homem pode aspirar é o da humanidade e do progresso, que é a sua lei. Ele é a única via para o homem se elevar até Deus; e é inútil querer demonstrar Deus. "Deus existe porque nós existimos. Deus vive na nossa consciência, na consciência da humanidade, no universo que nos circunda" (Deveres do homem, ed. cit., p. 23). O conceito romântico da infinita revelação progressiva domina a concepção de Maz105 zini como dominava o positivismo e boa parte da filosofia de Oitocentos. Desse conceito, Mazzini deduzia todos os seus corolários morais e políticos. A tradição, o progresso e a associação são para ele três coisas sagradas. "Acredito na imensa voz de Deus que os séculos me oferecem através da tradição universal da humanidade; ela diz-me que a família, a nação, a humanidade são as três esferas dentro das quais o indivíduo deve trabalhar para o fim comum, no sentido do aperfeiçoamento moral de si próprio e dos outros, ou melhor, de si próprio através dos outros e pelos outros" (Ib., p. 142). Através da lei do progresso, todos os indivíduos e todos os povos têm uma missão que dá significado e valor às suas vidas. E como a vida é uma missão, o dever é a sua lei suprema. À afirmação dos direitos, própria da Revolução francesa e da filosofia de Setecentos, Mazzini opõe a afirmação do dever que deveria pertencer à filosofia política e moral de Oitocentos. O direito é fé individual, o dever é fé comum e colectiva, positiva e operante. O direito promove a revolta do indivíduo na defesa dos seus interesses; não o subordina a um fim mais elevado e não o torna capaz de sacrifícios. Só um conceito religioso e moral, baseado
no dever de contribuir para o progresso da humanidade, poderá permitir a renovação da sociedade humana, suscitando as energias dos povos e orientando-os nos caminhos da liberdade. Estes princípios deveriam conduzi-lo a uma posição oposta ao materialismo marxista e à I! Internacional operária que nele se baseava. Num trabalho de 1871, Aos operários italianos, Mazzini descrevia as características salientes desse materialismo em três pontos: negação de Deus, negação da Pátria, negação da propriedade individual. Com a negação de Deus, a lei da humanidade e do progresso torna-se inconcebível. "Excluída a existência de uma primeira Causa inteligente, está excluída a existência de uma lei moral suprema sobre todos os homens e constituindo para todos uma obrigação; está excluída a possibilidade de uma lei de progresso, de um desígnio inteligente regulador da vida da humanidade: progresso e moralidade passam a ser factos transitórios, sem outra origem que não seja a das tendências, impulsos do organismo de cada homem, e sem outras funções que 106 não sejam o arbítrio do homem, dos interesses mutáveis ou da força" (Escritos ed. e méd. XVII, p. 55). A negação da pátria significa portanto a negação "do ponto de apoio da alavanca com que podeis actuar a favor de vós e da humanidade; é como se alguém vos prometesse trabalho para depois vos negar qualquer partilha ou fechando-vos na cara a porta da oficina" (Ib., p. 57). A negação da propriedade individual significa a supressão de qualquer estímulo na produção, além do que resulta da necessidade de viver. "A propriedade, quando é consequência do trabalho, representa a actividade do corpo, do organismo, tal como o pensamento representa a actividade da alma: é o sinal visível do nosso contributo na transformação do mundo material, tal como as nossas ideias, os nossos direitos de liberdade e de inviolabilidade da consciência são o sinal do nosso contributo na transformação do mundo moral" (Ib., p. 59). Na realidade, não se deve confundir o nacionalismo da Europa feudal e dinástica com a nacionalidade que é apenas "uma atitude especial, arreigada na tradição de um povo, para melhor realizar determinada função no trabalho comum" (Nacionalismo e nacionalidade, 1871, Escritos ed. e inéd_ XVIII, p. 161). Por isso não se pode confundir o capitalismo, que é a chaga da sociedade económica actual, com o princípio da propriedade que é exigido pelo próprio progresso do género humano. "Assim como através da religião, da ciência, da liberdade, o indivíduo é chamado a transformar, a melhorar, a dominar o mundo moral e intelectual, também através do trabalho material é chamado a transformar, a melhorar e a dominar o mundo físico. E a propriedade é o sinal, a representação do cumprimento dessa tarefa, da quantidade de trabalho empregue pelo indivíduo na transformação, desenvolvimento, acréscimo das forças produtivas da natureza" (Deveres do homem, ed. cit., p. 121). A conclusão é a de que não é preciso abolir a propriedade pelo facto dela actualmente pertencer a alguns, poucos, mas sim encontrar a via que permite que muitos possam conquistá-la e exigi-Ia dentro do princípio que a torna legitima, fazendo com que só o trabalho a possa produzir Ob., p. 123). O pensamento de Mazzini exposto acidentalmente em proclamações, artigos, cartas (só nos Deveres do homem ele 107 apresenta sinteticamente as suas ideias) surge perante a necessidade de acção e é essencialmente dirigido no sentido de iluminar e dirigir a sua actividade de apóstolo, de homem político e de agitador. A expressão "Pensamento e acção" exprime o carácter da sua personalidade de filósofo: uma personalidade religiosa, que em todas as ideias, ainda que
de carácter geral e abstracto, descobre um principio de acção e o dever de um testemunho factual. Mas a religiosidade de Mazzini não se mantém agarrada a uma determinada forma histórica de religião; faz apelo a essa mesma tradição universal tão frequentemente proclamada pelo romantismo. Mazzini é o profeta de uma religião laica, onde as ideias da humanidade e de progresso humano vêm ocupar o lugar dos conceitos teológicos. § 627. EPíGONOS ITALIANOS DO TRADICIONALISMO ESPIRITUALISTA Galluppi, Rosmini e Gioberti abrem caminho para uma longa série de escritores tradicionalistas e espiritualistas que dominam o clima filosófico italiano da segunda metade de Oitocentos. Estes escritores não trazem qualquer inovação à problemática das teses que haviam já sido apresentadas pelos pensadores franceses e italianos, atrás expostos. Mas eles dão a essas teses um carácter limitado, provinciano e dogmático, pretendendo apresentá-las como originais e na qualidade de continuadores de urna pretensa tradição filosófica italiana. Terêncio Mamiani della Rovere (1799-1885) foi primeiramente um discípulo de Gallupi, cujas teses defende num trabalho intitulado Sobre a renovação da filosofia antiga italiana (1834). Nesta obra Rovere apresentava a sua filosofia como a "tradicional em Itália, onde certos princípios de filosofia e de método sempre alcançaram o crédito e a eficácia que lhe competem, correspondendo perfeitamente à própria índole que se mantém no génio italiano" (Renov., ed. 1836, p. 487). Assim como Galluppi tinha partido da certeza primitiva do mim e do fora de mim, também Mamiani nesta 108 obra distingue a certeza imediata do sentido íntimo e a certeza mediata da realidade exterior. A partir dai propõe-se demonstrar, nas pisadas de Galluppi, a substancialidade do eu e da realidade (dentro e fora dos fenómenos) e a existência de Deus. Depois do Exame crítico feito por Rosmini à obra de Mamiani e a resposta deste último (Seis cartas ao abade António Rosmini, 1838) e depois da publicação da Teórica do sobrenatural e da Introdução de Gioberti, o pensamento de Mamiani orientou-se para o ontologismo; e em 1841 publicou o trabalho Sobre a ontologia e o método e em seguida os Diálogos da primeira ciência (1846) e as Confissões de um metafísico (1865) que resumem o seu pensamento. Mamiani admite uma intuição originária do Absoluto (no sentido giobertiano) e faz da ideia de Absoluto o fundamento do conhecimento humano, como da realidade física e da história. No que se refere a esta última, Mamiani admite um progresso infinito e universal que se torna necessário e garantido pela própria bondade divina: já que Deus, querendo comunicar à criatura finita o máximo bem possível, não poderia fazê-lo senão mediante um desenvolvimento indefinido do ser limitado e uma extensão sem fim da sua perfeição. Mamiani insiste na "unidade orgânica" da humanidade, unidade segundo a qual ela caminha, como um só homem, no sentido de uma perfeição irrecusável. As ideias do romantismo filosófico assumem neste autor um optimismo vulgar. Aluno de Mamiani foi Luigi Ferri (1826-95) que deu às doutrinas do seu mestre um lugar importante no seu Ensaio sobre a história da filosofia em Itália no século XIX, publicado em Paris em 1869. Neste estudo, Ferri, que tinha vivido bastante tempo em França, abandona a tese cara ao seu mestre e a muitos escritores italianos, de uma filosofia italiana autóctone, e põe em destaque as conexões que unem a filosofia italiana do tempo à filosofia europeia. O título da revista fundada por Marniani em 1870 e por ele dirigida até morrer, "Filosofia da escola italiana" (ou seja, da antiga escola itálica), foi por Ferri substituído em 1870 pelo de "Revista italiana de filosofia". Em ensaios e estudos de natureza teórica, Ferri desenvolveu depois uma metafísica psicológica muito próxima da de Maine de Biran.
109 Angelo Conti (1822-1905) foi defensor de uma conciliação universal de todos os aspectos do tradicionalismo espiritualista no seio do tomismo. Conti foi autor de vários livros cujos títulos não deixam de ser significativos: 4 harmonia das coisas e a antropologia, cosmologia, teologia racional (1888); O belo no verdadeiro ou a estética (1891); O verdadeiro na ordem ou ontologia e lógica (1891); Literatura e pátria, religião e arte (1892). Conti apresentava a sua filosofia como sendo a própria "filosofia perene e progressiva"; mas na realidade não fazia mais que recolher os lugares-comuns do eclectismo contemporâneo, sem qualquer aprofundamento dos problemas que nele se ocultavam. Um maior sentido crítico destes problemas existe em Giovanni Maria Bertini (1818-76). Num primeiro trabalho, Ideia de uma filosofia da vida (1852), Bertini apresenta-se como defensor de uma intuição intelectual do infinito, que é o próprio intuito giobertiano. Mas a relação entre o infinito e o finito (do qual, tal como o próprio Gioberti, reconhecia a realidade) levou Bertini do "teísmo místico" sustentado na obra mencionada a um "teísmo filosófico", onde o carácter religioso e tradicionalista da sua primeira doutrina é menos frequente (A questão religiosa, diálogos, 1862; História crítica das provas metafísicas de uma realidade supra-sensível, 1865-66 e outros ensaios menores). O teísmo místico da Filosofia da vida é um teísmo tradicionalista que se apoia na revelação, quer para explicar a relação entre o infinito e o finito mediante a criação, quer para compreender a vida divina como relação entre as pessoas divinas. Nos escritos posteriores, Bertini chega à conclusão de que o teísmo místico é insustentável, uma vez que para ele "toda a essência e a vida divinas consistem no conhecimento e no amor que Deus tem de si, ou seja, um conhecimento e um amor a que falta qualquer objecto sendo por isso inconcebível" (Escritos filosóficos, ed. Sciacca, p. 166). Passa então a defender um simples teísmo filosófico, ou seja, um teísmo em que admite que o infinito se concretize e viva "numa multidão de seres ou mónadas nas quais predomina uma mónada infinita, que compreenda na sua inteligência essa pluralidade infinita". Por outras palavras, do espiritualismo tradicionalista Bertini passa a um espiritualismo monadológico que encontra reHo percussão em numerosas formas do espiritualismo contemporâneo, italiano e estrangeiro. § 628. O TRADICIONALISMO ESPIRITUALISTA EMINGLATERRA O princípio romântico do Infinito (Absoluto, Ideia, Deus), que se revela progressivamente na natureza e na história, encontra também na Inglaterra alguns representantes típicos. Na própria pessoa do mais eminente de entre eles, James Martineau (21 de Abril de 1805 - 11 de Janeiro de 1900) verifica-se a passagem (característica da filosofia francesa do mesmo período) de um empirismo baseado na percepção externa a um espiritualismo baseado na reflexão interna ou consciência, considerada como manifestação directa de Deus. Com efeito, Martineau foi primeiramente defensor do empirismo associacionista e passou depois a defender um espiritualismo tradicionalista que é substancialmente afim da filosofia contemporânea do continente. Significativamente, Martineau dedica um trabalho dos mais in- portantes que escreveu, O lugar da autoridade na religião (1890), onde a autoridade é concebida como força não exterior mas interior, intima da consciência e sua co-natural. Os outros trabalhos de Martineau são os seguintes: A racionalidade da investigação religiosa (1836); Tentativas de vida cristã (2 vols., 1843-47); Miscelâneas (1852); Estudos sobre o cristianismo (1858);
Ensaios (2 vols., 1868); A religião contaminada pelo materialismo moderno (1874); O materialismo moderno e a sua posição perante a teologia (1876); Análise dos substitutos ideais de Deus (1879); A relação entre a ética e a religião (1881); Horas de meditação sobre as coisas sagradas (2 vols., 1876); Estudo sobre Espinoza (1882); Tipos de teoria ética (2 vols., 1882); Estudos sobre a religião (2 vols., 1888); Ensaios, recensões e discursos (4 vols., 1890-9 1); A fé como princípio, o abandono como realização da vida espiritual (1897); Deveres nacionais e outros sermões (1903). Pelo carácter eminentemente religioso da sua vida e da sua obra, e pela orientação geral da sua filosofia, Martineau pode ser definido como o Rosmini britânico. Tal como Rosmini, Martineau sustenta que a validade do conhecimento consiste na sua objectividade e que tal objectividade se reporta em última análise ao pensamento, não a uma realidade natural, mas a Deus. O acto do conhecimento é sempre um objecto de juízo, mas é um acto de juízo no qual está implícita a relação do pensamento com a realidade. A própria realidade deve ser, portanto, acessível ao pensamento e essa acessibilidade é um pressuposto de todo o conhecimento. A fé num mundo real, que encontre a sua expressão no mundo do pensamento, não se deixa esclarecer psicologicamente; conserva toda a sua validade de fé e como tal é um pressuposto originário de toda a filosofia. Como Rosmini, e como todo o tradicionalismo espiritualista de Oitocentos, Martineau sustenta que a natureza e a história são a progressiva revelação de Deus. O mundo natural é com efeito o mundo da causalidade; uma causalidade que age no sentido de uma perfeição crescente, determinando a passagem do caos a um cosmos ordenado. Mas a única noção que o homem possui acerca da causalidade é a que deriva do exercício da sua actividade voluntária; assim, todas as forças que actuam no mundo só podem ser representadas como um querer; e um querer que move o mundo na direcção da ordem e da perfeição só pode ser um querer de Deus. " E assim, afirma Martineau (The Seat of Authority in Religion, 1905, p. 29), a última e mais aperfeiçoada generalização da ciência justifica a fé sublime em que a única força do universo fenoménico é o intelecto e a vontade de Deus, que assume as fases das forças naturais como modos de manifestação e vias de progresso no sentido da beleza e do bem". Se a autoridade de Deus se manifesta na natureza (mas sempre por intermédio da consciência) como força, manifesta-se directamente na consciência pelo dever moral. "0 sentido de autoridade que invade a nossa natureza moral e a suaviza com uma silenciosa reverência coloca-se sob algo que está mais acima que nós, que afirma os seus direitos sobre a nossa personalidade, a orienta, mantendo-se a par dos seus problemas com a sua presença transcendente" (Ib., p. 79). Deus não existe 112 GIOBERTI COMTE fora da natureza e do homem, ainda que os transcenda infinitamente. Deus actua sobre a história humana e determina o seu progresso. É Deus que inspira ao homem os ideais que ele realiza ou procura realizar na história. A história é a educação progressiva do género humano, na medida em que é uma civilização progressiva que tem os seus corifeus e os seus pesos mortos; e as Nações que são capazes de dar impulso ao progresso passam a ser depositárias da confiança divina (Ib., p. 125). O progresso da história consiste, para Martineau, na sua progressiva moralização. Na história vence sempre o mais forte, mas não o mais forte fisicamente (de outra forma, a terra seria dominada pelo elefante ou pelo búfalo em vez de ser pelo homem) mas o mais forte moralmente; (A Study of Rel., 11, 1900, p. 112). Esta fé no progresso é por Martineau
ligada ao cristianismo e especialmente ao catolicismo pauliano que o estendeu a todos os homens, tornando-o verdadeiramente universal (Types of Ethical Theory, 1, 1901, pp. 49697). Daí a exigência do teismo, que é o único fundamento possivel para um governo divino do mundo. E o teísmo implica a transcendência. Martineau exprime a caracteristica lógica da transcendência, afirmando que, através dela, Deus é a essência do universo, mas a essência do universo não é Deus. A imanência, própria do panteismo, afirma os dois propósitos: Deus é a essência do universo e a essência do universo é Deus Ob., p. 22). Mas só a transcendência torna possível conceber Deus como sendo dotado daqueles atributos morais que fazem dele uma pessoa, tornando-a garante da ordem e do progresso moral do universo. Um ponto de vista semelhante ao de Martineau é sustentado e defendido por um grupo numeroso de pensadores e teólogos ingleses: Charles Upton (falecido em 1920); William Benjamin Carpenter (1813-85); Robert Flint (1838-1910); Alexander Campbell Fraser (1819-1914). Entre estes, é de lembrar especialmente o famoso orientalista Max Müller (1823-1900) que em 1881 iniciava a colecção dos "Sacred Books of the East" onde estavam incluidas todas as traduções dos livros sagrados do oriente. Max Müller definia a religião como "percepção do infinito". Distinguia, no seu desenrolar histórico, três estádios: o físico, o antropo113 lógico e o teosófico (ou psicológico); e explicava o carácter sagrado atribuído a certos objectos (como as montanhas, os céus, o crepúsculo, etc.,) pela presença neles de algo que não se deixa completamente apreender pela percepção sensível, e que é a percepção do finito (Origem e desenvolvimento da religião, 1878; Ciência do pensamento, 1887; Religião natural, 1889; Religião física, 1890; Religião antropológica, 189 1; Teosofia ou religião psicológica, 1892). O grande movimento romântico do regresso à tradição, que tinha encontrado no idealismo absoluto alemão a sua primeira e mais alta manifestação especulativa, polarizou durante os anos que vão de 1830 a 1890 a filosofia europeia em torno do principio da auto-revelação progressiva do Infinito. As reacções e as respostas que este princípio suscitou são, a princípio, prenúncios e vislumbres e mais tarde manifestações cada vez mais complexas e consistentes da filosofia contemporânea. Mas contemporaneamente ao espiritualismo tradicionalista, em polémica com ele e até mesmo ligado a ele pelas mesmas exigências e pela mesma estrutura, surgia um outro grande movimento romântico: o positivisMO. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 614. Sobre este período da filosofia francesa: CH. ADAM, La philosophie en France (Première moitié du XIXème siècle) , Paris, 1894; E. FAGUET, Politiques et Moralistes au XIXème siècle, 3 vols., Paris, 1898-1900; Autores diversos: La tradition philosophique et Ia Pensée françai.ses, Paris, 1922. Sobre de Bonald: A. FALCHI, Le Moderne dottrine teocratiche, Turini, 1908; H. MOULINI£, D. B., Paris, 1916; A. ADAMS, Paris 1916; A. ADAMS,DiePhilosophieD. B.s, Munique, 1923. Sobre de Maistre: F. PAULHAN, J. de Maistre et sa phil., Paris, 1893; FALCHI, op. cit.; E. DERMENGHEEN, J. de M., mystique, Paris, 1923; A. OMODEO, La cultura francese nell'età della Restaurazione, Milão,
1946. Sobre Lainennais: CH. BOUTARD, L., sa vie et ses doetrines@ 2 vols., Paris, 1905-08; C. MARECHAL, La Metaph. sociale de L., in "Ann de phil. chret. ", 1906; L., La dispute de Pessai sur Pindifférence, Paris, 1925; V. GIRAUD, La vie tragique de L., Paris, 1933; P. TREVEN, L., Milão, 1934; R. REMOND, L. et ta democratie, Paris, 1948. 114 § 615. Sobre a ideologia: F. PICAVET, Les Idéologues, Paris, 1891; Capone-Braga, Le filosofie italiana e firancese dei Settecento, Arezzo, 1920; 3! ed., 1947; e as obras citadas no parágrafo anterior. § 616. Sobre Cousin: J. SIMON, V. C., Paris, 1887, 4! ed. 1910; BARTHELEMY SAINT111LAIRE, V. C., 3 vols., Paris, 1885. § 617. A edição nacional das obras de Maine de Biran compreende até agora 14 vols.: Oeuvres de M. de Biran, accompagnées de notes e d'appendices, Paris, 1920-55. Ver também: Journal intime, ed., La Vallette-Monbrun, 2 vols., Paris, 1927-31. - É importante a precedente edição das obras fundamentais: Oeuvres inédites, ed. Naville, 3 vols., Paris, 1859. § 618. Sobre Maine de Biran: DELBOS, M. de B. et son oeuvre philosophique, Paris, 193 1; G. LE ROY, Lexperience de Peffort et de ta grace chez M. de B., Paris, 1937; R. VARCOURT, La théorie de ta connaissance chez M. de B., Paris 1944; M. GHIO, Biran e il Biranismo, Turim, 1947 (litografado, publicação do Instituto de Filosofia da Universidade). Neste último trabalho, bibliografia . § 619. Uma boa bibliografia de GaIluppi em Rocchi, P. G. storico della filosofia, Palermo, 1934: GENTILE, Storia delia filosofia italiana dai Genovesi ai G., 11, Florença, 1930; Vigorita, Genovesi, G., Spaventa, Nápoles, 1938; G. di Napoli, Lafilosofia di P. G., Pádua, 1947 (com bibliografia). § 620. Dos escritos de Rosmini, elenco completo em Caviglione, Bibliografia delle opere di A. R., Turim, 1925. - Das Obras está em vias de publicação a edição nacional, a cargo do Instituto de Estudos Filosóficos de Itália. Da Filosofia do direito é citada no texto a 2! ed., Intra, 1865; e da Filosofia dapolítica, a ed. de Milão, 1837. Sobre a formação filosófica de Rosmini: G. SOLARI, Rosmini inédito, em "Rivista di Filosofia", 1935, pp. 97-145. § 621. TOMMASEO, A.R., 1855, ed. Curto, 1929; GIOBERTI, Degli errorifilosofici di A. R., 1841, 2! ed. 1843-44; GENTILE, R. e Gioberti, Pisa, 1898; CARABELLESE, La teoria delia percezione intellectiva in A.R., Bari, 1907; PALHORIES, R., Paris, 1908; CAVIGLIONE, Il R. vero: sagio d'interpretazione. Voghera, 1912; CAPONE-BRAGA, Saggio su Rosmini. li mondo delle idee, Milão, 1914; GALLI, Kant e R., Città, di Castello, 1914; CHIAVACCI, 11 valore morale nel R., Florença, 1921; M. F. SCIACCA, La filosofia morale di A. R., Roma 1938; B. BRUNELLO, A. R., Milão, 1941; L. BULFERETTI, A. R. nelia Restaurazione, Florença, 1942; P. PRINI,ffitroduzione alia metafísica di A. R., Milão, 1953; A tti dei Congresso Internazionalle difilosofia A. R., 2 vols., Florença, 1957.
§ 622. Sobre a bibliografia giobertiana: A. BRUERS, Gioberti, Roma, 1924. Das edições nacionais das Obras, a cargo do Instituto de Estudos Filosóficos (Ital.), saíram os seguintes volumes: Degli errori filosofici di A. Rosmini (Redano), 1939; Dei Bello (Castelli), 1939; Dei Btiono (id.), 1939; Primato (Redano), 1938-39; Gesuita moderno (M. F. Sciacca), 1940-42; Introduzzione alio studio della Filosofia (Calo), 1939-41; incomp.; Prolegomeni ai Primato (Castelli), 1938; Cours de Philosophie, 1841-42 (Battistini e Calo), 1947. Sobre o Rinnovamento, ed. a cargo de F. Nicolini, Bari, 1911-12. 115 As citações do texto, quando não se referem à edição nacional, referem-se às seguintes edições: Introduzione alio studio delia filosofia, 4 vols., Capolago, 1845-46; Considerazione sulle dottrine religiose di V. Cousin, em apêndice ao vol. IV da Introduzzione, ed. cit.; Della Filosofia delia Rivelazione, ed. Massari, Turim-Paris, 1856; Della Protologia, ed. Massari, 2 vols., Turim-Paris, 1857; Delia Riforma cattolica e della libertá catollica, ed. BalsamoCrivelli, Florença, 1924. Epistolario, ed. nac. a cargo de G. Gentile e G. Balsamo-Crivelli, 11 vols., Florença, 1927-37; Pensieri di V. C., Miscellane, 2 vols., Turim, 1869-60; Meditazioni filosofiche inedite di V. C., ed. Solmi, Florença, 1909; Teorica dei sobrannaturale, Venza, 1850; Teorica della mente umana, ed. Solmi, Turim, 1910; Apologia dei gesuita moderno, Bruxelas-Livorno, 1848; Discorso preliminare alia Teorica dei sovranaturale, in Teorica dei sovrannaturale, vol. I, Capolago e Turim, 1850; Operette morali, ed. Massari, 2 vols., 185 1. § 623. Sobre a interpretação idealista do pensamento giobertiano: B. SPAVENTA, Lafilosofia di G., 1862; in Lafilosofia italiana nelle sue relazioni con Ia filosofia europea, ed. Gentile, Bari, 1908; La filosofia di G., Nápoles, 1863; GENTILE, Mazzini e Gioberti, in "Annali dekka Scuola Normale di Pisa", XIII, 1898, 1 Proferi dei Risorgimento italiano, Florença, 1923; G. SAITTA. Ilpensiero di V. G., Messina, 1917; A. ANZILOTrI, G., Florença, 1922; S. CARAMELLA, Laformazione deltafilosofia giobertiana, Gênova, 1927. Mais circunscritas à verdade histórica, as monografias de F. PRILHORIÉS, G., Paris, 1929; G. BONAFEDE, V. G., Palermo, 1941; e especialmente a de L. STEFANINI, G., Milão, 1947, a que remeto para quaisquer ulteriores dados bibliográficos (pp. 410-18). § 626. Os escritos de Mazzini foram primeiro recolhidos em Scritti editi ed inediti, cujos primeiros 8 volumes foram publicados com a sua participação (Milão, 1861-7 1), os outros 10 após a sua morte (Roma, 1877-9 1); depois na edição nacional, Imola, 1905 sgs.. G. SALVEMINI, M., Catania, 1915; ALESS. LEVI, La filosofia politica de G. M., Bolonha, 1917; DE RuGGIERO, Storia dei liberalismo europeo, Bari, 1925; GWILYMO. GRIFFITH, M.: Prophet of Modern Europe, Londres, 1932; L. SALVATORELLI, li pensiero politico italiano dai 1700 a 1870, Turim, 1935; H. KOHN, Prophets and Peoples, Nova lorque, 1947 (trad. ital., Turim, 1949). § 627. Sobre Mamiani, Ferri, Conti e Bertini: GENTILLE, Le origini della filosofia contemporanea in Italia, Messina, 1923; ALLINEY, I pensatori delia seconda metà dei sec.
XIX, Milão, 1942, (com bibliografia). Uma selecção de Escritos fiosóficos de Bertini foi editada por M. F. SCIACCA, Milão, 1942; com introdução e bibliografia. § 628. Sobre Martineau: J. H. HERTZ; The Ethical System of J. M., Nova lorque, 1894; A. W. JACK5ON; J. M., Boston, 1901; J. DRUMMOND and C.B. UTON; The Life and Leters of J. M., 2 vols. Londres, 1902; H. SIDGWICIK; Lectures on the Ethics of Green, Spencer and M., Londres 1902; J. ESTILIN CARPENTER; J. M. Theologian and Teacher, Londres, 1905; H. JONES, The phil. of M., Londres, 1905; C. B. UPTON; M.sPhil., Londres, 1905. 116 XI O POSITIVISMO SOCIAL § 629. CARACTERÍSTICAS DO POSITIVISMO O positivismo é o romantismo da ciência. A tendência própria do romantismo para identificar o finito com o infinito, para considerar o finito como a revelação e a realização progressiva do infinito é transferida e realizada pelo positivismo no seio da ciência. Com o positivismo a ciência exalta-se, apresenta-se como a única manifestação legitima do infinito e, assim, assume um carácter religioso, pretendendo suplantar as religiões tradicionais. O positivismo é parte integrante do movimento romântico do século XIX. Que o positivismo seja incapaz de fundar os valores morais e religiosos e, especialmente, o próprio princípio de que dependem, a liberdade humana, é um ponto de vista polémico, que a reacção antipositivista, espiritualista e idealista da segunda metade do século XIX fez prevalecer na historiografia filosófica. Assim se pode considerar justificado, no todo ou em parte, este ponto de vista. Mas é fora de dúvida que, nos seus fundadores e nos seus epígonos, o positivismo se apresenta como a exaltação romântica da ciência, como infinitização, como pretensão a valer de única religião autêntica e, por conseguinte, como 117 único fundamento possível da vida humana individual e social. O positivismo acompanha e promove o nascimento e a afirmação da organização técnico-industrial da sociedade, fundada e condicionada pela ciência. Exprime as esperanças, os ideais e a exaltação optimista que provocaram e acompanharam esta fase da sociedade moderna. O homem, nesta época, julgou ter encontrado na ciência a garantia infalível do seu próprio destino. Por isso rejeitou, considerando-a inútil e supersticiosa, toda a a garantia sobrenatural e pôs o infinito na ciência, encerrando nas formas desta a moral, a religião, a política, a totalidade da sua existência. No positivismo podem distinguir-se duas formas históricas fundamentais: o positivismo social de Saint-Simon, Comte e Stuart Mill, nascido da exigência de constituir a ciência como base de uma nova ordem social e religiosa unitária; e o positivismo evolucionista de Spencer, nascido da exigência de justificar o valor religioso da ciência com uma misteriosa realidade infinita que seria o seu fundamento. Apesar das suas comuns pretensões antimetafisicas, estas formas do positivismo são metafísica e a sua metafísica é ainda a do
romantismo. Nenhuma delas é necessariamente materialista. O materialismo, que alguns epígonos deduzem do positivismo evolucionista, é, ele próprio, uma metafísica romântica: a deificação da matéria e o culto religioso da ciência. § 630. A FILOSOFIA SOCIAL EM FRANÇA Os temas fundamentais do positivismo social são já evidentes na obra do conde Claude Henri de Saint-Simon (1760-1825). Industrial e homem de negócios, Saint-Simon conheceu os altos e baixos de um faustoso mecenato e de uma negra miséria. O seu primeiro escrito, As cartas de um habitante de Genebra aos seus contemporâneos, é de 1802. Seguiram-se-lhe: Introdução aos trabalhos científicos do século XIX (1807); Nova enciclopédia (18 10); Memória sobre a ciência do homem (1813, que permaneceu inédita até 1853); Reorganização da sociedade europeia (1914, em colaboração com Augustin Thierry). Os acontecimentos de 118 1814-15 deram a Saint-Simon o ensejo de escrever uma série de obras político-económicas. Em 1817 publicou A Indústria, que é uma das suas obras principais, à qual se seguiram: O Organizador, 1819-20; O sistema industrial, 1821-22; O Catecismo dos Industriais, 1823-24; O novo cristianismo, 1825. A ideia fundamental de Saint-Simon é a da história como um progresso necessário e contínuo. "Todas as coisas que aconteceram e todas as que acontecerão formam uma única e mesma série, cujos primeiros termos constituem o passado e os últimos o futuro". A história é regida por uma lei geral que determina a sucessão de épocas críticas e épocas orgânicas. A época orgânica é a que repousa sobre um sistema de crenças bem estabelecido, se desenvolve em conformidade com ele e progride nos limites por ele estabelecidos. Num certo momento, este mesmo progresso faz mudar a ideia central em que a época se firmava e determina assim o inicio de uma época critica. Deste modo, a idade orgânica da Idade Média entrou em crise com a Reforma e sobretudo com o nascimento da ciência moderna. O progresso científico, ao destruir as doutrinas teológicas e metafísicas, tirou o seu fundamento à organização social da Idade Média. A partir do século XV estabeleceu-se a tendência para fundar todo o raciocínio sobre os factos observados e discutidos, e tal tendência conduziu à reorganização da astronomia, da física e da química sobre uma base positiva. Tal tendência iria estender-se a -todas as outras ciências e, por consequência, à ciência geral que é a filosofia. Há-de vir, portanto, uma época em que a filosofia será positiva e a filosofia positiva será o fundamento de um novo sistema de religião, de política, de moral e de instrução pública. Só em virtude deste sistema o mundo social poderá readquirir a sua unidade e a sua organização que já não podem fundar-se em crenças teológicas ou em teorias metafísicas. Saint-Simon faz-se anunciador e profeta desta organização fundada sobre a filosofia positiva. Nela dominarão um novo poder espiritual e um novo poder temporal. O novo poder espiritual será o dos cientistas, isto é, dos homens "que podem predizer o maior número de coisas". A ciência, de facto, nasceu como capacidade de 119 previsão, como o demonstra a história da astronomia; e a verificação de uma predição é o
que dá a um homem a reputação de cientista. Por outro lado, a administração dos negócios temporais será confiada aos industriais, isto é, aos "empreendedores de trabalhos pacíficos que ocuparão o maior número de indivíduos". Saint-Simon está persuadido de que "esta administração, por efeito directo do interesse pessoal dos administradores, se ocupará, em primeiro lugar, de manter a paz entre as nações e, em segundo lugar, de diminuir o mais possível os impostos, de modo a empregar os produtos da maneira mais vantajosa para a comunidade". E ele demonstra com urna parábola a necessidade de confiar à classe técnica e produtiva o poder político. Se a França perdesse imprevistamente os três mil indivíduos que desempenham os cargos políticos, administrativos e religiosos mais importantes, o estado não sofreria dano algum; será fácil, de facto, substituir estes indivíduos por outros tantos aspirantes, que nunca faltam. Mas se a França perdesse imprevistamente os três mil cientistas mais hábeis e mais capazes, os artistas e artífices que possui, o dano para a nação seria irreparável. Dado que estes homens são os cidadãos mais essencialmente produtores, os que oferecem os produtos mais necessários, dirigem os trabalhos mais úteis à nação, a tornam produtiva nas ciências, nas artes e nos ofícios, a nação sem eles tornar-se-ia corpo sem alma: "cairia imediatamente num estado de inferioridade perante as nações de que ela é agora a rival e continuaria a ser inferior em relação a elas enquanto não houvesse reparado a perda e não voltasse a ter uma cabeça" (Organisateur, 18 19). A sociedade perfeitamente ordenada, justa e pacífica que Saint-Simon preconiza, não lhe parece um ideal regulador, como um dever ser que deve orientar e dirigir a acção humana, mas uma realidade futura inevitável, o termo de um processo histórico necessário. O seu projecto de Reorganização da sociedade europeia (1814) difere precisamente nisto (à parte os meios particulares que indica) do opúsculo de Kant Para a paz perpétua (1716). O órgão da paz deve ser, segundo Saint-Simon, um parlamento geral que decida sobre os interesses comuns da Europa inteira e a que estejam subordinados os parlamentos nacionais que devem governar cada 120 nação. "Há-de vir, sem dúvida, um tempo em que todos os povos da Europa sentirão a necessidade de regular os pontos de interesse geral antes de descer aos interesses nacionais; então, os males começarão a diminuir, as perturbações a acalmar-se, as guerras a extinguir-se. Esta é a meta para que tendemos sem descanso, para a qual nos arrasta o curso do espírito humano. Mas o que será mais digno da prudência humana: deixar-se arrastar para esta meta ou correr para ela?" A alternativa é, portanto, entre deixar-se arrastar e correr, mas o curso dos acontecimentos é fatal. E tal curso tem um significado essencialmente religioso. O último escrito de Saint-Simon, o Novo cristianismo (1825), define o advento da sociedade futura como um retorno ao cristianismo primitivo. Depois de ter acusado de heresia católicos e luteranos, porque uns e outros não observaram o preceito fundamental da moral evangélica, segundo o qual os homens devem considerar-se irmãos e trabalhar pela melhoria da existência moral e física da classe mais pobre, SaintSimon afirma que "os novos cristãos devem desenvolver o mesmo carácter e seguir a mesma marcha que os cristãos da igreja primitiva". Só com a persuasão e a demonstração devem trabalhar pela construção da nova sociedade cristã, sem empregarem seja em que circunstância for a violência ou a força física. "Eu creio, acrescenta Saint-Simon, que o cristianismo é uma instituição divina e que Deus concede uma protecção especial aos que dirigem os seus esforços no sentido de submeter todas as instituições humanas ao princípio fundamental desta doutrina sublime". E assim, a ideia fundamental do romantismo, a da revelação progressiva, é por ele mesmo claramente apresentada como a última inspiração do seu pensamento. A doutrina de Saint-Simon teve em França uma difusão notável: contribuiu
poderosamente para formar a consciência da importância social e espiritual (portanto, religiosa) das conquistas que a ciência e a técnica efectuaram. Esta consciência determinou, por um lado, uma actividade profícua no desenvolvimento industrial (vias férreas, bancos, indústrias, e até a ideia dos canais de Suez e de Panamá se devem à doutrina de Saint-Simon); por outro lado, deu origem 121 a correntes socialistas tendentes a uma organização mais harmónica e justa da vida social. Entre estas correntes, uma das mais significativas é encabeçada por Charles Fourier (17721835), autor de numerosos escritos, bizarros na forma e no conteúdo e ricos de sugestões utópicas como de agudas observações morais e históricas (Teoria dos quatro movimentos e dos destinos gerais, 1808; Tratado de associação doméstica e agrícola ou Teoria da unidade universal, 1822; O novo mundo industrial, 1829; Trapaça ou charlatanismo das duas seitas, Saint-Simon e Owen, 183 1; A falsa indústria, 1835). A ideia dominante de Fourier é a de que existe no universo um plano providencial de que fazem parte o homem, o trabalho e a organização social. A menos que se queira admitir que a providência divina é insuficiente, limitada e indiferente à felicidade humana, é necessário supor que Deus compôs para nós "um código passional ou sistema de organização doméstica e social, aplicável a toda a humanidade, cujas paixões são as mesmas em toda a parte", e que deve ter também fornecido ao homem um método fixo e infalível para a interpretação deste código. "Este método - acrescenta Fourier - não pode ser senão o cálculo analítico e sintético da atracção passional, já que a atracção é o único intérprete conhecido entre Deus e o Universo" (Oeuvres, 1841, 111, p. 112). Noutros termos, a organização social deve tornar atraente o trabalho a que o homem é chamado e, por conseguinte, o lugar que nele ocupa. Deve, portanto, não reprimir as paixões e a invencível tendência para o prazer, mas utilizá-las para d seu máximo rendimento. A organização que se presta a este fim é, segundo Fourier, a da falange, isto é, a de uma sociedade de cerca de 1600 pessoas que vivem num falanstério, em regime comunista, com liberdade de relações sexuais e regulamentação da produção e do consumo de bens. Fourier opõe-se ao carácter áspero, rigorista e opressivo das tentativas deste género feitas em Inglaterra por Owen. Afirma que o seu " sistema de atracção industrial", uma vez organizado, tomará atraente o trabalho dos campos e das indústrias. " Proporcionará atractivos talvez mais sedutores do que os que abrilhantam agora as festas, os bailes e os espectáculos; no estado societário, o povo encontrará tanta satisfação e 122 estímulo nos seus trabalhos que não consentirá em abandoná-los, em troca de festas, bailes ou espectáculos dados nas horas das sessões industriais" (Ib., III, pp. 14-15). § 631. PROUDHON O pensamento social de Pedro José Proudhon (1809-1865) contrasta com as tendências comunistas de Fourier. O primeiro escrito de Proudhon, Que é a propriedade? (1840), contém a definição famosa: "a propriedade é um roubo". Mas esta definição refere-se não à origem da propriedade, mas ao facto de que ela torna possível a apropriação do trabalho de outrem. Proudhon quer, portanto, não a abolição da propriedade capitalista, mas apenas a abolição do juro capitalista, isto é, do crédito ilegítimo que a propriedade permite usufruir ao capitalista à custa do trabalho alheio. A obra mais importante de Proudhon é A justiça na revolução e na igreja (1858), em três volumes. Outras obras notáveis: A criação da ordem na
humanidade (1843); Sistema das contradições económicas (1846); A revolução social (1852); Filosofia do progresso (1853); A guerra e a paz (1861). Proudhon dirigiu também vários periódicos em Paris: "0 representante do povo" (1847 e sgs.); "0 Povo" (1848 e segs.); "A voz do povo" (1848 e sgs.). O princípio de que parte Proudhon é o mesmo de que partem todas as filosofias sociais da idade romântica: a história do homem segue uma lei intrínseca de progresso, pela qual se dirige inevitavelmente para a perfeição. Tal lei é a justiça, segundo Proudhon. E a justiça não deve sei só uma ideia, mas uma realidade, isto é, uma força da alma individual e da vida social, de maneira que possa aparecer "como a primeira e a última palavra do destino humano individual e colectivo, a sanção inicial e final da nossa felicidade" (De Ia justice, 1, 1858, p. 73). Ora, a justiça pode-se conceber de dois modos diversos: l? como pressão do ser colectivo sobre o eu individual, pressão pela qual o primeiro modifica o segundo à sua imagem e dele faz um órgão; 2? como faculdade do eu individual que, sem sair do seu foro interior, sente a dignidade na pessoa do próximo com a mesma vivacidade 123 com que a sente na sua própria pessoa e assim se encontra, embora conservando a sua individualidade, idêntico e conforme ao ser colectivo. No primeiro caso, a justiça é externa e superior ao indivíduo e é posta ou na colectividade social considerada como um ser sui generis ou no ser transcendente de Deus. No segundo caso, a justiça reside no interior ao eu, homogénea à sua dignidade, igual a esta mesma dignidade multiplicada pela soma das relações que constituem a vida social. O primeiro sistema é o da revelação, o segundo sistema é o da revolução. Todas as religiões se fundam na transcendência da justiça, ou seja, na exterioridade em relação ao homem e à sua vida social, da lei que os deve regular. O segundo sistema, o da revolução, afirma a imanência da justiça na consciência e na história humana. Apenas este último sistema pode fundar a teoria da justiça inata e progressiva. "Dado que - diz Proudhon (Ib., p. 184) se a justiça não é inata na humanidade, se lhe é superior, externa e estranha, segue-se daí que a sociedade humana não tem leis próprias, que o sujeito colectivo não tem costume; que o estado social é um estado contra-natural, a civilização uma depravação, a palavra, as ciências e as artes efeitos do irracional da imortalidade: todas estas proposições são desmentidas pelo senso comum". A justiça é absoluta, imutável, não susceptível de mais nem de menos. Ela é a "medida inviolável de todos os actos humanos" (Ib., p. 195). É, por outros termos, uma espécie de divindade imanente, ou de revelação interior da divindade, semelhante à de que falam Lamennais e os demais românticos. Mas esta revelação, em vez de se dar na razão individual, ocorre antes na que Proudhon chama razão pública que é diferente em qualidade e superior em potência à soma de todas as razões particulares, que a produzem com as suas contradições. "Vemos - diz Proudhon (Ib., 11, p. 396) - a razão colectiva destruir incessantemente com as suas equações o sistema formado pela coligação das razões particulares: portanto, não é apenas diferente, mas é também superior a todas estas, e a sua superioridade deriva do facto de que o absoluto, que tem grande importância nas razões particulares, se desvanece perante ela". O órgão da razão colectiva é aquele mesmo em que reside a 124 força colectiva: o grupo de trabalhadores ou de educadores, a companhia industrial, a dos cientistas e artistas, as academias, as escolas, os municípios, a assembleia nacional, o clube, o júri, numa palavra, qualquer reunião de homens com vista à discussão de ideias e à investigação do direito (Ib., 11, p. 398).
O progresso não é mais do que a racionalização da justiça. Só a história universal o pode mostrar. Mas esta história não é, segundo Proudhon, uma necessidade de cunho hegeliano; é o domínio da liberdade. "A liberdade, segundo a definição revolucionária, não é a consciência da necessidade, nem é sequer a necessidade do espírito q@e se desenvolve de acordo com a necessidade da natureza. E uma força colectiva que compreende a um tempo a natureza e o espírito e que se possui a si mesma; e, como tal, capaz de negar o espírito, de se opor à natureza, de a submeter, de a desfazer e de se desfazer a si própria. É uma força que rejeita por si todo o organismo: cria-se mediante o ideal da justiça, uma existência divina, cujo movimento é, portanto, superior ao da natureza e do espírito e incomensurável com um e com outro". A liberdade é a origem do mal e do bem, da justiça e da injustiça. Todavia, o seu verdadeiro fim é o de realizar a justiça, porque só a justiça é o seu absoluto. Em virtude do livre-arbítrio, a alma busca a sua felicidade na justiça e no ideal. Mas, devido à imperfeição das suas noções, sucede que a sua fórmula jurídica é muitas vezes errónea e que, embora creia ter atingido a justiça na sublimidade da sua essência, não produziu mais do que uma divindade falsa, um !dolo. A identificação da justiça e do ideal, que é a mais nobre tendência da alma humana, é também a origem do pecado e do mal. Quando a noção de justiça é incompleta, o ideal que o homem forma é tomado como absoluto. Eliminar o mal significa por isso rectificar a noção de justiça (ou seja, do direito) e adequá-la ao ideal (Ib., 111, pp. 49-50). A revolução francesa, segundo Proudhon, iniciou este processo de adequação, que é mister continuar a levar a ter~ mo. E a obra de Proudhon é também um conjunto de projectos em torno da organização futura da sociedade. No Pequeno catecismo político publicado sob a forma de apêndice ao volume de A justiça, Proudhon vê no estado "a reunião 125 de vários grupos, diferentes pela natureza e pelo objectivo, formados cada um para o exercício de uma função especial e a criação de um produto particular, que se reúnem depois sob uma lei comum e um interesse (Ib., p. 48 1). O limite recíproco do poder destes grupos garante ao mesmo tempo a justiça e a liberdade. Além disso, a ideia revolucionária da justiça, renovando o direito civil como o direito político, vê no trabalho, e apenas no trabalho, a justificação da propriedade. "Ela nega que seja legitima a propriedade fundada no arbítrio do homem e considerada como uma manifestação do eu. Por isso aboliu a propriedade eclesiástica, que era fundada no trabalho, e converteu, até nova ordem, em salário o benefício dos padres. Ora, o que é a propriedade, contrabalançada assim pelo trabalho e legitimada pelo direito? A realização do poder individual. Mas o poder social compõe-se de todos os poderes individuais: portanto, também ele exprime um sujeito" (Ib., 1, p. 501). Entre as manifestações da filosofia social do século XIX, a doutrina de Proudhon. situa-se entre as que dão maior relevo à liberdade do homem na história. Embora admitindo o progresso como realização progressiva de uma ordem imutável, Proudhon reconhece a essência do direito revolucionário na possibilidade que o homem tem de se opor a esta mesma ordem. O modo de conciliar esta possibilidade com a realidade admitida da justiça, é um problema que Proudhon não levanta. E, todavia, é este o problema que devia, cerca dos fins do século passado, provocar a crise da própria ideia do progresso. § 632. COMTE: VIDA E OBRA É na filosofia de Saint-Simon que se inspira o fundador do positivismo, Augusto Comte. Nascido em Mompilher a
19 de Janeiro de 1798, Comte estudou na Escola Politécnica de Paris e foi, primeiro, professor particular de matemática. Amigo e colaborador de Saint-Simon, assumia em 1822 uma posição independente na sua obra Plano dos trabalhos científicos necessários para a organização da sociedade. Alguns anos depois, interrompia a amizade com SaintSimon 126 (que durou cerca de seis anos, 1818-24) e procedia a uma elaboração independente da sua filosofia. Esta elaboração foi interrompida entre 1826 e 1827 por uma violenta crise cerebral que o levou ao manicómio e de que triunfou (como ele próprio diz, Phil. pos.,Ill, Pref. personnelle, ed. 1869, p. 10) graças ao "poder intrínseco da sua organização". Em 1830 saía o primeiro volume do Curso de filosofia positiva e sucessivamente, até 1842, saíram os outros cinco. A carreira académica de Comte foi infeliz. Aspirou inutilmente a uma cadeira de matemática na Escola Politécnica de Paris. Em 1833 obteve o cargo de professor assistente de matemática e de examinador dos candidatos ao ingresso naquela escola: um cargo precário, que perdeu após a publicação do último volume do Curso pela hostilidade que as suas ideias haviam suscitado nos ambientes académicos. Desde então, e até à sua morte, Comte viveu de ajudas e subsídios de amigos e discípulos. No entanto, renunciou a todos os benefícios provenientes das suas obras. Separado da mulher, conheceu em 1845 Clotilde de Vaux, com quem viveu durante alguns anos em perfeita comunhão espiritual e que, após a sua morte em 1846, foi para ele o que Beatriz fora para Dante. Ele viu nesta mulher "o anjo incomparável a quem o conjunto dos destinos humanos encarregara de lhe transmitir dignamente o resultado geral do gradual aperfeiçoamento da nossa natureza moral" (Pol., pos., 1, prefácio, ed. 1890, p. 8). A orientação religiosa do seu pensamento, já evidente na primeira obra, acentuou-se ainda até se tornar dominante na sua segunda obra capital, o Sistema de política positiva ou Tratado de sociologia que institui a religião da humanidade (4 vol., 1851-54). Esta segunda parte da sua carreira tem como escopo, como ele próprio diz (Ib., IV, conc. total, ed. 1912, p. 530), transformar a filosofia em religião, como a primeira parte transforma a ciência em filosofia. Nesta fase, Comte apresenta-se como o profeta de uma nova religião, de que formula um catecismo (Catecismo positivista, 1852) e cujo calendário procura fixar (Calendário positivista, 1849-60). Considerava-se o pontífice máximo desta nova religião que deveria completar e levar a termo a "revolução ocidental", isto é, o desenvolvimento positivista da civilização ocidental. Comte morreu em Paris a 5 de Setembro de 127 1857. Outros escritos notáveis além dos já mencionados: Considerações filosóficas sobre as ciências e sobre os homens de ciência, 1825; Considerações sobre o poder espiritual, 1826; Discurso sobre o espírito positivo, 1844; Discurso sobre o conjunto do positivismo, 1848; Apelo aos conservadores, 1855; Síntese subjectiva ou Sistema universal das concepções próprias da humanidade. Parte I, Sistema de Lógica positiva ou Tratado de Filosofia matemática, 1856. Além destas obras, foram também publicadas as Cartas de Comte a Valat e a Stuart Mill (1877) e o Testamento (1844). A parte da obra de Comte que teve maior ressonância, directa ou polémica, é a sua teoria de ciência. Mas o verdadeiro intento de Comte é a construção de uma filosofia da história, que se transforma, na segunda fase da sua vida, numa religião da humanidade, isto é, numa divinização da história. Na filosofia da história, Comte considera como seu directo
precursor Condorcet; mas elogia também o pregador Bossuet, a quem atribuí o mérito de ter pela primeira vez concebido "os fenómenos políticos como estando realmente sujeitos, tanto na sua coexistência corno na sua sucessão, a certas leis invariáveis, cujo uso racional pode permitir, em diversos aspectos, determinar uns e outros" (Phil. pos., VI, p. 258). Por outro lado, Comte gaba-se de ter seguido uma severa "higiene cerebral" lendo o menos possível, porque "a leitura prejudica muito a meditação, alterando ao mesmo tempo a sua originalidade e a sua homogeneidade". E declara candidamente: "Eu nunca li em nenhuma língua nem Vico, nem Kant, nem Hegel, etc.; não conheço as suas obras salvo por alguma relação indirecta e alguns extractos muito insuficientes" (Ib., pref., pp. 34-35, n. 1). É certo que esta declaração é de 1842 e que ela é acompanhada do propósito de aprender a língua alemã para se pôr mais em contacto com os esforços sistemáticos das escolas germânicas. Mas tão-pouco as obras seguintes de Comte, especialmente a Política positiva, mostram influências apreciáveis de leituras de autores estrangeiros que se prendam directamente com a sua filosofia da história. Esta filosofia move-se ainda, de um modo inconsciente, no ambiente do romantismo. O próprio Comte afirma que desde a idade de catorze anos, ou seja, apenas saído do liceu, sentira "a necessidade fundamen128 tal de uma nova regeneração universal, a um tempo política e filosófica" (Ib., p. 7); e esta necessidade foi, na realidade, a mola de toda a sua actividade de escritor, levando-o a considerar a ciência positiva como a solução definitiva e última de todos os problemas do género humano. Desde o princípio, Comte votou-se à ciência, não pelas características e limitadas finalidades da ciência mesma, mas porque via na ciência a regeneração total do homem e a realização de tudo o que de mais alto e perfeito pode existir; quer dizer, para ele a ciência continha e revelava o infinito. § 633. COMTE: A LEI DOS TRÊS ESTADOS E A CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS O que aos olhos de Comte é a sua descoberta fundamental e que, na realidade, é o ponto de partida de toda a sua filosofia é a lei dos três estados. Segundo esta lei, que Comte declara ter extraído das suas reflexões históricas e não da observação do desenvolvimento orgânico do homem, cada um dos ramos do conhecimento humano passa sucessivamente pelos três estados teóricos: o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto, o estado científico ou positivo. Há, portanto, três métodos diversos para conduzir a investigação humana e três sistemas de concepções gerais. O primeiro é o ponto de partida necessário da inteligência humana; o terceiro é o seu estado fixo e definitivo; o segundo é unicamente destinado a servir de transição. No estado teológico, o espírito humano dirigindo essencialmente as suas investigações para a natureza íntima dos seres e das causas primeiras e finais, isto é, para os conhecimentos absolutos, vê os fenómenos como produtos da acção directa e continua de agentes sobrenaturais, mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. No estado metafísico, que é apenas uma modificação do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstractas, verdadeiras entidades ou abstracções personificadas, inerentes aos diversos entes do mundo e concebidas como capazes de gerar por si todos os fenómenos observados cuja explicação consistiria, 129 portanto, em atribuir a cada um a entidade correspondente. Finalmente, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de conceber noções
absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo e a conhecer as causas intimas dos fenómenos, e aplica-se unicamente a descobrir, mediante o uso bem combinado do raciocínio e da observação, as suas leis efectivas: isto é, as suas relações invariáveis de sucessão e de semelhança. "A explicação dos factos, reduzida assim aos seus termos reais, não é então mais do que o elo estabelecido entre diversos fenómenos particulares e alguns factos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir" (Phil. pos., I, P. M. Esta lei dos três estados aparece a Comte imediatamente evidente por si mesma. Além disso, julga-a confirmada pela experiência pessoal. "Quem não se recorda, contemplando a sua própria história, que foi sucessivamente, com respeito às noções mais importantes, teólogo na sua infância, metafísico na sua juventude e físico na sua maturidade?" O exemplo mais admirável da explicação positivista é o da lei de Newton sobre a atracção. Todos os fenómenos gerais do universo são explicados, na medida em que o podem ser, pela lei da gravitação newtoniana, dado que esta lei permite considerar toda a imensa variedade dos factos astronómicos como um só e mesmo facto observado de pontos de vista diversos e permite unificar desse modo os fenómenos físicos. Ora, conquanto vários ramos do conhecimento humano tenham entrado na fase positiva, a totalidade da cultura intelectual humana e, por conseguinte, da organização social que sobre ela repousa, não foram ainda permeadas pelo espírito positivo. Em primeiro lugar, Comte nota que além da física celeste, da física terrestre, da mecânica, da química e da física orgânica, vegetal e animal, devia haver uma física social, isto é, o estudo positivo dos fenómenos sociais. Em segundo lugar, a falta de penetração do espírito positivo na totalidade da cultura intelectual produz um estado de anarquia intelectual e, daí, a crise política e moral da sociedade contemporânea. É evidente que se uma das três filosofias possíveis, a teológica, a metafísica ou a positiva, obtivesse em realidade uma preponderância universal completa, have130 ria uma ordem social determinada. Mas uma vez que as três filosofias opostas continuam a coexistir, resulta dai uma situação incompatível com uma efectiva organização social. Comte propõe-se por isso levar a bom termo a obra iniciada por Bacon, Descartes e Galileu e construir o sistema das ideias gerais que deve definitivamente prevalecer na espécie humana, pondo fim deste modo à crise revolucionária que atormenta os povos civilizados (Phil. 1. pos., 1, p. 43). Tal sistema de ideias gerais ou filosofia positiva pressupõe, porém, que se determine o escopo particular de cada ciência, e a ordem total de todas as ciências: pressupõe uma enciclopédia das ciências que, partindo de uma classificação sistemática, forneça a perspectiva geral de todos os conhecimentos científicos. Comte começa por excluir da sua consideração os conhecimentos aplicados da técnica e das artes limitando-se aos conhecimentos especulativos; e mesmo nestes considera apenas os gerais e abstractos, excluindo os particulares e concretos. Seguidamente, procura determinar uma escala enciclopédica das ciências que corresponda à história das mesmas ciências. As ciências podem classificar-se considerando em primeiro lugar o seu grau de simplicidade ou, o que é o mesmo, o grau de generalidade dos fenómenos que constituem o objecto delas. Os fenómenos mais simples são, de facto, os mais gerais; e os fenómenos simples e gerais são também os que se podem observar mais facilmente. Por conseguinte, graduando as ciências segundo a ordem da simplicidade e generalidade decrescentes, pode-se reproduzir, na hierarquia assim formada, a ordem da sucessão com que as ciências entraram na fase positiva. Seguindo este critério podem-se distinguir em primeiro lugar os
fenómenos dos corpos brutos e os fenómenos dos corpos organizados como objectos de dois grupos principais de ciências. Os fenómenos dos corpos organizados são, evidentemente, mais complicados e mais particulares do que os outros. Dependem dos precedentes que, por seu turno, dependem deles. Daqui, a necessidade de estudar os fenómenos fisiológicos depois dos corpos inorgânicos. A física acha-se, pois, dividida em física orgânica e física inorgânica. Por sua vez, a física inorgânica, segundo o mesmo critério de simplicidade e de generalidade, será primeiro física celeste (ou astro131 nomia, tanto geométrica como mecânica) e depois física terrestre que, por sua vez, será física propriamente dita e química. Deverá fazer-se uma divisão análoga para a física orgânica. Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenómenos distintos, os relativos ao indivíduo e os relativos à espécie: haverá, pois, uma física orgânica ou fisiológica e uma física social fundada nela. A enciclopédia das ciências será, pois, constituída por cinco ciências fundamentais: astronomia, física, química, biologia e sociologia. A sucessão destas ciências é determinada por "uma subordinação" necessária e invariável, fundada, independentemente de qualquer opinião hipotética, sobre a simples comparação aprofundada dos fenómenos correspondentes" (Phil. pos., 1, p. 75). Não fazem parte da hierarquia das ciências, como se vê, nem a matemática nem a psicologia. Os motivos da exclusão são diversos. As ciências matemáticas não foram excluídas pela sua importância fundamental, porquanto são a base de todas as outras ciências. As matemáticas dividem-se, segundo Comte, em dois ramos: a matemática abstracta, isto é, o cálculo, e a matemática concreta, constituída pela geometria geral e pela mecânica racional. Estas duas últimas são verdadeiras ciências naturais, fundadas como todas as outras na observação, se bem que, pela extrema simplicidade dos seus fenómenos, sejam susceptíveis de uma sistematização mais perfeita do que qualquer outra ciência de observação. Quanto ao cálculo, é a parte puramente instrumental da matemática, não sendo mais do que "uma imensa e admirável extensão da lógica natural até a uma certa ordem de dedução" (Phil. pos., 1, p. 87). Mas a psicologia deve a sua exclusão da enciclopédia das ciências ao facto de que não é uma ciência nem é susceptível de vir a sê-lo. A chamada "observação interior" que se propôs o estudo dos fenómenos intelectuais é impossível. Os fenómenos intelectuais não podem ser observados no próprio acto em que se verificam. " O indivíduo pensante não pode dividir-se em dois, um dos quais raciocinaria enquanto o outro o veria raciocinar. Sendo o órgão observado e o órgão observador neste caso idênticos, como poderia a observação ter lugar?" (Ib., 1, p. 32). Somente a filosofia positiva, 132 considerando os resultados da actividade intelectual, permite iluminar as suas relações estáticas e dinâmicas. Do ponto de vista estático, o estudo destes fenómenos não pode consistir senão na determinação das condições orgânicas de que dependem e, por isso, forma parte essencial da anatomia e da fisiologia. Do ponto de vista dinâmico, tudo se reduz a estudar o procedimento efectivo do espírito humano mediante o exame dos procedimentos empregados para obter os conhecimentos reais; mas este estudo é próprio, evidentemente, da sociologia. Comte conclui que na enciclopédia das ciências não há lugar para uma ilusória psicologia, que não passaria da última transformação da teologia. § 634. COMTE: A SOCIOLOGIA
A ciência a que todas as ciências estão subordinadas, como ao seu fim último, é a sociologia. O escopo desta ciência é o de "perceber nitidamente o sistema geral das operações sucessivas, filosóficas e políticas, que devem libertar a sociedade da sua fatal tendência para a dissolução iminente e conduzi-Ia directamente para uma nova organização, mais progressiva e mais sólida do que a que repousava na filosofia teológica" (Phil. pos., IV, p. 7). Para tal fim, a filosofia deve constituir-se da mesma forma que as demais disciplinas positivas e conceber os fenómenos sociais como sujeitos a leis naturais que tornem possível a previsão deles, pelo menos dentro dos limites compatíveis com a sua complexidade superior. A sociologia, ou física social, é dividida por Comte em estática social e dinâmica social, correspondentes aos dois conceitos fundamentais em que ela se funda, os de ordem e do progresso. A estática social põe em luz a relação necessária, o "consenso universal", que existe entre as várias partes do sistema social. Assim, entre o regime político e o estado correspondente da civilização humana há uma relação necessária, pela qual um determinado regime, embora estando de acordo com a fase correspondente da civilização, se torna inadequado para unia fase diversa e subsequente. 133 A ideia fundamental da dinâmica social é, pelo contrário, a do progresso, isto é, do desenvolvimento continuo e gradual da humanidade. Segundo a noção do progresso, cada um dos estados sociais consecutivos é o "resultado necessário do precedente e o motor indispensável do seguinte, segundo o luminoso axioma do grande Leibniz: o presente está grávido do futuro" (Ib., IV, p. 292). A ideia do progresso tem para a sociologia uma importância ainda maior do que a que tem a ideia da série individual das idades para a biologia. Ela explica também a aparição dos homens de génio, desses homens a que Hegel chamava "indivíduos da história cósmica"; e a explicação de Comte é análoga à de Hegel. Os homens de génio não são mais que os órgãos próprios do movimento predeterminado, o qual, se esses génios porventura não surgissem, teria aberto outras vias (Ib., p. 298). O progresso realiza um aperfeiçoamento incessante, embora não ilimitado, do género humano; e este aperfeiçoamento assinala "a preponderância crescente das tendências mais nobres da nossa natureza" (Ib., p. 308). Mas este aperfeiçoamento não implica que uma qualquer fase da história humana seja imperfeita ou inferior às outras. Para Comte, como para Hegel, a história é sempre, em todos os seus momentos, tudo o que deve ser. "Dado que o aperfeiçoamento efectivo resulta sobretudo do desenvolvimento da humanidade, como poderia isso não ser essencialmente, em cada época, o que podia ser segundo o conjunto da situação (Phil. pos., IV, p. 311). Comte afirma (Ib., p. 310) que, sem esta plenitude de cada época da história com relação a si mesma, a história seria incompreensível. E tão-pouco hesita em restabelecer na história o conceito de causa final. Os eventos da história são necessários no duplo significado do termo: no sentido de que nela é inevitável o que se manifesta primeiro como impensável, e reciprocamente. É este um modo igualmente eficaz de exprimir a identidade hegeliana entre o racional e o real. E Comte cita a este propósito "o belo aforismo politico do ilustre de Maístre: tudo o que é necessário existe" (Ib., p. 394). É fácil de ver como deste ponto de vista o futuro regime sociológico parece a Comte inevitável porque racionalmente necessário. Neste regime, a liberdade de investigação e de 134 critica será abolida. "Historicamente considerado, diz Comte (Ib., p. 39), o dogma do direito universal, absoluto e indefinido de exame é apenas a consagração, sob a forma
viciosamente abstracta, comum a todas as concepções metafísicas, do estado passageiro da liberdade ilimitada, no qual o espírito humano foi espontaneamente colocado por uma consequência necessária da irrevogável decadência da filosofia teológica e que deve durar naturalmente até ao advento social da filosofia positiva". Por outros termos, a liberdade de investigação justifica-se no período de trânsito do absolutismo teológico ao absolutismo sociológico; instaurado este último, será banida por ele, como o foi pelo primeiro. § 635. COMTE: A TEORIA DA CIÊNCIA A teoria da ciência é a parte da obra de Comte que teve mais vasta e duradoura ressonância na filosofia e maior eficácia sobre o próprio desenvolvimento da ciência. Como já Bacon e Descartes (aos quais se declara ligado), Comte concebe a essência como tendo essencialmente por fim o estabelecer o domínio do homem sobre a natureza. Não que a ciência seja, ela mesma, de natureza prática ou tenha explicitamente em mira a acção. Comte, pelo contrário, afirma energicamente o carácter especulativo dos conhecimentos científicos e distingue-os claramente dos conhecimentos técnico-práticos, atribuindo só a estes o escopo de uma enciclopédia das ciências. Todavia, considerado no seu conjunto, o estudo da natureza é destinado a fornecer "a verdadeira base racional da acção do homem sobre a natureza"; já que só o conhecimento das leis dos fenómenos, cujo resultado constante é o de torná-los previsíveis, pode evidentemente conduzir-nos na vida activa a modificá-los em nosso beneficio" (Phil. pos., 1, p. 5 1). O escopo da investigação científica é a formulação das leis, porque a lei permite a previsão; e a previsão dirige e guia a acção do homem sobre a natureza. "Em suma, diz Comte, ciência, portanto previsão; previsão, portanto acção: tal é a fórmula extremamente simples que exprime de modo exacto a relação geral entre a 135 ciência e a arte, tomando estes dois termos na sua acepção total" (Ib., p. 5 1). A investigação da lei torna-se assim o termo último e constante da investigação científica. A teoria de Comte não é de forma alguma um empirismo. A lei, implicando o determinismo rigoroso dos fenómenos naturais e a sua possível subordinação ao homem, tende a delinear a harmonia fundamental da natureza. Entre os dois elementos que constituem a ciência, o facto observado ou observável é a lei, é a lei que prevalece sobre o facto. Toda a ciência, diz Comte, consiste na coordenação dos factos; e se as diversas observações fossem de todo isoladas, não haveria ciência. "Pode-se pois também dizer, de um modo geral, que a ciência é essencialmente destinada a prescindir, até ao ponto em que os diversos fenómenos o permitam, toda a observação directa, permitindo deduzir do mais pequeno número possível de dados imediatos o maior número possível de resultados" (Ib., 1, p. 99). O espírito positivo tende a dar à racionalidade um lugar sempre crescente a expensas da empiricidade dos factos observados. "Nós reconhecemos, diz Comte, que a verdadeira ciência, avaliada segundo aquela previsão racional que caracteriza a sua principal superioridade em relação à pura erudição, consiste essencialmente em leis e não em factos, conquanto estes sejam indispensáveis para que elas se estabeleçam e sejam sancionadas" (Phil., pos. IV, p. 600). E acrescenta: "0 espírito positivo, sem desconhecer nunca a preponderância necessária da realidade directamente experimentada, tende sempre a aumentar o mais possível o domínio racional à custa do domínio experimental, substituindo cada vez mais a previsão dos fenómenos à sua exploração imediata" (Ib., pp. 600-01). Com esta tendência lógica da ciência se prende, segundo Comte, o seu essencial relativismo. Comte reconhece a Kant o mérito de ter tentado fugir ao absoluto filosófico
"com a sua célebre concepção da dupla realidade simultaneamente objectiva e subjectiva". Mas o esforço de Kant não foi coroado de sucesso e o absoluto permaneceu na filosofia. Somente "a sã filosofia biológica" permitiu verificar que também as operações da inteligência, na sua qualidade de fenómenos vitais, estão também, inevitavelmente, subordinadas à relação fundamental entre o organismo e o ambiente, cujo 136 dualismo constitui, no conjunto dos seus aspectos, a vida. Por esta relação, todos os nossos conhecimentos reais são relativos, por um lado, ao ambiente, enquanto actua sobre nós, por outro lado ao organismo enquanto é sensível a esta acção. Todas as especulações humanas são por isso profundamente influenciadas pela constituição externa do mundo que regula o modo de acção das coisas e da constituição interna do organismo, que determina o resultado pessoal; e é impossível estabelecer em cada caso a avaliação exacta da influência própria de cada um destes dois elementos inseparáveis do nosso pensamento. Em virtude deste relativismo, deve-se admitir a evolução intelectual da humanidade, e deve-se admitir também que tal evolução está sujeita à transformação gradual do organismo. Deste modo fica excluída definitivamente a imutabilidade das categorias intelectuais do homem; e Comte declara que, deste ponto de vista, as teorias sucessivas são "aproximações crescentes de uma realidade que nunca poderia ser rigorosamente avaliada, sendo sempre a melhor teoria em cada época a que melhor representa o conjunto das observações correspondentes" (Ib., VI, pp. 622-23). Estas são as ideias que asseguram por largo tempo o sucesso da teoria da ciência de Comte. Mas estas ideias são também o fundamento de um conjunto de limitações arbitrárias e dogmáticas que Comte quis impor à investigação científica. Já no Curso de filosofia positiva se trava uma constante polémica contra a especialização científica, polémica que desejaria imobilizar a ciência nas suas posições mais gerais e abstractas e subtrair estas posições a qualquer dúvida e investigação ulterior. Comte condena todos os trabalhos experimentais que lhe parecem produzir uma "verdadeira anarquia científica"; condena também o uso excessivo do cálculo matemático; e desejaria determinar para cada tipo de observação "o grau conveniente de precisão habitual, para além do qual a exploração científica degenera, inevitavelmente, por uma análise demasiado minuciosa, numa curiosidade sempre vã e algumas vezes também gravemente perturbadora" (Ib., VI, p. 637). Faz parte do espírito da sã filosofia reconhecer que "as leis naturais, verdadeiro objecto das nossas investigações, não poderiam permanecer rigo137 rosamente compatíveis, em nenhum caso, com uma investigação demasiado minuciosa"; e por isso nenhuma sã teoria pode ultrapassar com êxito "a exactidão requerida pelas nossas necessidades práticas" (Ib., p. 638). E assim, embora afirme o carácter especulativo e desinteressado da investigação científica, Comte desejaria impor a tal investigação limites próprios das necessidades práticas reconhecidas. Por exemplo, a astronomia deveria cingir-se ao estudo do sistema solar e reduzir-se à consideração das leis geométricas e mecânicas dos corpos celestes, abandonando qualquer investigação de outro género. Comte justifica esta limitação afirmando que "existe, em todos os géneros de investigação e sob todas as grandes relações, uma harmonia constante e necessária entre a extensão das nossas verdadeiras necessidades intelectuais e o alcance efectivo, actual ou futuro dos nossos conhecimentos reais. Esta harmonia... deriva simplesmente desta necessidade evidente: que nós temos necessidade de conhecer só o que pode influir sobre nós de modo mais ou menos directo; e, por outro lado, pelo próprio facto de que uma tal influência existe, ela torna-se para nós, cedo ou tarde, um meio seguro de conhecimento" (Phil. pos.,
II, p. 8). Em outros termos, a investigação científica deve ir ao encontro das necessidades intelectuais do homem; e tudo o que parece exorbitar destas necessidades cai fora dela. Aqui Comte considera evidentemente as necessidades intelectuais do homem fixadas e determinadas de uma vez para sempre e pretende assim impô-las como guia à ciência, a qual, na realidade, tem como escopo o defini-Ias e fazê-las emergir dos problemas. Mas no Sistema de política positiva e nos escritos menores que se vinculam à segunda fase do seu pensamento, esta dogmatização da ciência é ainda mais acentuada. Aqui, ela preconiza "uma inflexível disciplina" do trabalho científico, disciplina que no futuro "regime sociocrático" deveria corrigir e prevenir os desvios espontâneos. "0 sacerdócio e o público deverão sempre proscrever os estudos que não tendam a melhorar ou a determinar melhor as leis materiais e físicas da existência humana ou a caracterizar melhor as modificações que comportam ou, pelo menos, a aperfeiçoar realmente o método universal" (Pol. pos., 1, ed. 180, 138 p. 455). Comte faz valer com extrema energia o princípio que condena qualquer investigação científica cuja utilidade para o homem não resulte evidente. Assim, a astronomia é reduzida ao estudo da terra. "Em lugar do vago estudo do céu, deve propor-se o conhecimento da terra, não considerando os outros astros senão segundo as suas relações com o planeta humano" (Ib., p. 508). Os ramos da física são declarados irredutíveis porque correspondem à divisão dos sentidos humanos (Ib., p. 528). São condenados como inúteis os estudos que concernem "as perpétuas interferências ópticas ou os cruzamentos análogos em acústica" (Ib., p. 531). Acusa-se de espírito metafísico Lavoisier (1b., p. 545) e condenam-se "os trabalhos dispersivos da química actual" (Ib., p. 548). Em suma, "a usurpação da física por parte dos geómetras, da química por parte dos físicos, e da biologia por parte dos químicos, são simples prolongamentos sucessivos de um regime vicioso" que esquece o princípio fundamental da enciclopédia científica, isto é que "toda a ciência inferior não deve ser cultivada senão enquanto o espírito humano tem necessidade dela para se elevar solidamente à ciência seguinte, até alcançar o estudo sistemático da Humanidade, que é a sua única estação final" (Ib., 1, pp. 471-72). Cumpre, portanto, subtrair a ciência aos cientistas e confiá-la antes aos verdadeiros filósofos "dignamente votados ao sacerdócio da Humanidade" (Ib., p. 473). É quase inútil deter-se a observar que o desenvolvimento ulterior da ciência desmentiu por completo a conveniência e a oportunidade destas prescrições e proscrições de Comte, que teriam imobilizado a própria ciência e lhe teriam impedido de cumprir aquela mesma função útil à humanidade, a que Comte a chamava. Especulações astronómicas, ramos de cálculo extremamente abstractos, investigações físicas aparentemente privadas de toda a possível referência à prática e cultivadas de início a título puramente especulativo, revelaram-se depois susceptíveis de aplicações utilíssimas, e indispensáveis à própria técnica produtiva. As limitações e os preconceitos de Comte teriam na realidade privado a ciência de toda a possibilidade de desenvolvimento teórico e prático. Afortunadamente, a ciência, embora utilizando amplamente o conceito fundamental de Comte da legalida139 de dos fenómenos naturais e da possibilidade de previsão que oferece, depressa se desinteressou das restrições que Comte preconizava e procedeu por conta própria. Tais restrições são todavia um aspecto essencial da obra de Comte, a qual explicitamente se propõe estabelecer uma sociocracia, isto é, um regime fundado sobre a sociologia, análogo e correspondente à teocracia fundada na teologia (Pol. pos., 1, p. 403). Comte teria querido
ser o chefe espiritual de um regime positivo, tão absolutista como o regime teológico que lhe cabia suplantar. Menos afortunado do que Hegel, que, com a ajuda do estado prussiano, conseguiu, pelo menos em parte, estabelecer praticamente o seu absolutismo doutrinal, Comte nunca conseguiu traduzir na prática as suas aspirações absolutistas. Mas a coincidência de atitudes entre estas duas personalidades filosóficas aparentemente tão diversas, é profundamente significativa: ambos se sentiam sacerdotes e profetas da nova divindade romântica: a humanidade ou a história como tradição. § 636. CONTE: A DIVINIZAÇÃO DA HISTóRIA O Sistema de política positiva propõe-se explicitamente transformar a filosofia positiva numa religião positiva. Quer isto dizer que tende a fundar a unidade dogmática, cultural e prática da humanidade, unidade que, rompida pela decadência do regime teocrático e pelo primeiro surto do espírito positivo, não foi ainda restabelecida. Esta unidade não é apenas a unidade de uma doutrina, mas também a de um culto, de uma moral e de um costume. Comte, na obra citada, esclarece todos os aspectos desta unidade. O conceito fundamental é o da Humanidade, que deve tomar o lugar do de Deus. A Humanidade é o Grande Ser como "conjunto dos seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para aperfeiçoar a ordem universal" (Ib., IV, p. 30). Os seres passados e futuros são a "população subjectiva"; os seres presentes, "a população objectiva". A existência do Grande Ser implica a subordinação da população objectiva à dupla população subjectiva. "Esta, fornece, por um lado, a causa, por outro o escopo, da acção 140 que só a outra exerce directamente. Nós trabalhamos sempre para os nossos descendentes, mas sob o impulso dos nossos antepassados, dos quais derivam a um tempo os elementos e os procedimentos de todas as nossas acções. O principal privilégio da nossa natureza consiste em que toda a individualidade se perpetue indirectamente através da existência subjectiva, se a sua obra objectiva deixou resultados dignos. Estabelece-se assim desde o principio a continuidade propriamente dita, que nos caracteriza mais do que a simples solidariedade, quando os nossos sucessores prosseguem a nossa tarefa como nós prosseguimos a dos nossos predecessores" (Ib., IV, pp. 34-35). Estas palavras de Comte demonstram claramente a inspiração última do seu pensamento. O conceito da humanidade não é um conceito biológico (embora o seja também), mas um conceito histórico, fundado na identificação romântica de tradição e historicidade. A Humanidade é a tradição ininterrupta e contínua do género humano, tradição condicionada pela continuidade biológica do seu desenvolvimento, mas que inclui todos os elementos da cultura e da civilização do género humano. Comte põe em relevo continuamente a sageza e a providência do Grande Ser, que soube de um modo maravilhoso e gradual desenvolver-se nas suas idades primitivas (teológica e metafísica) para alcançar a idade positiva, que préanuncia a sua plena maturidade. "Então, diz Comte (Ib., IV, p. 40), institui espontaneamente, primeiro os deuses antigos, depois o seu único herdeiro (o Deus das religiões monoteístas) para guiar, respectivamente, a sua segunda infância e a sua adolescência. Os elogios sinceros dirigidos a estes tutores subjectivos são outras tantas imagens indirectas à sabedoria instintiva da Humanidade... Quando a sua maturidade for completa, admirar-se-á juntamente a sua providência recta e sábia para com os seus verdadeiros servidores". A Humanidade não é, pois, senão a tradição divinizada; unia tradição que compreende todos os elementos objectivos e subjectivos, naturais e espirituais, que constituem o homem.
Assim entendida, implica em primeiro lugar a ideia de progresso. O progresso é, segundo Comte, "o desenvolvimento da ordem". O conceito de progresso foi estabelecido pela Revolução Francesa, que o subtraiu à teoria do "movi141 mento circular e oscilatório" a que a humanidade parecia condenada. Mas este conceito não poderia ser completo se não se tivesse feito antes um juízo exacto da Idade Média, pela qual a idade antiga e a idade moderna estão ao mesmo tempo ligadas e separadas. E Comte reconhece a de Maistre o mérito de ter concorrido para preparar a verdadeira teoria do progresso revalorizando a Idade Média. Com efeito, só depois desta revalorização a continuidade da tradição providencial foi restabelecida (Pol. pos., 1, p. 64). E esta continuidade deve ser estabelecida, segundo Comte, através de todas as gerações dos vivos, e mesmo para além dos vivos, no mundo inorgânico. A tendência final de toda a vida animal consiste em formar um Grande Ser mais ou menos análogo à Humanidade. Esta disposição comum não podia, contudo, prevalecer senão numa única espécie animal (Ib., I, pp. 620-621); é por isso que toda a espécie animal fora do homem é "um Grande Ser mais ou menos abortado" (Cat. pos., ed. 1891, p. 198); e Comte prevê no regime futuro da sociocracia um lugar para os animais, para esses "auxiliares do homem", que devem ser conduzidos o mais próximo possível da condição humana. Mas a continuidade tradicional e progressiva do Grande Ser não se limita ao mundo animal. Comte não esconde as suas simpatias pelo feiticismo que considera animados os próprios seres inorgânicos. O erro do feiticismo foi o de confundir a vida propriamente dita com a actividade espontânea e atribuir, portanto, a vida a seres unicamente dotados desta última. Mas sob um certo aspecto, que é o fundamental, feiticismo e positivismo são afins: ambos vêem em todos os seres uma actividade que é análoga ou semelhante à humana e assim estabelecem aquela unidade fundamental e progressiva do mundo, expressa na teoria do Grande Ser (Pol. pos., III, p. 87 e segs.; IV, p. 44). Através desta revalorização do feiticismo, o próprio mundo da natureza inorgânica aparece a Comte como parte integrante daquela história universal, que vê sintetizada e resumida no Grande Ser. A ideia romântica da realidade como revelação ou manifestação progressiva de um princípio infinito, que no termo do processo aparece na sua plena determinação, domina assim inteiramente a doutrina de Comte. Esta doutrina, não obstante a radical diversidade da lin142 guagera que emprega, não se diferencia no seu princípio da doutrina de Hegel. Ambas as doutrinas acabam por divinizar a história, a que urna chama Humanidade ou Grande Ser, e a outra Ideia, mas que uma e outra consideram como tradição, conservação e progresso, ou seja, infinito e absoluto presente. Daqui deriva a outra afinidade, que já notámos, entre Hegel e Comte: a tendência para o absolutismo doutrinal e político. A chamada sociocracia, de que Comte se faz defensor e profeta, é um regime absolutista, que deveria ser dominado e dirigido por uma corporação de filósofos positivistas. "Esta, diz Comte (Ib., IV, p. 65), é a constituição normal da sociocracia: sob a presidência doméstica dos representantes da sua natureza, a Humanidade coloca em primeiro lugar os intérpretes das suas leis, depois os ministros dos seus desígnios e, finalmente, os agentes do seu poder. Amar, saber, querer, poder, tornam-se os atributos respectivos de quatro serviços necessários, cuja separação e coordenação caracterizam a maturidade do Grande Ser. " Comte delineia com minuciosos pormenores o culto positivista da humanidade. Estabelece um "Calendário positivista" em que os meses e os dias são dedicados às maiores figuras da religião, da arte, da política e da ciência. Propõe por fim um novo "sinal", que deveria substituir o sinal da cruz dos cristãos e que consiste em tocar sucessivamente "os
principais órgãos que a teoria cerebral atribui aos seus três elementos", ou seja, ao amor, à ordem, ao progresso (Pol. pos., pp. 100-0 1). Por fim, no último escrito, dedicado à Filosofia da matemática (1856), em que se propõe associar a ciência da natureza com o sentimento, pretende estabelecer uma trindade positivista. Ao lado do Grande Ser, que é a Humanidade, põe como objecto de adoração o Grande Feitiço, isto é, a terra e o Grande Meio, ou seja, o Espaço. Este último deve ser considerado como a representação da fatalidade em geral. A unidade final, que a sociocracia deve realizar, manifestará a nossa gratidão para com tudo o que serve o Grande Ser: deverá por isso dispor-se a vencer a fatalidade que domina a nossa existência e concebê-la como algo que tem a sua sede imutável no espaço, o qual aparecerá dotado de sentimento, ainda que não de actividade nem de inteligência. E no Espaço assim entendido deverão aparecer-nos 143 impressos os conceitos, as imagens e também os diagramas geométricos e os símbolos algébricos. Estas últimas especulações de Comte demonstram apenas uma desconcertante ausência do sentido do ridículo. A moral do positivismo é o altruísmo. Viver para os outros é a sua máxima fundamental. Tal máxima não é contrária a todos os instintos do homem, porque estes não são exclusivamente egoístas. Além dos instintos egoístas, o homem possui instintos simpáticos que a educação positivista pode desenvolver gradualmente até fazê-los predominar sobre os outros. E, de facto, as relações domésticas e civis tendem a conter os instintos pessoais, através dos próprios conflitos que eles suscitam entre os diversos indivíduos. Favorecem, pelo contrário, inclinações benévolas que são susceptíveis de um desenvolvimento simultâneo em todos os indivíduos (Cat. pos., p. 48). O positivismo, que mostra a essencial unidade do género humano na sua história, pode facilitar e dirigir a formação e os instintos sociais e formar um sentimento social que se torne o guia espontâneo da conduta dos indivíduos. A futura sociocracia será, sob este aspecto, mais dominada pelo sentimento do que pela razão e atribuirá por isso um papel importante às mulheres que representam precisamente o elemento afectivo do género humano (Pol. pos., I, p. 204 e segs.). O elemento sentimental ou afectivo deverá, pois, segundo Comte, estar presente no culto devido ao Grande Ser, o qual deverá Ser objecto de um amor nobre e terno, inspirador de uma activa solicitude de aperfeiçoamento (Ib., p. 341). E deverá inspirar sobretudo uma nova poesia, que se dedicará a cantar a Humanidade e a idealizá-la em formas embelezadas, termos ideais de novos progressos (Ib., p. 339). § 637. DISCÍPULOS IMEDIATOS DE COMTE A "corporação de filósofos" a que Comte queria confiar a sorte futura da humanidade encontrou em França um principio de actuação por obra de um grupo de entusiastas admiradores do mestre, que, durante a vida de Comte, proveram ao seu sustento com contributos financeiros e, depois 144 da sua morte, procuraram manter viva e difundir a sua dou~ trina. Entre estes sequazes, só um merece ser recordado entre aqueles que permaneceram fiéis à última fase da especulação comtiana: Pierre Laffitte (1823-1903) que desde 1892 foi professor de história geral das ciências no Colégio de França. Laffitte foi autor de obras volumosas, mas de escasso valor (Os grandes tipos da humanidade, 1875-76; Lições de moral positiva, 188 1; Curso de filosofia primária, 1889-90), e fundou em 1878 a "Revista ocidental", órgão do positivismo em França e no
Ocidente. Em França, o mais notável discípulo de Comte foi Emile Littré (1801-81). Entre as obras de Littré devemos citar: Conservação, revolução, positivismo, 1852; Fragmentos de filosofia positiva e de sociologia contemporânea, 1876; A ciência do ponto de vista filosófico, 1873. Além destes publicou outros escritos destinados à exposição e à difusão da doutrina de Comte. Em 1876, Littré fundou a "Revista de filosofia positiva", que continuou a publicarse até 1883. Littré rejeita, sem mais, a religião da humanidade e, portanto, toda a última fase do pensamento de Comte. A descoberta capital de Comte foi, segundo ele, o ter demonstrado que a filosofia pode submeter-se ao método seguido pelas ciências positivas. Mas tal descoberta exclui toda a excursão no domínio da transcendência e da metafísica e encerra o conhecimento humano nos limites do relativo. Littré rejeita por isso todas as hipóteses inverificáveis, quer materialistas, quer espiritualistas. A filosofia, como a ciência, deve eliminar do seu seio toda a concepção transcendente ou sobrenatural e descobrir na natureza como na história apenas leis imanentes e empíricas. Littré aceita o principio próprio do positivismo social, da estreita conexão entre a ciência e o desenvolvimento social; e vê no positivismo a garantia de todo o progresso futuro. "Este inclina-nos para o trabalho, para a equidade social, para a paz internacional, mediante a indústria, mediante a difusão da ciência e das luzes, mediante o cultivo das belas-artes, mediante o melhoramento gradual da moral". Em Inglaterra, a doutrina de Comte foi difundida e defendida por Henriette Martineau (1802-76) que traduziu para inglês em 1853 o Curso de filosofia positiva e por Richard 145 Congreve, a quem se deve a tradução do Catecismo positivista e do Sistema de política positiva. Pode-se considerar um imediato seguidor de Comte George Lewes (1817-78), autor dos quatro volumes de Problemas da vida e do espírito (1874-79), embora se tenha afastado de Comte ao admitir a possibilidade de uma psicologia empírica e de uma metafísica igualmente empírica. O metempírico, como Lewes chama ao que está para lá da experiência possível, deve ser, por sua vez, tratado com método positivo, de modo a que sejam eliminados dele todos os resíduos supra-sensíveis. Lewes toma de Spencer numerosos pontos doutrinais, embora se declare discípulo de Comte. Em geral, os evolucionistas ingleses criticaram e combateram a doutrina de Comte. § 638. O POSITIVISMO UTILITARISTA O utilitarismo da primeira metade do século XIX pode ser considerado como a primeira manifestação do positivismo em Inglaterra. Trata-se de um positivismo social (análogo e correspondente ao francês de então) pelo qual as teses teoréticas de filosofia ou de moral foram consideradas como instrumentos de renovação ou de reforma social. Com efeito, o utilitarismo estava estreitamente vinculado a uma actividade política, de carácter radical ou socialista, que teve os seus máximos expoentes precisamente nos três teóricos principais do utilitarismo, Benthan, James e Stuart Mill. Os utilitaristas mostraram-se algumas vezes favoráveis e outras vezes desfavoráveis às outras correntes reformadoras que se desenvolveram simultaneamente em Inglaterra. Foram desfavoráveis ao socialismo do industrial filantropo e reformador Robert Owen (1771-1858). Owen estava convicto de que o "maquinismo morto" entrara em competição com o "mecanismo vivo" e que, portanto, a introdução das máquinas na indústria moderna teria como último resultado a miséria do trabalhador. Por isso quis criar comunidades que se mantivessem a si mesmas mediante o cultivo do solo com a enxada e nas quais cada
homem trabalhasse por todos. Contudo, a ideia de Owen de que todas as religiões são essencialmente nocivas ao género humano e que o carácter 146 do homem é formado pelas circunstâncias, de tal modo que a imoralidade não exige sanções divinas nem humanas mas é antes uma enfermidade que se cura com a modificação das circunstâncias exteriores, vincula Owen aos utilitaristas. Com efeito, estes tiveram como ele a pretensão de conseguir um melhoramento das condições sociais através de um método puramente científico e, como ele, justificaram as suas esperanças com a fé nas possibilidades de modificar indefenidamente a natureza humana mediante as circunstâncias exteriores. Os utilitaristas, habitualmente, destacavam, entre os seus maiores representantes e profetas, as duas grandes figuras da economia política do século XIX: Malthus e Ricardo. No seu primeiro surto, com os fisiocratas franceses e com Adam Smith, a economia política compartilhara a fé optimista do iluminismo setecentista, criara o conceito de uma ordem dos factos económicos pela qual chegam a coincidir providencialmente o interesse privado e o interesse público, de modo que basta ao indivíduo seguir o seu próprio interesse para agir ao mesmo tempo como uma força dirigida para o beneficio de todos. Malthus e Ricardo põem em relevo cruamente as anomalias fundamentais da ordem económica e evidenciam, portanto, a necessidade de uma activa modificação desta ordem e, por conseguinte, de um progresso não já natural e mecânico, mas controlado e dirigido por forças morais. Tais forças, no entanto - e aqui reside o carácter positivista de toda esta corrente - só podem agir sobre factos e por meio de factos: por outros termos, a acção do homem sobre a realidade social deve seguir o mesmo método que a ciência emprega com êxito na sua acção sobre o mundo natural. Thomas Robert Malthus (1766-1834) publicou anonimamente em 1798 o seu Ensaio sobre a população, de que em 1803 fez uma segunda edição aumentada e refundida. O seu ponto de partida é uma consideração da relação entre o aumento da população e o aumento dos meios de subsistência. Tendo presente o desenvolvimento da América do Norte inglesa, Malthus observou que a população tende a crescer segundo uma progressão geométrica (2-4-8, etc.), isto é, duplicando-se de vinte e cinco em vinte e cinco anos, enquanto 147 os meios de subsistência tendem a crescer segundo uma progressão aritmética (1-2-3, etc.). O desequilíbrio que assim se cria entre população e meios de subsistência pode ser, segundo Malthus, eliminado de duas maneiras: em primeiro lugar, através da miséria e do vicio que diminuem e dizimam a população; em segundo lugar, através do "controlo preventivo" dos nascimentos. Evidentemente, o progresso da sociedade humana consiste em substituir, tanto quanto possível, o controlo repressivo pelo controlo preventivo: em impedir o aumento excessivo da população mediante o que se chama "a abstracção moral", isto é "com o abster-se do matrimónio por motivos de prudência e com uma conduta estritamente moral durante o período desta abstinência". Malthus não via outro remédio para os males sociais senão o de uma educação fundada em tais princípios. A sua doutrina pôs, indubitavelmente, um problema que continua vivo e actual e que procurou resolver com espírito científico defrontando corajosamente os dados à sua disposição. O outro economista, David Ricardo (1772-1823) é autor dos Princípios de economia política e de impostos (1817), que se tornou a Bíblia económica dos utilitaristas. As análises
de Ricardo movem-se na mesma linha que as de Malthus, mas referem-se sobretudo à relação entre o salário do trabalhador e o lucro do capitalista. Em primeiro lugar, pôs em relevo o fenómeno da chamada "renda agrária". Dado que no mercado o mesmo produto deve ser vendido ao mesmo preço, os proprietários dos terrenos mais férteis, que produzem a um custo inferior, têm um excedente de lucro, que constitui precisamente a renda da terra. É evidente que este fenómeno gera um antagonismo entre o interesse dos proprietários da terra e o interesse da colectividade, já que, à medida que se verifica um aumento da população ou, em geral, um estado de miséria maior, a renda dos proprietários de terras aumenta. A ordem económica não actua aqui como ordem providencial ou benéfica. Quanto ao salário, Ricardo reconhece que o seu preço natural "é o necessário para os trabalhadores poderem viver e perpetuar a sua raça sem aumentar nem diminuir". Vê assim claramente o antagonismo entre lucro e salário. E embora considere o capital apenas como "trabalho acumulado", não julga que o seu 148 rendimento adquirido seja sempre proporcionado ao trabalho pessoal. Mercê da sua obra, a economia política saiu da fase de uma justificação da ordem social existente para entrar numa fase de critica dessa ordem e de preparação dos meios necessários para a modificar. Devem considerar-se estritamente ligadas a estas doutrinas económicas, as doutrinas filosóficas dos utilitaristas. Jeremias Bentham (4 de Fevereiro de 1748 - 6 de Junho de 1832), foi um filantropo e um homem político, que dedicou a sua actividade a projectar e a promover uma reforma da legislação inglesa com vista a melhorar as condições do povo. O princípio de que parte é o mesmo de que partiram muitos escritores do iluminismo e que encontrou a sua melhor fórmula em Hutchinson e em Becearia (§§ 480, 502): a máxima felicidade possível para o maior número possível de pessoas. Bentham considerou sempre este principio como a única medida legitima do bem e do mal. O seu primeiro escrito, Fragmentos sobre o governo, foi publicado em 1776. Seguiu-se a este um escrito de economia, Defesa da usura (1787), e depois a sua obra mais vasta, Introdução aos princípios da moral e da legislação (1789). Em 1802, um discípulo francês de Bentham, Dumont, publicou em França um Tratado da legislação civil e penal, que é a tradução de parte da obra precedente e de outros escritos de Bentham que ainda não havia publicado na sua língua original. Posteriormente, apareceram: Tábua dos móbiles da acção (1817); Ensaio sobre a táctica política (1816); Perspectiva introdutória das provas judiciais (1812); Crestomatia (1816); em que se recolhem fragmentos sobre vários temas de natureza filosófica; Deontologia ou ciência da moralidade refundida e publicada postumamente em 1834. Bentham é também autor de numerosíssimos escritos políticos e jurídicos, alguns dos quais concernem a um novo sistema carcerário, chamado Panopticum, de que foi defensor. O objectivo declarado de Bentham era o de converter a moralidade a uma ciência exacta. Ora, a ciência deve basear-se em factos, em coisas reais que tenham relações definidas e impliquem uma medida comum. No domínio moral, os únicos factos em que nos pode apoiar são os prazeres e as dores. A conduta do homem é determinada pela expectativa 149 do prazer ou da dor; e este é o único motivo possível de acção. Sobre estas bases, a ciência da moral torna-se tão exacta como a matemática, embora seja bastante mais intrincada e extensa (Intr. to Mor. and Legisl., in Works, 1, p. v.). O juízo moral torna-se num caso particular do juízo sobre a felicidade. Um comportamento é bom ou mau conforme é favorável ou não à felicidade; e a acção legítima é a que promove
a máxima felicidade do maior número. Como qualquer outro homem, o legislador actua legitimamente só enquanto é guiado pelo principio de " maximizar" a felicidade. Os prazeres e as dores, como consequências das acções, são denominadas por Bentham sanções. As sanções físicas são os prazeres e as dores que se seguem a um certo modo de se conduzir independentemente da interferência de um outro ser humano ou sobrenatural; as sanções políticas são as que derivam da acção do legislador; as sanções morais ou populares são as que derivam de outros indivíduos que não actuam fisicamente; finalmente, as sanções religiosas são as que derivam de um "Ser superior, invisível, legislador do universo". Os legisladores podem actuar sobre os homens como o próprio Deus o faz, isto é, através das forças da natureza: mediante a aplicação de dores e de prazeres que podem também ser sanções naturais. O legislador deve estabelecer as suas acções de maneira a inclinar a balança do prazer e da dor no sentido mais favorável ao princípio de pro- mover a máxima felicidade. A moralidade não é determinada pelos motivos da acção mas unicamente pelas suas consequências, porque, na realidade, o motivo da acção não é mais cio que a expectativa das suas consequências. Dizer que um comportamento é bom ou mau significa inclinar a balança para o prazer ou para a dor. Fora deste cálculo, não existem, segundo Bentham, senão conceitos fictícios ou "não entidades", como por exemplo, a consciência ou sentido moral, de que falam alguns filósofos, e a obrigação moral. A afirmação de que um homem é obrigado a executar uma acção significa somente que ele sofrerá se não a executar. De modo que a objecção é verdadeiramente uma entidade fictícia, e só o prazer e a dor são reais. "Tirai os prazeres e as dores, diz Bentham (Springs of A ction, in Works, 1, p. 206), e não só a felicidade mas também a justiça, o dever, 150 a obrigação e a virtude se tornarão nomes vãos". Bentham procura por isso estabelecer uma tábua completa dos móbiles da acção para servir de guia para qualquer legislação futura. Esta tábua compreende, em primeiro lugar, a determinação da medida da dor e do prazer em geral; em segundo lugar, uma classificação das diversas espécies de prazer e de dor; em terceiro lugar, uma classificação das diversas sensibilidades dos indivíduos ao prazer e à dor. Quanto ao primeiro aspecto, o prazer e a dor são considerados como entidades susceptíveis de ser pesadas ou medidas; e o valor de um prazer dependerá, se for considerado em si mesmo, da intensidade, da duração, da certeza e da proximidade ou, se for considerado com respeito aos modos de o obter, da sua fecundidade (ou tendência a produzir outros prazeres) e da sua pureza (ou ausência de consequências dolorosas). Muito menos interessantes e mais arbitrárias são as classificações que Bentham deu dos prazeres e das dores, assim como das circunstâncias que influem sobre a sensibilidade individual. Já Stuart Mill notava que na classificação de Bentham se omitia por completo a consciência, a rectidão moral, o dever, a honra, etc. E quanto às circunstâncias que determinam a sensibilidade, Bentham enumerava a constituição física, o carácter, o sexo, a raça, etc. Estabelecida assim a patologia, isto é, a teoria da sensibilidade passiva, Bentham imediatamente passava a estabelecer a dinâmica, ou seja, o uso possível destes móbiles por parte do moralista e do legislador para determinar a conduta humana no sentido de se alcançar a máxima felicidade possível. Bentham serve-se também do seu principio de utilidade na sua crítica política. Considera fictícios os direitos naturais do homem afirmados pela Revolução Francesa. Se a liberdade fosse um direito absoluto, anularia a lei, pois toda a lei supõe a coacção. O verdadeiro critério é o da utilidade que estabelece imediatamente os limites da liberdade e da coacção. Bentham considera que todo o governo, como toda a autoridade, é um mal, que cumpre reduzir à sua mínima expressão, isto é, reduzir àquele grau ou àqueles limites que o tornam efectivamente útil.
O mais importante discípulo de Bentham foi James Mill (6 de Abril de 1773 - 23 de Junho de 1836), jornalista, ho151 mem político e funcionário da Companhia das índias de Londres. A sua obra filosófica fundamental é a Análise dos fenómenos do espírito humano (1829), mas o seu pensamento político exerceu uma acção eficaz em Inglaterra, através de alguns artigos que compôs para a Enciclopédia Britânica e, especialmente, o que tem por tema o Governo (1820). Este artigo é uma defesa do governo representativo, ou seja, da capacidade do povo para constituir por si mesmo uma classe dirigente que lhe defenda os interesses. Se a Reforma, notava Mill, tornou o povo juiz de si próprio em matéria religiosa, não se vê porque não haveríamos de ter confiança no povo como juiz de si mesmo em matéria política. O escopo de Mill na sua obra fundamental é o de submeter a uma análise completa os fenómenos mentais, quer dizer, reduzir estes fenómenos aos seus elementos primitivos à semelhança do que faz a ciência com os fenómenos da natureza. Esta tentativa segue a linha do pensamento iluminista inglês, de Hume em diante, e o seu mais notável antecessor é Hartley, (II, § 481). A sua novidade reside na orientação positivista; Mill quer fundar uma ciência do espírito que se baseie nos factos como as ciências da natureza. E o facto é, para Mill, a sensação. Os últimos componentes do espírito são as sensações, de que as ideias são cópias. Como para Hume, o espirito é para Mill uma corrente de sensações, e as associações das ideias entre si seguem a ordem das sensações. Tal é a "lei geral da associação das ideias" (Analysis, ed. 1869, 1, p. 78). As sensações sincrónicas produzem ideias sincrónicas e, as sensações sucessivas, ideias sucessivas. De modo que a continuidade no espaço e no tempo é a única lei possível da associação: quando duas coisas são percebidas em conjunto (simultaneamente no espaço ou sucessivamente no tempo), não poderemos perceber ou pensar uma delas sem pensar a outra. Mill não estabelece qualquer diferença entre associações verdadeiras e associações falsas, isto é, entre associações conformes às conexões das coisas e associações que não são. Em ambos os casos, de facto, reporta a força da associação à frequência com que ela se repete e que a torna habitual, constituindo, como ele diz, uma "associação inseparável" (Ib., 1, p. 363). A lei da associação é invocada por Mill para explicar também a vida moral. "A ideia de um 152 prazer suscitará a ideia da acção que é causa daquele; e quando a ideia existe, a acção deve seguir-se~lhe" (Ib., II, p. 351). Um fim não é mais do que um prazer desejado e constitui o móbil da acção, móbil que exclui toda a liberdade do querer. A associação explica a passagem da conduta egoísta à altruísta. O nosso prazer privado está estreitamente ligado ao dos outros (pais, filhos, amigos) e esta associação constante acaba por fazer desejar o prazer dos outros como o próprio e por conduzir também ao sacrifício. O desenvolvimento da vida moral seria assim devido ao aparecimento de novos fins devidos à associação, fins que se sobreporiam aos outros, assumindo em si aquele carácter atraente que primitivamente não possuíam. Mill declara que tal análise não diminui a realidade dos sentimentos analisados. A gratidão permanece gratidão e a generosidade, generosidade, mesmo quando se reduzem aos seus originários môbiles egoístas: do mesmo modo que um raio de luz permanece branco a nossos olhos mesmo depois de Newton o ter decomposto em raios de diferentes cores. Esta observação revela o carácter positivista da obra de Mill: a moral deve tornar-se, segundo ele, uma ciência positiva como a ciência natural. E esta característica distingue o seu associativismo dos seus predecessores. § 639. STUART MILL: VIDA E OBRAS
O utilitarismo inglês, cujos traços fundamentais delineámos, é, no seu conjunto, um positivismo da moral. Tende a fazer da moral uma ciência positiva, fundada nos factos e nas leis, para a utilizar como instrumento de acção no mundo social, do mesmo modo que as ciências naturais servem para actuar sobre o mundo natural. John Stuart Mill pôs a claro os princípios filosóficos implícitos neste positivismo ético e vinculou-o ao positivismo social francês. John Stuart Mill nasceu a 20 de Maio de 1806 em Londres. Seu pai, James, assumiu com muito cuidado, se bem que não com muita ternura, a tarefa da sua formação espiritual e promoveu o seu desenvolvimento intelectual, extremamente precoce. Aos dezassete anos, Stuart Mill empre153 gou-se na Companhia das Índias, onde alcançou uma elevada posição. A sua primeira actividade foi a de jornalista. O trato com o pai e com o seu grande amigo Jeremias Bentham haviam-no completamente imbuído dos ideais utilitaristas; e à defesa destas ideias contra críticos e oposicionistas se deve a sua primeira actividade literária. Desde a primeira leitura de Bentham (1821) Stuart Mill sentiu-se "um reformador do mundo". No outono de 1826, o jovem Mill sofreu uma grave crise de desalento durante a qual se deu conta de que não poderia extrair nenhum benefício da doutrina utilitarista de Bentham. e de seu pai. Só conseguiu sair desta crise, como ele próprio conta na sua Autobiografia (cap. 5?), ao reconhecer que a felicidade não se obtém quando se faz dela o objectivo da vida, mas antes quando nos dedicamos a outra coisa, a uma tarefa que possa concentrar em si as energias interiores do homem. Vencida esta crise, Stuart Mill iniciou uma actividade incessante e profícua, que exerceu até ao fim da sua vida. Foi propagandista incansável das suas ideias sociais e políticas, escritor fecundo e, por alguns anos, membro da Câmara dos Comuns. Durante sete anos e meio também o esposo feliz de uma mulher (Mrs. Taylor), de que tece, na sua autobiografia, os maiores elogios. Morreu em Avinhão a 8 de Maio de 1873. As suas obras fundamentais são: Sistema de lógica dedutiva e indutiva, 1843; Ensaios sobre algumas questões incertas de economia política, 1848; Sobre a liberdade, 1849; Pensamentos sobre a reforma do Parlamento, 1859; Dissertações e discussões, 1 e 11, 1859; 111, 1867; IV, 1874; Considerações sobre o governo representativo, 1861; Utilitarismo, 1865: Exame da filosofia de Sir W. Hamilton, 1863; Discurso inaugural da Universidade de St. Andrews, 1867; Inglaterra e Irlanda, 1868; A servidão das mulheres, 1869; Capítulos e discursos sobre a questão irlandesa, 1870; Autobiografia, 1873. Foram, além disso, publicados postumamente Três ensaios sobre a religião (1874) e dois volumes de Cartas (191h). Desta longa série de escritos, os fundamentais sã o a Lógica e os Princípios de economia política. Entre os escritos menores, são particularmente significativos os estudos Liberdade e Servidão das mulheres. O primeiro é uma defesa da liberdade contra o possível perigo que pode 154 provir do desenvolvimento da igualdade social; o segundo é uma defesa dos plenos direitos morais, civis e políticos do sexo feminino. A Autobiografia de Stuart Mill torna explícito o testemunho da influência que os escritos de Saint-Simon e dos seus sequazes exerceram sobre o seu pensamento. Stuart Mill considerou com muita simpatia os primeiros volumes da Filosofia positiva (A utob., cap. 5?), mas a sua correspondência com Comte demonstra o gradual enfraquecimento da sua
simpatia pelo filósofo francês. Embora acentuando o principio de que a humanidade é o fundamento e o fim de toda a actividade humana e admitindo que os filósofos devem, com o tempo, assumir o ascendente moral e intelectual outrora exercido pelos padres, Stuart Mill rejeitava claramente a sociologia mitológica que Comte construíra na Política positiva e nas obras colaterais. A Stuart Mill, defensor e apóstolo da liberdade individual, repugnava o despotismo espiritual e temporal que Comte propugnava, e que lhe parecia tão opressivo como o de Inácio de Loiola. O estudo Augusto Comte e o positivismo, publicado por Stuart Mill em 1856, embora preste justiça aos méritos filosóficos do positivista francês, põe em relevo, sem piedade, os aspectos ridículos ou repugnantes da sua doutrina. § 640. STUART MILL: A LÓGICA Na realidade, a diferença fundamental entre o positivismo de Comte e o positivismo de Stuart Mill está em que um é um racionalismo radical, ao passo que o outro, nascido do tronco nacional da filosofia inglesa, é um empirismo não menos radical. É verdade que o positivismo de Comte pretende partir dos factos, mas para chegar à lei, a qual, uma vez formulada, passa a fazer parte do sistema total das crenças da humanidade e*é dogmatizada. Para o positivismo de Stuart Mill, ao invés, o recurso aos factos é continuo e incessante, e não é possível qualquer dogmatização dos resultados da ciência. A lógica de Stuart Mill tem como seu escopo principal abrir brecha em todo o absolutismo da crença e referir toda a verdade, princípio ou demonstração, à valida155 de das suas bases empíricas. Por esta via, a pesquisa filosófica não perde o carácter social que adquirira nos escritos dos saint-simonistas e do próprio Comte; só que o fim social não é o de estabelecer um único sistema doutrinário e politicamente opressivo, mas sim o de combater nas suas bases toda a forma possível de dogmatismo absolutista e fundar a possibilidade de uma nova ciência educativa, libertadora, a que Stuart Mill chamou etologia (de ethos, carácter). Na introdução à Lógica, Mill desembaraça-se de todos os problemas metafísicos que, segundo afirma, caem fora do domínio desta ciência, na medida em que esta é sempre uma ciência da prova e da evidência. "Admite-se geralmente, diz ele (System of Logic, ed. 1904, p. 5) que a existência da matéria ou do espírito, do espaço ou do tempo não é, por sua natureza, susceptível de ser demonstrada, e que se há algum conhecimento dela, deve ser por intuição imediata". Mas uma "situação imediata" que caia fora de toda a possibilidade de investigação e de raciocínio é, por consequência, destituída de significado filosófico; e a separação que Stuart Mill estabelece entre lógica e metafísica é, na realidade, a condenação e eliminação desta última. Além da eliminação de toda a realidade metafísica, há a eliminação de todo o fundamento metafísico ou transcendente ou, pelo menos, não empírico das verdades e dos princípios universais. Todas as verdades são empíricas: a única justificação do "isto será" é o "isto foi". As chamadas proposições essenciais (do tipo "o homem é racional") são puramente verbais; afirmam de uma coisa indicada com um nome só o que é afirmado pelo facto de se lhe dar tal nome. Quer dizer, são fruto de uma pura convenção linguística e não dizem absolutamente nada de real sobre a coisa mesma (Logic, 1, 6 § 4, p. 74). Os chamados axiomas são originariamente sugeridos pela observação. Nós nunca teríamos sabido que duas linhas rectas não podem fechar um espaço se nunca tivéssemos visto uma linha recta. Tais axiomas não têm, portanto, uma origem diferente de todos os demais conhecimentos: a sua origem é a experiência (Ib., 11, 5, § 4, p. 152). Finalmente, o princípio de contradição não é mais do que "uma das nossas
primeiras e mais familiares generalizações da experiência". O seu fundamento originário é que o crer e 156 o não crer são dois estados mentais diversos que se excluem mutuamente. Isto é-nos mostrado pela mais simples observação do nosso espírito. E se a tal observação se acrescentarem as que nos revelam a oposição e a exclusão de luz e trevas, som e silêncio, movimento e repouso, etc., vê-se logo que o princípio de contradição não é mais do que a generalização destes factos. Análoga base tem o principio do terceiro excluído, contanto que o formulemos com exactidão, isto é, com a condição de que o predicado tenha um sentido inteligível. "Abracadabra é uma segunda intenção", é uma proposição que não é verdadeira nem falsa porque não tem sentido. Entre o verdadeiro e o falso existe uma terceira possibilidade, que é o sem sentido (Logic, 11, 7, § 5, p. 183). Stuart Mill não pretende, porém, tirar destas permissas a conclusão céptica a que Hume chegara partindo de premissas análogas. O que ele pretende é garantir ao conhecimento humano o grau de validade que lhe corresponde em conformidade com os seus fundamentos empíricos. Toda a proposição universal é uma generalização dos factos observados. Mas que significa tal generalização, dado que nunca é possível observar todos os factos e que às vezes basta um facto só para justificar uma generalização? Este é o problema fundamental da indução, a que se reduz, em última análise, todo o conhecimento verdadeiro. Stuart Mill vê a solução deste problema no principio da uniformidade da natureza. As uniformidades da natureza são as leis naturais: são reveladas pela experiência e confirmam-se e corrigem-se reciprocamente. Mas as uniformidades naturais, reveladas pela experiência, evidenciam entre si uma uniformidade fundamental, que é, por sua vez, uma lei: a lei de causalidade. Esta lei, asseverando que todo o facto que tem um início tem uma causa, estabelece que "é uma lei o facto de todas as coisas terem uma lei". Como tal, é a base de toda a indução e permite reconhecer na natureza uma ordem constante e necessária de fenómenos. "Nós cremos, diz Stuart Mill (Ib., 111, 5, § 8, pp. 226-27), que o estado do universo a cada instante é a consequência do seu estado no instante precedente; de modo que alguém que conheça todos os agentes que existem no momento presente, a sua situação no espaço e todas as suas propriedades - por outras palavras, as leis 157 da sua acção - poderia predizer toda a história subsequente do universo, a menos que sobreviesse uma nova decisão de uma força capaz de controlar o universo inteiro. E se algum estado particular do universo se repetisse uma vez, todos os estados subsequentes se repetiriam igualmente assim como a história inteira, como um decimal periódico de muitas cifras". Mas se as leis da natureza não são outra coisa senão uniformidades testemunhadas pela observação, o que é que garante a lei de causalidade, a qual afirma que tais uniformidades devem existir? Stuart Mill considera que não é difícil conceber que nalgum dos muitos fundamentos do universo sideral os eventos possam suceder-se sem nenhuma lei determinada. A lei de causalidade não é por isso um instinto infalível do género humano nem uma intuição imediata, nem mesmo uma verdade necessariamente vinculada à natureza humana como tal. Temos, portanto, de admitir que a mesma lei que regula a indução é uma indução. "Nós chegamos a esta lei geral mediante generalizações de muitas leis de generalidade inferior. Nunca teríamos tido a noção de causalidade (no sentido filosófico do termo) como condição de todos os fenómenos, se muitos casos de causação ou, por outras palavras, muitas parciais uniformidades de sucessão não se tivessem tornado familiares anteriormente. A mais óbvia das uniformidades particulares sugere e
torna evidente a uniformidade geral, e a uniformidade geral, uma vez estabelecida, permite-nos demonstrar as demais uniformidades particulares, das quais procede" (Logic, 111, 21, § 2, p. 372). A uniformidade da natureza não é, portanto, mais do que uma simples indução per enumerationem simplicem, e Stuart Mill observa a este propósito que uma tal indução não só não é, necessariamente, um processo lógico ilícito, mas também é, na realidade, a única espécie de indução possível, uma vez que o processo mais elaborado depende, para ser válido, de uma lei que é obtida deste modo não artificial. Fazer depender a validade da indução da própria indução pode parecer um caso óbvio de circulo vicioso. Mas Stuart Mill observa que isso só seria assim se se admitisse a velha teoria do silogismo segundo a qual a verdade universal (ou premissa maior) de um raciocínio é a demonstração real das 158 verdades particulares que se deduzem dela. Stuart Mill, ao invés, expõe (Ib., 11, 3, p. 119 segs.) a teoria oposta, ou seja, que a premissa maior não é a prova da conclusão, mas que é ela própria provada, juntamente com a conclusão, por uma mesma evidência. "Todos os homens são mortais" não é a prova de que Lord Palmerston seja mortal; mas a nossa experiência pretérita da mortalidade autoriza-nos a inferir ao mesmo tempo a verdade geral e o facto particular, com o mesmo grau de certeza para uma e para outro. " § 641. STUART MILL: A CIÊNCIA DO HOMEM A investigação lógica de Stuart Mill não é um fim em si mesma: tende a estabelecer um método e uma disciplina para o estudo e orientação do homem. Os primeiros cinco livros do Sistema de lógica são, na mente de Mill, simplesmente preparatórios em relação ao sexto, dedicado à lógica das ciências morais. Aqui, Mill começa por reafirmar de certo modo a liberdade do querer humano. A liberdade não contradiz o que ele chama "a necessidade filosófica", a qual implica que, todos os motivos presentes ao espírito de um indivíduo e dados igualmente o carácter e as disposições do indivíduo, se pode deduzir infalivelmente o seu comportamento futuro, de modo que "se conhecermos a pessoa a fundo e se conhecermos todos os móbiles que sobre ela actuam, podemos predizer-lhe o comportamento com a mesma certeza com que podemos predizer qualquer evento físico" (Logic, IV, 2, § 2, p. 547). Esta necessidade filosófica parece a Mill a interpretação de uma experiência universal e a expressão de uma convicção comum a todos. Contudo, não deve confundir-se com a fatalidade, que suporia um elo mais íntimo, uma constrição misteriosa exercida pela causa da acção sobre a acção mesma. Uma tal constrição estaria, segundo Mill, em conflito com a nossa consciência e repugnaria aos nossos sentimentos. "Nós sabemos, diz, que nas nossas volições não existe aquela misteriosa constrição. Sabemos que não somos compelidos, como por um mágico encanto, a obedecer a qualquer particular motivo. Sentimos que, se desejarmos mostrar que temos força para resistir ao 159 motivo, podemos fazê-lo (dado que o motivo mesmo se torna, como é óbvio, num novo antecedente); e seria humilhante para o nosso orgulho e (isto importa mais) paralisaria o nosso desejo de perfeição, pensar de outra maneira" (Ib., p. 548). Por outro lado, a fatalidade suporia uma espécie de conexão metafísica entre a volição e os seus móbiles, enquanto a necessidade não pode significar outra coisa senão a uniformidade da ordem e a possibilidade de predição. E precisamente sobre estas duas coisas se funda a ciência da natureza humana, cujo ideal consiste em poder predizer a conduta futura de um indivíduo humano com a mesma certeza com que a astronomia prediz os movimentos dos astros (Ib., VI, 3, § 2, p. 554). Tal ciência é a psicologia, à qual pertence o estudo das leis do espírito,
ou seja, as uniformidades de sucessão entre diferentes estados psíquicos (ao passo que a uniformidade de sucessão entre um estado físico e um estado espiritual é uma lei física concernente à fisiologia). Naturalmente, as leis do espírito, como todas as outras leis empíricas, têm uma validade que se restringe aos limites da observação, mas não garantem nada para lá de tais limites. Ora, sobre a psicologia e as suas leis se funda a etologia, que estuda as leis da formação do carácter. Tais leis derivam das leis gerais da psicologia mediante a consideração do que será, em conformidade com as leis psicológicas, a acção das circunstâncias sobre a formação do carácter. A etologia é, portanto, a ciência que corresponde ao acto da educação no seu sentido mais lato. Ao lado da ciência do carácter individual, Stuart Mill põe a ciência do carácter social e colectivo que é a sociologia. Esta ciência deve fundar-se, como Comte viu, no princípio do progresso do género humano. O escopo da sociologia deve ser a descoberta de uma lei de progresso que, uma vez encontrada, torne possível predizer os eventos futuros, tal como na álgebra, depois de alguns termos de uma série infinita, é possível descobrir o princípio da regularidade da sua formação e predizer o resto da série (Ib., VI, X, p. 596). Como Comte, Stuart Mill admite uma estática social e uma dinâmica social que deveriam explicar os factos da história e determinar a direcção do seu desenvolvimento progressivo. Ele reproduz nas últimas páginas 160 da Lógica aquela concepção da história que domina o espírito romântico do século XIX, tanto o positivista como o idealista, e se encontra tanto em Saint-Simon e em Comte como em Hegel. A história é uma tradição contínua que vai de geração em geração acumulando de cada vez uma série de resultados. Stuart Mill admite também, como Hegel e Comte, a função daqueles indivíduos excepcionais que estão destinados a facilitar ou a promover os desenvolvimentos fundamentais e que surgem no momento preciso no curso providencial das circunstâncias. § 642. STUART MILL: A ECONOMIA POLITICA E A MORAL A economia política é, segundo Stuart Mill, um ramo in- dependente da investigação sociológica. A economia política estuda aqueles fenómenos que se verificam em consequência da busca da riqueza e abstrai por completo de qualquer outra paixão ou móbil humano, salvo dos princípios antagonistas, como a aversão ao trabalho e o desejo do gozo presente. A economia política delineia a partir deste pressuposto uma ordem uniforme e constante dos fenómenos, que torna possível a previsão das acções económicas. O Sistema de economia política de Mill condensa e unifica os resultados que esta ciência alcançara através da obra de Smith, Malthus e Ricardo. Mill não crê, no entanto, que a ordem económica seja automática e fatal. As leis da produção são, segundo ele, "leis reais da natureza"; as da distribuição dependem, ao invés, da vontade humana, e, portanto, do direito e do costume (Pol. Ec., 11, 7, § 1, p. 123). É possível modificar estas leis para obter uma melhor distribuição da riqueza. Mill afirma a este propósito que a escolha entre individualismo e socialismo "dependerá principalmente de uma única consideração, isto é, de saber qual dos dois sistemas se concilia com a máxima soma possível de liberdade e espontaneidade humana" (Ib., II, § 1, p. 129). E, na realidade o que impede Mill de aderir ao socialismo, com o qual partilha o reconhecimento e a condenação das injustiças sociais, é a exigência de salvaguardar em todos os casos
161 a liberdade individual. A última parte do seu tratado é, de facto, dedicada à determinação dos limites da intervenção do governo nas questões económicas. Tais limites são, em última análise, requeridos pela exigência de que "haja na existência humana um baluarte firme e sagrado, que escape à intrusão de qualquer autoridade" Ob., V, XI, § 2, p. 569). Isto não o impede, no entanto, de defender toda uma série de medidas, um sistema nacional de educação, um plano nacional de emigração e colonização, uma lei restritiva sobre os matrimónios, etc., que deveriam ter como escopo distribuir mais equitativamente a riqueza e melhorar as condições do povo. Relaciona-se com o Sistema de economia política um grupo de obras que desenvolvem problemas já tratados nesse livro: o ensaio Liberdade (1859), Governo representativo (1861), Servidão das Mulheres (1869) e o Utilitarismo. Todos estes escritos tendem a delinear nos seus aspectos (moral, social, político e económico) um individualismo radical, que não pode ter outro limite senão o da autoprotecção do indivíduo. Stuart Mill sustenta que a intervenção de uma autoridade qualquer na conduta de um indivíduo se não pode justificar senão na medida em que tal intervenção é justificada pela defesa dos próprios direitos individuais. A justificação moral deste individualismo baseia-a Stuart Mill no utilitarismo. No seu utilitarismo é patente a influência de Comte. O indivíduo não pode ter outro guia para a sua conduta senão a sua própria felicidade, isto é, o prazer e a ausência da dor. Mas a tendência do indivíduo para a própria felicidade implica sempre, em maior ou menor grau, a tendência para a felicidade dos outros. O progresso do espírito humano aumenta incessantemente o sentimento da unidade que liga o indivíduo aos outros indivíduos. Stuart Mill observa a este propósito que, apesar de todas as reservas que o sistema políticomoral de Comte impõe, se deve reconhecer que ele "demonstrou a possibilidade de dar ao serviço da humanidade, mesmo sem a ajuda da crença na providência, a força psicológica e a eficácia social da religião" (Utilitarismo, 1871, p. 61). Este sentimento da unidade humana é a última sanção de toda a vida moral. Reconhecer este sentimento como o que é não significa (como sustentam 162 os adversários do utilitarismo) enfraquecer ou distinguir o impulso moral do homem. Mesmo uma sanção desinteressada do dever (quer seja atribuída a Deus ou ao imperativo categórico kantiano) só pode actuar sobre o homem enquanto é um sentimento subjectivo e não tem outra força senão a intensidade desse sentimento. Mas todo o sentimento está relacionado com o prazer e com a dor e implica, portanto, o critério da utilidade (Ib., p. 54). § 643. STUART MILL: DOUTRINA DA SUBSTâNCIA O Exame da filosofia de Hamilton é um retorno de Mill ao problema da realidade, que ele excluíra da Lógica. Hamilton, que procurava renovar a doutrina da escola escocesa da percepção imediata (isto é, não mediada pela ideia) do mundo externo, apresentara esta doutrina com referências críticas a Kant e aos filósofos do romantismo alemão. Stuart Mill, embora cite e discuta Kant, não parece ter compreendido o significado nem a importância deste filósofo. Para ele, Kant supunha que o espírito não percebe mas "cria" as qualidades sensíveis, e atribui-as logo, por uma ilusão natural, às coisas exteriores (Examination, p. 456). De modo que o espírito não se limitaria a organizar os dados da experiência, ultrapassaria a experiência com as suas próprias criações; e assim Kant parece a Stuart
Mill fundamentalmente infiel ao postulado básico do empirismo. O problema que Stuart Mill se propõe resolver é o de mostrar de que maneira o espírito, não tendo à sua disposição senão o material sensível, pode organizar um mundo que tem, pelo menos, a aparência de exterioridade. Para resolver tal problema, recorre, como já fizera Hume, às leis da associação. Quando dizemos, observa, que o objecto percebido é exterior a nós, pretendemos dizer que há, nas nossas percepções, alguma coisa que existe também quando não pensamos nele, que existe antes de o pensarmos e que existirá ainda mesmo que tenhamos deixado de existir e pretendemos dizer, outrossim, que existem coisas que nunca tínhamos visto, tocado, nem percebido, e que nenhum ho163 mem jamais percebeu. A estas determinações se reduz a ideia da substância exterior. Ora, todas elas são explicadas por aquilo que Stuart Mill chama "possibilidade de sensações". A cada momento o mundo compreende, para nós, não só as sensações actuais, mas também uma variedade infinita de possibilidades de situações: isto é, todas as que a observação passada nos diz que poderiam em determinadas circunstâncias ser experimentadas neste momento, e, além disso, uma multidão indefinida e ilimitada de outras sensações que poderiam ser experimentadas em circunstâncias que nos são desconhecidas. Ora, enquanto as sensações presentes são pouco importantes por serem fugitivas, as possibilidades de sensação são permanentes e possuem, por isso, o carácter principal da substância exterior, constituem "uma, espécie de substracto permanente", ou grupos de permanentes possibilidades sugeridas pelas sensações passadas. Neste sentido o mundo exterior não é mais do que uma "permanente possibilidade de sensação". E a propósito da substância espiritual procura Stuart Mill formular uma explicação análoga; mas aqui não esconde a dificuldade de uma série de sensações e de uma possibilidade de sensações que se conheça a si mesma como tal. A conclusão é que a identidade pessoal é inexplicável e que o que há de mais prudente a fazer "é aceitar o facto inexplicável sem nenhuma teoria acerca da sua maneira de verificar-se" (Ib., p. 248). § 644. STUART MILL: O DEMIURGO E A RELIGIÃO DA HUMANIDADE Nos três ensaios póstumos sobre a religião, Natureza, Utilidade da religião e Teísmo, Stuart Mill-procura reconduzir a religião aos limites da experiência e apresentar, portanto, a ciência como fundamento da religião. O teísmo não é inconciliável com as verdades da ciência, contanto que se exclua o conceito de uma divindade que governe o mundo com actos de vontade arbitrários e variáveis! Isto não quer dizer que se possa admitir sem mais nem mais um criador que tenha querido que os acontecimentos se verificassem conforme leis fixas e imutáveis. Uma evidência deste género 164 não se pode obter com o argumento causal, conquanto este recorra explicitamente à experiência. De facto, nenhuma causa é necessária à existência do que não tem princípio; e nem a matéria nem a força têm um inicio qualquer. Tão-pouco valem os argumentos extraídos do consensus gentium ou da consciência. Stuart Mill considera decisivo o argumento finalista. A ordem da natureza, ou pelo menos algumas partes dela, têm as características das coisas produzidas por um espírito inteligente com vista a um fim. Tal argumento é, segundo Stuart Mill, de carácter indutivo e possui, portanto, a mesma certeza que qualquer indução. A questão que ulteriormente se apresenta é a de ver que espécie de divindade será possível inferir do plano finalista do mundo.
É evidente que o criador do mundo deve ter um poder e uma inteligência imensamente superiores aos do homem, mas nem por isso é evidente que ele deva ser dotado de omnipotência e omnisciência. Pelo contrário, a própria existência de um plano parece excluir a omnipotência do seu autor. Com efeito, o plano implica a adaptação dos meios ao fim e a necessidade de empregar meios implica uma limitação de força. Um homem não usa máquinas para mover os braços. A teologia natural não pode, portanto, deixar de reconhecer que o autor do cosmos agiu com determinadas limitações. Além disso, não há motivo para supor que a matéria, a força ou as suas propriedades tenham sido criadas pelo Ser que as empregou no mundo. A própria sabedoria com que empregou os meios à sua disposição implica uma escolha entre possibilidades finitas e, por conseguinte, uma limitação de força.- A omnipotência não pode ser, portanto, atribuída ao criador. Poderia ser-lhe atribuída a omnisciência; mas nada o demonstra. O criador de que fala Stuart Mill é antes um Demiurgo, cuja força supõe limitada qualidade do material empregado, pelas substâncias ou as forças de que se compõe o universo; ou pela incapacidade de realizar de um modo melhor os fins estabelecidos. A limitação do criador é, pois, confirmada pelo facto de que não existe sombra de justiça no movimento geral da natureza e porque a imperfeita realização que a justiça obtém na sociedade humana é obra do próprio homem, que luta contra imensas dificuldades natu165 rais para alcançar a civilização e fazer dela a sua segunda natureza (Three Essays on Religion, 1885, p. 194). Em conclusão, Stuart Mill é favorável a uma "religião da humanidade" que não só ponha limites obrigatórios às pretensões egoístas das criaturas humanas, mas lhes dê o sentido de cooperarem com o Ser invisível a que devem tudo quanto fruem. na vida. A religião da humanidade pode encontrar uma ajuda racional naquelas "esperanças sobrenaturais" que a doutrina do Demiurgo justifica. § 645. POSITIVISTAS ITALIANOS O positivismo de fundo social encontrou na Itália dois representantes que, embora não trouxessem contributos de grande originalidade, o defenderam com uma certa força e lógica de pensamento. São eles dois milaneses Carlos Catta~ neo e José Ferrari, que seguem as teses fundamentais de Saint-Simon, corroborando-as com uma interpretação positivista da doutrina de Vico. Carlos Cattaneo (1801-69) participou no movimento de ressurgimento italiano como republicano federalista e, ao constituir-se o reino de Itália, refugiou-se na Suíça, onde, até ao fim da sua vida, ensinou no liceu de Lugano. Em Milão, fundara e dirigira uma revista, "Politecnico", título que mostra a tendência para a síntese científica própria do positivismo. Os escritos de Cattaneo são ensaios breves e circunstanciais (Assunto primo della scienza del diritto, naturale de G. D. Romagnosi, 1822; Delle dottrine di Romagnosi, 1836; Un'opera postuma de G. D. Romagnosi, 1836; Sulla Scienza Nuova di Vico, 1839; Considerazioni sul principio della filosofia, 1844; Il Kosmos di A lexandro di Humboldt 1844; Framenti di sete prefazioni, 1846;Lapoliticadi Tom@aso Campanella, 1856; Un invito alli amatori dellafilosofia, 1857; La vita nell'universo di Paolo Lioy, 1861) entre os quais o mais notável é o que se intitula Psicologia delle menti associate, 1859-66. Foi também publicado postumamente o Curso de Filosofia que Cattaneo ministrou no liceu de Lugano, e que compreende três partes: Psicologia, 166 Ideologia e Lógica: mas a parte original e interessante deste curso é, na verdade, bastante
escassa. A intenção polémica de Cattaneo é dirigida contra a teologia, a metafísica e, em geral, toda a filosofia que proceda a priori, prescindindo dos factos e das suas leis, tais como são estabelecidos pelas várias ciências. Neste sentido, a filosofia deve ser "experimental", isto é, deve ater-se ao método e ao intuito próprios das ciências experimentais (Scritti filosofici, ed. Bobbio, 11, pp. 35-38; 111, p. 308). O seu carácter todavia, ao contrário do das ciências, é geral ou sintético. Cattaneo exprime por várias fórmulas este carácter: mas as fórmulas de que mais frequentemente se serve a filosofia é "o estudo do pensamento" (1b., 1, p. 348) ou, mais precisamente, " o estudo do homem nas suas relações mais gerais com os outros seres, tais como estes se apresentam no testemunho concorde de todas as ciências morais e físicas (Ib., II, p. 43). Isto quer dizer que a filosofia só pode estudar o homem nas suas relações com a natureza e com a sociedade: e, uma vez que a natureza e a sociedade são os objectos respectivos das ciências naturais e morais, não pode estudar o homem prescindindo dos resultados de tais ciências. Para Cattaneo, o conhecimento do homem não pode ser realizado pela consciência, isto é, pela reflexão do homem sobre si mesmo, mas apenas mediante a consideração das relações objectivas que o ligam àquele modo da natureza e da sociedade que é o objectivo das ciências. Por outro lado, acrescenta Cattaneo, "as novas ciências não trazem filosofia apenas as suas descobertas: elas apresentam-lhe em si mesmas e nos seus procedimentos um novo e profundo problema (Ib., 1, p. 348). As ciências oferecem, de facto, na variedade, no rigor e na eficácia dos seus procedimentos (as análises da química e da economia, as sínteses da geologia, as classificações da botânica e da geologia, as deduções da geometria, as induções da física, as analogias da medicina, etc.) o quadro das possibilidades efectivas de "que o homem dispõe para conhecer e operar no mundo e transformá-lo de harmonia com as suas próprias necessidades e ideais; e este quadro é indispensável à compreensão do homem como é indispensável a este escopo a consideração da infinita variedade das 167 leis, das instituições, das línguas, das artes, das opiniões, que constituem o mundo social. É mediante este vasto conjunto de dados que a inteligência humana "pode contemplar as formas, os limites do seu próprio poder interno, que debalde tentaria explorar no germe fechado do jovem ou do selvagem, ou nas inseguras induções da consciência intelectiva". E só tendo em conta estes dados "a filosofia será o nexo comum de todas as ciências, a expressão mais geral de todas as variedades, a lente que, juntando os esparsos raios, ilumina a um tempo o homem e o universo" (Ib., 1, p. 170). Este conceito de filosofia tem decerto uma singular modernidade e validez. Nas mãos de Cattaneo, não passa no entanto de pouco mais que um projecto. Uma única vez tentou Cattaneo a realização de tal projecto: na investigação sobre a Psicologia das mentes associadas (1859-64). A psicologia das mentes associadas é, pouco mais ou menos, a ciência que Comte denominara "sociologia", isto é, o estudo positivo dos factos humanos e das suas leis. Já no seu estudo sobre a Scienza nuova de Vico (1839) Cattaneo atribuíra àquele filósofo o mérito de ter fundado a ideologia social, como "estudo do indivíduo no seio da humanidade" (Ib., 1, p. 103). O último desenvolvimento da ciência de Vico é, segundo Cattaneo, a doutrina de Saint-Simon, na qual se se puser de parte o que Cattaneo chama de "delírios" sobre a abolição da propriedade, da hereditariedade e da família, "se encontra uma resumida história ideal, que reedifica o curso das nações de Vico, mas o arranca ao círculo perpétuo e o vincula ao progresso" (Ib., 1, p. 128). E Cattaneo reconhece méritos comparáveis ao de Saint-Simon, de Schelling (Ib., p. 126) e especialmente de Hegel, o qual, à distância de um século de Vico, "corrigiu a ideologia do homem-povo;
rompendo o círculo de Vico, substituiu-o pela moderna ideia do progresso; e, além disso, logrou com a sua análise distinguir as diferentes nações, tentando atribuir a cada uma a especial realização de cada uma daquelas ideias, cuja série constitui o progresso perpétuo" (Ib., 1, p. 435). A psicologia das mentes associadas é concebida por Cattaneo como "um necessário nexo entre a ideologia do indivíduo e a ideologia da sociedade", isto é, como o estudo do mútuo condicionamento em virtude do qual o indivíduo e a 168 sociedade formam os seus poderes e adquirem as suas características. Em substância, Cattaneo pretende negar que o indivíduo possa ser alguma coisa ou formar-se isolando-se da sociedade, e que a sociedade possa formar-se ou transformar-se sem o contributo do indivíduo. Analisa três aspectos deste condicionamento reciproco: a antítese, a sensação, a análise. A antítese consiste na diversidade e na oposição das ideias humanas e, em geral, nas competições e nos contrastes que estimulam a vida social. A sensação das mentes associadas é a observação organizada e repetida que tende a formar um "comum sensório das gentes incivilizadas" (Ib., 1, p. 450). A análise, isto é, o acto com que se distinguem as partes de um todo, é a operação que define as crenças fundamentais de um grupo social. Esta operação é efectuada o mais das vezes de um modo "pré-ordenado e fatal", e o progresso desta operação, que condiciona o progresso da própria sociedade humana, consiste antes em torná-la livre e autónoma porque só desta forma se torna instrumento de novas descobertas e conquistas. "A livre análise, sustenta Cattaneo, é um dos maiores interesses morais e materiais do género humano"; e deste ponto de vista a própria filosofia deve ser "a análise da livre análise" (Ib., 1, p. 454). O outro positivista milanês, José Ferrari (1812-76), foi o primeiro editor das obras completas de Vico (1835-37), às quais antepôs um longo ensaio intitulado A mente de João Baptista Vico. Em seguida, Ferrari publicou em francês o Ensaio sobre o princípio e os limites da filosofia da história (1843) e outros polémicos e políticos menos importantes, e em 1851 o seu escrito principal Filosofia da Revolução. Na sua interpretação da obra e da figura de Vico, Ferrari parte do conceito de que um génio não é senão o representante de uma época ou de uma nação, "a ideia que se faz homem" (A mente de Vico, ed. 1854, p. 5). Ferrari reconhece a Vico, embora tenha em conta a sua estreita conexão com a situação social e cultural da Itália quinhentista, o mérito de ter pela primeira vez constituído a história como ciência. "Vico não viu nem grandes homens nem legisladores, nem climas, nem circunstâncias acidentais; viu unicamente uma história ideal eterna, isto é, épocas, grandes castas, revoluções inevitáveis; e alguns indivíduos que deram o seu nome a uma das 169 fases da história ideal eterna" (Ib., p. 173). E por isso vincula Vico por um lado a SaintSimon (Ib., p. 210), por outro lado ao idealismo romântico de Fichte, Schelling e Hegel Q@., P. 219). Deste modo, refere a doutrina de Vico a um principio que lhe é estranho, o da infalível necessidade racional da história; mas relegando-a assim ao espírito do romantismo, abre caminho às interpretações idealistas da história. A Filosofia da Revolução baseia-se na análise do que Ferrari chama "a revelação natural". Ã lógica que promete uma evidência e uma certeza que é incapaz de dar, Ferrari contrapõe a revelação da natureza, a qual destrói as contradições e as dúvidas, a que a pura lógica dá origem. "Não podemos tolerar a lógica, quer dirija, quer contrarie a natureza; submetamo-
la à natureza para que sirva de instrumento aos fenómenos; as dúvidas, as contradições desvanecer-se-ão, o absurdo achar-se-á confinado numa esfera exterior à da nossa acção... A experiência ensina-nos que a lógica não estava predestinada a mandar; ela não precede os fenómenos, surge depois deles" (Fil. della riv., I, pp. 226-27). A revelação da natureza substitui o capricho, o acaso das divagações da lógica pela necessidade. Enquanto a lógica é incapaz de esclarecer a origem da sociedade, a necessidade natural resolve o problema. "A lógica não dá resposta; responde a fatalidade, subjugando-nos antes de sermos interrogados: ela faz-nos nascer no seio da família, compele-nos ao trabalho, sacrifica de contínuo uma geração à outra, os pais vivem para imolar-se a descendentes desconhecidos, que lhes sucederão no trabalho intérmino, e disciplina o género humano no próprio acto que o multiplica" (Ib., 1, p. 347). A sociedade não é mais que a "razão de um povo subjugado a uma revelação, a lógica submetida a alguns dados, dirigida a uni objectivo com todas as forças da natureza e do homem" (Ib., p. 348). A história é esta mesma necessidade ou fatalidade que domina todos os eventos e indivíduos humanos e determina o fim para que tende. "A história ideal-eterna em que decorrem as histórias particulares de todas as nações é unia; esta história, em todos os pontos da terra, conduz à humanidade, a diversidade dos cultos procede das épocas, não do clima, e não isola mas associa todos os vi170 vos" Ob., p. 362). A Hegel, Ferrari reprovava o ter ignorado a diferença entre o facto natural e a providência das ideias. A identificação entre as duas coisas torna o próprio facto numa ordem providencial. Ferrari crê, ao invés, que tal identificação ocorrerá no futuro, mas que, quanto ao passado, a unidade da humanidade não está na ordem providencial, mas apenas na história ideal comum a todas as nações Ob., p. 382). A história dirige-se, segundo Ferrari, para a associação universal da humanidade (que é o ideal de SaintSimon), isto é, uma associação em que cada homem, procurando o seu interesse, seja útil a todos os homens. A própria obrigação moral é uma fatalidade, um facto primitivo sui gencris Ob., ll, p. 105). O predomínio da revelação sobrenatural e, portanto, da religião, por muito desejável que seja é, ele também, um produto da fatalidade (Ib., 11, p. 206). Por isso Ferrari considera que a própria fatalidade completará a obra iniciada pela revolução francesa, isto é, estabelecerá o reino da ciência e da igualdade. Os primeiros filósofos, e especialmente Sócrates, foram os precursores da revolução; mas a metafísica traiu-os e o seu ensino não frutificou. "Desde há meio século, diz Ferrari Ob., pp. 408-09), a metafísica arma a derradeira cilada à revolução. Transfere o problema da ciência para as antinomias do ser e o problema da igualdade para as antinomias do direito. Daí que tenhamos da ciência tornada abstracção da verdade, o reino da liberdade tornada abstracção dos dogmas, o reino da igualdade tornada abstracção da partilha (isto é, da justa distribuição dos benefícios), o reino da indústria tornada abstracção do capital". O curso ulterior da história fará abolir esta abstracção, recuperando-se a liberdade concreta, fundada na igualdade e na justa distribuição dos benefícios, condicionados por uma limitação da propriedade privada estabelecida por uma lei agrária universal Ob., II, p. 163). ? progresso da história, assim como o curso da ciência, não e, portanto, mais do que a revelação progressiva, no homem e através do homem, dessa necessidade racional da natureza. 171 § 646. O POSITIVISMO SOCIAL NA ALEMANHA A orientação social do positivismo teve também um certo número de representantes na Alemanha onde, no entanto, se vinculou mais à obra de Feuerbach do que a Saint-Simon ou a Comte. As figuras de maior relevo são Laas, Jodl e Dühring.
Ernest Laas (1837-85) é o autor de uma obra intitulada Idealismo e Positivismo dividida em três partes, sendo a primeira dedicada aos princípios do idealismo e do positivismo (1879), a segunda à ética idealista e positivista (1882) e a terceira à teoria da ciência idealista e positivista (1884). Laas considera toda a história da filosofia como campo de batalha de dois únicos tipos de doutrina que caracteriza precisamente com os nomes de platonismo e positivismo. O platonismo (que se pode classificar também de idealismo) apresenta-se na lógica como realismo; na teoria do conhecimento como apriorismo, inatismo ou racionalismo, e na ontologia como espiritualismo e teleologia. O positivismo é, ao invés, uma filosofia "que não reconhece nenhum outro fundamento que não seja o dos factos positivos, ou seja, as percepções externas e interiores, e exige a todas as opiniões que mostrem os factos ou as experiências em que se baseiam" (Ideal, und Posit., 1, p. 183). Sob a rubrica do platonismo Laas coloca os filósofos mais diversos: Aristóteles, Espinosa e Kant pelo carácter matematizante das suas doutrinas; Fichte, Schelling e Rousseau pelas suas tendências ao absoluto; Leibniz e Herbart porque admitem uma norma moral que não deriva da sensibilidade; Descartes e Hegel porque afirmam uma actividade espiritual espontânea que não é condicionada pelo mecanismo natural; e, finalmente, todos os que, de um modo ou de outro, reconhecem uma realidade ou principio transcendente, irredutível à vida terrestre do homem. O platonismo tem assim um primado indiscutível na história, já que, contra ele, o positivismo pode indicar apenas os nomes de Protágoras, que é o seu fundador, de David Hume e Stuart Mifi. O próprio Comte, pela sua pretensão de fundar uma religião da humanidade, não é considerado por Laas um verdadeiro positivista. A característica gnoseológica do positivismo é o correlativismo, a estreita 172 conexão do sujeito e do objecto. Para ele, a natureza é, de facto, uma aparência, mas não no sentido do platonismo nem mesmo no sentido kantiano e herbartiano, como manifestação ou revelação de uma realidade transcendente, mas no sentido de que "ela tem um significado apenas relativo porque só é pensável como objecto de um eu que a percebe ou a representa, o qual por seu turno não pode existir sem um não-eu, isto é, sem um objecto percebido" (Ib., p. 182). Laas opina que o platonismo, em todas as suas múltiplas formas e matizes, não é capaz de ir ao encontro das necessidades teoréticas da humanidade e de a ajudar a alcançar um universal bem-estar material e espiritual. A ética positivista é, ao invés, "uma moral para esta vida, com motivos que têm neste mundo a sua raiz". Tais motivos têm o seu último fundamento no prazer e na dor. Mas nem por isso são estreitamente egoístas. A origem histórica dos deveres a que o homem está submetido deve procurar-se nas esperanças e nas pretensões do ambiente social. E os bens a que o homem deve tender são, eles também, de natureza social: a segurança do fruto do trabalho, a solidariedade social, as instituições e as leis, o processo da cultura. Laas é decididamente optimista quanto aos efeitos de uma moral deste género. "A idade do ouro, diz ele, não está atrás de nós, mas diante de nós". Frederico Jodl (1848-1914) é o autor de uma História da ética (1888-89), de um Manual de Psicologia (1897), de uma póstuma Crítica do Idealismo (1920) e de outros numerosos escritos sobre o problema moral e religioso. Jodl está bastante próximo de Comte, cujas ideias considera substancialmente afins das de Feuerbach e de Stuart Mill. Não chega, porém, a aceitar a exigência comtiana de um culto à humanidade. "A ideia de Deus, na sua necessária oposição aos conceitos de movimento, de desenvolvimento, de progresso, não representa nenhuma realidade possível. A Humanidade, como um ser capaz de aperfeiçoamento mas nunca perfeito, permanece sempre, necessariamente, abaixo da sua própria ideia e não é, portanto, um objecto possível de adoração e de veneração. Não é a palavra culto, mas cultura, que abre as portas do futuro: não devemos adorar a
humanidade, mas formá-la e desenvolvê-la" (Gesch. der Eth., 173 1889, 11, p. 394). A religião da Humanidade deve ser uma fé moral mais do que um culto religioso. Quanto mais a Humanidade se sentir como um só todo no seu passado e no seu futuro, tanto mais se tornará a sua própria tarefa e finalidade, tanto mais o sentimento vivo desta conexão natural tomará o lugar dos mistérios religiosos. A fé no aperfeiçoamento da cultura, que fornece os meios, e a religião da Humanidade, fundada na conexão ideal das gerações, devem estimular-se reciprocamente para contribuir para a construção do futuro. "0 ideal em nós e a fé na sua progressiva realização através de nós: tal é a fórmula da nova religião da Humanidade" (Ib., p. 494). Jodl é, como Comte e Stuart Mill, adversário declarado de toda a metafísica: mas, na realidade, a sua metafísica é a do monismo materialista. Matéria e espírito coincidem no átomo psíquico, que é a primeira origem do desenvolvimento espiritual e se manifesta igualmente na irritabilidade e nos tropismos das plantas e nas acções da natureza inorgânica. Este conceito do átomo espiritual ou do átomo de consciência deveria, segundo Jodi, eliminar a antítese entre materialismo e espiritualismo. Entre a substância orgânica e o pensamento que é uma função desta substância no homem, medeia unicamente a história da evolução do mundo orgânico; e assim entre a substância viva e a natureza inorgânica existe apenas uma soma contínua de efeitos (Lehr. der Psych., 1, 1908, p. 50). Carlos Eugénio Dühring (1833-192 1) foi um fecundo, brilhante e superficial escritor, que se considerou reformador da humanidade. Os seus escritos abarcam domínios muito diferentes: da literatura às ciências naturais (escreveu, entre outras obras, uma História crítica dos princípios universais da mecânica, 1873), à economia política (Curso de economia política e social, 1873; História crítica da economia política e do socialismo, 1899), à polémica racial contra os hebreus e à filosofia. As suas principais obras filosóficas são as seguintes: Dialéctica natural, 1865; O valor da vida, 1865; Curso de filosofia, 1875; Lógica e teoria da ciência, 1878; e bem assim uma História crítica da filosofia que visa, como ele diz, "a emancipar-se da filosofia", isto é, destruir as doutrinas dos outros filósofos. Dühring entende a filosofia, não como uma imóvel intuição do mundo, ma@ como o 174 princípio activo da formação da vida. "A filosofia é o desenvolvimento da mais alta forma da consciência do mundo e da vida" (Cursus der Phil., p. 2). Como tal, compreende em si todos os princípios do conhecimento e da acção. O guia e fundamento dela são os factos naturais e as observações dos factos, fora dos quais não existe nenhuma outra fonte de verdade e de legitimidade. Dühring chama à sua filosofia uma filosofia da realidade, um sistema natural (Ib., p. 13). Não exclui, todavia, a metafísica, mas redu-la à consideração dos elementos reais da existência e, portanto, daqueles conceitos fundamentais que permitem entender a constituição do mundo. A metafísica é "o mais universal esquematismo de toda a realidade". Os dois objectos possíveis da filosofia são a natureza e o mundo humano. O mundo humano ou mundo histórico-social é um domínio particular distinto do sistema geral da natureza, mas não implica, de modo algum, uma fractura deste sistema ou qualquer negação das leis naturais (Ib., pp. 14-15). Dühring é defensor de um rigoroso monismo gnoseológico e metafísico. O pensamento e o ser correspondem-se exactamente nos seus elementos, de modo que não há aspecto ou forma da realidade que seja inconcebível e os limites do pensamento são os mesmos que os da realidade (Ib., p. 48). Tal realidade é sempre e apenas realidade natural. "A natureza, diz Dühring, é o conteúdo intacto da realidade total e o fundamento de toda a possibilidade". Certamente,
todo o aparelho natural ficaria privado de sentido se não tendesse à produção de uma multiplicidade de formas conscientes. Mas, por outro lado, o sistema mecânico e material da totalidade da natureza é a condição e o fundamento de todo o fenómeno particular, incluindo a consciência, de modo que o chamado idealismo é apenas uma imaginação pueril ou uma loucura especulativa que ignora até a distinção entre alucinação e realidade (Ib., p. 62). A existência dos seres sensitivos não é um pressuposto do universo, mas antes o resultado do seu desenvolvimento natural, determinado por leis necessárias. Não existe uma alma no sentido de substância ou realidade independente. A consciência em si não é mais que um conjunto de sensações e representações relativamente unificadas. A unificação é devida ao facto de que para toda a consciência 175 existe um único modo objectivo, ao qual se refere a multiplicidade diversa das próprias sensações. A estrutura unitária da consciência não é devida, portanto, a uma quimérica consciência universal, mas apenas à acção necessária do objecto material Ob., p. 131, segs.). Deste ponto de vista, a liberdade do querer e o próprio conceito de vontade, como força independente dos impulsos e das paixões, é impossível. Só existe uma liberdade psicológica, que consiste na perceptibilidade dos motivos ou, por outras palavras, na capacidade de se ser determinado por motivos que são causas representadas (Ib., pp. 185186). Dühring é defensor de uma ética social ou de um socialismo a que ele deu o nome de personalismo, fundado na limitação pessoal da força da propriedade e do capital. Ao comunismo marxista, que ele considera como uma aberração racial hebraica, que atribui de um modo simplista todos os males sociais à propriedade e ao capital, Dühring contrapõe o socialismo personalista que se pode realizar ou na economia socializada das associações produtivas (tipo Fourier) ou pela unificação das forças pessoais, e de uma maneira mais conveniente nesta última (Gesch. der National-Oekonomie, 1900, p. 639, segs.). NOTA BIBLIOGRÁFICA § 629. Sobre o positivismo cfr. os escritos citados na Nota Bibliográfica do § 670. § 630. SAINT-SIMON, Oeuvres, ed. Rodrigues, Paris, 1382; Oeuvres de S. -S. e dEnfantin, 47 vol., Paris, 1856-78; Textes choiss, ed. C. Bouglé , Paris, 1925; La rioganizzazione della società europea, trad. ital. de A. SAITTA, Roma, 1945 (com introdução e bibliografia). HUBBARD, sa vie et ses oeuvres, Paris, 1857; JANET, S.-S. et le saint-simonisme, Paris, 1879; FoURNIÈRE Les théories socialistes au XIXème siècle, de Babeuf à Proudhon, Paris, 1905; U. LEROY, La vie de S. -S,, Paris, 1925; H. GOUHIER, A Comte et S. -S., Paris, 1941; G. SANTONASTASO, Il socialismo francese da S.-S. a Proudhon, Florença, 1954; F. E. MANUEL, New World ofH. de S. -S., Cambridge, 1956. FOURIER, Oeuvres complètes, 6 vol., Paris, 1840-45. CH. PELLERIN, Ch. F., Paris, 1843; A. BEBEL, Ch. F., Estugarda, 1907; A. LAFONTAINE, Ch. F., Paris, 1911; ARMAND et MAUBLANC, F., Paris, 1937; A. SAITTA, in "Belfagor", Florença, 1947, pp. 272-92. 176 § 631. PROUDHON, Oeuvres complètes, Paris, 1867-70; Correspondence, Paris, 1875; Oeuvres, nova edição, Paris, 1923, seg$. K. MARX, Misère de la phil. en réponse à Ia Phil. de Ia misère, Bruxelles, 1847; SAINTE
BEUVE, P. J. P., Paris, 1872; K. DIEHL, P. J. P., Jena, 1888-96; A. DESJARDIN, P. J. P., 2 vol., Paris, 1896; BOURGIN, P., Paris, 1901; C. BouGLÉ, La sociologie de P., Paris, 1911; ID e outros, P. et notre temps, Paris, 1920; A. MENZEL, P., Tubinga, 1933, SANTONASTASO, P., Bari, 1935; E. DOLLÉANS, P., Paris, 1948; G. GURVITCH, Les fondateursfrançais de Ia sociologie contemporaine: Saint-Simon et P., Paris, 1955. § 632. Sobre a vida de Comte: A. CROMPTON, Confessions and Testament ofA. C. and his Corresp. with Clotilde de Vaux, Liverpool, 1910; CH. DE ROUVRE, Lamoureuse histoire dA. C. et de Clotilde de Vaux, Paris, 1917. LITTRÉ, A, C. et Ia phil. positive, Paris, 1863; H. SPENCER, Classification of the Sciences, Londres, 1864; STUART MILL, A. C. and Positivism, Londres, 1865; R. CONGREVE, Essays Political, Social and Religious, Londres, 1847; E. LAM, Idealismus and Positivismus, Berfim, 1879-84; E. CAIRD, The Social Phil. and Religion of C., Giasgow, 1855; H. MARTINEAU, La phil. dA. C,, Paris, 1895; LÉVY-BRHUL, La phil. dA. C. Paris, 1900; DUPUY, le Positivisme dA. C., Paris, 1911; W. OSTWALD, A. C., Leipsig, 1914; H. GOUHIER, Ia jeunese dA. C. et Ia formation da positivisme, 3 vol., Paris, 1933-41; F. S. MARVIN, C., Londres, 1936; J. PETER, A. C., Bild vom Menschen, Estugarda, 1936; A. CRESSON, A. C., sa vie, son oeuvre, Paris, 1941. § 633. T. KOZARY, La loi des trois états dA. C., Paris, 1895. § 634. E. CAIRD, The Social Philosophy and Religion of. C., Glasgow, 1885 (trad. franc., Paris, 1907); A. ALENGAY, La sociologie chez A. C., Paris, 1900; L. DE MONTESQUIEU, Le système politique dA. C., Paris, 1906. § 635. C. H. LEWlS, La phil. des sciences dA. C., (trad. frane., Paris, 1910); E. MEYERSON, De Pexplication dans les sciences, Paris, 1927 (cap. XIII e passion); L. GEYMONAT, Rproblema della conoscenza nelpositivismo, Turim, 1931 (cap. 1). § 636. A. BAUMANN, La religion positive, Paris, 1903. § 637. Sobre Littré: A. POEY, L. e a. Comte, Paris, 1,879; CARO, L. etlepositivisme, Paris, 1883. § 638. Sobre o utilitarismo: J. M. GUYAU, La morale anglaise contemporaine, Paris, 1879; LESLIE STEPHEN, The English Utilitarians, Londres, 1900; E. ALBEE, A History of English Utilitarism, Londres, 190 1, 1957; W. R. SORLEY, Recent Tendencies in Ethics, Edimburgo e Londres, 1904; W. L. DAVISON, Political Thought in England.- the Utilitariansfrom Bentham to J. S. MilI, Londres, 1945; S. W. LESLIE, Political Thought in England; The Utilitarians from Bentham to Mili, Londres-New York, 1947; J. PAMENATZ, The English Utilitarians, Londres, 1949. BENTHAM, Works, 11 vol., Edimburgo, 1938-43. Sobre Bentham, além das obras respeitantes ao movimento utilitarista: L. A. SELBY BIGGE, British Moralists, Oxford, 1897; C. M. ATKINSON, J. B. Londres, 1905; GRAHAM WALLAS, J. B., Londres, 1922; D. BAUMGARDT, B. and the Ethics of Today, Princeton, 1952. 177 L'Analysis de James Mili foi reeditada em 1863 pelo filho de STIJART MILL - Sobre J. MilI, efr. op. cit. de LESLIE STEPHEN; A. BAIN, J. M., a Biography, Londres, 1882. § 639. De Stuart MilI, o conjunto dos escritos em Bibliography of the Published Writings of
J. S. M., de N. MACMINN, J. R. HAINDS, J. Mc N. MCCRIMMON, Evaston, 1945. Sobre Stuart MilI, H. TAINE, Le positivisme anglais, Paris, 1869; LITTRÉ, A. Comte et Stuart MilI, Paris, 1877; A. BAIN, J. S. M., Londres, 1822; CH. DOUGLAS, J. S. M., Edimburgo, 1895; E. THOUVEREZ, S. M., Paris, 1905; G. KENNEDY, The Psychological Empiricism of J. S. M., Amsterdão, 1928; M. A. HAMILTON, J. S. M., Londres, 1933; R. P. ANSCHUTZ, The Philosophy of J. S. M., Oxford, 1953; K. BRITTON, J. S. M., Londres, 1953; J. M. PACKE, The Life of J. S. M., Londres, 1953; M. J. PACKE, The Life of J. S. M., Nova lorque, 1953. § 640. W. STEBBING, Analysis of Mill's Logic, 1867; T. H. GREEN, The Logic of J. S. M. in "Works", 11, Londres, 1886; G. A. TOWNEY, J. S. M. 's Theory of Inductive Logic, Cincirmati, 1909; R. JACKSON, Examination of the DeductiveLogic of J. S. M., Oxford, 1941. § 641. J. WARD, Mill's Science of Ethology, in "Interna Journal of Ethics", 1, 1891. § 642. JEAN RAY, La méthode de Péconom. politique d'après J. S. M., Paris, 1914. CH. DOUGLAS, Ethics of J. S. M., Edimburgo, 1897; G. ZUCCANTE, La morale utilitaria dello Stuart MilI, 1899. § 643. W. L. COURTNEY, Metaphysics of J. S. M., Londres, 1879. § 644. W. G. WARD, Essays on the Phil. of Theism, 1, Londres, 1884. § 645. CATTANEO, Scritti di filosofia, 2 vol., Florença, 1892; Scritti filosofici, letterari e vari, ao cuidado de F. ALESSIO, Florença, 1957; Scrittifilosofici, ao cuidado de N. BOBBIO, 3 vol., Florença, 1960. Sobre Cattaneo: E. ZANONI, C. C. nella vita e nelle opere, Roma, 1898; B. BRUNELLO, c., Turim, 1925; DI). LEVI, li PoSitiViSMO político di C. C., Bari, 1929; ALLINEY, I pensatori della seconda metà dei secolo XIX, Milão, 1942; L. AMBROSOLI, La formazione di C. C., Milão-Nápoles, 1960; F. ALESSIO, "Cattaneo iliuminista", prefácio à edição citada dos Scritti. Cf. também a introdução de N. BOBBIO na citada edição dos Scritti. Sobre Ferrari: L. FERRI, Essai sur Phistoire de Ia Phil. en Italie au XIX-e siècle, ii, Paris, 1869, p. 229 segs.; P. F. NICOLI, La mente di G. F., Pavia, 1902; G. GENTILE, op. cit., 1, Messina, 1917; R. MONDOLFO, Lafilosofia política in Italia nelsecolo XIX, Pádua, 1924; BRUNELLO, 11 pensiero di G. F., Milão, 1933; ALLINEY, op. cit. (Bibl.). . § 646. Sobre Laas: DE NEGRI, La crisi delpositivismo nellafilosofia deli'immanenza, Florença, 1929. Sobre Jodi: o fasciculo do "Archiv für Geschichte der Philosophie", 27?, 1914, que lhe é dedicado. Sobre Dühring: E. Dõlli, E. D., Leipzig, 1893. 178
íNDICE VIII- KIERKEGAARI)
................................
7
§ 597. Vida e obra . ................. ............ 7 § 598- A existência como possibilidade .............. 9 § 599. Estádios da existência ......... . ,........... 12 § 600- O sentimento do possível: a angústia ........... 16 § 601. O possível como estrutura do eu: o desespero .... 19 § 602. A noção de "possível" ...................... 22 § 603. O instante e a história ...................... 24 § 604. Balanço da obra Kierkegaardiana . . ........... 28 Nota bibliográfica ...... . .................. 30 IX - MARX
........................................
31
§ 605. Filosofia e revolução ....................... 31 § 606. Vida e obras ............................. 32 § 607. Antropologia ............................ 33 § 608. O materialismo histórico .................... 38 § 609. O comunismo ............................ 42 § 610. A alienação ............................... 47 § 611. A dialéctica .............................. so § 612. Engeis .................................. 53 Nota bibliográfica .........................
55
X - O REGRESSO ROMÃNTICO À TRADIÇÃO. .
........
57
§ 613. A segunda fase do romantismo: revelação e tradição .................................... 57 § 614. O tradicionalismo francês ................... 59 § 615. A ideologia .............................. 62 § 616. Regresso ao espiritualismo tradicional (eclectismo) 64 § 617. Maine de Biran: o sentido intimo .............. 67 § 618. Biran: o sentido intimo como revelação, ........ 72 § 619. O regresso à tradição em Itália. GaIluppi ........ 75 § 620. Rosmini: o ser ideal como revelação ........... 80 § 621. Rosmini: a pessoa humana, o direito e o estado ... 85 § 622. Gioberti: vida e obra ....................... 88 § 623. GiQberti: a verdade como revelação e tradição .... 90 § 624. Gioberti: a dialéctica da Mimesis e da Methexis. . . 95 § 625. Gioberti: as doutrinas políticas , .............. 101 § 626. Mazzini ....... . ......................... 104 § 627. Epigonos italianos do tradicionalismo espiritualista .................................... 108 § 628. Otradicionalismoespiritualistaem Inglaterra .... 11 1 Nota bibliográfica ......................... X1 - O POSITIVISMO SOCIAL
1,4 ........................
117
§ 629. Características do positivismo ................ 117 § 630. A filosofia social em França ................. 118 § 631. Proudhon ............................... 123 § 632. Comte: vida e obra ........................ 126 § 633. Comte: a lei dos três estados e a classificação das ciências .................................. 129 § 634. Comte: a sociologia ...... ... ............... 133 § 635. Comte: a teoria da ciência ................... 135 § 636. Comte: a divinização da História ...... ........ 140 § 637. Discípulos imediatos de Cointe ........ . ...... 144 § 638. O positivismo utilitarista .................... 146 § 639. Stuart Mill: vida e
obras .......... . ......... 153 § 640. Stuart Mill: a lógica ........................ 155 § 641. Stuart Mill: a ciência do homem .............. 159 § 642. Stuart Mili: a economia política e a moral ....... 161 § 643. Stuart Mili: doutrina da substância ............ 163 § 644. Stuart Mili: o derniurgo e a religião da humanidade 164 § 645. Positivistas italianos ....................... 166 § 646. O positivismo social na Alemanha ............. 172 Nota bibliográfica .........................
176
Este livro foi fotocomposto por Navegráfica e acabou de se imprimir em 1985 para a EDITORIAL PRESENÇA, LDA. na Tipografia Nunes, Lda. - Porto
HISTÓRIA DA FILOSOFIA Décimo primeiro volume NICOLA ABBAGNANO obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes. Se quiser possuir obras do mesmo tipo ou, por outro lado, tem livros que não se importa de ceder, por favor, contacte-me: Ângelo Miguel Abrantes, R. das Açucenas, lote 7, Bairro Mata da Torre, 2785-291, S. Domingos de Rana. telef: 21.4442383. móvel: 91.9852117. Mail: [email protected] [email protected]. VOLUME XI EDITORIAL PRESENÇA
TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILDSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. R. Augusto Gil, 2 clv.-E. - Lisboa XII O POSITIVISMO EVOLUCIONISTA § 647. POSITIVISMO EVOLUCIONISTA: O PRESSUPOSTO ROMâNTICO A outra orientação do positivismo é a evolucionista. Esta orientação consiste em tomar o conceito de evolução como o fundamento de uma teoria geral da realidade natural e como manifestação de uma realidade - sobrenatural ou metafísica - infinita e ignota. O ponto de partida desta orientação, ou seja, o conceito de evolução, é extraído da doutrina do transformismo biológico, que foi elaborada por Lamarck e Darwin: ele apresenta-se, efectivamente, como a generalização de tal doutrina. Mas tal generalização é condicionada pelo pressuposto romântico de que o finito é a manifestação ou revelação do infinito, já que só em virtude deste pressuposto, os processos evolutivos singulares, que a ciência pode verificar fragmentariamente em alguns aspectos da natureza, se unem num processo único, universal, contínuo e necessariamente progressivo. Sob este aspecto, o evolucionismo positivista é a extensão ao mundo da natureza do conceito da história elaborado pelo idealismo romântico. Tal como a história na doutrina de Fichte ou de Schelling, a natureza, na teoria de Spencer, é um processo de desenvolvimento necessário, cuja lei é o progresso. § 648. HAMILTON E MANSEL A introdução da filosofia romântica na Inglaterra fez-se através da obra de Hamilton, que, com a doutrina da incognoscibilidade do absoluto, constitui também um precedente do positivismo de Spencer. William Hamilton (nascido em Glasgow a 8 de Março de 1788, falecido em Edimburgo a 6 de Maio de 1856) foi uma figura notável sobretudo pela sua vastíssima erudição filosófica, que o levou a contactar directamente com a filosofia alemã do romantismo. O seu primeiro escrito foi um estudo intitulado Filosofia de Cousin, aparecido na "Edinburgh Review" de 1829. Em 1836, foi nomeado professor de lógica e metafísica na Universidade de Edimburgo. As suas Lições de metafísica e de lógica, compostas no primeiro ano de ensino, foram depois repetidas por ele durante vinte anos sem qualquer alteração e publicadas postumamente por Mansel (4 vol., 1859-60). Em 1852, Hamilton publicou uma recolha de artigos com o título Discussões de filosofia e literatura; e, em 1856, as Obras de Thomas Reid com notas e comentários.
As Lições, de Lógica de Hamilton constituem um dos mais brilhantes tratados da lógica tradicional no século XIX. Foram tão importantes as correcções que fez à lógica tradicional, que estas viriam a revelar-se fecundas no campo da lógica matemática; nomeadamente, o princípio da quantificação do predicado, segundo o qual nas proposições se deve considerar a quantidade não só do sujeito mas também do predicado. Tal quantificação efectua-se, de facto, ou mediante o uso dos quantificadores (por exemplo, "Pedro, João, Jaime, etc., são todos apóstolos") ou mediante modos indirectos como a limitação e a excepção ou, de uma maneira subentendida, como quando se diz: "Todos os homens são mortais", devendo entender-se: "Todos os homens são alguns mortais". As Lições de metafísica apresentam em primeiro lugar uma versão da teoria da percepção imediata própria da escola escocesa, de que, sob certos aspectos, Hamilton é um continuador. Hamilton, todavia, traz a esta teoria uma modificação importante, negando que a percepção imediata faça conhecer as coisas tais como são em si mesmas. "A teoria da percepção imediata, diz ele, não implica que nós percebamos a realidade material absolutamente e em si mesma, isto é, fora da relação com os outros órgãos e as nossas faculdades, pelo contrário, o objecto total e real da percepção é o objecto exterior em relação com os nossos sentidos e com a nossa faculdade cognitiva. Mas, embora relativo a nós, o objecto não é representação, não é uma modificação do eu. Ele é o não-eu-o não-eu modificado e relativo, talvez, mas sempre não-eu" (Lectures on Metaphisics, 1, 1870, p. 129). A teoria da percepção imediata, não elimina, portanto, segundo Hamilton, o relativismo do conhecimento, o qual se baseia em três razões: 1.o a existência não é cognoscível absolutamente em si mesma mas só de modos especiais, 2.o estes modos só podem ser conhecidos em relação com as nossas faculdades, 3.o não podem estar em relação com as nossas faculdades senão como determinadas modificações dessas mesmas faculdades (Ib., 1, p. 148). Decerto que nesta forma a doutrina da percepção imediata não tem o mesmo significado que a escola escocesa do senso comum lhe conferira: esta escola, de facto, entendia aquela doutrina no sentido de que os objectos são percebidos imediatamente e em si mesmos. Além disso, entre um objecto condicionado e tornado relativo pela sua relação com as faculdades humanas e uma "ideia" no sentido de Descartes e de Berkeley a diferença é puramente verbal. A relatividade do conhecimento permite a Hamilton afirmar a incognoscibilidade, e não a inconcebilidade, do Absoluto. Contra Cousin e Schelling, Hamilton afirma esta incognoscibilidade, ao passo que, de acordo com eles, defende a existência do Absoluto, cuja realidade se revelaria na crença. "Pensar é condicionar, afirma (Discussions, p. 13), e uma limitação condicional é uma lei fundamental das possibilidades do pensamento. O Absoluto não é concebível senão como uma negação da possibili10
dade de ser concebido". Por outro lado, "a esfera da nossa crença é muito mais extensa do que a esfera do nosso conhecimento; e, portanto quando nego que o Infinito possa ser conhecido por nós, estou bem longe de negar que ele possa e deva ser crido por nós" (Ib., II, p. 530-31). Esta superioridade da crença sobre o conhecimento vincula Hamilton à escola escocesa; mas para Hamilton, a crença é, romanticamente, a revelação imediata e primitiva que o próprio Infinito faz de si ao homem e que, por conseguinte, condiciona o próprio processo do conhecer. Falando da percepção da realidade externa, Hamilton reconhece que, propriamente falando, nós não sabemos se o objecto de tal percepção é um não-eu, e não uma percepção do eu; só a reflexão faz crer que o seja "porque obedecemos à fé numa necessidade originária da nossa natureza que nos impõe tal crença" (Reid's Works, p. 744-50). Ao nome de Hamilton está ligado o de Henry Longuevifie Mansel (1820-71) que foi o seu intérprete. Em dois livros, Os limites do pensamento religioso (1858) e Filosofia do condicionado (1866), Mansel construiu sobre as premissas de Hamilton uma teologia negativa. Deus como absoluto e infinito é inconcebível. Ele não pode no entanto ser concebido como causa primeira, já que a causa existe apenas em relação ao efeito e ao absoluto repugna toda a relação. Toda a tentativa de o conceber de algum modo dá lugar a dilemas insolúveis. "0 absoluto não pode ser concebido nem como consciente nem como inconsciente; nem como complexo nem como simples; não II pode ser definido nem mediante diferenças nem mediante a ausência de diferenças: não pode ser identificado com o universo nem pode ser distinto dele" (Limits of Rel. Thought, p. 30). Do mesmo modo, o infinito que deveria ser concebido como todo em potência e nada em acto revela precisamente nisto a sua impossibilidade de ser concebido, já que "se pode ser o que não é, é incompleto, e se é todas as coisas, não tem nenhum sinal característico que o possa distinguir de uma coisa qualquer" (Ib., p. 48). Esta incognoscibilidade do Infinito e do Absoluto é, todavia, relativa ao homem, não pertence à natureza do próprio Absoluto. "Nós somos obrigados, diz Mansel (1b., p. 45), pela própria constituição do nosso espírito a crer na existência de um Ser absoluto e infinito". Esta crença funda-se na nossa consciência moral e intelectual, na estrutura e no curso da natureza e na revelação" (Phil. of the Conditioned. p. 245). Mas tão-pouco estes fundamentos da crença permitem afirmar alguma coisa sobre os atributos de Deus. Subsiste uma diferença enorme entre a mais alta moralidade humana concebível e a perfeição divina, distância que pode ser de algum modo abolida pelo conceito escolástico de analogia. A doutrina de Hamilton e Mansel é ao mesmo tempo um cepticismo da razão e um dogmatismo da fé. O cepticismo da razão foi utilizado como fundamento do agnosticismo que caracterizava em boa parte o positivismo evolucionista. O dogmatismo da fé iria ter a sua continuação histórica no espiritualismo inglês contemporâneo. 12
§ 649. A TEORIA DA EVOLUÇÃO Se o princípio romântico do infinito que se revela ou realiza no finito é a categoria tacitamente pressuposta pela filosofia positivista da evolução, a teoria biológica da transformação da espécie é, de facto, o seu ponto de partida. Com efeito, o evolucionismo é uma generalização desta doutrina biológica, generalização tacitamente fundada nesta categoria. Podem-se encontrar antecedentes imediatos da teoria do transformismo biológico nalgumas intuições de Buffon (1707-88). O famoso autor da História natural (1749-88), embora declarando-se explicitamente partidário da doutrina tradicional da fixidez das espécies vivas, admite hipoteticamente a possibilidade de que se tivessem desenvolvido a partir de um tipo comum, através de lentas variações sucessivas, verificadas em todas as direcções. Foi ainda em Buffon que Kant, provavelmente, se inspirou ao propor a hipótese (1790), no parágrafo 80 da Crítica do Juízo, de "um verdadeiro parentesco" das formas vivas e da sua derivação de uma "mãe comum", assim como a ideia de uma evolução contínua da natureza da nebulosa primitiva até ao homem. Porém, tais hipóteses eram apenas intuições genéricas, não apoiadas num sistema coordenado de observações. O primeiro a apresentar de um modo científico a doutrina do transformismo biológico foi o naturalista francês João Baptista Lamarck (1744-1829). Na sua Filosofia zoológica (1809) e na História natural dos animais sem vértebras (1815-22), Lamarck enunciava quatro leis que deviam presidir à formação dos organismos ani13 mais: 1.o a vida, pela sua própria força, tende continuamente a aumentar o volume de cada corpo vivo e a estender as suas partes; 2.1> a produção de um novo órgão animal resulta do aparecimento de uma nova necessidade e do novo movimento que esta necessidade suscita e encoraja; 3.o o desenvolvimento dos órgãos e a sua força de acção estão constantemente na razão directa do uso dos próprios órgãos; 4.o tudo o que foi adquirido, perdido ou modificado na organização dos indivíduos é conservado e transmitido mediante a geração dos novos indivíduos. Estas quatro leis são a primeira formulação científica do modo por que se verificaria a transformação dos organismos. Tal modo é reportado substancialmente ao princípio de que o uso dos órgãos, requerido pelas necessidades e, portanto, pelo ambiente exterior, pode modificar radicalmente os próprios órgãos. As ideias de Lamarck não tiveram nenhuma ressonância imediata devido sobretudo ao enorme apoio que a tese oposta da fixidez das espécies teve durante alguns decénios mercê da autoridade de George Cuvier (1769-82), o fundador da paleontologia, ou seja, do estudo dos restos fósseis das espécies extintas. No seu Discurso sobre as revoluções do globo (1812), Cuvier explicou a extinção das espécies fossilizadas mediante catástrofes, gerais que periodicamente destruiriam as espécies vivas de cada época geológica, dando ensejo a que Deus criasse novas. O transformismo biológico só pôde afirmar-se quando esta teoria das catástrofes foi eliminada; e essa eliminação foi obra do geólogo inglês Charles Lye11 (1797-1875). Nos seus Princípios
de geologia 14 (1833), Lye11 expÔs a tese de que o estado actual da terra não é devido a uma série de cataclismos mas à acção lenta, gradual e insensível das mesmas causas que continuam a actuar sob os nossos olhos. Tal doutrina tornava impossível explicar a génese e a extinção das espécies vivas mediante causas extraordinárias ou sobrenaturais e abria definitivamente a via ao transformismo biológico. Este fez a sua entrada triunfal na ciência com a obra de Charles Darwin (12 de Fevereiro de 1809-19 -Abril de 1882). Sobrinho de um naturalista, chamado Erasmo, Darwin foi o tipo do cientista inteiramente dedicado à s suas pesquisas. Depois de uma viagem por mar durante cinco anos, dedicou-se a recolher e a ordenar o material para a sua grande obra A origem das espécies, que apareceu em 1859. O livro teve um sucesso fulgurante e a primeira edição, de mais de 1.000 exemplares, esgotou-se no primeiro dia de venda. Seguidamente, Darwin publicou A variação dos animais e das plantas no estado doméstico (1868) e Descendência do homem (1871). O último trabalho notável de Darwin foi a Expressão das emoções no homem e nos animais (1872), a que se seguiram alguns trabalhos científicos menores. Em 1887, o filho de Darwin, Francisco, publicou dois volumes intitulados A vida e a correspondência de Charles Darwin, que contêm também uma breve autobiografia do filósofo, e que são indispensáveis para a compreensão da sua personalidade. O mérito de Darwin consiste em ter elaborado uma completa e sistemática teoria científica do transformismo biológico, fundando-a num número enorme 15 de observações e de experiências, e em a ter apresentado precisamente no momento em que a ideia romântica do progresso, nascida no terreno da investigação histórica, alcançava a sua máxima universalidade e parecia indestrutível. A teoria de Darwin assenta em duas ordens de factos: LO, a existência de pequenas variações orgânicas que se verificam nos seres vivos ao longo do curso do tempo e por influência das condições ambientais, variações que, em parte, pela lei das probabilidades são vantajosas aos indivíduos que as apresentam: 2.O a luta pela vida, que se verifica necessariamente entre os indivíduos vivos pela tendência da cada espécie a multiplicar-se segundo uma progressão geométrica. Este último pressuposto é evidentemente extraído da doutrina de Malthus (§ 638). Destas duas ordens de factos se segue que os indivíduos em que se manifestam mutações orgânicas vantajosas têm mais probabilidades de sobreviver na luta pela vida; e em virtude do princípio de hereditariedade haverá neles uma tendência pronunciada para deixar em herança aos seus descendentes os caracteres acidentais adquiridos. Tal é a lei da selecção natural, que "tende, diz Darwin (Origens das espécies, 4.O, § 18), ao aperfeiçoamento de cada criatura viva em relação com as suas condições de vida orgânicas e inorgânicas, e, por conseguinte, na maior parte dos casos, com um progresso da organização. Todavia, as formas simples inferiores podem perpetuar-se por muito tempo se forem convenientemente adaptadas às suas simples condições de vida. "A acumulação das pequenas variações e a sua conservação por meio da hereditariedade produzem as
16 variações dos organismos animais que, nos seus termos extremos, é a passagem de uma espécie à outra. O que o homem faz com as plantas e os animais domésticos produzindo gradualmente as variedades que são mais úteis às suas necessidades, pode fazê-lo a natureza numa escala muito mais vasta, pois "que limites se podem pôr a esse poder que actua durante longas eras e perscruta rigorosamente a estrutura, a organização inteira e os hábitos de cada criatura, para favorecer o que está bem e rejeitar o que está mal?" (1b., 14, § 2). Desta teoria se segue que entre as várias espécies devem ter existido inúmeras variedades intermédias que ligavam estreitamente todas as espécies de um mesmo grupo; mas, evidentemente, a selecção natural exterminou estas formas intermédias de que, no entanto, se podem encontrar traços nos fósseis (Ib., 6.o, § 2). Além do estudo dos fósseis, o dos órgãos rudimentares, das espécies chamadas aberrantes e da embriologia pode conduzir a determinar a ordem progressiva dos seres vivos. "Se nós, escreve Darwin, não possuímos árvore genealógica, nem livro de oiro, nem brasões hereditários, temos, no entanto, a possibilidade de descobrir e seguir os traços das numerosas linhas divergentes das nossas genealogias naturais, mediante a herança, desde há muito conservada, dos caracteres de cada espécie" (Ib., 14.O, § 5). A conclusão de Darwin é nitidamente optimista: crê ter estabelecido o inevitável progresso biológico do mesmo modo que o romantismo idealista e socialista acreditava no inevitável progresso espiritual. "Nós podemos concluir com alguma confiança que nos será 17 permitido contar com um futuro de duração incalculável. E como a selecção natural actua apenas para o bem de cada indivíduo, todo o dom físico ou intelectual tenderá a progredir para a perfeição" (1b., 14.-, § 6). A outra obra fundamental de Darwin, A descendência do homem, tende, em primeiro lugar, a estabelecer que "não existe nenhuma diferença fundamental entre o homem e os mamíferos mais elevados no que respeita às faculdades mentais". A única diferença entre a inteligência e a linguagem do homem e a dos outros animais é uma diferença de grau que se explica pela lei da selecção natural e também, em parte, pela escolha sexual a que Darwin atribui, para a evolução do homem, uma importância bastante maior do que para a evolução dos animais. Darwin não crê que o conhecimento da descendência do homem de organismos inferiores diminua de algum modo a dignidade humana. "Quem visse um selvagem na sua terra natal, escreve em As origens do homem, (trad. ital., p. 579) não sentiria muita vergonha se se visse obrigado a reconhecer que o sangue de uma criatura mais humilde lhe corre nas veias. Quanto a mim, preferia muito mais ter descendido daquele heróico macaco que enfrentou o seu terrível inimigo para salvar a vida ao seu guardião ou daquele velho babuíno que desceu da montanha para arrancar triunfante o seu jovem companheiro a uma furiosa matilha de cães, do que de um selvagem que se compraz em torturar os seus inimigos, oferece sacrifícios de sangue, pratica o infanticídio sem remorsos, trata as 18 suas mulheres como escravas, não conhece o que é a
decência e é dominado por grosseiras superstições". Darwin, foi e quis ser exclusivamente um cientista. Só raramente, e dir-se-ia contra vontade, se decidiu a exprimir as suas convicções filosóficas e religiosas; e sempre em privado, em cartas particulares não destinadas à publicação. Contudo, estas convicções, foram-lhe inspiradas pela sua doutrina da descendência inferior do homem, descendência que não pode autorizar uma grande fé na capacidade do homem para resolver certos problemas fundamentais. "Per-unto a mim mesmo, escreve numa carta (Vida e corresp., trad. franc., p. 368), se as convicções do homem, que se desenvolveu a partir do espírito de animais de ordem inferior, têm algum valor e se se pode ter alguma confiança nelas. Quem poderia confiar nas convicções do espírito de um macaco, se é que existem convicções num espírito semelhante?" Noutra carta de 1789 (1b., p. 353-54) exprime-se assim: "Sejam quais forem as minhas convicções sobre este tema, elas só podem ter importância para MI próprio. Mas, já que mo perguntais, posso assegurar-vos que o meu juízo sofre amiúde flutuações... Nas minhas maiores oscilações, nunca cheguei ao ateísmo no verdadeiro sentido da palavra, isto é, nunca cheguei a negar a existência de Deus. Eu penso que, em geral (e sobretudo à medida que envelheço), a descrição mais exacta do meu estado de espírito é a de agnóstico". O termo agnosticismo fora criado em 1869 pelo naturalista Thomas Huxley (1825-956) que chegara, antes da publicação da Origem das espécies, a inferir por si próprio a transformação das espécies 19 biológicas e que se tornou logo um dos mais entusiastas partidários de Darwin. "0 termo, diz HuXley (Collected Essays, V, p. 237 e sgs.) veio-me à mente como antítese de "gnóstico" da história da Igreja que pretendia saber muito sobre coisas que eu ignorava". Tal termo implica já, na mente de Huxley, uma referência àquela impossibilidade de conceber o Absoluto e o Infinito em que haviam insistido Hamilton e Mansel. Mas, para Darwin, este termo tem um sentido menos explícito, significando simplesmente a impossibilidade de encontrar no domínio da ciência quaisquer asserções que confirmem ou desmintam decisivamente as crenças religiosas tradicionais. Darwin, no entanto, supunha possível negar decididamente qualquer "intenção" da natureza, isto é, toda a causa final, e aduzia a este propósito a existência do mal e da dor (Vida e corresp., trad. franc., 1, p. 361-62). Porém, estava convencido de que "o homem será no futuro uma criatura bastante mais perfeita do que é actualmente" (1b., p. 363); e, na realidade, as suas convicções científicas e toda a estrutura sistemática da sua teoria da evolução se fundam no pressuposto da ideia do progresso que dominava o clima romântico da época. Através da obra de Darwin, a ciência inseriu o mundo inteiro dos organismos
vivos na história progressiva do universo. § 650. SPENCER: O INCOGNOSCíVEL A época era, pois, propícia a uma teoria do progresso que não o restringisse ao destino do homem no mundo, mas sim o estendesse ao mundo inteiro, na 20 totalidade dos seus aspectos. Elaborar a doutrina do progresso universal e pôr em relevo o valor infinito e, portanto, religioso (mesmo quando só misteriosamente religioso) do progresso, tal foi o objectivo que Spencer se propôs ao difundir em Março de 1860 o plano do seu Sistema de filosofia, de vastas proporções. Herbert Spencer nasceu a 27 de Abril de 1820 em Derby, em Inglaterra e foi engenheiro dos caminhos de ferro em Londres. Publicou primeiramente alguns artigos de carácter político e económico; em 1845, tendo recebido uma pequena herança, obedeceu à sua vocação filosófica e abandonou a carreira de engenheiro para se dedicar à sua actividade de escritor. De 1848 a 1853 pertenceu à redacção do "Economist". O primeiro resultado da sua actividade foram os Princípios de psicologia, publicado em 1855. Em 1857, publicou um ensaio sobre o progresso (0 progresso, sua lei e sua causa), que é muito significativo pela sua orientação fundamental. E em 1862 saía o primeiro volume do Sistema de filosofia sintética projectado em 1860, Primeiros princípios que é a sua obra filosófica fundamental, a que se seguiram os dois volumes dos Princípios de biologia (1864-67), e em seguida: Princípios de psicologia (2 vol., 1870-72), Princípios de sociologia (Parte 1, 1876; Instituições cerimoniais, 1879; Instituições políticas, 1882; Instituições eclesiásticas, 1885), Princípios de moralidade (Parte I, As bases da ética, 1879); Parte IV, A justiça, 1891-, Parte 11 e Parte 111, 1892; Parte V, 1893). A estas obras seguiram-se: A classificação das ciências (1864); A educação (1861); O estudo da 21 sociologia (1873); O homem contra o estado (1884); Os factores da evolução orgânica (1887); Ensaios (2 vol., 1858-63); Estática social (1892); A inadequação da selecção natural (1893); Fragmentos vários, (1897); Factos e comentários (1902); Autobiografia (2 vol.. 1904)-, Ensaios sobre a educação (1911). Estes últimos dois escritos são póstumos. Spencer morreu a 8 de Dezembro de 1903 em Brigton. No artigo sobre o progresso de 1857 (recolhido mais tarde nos Ensaios) que é o primeiro esboço do seu sistema, pode-se ver claramente qual é a inspiração fundamental do evolucionismo de Spencer: devia este servir para justificar, mediante a sua lei e a sua causa fundamental, o progresso, entendido como facto universal e cósmico. "Quer se trate, dizia Spencer, do desenvolvimento da terra, do desenvolvimento da vida à sua superfície, do desenvolvimento da sociedade, do governo, da indústria, do comércio, da linguagem, da literatura, da ciência, da arte, sempre o
fundo de todo o progresso é a mesma evolução que vai do simples ao complexo através de diferenciações sucessivas. Desde as mais antigas mutações cósmicas de que há sinais até aos últimos resultados da civilização, veremos que a transformação do homogéneo em heterogéneo é a essência mesma do progresso". No mesmo artigo considerava-se o carácter divino e, portanto, religioso da realidade velada, mais do que revelada, do progresso cósmico. Este carácter é o ponto de partida dos Primeiros princípios. A primeira parte desta obra intitula-se "0 incognoscível". Tende a demonstrar a inacessibilidade da realidade última e absoluta, de acordo com o sen22 tido que Hamilton e Mansel deram a esta tese. Mas Spencer serve-se dela para demonstrar a possibilidade de um encontro e de uma conciliação entre a religião e a ciência. Religião e ciência, de facto, têm ambas a sua base na realidade do mistério e não podem ser inconciliáveis. Ora, a verdade última incluída em todas as religiões é que "a existência do mundo com tudo o que contém e com tudo o que o rodeia é um mistério que exige sempre ser interpretado" (First Princ., § 14). Todas as religiões falham ao dar esta interpretação, as diversas crenças em que se exprimem não são logicamente defensáveis. Através do desenvolvimento da religião, o mistério é cada vez mais reconhecido como tal de modo que cumpre reconhecer a essência da religião na convicção de que a força que se manifesta no universo é completamente imperscrutável. Por outro lado, também a ciência esbarra no mistério que envolve a natureza última da realidade cujas manifestações estuda. O que seja o tempo e o espaço, a matéria e a força, o que é a duração da consciência finita ou infinita -e o que é o sujeito do pensamento, são para a ciência enigmas impenetráveis. As ideias científicas últimas são todas representativas de realidades que não podem ser compreendidas. Isto deve-se ao facto de o nosso conhecimento, como Hamilton e Mansel puseram a claro, estar encerrado dentro dos limites do relativo. Decerto, por meio da ciência, o conhecimento progride e se estende incessantemente. Mas tal progresso consiste em incluir verdades gerais; e verdades gerais noutras mais gerais ainda de maneira que se segue daqui que a verdade mais geral, que 23 não admite inclusões numa verdade ulterior, não é compreensível e está destinada a permanecer como mistério (Ib., § 123). Spencer admite, pois, integralmente, a tese de Hamilton e Mansel, segundo a qual o absoluto, o incondicionado, o infinito (ou como se queira chamar ao princípio supremo da realidade) é inconcebível para o homem, dada a relatividade constitutiva do seu conhecimento. Contudo, não se detém no conhecimento do absoluto, tal como tinha sido defendido por aqueles pensadores que haviam tomado como única definição possível do mesmo a sua própria incognoscibilidade. Dado que o relativo não é tal, observa Spencer,
senão em relação ao absoluto, o próprio relativo é impensável se é impensável a sua relação com o não relativo. "Sendo a nossa consciência do incondicionado, em rigor, a consciência incondicionada ou o material em bruto do pensamento, ao qual, pelo pensar damos formas definitivas, segue-se que o sentido sempre presente da existência real é a verdadeira base da nossa inteligência" (First Princ., § 26). Cumpre, pois, conceber o absoluto como a força misteriosa que se manifesta em todos os fenómenos naturais e cuja acção é sentida positivamente pelo homem. Não é possível, todavia, definir ou conhecer ulteriormente tal força. A tarefa da religião será a de advertir o homem do mistério da causa última, ao passo que o escopo da ciência será o de estender incessantemente o conhecimento dos fenómenos. Religião e ciência são assim necessariamente correlativas. O reconhecimento da força imperscrutável é o limite comum que as concilia e as toma solidárias. A ciência chega inevitavelmente. a 24 SPENCER este limite ao atingir os seus próprios limites, e bem assim a religião na medida em que é irresistivelmente orientada pela crítica. O homem tentou sempre, e continuará a tentar, construir símbolos que lhe representam a força desconhecida do universo. Mas continuamente e sempre se dará conta da inadequação de tais símbolos. De sorte que os seus contínuos esforços e os seus contínuos reveses podem servir para lhe dar o devido sentido da diferença incomensurável que existe entre o condicionado e o incondicionado e encaminhá-lo para a mais alta forma da sabedoria: o reconhecimento do incognoscível como tal. O facto de a ciência estar confinada ao fenómeno não significa para Spencer que ela esteja confinada na aparência. O fenómeno não é a aparência: é antes a manifestação do incognoscível. E a primeira manifestação do incognoscível é o agrupar-se dos próprios fenómenos em dois grupos principais que constituem respectivamente o eu e o não-eu, o sujeito e o objecto. Estes dois grupos formam-se espontaneamente mercê da afinidade e da desigualdade dos próprios fenómenos. O eu e o não-eu são fenómenos, realidades relativas; mas o seu carácter persistente permite relacioná-las de algum modo com o incognoscível. Spencer admite o princípio de que "as impressões persistentes, sendo os resultados persistentes numa causa persistente, são praticamente idênticos para nós à causa mesma e podem ser habitualmente tratados como seus equivalentes" (1b., § 46). Em virtude deste princípio, o espaço, o tempo, a matéria, o movimento, a força, noções estas persistentes e imu25 táveis, devem ser consideradas de certo modo como produtos do próprio incognoscível. Não são decerto idênticas ao incognoscível, nem são modos dele: são "efeitos condicionados da causa incondicionada". Todavia, correspondem a um modo de ser ou de a-ir desconhecido por nós, desta causa; e neste sentido são reais. Spencer chama realismo transfigurado a
esta correspondência hipotética entre o incognoscível e o seu fenómeno. "0 númeno e o fenómeno são aqui apresentados na sua relação primordial como os dois aspectos da mesma mutação, de que somos obrigados a considerar não só o primeiro como o segundo" (1b., § 50). § 651. SPENCER: A TEORIA DA EVOLUÇÃO Entre a religião, a que cabe o reconhecimento do incognoscível, e a ciência, a que cabe todo o domínio do cognoscível, que lugar tem a filosofia? Spencer definiu-a como o conhecimento no seu mais alto grau de generalidade (First Princ., § 37). A ciência é conhecimento parcialmente unificado; a filosofia, conhecimento completamente unificado. As verdades da filosofia são em relação às verdades científicas mais altas o que estas são em relação às verdades científicas mais baixas, de modo que as generalizações da filosofia compreendem e consolidam as mais vastas generalizações da ciência. A filosofia é o produto final desse processo que começa com a recolha de observações isoladas e termina com as proposições univer26 sais. Por isso, deve tomar como material próprio e ponto de partida os princípios mais vastos e mais gerais a que a ciência chegou. Tais princípios são: a indestrutibilidade da matéria, a continuidade do movimento, a persistência da força-com todas as suas consequências entre as quais se encontra a lei do ritmo, ou seja, da alternância de elevação e queda no desenvolvimento de todos os fenómenos. A fórmula sintética que estes princípios gerais requerem é uma lei que implica a contínua redistribuição da matéria e da força. Tal é, segundo Spencer, a lei da evolução, que significa que a matéria passa de um estado de dispersão a um estado de integração (ou concentração), enquanto a força que operou a concentração se dissipa. A filosofia é, portanto, essencialmente uma teoria da evolução. Os Primeiros princípios definem a natureza e os caracteres gerais da evolução: as outras obras de Spencer estudam o processo evolutivo nos diversos domínios da realidade natural. A primeira determinação da evolução é que ela é uma passagem de uma forma menos coerente a uma forma mais coerente. O sistema solar (que saiu de uma nebulosa), um organismo animal, uma nação, mostrando, no seu desenvolvimento, esta passagem de um estado de desagregação a um estado de coerência e de harmonia crescentes. Mas a determinação fundamental do processo evolutivo é o que o caracteriza como passagem do homogéneo ao heterogéneo. Esta caracterização é sugerida a Spencer pelos fenómenos biológicos. Todo o organismo, planta ou animal, se desenvolve através 27 cia diferenciação das suas partes, que a princípio são, química ou biologicamente, indistintas, e logo se diferenciam para formar tecidos e órgãos diversos. Spencer crê que este processo é próprio de todo o desenvolvimento, em qualquer campo da realidade: na
linguagem, primeiro constituída por simples exclamações e sons inarticulados e que logo se diferenciam em palavras diversas como na arte, que, a partir dos povos primitivos, cada vez mais se vai dividindo nos seus ramos (arquitectura, pintura, escultura, artes plásticas) e direcções. Finalmente, a evolução implica também urna passagem do indefinido ao definido: indefinida é, por exemplo, a condição de uma tribo selvagem em que não existe especificação de tarefas e de funções; definida a de um povo civilizado, assente na divisão do trabalho e das classes sociais. Spencer usa, pois, esta fórmula definitiva da evolução (First Princ., § 145): "A evolução é uma integração de matéria e uma concomitante dissipação do movimento, durante a qual a matéria passa de uma homogeneidade indefinida e incoerente a uma heterogeneidade definida e coerente; e durante a qual o movimento conservado sofre uma transformação paralela". A evolução é um processo necessário. A homogeneidade, que é o seu ponto de partida, é um estado instável que não pode durar e deve passar ao estado de heterogeneidade para alcançar o equilíbrio. Por isso, a evolução deve começar; uma vez começada, deve continuar porque as partes que permanecem homogéneas tendem, por seu turno, para a sua instabilidade, para a heterogeneidade. O sentido deste processo necessário e contínuo é optimista. Spencer ad28 mite que, na lei do ritmo, a evolução e a dissolução, onde quer que se verifique, é a premissa de uma evolução ulterior. Pelo que respeita ao homem, a evolução deve determinar uma crescente harmonia entre a sua natureza espiritual e as condições de vida. "E esta é, diz Spencer (1b., § 176), a garantia para crer que a evolução só pode terminar com o estabelecimento da maior perfeição e da mais completa felicidade". Spencer nega que a sua doutrina possa ter um significado materialista ou espiritualista e considera a disputa entre estas duas orientações como uma mera guerra de palavras. Quem esteja convencido de que o último mistério há-de permanecer sempre, está disposto a formular todos os fenómenos, seja em termos de matéria, movimento e força, seja noutros termos, mas sustentará firmemente que só numa doutrina que reconheça a causa desconhecida como coextensiva a todas as ordens dos fenómenos, pode haver uma religião coerente e uma coerente filosofia. Verá que a relação de sujeito e objecto torna necessárias as concepções antitéticas de espírito e matéria; mas considerará uma e outra como sinais da realidade desconhecida subjacente a ambas (Ib., § 194). § 652. SPENCER: BIOLOGIA E PSICOLOGIA As obras de Spencer dedicadas à biologia, à psicologia, à sociologia e à ética constituem a aplicação do princípio evolutivo ao campo destas ciências. 29
A biologia é, para Spencer, o estudo da evolução dos fenómenos orgânicos e da sua causa. A vida consiste na combinação de fenómenos diversos, contemporâneos e sucessivos, a qual se encontra em correspondência com mutações simultâneas ou sucessivas do ambiente exterior. Eis porque consiste essencialmente na função da adaptação; e é precisamente através desta função que se formam e se diferenciam os órgãos, a fim de corresponderem cada vez melhor às solicitações do exterior. Spencer atribui assim o primeiro lugar, na transformação dos organismos vivos, ao princípio lamarckiano da função que cria o órgão; reconhece, porém, a acção do princípio darwiniano da selecção natural (a que ele chama "sobrevivência, do mais apto"), que, todavia, não pode actuar senão através da adaptação ao ambiente e, portanto, do desenvolvimento funcional dos órgãos. Insiste, sobretudo, na conservação e na acumulação das mudanças orgânicas individuais por obra da hereditariedade; e concebe o progresso da vida orgânica como adaptação crescente dos organismos ao ambiente por acumulação das variações funcionais que respondem melhor aos requisitos ambientais. A consciência é um estádio desta adaptação; e, mais, é a sua fase decisiva. Spencer não admite a redução integral da consciência às impressões ou às ideias, segundo a doutrina tradicional do empirismo inglês. A consciência pressupõe uma unidade, uma força originária; por conseguinte, uma substância espiritual que seja a sede desta força. Mas, tal como se verifica na substância e na força material, também a substância e a força espiritual são, na sua natureza 30 última, incognoscíveis; e a psicologia deve limitar-se a estudar as suas manifestações. Todavia, é possível uma psicologia como ciência autónoma; e Spencer afasta-se da tese de Comte, que a negara. Há uma psicologia objectiva que estuda os fenómenos psíquicos no seu substracto material; e há uma psicologia subjectiva, fundada na introspecção que " constitui uma ciência completamente à parte, única no seu género, independente de todas as outras ciências e C1,1 antiteticamente oposta a cada uma delas" (Princ. of Psych. § 56). Só a psicologia subjectiva pode servir de apoio à lógica, isto é, pode contribuir para determinar o desenvolvimento evolutivo dos processos do pensamento. Tal desenvolvimento explica-se, contudo, como qualquer outro desenvolvimento; é um processo de adaptação gradual que vai da acção reflexa, que é a primeira fase do psíquico, através do instinto e da memória, até à razão. No que respeita a esta última, Spencer admite que existem noções ou verdades à priori no sentido de serem independentes da experiência pontual e temporal do indivíduo; e nesse sentido reconhece a parcial legitimidade das doutrinas "apriorísticas", como as de Leibniz e Kant. Mas o que neste sentido é à priori para o indivíduo, não o é para a espécie humana, dado que resulta da experiência acumulada pela
espécie através de um longuíssimo período de desenvolvimento, e que se fixou e tomou hereditária na estrutura orgânica do sistema nervoso (1b., §§ 426-33). É evidente que aqui o a priori é entendido no sentido da uniformidade e da constância de certos procediinentos intelectuais, não no sentido da validez. 31 Não se poderia, de facto, excluir a possibilidade de que as experiências acumuladas fixadas pela sucessão das gerações contenham, além de verdades, erros, prejuízos e distorções. Mas uma possibilidade deste género é tacitamente excluída por Spencer devido ao significado optimista ou exaltante que o processo evolutivo reveste para ele em todos os campos. Uma evolução intelectual é, como tal, aquisição e incremento de verdade; mais ainda, é a própria verdade em progresso através da sucessão das gerações. § 653. SPENCER: SOCIOLOGIA E ÉTICA Embora utilizando alguns resultados da sociologia de Comte e aceitando o nome da ciência que Comte inventara, Spencer modifica radicalmente o conceito desta. Com efeito, para Comte, a sociologia é a disciplina que, descobrindo as leis dos factos sociais, permite prevêlos e orientá-los, o fim da sociologia é a sociocracia, a fase da sociedade em que o positivismo se tornará regime. Para Spencer, ao invés, a sociologia deve limitar-se a uma tarefa puramente descritiva do desenvolvimento da sociedade humana até ao ponto a que chegou hoje. É certo que pode determinar as condições a que o desenvolvimento ulterior deverá satisfazer; mas não as metas e os ideais a que ele tende. Determinar as metas, isto é, estabelecer qual deve ser o homem ideal numa sociedade ideal, é o objectivo da moral. A sociologia e a moral, que eram uma só coisa na obra de Comte, são assim distinguidas claramente por Spencer. 32 A sociologia determina as leis da evolução super-orgânica e considera a própria sociedade humana como um organismo, cujos elementos são, primeiro, as famílias, e depois os indivíduos singulares. O organismo social distingue-se do organismo animal pelo facto de a consciência pertencer apenas aos elementos que a compõem. A sociedade não tem um sensório como o animal: vive e sente só nos indivíduos que a compõem. A sociologia de Spencer está nitidamente orientada para o individualismo e, por conseguinte, para a defesa de todas as liberdades individuais, em contraste com a sociologia de Comte e, em geral, com a orientação social do positivismo. Um dos temas principais, tanto dos Princípios de sociologia, como das outras obras complementares (0 homem contra o estado, 1884-, Estatística social, 1892), tema que domina de ponta a ponta a sociologia de Spencer, é o princípio de que o desenvolvimento social deve ser abandonado à força espontânea que o dirige e o impulsiona para o progresso e que a intervenção do estado nos factos sociais não faz senão perturbar e obstar esse desenvolvimento. à objecção de que o estado deve fazer alguma coisa para extinguir ou diminuir a miséria ou a injustiça social, Spencer responde que o estado não é o único
agente que pode eliminar os males sociais, que existem outros agentes, os quais, deixados em liberdade, podem conseguir melhor esse objectivo. Ademais, nem todos os sofrimentos devem ser evitados, já que muitos são curativos, e eliminá-los significa eliminar o remédio. Além disso, é quimérico supor que todos os males podem ser debelados; existem defeitos da natureza 33 humana que, se se lhes aplicar um pretenso remédio, voltam a surgir noutro ponto e se tomam ainda mais graves (Social Statics, ed. 1892). O homem contra o estado visa a combater "o grande preconceito da época presente": o direito divino do Parlamento, que substituiu o grande preconceito da época passada: o direito divino da monarquia. Um verdadeiro liberalismo deve negar a autoridade ilimitada do Parlamento, como o velho liberalismo negou o ilimitado poder do monarca (Man versus the State, ed. 1892, p. 292, 369). De resto, a crença na omnipotência do governo gera as revoluções que pretendem obter pela força do estado toda a espécie de coisas impossíveis. A ideia exorbitante do que o estado pode fazer, por um lado, e os insignificantes resultados a que o estado chega, geram sentimentos extremamente hostis à ordem social (Social Statics, p. 131). O conceito de um desenvolvimento social lento, gradual e inevitável, torna Spencer extremamente alheio às ideias de reforma social que haviam sido acariciadas pelo positivismo social, incluindo nestes os utilitaristas e Stuart Mill. "Da mesma maneira que não se pode abreviar a vida entre a infância e a maturidade, evitando aquele monótono processo de crescimento e de desenvolvimento que se opera insensivelmente com leves incrementos, também não é possível que as formas sociais inferiores se tornem mais elevadas, sem atravessarem pequenas modificações sucessivas" (The Study of Soc., 16, Concl.). O processo da evolução social é de tal modo predeterminado que nenhum ensino ou disciplina pode fazer com que ultrapassem aquele limite de velocidade 34 que lhes é imposto pela modificação dos seres humanos. Antes que se possam verificar nas instituições humanas transformações duradouras, que constituam uma verdadeira herança da raça, é necessário que se repitam até ao infinito nos indivíduos os sentimentos, os pensamentos e as acções que são o seu fundamento. Por isso, toda a tentativa de forçar as etapas da evolução histórica, todos os sonhos de visionários ou de utopistas têm como único resultado retardar ou subverter o processo natural da evolução social. Isto não implica, segundo Spencer, que o indivíduo deva passivamente abandonar-se ao curso natural dos eventos. O próprio desenvolvimento social determinou a passagem de uma fase de cooperação humana constritiva e imposta a uma fase de cooperação mais livre e espontânea. É esta a passagem do regime militar caracterizado pela prevalência do poder estatal sobre os indivíduos, aos quais impõe tarefas e funções, ao regime industrial, que é fundado, pelo contrário, na actividade independente dos indivíduos, a quem leva a reforçar as suas exigências e a respeitar as exigências dos outros, fortalecendo a consciência dos direitos pessoais e decidindo-os a resistirem ao excesso do controlo estatal. Contudo, Spencer não julga definitivo o regime industrial (no qual, aliás, a sociedade
actual ainda agora entrou). É possível antever-se a possibilidade de um terceiro tipo social, o qual, embora sendo fundado, como o industrial, na livre cooperação dos indivíduos, imponha móbeis altruístas em vez dos egoístas, que regem o regime industrial; ou, melhor ainda, concilie o al35 truísmo com o egoísmo. Tal possibilidade porém, não pode ser prevista pela sociologia, mas unicamente pela ética. A ética de Spencer é, substancialmente, uma ética biológica, que tem por objecto a conduta do homem, isto é, a adaptação progressiva do homem mesmo às suas condições de vida. Tal adaptação implica não só um prolongamento da vida mas a sua maior intensidade e riqueza. Entre a vida de um selvagem e a de um homem civilizado não existe só uma diferença de duração, mas também de extensão: a do homem civilizado implica a consecução de fins muito mais variados e ricos, que a tornam mais intensa e extensa. Esta crescente intensidade é aquilo que se deve entender por felicidade. Dado que é bom todo o acto adequado ao seu fim, a vida que se apresenta, em conjunto, mais bem adaptada às suas condições é também a vida mais feliz e agradável. Por conseguinte, o bem identificase com o prazer; e a moral hedonística ou utilitarista é, sob um certo aspecto, a única possível. Spencer, contudo, não admite o utilitarismo na forma que ele assumira na obra de Bentham e dos dois Mill. O móbil declarado e consciente da acção moral do homem não é nem pode ser a utilidade. A evolução social, acumulando com a sua herança um número enorme de experiências morais que permanecem inscritas na estrutura orgânica do indivíduo, fornece ao próprio indivíduo um a priori moral, que o é para ele embora o não seja para a espécie. Deve admitir-se que o homem individual age por dever, por um sentimento de obrigação moral; mas a ética evolutiva dá conta do nascimento deste 36 sentimento, mostrando como ele nasce das experiências repetidas e acumuladas através da sucessão de inúmeras gerações. Estas experiências produziram a consciência de que o deixar-se guiar por sentimentos que se referem a resultados longínquos e gerais é, habitualmente, mais útil para se alcançar o bem-estar do que deixarse guiar por sentimentos que devem ser imediatamente satisfeitos, e transformaram a acção externa política, religiosa e social, num sentimento de coacção puramente interior e autónomo. Mas esta reflexão sobre a evolução demonstra também que o sentido do dever e da educação moral é transitório e tende a diminuir com o aumento da moral. Ainda hoje acontece que o trabalho que deve ser imposto ao rapaz como uma obrigação se resolve numa manifestação espontânea do homem de negócios submerso nos seus assuntos. Assim, a manutenção e a protecção da mulher por parte do marido, a educação dos filhos por parte dos pais, não têm, o mais das vezes, nenhum elemento coactivo, mas são deveres que se cumprem com perfeita espontaneidade e prazer. Spencer prevê, por isso, que "com a completa adaptação ao estado social, aquele elemento da consciência moral que é expresso
pela palavra obrigação, desapareça de todo, As acções mais elevadas, requeridas pelo desenvolvimento harmónico da vida, serão factos tão comuns como o são agora as acções inferiores a que nos impele o simples desejo" (Data of Ethics, § 46). Esta fase final da evolução moral não implica a prevalência absoluta do altruísmo a expensas do egoísmo. A antítese entre egoísmo e altruísmo é natural na situação presente, que se ca37 racteriza pela prevalência indevida das tendências egoístas e na qual, por isso, o altruísmo assume a forma de um sacrifício destas tendências. Mas a evolução moral, fazendo coincidir cada vez mais a satisfação do indivíduo com o bem-estar e a felicidade dos outros ( e é nisto que consiste a simpatia), provocará o acordo final do altruísmo com o egoísmo. "0 altruísmo que deverá surgir no futuro, diz Spencer, não é um altruísmo que esteja em oposição ao egoísmo, mas virá, por fim, a coincidir com este em grande parte da vida, e exaltará as satisfações que são egoístas por constituírem prazeres fruídos pelo indivíduo, embora sejam altruístas pela origem de tais prazeres" (Data of Ethics, App.). § 654. DESENVOLVIMENTO DO POSITIVISMO O positivismo de Comte e de Spencer determinou rapidamente a formação de um clima cultural que deu os seus frutos fora do campo da filosofia, na crítica histórica e literária, no teatro e na literatura narrativa. Em Inglaterra, o positivismo seguiu (salvo algumas excepções, § 638 sgs.) a orientação evolucionista. Os seguidores de Spencer foram, nos últimos decénios do século XIX, numerosos, e numerosíssimas as obras que defenderam, difundiram e expuseram, em todos os aspectos positivos e polémicos, os pontos fundamentais do positivismo. Trata-se, porém, de uma produção mais divulgadora do que filosófica, dado que nela os elementos de investigação original são mínimos e raramente apresentam novos 38 problemas ou novas abordagens dos mesmos problemas. Já nos referimos a Tomás Huxley (1825-95), que foi o inventor do termo agnosticismo (0 lugar do homem na natureza, 1864; Sermões laicos, 1870; Críticas e orientações, 1873-, Orientações americanas, 1877; Hume, 1879; Ciência e cultura, 1881; Ensaios, 1892; Evolução e ética, 1893; Ensaios recolhidos, 9 vol., 1893-1894; etc.). Nas obras de Huxley não se encontra o carácter religioso e romântico da especulação de Spencer. Matéria e força não são para ele manifestações de um incognoscível divino, mas apenas nomes diversos para determinar estados de consciência; nem tão-pouco corresponde à lei natural uma realidade transcendente qualquer, porque é apenas uma regra comprovada pela experiência e que se supõe o seja no futuro. Explicam-se deste ponto de vista as simpatias de Huxley por Hume, ao qual dedicou uma monografia, reprovando-o contudo por não ter reconhecido, juntamente com as impressões e as
ideias, uma terceira ordem de impressões: "as impressões de relações" ou "impressões de impressões", que correspondem ao nexo de semelhança entre as próprias impressões. William Clifford (1845-79) procurou elaborar uma doutrina da coisa em si do ponto de vista do evolucionismo (Lições e ensaios, 1879). O objecto fenoménico é um grupo de sensações que são mutações na minha consciência. As sensações de um outro ser não podem, porém, tornar-se objectos da minha consciência: são expulsões (ejections), que consideramos como objectos possíveis de outras consciências e que nos dão a convicção da existência da realidade exte39 rior. A teoria da evolução, mostrando-nos uma ininterrupta série de desenvolvimentos, desde os elementos inorgânicos aos mais altos produtos espirituais, torna verosímil admitir que todo o movimento da matéria seja acompanhado por um acto expulsivo que pode constituir o objecto de uma consciência. E dado que estes actos expulsivos não são outra coisa senão as próprias sensações, a sensação é a verdadeira coisa em si, o ser absoluto, que não exige relações com nenhum outro, e nem sequer com a consciência. Ela é o átomo psíquico, cujas combinações constituem as consciências mesmas. O pensamento não é mais do que a imagem inadequada deste mundo de átomos originários. A estas estranhas especulações de Clifford se encontra ligado G. S. Romanes (1848-94), autor de Um cândido exame do teísmo (1878), que conclui negativamente acerca da possibilidade de conciliar o teísmo com o evolucionismo, e de outros escritos (Espírito, movimento e monismo, 1895; Pensamentos sobre a religião, 1896), nos quais se inclina para o monismo materialista de Haeckel. Outros pensadores desenvolveram o positivismo evolucionista em Inglaterra no campo da antropologia e da psicologia, como Francis Galton (1822-1911) e como Grant Allen. (184899), que estudou sobretudo a psicologia e a filosofia dos sentimentos estéticos e foi também autor de uma obra intitulada a Evolução da ideia de Deus (1879), que é uma crítica do teísmo. Outros desenvolveram o evolucionismo no terreno das análises morais, como Leslie e Stephen (1832-1904), autor de uma obra intitulada Ciência da ética (1882), assim como de meritórios estudos histó40 ricos sobre a filosofia inglesa do século XVIII e dos princípios do século XIX; e como Eduardo Westermarck, autor de uma vasta obra, Origem e desenvolvimento das ideias morais (1906-08). Exerceu uma influência notabilissiraa sobre as investigações psicológicas do século XIX a obra de Alexandre Bain (1818-1903), que foi um rigoroso defensor do associacionismo psicológico e admitiu, justamente com a associação por contiguidade e semelhança, uma terceira forma de associação, a "construtiva", que actuará na fantasia e na investigação científica. O sentido e o entendimento (1855), As emoções e a vontade (1859) são as principais obras psicológicas de Bain, que se ocupou também de lógica, de ética e de educação (Ciência mental e ciência moral, 1868; Lógica, 1870; Espírito e corpo, 1873; A educação como ciência, 1878).
§ 655. CLÁUDIO BERNARD No clima do positivismo, de que no entanto não partilhava todas as teses, se inscreve a obra do fisiólogo francês Cláudio Bernard (1813-78), autor de um dos mais importantes escritos oitocentistas de metodologia da ciência, a Introdução à medicina experimental (1865). A filosofia e a ciência, segundo Bernard, devem unir-se, sem que uma pretenda dominar a outra. "A sua separação - afirma - seria nociva aos progressos do conhecimento humano. A filosofia que tende incessantemente a elevar-se, faz remontar a ciência à causa ou à origem das coisas. Mostra que fora da ciência 41 existem questões que atormentam a humanidade e que a ciência ainda não resolveu" (Intr. à Pétude de Ia médecine expérimentale, 111, IV, § 4). Se o liame entre a filosofia e a ciência se rompe, a filosofia perde-se nas nuvens, e a ciência, ficando sem direcção, pára ou procede ao acaso. Nesta relação, todavia, a ciência deve ter a liberdade de proceder segundo o seu método e deve, sobretudo, evitar fixar em sistemas ou doutrinas as suas hipóteses directivas. A ciência não tem necessidade de sistemas ou doutrinas, ruas sim de hipóteses que possam ser submetidas à verificação. " O método experimental, enquanto método científico, baseia-se inteiramente na verificação experimental de uma hipótese científica. Esta verificação pode obter-se tanto por meio de uma nova observação (ciência de observação) como por meio de uma experiência (ciência experimental). No método experimental, a hipótese é uma ideia científica que se tem de submeter à experiência . A invenção científica reside na criação de uma hipótese feliz e fecunda, que é dada pelo sentimento ou pelo génio do cientista que a criou" (Ib., 11, IV, § 4).O axioma fundamental do método experimental é o determinismo, isto é, a concatenação necessária entre um facto e as suas condições. "Perante qualquer fenómeno dado, um experimentador não poderá admitir nenhuma variação na expressão deste fenómeno sem admitir que ao mesmo tempo tenham sobrevindo condições novas, na sua manifestação; além disso, terá a certeza a priori de que estas variações são determinadas por relações rigorosas e matemáticas" (Ib., 1, 11, § 7). Bernard distingue o determinismo como axioma experimental 42 do fatalismo como doutrina filosófica. "Demos o nome de determinismo à causa próxima ou determinante dos fenómenos. Não operamos
nunca sobre a essência dos fenómenos da natureza mas apenas sobre o seu determinismo e pelo próprio facto de operarmos sobre ele, o determinismo difere do fatalismo sobre o qual não se poderia actuar. O fatalismo supõe a manifestação necessária de um fenómeno independente das suas condições, ao passo que o determinismo é a condição necessária de um fenómeno cuja manifestação não é forçada" (1b., 111, IV, § 4). Trata-se, diremos nós, de um "determinismo metodológico": do ponto de vista do qual, observa Bernard, "não há nem espiritualismo, nem matéria bruta, nem matéria viva; existem só fenómenos de que é necessário determinar as condições, isto é , as circunstâncias que constituem a causa próxima dos mesmos" (1b., HI, IV, § 4). Deste ponto de vista, Cláudio Bernard recusa-se a operar a redução (tão cara ao materialismo do seu tempo) dos fenómenos vitais aos fenómenos físico-químicos. Os fenómenos vitais podem ter, sem dúvida, caracteres próprios e leis próprias, irredutíveis aos da matéria bruta. Não obstante, o método de que a biologia dispõe é o método experimental das ciências físico-químicas. A unidade do método não implica a redução destes fenómenos às leis que os regem Qb., 11, 1, § 6). Mais especificamente, os organismos vivos, embora podendo ser considerados como "máquinas", manifestam com respeito às máquinas não vivas um maior grau de independência em relação às condições ambientais que lhes permitem o funcio43 namento. Aperfeiçoando-se, tomam-se pouco a pouco mais "livres" do ambiente cósmico geral no sentido de que já não estão à mercê deste ambiente. O determinismo interno, todavia, não desaparece nunca, antes se torna tanto mais rigoroso quanto mais o organismo tende a subtrair-se ao determinismo do ambiente externo" (1b., 11, 1, § 108). As ideias de Cláudio Bernard conservam ainda hoje, nas linhas gerais que aqui lembramos, um equilíbrio que as torna apreciáveis, não apenas como fase histórica importante no desenvolvimento da metodologia das ciências, mas também como uma indicação ainda válida para os desenvolvimentos das ciências biológicas. Bernard partilha com o positivismo a aversão à metafísica e a fé nas possibilidades da ciência: não partilha, porém, as tendências reducionistas; recusa-se a reduzir a filosofia à ciência, como se recusa a reduzir o espírito à matéria ou a vida aos fenómenos físico-químicos. As teses reducionistas do positivismo foram difundidas em França por Taine e Renan. § 656. TAINE E RENAN Hipólito Taine (1828-93), já no seu Ensaio sobre as fábulas de La Fontaine (1853), exprimia nestes termos o seu conceito do homem: "Pode-se considerar o homem como um animal de espécie superior que produz filosofias e poemas, pouco mais ou menos como os bichos de seda fazem os seus casulos e as abelhas os seus alvéolos". Em Os filósofos fran44 ceses do século XIX (1857), Taine condenava em bloco o movimento espiritualista e via o progresso da ciência na análise dos factos positivos e na explicação de um facto pelo outro. Um passo da introdução da História da literatura inglesa (1836) tornou-se famoso como expressão característica do método que Taine pretende aplicar à crítica literária e à história como aos problemas da filosofia. "0 vício e a virtude, - escreve ele - são produtos corno o
ácido sulfúrico e o açúcar, e todo o dado complexo nasce do encontro de outros dados mais simples de que depende". Por consequência, Taine crê que a raça, o ambiente exterior e as condições particulares do momento determinam necessariamente todos os produtos e os valores humanos, e bastam para os explicar. A Filosofia da arte (1856) obedece ao princípio de que a obra de arte é o produto necessário do conjunto das circunstâncias que a condicionam e que, consequentemente, se pode extrair destas não só a lei que regula o desenvolvimento das formas gerais da imaginação humana, mas também a que explica as variações do estilo, as diferenças das escolhas nacionais e até os caracteres originais das obras individuais. A obra Sobre a inteligência (1870) é talvez a mais rigorosa, e decerto a mais genial tentativa de reduzir toda a vida espiritual a um mecanismo sujeito a leis em tudo semelhantes, pela sua necessidade rigorosa, às naturais. Taine afirma que "é preciso pôr de lado as palavras razão, inteligência, vontade, poder pessoal e, até o termo eu; como também se devem pôr de parte as palavras força vital, força curativa, alma vegetativa. Trata-se de metáforas literárias, cómodas, 45 quando muito, como expressões abreviativas e sumárias para exprimir estados gerais e efeitos de conjunto" . A observação psicológica não descobre outra coisa mais do que sensações e imagens de diversas espécies, primárias ou consecutivas, dotadas de certas tendências e modificadas no seu desenvolvimento pelo concurso ou pelo antagonismo de outras imagens simultâneas ou contíguas (De Vínte11--- 1903, 1, p. 124). Por outros termos, toda a vida psíquica se reduz ao movimento, ao choque, ao contraste e ao equilíbrio das imagens, que, por seu turno, derivam totalmente das sensações. "Chegados à sensação, estamos no limite do mundo moral; daqui ao mundo físico há um abismo, um mar profundo que nos impede de praticar as nossas sondagens ordinárias" (1b., p. 242). Mundo físico e mundo psíquico são duas faces da mesma realidade, uma das quais é acessível à consciência, a outra aos sentidos. Mas, ao passo que o ponto de vista da consciência é o imediato e directo, a percepção externa é indirecta. "Não nos informa dos caracteres próprios do objecto; informa-nos somente de uma certa classe dos seus efeitos. O objecto não nos é mostrado directamente mas é-nos indicado indirectamente pelo grupo de sensações que ele desperta ou despertaria em nós" (1b., 1, p. 330). Taine apoia-se, neste ponto, na autoridade de Stuart Mill: mas acha possível, contra Stuart Mill, "restituir aos corpos a sua existência efectiva", reduzindo o testemunho da consciência e a percepção sensível externa (que são as únicas duas maneiras de conhecer) a um mínimo de determinação comum que seria a sua comum objectividade e, portanto, o seu objecto real. 46 Neste caso, sensação e consciência reduzem-se ao movimento (porque o movimento é a mínima objectividade comum que elas possuem), e podem, por isso, ser consideradas como duas traduções do texto originário da natureza (Ib., 11, p. 117, n. 1). quanto aos
conceitos, são, para Taine, simplesmente "sons significativos", produzidos originariamente pelos objectos e empregados depois, independentemente deles, por razões de semelhanças ou analogias. O conhecimento racional é constituído por juízos gerais que são cópias de signos ou sons deste género. Assim como os últimos elementos de uma catedral são órgãos de areia ou de silex aglutinados em pedras e formas diversas, assim também os últimos elementos do conhecimento humano se reduzem a sensações infinitesimais, todas iguais, que com as suas diversas combinações produzem as diferenças do conjunto (1b., 11, p. 463), Emesto Renan (1823-92) foi outro grande expoente do positivismo francês da segunda metade do século XIX. Na sua obra filológica, histórica e crítica, Renan inspirou-se constantemente num positivismo que, embora não tendo a lucidez e a força do de Taine, deixando-se arrastar às vezes por nostalgias espiritualistas e religiosas, não é, em substância, menos rigoroso. O futuro da ciência, escrito em 1848 mas publicado em 1890, é o credo filosófico positivista de Renan e um verdadeiro hino de exaltação romântica à ciência. Aí se pode ver, decerto, a influência que exerceu sobre Renan o materialismo do químico Marcelino Berthelot (1827-1907), seu companheiro de juventude; mas, conquanto Renan depressa tenha dei47 xado esmorecer o seu entusiasmo optimista pela ciência, as suas ideias permaneceram substancialmente imutáveis. "A ciência, e só a ciência, pode dar à humanidade aquilo que lhe é indispensável para viver, um símbolo e uma lei", escrevia Renan (Av. de la sc., 1894, p. 3 1) -, e via o fim último da ciência na "organização científica da humanidade". A religião do futuro será o "humanismo, o culto de tudo o que pertence ao homem, a vida inteira santificada e elevada a um valor moral" (1b., p. 101). A própria filosofia depende da ciência, pois que o seu escopo é recolher e sintetizar os resultados gerais desta última. "A filosofia é a cabeça comum, a região central do grande feixe do conhecimento humano, em que todos os raios se confundem numa luz idêntica" (1b., p. 159). Ela não pode resolver os problemas do homem senão dirigindo-se às ciências particulares que lhe fornecem os elementos destes mesmos problemas. . Mas, dado que a humanidade está em permanente devir, a história é a verdadeira ciência da humanidade (1h., p, 149). E à história Renan dedicou boa parte da sua actividade. Os estudos sobre Averróis e averroísmo (1852) tendem a demonstrar que a ortodoxia religiosa impediu entre os maometanos a evolução do pensamento científico e filosófico. As origens do cristianismo, cujo primeiro volume é a famosa Vida de Jesus (1863), baseiam-se inteiramente no pressuposto de que as doutrinas do cristianismo não podem ser valorizadas do ponto de vista do miraculoso ou do sobrenatural, mas apenas como a manifestação de um ideal moral em perfeito acordo com a paisagem e com as condições materiais em 48 TAINE que nasceu. A História do povo de Israel, que Renan começou a compor aos sessenta anos, devia mostrar como se formou entre os profetas uma religião sem dogmas nem cultos. Os Diálogos e fragmentos filosóficos (1876) e o Exame de consciência
filosófico (1889, em Folhas soltas, 1892) confirmam substancialmente a atitude positivista de Renan. Nestas obras, a filosofia ainda é concebida como "o resultado geral de todas as ciências"; e afirma-se que a filosofia decaiu e degenerou quando pretendeu ser uma disciplina à parte, como aconteceu com a escolástica medieval, na época do cartesianismo, e nas tentativas de Schelling e de Hegel. Nestes últimos escritos de Renan acentua-se a nostalgia sentimental pela religião; contudo, não lhe reconhece outra utilidade senão a de uma hipótese capaz de sugerir determinadas atitudes morais. "A atitude mais lógica do pensador perante a religião, afirma Renan (Feuilles détachées, 1892, p. 432), é a de proceder como se ela fosse religiosa. É preciso agir como se Deus e a alma existissem. A religião entra assim no número de muitas outras hipóteses, como o éter, os diversos fluídos, o eléctrico, o luminoso, o calórico, o nervoso e o próprio átomo, os quais sabemos bem serem apenas símbolos, meios cómodos para explicar os fenómenos, e que, no entanto, conservamos". A psicologia positivista francesa parte de Taine e tem por fundador Teodoro Ribot (18391916), cujo primeiro trabalho é precisamente um estudo intitulado A psicologia inglesa contemporânea (1870) e que em seguida se dedicou, sobretudo, ao estudo psicológico 49 da vida afectiva, reivindicando a independência desta contra as teses clássicas do associacionismo. § 657. POSITIVISMO: A SOCIOLOGIA O clima positivista foi particularmente favorável ao desenvolvimento da sociologia no sentido que Spencer dera a esta disciplina, ou seja, como ciência descritiva das sociedades humanas na sua evolução progressiva. Em Inglaterra John Lubbock (1834-1913) procurou mostrar, através do estudo e interpretação de um abundante material etnológico, que existiram e existem povos que nunca conheceram qualquer forma de religião (Tempos pré-históricos, 1865). E. B. Taylor (1832-1917) viu, ao invés, no mito o precedente não só das religiões mas também das filosofias espiritualistas modernas. Considera o animismo, isto é, a crença difundida em todos os povos primitivos, de que todas as coisas estão animadas, a forma primitiva da religião e da metafísica (Investigações sobre a história primitiva da humanidade, 1865; A cultura primitiva, 1870; Antropologia, 1881; Ensaios, antropológicos, 1907). Nos Estados Unidos da América a sociologia spenceriana foi introduzida por William. G. Summer (1840-1910), cuja obra principal, Folkways (1906), é considerada clássica como estudo comparativo dos modos de vida e dos costumes próprios de grupos sociais diversos. 50 Em França, a sociologia sofre a primeira viragem metodológica importante por obra de Emilio Durkheim (1858-1917), cujo ensaio As regras do método sociológico (1895), ao mesmo tempo que põe em
crise a sociologia sistemática de Comte e Spencer, que pretende ser o estudo do mundo social na sua totalidade, delineia as normas que devem guiar as investigações sociológicas particulares. A primeira destas regras prescreve que se devem considerar os factos como "coisas", isto é, como entidades objectivas independentes das consciências dos indivíduos que estão envolvidos nelas e também da consciência do observador que os estuda. Durkheim insistiu também no carácter non-nativo ou construtivo que os factos sociais assumem, sendo antes eles que determinam a vontade dos indivíduos e, não esta que os determina, e constituindo portanto uniformidades de tipo científico, das quais é possível determinar as leis. Esta preeminência do factor social sobre o individual conduz Durkheim a ver na religião o mito que a sociologia constrói a partir de si mesma",, no sentido de que as realidades admitidas pelas religiões seriam objectivações ou personificações do grupo social (Formes élémentaires de la vie réligieuse, 1912). A orientação iniciada por Durkheim foi depois continuada no período contemporâneo por uma numerosa plêiade de sociólogos; e, mais directamente, por Lucien Lévy-Brhul (18571939) (A moral e a ciência dos costumes, 1903; As funções mentais nas sociedades inferiores, 1910; O sobrenatural e a natureza lia mentalidade primitiva, 1931). 51 Mas desde então a sociologia cada vez mais se desligou das suas conexões sistemáticas com o positivismo e, em geral, com todo o tipo de filosofia, reivindicando a sua natureza de ciência autónoma e definindo de um modo cada vez mais rigoroso os caracteres e o alcance dos seus instrumentos de investigação. A esta orientação veio dar um contributo fundamental a obra de Max Weber (§ 743). § 658. POSITIVISMO EVOLUCIONISTA: ARDIGó O positivismo evolucionista teve na Itália um vigoroso defensor em Roberto Ardigó, que exerceu notável influência sobre o clima filosófico italiano dos últimos decénios do século XIX. Nascido em Casteldidone (Cremona) a 28 de Janeiro de 1828, foi padre católico e abandonou o hábito aos 43 anos (em 1871) quando considerou incompatíveis com o mesmo as convicções positivistas que tinham vindo a amadurecer lentamente no seu cérebro. Em 1881, foi nomeado professor de história da filosofia na Universidade de Pádua. Ardigó pôs termo à vida a 15 de Setembro de 1920, quando o clima filosófico italiano se orientara já para o idealismo, que tenazmente combatera nos últimos anos da sua vida. A sua primeira obra é um ensaio intitulado Pedro Pomponazzi (1869), no qual vê um precursor do positivismo. Seguiram-se: A psicologia como ciência positiva (1870); A formação natural no fenómeno do sistema solar (1877); * moral dos positivistas (1889); Sociologia (1879); * facto psicológico da percepção (1882); O verda52 deiro (1891); Ciência da educação (1893); A razão (1894); A unidade da consciência (1898), A doutrina spenceriana do incognoscível (1899) e outros numerosos ensaios de carácter
doutrinário ou polémico que expõem, sem os alterar, os pontos fundamentais contidos nas principais obras citadas. A doutrina de Ardigó é análoga à de Spencer: como Spencer, Ardigó considera que a filosofia se reduz à organização lógica dos dados científicos; como Spencer, admite que esta organização se efectua em virtude do princípio de evolução; como Spencer, finalmente, sustenta que os dados fundamentais da filosofia, o sujeito e o objecto, o eu e o mundo exterior, não são duas realidades opostas, mas sim duas organizações diversas de um único conteúdo psíquico (segundo a doutrina que Hume fizera prevalecer no empirismo inglês). Sobre o primeiro ponto, Ardigó reivindica para si uma certa originalidade em relação a Spencer e, em geral, à concepção positivista da filosofia, urna vez que divide esta em ciências especiais, que seriam duas: a psicologia (compreendendo a lógica, a gnóstica ou teoria do conhecimento, e a estética) e a sociologia (incluindo a ética, a diceica ou ciência do justo e a econoraia); e numa ciência geral, que teria por objecto o que está para além dos domínios particulares destas ciências e a que, por isso, dá o estranho nome de peratologia (ciência do que está para além). Mas, precisamente, a peratologia não tem outro objecto senão as noções mais gerais das disciplinas científicas e filosóficas, e por isso é considerada por Ardigó como a sín53 tese das noções gerais destas ciências, segundo o conceito habitual do positivismo. De Spencer, distingue-se Ardigó em dois pontos: na geração do incognoscível e na determinação do conceito de evolução; ambos os pontos se fundam na orientação empírico-psicológica da sua doutrina. Acima de tudo, Ardigó rejeita o raciocínio que ascende da relatividade do conhecimento humano à necessidade do incondicionado que Spencer tomara de Hamilton. Todo o conhecimento particular é relativo, mas isto não significa que o conhecimento seja relativo na sua totalidade. Os conhecimentos particulares acham-se, de facto, concatenados, de modo que uns são relativos aos outros; mas desta concatenação nenhuma ilação se pode extrair sobre a relatividade do conhecimento total. Por conseguinte, o incognoscível não é o absoluto ou o incondicionado que está para lá do conhecimento huniano e o sustenta, mas é antes o ignoto, ou seja, o que não se tornou ainda conhecimento distinto, Opere, 11, 1884, p. 350). Tais considerações implicam já o conceito de um indistinto, isto é, de um algo apercebido confusa ou genericamente, que, todavia, impele o pensamento para a análise e, por conseguinte, para um conhecimento articulado e distinto. Ora, precisamente esta passagem do indistinto ao distinto é o que constitui a evolução ou, corno Ardigó diz, a "formação natural" de todo o tipo ou forma da realidade. Enquanto Spencer extraíra da biologia o seu conceito de evolução como passagem do homogéneo ao heterogéneo, Ardigó preferiu definir a evolução em termos psicológicos ou de consciência. O indis54 tinto é tal relativamente, isto é, em relação a um
distinto que dele procede assim como todo o distinto é, por sua vez, um indistinto para o distinto sucessivo, porque é o que produz, impele e explica tal distinto. Toda a formação natural, no sistema solar como no espírito humano, é uma passagem do indistinto ao distinto; tal passagem dá-se necessária e incessantemente, segundo uma ordem imutável, regulada por um ritmo constante, quer dizer, por uma alternância harmónica de períodos. Mas o distinto nunca exaure o indistinto, que permanece por debaixo dele e ressurge para além dele; e dado que o distinto é o finito, é necessário admitir, para além do finito, o infinito como indistinto. "Tal necessidade do infinito - diz Ardigó - como fundo e razão do finito, não existe só na natureza mas também no pensamento. Mais ainda: existe no pensamento precisamente porque existe na natureza. Mesmo quando o pensamento o perde de vista, fixando-se no distinto finito, ele, oculto, assiste-o e constitui a própria força da lógica do seu discurso... Um pensamento isolado da mente de um homem é aquele pensamento que existe com a evidência que possui, pelo conjunto de toda a vida psíquica do homem, no qual se formou; mais ainda: que existe pela vida de todos os outros homens desde o primeiro; e, portanto, pela participação com o todo, na actualidade e no passado" (Op., 11, p, 129). E Ardigó defende este infinito, que é um incessante desenvolvimento progressivo, contra todas as negações que queiram interrompê-lo com o recurso a uma causa ou a um fim último transcendente. Toda a formação natural, incluindo o pensamento humano, é um "me55
teoro" que, nascido do indistinto, acabará de novo por afundar-se no indistinto e perder-se nele (1b., p. 189). Uma atenuação do determinismo rigoroso que o positivismo admite em todos os processos naturais é introduzida por Ardigó com a doutrina do acaso. A ordem global do universo pressupõe infinitas ordens possíveis, e a actualização de uma ou de outro é devida ao acaso. Isto sucede porque um acontecimento é, em geral, o produto da intersecção num dado ponto do tempo, de séries causais diversas e divergentes; e, embora cada uma destas séries seja necessária e determinada, o encontro delas não o é (1b., p. 258). O pensamento humano é um destes produtos casuais da evolução cósmica. "0 pensamento que hoje encontramos na humanidade é um pensamento que se formou pela continuação de acidentes infinitos, que se sucederam e se juntaram por acaso uns aos outros; por isso, a justo título, se pode chamar ao pensamento global da humanidade uma formação acidental, tal qual como a forma bizarra de uma nuvenzinha, que no céu é impelida, antes de se desvanecer, pelo vento e dourada pelo sol" (lb., p. 268). A acção do acaso determina a imprevisibilidade e a relativa indeterminação de todos os
acontecimentos naturais, incluindo as acções humanas. Mas a imprevisibilidade e indeterminação não significam liberdade para a vontade humana, do mesmo modo que não é livre qualquer fenómeno natural. "A liberdade do homem, ou seja, a variedade das suas acções, afirma Ardigó (Op., 111, p. 122), é o efeito da pluralidade das séries psíquicas, ou dos instintos, se assim os quisermos 56 chamar. E se ela é imensamente maior do que nos outros animais, isso depende unicamente do facto de que a complexidade da sua constituição psíquica, quer pela sua disposição intima, quer pelas suas relações com o exterior, se presta a um número de combinações imensamente maior". A liberdade humana é, portanto, um efeito daquele acaso que se encontra em todas as ordens de fenómenos e que procede da variedade de combinações das diversas séries causais. O eu e o não-eu, a consciência humana e o mundo exterior são, eles também, combinações causais e variáveis, e são constituídos ambos pelas sensações. As sensações são a "nebulosa" em que se forma e se organiza a psique, o indistinto, subjacente aos distintos que se constituem, ligando-se, num único organismo lógico. Mas são também a nebulosa e o indistinto de que se origina o mundo exterior na distinção dos seus objectos. Ardigó chama auto-síntese à formação do eu e hetero-síntese à formação do mundo objectivo; mas, salvo a do nome, não existe qualquer diferença entre os processos formativos. "Assim como no cosmo material os elementos que lhe pertencem, o hidrogénio, o oxigénio, o carbono, o azoto, são comuns e se convertem ou no indivíduo orgânico ou nas coisas ambientais mediante os agrupamentos formativos que as fixam ou no indivíduo ou nas coisas, assim no cosmo mental os elementos da sensação são de si comuns e se convertem ou no eu ou no não-eu mediante os agrupamentos formativos que os fixam ou na auto-síntese ou na hetero-síntese" (1b., V. p. 483-84). 57 Os escritos morais de Ardigó são essencialmente uma polémica contra todas as formas de ética religiosa, espiritualista e racionalista e respeitam a tentativa, empreendida por Spencer, de reproduzir a formação das ideias morais do homem a factores naturais e sociais. Segundo Ardigó, as idealidades e as máximas da moral nascem da reacção da sociedade aos actos que a prejudicam; reacção que, impressionando o indivíduo, acaba por se fixar na sua consciência como norma ou imperativo moral. Os caracteres intrínsecos do dever, a sua obrigatoriedade, a sua transcendência, e a responsabilidade que lhe é inerente, são devidos, pois, à interiorização progressiva, através das experiências constantemente repetidas, das sanções exteriores que o acto moral encontra na sociedade, enquanto acto anti-social (1b., 111, p. 425 sgs.; X, p. 279). Assim, Ardigó entende a sociologia como "a teoria da formação natural da ideia de
justiça". Por consequência, a justiça é a lei natural da sociedade humana e, precisamente, regula o exercício do poder jurídico, que se transforma, interiorizando-se, em exigência moral. Assim a primeira forma da justiça é o direito, como a primeira forma do direito é a prepotência; mas ao direito positivo contrapõe-se em seguida o direito natural, que é o ideal do direito, que se reforma nas consciências sob o mesmo impulso que o direito positivo, mas se realiza imperfeitamente nas formas deste. O direito positivo está sempre atrasado em relação ao direito natural, que exprime as idealidades sociais mais avançadas; e a luta destas contra o direito positivo, para o reformar 58 à sua imagem, constitui a incessante evolução da justiça (lb., IV, p. 165, sgs.). § 659. O EVOLUCIONISMO MATERIALISTA (MONISMO) O positivismo evolucionista é, na sua forma mais rigorosa, igualmente alheio ao materialismo e ao espiritualismo. Spencer afirma explicitamente (First Princ. § 194) que o processo da evolução pode ser interpretado em termos de matéria e de movimento como em termos de espiritualidade e de consciência; e, por outro lado, o Absoluto que este processo manifesta, enquanto é incognoscível, não pode ser definido como matéria nem como espírito. Mas a insuprimível tendência romântica do positivismo dificilmente podia conservar-se nesta posição de equilíbrio; e as tentativas para interpretar num sentido ou noutro o significado da evolução foram tanto mais repetidas e enérgicas quanto, numa ou noutra das duas formas, a evolução se prestava melhor a adquirir um significado, infinito e divino e a justificar uma exaltação religiosa ou pseudoreligiosa. Mais numerosas talvez, e decerto de maior ressonância, foram as orientações para o materialismo. Nos últimos decénios do século XIX, uma plêiade de cientistas, físicos, biólogos e psicólogos de todos os países, adoptaram o credo positivista, declarando ater-se rigorosamente ao estudo dos factos e das suas leis e repudiando qualquer explicação não mecânica dos mesmos. A resposta que o astrónomo Laplace 59
deu a Napoleão, que o interrogava sobre o lugar que reservava a Deus na sua doutrina astronómica: "Não tenho necessidade dessa hipótese", torna-se o lema da época. Combatem-se todas as formas de transcendência religiosa e de "metafísica", entendendose por metafísica toda a explicação não mecânica do mundo mas cai-se amiúde, e sem se dar conta de tal, na metafísica: numa metafísica materialista. Na Alemanha o florescimento positivista teve início com a descoberta que Robert Mayer (1847-78) fez do equivalente mecânico do calor, que permite formular o princípio da conservação da energia. Este principio e a tentativa de reduzir a vida a um conjunto de fenómenos físico-químicos, excluindo o que até então se chamara "força vital", constituem o ponto de partida da metafísica materialista. O zoólogo Carlos Vogt (1817-1895) afirmava, numa obra de 1854, A fé do carbonário e a ciência, que "o pensamento está para o cérebro
na mesma relação em que a bílis está para o fígado ou a urina para os rins". E esta tese era apresentada identicamente e condimentada com a mesma violenta polémica antireligiosa nas obras de Jacob Moleschott (1822-93), um alemão que foi, desde 1879, professor de filosofia em Roma, e numa obra famosa de Ludwig Büchner (1824-99), Força e matéria (1855). Outros naturalistas mantiveram, em compensação, uma atitude mais cauta e cingiram-se, como Darwin, a um rigoroso agnosticismo. O fisiólogo alemão Emílio du Bois-Reymond (1818-96) publicou um escrito em 1880 intitulado Sete enigmas do mundo. Eis os enigmas: 1.11 a origem da matéria e da força; 2.O a 60 origem do movimento; 3.o o aparecimento da vida; 4.o a ordenação finalista da natureza; 5.O o aparecimento da sensibilidade e da consciência; 6.o o pensamento racionalista e a origem da linguagem; 7.o a liberdade do querer. Perante estes enigmas, Du Bois-Reymond pensava que o homem devia pronunciar não só um ignoramus mas também um ignorabimus: a ciência nunca poderá resolvê-los. Ernesto Haeckel (1834-1919) teve, ao invés, a pretensão de os resolver com a doutrina do evolucionismo materialista. Haeckel foi professor de zoologia na Universidade de lena; e a sua actividade de cientista é, indubitavelmente, notável. Em 1866 publicou a Morfologia geral dos organismos, que aduzia um grande número de observações e de factos em apoio da teoria darwiniana da evolução, e era a primeira tentativa para estender esta tentativa a todas as formas orgânicas. Este ensaio antecipava-se, por conseguinte, à segunda obra de Darwin, Descendência do homem, que só apareceu em 1871. Já nesta obra, porém, Haeckel concebia a teoria do transformismo biológico como uma nova filosofia, destinada a suplantar inteiramente todas as outras filosofias e todas as religiões. Dois anos depois expunha em forma popular as suas ideias na História da criação natural (1868), à qual se seguiram: Antropogenia (1874), O monisino como elo entre a religião e a ciência (1893) e Os enigmas do mundo (1899). Esta obra, que é a exposição mais completa e menos prolixa das ideias de Haeckel, teve uma difusão enorme. Venderam-se, ao todo, cerca de 400 000 exemplares, mas depois de 1920 a venda cessou e não se publicaram mais edições. Haeckel publicou ainda numerosas outras obras de polémica e de divulgação científica que, todavia, nada acrescentam ao conteúdo das obras citadas. O principal contributo que Haeckel trouxe à teoria da evolução é a que ele chama "a lei biogenética fundamental", isto é, o paralelismo entre o desenvolvimento do embrião e o desenvolvimento da espécie à qual pertence. Pelo que respeita ao homem, "a ontogénese, ou seja, o desenvolvimento do indivíduo é uma breve e rápida repetição (uma recapitulação) da filogénese ou evolução da estirpe a que pertence, isto é, dos precursores que formam a cadeia dos progenitores do indivíduo, repetição determinada pelas leis da herança e da adaptação" (Natur. Schõpfungesch, 1892). Haeckel efectuou sobre esta lei uma série de investigações que ilustravam e confirmavam em vasta escala a hipótese da transformação da espécie. Mas a par desta que, segundo lhe parecia, demonstrava de
maneira indubitável a continuidade e a unidade do desenvolvimento orgânico, Haeckel propunha uma outra lei fundamental que deveria demonstrar a unidade e a continuidade de todo o mundo real, isto é, a chamada lei da substância, cujos pressupostos seriam a lei da conservação da matéria descoberta por Lavoisier (1789) e a lei da conservação da força, descoberta por Mayer (1842). Esta lei, demonstrando a unidade e uniformidade do universo inteiro e concatenação causal de todos os fenómenos, leva à conclusão, segundo Haeckel, de que a matéria e a força não são mais que dois atributos inseparáveis de uma única substância (Weltrãtsel, trad. franc., 1902, P. 248). O monismo é assim estabelecido 62 sobre estas duas leis e, em nome do monismo, Haeckel combate todas as formas de dualismo, isto é, todas as formas de separação ou de distinção do espírito da matéria e, por conseguinte, toda a doutrina que, de qualquer modo, admita uma divindade separada do mundo, a espiritualidade da alma e a liberdade do querer. Assim, dos sete enigmas enumerados por Du Bois-Reymond, o último, concernente precisamente à liberdade do querer, é, sem mais, eliminado como uma superstição antiquada. Quanto ao primeiro, respeitante à natureza da matéria e da força, quanto ao segundo, que concerne à origem do movimento e quanto ao quinto, que concerne à origem da sensação e da consciência, o monismo, resolve a coisa facilmente porque, na realidade, força, movimento, matéria, consciência, não tiveram origem, mas foram sempre presentes desde as primeiras fases evolutivas da única substância cósmica. Os outros três enigmas (a vila, a finalidade e a razão) são, pois, resolvidos em sentido materialista: a vida e a razão são produtos da evolução, a finalidade é reduzida ao mecanismo. A evolução começa, segundo Haeckel, com a condensação de uma matéria primitiva em centros individuais ou picnátomos dotados de movimento e de sensibilidade. Haeckel resume assim os pontos capitais da sua "religião monista": 1.o O espaço é infinitamente grande e ilimitado, nunca vazio e sempre preenchido pela substância, 2.O o tempo é igualmente infinito e ilimitado, não tem nem princípio nem fim, é a eternidade, 3.O a substância encontra-se em toda a parte e em todos os tempos num estado de movi63 inento ininterrupto: o repouso perfeito não existe; mas a quantidade infinita da matéria permanece invariável como a da energia eternamente mutável, 4.o o movimento eterno da substância no espaço é um círculo eterno, cujas fases evolutivas se repetem periodicamente, 5.o estas fases consistem na alternância periódica das condições de agregação, sendo a principal a diferenciação primitiva da massa e do éter; 6.o esta diferenciação assenta numa condensação crescente da matéria e na formação de inúmeros pequenos centros de condensação (picnátomos) cujas causas eficientes são as propriedades originárias imanentes à substância: a substância e o esforço; 7.o enquanto numa parte do espaço se produzem, pelo processo picnótico - corpos celestes, primeiro pequenos, depois maiores, e aumenta entre eles a tensão do éter, na outra parte do espaço produz-se simultaneamente o processo inverso: a destruição dos corpos celestes que se chocam uns com os outros; 8.O as enormes quantidades de calor produzidas neste processo mecânico pelo choque dos corpos celestes em rotação são representadas pelas novas forças vivas que produzem o movimento das massas de poeira cósmica e, por
conseguinte, uma nova formação de esferas em rotação: o jogo eterno recomeça desde o princípio" (Weltrãtsel, p. 278-79). É fácil dar-se conta do carácter arbitrário e diletantista destas especulações de Haeckel. Contudo, o seu enorme sucesso junto do público e o número extraordinário de seguidores que tiveram em toda a europa, e especialmente na Alemanha, convertem-nas hum documento do espírito romântico da época. Tão 64 significativo com a enorme difusão e o entusiasmo que haviam suscitado, algumas décadas antes, as doutrinas do romantismo idealista. É a tendência romântica a procurar e a dar realidade ao infinito que conduz cientistas do tipo de Haeckel a revestir de um significado absoluto e religioso hipóteses e factos da ciência, e efectivamente, a característica fundamental do positivismo materialista é uma espécie de exaltação anti-religiosa, que nem por isso é menos religiosa e mística, pois não faz mais do que pôr a natureza no lugar de Deus, embora não vendo nela senão leis e factos necessários, e pretender laicizar e tornar "científicas" atitudes próprias da religião. O desenvolvimento da ciência superou decerto este fervor religioso que animava muitos dos seus cultores, mas devia acabar por destruir os entusiasmos românticos e as construções metafísicas com que o positivismo se pavoneava, conduzindo gradualmente a reconhecer o essencial do procedimento científico precisamente no que tem de mais avesso e mais alheio a qualquer interpretação metafísica ou religiosa. Em França, um monismo materialista análogo ao de Haeckel foi defendido por Felix le Dantec (1869-1917) numa numerosa série de escritos (A matéria viva, 1893; O ateísmo, 1907; Elementos de filosofia biológica, 1911, etc.). E em Itália, o positivismo materialista manifestava-se de uma forma original na obra de César Lombroso (1863-1909), fundador da "Escola positiva do direito penal" segundo a qual "os criminosos não praticam delitos por um acto cons65 ciente e livre de má vontade, mas porque têm tendências más, tendências cuja origem se encontra numa organização física e psíquica diversa da normal". Deste pressuposto, a escola positivista deduzia a consequência de que o direito da sociedade a punir o delinquente não se funda na maldade ou na sua responsabilidade, mas apenas na sua perículosidade social. O estudo das características físico-psíquicas que determinam a delinquência foi chamado por Lombroso "antropologia criminal". Lombroso distinguia, com respeito à periculosidade social, quatro tipos de delinquentes: o delinquente antropológico ou delinquente nato, cujos instintos, inscritos na constituição orgânica, são inalteráveis; o delinquente ocasional, o delinquente louco, o delinquente por paixão ou por hábito (0 homem delinquente, 1876). A outra tese de Lombroso que suscitou também polémicas vivíssimas é a aproximação entre génio e loucura (Génio e degeneração, 1897). Lombroso partia da consideração dos chamados fenómenos regressivos da evolução pelos quais um grau de desenvolvimento muito avançado numa determinada direcção é acompanhado, a
maior parte das vezes, por um atraso nas outras direcções. Sendo assim, compreende-se como se "torna necessário, quase fatal, que à forma, em numerosas direcções, mais evoluída do génio, corresponda um atraso, um regresso, não só nas outras direcções, mas amiúde também no órgão que é a sede da mais importante evolução", isto é, no cérebro; eis a razão por que existem formas mais ou menos atenuadas de loucura e de perversão nos indivíduos geniais. 66 § 660. O EVOLUCIONISMO ESPIRITUALISTA A interpretação espiritualista da evolução desenvolve-se paralelamente à interpretação materialista e propõe-se essencialmente adaptar o conceito evolutivo da realidade às exigências morais e religiosas tradicionais. O principal expoente desta forma de positivismo é Wundt, mas tem também os seus representantes em Inglaterra, em França e na Itália. Guilherme Wundt (16 de Agosto de 1832-31 de Agosto de 1920) foi médico e professor de fisiologia em Heidelberg. Em 1875 estabeleceu-se como professor de filosofia em Leipzig, onde fundou o primeiro "Instituto de filosofia experimental". A sua actividade orientou-se para investigações de filosofia e de psicologia fisiológica. A sua primeira obra importante foi os Princípios de psicologia fisiológica (1874), a que se seguiram: Lógica (2 vol., 188083); En,,aios (1885)-, Ética (1886); Sistema de filosofia (1889); Compêndio de psicologia (1896), Psicologia dos povos: 1, A linguagem (1900), 11, Mito e religião (1904-09), obra que foi aumentada sempre nas edições seguintes, e que inclui na última volumes dedicados a várias disciplinas, Direito (1918) e Civilização e Cultura (1920); Introdução à filosofia (1901); Elementos de psicologia dos povos (1912); Pequenos escritos (2 vol., 1910-11); Introdução à psicologia (1911); A psicologia na luta pela vida (1913); Discursos e esboços (1913); Mundo sensível e mundo supra-sensível (1914). Wundt fundou também, em 1881, uma revista, "Estudos filosóficos", em que foram publicados escritos seus e de 67 seus discípulos; e em 1905 uma outra revista, "Estudos psicológicos",em que foram publicados os trabalhos dos Institutos de Psicologia de Leipzig. O maior mérito de Wundt consiste no impulso que deu à psicologia experimental. Teodoro Fechner havia já abordado o problema de uma psicologia experimental de base matemática. Partindo da doutrina do animismo universal aplicara-se a estudar a relação entre a alma e o corpo, chegando a estabelecer a chamada "lei psicofísica fundamental", que diz respeito à relação quantitativa entre a intensidade do estímulo e a intensidade da sensação que este produz. A lei diz que se a intensidade do estímulo cresce em progressão geométrica, a intensidade da sensação cresce em progressão aritmética, de modo que a própria sensação é proporcional ao logaritmo do estímulo. Fechner chamara psicofísica à psicologia que procura determinar as leis quantitativas dos fenómenos psíquicos em relação com os seus correlatos físicos. O clima do positivismo iria estimular poderosamente a tendência da psicologia a constituir-se como ciência positiva e rigorosa, análoga às ciências naturais. Wundt é o primeiro que faz seu este ideal e leva avante a sua realização. Os seus Princípios de psicologia fisiológica (publicados pela primeira vez em 1874 e continuamente aumentados em edições sucessivas) representam a primeira
sistematização completa do que ele denominou "psicologia sem alma": isto é, a psicologia que estuda os fenómenos psíquicos prescindindo de qualquer pretensa substância espiritual, considerando-os em estreita relação com os fenó68 menos fisiológicos e servindo-se da experiência como instrumento de investigação. No que se refere à caracterização dos fenómenos que podem e devem ser objecto da psicologia, Wundt não crê que a psicologia possa ser considerada como a ciência da experiência interna, enquanto as ciências naturais seriam as ciências da experiência externa. Experiência interna e experiência externa são apenas dois pontos de vista diversos pelos quais se podem considerar os fenómenos empíricos; e não existe fenómeno natural que não possa, de um certo ponto de vista, tornar-se objecto de uma investigação psicológica. Mas, dado que todos os fenómenos são, como tais, representações, a psicologia pode ser caracterizada como a "ciência da experiência imediata". As representações são consideradas pela psicologia na sua imediatez, isto é, precisamente tais quais são. Para as outras ciências, valem, pelo contrário, na sua relação mediata e objectiva, isto é, como partes ou elementos de um mundo objectivo. A psicologia de Wundt é inteiramente dominada pela ideia da evolução; é, essencialmente, uma psicologia genética, que mostra a gradual e progressiva formação dos produtos psíquicos mais complexos, a partir dos mais simples. A evolução psíquica tem, no entanto, para Wundt, um carácter original, que a distingue da evolução física; isto é, surgem no curso dela novas propriedades que não pertencem aos elementos que a determinaram. Este é o princípio da síntese criadora e vale para todos os fenómenos psíquicos, desde as percepções e os sentimentos sensíveis até aos mais altos processos psíquicos. Por exemplo, o espaço e o 69 tempo, corno imagens psíquicas, têm propriedades que não pertencem aos elementos sensoriais de que resultam. E, em geral, "no curso de todo o desenvolvimento individual ou social geram-se valores espirituais que não estavam originariamente presentes nas suas qualidades especificas e isto vale para todos os valores, lógicos, estéticos e éticos" (Logik, 111, 1921, p. 274). O carácter espiritualista da posição de Wundt patenteia-se na superioridade que ele concede à experiência imediata, isto é, à consciência, superioridade pela qual a psicologia, que é a ciência desta experiência, adquire um nível privilegiado em relação a todas as outras disciplinas filosóficas e científicas. A filosofia de Wundt é um positivismo evolucionista revisto e corrigido em conformidade com este pressuposto espiritualista. Wundt crê que o escopo da filosofia consiste na "recapitulação dos conhecimentos particulares numa intuição do mundo e da vida que satisfaça às exigências do intelecto e às necessidades do coração" (Syst. der Phil., 1, 1919, p. 1; Ein leitung in die Phil., 1904, p. 5); e, por consequência, define a filosofia como a "ciência universal que deve unificar num sistema coerente os conhecimentos universais fornecidos pelas ciências particulares". Este era o conceito positivista da filosofia, tal como o haviam estabelecido Comte e Spencer, incluindo a exigência espiritualista segundo a qual a filosofia devia satisfazer "as necessidades do coração". A filosofia divide-se em duas partes: a gnoseologia que considera a origem do saber e a metafísica que considera os princípios gerais do saber. A
gnoseologia, por sua vez, 70 divide-se em lógica formal e teoria do conhecimento. A metafísica tem por missão reunir os resultados gerais das diversas ciências num sistema coerente. Quanto às ciências particulares, dividem-se em dois grandes grupos: ciências da natureza e ciências do espírito, sendo a psicologia a ciência fundamental destas últimas. As matemáticas têm lugar à parte, e constituem uma ciência formal, isto é, uma ciência que considera as propriedades formais dos objectos naturais. O paralelismo entre ciências naturais e ciências espirituais baseia-se no paralelismo próprio da realidade que Wundt considera, à semelhança de Espinosa, como algo que se manifesta em duas séries infinitas e paralelas, a natureza e o espírito. Wundt confere a estas duas séries causais um significado evolutivo e progressivo conformemente à orientação geral do positivismo; mas nega que interfira uma na outra e que os termos de uma possam de qualquer modo participar nos caracteres da outra. As duas séries paralelas não são, no entanto, duas realidades separadas, mas sim duas manifestações necessariamente distintas da mesma realidade. A sua duplicidade nasce da reflexão, que divide o originário objecto-representação em objecto e representação: fundam-se numa distinção que existe apenas no nosso pensamento abstractivo, mas não na realidade mesma (Syst. I, p. 402). O que seja tal realidade, como deverá ser concebida a única distância que subjaz às duas manifestações paralelas, é um problema que só pode ser resolvido, segundo Wundt, recorrendo à experiência imediata que é o fundamento da psicologia. Esta expressão diz71 -nos a condição de toda a percepção, a que Kant chamava "apercepção transcendental", é a vontade. A vontade é a única actividade que nos é dada imediatamente. Esta actividade não é nunca pura actividade, o querer não é nunca puro querer. Mas a passividade que é própria do nosso querer só pode ser explicada recorrendo a um outro querer e, portanto, à acção recíproca do agir e do sofrer que é o fundamento de toda a actividade representativa. Através desta acção recíproca, a vontade torna-se vontade real ou representativa, isto é, dá lugar ao mundo da representação. Wundt retoma assim ao conceito de Schopenhauer da vontade como única substância do mundo. Mas a vontade de que ele fala não é uma realidade em si, um númeno transcendente, como Schopenhauer a concebia, mas manifesta-se e realiza-se exclusivamente na acção recíproca das vontades singulares e, portanto, no desenvolvimento evolutivo das comunidades a que dão lugar. Este desenvolvimento tende à ideia da unidade infinita da vontade ou de uma "comunidade de vontade" perfeita. A comunidade das vontades do género humano é também o último objectivo de toda a acção moral (Ib., 11, p. 237). Também sob este ponto Wundt permanece fiel à ética positivista, que fez da humanidade o fim moral supremo. Mas a humanidade é definida por ele como
concordância e unidade das vontades individuais; e, uma vez que tal concordância e unidade nunca se realizam perfeitamente, nasce a ideia de uma unidade absoluta, que é a ideia mesma de Deus. Esta ideia não pode ser demonstrada, mas pode-se assumir como pressuposto último a que chega o pensamento 72 quando passa da experiência do progresso a um fundamento do mesmo para além de todos os seus limites reais (1b., 1, p. 430). A ideia de Deus é assim, para Wundt, uma ideia-limite do progresso humano, ideia-limite que é ao mesmo tempo considerada como fundamento da unidade que o progresso realiza. A história para Wundt, é também, uma teoria do progresso. Mas o progresso histórico não se realiza em virtude de uma providência transcendente ou de uma finalidade intencional. As forças da história são os motivos psicológicos que actuam nos indivíduos e nas comunidades humanas; e a ciência da história não é outra coisa mais do que "uma psicologia aplicada". Assim se torna operante na história aquele princípio a que Wundt chama ,"princípio da heterogénese dos fins", pelo qual os fins que a história realiza não são os que os indivíduos ou as comunidades se propõem, mas antes a resultante da combinação, da relação e do contraste das vontades e das condições objectivas (1b., I, p. 326 sgs.; 11, p. 221 sgs.). Wundt dedicou a última fase da sua actividade preferentemente a amplas investigações sobre "a psicologia dos povos". O nome é novo, mas, na realidade, trata-se da sociologia, no sentido restrito e puramente descritivo que Spencer dera a esta disciplina. A psicologia dos povos é uma ciência da história referida às suas condições e às suas leis psicológicas e, portanto, considerada sobretudo nas suas instituições e nos seus produtos espirituais. Nos diversos volumes que compõem a grande Psicologia dos povos, Wundt considera separadamente a evo73 lução histórica da linguagem, do mito, do costume e do direito; enquanto nos Elementos de psicologia dos povos, considera o desenvolvimento progressivo da sociedade humana na sua totalidade e na conexão dos produtos espirituais a que dá origem. Ambos os tratados se fundam no princípio de uma evolução histórica gradual e constante. "A psicologia dos povos, diz Wundt (El. der Volkerpsych., 1912, p. 4), com a consideração dos diversos graus do desenvolvimento espiritual que a humanidade hoje apresenta, abre-nos o caminho a uma verdadeira psicogénese. Mostra-nos as condições primitivas e fechadas em si mesmas, a partir das quais, através de uma série ininterrupta de graus intermediários, se pode lançar uma ponte até às civilizações mais desenvolvidas e superiores. Por isso, a psicologia dos povos é, no sentido mais eminente da palavra, uma psicologia do desenvolvimento". Wundt delineou esta evolução, servindo-se de uma soma enorme de material filológico e descritivo, sobretudo no que se refere à linguagem, o
mito e os costumes, que têm a sua origem última nos três momentos psicológicos: a representação, o sentimento e a vontade. O positivismo espiritualista, de que Wundt é decerto o maior representante, encontrou também fora da Alemanha manifestações análogas, quase simultâneas. Tal positivismo é caracterizado pela tentativa de se servir do princípio da evolução como garantia da progressiva afirmação e consolidação dos valores espirituais e, portanto, da doutrina do paralelismo psicofísico, que permite eliminar (ou atenuar) aquela 74 subordinação do espírito à matéria que parecia um resultado inevitável do evolucionismo positivista. Em Itália, o positivismo espiritualista encontra o seu melhor representante em Filipe Masci (1884-1923) que foi durante muitos anos professor de filosofia na Universidade de Nápoles e dedicou a sua actividade a artigos e ensaios académicos que tiveram uma escassa difusão (As formas da intuição, 1881; Sobre o sentido do tempo, 1890; Sobre o conceito do movimento, 1892; O materialismo psicofísico e a doutrina do paralelismo em psicologia, 1901; A lei da individuação progressiva, 1920). Só nos últimos anos da sua vida Masci pensou em recolher num volume global os resultados principais das suas investigações (Pensamento e consciência, 1922). Alguns cursos de liçpes foram publicados postumamente (A sociedade, o direito e o Estado, 1925; Introdução geral à psicologia, 1926). Situa-se geralmente Masei na corrente neocrítica e consideram-no mesmo o principal expoente desta corrente em Itália. Mas nada justifica tal asserção. Na introdução a Pensamento e conhecimento, o próprio Masci declarava que não admitia na doutrina kantiana, "a distinção do númeno e fenómeno", o a priori como anterior ao conhecimento, as antinomias, a coisa em si, as formas da intuição e das categorias como formas belas e factos da sensibilidade e do pensamento", assim como "a negação de toda a investigação psicológica para a formação do conhecimento". É difícil ver o que fica de Kant depois de se rejeitar isto tudo. Na verdade, é próprio do neocriticismo contemporâneo (como se verá no § 722) a redução da filosofia a reflexão crítica sobre 75 a ciência e a renúncia à metafísica. Masci, pelo contrário, entende a filosofia (segundo o conceito do positivismo e de Wundt) como uma reelaboração dos resultados da ciência e cultivou uma metafísica evolucionista de carácter espiritualista. Como "ciência do pensamento", a filosofia deve, de facto, conhecer a realidade na sua universalidade e, portanto, elaborar a experiência para lá dos limites do conhecimento científico, sem deixar de tê-lo sempre presente como ponto de partida e de referência (Penso e con., p. 93 sgs.). Tal como Spencer, Masci concebeu a inteligência e as suas categorias como "um produto da evolução que progride lentamente através da escala humana" (Ib., p. 386). Concebeu a realidade como uma substância psicofísica, cuja lei fundamental é a da individuação progressiva, isto é, o nascimento e a afirmação progressiva da individualidade. Por isso, viu no espírito, que é autoconsciência ou eu, a mais elevada manifestação da substância psicofísica e, portanto, nas formas superiores da vida espiritual - arte, religião, filosofia - o grau supremo da evolução cósmica e a realização da finalidade última que a substância psicofísica persegue mesmo nas formas mais inferiores da natureza. Analogamente, Masci via na
evolução social, e em particular na do direito, "o progresso da consciência ou da liberdade" e, por conseguinte, a realização gradual e progressiva de uma liberdade cada vez mais completa. Em Inglaterra, o positivismo adoptou uma forma análoga nos escritos de Hobhouse e de Morgan. L. T. Hobhouse (1864-1929) foi professor de sociologia em Londres e autor de escritos de gnoseologia 76 e de ética, em que domina o conceito de evolução (Teoria do conhecimento, 1896; O espírito em evolução, 1901; A moral em evolução, 1906; Desenvolvimento e finalidade, 1913; A teoria metafísica do Estado, 1918; O bem racional, 1921; Elementos de justiça social, 1923; O desenvolvimento social, a sua natureza e as suas condições, 1924). A orientação espiritualista de Hobhouse patenteia-se na sua tentativa de conciliar os resultados da ciência, com a exigência da fé. "A verdadeira função de todo o método não analisado, sobretudo o da fé, não é a de travar uma guerra desesperada contra a massa compacta da verdade científica, mas estender-se aquém e além dos limites da ciência, adquirindo o direito de sentir o que não podemos ainda exprimir e esperar o que não podemos ainda concretizar" (Theory of Knowledge, p. 617-18). Para tal fim valer-se-á de Lotze e de Hegel, assim como de Mill e de Spencer (1b., pref., p. IX); mas, na realidade, os resultados a que chega são substancialmente idênticos aos de Wundt e, em geral, aos do positivismo espiritualista. A recusa da subordinação do espírito à matéria condu-lo também a um paralelismo psicofísico. A relação entre o físico e o mental é a de uma concomitância provavelmente constante, não a da conexão causal. O corpo não actua sobre a alma, nem a alma sobre o corpo, mas "as suas mutações entrelaçam-se como fases conexas na complexa constituição do grande todo de que são ambos elementos" (Ib., p. 572-73). "0 facto central da experiência é o conceito da evolução, o qual nos permite compreen77 der que a estrutura mental saiu de uma origem humilde e que os seus métodos, a sua lógica e a sua filosofia se desenvolveram na tentativa contínua de apreender e organizar a sua experiência e assim dirigir e entender a sua vida. A evolução natural tem a sua continuação e o seu cumprimento na evolução intelectual e moral. A viragem decisiva da evolução intelectual e moral dá-se quando o espírito, que se dirige primeiro unicamente para os objectos, se volta depois para si mesmo, isto é, para os métodos e para os procedimentos que lhe permitem apreender e
dirigir os objectos. Esta viragem conduz a vida moral e a vida intelectual ao plano da racionalidade, e em particular para a vida moral, do plano do hábito ao de uma ordem racional da conduta (MoraIs in Evolution, II, p. 277 sgs.). O progresso espiritualista consiste no progressivo domínio da consciência racional e tem por isso como objecto final a própria humanidade. Hobhouse crê que é necessário admitir, como garantia deste progresso real, um Ser divino que preserve e mantenha as condições da efectiva realização do mesmo. C. Lloyd Morgan (1852-1937) é também defensor de um evolucionismo de matizes espiritualistas (Vida animal e inteligência, 1890; Introdução à psicologia comparada, 1894; Hábito distinto, 1896-, Interpretação da natureza, 1905; Comportamento animal, 1908; Instinto e experiência, 1912; Evolução emergente, 1923; Vida, mente e espírito, 1926, A emergência da novidade, 1933). Os factos psíquicos e os factos físicos não estão, segundo Morgan, ligados por uma relação causal, mas são inseparáveis. Todo o facto 78 físico é também um facto psíquico, e recIprocamente; de maneira que o mundo não é nem um mundo físico nem um mundo psíquico, mas um mundo psicofísico. Deve-se admitir por isso um correlato psíquico em todo o sistema físico, seja o átomo, o cristal, ou o corpo orgânico. Morgan insiste no carácter não mecânico, mas criador, da evolução natural em todos os seus graus, mas neste ponto não faz mais do que repetir uma das teses fundamentais da Evolução criadora (1907) de Bergson. Fala-nos de uma evolução emergente no sentido de que cada fase da evolução não é a mera resultante mecânica das fases precedentes, mas contém um elemento novo, que é irredutível àquele. Este novo elemento que se junta à resultante mecânica (a qual garante a continuidade do processo) é o que torna a evolução num progresso. A consciência é uma dessas qualidades emergentes no curso da evolução cósmica, como a vida é uma qualidade emergente em relação à resultante físicoquímica. O carácter de criatividade espiritual que a evolução toma neste sentido, postula, segundo Morgan, um Ser divino como garantia do progresso gradual e incessante do universo. Em França, esta posição ideológica do pensamento, caracterizada pelo monismo psicológico, e pela finalidade espiritual da evolução, é representada tipicamente por Alfredo Fouillée (1838-1912), autor de numerosas obras históricas e de várias escritos sistemáticos (A liberdade e o determinismo, 1872-, A evolução das ideias-forças, 1890; O movimento idealista e a reacção contra a ciência positiva, 1896; Os elementos, sociológicos da moral, 1906; A moral das 79 ideias-forças, 1908-, Ensaio de interpretação do mudo, 1913). Fouillée aceita o conceito positivista da filosofia, no sentido de Wundt. A ciência positiva não dá a imagem global do todo; para ela, o mundo é como um espelho quebrado. A filosofia, reagrupando os fragmentos, esforça-se por entrever a grande imagem (Le mouv. idéal, p. XXXIX). Não
pode, por isso, ser considerada, por seu turno, como uma ciência positiva no sentido da previsão e da produção dos fenómenos; mas é também, a seu modo, uma previsão enquanto se esforça por conceber a marcha da humanidade e a do próprio mundo. Todavia, o que a filosofia tem a mais em relação à ciência é a sua atitude espiritualista, graças à qual o seu olhar se dirige à interioridade das coisas para descobrir nelas essa mesma vida interior que a consciência nos permite apreender em nós mesmos (Esquisse d'une inter-' pretation du monde, p. XXV). Neste sentido, o seu postulado fundamental é a unidade do físico e do psíquico; o monismo psicofísico. E o monismo psicofísico conduz Fouillée a elaborar o seu conceito central, do qual se serve para interpretar os fenómenos mais dispares: a ideia-força. "A ideia, diz (L'évolutionisme, p. XV), com as representações, os sentimentos e os desejos que implica, é um encontro do interior e do exterior; é uma forma que o interior toma mediante a acção do exterior e a reacção própria da consciência; implica, portanto, movimentos e não actua de fora, do alto de uma esfera espiritual, sobre o curso material das coisas; não obstante, actua. A ideiaforça não é, por conseguinte, mais do que a substância psicofísica, a unidade individualizada, dos 80 factos físicos e dos factos psíquicos. A ideia-força permite, segundo FouilIée, entender a acção finalista que, no mundo da natureza, como no do espírito, determina a evolução e o progresso. A evolução não é uma lei, como Spencer a concebera, mas antes um resultado: o resultado do progresso apetitivo da ideia-força, que constitui a existência interior de nós mesmos, e provavelmente, a de todas as coisas (Ib., p. LIII). O conceito da ideia-força é empregado por Fouillée como fundamento da psicologia e da sociologia. Mas, para ele, a própria biologia é uma psicologia, visto que a luta pela vida de que falam os darwinistas, não se pode entender senão entre seres que desejam alimentarse e reproduzir-se, isto é, seres cujo dinamismo interior é constituído precisamente pela ideia-força (Psychologie, 1, p. XIX). A ideia-força permite também unir o determinismo dos processos naturais com a liberdade da consciência. E de facto um evolucionismo que reconheça que as ideias e os sentimentos são factores da evolução, introduz no determinismo um elemento de reacção sobre si mesmo: a influência da ideia. Ideias-forças são, pois, as instituições e as formas da consciência social, que apresentam, por seu turno, uma conciliação entre o determinismo do ambiente exterior e a livre reacção da consciência individual. João Maria Guyau (1854-1888) é o representante de um positivismo espiritualista orientado para os problemas morais. A moral sem obrigação nem sanção (Esboço de uma moral sem obrigação nem sanção, 1885), de que Guyau se faz apóstolo, é a mesma 81 moral evolutiva de Spencer, que tende incessantemente a uma crescente expansão e intensidade da vida, num tom de exaltação optimista e lírica. Esta moral indica como objectivo final uma humanidade concorde, pacifica e fraterna: o ideal sociológico da
humanidade. Este ideal explica, segundo Guyau, o valor da arte, que "vincula o indivíduo ao todo e cada parte do instante à duração eterna" (L'Art au point de vue social., p. 80). A arte é, por outros termos, a extensão progressiva à natureza da sociabilidade humana. E este ideal constitui a religião ou, melhor, a irreligião do futuro (L'Irréligion de Favenir, 1887). A ideia fundamental da religião é, de facto, a de um limite social entre o homem e as potências superiores e a sociabilidade, é o fundo duradouro do sentimento religioso, fundo que persistirá e se enriquecerá na irreligião do futuro. Esta tenderá para a sociabilidade universal da vida, para a solidariedade não só dos seres reais e viventes mas também para ' o dos possíveis e ideais. As especulações de Guyau representam uma amplificação lírica dos ideais morais do positivismo. Uma curiosa inversão do princípio positivista da evolução em sentido espiritualista é representada por André Lalande (1867) no seu escrito A ideia da dissolução oposta à da evolução no método das ciências físicas e morais (1898, 2.a ed. com o título As ilusões evolucionistas, 1931). Spencer definira a evolução como a passagem do homogéneo ao heterogéneo; Lalande faz ver que a passagem inversa do heterogéneo ao homogéneo (dissolução ou involução) é aquela a que se deve o progresso da realidade em 82 todos os campos, e especialmente no espiritual. "Toda a acção, toda a palavra, todo o pensamento, quando tem por fim uma das três grandes ideias directrizes da nossa natureza (o belo, o verdadeiro e o bem) faz progredir o mundo em sentido inverso à evolução, isto é, diminui a diferenciação e a integração individuais. As consequências destas são tornar os homens menos diferentes uns dos outros para que cada qual tenda, não como os animais, a absorver o mundo na fórmula da sua individualidade, mas a libertar-se do egotismo em que a natureza o encerra, identificando-se com os seus semelhantes" (p. 172-73). Na parte editada de um curso professado na Sorbonne, Razão constituinte e razão constituída (1925), Lalande distingue uma razão activa e crítica (a razão constituinte), e uma razão expressa em fórmulas e materializada, (a razão constituída), atribuindo à primeira o poder da crítica e da direcção no conhecimento humano. É mister, enfim, recordar que ele é o autor de Leituras sobre * filosofia das ciências (1893) e que a ele se deve * iniciativa do Vocabulário técnico e crítico da filosofia (1926), editado pela Sociedade Francesa de Filosofia. NOTA BIBLIOGRÁFICA 648. Sobre Hamilton; J. STUART MILL, An examination of Sir W. H.s Philosophy, Londres, 1865; JOHN WE1M4, H., the Man and his Philosophy, Londres, 1884; J. MARTINEAU, Sir W. H.s Phil., in Essays, III, Londres, 1891; LEsLiE STEMEN, The English Utilitari£~, cit. IU, cap. IV; F. Nanen, Die Erkenntnislehre, W. H.s, F_strasburgo, 1911; S. V. RAsmuSSENN, The Philosophy of. W. H., Copenhaga-Londres, 1927. 83
Sobre Mansel: J. MARTINEAU, A.L.M. in. Essays, III, Londres, 1891. Sobre a lógica de Hamilton e Mansei: T. H. GREEN, The logic of the FormaZ 1.o~ans, in Works, II, Londres, 1886. § 649. Indicações históricas e bibliográficas sobre a teoria da evolução; J. W. SPENGEL; Die Darwin8che Theorie, 2.1 ed., Berlim, 1872; Id.. Die Portschritte des Darwinismus, Leipzig, 1874; GEO SEIDLITz, Die darwinsche Theorie, 2.1 ed., Leipzig, 1875; V. CARUS, Histoire de Ia Zoologie, Paris, 1880; P. DELAGE e GoLsmiTH, Les Théories de Ilévolution, Paris, 1930; M. CAuLLERY, Les étapes de Ia biologie, Paris, 1941; W. ZIMMERMANN, Evolutian. Die Geschichte iher Probleme und Erkentnisse, Freiburg-München, 1953; E. GUY£NOT, Les setences de Ia vie aux XVII e XVIII siMes, Llidée Xévolution, 1957. Sobre Darwin e sobre o darwinismo: T. H. HUXLFY, CoUccted Essays, 11, Londres, 1894; JOHN nSK, Darwíni8m and other Essays, Londres, 1879; GRANT ALLEN, Ch. D. Londres, 1886; G. J. ROMANESY, Darwin and after Darwin, 2. vol., Londres, 1892-95; J. H. STIRLING, Darwinism, Workmen and Work, Edimburgo, 1894; Science (ensaios publicados pelo centenãrio do nascimento de D.) ao cuidado de A. C. SENVARD, Cambridge, 1909; J. JEANS, A. E. TAYLOR e outros, Evolution in the Light of Modern KnowIedge, Londres, 1925, L. C. EISELEY, Darwin's Century, Nova Iorque, 1959. § 650. Sobre a vida de Spencer, além da Autobiografia: D. DUNCAN, The Life and Letters of H.s., Londres, 1912. B. P. BRoWNE, The Phil. of. H.s, Nova lorque, 1874; RICRARD H. WEBER, Die Phil., von 11.s., Darinstadt, 1894; W. H. HUDSON, The Phil. of H.s., Nova IGrque, 1894; F. H. COLLINS, The Phil. of. H.s., Londres, 1897; OTTO GAVpP, H.s., Estugarda, 1897 (trad. ital., Palermo, 1911); E. THouVEREZ, H.s., Paris, 1905; J. TROMSON, H.s., Londres, 1907; W. H. HUDSON, H.s., Londres, 1909; 84 E. PARISOT, H.s., Paris, 1911; B. RusSELL, Scientific Method in Phil., Oxford, 1914. G. SANTANAYANA, The Unknowable, Oxford, 1923. § 651. Sobre a teoria da evolução: T. EI. GREEN, 11.s. and G. H. Lewes, in Works, I, Londres, 1886; MALCOLM GuTHRIE, Formula of Evolution, Londres, 1879; CESEA, Llevoluzionismo di H.s, Verona, 1883; J. WARD, Naturalis-yn and Agno-sticism, Londres, 1899. § 652. G. ALLIEVO, La psicologia di H.s., Turim, 1898. § 563. E. B. TY-LOR, S.s., Principles of Socio?ogy, in "Mind", 1877; A. COSTE, Les principes dIune sociologie objective, Paris, 1899. MALCoLm GoUTHRIE, On Sp.ls of Data of Ethics, LiondTes, 1884; J. DUBOIS S. et le principe de Ia morale, Pans, 1899; J. HALLEUx, Llévolutionisme en moral: étude sur Ia philosophie de H.s., Paris, 1901; E. JUYALTA, La dottrina delle due etiche di H.s., in "Riv. Fil.", 1904; A. STAMER, H.8.s. Ethik, Leipzig, 1913.
§ 654. Sobre Huxley, Clifford, Romanes, etc., além da,s obras cit. no § 649: L. HUXLEY, T. H. Huxley, Londres, 1920; F. POLLOCK, Life of Clifford, in CLIFFORD, Lectures and Essays, Londres, 1879; G. I. ROMANES, Life and Letters, Londres, 1896. § 655. De Bernard, além da Introdução: La science experimentale, 1878, Pensées. Notes détachées, ed. Delhoume, Paris, 1937; Philosophie, Manuscrit inédit, Ed. Chevalier, Paris, 1938; P. MAURIAC, C.B., Paris, 1941; H. COTARD, La pensée de C.B., Grenoble, 1945. § 656. Sobre Taine: STUART MiLL, Dissertations and Discussions, IV, Londres, 1874; G. BARZELLOT, H.T., Roma, 1895; V. GIRAUD, Essai sur T., 2.1 ed., Paris, 1903; ID., Bibliographie critique de T., Paris, 1904; P. LACOMBE, T., historien et sociologue, Paris, 1909; A. CRESSON, H.T., Paris, 1951. 85 Sobre Renan: BRUNSCHVIG, La phil. dIE.R. ia <@Revue de Mét. et de Morale", 1893; G. SÉAILLES, E.R.: Essai de biographie psychologique, Paris, 1894; R. AI,LIER, La philosophie, dIE.R., Paris; ID. Êtudes sur Ia phil. morale au siècle, Paris, 1904; W. BARRY, E.R., Nova Iorque, 1905; G. SOREL, Le système historique de R., Paris, 1906; G. STRAUSS, La politique de R. Paris, 1909; H. PARIGOT, R., 1'égoisme intellectuel, Paris, 1910; L. F. MOTT, E.R., Nova Iorque, 1921, A. CPESSON, E.R., Paris 1949; R. DuSSAUD Llocuvre scientifiq" "E.R., Paris, 1951. § 658. ARDIGõ, Opere filosofiche, 12 vol., Pádua, 1882-1918; Scienza delVeducazione, Pádua, 1893; Scritti vari, ed. Marchesini, Florença, 1912. No 70.1 aniversário de R.A., escritos vários ae cuidado de G. MARCHESINI e A. GRoPPALI, Turim, 1898; BARTOLOMEI, Il principi fondamentali dellIetica di R.A., Roma, 1899; AL. ILEVI, Il diritto naturale nella f"ofia di R. A., Pádua, 1904; G. MARCHESINi, La vita e il pensiero di R.A., Milão, 1907; ID. Lo spirito evangelico di R.A., Bolonha, 1911; ID. R.A., l'uomo e l'umanista, Florença, 1922; E. TROILO, Il maestro del positivismo italiano, Roma, 1921; R. MONDOLFO, Il pensiero, di R.A., 1908; J. BLUWSTEIN, Die Weltanschauung R.A.s., Leipzig, 1911; E. TRomo, A. (perfil), Milão; F. AMERio, A. Milão, 1957. 1 § 659. Sobre o monismo: R. EISLER, Geschichte des Monismus, Leipzig, 1910. Sobre Haeckel: E. VM HARMANN, E. H., in. Ge-sammelte Studien und Aufsãtze, Berlim, 1876; W. BOLScHE, E. H., ein Lebensbild, Dresden, 1900; E. ADICKES, gant contra H. Berlim, 1901; F. PAULSEN, E. H., ats Philosaph, in Philosophia militans, Berlim, 1901; M. APELT, Die Weltanschauung, H.s., Berlim, 1908; K. HAUSER, E. H. Godesborg, 1920; H. SCHMIDT, E. H. Leben und Werke, 1908; K. HAusER, E.H., Godesborg, 1920; H. SCI1MIDT, E. H., Leben und Werke, Berlim, 1920, 86 § 660. Sobre Feclmer: K. LASSVITZ; G. Th. F., Estugarda, 1896, 3.a ed. 1910. Sobre Wundt: EDm. KõNIG; W. W., seine Philosophie und Ps-ychologie, Estugarda, 1901, 3.1 ed. 1909; H. HOFFDING, Moderne Philosophen, Leipzig, 1906 - Sobre a teoria do conhecimento e a psicologia: G. LACHELIER, La théorie de Ia connaissance de W., in "Revue Philosophique", 1880, ID., Les lois psychologiques dans Vécole de W., ibid., 1885.
Sobre a metafisica: G. LACHELIER, La metaphisique de W. ibid., 1890. Sobre Hobhouse. TH. GREENWOOD, Le principe de Ilévolution emergente, in "Sigma", Roma, 1948. Sobre Fouillée, H~DING, Op. Cit.; A. GuiAyu, La philosophie et Ia sociologie dIA.F., Paris, 1213; E. CANNE de BEAuCOUDREY, La Psychologie et Ia metaphysiqu-e des idées-forces chez A.F., Paris, 1933. Sobre Guyau: "uiLLÉE, La morale, Ilart et Ia religion d'après G., Paris, 1889; HOFFDING, Op. Cit.; J. ROYCE, in Stu4es of Good and Evil, Nova lorque, 1910; A. PASTORE, J.M.G. e Ia genewi delllidea di tempo, Lugano, 1910. 87 NIETZSCHE XIII NIETZSCHE § 661. A FIGURA DE NIETZSCHE A doutrina de Nietzsche liga-se a correntes diversas, embora não se file em nenhuma: o evolucionismo, o irracionalismo, a filosofia da vida; e apesar de ser ainda dominada pela aspiração romântica ao infinito, opõe-se ao idealismo e pretende estabelecer uma clara inversão dos valores tradicionais. A sua influência exerceu-se, analogamente, em orientações dispares; e as suas interpretações mais populares são as mais alheias ao espírito autêntico do filósofo. Uma destas interpretações é a de um estetismo hedonístico e decadente que foi representado pela obra e pela figura de D'Annunzio-, outros viram nela uma teoria da raça superior e no super-homem o expoente ou exemplar dessa raça. Mas a primeira destas interpretações é falsa, dado o carácter trágico e cruel 89 que Nietzsche, tal como Schopenhauer, atribui à vida; carácter que exclui todo o comprazimento hedonístico ou estetizante; e a segundo é igualmente falsa, uma vez que Meusche identificou o super-homem com o filósofo na acepção de profeta de uma nova humanidade e, deste ponto de vista, a noção de uma "raça, de super-homens" apresenta-se-nos absurda e pueril. Tais utilizações da doutrina de Nietzsche têm relação com alguns aspectos mais aparentes dela, mas sã o decerto estranhas à sua orientação fundamental, que, como veremos, é de natureza cosmológica. No plano antropológico e ético, o que Nietzsche quis propor foi uma nova técnica de valores, os valores vitais, que, de facto, entraram de algum modo na consideração do pensamento filosófico e científico e constituem o contributo maior da sua doutrina para a problemática da filosofia contemporânea.
§ 662. NIETZSCHE: VIDA E OBRA Frederico Nietzsche nasceu em Rõcken perto de Lutzen a 15 de Outubro de 1844. Estudou filologia clássica em Bona e em Leipzig, sob a orientação de Frederico RistchI, e nestes estudos se foi desenvolvendo o seu entusiasmo romântico pela antiguidade grega. Em Leipzig leu pela primeira vez a obra de Schopenhauer O mundo como vontade e representação, que o entusiasmou. Num fragmento autobiográfico de 1867, escreveu: "Nela cada linha denunciava renúncia, negação, resignação; nela via o mundo como um espelho, a vida e a minha própria alma, 90 cheias de horror; nela, semelhante ao sol, o grande olho da arte me fixava, separado de tudo; nela, via enfermidade e cura, desterro e refúgio, inferno e céu". Os trabalhos do jovem filólogo atraíram sobre ele a atenção dos ambientes científicos; e em 1869, aos vinte e quatro anos, Nietzsche foi chamado à cátedra de filologia clássica da Universidade suíça de Basileia. Aí, Nietzsche travou amizade com Ricardo Wagner, que se retirara com Cosima Bullow para a vila de Triebschen, no lago dos Quatro Cantões, e se tornou um fervoroso admirador do músico. Em 1872, Meusche publicou o seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, que suscitou a hostilidade dos filólogos e foi ignorado pelo grande público. No ano seguinte (1873), Meusche publicou as suas quatro Considerações intempestivas. Entretanto, a amizade com Wagner ia esmorecendo: Nietzsche via cada vez mais nele o extremo representante do romantismo e parecia-lhe aperceber na última fase da sua obra, orientada nostalgicamente para o cristianismo, um abandono daqueles valores vitais que eram próprios da antiguidade clássica e um espírito de renúncia e de resignação. Humano, demasiado humano, publicado em 1878, assinala a sua separação de Wagner e de Schopenhauer. Entretanto, a saúde do filósofo ia-se debilitando. Já em 1875 fora obrigado a interromper o seu ensino em Basileia e em 1879 renunciou definitivamente à cátedra. Daí em diante a sua vida foi a de um enfermo inquieto e nervoso; viveu quase sempre na Suíça e na Itália setentrional, ocupado inteiramente pela com91 posição dos seus livros e pela esperança, impaciente, mas sempre desiludida, de que suscitassem à sua volta uma legião de discípulos e de sequazes. Em 1880 saiu a segunda parte de Humano, demasiado humano, que tem o título O viajante e a
sua sombra, que é um hino de esperança na morte. A morte, no entanto, não veio. Em 1881 Nietzsche publicou A aurora, livro em que se apresenta pela primeira vez abertamente as teses típicas da doutrina nietzscheana. Seguiu-se A gaia ciência (1882) em que se firma, vitoriosamente a esperança do filósofo de poder conduzir a humanidade a um novo destino. Meusche crê que pode fugir à solidão e encontrar a compreensão e o êxito. Mas sobrevèm um incidente que o desilude. Em 1882 conheceu uma jovem finlandesa de 24 anos, Lou Salomé, em quem julga ter encontrado um discípulo e uma companheira excepcionais. Mas ela recusou desposá-lo, e casou-se algum tempo depois com o amigo e discípulo de Nietzsche, Paulo Rée. Nietzsche sentiu-se abandonado e traído. Entre 1883 e 1884 compôs o seu poema filosófico Assim falou Zaratustra; mas este livro foi publicado apenas em 1891 quando Nietzsche já se afundara nas trevas da loucura. Em 1885 publicou Para além do bem e do mal, uma das suas obras mais significativas, mas que, como todas as outras, 'não teve êxito imediato. Seguiram-se: A genealogia da moral (1887), e, a seguir, O caso Wagner, O crepúsculo dos ídolos. O anticristo, Ecce homo, Nietzsche contra Wagner, opúsculos e libelos que Nietzsche compôs em 1883. O Ecce Homo 92 é uma espécie de autobiografia. Entretanto, Nietzsche estabelecera-se em Turim, "a cidade que se revelou, como a minha cidade". Ali continuou a trabalhar na sua última obra, a Vontade de poderio, que ficou incompleta. Mas em Fevereiro de 1889, num acesso de loucura, lançou-se ao pescoço de um cavalo maltratado pelo dono diante da habitação do filósofo, em Turim. Nietzsche permaneceu ainda durante dez anos imerso numa demência mansa, em que afloravam de quando em quando as reminiscências e as desilusões da sua vida atormentada. Num bilhete a Cosima Wagner escreveu: "Ariana, amo-te", e, numa outra carta, refere-se a Cosima-Ariana. Falou-se, por isso, num amor infeliz de Nietzsche por Cosima Wagner: mas na realidade, a vida e as obras do filósofo não mostram sinais (salvo o episódio isolado de Lou Salomé) de um autêntico amor. Os amigos que teve e em que tanto confiava foram-se afastando pouco a pouco da sua obra. E a sua fama começou precisamente, quando, afundado na loucura, já não podia dar-se conta dela. Nietzsche morreu a 25 de Agosto de 1900; os livros que publicara a suas expensas corriam agora o mundo. A obra de Nietzsche choca com demasiadas e demasiado arraigadas convicções e tradições para que não se tenha tentado atribuí-Ia inteiramente à sua loucura. Mas tão-pouco seria lícito considerar o fim infeliz da sua vida como puramente acidental e insignificante para a compreensão da sua obra. Isto não é lícito, porque Nietzsche entendeu e realizou a existencialidade da filosofia e, por isso, a
93 sua obra inscreve-se profundamente no ciclo da sua vida e dele deve receber a sua justa elucidação e o seu autêntico significado. A investigação filosófica, como ele a concebeu e praticou, é explicitamente subjectiva e autobiográfica, e daqui extrai a sua força e a sua validez. "0 desinteresse - diz Nietzsche (Die froeliche Wiss, § 345) -não tem valor nem no céu nem na terra; todos os grandes problemas exigem um grande amor e só espíritos rigorosos, claros e seguros, somente os espíritos sólidos, são capazes de tal. Uma coisa é um pensador tomar pessoalmente posição frente aos seus problemas para encontrar neles o seu destino, o seu infortúnio e também a sua maior felicidade, outra é aproximar-se desses problemas de modo "impessoal", isto é, abordá-los e atingi-los só com fria curiosidade. Neste último caso, nada pode resultar, já que uma coisa é certa: é que os grandes problemas, mesmo admitindo que se deixem alcançar, não se deixam apreender pelos débeis e pelos seres de sangue de rã". Além disso (Will zur Macht, pref.), Nietzsche declara querer ser, na sua investigação, absolutamente pessoal, dizer as coisas mais abstractas da maneira mais corporal e sanguínea, e considerar toda a história como se a houvesse vivido e sofrido pessoalmente, Não se pode deixar de ter em conta estas suas explícitas afirmações que encontram correspondência em toda a sua obra. O centro do filosofar de Meusche deve fornecer a chave não só das suas doutrinas fundamentais mas também do mosaico da sua vida e da dissolução da sua personalidade. 94 § 663. NIETZSCHE: DIONISO OU A ACEITAÇÃO DA VIDA O encontro de Meusche com Schopenhauer não se repercutiu apenas na primeira fase da vida de Nietzsche. Na realidade, o diagnóstico de Schopenhauer sobre o valor da vida foi o pressuposto constante da obra de Nietzsche, mesmo quando este rejeita o condena a atitude de renúncia e de abandono que daquele diagnóstico Schopenhauer extraíra. A vida é dor, luta, destruição, crueldade, incerteza, erro. É a irracionalidade mesma: não tem, no seu desenvolvimento, nem ordem nem finalidade, o acaso domina-a, os valores humanos não encontram nela nenhuma raiz. Duas atitudes são então possíveis frente à vida. A primeira é a da renúncia e da fuga, que dá lugar ao ascetismo; esta é a atitude que Schopenhauer extraiu da sua diagnose e é, segundo Nietzsche, própria da moral cristã e da espiritualidade comum. A segunda é a da aceitação da vida tal como é, com as suas características originárias e irracionais, e conduz à exaltação da vida e à superação do homem. Esta é a atitude de Nietzsche. Toda a obra de Meusche visa a esclarecer e a defender a aceitação total e entusiástica da vida. Dioniso é o símbolo divinizado desta aceitação, e Zaratustra o seu profeta. Dioniso é "a afirmação religiosa da vida total, não renegada nem dilacerada". É a exaltação entusiástica do mundo tal como ele é, sem diminuição, sem excepção e sem escolha: exaltação infinita da infinidade da vida. O espírito dionisíaco é diametral-
95 mente oposto à aceitação resignada da vida, à atitude de quem vê nela a condição negativa destes valores de bondade, de perfeição, de humildade, que são a sua negação. É a vontade orgiástica da vida na totalidade da sua potência infinita. Dioniso é o deus da embriaguez e da alegria, o deus que canta, ri e dança; ele execra toda a renúncia, toda a tentativa de fuga frente à vida. Isto quer dizer, segundo Nietzsche, que a aceitação integral da vida transforma a dor em alegria, a luta em harmonia, a crueldade em justiça, a destruição em criação. Renova profundamente a tábua dos valores morais. Nietzsche crê que todos os valores fundados na renúncia e na diminuição da vida, todas as chamadas virtudes que tendem a mortificar a energia vital, e a destroçar e a empobrecer a esperança e a vida, degradam o homem e, por conseguinte, são indignas dele. Nietzsche dá à virtude o significado amoral que ela teve no Renascimento italiano. É virtude toda a paixão que diz sim à vida e ao mundo: "0 orgulho, a alegria, a saúde, o amor sexual, a inimizade e a guerra, a veneração, as atitudes belas, as boas maneiras, a vontade inquebrantável, a disciplina da intelectualidade superior, a vontade do poder, a gratidão à terra e à vida - tudo quanto é rico e quer gratificar a vida, dourá-la, eternizá-la e divinizá-la - todo o poder destas virtudes que transfiguram, tudo o que aprova, afirma e age por afirmação" (Wille zur Macht, § 479). Estas paixÕes que já nada têm de primitivo, porque são o regresso consciente do homem às fontes originárias da vida, constituem a nova tábua dos valores fundada na aceitação infinita da vida. Nietzsche põe crua96 mente o dilema entre a moral tradicional e a que ele defende: mas, na realidade, este dilema está incluído no outro, que é o solo fundamental, entre a aceitação da vida e a renúncia à vida, entre o sim e o não frente ao mundo. Somente o acto da aceitação, a escolha livre e jovial do que a vida é na sua força primitiva, determina a transfiguração dos valores e orienta o homem para a exaltação de si mesmo, e não para o abandono e a renúnciaO carácter romântico da atitude de Nietzsche é evidente nesta infinitização ou divinização da vida. Dioniso ignora e desconhece todos os limites humanos. A vida é, na verdade, essencialmente dor e toda a arte, como toda a filosofia, pode ser considerada como uma medicina e um auxilio à vida que cresce e luta. Mas aqueles que sofrem de um empobrecimento da vida pedem à arte e à filosofia a calma e o silêncio ou então a embriaguez e o atordoamento, e esses vão ao encontro do que Nietzsche chama o romantismo filosófico e artístico, o romantismo de Schopenhauer e de Wagner. O homem dionisíaco possui, ao invés, uma superabundância de vida e tende para uma visão trágica da vida interior e exterior. Dioniso não só se compraz no espectáculo terrível e inquietante, senão que ama o fado terrível em si mesmo e o luxo da destruição, da desagregação, da negação; a malvadez, a insânia, a brutalidade, parecemlhe, de qualquer modo, permitidas por uma superabundância vital que é capaz de converter num
país fértil qualquer deserto (Die froeliche Wiss, § 730). Por isso, nos males e horrores da vida, Dioniso não distingue um limite insuperável que encerre o homem 97 em confins bem definidos, mas antes o sinal de uma riqueza superior a todos os limites, a infinidade de uma força que se expande para lá de todos os obstáculos e que fecunda e transfigura tudo. Pelo mesmo motivo, Dioniso rejeita e afasta a ideia da morte. Os homens imaginam que o passado não é nada ou é pouca coisa e que o futuro é tudo. Cada qual quer ser o primeiro no futuro e, todavia, a morte e o silêncio da morte são as únicas certezas que todos temos em comum. "Como é estranho-nota Nietzsche (Ib., § 278)que esta única certeza, esta única comunhão seja incapaz de agir sobre os homens e que estes estejam tão longe de sentir a fraternidade da morte". E, contudo, o próprio Nietzsche rejeita e anula esta fraternidade, rejeitando a ideia da morte. "Apraz-me verificar que os homens se recusam absolutamente a conceber a ideia da morte e quereria contribuir para tornar ainda mais digna de ser pensada a ideia da vida". Rejeitando a ideia da morte rejeita-se a marca mais evidente da finitude humana. Dioniso é o símbolo da aceitação da vida e também o símbolo da negação de todos os limites humanos. § 664. NIETZSCHE: A TRANSMUTAÇÃO DOS VALORES Na transmutação dos valores, Nietzsche vê a sua missão, o seu destino. "A minha verdade -diz ele (Ecce Homo, § 4) - assusta porque até agora se chamou verdade à mentira. Inversão de todos o valores; eis a minha fórmula para um acto de supremo reconhecimento de si, de toda a humanidade, acto que em 98 mim se tomou carne e génio. O meu destino exige que eu seja o primeiro homem honesto, que eu me sinta em oposição às mentiras de vários milénios". A inversão dos valores apresenta-se na obra de Nietzsche como uma crítica à moral cristã, reduzida por ele substancialmente à moral da renúncia e do ascetismo. A moral cristã é a revolta dos indivíduos inferiores, das classes submetidas e escravas, à casta superior e aristocrática. O seu verdadeiro fundamento é o ressentimento: o ressentimento daqueles a quem a verdadeira reacção, a da acção, é interdita, e que encontram compensação numa vingança imaginária". Enquanto toda a moral aristocrática nasce de uma afirmação triunfal de si, a moral dos escravos opõe desde o princípio um não ao que não faz parte dela mesma, ao que é diferente de si e constitui o seu não-eu; e é este o seu acto criador. Esta inversão do olhar valorativo, este ponto de vista que se inspira necessariamente no exterior, em vez de se fundar em si mesmo, é próprio do ressentimento (Genealogie der Moral, 1, § 10). Os fundamentos da moral cristã: o desinteresse, a abnegação, o sacrifício de si, são fruto do ressentimento do homem débil frente à vida. É a vida que se põe contra a vida, a fuga perante a vida. O ideal ascético é um expediente para conservar a vida no estado de degeneração e decadência a que o reduziu a frustrada aceitação da mesma. E os puros de coração, as almas belas que se vestem poeticamente da sua virtude, são, também, seres ressentidos,
que albergam dentro de si um subterrâneo espírito de vingança contra os que encarnam a riqueza e a potência da vida. A própria ciência não está longe do 99 ideal ascético do cristianismo pela sua adoração à verdade objectiva, pelo seu estoicismo intelectual que proíbe o sim e o não frente à realidade, pelo seu respeito aos factos e a renúncia à interpretação deles. A crença na verdade objectiva é a transformação última do ideal ascético. O homem verídico, verídico no sentido extremo e temerário que a fé na ciência pressupõe, afirma assim a fé num mundo diverso do da vida, da natureza e da história, e na medida em que afirma este mundo diferente, deve negar o outro (Die froeliche Wiss, § 344). O resultado é também aqui o empobrecimento da energia vital: a dialéctica torna o lugar do instinto, a gravidade imprime a sua marca no rosto e nos gestos como sinal infalível de uma evolução mais penosa da matéria, e de um afrouxamento das funções vitais (Genealogie der Moral, 3, § 25). O tipo ideal da moral corrente, o homem bom, existe apenas à custa de uma mentira fundamental; já que fecha os olhos perante a realidade e não quer, de forma alguma, ver como ela é feita: de facto, a realidade não é de molde a estimular, a cada instante, os instintos de benevolência nem sequer a permitir a cada momento uma intervenção bem intencionada e estúpida. O resultado último da concepção do mundo fundada na não aceitação da vida é o pessimismo, que, na sua expressão final, é o niilismo. Nega-se a vida porque inclui a dor e o mundo é desaprovado em benefício de um mundo ideal em que se repõem todos os valores antivitais. A estas noções do ascetismo, contrapõe Nietzsche as mais vigorosas e entusiásticas afirmações. Tudo o 100 que é terrestre, corpóreo, anti-espiritual, irracional, é exaltado por Nietzsche com a mesma violência com que a moral ascética o condena. "0 meu eu-diz Zaratustra - ensinou-me um novo orgulho e eu ensino-o aos homens: não enterreis a cabeça na areia das coisas celestes, mas levantai-a altivamente, uma cabeça terrestre que cria o sentido da terra. Eu ensino aos homens uma vontade nova: seguir voluntariamente a via que os homens seguiram cegamente, aprovar esta vida e não procurar fugir-lhe cegamente, como' os doentes e "os decrépitos". A existência do homem é uma existência inteiramente terrestre: o homem nasceu para viver na terra e não há outro mundo para ele. A alma, que deveria ser o sujeito da existência ultra-terrena, é insubsistente: o homem é apenas corpo. "Eu sou inteiramente corpo e nada mais, diz Zaratustra: a alma é apenas uma palavra que indica uma partícula do corpo. O corpo é um grande sistema de razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor". O verdadeiro eu do homem é o corpo, a que Nietzsche chama "a grande razão", em que o homem consubstancia o seu eu singular. A verdadeira subjectividade do homem não é a que ele indica com o monossílabo eu, mas o si mesmo que é a um
tempo corpo e razão. Encontra-se também em Nietzsche uma crítica do princípio cartesiano, que é uma das mais radicais. "Dizer que quando se pensa é mister que haja algo que pense, é - diz Nietzsche simplesmente a formulação do hábito gramatical que à acção junta um agente. Se se reduz a proposição a isto: "Pensa-se, logo existem pensamentos", ela re101 sultará numa simples tautologia e "a realidade do pensamento" fica excluída, o que leva a reconhecer apenas a aparência do pensamento. Mas Descartes queria que o pensamento fosse, não uma realidade aparente, mas um em si" (Wille zur Macht, § 260). A reivindicação da natureza terrestre do homem está implícita na aceitação total da vida que é própria do espírito dionisíaco. Em virtude de tal aceitação, a terra e o corpo do homem transfiguram-se: a terra deixa de ser o deserto em que o homem se encontra desterrado e converte-se na sua residência jubilosa; o corpo cessa de ser prisão ou túmulo do homem e converte-se no seu verdadeiro eu, A transfiguração dos valores é entendida por Nietzsche como a anulação dos limites, como a conquista de um domínio absoluto do homem sobre a terra e o seu corpo, como a eliminação do carácter problemático da vida e de toda a perda ou transvio a que o homem possa estar sujeito. § 665. NIETZSCHE: A ARTE Ao espírito dionisíaco se vincula a arte, que assim se torna para Nietzsche a expressão mais elevada do homem. Na sua primeira obra, O nascimento da tragédia (1872), Nietzsche reconhecera como fundamento da arte a dualidade do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, o primeiro dos quais domina a arte plástica, que é harmonia de formas, e o segundo a música, que é, ao invés, destituída de forma por ser embriaguez e exaltação entusiástica. Foi graças 102 ao espírito dionisíaco, afirma Nietzsche, que o povo grego logrou suportar a existência. Sob a influência ZD da verdade contemplada, o grego via por toda a parte o aspecto horrível e absurdo da existência. A arte veio em seu auxílio, transfigurando o horrível e o absurdo em imagens ideais, em virtude das quais a vida se tomou aceitável. Tais imagens são o sublime, com o qual a arte domina e sujeita o horrível, e o cómico, que liberta da repugnância do absurdo (Die Geburt der Trag, § 7). A transfiguração foi realizada pelo espírito dionisíaco, modulado e disciplinado pelo espírito apolíneo, e deu lugar, respectivamente, à tragédia e à comédia. O pessimismo, transfigurado pela arte, obstou a que os Gregos fugissem perante a vida.
Isto acontecia na juventude do povo grego, depois, com o aparecimento de Sócrates e do platonismo, o espírito dionisíaco foi combatido e perseguido, e foi assim que começou, com a renúncia à vida, a decadência do povo grego. As subsequentes especulações de Meusche sobre a arte confirmam a estreita conexão desta com o espírito dionisíaco. A arte é condicionada por um sentimento de força e de plenitude, que se manifesta na embriaguez. Não são estados artísticos os que dependem de um empobrecimento da vontade: a objectividade, a abstracção, o empobrecimento dos sentidos, as tendências ascéticas. O feio, que é a negação da arte, está ligado a tais estados: "De cada vez que nasce a ideia de degeneração, de empobrecimento da vida, de impotência, de decomposição, de dissolução, o 103 homem estético reage com um não" (Wille sur Macht, § 357). A beleza é a expressão de uma vontade vitoriosa, de uma coordenação mais intensa, de uma harmonia de todas as vontades violentas, de um equilíbrio perpendicular infalível. "A arte -diz Nietzsche - corresponde aos estados de vigor animal. Por um lado, é o excesso de uma constituição florescente que se desentranha no mundo das imagens e dos desejos; por outro, é a excitação das funções animais mediante as imagens e os desejos de uma vida intensificada, uma sobrevalorização do sentimento da vida e um estimulante desta". É essencial à arte a perfeição do ser, o cumprimento e orientação do ser para a plenitude; a arte é, essencialmente, a afirmação, a bênção, a divinização da existência. O estado apolíneo não é mais do que o resultado extremo do inebriamento dionisíaco; uma espécie de simplificação e concentração da embriaguez mesma. O estilo clássico representa este repouso e é a forma mais elevada do sentimento de poder. Isto não implica que na arte o homem se abandone sem freio aos seus instintos. Se o artista não quer ser inferior à sua missão, deve dominar-se e adoptar um modo de vida sóbrio e casto. É precisamente o seu instinto dominante que exige isto dele e não lhe permite dispersar-se de maneira a permanecer inferior às exigências da arte (Wille zur Macht, § 367). Em geral, um certo ascetismo, uma renúncia aceite de bom grado, dura e serena, faz parte das condições favoráveis de uma espiritualidade superior (Genealogie der Moral, 3, § 9). " Reconhece-se o 104 filósofo - diz Nietzsche (Ib., 3, § 8) - por evitar três coisas brilhantes e ruidosas: a glória, os princípios e as mulheres, o que não quer dizer que elas não venham ter com ele. Foge da luz demasiado viva: foge também do seu tempo e à luz que ele irradia. Nisso assemelha-se à sombra: quanto mais o sol baixa, mais a sombra cresce". Mas nada parece a Nietzsche tão estéril como a fórmula da arte pela arte e o chamado desinteresse estético. Recordo a frase de Stendhal que definiu a beleza como
"uma promessa de felicidade" (Ib., 3, § 6). O pessimismo artístico é a contrapartida exacta do pessimismo moral e religioso. Este sofre com a corrupção do homem e da vida. A arte, ao invés, considera belo também o que o instinto de impotência considera como digno de ódio, isto é, feio. A arte aceita o que há de problemático e de terrível na vida, é a mais total e entusiástica afirmação da vida. "A profundidade do artista trágico consiste em que o seu instinto estético abarca as consequências longínquas e não se detém nas coisas mais próximas; afirma, a economia em grande, a economia que justifica o que é terrível, mau e problemático e não se contenta apenas em justificá-lo" (Will zur Macht, § 374). Nietzsche repete aqui, a seu modo, a ide.-*a central da estética de Kant: a arte transforma, com um acto de aceitação, a debilidade humana em força, a impotência em poder, a problematicidade em certeza. Mas para Kant a arte confirma e consolida assim a finitude do homem, da qual é uma das manifestações positivas fundamentais. Para Nietzsche, a arte abre ao homem o infinito do poder e da exaltação de si. 105 § 666. NIETZSCHE: O ETERNO RETORNO "Tu és profeta do eterno retomo, esse é o teU destino", dizem a Zaratustra os seus animais. E, na realidade, o eterno retomo é a fórmula simples e completa que abarca e reduz à unidade todos os aspectos da doutrina de Nietzsche, e exprime igualmente o destino do homem e o do mundo. O eterno retorno é o sim que o mundo diz a si mesmo, é a auto-aceitação do mundo. O eterno retorno é a expressão cósmica daquele espírito dionisíaco que exalta e abençoa a vida. O mundo apresenta-se a Nietzsche desprovido de todo o carácter de racionalidade. "A condição geral do mundo é, para toda a eternidade, o caos, não como ausência de necessidade, mas como falta de ordem de estrutura, de forma, de beleza, de sabedoria e de todos os nossos esteticismos humanos" (Die frofiche Wiss, § 109). O mundo não é perfeito nem belo nem nobre e não admite nenhuma qualificação que possa referir-se de algum modo ao homem. Os nossos juízos estéticos e morais não o concernem, nem têm qualquer finalidade. Se o devir do mundo devesse tender a um término definitivo, a uma condição final de estabilidade, ao ser ou ao nada, esse termo definitivo devia ter já sido alcançado; esta é a única certeza que temos acerca do mundo, segundo Nietzsche (Wille zur Macht, § 384). Deste modo se exclui do mundo todo o carácter racional: o acaso domina-o. "Um pouco de razão, diz Zaratustra, um grão de sabedoria disperso de estrela em estrela, este fermento mistura-se a todas as coisas; mas só graças à loucura a 106 sabedoria se mistura a todas as coisas. Um pouco de sabedoria é possível; mas eu encontrei em todas as coisas esta certeza feliz: elas preferem dançar sobre os pés do acaso". Mas esta explosão de forças desordenadas, este "monstro de forças sem princípio nem fim", este mundo tem em si uma necessidade que é a sua vontade de se reafirmar e, por isso, de retomar eternamente a si mesmo. Tal mundo "afirma-se a si mesmo, até na sua uniformidade que permanece a mesma no curso dos anos; bendiz-se a si mesmo, porque é o que deve eternamente regressar, porque é o devir que não conhece saciedade, nem
desgosto, nem fadiga" . Este mundo dionisíaco da eterna criação de si e da eterna destruição de si, não tem outra finalidade senão a "finalidade do círculo"; não tem outra vontade se não a do círculo que tem a boa vontade de seguir o seu próprio caminho (Ib., § 385). A necessidade de devir cósmico não é, portanto, mais do que a vontade de reafirmação. Desde a eternidade, o mundo aceita-se a si mesmo, e repete-se. O eterno retomo é uma verdade terrível que pode destruir o homem ou exaltá-lo: frente a ele medese a força do homem, a sua capacidade de se superar. O pensamento de que esta vida, tal como a vivemos, terá de ser revivida ainda outra vez e uma quantidade inúmera de vezes, que não haverá nada de novo e que tanto as coisas maiores como as mais pequenas voltarão, para nós, na mesma sucessão e na mesma ordem, este pensamento é tal que pode lançar no desespero o homem aparentemente mais forte. E, contudo, não existe outra alternativa, a não ser que se feche os olhos 107 ante esta verdade sobrehumana: o homem deve conformar a sua vida ao enigma de Dioniso. Cumpre fazer muito mais do que suportar tal pensamento: é mister, diz Nietzsche, entregar-se ao anel dos anéis. Cumpre fazer o voto do regresso de si mesmo com o anelo da eterna bênção de si mesmo e da eterna auto-afirmação; cumpre alcançar a vontade de querer que retorne tudo o que já aconteceu, de querer no futuro tudo o que acontecerá (Ib., § 385). É preciso amarmos a vida e a nós mesmos para lá de todos os limites, a fim de não podermos desejar outra coisa senão esta eterna e suprema confirmação (Die froeliche Wiss., § 341). O mundo oferece ao homem o espelho em que deve mirar-se. O espírito dionisíaco é o espírito do universo inteiro, ainda antes de ser o que leva o homem à superação de si. § 667. NIETZSCHE: "AMOR FATI" "A fórmula de grandeza do homem - diz Nicusche - é amor fati; não querer nada de diverso daquilo que é, nem no futuro, nem no passado, nem por toda a eternidade. Não só suportar o que é necessário, mas amá-lo". Este amor liberta o homem da servidão do passado, uma vez que por ele o que foi se transforma no que eu queria que fosse. A vontade não pode fazer com que o tempo volte para trás: por isso, o passado se lhe impõe e a faz prisioneira. Deste cativeiro é expressão a doutrina de que tudo o que passou merecia passar e que o tempo exerce sobre as coisas uma justiça punitiva infalível. O espírito do ressentimento preside a estas doutrinas que sepa108 ram a existência do tempo e vêem neste o castigo e a maldição da existência. Zaratustra afirma, ao invés, a criatividade da vontade com respeito ao tempo. "Tudo quanto foi é fragmento, enigma, acaso terrível, até que a vontade criadora afirme: eu quis que fosse assim, eu quero que assim seja, eu quererei que seja assim". Por esta aceitação o passado cessa de ser um vínculo da vontade e a vontade compreende o passado no ciclo do seu poder. Na segunda das Considerações intempestivas ("Da utilidade e dos inconvenientes dos estudos históricos para a vida", 1873), Nietzsche estabelecera um antagonismo entre a vida
e a história. Um fenómeno histórico, estudado de modo absoluto e completo, reduz-se a um fenómeno objectivo e morto para aquele que o estuda, porque este reconheceu a loucura, a injustiça, a paixão cega e, em geral, todo o horizonte obscuro e terrestre do próprio fenómeno. Por outro lado, Nietzsche afirmara que a vida tem necessidade dos serviços da história. "A história pertence ao ser vivente sob três aspectos: pertence-lhe porque é activo e aspira; porque conserva e venera; porque sofre e necessita de libertação. A esta trindade de relações correspondem três espécies de história e podem-se distinguir no estudo da história um ponto de vista monumental, um ponto de vista arqueológ*co e um ponto de vista crítico". Que os grandes momentos da luta dos indivíduos formem uma só cadeia, que as manifestações mais altas da humanidade se unam através dos milénios, que o que existe de mais elevado no passado possa ainda reviver e avultar, tal é a ideia que serve de fundamento à história mo109 numental. Em virtude deste tipo de história, o homem activo, o lutador, encontra no passado os mestres, os exemplos, os consoladores de que tem necessidade e que o presente lhe nega. Deste modo, conclui que a grandeza que aconteceu foi decerto possível, e por isso será também possível no futuro. A história arqueológica nasce, ao invés, quando o homem se detém a considerar o que foi convencionado e admirado no passado, a mediocridade constitutiva da vida quotidiana. A história arqueológica dá às conclusões modestas, rudes e mesmo precárias da vida de um homem ou de um povo, um sentimento de satisfação, radicando-a no passado, mostrandoa como a herdeira de uma tradição que a justifica. Mas para poder viver, o homem tem também necessidade de romper com o passado, de o aniquilar, para se refazer e se renovar. É para isso que serve a história crítica que arrasta o passado ao tribunal, instrui severamente um juízo contra ele e, por fim, o condena. Todo o passado é, de facto, merecedor de condenação porque, nas coisas humanas, a debilidade e a força andam sempre unidas. Quem condena não é verdadeiramente a justiça, mas a vida; mas, o mais das vezes, a sentença seria a mesma se a justiça em pessoa a tivesse pronunciado. Fora destes serviços que a história pode prestar à vida, Nietzsche julgava o excesso dos estudos históricos nocivo à vida e sobretudo ruinoso para as personalidades fracas, ou seja, não bastante vigorosas para valorizarem a história em função de si próprias e levadas por isso a modelarem-se sobre o passado. Com efeito, concebia ainda a vida como uma potência não histórica, Ho à qual a consideração histórica fosse estranha e subordinada. O eterno retorno e o amor lati mudaram implicitamente este ponto de vista. A aceitação total da vida implica, como se viu, a aceitação do passado, a vontade que ele seja tal como foi. No acto desta aceitação, a vida mesma se põe como historicidade, e se liga ao passado, assumindo-o voluntariamente. § 668. NIETZSCHE: O SUPER - HOMEM Se a doutrina do eterno retorno é a fórmula central, cósmica, do filosofar de Nietzsche, a do super-homem é o seu termo final, a sua última palavra. A aceitação da vida não é, para Nietszche, a aceitação do homem. Este é o ponto posto a claro pela espera messiânica do
super-homem defendida por Zaratustra. "0 homem deve ser superado, diz Zaratustra. O super-homem é o sentido da terra... O homem é uma corda tensa entre o animal e o homem, uma corda sobre o abismo. O que existe de grande no homem é que ele é uma ponte e não um termo. O que o toma digno de ser amado é ele ser uma ponte e um pôr-de-sol". O super-homem é a expressão e a encarnação da vontade do poder. Não subsiste, afirma Zaratustra contra Schopenhauer, uma vontade de vida. O que não vive não pode querer, mas aquilo que vive deseja algo mais que a vida, e na base de todas as suas manifestações está a vontade de poder. A vontade de poder determina as novas valorações, que são o fundamento da existência sobrelmmana. 111 O homem deve ser superado: isto quer dizer que todos os valores da moral corrente, que é uma moral de rebanho e tende ao nivelamento e à igualdade, devem ser transmudados. A primeira característica do super-homem é a sua liberdade. Ele deve libertar-se dos limites habituais da vida e renunciar a tudo o que os outros prezam: deve pôr todo o seu empenho em voar livremente, sem temor, por cima dos homens, dos costumes das leis e das apreciações tradicionais (MenschUches, All zumenschUches, § 34). O seu espírito deve abandonar toda a fé , todo o desejo de certeza e habituar-se a firmar-se na corda bamba de todas as possibilidades (Die froeliche Wiss., § 37). A sua máxima fundamental é: torna-te no que és -não no sentido da concentração numa escolha ou numa tarefa única, mas no sentido da máxima diferenciação dos demais, de se encerrar na própria excepcionalidade, na busca de uma solidão inacessível. A liberdade interior própria do super-homem é uma riqueza de possibilidades diversas, entre as quais ele não escolhe, porque as quer dominar e possuir todas. Daqui nasce a renúncia à certeza, que é, pelo contrário, limitação e renúncia às diversas possibilidades do erro; daí, também, a profundidade do super-homem, a impossibilidade de centrar a sua vida interior, de que nunca se atinge mais do que a máscara. "Tudo quando é profundo diz Nietzsche (Jenseits von Gut und Bõse, § 40) gosta de encobrir-se; as coisas mais profundas odeiam a imagem e a semelhança". O superhomem tem "fundos e duplos fundos que ninguém conseguiria percorrer até ao fim". Esta essência misteriosa do 112 super-homem, este insondável segredo da sua interioridade, em que Nietzsche vê o signo da profundidade super-humana, não é talvez o indício da falta de um empenho e de uma missão que o liguem aos outros homens e o tornem portanto humanamente reconhecível? O super-homem é o filósofo do futuro. Os obreiros da filosofia, como Kant e Hegel, não são os verdadeiros filósofos; os verdadeiros filósofos são dominadores e legisladores: dizem
"como deve ser", preestabelecem a meta do homem e para isso utilizam os trabalhos preparatórios de todos os obreiros da filosofia e de todos os dominadores do passado. "Impulsionam para o futuro a mão criadora e tudo quanto existe e existiu se toma para eles um meio, um instrumento, um martelo. O seu conhecer equivale a criar, o seu criar a legiferar, o seu querer a verdade ao desejo de poder" (Jenseits, § 211). As suas virtudes nada têm a ver com as dos outros, podem suportar a verdade, a inteira e cruel verdade sobre a vida e sobre o mundo; e assim podem aceitar verdadeiramente a vida e o mundo. § 669. NIETZSCHE: A PERSONALIDADE IMPOSSíVEL A filosofia de Nietzsche é a filosofia de um grande romântico. A rede do infinito manifestase em todas as suas atitudes, em todos os elementos da sua doutrina, em cada página dos seus escritos. Mas Nietzsche quis atingir e realizar o infinito para o homem e no 113 homem. Quis que o homem reabsorvesse em si mesmo e dominasse o infinito poder da vida. Por isso a aceitação da vida e do mundo não é para Nietszche a aceitação do homem como criatura finita: não pretende fundamentar as positivas capacidades humanas na sua própria limitação, senão que procura transferir para o homem a infinidade e a limitação do seu poder. Tal é a característica do espírito dionisíaco do qual derivam todas as características da atitude e da obra de Nietzsche. Em primeiro lugar, procede daqui a fórmula cósmica da aceitação de si: o eterno retorno. A reafirmação de si, de que nasce a transmutação dos valores e o super-homem, não é, para Nietszche, algo especificamente humano. É a necessidade que preside ao devir do mundo e em virtude da qual o próprio mundo retoma continuamente sobre os seus passos, repetindo eternamente os mesmos acontecimentos. Ao aceitar a vida, o homem não faz mais do que olhar-se no espelho do mundo que se reafirma, se exalta e se bendiz a si mesmo. Esta fórmula generalizadora, que diminui o significado original da existência humana e a responsabilidade da livre reafirmação do homem, tem um pressuposto cosmológico: a crença (que chega a Nietzsche através de Schopenhauer) na identidade substancial do homem e do mundo, e, por conseguinte, na absoluta homogeneidade de todos os acontecimentos do mundo. A doutrina de Nietszche tem, por consequência, um carácter cosmológico, e não teológico. O uso de símbolos ou de procedimentos religiosos, a polémica anticristã que condiciona de algum modo a orientação da sua doutrina e outros dispersos elementos desta doutrina que nos fazem pensar numa espécie de nostalgia religiosa de Nietzsche ou num seu novo anúncio teológico são, na realidade, os aspectos decorrentes de uni naturalismo cosmológico, segundo o qual a iniciativa do nascimento e da destruição do inundo, na sua eterna mudança, é devida ao próprio mundo; ou seja, à vontade de poder que é a natureza dele. Por outro lado, esta mesma orientação cosmológica torna inútil e insignificante a filosofia
como investigação. O filosofar não é, para Nietzsche, um esforço paciente e metódico que se autodisciplina na razão, mas o fruto de uma vontade irracional, de uma explosão orgiástica de entusiasmo. Em lugar de Sócrates, o símbolo da filosofia como investigação, elege Dioniso, como símbolo da infinidade da vida. A sua obra mais significativa, Zaratustra, é tudo menos um livro de investigação: é poesia, profecia, esperança lírica e entusiástica, e, como tal, revela já a inspiração do filósofo. A máxima torna-te no que és exclui a busca de si: prescreve somente um amor de si levado à exasperação, Sendo assim, o acto de auto-afirmação renuncia a toda a justificação e fundamentação autónoma: torna-se num puro facto que se opõe ao outro facto da não aceitação de si, sem que possa pretender a qualquer superioridade de valor. Mas sobre estes fundamentos, a unidade da pessoa é impossível. A unidade da pessoa é a unidade, de uma missão que transcende o indivíduo e na qual este encontra a razão da sua solidariedade com os outro homens, Toda a finalidade humana é investigação e 115 trabalho metódico, autolimitação, reconhecimento do valor e da dignidade dos outros. Sem um fim determinado, em que o homem concentre e reconduza à unidade a multiplicidade dos seus aspectos e das suas relações com o mundo e com os outros, o indivíduo, o eu, a pessoa, não são mais do que vazias generalidades, que não podem concretizar-se numa substância vivente. Contra tal impossibilidade veio esbarrar o próprio Nietzsche. A tentativa de divinizar o homem, de o transformar, de criatura limitada e necessitada como é, num ser autosuficiente no qual a vida realizasse o infinito do seu poder, sofreu um golpe decisivo na personalidade mesma daquele que a empreendeu. Durante toda a sua vida, Nietzsche procurou conquistar os valores que constituíam para ele as características do superhomem: a boa saúde e a força física, a ligeireza do espírito, o entusiasmo vital, a riqueza e energia interna, a compreensão e amizade dos iguais, o êxito do dominador. Tudo lhe foi negado, como lhe foi negado por último a unidade e o equilíbrio da sua própria pessoa. A trágica conclusão da sua vida é um ensinamento não menos fecundo que as grandes palavras que ele soube encontrar para subtrair o homem à existência banal e restituir-lhe o sentido da excepcionalidade da grandeza e do risco. Mas a excepção, quando é verdadeiramente tal, não quer mais do que referir-se à regra, e todo o objectivo excepcional exige a humildade e a compreensão dos demais. Toda a grandeza é tal no homem e pelo homem, não é pretensão de uma impossível superação do próprio ho116 inem. E o risco é inevitável na condição humana, mas em vez de ser desafiado e exaltado, há que ser reconhecido e enfrentado. NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 662. A edição completa das obras de Nietszche foi publicada pela irmã E. FOERSTERNIETZSCHE; W@-,rke, 15 vol., Leipzig, 1895-1N1. Uma reprodução desta edição em formato mais pequeno foi publicado em Leipzig, 1899-1912 ("Kleine Ausgabe"). Outra edição ainda mais manejável foi publicada em Leipzig em 1906 em 10 vol. ("Taschenausgabe"), a que se seguiu o volume X1 (1913). Msta edição foi seguida por nós no texto. Outra edição "clãssica" apareceueni Leipzig em 3 vol., 1919. -Outra edição em .19 vol. é a "Musarion", Munique, 1923-29, e uma nova edição está em curso ao cuidado do Nietzsehe-Archiv de Weimar, 1933 sgs. Ge~melte Briefe, 5 vol., Berlim, 1900-09. Sobre a vida de Nietszche: E. FoERsTER-NIFTZSCHF,, D" Leben F.N., 3 vol, Leipzig, 1895-1904; 1d., Der junge N., Leipzig 1912; Der c@ns"me N., Leipsig, 1913; Lou AND~SALOMÉ F.N., Viena, 1994 (trad. frane., Paris, M2); GEORGES WALTZ, La vie de P.N. dlaprès sa correspow~e, Paris, 1923; e as monografias citadas a seguIr. A monografia fundamental é a de CH. ANDLER, N., sa vie et sa peméc, 6 vol., Paris, 192031. A obra de E. BERTRAm, N. Vermwh einer Mythologie, Berlim, 1919 (tradução frane., Paris, 1923) subtrai N. à história para o projectar no simbolo, e na lenda. A monogra.fía de K. JASPERS, N. Einführung in das Verstandnis sei?ws Phiiosophi~, Berlim, 1936, é uma inteijwetaçFio nos termos da filosofia da existència de Jaspets. 117 A. RMIL, F.N. der Kunster und der Dc.,rker, Estugarda, 1897 E.; ZOCCOLI, N., Modena, 1898; H. LiGHTENBERG, La phil. de N., Paris, 1898; P. DEuSSEN, Erinnerugen an F.N., Leipzig, 1901; J. DE GAULTIER, N. et ta Réforme soc~ Paris, 1904; H. VAIHNGER, N. aIs Philosoph., Berlim, 1902; C. A. BERNOULILLI, Franz Overbeck mi-d F.N., 2 volumes, lena 1908; MENCKEN, The philosophy of F.N., Londres 1909; M. A. MUGGE, F.N. His Life and Work, Londres, 1909; M. A. FRIEMANDER, F.N., Leipzig, 1911; R. M. 3~, N., Munique, 1912; C. BRANDES, F.N., Londres, 1914; A. WOLF, The Philosophy of N., Londres, 1915; H. RõMER, N., 2 vol. Leipzig 1921; F. KõHLER, F.N., Leipzig; C. Sc~pF, N., Gottinga, 1922; A. VETTER, N., Munique, 1926; C. LESSING, N., Leipzig, 1931; G. BLANQuis, N., Paris, 1933; T. MAULMER, N., Paris, 1933; H. LEF£BVEE, N., Paris, 1939; E. HEINTEL, N.s. System in seinem Grundbegriffe, Leipzig, 1940; K. LIEBMANN, F.N., Munique, 1943; W. A. KAUFMANN, N., Priweton, 1950-1956; A. GRESSON, N., Paris, 1953; R. BLUNcK, F.N., Basel, 1953; HEIDEGGER, N., 2 vol., Pfüllingen, 1961. § 663. Sobre Nietzsche e Schopenhaucr: G. SimMEL, Schope~er und N., Berlim, 1907. Sobre o romantismo de Nietzsche: K JOEL; N. und die Roma-ntik, Jena, 1950; ANDLER, op. Cit, I e VI. § 664. P. MESS, N. aIs Gesetzgeher. Leipzig, 1931, E. M=, N.s. Wertphilosophie, Heidelberga, 1932.
§ 665. J. ZEITLER, N.s. Aesthetic, Leipzig, 1900; E. SEILLÈRE, Les idées de N. s-ur Ia musique, Paris, 1910; H. ToPFER, Deutung und Wertung der Kunst bei Schopenhauer und N., Dresden, 1933. § 666. A. FOUILLÉE, in "Revue philosophique", 1909. § 668. A. FouILLÉE, N. et 1'imn@oralisme, Paris, 1902. 118 § 669. Sobre a doença de Nietzsche: E. F. PODACII, N.s Zusabmenbruch, Heidelberga, 1930 (trad. franc., Paris, 1931): ID., Gestalten um N., Berlim, 1932; P. COHN, Um N.s. Untergang, Hannover, 1931; G. VORBERG, Ueber N.s Krankheit und Zusamenbruch, Berlim, 1934. Sobre o carácter cosmológico da doutrina de Nietzsche: K. LoWITII, N.s. Philosophie der Ewigen Wiederkehr des Gleichen, Estugarda, 1956; ID., in Pascal e Nietzsche, "Archivio di MIosofia", 1962, p. 107, Sg8. 119 SÉTIMA PARTE A FILOSOFIA NO SÉCULO XXX E XX 1 O ESPIRITUALISMO § 670. ESPIRITUALISMO: NATUREZA E CARACTERISTICAS DO ESPIRITUALISMO A identidade fundamental entre filosofia e ciência, que é a palavra de ordem do positivismo, deu origem à crise, a partir dos meados do século XIX, do próprio conceito de filosofia. Em virtude desta identidade a filosofia fica sem na-da que fazer se prescindir dos conhecimentos positivos que lhe são dados pela ciência e pelos problemas a que tais conhecimentos dão origem. A metafísica tradicional com a sua teologia, a sua cosmologia e a sua psicologia, fundadas em noções e procedimentos que nada têm a ver com os objectos e os procedimentos da ciência, parecia definitivamente fora de jogo e suplantada por outras disciplinas positivas: a cosmologia pelas ciências naturais, a psicologia pela 123 psicofísica e a teologia por uma reflexão sobre as forças actuantes no mundo social; e a técnica, a economia, o direito e a historiografia afirmavam a sua pretensão de se constituírem, por seu turno, como ciências positivas o autónomas, isto é,
fundadas nos factos e independentes da filosofia. Não se pode dizer, no entanto, que o positivismo negligenciasse os problemas do "espírito" se por espírito se entende a esfera das actividades propriamente humanas em que se inserem a religião, a arte, a moral e a própria ciência como actividades produtoras de conhecimentos. Mas negava que se pudesse aceder a essa esfera de modo diferente dos processos por que se chega ao resto da natureza, dado que também esta esfera fazia parte da natureza. Na sua vocação mais funda, o positivismo é um naturalismo, ou antes um reducionismo naturalístico: nada existe ou pode existir, tanto no "espírito" como na "natureza externa", que não seja um fenómeno ou um conjunto de fenómenos sujeito a leis e determinado por estas leis. Sendo assim, a investigação directa que procura descobrir ou justificar aspectos ou determinações que a indagação positiva ignorava ou até mesmo excluía, tais como o finalismo da natureza, a liberdade da vontade humana na história, os fins ou os valores transcendentes próprios da esfera moral e religiosa, parecia que não podia efectuar-se se não utilizasse outras vias de acesso à realidade, outros instrumentos considerados mais eficazes para tal fim, portanto mais próprios de uma filosofia que pretendesse distinguir-se da ciência e reivindicar, por sua vez, a sua autonomia em relação à ciência. 124 O espiritualismo constitui, nesta direcção, a primeira reacção ao positivismo: urna reacção sugerida por interesses fundamentalmente religiosos ou morais e que pretende utilizar, no trabalho filosófico, um instrumento que o positivismo desprezara por completo: a auscultação interior ou consciência. Se o termo de espiritualismo como nome de uma corrente filosófica é relativamente recente (remonta provavelmente a Cousin), a atitude própria da filosofia espiritualista é bastante antiga: o "retorno da alma a si" de Plotino, o "noli foras ire" de Santo Agostinho, o "cogito" de Descartes, a "autoconsciência" ou "a consciência" dos românticos, "a reflexão ou a experiência interior" de empiristas e psicologistas são tudo conceitos que se referem à atitude pela qual o homem toma como objecto de investigação a sua própria "interioridade". A partir da segunda metade do século XIX até aos nossos dias, unia corrente muito forte de pensadores retoma esta tradição apresentando a investigação que gira em torno da consciência como uma alternativa fundamental da investigação que gira em torno da "natureza" ou da "exterioridade". Em polémica com a ciência e, sobretudo, com a ciência positivista, à qual reconhece um valor simplesmente preparatório, aproximativo ou prático, esta corrente reconhece como tarefa própria e específica da filosofia a descriminação e a explicação dos dados da consciência. Ao passo que para o positivismo o único texto é constituído pelos fenómenos naturais, para o espiritualismo o único texto é constituído pelos testemunhos da consciência. Por tais testemunhos entende-se, as mais das vezes, não só os dados da "expe125 riência interior" ou "reflexão", como Locke lhe chamava, mas também as exigências do coração e do sentimento, os ideais morais ou religiosos tradicionais, como, por exemplo, a liberdade, a transcendência dos valores e a manifestação do divino. Nalgumas destas exigências, o espiritualismo mantém-se fiel a alguns aspectos do romantismo,
especialmente àquele em que a consciência é considerada como a primeira manifestação originária ou privilegiada do divino. Viu-se já como este aspecto foi utilizado em todas as formas de tradicionalismo da primeira metade do século XIX (Cap. X) que, também são, por isso, em certo sentido, formas de espiritualismo. Mas sob outro aspecto, o espiritualismo da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX contrapõe-se polemicamente ao idealismo romântico na medida em que se recusa a identificar o Infinito como o finito e insiste na transcendência do Infinito (Absoluto ou Deus) em relação às suas manifestações na consciência. Do ponto de vista gnoseológico, porém, o espiritualismo mantém em regra a atitude idealista e isso devido à sua própria orientação, dado que, fazendo da consciência o seu ponto de partida, considera qualquer objecto como possível só para a consciência e só na consciência. Deste ponto de vista, o problema principal, o obstáculo maior que o espiritualismo encontra no seu caminho é o da natureza ou da "exterioridade" em geral, sobretudo nos aspectos que a ciência pôs em relevo, os mais inacessíveis à consciência ou ao espírito tais como matéria, mecanismo e necessidade causal. O modo 126 como esta necessidade é em regra superada constitui a negação da matéria como tal e a sua redução ao espírito, com a consequente subordinação do mecanismo e de todo o sistema da necessidade causal a uma ordem providencial ou divina dominada pelo finalismo. O finalismo permite, de facto, reconhecer, em certa medida, a realidade do mecanismo e, ao mesmo tempo, considerá-lo subordinado a um desígnio superior que leva à conclusão de que existe um principio ordenador do mundo. A exigência que estabelece este princípio é outro dos aspectos fundamentais do espiritualismo. § 671. O ESPIRITUALISMO ALEMÃO: M. FICHTE Na Alemanha, o espiritualismo afirma-se numa polémica com o idealismo hegeliano e com o positivismo. A sua primeira manifestação, que só mais tarde se revelou significativa, é obra do filho de Fichte, Manuel Hermann Fichte (1796-1879). Editor das obras impressas e manuscritas do pai, assumiu por sua conta a tarefa de delinear uma concepção espiritualista do mundo. Entre os numerosos escritos de Fichte júnior, os mais notáveis são: Contributos para a caracterização da filosofia moderna (1829); Esboços de um sistema de filosofia (3 vol., 19-33-46); Sistema de ética (2 vol., 1850-53); Antropologia (1856); Psicologia (2 vol., 1864-73); A intuição **teíslíca do mundo (1873); O espiritualismo moderno 127 (1878). Manuel Fichte foi também fundador de uma revista em que colaboraram muitos outros filósofos e teólogos: a "Zeitchrift flir Philosophie und Spekulative Theologie", que começou a publicar-se em 1873 e que se propunha defender os interesses da especulação cristã e aprofundar
filosoficamente os problemas da dogmática e da teologia prática. A principal preocupação de Fichte consistiu em defender a concepção finalista do mundo. O mundo apresenta-se-lhe como "uma série gradual do meios e fins": e esta ordenação pressupõe um ordenador e um criador do mundo. "A ciência da natureza, segundo afirma, não é em si nem teística nem antiteística: a questão do supremo princípio está para além do seu campo de investigação. Mas tal questão, devidamente considerada, é o mais firme ponto de apoio para uma concepção teística porquanto demonstra, na natureza inteira, e de um modo explícito e evidente no mundo orgânico e psíquico, o facto universal de um finalismo interior e de uma completa ordenação total. "As chamadas leis da natureza não são mais do que a particular expressão e ao mesmo tempo a confirmação desse facto" (Anthrop., p. 293). Deste ponto de vista, a natureza não é mais do que um meio que visa a tornar possível a vida espiritual do homem. E no homem actua uma força espiritual superior à sua natureza finita, força que se manifesta, na vida religiosa, na inspiração e no êxtase e a cuja acção Fichte atribuiu também os fenómenos do espiritualismo, que estudou sobretudo nos últimos anos da sua vida. 128 LOTZE § 672. ESPIRITUALISMO ALEMÃO: LOTZE A doutrina do filho de Fichte foi muito pouco conhecida e apreciada antes que o espiritualismo conseguisse consolidar-se e chamar as atenções sobre si. Para tal consolidação muito contribuiu a obra de Rodolfo Hermann Lofte (Bautzen, 21 de Maio de 1817, Berlim, 1 de Julho de 1881) que foi médico e professor de filosofia em Gotinga e em Berlim. A sua obra principal é o Microcosmo, Ideias sobre a história natural e sobre a história da humanidade, em três volumes, 1856-58, 1864. Mas esta obra havia sido precedida por uma Metafísica (1841) e uma Lógica (1843) como por outros escritos de medicina e de psicologia; em seguida foi publicada uma História da estética alemã (1868) e um Sistema de filosofia, que compreende uma Lógica (1874) e uma Metafísica (1879). Na Metafísica de 1841 (p. 329) Lotze definiu a sua doutrina como um "idealismo teleológico", cuja tese fundamental é a de que a substância do mundo é o bem. O Microcosmo revela as características típicas da atitude espiritualista: as necessidades da alma, o sentimento, as aspirações do coração, as esperanças humanas, são invocadas a cada momento como guia e objectivo da investigação. Lotze não considera, no entanto, que estas exigências espirituais se encontrem em contradição efectiva com os resultados da ciência moderna, que o mecanismo propugna. Crê, pelo contrário, que o mecanismo se estende a todos os campos da investigação científica e cada vez mais se reforça; mas, segundo diz, a filosofia deve demonstrar que a "tarefa que compete ao mecanismo na ordenação do 129 universo é universal sem excepções quanto à sua ex-
tensão, mas ao mesmo tempo verdadeiramente secundária quanto à sua importância". Com efeito, o facto incontestável de que a natureza obedece a leis necessárias, é um facto incompreensível; mas torna-se compreensível se se admitir que não é um facto último mas apenas um meio que manifesta e revela, na sua própria organização, o objectivo último que tendo a realizar: o bem. O mundo é uma máquina, segundo Lotze, mas uma máquina que visa à realização do bem. A unidade, a ordem mesma desta máquina, demonstram a subordinação a um plano racional, a um princípio superior ao mecanismo. Porém, deste ponto de vista, o mecanismo e a própria natureza, que parecia deverem ser mantidos na sua realidade, revelam-se como mera aparência. De facto, nos átomos, que são os elementos primeiros do mecanismo, Lotze só vê os pontos imateriais, centros de força supra-sensíveis, isto é, mónadas no sentido leibniziano do termo (Microcosmo, 1, trad. ital., p. 50), Nestes elementos imateriais, as leis já não têm o seu carácter; ao juntarem-se, alternando com a sua acção recíproca, a sua força, alteram a lei reguladora dessa mesma força, privando-a assim da sua imutabilidade necessária (1b., p. 59). Deste modo, a natureza material cessa de ser algo de estranho ao espírito, espiritualiza-se e torna-se parte de um sistema em que não existe outra realidade senão a do espírito. Com efeito, se se admite que a ciência chega a provar que toda a realidade se desenvolve por um contínuo processo evolutivo que culmina na vida espiritual do homem, isso demonstrará apenas que a vida 130 espiritual é o fim intrínseco de todo o processo natural e que este tende a produzi-lo e a conservá-lo. Os resultados da ciência nunca poderão eliminar o milagre da criação imediata, mas tão-só fazê-la recuar para uma época mais remota, para o acto em que a sabedoria infinita conferia ao caos a faculdade incomensurável de toda a evolução ulterior (Ib., p. 382). O espiritualismo é, por conseguinte, um teísmo. Deus é a condição de todo o fenómeno natural, de todas as leis, de toda a ordem causal, porquanto é a unidade que liga tudo. "Todas as actividades e todas as mutações das coisas se sucedem com aparente necessidade intrínseca dentro do âmbito daquelas leis em que o Uno eterno ordenou para sempre cada um dos seus efeitos" (Ib., p. 397). Toda a coisa finita é uma criatura do infinito. "Todo o ser, tudo o que recebe o nome de forma ou de figura, de coisa ou de acontecimento, tudo aquilo, em suma, de cujo conjunto resulta a natureza, não pode considerar-se senão como uma condição preliminar para a realização do bem, não pode existir tal como é, senão porque é assim e não de outro modo que se manifesta o valor eterno do bem" (1b., p. 404). Por outro lado, esta convicção é necessária para a acção do homem. "0 sustentáculo da nossa esperança e a alegria da nossa existência, afirma Lotze (Microcosmo, II), repousam sobre a fé na unidade premeditada do sistema cósmico, que nos preparou o nosso lugar e que, já nos cegos efeitos da natureza, infundiu o germe da evolução que a vida espiritual deve acolher e continuar". A acção moral, tal como o conhecimento, supõe a religião entendida como 131
consciência da caducidade do mundo e, ao mesmo tempo, da missão eterna que Deus confiou ao mundo (1b., p. 415). E Lotze crê que se pode chegar a Deus através do testemunho interior da consciência e da consideração das exigências do coração. Neste sentido, renova o significado da prova ontológica. "Há uma certeza imediata, afirma (Microcosmo, 111 p. 557), de que o ser maior, mais belo e mais rico de valor não é um puro pensamento, mas deve ser realidade. Seria, de facto, insuportável crer num ideal que fosse uma representação produzida pela actividade do pensamento e que não tivesse, na realidade, nenhuma existência, nenhum poder e nenhuma validez. Se o Ser mais perfeito não existisse, não seria o mais perfeito e isto é impossível, porque não seria então o mais perfeito de tudo quanto é pensável". Deus é personalidade porque a personalidade é a mais alta forma da existência. A ele se reduzem as verdades eternas, que não são arbitrariamente criadas por ele, senão que constituem os modos da sua acção. Lotze quis assim assinalar a antítese entre o mundo dos valores espirituais e o mundo da natureza, antítese que se lhe apresentava como o resultado da ciência positivista do seu tempo. Todavia, limitou-se em muitos pontos a um prudente agnosticismo. A unidade entre os valores e as formas naturais pode ser afirmada e crida, mas não verdadeiramente conhecida. A própria liberdade humana é possível, mas não pode ser claramente afirmada como real (Microcosmo, 1, p. 405-407). E quando na Metafísica (que é a segunda parte do seu Sistema de filosofia) ao reelaborar de forma sistemática a trama dos pensamentos do Mi132 crocosmo, chega à conclusão de que a acção recíproca das substâncias finitas no universo só é concebível como acção do Absoluto sobre si mesmo, declara ainda impossível esclarecer o modo por que o absoluto pode dar lugar às suas manifestações finitas. A sua Lógica, que constitui a primeira parte do Sistema de filosofia possui um valor independente do seu espiritualismo. Foi elaborada fundamentalmente em polémica com o psicologismo. O acto psicológico do pensar é distinguido do conteúdo do pensamento: o primeiro apenas existe como um determinado fenómeno temporal; o segundo tem outro modo de ser, que Lotze designa por validade. O facto de uma proposição ou conclusão serem válidas exprime o facto de que são significativas: a validade identifica-se, portanto, com o significado dos tempos lógicos, sejam eles proposições, raciocínios ou conceitos. Lotze atribui esta doutrina a Platão, cujas ideias seriam existentes precisamente no sentido da validez. Esta doutrina encontrará continuadores e desenvolver-se-á com o neocriticismo, sobretudo na escola de Marburgo. § 673. ESPIRITUALISMO ALEMÃO: SPIR A tendência, implícita em todo o espiritualismo, para contrapor o espírito à natureza e para considerar esta última como aparência, é levada até às suas últimas e paradoxais consequências por Afrikan Spir (1837-90), um russo, ex-oficial de marinha, que viveu 133 muito tempo na Alemanha e morreu em Genebra. Spir cria que a sua doutrina
representava a mais alta expressão do século XIX e que inaugurava uma nova era da humanidade, a da sua completa maturidade espiritual. Esta esperança apocalíptica liga-se ao tom profético da sua filosofia, exposta em numerosos escritos, entre os quais se destacam: A verdade, 1867; Pensamento e realidade, 1873; Moralidade e religião, 1874; Experiência e filosofia, 1876; Quatro problemas fundamentais, 1880; Estudos, 1883; Ensaios de filosofia crítica, 1887. Spir parte da convicção de que os dados da experiência não concordam com o princípio lógico da identidade. Enquanto este último exige que todo o objecto na sua própria essência seja idêntico a si mesmo, a experiência mostra, pelo contrário, que nenhum objecto singular é completamente idêntico a si próprio. Deste ponto de vista, resultam imediatamente duas consequências. Em primeiro lugar, o principio da identidade exprime um conceito acerca da essência das coisas, o qual não pode derivar da experiência, mas deve ser, originariamente e a priori, imanente ao pensamento. Em segundo lugar, a experiência não nos mostra as coisas em si, na sua essência incondicionada e conforme ao conceito a priori, senão que implica elementos que são estranhos a tal essência. O princípio de identidade, ainda que os dados empíricos não concordem com ele, vale, relativamente a tais dados, como princípio sintético e, por conseguinte, como fundamento de todo o conhecimento. Spir reconhece (com Kant) que as duas leis fundanlcntais do conhecimento são a lei da permanência 134 da substância e a lei da causalidade. Ora, deste princípio decorre imediatamente: 1.o que a essência incondicionada das coisas, isto é, a sua substância, é imutável em si, quer dizer, permanente; 2.O que toda a mudança é condicionada, ou seja, depende das mutações antecedentes. E estas são precisamente as duas leis fundamentais do conhecimento. Mas - e é este o ponto mais original (e paradoxal) da doutrina de Spir - entre a substância incondicionada e a realidade empírica não é possível nenhuma relação. A realidade empírica contém elementos que excluem absolutamente tal relação. Estes elementos são: a multiplicidade e a consequente relatividade das coisas, a mudança, o mal e a falsidade. "Toda a tentativa, afirma Spir, para fazer derivar estes elementos do absoluto constitui, do ponto de vista do pensamento, um absurdo, e do ponto de vista da religião, uma impiedade". Querer encontrar no incondicionado a razão suficiente da realidade empírica é o erro fundamental, o erro originário, que falseia todas as intuições religiosas e filosóficas dos homens e implica consequências funestas para as ciências naturais. Duas alternativas se oferecem a esta crença errada: ou o mundo é o próprio incondicionado ou é um efeito (ou uma consequência) cuja razão suficiente reside no incondicionado. A primeira alternativa constitui as concepções panteístas e ateístas; a segunda, as teístas. Uma e outra são impossíveis. Tem de se reconhecer, pelo contrário, que o mundo é condicionado e que, no entanto, não depende de nenhuma condição, de
qualquer razão suficiente, porque inclui elementos que são estranhos ao incondicio135 nado, à essência das coisas e que não podem derivar dele. Toda a coisa singular condicionada, tem, necessariamente, a sua condição, mas o condicionado em geral, como tal, não a tem nem a pode ter. Por outros termos, toda a mutação singular tem a sua condição ou a sua causa; mas quando se dá em geral uma mutação, quando as coisas do mundo mudam em vez de permanecerem idênticas, não podem ter nenhuma condição nem nenhuma causa. Estas teses expostas em Pensamento e realidade (que é a obra principal de Spir) são ilustradas, no que respeita ao domínio moral e religioso, pela sua outra obra, Moralidade e religião, e defendidas polemicamente nos escritos menores. A vida moral é também dominada pelo princípio de identidade, ou seja, pelo esforço próprio da natureza interior do homem de ser idêntica a si mesma; e, portanto, pela consciência ou pelo pressentimento de uma natureza mais alta, não empírica, que seja também a unidade do todo. A este esforço são estranhos todos os impulsos sensíveis do homem e a sua própria individualidade. Por conseguinte, o fundamento da moralidade é a não-coincidência da natureza empírica do homem com o seu conceito a priori. Devido a esta não coincidência, o conceito a priori (a identidade consigo mesmo) assume o valor de um imperativo, ao passo que seria uma pura lei de facto da conduta humana se a natureza empírica coincidisse com o conceito a priori. E deste ponto de vista, a liberdade não é um poder, mas apenas uma condição, precisamente a condição da vontade pela qual ela está de acordo com a lei da sua verdadeira natureza. 136 Toda a doutrina de Spir é essencialmente religiosa. O incondicionado de que nos fala é Deus; e como ele próprio reconhece, a sua doutrina do conhecimento e a sua moral não são outra coisa senão teologia. "As provas da validez objectiva dos conceitos a priori são também provas da existência de Deus. A teologia obedece, na verdade, ao mesmo princípio que a doutrina do conhecimento e a moral. A lei da identidade exprime a essência de Deus" (Moralitãt und Religion, p.114). Contudo, a religiosidade não se radica numa representação conceptual, mas no sentimento, e ela é "o sentimento interno do parentesco com Deus". Se a relação do homem com Deus fosse uma relação externa, como a de um efeito com a sua causa, a religião seria pura teoria. Mas, na realidade, Deus não é mais do que a verdadeira essência do homem, e, por conseguinte, a religião não é a consideração da relação entre o homem e Deus, mas é essa mesma relação enquanto se faz valer na natureza subjectiva dos homens e, portanto, na forma do sentimento interior. Deus é para o homem um facto da sua vida interior, de que ele é imediatamente consciente. Mas Deus está em relação apenas com a verdadeira essência do homem, não com a sua natureza empírica; por isso, não implica nenhum motivo de temor ou de esperança para o egoísmo humano, não actua como causa eficiente e só pode ser objecto de amor. Mas não pode ser invocado, de forma alguma, para explicar o mundo da realidade empírica. Este mundo não tem fundamento, nem razão alguma; é algo que não deveria existir, e por isso é absolutamente inconcebível e inexplicável. É evidente que,
deste ponto de 137 vista, a imortalidade pessoal cai fora da religião, O desejo de imortalidade tem o seu fundamento empírico, no instinto de conservação, e a individualidade a que ela se refere é um elemento empírico, estranho à natureza normal do homem. Além disso, a duração efectiva da individualidade depois da morte é indiferente ao homem que tem interesse apenas em crer nela; o homem não pode viver no futuro mas só no presente, portanto, só a fé na imortalidade, não a imortalidade mesma, tem interesse para ele. A doutrina de Spir apresenta acentuados, por vezes até à deformação, alguns traços salientes do espiritualismo contemporâneo: a oposição entre a natureza e o espírito, a tendência para considerar a natureza como mera aparência, a tonalidade religiosa. Mas o lugar que nas formas mais frequentes do espiritualismo é ocupado pelas "exigências do coração" é aqui tomado como uma exigência puramente lógica. A consciência que é o princípio de todo o espiritualismo é aqui essencialmente pensamento na sua exigência geral e abstracta, exigência de identidade. A esta forma de espiritualismo se vincula em parte o italiano, e, especialmente, a obra de Martinetti. § 674. E. HARTMANN. EUCKEN À metafísica espiritualista pertencem também duas filosofias cujas obras tiveram grande popularidade no período em que apareceram, mas que deixaram poucos traços na filosofia posterior: E. Hartmann e Eucken. 138 A actividade literária de Eduardo von Hartmann (1842-1906) (que permaneceu fora do ensino univertário) foi muito grande e afortunada. A sua primeira obra e a mais notável, Filosofia do inconsciente (1896), publicada aos vinte e seis anos, teve onze edições. Seguiram-se a esta numerosas obras, entre as quais se destacam as seguintes: Fenomenologia da consciência moral (1879); Filosofia da religião (1881); Estética (188687); O problema fundamental da teoria do conhecimento (1889); Doutrinas das, categorias (1896); História da metafísica (1899-1900); A psicologia moderna (1901); A intuição do mundo da física moderna (1902), Sistema de filosofia em oito partes (1. Teoria do conhecimento, 11; Filosofia da natureza; III. Psicologia; IV. Metafísica; V. Axiologia; VI. Princípios de ética; VII. Filosofia da religião; VIII. Estética, 1906-09), Hartmann apresenta o princípio da sua filosofia como a síntese do espírito absoluto de Hegel, da vontade de Schopenhauer e do inconsciente de Schelling. Este principio é, portanto, um Absoluto espiritual inconsciente que se revela no homem e nos seres finitos como vontade. Hartmann crê que pode chegar a ele por via indutiva, partindo do exame de determinados factos naturais e mostrando que eles não podem explicar-se senão mediante o recurso a
uma actividade espiritual inconsciente, a saber: o finalismo da natureza, que nunca toma o aspecto de um plano consciente, ou seja, a actividade organizadora do mundo orgânico, o acto reflexo, o instinto, as emoções humanas, incluindo nelas a simpatia e o amor. Tudo isto são manifestações do inconsciente 139 e podem ser reconhecidas como tais pelo facto de que o seu mecanismo de acção não aparece nunca como um claro saber da consciência. Mesmo a vida moral e a vida estética são, segundo Hartmann, produtos do inconsciente, que nunca deixa de actuar no pensamento, uma vez que parte de ideias a priori de que não é claramente consciente. A consciência colhe apenas os resultados do funcionamento das ideias a priori: por isso, não pode deixar de reconhecê-las a posteriori como um a priori inconsciente (Phil. des Unbe~sten, trad. franc., 1, p. 341). Sobre o princípio do inconsciente se funda também o que Hartman chama o seu "realismo transcendental", que é um monismo do inconsciente e um dualismo da consciência. Para a consciência, a ideia e o ser não se identificam porque ela nasce precisamente da sua separação; para o inconsciente, ao invés, identificam-se porque ele é o princípio de tudo quanto existe (System, 1, p. 124). Entendido assim, o inconsciente é o Uno-Todo, Deus. Como espírito absoluto, ou seja, como substância do mundo, Deus é inconsciente; só se toma consciente nas zonas separadas e periféricas que não são as suas actividades específicas mas os produtos da sua colisão (1b., IV, p. 109). Pelo seu carácter inconsciente, Deus transcende as suas manifestações parciais que são as consciências individuais e não é multiplicado ou cindido pela sua multiplicação e separação (1b., VII, p. 64-65). Hartmann admite o pessimismo de Schopenhauer e considera que o desenvolvimento da consciência, reduzindo gradualmente ao nada a vontade (que é o princípio incons140 ciente criador) anulará deste modo a manifestação da vontade que é o mundo. Mas, sem muita coerência, admite também o progresso, interpreta como obra do inconsciente o plano providencial, que Hegel atribuíra à História, e afirma que o nosso mundo "é o melhor dos mundos possíveis". A outra figura representativa do espiritualismo é mais a de uni profeta do que a de um filósofo. Rodolfo Eucken (1846-1926), professor na Universidade de Iena (1874-1920), recebeu o prémio Novel da Literatura em 1908. Os temas habituais do espiritualismo foram por ele expostos, sem originalidade nem profundeza, mas com muita arte e convicção, em numerosas obras abundantemente difundidas e traduzidas (A unidade da vida espiritual na consciência da humanidade, 1888; A visão da vida nos grandes pensadores, 1890; A validez da religião, 1910; Delineamento de uma visão da vida, 1907; O sentido e o valor da vida, 1908; etc.). A convicção fundamental de Eucken é a de que a existência do homem não tem significação alguma se for pura e simples existência imediata, isto é, existência que se
preocupa apenas com os valores materiais e com as relações exteriores entre os homens, e que só adquire um significado se se torna existência espiritual, isto é , existência que aprofunda e desenvolve as relações do homem com o Espírito do universo. A existência imediata oferece ao homem a escolha entre dois rumos: o que conduz à individualidade e o que leva à colectividade. Mas ambas as orientações são incapazes de encher a vida com um conteúdo de valores positivos e de a subtrair à 141 insignificância e ao vazio. Na vida espiritual, pelo contrário, a existência humana revela-se como um estado particular do mundo: um estado cujo fim não reside nas relações eternas do homem mas no contínuo desenvolvimento de si próprio. Dado que a religião é a forma de actividade que dá maior relevo à intimidade espiritual, Eucken defende o sentido religioso da vida e a validez da religião, sem no entanto se referir a nenhuma religião positiva. § 675. O ESPIRITUALISMO EM FRANÇA. LEQUIER O espiritualismo constitui a tradição clássica da filosofia francesa. Montaigne foi em França o iniciador de uma forma de filosofia que consiste na investigação introspectiva, na pesquisa conduzida em torno da interioridade da consciência. Através de Descartes, Malebranche e Pascal, esta forma de filosofia inseriu-se na filosofia moderna e contribuiu para a formar. O grande movimento iluminista do século XVIII representa um parêntesis na tradição filosófica francesa: esse movimento actua sob a égide de Newton e constitui a irrupção e o triunfo do empirismo inglês. Na primeira metade do século XIX, Maine de Biran restabelecia a continuidade da tradição filosófica francesa representando, contra o iluminismo e os seus últimos defensores, o método e a finalidade do espiritualismo. Não é sem razão, por isso, que uma grande parte dos filósofos franceses vê em Maine de Biran o seu imperador e o seu guia. 142 Uma figura singular que só nos últimos tempos pôde ser valorizada adequadamente é a de Júlio Lequier (1814-62), cuja vida obscura e atormentada se encerra com um misterioso afogamento ao largo da costa bretã. Lequier não publicou nenhuma obra porque nunca chegou a concluir nenhum dos numerosos escritos iniciados. Renouvier, que foi seu amigo, publicou alguns fragmentos póstumos com o título Investigação de uma verdade primeira (1865). Em seguida foram publicados outros textos, mas só recentemente os escritos de Lequier foram recolhidos numa edição completa (1Oeuvres complètes, ao cuidado de J. Grenier, 1952). Lequier é um pensador religioso, e o tema fundamental da sua filosofia é a consciência. "Eu remeto-me à consciência, - afirma ele - submeto tudo, no que me respeita, à consciência e submeto a própria ciência só a ela... É sempre Deus, o verdadeiro Deus que fala na consciência" (Oeuvres complètes, p. 396-97). Mas o tema em torno do qual se desenvolvem as meditações de Lequier é o da relação entre necessidade e liberdade: um tema que, na mesma época, inspirava as meditações de um outro pensador solitário: Kierkegaard. A necessidade é, segundo Lequier, o postulado fundamental da ciência que tem como escopo mostrar a ordem ou uniformidade da natureza (1b., p. 385 sgs.). Mas, por outro lado, a
noção de necessidade dissipa-se logo que a examinamos mais de perto: e não só porque leva a confundir o bem com o mal, que seriam ambos frutos da mesma necessidade, mas também porque só pode ser reconhecida e afirmada pela própria liberdade. "Aperce143 bo-me, - afirma Lequier - de que se tudo em nós está submetido à necessidade, nem sequer posso afirmar que tudo está submetido à necessidade, porque esta proposição será necessária e, por consequência, não poderei distingui-Ia de qualquer outra. Se tudo é necessário, a própria ciência é impotente, e não posso procurar distinguir a verdade do erro: nem sequer sei se verdade e erro existem porque não posso saber nada. Para poder distinguir a verdade do erro, deverei, ao que me parece, ser livre; mas esta liberdade é contestada; uns negam-na, outros divergem sobre a maneira de a definir, nenhum a compreende" (1b., p. 314). Se, portanto, a necessidade é um postulado (o postulado da ciência), a liberdade é igualmente um postulado: o postulado da consciência; portanto, da consciência e da acção. Sem a- liberdade, nenhuma verdade é possível: o que quer dizer que a liberdade é a condição da crença, e, portanto, do conhecimento que não é mais do que crença (lb., p. 324). Sem a liberdade, o dever e a responsabilidade não seriam possíveis. Ora, é precisamente o elo liberdade-responsabilidade que coloca o homem, segundo Lequier, perante Deus: "Como pessoa responsável só posso ser responsável perante uma outra pessoa. Dirijo-me, com tudo o que constitui a minha pessoa, para esta outra pessoa que deve ser irresponsável, porque deve ter em si mesma a sua razão de ser, deve ser absoluta. Eu só posso atribuir a esta outra pessoa irresponsável as perfeições que descobri em mim mesmo, sem no entanto esquecer que tais perfeições, que são finitas em mim, pessoa responsável, devem ser infinitas no ser a que chamarei Deus, pessoa irres144 EUCKEN ponsável" (1b., p. 321). Ora, o homem é livre porque, "é senhor do possível", e o possível é o "campo indefinido aberto à actividade do homem" (lb., p. 38). "0 necessário é o limite do possível. O que é, na realidade, o possível? O que pode existir, e é necessário o que não pode deixar de existir. Definem-se mutuamente, já que, na realidade se limitam um ao outro" (Ib., p. 390). Lequier serve-se da noção de possível para definir a natureza da ciência divina, que é ciência de possíveis. "Deus, vendo, a cada instante da sua eternidade, toda a série dos possíveis, isto é, uma infinidade de infinidades infinitamente repetidas, atinge com a sua vista as coisas nos mais ínfimos pormenores, abarca todas as circunstâncias, discerne as mais pequenas e todas as suas consequências" (lb., p. 413). Isto quer dizer que Deus vê não só o que o homem fez e realiza mas também o que ele não fez e poderia no entanto fazer em virtude da sua liberdade: de modo que, nesta visão, têm o seu fundamento objectivo as possibilidades que o homem. agindo ou realizando, afasta a cada passo, as possibilidades que não se realizaram ou não se realizarão mas que devem, todavia, considerar-se autênticas se o homem é livre na escolha dos possíveis. Deste modo, segundo Lequier, pode entrever-se uma solução para o problema da relação entre presciência (ou predeterminação) divina e liberdade humana que, de outro modo, permanece insolúvel. A
chave deste problema é a concepção de Deus como "criador e contemplador dos possíveis" (Ib., p. 414). O espiritualismo, em todas as suas manifestações, é levado a considerar a liberdade como um dado úl145 timo da consciência, quer dizer. como algo testemunhado de modo directo e indubitável pela observação introspectiva, Lequier nega esta noção da liberdade e considera-a antes como um simples postulado, justificado, em certa medida, pelas consequências que dele se extraem (1b., p. 349, sgs.). O seu ponto de partida é, portanto, menos dogmático do que o que o espiritualismo habitualmente escolhe: e a conexão entre liberdade e possibilidade abre a Lequier (como acontecia na mesma altura com Kierkegaard) a via de uma análise mais penetrante da condição humana no mundo e em relação a Deus. § 676. AMIEL. SECRÉTAN A filosofia de Lequier, que se manteve quase desconhecida, não pôde trazer nenhum contributo para a problemática do espiritualismo francês. O tema deste é, no entanto, como para Lequier, a liberdade; e é, precisamente, a liberdade como energia ou força criadora da consciência humana. Uma obra que contribuiu para formar o tom intimista do espiritualismo francês foi a do genebrino Henrique Frederico Amiel (1821-81), autor de um Diário íntimo (publicado postumamente em 1833-84, e numa edição mais completa em 1923). Até a forma literária do diário é, a este propósito, significativa da atitude de Amiel, que ele próprio define dizendo: "A filosofia é a consciência que se compreende a si mesma com tudo o que contém em si" (Grains de mil., 1854, p. 194). 146 O tema da liberdade torna-se central na obra de Carlos Secrétan (1815-95), também nascido na Suíça francesa, e autor de uma obra sobre Leibniz (1840), bem como de outras obras de interesse essencialmente moral (A filosofia da liberdade, 1849; A razão e o cristianismo, 1863; O princípio da moral, 1883; A civilização e a crença, 1887; A sociedade e a moral, 1897). "A experiência sensível-afirma Secrétan (Phil. de Ia liberté, 11, 1879, p. 5) -, não sobrepassa o múltiplo, o contingente e o subjectivo; mas na consciência encontramos o ser. Toda a nossa ideia do ser vem daí". A consciência dá-nos o testemunho da liberdade, mas uma liberdade limitada na sua extensão pela natureza e determinada na sua direcção pelo dever. Esta liberdade condicionada significa que o homem não existe por si e que a sua existência depende de um ser incondicionado e absolutamente livre. Este ser não pode ser identificado, como faz o idealismo, com o eu do homem. Ele é espírito, mas é espírito infinito e incriado, ao passo que o homem é espírito finito e criado. É, portanto, Deus. E Deus é para Secrétan absoluta liberdade; é expresso pela fórmula "Eu sou o que quero", é pura actividade, que não encontra nenhum limite e cuja natureza é, precisamente por isso, a liberdade (lb., 1, 1879, p. 364 sgs.). Mas esta absoluta liberdade é para o homem incompreensível. Ele pode saber onde ela se encontra, mas não possui qualquer ideia dela, pois não possui a intuição correspondente. Todavia, do reconhecimento de Deus como
absoluta liberdade decorre imediatamente que a vontade é a essência universal do mundo. "A,, 147 diversas ordens do ser são os graus da vontade. Existir significa ser querido (por Deus); ser substância significa querer; viver significa querer-se; ser espírito significa produzir a própria vontade, querer o próprio querem (1b., p. 373). O nome de pessoa designa um ser livre que se apresenta e se reconhece como tal. Neste sentido Deus é pessoa e é pessoa a criatura enquanto realiza a sua liberdade. Mas a realização da liberdade é, por isso mesmo, amor de Deus, que é liberdade absoluta. "0 bem da criatura consiste em unir-se a Deus, A penetração recíproca das duas vontades pode fazer da vontade finita uma vontade plena e fecunda; separada por Deus, a criatura livre abisma-se no nada da contradição. Para ser, e para ser ela mesma, a criatura deve distinguir-se de Deus por um acto que a une a ele; o nome deste acto é amor. A liberdade que requer a liberdade, tal é a forma da criação: o sentido dela é o amor que espera o amor" (Phil. de la liberté, 1, 1879, p. 5). Deste ponto de vista, a história é a realização da liberdade mediante a unidade; e o seu termo está, para lá do tempo, na eternidade. Secrétan vincula intimamente a sua filosofia às concepções fundamentais do cristianismo e chega a defini-Ia como "uma apologia do cristianis mo" (lb., 1, p. IX). O esforço pela liberdade que constitui a vida histórico-temporal do homem é, ao mesmo tempo, o esforço pela realização de uma comunidade humana perfeita, fundada na solidariedade e no amor. No Princípio da moral (1893, p. 6) Secrétan formula do modo seguinte o preceito fundamental do dever: "Agir como membro livre de um todo solidário, procurar a realização do próprio ser verda148 deiro, do próprio bem e da própria felicidade na realização e no bem do todo de que se faz parte". Se antes do pecado original o homem possuía apenas a unidade natural e depois do pecado, na história, passou a possuir apenas uma unidade oculta e virtual, no fim dos tempos alcançará a unidade livre, a unidade moral: "Todos num, todos em cada um, fórmula do bem supremo que procede imediatamente da fórmula do dever: eu quero que nós sejamos" (Phil. de Ia liberté, 11, p. 413). § 677. RAVAISSON Vincula-se directamente a Maine de Biran a obra de Félix Ravaisson Mollien (1813-1900), notável sobretudo pelas suas obras históricas (o Ensaio sobre * metafísica de Aristóteles, 1837-46 e o Informe sobre * filosofia em França no século XIX, 1868), mas que também forneceu ao espiritualismo francês alguns dos seus temas preferidos em breves ensaios e artigos (Filosofia contemporânea, 1840; A filosofia de Pascal, 1887, Metafísica e moral, 1893; Testamento filosófico, 1901) o mais importante dos quais é a tese de doutorado O hábito (1838). O Ensaio sobre a metafísica de Aristóteles tende a apresentar o aristotelismo como a doutrina originária e típica do espiritualismo. O próprio Ravaisson, no seu Informe (p. 25), afirma que o escopo da sua
exposição consistia em mostrar "corno aquele que criou o própria nome da ciência sobrenatural, e que foi o primeiro a constituí-Ia, lhe deu por princípio, 149 em lugar do número ou da ideia - entidades equívocas, abstracções erigidas em realidade a inteligência, que numa experiência imediata apreende em si mesma a realidade absoluta, da qual todas as outras dependem. Por outros termos, Ravaisson viu no princípio da metafísica aristotélica o princípio mesmo do espiritualismo: a consciência. Segundo ele, este princípio havia sido restituído à filosofia francesa por Maine de Biran. o qual ajudou a filosofia "a libertar-se da física, sob a qual Locke, Hume e o próprio Condillac a tinham quase oprimido" (Informe, p. 14). Maine de Biran assinalou "o facto capital que nos revela a nós mesmos, como uma existência situada fora do curso da natureza e que nos faz compreender que toda a verdadeira existência é assim, e que o que ocupa o espaço e o tempo é, em comparação com ele, apenas aparência" (1b., p. 15). Perante a experiência exterior a que se haviam apegado os iluministas e os seus epígonos, Ravaisson afirma a supremacia da "experiência. de consciência", da apercepção interior. Quando se serve dela, a filosofia é "a ciência por excelência das causas e do espírito de todas as coisas, porque é, acima de tudo, a ciência do Espírito interior na sua Causalidade vivente "(Phil. contemp., trad. ital., em Ensaios filosóficos, p. 117). Mas se a consciência, em que o espírito é ao mesmo tempo espectador e actor, não revela outra coisa por toda a parte senão actividade espiritual, como se explica a aparência da inércia, do mecanismo, numa palavra, da natureza material? A esta pergunta procurou Ravaisson responder (nas pisadas de Maine de Biran) no seu ensaio 150 intitulado O hábito. Concebe o hábito como o termo médio entre a natureza e o espírito, como o que permite entender a sua unidade. O hábito é uma actividade espiritual, inicialmente livre e consciente, que, com a repetição dos seus actos, dá lugar a movimentos nos quais o papel da vontade e da reflexão é cada vez menor e que acabam, portanto, por se realizar automaticamente. No entanto, os movimentos habituais não provêm da inteligência, porque se dirigem sempre para um fim e o fim implica a inteligência. Mas o fim acaba por se confundir com o movimento, e o movimento com uma tendência instintiva que actua sem esforço e com segurança. Devido a esta presença do fim, diz Ravaisson que o hábito é uma ideia substancial, isto é, uma ideia que se transformou em substância, em realidade, e que actua como tal. "A compreensão obscura, que advém do hábito da reflexão imediata em que o sujeito e o objecto se confundem, é uma intuição real, em que se confundem o real e o ideal, o ser e o pensamento" (Do hábito, em Escritos fil., p. 39-40). O hábito não é, portanto, um puro mecanismo, uma necessidade exterior, mas é antes uma lei de graça, dado que indica o predomínio da causa final sobre a causa eficiente. Permite, por isso, compreender a natureza como espírito e actividade espiritual. Demonstra que o espírito pode volver-se natureza (degradando a
actividade livre em instinto), assim como a natureza pode tornar-se espírito. Permite, enfim, ordenar todos os seres numa série, em que natureza e espírito representam os limites extremos. "0 limite inferior é a necessidade, ou o destino, se se preferir, mas na 151 espontaneidade da natureza; o limite superior é a liberdade do entendimento. O hábito desce de um ao outro, aproxima estes dois contrários e, aproximando-os, revela-lhes a íntima essência e a necessária conexão" (Do hábito, em Escritos fil., p. 55). Isto permite a Ravaisson consolidar a sua tese de que mecanicismo e necessidade são apenas aparência; a realidade é apenas espontaneidade e liberdade, revela em toda a parte a acção de Deus, que é vontade e amor, e no qual vontade e amor se identIFicam (Rapport, p. 254.). No seu Testamento filosófico Ravaisson chama ao espiritualismo "a filosofia heróica ou aristocrática", em oposição à "filosofia. plebeia", o materialismo ou o positivismo empirista. Segundo a filosofia aristocrática, o mundo é a revelação progressiva da divindade criadora e da alma, que é a sua imagem e intérprete. "Separação de Deus, retomo a Deus, encerramento do círculo cósmico, restituição do equilíbrio universal, tal é a história do mundo. A filosofia heróica não constrói o mundo com unidades matemáticas ou lógicas com abstracções separadas de realidade do entendimento, é com o coração que ela atinge a realidade viva, alma em movimento, espírito de fogo e de luz" (Revue de Mét. et de Mor., 1901, p. 31). § 678. LACHELIER. JAURÈS Menos retórica, mas não menos rica, é a produção filosófica de Júlio Lachelier (18341918), autor de dois ensaios: O fundamento da indução (1817) c 152 BOUTROUX Psicologia e metafísica (1885), de Estudos sobre o silogismo (1907) e de alguns escritos menores. A influência que Lachelier exerceu sobre os pensadores espiritualistas do seu tempo, é devida sobretudo à sua obra de professor da Escola Normal Superior de Paris. Os temas da sua filosofia nada têm de original. O ensaio sobre o fundamento da indução visa substancialmente a contrapor a realidade da ordem finalista da natureza à aparência da ordem mecânica. A natureza fundada na lei necessária das causas eficientes tem uma existência puramente abstracta, idêntica à ciência de que é o objecto; a natureza fundada na lei contingente das causas finais tem uma existência concreta que se identifica com a própria função do pensamento. Mas a própria existência abstracta só é concebível tomando por base a existência concreta: o retorno de uma causa natural a outra detém-se apenas quando se considera o fim; de modo que a verdadeira realidade da natureza é a contingência universal, a liberdade. Por isso, "a verdadeira filosofia da natureza é um realismo espiritualista aos olhos do qual todo o ser é uma forca e toda a força um pensamento que tende a uma consciência cada vez mais completa de si mesmo" (Du fond. de 1'ind., p. 102).
Em Psicologia e metafísica, a diferença entre estas duas tendências funda-se na diversidade de atitudes interiores do homem. "0 homem interior é dúplice e não é de admirar que seja objecto de duas ciências que se completam mutuamente. O domínio próprio da psicologia é a consciência sensível: só conhece o pensamento pela luz que irradia sobre a sensação: a ciência do pensamento em si mesmo, da luz 153 na sua fonte, é a metafísica" (Psych. el. Mét., P. 172-173). O que distingue o espiritualismo de Lachelier do de Ravaisson e de Maine de Biran é que o princípio espiritual não é entendido como vontade mas sim como pensamento, ou seja, como actividade que se objectiva na realidade existente para retornar a si mesma como consciência. O pensamento que não pusesse espontaneamente o ser concreto seria abstracto e vazio; mas depois de ter posto o ser concreto, deve procurar não ser senão ele mesmo, isto é, "pura consciência e pura afirmação de si". Mas reportar tudo ao pensamento significa reportar tudo a Deus. O espiritualismo tem em Lachelier a mesma tonalidade religiosa que nos outros espiritualistas. Ns seus cursos inéditos da Escola Normal, expressou claramente esta religiosidade: "A conclusão da filosofia da natureza é que a realidade do mundo é Deus; a conclusão da filosofia do homem é que tudo o que há de real, de espiritual, de imortal no homem é Deus" (in Séailles, La phil. de Lachelier, p. 115). No espiritualismo se inspira também um dos mais eminentes representantes do socialismo francês, Jean Jaurès (1859-1914), que na sua obra, A realidade do mundo sensível (1891), sustentou a íntima união entre Deus, por um lado, e o homem e o mundo, pelo outro. O nexo desta união é a consciência, e Deus é consciência absoluta. "Chamo consciência absoluta à força de unidade omnipotente, na qual todas as consciências individuais participam necessariamente quando dizem eu" (p. 345). O eu particular do homem nunca se identifica, porém, com. o eu infinito de Deus. " O eu absoluto, perfeito, eterno 154 e divino é-nos externo e superior, ao mesmo tempo que nos é interior (p. 332). Jaurès procura conciliar este espiritualismo com o materialismo económico de Marx. Admite, com Marx, que os ideais são o reflexo dos fenómenos económicos no cérebro humano, mas acrescenta que também existe o cérebro humano e, portanto, a preformação cerebral da humanidade. Assim, a evolução da humanidade para o socialismo será, sem dúvida, determinada pelas forças económicas mas "com a condição de que existam já no cérebro, juntamente com o senso estético, a simpatia imaginativa e a necessidade de unidade, as forças fundamentais que intervêm na vida económica" (Pages choisies, 1922, p. 369). § 679. BOUTROUX Exerceu uma grande influência no espiritualismo francês contemporâneo, quer com as suas obras quer através do seu ensino (na Sorbonne e na Escola Normal Superior), Emílio Boutroux (1845-1921), autor de dois ensaios: A contingência das leis da natureza (1874) e A ideia de lei natural na ciência e na filosofia contemporânea (1895), que tratam do mesmo tema, e de um livro, Ciência e religião na filosofia contemporânea (1908), bem como de numerosos estudos históricos, alguns dos quais publicados depois da sua morte. Boutroux. capitaneou e conduziu em França uma
polémica contra o positivismo, travando a luta no próprio baluarte da ciência: o conceito de lei moral. 155 O seu primeiro escrito A contingência das leis, da natureza toma em consideração as realidades sobre as quais versa a investigação científica: a matéria e os corpos, o organismo e o homem. Todas estas realidades apresentam uma crescente riqueza de qualidade, de variedade, de individualidade, que não se deixa reduzir à uniformidade de tipos e à necessidade mecânica. Toda a ordem de realidades apresenta um certo grau de originalidade e de novidade com respeito à ordem inferior e não pode por isso ser explicada por ela. Toda a ordem é, portanto, contingente em relação às outras; e contingência significa liberdade. O princípio de causalidade, com o qual se costuma exprimir a necessidade. -"Tudo o que sucede é um efeito proporcionado à causa"suporia uma uniformidade entre o efeito e a causa, uma, uniformidade que excluiria no efeito qualquer variação, qualquer aparecimento de novos caracteres. Mas isto não se verifica, porque o efeito apresenta sempre qualquer coisa de novo em relação à sua causa. Além disso, as várias ordens de realidade não são redutíveis uma à outra; e também neste sentido são contingentes. Os corpos não se reduzem à matéria (isto é, à extensão e ao movimento), mas têm outras qualidades que são por isso contingentes em relação à própria matéria. A vida, por seu turno, não se pode reduzir aos corpos e às leis fisicoquímicas que os governam. A vida humana, como vida espiritual, é irredutível à vida puramente orgânica: a consciência de si, a reflexão sobre os próprios modos de ser, a personalidade, não se podem reduzir a nenhum outro elemento da realidade. Na vida interior do homem, o 156 motivo não é causa necessitante: a vontade dá a sua preferência a um motivo e não a outro, e o motivo mais forte não o é independentemente da vontade, mas precisamente em virtude dela (p. 124). São estas as considerações que inspirarão a primeira obra de Bergson, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Deste ponto de vista, o universo apresenta-se como uma série de mundos irredutíveis uns aos outros, que constituem uma hierarquia que tem por cume Deus. "Nos mundos inferiores a lei tem um lugar tão amplo, que quase se substitui ao ser; nos mundos superiores, pelo contrário, o ser faz quase esquecer a lei. Assim, todo o facto depende não só do princípio de conservação, mas também, e desde o início, de um princípio de criação" (1b., p. 139). As teses do espiritualismo encontram-se confirmadas: o mundo é liberdade, harmonia, finalidade. "Deus não é apenas o criador do mundo; é também a providência e vela tanto pelos pormenores como pelo conjunto" Qb., p. 150). O outro ensaio de Boutroux, A ideia da lei natural na ciência e na filosofia contemporânea (1894) coloca-se mais directamente no terreno das ciências positivas, submetendo à crítica o próprio conceito de lei. Examina os vários grupos de leis (lógicas, matemáticas, físicas, químicas, biológicas, psicológicas, sociológicas) e mostra não só que todo o grupo de leis é
irredutível ao grupo inferior e, portanto, contingente em relação a ele, mas também que todas as leis são tanto mais necessárias quanto mais abstractas são e afastadas estão da realidade, e perdem o seu valor 157 necessário à medida que se aproximam da realidade concreta. A única lei absolutamente necessária é o princípio de identidade A = A; mas este princípio não diz absolutamente nada acerca da existência e natureza de uma realidade qualquer. Ao passo que as outras leis da lógica, concernentes ao silogismo, não são necessárias e contêm uma margem de contingência; e esta margem aumenta nas ordens sucessivas de leis, até alcançar o máximo nas leis psicológicas, que exprimem uniformidades sugeridas pela experiência, mas excluem toda e qualquer necessidade. Assim, o conceito de lei, tal como existe na ciência, não se opõe ao testemunho da consciência humana em favor da liberdade. "As leis que denominamos leis da natureza são o conjunto dos métodos que encontrámos para assimilar as coisas à nossa inteligência e obrigá-las ao cumprimento dos nossos desejos... Uma noção justa das leis naturais toma o homem senhor de si mesmo, e ao mesmo tempo mostra-lhe que a sua liberdade pode ser eficaz e pode dirigir os fenómenos" (De l'idée de loi natur., p. 142-43). Desmantelado o reduto do determinismo, Boutroux pode passar a defender a validez da religião. A conciliação entre o espírito científico e o espírito religioso só se pode obter colocando-se no ponto de vista da razão humana em geral. A ciência consiste em substituir as coisas por símbolos que exprimem um certo aspecto delas: o aspecto traduzível em relações relativamente precisas, inteligíveis e utilizadas para fins humanos. Mas, para lá destes aspectos, existe uma realidade irredutível às representações científicas; e existem, além das faculdades intelectuais que a 158 ciência utiliza, outras faculdades humanas que ela não utiliza. O significado da existência individual e social, a arte, a moral, implicam valores que a ciência é incompetente para julgar. O postulado da vida pode ser, segundo Boutroux, enunciado deste modo: "Agir como se entre a infinidade das combinações, equivalentes do ponto de vista científico, que a natureza produz ou pode produzir, alumas possuíssem um valor singular e pudessem adquirir uma tendência para serem e subsistirem" (Science et réligion, p. 362). Este postulado gera atitudes mentais que a ciência não justifica. A primeira destas atitudes é a fé, que pode ser guiada pela razão ou pelo instinto, mas que se move sempre no domínio do incerto, que está fora do campo da ciência. Mas a fé gera novos objectos de pensamento, representações intelectuais originais; e gera, outrossim, o amor e o entusiasmo por tais objectos ideais. Na fé, a religião encontra o seu próprio terreno. A religião é, em primeiro lugar, vida, acção, realização; em segundo lugar, é relação e comunhão com Deus como pai do universo; em terceiro lugar, é dever de amor. A sede própria de uma religião purificada de superstições é a consciência; e nesta sede a ciência já não pode
afectá-la. "0 escopo da religião difere do da ciência; ela não é, ou antes, deixa de ser, a explicação dos fenómenos. Não pode sentir-se afectada pelas descobertas da ciência relativas à natureza e à origem objectiva das coisas. Os fenómenos, observados do ponto de vista da religião, valem pelo seu significado moral, pelos sentimentos que sugerem, pela vida interior que exprimem e suscitam; e nenhuma explicação científica lhes pode 159 tirar tal carácter" (1b., p. 383). Fundada nos dois dogmas fundamentais, a existência de um Deus vivo, perfeito e omnipotente, e a comunhão entre Deus e o homem, a religião conserva o seu antigo carácter de génio tutelar das sociedades humanas, na medida em que pretende a união de todas as consciências. E neste sentido, conservará precisamente os ritos exteriores que, "transmitidos por tantos séculos e povos, são os símbolos incomparáveis da perpetuidade e da amplitude da família humana" (1b., p. 390). A filosofia de Boutroux caracteriza-se pela tentativa de chegar ao espiritualismo através da crítica intrínseca da ciência. A certa altura, porém, esta crítica torna-se extrínseca, porque desemboca no terreno da consciência, que, como pura interioridade espiritual, toma incompreensível a existência mesma da ciência, voltada para a exterioridade natural, Deste ponto de vista, a conciliação entre espírito científico e espírito religioso torna-se ilusória: o espírito científico é, inteiramente, absorvido e destruído pelo outro. § 680. HAMELIN A doutrina de Octávio Hamelin (1856-1907) foi apresentada pelo seu autor, e é comummente considerada como "idealismo". Na realidade, não tem nenhuma das características históricas do idealismo póS-kantiano. É, pelo contrário, uma dialéctica, mas uma dialéctica do finito, que considera o desenvolvimento das determinações finitas até à consciência humana como tal; não identifica este desenvolvimento com o 160 do infinito, isto é, o da Razão absoluta; e termina com o reconhecimento de um Deus transcendente, isto é, de um Deus que se encontra fora e para além da evolução concebido, à maneira de Leibniz, como o centro de unificação das consciências finitas. Estes traços são próprios do espiritualismo; e a doutrina de Hamelin distingue-se do restante espiritualismo francês apenas por uma maior sistematicidade e uma acentuação mais decididamente racionalista. Hamelin é autor, além de alguns estudos históricos (sobre Aristóteles, Descartes e Renouvier) de um Ensaio sobre os elementos principais da representação (1907). O pressuposto desta obra é que a representação não é (como a palavra sugere) a reprodução ou a imagem da realidade, mas a realidade mesma. "A representação é o ser e o ser é a representação" (1b., p. 374). É este o princípio que já os epígonos do kantismo, desde Reinhold a Schopenhauer, tinham admitido como indubitável. Para Hamelin, trata-se de assumir a representação ou os seus "elementos principais" como princípio de explicação de todos os aspectos da realidade, e demonstrar a génese lógica desses aspectos pela própria representação. Para este fim, o método analítico é ineficaz, segundo Hamelin: não faz mais do que desenvolver o conteúdo já implícito nos conceitos, mas não conduz a nenhuma nova conquista. A dedução, que se serve deste método e que, partindo de certos princípios fundamentais, pretende reconstruir a realidade, é incapaz de manter o que promete. Vê-se
obrigada a admitir esses princípios sem os justificar, limitando arbitrariamente a actividade do pensamento. É necessário, portanto, um 161 método sintético, isto é, construtivo, capaz de progredir de conquista em conquista. Este método nasce da insuficiência das noções abstractas e, por isso, partindo delas procura enriquecê-las gradualmente até alcançar o ser concreto na sua máxima expressão: a consciência. Todavia, o método sintético não criará o mundo da representação, que já vive na consciência que se serve do método: reconstituí-lo-á logicamente, mostrando que cada um dos seus elementos terá o lugar próprio no desenvolvimento dialéctico em virtude de uma lei que o liga às precedentes. Assim, a ordem lógica das ideias, a sua concatenação racional, não coincide com a ordem cronológica ou histórica em que se apresentaram à consciência. "0 facto de uma noção - diz Hamelin (1b., p. 402) - ter uma história, o facto de se desenvolver tão tarde, em nada diminui a sua aprioridade". Esta não-coincidência entre a ordem lógica e a ordem histórica coloca Hamelin em nítida oposição a Hegel, que afirmava a identidade entre as duas ordens, e torna impossível entroncar a sua doutrina no idealismo romântico. O método sintético é o método da relação: consiste em mostrar a conexão necessária das noções opostas. Hegel errou, segundo Hamelin, ao considerar a contradição a mola real da dialéctica; a mola desta é, ao invés, a correlação, pela qual os opostos se atraem e colaboram uns com os outros. Hamelin conserva a forma triádica da dialéctica que procede mediante a tese, a antítese e a síntese, mas tira a esta força aquilo que, segundo Hegel, era a alma dela e constituía a essência da dialéctica: a contradição. Através do movimento triádico, o universo revela-se 162 como "uma hierarquia de relações cada vez mais concretas, até atingir um termo último em que a relação acaba por se determinar, de modo que o absoluto é ainda o relativo. É o relativo porque é o sistema das relações e também porque não é apenas o termo da progressão, mas também, por excelência, o ponto de partida da regressão" (1b., p. 20). Partindo destes pressupostos, a dialéctica de Hamelin procede à reconstrução da realidade finita, da categoria mais geral e mais abstracta, a de relação, à categoria mais concreta, a da consciência. A primeira tríade é a da relação, do número e do tempo; a ela se seguem as outras (tempo, espaço e movimento; movimento, qualidade, alteração; alteração, especificação, causalidade; causalidade, finalidade, personalidade), concatenadas de um modo que pretenderia ser rigoroso mas que, como sempre acontece nestas tentativas dialécticas, é simplesmente arbitrário e fantástico. A última tríade marca, evidentemente, a passagem do mundo da natureza, caracterizado pela causalidade, ao mundo do espírito, caracterizado pela finalidade, que subordina a si a causalidade, porquanto "o que é inarmónico está condenado a uma existência precária e talvez também algumas vezes à inexistência" (Ib., p. 341). A personalidade é constituída essencialmente pela liberdade, e a liberdade implica a passagem à consciência. A consciência é a
existência para si. "0 facto de existir por si deriva do facto de que o ser actua, e actua no sentido mais forte da palavra. E esta acção verdadeira e originária, esta acção livre e contingente, é a que dá a consciência" (1b., p. 410). A consciência é, essencialmente, 163 pensamento. "Ê necessário conhecer o pensamento como uma actividade criadora que produz a um tempo o objecto, o sujeito e a sua síntese: mais exactamente, uma vez que não é preciso pôr nada por debaixo da consciência, o pensamento é este processo bilateral mesmo, o desenvolvimento de uma realidade que é a um tempo sujeito e objecto, ou seja, consciência" (Ib., p. 373). Quando o objecto predomina, como sucede na actividade contemplativa, trata-se da representação teórica; quando, ao invés, predomina o sujeito, como acontece na acção livre, trata-se da representação prática. A primeira exprime-se no raciocínio, de que são abreviações ou condensações o conceito e o juízo. A segunda realizase na vontade livre, que escolhe entre os possíveis e assim infunde vida à ordem ideal e substitui a lógica pura pela história (Ib., p. 443). A consciência é o cume da realidade, o ser concreto por excelência, e fora dela nada existe. Com ela se cerra a marcha progressiva do pensamento e termina a construção sintética do universo (1b., p. 480-81). Mas a conclusão da dialéctica não chega a calar a inquietação humana e, portanto, a exigência de uma investigação ulterior. Contudo, esta, como não pode utilizar o método sintético, alcançará resultados simplesmente prováveis. Neste plano, Hamelin admite uma Consciência universal, centro e fundamento das consciências inferiores: Deus. Exclui quer o materialismo, quer o panteísmo idealista: e inclina-se para o teísmo. "A existência , de per si, quando a tomamos em sentido absoluto, o universo, com a sua organização tão extraordinariamente vasta e profunda, são 164 prodigiosos fardos: só Deus pode carregar com eles" (Ib., p. 494). No entanto, o mundo não pode ter saído das mãos de Deus, que é a bondade mesma; cumpre admitir, com Renouvier, que ele é o produto de uma queda original. Poderá, no entanto reerguer-se, para se converter no "teatro do triunfo e do reino integral e sim fim da justiça" (1b., p. 504). § 681. O ESPIRITUALISMO EM INGLATERRA A consideração da filosofia inglesa oferece vasta matéria que desmente o carácter nacional da filosofia do século XIX e torna ilegítima qualquer tentativa para a dividir ou coordenar por nações. Com efeito, esta filosofia alimentou-se sempre da sua própria tradição; e só de vez em quando se deixou penetrar e estimular pela filosofia que se pode considerar como a mais robusta, ou pelo menos, a mais poderosa filosofia: a germânica. Apesar disto, a
filosofia inglesa apresenta os mesmos traços típicos que o resto da filosofia europeia e aparece, em todas as suas fases, solidária com esta. Vimos já que tiveram representantes em Inglaterra o tradicionalismo espiritualista, fundado na metafísica da revelação (§ 628), e o positivismo espiritualista, fundado na metafísica da evolução (§ 660). Manifesta-se em Inglaterra com iguais características o espiritualismo contemporâneo, fundado no princípio da consciência e defensor da pessoa e da transcendência dos valores. 165 Entre as mais eminentes manifestações deste espiritualismo figura a obra filosófica de Atur James Balfour (1848-1930), homem político e autor de escritos filosóficos destinados à defesa da espiritualidade religiosa (Defesa da dúvida filosófica, 1879; As bases. da fé, 1895; Decadência, 1908; Interrogações sobre a crítica e sobre a beleza, 1909; Teísmo e humanismo, 1915; Teísmo e pensamento, 1923). Balfour polemiza contra o positivismo naturalista em nome dos direitos da consciência, que vê testemunhados e expressos pelas exigências da vida moral. O ponto de vista e o fundamento da sua investigação é "o sentido íntimo individual"; considera que toda a atitude humana e todo o saber, incluindo a ciência, deve admitir uma certa harmonia entre este senso íntimo e o universo de que o homem faz parte. Esta harmonia é algo menos necessário do que o liame que existe entre as premissas e a conclusão, mas mais estável e permanente do que a relação que existe entre uma necessidade e a sua satisfação. "Que não tenha a força lógica do primeiro, é coisa já admitida ou, melhor, concedida; que não possua o carácter acidental, flutuante e puramente subjectivo do segundo, é algo que é preciso antes reconhecer como verdadeiro. De facto, a harmonia requerida não se encontra entre as fugazes fantasias do indivíduo nem entre as verdades imutáveis do mundo invisível, mas sim entre as características da nossa natureza, que reconhecemos em nós, se não corno algo necessariamente mais forte, decerto como algo mais elevado, e se nem sempre como a coisa mais universal, indubitavelmente como a mais nobre" (The Fundations of Belief, trad. ital., p. 209). 166 Em nome deste acordo, Balfour exclui a legitimidade do naturalismo que se opõe ao sentido íntimo da consciência. "Se o naturalismo fosse verdadeiro, ou, melhor, se contivesse toda a verdade, a moral reduzir-se-ia a um simples catálogo de prazeres utilitários, a beleza, ao ensejo acidental de um prazer efémero, a razão, à passagem obscura de uma série de hábitos irreflectidos a outra série. Tudo o que confere dignidade à vida, o que toma estimáveis os esforços, cairia, para desaparecer sob o esplendor cruel de uma teoria semelhante; e até a curiosidade, a mais intrépida das paixões mais nobres da alma, deveria perecer sob a convicção de que, nem nesta geração nem em nenhuma outra futura, nem nesta vida nem na outra, se romperá inteiramente o vinculo pelo qual a razão, tal como o apetite, se mantém em dependência hereditária em relação aos nossos desejos materiais" (1b., p. 58). Mas não se deve confundir o naturalismo, negador da consciência, com a ciência, pois a missão desta não é, de facto, negar a realidade de um mundo que não nos é revelado pela percepção dos sentidos e a existência de um Deus que pode ser conhecido, embora imperfeitamente, por aqueles que o buscam com ardor. A ciência diz unicamente, ou deveria dizer, que isto são coisas que estão fora da sua competência, que devem ser levadas a outros tribunais e perante juízos que apliquem outras leis. Por outro lado, Balfour
polemiza igualmente contra o idealismo, o qual identifica o homem com Deus ou, pelo menos, faz dele uma manifestação necessária de Deus. Se assim fosse-observa ele (Ib., p. 115)-, não se ex167 plicaria o carácter contingente e finito do homem. No testemunho da consciência assenta a fé religiosa, a qual constitui um auxílio indispensável da acção moral. E a fé só pode assumir a forma do teísmo, uma vez que Deus não pode ser considerado como um longínquo arquitecto do universo, mas sim como partícipe dos sofrimentos humanos e como auxílio eficaz para os superar (The foundations of Belief, trad. ital., 1906, p. 271). A polémica contra o naturalismo domina em Teísmo e humanismo e em Teísmo e pensamento. Os valores espirituais não podem ser o produto acidental de uma evolução mecânica; supõem a acção de Deus, como a obra de arte supõe o artista. Enquanto Balfour desenvolve o seu espiritualismo sobretudo em polémica com o naturalismo, Andrew Seth Pringle-Pattison. (1856-1931) elabora-o em oposição ao coetâneo idealismo hegelianizante. A obra mais conhecida de Pringle-Pattison é a que se intitula A ideia de Deus à luz da recente filosofia (1917). Outros escritos notáveis são: O desenvolvimento desde Kant a Hegel, 1882; A filosofia escocesa, 1885; Hegelianismo e personalidade, 1887; Duas conferências sobre o teísmo, 1897, O lugar do homem nos cosmos, 1897; A ideia da imortalidade, 1922. Para Pringle-Pattinson, "a consciência absoluta" de que falam Green e Bradley é uma abstracção lógica hipostasiada. O erro dos idealistas é o de confundir a ontologia com a gnoseologia: se na gnoseologia, que é a ciência das representações como símbolos ou sinais da realidade, todo o dualismo é inconcebível, na ontologia, ao invés, é inevitável o dualismo entre a consciência indi168 vidual e o mundo trans-subjectivo. A psicologia distingue-se, portanto, da ontologia e da gnoseologia e é precisamente dela que se exige o testemunho do Absoluto, que é o fundamento da religião. Com efeito, a consciência moral e religiosa dá-nos, pelo menos, um conhecimento parcial da vida divina e bem assim a certeza de que as possibilidades do pensamento não podem exceder a realidade do ser. As nossas concepções do ideal no seu estádio superior revelam uma perfeição real na qual se encontra unificado tudo quanto existe no coração dos homens e também o que é mais do que isso (The idea of God, p. 241). Mas a experiência interior que revela ao homem a realidade de Deus, revela também a sua transcendência. A transcendência não significa que Deus e o homem sejam duas realidades reciprocamente independentes. Deus não tem sentido para nós fora da relação com a nossa consciência e com os espíritos que nos são afins na busca dele. A transcendência implica uma distinção de valor e de qualidade, não uma separação ontológica, e exprime apenas a infinita grandeza e riqueza da vida divina comparada com a das criaturas finitas. Pringle-Pattison crê que Deus pode ser concebido como "uma infinita experiência" que parcialmente se manifesta e se efectua na experiência finita dos homens, mas não se exaure nela. A divindade não preexiste ao mundo, mas vive só nele e para ele, como o fundo finito vive só para a divindade e na divindade. Deus vive na contínua dádiva de si mesmo (Ib., p. 411). Como
pode, pois, a realidade de Deus conciliar-se com a individualidade e independência moral das pessoas finitas é, segundo 169 Pringle-Pattison, o mistério último, oculto mas não explicado pela palavra criação. E é um mistério que deverá necessariamente permanecer sempre um mistério porque explicá-lo significaria para o homem transcender as condições da sua individualidade e refazer efectivamente o processo da criação. (lb., p. 390). O interesse religioso é dominante nos escritos de Clement C. J. Web (1865-1954): Os problemas, da relação entre o homem e Deus, 1911; Estudos de história da teologia natural, 1915; Teoria global da religião e do indivíduo, 1916; Deus é personalidade, 1919; Personalidade divina e vida humana, 1920; A filosofia e a religião cristã, 1920; Esboços de uma filosofia da religião, 1924. Webb crê que a filosofia da religião deve tomar como ponto de partida a experiência religiosa e que esta consiste na certeza de uma relação pessoal com Deus. Mas como objecto da consciência religiosa, Deus não pode ser concebido como o Absoluto impessoal de que falam os idealistas; somente, a forma da personalidade espiritual justifica e satisfaz as exigências do coração e a necessidade da humildade religiosa. Como pessoa, Deus é ao mesmo tempo transcendente e imanente. É imanente enquanto está presente na natureza e na história; é transcendente enquanto é superior a uma e a outra e alimenta com forças sempre novas a vida religiosa do homem. Enquanto é experimentado pelo homem na consciência religiosa, Deus é um ser distinto do homem; no entanto, esta mesma experiência inclui-se na vida divina como seu elemento constitutivo. 170 James Ward (1834-1923), autor de numerosos escritos de psicologia introspectiva e de um tratado de psicologia (Princípios psicológicos, 1918) desenvolveu a sua concepção espiritualista do mundo, em oposição à doutrina naturalista, em dois cursos de Gifford Lectures: Naturalismo e agnosticismo (1899) e O reino dos fins ou pluralismo e teísmo (1911). Segundo Ward, o naturalismo e o agnosticismo cometem o erro de reduzir a experiência ao seu conteúdo objectivo e de desprezar completamente o seu aspecto subjectivo e vivido. Sob este aspecto, a experiência, na sua totalidade, manifesta-se como vida, autoconservação, autorealização, e apresenta a sua estrutura central não no conhecimento mas na vontade. "Não é o conteúdo dos objectos, que o sujeito não pode alterar, que lhes dá o seu lugar na experiência, mas sim o seu valor positivo ou negativo, o seu carácter bom ou mau que deles faz fins ou meios para a vida" (Naturalism and Agnosticism, II, p. 134). O mesmo conceito da natureza como sistema de leis uniformes encontra o seu fundamento naquilo que nós somos
como indivíduos autoconscientes e livres. A unidade da natureza é a contrapartida ideal da unidade actual de cada experiência individual. É um ideal para o qual damos o primeiro passo quando iniciamos as relações intersubjectivas e o raciocínio, e do qual nos aproximamos cada vez mais à medida que a ciência toma o lugar da mitologia e a filosofia da ciência Qb., p. 235). Ward tende, por isso, a identificar o conceito de natureza com o de história. Tanto na natureza como na história, devemos distinguir a acção de uma multiplicidade de seres psíquicos, de mónadas, 171 em graus diversos de desenvolvimento, e todas dominadas pela tendência à autoconservação. A ordem e a regularidade do mundo não são um pressuposto desta multiplicidade de mónadas, mas antes o resultado da sua coordenação progressiva. As leis naturais são apenas a mecanização da originária actividade finalista das mónadas. Este pluralismo monadológico supõe, como Leibniz vira, um teísmo. E o teísmo implica que Deus se limite a si mesmo na criação das mónadas, já que uma divindade que não concedesse a liberdade à criatura não seria uma divindade criadora. Bem certo que a única prova possível da existência de Deus é, como Kant reconhecera, a que se funda na vida moral e por isso mesmo cai no âmbito da fé; não do saber. Mas entre fé e saber não existe oposição nem dualidade. O que sabemos devemos também crê-lo, e sem fé não se pode viver nem agir. A doutrina de Ward é uma das mais límpidas e equilibradas exposições dos temas fundamentais de todo o espiritualismo contemporâneo. § 682. O ESPIRITUALISMO EM ITáLIA. MARTINETTI O espiritualismo foi, juntamente com o positivismo, um elemento constitutivo do clima filosófico italiano; mas, as mais das vezes tomou as formas tradicionais do espiritualismo católico, sem dar lugar a elaborações originais nem provocar, de algum modo, o aparecimento de novos problemas. As mais notáveis manifestações do espiritualismo italiano cri172 contram-se nas doutrinas de Martinetti, Varisco e Carabellese, as quais se opõem tanto ao positivismo como ao idealismo e têm pontos de contacto com correntes análogas do espiritualismo germânico, especialmente com Lotzo e Spir. O espiritualismo de Pedro Martinetti (Castellamonte, 1871-1943) possui uma tonalidade religiosa, mas caracteriza-se pela redução da própria religião e das demais atitudes humanas ao conhecimento. Os escritos de Martinetti são constituídos pela exposição e crítica de numerosas doutrinas filosóficas modernas, principalmente das alemãs, a que se dá amiúde um
relevo superior à importância que verdadeiramente têm. Mas, em troca, apresentam escassas referências precisas à filosofia antiga e medieval. Entre estes escritos, os mais importantes são a Introdução à metafísica (1904) e A liberdade (1928), assim como as colectâneas: Ensaios e discursos (1929), Razão e fé (1942). Martinetti ocupou-se também de estudos religiosos que influíram muito no seu pensamento (0 sistema Sankhya, 1897; Jesus Cristo e o cristian.`Smo, 1934). Martinetti põe a ciência e a filosofia no mesmo plano, mas considera as ciências como formas de conhecimento imperfeito e preparatórias em relação à filosofia. A distinção entre ciência e filosofia, assim como a que se deve estabelecer entre ciência e ciência, tornou-se necessária por causa da divisão do trabalho mas não alimenta a unidade fundamental. "A filosofia tem o seu fundamento nas ciências; as ciências têm como escopo a filosofia" (Intr., ed. 1929, p. 33). O terreno em que a filosofia se coloca e se deve 173 colocar é o da consciência: "A forma universal e fundamental do ser é o ser para a consciência, o ser na forma de acto consciente" (1b., p. 410). A consciência é constituída essencialmente pela relação entre uma multiplicidade dada, que é o objecto, e uma unidade, que é o sujeito. Mas também a multiplicidade objectiva é constituída por uma unidade subjectiva inferior "que o sujeito, elevando-se a uma reflexão superior, contrapõe à sua própria unidade como multiplicidade objectiva". Isto não é mais do que o monadologismo leibniziano renovado por Lotz; e conformemente à lógica deste monadologismo, Martinetti admite uma multiplicidade de sujeitos particulares, unificados e sustentados por um Sujeito absoluto. "Só um é o sujeito, embora reflectido num número infinito de seres: todo o movimento, todas as vidas, toda a existência mais elevada, não é mais do que um tender para a Unidade suprema; e todo o conhecimento, não é mais do que o desvanecer-se de uma ilusão, o reconhecimento imperfeito do Sujeito universal que se vê a si mesmo em todas as coisas. Ele é o que conhece tudo e que por ninguém é conhecido, porque é o que todo o ser consciente chama eu. Somente esta unidade das coisas pode explicar as relações recíprocas que na consciência, na piedade e nas altas intuições da arte e da religião se estabelecem entre o que eu chamo o meu próprio eu e a alma secreta das coisas" (Ib., p. 158). O Sujeito absoluto, embora estando sempre presente nos sujeitos individuais no acto da "síntese aperceptiva suprema", não se identifica com eles, e com esta diversificação origina neles a distinção entre sujeito e objecto. O progresso do conhecimento, desde 174 os seus graus sensíveis ao racionais, é um progresso para a unidade do Sujeito absoluto. A intuição desta unidade é o único elemento a priori, no sentido de uma virtualidade intrínseca que representa constantemente na vida psíquica do homem o ideal intelectivo. O Sujeito absoluto está para além do múltiplo, do tempo e de todo o processo, para além dos esforços com que os seres particulares tendem a ele. E Martinetti, enquanto insiste no
valor destes esforços (que constituem as verdadeiras e próprias actividades humanas, o conhecimento, a arte, a moralidade, a religião) e coloca a unidade absoluta como termo deles, é também levado a insistir na transcendência da Unidade, em relação à qual todo o resto é aparência insignificante. Assim, a vida moral é, decerto, a comunhão dos espíritos, a qual se desenvolve historicamente no tempo, mas não é mais do que o símbolo da realidade absoluta que é o fundamento dela: "a comunhão perfeita, eternamente presente dos espíritos em Deus" (Razão e fé, p. 402). Perante esta realidade transcendente, as próprias religiões não são mais do que um conhecimento aproximativo e simbólico, em relação às quais a filosofia exerce uma função crítica e renovadora. Quando a religião degrada e se fixa nas formas dogmáticas, a filosofia intervém para renovar o material teorético dos seus símbolos e assim a impele a mover-se e a renovar-se. Esta mesma função é por vezes exercida pelos místicos. A filosofia e a religião não são, portanto, duas forças estranhas: a sua luta é a mesma luta que existe "entre as tendências conservadoras e as inova175 doras, a qual em todos os campos da vida prepara o progresso para as formas superiores" (Ib., p. 493). A única caracterização possível de Deus é a que nele vê uma Razão infinita, isto é, "a unidade viva de uma multiplicidade infinita de relações e de elementos essenciais à mesma" (A liberdade, p. 490), Trata-se ainda, sem dúvida, de um conceito simbólico de Deus, mas é o símbolo supremo e mais adequado. E é o único conceito que permite compreender a liberdade humana, a qual não pode pertencer ao homem como fenómeno mas só ao homem como personalidade divina, como pura razão (1b., p. 491). Mas, neste sentido, a liberdade não é mais do que a espontaneidade da razão; e a espontaneidade da razão é a necessidade mesma. Em todas as suas formas, segundo Martinetti, liberdade é espontaneidade, e espontaneidade é concatenação necessária (lb., p. 349). Aqui está, indubitavelmente, representado o conceito espinosano da liberdade como coincidência com a necessidade; e neste conceito se cifra o ideal da vida moral. "Na realidade humana, esta liberdade imutável, que se identifica com a necessidade da razão, é somente um ideal: o homem deve lutar por ela cada dia e nesta libertação consiste a finalidade da sua vida" (lb., p. 403) A liberdade não é, portanto, uma iniciativa humana, mas a acção que exerce no homem o princípio inteligível que constitui a sua razão, ou seja, o Sujeito absoluto. É uma espécie de graça iluminadora, que se realiza através do acto de conhecer (1b., p. 483). A doutrina de Martinetti tem todos os traços típicos do espiritualismo oitocentista: a orientação mo176 nadológica, a aceitação de algumas exigências naturalistas (por ex. de causalidade) e da ideia do progresso, a afirmação do Sujeito absoluto. É uma espécie de misticismo da razão, que tem o seu precedente na obra de Spir.
§ 683. VARISCO. CARABELLESE A concepção monadológica reaparece na filosofia de Bernardino Varisco (Chiari, 20 de Abril de 1850-21 de Outubro de 1933. Varisco atravessou uma fase positivista, que se manifesta sobretudo na sua obra Ciência e opiniões (1901), em que, pretendendo explicar toda a realidade física e psíquica mediante o atomismo, acaba por atribuir aos próprios átomos (como o fizera Haeckel) uma certa força psíquica. Mas já nesta obra, reconhecendo a fé religiosa e a sua visão da vida como um facto, deixava aberta a possibilidade de opiniões, isto é, de crenças, que coexistiriam com a ciência e que portanto deveriam, em última análise, reduzir-se à unidade com esta última. Nas obras seguintes: Máximos problemas (1909) e Conhece-te a ti mesmo (1912), Varisco aceita explicitamente o espiritualismo monadológico de Leibniz, completando-o com a doutrina do ser ideal de Rosmini. A realidade é constituída por uma multiplicidade de sujeitos particulares, cada um dos quais é um centro do universo fenoménico. Tais sujeitos são constituídos, não só pela consciência clara ou actual, mas também por uma esfera muito mais vasta: a subconsciência. Não existe númeno ou coisa em 177 si. Cada sujeito varia segundo uma espontaneidade que lhe é própria; mas as suas variações interferem com as de todos os outros sujeitos, e esta interferência é um fenómeno, ou seja, um facto objectivo. O aparecimento de um facto implica um factor alógico (mas nem por isso irracional), que é a actividade espontânea à qual é devida a variação dos sujeitos; e um factor lógico que é a unidade dos sujeitos, unidade pela qual eles se ligam uns aos outros e que é constitutiva de cada um deles. Nesta unidade repousa a ordem do universo, e, por conseguinte, a possibilidade das leis que o regulam. Para a explicar, Varisco recorre à ideia rosminiana do Ser. O Ser unifica os sujeitos particulares porque é, em primeiro lugar, o conceito comum a todo o ser pensante e, em segundo lugar, o elemento comum de todas as coisas ou objectos. É o objecto pensado que, como tal, não se resolve no acto pensante, mas constitui a necessidade e a finalidade de todo o pensamento (Mass. prob., 2 a ed., p. 262 sgs.). Quando o Ser não é pensado de forma explícita é sempre pensado de forma implícita ou subconsciente. Mas o ser pensado do Ser por parte dos sujeitos particulares é o pensar-se mesmo do Ser como Sujeito universal. De modo que "o existir dos sujeitos particulares, e, portanto, o existir do universo fenoménico, não são mais do que pensamentos do Sujeito universal: scientia Dei est causa rerum". Há um sujeito universal na medida em que o Ser (do qual todo o fenômeno e toda a unidade secundária de fenómenos é uma determinação) é consciente de si, ou, antes, é consciência de si. O mundo fenomé178 nico existe, na medida em que o Ser, consciente de si, realiza em si aquelas determinações (Conhece-te a ti mesmo, 2.a ed., p. 280).
As duas obras citadas, que são também as mais notáveis, deixam indeterminado o carácter do ser supremo e, por isso, indecisa a escolha entre panteísmo e teísmo. "Tais determinações, que constituem o mundo fenoménico, diz Varisco (Conhece-te a ti mesmo, p. 323-24), são ou não são essenciais ao Ser. No primeiro caso, é gratuito e vão supor outras determinações no Ser: estamos no panteísmo. No segundo caso, é inevitável supor no Ser outras determinações, que o constituam como pessoa: estamos no teísmo". Varisco admitia que, para reconhecer o finalismo do universo, e, portanto, a conservação providencial dos valores, cumpriria ver no Ser o conceito universal de Deus, mas considerava ainda "uma hipótese não justificada" a existência de um Deus pessoal (Mass, proble., p. 305). Nas obras seguintes, Linhas de filosofia crítica (1921), Sumário de filosofia (1928), e no escrito póstumo, Do homem a Deus (1939), Varisco resolve a alternativa no sentido do teísmo, isto é, de um Ser pessoal, e dá à sua filosofia um tom puramente religioso. "Como consciente de si mesmo, e não simplesmente nos indivíduos, mas em si mesmo, o espírito é Deus" (Sumário, p. 84). Varisco preocupa-se, no entanto, em garantir, frente a Deus, a espontaneidade do homem. Atribui a Deus uma autolimitação da sua própria omnisciência e, portanto, uma presciência limitada ao desenvolvimento global do mundo, a fim de que a actividade humana possa ser livre para agir por sua conta e 179 colaborar na obra da criação. Isto permite-lhe, finalmente, afirmar o finalismo e a providência do mundo e justificar (na sua obra póstuma) as categorias fundamentais da religião e especialmente do cristianismo. Está relacionada com o pensamento de Varisco a obra de Pantaleo Carabellese (18771948), que se poderia definir como um espiritualismo objectivista. A melhor obra de Carabellese é a que se intitula O problema teológico como filosofia (1931). Também é autor de numerosos escritos teoréticos e históricos (Crítica do concreto, 1921; Filosofia de Kant, 1927; O problema da filosofia desde Kant a Fichte, 1929; O idealismo italiano, 1937; O que é a filosofia, 1924), nos quais incessantemente expôs um ponto de vista que apresenta como a verdadeira "revolução copernicana" do pensamento moderno. Este ponto de vista é, segundo Carabellese, o da consciência comum: a única realidade concreta é a consciência, e a consciência é a consciência que o sujeito tem do ser. Mas - e este é o ponto fundamental - o ser, que é objecto da consciência, não é estranho à consciência. Não é, de modo algum, alheio a ela: é o objecto da consciência, absolutamente imanente nela, objecto que Carabellese chama em si unicamente para o distinguir, como puro ser universal, dos objectos empíricos dotados de existência particular. Não se deve pensar que, dos dois termos da consciência, um, o sujeito, seja consciência, e o outro, o objecto, seja não consciência. Deve-se pressupor antes o todo concreto que é a consciência racional: o sujeito consciente do objecto, o ser em si que está presente na consciência. O ser em si, como objecto puro da 180 consciência, não é a coisa real que resulta da experiência, é, antes, a coisa em si, que é o fundamento daquela. A coisa real é relativa; a coisa em si é absoluta: a primeira é a coisa na sua génese, a segunda é o princípio imanente deste génese. Mas se a
alteridade não pertence à objectividade da consciência, que é pura imanência, pertence, em troca, à subjectividade. O outro, que cada qual encontra no eu consciente como momento essencial da consciência, é o outro eu. A alteridade não é estranheza e não implica a diversidade, mas a homogeneidade: o outro do sujeito é, portanto, outro sujeito, outro eu; e a relação da alteridade é a relação de que resulta a multiplicidade dos sujeitos. A consciência concreta implica, portanto, não só a consciência de ser em si, mas também a subjectividade multíplice, que germina no ser e é por ele constituída. A subjectividade é sempre particular, individual, múltipla: a universalidade e a unidade estão no objecto. Isto indica que a experiência não é constituída pela relação sujeito-objecto, mas pela dos sujeitos particulares entre si. A experiência implica uma multiplicidade de experimentantes; e este ser conjunto dos experimentantes forma as coisas experimentadas, cujo complexo e cuja compenetração é a natureza. Ora, a coisa em si, o objecto puro da consciência, é o próprio Deus. Com efeito, os seus caracteres, a unicidade, o carácter absoluto, a universalidade, são os caracteres de Deus. Mas, como objecto puro, Deus é o ser, não o existente. A existência é própria das coisas particulares e empíricas em que se fragmenta, através da multiplicidade dos sujeitos, o objecto puro. Mas o objecto puro é, não 181 existe. Nem existe sequer como sujeito, uma vez que em tal caso teria ainda uma forma de existência. A afirmação de Deus é a objectividade implícita em todo o acto de pensamento: o conceito do filósofo, a intuição do crente só têm valor graças a ela. O argumento ontológico, que na tradicional forma existencial é insustentável, tomase inconcebível se o exprimirmos dizendo: eu penso, portanto afirmo Deus, se negas Deus, não pensas. Pensar significa, de facto, pensar o ser ou o objecto em si, isto é, Deus. Mas Deus não tem nenhuma das características que as religiões lhe atribuem, porquanto toda a religião assenta na consciência pontual e imperfeita do ser em si. Ele não é eu, não é sujeito, nem é sequer consciência, já que a consciência como conhecimento do ser em si não pode nunca tomar-se objecto (Prob. teol., p. 137). Deus é a ideia pura da razão, o em si do concreto e da consciência: não a consciência. Esta posição de Carabellese é a invenção simétrica do idealismo actualista de Gentile. As características que este idealismo atribui ao sujeito atribui-as Carabellese ao objecto: não é o eu, mas o objecto, que é pura actividade, unidade, e universalidade. E, reciprocamente, as características que o idealismo atribui ao objecto, atribui-as Carabellese ao sujeito: os sujeitos opõem-se ao objecto como o singular ao universal, o múltiplo ao ú nico, o relativo ao absoluto (1b., p. 55). A natureza, que para o idealismo é objectividade, torna-se subjectividade. A objectividade é Deus, a subjectividade é coisa real, natureza. Os próprios sujeitos são pura e simplesmente constituídos pelo objecto (Probl. teol., p. 105), assim como 182
para o idealismo os objectos são constituídos pelo sujeito. Esta simetria esclarece o significado histórico da doutrina de Carabellese, que é a transcrição do espiritualismo rosminiano nos termos do imanentismo actualista. Qual é a missão da filosofia deste ponto de vista? Evidentemente, a de atingir e libertar a objectividade da consciência na sua pureza. "0 verdadeiro e próprio saber filosófico, para que seja possível na sua indispensabilidade, deve ser explicação da objectividade pura de consciência e deve, por isso, ter as características de transcendentalidade, a qual o aparenta ao saber religioso, ou de problematicidade, a qual, ao invés, o distingue desta" (0 que é a filosofia, p. 266). A filosofia é o esforço para alcançar o princípio absoluto, o ser em si. Não está subordinada à vida, mas é antes a vida que está subordinada à filosofia, uma vez que, como toda a forma de existência, supõe o ser em si. Neste sentido a filosofia é inútil, é "uma divina inutilidade" (Ib., p. 279). É destituída de qualquer normatividade, porque também a normatividade, pondo-a ao serviço da vida, a subjugaria a ela (lb., p. 300). Está para além das vicissitudes humanas e recusa toda a historicidade: "o filósofo, mais do que qualquer outro homem que pensa, deve viver despreocupado do seu tempo, absorvido por tudo o que na consciência é superior à vida" (lb., p. 287). Há, indubitavelmente nesta posição de Carabellese o honesto propósito de garantir a autonomia e a dignidade da filosofia. Mas, -na forma que assume no seu pensamento, semelha aquele que, para se libertar da sujeição de respirar, quisesse viver fora do ar. 183 § 684. ESPIRITUALISMO EXISTENCIALISTA A partir da terceira década do nosso século o espiritualismo, embora mantendo-se fiel ao seu teor fundamental que é a "consciência" e os seus "dados imediatos", começa a abordar, nalgumas das suas formas, alguns temas existencialistas extraídos primeiramente de Kierkegaard e depois de Heidegger e Jaspers. A crítica do conhecimento racional e "objectivo", a distinção entre ser e existência, a instabilidade (ou o sentido do risco) da relação entre o homem e o mundo, portanto a angústia (ou a inquietação) que caracteriza esta relação, são os mais importantes destes temas, aos quais, por vezes, se junta o emprego da noção característica do existencialismo: a possibilidade. Estes temas são, no entanto, integrados no quadro do espiritualismo e servem, as mais das vezes, para ilustrar os seus aspectos mais especificamente religiosos. Na França, este tipo de espiritualismo tem o seu primeiro documento no Journal Métaphysique (1927) de Gabriel Marcel e tomou o nome significativo de "filosofia, do espírito". Gabriel Marcel (nascido em 1889), dramaturgo e crítico literário, é autor das seguintes obras filosóficas: Diário metafisico (1927); Ser e Ter (1935); Da recusa à invocação (1939); Homo viator (1944), O mistério do ser (1952); O homem problemático (1955). A tendência intimista da filosofia de Marcel transparece já na preferência que dá no diário à exposição do seu pensamento (Diário metafisico e 184
primeira parte de Ser e Ter); e é, além disso, evidente em todas as suas obras que tomam frequentemente a forma de uma confissão íntima do seu autor. O tom existencialista do Diário metafisico consiste exclusivamente no facto de que nele Gabriel Marcel se recusa a considerar o problema do eu e o problema de Deus como resolúveis no plano objecivo, isto é, mediante análises ou demonstrações racionais. Mas Gabriel Marcel chega até ao ponto de nem sequer os considerar como problemas: o ser, tanto o ser do eu humano, como o ser de Deus, não é problema, mas mistério. Em Ser e Ter define assim a distinção entre problema e mistério: "Um mistério é um problema que usurpa os seus próprios dados, que os invade e, portanto, os supera eliminando o problema". Assim, por exemplo, a união da alma com o corpo (constitutiva do eu) é um mistério porque se situa para lá da análise e não pode ser reconstruída sistematicamente a partir de elementos logicamente anteriores: não só é dada, mas é também dante (donnante), no sentido de uma contínua presença do eu a si mesmo. Por outros termos, para Gabriel Marcel, um problema é um conjunto de dados que se trata de unir e de conciliar sinteticamente. Dada esta noção tão originária de problema, não é de admirar que Gabriel Marcel negue que a existência seja um problema. O problema domina a categoria do ter, própria da consideração objectivante. Com efeito, nesta, os termos considerados são objectivos estranhos ao sujeito que os considera, e o acto de os reunir e descobrir o seu liame sintético é o que constitui o problema. A exterioridade dos termos 185 condiciona o ter na medida em que supõe a exterioridade da coisa possuída e o domínio sobre ela. Mas a categoria do ter é, na realidade, a categoria da sujeição do homem em relação ao mundo, uma vez que o domínio sobre a coisa possuída tende a inverter-se e a tornar-se o da coisa possuída sobre o possuidor. O homem que vive na categoria do ter é o homem esquematizado na sua função social ou vital, ligado à vacuidade do mundo e dos seus problemas. Mas para lá do ter e dos problemas que estão com ele relacionados, o ser revela-se no mistério de que se rodeia; e a única atitude possível frente a ele é, não já a da análise e da problematização, mas a do amor e da fidelidade, pela qual o homem se abre à sua acção e se torna disponível para ele. Com efeito, no amor e na fidelidade, o mistério apresenta-se na forma de um Tu a que o eu pertence e ao qual não se pode recusar sob pena de se anular a si próprio (Du refus à Finvocation, 1940, p. 135). O reconhecimento do mistério é a condição do amor entre os homens. "Os seres não podem unir-se senão na verdade, mas esta é inseparável do reconhecimento do grande mistério que nos rodeia e no qual se
encontra o nosso sem (Ib., p. 197). A fidelidade, o amor, fazem o homem empenhar-se numa realidade que não se pode problematizar, e que por isso o funda na sua subjectividade. A filosofia deve conduzir o homem até ao ponto em que se torne possível "a irradiação fecundante da revelação"; mas não leva o homem a aderir a uma religião determinada. Não obstante, segundo Gabriel Marcel, a verdadeira 186 atitude metafísica é a do santo que vive na adoração de Deus. As últimas obras de Gabriel Marcel são dedicadas em especial à crítica da sociedade contemporânea e exaltam os valores da espiritualidade religiosa como remédios para os males desta. E com esta tendência se relaciona também a obra do russo Nicolau Berdiaev (1874-1948) que viveu em França desde 1919 até à sua morte. Nas suas obras: O sentido da história (1923); Espírito e liberdade (1927); O homem e a máquina (1933); O destino do homem (1936); Cinco meditações sobre a existência (1936), Ensaio de uma metafísica escatológica (1946), Berdiaev defende um espiritualismo de carácter profético que anuncia a revivescência de um cristianismo renovado de fundo social. O que o vincula ao existencialismo é o reconhecimento da impossibilidade de objectivar e materializar a personalidade humana, que só pode viver e prosperar na atmosfera daquela liberdade que o cristianismo revelou aos homens. Este ponto de vista é acompanhado dos habituais filosofemas sobre a decadência que a técnica e a máquina determinam no homem e na sociedade, filosofemas que constituem o património do espiritualismo vulgar. São dotadas de uma estrutura mais filosófica as obras dos "filósofos do espírito". Luis Lavelle (1883-1951) foi professor no Collège de France e autor dos seguintes livros: Dialéctica do mundo sensível (1921) O ser (1928); A consciência de si (1933); A presença total (1934), O eu e o seu destino (1936); O acto (1937); O erro de Narciso (1939); O mal e o sofrimento (1940); A filosofia francesa entre as 187 ditas guerras (1942); O tempo e a eternidade (1945); Introdução à ontologia (1947); As potências do eu (1948)-, Da alma humana (1951); e o primeiro volume de um Tratado dos valores contendo a Teoria geral do valor (1951); O Ser, O Acto, O tempo e a eternidade constituem três volumes de um único ciclo intitulado Dialéctica do eterno presente. É uma característica de Lavelle a interpretação da consciência como relação entre o ser e o eu, ou melhor, como presença total do ser ao eu. O acto de autoconstituição do eu, que tem a sua própria liberdade, é o acto da sua participação no ser: é um acto participado, o qual supõe o acto participante que é próprio do ser; e é, por isso, em última análise, um acto de autoparticipação do ser em si próprio. Este pressuposto leva-o a descobrir na própria existência humana a "dialéctica do eterno presente": e toda a sua especulação visa, fundamentalmente, a reduzir à presencialidade do ser a si mesmo as características mais salientes da existência humana. Contudo, Lavelle atende
-sobretudo nas últimas obras O tempo e a eternidade (1945), Introdução à ontologia (1947), Os poderes, do eu (1948) - às exigências do existencialismo. A sua análise do tempo, por exemplo, assenta no princípio da existência possível. O tempo é a "possibilidade do futuro e do passado" (Du temps et de l'eternité, p. 24) e constitui por isso a natureza mesma do eu, que pode ser definido como "uma possibilidade que se realiza" (1b., p. 38). Ora, uma vez que a possibilidade está ligada ao futuro, o futuro é a primeira determinação do tempo na ordem da existência, conquanto o passado seja o primeiro na ordem do co188 nhecimento. "Pelo passado - diz Lavelle (1b., p. 260) -aprendemos a viver no tempo, mas só o futuro nos faz viver no tempo". Este primado existencial do futuro não lhe confere, porém, aquele poder nulificador que Heidegger e Sartre lhe atribuíram. A angústia surge quando se faz do futuro a única experiência de vida, isto é, quando se esquece que mesmo o futuro é uma forma da análise do presente e que a possibilidade é já uma manifestação do ser. "0 futuro - afirma Lavelle (1b., p. 279) - determinará o nosso lugar no ser: mas a experiência mesma do ser, já * possuímos. Até que ponto nos será permitido levar * nossa participação no ser e qual é o nível que ela nos permitirá adquirir no ser, é o que permanece incerto para nós e basta para gerar o sentimento que experimentamos perante o futuro, sentimento em que o temor e a esperança se encontram sempre misturados". Mas o futuro, enquanto possível, existe já no ser, a ausência que ele denuncia é já uma presença. A consciência não se pode identificar com uma possibilidade única, que seria então determinante em relação a ela; ela é "a unidade de possibilidade de todas as possibilidades". E é evidente que "se toda a possibilidade se destina a ser actualizada e só tem sentido em relação a esta actualização, existe um intervalo que a separa da própria actualização, e este intervalo é o tempo" (1b., p. 261). O tempo não nos faz, pois, sair da presença total, mas estabelece entre os modos desta uma sucessão que é a condição de possibilidade da própria participação (1b., p. 227). É fácil compreender que "uma possibilidade des189 tinada a realizar-se" não é, de forma alguma, uma possibilidade mas uma potencialidade no sentido de Aristóteles e da metafísica clássica. Ela não pode por isso explicar o carácter problemático da existência humana no mundo, nem mesmo da distância, que Lavelle quereria justificar, entre tal existência e o ser. Lavelle faz valer a exigência da liberdade na própria relação com a liberdade. "A própria eternidade - afirma (Du temps et de 1'éternité, p. 411) deve ser escolhida por um acto livre, deve ser sempre permitida ou recusada. Mas, além disso, é a eternidade que age no tempo e determina as características do mesmo (lb., p. 418 sgs.). De modo que a verdade do tempo é a eternidade: e todas as determinações do tempo devem ser directa ou indirectamente reconduzidas à instantânea presencialidade do ser eterno. A filosofia de Lavelle pode ser definida como um espiritualismo ontológico. Pode
considerar-se, por sua vez, um espiritualismo axiológico a de Renê Le Senne (1882-1954) que foi professor na Sorbonne e autor dos seguintes escritos: Introdução à filosofia (1925); O dever (1930); Obstáculo e valor (1934); Tratado de caracteriologia (1945); O destino pessoal (1951); A descoberta de Deus (recolha póstuma de ensaios, 1955). Numa página de diário, Le Senne escreveu: "É essencial ao meu pensamento manter no centro de toda a vida intelectual e prática a ideia da sua comunhão com o Absoluto. A ontologia intelectualista clássica substituía a filosofia do Homem pela de Deus. O kantismo inaugurou a filosofia da huma190 nidade. Importa agora fazer a da relação do homem com Deus" (La découverte de Dieu, p. 20-21). A este tema da relação entre o homem e Deus, que constitui a conscienci .a mesma do homem, manteve-se Le Senne sempre fiel. Mas a qualificação fundamental que ele sempre atribuiu a Deus é o Absoluto, o Ser, o Acto, é a do Valor (Ib., p. 112); por isso, a obra mais importante é aquela em que abordou mais directa e atentamente este tema: Obstáculo e Valor. O método que Le Senne considera apropriado para atingir o ponto nodal entre o homem e o Valor, é o da intimização (intimisation), que se manifesta primeiramente na experiência estética que retoma ao passado e dele faz uma fonte de gozo. Para além da experiência estética, no pólo oposto da ciência, está "o encontro misterioso da exigência do incógnito e do retomo ao mais íntimo de si próprio". Neste ponto de intimização, as relações entre os elementos da experiência que de início são puramente ideais acabam por se tornar emocionais, atravessando uma frase intermédia que Le Senne chama "ideo-existencial". "A fim de que a relação seja existencial -afirma ele-, é necessário que a continuidade entre as suas determinações ou as suas relações e a totalidade da consciência não seja reduzida à pura contiguidade; mas ela é ideo-existencial, se, inversamente, esta continuidade não é em toda a parte tão intima que as determinações se encontrem nela perfeitamente resolvidas" (1b., p. 51). Nesta fase, portanto, as determinações apresentam-se à consciência como uma situação que a limita e para lá da qual ela procura avançar. É a fase em que se produz o desvio 191 entre o ser e o dever ser e em que aparece, portanto, o obstáculo que é, segundo Le Senne, a condição indispensável para a realização do eu. Na verdade, o obstáculo interrompe bruscamente a espontaneidade primitiva da experiência, determina e delimita a experiência numa situação fáctica. E do sentimento desta limitação nasce o mim, isto é, o eu empírico, que se contrapõe ao objecto, fornecendo com esta contraposição "a essência dramática" do conhecimento teórico. Mas, por outro lado, o reconhecimento do limite significa pressentir o que está para além do limite, o que não é determinado ou gerado na situação fáctica a que pertence o mim. No próprio acto do reconhecimento do obstáculo, o mim progride para além de si, para algo de que procede todo o obstáculo ou determinação, mas que não se exaure em nenhum obstáculo e em nenhuma determinação. Este algo é o valor que, enquanto ilimitado e primeiro, é o próprio Deus. Deus é o eu do valor (Ib., p. 151).
O eu é, portanto, bifronte. "Ele -diz U Senne (Ib-, p. 152) - é mim e é Deus; mas, uma vez que, como unidade da experiência, é eminentemente indivisível no seu princípio, implica e opõe um ao outro os seus dois aspectos ao torná-los solidários. O eu, enquanto mim, experimenta a sua clausura; enquanto Deus, a sua abertura, que a inadequação definitiva entre o mim e a infinitude de Deus deve incessantemente propor-lhe. Nenhuma ruptura radical pode, portanto, intervir entre Deus e mim; e se a moralidade é bipolar, isto é, criação ou cobardia, ascensão ou queda, isso deve-se ao facto de o eu poder 192 ou opor-se a Deus como a um objecto em que não vê mais do que uma natureza, ou unir-se a ele como a um amigo". Deste ponto de vista, o valor é o "nada, da determinação" (Obstacle et valeur, p. 175); quer dizer, é a negação do carácter determinante e necessário da situação fáctica em que o homem é lançado e em que efectua a experiência do obstáculo. O valor anular-se-ia se se reduzisse à determinação; esta sua irredutibilidade a toda a determinação possível constitui o seu carácter absoluto. A existência humana, que vive na determinação e busca do valor, situa-se entre um e outro. A existência apresenta-se no intervalo entre o valor infinito e o nada, tendo com eles em comum a essência de negar a determinação" (Ib., p. 181). Ela é, portanto, "um corte momentâneo e parcial do valor", e dado que o valor é Deus mesmo, é "a encarnação de Deus em nós" (1b., p. 220). A relação entre o homem e Deus é um duplo cogito. Une e opõe, ao mesmo tempo, Deus, de quem o m::M experimenta alternativamente a vontade no obstáculo e a graça no valor, e o mim que restringe a experiência do valor aos limites da sua natureza. Estes dois aspectos só existem e podem ser pensados na sua relação. Deus é, portanto, um Deus-connosco. Deus-sem-nós é apenas uma função-limite que só tem significado enquanto faz do valor um meio de reconciliação ou urna razão para desesperar. No caso limite em que Deus fosse verdadeiramente perante mim um Deus-para-si, a própria existência de mim seria impossível. Mas a ideia de Deus-sem-nós pode também ser estímulo e um contributo para uma mais 193 profunda comunicação com Deus. De qualquer modo, "Deus-sem-nós é o mito transcendental que está relativamente à existência na mesma relação em que o mito transcendental do mundo da natureza está com a determinação". Como se vê, a filosofia, do espírito de Le Senne e Lavelle tem uma inspiração e finalidade religiosa, centrando-se em torno do tema da consciência como relação entre o eu e Deus. Ao contrário do espiritualismo bergsoniano, não se fia na intuição mas pretende ser uma análise da consciência mesmo nos seus aspectos objectivos e objectivantes. Além disso, procura ter em conta, nesta análise, os elementos problemáticos ou negativos em que se apoia o existencialismo: a temporalidade, a finitude do homem, as situações limitadoras, o mal e o erro. Mas o seu ponto de partida, a presença na consciência humana de Deus (como Ser ou como Valor) torna inoperante o reconhecimento destes elementos e reconduz ao êxito providencialista do espiritualismo tradicional. § 685. O PERSONALISMO
Depois da segunda guerra mundial foi-se acentuando, nas manifestações do espiritualismo, o aspecto social; e o seu tema preferido tornou-se a pessoa, no seu valor transcendente, isto é, na sua relação com Deus. Em França, a um espiritualismo semelhante foi dado o nome de personalismo, termo que o uso anglo-saxónico reservava ao espiritualismo em geral, e teve o seu profeta eloquente em Emmanuel Mounier (1905-50) que fundou em 1932 a revista 194 "Esprit" e publicou em 1936 um Manifesto ao serviço do espiritualismo. A oportunidade do movimento foi proporcionada pelo crack de Wall Street em 1929; e os seus intentos de renovação social e a sua oposição à solução comunista e marxista favoreceram a sua difusão depois da segunda guerra mundial. As outras obras principais de Mounier são as seguintes: Revolução personalista e comunitária (1936); O que é personalismo (1946); Tratado do carácter (1946); O personalismo (1949). A filosofia de Mounier é uma filosofia da pessoa, ou seja, do "espírito" na forma pessoal que lhe é conatural e necessária. Contudo, a pessoa não está encerrada em si mesma, mas ligada através da consciência, a um mundo de pessoas. "0 proceder essencial num mundo de pessoas-diz Mounier não é a percepção isolada de si (cogito) nem a preocupação egocêntrica consigo mas a comunicação das consciências, ou melhor, a comunicação das existências, existência com outros" (Qu'est-ce que le personnalisme? trad. ital., p. 62). Aquilo que para todas as formas do espiritualismo é o instrumento fundamental do conhecimento filosófico, isto é, a consciê ncia, não é para Mounier encerramento na intimidade do eu mas abertura às outras consciências e comunicação com elas. Esta tese é, contudo, apresentada sob a forma de uma exigência, mas não justificada por análises precisas. Como a consciência pode atingir, no seu âmbito, outras consciências, isto é, consciências que, por definição, não são ela mesma e não podem ser atingidas por ela com a imediatez com que ela se apreende a si própria, é um 195 problema que não se encontra resolvido nas obras de Mounier. O seu interesse pela caracteriologia, testemunhado pelo vasto tratado que dedicou a esta disciplina e que é uma espécie de suma das suas várias orientações, poderia fazer supor que a comunicação entre as consciências se verificaria, para ele, no âmbito daquelas formas ou tipos comuns que são precisamente os caracteres. Mas, na realidade não é assim, e no primeiro capítulo do tratado insiste no "mistério da pessoa". "A pessoa - diz ele - é um foco de liberdade e por isso permanece obscura como o centro da chama. Só recusando-se-me como sistema de noções claras se revela e se afirma como fonte de imprevisibilidade e de criação. Só subtraindo-se ao conhecimento objectivo, me obriga-para comunicar com ela-a comportar-me como um turista e a ir, com ela, ao encontro de um destino aventuroso, cujos dados são obscuros, cujos caminhos são incertos e em que os encontros são desconcertantes" (Traité du caractère, 1, trad. tal., p. 64). Portanto, a caracteriologia é com respeito ao conhecimento do homem o que a teologia é em relação ao conhecimento de Deus, isto é, uma ciência intermediária entre a experiência do mistério e a elucidação racional; e há uma caracteriologia negativa, ou seja,
do não saber, como há uma teologia negativa. Todavia, Mounier insiste nos aspectos da pessoa que permitem a afirmação do seu valor absoluto. Em primeiro lugar, a pessoa é liberdade, entendendo-se por liberdade a espontaneidade no sentido de Bergson (Le personizalisme, 1950, p. 79). Em segundo lugar, é transcendência; transcendência seja para a "Existência modelo 196 das existências", seja como superação da pessoa mesma para as formas que devem ser, por sua vez, pessoais. O terceiro aspecto da pessoa é o comprometimento no mundo, mediante o qual não é espiritualidade pura ou isolada: um compromisso que o materialismo marxista reclamou de modo brutal mas não menos eficaz. Deste ponto de vista, os ideais ou os valores não são fins últimos para o homem mas apenas meios para realizar uma vida pessoal mais ampla; isto é, uma forma colectivista ou comunitária que poderia chamar-se "pessoa colectiva" ou "pessoa pessoal" (Révolution personnaliste et communautaire, trad. ital., p, 244). Esta forma superior de vida, para a qual a pessoa deve livremente dirigir o seu empenho de superação, é concebida por Mounier no espírito do cristianismo, como uma espécie de comunidade de santos, na qual os homens serão chamados a participar da mesma vida divina. A encarnação do Verbo, que é a verdade fundamental do cristianismo, significa para Mounier o resgate do elemento corpóreo e mundano e um convite para efectuar precisamente neste elemento, e não em oposição a ele, a aspiração divina do homem (La petite peur du XX siècle, p. 114). Por outros termos, a revolução comunitária e personalista tem a missão de realizar na história humana o reino de Deus; e poder-se-ia dizer, adaptando uma frase de Bergson (ao qual Mounier deve muitas das suas inspirações) que a história é, deste ponto de vista, "uma máquina para fazer deuses". 197 NOTA BIBLIOGRÁFICA § 670. A história da filosofia dos últimos cem anos é dividida, a maior parte das vezes, por nações e sem ter em conta, a não ser ocasional e parcialmente, a unidade ou a concordância das orientações seguidas pelos pensadores das diversas nações. Dado que as nações não são, nem nunca foram, compartimentos estanques, pelo menos no que respeita à circulação do pensamento filosófico, e dado que os pensadores que seguem uma orientação determinada manifestam maiores afinidades com os de outras nações que seguem a mesma orientação do que com os da mesma nação que seguem orientações diferentes, não se vê onde esteja a utilidade destes métodos de estudo; o qual, por um lado parece autorizar uma espécie de nacionalismo filosófico e, por outro, parece sugerido pela preguiça de pesquisar num material historiográfico ainda caótico ou pouco ordenado os filões que permitem ordená-lo e expô-lo nas suas conexões conceptuais. Desde a primeira edição desta obra se, pôs de parte este método e se reagruparam os pensadores segundo as afinidades existentes nas suas doutrinas ou nas derivações históricas das suas doutrinas. Este segundo método permite, além disso, reconhecer e legitimar aqueles reagrupamentos nacionais ou locais (por exemplo, o espiritualismo francês, o idealismo italiano, o Círculo de Viena, ete.) que constituem escolas filosóficas e se fundam, portanto, na unidade ou na continuidade das suas orientações doutrinárias.
Sobre a filosofia dos últimos cem anos: F. UEBERWEG, Grundriss der Gesch. der Phil., vol. IV: Die deutsche Phil. des XIX Jarhunderts und des Gegenwart, 12 ed., refundida por T. K. OESTERREICH; Berlim, 1923; ID., vol. V: Die Phil. de& Auslandes vom Beginn des XIX Jahrunderts bis auf die Gegenwart, 12 ed., Berlim, 1928; H. H~DING, História da filosofia moderna, vol. II, trad., M.ARTINETTI, 2.a ed., Turim, 1913; 198 W. WINDELBAND, História da filosofia moderna, trad. ital., Florença, 1925; G. D. RUGGIERO, La fil. contemporanea, Bari, 1912, 2 vol., 1920; ID.., Filosofi del Novecento, Bari, 1934, 1942; F. H. HEINEMAN, Neue Wege der Philosophie, Leipzig, 1929. O carácter nacional da filosofia contemporánea é explicitamente justificado por De RUGGIERO, La fil. cont. (intr.) na esteira de SPAVENTA, e no Gundriss de UEBERWEG (§ 1) e implicitamente assumido nas divisões por nações das outras histórias de filosofia. Sobre a fil. inglesa: W. R. SORLEY, -4 HiStory Of English Philosophy, Cambridge, 1920; A. K. Rogers, English and American Philosophy since 1800, Nova lorque, 1922; R. METZ, Die phiZosophische Strõmungen der Gegenwart in Grossbritannien, 2 vol., Leipzig, 1935; I. H. MUIRHEAD, Filosofi inglesi contemporanei, trad. ital, Milão, 1939; L. PAUL, The English Philosophers, Londres, 1954; J. PASSMORE; A Hun dred Years of Philosophy, Londres, 1957. Sobre a fil. francesa: F. RAVAISSON, La phil. en France au XIX siècle, Paris, 1868; D. PARODI, La phil. contemporaine en France, Paris, 1919; J. BENRUBI, Les sources et les courants de Ia phil. contemporaine en France, 2 vol., Paris, 1933; Llacti vité phil. contemporaine en France et aux États-Unis, ao cuidado de M. Farber, Paris, 1950, vol. 111; F. VALENTINi, La filosofia francesa contemporanea, Milão, 1958. Sobre a fil. italiana: E. GARIN, La filosofia, Vol. U: Dal Rinascimento al Risorgimento, Milão, 1947; M. F. SIACCA, o século XX, 2 vol, Milão, 1942. Sobre a fil. italiana: E. GARIN, La filosofia, Vol. Phil. in America from the Puritans to James, Nova Iorque, 1939; HERBERT W. SCHNEIDER, A HiStOry Of American Phil., Nova Iorque, 1946; Llactivité philos. contemp. en France et aux Êtats-Unis. Études publiées sous Ia direction de Marvin Farber, vol. I, Paris, 1950; M. H. FISCH, Clas8ic American PhiZosopher, Nova 199 lorque, 1951; MORRIS R. COHEN, American Thought, Glencoe, Il.I, 1954. § 672- De Lotze, os dois primeiros volumes do Microcosmo foram traduzidos em italiano, Pavia, 1911-1914. Sobre Lotze: E. PFLEIDERER, Lotzes philosophische Weltanschauung, Berlim, 1882; H. JONES, A Critical Account of the Philosophy of L., Londres, 1895; L. AMBROsi, L. e Ia sua fiZ., Roma, 1912; M. WENTSCHER, H.L., Heidelberg, 1913. - Os seus aspectos particulares: H. SCHOEN, La métaphysique de H.L., Paris, 1902; G. SANTAYANA Ws
Moral Idealism, in. "Mind", 1890; A. MATAGINS, Essai 8ur Ilesthétique de L., Paris, 1900; E. JAEGER, Kristiche Studien L.s WeZtbegriff, Würzburg, 1937. § 673. Sobre Spir: F. JEDL, in "Zeitschrift fur Phil.", 1891; Th. LESSING, A. S.s Erkenntnislehre, Erlangen, 1899; J. SEGOND, Llidéalisme des valeurs et Ia doctrine de S., in "Revue Phil.", 1912; MARTINETTI, A.S., pref. ao Saggi di fil. critica di Spir, Milão, 1913; N. CLAPARÈDE-SPIR, Un précurseur, A.S., Lausanne-Paris, 1920 (com bibliogr.); J. LAPCIIINE, A.S., Sa vie, sa doctrine, Praga, 1938. § 674. Sobre Hartmann: J. VOLKELT, Das Unbewusste und der Pessimismus, Berlim, 1873; BONATELLI, La fil. dell'inconscio di Ex.H. esposta ed esaminata, Roma, 1876; OLGA PLOMACHER, Der Hampf ums Unbewusste, Berlim, 1881, 2.1 ed. 1891 (com bibl.); A. FAGGI, La filosofia delllinconsciente, Florença, 1891; Id., H.e Ilestetica, Florença, 1895; W. RAUNSCHEN BERGER, Ex.H., Heidelberga, 1942. Sobre Eucken: O. SIEBERT, R.E.s. Welt-und Lebenanschaung, LangensaIza, 1904, 4.1 ed, 1926; H~DING, Moderne Philosophen, cit., p. 176 sgs.; ROYCE GiBsoN, R.E.s. Philosophy of Life, Londres, 1906; O. BRAUN, R.E.s. Philosophie und Bildungs-probZem, Leipzig, 1909; W. T. JONES, An Interpretation of R.E.s. Philosophy, Londres, 1912; M, BooTH, R.E., his philosophy and In200 fluence, Londres, 1913; W. S. MC-GOWAN, The Religious Philosophy of. R.E., Londres, 1914. § 675. Sobre Lequier: J. GRENIER, La philosophie de J.L., Paris, 1936 (com bibl.); J. WAHL, J.L., (Introduction et choix), Paris, 1948; Id., in "Deucalion", 4 de Outubro de 1952, p. 81-126; E. CALLOT, Propos sur J.L., Paris, 1962; X. TILLIETE, in "Révue de métaphysique et de morale" 1963, 1. § 676. Sobre Secrétan: E. BOUTROUX, La phil. de S. in "Révue de métaphysique et de morale", 1895; S. PILLON, La phil. de S., Paris, 1898; J. DUPROIX, O.8. et Ia philosophie kantienne, Paris, 1900; L. SECRÉTAN, O.S., sa vie et son oeuvre, Lausanne, 1912; E. GRIN, Les origines et Févolution de Ia pensée de C.S., Lausanne, 1930; Id., Vinfluence de S. sur Ia théo?ogie moderne, Lausanne, 1942. § 677. De Ravaisson, as memõrias sobre Abitudine, os ensaios Fil. contemporanea e Fil. de Pascal foram recolhidos e traduzidos por A. TILGHER, COM O título: Ensaios filosóficos, Roma, 1917. A recolha contém sinais bibliográficos. O Testament philosophique foi publicado na "Revue de métaphysique et de niorale", 1901, e reeditado em Testament et fragments, ed, Devivaise, Paris, 1932. A. LEVI, LI indeterminismo nella fil. francesa contemporanea, Florença, 1904, p. 24-31, 219 SgS.; BERCSON, La vie et Iloeuvre de R., in La pensée et le mouvant, Paris, 1934; J. Dopp, P.R., Lovaina, 1933 (com bibl.). § 678. De Lachelier, Fundamento da indução, Psicologia e metafísica, e um ensaio menor, A observação de Platner, foram traduzidos por G. DE RuGGIERO sob o título Psicologia e metafísica, Bari, 1915. G. SEAILLEs, La phil, de L., Paris, 1920; E. BouTROUX, J.L,, in "Revue de mét. et de
morale", 1921; V. AGOSTI, La filosofia de J.L., Turim, 1952. § 679. Sobre Boutroux: P. JANET, La philosophie française contemporaine, Paris, 1879; LEVI, op. cit.,; 201 P. GONNELLE, E.B., Paris, 1908; P. ARCHAMBAULT, E.B., choix de textes avec une étude sur lIoeuvre, Paris, 1908; P. SERINi, E.B., na rev. "Logos", Nápoles, 1922; L. S. CRAWFORD, The Philosophy of E.B., Nova lorque, 1924; M. ScHyNs, La philosophie de E.B., Paris, 1924. § 680. De Hamelin: Le système de Descarte&, Paris, 1910; Le système dAristote, Paris, 1920; Le système de Renouvier, Paris, 1927. A. DARBON, La méthode synthétique dafis Lles3ai dIO.H., in "Revue de mét. et de morale", 1929; A. ETCHÉVERRY, Llidéalisme contemporain en France, Paris, 1934, p. 45 sgs.; L. J. BECK, La méthode synthétique de H., Paris, 1935. § 681. Uma antologia dos textos filos. de, Balfour: A.J.B. as Philosopher and Thinker, ao cuidado de W. SHORT, Londres, 1912. Sobre Balfour. W. WALLACE, Lectures and Essays on Natural Theology and Ethics, Oxford, 1898; J. S. MACKENZIE, in "Mind", N.S., 1916; G. GALLOWAY, in "Hibbert Journal", 1925. Sobre Pringle-Pattinson: JONES, in "Philosophical Review", 1911; RASHDALL, in "Mind", N.S., 1918. Sobre Ward: A. E. TAYLOR, in "Mind", N.S., 1900; DAWES HICKS, in "Mind", N.S., 1921 e 1925; ID., in "HibbeÉt Journal", 1926; ID., in "Journal of Philosophical Studies", 1926; e ensaios de autores diversos em "The Monist", 1926; M. MURRAY, The Philosophy of J.W., Cambridge, 1937. § 682. Sobre Martinetti: GENTILE, Saggi critici, 1, Nápoles; A. LEVI, Llidealismo critico in Italia, in "Logos", Nápoles, 1924; V. CAVALLó, La libertà umana nella fil. contemporanea, Nápoles, 1934, p. 157 sgs.; P. CARABELLESE, Llidealismo italiano, Nápoles, 1938, p. 211 sgs.; SCIACCA, (perfil), Brescia, 1943 (com bibl.); F. P. ALESSIO, LI idealismo di P.M., Brescia, 1950. § 683. Bibl. completa dos escritos de Varísco, in G. ALLINEY, VaXiSCOC, MilãO, 1943. 202 P. CARABmLESE, Llesser_- e il problema reZigioso, Bari, 1914; ID., 11 pensiero di B.V., in <@Giorn. critico della fil. ital.", 1926; ID., Il problema teologico come filosofia, Roma, 1931; ID., Llidealismo italiano, Nápoles, 1938; E. CASTELLI, Il problema teologico in B.V., in Scritti filos. per le onoranze nazionali a B.V., Florença, 1925;A. PASTORE, Veritá e valore nel pensiero fil. di B.V., ibid.; E. DE NEGRI, La metafisica di B.V., Florença, 1929; LIBRIZZI, La fil. di B.V., Pádua, 1941; ALLINEY, V. Milão, 1943; P. C. DRAGO, La fil. di B.V. Florença, 1944; G. CALOCERO, La filosofia di B.V., Messina, Florença, 1950. Sobre Carabellese: CROCE, in "Critica", 1922; N. VERRUA, Il pensiero di P.C., Bobbio,
1937; G. FANO, in "Giorn. critico della fil. ital.", 1937; E. PACI, Pensiero, esistenza, valore, Milão, 1940, p. 173 sgs.; P. C. DRAGO, La metafisica di P. C., in "Filosofi conternporaneí" (Inst. de Estudos filosóficos di Turim), Milão, 1943; G. VICARELLI, Im pensiero di P.C., Roma, 1952. § 684. Sobre Gabriel Marcel: J. WAHL, Ver& le concret, Paris, 1932; M. DE CORTE, La philosophie de G.M., Paris; G. OLIVIERI, La fil. di G.M., in Studi fil"ofici, Milão, 1940; L. PAREYSON, La fil. dell'esistenza e Carlo Jaspers, Nápoles, 1940, passim; P. RiCOEUR, G.M. et K. Jaspers, Paris, 1948; P. PRINI, C.M. e Ia metodologia delllinverificabile, Roma, 1950; R. TRoiS-FONTAINEs, De l'existence à Vêtre. La philosophie de G.M., 2 vol., Lovaina, 1954 (com bibl.). Sobre Berdiaev: L. LAVELLE, Le moi et son destin, Paris, 1946 (p. 2.1, cap. III); F. TANGINI, Il personalismo di N. Derdiaev, in Filosofi contemporanei (Instituto de estudos filosóficos de Turim), Milão, 1943, p. 57-158; O. F. CLARCKE, Introduction to B., Londres, 1950; E. PORRET, N. B., Heidelberga, 1950. Sobre Lavelle: M. DE PETRI, in "Aannalli della Scuola Normale Superiore di Pisa", 1938; A. DE WAELIIENS, in "Revue néoscolastique de phil.", 1939-40; O. M. NOBILE, La fil. di L.L., Florença, 1943; E. CEN203 TINEO, IZ problema della persona nella filosofia di L., Palermo, 1954; R. LE SENNE, N. J. BALTRASAR; G. BERGER, ete. in "Giornale di metafisica", 1952, n. 4 Sobre Le Senne: J. PAUMEN, Le spiritualisme existentiel de R.L.S., Paris, 1949; A. Gumo e outros, R.L.S., Turim, 1951; E. CENTINEO, R.L.S., Palermo, 1953 (com bibL); F. P. ALESSIO, Studi sul neospiritualismo, Milão, 1953, p. 89-129; e os fascículos dos "ntudes philosophiques", 1955, n. 3 e do "Giornale di metafisica", 1955, n. 3, inteiramente dedicados a Le Senne. § 685. Da obra de Mounier, estão traduzidos em italiano: Revolução personalista e comunitária, Milão, 1949; O que é o personalismo, Turim, 1948; Tratado do carácter, Alba, 1949; O personalismo, 1952. Em português: Manifesto ao serviço do personalismo, Liv. Morais Ed.. Depois da morte de Mounier, foi publicada uma vasta documentação: M. et sa _qénération. Lettres, carnets, inédits, Paris, 1956. Escritos de vários autores em "Esprit", 1950, p. 721 SgS.; PAOLO ROSSI, in "I1 pensiero critico", 1951, p. 175-83; A. RIGOBELLO, Il contributo filosofico di E.M., Roma, 1955. 204 III A FILOSOFIA DA ACÇÃO § 686. CARACTERISTICAS DA FILOSOFIA DA ACÇÃO A filosofia da acção é uma das formas do espiritualismo moderno. Com efeito, tem de comum com o espiritualismo a seguinte característica fundamental: o modo de praticar e entender a filosofia como auscultação interior ou concentração na interioridade espiritual.
O tema da filosofia da acção é, por conseguinte, como o do espiritualismo, a consciência. Mas para os filósofos da acção a consciência é sobretudo, ou acima de tudo, vontade, actividade, acção: isto é, mais actividade prática ou criadora do mundo moral, religioso e social, do que faculdade contemplativa ou teorética. Tal como o espiritualismo, a filosofia da acção tem interesse e carácter religioso, e só com Sorel adquire carácter político. 205 O primeiro precedente histórico da filosofia da acção tem de ir buscar-se à fé moral exposta na Crítica da razão prática de Kant. A fé moral aparece a Kant como a condição e, ao mesmo tempo, o resultado da actividade prática, e foi amiúde interpretada como um "primado da razão prática" no sentido de uma capacidade da vontade moral do homem para fundar as verdades religiosas que a razão teórica não pode alcançar por si própria. Neste sentido, a corrente de que ora nos ocupamos afirma o primado da acção. Por outro lado, a acção de que ela nos fala não consiste em actos e operações exteriores, mas é a acção da consciência e que à consciência mesma revela a sua natureza e as suas condições. § 687. NEWMAN O iniciador da filosofia da acção, neste sentido que se lhe dá, foi, sem dúvida, o inglês John Henry Newman (1801-90) que, sendo anglicano, se converteu em 1845 ao catolicismo romano e em 1879 se tornou cardeal da Santa Igreja. O Cardeal Newrnan foi um escritor fecundo; é autor de muitos volumes de sermões religiosos, de tratados teológicos, de ensaios históricos, críticos e polémicos, assim como de obras literárias e de vida devota. Os escritos que interessam à história da filosofia são o Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã (1845) e o Ensaio de uma gramática do assentimento (1870). Os dois escritos são ambos de conteúdo apologético e partem do mesmo pressuposto: uma doutrina, 206 quando é verdadeiramente viva e vital, não é uma simples posição intelectual porquanto implica também a participação dia vontade e, em geral, da actividade prática do homem. Este pressuposto torna-se objecto de justificação filosófica na segunda das duas obras acima citadas e é explicitamente assumido como ponto de partida na primeira. "Quando uma ideia afirma Newman (Development, ed. 1909, p. 36) seja real ou não, é de tal natureza que fixa e possui o espírito, pode considerar-se viva, isto é, pode-se dizer que é viva no espírito que é o seu receptáculo. Assim, as ideias matemáticas, por muito reais que sejam, não podem propriamente ser consideradas vivas, pelo menos no sentido habitual. Mas quando um enundado geral, seja verdadeiro ou falso. acerca da natureza humana ou do bem, do governo, do dever ou da religião, se difunde numa multidão de homens e lhes reclama a atenção, não é apenas recebido passivamente,
desta ou daquela maneira, em muitos espíritos, senão que se torna neles um princípio activo que os leva a uma contemplação sempre renovada de tal enunciado, a aplicá-lo em várias direcções e a difundi-lo por toda a parte". É, portanto, a vitalidade prática das ideias religiosas que determina o seu desenvolvimento na História, dado que este desenvolvimento não se assemelha ao matemático, que deduz uma proposição da outra, nem ao do físico da natureza vegetal ou animal, senão que concerne à totalidade dos aspectos da vida humana e pode ser político, intelectual, histórico ou moral. O cristianismo, como uma grande ideia que inspirou a vida da humanidade, teve um 207 desenvolvimento deste género: os seus aspectos mais profundos têm sido gradualmente esclarecidos no curso da sua história, embora a sua verdade originária permaneça inalterada. Deve admitir-se, segundo Newman, que tais desenvolvimentos participam no plano providencial do universo, recorrendo a um argumento análogo àquele pelo qual se deduz da ordem do mundo físico uma inteligência infinita (1b., p. 63): mas se é assim, a providência teve também de estabelecer uma autoridade imutável para regular de uma maneira infalível o curso desses desenvolvimentos e evitar os desvios e as corrupções, e, de facto, esta autoridade é exercida pela Igreja. Newman enumera algumas características do desenvolvimento autêntico de uma doutrina frente aos seus desvios e corrupções; estas características são a conservação do tipo primitivo, a continuidade, a força de assimilação, a consequência lógica, a antecipação do futuro, a conservação do passado e a duração que lhe garante o vigor. Baseando-se em tais características, vê no catolicismo moderno o " resultado legítimo e o complemento, ou seja, o desenvolvimento natural e necessário da doutrina da igreja primitiva" (lb., p. 169). Uma doutrina que se desenvolve é, portanto, uma ideia viva, isto é, praticamente operante, e em que a vontade põe o seu empenho. A Gramática do assentimento é o exame e a justificação das condições que conferem vitalidade a uma ideia. Newman começa por distinguir três actos mentais: a dúvida, a inferência e o assentimento. Uma pergunta exprime uma dúvida; uma conclusão exprime um 208 acto de inferência; uma asserção exprime um acto de assentimento. Estes três actos têm por objecto proposições: mas o assentimento que se dá a proposições que exprimem coisas é muito mais forte do que o que se dá a proposições que exprimem noções: o assentimento real é, por consequência, bastante mais forte do que o assentimento nocional. O assentimento nocional é aquele a que se chama profissão, opinião, especulação; o assentimento real é a crença. Um assentimento real, por si só, não conduz à acção, mas as imagens em que vive, representando o
concreto, têm a força de excitar as afeições, os sentimentos e as paixões, e através destes tornam-se operantes (Grammar, ed. 1909, p. 89). O assentimento nocional a uma proposição dogmática é um acto teológico; o assentimento real à mesma proposição é um acto religioso. O primeiro pode dar-se sem o segundo, mas o segundo não pode dar-se sem o primeiro. Não existe, portanto, antagonismo entre o credo dogmático e a religião vital; pelo contrário, a religião infunde ao credo dogmático os sentimentos e as imagens que condicionam a sua vitalidade operante (1b., p. 120). O assentimento é, em todas as suas formas, incondicionado; e nisto se distingue da inferência (ou raciocínio), que aceita uma proposição só quando ela se subordina a outras proposições, e é, por isso, condicionada. A certeza é um assentimento complexo, isto é, dado deliberada e conscientemente, e é, como tal, a superação definitiva de todas as dúvidas ou temores acerca da verdade da proposição a que se 209 refere. A indefectibilidáde da certeza -não é, contudo, infalibilidade; e pode-se ter uma certeza, ainda que se esteja enganado (1b., p. 224). Apesar de considerar superior o assentimento real, Newrnan não vê nele mais do que um acto intelectual que coloca a par dos outros, ao lado da dúvida e da inferência. Deste modo, o que constitui o seu carácter próprio, isto é, a incondicionalidade e a certeza indefectível, é simplesmente pressuposto e não é objecto de esclarecimento e de justificação. Este esclarecimento e justificação encontrá-lo-emos na obra de Ollé-Laprune, o qual atribui explicitamente o assentimento à vontade. § 688. OLLÉ - LAPRUNE Léon OIlé-Laprune (1830-99) vincula a doutrina do assentimento de Newman à tradição cartesiana. E é também autor de uma ampla monografia intitulada Filosofia de Malebranche (2 vol., 1870). A sua obra principal intitula-se A certeza moral (1880), à qual se seguiram: A filosofia e o tempo presente ,(1890); As fontes da paz intelectual (1892); O valor da vida (1894); O que se vai procurar em Roma (1895); A virilidade intelectual (1896); e dois escritos publicados postumamente: A vitalidade cristã (1901) e A razão e o racionalismo (1906). Ollé-Laprune retoma a distinção de Newman entre assentimento nocional e assentimento real, exprimindo-a como distinção entre certeza abstracta, que se refere a noções, e certeza real, que se refere a coisas 210 (De Ia cert. mor., ed. 1908, p. 23). A certeza abstracta ou especulativa só pode existir verdadeiramente num
união, caso: o das matemáticas. Em todos os outros casos, a certeza reflexa e explícita é sempre mais real e prática do que lógica e especulativa. Isto depende da própria natureza do espírito em que a vontade tem uma função predominante. No mais abstracto pensamento, a vontade está presente como preferência e escolha porque só ela determina a atenção e assim estimula e sustenta o pensamento. "É a vontade que coloca ou fixa o espírito no terreno em que deve operar; é a vontade que efectua a preparação indispensável a esta operação; é ela que primeiro conduz com ardor apaixonado ou com fria resolução todas as forças intelectuais para o objecto que se procura conhecer; é ela que mantém estas forças aplicadas e atentas. A vontade, a boa vontade, tem em toda a parte, mesmo na pura ordem científica, uma influência que nada pode substituir Qb., p. 48). Ollé-Laprune vale-se da análise cartesiana do juízo para concluir que o juízo, como consentimento, é sempre um acto livre de vontade. Se o assentimento (como queria Descartes) é involuntário, porque segue a apreensão de uma proposição evidente, o consenso, como aceitação da verdade, deve-se à vontade que não é afectada pela evidência que determina o juízo do espírito (1b., p. 65). Isto estabelece a diferença entre o saber e o crer. Sabe-se que é evidente; crê-se no que permanece de algum modo oculto e a que se dá assentimento por uma razão que é, de certo modo, extrínseca ao que se afirma (1b., p. 81). A fé 211 é superior à crença: uma crença vital, séria e poderosa, designa a própria mola e o fundamento do acto de crer, e é, por consequência, essencialmente, confiança, certeza, esperança. Tudo isto demonstra que só o uso prático da razão é o seu uso completo. A especulação fornece apenas meias verdades que só se tornam verdades completas no domínio prático, isto é, moral. Há, indubitavelmente, uma única razão, e entre o conhecimento e a crença, entre a ciência e a fé, não existe desacordo; mas há uma ordem superior de verdades em que a crença se une ao conhecimento, e a fé é uma das condições da certeza. " Esta ordem superior não se eleva sobre as ruínas de todo o resto: domina tudo, mas supõe aquilo mesmo que ela ultrapassa. O homem, para chegar aí, necessita de unir todas as forças da sua alma, e a razão, para poder pronunciar-se, tem necessidade de uma preparação apropriada" (lb., p. 413). Esta ordem de verdades superiores é constituída, -segundo OIlé-Laprune. por quatro verdades: a lei moral, a liberdade, a existência de Deus, a vida futura. Trata-se de verdades que a razão pode, de algum modo, demonstrar, mas que permanecem misteriosas e só adquirem um sentido concreto em virtude da fé . Estas verdades demonstram, pois, efectivamente, o carácter prático da razão, que é a tese fundamental de Ollé-Laprune. A filosofia mesma torna-se então essencialmente prática, não no ,sentido de que nela se verifique uma subordinação extrínseca da especulação à acção, mas no sentido de que a especulação é, ela também, prática. "À prá212 tica - diz OIlé-Laprune (La phil. et le temps présent, p. 261) -compete situar no centro, por assim dizer, o objectivo vivo que se trata de considerar, o facto vivo que cumprirá experimentar e interpretar, a verdade viva cuja luz deverá iluminar e guiar os passos do filósofo". Devido a esta função imanente que o aspecto prático tem na filosofia, esta nunca
pode dispensar a fé. Isto não significa que a filosofia se tome num puro estado de alma subjectivo. A fé é, de certo, um acto pessoal, mas, do mesmo modo que o acto moral, embora sendo pessoal, consiste em aceitar uma lei que é independente da pessoa ou superior à pessoa; assim, o acto de fé se dirige a um objecto que não é criado pela fé. A filosofia está sujeita às regras que sustentam e dominam a vida, e extrai a sua virtude e o seu valor do que dá valor à vida, isto é, do objecto vivo e vivificante que a vida tem o destino e a honra de estimar, amar e realizar até onde é possível como deve (Ib., p. 347). Ollé-Laprune utiliza estas teses para fazer a apologia do cristianismo católico, que contrapõe como doutrina de esperança ao carácter triste e terrífico do cristianismo protestante (Le prix de la vie, p. 355). A vontade humana é insuficiente mas não impotente e a graça divina sustenta-a e reforça-a, levando-a à salvação. Ollé-Laprune manifesta deste modo pela primeira vez o traço mais saliente da filosofia da acção: o reconhecimento da função essencial e dominante que a vontade exerce no seio mesmo da mais abstracta especulação racional. Esta tese é o ponto de partida da obra de Blondel. 213 § 689. BLONDEL Maurício Blondel (1861-1949) publicou em 1893) o escrito que continua a ser a sua melhor obra: A acção, ensaio de uma crítica da vida e de uma ciência da prática; a esta obra seguiram-se uma Carta sobre as exigências do pensamento contemporâneo em matéria de apologética (1896) e História e dogma (1904). Durante estes anos, Blondel colaborou, com o pseudónimo de Bernard. de Sailly, nos "Anais de filosofia cristã", de Laberthonnière, que foi o órgão do movimento modernista. Quando este movimento foi condenado pela Igreja na encíclica Pascendi, de 8 de Setembro de 1907, Blondel encerrou-se num discreto silêncio e nos anos seguintes publicou apenas artigos e ensaios de esclarecimento sobre a sua filosofia. Só em 1934 publicou outra vasta obra em dois volumes intitulada O pensamento, à qual se seguiram, em 1935, O ser e os seres e, em 1936-37, uma reedição em dois volumes de A acção. A sua última obra intitula-se A filosofia e o espírito cristão (em três volumes, tendo os dois primeiros aparecido em 1944 e em 1946). As obras de Blondel são todas extremamente prolixas e dominadas por um explícito intuito apologético que torna em muitos pontos incerta e oscilante a filosofia do autor. Cada uma delas tem a pretensão de estabelecer uma reconstrução total, necessária e exaustiva de toda a realidade finita e humana, até àquele limite em que a realidade finita e humana encontra o seu complemento na realidade sobrenatural e transcendente. 214 A Acção é uma tentativa de reconstruir a realidade total em todos os seus graus tomando como base um único motivo dialéctico; mas, ao contrário de Hegel, Blondel considera que
a dialéctica real é a da vontade, não a da razão. A mola real do desenvolvimento não é a contradição, mas o contraste entre a vontade que quer e o seu resultado efectivo. entre o acto do querer e a sua realização. Este contraste constitui a insatisfação perene da vontade e a mola incessante da acção. "Os termos do problema -diz Blondel (L'action, 1893, p. X) são nitidamente opostos. De um lado, tudo o que domina e oprime a vontade; do outro, a vontade de dominar tudo ou de poder ratificar tudo; visto que não há ser onde existe apenas constrição". A filosofia da acção parte deste conflito, mostra as soluções parciais que alcança pouco a pouco, o seu incessante ressurgir e o seu definitivo apaziguamento no sobrenatural. Mas assim entendida, a filosofia da acção não pode ter por objecto a ideia da acção: deve, plo contrário, colocar-se no próprio coração da acção efectiva. A verdadeira ciência é, de facto, a que não recebe nada do exterior, mas em que se capta o que nos faz ser; só com esta condição, de facto, a ciência adquire a infalível segurança das premissas e a necessidade rigorosa das conclusões (1b., p. 101). Conformemente a estes pontos basilares, a acção é concebida por Blondel como um "iniciativa a priori", que cria, por si mesma as condiÇões e os limites pelos quais aparece determinada a posteriori. "A acção voluntária provoca, de algum mOdo, a resposta e os ensinamentos do exterior, e estes ensina215 mentos, que se impõem à vontade, estão, no entanto, implícitos na própria vontade" (L'action, p. 217). Deste ponto de vista, o mundo exterior e o próprio corpo do homem são manifestações ou realizações da sua vontade: de uma vontade que recebe, sob a forma de constrições e de Emites, os próprios produtos do seu acto. A consciência do esforço orgânico, a fadiga do trabalho, as dificuldades ou os reveses dolorosos da acção, devidos à matéria ou à natureza, derivam todos da "necessidade de expansão de uma vontade dividida e contrastada em si mesma" (1b., p. 163). A acção forja o corpo e a alma do indivíduo; mas, além disso, abre o indivíduo aos outros indivíduos, criando a sociabilidade e, ao mesmo tempo, subordinando-se a ela e procurando realizar através dela uma unidade efectiva, uma comunidade de pensamentos, de vida e de operações entre os diferentes indivíduos. Este movimento de expansão social da vontade detém-se em três termos progressivos que são a família, a pátria e a humanidade; mas depois prossegue na vida moral, na qual se produz, ainda e sempre, o contraste entre a vontade e a sua realização, entre o dever e o facto. Perante a necessidade de adequar a acção à vontade humana surgem as superstições, isto é, as religiões inferiores; a necessidade é autêntica mas a sua satisfação por esta forma é ilusória. A acção chega assim ao seu último contraste. Não pode ficar satisfeita com o que realizou, o homem não pode querer o que já quis, se o que quis se identifica com as suas realizações no mundo finito. É necessário, por isso, que de algum modo o homem 216 BLONDEL
possa querer querer ((Ib., p. 338), isto é, alcançar um termo em que a vontade e a sua realização se adequem perfeitamente. Para que aquele "esboço de ser" que existe no fundo da vontade humana se complete e tome forma, é mister que o homem renuncie a si mesmo e se transcenda. "Querer tudo o que nós queremos na sinceridade plena do coração é colocar em nós o ser e a acção de Deus" (1b., p. 491). A acção deve assim passar da ordem natural à ordem sobrenatural e afirmar resolutamente esta última. A palavra que diz sim perante o sobrenatural é, ela mesma, uma acção. Este método apologético, que consiste em atribuir à natureza finita do homem a exigência necessária do infinito e de Deus, foi denominado por Blondel método da imanência e defendido na Carta sobre as exigências do pensamento contemporâneo em matéria de apologética (1896). O liame necessário entre o homem e Deus não implica, contudo, uma continuidade real entre * natural e o sobrenatural, mas significa apenas que * progresso da vontade e da acção, obrigando a reconhecer a insuficiência da ordem natural, confere ao homem a capacidade, não de o produzir ou definir, mas de o reconhecer e o receber. Se a nossa natureza não se encontra à vontade no sobrenatural, o sobrenatural está à vontade na nossa natureza (Lettre, etc., p. 39). A insuficiência da ordem natural é também a insuficiência da história: a conexão dos factos não explica o carácter sobrenatural do cristianismo, mas exige-o como seu complemento e justificação (História e dogma, 1904). 217 O pressuposto desta primeira fase da filosofia de Blondel é que só a acção pode fornecer a chave do que o homem é e deve ser e, ao mesmo tempo, o pode levar a compreender a sua natureza finita e a sua exigência de infinito. "Trata-se do homem integral dizia então Blondel (L'action, p. XXIII) - não é, portanto, apenas no pensamento que se deve procurá-lo. É necessário transferir para a acção o centro da filosofia, porque é nela que se encontra também o centro da vida". A acção é, na obra de 1893, a única realidade concreta do homem e, por isso, inclui em si tanto o seu ser como o seu pensamento. Ao invés, nas obras que Blondel publicou a partir de 1934, esse pressuposto é abandonado e o ser, o pensamento e a acção são considerados como três aspectos, que, embora conexos, são diversos e independentes da realidade cósmica, humana e divina. Para cada um destes três aspectos, Blondel refaz o esquema de que se valera em A acção, isto é, passa a descrever o desenvolvimento da realidade natural como o efeito de um contraste ou de uma deficiência que ela necessariamente implica, para demonstrar a necessidade de um complemento desse desenvolvimento mediante o recurso à realidade sobrenatural. Deste modo, o esquema especulativo da primeira obra permanece idêntico, sendo simplesmente multiplicado; e a perda de vigor e de força que daí resulta, supre-a Blondel com a verbosidade da sua exposição. Na sua obra La Pensée (1934), a mola real do desenvolvimento reside no contraste entre o pensamento noético,,que é o aspecto cósmico do pensamento e constitui a sua unidade, e o pensamento 218
pneumático, que "introduz por toda a parte a diversidade, a singularidade, os vínculos parciais, os centros de reacção, as perspectivas diferenciadas e concorrentes" (Pensée, 1, p. 275). O pensamento noético, é o que constitui o mundo físico e o mundo orgânico, ao passo que a dualidade de pensamento noético e pensamento pneumático é a característica do pensamento reflexo e constitui o seu poder de liberdade e de escolha. O pensamento reflexo não chega, em nenhuma das suas fases, a conciliar o aspecto noético com o aspecto pneumático, ou seja, a unidade e a multiplicidade, a imutabilidade e o devir. A sua incompletude revela-se, enfim, como uma impossibilidade de ser completado; e tal impossibilidade natural exige necessariamente um completamento sobrenatural. Analogamente O ser e os seres (1935) parte do reconhecimento de uma "antinomia ontológica" que é a mola real do desenvolvimento dos seres finitos: por um lado, a antinomia entre "a certeza espontânea e confusa de uma presença, de um fundo sólido, de uma subsistência que funda todo o conhecimento, toda a consciência, sem se esgotar nela"-, por outro lado, "um sentimento, se não de ausência, pelo menos de um mistério que, embora não nos faça duvidar da realidade profunda, faz dela um objecto, não de conhecimento definido, mas de investigação interminável" (L'Être, p. 67). Esta antinomia encontra-se em todos os graus do ser, incluindo a pessoa humana, que, apesar da sua unidade, é mais um dever-ser do que um ser. E esta antinomia mantém-se na comunhão dos seres espirituais que tendem à unidade perfeita, sem a poder alcançar. De modo 219 que a única satisfação possível daquele desejo a que Blondel chama desiderium naturale et inefficax ad infinitum é a de nos reconhecermos na unidade transcendental de Deus. Finalmente, na nova edição de L'action (1936-37), Blondel repassa a trama da sua primeira obra, atenuando ou negando o carácter preeminente ou exclusivo que nela atribuía à acção. A última obra A filosofia e o espírito cristão (1944-46), tende a justificar o plano providencial do mundo pela liberdade que deixa aos homens e pelos riscos e recursos que lhes proporciona. Mas o interesse filosófico desta obra é quase nulo. § 690. O MODERNISMO O abade Luciano Laberthonnière (1860-1932), um dos Padres do Oratório é o maior representante do chamado modernismo, uma tentativa de reforma católica que foi condenada pelo papa Pio X na encíclica Pascendi, de 8 de Setembro de 1907. Laberthonnière foi o director dos "Anais de filosofia cristã" (que foram editados de 1905 a 1913), e quase todos os seus escritos foram publicados neste periódico. Os mais notáveis foram recolhidos nos Ensaios de filosofia religiosa (1903); merece ser citado também O realismo cristão e o idealismo grego (1904), em que Laberthonnière contrapõe à filosofia grega que vê em Deus uma ideia suprema e o arquétipo da natureza, o cristianismo que vê em Deus a acção suprema, e uma acção imanente no espírito do homem. Em seguida, Laberthonnière publicou o ensaio Sobre a 220 via do catolicismo (1912) e em 1923 reeditava A teoria da educação Oá incluída nos
Ensaios). Postumamente, foram publicados outros escritos que constituem esclarecimentos ou desenvolvimentos das suas ideias fundamentais (Estudos sobre Descartes, 1935, Estudos de filosofia cartesiana e primeiros escritos filosóficos, 1937; Ensaios de uma filosofia personalisia, 1942; Crítica do laicismo, 1948). O pressuposto de que parte Laberthonnière é o de que uma verdade qualquer só se toma nossa na medida em que nos esforçamos por criá-la em nós próprios. Este pressuposto é a base da doutrina que do ponto de vista filosófico, ele chama dogmatismo moral e, do ponto de vista religioso, método da imanência. Deste ponto de vista, a filosofia não é uma ciência, mas sim o esforço consciente e reflexo que o espírito humano desenvolve para conhecer as razões últimas e o verdadeiro sentido das coisas (Essais, p. 5). A filosofia é mais acção do que conhecimento; e, na realidade, a própria distinção entre conhecer e agir é viciosa. Uma vez adquirido um conhecimento, pode-se decerto considerá-lo independente da acção, como uma coisa acabada e perfeita; mas, considerando-a assim, faz-se dela uma abstracção (1b., p. 138). Estas teses são propostas por Laberthonnière unicamente com vista à vida religiosa. A verdade sobrenatural, a verdade da revelação, não possui valor algum para o homem, se ele não a recriar por sua conta. O sobrenatural é a "união íntima de Deus com o homem, o prolongamento da vida divina na vida humana" (1b., p. XXVI) O homem só existe nesta união, enquanto vê em Deus o seu 221 princípio e o seu fim. Este reconhecimento constitui a busca e o encontro de Deus. Deus continua a ser, decerto, o princípio do homem, mesmo que ele o não reconheça como seu fim; mas neste caso, suporta-o apenas. Reconhecendo-o como fim, aceita-o e quere-o; e deste modo aceita e quer também os outros seres espirituais que dependem de Deus. De modo que este acto é "uma ratificação do acto criador, uma resposta de amor ao amor de Deus". A ordem sobrenatural revela-se e afirma-se, por conseguinte, na própria intimidade da consciência humana de tal modo que "se o homem deseja possuir Deus e ser Deus, Deus deu-se-lhe já. Eis como na natureza mesma se podem encontrar e se encontram as exigências do sobrenatural" (1b., p. 171). Indubitavelmente, estas exigências pertencem não à natureza como tal, mas à natureza penetrada e invadida pela graça; e, todavia, a graça é inseparável da acção humana e, portanto, toda a acção humana "postula o sobrenatural". Pode-se perguntar que função tem a Igreja deste ponto de vista que torna intrínseca à vida e à acção do homem a vida e a acção do sobrenatural. A esta pergunta responde o ensaio Teoria da educação, em que educação e catolicismo se identificam, sendo o catolicismo considerado como "uma organização social que, encarando a humanidade tal como ela é na sua miséria original, tem por objecto libertá-la e salvá-la" (Ib., p. 262). Esta organização social é também, indubitavelmente, o resultado de -uma especial intervenção de Deus, mas não é arbitrária nem é "algo de supérfluo imposto à humanidade por um capricho superior". 222 No campo da exegese bíblica, o modernismo encontrou o seu melhor representante em
Alfredo Loisy (1857-1940), que foi durante muitos anos professor de História da Religião no Colégio de França. As obras mais conhecidas de Loisy são: O Evangelho e a Igreja (1902) e Em torno de um pequeno livro (1903), às quais pertencem muitas das proposições condenadas pelo papa Pio X na encíclica Pascendi dominici gregis de 8 de Setembro de 1907. Loisy respondeu à condenação com um escrito intitulado Simples reflexões sobre o decreto do Santo Ofício "Lamentabili sane exitu" e sobre a encíclica "Pascendi dominici gregis" (1908). São também notáveis as obras de crítica bíblica: A religião de Israel (1901); O quarto Evangelho (1903); Os evangelhos sinópticos (1907-08); Ensaio histórico sobre o sacrifício (1920). Noutros livros, Loisy desenvolveu e consolidou a sua concepção filosófica: A religião (1917); A disciplina intelectual (1919); A moral humana (1923). Loisy concebeu e praticou a exegese bíblica como uma exegese puramente crítica e histórica, segundo a qual a Bíblia cifra no documento humano de um período da história humana; e distingue, por conseguinte, esta forma de exegese da "teológica e pastoral". que pretende tirar da bíblia uma lição apropriada às necessidades actuais dos crentes. Admitiu, assim, que alguns escritos do Velho Testamento (por ex. o Pentateuco) foram pouco a pouco enriquecidos e transformados por várias gerações sucessivas, e que os próprios evangelhos sinópticos sofreram esta transformação gradual que, enriquecendo-os com um valor religioso mais intenso, os afastou cada vez mais da 223 verdade histórica. Todavia, contra a crítica protestante, e especialmente a de A. Harnack (A essência do cristianismo, 1900), afirmou que a essência do cristianismo não pode encontrar-se só no Evangelho e não consiste na relação directa e privada que ele pode estabelecer entre a alma individual e Deus, senão que se realiza na tradição que toma corpo e substância na Igreja. Este é, certamente, o ponto de vista católico. Mas, além disso, Loisy pretende, de acordo com o método da imanência de Blondel e Laberthonnière, que o essencial da tradição não reside nas fórmulas dogmáticas mas na imediata experiência religiosa que encontra naquelas fórmulas a sua expressão imperfeita e relativa. Deste ponto de vista, o dogma toma-se num símbolo e perde o seu valor absoluto. "Os símbolos e as definições dogmáticas estão em relação com o estado geral dos conhecimentos humanos do tempo e do ambiente em que se constituíram. Donde se segue que uma mutação considerável no estado da ciência pode tomar necessária uma nova interpretação das fórmulas antigas que, concebidas noutra atmosfera intelectual, não bastam para dizer tudo o que seria necessário ou não o dizem como conviria" (L'évangile et l'église, p. 208). Loisy é, por isso, levado a ver o essencial da vida religiosa na experiência moral; e os seus últimos escritos defendem a estrita conexão entre moralidade e religião. A religião é concebida como o espírito que anima a moral, e a moral como a prática da religião. "É a religião que comunica às regras da moralidade o carácter sagrado da obrigação e que incita a observá-las
224 na qualidade de deveres; e é através da observância do dever que a religião é cumprida" (La réligion, p. 69). Estas últimas especulações de Loisy são significativas no que concerne ao significado do modernismo: procurando deslocar o eixo da vida religiosa do intelecto para a vontade e para a acção, tende a reduzi-Ia à experiência moral e a diminuir ou a desprezar o seu carácter específico. Ao modernismo e à filosofia da acção está vinculada a obra do mais importante continuador de Bergson, Eduardo Le Roy (1870-1954), sucessor de Bergson no Colégio de França. As obras de Le Roy prestam grande atenção aos problemas gnoseológicos e metafísicos; mas o interesse que as domina é religioso, e religioso no sentido em que o é o catolicismo modernista. Eis as suas principais obras: Ciência e filosofia 1899-1900); A ciência positiva e as filosofias da liberdade (1900); Um novo positivismo (1901) dedicado à filosofia de Bergson: Dogma e crítica (1907); A exigência idealista e o fenómeno da evolução (1927)-, As origens humanas e a evolução da inteligência (1928); O pensamento intuitivo (2 vol., 1929-30); O problema de Deus (1929). Le Roy é um dos críticos mais radicais da ciência contemporânea; faz seus e leva às suas extremas consequências os temas fundamentais da crítica da ciência, tal como esta se apresenta em Mach, Duhem, Poincaré e noutros. Mas a crítica da ciência não é para ele um fim em si mesma, isto é, não tem como finalidade restringir o saber científico àqueles limites que lhe garantem eficácia e validez, mas sim o de desvalorizar 225 esse saber em benefício do pensamento intuitivo e da fé religiosa que ele pretende fundar sobre este. A crítica da ciência é para ele, portanto, uma desvalorização total do pensamento discursivo. Le Roy crê que o mérito de Bergson foi o de ter afirmado a subordinação da ideia à realidade, e da realidade à acção e, por conseguinte, o ter visto na acção o princípio e o fim das coisas e na inteligência apenas uma luz que nos guia, e não já uma força que se baste a si mesma. A visão comum do mundo tem os sinais da nossa intervenção elaboradora, mediante a qual introduzimos na realidade percebida arranjos e simplificações; de modo que nas coisas se reflecte principalmente a nossa própria actividade. O pensamento discursivo substitui o dado primitivo, absolutamente heterogéneo, fluído, contínuo e móvel, por uma construção ordenada em que as coisas se recortam com nítidos contornos no tempo e no espaço. Trata-se de uma construção que o espírito humano produziu com vista às necessidades da acção, mas que é fruto de abstracções e simplificações arbitrárias. E ainda mais arbitrárias são as abstracções e as simplificações da ciência, que constrói, por si mesma, o chamado "facto científico". As pretensas confirmações da experiência são, na realidade, círculos viciosos. Um método, um aparelho, só são considerados bons quando nos dão aqueles resultados que nós próprios arbitrariamente decretámos. O rigor e a necessidade dos resultados científicos só existem na linguagem que a ciência emprega e são por isso fruto de uma pura convenção. Todos os corpos pesados cairão sempre segundo as leis de
226 Galileu, porque estas leis constituem a definição da queda livre. A definição da unidade de tempo supõe a noção de movimento uniforme, e não se pode constituir esta noção se não se possui já uma unidade de tempo. Assente nestes círculos viciosos, a ciência não tem valor teorético, mas procura e encontra apenas constantes úteis; e encontra-as porque a acção humana não comporta uma precisão absoluta, mas exige só que a realidade seja aproximadamente representada, nas suas relações connosco, por um sistema de constantes simbólicas chamadas leis. Assim entendida, a ciência é um produto da liberdade do espírito, tal como um produto da liberdade do espirito é o mundo rígido, morto e necessário para o qual a ciência se dirige; mas a essência mesma desta liberdade escapa à ciência. Encontrá-la, vivê-Ia até ao fundo e fazê-la progredir, tal é a finalidade da filosofia, que, como tal, é sempre espiritualista. A filosofia deve tentar explicar a evolução que fez emergir da matéria a vida, da vida o homem, e que designa a marcha para além do homem, para uma realidade superior. Le Roy descreve, seguindo as pisadas de Bergson, as etapas principais desta evolução nas suas obras principais: A exigência idealista e o fenómeno da evolução, As origens humanas. e a evolução da inteligência; o O pensamento intuitivo. A evolução como movimento incessante, continuidade, progresso, explica-se apenas admitindo que o pensamento é o ser mesmo, o princípio de toda a posição, o estofo de toda a realidade. Para entendei a vida, é necessário admitir que os indivíduos vivos 227 são manifestações de uma Biosfera que circunda a Terra e que tem com os indivíduos a mesma relação que o pensamento tem com as ideias que sustenta e vivifica. Com o aparecimento do homem sobre a Terra, começa o reino da Noosfera, o reino do progresso espiritual que o homem realiza em todos os campos e que o cristianismo orienta para o advento de um novo grau, que será a fase suprema da génese vital. Este novo grau deverá realizar-se através da acção do pensamento intuitivo, a que Le Roy atribui o poder da invenção criadora. Também é necessário, para alcançar a verdade religiosa, empregar o pensamento intuitivo ou, como Le Roy diz, o pensamento-acção, isto é, a imediata experiência espiritual. As demonstrações habituais da existência de Deus são inoperantes. O mundo físico não tem realidade; e as suas leis têm, decerto, um criador, mas este criador é o próprio homem, que as estabelece convencionalmente mediante os processos do seu pensamento discursivo. Deus, como qualquer outra realidade, não se pode demonstrar ou deduzir, mas apenas intuir; e a intuição de Deus é a própria experiência moral. "A afirmação de Deus - diz Le Roy (Problème de Dieu, p. 105), é a afirmação da realidade moral, como realidade
autónoma, independente, irredutível, e também, talvez, como realidade primeira". A afirmação de Deus consiste na afirmação do primado da realidade moral como espírito do nosso espírito, e neste sentido viver significa crer em Deus; e conhecer Deus, tomar consciência do que está implícito na acto de viver. Deste ponto de vista, Le Roy declara igualmente falsas as concepções 228 da imanência e da transcendência de Deus. Decerto, nós só conhecemos Deus em nós mesmos no mundo, e nunca em si mesmo; e neste sentido, Deus é imanente. Mas Deus revela-se no mundo e em nós "mediante um apelo de transcendência, mediante um impulso para uma expansão ilimitada, mediante uma exigência de realização indefinidamente progressiva que ultrapassa toda a realidade finita"; e neste sentido é transcendente. A transcendência de Deus é, na realidade, para nós "uma vocação de transcendência"; e o verdadeiro problema não é o da sua transcendência, mas antes o da queda pela qual o homem passa a estar de algum modo separado dele (1b., p. 284). Deste ponto de vista, a personalidade de Deus tem um valor puramente pragmático-, significa que nós nos comportámos em relação a Deus como perante uma pessoa, que buscamos nele a nossa personalidade e que, reencontrando deste modo esta personalidade, alcançamos a certeza de que nos encontramos na via da verdade (Ib., p. 280). O dogma tem também um valor pragmático. Segundo Le Roy, é a fórmula de uma regra de conduta prática; nisso consiste o seu significado positivo. Este significado não exclui, porém, a sua relação com o pensamento: em primeiro lugar, porque existem deveres que se referem também à acção do pensamento e, em segundo lugar, porque o próprio dogma afirma implicitamente que a realidade contém, sob esta ou aquela forma, tudo o que justifica como razoável e salutar a conduta prescrita ffiogme et critique, p. 25). Assim, o dogma da Ressurreição de Jesus visa a prescrever 229 em relação a Jesus a atitude e a conduta que seriam requeridas frente a um contemporâneo (1b., p. 255). A filosofia de Le Roy é, certamente, a mais notável manifestação do modernismo católico, mas também ela acaba de reduzir a experiência religiosa à moral e por ver nos objectivos da religião o símbolo das exigências morais. O seu valor especulativo continua dependente do princípio bergsoniano do pensamento intuitivo, isto é, de um pensamento que tem a imediatez, e por conseguinte, a certeza absoluta, da vida vivida. Escapa a estes filósofos que a vida vivida (a qual é tão pouco imediata que se entrelaça e se vincula em todos os seus momentos ao pensamento discursivo e de tal modo que não pode, passar sem este, sobretudo para se manter a si mesma, não tem nenhuma certeza e segurança, e que é ao invés (e devido àquela mesma mobilidade tão exaltada pelos bergsonianos) extremamente incerta, instável e pouco segura. O pensamento imediato é outra forma do mito da estabilidade e da segurança do destino a que o homem-filósofo permanece ainda tenazmente ligado em grande parte da filosofia contemporânea. § 691. MODERNISMO: SOREL A filosofia da acção tem, em geral, carácter religioso; adquire, no entanto, carácter político
na obra de Georges Sorel (1847-1922), que declara inspirar-se em Bergson. "0 ensino de Bergson - segundo afirma - mostrou-nos que não é só a religião que ocupa as regiões da consciência profunda; também os mitos 230 revolucionários têm as suas raízes" (Refl. sobre a violência). Engenheiro e matemático, Sorel criticou o conceito positivista da ciência insistindo no valor "metafísico das hipóteses científicas e na inexistência do determinismo" (As preocupações metafísicas dos físicos modernos, 1905). Mas o seu escrito mais famoso são as Reflexões sobre a violência, no qual, aceitando o princípio da luta de classes, de Marx, e a negação total da sociedade capitalista, procura fundar este princípio numa antropologia e numa filosofia da história que são as da filosofia da acção. Segundo Sorel, a realidade humana e histórica é devir incessante, movimento, acção: como tal, é liberdade. Mas a liberdade só se realiza no acto de um contraste radical, violento e total com a realidade histórica. "Quando nos dispomos a agir-diz Sorel (Refl. sobre a violência, p. 33)-criámos já um mundo fantástico, contraposto ao mundo histórico, e dependente da nossa actividade: a nossa liberdade torna-se deste modo perfeitamente inteligível". A acção livre supõe, portanto, "um mundo fantástico" que se contrapõe ao mundo histórico com a sua negação total. E quando um mundo fantástico deste género se torna num património de massas que se apaixonam por ele e dele extraem as normas da sua acção, converte-se num mito social. O mito social não é um produto do intelecto mas uma experiência da vontade. A utopia, ao invés, é um produto intelectual e delineia um modelo com o qual se comparam as sociedades existentes para valorizar o mal e o bem que contêm. Por isso, os mitos levam os homens 231 a preparar-se para a destruição do que existe, ao passo que a utopia tem como efeito dirigir os espíritos para reformas realizáveis, que fazem em pedaços o sistema. Um mito é irrefutável porque é idêntico às convicções de um grupo, expressas em termos de devir, e não se pode decompor em partes no plano de unia descrição histórica. A utopia, pelo contrário, pode-se discutir como qualquer instituição social, e pode-se refutar. Sorel pretende deslocar o socialismo do plano da utopia para o plano do mito, libertando o marxismo dos seus elementos utópicos e reconduzindo-o ao princípio puro e simples da luta de classes, aberta, total e violenta. Tal é o sindicalismo, que Sorel opõe às diversas formas do socialismo contemporâneo, que ele condena em bloco como acomodações, compromissos e degenerações destituídas de valor espiritual. O único mito susceptível de manter desperta a luta de classes e de a conduzir ao plano da guerra aberta e heróica é o da greve geral. Este mito faz conceber a passagem do capitalismo ao socialismo como uma catástrofe, cujo desenvolvimento escapa a qualquer descrição (Refl. sobre a violência, p. 237). Isto tira todo o significado à política de reformas sociais que aparecem sempre incluí das no âmbito da
sociedade burguesa e apresenta a realização do socialismo como uma obra "grave, temível, sublime, mas, precisamente por isso, dotada de uma grande força educativa e espiritualizadora. Pode acontecer que o mito nunca se realize (como aconteceu, por exemplo, com a catástrofe esperada pelos primeiros cristãos) mas isto nada diz sobre o valor do mito, que não consiste 232 na sua concordância com o curso da realidade, mas sim na sua capacidade de suscitar a acção negadora da realidade mesma (1b., p. 208). O mito desempenha, por outros termos a mesma função que na ciência desempenha uma hipótese de trabalho, a qual é sempre útil e fecunda, mesmo quando os resultados a que conduz levem a abandoná-la. "Aceitando a ideia da greve geral, embora sabendo que é um mito, nós agimos como o físico moderno, que tem plena confiança na sua ciência, embora sabendo que o futuro a considerará ultrapassada" (Ib., p. 239). Tudo isto implica a justificação da violência; não da pequena violência, esporádica e destituída de grandeza, mas da violência que é guerra da classe operária contra a classe burguesa. A violência, no seu verdadeiro conceito, exclui a força que é própria da sociedade e do estado burguês. O socialismo não tende a assenhorear-se desta força, mas a destruí-Ia com a violência e a criar uma sociedade de homens livres. Daí o carácter moral da violência, a qual não destrói a moral mas a transforma e a conduz ao plano do entusiasmo e do heroísmo. "0 socialismo deve à violência os altos valores morais com os quais traz a salvação ao mundo moderno" (lb., p. 365). As ideias de Sorel exerceram uma notável influência nos movimentos políticos do nosso século. O fascismo italiano e o comunismo russo extraíram dele as suas teses características. As suas bases filosóficas são frágeis: reduzem-se a um voluntarismo absoluto, segundo o qual a vontade humana só pode alimentar-se e sustentar-se em virtude de mitos impossíveis. 233 A Sorel escapou-lhe o ensinamento fundamental do marxismo: a limitação e o condicionamento que a vontade encontra nas relações sociais que a constituem. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 687. De Newman: Collected Works, 37 vol., Londres, 1870-79. Sobre Newman: P. THuREAu-DANGIN, La Renaissance catholique: IV. et le mouvement "Oxford, Paris, 1899; L. FÉLixFAuRE, N., sa vie et ses oeuvres, Paris, 1901; W. BARRY, N., Londres, 1903; W. WARD, The Life of J.H. Cardinal N., 2 vol., Londres 1912; C. F. HARROLD, J.H.N., Nova Iorque, 1945; R. SENCOURT, N., Londres, 1948; J. A. LuTz, Kardin41 J.H.N., Zurique, 1948.
§ 688. Sobre OIlé-Laprune. BOUTROUX, Vie et oeuvres de L.O.-L., in "1@évue de phil.", 1903; G. FoNSEGRIvE, L.O.-L., Ilhomme et le p~eur, Paris, 1912; M. BLONDEL, L.O.-L., L'achèvement et Ilavenir de son oeuvre, Paris, 1962; R. CRIPPA, O.-L., Brescia, 1947. § 689. Sobre Blondel: M. CREmER, Le problème religieux dans Ia philosophie de ZIaction, Paris, 1912; J. DE TONQUEEDEC, Immanence, Essai sur la, doctKne de M. B., Paris, 1913; E. CARPiTA, Educacione e religione in M.B., Florença, 1920; O. ARCUNo, La filosofia de111azione e il pragmatismo, Florença, 1942; P. ARCHANiBAULT, Lloeuvre phil. de M.B., Paris, 1928; LEFÈVRE, 1,'itinéraire phil. de M.B., Paris, 1928; FEDERICI AIROLDI, Intrepretaziane del problema dellIessere in M. B., Florença, 1936; E. OGGIONI, La filosofia deZIlessere di M.B., Nápoles, 1939; H. DUMMÉRY, B. et Ia religion, Paris 1954; R. CRiPPA, Il realismo integrale di M.B., Milão: 1954; ID., Profilo della critica blondeliana, Milão, 1962. § 690. Sobre o modernismo: G. PREZZOLINI, Che coslè il modernismo, Milão, 1908; ID., II cattolicesimo 234 rosso Nápoles, 1908; R. MUImI, La política clericale e Ia democracia, Roma, 1908; ID., I problerni dellIltalia contemporanea, Roma, 1908; ID., Della religione, della Chiesa e dello Stato, Milão, 3.910; ID., 11 Cristianesimo e Ia religione di domani, Roma, 1913; E. BU0NAlUTI, Il programa dei modernisti, Turim, 1908; ID., Lettere de un prete modernista, Roma, 1908; R. MURRI, La filosofia nuova e Venciclica contro il modernismo, Roma, 1908; G. GENTILE, II modernismo e i rapporti fra religione e filosofia, Bari, 1909; G. SOREL, La religioni dIoggi, Lanciano, 1911; E. ROSA, Il giuramento contra gli errori del modernismo, Roma, 1911; J. SCHNITZER, Der Katholiscke Moderni&mus, in "Zeitschrift fur PoIitik"@ 1912, p. 1-129; A. HOUTIN, Histoire du modernisme catholique, Paris, 1913; R. BERTHELOT, Un romantisme utilitaire, Le pragmatisme religieux chez W. James et chez les catholiques modernistes, Paris, 1922; E. BUONAIUTI, Histoire du modernisme catholique, Paris, 1927; J. RIVIÈRE, Le modernisme dans Iléglise, Paris, 1923. § 691. De Sorel, as Reflexões sobre a violência, trad. ital., A. Sarno, com prefácio de B. CROCE, Bari, 1926; Escritos políticos (Reflexões sobre a violência, As ilusões do progresso, A decomposiçdo do marxismo) ao cuidado de R. Vivarelli, Turim, 1963 (citado no texto). A religi" de hoje, trad. Lanzillo, Lanciano, 1909, é urna colectânea de ensaios criticos sobre algumas formas contemporâneas de filosofia, da religião. Sorel é tainbém autor de uni estudo intitulado Le sistème historique de Renan, Paris, 1906. Sobre Sorel: G. SANTONASTASO, G.S., Bari, 1932; P. ANGEL, Essais sur G.S., Paris, 1936; J. H. MEISEL, The Genesis of G.S., Ann Arbor, 1951; R. HuMPRHEY, G.S., Prophet Without Honor, Harwari:@ 1951; G. GoRiELY, Le plural~ dramatique de G.S., Paris, 1962. 235 íNDICE
XIII - O POSITIVISMO EVOLUCIONISTA
...
7
§ 647. O pressuposto romântico ... ... 7 § 648. Hamilton e Mansel ... ... ... 8 § 649. A teoria da evolução ... ... ... 13 § 650. Spencer: o Incognoscível ... ... 20 § 651. Spencer: a Teoria da Evolução 26 § 652. Spencer: Biologia e Psicologia ... 29 § 653. Spencer: Sociologia e ]Êtica ... 32 § 654. Desenvolvimento ;do positivismo 38 § 655. Cláudio Bernard ... ... ... ... 41 § 656. Taine e Renan. ... ... ... ... 44 § 657. A Sociologia ... ... .. . ... ... 50 § 658. Ardigó ... ... ... ... ... ... 52 § 659. O evolucionismo materialismo (Monismo) ... ... ... ... ... 59 § 660. O evolucionismo espiritualistá ... 67 Nota bibliográfica ... ... ... ... XIII - NIETZSCHE
83
... ... ... ... ... ... ... 89
§ 661. A figura de Nieitzsche ... ... ... 89 § 662. Vida e Obra 663. Dioniso ou a aceitação da vida 95
... ... ... ... ... 90 §
237 § 664. A tranãmutação dos valores ... 98 § 665. A Arte ... ... ... ... ... ... 102 § 666. O eterno retomo ... ... ... ... 106 § 667. "Amor-Fati> ... ... ... ... ... 108 § 668. O super-homem ... ... ... ... 111 § 669. A personalidade impossível ... 113 Nota bibliográfica ... ... ... ... 117 SÉTIMA PARTE A FILOSOFIA NO SÉCULO XIX E XX O ESPIRITUALISMO
... ... ... ...
§670. Natureza e caracterlgticas do piritualismo
123 es-
... ... ... ... ... 123 §671. O espiritualismo alemão:
M.
Fichte ... ... ... ... ... ... 1.27 §672. Lotze ... ... ... ... ... ... ... 129 §673. Spir ... ... ... ... ... ... ... 133 §674. E. Harimaim. Eucken ... ... ... 138 § 675. O espiritualismo [em França. Lequier
... ...
. ... ...
142
238 § 676- Amiel. Secrétan ... ... ... ... 146 § 677. Ravaisson ... ... ... ... ... 149 § 678. Lachelier. Jaurè5 ... ... ... ... 1.52 § 679. Boutroux ... ... ... ... ... ... 155 § 680. Hamelin ... ... ... ... ... ... 160 § 681, O espiritualismo oem Inglaterra 165 § 682. O espiritualismo em Itália. Martinetti ... ... ... ... ... ... 172 § 683. Varisco. Carabellese ... ... ... 177 § 684. Espiritualismo existencialista ... 184 § 685, O personalismo ... ... ... ... 194 Nota bibliográfica ... ... ... ... 198
II-A FILOSOFIA DA ACÇÃO
... ... ... 205
§ 686. Caracteristicm da filosofia
da
acção ... ... ... ... ... ... ... 205 § 687. Newman ... ... ... ... ... ... 206 § 688. OIléLaprune ... ... ... ... ... 210 § 689. Blondel ... ... ... ... ... ... 214 § 690. O modernismo ... ... ... ... 220 § 691. Sorel ... ... ... ... ... ... ... 230 Nota bibliográfica ... ... ... ... 234 239 Composto e impresso para a EDITORIAL PRESENÇA na Tipografia Nunes Porto
História da Filosofia Volume doze Nicola Abbagnano obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes. Se quiser possuir obras do mesmo tipo ou, por outro lado, tem livros que não se importa de ceder, por favor, contacte-me: Ângelo Miguel Abrantes, R. das Açucenas, lote 7, Bairro Mata da Torre, 2785-291, S. Domingos de Rana. telef: 21.4442383. móvel: 91.9852117. Mail: [email protected] [email protected].
HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME XII TRADUÇÃO 'DE: ANTÓNIO RAMoS ROSA CONCEIÇÃO JARDIM EDUARDO LúClõ NOGUEIRA EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970
TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO III BERGSON § 692. BERGSON: VIDA E OBRA
A obra de Bergson apresenta-se-nos, logo à primeira vista, como a máxima expressão do espiritualismo francês, que principia com Maine de Biran e continua numa numerosa família de pensadores franceses contemporâneos (§ 675). No entanto, pode ser também legitimamente incluída no quadro do evolucionismo espiritualista que teve representantes e defensores em todos os países da Europa (§ 660). Além disso, interessa-se por alguns temas da critica da ciência e do pragmatismo. O seu traço mais característico é, no entanto, o espiritualismo. O tema fundamental, ou antes, o único tema, da investigação bergsoniana, é a consciência; mas a originalidade desta investigação consiste no facto de não considerar a consciência como uma energia infinita e infinitamente criadora, mas 4, @I, 01, energia finita, condicionada e limitada por situações, circunstâncias ou obstáculos que podem também solidificá-la, desagradá-la, bloqueá-la ou dispersá-la. O próprio Bergson declarou sob este aspecto o carácter original do seu espiritualismo. "0 grande erro das doutrinas espiritualistas - disse ele (Evolution créatr., 1911, p. 291)-foi o de crer que isolando a vida espiritual de tudo o mais, suspendendo-a no espaço mais alto possível sobre a terra, a colocariam assim ao abrigo de qualquer ataque; como se assim não a tivessem exposto a ser confundida com o efeito de uma miragem". As doutrinas espiritualistas opuseram o testemunho da consciência aos resultados da ciência sem ter em conta estes últimos ou até ignorando-os. Bergson pretende, ao invés, aceitar e fazer seus os resultados da ciência, ter presente a exigência do corpo e do universo material a fim de entender a vida da consciência e assim reconduzir a consciência mesma à sua existência concreta, que é condicionada e problemática. O espiritualismo adquire, por isso, na sua obra um sentido novo e tende a inserir a própria problematicidade na vida espiritual. Henri Bergson nasceu em Paris a 18 de Outubro de 1859 e morreu a 4 de Janeiro de 1941. Foi durante muitos anos professor no Colégio de França. A primeira obra que publicou intitula-se o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889), que logo no título mostra o que será o método da filosofia bergsoniana: libertar das estruturas intelectuais fictícias a vida original da consciência para a atingir na sua pureza. A segunda obra, Matéria e memória (1896) é dedicada ao estudo das relações entre corpo e espírito. Reporta a essência do espírito à memória e atribui ao corpo a função de limitar e escolher as recordações para os fins da acção. A evolução criadora (1907) é a sua obra principal, em que apresenta a vida como uma corrente de consciência (impulso vital) que se insinua na matéria subjugando-a, mas mantendo-se ao mesmo tempo limitada e condicionada por ela. Em 1900, Bergson publicou os ensaios sobre o riso, (Le rire) que continham também a sua doutrina sobre a arte; constituem três colectâneas de ensaios os livros intitulados A energia espiritual (1919), Duração e simultaneidade (1922), a propósito da teoria de Einstein, e O pensamento e o movente (1934). Em As duas fontes da moral e da religião (1932), Bergson. mostrou o significado ético e religioso da sua doutrina. Após a publicação destas obras, Bergson, que era de origem judaica, foi-se orientando cada vez mais para o catolicismo, no qual viu, segundo
declarou, o complemento do judaísmo. Mas (como disse num passo do seu testamento [19371 revelado pela sua mulher), r-enunciou a uma expressa conversão devido à onda de anti-semitismo que se espalhara pelo mundo. "Quis-escreveu ele-permanecer entre os que amanhã serão perseguidos". § 693. BERGSON: A DURAÇÃO REAL O ponto de partida e o fundamento de toda a filosofia de Bergson é a doutrina da duração real. O próprio Bergson indicou a fonte desta doutrina, ou pelo menos, o ponto de partida onde foi buscar a inspiração dela. Perante a imprecisão de todas as doutrinas filosóficas, "uma doutrina - segundo afirma (La Pensée et le Mouvant, 1934, p. 8) - parecera-nos já fazer excepção e, provavelmente por isso, afeiçoaramo-nos a ela desde a nossa primeira juventude. A filosofia de Spencer visava seguir o rasto das próprias coisas e modelar-se pelos pormenores dois factos. Sem dúvida que procurava ainda o seu ponto de apoio em vagas generalidades. Víamos bem a debilidade dos Primeiros princípios, mas tal debilidade parecia-rios que derivava do facto de que o autor, insuficientemente preparado, não pudera aprofundar as "ideias últimas" da mecânica. Ganhou-nos o desejo de desenvolver esta parte da sua obra, completá-la e consolidá-la. Foi então que se nos deparou a ideia do tempo. E aí aguardava-nos uma surpresa". A surpresa consistiu em verificar que o tempo real, que tem um papel fundamental na filosofia da evolução escapa às ciências matemáticas. Deste modo, a filosofia de Bergson, nascida da tentativa de aprofundamento de um capítulo particular do evolucionismo de Spencer, apresenta-se na sua origem como a transformação do evolucionismo naturalista num evolucionismo espiritualista, que identifica o processo contínuo, incessante e progressivo da evolução com o devir temporal da consciência. A duração real é, de facto, o dado da consciência, despojado de toda a superestrutura intelectual ou simbólica e reconhecido na sua simplicidade originária. A existência espiritual é uma mudança incessante, uma corrente contínua e ininterrupta que varia ]o permanentemente, não substituindo todo o estado de consciência por outro, mas dissolvendo os próprios estados numa continuidade fluída. Não existe um substracto imóvel do eu sobre o qual se projectasse a sucessão dos estados conscientes. A duração é o processo contínuo do passado que rói o futuro e cresce à medida que avança. A memória não é uma faculdade especial, mas é o próprio devir espiritual que espontaneamente conserva tudo em si mesmo. Esta conservação total é ao mesmo tempo uma criação total, uma vez que
nela cada momento, embora seja o resultado de todos os momentos anteriores, é absolutamente novo em relação a eles. "Para um ser consciente - diz Bergson - existir significa mudar, mudar significa amadurecer, amadurecer significa criar-se indefinidamente a si mesmo" (Evol. créat., p. 8). A vida espiritual é, essencialmente, autocriação e liberdade, No Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889), Bergson mostrou como toda a discussão entre deterministas e indeterministas nasce da tentativa de entender a vida da consciência, que é movimento e duração, servindo-se dos esquemas extraídos do estudo da matéria, que é extensão e imobilidade. Não é possível reduzir a duração da consciência ao tempo homogéneo de que fala a ciência, o qual é constituído por instantes iguais que se sucedem. O tempo da ciência é um tempo especializado e que perdeu por isso o seu carácter original. Nem tão-pouco é possível falar de uma multiplicidade de estados de consciência análoga à multiplicidade dos objectos espaciais que se separam e se excluem uns 11 os estados de consciência se unificam. Todos ,, fluída corrente da consciência, da qual não p em distinguir a não ser por um acto de abstracção, e o tempo é, na consciência, a corrente, da mudança, não uma sucessão regulada de instantes homogéneos. Só o labor abstracto do intelecto e o uso da linguagem, que se encontra intimamente ligado àquele, transformam esta corrente contínua numa multiplicidade de estados de consciência diversos, numeráveis e imóveis. Sendo assim, não se pode dizer (como faz o determinismo) que a alma é determinada por uma simpatia, por um ódio ou por qualquer outro sentimento, como por uma força que actue sobre ela. Tais sentimentos, quando atingem uma certa profundidade, não são forças estranhas à alma, mas cada um deles constitui a alma inteira; e dizer que a alma se determina sob a influência de um deles significa reconhecer que se determina por si mesma e, que, portanto, é livre. Além disso, a liberdade não tem o carácter absoluto que o espiritualismo algumas vezes lhe atribui; pelo contrário, admite graus. Sentimentos e ideias que provêm de uma educação mal compreendida chegam a constituir um eu parasitário que se sobrepõe ao eu fundamental, diminuindo na mesma medida a sua liberdade. Muitos, afirma Bergson (Essai, p. 127), vivem assim e morrem sem ter conhecido a verdadeira liberdade. Em contrapartida, somos verdadeiramente livres quando os nossos actos emanam da nossa personalidade inteira, quando entre esta e aqueles existe aquela semelhança indefinível que existe algumas vezes entre o artista e a sua obra (1b., p. 131). A relação entre o eu e os seus actos não 12 pode, portanto, ser explicada mediante o conceito de causalidade que serve para explicar os liames entre os fenómenos naturais e tomá-los previsíveis. Os actos livres nunca são previsíveis e, propriamente falando, não se pode dizer que o eu seja a causa deles, dado que
o eu não se distingue deles, senão que vive e se constitui neles. A liberdade é indefinível, porque coincide com o próprio processo da vida consciente. Defini-Ia, isto é, exprimi-Ia numa fórmula de linguagem, significa transferi-Ia para o plano da consideração espacial e dos objectos físicos, mas aqui não existe senão o determinismo, porque desapareceu precisamente o que constitui a consciência: a duração real. § 694. BERGSON: ESPÍRITO E CORPO O evolucionismo espiritualista caracteriza-se, no que concerne à relação entre espírito e corpo, pela doutrina do paralelismo (ou monismo) psicofísico (§ 660). Bergson considera, ao invés, que esta doutrina é equivalente, nos seus resultados, à da consciência como epifenómeno dos dados físicos, própria do evolucionismo materialista. "Quer se considere-afirma ele (Matière et mémoire, p. 4)-o pensamento como uma simples função cerebral e o estado de consciência como um epifenómeno do estado cerebral, quer se encarem os estados do pensamento e os estados do cérebro como traduções em duas línguas diferentes do mesmo original, supõe-se tanto num caso como noutro o mesmo princípio: se 13 pudéssemos penetrar no interior de um cérebro que trabalha e assistir ao entrecruzamento dos átomos de que é feito o córtex cerebral ou se, por outro lado, possuíssemos a chave da psicofisiologia, saberíamos pormenorizadamente tudo o que sucede na consciência correspondente". Contra esta adequação ou equivalência do psíquico e do físico é dirigida a tese que Bergson expõe em Matéria e memória (1896). Bergson começa por rejeitar tanto o realismo como o idealismo, no que concerne à realidade da matéria, Apela para o "senso comum", o qual afirma, é certo (como faz o realista) que o objecto existe independentemente da consciência que o percebe, mas crê (como faz o idealista) que este objecto é perfeitamente idêntico ao dado sensível. Por outros termos, para o senso comum o objecto não é mais do que uma imagem, mas uma imagem existente. No sistema de imagens, a que o mundo se reduz, uma, no entanto, se apresenta com características especiais: o nosso corpo, que é o único meio para agir sobre as imagens. A percepção é, precisamente, o acto da inserção activa daquela imagem que é o nosso corpo no sistema das outras imagens: é acção, e não contemplação. Há, portanto, uma diferença radical entre a percepção e a recordação. Considera-se, habitualmente, que a diferença entre estes dois elementos é apenas de grau, e que a recordação é uma percepção menos intensa ou mais ténue. Segundo Bergson, isto é um erro comum à psicologia materialista e à espiritualista. Entre a percepção e a recordação existe, pelo contrário, uma diferença de natureza. A percepção é o 14 poder de acção do corpo vivo, que se insere activamente entre as outras imagens e provoca o abalo e a readaptação; a recordação, como sobrevivência de imagens passadas, guia e inspira a percepção (já que se age sempre tendo por base as experiências passadas) mas só se torna verdadeiramente actual no acto da percepção mesma. Por consequência, a função do corpo, interposto entre os
objectos que actuam sobre ele e aqueles sobre os quais ele actua, é a de um condutor, incumbido de recolher os movimentos e de os transmitir, quando não os detém, a certos mecanismos motores, determinados se a acção for reflexa, escolhidos se a acção for voluntária. "Tudo se passa, como se uma memória independente recolhesse as imagens ao longo do curso do tempo, à medida que se produzem, e como se o nosso corpo, com tudo o que o circunda, não fosse mais do que uma dessas imagens, a última, a que obtemos a cada momento praticando um corte instantâneo no devir em geral" (Matière et mémoire, p. 81). Bergson distingue três termos: a recordação pura, a recordação-imagem e a percepção, termos estes que explicam a passagem da duração real, como puro processo espiritual, à percepção, em que a duração se torna acção e reacção das imagens entre si. "As ideias, as puras recordações, chamadas do fundo da memória, desenvolvem-se em recordaçõesimagens cada vez mais capazes de se inserirem no sistema motor. À medida que estas recordações tomam a forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente, tendem cada vez mais a confundir-se, com a percepção que as atrai e cujo 15 adoptam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região em que as recordações se fixem e se acumulem. A pretensa destruição das recordações por obra das lesões cerebrais é apenas a interrupção do progresso contínuo pelo qual a recordação se actualiza" (1b., p. 140). Donde se conclui que a recordação pura (a consciência na sua duração real) não está ligada a nenhuma parte do corpo e é, portanto, espiritualidade independente. "0 corpo - diz Bergson (1b., p. 199) -, sempre orientado para a acção, tem por função essencial a de limitar, com vista à acção, a vida do espírito". Esta função é exercida pelo corpo mediante a percepção que é "a acção possível do nosso corpo sobre os outros corpos". Quando se trata de corpos circunstantes, separados do nosso por um espaço mais ou menos considerável, que mede a longinquidade no tempo das suas promessas ou das suas ameaças, a percepção não faz mais do que destroçar acções possíveis. Quando a distância decresce, a acção possível tende a transformar-se em acção real, e quando se torna nula, isto é, quando o corpo se percebe a si mesmo, a percepção delineia, não já uma acção virtual, mas uma acção real. Surge então a dor, o esforço actual da parte ofendida para repor as coisas no seu lugar; e nisto consiste a subjectividade da sensação efectiva (sentimento). A vida espiritual transcende, pois, por todos os lados, os limites do corpo e, por conseguinte, da percepção e da acção que estão ligadas ao corpo. O corpo representa somente o plano da acção, ao passo que a memória pura é o plano em que o 16
espírito conserva o quadro de toda a vida passada e se identifica com a duração. Bergson. substituiu assim o dualismo de corpo e espírito pelo dualismo da acção (ou percepção) e memória. O escopo de L'évolution créatrice é a resolução deste dualismo. § 695. BERGSON: O IMPULSO VITAL A Evolução criadora mostra-nos, de facto, como o próprio mundo da acção e da percepção, enquanto sistema de imagens exteriorizadas e espacializadas e, por conseguinte, objecto da inteligência e da ciência, se constitui em virtude daquele mesmo movimento que é o processo temporal da vida consciente. A obra tende a mostrar que, enquanto a inteligência é incapaz de compreender a natureza da vida, esta, como evolução espiritual, torna possível explicar a natureza e a origem da inteligência e dos seus objectos. Em primeiro lugar, Bergson reporta a vida bio- lógica à vida da consciência, à duração real. A vida é sempre criação, imprevisibilidade e, ao mesmo tempo, conservação integral e automática de todo o passado. Tal é a vida do indivíduo, assim como da natureza; mas as perspectivas de uma e de outra são distintas. Cada um de nós, considerando retrospectivamente a sua história, verificará que a sua personalidade infantil, ainda que indivisível, reunia em si pessoas diversas que podiam coexistir no estado nascente, mas que a pouco e pouco se foram tomando incompatíveis, pondo-nos cada vez mais perante a necessi17 dàde de uma escolha. "A via que percorremos no tempo-diz Bergson (Évolution créatr., p. 109)está salpicada de fragmentos de tudo o que começávamos a ser, de tudo o que poderíamos ter chegado a ser. Nós não podemos viver senão uma única vida; por isso devemos escolher. A vida da natureza, ao invés, não é obrigada a semelhantes sacrifícios: conserva as tendências que num certo ponto se bifurcaram e cria séries divergentes de espécies que evoluem separadamente. Por outros termos, a vida não segue uma linha de evolução única e simples. Desenvolve-se "corno um feixe de caules" criando, pelo simples facto do seu crescimento, direcções divergentes entre as quais se divide o seu impulso originário. As bifurcações do seu desenvolvimento são por isso inúmeras. Mas muitas são também as vias sem saída em relação aos poucos grandes caminhos que ela tem aberto. A unidade das várias direcções não é uma unidade de coordenação, de convergência, como se a vida realizasse um plano preestabelecido. O finalismo, neste sentido, é excluído; a vida é criação livre e imprevisível. Trata-se, ao invés, de uma unidade que precede a bifurcação, isto é, da unidade da vis a tergo, do impulso que a vai pouco a pouco realizando. O impulso da vida, conservando-se ao longo das linhas de evolução nas quais se divide, é a causa profunda das variações, pelo menos das que se transmitem regularmente pela hereditariedade, que se adicionam e criam novas espécies. Tudo isto, se exclui o plano preestabelecido de qualquer teoria finalista, exclui também a hipótese de que a evolução se 18
tenha dado mediante causas puramente mecânicas. O mecanismo não pode explicar a formação de órgãos complicadíssimos que têm, no entanto, uma função bastante simples, como é o caso do olho. Bergson serve-se da imagem de uma mão que atravessa a limalha de ferro que se comprime e resiste à medida que a mão avança. A certa altura, o esforço da -mão esgotar-se-á e, no mesmo preciso momento, as partículas da limalha ter-se-ão justaposto e coordenado numa forma determinada: a da mão que se detém e de uma parte do braço. Se supusermos que a mão e o braço permaneceram invisíveis, os espectadores procurarão nas partículas de limalha e nas forças internas da massa, a causa da sua disposição. Uns explicarão a posição de cada partícula mediante a acção que as partículas próximas exercem sobre ela: esses serão os mecanicistas. Outros pretenderão que um plano de conjunto presidiu a cada uma destas acções elementares: esses serão os finalistas. A verdade é que há um acto invisível, o da mão que atravessou a linalha: os inexauriveis pormenores dos movimentos das partículas, como a sua ordem final, exprimem negativamente este movimento indiviso, porque é a forma global da resistência, e não uma síntese de acções positivas elementares (É vol. créatr., p. 102-03). A acção indivisível da mão é a do impulso vital; subdivisão do impulso vital em indivíduos e espécie, em cada indivíduo na variedade dos órgãos que o compõem e em cada órgão nos elementos que o constituem, é devida à resistência da matéria bruta (correspondente, no exemplo citado, à limalha de ferro). 19 primeira bifurcação fundamental do impulso é a que deu origem à divisão entre a planta a o animal, O vegetal caracteriza-se pela capacidade de fabricar substâncias orgânicas com substâncias minerais (função clorofílica). Os animais, obrigados a andar e a procurar alimento, evoluíram no sentido da actividade locomotora, e, portanto, de uma consciência cada vez mais desperta. As duas tendências dissociaram-se ao crescerem, mas na forma rudimentar implicam-se reciprocamente; e o mesmo impulso que levou o animal a prover-se de nervos e centros nervosos, conduziu à aquisição por parte da planta da função clorofílica (Ib., p. 124). Por outro lado, nem mesmo a vida animal se desenvolveu ao longo de uma única linha. Os Artrópodes e os Vertebrados são as linhas em que a evolução da vida animal no sentido da mobilidade e da consciência teve maior êxito. As outras duas direcções da vida animal, as indicadas pelos Equinodermes e pelos Moluscos, foram ter a um beco sem saída. A evolução dos Artrópodes alcançou o seu ponto culminante nos insectos e, em particular, nos Himenópteros, a dos Vertebrados, no homem. Nestas duas direcções, o progresso efectuou-se de forma diferente, pois que, na primeira direcção se dirigiu para o instinto, na segunda para a inteligência. § 696. BERGSON: INSTINTO E INTELIGÊNCIA Instinto e inteligência são tendências diferentes mas conexas e nunca absolutamente separáveis. Não 20
existe inteligência sem traços de instinto, nem instinto que não esteja rodeado por um halo de inteligência. Contudo, na sua forma perfeita, o instinto pode ser definido como a faculdade de utilizar e construir instrumentos organizados, e a inteligência como a faculdade de fabricar instrumentos artificiais e variar indefinidamente a sua fabricação. Originariamente, o homem não é homo sapiens, mas homo faber (Ib., p. 151). A sua característica é a de suprir a deficiência dos órgãos naturais de que dispõe mediante instrumentos que lhe permitam defender-se contra os inimigos e contra a fome e o frio. Os instrumentos que o homem cria artificialmente correspondem, na outra direcção da vida, aos órgãos naturais -de que o instinto se serve; e por isso o instinto e a inteligência representam duas soluções divergentes, mas igualmente elegantes, de um só e mesmo problema (Évol. créatr., p. 155). Mas enquanto a inteligência se orienta para a consciência, o instinto orienta-se para a inconsciência. Quando a natureza fornece ao ser o instrumento que deve em. pregar, o ponto em que tem de aplicá-lo, o resultado que deve obter, a parte reservada à escolha é extremamente débil, e por isso a consciência será também muito débil e crepuscular. O instinto será, portanto, consciente só na medida em que for deficiente, isto é, só na medida das contrariedades e dos obstáculos que encontrar na sua acção moral. Na inteligência, pelo contrário, o estado normal é o deficit, isto é, o desnível entre a representação e a acção. A inteligência deve, de facto, através de mil dificuldades, escolher para o seu trabalho o lugar 21 a forma e a matéria. E nunca poderá satisfazer-se inteiramente, uma vez que cada nova satisfação criará novas necessidades. Desta diferença fundamental derivam as outras: a inteligência é levada a considerar as relações entre as coisas, ao passo que o instinto se dirige às próprias coisas; a inteligência é conhecimento de uma forma; o instinto, conhecimento de uma matéria. Esta última característica constitui, à primeira vista, uma superioridade da inteligência: uma forma, precisamente por estar vazia, pode ser preenchida da maneira que se quiser e por isso todo o conhecimento formal é praticamente iliinitado e um poder inteligente "traz em si o que lhe permite ultrapassar-se a si próprio". Todavia, esta mesma característica formal priva a inteligência da capacidade de se deter na realidade de que teria necessidade. "Há coisas -diz Bergson (1b., p. 165) que só a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si só, nunca poderá encontrar. Tais coisas só o instinto as encontraria; mas nunca as procurará". Tudo isto determina as capacidades e os limites da inteligência humana. A inteligência está virada, fundamentalmente, para os fins da vida, serve para construir instrumentos inorgânicos e só se encontra à vontade quando tem que lidar com a matéria inorgânica. Mas a matéria inorgânica é solidificação, imobilidade, descontinuidade: a inteligência tende, portanto, a transformar tudo o que considera em elementos sólidos, descontínuos e imóveis. Por isso o devir se lhe apresenta como uma série de dados, em que cada um permanece a si mesmo e, portanto, imutável. Mesmo quando a sua atenção se fixa na mu22 dança interna de um destes estados, decompõe-no numa série de estados ulteriores que terão as mesmas características de fixidez e imobilidade. Assim, a inteligência deixa fugir precisamente o que há de novo na evolução da vida e caracteriza-se por uma natural incompreensão do movimento e da vida.
Bergson define o funcionamento da inteligência como um mecanismo cinematográfico. De facto, a inteligência colhe instantâneos imóveis do devir e procura reproduzi-lo mediante a sucessão de tais instantes. Mas este mecanismo deixa escapar o que é peculiar à vida: a continuidade do devir, em que não se podem distinguir estados. Daí que todas as tentativas da inteligência para compreender o devir não consigam senão transformá-lo numa série de imobilidades sucessivas, que já nada têm da continuidade originária. Surgem então as objecções de Zenão de Eleia contra o movimento: objecções irrefutáveis do ponto de vista da inteligência porque fundadas na espacialização do devir, na sua redução a uma série de imobilidades sucessivas. A incapacidade da inteligência perante a vida é a incapacidade da ciência, que se funda na inteligência. A ciência obtém os maiores sucessos no mundo da natureza inorgânica, onde a duração real da consciência é substituída por um tempo homogéneo e uniforme (constituído por instantes iguais), que na realidade já não é tempo, mas espaço. A este tempo espacializado é aplicável a medida científica; ao invés, o tempo verdadeiro, a duração, não é susceptível de medida porque não apresenta nenhuma uniformidade e é criação contínua. Todavia, este método da 23
não é uma inferioridade sua, mas a condição êxito. A ciência visa à acção; saber equivale a **Wo-,kr, isto é, A partir de uma situação dada para **J@f **etiegar a uma situação futura. Avança por saltos, isto é., por intervalos, que podem ser tão pequenos quanto se deseje, mas que nunca constituem uma continuidade. A ciência só revela os seus limites quando procura compreender a vida. Para compreender a vida é necessário um órgão completamente diferente da inteligência científica. Existe tal órgão? § 697. BERGSON: A INTUIÇÃO Vimos que a outra direcção fundamental da vida é o instinto. Mas a inteligência nunca se separa completamente do instinto: é possível, portanto, um retorno consciente da inteligência ao instinto: tal retorno é a intuição. A intuição é um instinto que se tomou desinteressado, consciente de si, capaz de reflectir sobre o seu objecto e de o estender indefinidamente (Évolut. Créatr., p. 192). Que um tal esforço é possível, prova-o a presença no homem da intuição estética, que dá lugar à arte. A intuição estética, na verdade, faz-nos captar a individualidade das coisas que escapa à percepção comum, inclinada a reter dos objectos só as impressões úteis para os fim da acção. Por outros termos, a intuição tira à arte aquele véu que as exigências da acção interpõem entre nós e as coisas, véu sem o qual todos os hoIliens poderiam entrar em comunicação imediata com as coisas mesmas e ser naturalmente artistas. Dado 24
que, ao invés, as exigências da acção obrigam o homem a ler as etiquetas que a necessidade da prática impõe à s coisas mediante a linguagem, o artista surge de quando em quando e caracteriza-se pela capacidade de ver, escutar ou pensar sem se referir às necessidades da acção. Se fosse possível um desprendimento completo de tais necessidades, ter-se-ia um artista excelente em todas as artes, Mas, na realidade, acontece que o véu se levanta acidental mente só de um lado, ou seja, na direcção de um só dos sentidos humanos; e daqui deriva a diversidade das artes, a especialidade das predisposições (Le Rire, 1908, p. 160). A intuição estética, no entanto, tende apenas ao individual e não pode ser o órgão de uma metafísica da vida. Mas pode-se conceber uma investigação orientada no mesmo sentido que a arte e que tenha por objecto a vida em geral. Uma investigação deste género será propriamente filosófica, ou melhor, constituirá o próprio órgão da metafísica. Enquanto a ciência tem o seu órgão na inteligência e o seu objecto apropriado na matéria imóvel, a metafísica tem o seu órgão na intuição e o seu objecto apropriado na vida espiritual. Se a análise é o procedimento próprio do intelecto, o procedimento próprio da intuição será a simpatia, "pela qual penetramos no interior de um objecto para coincidir com o que ele tem de único e, portanto, de inexprimível" (La Pensée et le mouvant, p. 205). Se a análise intelectual tem necessidade de símbolos, a metafísica intuitiva é, ao invés, a ciência que pretende dispensar os símbolos. Com efeito, possui de um modo absoluto 25 e infinitamente a realidade, em vez de a conhecer; coloca-se directamente nela, em vez de adoptar pontos de vista em torno dela e por isso a atinge para lá de toda a expressão, tradução ou representação simbólica (Ib., p. 206). Bergson apela continuamente para a intuição ao longo de toda a sua investigação. A intuição revela-nos a duração da consciência e põe-nos em guarda contra a espacialização da mesma operada pela inteligência. É a intuição que nos torna conscientes da nossa liberdade. É também a intuição que nos permite recuperar o impulso vital que é a força criadora de toda a evolução biológica. Na realidade, o único objecto da intuição é o espírito. Ela é "a visão directa do espírito por parte do espírito". Contudo, o universo material não se apresenta opaco à intuição. Se o domínio próprio desta é o espírito, "ela desejaria, no entanto, realizar nas coisas materiais a sua participação na espiritualidade - e diríamos na espiritualidade, se não soubéssemos tudo o que de humano ainda se mistura à nossa consciência, mesmo depurada e espiritualizada" (1b., p. 37). A intuição pode ter significados diversos e não se pode definir univocamente. Todavia, a sua característica fundamental é que pensa em termos de duração, isto é, de espiritualidade ou de consciência pura. E é isto precisamente que faz dela o órgão específico da metafísica. Entre a metafísica e a ciência, Bergson não pretende estabelecer uma diferença de valor, mas somente de objecto e de método. À ciência compete o conhecimento intelectual da matéria; à metafísica a intuição do espírito. Uma vez 26 que o espírito e a matéria se tocam, também a ciência e a metafísica, hão-de ter uma
superfície periférica comum: poderão assim agir uma sobre a outra e estimular-se mutuamente. Para exercer a sua função, a filosofia deverá deixar de ser uma mera análise de conceitos implícitos nas formas da linguagem e deverá tratar da própria existência real. Mas toda a existência só pode ser dada numa experiência. Esta experiência chamar-se-á visão ou contacto ou percepção externa em geral, se se trata de um objecto material; chamar-se-á intuição se se trata do espírito. Até onde pode chegar a intuição? Só ela o pode dizer. "Ela diz Bergson (Ib., p. 61)-chega. a possuir um fio: ela própria deverá ver se este fio vai até ao céu ou se se detém a uma certa distância da terra. No primeiro caso, a experiência metafísica relacionar-se-á com a dos grandes místicos; e eu posso comprovar, pela minha parte, que esta é a verdade. No segundo caso, as experiências metafísicas permanecerão isoladas umas das outras, sem no entanto se oporem umas às outras. Em qualquer caso, a filosofia elevar-nos-á acima da condição humana". § 698. BERGSON: GÉNESE IDEAL DA MATÉRIA A recusa de Bergson em admitir qualquer diferença de valor entre a metafísica e a ciência e a sua afirmação de que a metafísica e a ciência se distinguem unicamente pela diversidade dos seus objec27
tos, poderá fazer supor que tal diversidade seja de algum modo irredutível, isto é, que a matéria e o espírito constituam duas realidades últimas, ainda que em mútuo contacto e com mútuas possibilidades de aproximação e de inserção. Porém, a Evolução criadora tem, entre as suas partes mais significativas, uma "génese ideal da matéria" que é uma tentativa para explicar a matéria mesma por meio de unia detenção virtual ou possível do impulso vital, que é pura espiritualidade. A evolução da vida surge à primeira vista a Bergson como o resultado do encontro e da luta entre o espírito e a matéria. "Tudo se passa como se uma ampla corrente de consciência tivesse penetrado na matéria, carregada, como toda a consciência, de uma enorme, multiplicidade de virtualidades que se interpenetrassem. Ela impeliu a matéria para a organização, mas o seu movimento foi a um tempo infinitamente atrasado e infinitamente dividido" (Évol. créatr., p. 197). Mas a intuição não tarda em compreender que a materialidade, como interrupção da tensão vital, como detenção virtual do impulso, como aparição da extensão e da divisão dos entes e como inversão da ordem vital na ordem estática da matéria, é, de algum modo, presente à própria consciência humana. "Quanto mais tomamos consciência do nosso progresso na pura duração - diz Bergson. (1b., p. 21920) -tanto mais sentimos as diversas partes do nosso ser entrarem umas nas outras e toda a nossa personalidade concentrar-se num ponto, ou melhor, numa ponta, que se insere no futuro, acutilando-o sem tréguas. Nisto consistem a 28 vida e a acção livre. Deixamo-nos ir, ao invés; sonhamos em vez de agirmos. Neste mesmo acto, o
nosso eu se dispersa; o nosso passado, que até àquele momento se recolhia em si mesmo no impulso indivisível que nos comunicava, decompõe-se em mil recordações que se exteriorizam umas em relação às outras. Renunciam a interpenetrar-se à medida que se solidificam. A nossa personalidade desce assim na direcção do espaço". A materialidade é, portanto, um movimento, ou melhor, uma suspensão virtual do movimento ou um obstáculo ao movimento que se encontra na própria consciência. Deste ponto de vista, a vida é "um. esforço para ascender pela vertente pela qual a matéria desce". Se a vida fosse pura consciência, e, por maioria de razão, se fosse supraconsciência, seria pura actividade criadora (Evol. créat., p. 267). Mas o limite da sua criatividade é-lhe intrínseco: o seu movimento para a frente complica-se com o seu movimento para trás, e este movimento para trás, a dispersão da vida, a solidificação que procura deter o fluxo criador, é a imaterialidade. "Na realidade, a vida é um movimento, a materialidade é o movimento inverso, e cada um destes dois movimentos é simples, uma vez que a matéria que forma um mundo é um fluxo indiviso, como indivisa é a vida que a atravessa, recortando nela os seres vivos, Destas duas correntes, a segunda opõe-se à primeira; não obstante, a primeira obtém alguma coisa da segunda: daí resulta aquele modus vivendi que é, precisamente, a organização" (Ib., p 271). A organização biológica, toma, para os nossos, sentidos e para a nossa inteligência, a forma de 29 partes extrínsecas umas às outras no tempo e no espaço, porque fechamos os olhos à unidade 1) impulso que, através das gerações, une os órgãos aos órgãos, os indivíduos aos indivíduos, as espécies às espécies, e faz de toda a série dos vivos uma única onda que corre através da matéria. Mas assim que, mediante a intuição, estalamos o esquema solidificado da inteligência, tudo se põe de novo em movimento e se resolve no movimento. Este movimento é continuado na natureza unicamente pelo homem, já que, em toda a parte, salvo no homem, a consciência se viu bloqueada e impedida de chegar à sua forma. Só o homem continua o movimento criador do impulso vital e o continua nas manifestações que lhe são próprias: a moral e a religião. § 699. BERGSON: SOCIEDADE FECHADA E SOCIEDADE ABERTA Nem mesmo no mundo humano, que é o mundo social, a consciência é pura actividade criadora. O antagonismo de movimentos que a intuição descobre na consciência do eu e que se volta a encontrar na vida como contraste entre impulso vital e materialidade, domina também o mundo social. As sociedades humanas que historicamente se formaram e se formam são sociedades fechadas, nas quais o indivíduo actua unicamente como parte do todo, e que deixam uma margem mínima à iniciativa e à liberdade. A ordem social modela--se pela ordem física, conquanto as suas leis não tenham a necessidade absoluta das 30 leis físicas. Mas o indivíduo segue o caminho já traçado pela sociedade: automaticamente obedece às regras desta e conforma-se aos seus ideais. A sociedade é a fonte das obrigações morais. Estas não são, como queria Kant, exigências da pura razão, mas hábitos sociais que
garantem a vida e a solidez do corpo social. A razão entra nestas obrigações só para ditar as modalidades do seu exercício mas nada tem a ver com a origem delas. Na base da sociedade existe o costume de contrariar hábitos, e este é o único fundamento da obrigação moral. O que na outra grande linha da evolução animal a natureza realizou mediante o instinto, dando origem à colmeia e ao formigueiro, na linha da inteligência realizou-o mediante o hábito. Nesta linha, deixou uma certa latitude à escolha individual, e, portanto, todo o hábito moral tem uma certa contingência- Mas o seu conjunto, isto é, o hábito de contrair hábitos, tem a mesma intensidade e regularidade que o instinto (Deux sources, p. 21). Mas além da moral da obrigação e do hábito, que é própria de uma sociedade fechada, existe a moral absoluta, a dos santos do cristianismo, dos sábios da Grécia, dos profetas de Israel, que é a moral de uma sociedade aberta, Esta moral não corresponde a um grupo, mas a toda a humanidade. Tem por fundamento uma emoção original, e continua o esforço gerador da vida. A moral da obrigação é imutável e tende à conservação; a moral absoluta está em movimento e tende ao progresso. A primeira exige a impersonalidade, porque a conformidade a hábitos adquiridos; a segunda corresponde ao apelo 31 de uma personalidade que pode ser a de um revelador da vida moral ou um dos seus imitadores, ou também a da própria pessoa que age. A estas duas morais distintas correspondem dois tipos diversos de religião. § 700. BERGSON: RELIGIÃO ESTÁTICA E RELIGIÃO DINÂMICA O nascimento das superstições religiosas é explicado por Bergson. mediante a função fabuladora. As superstições têm, de facto, um carácter fantástico, mas não podem ser reduzidas à fantasia que actua nos inventos científicos e nas realizações artísticas. A função fabuladora nasce no curso da evolução por uma exigência puramente vital. A inteligência, que é o instrumento principal da vida humana (a qual, como se viu, se rege somente enquanto é capaz de fabricar instrumentos artificiais), ameaça voltar-se contra a própria vida. O ser dotado de inteligência é levado, de facto, a pensar apenas em si mesmo e a desprezar os seus laços sociais. A religião é a reacção defensiva da natureza contra o poder dissolvente da inteligência: os seus mitos e superstições servem para impelir o homem para os seus semelhantes, subtraindo-o ao egoísmo em que a inteligência o faria cair. Além disso, a inteligência mostra claramente ao homem a sua natureza mortal, e isso representa para uma mentalidade primitiva um segundo perigo, contra o qual a religião reage com a crença na imortalidade e com o culto dos mortos. Em ter32 BERGSON ceiro lugar, a inteligência faz perceber claramente ao homem a imprevisibilidade do futuro e, portanto, o carácter aleatório de todos os seus empreendimentos. A religião exerce também aqui unia função defensiva, dando ao homem o sentido de uma protecção sobrenatural, que o subtraia aos perigos e à incerteza do futuro. Finalmente, a religião fornece mediante as
crenças e as práticas mágicas a possibilidade de crer numa influência do homem sobre a natureza muito superior à que o homem pode efectivamente alcançar mediante a técnica. Uma religião assim constituída é, segundo Bergson, infra-intelectual. É, em geral, a reacção defensiva da natureza contra o que há de deprimente para o indivíduo e de dissolvente para a sociedade no exercício da inteligência. É, pois, uma religião natural no sentido de que é um produto da evolução natural. Mas a par desta religião estática, a religião dinâmica constitui a forma supra-intelectual da religião, que retoma e continua directamente o impulso vital originário. Bergson identifica a religião dinâmica com o nústicismo. O misticismo é muito raro e pressupõe um homem privilegiado e genial. Mas ele apela para algo que existe em todos os homens; e mesmo quando não chega a comunicar aos outros homens a sua força criadora, tende a subtraí-los ao formalismo da religião estática e produz assim numerosas formas inter- .. ~..="0 resultado do misticismo - diz Bergson (Deux Sources, p. 235) -é uma tomada de contacto e, por consequência, uma coincidência par33
com o esforço criador que a vida manifesta, é de Deus, se não é Deus mesmo". O misticismo antigo, tanto o platónico como o oriental, é um misticismo da contemplação: não acreditou na eficácia da acção humana. o misticismo completo é o dos grandes místicos cristãos (5. Paulo, Sta. Teresa, S. Francisco, Joana de Are), para os quais o êxtase não é um ponto de chegada, mas o ponto de partida de uma acção eficaz no mundo. O amor do místico pela humanidade é o próprio amor de Deus: é um amor que não conhece problemas nem mistérios, porque continua a obra da criação divina (Ib., p. 251). A experiência mística fornece a única prova possível da existência de Deus. O acordo entre os místicos não só cristãos, mas também pertencentes a outras religiões, é "o sinal de uma identidade de intuição, que se pode explicar do modo mais simples pela existência real do Ser com o qual crêem estar em comunicação" (ib., p. 265). A experiência mística leva a considerar o universo como o aspecto visível e tangível do amor e da necessidade de amar. "Deus é amor e é objecto de amor: aqui está todo o misticismo". (1h., p. 270). Só o amor justifica a multiplicidade dos seres vivos e, portanto, a realidade do próprio universo, requerido pela existência de seres distintos entre si e por Deus. Bergson aceita francamente uma concepção optimista do mundo". "Existe um optimismo empírico-diz ele (1b., p. 280) - que consiste simplesmente em verificar dois factos: em primeiro lugar, que a humanidade julga boa a vida no seu conjunto porque está ligada a ela, em segundo lugar, que existe uma alegria sem 34 mescla, situada para já do prazer e da dor, que é o
estado de alma definitivo do místico". Bergson aspira a que surja algum génio místico que venha corrigir os males sociais e morais de que sofre a humanidade. A técnica moderna, estendendo, a esfera da acção do homem sobre a natureza, tem de certo modo engrandecido desmedidamente o corpo do homem. Este corpo engrandecido "espera um suplemento de alma, e a mecânica exigiria uma mística" (Ib,, p. 355). Os problemas sociais e políticos internacionais que nascem desta desproporção poderiam ser eliminados por um renascimento do misticismo. Neste caso, a mecânica que curvou ainda mais a humanidade para a terra, poderia servir-lhe para se endireitar e olhar o céu. E a humanidade poderia então retomar no nosso planeta "a função essencial do universo, que é uma máquina de fazer deuses" (1b., p. 343). A doutrina da religião dinâmica que acabamos de expor é a parte mais débil de toda a obra de Bergson, e é também aquela em que a elegância imaginativa do estilo do filósofo se transforma abertamente em ênfase e oratória. A identificação da religião autêntica com o misticismo não poderia ser aceite por nenhuma das grandes religiões ocidentais; e a própria identidade, em que Bergson insiste, das experiências místicas procedentes de religiões diversas é fortemente suspeita. Na realidade, o misticismo, como o entende Bergson, tem um pressuposto panteísta: a identidade substancial do homem e de Deus. O homem, enquanto constituído na sua essência por um impulso vital super-individual e sobre-hu35 ~o que, como Bergson diz, "é divino ou é o próprio Deus", não é, na sua natureza espiritual, senão um ou uma manifestação do divino ou de Deus. Mas a relação de íntima comunhão entre o homem e Deus, a firmeza e a estabilidade da comunicação postulada pelo misticismo tal como Bergson o entende, elimina de um golpe a vida religiosa. Nenhuma religião, e muito menos o catolicismo para o qual iam as simpatias de Bergson nos últimos anos, poderia considerar o universo como "uma máquina de fazer os deuses" e os homens iguais a estes deuses. Bergson repetiu na sua última obra as linhas de um panteísmo romântico para o qual o finito é manifestação e revelação do infinito e a individualidade do homem se dissolve ou parece inconsistente e a sua liberdade se identifica com a espontaneidade criadora da força cósmica. § 701. BERGSON: O POSSÍVEL E O VIRTUAL As categorias metafísicas que Bergson explicitamente elucidou e estabeleceu como base da sua investigação inspiram-se precisamente neste panteísmo romântico. Por isso se prestam a justificar a filosofia de Bergson só naqueles aspectos em que ela é redutível a um tal pensamento, mas não os outros, talvez mais vivos, pelos quais a filosofia bergsoniana se insere no círculo da filosofia contemporânea. A categoria que preside à duração real (na variedade das suas manifestações) é a própria realidade, é a criação. Bergson define esta categoria como "a 36 novidade imprevisível" da evolução universal, enquanto é sempre evolução espiritual e que, por isso, se revela directa e imediatamente na consciência. A ideia de criação não é mais do que a percepção imediata que cada um de nós tem da sua própria actividade e das condições em que ela se exerce. "Dêem-lhe o nome que quiserem - diz Bergson (Pensée et
Mouv, p. 118-19 -, ela é o sentimento que temos de ser criadores das nossas intenções, das nossas decisões, dos nossos actos, e, por consequência, dos nossos hábitos, dos nossos caracteres, de nós mesmos. Artífices da nossa vida, e também artistas, quando queremos sê-,lo, trabalhamos continuamente com a matéria que nos oferece o passado e o presente, a hereditariedade e as circunstâncias, a fim de plasmarmos uma figura única, nova, original, imprevisível como a forma que o escultor imprime ao barro". Esta simples verificação imediata, elimina, segundo Bergson, todos os problemas da metafísica e da teoria do conhecimento, uma vez que elimina o problema do ser (e do nada) e o da ordem (e da desordem). O problema da metafísica consiste em perguntar-se porque é que existe o ser, porque é que Z, existe qualquer coisa ou alguém em geral, quando, afinal, poderia não existir nada. Ora, este problema é puramente fictício, porque se baseia no uso arbitrário do termo nada, que só tem sentido no seu terreno, precisamente o do homem: o da acção e da fabricação. "Nada" designa a ausência do que buscamos, do que desejamos ou do que esperamos, mas não designa positivamente nada do que percebemos 37
ou pensamos. que é sempre um "pleno", nunca um "vazio". Quando dizemos que não existe nada, pretendemos dizer que o que existe não nos interessa e que estamos interessados no que já não existe ou poderia ter existido. De modo que a ideia do nada está ligada à de uma supressão real ou eventual e, por conseguinte, à de uma substituição. Ora, a supressão, enquanto substituição, nunca pode ser total, uma vez que nesse caso não seria substituição. O mesmo se pode dizer do problema da ordem. A ordem torna-se um problema quando nos perguntamos porque é que ela existe em lugar da desordem, e implica portanto, como problema, a legitimidade da ideia da desordem. Mas esta ideia significa simplesmente a ausência da ordem procurada; e é impossível suprimir, mesmo mentalmente, uma ordem sem fazer surgir dela outra. O problema fundamental da gnoseologia revela-se, como o da metafísica, um problema fictício derivado do uso arbitrário das palavras. Estas análises, que Bergson desenvolveu amplamente na Evolução criadora e repetiu e confirmou depois, mais recentemente (Pensée et Mouv., p. 122 sgs.), figuram entre as mais merecidamente famosas da filosofia contemporânea, mas não serviam para o fim que ele pretende atingir, isto é, a geração do problema da metafísica ou da metafísica como problema. Com efeito, tais análises não conduzem à eliminação do nada e da desordem, mas somente à definição destes como nulidade possível do ser e da ordem, ainda que seja só no sentido da possível substituição deles por um ser ou por uma ordem em que o homem não esteja interessado. Estas anã38 lises deveriam, portanto, ser completadas com uma análise da categoria do possível; mas esta, infelizmente, não se encontra nas obras de
Bergson. De facto, Bergson entendeu sempre o possível no sentido de "virtual", no sentido da potencialidade aristotélica e ignorou simplesmente ou passou em silêncio o seu significado próprio de problemático. O possível, segundo Bergson, é apenas "a miragem do presente no passado": à medida que a realidade se cria a si mesma, sempre imprevisível e nova, a sua imagem reflecte-se por detrás no passado indefinido. A realidade mesma passa deste -modo a ser possível, mas precisamente no momento em que se torna realidade: a sua possibilidade não a precede verdadeiramente, mas segui-a (Ib., p. 128). Por outras palavras, o possível é, para Bergson, a sombra virtual que a realidade, autocriando-se, projecta no próprio passado. Esta sombra virtual não tem, evidentemente, nada a ver com o sentido concreto da possibilidade presente, mesmo emotivamente, em toda a experiência ou situação humana. Contudo, este sentido não é estranho à filosofia de Bergson que pôs em luz na Evolução criadora o bloqueamento e a dispersão do impulso vital em muitas das suas direcções e correntes, e exprimiu nas páginas finais das Deux sources as suas preocupações pela sorte do homem no futuro. Isto implica, indubitavelmente, o reconhecimento de uma radical incerteza, instabilidade e insegurança de desenvolvimento da experiência humana, que aliás se encontra ensombrada pelo carácter de "imprevisibilidade" que Bergson lhe atribui. Pode dizer-se que a experiência mística subtrai o homem a esta condi39 ção (e à categoria da possibilidade que filosoficamente a exprime) para o vincular a uma certeza em que já não subsistem problemas nem dúvidas sobre o futuro. Mas a consecução e a consolidação da experiência mística, que vem a ser para o homem senão uma possibilidade a que agarrar-se, um problema a resolver? A filosofia de Bergson rompe, nalguns pontos essenciais, o quadro da necessidade romântica em que, explicitamente, o autor quis mantê-la. Sob este aspecto, encontra a sua continuação e o seu enriquecimento no pragmatismo contemporâneo. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 692. Passagens do testamento de B. em A. BÉGUIN e P. THÉVENAZ, H.B., Neuchâtel, 1941. Sobre a bibliografia: A Contribution to a Bibliography of H.B., Nova Iorque, 1913; e "Revue Internationale de Philosophie", 1949, n. 10. Alguns escritos menores de Bergson encontram-se recolhidos em Ècrits et Paroles, ao cuidado de R. M. MOSSÉ-BASTIDE, Paris, 1957. Sobre as relaçõe:s de B. com Maine de Biran: H. GAUBIER, in Études bergsoniennes, 1, 1948. J. BENDA, Le Bergsonisme ou une philosophie de Ia mobilité, Paris, 1912; R. BERTHELOT, Le pragmatisme chez Bergson, Paris, 1913; F. KOLGIATI, La filosofta di R., Turim, 1914; J. MARITAIN, La philosophie bergsonienne, Paris, 1914; LE ROY, Une philosophie nauvelle, Paris, 1914; H. H~DING, La philosophie de R., Paris,
1916; F. D'AMATO, 11 pensiero di E.B., Città di Castello, 1921; THIBAUDET, Le Bergsonisme, Paris, 1923; J. CHEVALIER, B., Paris, 1929; JANNÉLÉVITC11, B., Paris, 1931; 40 A. METZ, Bergson et le Bergsonisme Paris, 1933; G. SANTAYANA, II pensiero americano e aZtri saggi, Milão, 1939, p. 191-248; E. LF, Roy, B. RoMEYER, P. KUCHARSKI, A. FOREST, P. D'AUREc, A. BRÉMOND, A. RICOEUR, Bergson et le Bergsonisme, in "Archives de philosophie", V. XVII, e. 1; V. MATI-IIEU, R., II profondo e Ia sua espressione, Turim, 1954 (com bibl.). § 693. J. DELHOMME, Durée et vie dans Ia phitosophie de Bergson, in Êtudes ber98oniennes, 11, 1949; E. BR£HIER, Images plotiniennes, images bergsoniennes, in Êtudes bergsoniennes, E, 1949, V. MATMEU, op. Cit. § 696. L. HUSSON, L'intelectualisme de, Bergson, Paris, 1947. § 697. J. SEGOND, L'intuition bergsonienne, Paris, 1923; R. M. MossÉ-BASTIDE, L'intuition bergsonienne, in "Revue philosophique", 1948, p. 195-206; F. DELATRIZE, Bergs,on et Proust, in Études bergsoniennes, 1, -1948. § 700. CARBONARA, in "Logos", Nápoles, 1934; H. IVIAVIT, Lex mesisage de Bergson, in "Culture humaine,>, 1947, p. 491-501; H. SUNDIN, La théorie bergsonienne de Ia religion, Paris, 1948. 41 IV O IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO § 702. CARACTERISTICAS DO IDEALISMO O termo "idealismo" é empregado ordinariamente num sentido gnoseológico e serve, portanto, para designar toda a doutrina que reduza a realidade a "ideia", isto é, a sensação, a representação, a pensamento, a dado ou a elemento de consciência. Neste sentido, o idealismo é o aspecto comum de doutrinas diversas e díspares e pode servir igualmente para caracterizar, por exemplo, a doutrina de Berkeley ou de Hume e a de Schelling ou de Hegel. Além disso, muitas correntes da filosofia contemporânea são, neste sentido, igualmente idealistas: o espiritualismo e o neocriticismo, o transcendentalismo in- ,-lês e norte-americano, o idealismo italiano, a filosofia 43 da acção e grande parte da fenomenologia. Este idealismo gnoseológico é o dominador comum de todas as filosofias antipositivistas que caracterizaram os últimos decénios do século passado e os primeiros do nosso; enquanto que o seu oposto, o realismo, foi, no mesmo período, uma excepção e só mais recentemente adquiriu uma certa importância e significação. Neste sentido, portanto, a palavra idealismo não se presta para indicar nenhuma orientação histórica determinada mas apenas uma doutrina gnoseológica que, sendo comum a orientações diversas, não caracteriza historicamente nenhuma.
Neste estudo, empregaremos o termo de idealismo no seu sentido especificamente histórico, ou seja, no sentido de uma orientação que principia com a chamada "filosofia clássica alemã" e pretende demonstrar a unidade ou a identidade de infinito e finito, de espírito e natureza, de razão e realidade, de Deus e mundo. Neste sentido, só poderão ser compreendidos sob a rubrica "idealismo" aqueles movimentos que se vinculam estritamente às teses fundamentais do idealismo clássico alemão, isto é, o idealismo inglês e norte-americano e o italiano. A característica principal deste idealismo, tal como se verifica nas demais orientações, reside na maneira como entende e pratica a filosofia: consiste essa maneira em mostrar a unidade entre o infinito e o finito, quer partindo do infinito, quer partindo do finito, mas, de qualquer modo, mediante procedimentos puramente "especulativos" ou "dialécticos". 44 § 703. AS ORIGENS DO IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO O idealismo inglês e norte-americano visa a mostrar a unidade entre o finito e o infinito partindo do primeiro; ou, como também se pode dizer, por via negativa, isto é, mostrando que o infinito, pela sua intrínseca irracionalidade, não é real ou é real na medida em que revela e manifesta o infinito, que é a verdadeira realidade, e postulando portanto a resolução final do finito no infinito. As manifestações técnicas deste último idealismo são precedidas por uma verdadeira floração romântica que se verifica na Inglaterra e na América pouco antes dos meados do século XIX. Em Inglaterra, os poetas Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e William Wordsworth (1770-1850) inspiraram-se, nas suas poesias (e o primeiro também em ensaios literários e filosóficos) no idealismo de Schelling. Simultaneamente, o idealismo encontrava na Inglaterra e na América dois expositores e defensores que o revestiam de uma forma brilhante e popular, embora superficial e enfática: Carlyle e Emerson. Tomás Carlyle (1795-1881), depois de alguns ensaios e estudos em que se preocupava em dar a conhecer ao público inglês a literatura romântica alemã, publicou o Sartor resartus, que é ao mesmo tempo uma sátira alegórica da sociedade contemporânea e a expressão dos seus princípios filosóficos. Num trabalho histórico, A revolução francesa (1837), exaltou liricamente as grandes figuras dessa revolução; e na obra Os heróis (1841) concebeu a história como 45 o campo de acção das grandes personalidades e estudou diversas manifestações do heroísmo humano. Em numerosos ensaios posteriores dirigiu uma crítica mordaz à sociedade mecânica exaltando liricamente, em oposição a ela, o ideal de uma vida espiritual domina-da pela vontade e pelos valores morais. Em Sartor resartus, o universo é um vestido, isto é, um
símbolo ou uma aparição do poder divino que se manifesta e actua em graus diversos em todas as coisas. Carlyle exalta o mistério que envolve "o mais estranho de todos os mundos possíveis". O universo não é um armazém ou um fantástico bazar, mas o místico templo do espírito. A segurança de que a ciência tem de possuir a chave do mundo da natureza é ilusória. O milagre que viola uma suposta lei da natureza não pode ser, em compensação, a acção de uma lei mais profunda, que vise pôr a força material ao serviço da energia espiritual? Na realidade, todas as coisas visíveis são sinais ou emblemas: a matéria só existe para o espírito: não é mais do que a encarnação ou a representação exterior de uma ideia. No mundo da história, o poder divino manifesta-se naquelas grandes personalidades a que Carlyle chama heróis. Os heróis são "os indivíduos da história universal" de que falava Hegel, ou seja, os instrumentos da providência divina que domina a história, E tudo o que na história humana encerra de grande e de duradouro é devido à sua acção. Quase ao mesmo tempo Relph Waldo Emerson (1803-82) arvorava-se na América em defensor do "transcendentalismo", ou seja, de um idealismo panteísta de cunho hegeliano. Tal concepção surge pela 46 primeira vez num escrito intitulado Natura (1836) e foi depois defendida em numerosos Ensaios. A sua obra Homens representativos (1850) reduz (como os Heróis de Carlyle) a história à biografia dos grandes homens. A convicção fundamental de Emerson é que em toda a realidade actua uma força superior que ele denomina de Superalma ou Deus. A única lei do homem consiste em conformar-se com esta força. O próprio mundo é um símbolo e um emblema. A natureza é uma metáfora do espírito humano e os axiomas da física não são mais do que a tradução das leis -da ética. Mas o espírito humano é o próprio espírito de Deus. "0 inundo - diz Emerson (Nature, ed. 1883, p. 68), -procede do mesmo espírito de que procede o corpo do homem: é uma inferior e mais remota encarnação de Deus, uma projecção de Deus no inconsciente. Mas difere do corpo num aspecto importante: não está como o corpo, sujeito à vontade humana. A sua ordem serena é inviolável para nós. Ele é, portanto, para nós, o testemunho presente do Espírito divino, é um ponto fixo em referência ao qual podemos medir os nossos erros. Assim que degeneramos, o contraste entre nós e a nossa casa torna-se mais evidente, e nós tornamo-nos estranhos na natureza ao afastarmonos de Deus". Emerson pode afirmar sobre esta base a identidade romântica entre filosofia e poesia: uma e outra descobrem no mundo a sua força oculta, a Super-alma que o domina. A Super-alma é o espírito de verdade que se revela no homem, como um olho que vê através de uma janela aberta de par em par. É o 47 fundamento da comunicação entre os homens, que só é possível sobre a base de uma natureza comum e impessoal, de Deus mesmo. É, enfim, a força, que actua no génio e nos
homens a quem a humanidade deve os seus maiores progressos (Essays, ed. 1893, 1, p. 270). A liberdade humana não consiste, pois, em fugir ao mundo e à necessidade que o domina, mas sim em reconhecer a racionalidade e a perfeição desta necessidade e em conformar-se a ela. A verdadeira especulação idealista inicia-se em Inglaterra com a obra de Jacob Hutchinson Stirling (1820-1909), O segredo de Hegel (1865), obra muito pouco original, dedicada à exposição e à defesa do sistema hegeliano. O segredo de Hegel é, segundo Stirling, a estreita relação de Hegel com a de Kant, de que a primeira é a legítima e necessária consequência. Stirling via o ponto basilar do hegelianismo na redução de toda a realidade ao pensamento infinito de Deus, de que o próprio homem é um aspecto ou um elemento. A primeira manifestação original do idealismo inglês deve-se ao filósofo Tomás Hill Green (1836-82). Green é autor de duas longas Introduções às duas partes do Tratado da natureza humana de Hume (ed. 1874-1875) e dos Prolegómenos à ética (1883), que é a sua obra principal, e de outros ensaios menores. A Hume e, em geral, ao empirismo, Green objecta que é impossível reduzir a natureza a um conjunto de percepções ou ideias e que é impossível entender a conexão que tais percepções ou ideias apresentam entre si. Toda a percepção ou ideia só pode ser reconhecida na sua singularidade 48 por uma consciência que não é idêntica a elas, porque delas se distingue no próprio acto do reconhecimento; e toda a conexão ou sucessão de ideias só o é para uma consciência, que não é em si mesma conexão ou sucessão, mas compreende em si tais coisas. De facto, o sujeito que reconhece uma ideia ou a relação entre várias ideias, não pode ser, por sua vez, uma ideia, porque isto implicaria que uma ideia fosse, ao mesmo tempo, todas as outras. E não pode ser um composto de sensações ou de ideias porque as ideias na consciência se sucedem umas às outras, e a sucessão não pode constituir um composto. É necessário, portanto, que o sujeito esteja fora das ideias para que perceba as ideias, e fora da sucessão para que perceba a sucessão. Por outros termos, deve ser um Sujeito único, universal e eterno. Um sujeito desta espécie é também o pressuposto tácito de todo o naturalismo mas torna impossível o próprio naturalismo. Se o mundo é uma série de factos, a consciência não pode ser um destes factos, porque um facto não pode compreender em si todos os outros. A natureza é uma contínua mudança; mas uma mudança não pode produzir a consciência de si mesma, porque esta deve estar igualmente presente em todos os estádios da mudança. As relações entre os factos surgem mediante a acção de uma Consciência unificante que não se reduz a um dos factos relativos. Assim, as relações temporais só o são para uma consciência eterna. Deste modo, Green deduz a necessidade de uma Consciência absoluta (isto é, infinita e eterna) da própria consideração da realidade natural a que 49
o empirismo e o positivismo pretendiam reduzir a consciência. Todavia, a consciência humana tem uma história no tempo, e Green não nos esconde a dificuldade que este facto fundamental e inigualável apresenta para a sua teoria da consciência absoluta. A sua solução é que a história não pertence verdadeiramente à consciência, mas apenas ao processo através do qual o organismo animal se toma o veículo da consciência mesma. A nossa consciência, segundo afirma, pode significar duas coisas: ou a função de um organismo animal, que se tornou, gradualmente e com interrupções, um veículo da eterna consciência; ou esta mesma eterna consciência, que faz do organismo animal o seu veículo e está por isso sujeita a certas limitações, mas conserva as suas características essenciais de independência em relação ao tempo e de determinante do devir. A consciência, que varia a cada momento, que está em sucessão, e em cada um de cujo§ estados sucessivos depende de uma série de eventos interiores e externos, é consciência no primeiro sentido. A nossa consciência, com as suas relações características em que o tempo não entra, que não devêm mas são de uma vez por todas o que são, é a consciência no outro sentido (Prol. to Ethios, p. 73). Esta distinção elimina toda a incompatibilidade entre a afirmação da consciência absoluta e a admissão de que todos os processos do cérebro, dos nervos e dos tecidos, todas as funções da vida e do sentido, têm uma história estritamente natural. Tal incompatibilidade só existiria se estes processos e funções constituíssem realmente o homem 50 capaz de conhecimento; a actividade humana, ao invés, só se pode explicar mediante a acção de uma consciência eterna, que se serve dela como de um órgão próprio e se reproduz a si mesma através dela. Porque é que esta repetição deve existir, porque é que a eterna consciência deve procurar e promover a sua repetição imperfeita através dos órgãos e das funções do organismo humano, é um enigma que Green considera insolúvel. "Devemos contentar-nos em dizer que, por muito estranho que possa parecer, a coisa é assim" (Ib., p. 86). Como quer que seja, Green considera que só o conceito de uma consciência absoluta pode justificar a ideia de progresso, uma vez que os conhecimentos novos que o homem adquire não podem vir ao ser no momento em que são descobertos; são já reais na consciência absoluta e o progresso não é mais do que a adequação crescente da história animal da consciência à consciência absoluta (1b., p. 75). Estas considerações estendem-se também à vida moral do homem. O aperfeiçoamento do homem tende a um termo que é já plenamente real e completo na consciência absoluta. Quando se diz que o espírito humano tem a possibilidade de realizar alguma coisa que não se realizou ainda na experiência humana, pretende dizer-se que há uma consciência na qual este algo já existe. A consciência eterna, Deus, é, pois, ab aeterno tudo o que o homem tem a possibilidade de chegar a ser. Não só é o Ser que nos fez, no sentido de que existimos como um objecto da sua consciência, como a natureza, mas é também o Ser em que existimos e ao qual somos idênticos na medida em que é tudo o que o espírito humano é capaz de chegar a ser (1b., p. 198). A vida moral impele o homem para o aperfeiçoamento individual e a satisfação das suas próprias exigências; mas esta tendência universaliza-se e racionaliza-se
imediatamente porque o seu termo é a consciência absoluta em que todos os homens estão igualmente presentes. Devido a isto o bem foi concebido como uma actividade espiritual de que todos podem e devem participar e, portanto, como uma vida social em que todos os homens devem cooperar livre e conscientemente e em que deve dominar a harmoniosa vontade de todos (Ib., p. 311.). Esta concepção de Green foi a base constante do idealismo inglês posterior. John Caird (1820-98) fez dele a base de uma filosofia da religião (Introdução à filosofia da religião, 1880). O fundamento da religião é, segundo Caird, a unidade do finito e do infinito: unidade que é plenamente realizada e actual na vida divina, mas que o homem só pode alcançar através de um infinito progresso, que é exactamente a sua vida religiosa. "A religião é a elevação do finito para o infinito, o sacrifício de todo o desejo, inclinação ou volição que me pertence como indivíduo privado, a absoluta identificação do meu querer com o querer de Deus" (Intr., ed. 1889, p, 283). Eduard Caird (1835-1908) fazia de uma concepção análoga o critério de uma crítica miinuciosa e pedante da doutrina kantiana (A filosofia crítica de Kant, 2 vol., 1889) e a base para entender A evolução da religião (1893). Com efeito, delineia três formas "teoricamente progressivas da consciência religiosa. A Primeira é a objectiva, segundo a qual Deus é 52 concebido como um objecto entre os objectos (politeígnio, enoteísmo). A segunda é a subjectiva, segundo a qual Deus é concebido como uma vontade espiritual que se revela na autoconsciência dos homens (estoicismo, profetismo, puritanismo, Kant). A terceira é a final e perfeita, em que Deus é reconhecido na verdadeira forma da sua ideia, isto é, como a unidade do sujeito e do objecto e, portanto, como principio comum da exterioridade cósmica e da interioridade espiritual. § 704. BRADLEY A maior figura do idealismo inglês é Francisco Herberto Bradley (1846-1924) que elegeu para tema fundamental da sua especulação o antigo e sempre novo contraste entre aparência e realidade, que dá o título à sua obra principal (Aparência e realidade, 1893). Bradley é também autor de Estudos éticos, (1876), Princípios de lógica (1893), Ensaios sobre a verdade e a realidade (1914) e de muitos outros estudos de filosofia e psicologia. Segundo Bradley, todo o mundo da experiência humana é aparência, e só é real a consciência absoluta. O mundo da experiência é, com efeito, inteiramente irracional, contraditório e incompreensível; e é assim porque todos os aspectos dele se baseiam em relações e as relações são inconcebíveis. Bradley examina a relação entre qualidades primárias e secundárias, entre a coisa e as suas qualidades, a relação espacial e temporal, a zausal, a que constitui o 53
sujeito ou eu. Bradley encontra em todas elas a mesma dificuldade fundamental: toda a relação tende a identificar o que é diverso, e nisso é contraditória. Toda a relação modifica os termos relativos, mas cada um destes termos cinde-se em duas partes: uma, modificada, e outra, que permanece inalterada: e estas duas partes não podem unir-se senão por uma nova relação, o que implica uma nova modificação e uma nova cisão; e assim até ao infinito. Deste modo, a relação que deveria tornar inteligível a unidade dos termos relativos, não faz mais do que dividi-los e multiplicá-los internamente até ao infinito: por isso é contraditória. Todo o sistema da experiência humana, assente nas relações, se pulveriza, mediante a reflexão filosófica, numa miríade de termos no interior de outros termos que não estão juntos de nenhuma maneira inteligível. Nem mesmo o eu, segundo Bradley, escapa a esta dificuldade. É, no entanto, verdade que a existência do eu está de algum modo fora de qualquer dúvida, mas só como unidade da experiência imediata, anterior à reflexão racional. Esta unidade deveria ser entendida e justificada racionalmente; mas logo que se inicia esta tentativa introduzindo a distinção entre eu e não eu, as dificuldades inerentes a toda a relação deparam-se-nos imediatamente e o eu torna-se inconcebível. Nenhum aspecto do inundo finito se salva da contradição, e nenhum deles pode ser considerado real. Nem sequer o mundo da pura lógica se salva da contradição. Os Princípios de lógica de Bradley e os numerosos ensaios que dedicou a problemas de lógica põem em relevo as contradições que se ani54 nham no acto lógico fundamental. O juízo é, segundo Bradley, a referência de uma ideia à realidade, a qualificação da realidade mediante um conceito que é tomado como símbolo e significado dela. Por outros termos, todo o juízo implica uma ideia que não é uma simples ideia, mas uma qualidade do real. Mas se é assim, a multiplicidade e a variedade dos juízos implica que estes sejam incompatíveis e contraditórios. É bem certo que todo o juízo qualifica a realidade sob certas limitações ou condições; mas, dado que estas limitações ou condições qualificaria, por seu turno, a própria realidade, a contradição não é eliminada mas apenas multiplicada (Essays, p, 229). O facto de todo o mundo da experiência e do pensamento ser aparência não significa que se possa admitir uma realidade em si para além dele mesmo. Toda a realidade era si não poderia ser senão o termo de uma experiência ou de um acto lógico e cairia por isso nas mesmas dificuldades fundamentais. Todavia, esta mesma condenação radical implica, segundo Bradley, a posse de um critério absoluto de verdade. Se rejeitarmos como aparente o que é contraditório, consideramos implicitamente como real o que é isento de contradições e, portanto, absolutamente consistente e válido. A ausência de contradição implica um carácter positivo e não deve ser uma pura abstracção. As aparências devem pertencer à realidade porque o que parece de algum modo existe, quanto mais não seja como aparência. A realidade que o critério da
não contradição nos faz entrever deve portanto conter em si todo o mundo fenoménico de forma coerente e harmoniosa. Além 55 disso, não pode ser outra coisa senão consciência porque só a consciência é real. Ao mesmo tempo, esta consciência universal, absoluta e perfeitamente coerente, não pode ser determinada mediante nenhum dos aspectos da consciência finita (sensação, pensamento, vontade, etc.), porque tais aspectos são contraditórios. Por outro lado, não deve conter a divisão entre objecto e sujeito que é própria da consciência finita. Todas estas determinações negativas implicam a impossibilidade de um conhecimento pormenorizado da consciência absoluta. Pode-se ter dela uma ideia abstracta e incompleta, embora verdadeira: mas não se pode reconstruir a experiência especifica em que ela realiza a sua perfeita harmonia. Tão-pouco a moralidade pode ser atribuída ao absoluto. Pode-se supor que neste cada coisa finita atinja a perfeição que busca; mas não que obtenha a perfeição que busca. No absoluto, o finito deve ser mais ou menos transmudado e, portanto, desaparecer como finito; e tal é também o destino do bem. Os fins que a afirmação e o sacrifício do eu podem atingir estão para lá do eu e do significado dos actos morais. No absoluto, onde nada se pode perder, todas as coisas perdem o seu carácter mediante uma nova acomodação ou um complemento mais ou menos radical. Nem o bem nem o mal se subtraem a este destino (Appearance, p. 420). Assim entram, certamente, no absoluto o espaço, o tempo, a individualidade, a natureza, o corpo, a alma; mas tudo entra nele, não com a sua constituição finita, mas com uma reconstituição radical, cujas características é- impossível determinar com precisão. No abso56 luto tão-pouco pode subsistir a diversidade entre o sujeito e o objecto, que é inerente a todo o pensamento finito, o qual é sempre pensamento de algo ou acerca de algo, e implica portanto uma relação interna que o tome contraditório. O absoluto não pode ser concebido como alma ou como complexo de almas, porque isto implicaria que os centros finitos de experiência se mantivessem e fossem respeitados dentro do absoluto: e esse não é o destino final e último das coisas. Não conhece progressos nem retrocessos. Estes são aspectos parciais, próprios da aparência temporal e têm apenas uma verdade relativa. "0 absoluto não tem história, embora contenha inúmeras histórias" (Ib., p. 500). Nem é pessoa, uma vez que uma pessoa que não seja finita é algo sem sentido (Ib., p. 532). Desta doutrina substancialmente negativa do absoluto não deduz Bradley que o conhecimento humano seja totalmente erróneo. Se este conhecimento não alcança nunca a verdade, que seria a sua perfeita conversão e total conformidade com o absoluto, pode no entanto atingir diversos graus de verdade. De duas aparências, a mais vasta e mais harmoniosa é a mais real, porque se aproxima mais da verdade omnicompreensiva e total. A verdade e o facto de requererem, para se converterem no absoluto, uma acomodação e uma adição menor, são mais verdadeiros e reais. O argumento ontológico pode ser interpretado como uma ilustração desta doutrina dos graus de verdade. Decerto que se deve reconhecer que desde o momento em que a realidade é qualificada como pensamento, deve possuir todas as características im57
plícitas na essência do pensamento. No entanto, a prova ontológica vai além deste princípio genérico quando afirma não só que a ideia deve ser real mas também que deve ser real como ideia. isto é falso, segundo Bradley, dado que um predicado como tal nunca é realmente verdadeiro: deve estar sujeito, para o ser, a adições e a acomodações. Assim, toda a ideia existente na minha mente pode qualificar verdadeiramente a realidade absoluta; mas quando a falsa abstracção do meu particular ponto de vista for corrigida e ampliada, essa ideia pode ter desaparecido completamente. Por isso, nem toda a ideia será verdadeiramente real; contudo, quanto maior é a perfeição de um pensamento, a sua possibilidade e a sua interna necessidade, tanto maior será a realidade que ele possui. A esta exigência nem mesmo a ideia do absoluto se subtrai, já que toda a ideia, por muito verdadeira que seja, nunca inclui a totalidade das condições requeridas e é por isso sempre abstracta, enquanto que a realidade é concreta. Bradley renovou assim a tese hegeliana da identidade entre o finito e o infinito, mas renovou-a com o espírito de um cepticismo radical que se recusa a determinar, seja de que maneira for, as vias e as formas de uma tal identidade. O processo do pensamento que para Hegel é uma dialéctica que demonstra efectivamente tal identidade, é, para Bradley ao invés, a confirmação da natureza contraditória do finito e, portanto, da exigência da sua transmutação total no infinito. Bradley admite, na verdade, diversos graus de verdade e de realidade; mas, ao mesmo tempo entre os graus mais altos e o absoluto 58 abre um fosso intransponível, uma vez que tudo no absoluto deve ser transformado e reajustado até nos seus mais íntimos elementos (Appearance, p. 529). A identidade do finito e do infinito, que levara Hegel a demonstrar a intrínseca racionalidade do finito e a aceitá-la como infinito, levou Bradley a negar a realidade finita como tal e a exigir a sua transmutação no infinito. § 705. DESENVOLVIMENTO DO IDEALISMO INGLÊS Creen e Bradley inspiraram numerosos pensadores ingleses que apresentam de maneira diversa a doutrina de uma consciência infinita na qual encontra a sua última realidade o mundo finito. Alfredo Eduardo Taylor (1869-1945), tão conhecido pelos seus estudos sobre Platão (1926) e sobre a filosofia grega, numa obra que obteve muito êxito na Inglaterra, Elementos de metafísica (1903), tenta preencher com algum conteúdo concreto a ideia do absoluto que na doutrina de Bradley era uma pura forma vazia, indeterminável. Entende o absoluto como uma sociedade de indivíduos que estivessem teleologicamente ordenados à unidade do conjunto. Uma sociedade humana, em sentido próprio, é de facto uma unidade de estrutura finalista, que não o é apenas para o observador sociólogo, mas também para os seus membros, a cada um dos quais activamente atribui um lugar em relação a todos os outros. Embora o eu e a sociedade não sejam 59
n**xak'@b que aparências finitais, Taylor crê que o predomínio da categoria da cooperação na vida humana tornará ~Ivel considerar o absoluto como uma sociedade espiritual. Frente a estas determinações mais positivas da natureza está o ponto de vista negativo de H. H. Joachim, que se atém às teses de Bradley (A natureza da verdade, 1906; Estudos lógicos, 1948) e as utiliza como critério para uma crítica da unida-de da substância ---spinosiana (Estudo sobre a ética de Espinosa, 1911). Mais próximo do hegelianismo original encontra-se Bernardo Bosanquet (1848-1923), o qual, no entanto, renovou por sua conta os princípios da lógica de Bradley (Lógica ou morfologia do conhecimento, 2 vol., 1888) e é autor de uma História da estética (1892). No Princípio da individualidade e do valor (1911) viu na contradição lógica uma experiência vivida, análoga à dor e à insatisfação -e considerou-a como o motor de todo o progresso espiritual. Isto significa que a negatividade não é uma imperfeição da experiência humana, destinada a desvanecer-se, mas uma característica fundamental da realidade mesma. De facto, quando se resolve uma contradição, resta sempre a negatividade, a qual, impelindo continuamente todo o ser para além de si mesmo, é a própria lei da vida. A contradição é uma negação não conseguida ou obstruída; a negatividade é uma contradição vitoriosa e resolvida. A exigência necessária da negatividade leva Bosanquet a negar a identidade entre natureza e espírito. A função da natureza é a de ser um objecto para a subjectividade espiritual, o correlato exterior do espí60 rito finito. É somente pela existência da natureza que os espíritos finitos adquirem a sua consistência e se tornam a cúpula viva entre a natureza e o absoluto. O reconhecimento da negatividade elimina, segundo Bosanquet, todas as dificuldades do conceito de absoluto. A prova positiva a seu favor apoia-se, logicamente, no principio de contradição, entendido do modo concreto a que nos referimos. Quando o processo pelo qual a contradição é normalmente removida nas questões humanas é considerado absolutamente válido, podese ver nele uma unidade perfeita, na qual as contradições são completamente destruídas, embora permaneça a diversidade ou o aspecto negativo. Com a solução das contradições, a experiência humana transmuda-se radical. mente na vida quotidiana; pode-se entender portanto a sua total transmutação no absoluto. Neste está eternamente e perfeitamente realizado aquele processo de unificação lógica que na vida humana é progressivo e gradual. § 706. MCTAGGART A nova orientação do idealismo, devida aos pensadores que acabámos de examinar, implica uma divisão radical do significado e da importância que Hegel atribuíra à dialéctica; e tal revisão é obra de John McTaggart (1866-1925), autor de Estudos sobre a dialéctica hegeliana (1896), de Estudos sobre a cosmologia hegeliana (1901), de um Comentário à lógica de Hegel (1910) e de uma obra em dois volumes, A natureza da existência (1921-27). Na primeira das suas 61 ~s McTaggart mostrou que a lei da dialéctica hegeliana não se mantém inalterada desde o princípio até ao fim do seu processo. Nas primeiras categorias da lógica (a do ser) a passagem da tese à antítese não é a transição a uma fase superior e complementar, e a síntese é uma consequência da tese e da antítese conjuntas. Mas nas categorias da essência, a antítese é, ao invés, complementar da tese, é mais concreta e verdadeira do que ela e
representa um progresso; a antítese já não resulta do confronto entre tese e antítese mas procede unicamente desta última. Finalmente, nas categorias do conceito, os momentos já não se opõem um ao outro, de maneira que a antítese não é uma antítese real e cada termo é um progresso em relação ao outro. Isto demonstra, segundo McTaggart, que a mola real do procedimento hegeliano não é a contradição (como o próprio Hegel afirmou) mas a discrepância entre a ideia perfeita e concreta que está implícita na consciência e a ideia abstracta e imperfeita que se tornou explícita. A característica do processo dialéctico é a busca, por parte do momento abstracto ou imperfeito da consciência, não da sua negação como tal, mas do seu complemento. A dialéctica não constitui a verdade, uma vez que o processo da verdade excluiria a dialéctica mesma. Isto levou MeTaggart a impugnar o principio fundamental de Hegel: a racionalidade de real. A realidade, não se pode revelar ao homem na sua perfeita racionalidade, já que implica sempre, e não outra coisa, a contingência dos dados sensíVeis, sem os quais as categorias da razão ficam Vazias, e a insatisfação dos nossos desejos, que não 62 poderia existir num universo perfeito. O processo dialéctico revela esta imperfeição porque, enquanto existe, não há perfeição, já que o processo tende a uma síntese que está longe de verificar-se. Mas se o processo dialéctico pertence ao espírito finito que vive no tempo e se aproxima gradualmente do futuro, isso coloca o absoluto no futuro do próprio processo, isto é, no último estádio de uma série em que os outros estádios se apresentam como temporais. A ideia eterna e infinita encontra-se, pois, no termo do processo temporal e é qualificada, não pela determinação da contemporaneidade e do presente, mas pela do futuro. O absoluto não é um eterno presente segundo a concepção clássica, que o hegelianismo primitivo e o próprio idealismo inglês haviam admitido, mas é antes o termo do futuro. O tempo urge para a eternidade e cessa na eternidade. Isto torna possível a esperança no triunfo final do bem no mundo. Além disso, analogamente a Taylor, MeTaggart admite uma concepção pluralista e sociológica do absoluto. Crê, de facto que o eu finito é o elemento último e irredutível da realidade. A natureza do eu é paradoxal: por um lado, nada existe fora do eu porque tudo é objecto do seu conhecimento; por outro lado, o eu distingue-se enquanto conhece tudo o que conhece e pressupõe por isso que tudo o que conhece está fora dele. Assim, o eu inclui e exclui ao mesmo tempo aquilo de que é consciente (Studies in Hegelian Cosmology, p. 23). Não existe outra explicação possível desta natureza paradoxal senão a de que o eu é a absoluta realidade, a necessária 63 diferenciação do Absoluto. Os eus são, portanto, eternos e o Absoluto não é mais do que a unidade destes eus: uma unidade que é tão real como as suas diferenciações e como a própria unidade do ou finito, tal como este se manifesta -imperfeitamente neste mundo imperfeito. Como unidade de um sistema de eu, o absoluto não pode ser entendido como pessoa ou eu, e, portanto, não pode ser qualificado como Deus. Para entender em que consiste a sua unidade, McTaggart examina os vários aspectos da experiência humana. Exclui que a unidade sistemática do absoluto possa ser concebida como uma unidade de conhecimento: o conhecimento verdadeiro, sendo uniforme em todos os eus, não explica a sua diferenciação originária. Pelo mesmo motivo, o absoluto
não pode ser vontade porque a vontade perfeita, como satisfação perfeita, é uniforme e não explica a diferenciação. Resta então a emoção. Se o perfeito conhecimento e a perfeita satisfação são idênticos em todos os eus, não há razão para supor que o perfeito amor não seja, em troca, diferente em cada eu e não seja, portanto, a base -da diferenciação requerida pelo absoluto. O conteúdo da vida do absoluto não pode ser, portanto, senão o amor: não a benevolência, nem o amor da verdade, da virtude ou da beleza, nem o desejo sexual, mas "o amor apaixonado que tudo absorve e tudo consome" (Ib., p. 260). Só o amor supera a dualidade e estabelece um equilíbrio completo entre o sujeito e o objecto. Enquanto o conhecimento deixa sempre fora de si o objecto conhecido e a volição nunca se satisfaz inteiramente porque o objecto da satisfação lhe é estranho, o amor identifica 64 completamente objecto e sujeito. O amor não é uni dever ou uma imposição, mas uma harmonia em que as duas partes têm iguais direitos. Não se ama uma pessoa pelas suas qualidades, mas é antes a atitude perante as suas qualidades que é determinada pelo facto de elas lhe pertencerem. Ademais, o amor justifica-se por si mesmo. E o ponto mais próximo do absoluto que o homem pode alcançar é precisamente um amor de que não se pode dar outra razão que não seja o facto de duas pessoas pertencerem uma à outra (Ib., p. 278 sgs.). Na sua última obra, A natureza da existência (1921-27) McTaggart expôs de novo em forma sistemática as conclusões a que chegara através da crítica da doutrina de Hegel. O primeiro volume desta obra examina as características gerais da' existência: não da existência enquanto pensada, isto é, do conhecimento ou do pensamento, mas de toda a existência em geral, e, portanto também do conhecimento, do pensamento e da crença que, como tais, são igualmente existências. McTaggart declara que deste modo se vincula a um idealismo ontológico, cujos representantes são Berkeley, Leibniz e Hegel. O método de que se serve na descrição da existência em geral é o a priori; mas em dois pontos McTaggart, apela para a experiência: para provar que algo existe e para provar que o que existe é diferenciado. Fora destes dois pontos, o seu procedimento é a priori, e é dialéctico no sentido que ele mesmo admitiu como próprio desta palavra, ou seja, não no sentido de negatividade e de contradição, mas no de um procedimento racional, necessário e progressivo. A di65 ferenciação da existência implica que ela tenha qualidades, as quais terão, por seu turno, outras qualidades e assim sucessivamente; no início da série deverá haver algo existente que tenha qualidades sem ser qualidade: e isso será a substância. É indubitável que a substância não é nada fora das suas qualidades-, mas isto não quer dizer que ela não seja algo em conjunção com elas. A substância é diferenciada, isto é, verdadeiramente unia pluralidade, de substâncias,
entre as quais devem existir relações. A relação é uma determinação última e indefinível, como a qualidade; e gera, por seu turno, qualidades, porque os termos relativos adquirem, como tais, novas qualidades. Cada substância tem a sua própria natureza e pode ser individualizada nesta natureza por uma descrição suficiente. Os grupos de substâncias são infinitos, porque cada grupo pode ser assumido como membro de si próprio; e a substância que compreende todas as outras como partes suas é o universo. O universo é caracterizado intrinsecamente pela posse de diversas substâncias, de modo que, se uma destas fosse diferente, o próprio universo na sua totalidade seria diferente. Toda a substância é infinitamente divisível, isto é, tem partes dentro de partes até ao infinito. Para explicar a relação entre -uma substância e as suas partes e entre as várias substâncias, MeTaggart introduz o conceito da correspondência determinante. É uma forma de correspondência tal que, se se verifica entre uma substância C e a parte de uma substância B, uma descrição suficiente de C, que inclua a sua relação com a parte de B, determina intrinsecamente uma descrição suficiente desta 66 parte de B e de cada membro do grupo B-C, assim como de cada membro de uma parte de tais membros, e assim sucessivamente até ao infinito. A correspondência determinante é uma relação causal, que estabelece e funda a ordem do universo. A sua natureza é esclarecida pela aplicação que MeTaggart faz Ma no segundo volume da sua obra: é a percepção imediata que um eu tem de outro eu. De facto, depois de ter descrito as características da existência, MeTaggart procede (no segundo volume) à determinação dos aspectos do Universo que devem ser considerados reais. Declara irreais o tempo, a matéria, a sensação e toda a forma de pensamento (incluídos o juízo e a imaginação) que não seja percepção. A razão disto está em que nenhum destes aspectos da realidade se presta a ser determinado pela correspondência determinante e, portanto, todos devem ser considerados inconsistentes e contraditórios. A percepção, como consciência imediata da substância, ou seja, do eu, é, em troca, perfeitamente definida pela correspondência determinante. De facto, um eu que percebe o outro eu tem ao mesmo tempo a percepção de si próprio e do outro e a percepção destas percepções, e assim sucessivamente até ao infinito. De sorte que uma descrição suficiente da percepção de um deles implicará a suficiente descrição até ao infinito de partes desta percepção. Por outros termos, estabelecer-se-á entre as duas substâncias um sistema inexaurível de relações ao mesmo tempo racionalmente inteligíveis e imediatamente vividas. E, de facto, a percepção de que fala McTaggart não é nem volição nem pensamento, mas emoção e pre67 cisamente emoção de amor. O resultado das análises deste filósofo, em que o princípio idealista se alia curiosamente a um método de análise que se assemelha muito ao da lógica' matemática e ao critério objectivista do realismo contemporâneo, é o reconhecimento de um universo formado de centros espirituais, de eus, que uma forma de experiência imediata (a percepção emotiva ou amor) unifica num sistema dialecticamente organizado. McTaggart conclui a sua obra com a esperança que já havia formulado nas suas análises hegelianas, a saber: dado que se deve entender o absoluto não como presente mas como futuro, ele deverá realizar-se como um bem infinito após um período finito, embora longuíssimo, de tempo; e deverá realizar-se como estado de amor perfeito, comparado com o qual até o mais alto arroubo místico não é mais do que uma tentativa aproximativa e longínqua. Para MeTaggart, o passado e o presente, são manifestações imperfeitas e preparatórias do futuro. Isto é, sem dúvida, uma
repetição do conceito de Fichte e de Schelling do progresso necessário da história, com a diferença, porém, de que o progresso não é até ao infinito, mas tende para um termo que será alcançado após um período muito longo, mas finito, de tempo. § 707. ROYCE Na América o primeiro representante do neo-idealismo é William Torrey Harris (18351909), autor de uma exposição crítica da Lógica de Hegel 68 (1890), assim como de uma Introdução ao estudo da filosofia (1890) e de um ensaio sobre, Dante (0 sentido espiritual da "Divina Comédia", 1889), O interesse de Harris é fundamentalmente religioso. Admite três estádios do conhecimento: o que considera o objecto, o que considera as relações entre os objectos e o, que considera as relações infinitas e necessárias da existência dos objectos. Este terceiro estádio é preparatório do conhecimento teológico e, portanto, da religião, porque descobre a actividade autónoma e infinita que sustenta todas as coisas. A maior figura do (dranscendentalismo" americano e o que mais contribuiu para a difusão do idealismo de tipo anglo-saxónico foi Jostah Royce (1885-1916). Os escritos principais de Royce são os seguintes: O aspecto religioso da filosofia, 1885; O espírito da filosofia moderna, 1892; A concepção de Deus, 1895; Estudos sobre o bem e sobre o mal, 1898; O mundo e o indivíduo, 2 vol., 1900-1901; A concepção da imortalidade, 1904; A posição actual do problema da religião natural, 1901-02; Apontamentos de psicologia, 1903; Herbert Spencer, 1904; A relação dos princípios da lógica como os fundamentos da geometria, 1905; A filosofia da fidelidade, 1908; W. James e outros ensaios de filosofia da vida, 1911; As fontes da intuição religiosa, 1912; Princípios da lógica, 1913; O problema do cristianismo, -1913; Conferências sobre o idealismo moderno, 1919; Ensaios fugitivos, 1920. Entre estes escritos, O mundo e o indivíduo e O problema do cristianismo são os que exprimem as fases principais do pensamento de Royce. ,69 O ponto de partida de Royce é a distinção entre o significado exterior e o significado interno da ideia. O significado externo da ideia é a sua referência a uma realidade exterior e diversa; o significado interno é, ao invés, constituído pelo fim que a ideia se propõe, enquanto não é apenas imagem de uma coisa, mas também a consciência do modo como nos propomos actuar sobre a coisa que representa. -Royce procura reduzir o significado externo ao significado interno. Crê-se, de ordinário, que a ideia é verdadeira quando corresponde ao objecto real; mas o objecto real, que pode servir como medida da verdade da ideia, é só aquele a que a ideia mesma se refere, isto é, o designado pelo significado interno dela. Não existe um critério de verdade puramente externo: as ideias são como os instrumentos, existem para um fim: são verdadeiras, como os instrumentos são bons, quando convêm para tal fim. Por consequência, unia ideia não é um simples processo intelectual, mas
também um processo volitivo; e é indispensável ter em conta o fim para o qual a ideia tende para ajuizar da validade da ideia. Isto implica que a ideia tende sempre a encontrar no seu objecto o seu próprio fim, incorporado de um modo mais determinado do que aquele em que ela o tem por si mesma. Por conseguinte, ao procurar o seu objecto, uma ideia não procura outra coisa senão a própria determinação explícita e, finalmente, completa. O único objecto em relação ao qual se pode medir a verdade da ideia não é portanto outro senão a completa realização do fim implícito na própria ideia. Neste 70 sentido, Royce diz que a ideia é -uma vontade que busca a sua própria determinação. Mesmo as ideias expressas como hipóteses ou definições universais ou como juízos de tipo hipotético ou -matemático, não fazem mais do que destruir certas possibilidades e implicar a determinação do seu objectivo final mediante determinadas negações. O limite ou a meta deste processo de determinação crescente é um juízo em que a vontade exprime a sua determinação final. Mas este juízo não pode ser senão o acto de uma Consciência que conclua e complete o que o sujeito finito a cada momento se propõe conhecer. Todo o mundo da verdade e do ser deve estar presente numa Consciência singular, que compreende todos os intelectos finitos numa única visão intuitiva eternamente presente. Esta consciência não é só temporal, mas implica também uma visão compreensiva da totalidade do tempo e do que este significa, Daí o título da obra principal de Royce: o mundo é uma totalidade individual, na qual todos os fragmentos da experiência encontram o seu complemento e a sua perfeição; é Deus mesmo. No absoluto encontram lugar a ignorância, o esforço, o desaire, o erro, a temporalidade, a limitação-, mas também têm aí lugar a solução dos problemas, a consecução dos fins, a superação dos defeitos, a correcção dos erros, a concentração do tempo na eternidade, a integração do que é fragmentário. Sobretudo, o indivíduo que procede moralmente encontra em Deus o cumprimento total da sua boa vontade: pode ser concebido como uma parte que é igual ao todo, e precisamente 71
por ser igual, unida no todo dentro do qual habita. Toda a consciência finita se dilata assim no absoluto até se identificar com ele, mas esta identificação não implica o anulamento da individualidade mas antes o seu complemento, a realização de uma individualidade inteiramente determinada e perfeita. Royce afirma energicamente a exigência da conservação das individualidades no absoluto; e para tornar inteligível esta conservação, assim como para obviar às dificuldades que Bradley opusera a todas as determinações do absoluto, recorre à teoria dos números. O longo "Ensaio complementar" acrescentado ao primeiro volume da sua obra principal é talvez a parte mais interessante da obra de Royce. Recorre à teoria dos números como havia sido elaborada por Cantor e por Dedekind: o número é um sistema auto-representativo, um sistema cujas partes representam o todo, no sentido de que têm, por seu
turno, elementos que correspondem. termo a termo aos elementos do todo. Royce esclarece por sua conta este conceito como o exemplo de um mapa geográfico idealmente perfeito que deve, para o ser, conter tanto a ubicação como os contornos da sua própria posição: de modo que acabará por conter mapas dentro de mapas até ao infinito. Os sistemas autorepresentativos são, por outros termos, os sistemas que contêm infinitas partes semelhantes ao todo; e a Consciência absoluta seria um sistema auto-representativo deste género no sentido de que, compreendendo em si a totalidade dos espíritos individuais, implicaria precisamente uma série ou cadeia 72 de imagens próprias, um sistema de partes dentro de partes até ao infinito. Uma concepção semelhante do infinito já não está sujeita às dificuldades que Bradley apresentara. A infinita subdivisão a que dá lugar, segundo Bradley, toda a relação, logo que é considerada analiticamente, e que era para ele o sinal da natureza contraditória e irracional da contradição (isto é, de todo o mundo da experiência humana) já não é tal quando se considera até ao infinito um sistema autorepresentativo cuja natureza é definida precisamente por uma cadeia infinIta de partes semelhantes. A proposição fundamental da lógica do ser: "tudo o que existe faz parte de um sistema que se representa a si mesmo" permite, segundo Royce, conceber a verdadeira união do uno e do múltiplo. Há uma multiplicidade que não é absorvida e transmudada mas sim conservada no absoluto, e é a multiplicidade dos indivíduos que se unificam no absoluto. O absoluto, o universo, é neste sentido, um sistema auto-representativo que, como sujeito-objecto, implica uma imagem ou concepção completa ou perfeita de si. É uno pela sua estrutura, porque é um sistema individual; mas, ao mesmo tempo, é infinito, porquanto é uma cadeia de fins conseguidos. A sua forma é, pois, a de um eu, que se multiplica nas imagens, por sua vez infinitas, que o absoluto determina por si mesmo nos eus individuais. Esta doutrina do absoluto marca a primeira fase do pensamento de Royce. A segunda fase, caracterizada por uma tentativa diferente, a de determinar a natureza intrínseca do absoluto, aparece pela 73 primeira vez na Filosofia da fidelidade (1908) e encontra a sua melhor expressão no Problema do cristianismo (1913). Na primeira fase, Royce havia encontrado na teoria dos números de Cantor e Dedckind o instrumento daquela determinação; na segunda fase encontra esse instrumento na doutrina de Peirce (§ 750), que pusera em relevo o significado e a importância do processo da interpretação considerado como o terceiro e superior processo cognitivo, juntamente com a percepção e o pensamento. A consideração deste processo é necessária, segundo Royce, quando se trata de objectos que não podem ser assimilados nem à percepção nem ao
conceito. É evidente, por exemplo, que "o espírito do nosso próximo" não é um dado sensível nenhuma noção universal e que deve ser objecto de uma terceira forma de conhecimento, que é precisamente a interpretação. A interpretação é uma relação triádica, na qual alguém, isto é, o intérprete, interpreta algo para alguém. Supõe uma ordem determinada destes três termos, porque se a ordem muda, muda o próprio sentido da interpretação. A relação interpretativa pode verificar-se também na interioridade de uma única pessoa, e também neste caso existem três termos: o homem do passado, cujos desejos e recordações são interpretados; o eu presente, que interpreta tudo isto, e o eu futuro, para o qual esta interpretação é dirigida. A interpretação tem por objecto sinais, do mesmo modo que a percepção tem por objecto coisas e o conceito universal. 74 A tese de Royce é a de que o universo é constituído por sinais reais e pela sua interpretação; e que o processo da interpretação tende a fazer do universo uma comunidade espiritual. Uma interpretação é real, se for real a comunidade que ela exprime, e só é verdadeira se a comunidade alcança o seu objectivo através dela. Toda a filosofia é, inevitavelmente, uma doutrina que nos aconselha a proceder como se o mundo tivesse certas características. Mas, contrariamente ao que Vaihinger afirma (§ 753), Royce crê que o como se não é apenas uma ficção ou um sistema de ficções, senão que pode justificar uma única atitude frente ao mundo: a que tende a considerar praticamente real um reino do espírito, uma comunidade universal e divina, e reconhece claramente que é impossível ao indivíduo salvar-se por si só, do ponto de vista prático: e que também é impossível, do ponto de vista teorético, que ele encontre por si só a verdade no âmbito da sua experiência privada, sem ter em conta a velação que o liga à comunidade. Tal é, segundo Royce, a atitude própria do cristianismo e, em particular, do cristianismo paulino, que vê o reino dos céus realizado na igreja, isto é, na comunhão dos fiéis. O amor cristão assume, na pregação de S. Paulo, a forma da fidelidade à comunidade: e a fidelidade à comunidade exprime a natureza mesma da vida moral. De facto, na Filosofia da Fidelidade, Royce vê o fundamento da moralidade na fidelidade a uma tarefa, a uma missão livremente escolhida: tarefa ou missão que inclui sempre a solidariedade com os 75 outros indivíduos, ou melhor, com uma comunidade de indivíduos. A fidelidade é, também, o, critério que permite medir o valor das tarefas humanas, já que é evidentemente má uma tarefa que toma impossível ou nega a fidelidade aos demais. A fidelidade à fidelidade é, portanto, o critério supremo da vida moral. Os últimos escritos de Royce tratam de delinear o que ele chamava de "Grande Comunidade": uma comunidade que é real não porque se encontre historicamente realizada, mas por ser o eterno fundamento da ordem moral. Todavia, quis sugerir também um meio prático para a realização desta grande comunidade, e viu tal meio num sistema de seguros. Com efeito, o
seguro é uma associação fundada no princípio triádico da interpretação: o seguro, o segurador e o beneficiado, e nela os obstáculos à associação transformam-se numa ajuda à associação mesma (A esperança da grande comunidade, 1916). Royce sugeriu também o seguro contra a guerra (Guerra e seguro, 1914). Mas esta curiosa mescla de negócios e de moralismo cristão não nos deve impedir de considerar um dos espíritos mais abertos e geniais do idealismo contemporâneo. Afinal de contas, se o infinito é a imagem ou a reprodução do infinito, também os negócios em geral, e os seguros em particular, podem servir como instrumentos de manifestação ou de realização do infinito. E o sistema de seguros, a que Royce aconselhava recorrer, é certamente um progresso em relação ao esta-do prussiano, ao qual o seu mestre Hegel 76 pretendia confiar a total realização da Ideia infinita do mundo. § 708. OUTRAS MANIFESTAÇõES DO IDEALISMO INGLÊS E NORTE - AMERICANO Numa discussão pública efectuada em 1885, entre Royce e outros filósofos na Universidade da Califórnia, G. H. Howison (1834-1916) reprovou a Royce o anular no eu infinito a personalidade finita do homem e a do próprio Deus. Ao idealismo monista de Royce, Howison contrapunha um idealismo pluralista, segundo o qual a realidade é, nas suas diversas ordens, uma sociedade de espíritos eternos, em que os membros encontram a sua igualdade na tarefa comum de alcançar o único ideal racional, que é Deus mesmo (A concepção de Deus, 1897). A uma preocupação análoga obedecia em Inglaterra J. H. Muirhead (Os, elementos da ética, 1892; Filosofia e vida, 1902-, Objectivos sociais, 1918) que, no entanto, via a salvação da autoconsciência finita na necessária presença daquela negação dialéctica, na qual já Bosanquet havia insistido. As teses gerais do idealismo foram mais tarde apresentadas na América por James Greighton (1861-1924); (Estudos de filosofia especulativa, 1925) e por Mary Whiton Calkins, que se vincula directamente à especulação de Royce; e em Inglaterra por David George Richte (1853-1903) e por John Stuart Mackenzie (1860-1935) em (Apontamentos de metafísica, 1902; Leituras sobre o humanismo, 1907; 77 Elementos de filosofia construtiva; Valores Últimos, 1924). Ocupam um lugar intermédio entre o idealismo e o espiritualismo Simão Somerville Laurie (1829-1909) e o americano William Ernest Hocking. O primeiro desenvolveu numa série de obras (Metafísica nova e velha, 1884-, Ética, 1885; Sintética, 1906) um "realismo natural", que é, na realidade, um idealismo, e distingue vários planos de realização do absoluto, considerando o absoluto mesmo imanente em todos e cada um dos planos particulares. A distinção dos planos de realidade serve a Laurie para reivindicar a autonomia do indivíduo. No indivíduo, o absoluto mesmo afirma
o seu ser, dando-lhe um carácter específico e um conteúdo a afirmar e fazendo-o subsistir no seu pleno direito: na sua função de negação, que recebe do absoluto, o indivíduo é capaz de resistir ao próprio absoluto (Synthetica, 11, p. 75). Segundo Hocking, em troca, Deus é conhecido directamente pelo homem, na própria experiência sensível. Esta tem um único conteúdo dos diversos indivíduos e deve ter um único cognoscente, que é Deus mesmo; o qual é, portanto, o conhecedor universal, implícito em todo o conhecimento objectivo. De modo que os homens conhecem as outras coisas ou os outros espíritos só porque conhecem Deus: o conhecimento de Deus fornece, de facto, a noção da experiência social, sem cuja posse prévia o reconhecimento dos eus humanos não seria possível. Tão-pouco a ideia de Deus, pressuposta pela experiência sensível e pela experiência social, pode ser uma mera ideia e 78 não implicar a sua própria existência, já que, como simples ideia, não poderia oferecer o critério para ser reconhecida como tal, de modo que nem mesmo a ideia da experiência social seria possível se tal experiência não fosse real (0 significado de Deus na experiência humana, 1912; O eu, o seu corpo e a sua liberdade, 1928; Tipos de filosofia, 1929; Pensamentos sobre a morte e sobre a vida, 1937; A ciência e a ideia de Deus, 1944). Uma visão mais próxima do idealismo italiano é a do norte-americano George P. Adams, que afirma a independência da actividade espiritual do conteúdo da consciência e vê precisamente em tal actividade o princípio criador da realidade. A actividade espiritual não pode certamente ser considerada como um objecto sujeito ao domínio geral da experiência e não pode ser descrito como uma forma ou uma relação objectiva. Mas pode ser reconhecida e conhece-se nos produtos da sua criação: nos valores éticos, religiosos e sociais e no mundo da história (0 idealismo e a idade moderna, 1918). Uma opinião análoga sobre a actividade espiritual encontra-se na obra do inglês Richard Burdon Haldane (1857-1928) que se valeu do principio da relatividade do conhecimento para determinar a natureza do absoluto (0 reino da relatividade, 1921; outras obras suas: O caminho da realidade, 2 vol. 1903-04; A filosofia do humanismo, 1922). O princípio da relatividade implica que o significado da realidade não é o mesmo em todos os graus em que ela se divide, e que só pode ser expresso em cada grau nos termos que lhe são peculiares. De acordo com isto, Deus 79 ph41. of T. H. G., Londres, 1896; A. E. TAILOR, The Problem of Conduct, Londres, 1901, p. 50-88; H. SIDGWICK, Lectures on the Ethic8 of T. H. Green, M. H. Sp~er and J. Martineau, Londres, 1902; P. L. NETTLESHIP, Memoir of T. H. G., Londres, 1906. ,Sobre Eduarido Caird: H. JONES,e J. H. MUIRHEAD, The Life and Phil. of E. C., Glasgow, 1921. § 704. De BrAdley, lista dos -escritos menores em ABBAGNANO, op. cit., p. 265.
Sobre Bradley: STRANGE, in "Mind", N. S., 1911; BROAD, ibid., 1915; DE ;SARLO, Filosofia del tempo nostro, Florença, 1916, p. 115-56; TAYLOR, WARD, STOUT, DAWES, MCKS, MUIRHEAD, SCHILLER, in ",3"d", 1925; E. DuPRAT, Bradley, París; R. W. CHuRcff, B.s, Nova Iorque, 1942; W. F. LOFTHOUsE, F. H. B., Londres, 1949. § 705. Sobre Bosanquet: H. BOSANQUET, B. B., Londres, 1924; MUIRIlEAD, in "Mind", N. S., 1923; ID, in "Journal Gf Plúl.", 1923, n., 25; HOERLE, ibid, 1923, n., 18; F. HOUANG, Le néo-hegelianisme en Angleterre. La philosophie de B. B., Paris, 1954. § 706. Sobre MeTaggart: F. C. S. ScHiLLER, in "Mind", N. S., 1895; WATSON, in "Philosophical ReVi,eW", 1895; MCGILVARY, in "Mind", N.S., 1898; BROAD in "Mind", 1921; C. D. BROAD, Examination of Me. T's Philosophy, 2 vol. Cambrtdge, 1934-38. § 707. Sobre ROYCE: o número que lhe dedicou a "Ph~ophical Review", 1916, 111, com colaboração de HOWISON, DEWEY, CALKINS, ADAMS, BARON, SPAULDING, COHEN, CABOT, HORNE, HOCKING, RAND. ALGRATI, Un pensatore americano: J.R., Milão, 1917; TEDESCH, in "Giorn. critico della fil. italiana", 1926; ALBEGGIANI, II @@i&tema filosofico di J.R., Palermo, 1929; 1-1. G. TOWSEND, Philosophical Ideas in the United States, Nova lorque, 1934, cap. I; R. B. PERRY, In the Spirit of William James, New Haven, 1938, cap. I; G. MARCEL, La Métaphysique de Royce, Paris, 1945; J. E. 82 Smim, R.s Social Infinite Nova lorqule, 1950; J. H. COTTON, R. on the Human Self, ~bridge, Mass, 1954. § 708- Sobre Umison: G. H. Hotoison, Philosopher and Teacher; a Selec~ from his Writings with a Biographical Sketch, ao cuidado de J. W. BucKHAm, Berkeley. Cal., 1934 (com bíblIog.). Sobre Creighton: H. G. ToWNSEN, Philosophical Ideas in the Unite-d States, Nova IoTque, 1934, p. 187 segs. 83 v O IDEALISMO ITALIANO § 709. IDEALISMO ITALIANO: CARACTERISTICAS E ORIGENS DO IDEALISMO ITALIANO Na segunda metade do século XIX a doutrina de Hegel teve na Itália o seu centro de estudo e de difusão na Universidade de Nápoles, onde a professaram Augusto Vera (1813-85), um modesto mas típico hegeliano da direita com tendências teístas e catolicizantes, e Bertrand Spaventa (1817-83). Spaventa iniciou a sua actividade cerca de 1850 com ensaios sobre Hegel e a filosofia moderna italiana e europeia (recolhidos mais tarde por Giovanni Gentile com os títulos de Escritos filosóficos, 1901; Princípios de Ética, 1904; De Sócrates a Hegel, 1905). Os seus escritos mais completos e significativos são: Prólogo e introdução às lições de filoso85
fia na Universidade de Nápoles (1862), publicados de novo por Gentile em 1908 com o título de A filosofia italiana e as suas relações com a filosofia europeia, e os Princípios de filosofia (1867) publicados também de novo por Gentile com acrescentamento de partes inéditas e com o título de Lógica e Metafísica (1911). Spaventa é também autor de uma monografia intitulada A filosofia de Gioberti, de que apenas saiu o primeiro volume em 1963, e de um estudo com o título Experiência e metafísica publicada postumamente por Jaia em 1888. A importância de Spaventa consiste sobretudo na sua tentativa de subtrair a cultura filosófica italiana ao provinciamismo em que a queria confinar o espiritualismo tradicionalista dominante em meados do século XIX, vinculando-a de novo à cultura europeia. O espiritualismo tradicionalista (§ 627) insistia numa tradição filosófica italiana que iria dos pitagóricos a Vico e a Gioberti, à qual deviam manter-se fiéis todas as manifestações filosóficas italianas. Spaventa faz seu o conceito da nacionalidade da filosofia italiana, mas vê a marca de tal nacionalidade na universalidade, pela qual nela deveriam reunir-se todos os opostos e encontrar uma unidade harmónica todas as tendências do pensamento europeu. Spaventa explica as diferenças e as afinidades entre as filosofias europeias mediante uma pretensa unidade da estirpe ariana, indo-germânica, ou indo-europeia, que se teria dividido em seguida, progredindo umas vezes mais outras vezes menos, e mais na Alemanha do que nos países latinos (A fil. ital., 1909, p. 49). A filosofia italiana 86 devia, pois, voltar a pôr-se ao nível da alemã. Com efeito, no Renascimento, a Itália foi a iniciadora da filosofia moderna. Bruno equivale, sem mais, a Espinosa, só com a diferença de que nele existe uma certa perplexidade quanto ao conceito de Deus, entendido umas vezes como sobrenatural outras como a natureza mesma (Ib., p. 105). Vico, substituindo a metafísica da mente pelo ser, desempenha na Itália a função que na Alemanha desempenhou Kant. Gallupi é um "kantiano, mau grado seu". Rosmini, como Kant, descobre "a unidade do espírito", embora deixe na obscuridade e incompreendido este conceito; e, finalmente, Gioberti completa Rosmini, como Fichte, Schelling e Hegel completam Kant, e descobre a verdadeira Ideia que não é o ser, mas sim o Espírito. Será talvez supérfluo chamar a atenção dos leitores da presente obra, para o carácter arbitrário destas determinações históricas. Espinosa não pode ser identificado com Bruno, porque supõe o racionalismo geometrizante de Descartes e Hobbes. Vico faz parte do movimento iluminista e é o Leibniz da história; a sua metafísica da mente nada tem a ver com a doutrina de Kant, a não ser pela comum exigência de delimitar e marcar as efectivas possibilidades humanas. Gallupi, Rosmini e Gioberti vinculam-se não à filosofia alemã, mas sim à francesa do seu tempo, e fazem parte do retorno romântico à tradição. A sua afinidade com o idealismo não assenta, pois, em categorias lógicas,
mas num princípio mais profundo e menos aparente, que é a comum fé romântica na tradição. Quanto à pretensa "nacionalidade" da filosofia italiana, tra87
de 1 uma fábula não menos pueril do que a "tradição itAlica" de que falavam os giobertianos, com a agravante da não inócua mitologia da estirpe ariana, indo-germânica ou indo-europeia. Foi necessário determo-nos um instante nas valorizações históricas de Spaventa, pois tiveram muito êxito entre os seguidores italianos do hegelianismo, que a repetiram servilmente sem se darem conta da sua inconsistência crítica. Exerceram, no entanto, nas mãos de Spaventa, uma certa função útil: contribuíram para despertar a filosofia italiana daquele tempo do letargo autocontemplativo e narcisista em que caíra (e que amiúde a ameaçara) e a interessá-la pela filosofia europeia, e especialmente alemã. Quanto à especulação sistemática de Spaventa, carece de toda a originalidade. Os seus Princípios de filosofia não fazem mais do que reassumir e comentar prudentemente alguns pontos basilares da Fenomenologia do espírito e toda a Lógica de Hegel. Num único ponto, Spaventa se permite uma certa originalidade: na interpretação da primeira tríade da lógica hegeliana, a de ser, não ser e devir, Spaventa sublinha aqui a necessária presença do que ele chama "mentalidade pura", isto é, do pensamento consciente, no movimento destas categorias, de maneira que parece supor que de um extremo ao outro da dialéctica o pensamento se move no âmbito da autoconsciência racional, o que não parece ter sido negado pelo próprio Hegel, que definiu a lógica como "a exposição de Deus, tal como é na sua eterna essência, antes da criação da natureza e de um espírito finito" (§ 572). E a afirmação de 88 Spaventa de que "as primeiras categorias exprimem, da maneira mais simples e abstracta, a natureza, o organismo e diria mesmo o ritmo da mente" (Scritti fil., II, p. 239) é também, de um ponto de vista hegeliano, plenamente ortodoxa. Ao hegelianismo aderiram na Itália, na segunda metade do século XIX, inúmeros literatos, historiadores, juristas e médicos além de filósofos, mas nenhum deles acrescentou fosse o que fosse ao pensamento do filósofo alemão. Originalidade e força só as adquire o idealismo com Gentile e Croce. Estes dois pensadores distinguem-se radicalmente do idealismo inglês e norte-americano, como também se distinguem entre si. Distinguem-se do idealismo inglês e norte-americano, por crerem que a unidade entre finito e infinito é demonstrável, não negativamente por causa do carácter aparente e contraditório da experiência finita, mas positivamente e de um modo real, reportando ao espírito infinito os traços fundamentais da experiência finita. Assim, a doutrina dos dois idealistas italianos renova a tentativa de Hegel, mas distingue-se de Hegel por ser uma reforma da dialéctica, que exclui a consideração do pensamento lógico e da natureza e se apoia exclusivamente no espírito. As duas doutrinas distinguem-se, pois, entre si, porquanto uma, a de Gentile, é um subjectivismo absoluto (actualismo), a outra, a de Croce, um historicismo absoluto. O característico que as assemelha é a negação de toda a transcendência e a redução de toda a realidade à pura actividade espiritual. 89
§ 710. GENTILE: VIDA E OBRA Giovanní Gentile nasceu em Castelvetrano, na Sicília, a 30 de Maio de 1875. Professor primeiramente em Palermo e em Pisa, em seguida em Roma, foi nomeado ministro da instrução pública com o advento do governo fascista (1922-24). Não existem afinidades particulares entre o idealismo de Gentile e o fascismo; de início, o fascismo não possuía uma doutrina, a não ser que se queira chamar tal a um genérico e intolerante nacionalismo. Todavia, Gentile chegou a descobrir no novo regime a expressão mesma da racionalidade ou da espiritualidade absoluta e converter-se no seu maior expoente intelectual. Foi o autor de uma vasta e radical reforma da escola italiana que, no entanto, o próprio fascismo havia de desmantelar em parte ou modificar nos anos seguintes. Devido aos numerosos cargos culturais e políticos que desempenhou, assim como o de presidente da "Enciclopédia Italiana", exerceu um vasto poder sobre a cultura italiana e especialmente sobre o seu aspecto administrativo e escolar. Caído o fascismo em Julho de 1943 e ocupada, em Outubro do mesmo ano, a Itália central e sententrional pelas tropas alemãs, Gentile deu a sua adesão pública ao governo fantoche que aquelas haviam instaurado. Isto foi talvez para ele um acto extremo de fidelidade romântica ao regime que o honrara como o seu máximo representante cultural; a muitos italianos pareceu, ao invés, uma traição. Foi morto no limiar da sua habitação, em Florença, a 15 de Abril de 1944. A sua filosofia, no entanto, deve ser entendida 90 e julgada independentemente do fascismo, no qual não tem decerto raízes nem buscou inspiração; e a sua personalidade pode ser agora melhor recordada na generosidade dos seus traços humanos do que nas suas atitudes políticas. Gentile expôs pela primeira vez o princípio da sua filosofia no ensaio O acto do pensamento como acto puro (1912); e logo depois definiu a sua atitude em relação a Hegel em A reforma da dialécttica hegeliana (1913). A sua obra mais vigorosa é A teoria geral do espírito como acto puro (1916); a mais vasta e complexa é o Sistema de lógica como teoria do conhecer (2 vol., 1917-22). Em 1912 publicou o Sistema de pedagogia como ciência filosófica; em 1916, Os fundamentos da filosofia do direito. Em A filosofia da arte (1931) está latente uma polémica com a esté tica de Croce. O último escrito, Génese e estrutura da sociedade foi publicado postumamente (1946). Foi também notável a actividade historiográfica de Gentile, em particular a respeitante ao Renascimento italiano (Rosmini e Gioberti, 1898; A filosofia de Marx, 1899; De Genovesi a Gallupi, 1903; O modernismo e as relações entre religião e
filosofia, 1909, Os problemas da escolástica e o pensamento italiano, 1913-, Estudos sobre Vico, 1904; As origens da filosofia contemporânea em Itália, 3 vol., 1917-23; O ocaso da cultura siciliana, 1918; Giordano Bruno e o pensamento do Ressurgimento, 1925; Gino Capponi e a cultura toscana do século XIX, 1922; Estudos sobre o Renascimento, 1923, Os profetas do Ressurgimento italiano: Mazzini e Gioberti, 1923). 91 § 711. GENTILE: O ACTO PURO O erro de Hegel consistiu, segundo Gentile, em ter tentado uma dialéctica do pensado, ou seja, do conceito ou da realidade pensável (como lógica e como natureza), dado que só pode haver dialéctica, isto é, desenvolvimento e devir, do pensante, ou seja, do sujeito actual do pensamento. O sujeito actual do pensamento, ou pensamento em acto, é a única realidade. O sujeito é sempre, certamente, sujeito de um objecto, enquanto pensa, pensa necessariamente algo, mas o objecto do pensamento, seja a natureza ou Deus, o próprio eu ou o dos outros, não tem realidade fora do acto pensante que o constitui e o põe. Este acto é, pois, criador e, enquanto criador, infinito, porque não tem nada fora de si que possa limitá-lo. Este princípio que leva decididamente até às suas últimas consequências a tese apresentada por Fichte na primeira Doutrina da ciência, realiza a rigorosa e total imanência de toda a realidade no sujeito pensante. Nem a natureza nem Deus, nem sequer o passado e o futuro, o mal e o bem, o erro e a verdade, subsistem de qualquer forma fora do acto do pensamento. Os desenvolvimentos que Gentile deu à sua doutrina consistem essencialmente em mostrar a imanência de todos os aspectos da realidade no pensamento que os põe, e em reduzi-los a este. O pensamento em acto é o Sujeito transcendental, o Eu universal ou infinito. O sujeito empírico, o homem individual e particular, é um objecto do Eu transcendental, um objecto que ele põe (isto é, 92 cria), pensando-o, e cuja individualidade-e, por consequência, supera no próprio acto em que o põe. O verdadeiro sujeito, o Sujeito infinito ou transcendental, não pode nunca tomar-se objecto para si próprio. " A consciência-diz Gentile (Teoria gen., 1, § 6)-, enquanto objecto de consciência, já não é consciência; enquanto objecto apercebido, a apercepção originária já não é apercepção; já não é propriamente sujeito, mas objecto; já não é Eu, mas sim não-eu... O ponto de vista transcendental é o que se obtém na realidade do nosso pensamento, quando o pensamento se considera não como acto consumado, mas, por assim dizer, como acto em acto: acto que não se pode absolutamente transcender, pois que ele é a nossa própria subjectividade, isto é, nós mesmos; acto que não se pode nunca nem de modo algum objectivam. Os outros eus são, por sua vez, objectos, enquanto outros, mas no acto de os conhecer o eu transcendental unifica-os. Os problemas morais surgem, em troca, no terreno da diversidade e da
oposição recíproca entre os eus empíricos; mas não se resolvem nesse terreno. "Não se resolvem senão quando o homem chega a sentir as necessidades dos outros como necessidades próprias, e a própria vida, por conseguinte, não encerrada no apertado círculo da sua personalidade empírica, mas -entendida sempre em expansão, na actividade de um espírito superior a todos os outros interesses particulares, e ao mesmo tempo imanente no centro mesmo da sua personalidade mais profunda" Qb., 2, § 5). 93
O pressuposto de tudo isto é o postulado segundo o qual "conhecer é identificar, superar a alteridade como tal" Qb., 2, § 4). Em virtude deste pressuposto, Gentile pode afirmar que ws outros fora de nós, não podem existir, falando com rigor, se nós os conhecermos e falarmos deles"; e' que o outro (isto é, a outra pessoa) é, simplesmente, uma etapa através da qual se passa, mas na qual não nos devemos deter. "0 outro não é tanto outro que não seja nós mesmos" (ib., 4, § 5). Não se vê como se pode conciliar com afirmações tão explícitas aqueloutra, feita com o propósito de distinguir o idealismo do misticismo, de que "a realidade do eu transcendental implica também a realidade do eu empírico" e que o eu absoluto unifica mas não destrói em si o eu particular e empírico Ub, 2, § 6). E, de facto, os eus empíricos poderão distinguir-se entre si como objectos diversos do Eu transcendental, do pensamento em acto, mas não já subsistir como eu, isto é, como sujeitos na unidade simples e infinita daquele Eu. Isto é tão verdadeiro que o próprio acto da educação é conhecido por Gentile como a unidade do mestre e do aluno no espírito absoluto, unidade que chega a eliminar o problema da comunicação espiritual (Sumário de pedagogia, 1, 2.o 4, § 3). O próprio pressuposto do conhecimento como unificação e identificação entra em jogo na polémica contra tudo o que está "fora" do espírito e da consciência. A consciência é infinita e nada existe fora dela. O "fora" está sempre dentro porque designa uma relação entre dois termos que, exteriores um ao outro, são no en94 tanto interiores à consciência mesma. Pelo mesmo motivo não pode haver verdadeira dialéctica do ser (no sentido platónico-aristotélico) ou da natureza. O devir só é próprio do sujeito pensante; e as dificuldades em que se envolve a lógica de Hegel para o deduzir da unidade de ser e não ser, são eliminadas se pelo ser se entende precisamente o ser do pensamento que o define e, em geral, pensa. O sujeito pensante realiza a coincidência entre a particularidade e a universalidade e é, por conseguinte, o verdadeiro indivíduo. Com efeito, o pensamento é ao mesmo tempo a máxima universalidade possível e, portanto, a máxima afirmação do eu que pensa. Gentile identifica a individualidade com a positividade; e a positividade pertence propriamente ao pensamento, que é autoposição e auto-criação (autoctisis) e por isso se identifica com a universalidade do próprio pensamento (Teoria gen., 8, § 8). O universal do pensamento não é um dado
ou um objecto que o pensamento deva reconhecer ou respeitar, mas sim o fazer-se universal, o universalizar-se, como o indivíduo é o individualizar-se: os dois actos coincidem, portanto, no acto único e simples do eu que pensa. "Eu penso e pensando realizo o indivíduo que é universal, e é, por isso, tudo o que deve ser absoluta-mente: além dele, fora dele, não se pode procurar outro" (Ib., 8, § 16). Deste ponto de vista, é evidente que a natureza, como uma realidade pressuposta ao pensamento, é uma ficção; e como multiplicidade empírica de objectos espaciais e temporais, se resolve na actividade espacializadora e temporalizadora do eu que a pensa 95 e, pensando-a, a unifica e a resolve em si mesmo. Isto exclui toda a acção condicionante da natureza sobre o espírito. Só o pensamento em acto, é absolutamente incondicionado porque é a condição de toda e qualquer outra realidade. O carácter condicionado da realidade não exprime outra coisa senão a sua dependência do pensamento pensante. "0 ser (Deus, natureza, ideia, facto contingente) é necessário, sem liberdade porque já está posto pelo pensamento: é o resultado do processo, resultado que é, precisamente porque o processo terminou, isto é, se concebe terminado, fixando-o e abstraindo-o um momento como resultado" (1b., 12, § 19). O pensamento pensante é sempre livre, mas uma liberdade que se identifica com a sua intrínseca necessidade racional e é, portanto, hegelianamente entendida como coincidência de liberdade e necessidade. § 712. GENTILE: A DIALÉCTICA DO CONCRETO E DO ABSTRACTO A elucidação desta necessidade intrínseca do acto pensante é o objectivo fundamental da Lógica de Gentile. O acto do pensamento é, como tal, sempre verdade, positividade, valor, bem, liberdade; mas enquanto se objectiva e deve necessariamente objectivar-se, é erro necessidade, negatividade, mal. O problema da lógica gentiliana consiste em mostrar a imanência destes aspectos negativos na unidade e na simplicidade do acto espiritual infinito. Gentile 96 GENTILE examina, pois, o que ele chama o logos abstracto, ou seja, a consideração abstracta pela qual o objecto em geral, que é a raiz de toda a negatividade ou desvalor e portanto, também do erro ou do mal, é considerado uma realidade por si, independente do espírito que a pensa. Parte do princípio de que o logos abstracto é necessário ao logos concreto. "Para que se actualize a concreção do pensamento, que é negação da imediatez de toda a posição abstracta, é necessário que a abstracção seja não so negada mas também afirmada; do mesmo modo que para manter aceso o fogo que destrói o combustível é necessário que haja sempre combustível e que este não seja subtraído às chamas devoradoras, mas seja efectivamente queimado" (Sist. di log., 1, J.a , 7 ; § 9). O lugar abstracto é considerado na expressão que assumiu na lógica tradicional, cujas formas são por isso submetidas à análise crítica. Conceito, juízo e
silogismo são as formas do pensável, isto é, do objecto pensado enquanto tal: exprimem, portanto, a objectividade, o ser, a natureza e não são susceptíveis de movimento, de progresso, de dialéctica, tudo coisas que pertencem à actividade espiritual que só podem, portanto, entender-se e justificar-se na subjectividade do sujeito pensante. O logos abstracto, objecto da lógica grega e medieval é, pois, enquanto abstracto, um erro; mas é um erro necessário, porque é devido à necessária objectivação do sujeito pensante e é continuamente resolvido e superado na actividade deste sujeito: "A lógica do abstracto nasceu historicamente e nasce eternamente, se assim nos podemos exprimir, naquele estado de espírito 97 em que este não adquiriu consciência de si e não vê por isso a abstracção do abstracto e o confunde com o concreto. Estado naturalista, em que o real é pressuposto pelo espírito. Estado a que o espírito está destinado a subtrair-se e a que se subtrai até ao infinito, porquanto já no próprio acto em que julga realizá-la, a supera, afirmando não propriamente a natureza, como ele crê, mas o próprio conhecimento da natureza, não o concreto, mas o seu conceito do conceito" (Sist, li log., 11, 3a4, § 3). Com este ponto se relaciona a teoria do erro, que é um dos aspectos mais característicos da atitude filosófica de Gentile. O pensamento em acto é sempre, como tal, verdade, realidade, bem, prazer, positividade. O erro, o mal, a dor, etc., subsistem nele apenas como os seus momentos superados, como posições já ultrapassadas e desvalorizadas. "Toma-se qualquer erro e demonstra-se bem que é tal; e ver-se-á que não há ninguém que o queira perfilhar ou sustentar. O erro é, pois, erro enquanto superado: por outras palavras, enquanto se apresenta ao nosso conceito, como o seu não-ser. É, portanto, como a dor, não uma realidade que se opõe à realidade do espírito (conceptus sui), mas a própria realidade enquanto alcança a sua realização: num seu momento ideal" (Teoria gen., 16, § 8). O erro é sempre imanente à verdade como o não-ser é imanente ao ser que devém. O conhecimento do erro, é, com efeito, verdade: o conhecimento como tal é sempre verdadeiro (Sist. di log., I, 1.a 5 §§ 9-10). Naturalmente, esta teoria do erro não explica o erro que não seja conhecido ou reconhecido como 98 tal; não explica, por exemplo, as doutrinas ou as opiniões filosóficas diversas das do filósofo idealista. Mas Gentile declara que o filósofo idealista não tem a obrigação de explicar este género de erros. "0 idealista da imanência absoluta -afirma (1b., 11, 3.a, 1, § 122)-não deve explicar pela dialéctica do acto espiritual qualquer verdade e qualquer erro, mas a verdade e o erro do meu pensamento, que só para ele é verdadeiramente tal: a verdade minha no acto que penso, e o meu erro no mesmo acto.
Pedir-lhe que com a mesma explicação explique o que, vulgarmente e segundo outros sistemas filosóficos por ele criticados, é também pensamento, e implica um correspondente modo de conceber verdade e erro, é decerto uma pretensão absurda. O erro actualmente superado pelo seu contrário (que é o único erro do qual o nosso idealismo pode falar) não é certamente o erro, por exemplo, de quem está contra nós, e resiste aos nossos argumentos e persiste na sua afirmação para nós evidentemente falsa; nem o erro cometido, para dar um outro exemplo, por Platão na sua teoria da transcendência das ideias". Na universalidade do espírito a oposição entre o filósofo idealista e o seu antagonista é anulada de golpe, já que o próprio antagonista é interior ao filósofo e só é real nele; e mesmo quando ressurge até ao infinito na sua distinção, esta distinção volta sempre a ser anulada. O traço característico desta teoria é a identificação entre o filósofo idealista e o espírito universal: basta que a anulação "de golpe" dos erros adversários se realize na interioridade do filósofo idealista para que se considere essa anulação realizada até ao infinito 99 na unida-de e na eternidade do sujeito pensante. É apenas necessário fazer notar que na base desta teoria está o pressuposto que sustenta toda a teoria de Gentile: conhecer é identificar e, portanto, conhecer os outros na sua alteridade e nos seus erros significa resolver a alteridade e o erro na unidade e na verdade do sujeito pensante. Como quer que seja, tal pressuposto domina todo o desenvolvimento do pensamento de Gentile. O ignoto, por exemplo, enquanto é conhecido como tal, já não é o ignoto; "é enquanto não é". E assim a morte, a qual "não existe". "A morte é temível porque não existe, como não existe a natureza nem o passado, como não existem os sonhos. Há o homem que sonha, mas não as coisas sonhadas. E assim a morte é negação do pensamento mas não pode ser actual o que se realiza pela negação que o pensamento faz de si mesmo. Com efeito, só se pode conceber o pensamento como imortal, porque é infinito" (Sist. di log. II, 4.a 2 § 3). E assim a ignorância só existe no acto em que é reconhecida como tal e, por isso mesmo, superada como ignorância; e não existem problemas senão enquanto resolvidos, embora toda a solução se transforme num novo problema que é, no entanto, imediatamente uma nova solução (1b., 11, 4 a, 5, §§ 4-5). Por consequência, a filosofia é perene, porque é sempre esta filosofia, ou seja, filosofia do acto pensante; idealismo. E dado que não existe uma filosofia estritamente objectiva "a verdade da filosofia ou a filosofia verdadeira a que o filósofo tende, não pode ser outra senão uma elaboração da sua própria 100 filosofia, cujo desenvolvimento é também o desenvolvimento da verdade filosófica" (Ib, 5, § 5). O método da filosofia não pode ser, portanto, senão o
da imanência de toda a realidade ou verdade no pensamento pensante e, por conseguinte, a filosofia identifica-se com a lógica (Ib., epílogo, 2, § 2). É fácil dar-se conta da apreciação que se pode fazer da ciência deste ponto de vista. A ciência é sempre particular porque tem a seu lado outras ciências e carece, portanto, da universalidade que é própria da filosofia. Pressupõe primeiramente, e diante de si, o seu objecto; é, portanto, dogmática e tende necessariamente para o naturalismo e o materialismo. Dela não há história porque só há história do acto pensante, ou seja, da filosofia que a inclui em si (Teor. gen., 22, §§ 1-7). É este o único elemento que, de algum modo, a salva, porque o cientista, sendo como homem também filósofo, reincorpora a abstracção da ciência na concreção do seu acto pensante (Sist. di log., 11, epílogo, 3 § 6). A conclusão inevitável da dialéctica do abstracto e o concreto, conclusão, aliás que Gentile explicitamente aceita e mantém até às suas últimas consequências, é a de que o homem, como sujeito pensante e na pontualidade do seu acto pensante, está sempre na verdade e no bem, no infinito e no eterno, mais ainda, é, ele mesmo, todas estas coisas. Isto implica também que a história do homem (que tem história só como acto pensante) é um permanecer imóvel na eternidade; e a isto se reduz a doutrina da história de Gentile. De facto, começa por negar a distinção entre história (res gestae) e historiografia 101 1 Ir-, (histori" rerum gestarum) e por reduzir a história à historiografia, ou seja, à contemporaneidade do acto pensante, de um "presente absoluto que não desaparece e não se precipita no seu oposto" e que é "0 eterno, tal como reluz no acto do espírito que o busca, no acto do pensamento que pensa" (Sist. di log., 11, 4a, 6 § 2). A pretensa objectividade da verdade histórica não é outra senão a mediação ou sistematização do pensamento que, mediando-se ou demonstrando-se, se põe como verdade imutável e é já, em rigor, tal pela imanente mediação pela qual o eu se põe como não-eu (1b., § 8). A busca da individualidade nos acontecimentos históricos não pode ser senão a busca daquele verdadeiro eu que e o Eu universal e pensante. "0 Sócrates histórico, com a sua positiva individualidade, então sim, torna-se apreensível; mas enquanto o construímos como personalidade que revive na nossa e actualmente é a nossa (ib., § 4). Uma vez mais parte do postulado do conhecer como identificação do sujeito consigo mesmo. § 713. GENTILE: A ARTE Na Teoria Geral e no Sumário de pedagogia Gentile pusera o carácter peculiar da arte na sua subjectividade, pela qual o mundo do artista se distingue do da vida prática e da religião e representa uma libertação em relação a ele. O preciso significadO da subjectividade da arte é examinado na Filosofia da arte (1931). O pressuposto capital da oVa é, contudo, o que determina a especulação
102 gentiliana: conhecer algo significa para o sujeito assimilá-lo a si e identificá-lo consigo. "A obra que se conhece-diz Gentile (Fil. dellarte, p. 100)-, não é a que está ali, no tempo, dividida por nós, mas a que, ao invés, vamos procurar longe de nós (e precisamente pela actual experiência por nós vivida), mas que, uma vez encontrada, se nos manifesta e faz valer como próxima, ou melhor, como nossa e constitutiva da nossa actual experiência". Posto isto, o significado da arte, de toda a obra de arte, não poderá consistir senão no próprio objecto pensante; e, precisamente, na "forma do eu como puro sujeito" (1b., p. 131). Mas como puro sujeito o eu nunca é actual, porque a sua actualidade, o acto do seu pensar está no seu objectivar-se; mas neste objectivar-se a arte, como pura subjectividade, já foi transcendida. "A arte pura é inactual e, por isso, não pode ser apreendida na sua pureza. Isto não significa, porém, que ela não existe, mas somente que não se pode separar, tal como é e por aquilo que é propriamente, do resto do acto espiritual, em que existe, e em que, ademais, demonstra toda a sua energia existencial" (1b., p. 135). Por conseguinte, a arte não é, como se costuma dizer, um produto de fantasia; não existe uma fantasia como faculdade, ou função especial da actividade espiritual, distinta do pensamento. A actividade espiritual é sempre pensamento, ainda quando, na interioridade do pensamento, se possam distinguir vários momentos. A arte é o momento da subjectividade pura ou inactual que se torna actual no pensamento, se converte em expressão. A expressão 103
estética é, pois, pensamento, e a arte não é a expressão de um sentimento, mas é o próprio sentimento como pura, íntima e inefável subjectividade do sujeito pensante (Ib., p. 197). O sentimento conserva em Gentile todos os seus característicos românticos: é indefinível, inexprimível e ineliminável: é o infinito espiritual, isto é, livre de determinações conceptuais necessárias e, por isso, é constitutivo da subjectividade pura do sujeito (Fil. dell'arte, p. 176 segs.). Precisamente como tal, a infinidade do sentimento é a infinidade do homem, na sua universalidade e, portanto, está acima e para além da diversidade empírica dos homens individuais (ib., p. 205). Sentimento é o corpo não na sua presumida imediatez física, mas na sua actualidade consciente-, sentimento é também a linguagem, que é decerto pensamento na multiplicidade do seu desenvolvimento, mas continua sendo sentimento na unidade subjectiva deste desenvolvimento (1b., p. 226-30). Por outro lado, a técnica artística é, em troca, pensamento; mas é um pensamento "que retorna ao sentimento e com ele se encontra e é por isso dirigido e animado por ele" (Ib., p. 237). A pretensa exteriorização da obra de arte não é, na realidade, senão a sua interna realização por obra do sujeito. No sujeito encontra também a sua beleza a natureza, "não já dividida nas suas partes, mas reunida naquela unidade e infinidade que é própria do sujeito e do mesmo sujeito" (1b., p. 262). Se como pura objectividade e, portanto, como
puro sentimento, a arte não é moral, encontra a sua moralidade, ao 104 mesmo tempo que a sua actualidade, no pensamento, isto é, na filosofia. Possui, portanto, uma eticidade imanente pela qual pode valer como educadora do género humano. Nas suas produções históricas (embora não esteticamente válidas, porque só o são no pensamento e para o pensamento) a arte tem também, segundo Gentile, um carácter nacional (Ib., p. 237). Quanto à relação entre arte e religião, trata-se de uma correlação necessária que implica a sua recíproca oposição e exclusão dialéctica. Com efeito, a arte é o momento da pura subjectividade espiritual, a religião é o momento da pura objectividade, do objecto que é absolutamente negador do sujeito (Deus), do infinito como objecto. § 714. GENTILE: A RELIGIÃO Este conceito da religião foi formulado por Gentile na Teoria geral do espírito e no Sumário de pedagogia e confirmado nos Discursos de religião (1920). A religião é "a exaltação do objecto, subtraído aos vínculos do espírito, em que consiste a idealidade, a cognoscibilidade e racionalidade do objecto mesmo" (Teoria, 14, § 7). Como negação do sujeito no objecto, a religiosidade determina a negação da liberdade espiritual. "Substitui o conceito da criação como autoctisis pelo da criação como heteroctisis; e o conceito do conhecer como posição que o sujeito faz do objecto, pelo da revelação que o objecto faz de si mesmo, o conceito da boa vontade, que é a criação que a vontade faz do bem (isto é, de si mesma como bem) 105 pelo da graça que o bem (Deus) faz de si ao sujeito" (Somm. di ped., 1, 3 a, 4, § 4). A essência da religião é, portanto, o misticismo que é a anulação do sujeito no objecto e pela qual o ser de Deus é o não ser do sujeito (Disc. di rel., p. 78). A consequência da religiosidade é o agnosticismo, que é o carácter negativo de todas as teologias místicas ou estritamente religiosas Qb., p. 81). A religiosidade pertence, pois, propriamente ao lugar abstracto, isto è, à posição abstracta e errónea de um objecto, que se supõe anterior ao sujeito e considerado independente dele. Somente a filosofia a restitui à sua concreção, mostrando no próprio objecto da religião uma posição ou criação do sujeito. E, neste sentido, a filosofia imanentista é a "verificação do cristianismo" , que foi o primeiro a afirmar o princípio da interioridade espiritual. Por sua vez, o acto espiritual, a única realidade positiva e concreta já não pode ser divinizada e tornar-se objecto de adoração ou de culto. "0 acto é a filosofia: e a filosofia da filosofia não é mais do que filosofia. Assim, o acto, na sua imanente realidade, não se objectiva e não se põe diante de si mesmo" (Ib., p. 88). De maneira que a religião só é imortal na filosofia; e se o homem tem necessidade de Deus, tem também necessidade de reflectir sobre ele e de o reduzir ao acto do seu pensamento. "E este Deus, como pode ser vontade que cumpre reconhecer, a que se tem de rezar e. invocar, e a que é necessário submetermo-nos, se Deus está dentro do homem, do seu eu, e é propriamente o seu eu ao realizar-se?" (Sist. di log., 11, 4.a 8, § 4). Nalguns artigos e ensaios dos últimos anos da
106 sua vida, Gentile insistiu na religiosidade da sua filosofia (Sobre uma nova demonstração da existência de Deus, 1932; A minha religião 1943). Falou também de uma religião sua e até mesmo de um catolicismo seu. Mas, evidentemente, o adjectivo destrói aqui o substantivo. Para chegar a reconhecer a validade da religião, Gentile deveria ter abandonado, como fez Fichte, o princípio da identidade do finito e do infinito e chegar a admitir que o infinito está para além do finito, isto é, do homem que filosofa, do sujeito pensante, o qual em comparação com ele não é mais do que a imagem ou a repetição temporal do seu eterno processo. Mas nada estaria mais longe da intenção de Gentile, o qual, nestes artigos, não fez senão reafirmar a sua fé na infinidade do sujeito pensante e na impossibilidade da transcendência. § 715. GENTILE: O DIREITO E O ESTADO Uma sociedade de homens, isto é, de seres finitos ligados entre si e ao mundo que os alberga por necessidades e exigências de diversa natureza é, do ponto de vista de Gentile, um verdadeiro absurdo. Por isso, nos Fundamentos da filosofia do direito (1916), assim como no seu último escrito Génese e estrutura da sociedade (1946), e noutros escritos menores circunstanciais e políticos, Gentile não faz outra coisa senão reduzir à interioridade do acto espiritual a sociedade e o estado, a moral, o direito e a política e, em geral, toda a gama das relações 107 entre os homens. Sociedade e estado, e, por conseguinte, direito e política não estão, segundo ele, inter homines, mas in interiore homine. Na primeira obra, procurou esclarecer a natureza do direito recorrendo à dialéctica de o que quer e o querido, que é perfeitamente idêntica à de pensante e pensado, já que nenhuma distinção é possível entre pensamento e vontade: o pensamento como actividade criadora e infinita é vontade criadora e infinita. Em relação à moralidade, que é vontade do bem, isto é, criação do bem no acto de o querer, o direito é o querido, ou seja, não já vontade em acto mas vontade passada ou conteúdo do querer; portanto, também, "não já liberdade que é força, mas força sem liberdade, não já objecto que é sujeito, mas objecto oposto ao sujeito" (Fond., p. 58-59). A vontade que quer é já para si mesma o seu próprio mandato ou a sua própria lei; quando encontra diante de si uma ordem ou uma lei, trata-se de um momento seu objectivado, e fixado abstractamente nessa sua objectividade. "0 poder soberano, o querer tom-no já em si; e fora dele, onde empiricamente se vê armado de espada, não pode
vê-lo senão através do que já tem no seu íntimo, onde está a raiz e a verdadeira substância da sociedade e do estado" (Ib., p. 61). Por conseguinte, a coactividade do estado ou das normas jurídicas é, ela também, interior e espiritual; e direito e moral, em última análise, identificam-se, como se identificam o estado e o indivíduo, na actualidade do querer volitivo ou do sujeito pensante (1b., p. 69). Esta é já uma justificação do estado absolutista e totalitário; e a justificação é explícita no último 108 escrito de Gentile. Aqui rejeita-se a distinção entre o privado e o público e com ela a possibilidade de pôr limites à acção do estado. E, com efeito, a distinção não pode manterse se se admite como único indivíduo o Eu universal e infinito: na realidade, tal distinção pressupõe a singularidade e a irredutibilidade do indivíduo e, ao mesmo tempo, a sua constitutiva relatividade social. Gentile, aceitando o carácter totalitário e autoritário do estado, declara, com um movimento característico do seu pensamento, que se pode dizer também o oposto, q saber "que neste estado, que é própria vontade do indivíduo enquanto universal e absoluto, o indivíduo absorve o estado, e que a autoridade (a legítima autoridade), não podendo ser expressa, aliás, senão pela actualidade do querer individual se reduz integralmente à liberdade". Deste modo, a verdadeira democracia seria, não a que quer limitar o estado, mas a "que não põe limites ao estado que se desenvolve na intimidade do indivíduo e lhe confere a força e o direito na sua absoluta universalidade" (Génese, etc., p. 121). Também aqui, como na teoria do erro, Gentile identifica o indivíduo universal e absoluto com o filósofo idealista que teoriza, sobre este indivíduo. De modo que o miolo da sua demonstração é que o estado autoritário, identificando-se com o filósofo idealista, realiza a liberdade deste filósofo; por isso, não é autoritário. É evidente que, neste círculo, o pensamento de Gentile se mostra constitucionalmente incapaz de um colóquio com outros homens e até mesmo de polemizar com eles. 109 Neste ponto crucial, deparamos mais uma vez com o pressuposto que sustenta toda a dialéctica de Gentile: conhecer é identificar, eliminar a alteridade, assimilar ao sujeito pensante tudo o que não é o sujeito pensante. A este pressuposto, que é a herança mais pesada do pensamento romântico, contrapõe-se a filosofia contemporânea na sua parte militante: o realismo, a fenomenologia, o positivismo lógico, o existencialismo, o instrumentalismo. A filosofia de Gentile inscreve-se inteiramente no círculo cerrado do romantismo e é a mais audaz, rigorosa e extrema expressão do mesmo. É necessário somente notar que a actividade historiográfica de Gentile, dominada como é pelo pressuposto citado e pelo conceito de que a história não é mais do que a eternidade no acto pensante, não tem valor -senão como aspecto da
sua especulação sistemática. Nos seus numerosos trabalhos históricos, Gentile procurou sempre rastrear no passado apenas os elementos assimiláveis à filosofia -do actualismo. A sua historiografia filosófica reduz-se, pois, a isolar certos elementos de pensamento dos complexos individuais e históricos -de que fizeram parte e a assimilá-los aos conceitos próprios do actualismo. Esta forma de historiografia filosófica foi com frequência seguida por numerosos discípulos que Gentile teve na Itália nos anos que vão da primeira à segunda guerra mundial com resultados quase nulos ou decepcionantes, seja do ponto de vista historiográfico, seja do teorético. 110 § 716. CROCE: VIDA E OBRA Bene-detto Croce, nasci-do em Pescasseroli, nos Abruzos, a 25 de Fevereiro de 1866, e falecido em Nápoles a 20 de Novembro de 1952, permaneceu sempre arredado do ensino universitário. Salvaguardado das necessidades materiais por uma grande fortuna pessoal, desenvolveu como escritor independente uma ininterrupta e intensa actividade nos mais variados campos da filosofia, da história, da literatura e da erudição. Ligado por estreita amizade a Govarmi Gentile (que foi durante muitos anos, e até ao início de 1903, colaborador da sua revista "La Critica"), Croce rompeu com ele quando se declarou hostil ao governo fascista (já instaurado havia alguns anos) de que Gentile se tornara o expoente filosófico oficial. A esta ruptura, seguiu-se, por ambas as partes, uma polémica miúda, azeda e pouco edificante, que durou muitos anos. O regime fascista, certamente para se salvar de um alibi face aos meios culturais internacionais, permitiu tacitamente a Croce uma certa liberdade de crítica política, de que ele usou efectivamente nos livros e nas notas que ia publicando na "Critica" para fazer a defesa dos ideais da liberdade, tanto mais eficaz quanto era alheia a toda a retórica e impregnada de cultura e de pensamento. Nos anos do fascismo e da segunda guerra mundial a figura de Croce assumiu por isso, aos olhos dos italianos, o valor de um símbolo pela sua aspiração à liberdade e a um mundo em que o espírito prevaleça sobre a violência. E assim se mantém ainda hoje, embora se verifique 111 o eclipso das ideias filosóficas de Croce até nos domínios em que exerceram a maior influência, ou seja, na estética e na teoria da história. Croce chega a formular o seu sistema filosófico partindo da consideração de problemas literários e históricos. A primeira forma da sua estética (Tese fundamental de uma estética como ciência da expressão e linguística geral, 1900) foi-lhe sugerida pela necessidade de uma
orientação precisa na crítica literária; e nasceu como tentativa de dar uma sistematização filosófica rigorosa aos princípios críticos que presidiram à obra de Francesco De Sanctis (1818-83) que ele considerava como o seu verdadeiro mestre. A estética foi, pois, incessantemente reelaborada por Croce; e da Estética como ciência da expressão e linguística geral (1902) ao Breviário de estética (1912) e ao volume A poesia (1936), bem COMO em numerosos ensaios e escritos menores, Croce foi dilucidando as suas teses fundamentais que permaneceram no entanto as mesmas quanto ao essencial (Problemas de estética, 1910-, Novos ensaios de estética, 1920; últimos ensaios, 1935). Em torno do núcleo da estética, condensou-se pouco a pouco o resto do sistema crociano: Lógica como ciência do conceito puro (1909)-, Filosofia da prática, económica e ética (1909); Teoria e história da historiografia (1917). Juntamente com a doutrina estética, a que sofreu maior reelaboração foi a doutrina da história (A história como pensamento e como acção, 1938; O carácter da filosofia moderna, 1941; Filosofia e historiografia, 1949; Historiografia e idealidade moral, 1950). São fundamentais as monografias 112 dedica-das por Croce a Vico e a Hegel (A filosofia de Vico, 1911; Ensaio sobre Hegel, 1912) e os estudos reunidos na sua obra Materialismo histórico e economia marxista (1900). Os Escritos de história literária e política, constituem, pois, um esclarecimento e uma reforinulação dos princípios filosóficos de Croce perante um grande número de problemas críticos. § 717. CROCE: A FILOSOFIA DO ESPIRITO A filosofia de Croce qualificou-se ou autoqualificou-se como "historicismo absoluto". Pouco importa que se rejeite ou admita esta qualificação; o que importa, em todo o caso, é -dar-se conta de que nela o adjectivo modifica radicalmente o substantivo e que, portanto, o historicismo crociano é radicalmente diverso -do resto do historicismo contemporâneo. Este (como veremos, § 735), centra-se em torno do problema crítico da historiografia, isto é, do problema relativo à possibilidade e ao fundamento (no sentido kantiano) -do saber histórico. Este problema não existe para Croce, que entende por historicismo "a afirmação de que a vida e a realidade é história e nada mais do que história" (A história, 1938, p. 51). É evidente que, deste ponto de vista, o problema crítico da historiografia é eliminado e substituído pelo principio hegeliano da identidade entre racionalidade e realidade, entre ser e dever ser. Croce, de facto, contrapõe o historicismo ao ilumi113 nismo que, como "racionalismo abstracto", considera "a realidade dividida em suprahistória e história, num mundo de ideias ou de valores e num mundo que os reflecte ou os reflectiu até agora, de um modo fugaz e imperfeito, e ao qual convirá impô-los de uma vez, fazendo suceder à história imperfeita, ou à história pura -e simplesmente, uma realidade racional perfeita". O historicismo crociano não é, pois, senão o racionalismo absoluto hegeliano. E, de facto, Croce vê (a justo título) e louva em Hegel, sobretudo, "o ódio contra o abstracto e o imóvel, contra o dever ser que não é, contra o ideal que não é real" (Ensaio sobre Hegel, 1927, p. 171). "Com Hegel-diz ainda Croce (0 carácter da filosofia moderna, p. 41) -Deus -descera definitivamente do céu à terra, e já não havia que buscá-lo fora do mundo, onde apenas se encontraria uma pobre abstracção, forjada pelo espírito do homem
em determinados momentos e para certos fins. Com Hegel adquirira-se a consciência de que o homem é a sua história, a história a única realidade, a história que se faz como liberdade e se pensa como necessidade, e já não é a sucessão caprichosa dos eventos contra a coerência da razão, mas actuação da razão, a qual deve ser qualificada de irracional só quando se despreza e se desconhece a si mesma na história. A este historicismo absoluto, reduziu também a doutrina de Vico, pondo de parte na filosofia de Vico todos os elementos contraditórios ou, que de qualquer forma, não eram compatíveis com tal ponto de vista. Contudo, Croce reprovou a Hegel o ter admitido a possibilidade da natureza como "algo diferente 114 do espírito", o ser tornado pesado e escolástico o seu sistema com o uso e o abuso da forma triádica e, sobretudo, a confusão do nexo dos distintos com a dialéctica dos opostos. Isto é, Hegel confundiu a distinção e a unidade que existe entre as formas e os diversos graus do espírito com a oposição dialéctica que se encontra no âmbito de cada grau (belo e feio na arte, verdadeiro e falso na filosofia, útil e inútil na economia, bem e mal na ética). os opostos condicionam-se mutuamente (não existe belo sem feio, etc.), mas os distintos, isto é, os graus do espírito, condicionam-se só na ordem da sua sucessão. Croce admite quatro destes graus que se reagrupam nas duas formas fundamentais do espírito: a teorética e a prática. Arte e filosofia constituem a forma teorética; economia e ética a forma prática. A arte é conhecimento intuitivo ou -do particular; a filosofia conhecimento lógico ou do universal; o momento económico é a volição do particular; o momento ético é a volição do universal. Cada momento condiciona o momento subsequente, mas não é, por sua vez, condicionado por ele: a filosofia é condicionada pela arte, que lhe fornece com a linguagem o seu meio de expressão, a actividade prática é condicionada pelo conhecimento que a ilumina; e na forma prática, o momento económico, isto é, a força e a eficácia da acção, condiciona o momento ético que dirige a vontade eficaz e praticamente activa para fins universais. A vida do espírito desenvolve-se circularmente no sentido de que torna a percorrer incessantemente os seus momentos ou formas fundamentais; mas torna-os a percorrer enriquecida de 115 cada vez pelo conteúdo das precedentes circulações e sem se repetir nunca. Nada existe fora do espírito que devém e progride incessantemente: nada existe fora da história, que é precisamente este progresso e este devir. § 718. CROCE: A ARTE A arte é o primeiro momento do espírito universal. Croce define-a como visão ou intuição, mas considera-a como -teoria ou contemplação e atribui-a à forma teorética do espírito. "0 artista produz uma
imagem ou fantasma; e aquele que aprecia a arte dirige o olhar para o ponto que o artista lhe indicou, olha pelo respiradouro que aquele lhe abriu e reproduz em si aquela imagem" (Novos ensaios de estética, p. 9). Mas intuição significa "a imagem no seu valor de mera imagem, a pura idealidade da imagem"-, exclui, pois, a distinção entre realidade e irrealidade, que é própria do conhecimento conceptual e filosófico. Este é sempre realista porque tende a estabelecer a realidade contra a irrealidade, ou a rebaixar a irrealidade incluindo-a como momento subordinado na realidade mesma. A arte, ao invés, desfaz-se e morre quando se transforma em reflexão e juízo. Por isso nem sequer é religião ou mito, pois estes incluem também aquela pretensão de realidade que é própria da filosofia. Como forma teorética, a arte não é um acto utilitário e nada tem a ver com o útil, e com o prazer ou com a dor; nem é um acto moral, e por isso exclui de si as valorizações pró116 prias da vida moral. A boa vontade nada tem a ver com a arte. Uma imagem poderá mesmo copiar um acto reprovável, mas enquanto imagem não é nem louvável nem reprovável. O artista, como tal, é sempre moralmente inocente. A sua verdadeira moralidade é intrínseca ao seu escopo ou à sua missão de artista, é o seu -dever para com a arte. A intuição artística não é, todavia, um fantasma desordenado: tem em si um princípio que lhe dá unidade e significado e este princípio é o sentimento. "Não é a ideia, mas sim o sentimento que confere à arte a aérea ligeireza do símbolo: uma aspiração fechada no círculo de uma representação, eis o que é a arte" (Novos ensaios de estética, p. 28). Neste sentido, a arte é sempre intuição lírica: é síntese a priori de sentimento ede imagem, síntese da qual se pode dizer que o sentimento sem a imagem é cego, e a imagem sem o sentimento é vazia. A arte distingue-se, pois, tanto do vão fantasiar como -da passionalidade tumultuosa do sentimento imediato. Recebe do sentimento o seu conteúdo, mas transfigura-o em pura forma, ou seja, em imagens que representam a libertação da imediatez e a catarse do passional. Como intuição, a arte identifica-se com a expressão. Uma intuição sem expressão não é nada: uma fantasia musical só existe quando se concretize nos sons, uma imagem pictórica só o é quando pintada. A expressão artística é intrínseca à intuição e identifica-se com ela. Mas a expressão artística é diversa da expressão técnica que é devida à mera necessidade prática de tomar possível a reprodução da imagem para si e para os outros. A técnica é consti117 túída: por actos práticos, guiados, como todos os actos práticos, por conhecimentos. Como tal, é diferente da intuição, que é pura teoria: e pode-se ser grande artista e mau técnico. É pela técnica que "com a palavra e com a música se unem as escrituras e os fonógrafos; com a pintura, as telas e os retábulos
e as paredes cheias de cores; com a escultura e a arquitectura, as pedras talhadas e entalhadas, o ferro e o bronze e os outros metais fundidos, batidos e diversamente forjados". O corolário fundamental, que decorre da definição da arte corno intuição e expressão, é a identificação entre linguagem e poesia. A expressão primeira e fundamental é, de facto, a linguagem. O homem fala a todo o instante como o poeta, porque, como o poeta, exprime as suas impressões e os seus sentimentos sob a forma da conversação familiar, a qual não está separada por nenhum abismo das formas propriamente estéticas da poesia e da arte em geral. A linguagem não é o sinal convencional das coisas, mas a imagem significante espontaneamente produzida pela fantasia. O sinal mediante o qual o homem comunica com o homem supõe já a imagem e, portanto, a linguagem, a qual é, pois, a criação originária do espírito. A identidade entre poesia e linguagem explica o poder que esta exerce sobre todos os homens: se a poesia fosse uma língua à parte, uma "linguagem dos deuses", os homens nem sequer a entenderiam. Nos últimos escritos, e sobretudo no volume Poesia (1936), Croce insiste cada vez mais no carácter expressivo da arte. A expressão poética, enquanto 118 acalma e transfigura o sentimento, é uma "teorese, um conhecem que une o particular ao universal e, por conseguinte, tem sempre uma marca de universalidade e totalidade. Dela se distingue a expressão sentimental ou imediata, a da prosa, a expressão oratória e a literária. A expressão sentimental ou imediata é uma pseudo-expressão porque não tem carácter teorético e -se determina, não numa verdadeira linguagem, mas em "sons. articulados", que fazem parte integrante do sentimento. Mesmo quando esta expressão dá lugar a livros inteiros ou séries de livros, não se distingue do sentimento e não o supera, mas mantém-se nele sem alcançar o nível da poesia. De facto, na expressão poética o sentimento não preexiste como conteúdo já formado e expresso, mas é criado juntamente com a forma; de modo que o puro sentimento é para a poesia um nada, que é real só como outra forma de vida espiritual, ou seja, como forma prática. A poesia é a morte do sentimento imediato, é "o ocaso do amor, quando toda a realidade se consome em paixão de amor". Reporta o indivíduo ao universal, o finito ao infinito, eleva "sobre a angústia do finito a extensão do infinito" (A poesia, p. 9 segs.). Assim como a expressão do sentimento imediato é "som articulado" mas não palavra, assim também não é palavra a expressão em prosa, já que "só a expressão poética é a verdadeira palavra". A expressão em prosa relaciona-se com a poética, como a filosofia se relaciona com a poesia. Dá lugar a símbolos ou sinais de conceitos, que não são palavras porque não são imagens ou intuições. Também se distingue da expressão poética 119 a expressão oratória, que por isso mesmo também dá lugar, não a palavras, mas a sons articulados, dos quais a actividade prática se serve para suscitar determinados estados de alma. A expressão literária, é "uma das partes da civilização e da educação semelhante à cortesia ou ao galanteio", e consiste na harmonia entre as expressões poéticas e as
não poéticas (passionais, em prosa, oratórias), de modo que estas últimas, no seu curso, embora sem se renegarem a si mesmas, não ofendem a consciência poética e artística (1b., p. 33). O que há de fundamental na expressão poética é o ritmo, "a alma da expressão poética, e, portanto, a expressão poética mesma, a intuição ou ritmo do universo, como o pensamento é a sistematização dele". E o ritmo é próprio de toda a arte: em cada uma delas toma caminhos próprios, que são infinitos e inclassificáveis. Sobre a sua natureza e sobre a sua relação com a expressão, Croce pouco diz, a não ser que o subentenda nas explicações que deu sobre o ritmo e a harmonia na história -da estética desde a antiguidade até hoje. Através das expressões não poéticas e, sobretudo, através da expressão oratória o espírito é reportado ao sentimento, que é a própria vida prática, a partir da qual recomeça um novo ciclo, constante no seu ritmo já assinalado, ritmo que cresce sobre si mesmo, num incessante aperfeiçoamento e enriquecimento (1b., p. 28). Este último desenvolvimento da -estética crociana vai, indubitavelmente, ao encontro da exigência própria da crítica literária de determinar e condicionar melhor a natureza da expressão estética para a dis120 CROCE tinguir facilmente das expressões que não são estéticas. Todavia, o próprio reconhecimento da realidade de tais expressões assinala o acto de decadência e de morte da filosofia do espírito. Se existem formas ou modos de expressão que não são poesia ou arte, a poesia ou arte não são tais enquanto expressão condicionada de uma determinada maneira; e se as condições que fazem da expressão uma expressão poética são a teorese, o conhecer, a universalidade, a totalidade, a infinidade, etc., ou seja, caracteres ou determinações que encontram a sua realidade plena no conhecimento lógico, o carácter específico da expressão poética dissolveu-se e o próprio fundamento da estética crociana foi abandonado. Se o sentimento que se manifesta ou realiza na expressão poética não é o que pertence à forma prática do espírito, mas é criado ou suscitado ad hoc, a passagem da forma prática à arte ou da arte à forma prática torna-se impossível. Se a forma prática e o conhecer lógico possuem por sua conta a sua expressão adequada, mesmo que seja em sons articulados ou símbolos, e não em palavras e língua-,,em, a unidade e a conexão necessária entre estas formas toma-se impossível e elas deixam de ser formas, ou seja, momentos de uma única história espiritual para se tornarem faculdades, uma a par da outra, como na velha psicologia metafísica. A teoria da linguagem como expressão poética suscita a crise de toda a filosofia do espírito de Croce. Do ponto de vista do literato que a acha útil e conveniente para os seus fins, isto pode parecer uma feliz incongruência do filósofo; mas do ponto de vista filosó121 fico, a coisa é, pelo menos, desconcertante. Acrescente-se que a redução (que aquela teoria implica) das expressões não poéticas (filosóficas ou oratórias) a "sons articulados" vem a ter o seu oposto simétrico na tese de alguns epistemologistas contemporâneos (por ex., Ayer) que reduzem a simples "emissões de voz" as expressões não científicas ou, pelo menos, não verificáveis empiricamente, e este elucidativo confronto tomará inútil o juízo.
É, enfim, evidente que a identificação da linguagem com a expressão poética toma impossível entender a unidade da poesia com as outras artes (música, pintura, escultura, etc.); e de facto, para justificar esta unidade, Croce é obrigado a recorrer ao antiquado e, segundo parecia, já inútil conceito de ritmo. Contra a exigência, que se manifesta em muitas ocasiões, de compreender a personalidade do artista (ou do filósofo, ou do político) para poder ajuizar da sua obra, Croce afirma a pura e simples identidade entre a personalidade e a obra. "0 poeta nada mais é do que a sua poesia: afirmação não paradoxal se se considerar que também o filósofo nada mais é do que a sua filosofia e que o estadista nada mais é do que a sua acção e criação política" (La poesia, p. 147). Mas a poesia do poeta ou a filosofia do filósofo, etc., não é, como Croce crê, somente a forma numérica das suas poesias ou dos seus livros escritos. Não é possível entender e determinar o valor de uma obra referindo-se incessantemente àquele objectivo e àquela missão que o artista, ou em geral, o autor reconhece como sendo própria de si e cuja realização procurou no seu tra122 balho. Este aspecto intencional, próprio de toda a autêntica personalidade humana, e que se traduz igualmente nas obras e na vida (a qual, por isso, não pode ser excluída ao julgar-se a obra), não é devidamente considerada nas formulações teóricas e nas críticas literárias de Croce. § 719. CROCE: A CIÊNCIA, O ERRO E A FORMA ECONóMICA A tese fundamental da Lógica (1908) é a identidade entre filosofia e história. Croce defende esta tese mostrando a identidade entre o conceito e o juízo definidor que o expressa, e entre o juízo definidor e o juízo individual ou percepção, que é o juízo sobre a realidade concreta ou fáctica. Mas o juízo sobre a realidade concreta ou fáctica é o juízo histórico: de modo que o verdadeiro pensar, o pensar lógico, é sempre pensar histórico; mais ainda, identifica-se com a história enquanto pensamento. Todavia, este conceito, que acaba por se revelar idêntico ao saber histórico, é, sobretudo, o Conceito: isto é, o próprio Espírito na forma da sua autoconsciência racional. Não tem, pois, nada que ver com os conceitos de que se fala na linguagem comum e na ciência; e estes, segundo Croce, não são verdadeiramente conceitos, mas pseudo-conceitos. ou ficções conceptuais. Para explicar a sua origem e a sua função, Croce recorre à forma prática do espírito e reproduz a doutrina de Mach (§ 785) sobre a função económica dos conceitos científicos. Os pseudo-conceitos 123 servem o interesse prático que provê à conservação do património dos conhecimentos adquiridos. "Embora -diz Croce (Lógica, 1920, p. 23) -, em sentido absoluto tudo se conserve na realidade e nada que tenha sido uma vez feito ou pensado desapareça do seio do cosmos, a conservação de que agora se fala tem a sua utilidade, porque facilita a recordação dos conhecimentos possuídos epermite extraí-los oportunamente do seio do cosmos ou do aparente, mente inconsciente e esquecido. Para este fim se constroem os instrumentos das ficções conceptuais, que tornaram possível, por meio de um nome, despertar e unificar a multidão das representações, ou, pelo menos, indicar com suficiente exactidão qual a
forma -de operação a que convém recorrer para as poder encontrar de novo e reproduzir". Na mesma forma prática tem lugar o erro, que cai fora do conhecimento, que é sempre verdade absoluta. "Aquele que comete um erro não tem nenhum poder para Iorcer, desvirtuar ou corromper a verdade, que é o seu próprio pensamento, o pensamento que opera nele como em todos; ainda mais, logo que toca o pensamento, é tocado por ele: pensa e não erra. Tem apenas o poder prático de passar do pensamento ao facto; e um fazer e não já um pensar é abrir a boca ou emitir sons aos quais não corresponda um pensamento ou, o que é o mesmo, não corresponda um pensamento que tenha valor, precisão, coerência, verdade: sujar uma tela a que não corresponda uma imagem, rimar um soneto combinando frases de outros que simulem a genialidade ausente" (1b., p. 254-55). As ciências, como pseudoconceitos, e os erros de 124 toda a espécie são, por conseguinte, rejeitados em bloco por Croce na forma prática do espírito e considerados para todos os efeitos não como conhecimentos, mas como acções. A forma económica do espírito desempenha na doutrina de Croce a mesma função que a natureza desempenhava na doutrina de Hegel: acolhe em si o irracional, o contingente, o individual, e, portanto, as necessidades, as paixões, etc., numa palavra, tudo o que não pode ser reduzido à expressão poética ou ao saber histórico. O próprio Croce acabou por empregar a palavra "natureza" para indicar o "processo prático dos desejos, dos apetites, da cupidez, das satisfações e insatisfações que surgem, das -emoções que os acompanham, dos prazeres e das dores" (últimos ensaios, 1935, p. 55). Mas acrescenta que se deve conceber a natureza "dentro do espírito, como uma forma particular ou categoria do próprio espírito, e como a mais elementar das formas práticas, aquela em que também a forma prática superior, ou seja, a eticidade, perpetuamente se traduz e se encarna e na qual o próprio pensamento e a fantasia se incorporam, fazendo-se palavra e expressão e passando, neste fazer-se, pelas alternativas de todas as comoções e pelas antíteses do prazer e da dor" (Ib., p. 55). Mas como pode um espírito infinito, ou seja, por definição auto-suficiente, numa categoria sua (por definição, universal) ser necessidade, paixão, individualidade, etc., que são características constitutivas do finito como tal e elementos ou manifestações da sua natureza, é um problema que Croce (como Hegel) nunca considerou. 125 § 720. CROCE: DIREITO E ESTADO COMO ACÇõES ECONóMICAS
-Pertencem à forma económica do espírito além da ciência natural, o erro, o mal, etc., e até o direito e o estado. Já em 1907, num ensaio intitulado Redução da filosofia do direito à filosofia da economia, Croce sustentara esta tese, a qual mais tarde confirma e sistematicamente, desenvolve no terceiro volume da Filosofia do espírito (Filosofia da prática, económica e ética, 1909) e mantém e defende nos escritos posteriores (Ética e política, 1931). Já na primeira destas obras, Croce identifica resolutamente a categoria do direito com a da utilidade e da força. Reconhecia, portanto, a existência de direitos imorais ou até direitos inerentes às associações delituosas. "0 direito de uma associação a delinquir - dizia (Rid., et., ed., 1926, p. 40) - encontra a oposição do direito de uma sociedade mais vasta; submeter-se-á a este segundo, como ao mais forte; submeter-se-á merecidamente, como o não moral ao moral: mas vive como direito e está submetido como direito". Todavia, o direito não é imoral mas amoral, isto é, precede a vida moral e é independente dela. É força enquanto acção eficaz que atinge um determinado fim útil; e é condição da própria moral, enquanto esta não pode deixar de traduzir-se em acção e, por conseguinte, em utilidade e força. Estas teses fundamentais foram sempre mantidas firmemente por Croce. Portanto, o estado é considerado por ele nada mais do que "um processo de acções úteis de um grupo de indivíduos ou entre componentes desse 126 grupo" (Ética e pol., p. 216). As leis, as instituições o os costumes em que se concretiza a vida do estado não são mais do que "acções dos indivíduos, vontades que eles actuam e mantêm firmemente, concernentes a certas directivas mais ou menos gerais, que se considera útil promover". Neste sentido o estado realiza-se inteiramente no governo e não se distingue dele (1b., p. 218). A vida do estado é unia relação dialéctica de força e consenso, autoridade e liberdade. "Todo o consenso é forçado, mais ou menos forçado, mas forçado, isto é tal que surge sob a "força" de certos factos e, por conseguinte, "condicionado" : se a condição de facto muda, o consenso, como é natural, é retirado, desencadeia-se o debate e a luta, e um novo consenso se estabelece sob nova condição. Não há formação política que se subtraia a esta alternativa: no mais liberal dos estados, como na mais opressiva das tiranias, existe sempre o consenso, e é sempre forçado, condicionado e mutável. Se assim não fosse, não haveria nem o Estado nem a vida do Estado" (Ib., p. 221). O erro da concepção ética do estado, tal como, por exemplo, se encontra em Hegel, consiste em ter concebido a vida moral numa forma da vida política e do estado inadequada para ela. A vida moral, ao invés, não se deixa reduzir à vida política mas transborda dela e contribui para desfazer e refazer perpetuamente a vida do estado. É igualmente erróneo, segundo Croce, o democratismo que se baseia no pressuposto da igualdade dos indivíduos, igualdade que juntamente com a "liberdade" e a "fraternidade" são palavras vazias que merecem todos os vitupérios e cuja verdadeira 127 origem reside "nos esquemas da matemática e da mecânica, inaptos a compreender o ser vàvente" (1b., p. 226).
Croce vê o antecedente histórico da sua doutrina em Maquiavelli, que descobriu "a necessidade e autonomia da moral, da política que está para além, ou, antes, aquém -do bem e do mal ' que tem as suas leis, contra as quais é inútil revoltarmo-nos; que não admite exorcismos nem ser expulsa do mundo com água benta" (1b., p. 251). E identifica a sua doutrina política com o liberalismo, não por ser uma doutrina política especial, mas porque é "uma concepção total do mundo e da realidade". O liberalismo encontra o seu centro na ideia da dialéctica, ou seja, do desenvolvimento que "mercê da diversidade e da oposição das forças espirituais aumenta e nobilita continuamente a vida e lhe confere o seu único e total significado". Ao liberalismo, como concepção imanentista, contrapõem-se as concepções fundadas no transcendente, e pouco importa que este seja entendido no sentido religioso dos ultra-montanos ou no sentido materialista dos socialistas e dos comunistas: num e noutro caso, o ideal transcendente que se procura traduzir em factos não pode deixar de ser simplesmente imposto à humanidade. Esta concepção pode lar lugar, não a revoluções, mas a reacções; a ela se devem todas as crises e doenças nas quais se verifica uma negação ou suspensão do princípio de liberdade. A superioridade da concepção liberal resulta evidente pelo facto de que é capaz de justificar teoricamente e historicamente a conceção oposta. Com efeito, só ela pode fazer justiça 128 aos adversários da liberdade e aos períodos históricos em que a liberdade é amarfanhada ou suprimida. "Presta, pois, justiça também aos primeiros (a saber, "aos tempos de reacção e aos homens das reacções"), não ao coração da humanidade, mas à mente liberal, não já enquanto fundamento de vida e de luta prática, mas enquanto juízo histórico que considera as suspensões de liberdade e os períodos reaccionários como doenças e crises de crescimento, como incidentes e meios da mesma eterna vida da liberdade, e portanto entende o papel que desempenharam e a obra útil que realizaram (1b., p. 290). O liberalismo está, pois, ao mesmo tempo, fora da luta e dentro dela; fora da luta, como juízo histórico o concepção dialéctica da realidade; dentro da luta como "fundamento de vida e de luta prática". Pode-se perguntar o que é o liberalismo neste último aspecto, já que, evidentemente, enquanto luta e nega a legitimidade do seu contrário, não pode, ao mesmo tempo, contê-lo em si e justificá-lo. É então precisamente, "vida e luta prática": economia, utilidade, força que se contrapõe a outras forças. Que é que o justifica então enquanto tal? Se, enquanto se justiça a si mesmo, justifica também os seus opostos e é concepção dialéctico-histórica (conhecimento puro, não acção), enquanto luta e age, nada, evidentemente, o pode justificar: é, como os seus opostos, uma manifestação contingente da forma económica. O liberalismo, como Croce o entende, ou justifica tudo ou nada justifica. O pensamento político de Croce permanece encerrado nesta antinomia que o paralisa e que jaz, como se verá, no fundo da 129 sua concepção da história. Perante a democracia, que é um liberalismo armado que pretende reforçar e garantir a liberdade, nos seus modos particulares e nas suas formas concretas e históricas, o liberalismo de Croce continua a ser abstracto e indefeso, e, por conseguinte, inoperante. A própria obra do homem Croce, o precioso testemunho que prestou à liberdade, não se deixa inscrever na sua doutrina nem justificar por ela.
§ 721. CROCE: HISTóRIA E FILOSOFIA A identificação entre história e filosofia exposta pela primeira vez na Lógica (1908), foi o tema fundamental da filosofia crociana. "Se o juízo - diz Croce (A história como pensamento e como acção, 1938, p. 19)-,é relação entre sujeito e predicado, o sujeito, ou seja o facto, qualquer que seja, que se julga, é sempre um facto histórico, algo que devêm, um processo em curso, porque factos imóveis não se encontram nem se concebem no mundo da realidade". É juízo histórico a mais óbvia percepção judicativa, por exemplo a de uma pedra: "porque a pedra é, na realidade, um processo em curso, que resiste às forças de desagregação ou cede só pouco a pouco, e o meu juízo refere-se a um aspecto da sua história". Nenhuma distinção é possível entre factos históricos e factos não históricos. Um dos mais óbvios e dificílimos problemas da historiografia, o da distinção entre factos históricos (ou seja, signi130 ficativos) e factos não históricos (insignificantes ou banais) e do critério para os distinguir ou seleccionar é totalmente abolido e eliminado por Croce. Toda a história é história contemporânea, "porque, por remotos ou remotíssimos que pareçam cronologicamente os factos que entram nela, ela é, na realidade, história sempre referida à necessidade e à situação presente, na qual os factos propagam as suas vibrações" (1b., p. 5). As fontes da história (documentos ou relíquias) não têm outro fim senão o de estimular e formar no historiador estados de alma que já existem nele. "0 homem é um microcosmos, não em sentido naturalista, mas em sentido histórico, um compêndio da história universal" (1b., p. 6). A necessidade e o estado de alma constituem, no entanto, apenas a matéria necessária da história; o conhecimento histórico não pode ser a sua reprodução passiva, mas deve superar a vida vivida para a representar em forma de conhecimento. Devido a esta transfiguração, a história perde o seu aspecto passional e torna-se uma visão necessária, logicamente necessária da realidade. Nela, já não têm lugar as antíteses que se defrontam na vontade, e no sentimento já não existem factos bons e factos maus, mas factos sempre bons, quando sejam entendidos no seu carácter concreto, isto é, na sua íntima racionalidade. "A história nunca é justiceira, mas justifica sempre; e só poderia tornar-se justiceira se fosse injusta, ou seja, se confundisse o pensamento com a vida e escolhesse para juízo do pensamento as atracções e as repulsões do pensamento" (Teoria e história da historiografia, 1917, p. 77). É devido 131 a esta sua natureza que a história pode libertar o homem do peso opressivo do passado. Num certo sentido, o homem é o seu próprio passado, que o circunda e o comprime de todos os lados. O pensamento histórico converte a relação com o passado em conhecimento, redu-lo a problema mental e a verdade, que vale como premissa para a
acção futura. "Só o juízo histórico, que liberta o espírito da compreensão do passado e, puro como é e alheio às partes em conflito, guardião contra os seus ímpetos e os seus engodos, mantém a sua neutralidade e procura unicamente fornecer a luz que se lhe pede; só ele toma possível a formação do propósito prático que abre a vida ao desenvolver-se da acção e, com o processo -da acção, às oposições, entre as quais ela deve actuar, do bem e do mal, do útil e do nocivo, do belo e do feio, do verdadeiro e do falso, e, em suma, do valor e -do desvalor. (A história, p. 35). Talvez pareça assim, que o sentimento e a acção cairiam fora da história, que é conhecimento racional perfeito. Pelo contrário, caem, segundo Croce, somente fora do conhecimento, no domínio da forma prática do espírito. As angústias, as esperanças, as lutas, etc., todos os impulsos dos homens, pertencem à consciência moral, são "história. no seu fazer-se". Mas seja como acção vivida, seja como conhecimento lógico, a história é sempre racionalidade plena, progresso. O chamado elemento irracional da história é constituído pelas manifestações da vitalidade: vitalidade que não é decerto a civilidade ou a moralidade, mas condição e premissa necessária de uma e de outra; e como tal, plenamente racional (A his132 tória, p. 160-61). Quanto à decadência, é um conceito aplicável só a determinadas obras ou ideais; "mas em sentido absoluto e na história, nunca existe decadência que não seja ao mesmo tempo formação ou preparação de nova vida e, portanto, progresso" (1b., p. 38). Nem poderia ser de outro modo porque o verdadeiro sujeito -da história é, sempre, em última análise, o espírito infinito. A -história não é "a obra impotente, e sempre ininterrupta do indivíduo empírico e irreal, mas a obra daquele indivíduo verdadeiramente real, que é o espírito no seu eterno individualizar-se. Por isso ela não tem de defrontar nenhum adversário, pois todo o adversário é também o seu súbdito, isto é, um dos aspectos daquele dialectismo que constitui o seu ser íntimo" (Teoria e história da historiografia, p. 87). Todavia, nos últimos escritos, sob o impulso das vicissitudes históricas contemporâneas que se prestam mal a confirmar a perfeita racionalidade da história e a sua total justificação, Croce introduz uma distinção que deveria evitar que aquela tese servisse para a cínica aceitação do facto consumado ou do êxito. Quer dizer, distinguiu a racionalidade da história da racionalidade do imperativo moral. Tudo na história é racional porque tudo nela "tem a sua razão de sem. Mas racional é também o imperativo moral, ou seja, "aquilo que a cada um de nós, nas condições determinadas em que é colocado, a consciência moral manda fazem (A história, p. 199). Ora, o imperativo moral neste sentido é próprio do dever ser que pretende dar lições ao ser, contra o qual se encarniçou sempre o desprezo de Hegel e 133 do próprio Croce. E este reconhecimento de um "racional" diferente da racionalidade necessária -da história, tem o mesmo efeito que, no domínio da estética, tinha o
reconhecimento de formas ou modos de expressão diferentes dos da expressão poética: a saber, o de tomar impossível a unidade e a circularidade da vi-da espiritual e destruir o próprio pressuposto da filosofia do espírito. De facto, a passagem da forma teorética à forma prática (do pensamento à acção) justifica-se somente no sentido -de que a primeira deve iluminar e dirigir a segunda, que seria cega e irracional sem ela. Mas se todo o conhecimento é história, se toda a história é justificação do que aconteceu e acontece, a única atitude legítima, a um tempo teorética e prática, é a de quem vê em toda a decadência um progresso, em todo o mal um bem e na obra do diabo a própria obra de Deus. Tal foi, de facto, sempre a atitude de Hegel e tal continua a ser a atitude de Croce filósofo. Apelar então para o imperativo moral como para algo racional de outro género, significa querer dar, como indivíduo, lições à história, como homem lições a Deus. Por outras palavras, traduzir, não um racional mas um irracional, e restaurar a desprestigiada e ridicularizada situação do iluminismo. A filosofia de Croce orienta-se, pois, para uma contradição que não é de modo algum dialéctica porque carece, desesperadamente, de solução. Por outro lado, Croce insiste no conceito da história como visão divina do mundo, completa e total e no seu conjunto imediata, à qual não se pode reportar o progresso, já que só se pode referir este 134 ao nosso conceito das categorias e não às categorias mesmas (A história, p. 25). E por esta visão é levado a considerar as dúvidas e as desconfianças que às vezes surgem, com respeito ao progresso, como impulsos sentimentais e cegos que devem ser banidos pela reflexão histórica (0 progresso como estado de alma e o progresso como conceito filosófico, "Critica", Julho de 1948). Por outro lado, insiste na liberdade e na responsabilidade do indivíduo frente às suas tarefas e, por conseguinte, na obrigatoriedade moral de atitudes que não sejam a pura e simples aceitação do facto consumado. Num ensaio de 1929 (últimos ensaios, 1935, p. 295 segs.) exprimiu este contraste equiparando-o ao que existe entre a graça e o livre arbítrio; e viu a solução do mesmo no "alternado operar do pensamento e da acção, da teoria a da práxis, de duas categorias do espírito e da realidade, que só o são uma mediante a outra, e no seu distinguir-se ou pôr-se se resolvem naquela ú nica unidade concebível que é o eterno unificar-se". Mas é precisamente este eterno unificar-se que resulta impossível. Não se trata, com efeito, de simples proposições ou posições lógicas, mas de atitudes humanas; e a atitude de quem tudo justifica, exclui e condena a atitude de quem se sente responsável pelos ideais e pelas acções que livremente escolheu. A identidade entre filosofia e história conduz à negação de toda a filosofia que não se reduza à consideração da história e dos seus problemas, e à definição da filosofia como "metodologia da historiografia". O conceito de uma filosofia que se situe 135
para além e fora da história ou que se ocupe de problemas universais eternos é "a ideia da filosofia". Ela só pode dar origem a discussões intermináveis, próprias dos filósofos de profissão, mas completamente fora do círculo vital do pensamento. "Qualquer problema filosófico resolve-se unicamente quando é posto e tratado com referência aos factos que o fizeram nascer e que cumpre entender para o entendem (A história, p. 144). A unidade do problema com a sua solução exclui que haja problemas insolúveis. A solução elimina o problema e novos problemas são postos ou impostos pela vida e pela acção. À filosofia não é dado pensar os universais sem os individualizar e, portanto, sem os tomar históricos, como não é possível à historiografia conhecer a individualidade dos factos sem os universalizar. Em nenhum sentido se pode distinguir historiografia e filosofia. A filosofia como tal está morta, e ressurge na historiografia. A filosofia de Croce constitui a última e decisiva crise do idealismo romântico. Este idealismo que se apresentava em Gentile (como em Hegel) pacificado e feliz na consciência da perfeita entidade entre finito e infinito, apresenta-se em Croce, especialmente nas suas últimas manifestações, como infelicidade e contraste de posições inconciliáveis. As exigências e os problemas que ele procurou fazer seus estilhaçam o quadro das categorias prévias e revoltam-se contra elas. Mas precisamente por este aspecto a obra de Croce é extremamente significativa para a filosofia contemporâneaEsta obra exerceu uma grande influência sobre 136 a cultura italiana do período compreendido entre as duas guerras. Actuou no mesmo sentido que a filosofia de Gentile, apesar da inimizade que se criou entre os dois filósofos e da diversidade das suas doutrinas. Contudo, não deu lugar, no campo filosófico, a nenhum desenvolvimento original ou enriquecimento das suas teses fundamentais; em troca, determinou novos rumos no campo da crítica literária e artística, especialmente em Itália, apesar de tal influência estar actualmente a desaparecer da cultura italiana. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 709. Sobre Vera: **R0SENK1LANZ, Hegels Naturphilosophie und die Bearbeitung derselben durch den italienischen Philosoph A. V., Rerlim, 1868; R. MARIANO; A.V., Saggio biografi-co, Nápoles, 1887; G. GENTILE, Origini de" fil. contemp. in Italia, M, Messina, 1921. Sobre Spaventa: V. FAzIO-ALLMAYER, in "Giorn. critico della fil. italiana", 1920; G. GENTILE, Origini, ete. (cit.); IOD., in "Annali della ScuoIa Normale Superiore di Pisa", 1934; VicoRiTA, B.S., Nápoles, 1938 (com bibliog.).
Estã em curso a edição dm obras completas de Gentile, ed. Sansoni de Florença. Bibliog. de V. A. BELLEzzA, Bibliogr. degli scritti di G.G., vol. IIII de G.G., Ia vita e il p~ero, ao cuidado da fundação "Gentile", Florença, 1950. Sobre Gentile: E. CM0CCHETT1; La fil. di G.G., Milão, 1922; V. LA VIA, L'idealismo attuale di G.G., Trani, 1925; R. W. HOLMES; The ideali~ of G.G., Nova Iorque, 1927; E. Paci, Pensicro, exist"za, valore, Milão, 1940; p. 1-14; H. S. HARRIs, The Social Philo&ophy of G.G., Urbana, 111, 1960. 137 os volumes publicados pela "Fundação G.G. para os estudos filosóficos" e inütulados: G.G. La i>ita e il pensiero contêm numerosos escritos (interpretativos e evocativos) sobre diversos aspectos da filosofia de G.G. O último destes volumes é o X, saído em 1962. § 711. Um desenvolvimento do **aetuah@'smo gentiliano no sentido de um espiritualismo religioso foi tentado por A. CARLINI nos esoritos: La vita dello spirito, Florença, 1921; La relig"ità. 138 vi O NEO-CRITICISMO § 722. CARACTERES DO NEO-CRITICISMO A filosofia passou a ser entendida e aplicada, desde o neo-criticismo, como reflexão crítica sobre a ciência (ou sobre qualquer outra forma da experiência humana) tentando encontrar na ciência (ou, em geral, nessa outra forma de experiência) as condições que a tornam válida. O neo-criticismo admite assim a validade da ciência, do mesmo modo que aceita a validade do mundo moral e estético. Mas o criticismo é contrário à afirmação do carácter absoluto ou metafísico da verdade científica, defendido pelo positivismo; e é, por outro lado, contrário a qualquer tipo de metafísica ou de integração metafísico-religiosa do saber científico, segundo as vias do espiritualismo e do idealismo. A metafísica 139 da matéria e a metafísica do espírito estão igualmente afastadas dos interesses do neocriticismo e constituem, até os alvos das suas atitudes polémicas. Isto pressupõe a defesa da distinção kantiana entre a validade da ciência (da moral ou da arte) o as condições de facto empíricas, psicológicas ou subjectivas que se encontram ligadas à ciência, à moralidade ou à arte. Assim acontece com o neo-criticismo, se bem que esteja impregnado pela polémica contra o empirismo e o psicologismo, que reduzem a validade do conhecer (ou da moralidade ou da arte) às condições em que estas actividades se manifestam no homem. O "retorno a Kant" é portanto o retorno ao ensinamento fundamental do filósofo de Kõnigsberg, isto é, à
exigência de não reduzir a filosofia à psicologia, à fisiologia, à metafísica ou à teologia, mas sim de restituí-Ia à sua tarefa de análise das condições de validade do mundo do homem. § 723. ORIGENS DO NEO-CRITICISMO NA ALEMANHA O retorno a Kant verificou-se na Alemanha pouco depois dos meados do séc. XIX. O primeiro impulso partiu dos escritos de **HeIraholtz, do aparecimento da monografia de Kuno Fischer sobre Kant (1860) e da obra de Zeller Sobre a significação e o fim da gnoseologia (1862). Em 1865, Otto Uebmann (1840-1912) publicou o livro Kant e os seus epígonos, em que traçava a análise de cada uma das quatro orientações da filosofia alemã post-kantiana 140 (idealismo de Fichte, de Schelling e de Hegel; realismo de Herbert, empirismo de Fries e transcendentalismo de Schopenhauer) com o lema: "Deve, pois, voltar-se a Kant". O próprio Liebmann contribuiu com sucessivos escritos (Análise da realidade, 1876; Pensamentos e factos, 1882-1904) para este retorno a Kant, entendido por ele como criação de uma metafísica crítica que tomasse como fundamento o princípio kantiano da dependência do objecto relativamente ao sujeito e admitisse, em consequência, apenas a consciência como facto originário. A primeira manifestação do neo-criticismo na Alemanha foi a de Hermann Helmholtz (1821-1894), que chegou a uma interpretação fisiológica do kantismo partindo de exigências e de factos inerentes às duas ciências que cultivava: a fisiologia e a física (Sobre a vista humana, 1855; Teoria das sensações sonoras, 1863; Manual de óptica fisiológica, 1856-66-, Os factos da percepção, 1879). Dado que os efeitos da luz e do som sobre o homem dependem do modo de reacção do seu sistema nervoso, Helnlholtz considera, as sensações como os sinais produzidos nos nossos órgãos dos sentidos por acção das forças externas. Os sinais não são cópias nem reproduzem os caracteres dos objectos externos; mas, contudo, estão relacionados com eles. A relação consiste em que o mesmo objecto, nas mesmas circunstâncias, provoca o aparecimento do mesmo sinal na consciência. Esta relação permite-nos comprovar as leis dos processos externos, isto é, a sucessão regular das causas e dos efeitos, o que basta para provar que as leis do mundo real se reflectem no mundo dos sinais e, 141 por conseguinte, para fazer deste último um conhecimento verdadeiro. Helmholtz aceita a doutrina kantiana do carácter transcendental do espaço e do tempo mas nega que tenham carácter transcendental os axiomas da geometria. A existência das geometrias nãoeuclideanas demonstra que os espaços matemáticos, mesmo sendo intuíveis, não se baseiam em axiomas transcendentais porque são construções empíricas que têm como fundamento comum a intuição pura do espaço. Segundo Helmholtz, idealismo e realismo são puras hipóteses que é impossível refutar ou provar de modo decisivo. O único facto independente de qualquer hipótese é a regularidade dos fenómenos e, por isso, o único carácter essencial da realidade é a lei. O mérito imortal de Kant foi, precisamente, o ter
demonstrado que o princípio da causalidade, no qual toda a lei se funda, é uma noção a priori. 'Na mesma linha se move Frederico Alberto Lange (1828-75), conhecido principalmente pela sua História do materialismo (1866, enriquecida e aumentada na 2.a ed. de 1873), que constitui uma tentativa para chegar ao criticismo através da crítica do materialismo. Com efeito, reconhecida a tese fundamental do materialismo, isto é, a estreita conexão ida actividade espiritual com o organismo fisiológico, é preciso ainda reconhecer, segundo Lange, que este mesmo organismo, como todo o mundo corpóreo, do qual faz parte, só é conhecido por nós através das imagens que produz. As conclusões. fundamentais da teoria do conhecimento são, por conseguinte, três: "l.a -o mundo sensível é um pro142 duto da nossa organização. 2.1 -Os nossos órgãos visíveis (corpóreos) são, como as restantes partes do mundo fenoménico, somente imagens de um objecto desconhecido. 3 a-o fundamento transcendente da nossa organização é, pois, desconhecido para nós, do mesmo modo que as coisas que actuam sobre ela. Só se nos depara o produto de dois factores: o nosso organismo e o objecto transcendente (Gesch. des Mater., 11, 7 a ed., 1902, p. 423). Uísto resulta que "o reduzir todo o elemento psíquico ao mecanismo do cérebro e dos nervos (como faz o materialismo) é o caminho mais seguro para chegar a admitir que aqui termina o horizonte do nosso saber sem alcançar o espírito em si" (Ib., p. 431). Nesse sentido é aceite a tese kantiana de que toda a realidade, apesar da sua rígida concatenação causal, não é mais que fenómeno. A coisa em si não é mais que um conceito limitativo, algo inteiramente problemático, que se admite corno causa dos fenómenos, mas da qual nada se pode afirmar positivamente (Ib., p. 49). Lange crê que o verdadeiro Kant é o da Crítica da Razão Pura e que a tentativa de Kant de sair, como fez nas outras obras, dos limites do fenómeno para alcançar o mundo noménico é impossível, Os próprios valores morais e estéticos têm a sua raiz no mundo dos fenómenos e carecem de significado fora dele (1b., p. 60). Existe, certamente, um caminho para ir mais além dos fenómenos, mas não e o do saber positivo: é o caminho da livre criação poética. O homem tem, certamente, necessidade de completar a realidade fenoménica, com um mundo ideal criado por ele próprio. Mas a livre criação 143 deste mundo não pode tomar a forma enganadora de uma ciência demonstrativa; e se a toma, o materialismo ali está para destruir o valor de toda a especulação audaz e para manter a razão dentro dos limites do que é real e demonstrável (1b., p. 45). Deste ponto de vista, o valor da religião não consiste no seu conteúdo teórico, mas no processo espiritual de elevação por sobre o real e na criação de ,uma pátria espiritual que ela determina. "Acostumemo-nos - diz Lange (1b., p. 548) - a atribuir ao princípio da ideia criadora em si, deixando de lado toda a sua conformidade com o conhecimento histórico e científico e também toda a falsidade deste conhecimento, um valor superior àquele que se lhe tem atribuído até agora: acostumemo-nos a ver no mundo das ideias uma representação figurada da verdade na sua totalidade, tão indispensável para o progresso humano como os conhecimentos do intelecto, e procuremos medir a maior ou menor importância de cada ideia com princípios éticos ou estéticos". Uma redução análoga da metafísica à actividade prática ou fantástica, valiosa do ponto de
vista humano mas não do ponto de vista científico, é defendida por Luís RiehI (18441924), autor, entre outras, de uma vasta obra intitulada O criticismo filosófico e a sua significação para a ciência positiva (1876-87) e de um Guia para a filosofia contemporânea (1903). Riehl acentua em sentido realista a interpretação fisiológica do kantismo, que recebe de Helmholtz. A ;sensação é uma modificação da consciência, produzida pela acção da coisa em si: como tal, não 144 revela nada sobre a natureza da coisa em si, mas permite afirmar a sua existência. o facto de que a uma sensação sucede outra (por ex., a passagem do azul ao roxo) implica uma alteração produzida no objecto em si, ainda que não permita decidir em que consiste. A realidade do objecto em si não é excluída pelo facto da consciência ter simplesmente uma relação com ele. "Não contradiz nenhum conceito do nosso pensamento supor que o que se converte em objecto, ao entrar na relação que constitui a ciência, exista também independentemente desta relação. MaIs ainda, esta afirmação está necessariamente unida à ideia de relação: o que não existe não pode entrar em nenhuma relação" (Des phil. Kritizismus, 11, 11, p. 142). O objecto em si só pode ser caracterizado dizendo-se que é aquele que fica da nossa representação total dos fenómenos depois de ter eliminado dela todos os elementos subjectivos: este resíduo objectivo não é mais do que a regularidade dos próprios fenómenos e, por isso, como Helmholtz, reconhece Rielid na lei o único carácter da realidade em si (Ib., p. 173). Por outro lado, a mesma função sintética do sujeito que unifica e ordena os dados sensíveis deve ter a sua contrapartida objectiva na realidade. Com efeito, se não houvesse nada que correspondesse à unidade lógica do pensamento, esta unidade seria inaplicável; por isso ela é somente o reflexo da unidade na natureza e no pensamento (1b., 11, 1, págs. 219 e segs.; 11, R, págs. 61 e segs.). É evidente que, deste ponto de vista, a oposição entre sujeito e obj=to perio o seu carácter originário: o eu e o não-eu só são 145 diferentes funcionalmente, enquanto que a consciência originária é indiferente (1b., 11, 1, págs. 65 e segs.). Só mente a elaboração da experiência que o pensamento realiza mediante as suas leis a priori estabelece tal oposição. E esta elaboração tem sempre carácter social: "A experiência-diz Rielil (1b., 11, IL p. 64) -não é um conceito psicológico-individual, mas um conceito social". A consciência universal consi** 'ituida pelas categorias que condicionam a elaboração da experiência, não é mais do que w sistema das coordenadas intelectuais, relativamente às quais eu penso todo o conhecimento". A possibilidade de uma metafísica como conhecimento hipotético, fundada na experiência da coisa em si, é defendida também em artigos e ensaios por Eduardo Zeller (1814-1908), o grande historiador da filosofia grega que, como dissemos, foi um dos primeiros defensores do retorno a Kant na Alemanha. § 724. RENOUVIER: A FILOSOFIA CRíTICA Na mesma altura do ressurgimento do criticismo na Alemanha, o retorno a Kant era defendido em França por Charles Renouvier (1815-1903), que publicou entre 1854 e 1864 os quatro volumes dos seus Ensaios de crítica geral (Análise geral do conhecimento, 1854;
Psicologia racional, 1859; Princípios da natureza, 1864; Introdução à filosofia analítica da história, 1864). A esta, que é a sua obra principal, se,-u-ir-se-ão: A ciência da moral, 1869; Ucronia, 1876; Ensaio de unia classificação sistemática 146 das doutrinas filosóficas, 1885-6; A nova monadologia (de colaboração com L. Prat), 1899; Os dilemas da metafísica pura, 1903; História e solução dos problemas metafísicos, 1901; O personalismo, 1901. Renouvier declara explicitamente que aspira a continuar e levar a termo a obra de Kant, e que aceita do positivismo a redução do conhecimento às leis dos fenómenos porque esta redução concorda com o método de Kant,(Essais, 1, 1854, págs. X-XI). Por conseguinte, a filosofia tem por objecto estabelecer as -leis gerais e os limites do conhecimento (Ib., p. 363); e Renouvier considera idolatria e fetichismo filosófico toda a metafísica, descobrindo o seu princípio na distinção entre Tealidade e representação. Como tantos outros kantianos e neo-kantianos, crê que o princípio fundamental do criticismo é a redução de toda a realidade à representação (Ib., p. 42). A primeira consequência deste princípio é a eliminação da coisa ' em si e de todo o absoluto. Enquanto representação a realidade não é mais do que fenómeno. Mas o fenómeno é essencialmente relatividade; só existe em relação com outros fenómenos, dos quais é parte ou nos quais entra como parte de um todo. Tudo o que se pode representar e definir é relativo e a afirmação de uma coisa em si ou de um absoluto é intrinsecamente contraditória, porque pretende estabelecer ou definir mediante relações o que está fora de toda a relação (1b., p. 50). Na relatividade dos fenómenos baseia-se a lei, que Renouvier define como "um fenómeno composto, produzido e reproduzido de modo constante, e re147 presentado como a relação comum das relações de outros fenómenos diferentes" (Ib., p. 54). Deste ponto de vista, todos os seres são "conjuntos de fenómenos unidos por funções determinadas". Assim, a consciência é uma função especial dos fenómenos que se manifestam nessa esfera representada que é o indivíduo orgânico (Ib., p. 83). O saber e a ciência tendem a estabelecer as relações entre os fenómenos e entre as leis, procurando uma síntese única cujos limites corresponde à crítica estabelecer (1b., págs. 86 e segs.). Todo o saber se baseia, portanto, na categoria de relação, da qual são determinações e especificações as outras categorias do conhecimento: o número, a extensão, a duração, a qualidade, o devir, a força, a finalidade, a personalidade. Esta última é a própria categoria da relação na sua forma vivente e activa. A introdução da personalidade (ou consciência) e da finalidade entre as categorias, constitui o aspecto mais original da doutrina de Renouvier relativamente à de Kant. No que se refere à finalidade, Renouvier observa que a lei do fim não é menos essencial para a constituição do espírito humano do que a lei da causalidade, e que o homem que a impõe em todos os seus actos e a aplica para dirigir todos os seus juízos é o mesmo e único homem que considera causas e qualidades (Essais, 1, p. 407). Quanto à categoria da personalidade, Kant excluiu-a das categorias; introduziu-a depois como eu pensante,
abrindo assim caminho ao idealismo; na realidade, da é uma forma dos nossos juízos, tal como as outras categorias. "Deverá a consciência, pelo facto 148 de se identificar com o filósofo, impedir este de lhe dedicar uma parte na obra que ela reivindica totalmente? O objecto da crítica é precisamente estudar o eu como algo distinto do eu e como uma entre outras coisas representadas" (Ib., p. 398). O conceito do saber como relação e sistema de relações leva Renouvier a considerar a possibiEdade de um sistema total, de uma síntese completa das relações, a qual seria o mundo. Renouvier elimina as antinomias enumeradas por Kant: a propósito desta ideia, eliminando dela o carácter de infinidade, ou seja, aceitando sem restrições as teses das antinomias kantianas e destruindo as antíteses. O infinito é sempre intrinsecamente contraditório quando se considera real: pode ser admitido no campo do possível, não no da realidade fenoménica. É contraditório admitir um todo infinito **d&o, já que 3 que é dado possui, necessariamente, as determinações que fazem dele algo finito. O mundo real é um todo finito e as teses das antinomias kantianas são verdadeiras. É necessário, pois, admitir que o mundo é limitado, no espaço e no tempo, que a sua divislibilidade tem um termo e que depende ele uma ou mais causas, que não são efeitos, mas causas primeiras. "0 mundo-diz Renouvier (Ib., 1, pág-s. 282-3) depende de uma ou mais causas que não são efeitos, mas actos antecedentes: tende para um ou mais fins, cujos meios adquiridos não se prolongam interminavelmente no passado nem no futuro; e e~ fins e estas causas estão n&e, de algum modo, já que todo o devir implica força e paixão; e como todo o fenómeno supõe a representação e toda a 149 representação supõe a consciência, o mundo compreende uma ou mais consciências que se aplicam ao seu conteúdo". Esta última alternativa refere-se ao problema de Deus e à relação entre o inundo e Deus. Renouvier exclui a hipótese da criação, que reduz a consciência primeira a um ídolo indefinível: "unia força que produza a força, um amor que ame o amor, um pensamento que pense o pensamento". Fica a hipótese da emanação; mas, nesta hipótese, ou o uno originário se considera em sentido absoluto e, portanto, como algo que exclui toda a pluralidade, sendo incapaz de a explicar, ou se considera como uma verdadeira consciência, como uma força e uma paixão dirigida a outros actos e a outros estados e, neste caso, a pluralidade, e precisamente a pluralidade das pessoas, é-lhe já intrínseca. A hipótese da emanação coincide pois, substancialmente, com a da pluralidade múltipla, o todo, pela única razão de que o é, para Reinouvier, o dado originário. "Nós subsfituímos o Uno puro, ídolo dos metafísicos, pela unidade múltipla, a todo, pela única razão de que o mundo, actual e originariamente, é uma síntese determinada, não, uma tese **abstraci 'a" (Essais, 1, p. 357). Renouvier sustenta que isto é tudo quanto se pode dizer sobre síntese total do mundo e que to-aos os
outros problemas que a metafísica põe sobre as suas ulteriores determinações não podem encontrar resposta, porque não têm um sentido definível nos limites do conhecimento, humano. Na Nova monadologia (1899) volta a propor, não obstante, tais problemas e, reafirmando substancial150 mente -as teses dos Ensaios, chega a renovar a concepção cíclica do mundo tal como se encontra nos Padres da Igreja grega, especialmente em Orígenes (§ 146). Renouvier aceita explicitamente (Nova monad., p. 505) a tese de uma pluralidade de mundos sucessivos, nos quais a passagem de um mundo para outro é determinada pelo uso que o homem faz da liberdade em cada um deles; e pretende corrigir a tese de Orígenes no sentido de que "o fim alcançado volta a unir-se com o princípio, não na indistinção das almas mas na humanidade perfeita, que é a sociedade humana perfeita". Este fazer reviver as velhas concepções metafísicas, que estão em oposição com o delineamento crítico da filosofia de Renouvier, é provocado pela necessidade de fazer depender o destino do mundo da acção da liberdade humana. § 725. RENOUVIER: O CONCEITO DA HISTÓRIA Esta necessidade domina o seu conceito da história. Podem reconhecer-se na história duas espécies de leis: em primeiro lugar as leis empíricas, estabelecidas pela observação, e contingentes na sua aplicação; em segundo lugar, as leis a priori, que deveriam depender de uma única dei e originar o desenvolvimento do destino humano em todos os aspectos do pensamento e da acção de todos os povos do mundo. "As leis empíricas pressupõem o livre arbítrio humano e a não predeterminação dos grandes acontecimentos, pêlo menos do ponto de 151 vista da nossa ignorância, mesmo que fossem concatenados e determinados de um modo desconhecido para nós. As Idis a priori implicam, pelo contrário, o determinismo absoluto e o poder do espírito humano para definir e abarcar todo o seu desenvolvimento" (Intr. à Ia phil. anal. de 1'hist., págs. 149-150). O reconhecimento de leis a priori na história conduz ao fatalismo: é esta a conclusão da filosofia da história de Hegel, tal como do positivismo de Saint-Simon. Por outro lado, o pessimismo de Schopenhauer é, também, determinista; e a todas as concepções a priori, optimistas ou pessimistas, Renouvier opõe a sua filosofia analítica da história, que tende "a determinar as origens e as concatenações reais das ideias, das crenças e dos factos, sem outras hipóteses a não ser as que sejam inevitáveis devido às induções psicológicas e morais e ao grau de incerteza dos documentos" (ib., p. 152). Através ,do estudo analítico da religião e da moral das épocas primitivas, Renouvier chega a estabelecer a função da liberdade humana na história. O ser e o dever ser não coincidem
na história. Segundo Renouvier, existe uma moral diferente da história, isto é, das suas próprias realizações. Mas a história, de certo modo, é uma função da moral, no sentido de que * pensamento julga, corrige, refaz os juízos, os actos * os acontecimentos históricos. E, por outro lado, a moral é uma função da história, no sentido de que a própria consciência moral se formou e desenvolveu através da história, que é a própria experiência humana no seu desenvolvimento (Ib., págs. 551-2). O progresso não é, pois, uma lei fatal. Considerá-lo 152 como tal significa debilitar a consciência imoral e dispor-se a declarar como necessário e justo tudo o que sucedeu (1b., p. 555). A história é o cenário da liberdade em luta e só quando a liberdade se afirma e se realiza a si mesma, é que a história progride e se molda à vida moral. Este é, com efeito, o domínio da liberdade. Na Ciência da moral (1869), Renouvier vê, no princípio de que "o homem está dotado de razão e se julga livre", o fundamento necessário e suficiente de toda a moralidade humana. "A moralidade consiste na capacidade e, praticamente, no acto de determinar-se pelo melhor, isto é, de reconhecer, entre as diferentes ideias do agir, a ideia particular de uma acção obrigatória e de conformar-se com ela" (Science de la morale, ed. 1908, p. 3). Renouvier adopta totalmente o conceito Kantiano do imperativo categórico e baseia-o no conhecimento originário que o homem possui sobre o que deve ser e deve fazer, conhecimento oposto àquele que lhe é dado pelas suas próprias manifestações (Ib., p. 215). A convicção da problematicidade da história conduz Renouvier, na Ucronia (a utopia da história) à surpreendente tentativa de construir "a história apócrifa do desenvolvimento da civilização europeia, como teria podido ser e não foi". Renouvier parte da consideração de que "se numa época determinada os homens tivessem acreditado firme e dogmaticamente na sua liberdade, em vez de tentarem crer nela de maneira lenta e imperceptível, mediante um progresso que é talvez a própria essência do progresso, desde essa época a face do mundo teria 153 mudado bruscamente" (Uchro-nie, 2.a ed., 1901, p. IX). Baseando-se nesta consideração, imagina os traços que caracterizariam a história da Europa se se admitisse a possibilidade real de que a série de acontecimentos, desde o Imperador Nerva até ao Imperador Carlos Magno, tivesse sido radicalmente diferente do que de facto foi. Neste caso, a Europa encontrar-se-ia agora numa condição de paz e de justiça social. As guerras religiosas teriam acabado e teriam conduzido à tolerância universal. Também teriam acabado as guerras comerciais, parecendo incapazes de criar o monopólio único para que tende a avidez de cada nação, e as guerras nacionais ou de proeminência teriam, por seu lado, cedido o seu lugar à implantação da liberdade e da
moralidade no Estado. **Mém disso, o trabalho seria tão honrado como o exercício mais digno da actividade humana e a obra do governo considerada como um trabalho de interesse público dirigido para o bem comum (1b., págs. 285-6). A utopia histórica de Renouvier parece basear-se precisamente na tese que nega: uma profecia, tanto no que se refere ao passado como ao futuro, somente é possível se se admite a necessidade da história. O carácter problemático da história torna indeterminadas as relações entre os acontecimentos, e por isso não se pode encontrar nenhuma relação nas hipóteses fictícias que se podem formular, nos se que podem ser introduzidos na consideração dos factos. Renouvier dá-se parcialmente conta desta dificuldade e observa no fim da obra que, admitido um desvio possível num certo momento do curso 154 histórico, outros desvios -se apresentam noutros pontos, tornando sumamente incerta e arbitrária a construção hipotética. Mas afirma que a sua finalidade foi eliminar a ilusão do facto consumado, "a ilusão da necessidade preliminar devido à qual o facto realizado seria o único, entre todos os outros imagináveis, que teria podido realmente suceder" Ub., p. 411). Dado que se trata de uma fusão, deve poder-se dissipá-la reclamando o direito de introduzir na série efectiva dos factos da história um certo número de determinações diferentes das que se produziram, Esta tentativa terá, em todo o caso, "obrigado o espírito a deter-se um momento no pensamento dos possíveis que não se verificaram e elevar-se assim mais resolutamente ao pensamento dos possíveis que estão ainda em suspenso no mundo" (ib., p. 412). A utopia histórica, por outras palavras, é sugerida a Renouvier pela exigência de subtrair o homem à tirania do facto e da **Ausão da necessidade. E pode duvidar-se da eficácia da utopia, mas não do valor da exigência. § 726. O CRITICISMO INGLÊS A lógica (1874) de Lolze renovou e valorizou a distinção estabelecida por Kant entre o aspecto psicológico e o aspecto lógico-objectivo do conhecimento. Esta distinção convertese em característica das diversas tendências do neo-criticismo. O neo-criticismo inglês desenvolveu-se em estreita conexão com o pensamento de Kant, e especialmente, com 155 a escola de Marburgo, dado que apresenta como aspecto característico uma certa tendência para o empirismo. Shadworth H. lIodgson (1832-1912) é o autor de uma vasta obra intitulada A metafísica da experiência (4 vols., 1898), de outros livros e ensaios menores (Tempo e espaço, 1865; A teoria da prática, 1870; A filosofia da reflexão, 1878; e de numerosos ensaios publicados nas actas da Aristotelian Society e no "Mind"). A metafísica da experiência é unia análise subjectiva da experiência que tem por fim reconhecer o significado e as condições da consciência, por um lado, e das realidades diferentes da consciência, por outro. A análise da consciência neste sentido é, segundo Hodgson (Met. of Exp., 1, págs. IX-XI), a mesma que Kant tinha iniciado, mas liberta do pressuposto a que o
próprio Kant e os filósofos que dele receberam a sua inspiração o tinham vinculado, isto é, da distinção entre sujeito e objecto, dado como verdade última fora de discussão. A distinção entre sujeito e objecto é substituída em Hodgson pela distinção entre o conteúdo objectivo da consciência e o facto ou o acto da sua percepção. A análise do mais simples estado de consciência, por exemplo, de um ;som, revella imediatamente estes dois aspectos distintos e, contudo, inseparáveis. "Designando o conteúdo pelo qual (whatness) da percepção ou da experiência, podem chamar ao facto de que seja percebido o seu que (thatness), isto é, a sua existência enquanto é conhecida no presente. Nenhuma 'destas duas partes da experliência total existe separadamente da outra: são 156 distinguíveis, inseparáveis e medidas uma pela outra" (Met. of Exp., 1, p. 60). Essência e existência, qual o que, são os dois aspectos opostos e conexos da experiência: a existência identifica-se com o ser percebido, conforme a fórmula de BerLdIcy esse est percipi; a essência é o próprio conteúdo da percepção, é o qual do que existente. Estas considerações de lIodgson, ainda que apresentadas em polémica com Kant e com os kantianos, tendem para o mesmo objectivo das correntes do neo-criticismo contemporâneo: o de distinguir o conteúdo objectivo da experiência (na validade que lhe é própria) dos actos ou factos psíquicos aos quais se apresenta unido. Hodgson distingue, com efeito, o aspecto psicológica do conhecimento intelectual e o seu aspecto lógico. Pode ser considerado como um processo ou facto existente e denomina-se então pensamento, juízo ou raciocínio, e pode ser considerado como um modo de conhecimento e é então uma forma conceptual, que utiliza conceitos tais como condição, possibilidade, alternativa, etc. (Ib., p. 383). Do mesmo modo, a consciência (ou a experiência na sua totalidade) pode ser considerada como uma realidade existente ou como conhecimento; como realidade existente desenvolve-se para diante e move-se do presente para o futuro; como conhecimento é reflexiva e do presente volta ao passado. Por isso o problema da consciência pode ser duplo: ou é problema relativamente à essência da consciência e corresponde à metafísica, ou é problema relativamente à existência da consciência, isto é, relativamente às condições do seu ser de facto, e 157 respeito à psicologia. Hodgson revela assim, em todas as suas análises, a preocupação de assinalar os limites precisos entre a investigação -psicológica e a gnoseológica, que é própria do neo-criticismo e que encontra a sua mais decidida e rigorosa expressão na escola de Marburgo. Mesmo quando Hodgson parte do princípio esse est percipi, e afirma que o sentido geral da realidade é o facto de que se dá a experiência (1b., p. 458), não se detém na tese idealista; analisa assim a formação, no seio da experiência, de uma realidade objectiva e, também, de unia realidade que existe independentemente de ser percebida. ou pensada (mesmo quando não é independente do acto de pensamento que a reconhece como tal). Contudo, o "mundo externo" de que nos fala é considerado externo unicamente em relação ao corpo, enquanto ocupa um lugar no espaço juntamente com os outros objectos da experiência (Met. of Exp., 1, p. 267).
De inspiração kantiana é, também, aquilo que Hodgson chama "a parte construtiva da filosofia". A filosofia é uma análise da experiência e a experiência não pode ser transcendida. Contudo, os seus limites e as suas lacunas fazem pensar num "mundo invisível" do qual não temos conhecimento positivo, e de que só possuímos aquelas características gerais que podem inferir-se das suas relações necessárias com o mundo visível. Pretende neste ponto **combinuar a Crítica da Razão Prática de Kant (1b., IV, p. 399). "Os sentimentos, cuja eleição prática é um mandato da consciência e cujo triunfo é a convicção da fé, são conhecidos e experimentados por nós justamente 158 como sentimentos pessoais, apenas enquanto são sentidos por certas pessoas relativamente a outras. Mas quando pensamos que o seu triunfo se baseia providencialmente na natureza do universo, não podemos pensar o próprio, universo senão como pessoal, apesar de esta tentativa de realizar especulativamente o pensamento falhar necessariamente e se converter em contraditória" (ib., IV, p. 400). A consciência moral é, pois, o fundamento da fé no mundo invisível, isto é, numa "força divina que suporta todas as coisas -e que é distinta, mas inseparável, tanto de nós próprios como do mundo visível e mesmo do mundo invisível". Encontram-se as -mesmas exigências na obra de Robert Adamson (1852-1902), autor de duas monografias sobre Kant (1879) e sobre Fichte (1881) e de vários escritos publicados depois da sua morte com o título de O desenvolvimento da filosofia moderna (2 vols., 1903). Adamson coloca explicitamente toda a -sua filosofia na necessidade de um regresso à doutrina kantiana e de um exame novo dos problemas tal como saíram das mãos de Kant (Phil. of Katit, p. 186, Tre Developement, II, p. 13). A principal lição que tira de Kant é a distinção entre o ponto de vista da psicollogia e o ponto de vista da gnoseologia, distinção pela qual "a origem de certa modificação especial da nossa experiência não pode determinar de modo algum a sua validade ou o seu valor para o conhecimento" (The Developement, 1, p. 245). Assim como a psicologia se ocupa dos fenómenos da consciência enquanto experiências imediatas e dos processos em virtude'dos 159 quais se desenvolve, por tais experiências, a distinção entre sujeito e objecto, a gnoseologia, contrariamente, ocupa-se do valor ou da validade dos conceitos baseados nesta distinção; e os seus problemas surgem do reconhecimento da antítese, da qual a psicologia traça a formação. Nesta base, as análises de Adamson tendem a mostrar dois princípios fundamentais. O primeiro é o da distinção entre o acto de apreender e o conteúdo apreendido, distinção que, contudo, não implica o isolamento recíproco ou a independência dos dois factos. O segundo princípio é que os actos ou estados de consciência não têm como objectos próprios o seu modo de existência (a sua realidade como modificação de um sujeito). Por outras palavras, uma ideia não pode ser considerada como um acto de conhecimento interno que tenha por objecto a
própria ideia. O estado psíquico pelo qual o conteúdo é apreendido não participa dos caracteres deste conteúdo: o acto de apreender o vermelho não é, ele próprio, vermelho, bem como o acto de apreender um triângulo não é triangular. Nós temos consciência nos nossos estados mentais e através deles; mas não temos consciência deles. Este segundo princípio corta a passagem para o idealismo subjectivo, já que evita a redução do objecto conhecido a um estado do sujeito cognoscente (The Developement, 1, p. 234). Adamson não considera que a unidade da percepção seja um princípio primitivo; será antes um produto refinado do desenvolvimento da experiência. Tudo o que se pode conceder à tese de Kant é que, 160 quando representamos um universo de factos relativos e conexos, só os podemos representar em referência a uma experiência consciente. Mas a experiência consciente tem infinitos graus e só o último e mais completo deles pode ser caracterizado como autoconsciência (Ib., págs. 255-6). Deste modo, Adamson conduz o criticismo às teses empiristas. O pensamento que organiza a experiência é, por sua vez, estimulado e dirigido pela experiência; e as categorias são unicamente os modos por que o espírito organiza e acomoda as suas experiências, modos que foram também plasmados pela experiência que organizam. Vislumbra-se na doutrina de Adamson a tendência para o real-ismo, que devia tomar como ponto de partida, precisamente, os -pressupostos que Adamson pôs a descoberto. Um traço notável da especulação de Adamson é a repulsa da ideia romântica do progresso (tão grata aos idealistas e naturalistas do seu tempo), como uma aproximação gradual e contínua para um fim supremo, do qual seriam realizações parciais ,todos os desenvolvimentos da realidade cósmica e humana. A noção de fim, segundo ele, é uma categoria prática que não encontra aplicação para além dos limites da experiência individual. Por isso, o decurso dos fenómenos não pode ser, de modo algum e em qualquer domínio, concebido como uma sucessão de mudanças predeterminadas por um objectivo final. Não obstante, Adamson admite que, dado que o pensamento é sempre idealizante, pode conceber-se um espírito infinito que esteja com o processo total da realidade na mesma relação que o nosso 161 conhecimento está com a limitada porção da realidade que lhe é dada. Mas crê que o problema da existência deste espírito não pode ser definitivamente resolvido.
George Dawes Hicks (1862-1941) autor de um estudo sobre Os conceitos de fenómeno e nómeno lia sua relação segundo Kant (escrito em alemão e publicado na Alemanha, 1897) e de dois livros, As bases filosóficas do teísmo (1937) e Realismo crítico 1(1938), pode considerar-se discípulo, de Adamson. Hicks toma como ponto de partida a distinção feita já por Hodgson e Adamson, entre existência e essência, o qual e o que; e serve-se dela para chegar à conclusão de que o objecto é apenas uma fase mais completa e melhor determinada do próprio conhecimento. Com efeito, a soma das características apreendidas de um qualquer objecto (o conteúdo apreendido ou a aparência do objecto) nunca iguala a soma das características que constituem a essência completa (ou conteúdo) do próprio objecto. A primeira nunca pode ser considerada como realidade existente porque é sempre uma selecção das características constitutivas do objecto. Ela é o qual, e a essência total do objecto é o que; ou ainda, se se preferir, a primeira é o fenómeno e a segunda é a realidade. O contraste entre fenómeno e realidade é, pois, apenas um contraste entre uma realidade parcial ou imperfeitamente conhecida nas suas características. A função do juízo, ao qual se reduz a actividade fundamental do conhecer, é a de captar um número cada vez maior de características do objecto e acercar-se, portanto, cada vez mais (Ia 162 realidade como tal. Este conceito da realidade, considerado como termo final do processo cognitivo (mais do que como seu ponto de partida), é o **ii@z@smo que se encontra na escola de Marburgo. § 727. A FILOSOFIA DOS VALORES: WINDELBAND As duas expressões máximas do criticismo germânico, são a Escola de Baden e a Escola de Marburgo. Possuem em comum a exigência abertamente kantiana de considerar a validade do conhecimento independente da condição subjectiva ou psicológica em que o conhecimento se verifica. A escola de Baden responde a esta exigência com uma teoria dos valores considerados independentes dos factos psíquicos que os testemunham. A escola de Marburgo responde a esta exigência reduzindo o processo, subjectivo do conhecer ao método objectivo que garante a validade do conhecimento. O fundador da escola de Baden foi Guilherme Winddiband (1848-1915), professor em Zurique, Estrasburgo e Heidelberga e um dos mais conhecidos historiadores da filosofia. O seu Manual de história da filosofia é elaborado por problemas, sendo o desenvolvimento histórico dos mesmos considerado como relativamente independente dos filósofos que os abordam. As ideias sistemáticas de Windelband estão contidas na colecção de ensaios e discursos intitulados Prelúdios (1884, muito aumentada em edições sucessivas). Outros dos seus escritos notá163 eis são: A liberdade do querer (1904), Princípios de lógica (1912) e Introdução à filosofia (1914). Windelband considera a filosofia como "a ciência crítica dos valores udiversais". Os valores universais constituem o seu objecto; o carácter crítico caracteriza o seu método. Por esta
via encaminhou Kant a filosofia. Kant foi o primeiro que distinguiu nitidamente o processo psicológico, em conformidade com cujas leis os indivíduos, os povos e a espécie humana alcança´m determinados conhecimentos, do valor de verdade de tais conhecimentos. Todo o pensamento que pretende ser conhecimento contém uma ordenação das representações, que não é só produto de associações psicológicas mas também a regra a que deve ajustar-se o pensamento verdadeiro. Na multiplicidade de séries representativas que se formam em cada indivíduo segundo a necessidade psicológica da associação, há algumas que expressam esta regra, a qual lhes confere a objectividade e é, portanto, o único objecto do conhecer. Kant destruiu definitivamente a concepção grega da alma como espelho passivo do mundo e da verdade como cópia ou imagem de uma realidade externa. Para Kant, o objecto do conhecimento, o que mede e determina a sua verdade, não é uma realidade externa (que como tal seria inalcançável e inverificável), mas a regra intrínseca do próprio conhecimento. Posto isto, a tarefa da filosofia crítica é a de interrogar-se sobre a existência de uma ciência, um pensamento que tenha um valor absoluto e necessário de verdade; a existência de urna moral, isto é, um querer e um agir que tenham valor absoluto e necessário de bem; 164 e a existência de uma arte, ou seja, um intuir e um sentir que possuam valor absoluto e necessário de beleza. Em nenhuma das suas três partes a filosofia tem como objecto próprio os objectos particulares que constituem o material empírico do pensamento, do querer, do sentir, mas somente as normas às quais o pensamento, o querer e o sentir devem conformar-se para ser válidos e possuir o valor a que aspiram. Por outras palavras, a filosofia não, tem por objecto juízos de facto, mas juízos valorativos (Beurteilungen), isto é, juízos do tipo "esta coisa é boa", que incluem uma referência necessária à consciência que julga. Todo o juízo valorativo é, com efeito, a reacção de um indivíduo dotado de vontade e sentimento ante um determinado conteúdo representativo. O conteúdo representativo é produto da necessidade natural ou psicológica; mas a reacção expressa no juízo que o valora pretende uma validade universal, não no sentido de que o juízo seja reconhecido de facto por todos, mas unicamente rio sentido de que deve ser reconhecido. Este deve possuir é uma obrigatoriedade que nada tem que ver com a necessidade natural. "0 sol da necessidade natural afirma Windelband (Prãludien, 4.a ed., 1911, 11, págs. 69 e segs.), resplandece por igual sobre o justo e sobre o injusto. Mas a necessidade, que observamos, de validade das determinações lógicas, éticas e estéticas, é uma necessidade ideal, uma necessidade que não é a do Müssen e do não-poder- ser-deoutro-modo, mas a do Sollen e do poder-ser-de-outro-modo". Esta necessidade ideal consti165 tui uma consciência normativa que a consciência, empírica encontra em si e à qual deve conformar-se. A consciência normativa não é uma realidade empírica ou de facto, mas um ideal, e as suas leis não são leis naturais que devam necessariamente verificar-se em todos os factos singulares, mas normas às quais devem conformar-se todas as valorações lógicas, éticas e estéticas. A consciência normativa é um sist ema de normas que, assim como valem objectivamente, também devem valer subjectivamente, ainda que na realidade empírica da vida humana só em parLe. A filosofia pode também definir-se, por conseguinte, como "a ciência da consciência normativa"; e como tal, ela própria é um conceito ideal que só se realiza dentro de certos limites. A realização das normas na consciência empírica constitui a liberdade, a qual se pode, por isso, definir como "a
determinação da consciência empírica por parte da consciência normativa". A religião considera a consciência normativa como uma realidade transcendente e supramundana que Windelband designa por santo. "0 santo é a consciência normativa do verdadeiro, do bem e do belo, vivida como realidade transcendente". Tal realidade transcendente é concebida pela religião com as categorias de substância e de causalidade c.. portanto, como uma personalidade na qual é real tudo o que deve ser e não o é o que não deve ser: como a realização de todo o ideal. Nisto consiste a santidade de Deus, Nisto também consiste a antinomia insolúvel da religião. "A representação transcendente deve identificar em Deus a realidade e a norma, enquanto a necessidade 166 de libertação do sentimento religioso as divide. O santo deve ser a substância e a causa do seu contrário. Disto depende a completa insalubilidade do problema da teodiceia, o problema da origem do mal no mundo" (Prãludien, 4.11 ed., 1911, p. 433). Num ensaio de 1894, História e ciência natural, retomando e criticando a ideia exposta por Dilthey na Introdução às ciências do espírito (1883), Windelband delineou uma teoria da historiografia, estabelecendo a distinção entre ciências naturais e ciências do espírito. As ciências naturais procuram descobrir a lei a que obedecem os factos e SãO, por isso, ciências noinotéticas; as ciências do espírito, por outro lado, têm como objecto o singular na sua forma historicamente determinada e são, por isso, ciências ideográficas. As primeiras têm como objectivo final o reconhecimento do universal; as segundas tendem, contrariamente, para o reconhecimento do singular, quer seja um facto ou uma série de factos, a vida ou a natureza de um homem ou de um povo, a natureza e o desenvolvimento de uma língua, de uma religião, de uma ordem jurídica ou de qualquer produção literária, artística ou científica. As primeiras são ciências de leis; as segundas, de factos. Windelband contrapõe esta distinção de natureza puramente metodológica à distinção objectiva estabelecida por Dilthey; mas é forçado a admitir que nem mesmo Dilthey tinha compreendido esta distinção num sentido puramente objectivo e que para ele a distinção entre os métodos e a distinção entre os objectos são simultâneos (§ 736). Segundo Windelband, um mesmo objecto pode ser estudado 167 por ambas as espécies de ciências e, por vezes, os dois tipos de consideração entrecruzam-se numa mesma disciplina, como sucede na ciência da natureza orgânica, a qual tem carácter nomotético enquanto descrição sistemática e carácter ideográfico ao considerar o desenvolvimento dos organismos sobre a terra. As ciências ideográficas são essencialmente históricas, sendo a finalidade da história fazer reviver o passado nas suas características individuais, como se estivesse idealmente presente. A história dirige-se para o que é intuível e a ciência da natureza tende para a abstracção. O momento histórico e o momento naturalista do saber humano não, se
deixam reduzir, segundo Windelband, a uma única fonte. "A lei e o acontecimento ficam um ao lado do outro como últimas grandezas incomensuráveis na nossa representação do mundo. Este é um dos pontos limites em que o pensamento científico tem apenas por missão levar o problema à luz da consciência, mas não está em condições de o resolvem (Prãludien, 4aed., 1911, p. 379). § 728. RICKERT Em estreita relação com Windelband está a filosofia de Heinrich Rickert (1863-1936), que foi professor em Friburgo e Heidelberga. Os seus escritos principais são: O objecto do conhecimento (1892); Os limites da formação dos conceitos científicos (1896-1902); Ciências da cultura e ciências da natureza (1899); A filosofia da vida (1920), Sistema de 168 filosofia (1921); Problemas fundamentais da filosofia (1934); Imediatez e significado (colecção póstuma de ensaios, 1939). A obra de Rickert representa a sistematização dos temas filosóficos de Windolband; mas não se pode dizer que com tal sistematização tenham adquirido maior evidência e profundidade. Em O objecto do conhecimento, Rickert critica todas as doutrinas que interpretam o conhecimento como relação entre o sujeito e um objecto transcendente, independente daquele, e com o qual o próprio conhecimento deve conformar-se. A representação e a coisa representada são ambas objectos e conteúdos da consciência e, por isso, a sua relação não é a que existiria entre um sujeito e uma realidade transcendente, mas a que existe entre dois objectos ;do pensamento. Por conseguinte, o critério e a medida da verdade do conhecimento (o seu verdadeiro objecto) não é a realidade externa. Conhecer significa julgar, aceitar ou refutar, aprovar ou reprovar: significa, pois, reconhecer um valor. Mas enquanto valor, que é objecto de uma valoração sensível (por exemplo, de um sentimento de prazer), vale somente por determinado eu individual e num momento dado, o valor que é reconhecido no juízo deve valer para todos e em todos os tempos. O juízo que eu formulo, ainda que se refira a representações que vão e vêm, tem um valor duradouro enquanto não puder ser diferente do que é. No momento em que se julga, pressupõe-se algo que vale eternamente, e esta suposição é propriedade exclusiva dos juízos lógicos. Nestes, eu sinto-me ligado por um senti169 monto de evidência, determinado por uma **patéacia à qual me submeto e que reconheço como obrigatória. Este sentimento dá ao juízo o carácter de no-, cessidade incondicionada. Mas tal necessidade não tem nada que ver com a necessidade causal das representações: é uma necessidade ideal, um imperativo cuja legitimidade se reconhece e é aceite conscientemente. Neste imperativo, neste dever ser, consiste a verdade do juízo. O objecto do conhecimento, aquilo que dá ao conhecimento o seu valor de verdade, é o dever ser, a norma. Negar a norma é impossível, porque significa tornar impossível qualquer juízo, inclusive o que nega. O dever ser precede o ser. Não se pode dizer que um juízo é verdadeiro por exprimir o que é; mas só se pode dizer que algo é se o juízo que o expressa é verdadeiro pelo seu
dever ser. O dever ser é transcendente relativamente * toda a consCiência empírica individual, porque é * consciência em geral, uma consciência anónima, universal e ,impessoal, à qual toda a consciência individual se reduz ao expressar um juízo válido. Esta consciência universal não é só lógica, mas também ética e estética. A oposiição entre o teórico e o prático desvanece-se relativamente a ela, e todas as disciplinas filosóficas encontram nela a sua raiz, já que a filosofia tem precisamente por objecto os valores, as normas e as formas do seu reconhecimento. Este conceito de filosofia é confirmado por Rickert num ensaio que trata precisamente deste tema (in "Logos", 1910). A filosofia deve distinguir o mundo da realidade do reino dos valores. Estes últimos não são realidades, mas valem e o seu reino 170 está 'para além do sujeito e do objecto. A filosofia deve também mostrar a relação recíproca entre o mundo da realidade e o reino dos valores. Esta relação é o acto de valorar, que expressa o sentido do valor e que. por isso, determina uma terceira esfera, que se situa junto à da realidade e à dos valores: o reino do significado. O acto de valorar não tem uma existência psíquica porque se encaminha, para além desta, para os valores; mas também não é um valor; é um terceiro reino ao lado dos outros dois. O Sistema de filosofia é a ampliação destes fundamentos e, ao mesmo tempo, uma tentativa de classificação escolástica dos valores. Ás três esferas mencionadas Rickert faz corresponder, no homem, três actividades que as expressam: o explicar, o entender e o significar. E distingue seis campos ou domínios do valor: a lógica, que é o domínio do valor-verdade; a estética, que é o domínio do valor-beleza, a mística que é o domínio da santidade impessoal, a ética, que é o domínio da moralidade; a erótica, que é o domínio da felicidade, e a filosofia religiosa, que é o domínio da santidade pessoal. A cada um destes domínios faz corresponder um bem (ciência, arte, um todo, comunidade livre, comunidade de amor, mundo divino), uma relação com o sujeito (juízo, intuição, adoração, acção autónoma, unificação, devoção), assim como uma determinada intuição do mundo (intelectualismo, esteticismo, misticismo, moralismo, eudemonismo, teísmo ou politeísmo). Mas neste método classificativo e escolástico, em que os problemas ficam 171 suprimidos e ocultos, dilui-se a mais profunda exigência dessa filosofia dos valores que Rickert quer defender. E os sarcasmos que num escrito polémico, A filosofia da vida, dirige a Nietzsche, Dilthey, Bergson e outros, frente aos quais afirma que a filosofia não é vida, mas reflexão sobre a vída, dissimula mal o seu ressentimento relativamente a umponto de vista que acentua um aspecto do homem que não encontra reconhecimento nem **caNmento algum na **fossillização escolástica a que ele próprio reduziu o mundo dos valores. Estes são, com efeito e antes de mais, possibilidades da existência humana e, precisamente por isso, são ignorados ou negados por Rickert. A parte mais interessante da sua filosofia é a que se refere à distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito, distinção que Rickert toma substancialmente de Windelband e que comenta largamente na sua obra Sobre os limites da formação do conceito científico que tem como subtítulo "Introdução lógica às ciências históricas". A distinção entre ciências naturais e ciências históricas não se baseia no objecto, mas no método. A mesma realidade empírica pode ser considerada, segundo um e outro ponto de vista lógico, como natureza ou como
história. "É natureza se a considerarmos relativamente ao universal e converte-se em história se a considerarmos relativamente ao particular e ao individual" (Die Grenzen, 2.a ed., 1913, p. 224). O que é individual e singular interessa às ciências naturais só quando pode ser expresso por uma lei universal; mas constituí, em troca, o único objecto da investi172 gaÇão histórica. Nem todos os acontecimentos individuais suscitam, contudo, o interesse histórico, mas apenas aqueles que têm uma particular importância e significado. O -historiador efectua e deve efectuar uma selecção, e o critério desta selecção será constituído pelos valores que integram a cultura. Deste modo, o conceito de uma determinada individualidade histórica deverá ser constituído pelos valores apreendidos ou apropriados pela civilização a que ela pertence. O procedimento histórico é uma contínua referência ao valor: o que não tem valor é insignificante historicamente e põe-se de parte. Mas nem por isso o historiador formula um juízo de valor sobre os acontecimentos de que trata. O historiador, como tal, não pode formular nenhum juízo sobre o valor de um qualquer facto; procura reconstituir o facto só porque tem um valor. Por outras palavras, o valor é pressuposto pela própria história, que não o cria, mas que se limita a, reconhecê-lo onde se encontra. Os valores em si não podem, segundo Rickert, ser historiados, embora resplandeçam no seu firmamento imutável que constitui o guia e a orientação da história. Rickert polemiza, por isso, contra todas as formas de historicismo, que equipara ao relativismo e ao nülismo (Ib., p. 8.). Assim, a validade do conhecimento histórico depende da validade absoluta dos valores a que é referido. "A validade da representação histórica, afirma Rickert, não pode deixar de depender da validade dos valores a que é referida a realidade histórica e, por isso, a pretensão de validade incondicional dos conceitos históricos pressupõe o reconhe173 (Ib., p. 389). Ora, segundo Rickert, esta pretensão é antes um direito. A história não é o fundamento possível de nenhuma "intuição do mundo" limitada ou parcial; e a filosofia tem como única tarefa dirigir-se, seguindo os valores que a história encarna, para o intemporal e o eterno. § 729. OUTRAS MANIFESTAÇÕES DA FILOSOFIA DOS VALORES A filosofia dos valores teve, na Alemanha, nos primeiros decénios deste século, numerosos partidários, que renovaram, desenvolvendo-os em diversas direcções, os temas propostos por Windelband e Rickert e muitas vezes influenciando-os pelos de outras correntes contemporâneas. Bruno Bauch (1877-1942), numa monografia sobre Kant (1917), que é a sua obra principal, interpreta a coisa em si no sentido da filosofia dos valores como regra lógica que vale, independentemente do nosso entendimento, para o nosso entendimento; e segue, contrariamente, a tendência da escola de Marburgo ao eliminar o **&afismo kantiano entre intuição e categoria e ao considerar o conhecimento como um progresso infinito do pensamento para a determinação da experiência. Por outro lado, o germano-americano Hugo Münsterbera g (1,863-1916), autor de uma Filosofia dos valores (1908) e de numerosas obras de psicologia, procura fazer uma síntese da filosofia dos 174
valores com o idealismo de Fichte. Põe como fundamento de todos os valores uma actividade livre, um super-eu ou eu universal do qual cada eu singular é uma parte. Esta actividade, de cunho fichteano, encontra a sua expressão originária no valor religioso, isto é, na santidade, à qual se reduzem, portanto, todos os outros valores. Estes são agrupados em duas grandes classes: valores imediatos ou vitais e valores criados ou culturais. Cada uma destas classes divide-se numa esfera tripla: o mundo externo dos objectos, o mundo dos sujeitos e o mundo interno. Em cada uma destas classes de valores, Münsierberg estabelece divisões e subdivisões, até apresentar um quadro escolástico exaustivo de todos os valores possíveis. Mas nesta sistematização de Münsterberg, assim como na de Rickert, a filosofia dos valores revela claramente o seu carácter pesado e dogmático: os problemas são, não resolvidos, mas simplesmente eliminados com a posição arbitrária de um determinado valor. Muito mais benemérita é a obra de MUnsterberg no campo da psicologia e principalmente da psicologia aplicada (psicoteonia) à qual dedicou um importante trabalho (,Fundamentos de psicotecnia, 1914). Em Itália, foi seguida uma direcção semelhante por Guido Della Vafle (1884-1962) que utilizou a filosofia dos valores como fundamento de uma teoria da educação (Teoria geral e formal do valor como fundamento de uma pedagogia filosófica. As premissas da axiologia pura, 1916; A pedagogia realista como teoria da eficiência, 1924). 175 Teve, pelo contrário, um êxito decididamente teológico na filosofia dos valores. o trabalho do americano Wilbur Marshall Urban (1873-1952) que se inspirou principalmente em Rickert (caloração, a sua natureza e as suas leis, 1909; O fundo inteligível, 1929; Humanidade e divindade, 1951). § 730. A ESCOLA DE MARBURGO: COHEN Na escola de Marburgo, a direcção lógico-objectiva do criticismo encontra a sua mais rigorosa e completa expressão. A distinção kantiana entre conhecimentos objectivamente válidos e percepções ou experiências que são meros factos psíquicos, é levada até às suas últimas consequências. A ciência, o conhecimento, o pensamento e a própria consciência reduzemse ao seu conteúdo objectivo, à sua validade puramente ló gica, absolutamente independente do aspecto subjectivo ou psicológico pelo qual se inserem na vida de um sujeito psíquico. Em certo sentido, a escola de Marburgo representa a antítese simétrica do idealismo póskantiano; este considera a subjectividade pensante como única realidade, aquela considera como única realidade a objectividade pensável. Mas a objectividade pensável não tem nada que ver com a objectividade empírica (isto é, com as coisas naturais) a qual é só uma sua determinação particular. Deste modo, os filósofos da escola de Marburgo são levados a integrar Kant com Platão, que viu na ideia pura o
176 significado e o valor objectivo de todo o conhecimento possível. O fundador da escola de Marburgo é Hermann Colien, (1842-1918), que foi professor em Marburgo e cuja actividade começou com trabalhos históricos sobre Kan-t (A teoria de Kant sobre a experiência pura, 1871; O fundamento da ética kantiana, 1871; A influência de Kant na cultura alemã, 1833; O fundamento da estética kantiana, 1889). Concomitantemente com os estudos Kantianos, Cohen cultivou os estudos de história das matemáticas, atendendo sobretudo ao cálculo infinitesimal (0 princípio do método infinitesimal e a sua história, 1883); o seu estudo sobre Platão é também evidente em cada página da sua obra fundamental, Sistema de filosofia, dividida em três partos: Lógica do conhecimento puro, 1902; Ética do querer puro, 1904; Estética do sentimento puro, 1912. Cohen dedicou também dois escritos ao problema religioso: Religião e eticidade, 1907, e O conceito da religião no sistema de filosofia, 1915. Foi ainda defensor de um socialismo não materialista e da superioridade espiritual do povo alemão (Sobre o carácter próprio do povo alemão, 1914). À tendência sensualista e eudemonista da filosofia inglesa, Cohen contrapõe a tendência espiritualista da filosofia alemã, que faria desta a legítima continuadora da grega. E vê realizada em Kant "a espiritualidade ética da Alemanha". A primeira e fundamental preocupação de Cohen é a de eliminar do pensamento e do conhecimento todo o elemento subjectivo. O ser e o pensamento coincidem; mas o pensamento é o pensamento do 177 conhecimento, isto é, dos conteúdos objectivamente válidos do próprio conhecimento (Logik, 2.a ed.@ 1914, p. 15). Isso só se encontra e apenas é válido no conhecimento, quando se trata do pensamento da ciência e da unidade dos seus métodos; deste modo a lógica, que o observa e constitui a sua autoconsciência, é sempre únicamente lógica da matemática e das ciências matemáticas da natureza (Logik, p. 20). Os termos que costumam expressar o aspecto subjectivo do pensamento, tal como "actividade", "autoconsciência", "consciência", são reduzidos por Cohen a um significado lógico-objectivo. "A própria actividade é o conteúdo, a produção é o produto, a unificação é a unidade. Só nestas condições a característica do pensamento se deixa elevar ao ponto de vista do conhecimento puro" (Ib., p. 60). A unidade transcendental da consciência, de que fala Kant, não é mais do que "a unidade da consciência científica" (Ib., p. 16). E a consciência, em geral, não é mais do que a própria categoria da possibilidade, uma espé cie determinada dos juízos que se referem ao método (Ib., p. 424). À consciência como categoria da possibilidade se reduzem, pois, não só a lógica, que considera a possibilidade das ciências matemáticas da natureza, como também a estética e a ética, que consideram a possibilidade do sentimento e da acção moral. Lógica, estética e ética são as três ciências que abarcam todo o campo da filosofia. Cohen rejeita a distinção kantiana entre intuição e pensamento, distinção pela qual o pensamento teria o seu princípio em algo que lhe seria externo. 178 O pensamento não é síntese mas antes produção (Erzeugung), e o princípio do
pensamento não é um dado, independente dele de um ou outro modo, mas a origem (Urspring). A lógica do conhecimento puro é uma lógica de origem Qb., p. 36). Mas a produção, como acto puramente lógico, não é mais do que a produção de uma unidade ou de uma multiplicidade lógica, isto é, unificação ou distinção: juízo. E distingue quatro espécies de juízos: leis do pensamento, juízos da matemática, juízos das ciências matemáticas da natureza e juízos de método. As leis do pensamento são os juízos de origem, de identidade e de contradição; mas, entre estes, o mais universal e fundamental é o juízo de origem. * este juízo se deve que -alguma coisa seja dada. * "dado" não é um material bruto oferecido ao pensamento mas, como se torna nítido nas matemáticas, é o que o próprio pensamento pode encontrar. Um dado é, neste sentido, o sinal x das matemáticas, que significa não a indeterminação mas a determinabilidade (ib., p. 83). Entre os juízos da matemática (realidade, pluralidade, totalidade), o da realidade é fundamental. O juízo de realidade é sempre um juízo de unidade; e daqui deriva também o valor que o indivíduo ou pessoa tem no campo moral: o indivíduo é, com efeito, a unidade última e indivisível, o absoluto (1b., p. 142). Os juíZos das ciências matemáticas da natureza são os de substância, lei e conceito. A substância resolve-se na relação e a relação não é mais do que a passagem de um juízo a outro, isto é, o movimento em sentido lógico. O movimento implica a 179 resolução do espaço (conjunto de relações) no tempo (conjunto de conjuntos) (Log., p. 231). Lei e conceito unificam-se na categoria do sistema, que é a fundamental. "Sem a unidade do objecto, afirma Cohen (1b., p. 339), não há unidade da natureza. Mas o objecto tem a sua unidade não na causalidade, mas no sistema. Portanto, a categoria do sistema, como a categoria do objecto, é a categoria da natureza. Por isso determina o conceito do objecto como objecto da ciência matemática da natureza". O conceito não é nunca uma totalidade absoluta, mas somente o princípio de uma série infinita que avança de termo a termo. Os juízos de método são os da possibilidade, da realidade e da necessidade. Como se viu, a possibilidade identifica-se com a consciência, que é o horizonte de todas as possibilidades objectivas. A realidade (Wirklichkeit) não consiste na sensação, mas na categoria do singular, pela qual, na unidade do sistema do conhecimento, se tende a procurar e a individualizar a unidade de cada um dos seus objectos (1b., p. 471). Quanto à necessidade, é a categoria que torna possível unir o caso individual e o universal na lei científica e é, por isso. o fundamento da dedução e do procedimento silogístico (1b., págs. 256 e segs.). Ã dedução reduz-se também a indução, a qual não é mais do que uma dedução d'isjunti-va. No âmbito desta categoria encontram-se os fundamentos da ló gica do raciocínio, em que termina e culmina a lógica do juízo. A lógica de Cohen, nascida como investigação transcendental sobre o conhecimento científico, desen180
volveu-se como uma duplicação da própria ciência, duplicação que pretende fundar as bases da mesma, mas que não consegue mais do que torná-las rígidas, eliminando aquele carácter funcional e operativo que as torna instrumentos prontos e eficazes da investigação científica. Reduzindo o seu conhecimento ao seu conteúdo objectivo, a indagação sobre a ciência converte-se em investigação sobre conteúdos objectivos da ciência; mas esta indagação não pode ter a pretensão, que conserva em Cohen, de fundar a validade de tais conteúdos de uma maneira diferente da que a ciência utiliza operatoriamente e, por assim dizer, caminhando. Pode dizer-se, pois, que a lição confiada implicitamente no princípio de Cohen foi mais efiicazmente realizada pelas correntes metodológicas, que evitam hipostasiar os resultados e os procedimentos do pensamento científico num sistema de categorias. Juntamente com a lógica, Cohen admite, como ciências filosóficas, a ética e a estética, entendidas respectivamente como "ciência do querer puro" e "ciência do sentimento puro". Mas, neste terreno, a obra de Cohen é muito mais débil e menos original que no da lógica. O objecto da ética é o dever ser (Sollen) ou ideia: e a -Ideia não é mais do que "a regra do uso prático da razão". "Sóra-ente no dever ser consiste o querer. Sem dever ser não há querer, mas unicamente desejo. Através do dever ser a vontade realiza e conquista um autêntico sem (Ethik, 2.a ed., 1907, p. 27). A ética é uma ciência pura, precisa181 mente enquanto considera o dever ser como condição e possibilidade do querer. O dever ser é, como a regra do pensamento, uma lei de unidade. A acção a que ele obriga é a unidade de acção; e na unidade de acção consiste a unidade do homem (1b., p. 80). Mas o homem não é unidade, isto é, individualidade e pessoa, no seu isolamento, mas apenas como membro de uma pluralidade de indivíduos, e toda a pluralidade pressupõe, finalmente, uma totalidade. Por seu lado, toda a totalidade tem graus diversos até à sua verdadeira unidade, que é a humanidade no seu conjunto, na qual apenas o homem individual encontra a sua realização. Cohen insiste, por isso, na fórmula do imperativo categórico de Kant, que prescreve a cada um tratar a humanidade, tanto nas outras pessoas como em nós mesmos, sempre como um fim, nunca como um meio. O sistema dos fins é o objectivo final do dever ser moral e, neste sistema dos fins, Cohen vê a ideia do socialismo, a qual exige, precisamente, que o homem valha como fim para si mesmo e seja reconhecido na liberdade e dignidade da sua pessoa. "Como se concilia -pergunta Cohen (Ib., 2.a ed., 1907, p. 322)-a dignidade da pessoa com o facto de que o valor do trabalho seja determinado no mercado como o de uma mercadoria? Este é o grande problema da política moderna e, por isso, também da ética moderna". Contudo, Cohen é contrário ao socialismo materialista de Marx (1b., págs. 312 e segs.), e concebe a marcha da humanidade para a
realização do reino dos fins como uma exigência 182 moral implícita -no aperfeiçoamento progressivo da humanidade como tal, perante o qual devem inclinar-se as formas do direito e do estado. O mesmo ideal da humanidade domina a estética de Cohen. O sentimento puro, que é o órgão da estética, assim como o querer puro o é da ética, é o amor dos homens na totalidade da sua natureza, que é também natureza animal. Se a obra de arte não se reduz à pura materialidade do mármore e da tela, isso deve-se ao facto de ser a representação de um ideal de perfeição humana, do qual tira o seu valor eterno. A religião não ;tem lugar no sistema de Cohen. Enquanto :aplica a Deus o conceito de pessoa, a relIgião pertence ao mito e fica encerrada no círculo do antropomorfismo. Filosoficamente falando, Deus não é mais do que a ideia da Verdade como fundamento de uma totalidade humana perfeita. O seu conceito e a sua existência significam somente que não é uma ilusão crer, pensar e conhecer a unidade dos homens. Deus proclamou-a, Deus garante-a; à parte isto, Deus não explica nada nem significa nada. Os atributos, em que consiste a sua essência, não são propriedade da sua natureza, mas antes as direcções nas quais se irradia toda a sua relação com os homens e nos homens" (Ethik, p. 55). Deus é, pois, um simples conceito moral; e, na moral, a religião encontra a sua única justificação possível, Quando, em troca, atribui a Deus características (como as de vida, espírito, pessoa, ete), que a moral não justifica, desemboca fatalmente no mito. 183 § 731. ESCOLA DE MARBURGO: NATORP O outro representante da escola de Marburgo é Paul Natorp (1854-1924), autor de numerosos estudos históricos (sobre Pestalozzi, Herbart, Kant), o mais importante dos quais versa sobre Platão: A doutrina platónica das ideias (1903). Natorp recolhe e justifica historicamente nesta obra a interpretação de Platão exposta esporádica e ocasionalmente nas obras de Cohen. Esta interpretação é a antítese da tradicional, iniciada por Aristóteles, segundo a qual o mundo das ideias é um mundo de objectos dados, de super-coisas, análogas e correspondentes às coisas sensíveis. Neste sentido, as ideias não são objectos mas 1&s e métodos do conhecimento. Com efeito, são concebidas por Platão como objectos do pensamento puro, e o pensamento puro não pode impor uma realidade existente, ainda que absoluta, mas unicamente funções cognitivas que valham como
fundamentos da ciência. "A ideia expressa o fim, o ponto infinitamente afastado, ao qual conduzem os caminhos da experiência; são, por isso, as leis do procedimento científico" (Matos Ideenlehre, págs. 215, 216). A "participação" dos fenómenos no mundo ideal significa que os fenómenos são graus de desenvolvimento dos métodos ou procedimentos que são as ideias. E que as ideias sejam arquétipos dessas imagens que são as coisas, significa somente que o conceito puro é o originário e que o empírico é o derivado (1b., p. 73). A dialéctica platónica é, portanto, a ciência do método. E a importância de Platão consiste em ter descoberto a logicidade como 184 NATORP legalidade do pensamento puro (Ib., p. 1). Natorp põe, por isso mesmo, como subtítulo da sua monografia platónica o de "Guia para o idealismo", entendendo por idealismo (do mesmo modo que Coheri) o seu neo-criticismo objectivista. A principal obra de Natorp é a que versa sobre os Fundamentos lógicos das ciências exactas (1910), cujos resultados são recapitulados na breve, mas completa, apresentação da sua doutrina, intitulada Filosofia (1911). Dedicou, porém, uma grande parte da sua actividade à psicologia e à pedagogia (Pedagogia social, 1899; Pedagogia geral, 1905; Filosofia e pedagogia, 1909; Ensaios de pedagogia social, 1907; Psicologia geral, 1912). Natorp foi, como Cohen, defensor de um socialismo não materialista (Idealismo social, 1920); e também, como Cohen, da superioridade e primado espiritual do povo alemão (A hora dos alemães, 1915; Guerra e paz, 1916; A missão mundial dos alemães, 1918). Segundo Nalorp, "a ciência não é mais do que a consciência no ponto mais elevado da sua clareza e determinação. O que não pudesse elevar-,se ao nível da ciência seria apenas uma consciência obscura e, por conseguinte, não uma consciência no pleno sentido da palavra, se é que consciência significa clareza e -não obscuridade" (Phil. und Pãd., 2.a ed 1923, p. 20). A filosofia é também conhecimento; mas conhecimento que não se dirige ao objecto, mas sim a unidade do próprio conhecimento. O objecto do conhecimento é inesgotável e o conhecimento pode aproximar-se mais ou menos dele, mas nunca o alcança. Todo o conhecimento é um pro185 cesso infinito, mas é um processo que não está privado de lei nem de direcção. Se o objecto do conhecimento é o ser, é preciso dizer que só no eterno progresso, no método do conhecimento, o ser alcança a sua concretização e determinação. O ser é o eterno x (o que deve ser conhecido) que cada passo do conhecimento determinar melhor; mas o valor da determinação depende exclusivamente do método do conhecimento, do seu proceder; neste sentido a filosofia é, essencialmente, método. Também Natorp, divide a filosofia em lógica, ética e estética. A lógica considera o método
do conhecimento tal como está em acto nas ciências exactas, isto é, na matemática e nas ciências matemáticas da natureza. Matemática e lógica são substancialmente** Uônticas. "A matemática versa sobre o desenvolvimento da lógica; em particular, sobre a sua última unidade central, aquela à qual toda a ló-ica deve ser reconduzida" (Phil., 3 a ed., 1921, p. 41). Esta unidade central da lógica é o pensamento, como criação ou processo vivente. A forma originária do juízo, na qual o pensamento se expressa, não é A=A, mas XA, onde X representa um problema, uma indeterminação, que o pensamento procura resolver numa certa direcção. Esta resolução é um processo de separação e unificação, no qual as variantes não são dadas (como acreditava Kant) mas, são consideradas pelo pensamento juntamente com a característica que lhes é comum. Deste processo de separação e unificação surge toda a matemática. Mas separação e unificação não são mais do que relações; por isso, todos os conceitos da 186 matemática e, em geral, das ciências matemáticas da natureza, são relações e relações de relações. A isto se reduzem também o espaço e o tempo, que não são formas dadas pela intuição, mas unicamente produtos da conexão dinâmica em que consiste o pensamento. Espaço e tempo condicionara a experiência no sentido de que as regras do pensamento encontram neles a sua concretização; tais regras são aplicadas de modo a produzirem a experiência imediata do objecto, isto é, o próprio objecto, numa determinação que não (possui nas regras gerais do intelecto (Phil., p. 54). A intuição empírica não constitui, portanto, um acréscimo ou um contributo externo para o pensamento, mas o realizar-se do próprio pensamento na sua determinação final. "A singularidade do objecto, que implica como condição própria a singularidade da ordem espaço-tempo, não pode significar mais do que a determinação perfeita: a determinação na qual nada deve permanecer indeterminado" (Ib., p. 55). O (lado situa-se nesta doutrina não já no começo do processo do conhecimento, como um seu material em bruto (tal como na doutrina kantiana), mas no fim do processo, como sua determinação final. Mas com isto o dado torna-se o "dever ser" da experiência e situa-se no próprio coração da lógica. "0 dever ser, afirma Natorp, mostra-se como o mais profundo fundamento de toda a validade de ser que seja própria da experiência. A lei do dever ser deve ser considerada em função do progresso infinito da experiência. Assim, encontramo-nos lançados na eterna marcha da experiência; a única condição é que 187 não fiquemos parados num determinado estádio dela, que não nos detenhamos aí, mas que avancemos sempre" (Ib., p. 71). A ética é precisamente a ciência deste dever ser, o qual, enquanto lei -da vontade, prescreve o progresso para uma comunidade total e harmoniosa, o estádio perfeito cujo ideal foi expresso por Platão. Nas suas obras Pedagogia social e Religião nos limites da humanidade, Natorp debruça-se sobre o
problema da arte e da religião. A arte tem como objecto o absolutamente individual, em cuja determinação podem entrar, porém, elementos de carácter universal (pertencentes; à ordem científica e moral), mas apenas sob a condição de perderem a sua universalidade e de se fundirem na individualidade do objecto. Por isso a análise estética, quando analisa os elementos da obra de arte, depara a certa altura com o irracional que não é redutível ao conceito que por isso é chamado intuição, fantasia ou sentimento. Quanto à religião, ela tom para Natorp, o mesmo conteúdo objectivo das três ciências filosóficas (!lógica, ética e estética) mas vivido sob a forma de subjectividade, isto é, da intimidade espiritual. Apesar disso, a religião faz desta subjectividade um objecto -Deus ou o -divino -que considera superior à realidade do mundo e da experiência, como um supramundo ao qual se subordinam as próprias leis do mundo empírico. A religião deveria, segundo Natorp, reduzir-se "aos limites da humanidade", isto é, eliminar a transcendência do supramundo e constituir-se como "religião sem Deus", analogamente 188 psicologia, que se tornou uma ciência quando se constituiu como
A originalidade da posição de Cassirer em relação à escola de Marburgo está no facto de acentuar a importância da expressão simbólica, isto é, da linguagem, na constituição de todo o mundo do homem, desde o mundo da ciência até ao do mito, da reli-ião e da arte. A sua doutrina enquadra-se portanto, mesmo utilizando um ponto de vista específico, naquele vasto moVimento da filosofia contemporânea que considera precisamente a linguagem, como objecto primeiro e privilegiado da indagação filosófica. Mas, por outro lado, a investigação de Cassirer permanece ligada à orientação da escola de Marburgo na medida em que tenta encontrar as origens dos objectos da ciência ou das outras actividades humanas nas estruturas que garantem a valida-de de tais objectos. Em primeiro lugar essas estruturas são funções e não substâncias. Na sua obra intitulada Conceito de substância e conceito de função, Cassirer estabelece uma posição entre os dois conceitos e nota como a ciência tinha abandonado, a partir dos Princípios da mecânica (1894) de Hertz, o conceito de substância e, simultaneamente, a noção da ciência como imagem das substâncias naturais. O predomínio do conceito de função implica o reconhecimento do valor do signo; e ao reconhecê-lo aparece-nos como 190 decisiva a finição constitutiva da linguagem em relação aos objectos de que se ocupa a ciência. A obra seguinte de Cassirer, Filosofia das foi-mas simbólicas, estende estas considerações do mundo da ciência à totalidade do mundo do homem. **Ndla, a "crítica, da razão científica", isto é, a indagação sobre a validade do conhecimento científico, tornase uma "crítica da civilização", isto é, uma indagação sobre as formas específicas da civilização: o mito, a arte, a religião, a própria ciência e, em primeiro lugar, o instrumento que está na origem da validade de tais formas, ou seja, a linguagem. Deste ponto de vista, a linguagem não é apenas, nem principalmente, um instrumento de comunicação. É antes a actividade que organiza a experiência e a conduz do mundo passivo das impressões puras para a autêntica objectividade racional. Para justificar esta passagem Colien e Natorp recorriam, assim como Kant, às categorias, Cassirer recorre à expressão simbólica. "0 símbolo, afirma, não é o revestimento meramente acidental do pensamento mas o seu orgão necessário e essencial. Ele não serve apenas para comunicar um conteúdo conceptual já construído mas é, pelo contrário, o instrumento em virtude do qual esse conteúdo se constitui e adquire a sua formulação acabada. O acto da determinação conceptual de um conteúdo ocorre simultaneamente com o acto de fixação desse conteúdo num qualquer símbolo característico."(Phil. der symbolischen Formen, 1, lntr., § 11). E ao participar na constituição dos conceitos, o símbolo expressivo participa na constituição do próprio objecto real, já que a distinção entre o 191 subjectivo e o objectivo, na qual se baseia todo o conhecimento válido, só se pode fazer a partir dos conceitos e das suas expressões simbólicas. Deste ponto de vista, a tarefa da filosofia já não é a de remontar ao imediato, ao primitivo, ao dado originário, mas antes a de compreender a via pela qual este dado se transforma,
com a expressão simbólica, numa realidade espiritual. "A negação das formas simbólicas, em vez de apreender o conteúdo da vida, destrói a forma espiritual à qual esse conteúdo se encontra necessàriamente ligado" (Ib., Intr., § IV). E do mesmo modo o progresso da linguagem não consiste em avizinhar-se da realidade sensível até quase integrá-la em si mesma, mas antes em afastar-se dela de forma cada vez mais radical, até excluir toda a identidade directa ou indirecta entre realidade e símbolo. "O valor e a natureza específica da linguagem, assim como da actividade artística, residem não na vizinhança com o dado imediato mas no seu progressivo afastamento, dele. Esta distância em relação à existência imediata e à experiência imediatamente vivida é a condição essencial da perspicácia e do conhecimento da linguagem. Esta começa sómente onde acaba a relação directa com a impressão e a emoção sensíveis" (1b., 1, 1, cap. 11 § 2). A diferença entre a linguagem humana e as "manifestações linguísticas articuladas" dos animais superiores consiste na ausência, nestas manifestações, do afastamento em relação à sensibilidade imediata, que é próprio da linguagem. O estudo no mito, realizado por Cassirer no segundo volume da sua obra, obedece a estes conceitos. que 192 encontram ainda maior justificação no terceiro volume, o qual é dedicado à fenomenologia do conhecimento. O conceito científico, por exemplo, é tanto mais rigoroso quanto menos intuitivo. "Na sua forma mais restrita, no que respeita ao seu carácter especificamente lógico, o conceito deve ser diferente dos **IM=EreToTW*M são apenas a representação viva da lei que governa uma sucessão concreta de imagens intuitivas. O significado de um conceito já não adere a um substracto intuitivo, a um datum ou dabile, sendo pelo contrário uma bem definida estrutura relacional adentro de um sistema de juízos e de verdades" (Ib., 111, 111, cap. 11). Quando Cassirer tenta resumir numa definição do homem os resultados das suas investigações sobre o mundo humano, afirma que o homem é um animal simbólico, isto é, falante. "A razão, afirma, é um termo assaz inadequado para compreender todas as formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas estas formas são simbólicas. Por consequência, em vez de definir o homem como animal rationale, podemos defini-lo como animal symbolicum. Fazendo assim. indicamos aquilo que especificamente o distingue e podemos percorrer a nova estrada que se abre ao homem, a estrada para a civilização" (Essay on Man, cap. 11). O campo específico da actividade humana, aquele campo onde o homem manifesta de forma evidente a sua liberdade de iniciativa e a sua responsabilidade, ou seja, a história, é ele mesmo, segundo Cassirer, condicionado pela expressão simbólica. De facto, não é possível fazer história sem 193 interpretar os acontecimentos; e tudo aquilo que se disse sobre a "compreensão" dos factos, das personalidades e das instituições históricas, exprime precisamente a exigência de referir factos, personalidades ou instituições a uma interpretação que lhes revela o seu verdadeiro significado. Com efeito, um facto não é histórico se não tiver um significado. "0 suicídio de Catão não foi apenas um acto físico; foi um acto simbólico. Foi a expressão de um
grande carácter; foi o último protesto do espírito republicano romano contra uma nova ordem das coisas" (Ib., cap. X). Também a história é uma "forma simbólica". § 733. BRUNSCHVIEG A historização da atitude crítica - o reconhecimento de que a actividade organizadora do mundo do conhecimento e do mundo dos valores humanos está em contínuo devir - é característica do neo-criticismo de Léon Brunschvieg (1869-1944), que foi professor da Sorbonne. Aceita e mantém rigorosamente o princípio crítico: a filosofia não aumenta a quantidade do saber humano; é uma reflexão sobre a qualidade deste saber (L'idéalisme contemporain, 1905, p. 2). Por outro lado, o saber não é um sistema cerrado e completo, mas um desenvolvimento histórico, cujas partes se podem distinguir e definir, mas que nunca termina. A história do saber humano é o
Assim, as etapas da filosofia matemática foram as etapas da libertação do espírito relativamente ao horizonte cerrado das representações sensíveis e, por conseguinte, as etapas da actividade livre do pensamento que subordina a experiência a si mesmo. Do mesmo modo, a evolução da física (considerada na obra A experiência humana e a causalidade física) consiste na formação de uma consciência intelectual, pela qual a vida espiritual se eleva por sobre a inconsciência instintiva, na qual a ordem biológica está naturalmente encerrada (L'expérience humaine, 1922, p. 614). Mas esta consciência intelectual não anula a objectividade do mundo. O idealismo crítico (como Brunschvieg preferentemente denomina a sua doutrina) não coloca o eu diante do não-eu ou o não-eu perante o eu; eu e não-eu são, para ele, dois resultados solidários de um mesmo processo da inteligência. O progresso da ciência torna mais humano o nosso conhecimento das coisas; mas torna também mais objectivos os procedimentos do nosso conhecimento (1b., p. 613). É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer afirmação de unia realidade em si que não se reduza ao objecto considerado ou 196 produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade empírica independente do pensamento reflexivo. Mas não reconhece à razão a liberdade absoluta de mover-se e produzir sem limites nem disciplina. Contrariamente à imaginação criadora do artista ou do poeta, a razão está submetida à prova dos factos e à sua obscura oposição: encontra, a cada passo, resistências imprevistas, que desfazem as generalizações prematuras, as limitações temerárias, as extrapolações demasiado fáceis (1b., p. 605). A experiência actua sobre a razão mediante choques (chocs), que a arrancam à sua preguiça dogmática e a incitam a criar novos princípios de estratégia, novas técnicas para superar os obstáculos (Ib., p. 399). Contudo, não se pode hipostasiar o que está para além destes choques, imaginando uma realidade que os produza. Tudo o que se pode dizer é que a experiência oferece à razão, através deles, pontos de referência, em relação aos quais a actividade da razão se orienta, se cimenta, se constitui como verdade. Deste ponto de vista, interioridade e exterioridade não são contraditórias, mas prolongam-se uma na outra e constituem a totalidade do conhecer e do ser (1b., p. 610). Como no saber científico, também no mundo moral e religioso o progresso consiste no prevalecimento gradual do princípio critico sobre o princípio da espiritualidade imediata. A história da humanidade traduz o choque de duas atitudes hostis: a do homo credulus, que se entrega à inércia Jo instinto, e a do homo sapienv, fiel à autonomia da razão. O progresso da reflexão, que dissipou no 197 produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte, moral, religião), com o princípio crítico, que reflecte sobre estas produções espirituais. A redução total do espírito, em todas as suas manifestações, à reflexão crítica, é o fim que Brunschvieg tenta atingir em todos os campos, procurando demonstrar que é própria do desenvolvimento histórico do saber do mundo humano em geral. Assim, as etapas da filosofia matemática foram as etapas da libertação do espírito relativamente ao
horizonte cerrado das representações sensíveis e, por conseguinte, as etapas da actividade livre do pensamento que subordina a experiência a si mesmo. Do mesmo modo, a evolução da física (considerada na obra A experiência humana e a causalidade física) consiste na formação de uma consciência intelectual, pela qual a vida espiritual se eleva por sobre a inconsciência instintiva, na qual a ordem biológica está naturalmente encerrada (L'expérience humaine, 1922, p. 614). Mas esta consciência intelectual não anula a objectividade do mundo. O idealismo crítico (como Brunschvieg preferentemente denomina a sua doutrina) não coloca o eu diante do não-eu ou o não-eu perante o eu; eu e não-eu são, para ele, dois resultados solidários de um mesmo processo da inteligência. O progresso da ciência torna mais humano o nosso conhecimento das coisas; mas torna também mais objectivos os procedimentos do nosso conhecimento (1b., p. 613). É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer afirmação de uma realidade em si que não se reduza ao objecto considerado ou 196 produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade empírica independente do pensamento reflexivo. Mas não reconhece à razão a liberdade absoluta de mover-se e produzir sem limites nem disciplina. Contrariamente à imaginação criadora do artista ou do poeta, a razão está submetida à prova dos factos e à sua obscura oposição: encontra, a cada passo, resistências imprevistas, que desfazem as generalizações prematuras, as limitações temerárias, as extrapolações demasiado fáceis (Ib., p. 605). A experiência actua sobre a razão mediante choques (chocs), que a arrancam à sua preguiça dogmática e a incitam a criar novos princípios de estratégia, novas técnicas para superar os obstáculos (Ib., p. 399). Contudo, não se pode hipostasiar o que está para além destes choques, imaginando uma realidade que os produza. Tudo o que se pode dizer é que a experiência oferece à razão, através deles, pontos de referência, em relação aos quais a actividade da razão se orienta, se cimenta, se constitui como verdade. Deste ponto de vista, interioridade e exterioridade não são contraditórias, mas prolongam-se uma na outra e constituem a totalidade do conhecer e do ser (1b., p. 610). Como no saber científico, também no mundo moral e religioso o progresso consiste no prevalecimento gradual do princípio crítico sobre o princípio da espiritualidade imediata. A história da humanidade traduz o choque de duas atitudes hostis: a do homo credulus, que se entrega à inércia Jo instinto, e a do homo sapiens, fiel à autonomia da razão. O progresso da reflexão, que dissipou no 197 terreno especulativo a concepção realista do mundo e da verdade, deve conduzir, no domínio moral, à destruição do peso da tradição, à constrição da autoridade externa, às sugerências acanhadas do ambiente social (Le progrès de Ia conscience, p. XIX). E assim como na ordem teórica é necessário renunciar a todo o sistema de categorias, do -mesmo modo o
advento da razão prática exige o abandono de qualquer código de preceitos já construídos, de toda a escala de valores fixos, e cede ao homem a liberdade do seu futuro (1b., p. 726). O espírito humano cria os valores morais, como cria os científicos e os estéticos. "Em todos os domínios, os heróis da vida espiritual são aqueles que, sem referir-se a modelos superados, a precedentes já anacrónicos, lançaram à sua frente as **"bas da inteligência e verdade destinadas a criar o universo moral, do mesmo modo que criaram o universo material da gravitação e da electricidade" (Ib., p. 744). Do mesmo modo que a consciência intelectual, a consciência moral nasceu no dia em que o homem rompeu o cerco do seu egoísmo. A reflexão fez-nos sair do centro puramente individual dos nossos desejos e dos nossos interesses pessoais, para revelar-nos, na nossa condição de filhos, de amigos, de cidadãos, uma relação da qual nós somos apenas um dos termos, e para introduzir assim na raiz da nossa vontade unia condição de reciprocidade, que é a regra da justiça e o fundamento do amor (Ib., págs. 11, 12). No domínio religioso, só a reflexão subtrai a consciência a toda a crença antropomórfica ou supersticiosa e faz ver em Deus somente o valor 198 supremo que é verdade e amor e não pode estar revestido de nenhum outro atributo (De Ia connaissance de soi, p. 190). Brunschvicg, que chama também humanismo à sua doutrina, afirma a total imanência de Deus no mundo e precisamente no esforço da reflexão humana. "Um Deus está presente em todo o esforço de coordenação racional, em virtude do qual o espírito une a mínima parte do ser, o mais pequeno acontecimento da vida, à totalidade do futuro universal" (Le progrès de la conscience, p. 797), Fora desta unidade, que o espírito realiza consigo mesmo no acto da reflexão crítica, nada se pode encontrar, porque nada se pode procurar. O humanismo substitui a imaginação de um criador transcendente pela "realidade do homem, artesão da sua própria filosofia" (Eexpérience humaine, p. 610). Só o homem é o instrumento desse progressus ordinans que a reflexão pode produzir em todos os campos do mundo humano. Deus realiza-se precisamente neste progresso. "0 Deus que nós procuramos, o Deus adequado à sua prova, não é o objecto de uma verdade, mas aquele para quem existe a verdade. Não é alguém que façamos entrar no círculo dos nossos afectos, que converse connosco no decurso de um diálogo, no qual, quaisquer que sejam a sua altura e a sua beleza, é certo que só o homem formula as perguntas e as respostas. Deus é aquele a quem dedicamos o nosso amor, é a presença eficaz donde procede todo o prog ,resso que a pessoa humana alcançará na ordem dos valores impessoais" (Héritage de mots, héritage Xidées, p. 65). 199 A filosofia de Brunschvieg é um enxerto do princípio criticista no tronco do espiritualismo
francês tradicional. A actividade crítica ou reflexiva que segundo Brunsohvieg, o único a priori de todo o mundo humano, é concebida por ele como actividade espontânea e em certa medida criadora, de acordo com o modelo do impulso vital de Bergson. O tom da filosofia de Brunschvicg é decididamente optimista: o progresso é a lei do desenvolvimento da actividade crítico-racional; e todo o futuro da história humana é o progressivo prevalecer desta actividade. § 734. BANFI As teses fundamentais do criticismo foram incorporadas à filosofia italiana por António Banfi (1886-1957), que se apropriou também de algumas ekigências da filosofia da vida (especialmente de Simmel) e, nos últimos tempos, do maryásmo original A principal obra de Banfi intitula-se Princípios de uma teoria da razão (1926), precedida por uma outra obra importante, A filosofia e a vida espiritual (1922) e à qual se seguiu Vida da arte (1947) e numerosos ensaios entre os quais o próprio Banfi recolheu os mais importantes no volume intitulado O homem coperneano (1950). São ainda numerosos os escritos críticohistóricos de Banfi dedicados especialmente à filosofia contemporânea (actualmente recolhidos sob o título Filósofos contemporâneos, 1961). Banfi partilha com todos os pensadores neo-criticistas a polémica contra o psicologismo, ou seja, 200 BRUNSCI1VICG contra a tendência de basear a validade do conhecimento nas condições orgânicas, psíquicas ou subjectivas que a tornam possível de facto. Um tal psicologismo, nota Banfi, torna inexplicável "o momento de objectividade universal que caracteriza o conhecimento e que constitui o princípio da sua validade espiritual e da continuidade do seu processo" (Princ. di una teoria della ragione, p. 39). Se, de acordo com o psicologismo, o juízo é uma relação entre duas ideias, entre dois elementos de consciência, para BanE ele é uma relação objectiva, uma "relação essencial" entre os seus termos, relação e que pertence a uma objectividade ideal, independente da origem e da determinação psicológica"; e é também a afirmação da existência dessa relação (1b., p. 121). Mas o primeiro ponto em que Banfi se afasta das teses do neo-criticismo alemão é o reconhecimento da problematicidade do conhecer, que ele considera dependente da problematicidade da relação entre sujeito e objecto. O neo-criticismo tinha retirado a estes dois termos todo o carácter substancial, tendo-os considerado como os limites ideais do processo cognitivo; mas, para Banfi, o sujeito e o objecto, mesmo permanecendo unidos no plano transcendental, apresentam-se, em qualquer situação cognitiva, numa relação problemática que, apesar de ser esclarecida por essa situação, é representada desde o princípio por uma situação diferente. Por outro lado, a razão origina, através deste desenvolvimento problemático, a constituição de um sistema; mas trata-se de um sistema que não é nem um ponto de partida nem um ponto de chegada definitivo, mas sim uma "lei 201
do pensamento" em virtude da qual se constitui e transforma toda a ordenação sistemática da experiência (1b., p. 232). Apesar de estas teses estarem fundamentalmente de acordo com os princípios do neocriticismo, elas conduzem a doutrina de Banfi a resultados diferentes. Em primeiro lugar, a razão de que ede fada não é somente o pensamento científico mas também e sobretudo o pensamento filosófico, com a sua mais radical capacidade de crítica e de desenvolvimento; e enquanto razão filosófica, representa uma actividade não simplesmente teórica, mas simultaneamente teórica e prática, ou seja, vida. Banfi pode portanto utilizar algumas exigências de Simmel e reconhecer na vida a determinação própria de uma razão que é ao mesmo tempo ordem e mutação. "0 conceito de vida, afirma Banfi, exprime a ilimitada dissolução do estável, do determinado, não numa multiplicidade incoerente mas no dinamismo idas sínteses que no seu processo transcendem infinitamente toda a sua determinação enquanto actividade espontânea e criadora. Tal é pre m~ente o carácter das sínteses fenomenológicas em que se acentua a estrutura transcendental da experiência" (1b., págs. 585-86). O privilégio da arte baseia-se no carácter vital da razão; assim se explica, que Banfi tenha dedicado muita da sua actividade ao conceito ide vida. "A arte, o mundo diverso e vivo da arte, se não se quer prender à vida interior que se encontra, em todos os seus aspectos, em profunda tensão... deve ser concebida em função das leis a priori que constituem O seu princípio de autonomia estética, e segundo as 202 quais ela organiza, desenvolve e significa, num ilimitado processo de constituição e de resolução, os conteúdos, relações e valores pelos quais se interessa a sua realidade vivente" (Vita delParte, pággs. 36-37). A arte tem assim todos os caracteres da vida enquanto razão e da razão enquanto vida, Banfi atribuía por isso à arte a tarefa de conduzir o homem para uma "razão enamorada da realidade", ou seja, uma razão que se inserisse na vida e na história como princípio director e libertador. Neste aspecto, Banfi defende nos seus últimos escritos a tese típica do marxismo segundo a qual a filosofia deve transformar o mundo em vez de se limitar a interpretá-lo. O materialismo dialéctico aparece agora a Banfi como o instrumento conceptual de uma razão concreta e histórica. Com efeito ele elimina do conhecer, em primeiro lugar, o momento mítico, dogmático ou abstractamente valorativo e tende por isso a garantir "o desenvolvimento infinito e a articulação aberta do saber". E em segundo lugar elimina a sabedoria abstracta e reconhece à acção uma função construtiva e criadora sendo, nesse sentido, um "humanismo histórico", isto é, a realização de uma nova humanidade de acordo com a concepção de Copérnico: o mesmo é dizer, de uma humanidade dona de si própria e do seu mundo (,Uuomo copernicano, 1950, págs. 240 e segs.). NOTA BIBLIOGRÁFICA § 723. Sobre Liebmann: "Kantstudien", 17, 1910, fascículo de estudos, de vários autores, que lhe são dedicados.
203 De Helmholtz, adém dos escritos citados: Vortrãge und Reden, 5.a ed., Braunschweig, 1903; Schriften zur Erkenntnisstheorie, ed. por P. Hertz e M. Schlick, Berlim, 1921. Sobre Helmholtz: L. KONIGSBERGER, H. v. H., 3 vols., Braunschweig, 1902-1903; A. RIEHL, H. in seine VerhaZtniss zur Kant, Berlim, 1904; J. REINER, H. V. H., Leipzig, 1905; L. ERDMANN, Die philosophische GrundIagen von Ws Wahrnehmungstheorie, em "Abhandlungen der Berliner Akad.", 1921, classe histór.-filos., n., 1. De Lange, a História do materíalismo (trad. ital. de A. Treves, 2 vols., Milão, 1932). Sobre Lange: H. VAMINGER, Hartmann, DOring und Lange, Iserlohn, 1876; E. von HARTMANN, NeUkantianismus, jgchopenhauerianismus und Hegelianismus in ihrer Stellung zu den philosophischen Aufgaben der Gegenwart, Berlim, 1877; H. COMN, em "Preussische Jahrbücher", 1876; S. H. BRAUN, F. A. L. aIs Sozia10konom., Halle, 1881. De Zeller: Ueber Bedeutung und Aufgabe der Erkenntnisstheorie, Heidelberga, 1862; Ueber Metaph. aIs Erfahrungwissenschaft, em "Archiv für systematischie Philosophie", 1, 1895; Vortrãge und Abhandlungen, Lieipzig, 1865; Kleine Schriften, 3 vols., Berlim, 1910-11. Sobre Renouvier: H. MIÉVILLE, La phil. de M. Ren. Setembro de 1908. § 724. De Renouvier, além dos ;escritos cit.: Correspondance de R. et Secrétan, Paris, 1910; La recherche dlune première vérité (fragmentos póstumos), Paris, 1924. Sobre RenGuvier: H. MIÉVILLE, La phil. de M. Ren. et le Vroblème de Ia connaissance religicuse, Lausanne, 1902; JANSSENs, Le Néo-criticisme de C. R., Paris, 1904; G. SÉAILLES, La phil. de C. R., Introduction à Pétude du néo-criticisme, Paris, 1905; P11. BRIDEL, C. R. et sa phil., Laus=e, 1905; A. ARNAL, La phil. 204 religieuse de O. R., Paris, 1907; P. ARCHAMBAULT, R., Paris, 1910; E. CASSIRER, Ueber R. s. Logik, em Die Geisteswissenchaften, 1913, págs. 634 e segs.; O. RAmLIN, Le 6yst~e de R., Paris, 1927. § 726. Sobre Hodgson: H. WILDON CARR, em "Mind", N. S., VIIII, 1899; ld., em "Mind", 1912; J. S. MACKENZIE, em "International Journal of Ethics", 1899; DE SARLO, em "Riv. Fil.", 1900; L. DAURIAC, em "L'Année Philosophique", 1901. ,Sobre Adamson: H. JONES, em "Mind", N. S., XI, 1902; G. DAWES HICKS, em "Mind", N. S., XIII, 1904; Id., Critical Realism, em "Studies in the Phil. of Mind and Nature", Londres, 1938. De Dawes Hicks: Critical Realism, em "Studies in the Phil. of Mind and Nature", Londres, 1938. § 727. Sobre Windelband: H. RiCKERT, W. W., Tübingen, 1910; B. JA~ENKO, W. W., Praga, 1941; C. Rosso, Figure e dottrine della filosofia dei valor!, Turim, 1949, 728. Sobre Rickert: RuYsSEN, em "Revue de Mét. et de Mor.", 1893; ALIOTTA, em
"Cultura Fil.", 1909; SPRANGER, em "Logos", 1922; BAGDASAR, Der Begriff des theoretisches Wertes bei R., Berlim, 1927; BOEHM, em "K@intstudien", 1933; FEDERICI, La fil. dei valori di H. R., Florença, 1933, (como bibliografia); G. RAMMING, K. Jaspers und H. R., Berna, 1946; C. Rosso, Figure e dottrine della filosofia dei valori, Turim, 1949. § 730. Sobre Coben: E. CASSIRER, em "Kant-studien" 17, 1913; P. NATORP, H. C. aIs Mensche, Lehrer und Forscher, Marburgo, 1918; Id., H. C.'s philosophísche Leistung, Berlim, 1918; J. KLATZKIN, H. U., Berlim, 1919; W. KINKEL, H. CI.s Leben und Werk, Stuttgart, 1924; T. W. RosMARIN, Religion of Reason. H. CI.s System of Religious Philos., Nova Iorque, 1936. 205 § 731. De Natorp, póstumo: Philosophische Systematik, Hamburgo, 1958 (com um estudo de H. G. Gadamer). Sobre Natorp: E. CASSIRER, em "Kantstudien", 1925, pãgs. 273 e segs.; H. SCHNEIDER, Die Einheit aIs Grundprinzip der Philos. P. N.Is, Tübingen, 1936; L. LuGARINI, em "Rivista di storia della filosofia", 1950, págs. 40 e segs. § 732. De Cassirer, além dos escritos citados no texto: Determinismus und Indeterminismus in der modernen PhysiL-, Gõteborg, 1936; Zur Logik der Kulturwissenschaften, Gõteborg, 1942; The Philos. of E. C., dirigido por P. A. SchiIpp, Evam ton, 1949 (com bibliografia). § 733. De Brunschvieg, além dos já citados no texto: Introduction à Ia vie de l'esprit, Paris, 1900; Llidéalisme contemporain, 2.a ed., Paris 1921; Nature et liberté, Paris, 1921; e ainda artigos no "Bulletin de Ia Soe. franç. de phil.", 1903, 1910, 1913, 1921, 19231 1930 e em "Revue de Métaph. et de Morale", 1908, 1920, 1923, 1924, 1925, 1927 e 1930. Sobre Brunschvieg: C. CARBONARA, L. B., Nápoles, 1931; J. MESSAUT, La philos. de L. B., Paris, 1938; NI. DESCHoux, La philos. de L. B., Paris, 1949 (com bibliografia); E. CENTINEO, La fil. dello spirito di L. B., Palermo, 1950. § 734. De Banfi: existe uma edição completa das suas obras, em italiano, pela Ed. Parenti de Florença. Sobre Banfi: N. ABBAGNANO, in "Rendiconti della Classe di Seienze Morali, Storiche e Filologiche" da Ace. Naz. dei Lince!, 1958, p. 385-396; FULVIO PAPI, Il pe-nsiero di A. B., Florença, 1961 (com bibliografia); PAOLo Rossi, Hegelismo e socialismo nel giovane B., in "Riv. Critica di storia della filoisofia", 1963, págs. 45-77. 206 VII O HISTORICISMO § 735. A FILOSOFIA E O MUNDO HISTóRICO Pode-se designar pelo nome de historicismo toda a filosofia que reconheça, como sua
tarefa exclusiva ou fundamental, a determinação da natureza e da validade dos instrumentos do saber histórico. O historicismo não é, ou pelo menos não pretende ser exclusivamente uma metafísica ou uma teologia da história, uma sua visão ou interpretação global que pode obter-se mesmo prescindindo das limitações do saber histórico de que o homem dispõe e dos meios através dos quais o conseguiu. Se o termo fosse compreendido deste modo, ele seria inadequado para designar uma corrente específica da filosofia contemporânea porque se prestaria igualmente a designar quaisquer concepções do mundo histórico, ou como tal quali207 ficadas. O objecto próprio e específico do historicismo como filosofia são os instrumentos do conhecimento histórico e, portanto, os objectos possíveis desses instrumentos. As características do historicismo podem então exprimir-se assim: 1.---0 historicismo supõe que os objectos do conhecimento histórico têm um carácter específico que os distingue dos objectos do conhecimento natural. A diferença entre história e natureza é portanto óbvia, e desenvolveu-se paralelamente à fase positivista das ciências naturais. 2.0-0 historicismo supõe que os instrumentos do conhecimento histórico são, pela sua natureza ou, quanto mais não seja, pela sua modalidade, diferentes dos utilizados pelo conhecimento natural. Surge aqui, a propósito do conhecimento histórico, o mesmo problema que surgira ao criticismo kantiano e ao neo-criticismo a propósito do conhecimento natural: remontar do conhecimento histórico às condições que o tornam possível, ou seja, que estão na base da sua validade. Por este motivo, o historicismo une-se às escolas contemporâneas do neo-criticismo, uma das quais (a escola de Baden) considerava o problema da história nos mesmos termos (§§ 727-28). Partindo destes dois pressupostos o historicismo preocupou-se, por um lado, em caracterizar a natureza específica do objecto do conhecimento histórico (ou em geral das ciências culturais) e, por outro lado, em esclarecer quais os seus instrumentos. A natureza dos objectos do conhecimento histórico seria a própria individualidade, oposta ao carácter gené208 rico, uniforme e reprodutível dos objectos do conhecimento natural. E o compreender (Verstehen) foi considerado pelo historicismo como sendo a operação fundamental do conhecimento histórico, sendo a sua natureza diferentemente explicada por cada historicista, se bem que todos lhe reconheçam capacidade para constatar e descrever a individualidade histórica. O historicismo preocupou-se igualmente com a determinação da natureza e da tarefa de uma filosofia centrada no problema do conhecimento histórico. E, no âmbito desta filosofia, deu grande importância ao chamado problema dos valores, ou seja, o problema da relação entre o devir da história e os fins ou os ideais que os homens procuram realizar, e que constituem as constantes de valoração e de orientação na variabilidade dos eventos históricos. Introduz-se assim uma teoria dos valores como parte integrante das filosofias historicistas. O historicismo apresenta-se com estas características na corrente da filosofia alemã que vai de Dilthey a Weber e que encontra neste último a sua expressão mais conseguida; e ainda na rica literatura metodológica que enriquece ou
aperfeiçoa os resultados por ela conseguidos. A definição que Croce deu da filosofia como "metodologia da historiografia" presta-se bem a exprimir a natureza do historicismo. Mas a tese de Croce de que toda a realidade é história e nada mais do que história elimina os pressupostos fundamentais do historicismo: não se pode portanto interpretar a filosofia de Croce, que é de facto uma manifestação contemporânea do idealismo romântico (§ 716), como historicista. 209 § 736. DILTHEY: A EXPERIÊNCIA VIVIDA E O COMPREENDER O fundador do historicismo alemão foi Wilhelm Dilthey, nascido em Biebrich, no Reno, a 19 de Novembro de 1883 e que morreu em Siusi a 1 de Outubro de 1911. Professor em Berlim. (onde foi sucessor de Lotze), contemporâneo dos maiores historiadores alemães (Mommsen, Burckhardt, Zeller), foi ele mesmo, antes de tudo, um historiador que trabalhou durante toda a sua vida numa história universal do espírito europeu, publicando partes dela sob a forma de estudos. Tais estudos versam especialmente sobre a Vida de Schleiermacher (1867-70); sobre o Renascimento e a Reforma (A intuição da vida no Renascimento e na Reforma, 1891-1900); sobre os escritos juvenis de Hegel (1905); sobre o Romantismo (Experiência vivida e poesia, 1905), e, ainda, sobre estética moderna ( As três etapas da estética moderna, 1892). Enquanto nestes e em outros ensaios menores Dilthey continuava a investigação histórica, ia ao mesmo tempo elaborando o problema do método e dos fundamentos de tal investigação: Introdução às ciências do espírito (1883); Ideias para uma psicologia descritiva e analítica (1894); Contribuição para o estudo da individualidade (1896); Estudos sobre os fundamentos das ciências do espírito (1905); A essência da filosofia (1907); A construção do mundo histórico nas ciências e no espírito (1910); Os tipos de intuição do mundo (1911). Novos estudos sobre a construção do mundo histórico nas ciências e no espírito (póstumo). 210 Os últimos escritos ou, melhor dizendo, os posteriores a 1905, são os mais importantes visto conterem a expressão mais amadurecida do pensamento de Dflthey. Já na Introdução às ciências do espírito Dilthey tinha insistido na diversidade do objecto destas ciências relativamente às ciências naturais. O objecto de tais ciências é, em primeiro lugar, o homem nas suas relações sociais, ou seja, na sua história. A historicidade essencial ou constitutiva do homem e, em geral, do mundo humano, é a primeira tese fundamental de Dilthey. Em segundo lugar, o mundo histórico é constituído por indivíduos que, enquanto "unidades psicofísicas vivas", são os elementos fundamentais da sociedade: é por isso que o objectivo das ciências do espírito é "o de reunir o singular e o individual na realidade histórico-social, de observar como as concordâncias (sociais) agem na formação do singular". Por isso, no domínio das ciências do espírito, a historiografia tem um carácter individualizante e tende a ver o universal no particular
e a prescindir do "substracto que constitui em qualquer tempo o elemento comum da natureza humana", enquanto a psicologia e a antropologia, e em geral todas as ciências sociais, procuram descobrir a uniformidade do mundo humano. Como já vimos, Windelband e Rickert (§§ 727-28) insistiram no carácter individualizante das ciências historiográficas. Em terceiro lugar -e é esta, para Dilthey, a diferença fundamental-o objecto das ciências do espírito não é externo ao homem mas interno: não é conhecido, como o objecto natural, através da expe211 riência externa, mas sim através da experiência interna, a única pela qual o homem se apreende a si mesmo. Dilthey chama Erlebenis a esta experiência, e considera-a como a fonte donde o mundo externo retira "a sua origem autónoma e o seu material" (Gesammelte Schriften, 1, p. 9). Erlebenis significa "experiência vivente" ou "vivida" e distingue-se, por exemplo, da "reflexão" -de Locke porque tem não só o carácter de uma representação mas, também, o do sentimento e da vontade. Isto constitui a quarta distinção fundamental entre ciência da natureza e ciência do espírito: as primeiras têm um carácter exclusivamente teórico; as segundas, devido ao órgão que lhes é próprio, têm simultaneamente carácter teórico, sentimental e prático. No entanto, esta diferença entre os objectos de cada um dos dois grupos de ciências não se baseia, segundo Dilthey, numa diversidade metafísica ou de substância que lhes seja inerente. Também não é redutível, como queria Windelband, a uma simples diferença de método, terá antes a sua raiz numa diversidade de atitude, ou seja, na diversidade de relações que o homem vem a estabelecer entre si e o objecto de cada um dos dois grupos de investigação. Nas ciências naturais o homem tenta construir uma totalidade a partir de uma pluralidade de elementos separados, enquanto que nas ciências do espírito parte da relação imediata que existe com o objecto. É por isso que o ideal das ciências da natureza é a conceitualidade e o das ciências do espírito é a compreensão (Ges. Schr., V, p. 265). 212 O compreender é assim a operação cognitiva fundamental no campo das ciências do espírito; e o material ou o ponto de partida desta operação é a experiência vivida. O objecto do compreender é a individualidade; mas, como a individualidade não pode ser atingida a não ser através de um conjunto complexo de actos generalizantes, ela apresenta-se, nas ciências do espírito, sob a forma de tipo. No Contributo ao estudo da individualidade, Dilthey considera o tipo como sendo o termo médio entre a uniformidade e o indivíduo, isto é, como um conjunto de caracteres constantes que têm relações funcionais um com o outro, que variam correlativamente e que se acompanham constantemente (1b., V, p. 270). O tipo é, segundo Dilthey, o objecto específico da poesia e, em geral, da arte, que ele considera, por isso, um "órgão da compreensão da vida" Qb., p.
274); e esta noção serve-lhe para definir a tarefa das ciências do espírito como sendo a "de unir num sistema a constatação do elemento comum num certo campo e a individualização que nele se realiza", isto é, compreender a individualidade a partir da uniformidade em que ela se insere (Ib., p. 272). O compreender, tendo por objecto os tipos e as suas relações internas funcionais, distingue-se assim do explicar, que é a operação generalizante própria das ciências naturais e que consiste em esclarecer as conexões causais entre os objectos externos da experiência sensível. Todas as análises de Dilthey, que nos seus escritos revia sistematicamente as suas posições, a fim de aclarar e determinar (nem sempre com sucesso) 213 o seu pensamento, centram-se sobre a natureza do compreender e da experiência vivida que é o seu ponto de partida ou fundamento. Dado que a experiência vivida é, enquanto tal, subjectiva, íntima e incomunicável, não permite por si só fundar uma ciência qualquer; por isso Dilthey dirigiu os seus esforços no sentido de encontrar as relações entre ela e os elementos que possam tornar possível e que justifiquem a objectivação e a comunicação dessa experiência vivida. Nos Estudos sobre os fundamentos das ciências do espírito e na Construção do mundo histórico Dilthey viu na expressão e no compreender os elementos que, unidos à experiência vivida, dão a esta última universalidade, comunicabilidade e objectividade, constituindo portanto, juntamente com ela, a atitude fundamental das ciências do espírito. Esta atitude toma-se possível pelo facto de essa experiência vivida estar sempre ligada à compreensão de outras experiências vividas que nos são dadas sob a forma de expressão, ou seja, de um "processo em que, de forma externa, reconhecemos algo interno" (Ges. Schrift., VII, p. 309). O homem deixa de estar isolado, a sua vida deixa de estar fechada na intimidade do seu ou, pois encontra em si mesma uma existência autónoma e um desenvolvimento próprio. As relações com a natureza externa e com os outros homens pertencem à sua vida e encontram o seu órgão fundamental no compreender. O compreender é, deste ponto de vista, o reviver e o reproduzir a experiência doutrem: é assim possível um sentir em conjunto com os outros e um 214 participar das suas emoções (1b., VII, p. 205). No compreender realiza-se pois a unidade do sujeito e do objecto que é característica das ciências do espírito. "0 compreender, afirma Dilthey, é o reencontro do eu no tu; mas o espírito atinge graus sempre superiores de conexão, e esta identidade do espírito no eu, no tu, num qualquer sujeito de uma comunidade, em qualquer sistema de cultura e, finalmente, na totalidade do espírito e na história universal,
torna possível a colaboração das diversas operações nas ciências do espírito. O sujeito do saber é aqui idêntico ao seu objecto e este é o mesmo em todos os graus da sua objectivação" (Ib., p. 191). Ora, segundo Dilthey, o compreender realiza-se através de diversos instrumentos que constituem as categorias da razão histórica. Tais categorias não são formas a priori do intelecto; constituem antes os modos de apreensão do mundo histórico e também as estruturas fundamentais desse mundo. O seu significado objectivo é, porém, o mais relevante, já que não pode ser esclarecido senão através de uma análise do mundo histórico. § 737. DILTHEY: AS ESTRUTURAS DO MUNDO HISTÓRICO A primeira categoria do mundo histórico, sobre a qual se baseiam todas as outras, é a vida. A vida não é, para Dilthey, nem uma noção biológica nem um conceito metafísico, mas sim a existência do 215 indivíduo singular nas suas relações com os outros indivíduos. Ela é pois a própria situação do homem no mundo, sempre determinada espacial e temporalmente, pelo que compreende inclusive todos os produtos da actividade humana associada e o modo como os indivíduos os executam ou os avaliam. Se a experiência vivida é a própria vida imediata, o compreender a vida é a sua objectivação; e a objectivação da vida é designada por Dilthey, em termos hegelianos, espírito objectivo. Mas o espírito objectivo, que para Hegel era a própria razão tornada instituição ou sistema social, é para Dilthey apenas o conjunto das manifestações em que a vida se objectivou no decurso do sou desenvolvimento e que acompanham este desenvolvimento. Afirma Dilthey: "Tudo sai da actividade espiritual e adquire portanto o carácter de historicidade, inserindo-se, como produto da história, no próprio mundo sensível. Desde a distribuição das árvores num parque ou das casas numa estrada, desde os instrumentos do trabalhador manual até às sentenças de um tribunal, tudo está à nossa volta, em qualquer altura, surgindo historicamente. O espírito, hoje, introduz-se nas próprias manifestações da vida e, amanhã, faz a sua história. Enquanto o tempo passa, nós continuamos rodeados pelas ruínas de Roma, pelas catedrais, pelos castelos. A história não está separada da vida, não se distingue do presente pela sua distância temporal" (Ges. Schrilt. VII, p. 148). A segunda categoria fundamental da razão histórica é a da conexão dinâmica (Wirkungszusamme216 DILTHEY nhang). A conexão dinâmica distingue-se da conexão causal da natureza na medida em que "produz valores e realiza fins". Dilthey fala por isso do carácter "teleológico-imanente" da conexão dinâmica e considera como conexões dinâmicas (ou "estruturais", como também
afirma) os indivíduos, as instituições, a comunidade, a civilização, a época histórica e a própria totalidade do mundo histórico que é constituída por um número infinito de conexões estruturais. O traço característico da estrutura é a auto-centralidade: toda a estrutura tem o seu centro em si própria. "Assim como o indivíduo, afirma Dilthey, também qualquer sistema cultural, ou qualquer comunidade, tem o seu centro em si mesma. Nele se ligam num todo único a interpretação da realidade, a valoração e a produção de bens" (1b., p. 154). Esta auto-centralidade estabelece entre as parte e o todo de uma estrutura uma relação que constitui o seu significado. O significado de uma estrutura qualquer pode por isso ser determinado a partir dos valores e dos fins em que ela se centra. Segundo Dilthey, a época histórica possui em alto grau esta característica de autocentralidade. "Toda a época é determinada de uma forma intrínseca pelo sentido da vida, do mundo sentimental, da elaboração dos valores e das respectivas representações ideais dos fins. É histórico todo o agir que se insira neste sentido: ele constitui o horizonte da época e determina o significado de qualquer parte do seu sistema. É esta a auto-centralidade da época, na qual se resolve o problema do significado e do sentido 217 que se possam encontrar na história" (Ib., p. 186). Não existe porém um determinismo rigoroso no que respeita à natureza e ao comportamento dos indivíduos que pertencem a determinada época histórica; em todas as épocas se podem encontrar forças contrárias às que constituem a estrutura dominante. Cada época implica uma referência à época precedente, da qual recebe os efeitos nas suas forças activas e implica, desse modo, o esforço criador que prepara a época seguinte. "Assim como ela se originou pela insuficiência da época precedente, do mesmo modo leva consigo os limites, os desacordos e as dores que preparam a época futura". O florescimento de uma época é breve; e de uma época a outra vai-se transmitindo "a sede de uma satisfação total, que nunca pode ser saciada" (Ib., p. 187). A esta sucessão das épocas não preside, segundo Dilthey, nenhum princípio infinito ou providencial. Dilthey pensa que "toda a forma da vida histórica é finita" e que, portanto, não é possível o recurso ao absoluto. Os próprios valores nascem e morrem na história e, mesmo quando se apresentam como incondicionados, são na realidade relativos e transitórios (Ges. Schrif., VII, p. 290). O que dá continuidade, à história é somente "a continuidade da força criadora", ou seja, da actividade humana que produz o mundo histórico. Mas "a consciência histórica da finitude de todo o fenómeno histórico, de toda a situação humana e social, a consciência da relatividade de todas as formas de fé, é o último passo para a libertação do homem" (Ib., p. 290).
218 § 738. DILTHEY: O CONCEITO DA FILOSOFIA A historicidade e a relatividade dos fenómenos históricos chocam-se, segundo Dilthey, com a própria filosofia. A filosofia é historicamente condicionada, do mesmo modo que qualquer outro produto do homem, e as suas formas históricas são por isso diferentes e irredutíveis entre si; mas, por outro lado, a sua consideração histórica mostra que existem em todas as filosofias "traços de natureza formal" que são essencialmente dois: toda a filosofia se baseia, em primeiro lugar, na totalidade da consciência e procura, partindo desta base, esclarecer o mistério do mundo e da vida: e, em segundo lugar, toda a filosofia tenta alcançar uma validade universal. Devido à primeira característica, a filosofia é uma intuição do mundo e apresenta, portanto, uma forma fundamental comum com a religião e a arte. De facto, em cada momento da nossa existência está implícita uma relação da nossa vida singular com o mundo que nos rodeia como uma totalidade intuída. A intuição filosófica do mundo distingue-se da religiosa pela sua validade universal e da artística por ser uma força que quer reformar a vida (Das Wesen der Phil., em Ges. Schrift., V, p. 400). Quando a intuição do mundo é compreendida conceptualmente, ficando assim definida e dotada de validade universal, recebe o nome de metafísica. A metafísica pode ter infinitas formas que diferem entre si por diferenças substanciais ou acidentais. Contudo, podem-se distinguir alguns tipos fundamentais, que se radicam 219 nas diferenças decisivas das várias intuições do mundo. Estes tipos são três: O primeiro é o do naturalismo materialista ou positivista (Demócrito, Lucrécio, Epicuro, Hobbes, os Enciclopedistas, os materialistas modernos, Comte). Esta intuição do mundo baseia-se no conceito de causa e, portanto, da natureza como conjunto de factos que constituem uma ordem necessária. Na natureza assim entendida não há lugar para os conceitos de valor e de fim, e a vida espiritual aparece forçosamente como "uma interpolação na contextura do mundo físico". O segundo tipo de intuição filosófica do mundo é o idealismo objectivo (Heraclito, estóicos, Espinosa, Leibniz, Shaftesbury, Goethe, Schelling, Schleiermacher, Hegel). Esta intuição do mundo baseia-se na vida do sentimento e é dominada pelo sentido do valor e significação do mundo. Toda a realidade aparece como expressão de um princípio interior, sendo por isso entendida como uma conexão espiritual que actua consciente ou inconscientemente. Este ponto de vista leva a ver nos fenómenos do mundo manifestações de uma divindade imanente (Pariteísmo).
O terceiro tipo de intuição do mundo é o do idealismo da liberdade (Platão, filosofia helenístico-romana, Cícero, especulação cristã, Kant, Fichte, Maine de Biran, etc.). Esta doutrina interpreta o mundo em termos de vontade e, portanto, afirma a independência do espírito relativamente à natureza, isto é, a sua transcendência. Da projecção do espírito sobre o universo originam-se os conceitos de perso220 nalida,de divina, de criação, de soberania da pessoa sobre o curso do mundo. Cada um destes tipos dá às diferentes produções de uma qualquer personalidade singular uma unidade intrínseca; e nisto reside a sua força. Cada tipo emprega um facto último de consciência, uma categoria. O materialismo, a categoria de causa; o idealismo objectivo, a categoria de valor; o idealismo subjectivo, a categoria de finalidade. Cada uma destas categorias fundamentais é uma relação entre o homem e o mundo; mas não é possível uma relação total que resulte do conjunto destas três categorias. Isto significa que a metafísica é impossível: deverá, com efeito, tentar unir ilusoriamente tais categorias ou mutilar a nossa relação vivida com o mundo, reduzindo-a a uma só delas. A metafísica é impossível mesmo no âmbito de cada um dos três tipos fundamentais, já que não é possível determinar a unidade última da ordem causal (positivismo), nem o valor incondicionado (idealismo objectivo), nem o fim absoluto (idealismo subjectivo). Contudo, a última palavra não é a relatividade das intuições do mundo mas a soberania do espírito frente a todas elas e, ao mesmo tempo, a consciência positiva de que na sua diversidade se expressa a plurilateralidade do mundo e de que esta consciência constitui precisamente a única realidade do mundo (Ib., p. 406). O carácter mais universal da filosofia consiste na natureza da compreensão objectiva e do pensamento conceptual, no qual se baseia. O proceder do pensamento expressa a necessidade da natureza humana de estabelecer solidamente a posição do homem frente ao 221 mundo, o esforço por romper os laços que prendem a vida às suas condições limitadoras. Este esforço constitui a função universal da filosofia e a última unidade de todas as suas manifestações históricas. § 739. SIMMEL Na obra de Dilthey, a metodologia das ciências do espírito foi enriquecida por determinações e esclarecimentos, os quais constituíam modificações ou desenvolvimentos substanciais em relação à obra de Weber. Os outros historiadores alemães, que desenvolveram as suas doutrinas em polémica com Dilthey ou continuandoo, manifestam a tendência para acentuar aspectos subordinados ou parciais da filosofia de Dilthey ou para corrigi-lo recorrendo ao absoluto e evidenciando um retorno parcial ao hegelianismo. Entre os primeiros, Simmel e Spengler desenvolvem o relativismo de Dilthey tentando fazer dele uma metafísica da vida. Entre os segundos, Troeltsch e Meinecke
procuram conciliar o historicismo com valores absolutos e efectuam um retorno parcial ao conceito romântico da história. Vimos anteriormente (§§ 727-28) que Windelband e Rickert, seguindo a mesma orientação, polemizaram contra o relativismo dos valores, colocando-os a um nível em que não podem ser alternados pelas vicissitudes da história. George Simmol (1858-1918) é autor de numerosas obras filosóficas e sociológicas: O problema da filosofia da história (1892); Introdução à ciência moral 222 (1892); Filosofia da moeda (1900); Sociologia (1910); Problemas fundamentais. da filosofia (1910); Problemas de Sociologia (1917); A intuição da vida (1918); e ainda de trabalhos históricos sobre l(ant (1903), sobre Schopenhauer e Nietzsche (1916) e sobre a situação espiritual da época da primeira guerra mundial (A guerra e a decisão espiritual, 1917; O conflito da cultura moderna, 1918). Se bem que a filosofia de Siminel se oriente para o relativismo, ela começou por defender algumas exigências da escola de Baden, em primeiro lugar a de reconhecer ao valor ou dever ser uni status independente das situações históricas. Assim, na Introdução à ciência moral, Simmel afirma que o dever ser é uma "categoria natural do pensamento", do mesmo modo que o ser, reconhecendo depois que ele age e vive somente na consciência empírica do homem e em relação com o conteúdo psicológico dela. E nos Problemas fundamentais, da filosofia, juntamente com o sujeito e o objecto, considerados nas suas relações funcionais, Simmel reconhece a existência de um terceiro reino de conteúdos ideais independentemente das suas realizações no sujeito ou no objecto, o reino das ideias platónicas, e ainda um quarto reino que é o das exigências ideais e do dever ser. No entanto, nada disto impediu Simmel de se orientar para uma forma de relativismo radical baseada numa metafísica da vida. Simmel foi conduzido a esta orientação pela exigência de criação das ciências do espírito, especialmente a historiografia e a sociologia. 223 Por se preocupar com o problema da história, Simmel. é levado a pô-lo em termos análogos aos utilizados por Kant ao considerar o problema da natureza: trata-se agora de determinar a possibilidade da história, do mesmo modo que Kant determinou a possibilidade da natureza. Mas a solução dada por Simmel é completamente diferente da de Kant. A possibilidade da história não reside em condições a priori, em formas intelectuais independentes da experiência: as categorias e princípios que ordenam o material historiográfico e o constituem numa imagem que não é de modo algum a cópia dos dados em que se baseia, são eles próprios empíricos e pertencem à experiência psicológica, pelo que "a psicologia é o a priori da ciência histórica" (Die Probleme der Geschichtesphilosophie, p. 33). Como condições psicológicas, as categorias da investigação histórica podem modificar-se, e modificam-se, com o desenvolvimento histórico; e, assim, acontece que a realidade histórica pode ser interpretada segundo diversas categorias e dar lugar a diversas representações historiográficas. Não são portanto, no sentido próprio, leis da realidade histórica. O reagrupamento dos factos segundo um determinado conceito não
vale como lei determinante que supõe a acção de factores objectivos constantes (Ib., p. 91). Deste ponto de vista, não se pode pôr o problema do significado total da história e toda a sua solução é reenviada para o domínio da fé (Ib., págs. 72 e segs.). Analogamente, a sociologia não pode ter a pretensão de esclarecer a natureza e o significado da sociedade como um todo; ela tem simplesmente como objecto -9 2 4 as formas de associação assumidas pelas relações entre os indivíduos. E distingue-se das ciências sociais particulares porque enquanto nestas os fenómenos sociais são considerados nos seus conteúdos, na sociologia são apenas considerados como modalidade das relações entre os indivíduos (Soziologie, p. 12). Num artigo de 1895, ao polemizar contra a noção de verdade absoluta, Simmel chega a reconhecer o carácter pragmático da própria verdade. Se, de facto, negarmos o valor absoluto da verdade, não poderemos aplicar-lhe outro critério senão o da sua utilidade, ou seja, o da sua coerência com a prática, e nesse caso a verdade é o resultado da selecção biológica e identifica-se com a própria finalidade da espécie humana. Estes conceitos orientam a sua ulterior actividade para uma metafísica da vida. Deste ponto de vista, a filosofia não é uma ciência objectiva mas "a reacção do homem à totalidade do sem. É assim que ela aparece definida nos Problemas, fundamentais da filosofia. O que a impede de reduzir-se a uma opinião do sujeito individual é a sua tipologia, ou seja, o facto de ela não exprimir o indivíduo mas antes a espiritualidade típica: a qual garante uma possibilidade de comunicação entre os indivíduos que filosofam, mas não a concordância das suas filosofias. As análises históricas de Simmel tendem precisamente a caracterizar algumas destas espiritualidades típicas; é assim que ele vê em Schopenhauer e Nietzsche dois tipos opostos e inconciliáveis de filosofia: a negação do valor da vida e a afirmação do seu valor para além de qualquer pri225 vação ou dor. Mas deste ponto de vista a vida torna-se o verdadeiro e único sujeito da história e -a única substância das coisas: uma realidade metafísica. Mais do que para Dilthey, que considerara a vida apenas enquanto situação do homem no mundo, esta noção remete talvez para Bergson. Simmel entende a vida no sentido da duração real de Bergson. (§ 693), ou seja, como continuidade em que o presente inclui o passado e não como sucessão de estados diferentes ou diferenciáveis. Neste sentido a vida é o próprio tempo concreto, enquanto que o tempo é, em si, a forma abstracta da vida (Lebensanschauung, págs. 11-12). A vida prossegue dentro de formas determinadas mas ultrapassando essas formas na continuidade do seu processo. Devido a esta continuidade ela será mais-vida (MehrLeben), porque se transcende a si mesma; enquanto que nas formas por ela criadas é maisque-vida (Mehr-als-Leben), por se conseguir impor ao seu processo temporal. Logo, este processo inclui a morte, isto é, o destino inevitável de todas as formas de vida (Ib., págs. 22 e segs.). O mundo histórico, aquele que é objecto do conhecimento histórico, é uma forma da vida no sentido muito específico de ser uma emergência de uma estrutura ideal acima
da continuidade do processo vital: uma emergência que reivindica uma certa autonomia relativamente a esse processo e que entra em relação ideal com outras formas da vida, por permanecer, tal como essas outras formas, sobreposta à continuidade da vida. A relação e, simultaneamente, a separação entre a vida e um qualquer elemento 226 ideal (valor, dever ser, forma, mundo histórico) parece ter sido o tema constante da filosofia de Simmel. § 740. SPENGLER O relativismo histórico, relevando de uma metafísica da história, de Oswald Spengler (1880-1936), teve um êxito extraordinário. Spengler é autor de uma obra que teve grande expansão e que suscitou inúmeras discussões: O ocaso do Ocidente. Esboço de uma morfologia da história do mundo (2 vols., 1918-22). Esta obra fora precedida de um ensaio sobre Heraclito (1904), no qual o Logos heraclitiano era interpretado como a lei do destino que rege o devir do mundo. Os escritos posteriores são principalmente políticos: Prussianismo e socialismo (1919), Deveres políticos da juventude alemã (1924); Reconstrução do Estado alemão (1924); O homem e a técnica (1931); Anos de decisão (1933). Estes escritos defendiam, contra o liberalismo, a democracia e o capitalismo, um ideal político semelhante ao do nazismo: um estado autoritário baseado no poder militar e numa classe trabalhadora disciplinada e privada de influência política. Este ideal era apresentado como sendo o conveniente para a "Europa" e, em geral, para a "raça branca"; mas o instrumento da sua realização deveria ser a Alemanha. Spengler imobiliza numa dualidade metafísica a diferença objectiva que Dilthey tinha reconhecido existir entre a natureza e a história. Para Dilthey, a natureza e a história eram dois objectos diferentes 227 estudados por duas ordens de investigação diferentes, para Spengler são duas realidades metafísicas incomensuráveis. A natureza é o mundo dos produtos do devir, daquilo que foi produzido pela vida e que se destacou dela; a história é o mundo do devir, da vida que cria incessantemente novas formas. Na natureza vale a necessidade causal que se manifesta na uniformidade e na repetição e que pode ser expressa por fórmulas matemáticas; na história vale a necessidade orgânica que é própria do que é singular e não-repetitivo. A natureza pode ser apreendida por uma lógica mecânica; a história só o pode ser por uma ló gica orgânica que encontra o seu instrumento na experiência vivida (Erlebnis) compreendida como uma penetração intuitiva, portanto imediata, das formas assumidas pelo devir histórico. A lógica orgânica permite formular uma "morfologia da história universal", ou seja, uma descrição da "forma" ou "fisionomia" da unidade que constitui o elemento da história. Esta unidade é a cultura (Kultur). Toda a cultura é um organismo que, como todos os organismos, nasce, cresce e morre segundo um ritmo imutável. "Toda a cultura, o seu aparecimento, o seu
desenvolvimento e o seu declínio, diz Spengler, cada um dos seus graus e dos seus períodos internamente necessários, tem uma duração determinada, sempre igual, tomando sempre a forma de um símbolo" (Untergang des Abendlandes, I, p. 147). Qualquer cultura realiza progressivamente tudo aquilo que lhe é possível. Ao completar esta tarefa ela chega ao seu termo. É por -isso que o culminar de uma cultura, a civilização 228 (Zivilisation), onde ela alcança "os estados extremos e mais refinados" de que já são apenas capazes os homens superiores, é a sua conclusão, o seu fim necessário e irrevogável. Dilthey tinha falado da "auto-centralidade das estruturas históricas", no sentido de que cada estrutura histórica admite um núcleo central de valores ou ideais que dá significado a todas as suas manifestações: Spengler, considerando a cultura como um organismo e o organismo como uma totalidade cujas partes têm necessariamente relações recíprocas, pensa que cada aspecto da cultura é uma manifestação necessária da própria cultura e que não tem sentido fora dela. Toda a cultura tem uma forma específica de considerar a natureza, ou melhor, tem uma "natureza" própria, uma ciência, uma filosofia, uma moral, que lhe estão indissoluvelmente ligadas do mesmo modo que os membros de um organismo se encontram ligados ao seu todo. No âmbito da cultura, todas estas manifestações têm um valor absoluto; fora dela não têm nenhum valor. No entanto, se bem que não exista nenhuma ciência, filosofia ou moral universal que seja válida para todas as culturas, toda a ciência, filosofia ou moral é absoluta e necessária no seio da cultura a que pertence. O relativismo dos valores, que era um dos resultados da filosofia de Dilthey, transforma-se em Spengler num absolutismo relativo dos valores: relativo porque é limitado à duração da cultura em que se integra. Devido à conexão de todos os aspectos de uma cultura e à necessidade que preside ao seu surgir, ao seu florescer e à sua morte, nenhuma 229 cultura oferece aos homens qualquer possibilidade de escolha, quer no que respeita ao seu desenvolvimento ou às suas articulações internas, quer no que respeita ao seu ciclo vital. Uma necessidade inexorável preside a todo o seu desenvolvimento e a todas as suas vicissitudes; esta necessidade é o destino (Untergang des Abendlandes, 1, págs. 152 e segs.). Os homens podem certamente tentar opor-se ao destino da cultura a que pertencem; mas o insucesso inevitável da sua acção em tal sentido equivale a uma reprovação moral e histórica. A única acção justificada e justificável é a inspirada pelo reconhecimento do destino e orientada na mesma direcção em que ele se manifesta: é o próprio sucesso desta acção que a justifica. "Nós, diz Spengler, não temos a liberdade de realizar isto ou aquilo, mas sim a liberdade de fazer aquilo que é necessário ou de não fazer nada; e qualquer tarefa que tenha surgido por necessidade da história irá avante com a ajuda de cada um dos indivíduos ou contra eles. Ducunt fata volentem, nolentem trahunt" (Ib., 11, p, 630). É a partir destas bases que Spengler prevê o inevitável ocaso da cultura ocidental. Esta já atingiu a fase de "civilização", ou seja, da plena maturidade que inicia a decadência e precede a morte. A crise da moral e da religião, e especialmente a desta última já que "a
essência de todas as civilizações é a religião"; o prevalecer da democracia e do socialismo que subvertem as relações naturais do poder; a equivalência, própria da democracia, entre o dinheiro e o poder político, e que significa o triunfo do dinheiro sobre o espírito; e, numa pa230 lavra, o "desabar de todos os valores" de que Nietzsche foi o profeta mas que o Ocidente mostra já em acto, são os precursores infalíveis da morte da civilização ocidental. O último acto desta civilização será um retorno ao cesarismo, que constituirá o prelúdio de um retorno ao estado primitivo (Ib., 11, cap. V). A obra de Spengler assinala o predomínio, no historicismo alemão, das categorias românticas e, sobretudo, da categoria da necessidade. Spengler substituiu a necessidade do progresso, que era o mito romântico, pela necessidade do ciclo orgânico da cultura, o conceito da história como previsão infalível Post factum pelo conceito da história como previsão infalível ante factum. Assim se ilude a exigência mais radical do historicismo alemão que era precisamente % de subtrair a história à necessidade e de restituir aos homens a possibilidade de escolha histórica decisiva e responsável. § 741. TROETSCH A relação entre o historicismo e a religião, ou melhor, entre o devir histórico e os valores eternos que a religião encarna ou defende, é o tema da investigação levada a cabo, no âmbito do historicismo, por Troeltsch e Meinecke. Ernesto Troeltsch (1865-1923) foi sobretudo um historiador do cristianismo e um teólogo. As suas obras principais são: O absoluto do cristianismo e a história da religião (1902); Psicologia e teoria do 231 conhecimento na ciência da religião (1905); O significado do protestantismo para a origem do mundo moderno (1906); A importância da historicidade de Jesus para a fé (1911); A doutrina social da Igreja e dos grupos cristãos (1908-12); e ainda numerosos escritos e artigos importantes. O ponto de partida de Troeltsch, que o coloca imediatamente no âmbito do historicismo, é o reconhecimento do carácter histórico da religião e, por isso, do próprio cristianismo. Troeltsch entrou em polémica com a concepção romântica da religião, principalmente na sua forma hegeliana, como essência universal de que as religiões históricas seriam a progressiva realização. As religiões são factos históricos individuais e irredutíveis e o próprio cristianismo é um fenómeno histórico que sofre "o condicionamento de qualquer fenómeno histórico individualizado" a par das outras religiões (Die Absolutheit des Christentums und die Religionsgeschichte, p. 49). Mas um fenómeno histórico não está, por esse facto, privado de validade; e Troeltsch coloca o problema da validade da religião
em termos de um problema critico no sentido kantiano: trata-se de encontrar, para a religião, o elemento a priori que a torna possível. Troeltsch admite assim, na obra Psicologia e teoria do conhecimento na ciência da religião, um a priori religioso que pertence à própria razão e cuja existência é demonstrada pelo sentimento de obrigação que acompanha a religião, assim como pela posição orgânica que ela ocupa na economia da consciência e pela causalidade autónoma que a re232 ligião mostra ter no mundo histórico. Apesar de estar em relação com as outras formas do processo histórico (economia, política, ciência, arte, etc.) e sendo em certos aspectos condicionada por essas formas (Troeltsch não exclui sequer a influência, mostrada por Marx, do processo histórico sobre a religião, se bem que pense que ela não se manifesta necessariamente), a religião manifesta uma causalidade autónoma em virtude da qual certos acontecimentos religiosos (como seja o aparecimento do Cristianismo e da Reforma) mostram ser produtos de factores especificamente religiosos. Segundo Troeltsch, esta causalidade autónoma da religião pode ser interpretada como a manifestação ou a presença do infinito (ou seja, de Deus) no finito, isto é, na consciência individual do homem (Gesammelte Schriften, II, p. 764). Com efeito, pode-se considerar o mundo espiritual como sendo independente da causalidade natural e submetido à acção imediata de Deus: uma acção que pode ser mais forte ou mais débil, mais ou menos compreensível, mais ou menos pessoal; mas que justifica a superioridade do Cristianismo o qual, melhor do que as outras religiões, a reconheceu e afirmou no seu carácter sobrenatural e transcendente. A especulação de Troeltsch sobre a religião move-se assim entre dois polos: por um lado o reconhecimento da historicidade radical ida religião e, por outro, o reconhecimento do seu fundamento transcendente na base da causalidade autónoma da história religiosa. Esta polaridade mantém-se nas análises que fez do historicismo, primeiro na obra O his233 toricismo e o seu problema (1922), onde se reúnem os ensaios sobre este assunto que escrevera des&-, 1916, e depois em cinco lições que deveria ter proferido em Inglaterra, mas que não pôde dar por ter sido surpreendido pela morte, e que foram publicadas postumamente com o título O historicismo e _q sua superação (1924). O historicismo, para Troeltsch, é a historização de toda a realidade e de todo o valor, o dissolver-se, no fluxo heraclitiano do devir, de todas as criações humanas: estado, direito, moral, religião, arte, etc.. Do ponto de vista historicista, a categoria histórica fundamental é a da totalidade individual, no sentido da estrutura autocentralizada de Dilthey. Totalidades individuais serão, para além dos indivíduos, os povos, os estados, as classes, as culturas, as correntes espirituais, as religiões, etc. Mas-e aqui Troeltsch introduz no historicismo a exigência de transcendência dos valores deduzida por
Rickert (§ 728)-a compreensão de uma totalidade individual só é possível se a relacionarmos com os valores, Com efeito, aquilo que é importante no histórico é a determinação do que é essencial, o que é único e irrepetível, numa totalidade singular; o essencial consiste no único valor ou no único significado que é próprio da consciência dessa totalidade e que, como tal, não pode ser aplicado como medida ou critério de qualquer outra totalidade. Ora aquilo que é próprio da relação entre o objecto histórico e o valor que o individualiza é, segundo Troeltsch, a sua conexão com o absoluto (Gesammelte Schriften, 111, p. 212). O absoluto dos valores manifesta-se na sua relatividade às totalidades a que 234 pertencem. "A relatividade dos valores, diz Troeltsch, só tem sentido se neste relativo existe um absoluto vivo e criador. Se assim não acontecesse, tratar-se-ia de uma mera relatividade e não de uma relatividade dos valores. Esta última pressupõe um processo vital do Absoluto, através do qual este surge em cada ponto da forma mais apropriada a esse ponto" (Ib., 111, p. 212). Por outras palavras, a relatividade, histórica e o absoluto dos valores coincidem: por se encontrarem nas suas formas históricas relativas, os valores constituem a presença, na própria história, de um princípio absoluto que Troeltsch chama, assim como Leibniz, "consciência universal" e que, ainda de acordo com Leibniz, se manifestaria nas consciências individuais. Estas relevam, precisamente, de uma identidade ou encontro do Infinito e do finito; e é por essa razão que podem comunicar entre si. Todo o mónada se pode entender com os outros mónadas através da transmissão da consciência universal de que todos eles constituem manifestações (1b., p. 685). A identidade entre infinito e finito, entre o absoluto dos valores e a relatividade histórica, não é apenas uma dimensão vertical da história, devendo também encontrar a sua realização no próprio decorrer da história. Esta realização está confiada, segundo Troeltsch, ao esforço criador dos homens e, em particular, a uma filosofia da história que se proponha obter "um critério, um ideal, -uma ideia de uma nova unidade cultural a criar partindo daquilo que existe no presente, presente este considerado como sendo uma situação complexa resultante 235 de séculos de história" (Ib., 111, p. 112), Tal realização consiste, portanto, na elaboração de um ideal de civilização que valha como indicação dos fins que o desenvolvimento histórico deve atingir e simultaneamente como critério de avaliação das fases anteriores de tal desenvolvimento. Esta tarefa, consistindo na determinação de um sistema de valores que servem para avaliar a história e orientá-la para o futuro, é uma tarefa ética,, em particular, ela diz respeito não só aos valores culturais aplicáveis a uma cultura ou a um grupo social particular, mas igualmente aos valores espirituais que condicionam a dignidade e a unidade da personalidade humana (Der Historismus und seine Uberwindung, págs. 27 e segs.).
§ 742. MEINECICE A obra de Friedrich Meinecke aproxima-se dia de Troeltsch, tendo-a, de resto, influenciado na sua última fase, Meinecke (1862-1954) foi principalmente um historiador da Alemanha moderna, tendo começado por ver na história do Estado Alemão uma fusão feliz do poder material e dos valores espirituais ou, segundo a sua expressão, do Kratos e do Ethos. Esta fusão era considerada por ele (sobretudo na obra Cosmopolitismo e estado nacional, 1908) não apenas como a justificação histórica do estado nacional alemão mas, também, como o critério da avaliação histórica e da orientação política; critério que ele considerava ser a maior conquista do romantismo contra o iluminismo. Meinecko via no 236 romantismo, e com razão, o reconhecimento da conciliação e da identidade entre o dever ser e o ser ou, mais especificamente, entre a moral ideal da dignidade e liberdade do indivíduo e a realidade política que é uma força ou poder material. A **erÍ&@ que se seguiu à primeira guerra mundial induziu Meinecke a reconhecer, em principio, a possibilidade de um conflito entre os dois elementos em cuja unidade tinha acreditado; e na obra A ideia da razão de estado na história moderna, este conflito é ilustrado por ele em toda a sua extensão, como tratando-se da própria essência do mundo histórico-político. "Entre Kratos e Ethos, afirma M-**eíne,cke, entre a conduta guiada pelo impulso da força e a conduta guiada pela responsabilidade moral, existe, no cume da vida política, uma ponte, a chamada razão de estado: a consideração daquilo que é conveniente, útil e benéfico, daquilo que o estado deve fazer para atingir em todas as circunstâncias o mais alto ponto da sua existência... E é precisamente neste ponto que se notam claramente as terríveis dificuldades, anteriormente, ocultas, da coexistência do ser e do dever ser, da causalidade e da idealidade. da natureza e do espírito na vida humana. A razão de estado é um princípio de conduta que oferece a maior duplicidade: por um lado, releva de uma natureza física, por outro lado, do espírito. E tem ainda, por assim dizer, um aspecto intermédio no qual aquilo que pertence à natureza se mistura com aquilo que pertence ao espírito". (Die Ideen der Staatsràson in der neuren Geschichte, p. 5). Deste ponto de vista, a tarefa do historiador 237 consistirá em considerar, não a identidade daqueles dois princípios, mas a sua polaridade: isto é, a oposição que os relaciona e através da qual podem encontrar uni equilíbrio que, no entanto, nunca é estável ou definitivo. Já aqui se encontrava implícito, o problema da relação entre os -valores e a história; Meinecke considerou essa questão na obra O nascimento do historicismo (1936), que se destinava a mostrar a formação histórica do historicismo a partir da dissolução da filosofia do direito natural. Esta filosofia constituía, segundo Meinecke, " uma firme estrela polar no meio das tempestades de toda a história universal", visto que considerava a razão humana como eterna e intemporal e se destinava precisamente a guiar o homem na enorme variedade das vivências históricas. O reconhecimento da individualidade de todos os fenómenos históricos, efectuado pelo historicismo, individualizou a própria razão, ou melhor, transformou-a numa força histórica que assume diferentes fisionomias em diferentes épocas e que por isso conduz a uma radical relatividade dos valores. Meinecke
julga subtrair-se a esta relatividade retomando Goethe "que concebeu a missão individual e, do ponto de vista humano, relativo, da própria vida, como desejada por Deus e, portanto, absoluta" e que aconselhou a não perder, quando se admitem os condicionalismos históricos, "a obscura nascente de forças que é constituída pela fé nos valores últimos absolutos e numa fonte última, igualmente absoluta, de toda a vida" (Die Entstehung des Historismus, 11, p. 625). E, além de Goethe, 238 Meinecke recorre a Ranke sintetizando assim as suas posições: "um Deus superior ao mundo que, além de ser criado por ele, é percorrido pelo seu espírito e por isso lhe é afim, e também ao próprio tempo, igualmente imperfeito em tantos aspectos" (Ib., 11, p. 645). O pressuposto romântico da identidade entre finito e infinito é assim acentuado por Meinecke, mas limitado no que respeita ao infinito, no sentido de que este transcende o finito, isto é, a história: um sentido que, no entanto, o romantismo tinha conhecido na sua segunda fase e que constitui, como se viu, o fundamento do retorno romântico à tradição (§ 613). § 743. WEBER: INDIVIDUALIDADE, SIGNIFICADO, VALOR Em 1936, como a publicação do Nascimento do historicismo de Meinecke, pode considerar-se findo o ciclo histórico do historicismo alemão, entendido como corrente ou manifestação da filosofia contemporânea. Mas a sua influência sobre a metodologia historiográfica, sobre a sociologia, a ética e, em geral, todo o domínio das chamadas ciências do espírito, continua ainda depois daquela data, sobretudo através da obra de Weber; é por isso que esta é aqui examinada em último lugar apesar de ser cronologicamente anterior à de alguns dos filósofos já referidos. Max Weber (1864-1920) foi historiador, economista e político; e os problemas metodológicos fo239 ram-lhe sugeridos precisamente por esta actividade. Os seus escritos fundamentais são os seguintes: Sobre a história das sociedades mercantis na Idade Média (1889); O significado da história agrária romana para o direito público e privado (1891); As relações entre os trabalhadores agrários na Alemanha oriental (1892); A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-1905); As seitas protestantes e o espírito do capitalismo (1906) As relações agrárias na Antiguidade (1909) e Economia e sociedade (póstuma, 1922). Para a metodologia das ciências histórico-sociais são muito importantes os ensaios: Roscher e Knies e o problema lógico da economia político-histórica (1903-06); A objectividade dos conhecimentos das ciências sociais e da política social (1904); Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura (1906); Sobre algumas categorias do estudo sociológico (1913); O significado da avaliação das ciências sociológicas e económicas (1917) e A ciência como vocação (1919). No campo da economia e da historiografia, a posição de Weber caracteriza-se: pela critica da escola histórica da economia que via em todo o sr, tema económico a manifestação do "espírito de um povo"; pela crítica do materialismo histórico que, segundo Weber, esquematiza de forma dogmática as relações entre as formas de produção e de trabalho e as outras manifestações de vida em sociedade, isto quando tais relações, em sua opinião, se iriam esclarecendo progressivamente, de
acordo com os aspectos particulares da sua evolução, e pelo reconhecimento da influência que podem ter as for240 mas culturais, a religião por exemplo, sobre a estrutura económica. Este último ponto é esclarecido na obra sobre A ética protestante e o espírito do capitalismo, na qual Weber mostra como a ética calvinista foi favorável ao capitalismo, à procura do lucro como fim. em si mesmo, independentemente da sua utilidade, e à consciência do dever profissional como dever moral. No campo -da investigação metodológica, Weber aceita álbuns dos resultados fundamentais do historicismo alemão, principalmente o reconhecimento do carácter individual do objecto das ciências histórico-sociais. "Um ponto de partida de grande interesse nas ciências sociais, afirma, é sem dúvida a configuração real, portanto individual, dia vida social que nos rodeia, se é verdade que, considerada como um todo, ela é universal, não é menos verdade que ela só pode ser atingida individualmente e a partir de outros níveis sociais de cultura, os quais, por sua vez, também só podem ser atingidos individualmente" (Gesammelte Azifsãtze zur Wissenschaftslehre, p. 177). Mas a individualidade do objecto histórico é, para Weber, o resultado da opção individualizante que se encontra na origem da investigação históricosocial. A individualidade não pertence nem à substância nem à estrutura do objecto em si; ela é o resultado da escolha do objecto feita pela própria investigação, isolando-o num conjunto de outros objectos, considerados relativamente "insignificantes". Ora aquilo que dá significado a um objecto e que o individualiza ao propô-lo como tema de investigação, é o valor que &e é atribuído. Weber 241 aceita aqui a tese de Wckert segundo a qual a historicidade de um objecto é constituída pela sua relação com o valor (§ 728). Mas corrige esta tese ao afirmar que a relação entre objecto e valor depende do investigador; não se trata, como pretendia Rickert, de uma conexão necessária de uni certo objecto com um certo valor transcendente. Isto implica a relatividade dos critérios de escolha do conhecimento histórico e ainda a **imilateí-alidade da pesquisa histórica que, conforme se orienta para um ou outro valor, assim vai delimitando o seu campo. Deste ponto de vista, toda a disciplina constitui o seu próprio objecto, orientando as escolhas que efectua para os valores que correspondem aos seus interesses. É por isso que "são as ligações conceptuais do problema que se encontram na base do campo de trabalho das ciências, e não as conexões objectivas entre as coisas: quando se estuda um novo problema usando novos métodos, e desse modo se descobrem verdades que dão lugar a novos pontos de vista significantes, surge uma 'ciência'" (Ges. Aufsülre z. Wiss., p. 166). O conhecimento histórico é portanto assistemático, no sentido de que não pode dar lugar a um sistema total **def"tivo das ciências da cultura. E a própria cultura não constitui um único campo de investigação mas sim um conjunto de campos autónomos cuja coordenação depende do diferente desenvolvimento de cada um desses campos.
Tudo isto significa que o conhecimento da realidade cultural é sempre um conhecimento desde um ponto de vista particular. "Seria ias ideias de valor do próprio investigador, diz Weber, não haveria ne242 nhum princípio para a escolha da matéria e nenhum conhecimento significativo do real na sua individualidade; e como sem a fé do investigador no significado de qualquer conteúdo cultural perde imediatamente sentido toda a tentativa de conhecimento da realidade individual, também a direcção em que se manifesta a sua fé pessoal, ou seja, a refracção ,dos valores no espelho da sua alma, indicará a direcção do seu trabalho" (Ib., p. 181). É da escolha subjectiva dos valores que depende, portanto, a decisão sobre os objectos que têm ou não -valor, quer dizer, daquilo que é ou não significativo, daquilo que é " importante" ou não. A investigação não pode ser iniciada e conduzida sem este factor decisivo que é a escolha do investigador, mas por outro lado, segundo Weber, este factor não torna subjectiva ou arbitrária toda a investigação, não limita a sua validade ao investigador que a efectuou. Com efeito, qualquer que seja o valor que guiou o trabalho do investigador, os resultados da sua pesquisa devem ter uma validade objectiva, isto é, devem ser válidas "para todos quantos queiram a verdade", e tal validade pode ser conseguida devido à dIsciplina própria da investigação, disciplina que, segundo Weber, é de natureza causal. § 744. WEBER: A POSSIBILIDADE OBJECTIVA O recurso à explicação causal, considerada própria não só das ciências naturais como também das historico-sociais, é o ponto fundamental em que 243 Weber se distancia da tradição do historicismo alemão. Este último considerava que a explicação causal era aplicável apenas às ciências da natureza; por esta razão, contrapunha-lhe, como procedimento próPrio das ciências do espírito, a compreensão imediata, intuitiva e sentimental do objecto individual. Weber abandona esta antítese e considera que o próprio "compreender", longe de ser um procedimento intuitivo e emotivo, dá origem a unia interpretação que é constituída essencialmente por uma explicação causal. "Para ia história, em particular, ,afirma Weber, a forma da explicação causal deriva do seu postulado como "interprete inteligente. A interpreta-ção do histórico não se !dirige, no entanto, à nossa capacidade de subordinar os "factos", tidos como exemplares, a conceitos de espécie e a fórmulas, mas sim à nossa confiança na tarefa, que se nos apresenta quotidianamente, de 'compreender' o agir humano individual nos seus motivos" (1b., p. 136). A explicação causal apresenta-se portanto com um carácter próprio no domínio das ciências histórico-sociais. Em primeiro lugar, trata-se de escolher. entre a infinidade de factores que determinam um objecto histórico, uma série finita desses factores que constitua um campo específico de investigação; e a possibilidade de tal escolha baseia-se uma vez mais nos valores que orientam essa mesma investigação. Em segundo lugar, trata-se de determinar, **In, enti*c os elementos de uma série causal assim individualizada, um esquema de relações que seja susceptível de verificação ou de controle. A esta segunda exigência corresponde o
uso da noção de pos244 sibilidade objectiva, que Weber considera fundamental na explicação histórica. O recurso a esta noção faz-se isolando num processo histórico uma ou mais componentes causais objectivas, supondo que essas componentes se modificam e verificando-se se, com tal modificação, o processo histórico se teria mantido igual àquele que nós conhecemos ou, se assim não acontecesse, qual seria a nova forma que revestiria (1b., p. 273). Como ilustração deste modo de proceder, Weber apresenta um exemplo tirado da Geschichte des Altertums de Edward. Mayer, sobre o significado histórico da batalha de Maratona. Aqueda batalha foi a decisão entre duas possibilidades: de um lado, o prevalecimento de -uma cultura religioso-,teocrática, de outro a vitória do mundo espiritual helénico, de cujos valores culturais sornos, ainda hoje, herdeiros. Em Maratona prevaleceu esta segunda possibilidade; foi esta a condição preliminar de um curso de acontecimentos bastante importantes na história universal. Ora o nosso interesse histórico por aquele acontecimento baseia-se precisamente, segundo Weber, no papel decisivo que ele desempenhou relativamente às duas possibilidades que se defrontavam. "Sem a valoração de tais possibilidades, acrescenta, e dos insubstituíveis valores culturais entre os quais se verificou aquela decisão, seria impossível determinar o significado; e seria portanto impossível compreender porque razão não consideramos esse acontecimento como sendo equivalente a uma escaramuça 245 entre duas tribos cafres ou indianas" (Ges. Aufsã!ze z. Wiss., p. 274). Por outros termos, a explicação causal não consiste, segundo Weber, em reconhecer um acontecimento como sendo necessariamente determinado pela série causal (que é, no entanto, necessária) dos acontecimentos precedentes, mas sim em isolar, numa situação histórica determinada, uni campo de possibilidades,- em mostrar as condições que tornaram possível, naquela situação, a decisão a favor de uma determinada possibilidade; e, finalmente, em esclarecer o significado de tal decisão mediante o confronto com as outras possibilidades que constituíam, do mesmo modo, a situação histórica considerada. Todo este esquema se move, portanto, sobre a noção de possibilidade ou, mais especificamente, de possibilidade objectiva. Webor adverte que a categoria da possibilidade não deve ser entendida numa forma negativa, isto é, enquanto expressão de uma ignorância ou de um saber imperfeito (corno ao afirmar "é possível que o comboio já tenha passado", em que não se sabe se o comboio já passou ou não), mas no seu sentido positivo, ou seja, enquanto designa uma antecipação, previsão ou prospectiva com uma base real controlável. Mas para que a possibilidade possa ser reconhecida, neste sentido, como sendo objectiva, ela deverá ser, por um lado, baseada em "factos" que possam ser averiguados e que
pertençam à situação histórica considerada, e.. por outro lado, deverá estar de acordo com **"ro,,ras empíricas ,crais", ou j 246 com um determinado saber nomológico. No caso da batalha de Maratona, por exemplo, as duas possibilidades que se defrontam não só deviam resultar de suficientes dados documentais como, também, deveriam estar-mesmo a possibilidade que foi posta de parte-de acordo com as regras gerais da experiência e, em primeiro lugar, com as que regem a motivação do comportamento humano. O saber nomológico não é, portanto, excluído do conhecimento histórico, mas antes utilizado instrumentalmente, como critério para a autenticação das possibilidades objectivas. E para satisfazer a esta tarefa, ele deverá constituir conceitos de tipos ideais, ou seja, "quadros conceptuais uniformes" que acentuem ou levem ao extremo a uniformidade que se pode encontrar num grande número de fenómenos empíricos, podendo consequentemente servir como termos de confronto a fim de atingir o significado dos próprios fenómenos (1b.,p. 194). São, segundo Weber, conceitos típico-ideais de objectos históricos particulares, como, por exemplo, o cristianismo, o capitalismo, etc., ou de espécies de objectos tais como o conceito de Estado, de Igreja ou os conceitos de economia política que nunca são realizados na sua "pureza ideal" na realidade empírica, mas que servem como meio para a entender e para explicar os seus condicionamentos. De qualquer modo, os conceitos típicos ideais constituem uniformidades-limite que são indispensáveis à investigação histórica para a determinação da individualidade dos seus objectos. 247 § 745. WEBER. A SOCIOLOGIA INTERPRETATIVA A investigação histórica, devido ao seu carácter ,individualizante, não pode deixar, segundo Weber, de utilizar conceitos universais ou gerais que são próprios das ciências que têm como fim a formulação de leis. Entre as ciências nomológicas consideradas como instrumentos da indagação historiográfica, Weber considerou principalmente a sociologia, podendo considerar-se como um dos resultados mais importantes da sua obra a determinação da natureza e :da tarefa da sociologia. Dilthey tinha feito notar que ia psicologia constituía a ferramenta principal da historiografia: o compreender histórico estava para ele, intrinsecamente ligado à experiência vivida, isto é, à penetração puramente interior do espírito pelo próprio espírito. A posição de Weber é, neste ponto, oposta à de Dilthey: o compreender histórico deve realizar-se sobre a dimensão objectiva do mundo espiritual o
não sobre a sua dimensão subjectiva. Ora esta dimensão objectiva é o objecto específico da sociologia, * qual -se torna deste modo, e em lugar da psicologia, * ciência auxiliar fundamental da historiografia. No entanto, a sociologia não é apenas isto: ela é primordialmente uma ciência autónoma que encontra o seu objecto específico na uniformidade existente nas acções humanas, isto é, na atitude (Verhalten). "A atitude humana, afirma Weber, apresenta conexão e regularidade de desenvolvimento relativamente a qualquer devir. Aquilo que é próprio, pelo menos 248 MAX WEBER em sentido lato, da **qMMhumana são as conexões e regularidades cujo **iaMMe ol@vimento pode ser interpretado pelo M- (1b., p. 429). A sociologia tem em comum com historiografia a sua forma de proceder, ou seja, a "compreensão interpretativa; mas tal processo, na -.**ioiti(sir*Igia, aplica-se às uniformidades que poderneizucm =se no agir humano devido a este ser um agir social, "u seja, referindo-se constantemente ao agir dos sintros. Portanto, enquanto objecto específico da <**oiõi(ologia, a atitude humana caracteriza-se do seguinte modo: 1) é intencionalmente referida por parte iólaquele que age, às atitudes dos outros; 2) é @.<;,wnére determinada por essa referência; 3) pode ser w4%Ikada partindo apenas do sentido de tal referência W., p. 429). Considerando a distinção estabelecida Or4 Tõnnies (Comunidade e sociedade, 1887) entre -4 "comunidade", na qual as irelações humanas estão kitrínseca e orgânicamente integradas, e a na qual ias rolações são externas ou impessoais, MÉber distingue o ag,;r em comunidade que é id~elo às atitudes dos outros homens segundo um *44reio que está nas intenções daquele que age, e o agir >m sociedade no qtial os actos são rereridos a iessi sentido próprio a unia ordem já estabelecida. Em -imbos os casos essa referência aos actos alheios *welui uma expectativa de uma determinada atitude iossível de outros inctivíduos e orienta-se pelo @w.IMhlo das diversas possibilidades que é necessário ter em conta como possíveis consequências do seu IUúe U@o agir. "Um fundamento significativo e "~ ~-Mite importante do agir, afinna Weber, é a maior ou menor probabilidade, Z196 expressa por um juizo de possibilidade objectiva, de que tal expectativa tenha razão de ser" (Ges. Aufsãtze z. Wiss., p. 441). Por outras palavras, é possível compreender e explicar uma atitude individual a partir da possibilidade objectiva de que a expectativa de quem a assume !tenha um eco nas atitudes dos outros. Podemos compreender, por exemplo, a atitude de um batoteiro partindo apenas da possibilidade objectiva -de que os outros participantes no jogo observem, de acordo com a expectativa do batoteiro, as regras do jogo. É deste modo que a noção de possibilidade objectiva que Weber tinha considerado como fundamento do compreender historiográfico, acaba por assumir uma função dominante na própria "sociologia interpretativa". Unia atitude que se baseia no cálculo (mesmo subjectivo) das possibilidades oferecidas pelas atitudes de outrem é, segundo Weber, uma atitude "racional", ou seja, que atinge os seus fins. Com efeito, esta atitude "orienta-se exclusivamente a partir dos meios que se considera (subjectivamente) adequados aos fins concebidos (subjectivamente) de forma precisa" (Ib.,
p. 428). No primeiro capítulo de Economia e Sociedade, no qual Weber expôs sistematicamente os conceitos fundamentais da sua sociologia, estão diferenciados quatro tipos do agir social: 1) a atitude racional relativamente aos fins que é determinada pela expectativa. da posição dos objectos do mundo externo e da atitude dos outros homens; expectativa essa que vale como condição ou meio de alcance dos fins pretendidos; 2) a atitude racional relativamente 250 aos vetores que é condicionada pela crença no valor ilimitado le um comportamento. independentemente das suas consequências; 3) a atitude afectiva, determinada pelas emoções; e 4) a atitude tradicional que é determinada pelos hábitos adquiridos (Wirtschaft und Gesellschaft, 1, 1, § 2). Estas atitudes, faz notar Weber, constituem no entanto "tipos conceptualmente puros" que se encontram mais ou menos combinados na realidade social, mas que são indispensáveis para a interpretar. Por outro lado, do ponto de vista da racionalidade relativamente ao fim, a racionalidade relativa dos valores encontra-se num outro plano: "e isto porque ela se preocupa tanto menos com as consequências do agir quanto mais assumir como incondicionado o valor em si (a intenção pura, a beleza, o bem absoluto, o respeito absoluto dos deveres)". Por outro lado, também a absoluta racionalidade relativamente aos fins é apenas um caso limite, uma construção ideal. § 746. WEBER: DESCRIÇÃO E VALORAÇÃO A intenção fundamental das indagações metodológicas de Weber foi a de encontrar as bases duma autonomia das ciências da cultura dum modo correspondente, a-pesar de não ser análogo, ao modo como tal autonomia fora já atribuída às ciências da natureza. Como vimos, Weber não aceitou a antítese radical que outros historiadores (a começar por Dilthey) tinham estabelecido entre os dois grupos 251 de ciências: reconheceu a explicação causal como própria de ambos os grupos. Por outro lado, esclareceu o carácter específico que a explicação causal assume no domínio idas ciências da cultura; e serviu-se do conceito de possibilidade objectiva como base para o esclarecimento ;deste problema. Mas apesar da diversidade específica dos instrumentos de que dispõem, os dois grupos de ciências têm em comum, segundo Weber, a sua tarefa fundamental: a descrição dos fenómenos. Se bem que Weber entenda o termo "descrição" no sentido restrito de simples registo dos factos, polemizando contra a validade de qualquer outro sentido desse termo e preferindo ater-se a palavras como "constatação" e similares, é do ideal da descrição (no sentido mais geral que serviu às ciências da natureza, do século XVII até aos primeiros decénios do nosso século, para se distinguir da velha ciência aristotélica, libertar-se das suas sobrevivências e esclarecer quais as suas efectivas possibilidades de investigação) que Weber se utiliza para atingir os mesmos fins no campo das ciências da cultura. Mas se no campo das ciências da natureza a "descrição" se opunha à "explicação" ou "hipótese" metafísica, no das ciências da cultura a "descrição" opõe-se à "valoração".
Pode-se encontrar esta oposição em toda a obra de Weber, mas onde ela se encontra melhor expressa é num ensaio de 1917 sobre a "avalorabilidade" (Wertfreiheit) da sociologia e da economia. Estas ciências, na opinião de Weber, podem exclusivamente constatar ou descrever a realidade empírica e for252 necer respostas a questões deste género: "como se desenvolve um determinado facto concreto, qual a razão de o seu conteúdo concreto surgir com uma dada configuração; se é possível estabelecer uma regra do devir dos conteúdos, de tal modo que a um deles se sucede um outro; qual a probabilidade de aplicação dessa regra". Fora do campo -dessas ciências, o juízo valorativo propor-se-á questões de um outro género: "0 que se deve fazer numa dada situação concreta e de que ponto de vista é que essa situação pode ser considerada ou não satisfatória" (Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschftslehre, p. 495). É óbvio que Weber não nega que a ciência possa e deva ocupar-se dos valores e das valorações, que são factos. do mesmo modo que quaisquer outros; mas observa que "quando, aquilo que vale normativamente se torna objecto duma investigação empírica perde, como objecto, o carácter normativo: é considerado como existente, não como válido" (1b., p. 517). O que, neste caso, a ciência assume legitimamente como objecto de investigação não é a validade dos valores mas a sua realização: ou melhor os meios para os realizar e os conflitos a que tal realização dá origem. Por outros termos, e segundo uma fórmula que Weber já tinha ilustrado no ensaio sobre a objectividade das ciências sociais, a consideração científica diz respeito à técnica dos meios e não à valoração dos fins (1b., págs. 149 e segs.). A valoração é uma tomada de posição prática, uma decisão que respeita a cada homem e à qual nenhum homem se pode subtrair, mas que não é satisfeita pela tarefa descritiva da ciência. Mesmo questões 253 relativamente simples como, por exemplo, a da medida em que um fim pode legitimar os meios indispensáveis, a de ter-se ou não em conta as suas possíveis consequências indesejáveis ou o poder-se diminuir os conflitos entre fins diferentes -todas elas são objecto de opção ou -de compromisso, não de ciência. "A nossa ciência, diz Weber, que é rigorosamente empírica, não pode pretender tirar ao indivíduo esta possibilidade de opção e não pode sequer suscitar a aparência de ser capaz de o fazer". No entanto, faz parte do trabalho descritivo da ciência a consideração dos conflitos a que pode conduzir a opção dos fins e que são conflitos entre valores ou entre esferas de valores. Weber acentua a importância destes
conflitos. "Entre os valores Oxiste, em última análise (e em quaisquer condições), não uma simples alternativa mas sim uma luta mortal, sem possibilidades de conciliação como, por exemplo, entre "Deus" e o "Demónio". Entre eles não é possível nenhuma conciliação ou compromisso; e não é possível, bem entendido, devido àquilo que cada um deles significa" (Ib., p. 493). A relatividade dos valores, entendida como conexão orgânica entre os valores e a sua época ou o seu ambiente cultural, é excluída, segundo Weber, pela presença inevitável do conflito entre os valores: conflito que coloca o homem, como afirmava Platão referindo-se à alma, na situação de dever escolher o seu próprio destino, ou seja, "o sentido do seu agir e do seu sem. Este conflito manifesta-se sobretudo no campo da ética: como conflito entre a ética da intenção ou do "querer puro" e a ética da responsabilidade 254 que julga a acção partindo das consequências previstas como possíveis ou como prováveis. As regras de conduta de ambas as éticas manifestam-se imediatamente em contradição, contradição essa que não pode ser resolvida pela própria ética. Ã ética da responsabilidade interessa essencialmente considerar a relação entre meios e fins e a situação, de facto em que deve ser explicada. a acção humana-, mas mesmo essa não nos oferece um meio de orientação na luta política, na qual existe uma inesgotável contradição entre valores. Concluindo, do mesmo modo que as ciências naturais nos dizem o que devemos fazer se quisermos dominar tecnicamente a vida, sem, no entanto, nos dizerem se tal domínio tem algum sentido, também as ciências da cultura nos permitem compreender os fenómenos políticos, artísticos, literários e sociais a partir das condições em que surgiram, sem nos -dizerem, no entanto, se tais fenómenos têm ou tiveram algum valor ou mesmo se valerá a pena tentarmos conhecê-lo. Neste sentido, a própria ciência é uma "vocação" (Beruf): a vocação da clareza, isto é, do conhecimento que o homem pode ter dos fins das suas próprias acções e dos meios para os realizar (Ib., p. 592). § 747. TOYNBEE Está relacionado com Spengler, directa e polemicamente, o historiador inglês Arnold J. Toynbee (nascido em Londres em 1889), autor de uma grande obra em 10 volumes intitulada Um esiudo da his255 toria, a génese da civilização (1934-54), e de dois volumes, A civilização posta à prova (1949) e O mundo e o ocidente (1953). Toynbee concorda com Spengler ao assumir como unidade mínima da indagação histórica a civilização (ou cultura), e ao considerar esta indagação como tendo por fim a formulação de uma morfologia da civilização, isto é, uma ciência das "leis" que presidem ao seu desenvolvimento; mas opõe-se polemicamente a Spengler quando efectua esta indagação, como ele próprio declarara, recorrendo ao método empírico da tradição inglesa e não ao método apriorístico da tradição alemã (Civilization ou Trial, p. 10). Por conseguinte, a civilização não é para Toynbee um organismo sobreposto às necessidades do determinismo
biológico mas sim uma totalidade de relações não-necessárias entre indivíduos que encontram nela uma forma de comunicarem, mas que conservam a sua capacidade de iniciativa e um certo grau de liberdade. Deste ponto de vista, é possível uma comparação entre as civilizações, as quais não são (como pensava Spengler) mundos absolutos fechados sobre si mesmo. A ciência empírica da história consiste precisamente em comparar as diferentes civilizações e em encontrar no desenvolvimento de cada uma delas os traços que lhes sejam comuns ou uniformes: que, por um lado, permitam a compreensão das conexões causais que se verificam no âmbito de uma mesma civilização ou na relação entre diferentes civilizações e que, por outro lado, consistam na formulação, a partir destas conexões, de urna previsão provável sobre o desenvolvimento 256 de uma determinada civilização. Tudo isto, segundo Toynbee, não permite que se reduza o desenvolvimento das diferentes civilizações a um único esquema, já que tais civilizações conservam linhas de desenvolvimento independentes e processos evolutivos diversos (A study of History, 1, págs. 149 e segs.). Deste ponto de vista não se podem encontrar factores que determinem, necessariamente a génese e o desenvolvimento das civilizações. Os dois factores a que mais frequentemente se atribui este poder determinante, o ambiente físico-social e a raça, são ambos criticados por Toynbee ao afirmar que se tais factores fossem rigorosamente determinantes, a sua acção deveria ser sempre uniforme e conduziria sempre aos mesmos efeitos; o que na realidade não acontece. Por outro lado, isto não significa que a acção dos homens na história seja independente de quaisquer condições que a limitem, ou seja, absolutamente livre; Toynbee elabora sobre este assunto a sua mais famosa doutrina, a da provocação e resposta. Uma civilização surge, diz Toynbee, quando um grupo de homens consegue fornecer uma resposta eficaz a uma provocação do ambiente físico e do ambiente social que o rodeia. Todo o ambiente físico-social, toda a situação em que os homens se encontrem, coloca-os perante uma provocação; mas a natureza da resposta que elos derem a tal provocação não pode ser previsível de forma rigorosa, dependendo por isso dos próprios homens (A Study of History, 1, págs. 271 e segs.). O reconhecimento de um certo grau de liberdade no agir humano é indispensável, segundo Toynbee, para compreender 257 a diferente génese e o diferente desenvolvimento que tiveram as civilizações humanas quando se encontraram perante condições objectivas uniformes e constantes-Mas, por outro lado, este grau de liberdade não é infinito: a situação em que os homens se encontram actua como limite condicionante. Podemos dizer, para exprimir o ponto de vista de Toynbee, que a provocação consiste sempre num problema ao qual os homens dão uma solução: o problema condiciona a solução mas admite, em si mesmo, várias soluções, pertencendo aos homens a opção entre estas diferentes soluções. Isto explica a diversidade recíproca
das civilizações e, ao mesmo tempo, a uniformidade que elas apresentam e que as torna confrontáveis. É sobre esta base que Toynbee nega a legitimidade da pretensão, defendida por Spengler, de prever infalivelmente a morte da civilização ocidental. Esta civilização encontra-se certamente em crise; mas a sua sorte não pode ser determinada antecipadamente, visto depender do modo como os homens que nela vivem possam responder a esta provocação. Toynbee pensa, no entanto, que a sorte de uma civilização está necessariamente relacionada com um reforço do espírito religioso. Neste ponto, a sua doutrina resulta estéril, acentuando-se tal situação nos últimos livros que escreveu. Como resultado dever-se-ia concluir que a génese e o desenvolvimento de todas as civilizações ocorrem segundo determinadas linhas que só podem ser encontradas empiricamente, e que a comparação entre elas exige a determinação de tais linhas mediante critérios metodológicos precisos; mas Toynbee dá 258 mais importância a este último aspecto, elaborando um conjunto de 21 civilizações sem que tal número seja suficientemente justificado e escolhendo certas determinações constitutivas dessas civilizações sem obedecer a um critério justificado ou justificável. Por outro lado, atribui ao cristianismo uma função extremamente importante na conservação e no progresso das civilizações, fazendo dele o fim de tal progresso, já que " as civilizações têm a sua raison d'être na sua contribuição para o progresso espiritual" e que o desenvolvimento das várias religiões deve conduzir a "um mútuo reconhecimento ida sua unidade essencial apesar da sua diversidade" (1b., VII, p. 448). Esta doutrina torna-se assim uma espécie de teologia da história e um anúncio profético do êxito místico final da história humana. § 748. HISTORICISMO: CORRENTES METODOLóGICAS Resulta evidente do que foi dito neste capítulo que o historicismo (como, aliás, todas as correntes filosóficas) não constitui no seu conjunto uma doutrina única e coerente que se fosse diversificando, em cada pensador, por aspectos particulares. A unidade do historicismo (como de todas as outras correntes) é a unidade do problema que ele enfrenta: o do conhecimento histórico, do seu objecto e dos N. dos T. - Em francês no texto original. 259 seus métodos. Pode-se sem dúvida estabelecer uni balanço dos resultados obtidos por esta corrente pondo em evidência os pontos em que haja acordo unânime, ou quase unânime, de todos os seus defensores: dela resulta, por exemplo, o reconhecimento do carácter individual do objecto histórico e, por outro lado, o do carácter específico do instrumento de que se serve o conhecimento histórico, isto é, o da compreensão ou da interpretação historiográfica. Mas, para além da constatação da existência destes pontos, que foram, aliás, atingidos e justificados diferentemente por cada um dos pensadores, e da unidade do problema, não se pode falar do "historicismo" como tratando-se de uma doutrina única e simples que possa ser examinada, discutida e refutada na sua totalidade. Mas até mesmo
esta tentativa, que foi realizada por muitos escritores contemporâneos, revela, na disparidade dos alvos que cada um -deles pretendia atingir com a sua crítica, o erro de tal atitude. Com efeito, estabelece-se por um lado a equação entre historicismo e relativismo e objecta-se precisamente ao historicismo a sua incapacidade de garantir o carácter normativo dos valores e a obra da razão, como fez Leo Strauss (Natural R!-*ght and History [Direito natural e história], 1953); ou a sua incapacidade de dar um sentido total à história, como fez Jaspers (Vom Ursprung und Ziel der Geschichte [A origem e o fim da história], 1949); ou a tentativa de substituir uma fé fictícia à autêntica fé religiosa, como fez Karl Lõwith (Meaning in His- tory [Significado da história], 1949). Ou então negu-se aquela identificação e vê-se no historicismo a ')60 defesa dos valores humanos, como fez Theodor Litt (Die Wiedererweckung des geschichtlichen Bewusstsein [0 despertar da consciência histórica], 1956)-, ou ainda urna manifestação ido "essencialismo", isto é, da metafísica tradicional e, parcialmente, o recurso a esquemas científicos superados por esse carácter metafísico, como fez Karl Popper (The Poverty of Historicism [A pobreza do historicismol, 1944). Em todas estas interpretações e críticas descuram-se precisamente as manifestações mais salientes do historieismo, isto é, os resultados obtidos por Dilthey e Weber. A sequência do historicismo alemão contemporâneo deve, portanto, ser procurada, mais do que nesta literatura polémica, na continuação do trabalho metodológico que o historicismo iniciou no campo das ciências da cultura: ou seja, na discussão, na experimentação e na rectificação dos resultados a que ele chegou. Deste ponto -de vista, o problema mais importante continua a ser o da natureza e limites do instrumento cognoscitivo, de que dispõem essas ciências, ou seja, o do esquema explicativo a que recorrem. Podem-se então distinguir duas direcções fundamentais: a que tende a relacionar o esquema explicativo próprio destas ciências com o das ciências naturais e a reconhecer na explicação causal a única explicação possível em todo o campo do saber, e a que tende a esclarecer a natureza de uma explicação condicional, considerada específica das ciências da cultura. A primeira direcção foi a adoptada pelo Círculo de Viena (§ 808) e, especialmente, por Otto Neurath 261 (Empirische Soziologie [Sociologia empirical, 1931), tendo surgido mais tarde na Enciclopédia internacional da ciência unificada através de um ensaio do próprio Neurath (Foundations of the Social Sciences [Fundamentos das ciências sociais], 1944); foi defendida por Carl G. Hempel (The Functions of General Laws in History [A função das leis gerais na história], e por Patrick Gardiner (The Nature of Historical Explanation [A natureza da explicação histórica], 1952). Deste ponto de vista, a explicação histórica é uma explicação causal no sentido clássico: consiste em determinar a causa (C) de um acontecimento (A) e esta determinação pode ser feita mostrando apenas como é que o acontecimento A pode ser "logicamente deduzido" de certas leis gerais segundo as quais um conjunto de acontecimentos da espécie C é acompanhado regularmente de um acontecimento da
espécie A (Hempel, in Readings in Philosophical Analysis, 1949, págs. 459 e segs.). A explicação causal é aqui entendida no sentido mais rigoroso (substancialmente aristotélico), como possibilidade de deduzir o efeito a partir da causa pela aplicação de uma lei geral que exprima precisamente a acção da causa. E a explicação histórica distinguir-se-ia da verdadeira e propriamente dita explicação, quando muito, por ser um esboço de explicação, isto é, uma explicação imperfeita ou aproximada. A outra direcção metodológica é defendida sobretudo por historiadores de profissão, os quais procuram esclarecer a natureza dos instrumentos com que operam, e releva principalmente do conceito de Weber da possibilidade objectiva. Podemos encon262 trá-la na obra de Raymond Aron (Introduction à la Philosophie de Vhistoire [Introdução à filosofia da história], 1938); La philosophie critique de l'histoire [A filosofia crítica da história], 1938); em Mare Bloch (Apologie pour l'histoire [Apologia da história], 1954); em Butterfield (History and Human Relations [A história e as relações humanas], 1951; em Pietro Rossi (Lo storicismo tedesco contemporaneo [0 historicismo alemão contemporâneo], 1956, em William Dray (Laws and Explanation in history [Leis e explicação históricas], 1957); em H. Stuart Hughes (Consciousness and Society [Consciência e sociedade], 1958); em John H. Randall (Nature and Historical Experience [A natureza e a experiência histórica], 1958); tendo si-do ainda defendida por historiadores e filósofos americanos em dois volumes colectivos (Theory and Practice in Historícal Study [Teoria e prática nos estudos históricos], 1946; The Social Sciences in Historical Study [As ciências sociais no estudo histórico], 1954). Deste ponto de vista, insiste-se no carácter individualizante e selectivo do conhecimento histórico; nega-se, consequentemente, que este conhecimento tenha por objecto uma totalidade absoluta, o chamado "mundo histórico"; e recorre-se sobretudo à noção -de possibilidade rectrospectiva na explicação histórica insistindo no carácter condicional de tal explicação, no sentido de que esta consiste em individualizar, num campo de possibilidades, as relações que unem a possibilidade decisiva às outras. Pode-se dizer, em apoio desta segunda corrente metodológica, que o esquema explicativo de que se 263 servem as ciências naturais (e, em primeiro lugar, a física) actualmente, já se afastou bastante da explicação causal clássica ou, pelo menos, já se afastou tanto,dela quanto esta corrente metodológica, iniciada por Weber, se afastou do esquema explicativo, proposto na primeira fase do historicismo, da compreensão intuitiva (§ 736). A polémica metodológica entre ciências do espírito e ciências da natureza perdeu muito da sua força com esta aproximação; e o esquema explicativo condicional, que ela tende a esclarecer, pode considerar-se igualmente afastado do necessitarismo a que recorria a ciência clássica da natureza e do indeterminismo a que recorreu, nas suas polémicas iniciais, o historicismo.
NOTA BIBLIOGRÁFICA § 735. Sobre o historicismo alernão, podem-se considerar fundamentais as seguintes obras: PIETRo Rossi, Lo storicismo tedesco coni6mporaveo, Turim, 1936; RAYMOND ARON, La philosophie critique de Ilhistoire, Pariis, 1950. § 736. U@ Dilthey, existe uma bibliografia completa das suas obras em "Archiv für Geschichte, der Phil.", 1912, págs. 154-61. Os escritos destle autor foram recrlhidos em Gc_,avi~Ite Schriften, 12 vols., Leipzig, 1923-36. Critica della ragione storica, antologia de escritGs de Dilthey com introwdução e, bíbliografia do Pietro R(ssi, Turim, 1954. Sobre Dilthey: L. LANDGREBE, W. Ws Theoric der Geiste~i,ssenschaften, Halle, 1928; G. MiSCH, 1,ebensphilo,sophie und Phãnomenologie, Leipzi.-Berlim, 1931; D. BISCHOFF, W. Ws geschichtliche Lebensphilosorhie, 264 Leipzig-Berlim, 1935; O. F. BOLLNOW, Dilthey, Le@,pzig-Berlim, 1936; H. A. HODGES, W. D., an Introduction, Londres, 1944; The Phil. of W. D., Londres, 1952; P. Rossi, in "Riv. crit. L,@toria filos.", 1952-53. § 739. De Simmel, além dos. iescritos citados: Zur Philosophie der Kunst, Potsdam, 1923; Vorlesungen iiber Schulpãdagogíe, Osterwiedik, 1922; Fragmente und Aufsãtze, Munique, 1923. os problemas fundamentais da filosofia foram trauduzidos para italiano lyo;r A. Banfi, Florença, 1922. O artigo a que se alude no texto foi publicado em "A@rchiv für systemati,<@iche Philosophile", 1895, :e depois em Zur Philosophie der Kunst, págs. 111 e @segs. Sobre Simmel: A. MAMELET, Le relativisme philosophique chez G. S., Paris, 1914; M. ADLER, G. S.'8 Bedeutung für die Geistesgeschichte, Vilena-lieipzig, 1919; N. J. S~MAN, The Social Theory of G. S., Chicago, 1925; H. WOLFF, The Sociology of G. S., Glenco,e, 111, 1950; A BANFI, in. Filasofi contemporanei, Milão, 1961, pá.-s. 161-212. § 740. De Spengller, Der Untergang des AbendIandes vem citado na edição definitiva, 2 võls, Munique, 1918-22. Trad. italiana de J. EVolia, Milão, 1957. Sobre Spengler: A. MESSER, O. S. als Philosoph, Stuttgart, 1924; A. FAUCONNET, O. S., Paris, 1925; E. GAUliE, S. und die Romantik, Berlim, 1937; H. S. HUGHES, O, S., Nova Iorque, 1952; PIETRo Rossi, Storia e storicismo nella filosofia Milão, 1960, págs. 68-89. Bibliografia in M. SCHROETER, Metaphysik des Untergangs, Munique, 1949. § 741. De Tro,eltsch, Gesammelte Schriften, 4vo,ls., Tübingen, 1922-25; Gesammelte aufsãtze Geistesgeschichte und Religionsoziologie, Tübingen, 1925. Sobre,, Troeltseb.: E. VERMEIL, La pensée religieuse de T., Paris, 1922; W. KOKLER, E. T., Tübingen, 1941. § 742. De Meinecke, além das obras citadas lio texto, os ensaios recolhidos em Vop geschiclitliehcn 265
Sinn und vom Sinn der Geschichte, Leipzig, 1939; trad. italiana, Nápoles, 1948. Sobre Meinecke: CROCE, La storia come pensiero e come azione, Bari, 1938, págs. 51-73; W. HOFER, Geschicht8chreibung und Weltan-schauung, Munique, 1950; CHABOD, in "Rivista Storica Italiana", 1955, págs. 272-88; W. STARK, Introdução à tradução inglesa da Ide'a da razão de Estado, publicada sob o titulo MacMavellism, New Haven, 1957. § 743. De Weber, Gesammelte, Aufsãtze zur Reiigionsoziologie, 3 vols., Tübingen, 1920-21; Gesammeite Aufsãtze zur Sozial-und Wirtschaftgsechichte, Tübingen, 1924; Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre, Tübingen, 1925. Traduções italianas: Lletica protestante e lo spirito del capital@smo, Roma, 1945; Il lavoro intellettuale come professione, Turim, 1948; 11 metodo delle seienze storico-sociali, Turim, 1958 (contém os ensaios metodológicos fundamentais); Econonzia e società, 2 vols., Milao, 1961. Sobre Weber: MARIANNE WEBER, M. W., ein, Lebensbild, Tübingen, 1921; K. JASPERS, M. W., Oldenburg, 1932. § 744. Sobre a metodologiade, Weber: B. PFISTER, -Die Entwicílung zum Idealtypus (Eiue A1ethodolog@sche Untersuchung über das Verhã1tnis von Theorte und Geschichte bei Menger, Schmoller und M. W.), Tübingen, 1928; W. BIENFAIT, M. W.Is Lehre vom geschichtUchen Elkennen, Berlim, 1930; A. VON SCHELTING, M. W.18 Wissenschaftslehre, Tübingen, 1934; T. PARSONS, The Structure of Social Action, 1937; 2.1 edi~ ção, Glencoe, 111., 1949; PIETRO Rossi, Storia e storicismo nella filosofia contemporanea, cit. págs. 93-132. § 745. Sobre a sociologia de Weber: T. PARSONS, Op- cit.,; R. ARON, La sociologie allemande contemporaine, Paris, 1950. § 746. Sobre o conceito de aval,,>rabilidade: A. VON SCHELTING, Op. cit.; R. ARON, La phil. critique 266 de Phistoire, Cit.; PIETRO ROSSI, 1,o storicismo tedesco contemporaneo, cit. § 747. De Toynbee: foram traduzidos para italiano os dois primeiros volumes da sua obra principal sob o titulo Panorami della storia, Milão, 1954; Civiltà al paragone, trad. italiana de G. Paganelli e A. Pandolfi, Milão, 1949; Il mondo e Poccidente, @trad. italiana de G. Cambon, Milão, 1956. Sobre Toynbee: P. GEYL, The Pattern of the Past, Boston, 1949; E. F. J. ZAHN, T. und das Problem der Geschichte, Kõln und OppIaden, 1954; PIETRo Rossi, in "Filosofia", 1952, págis. 207-50; Storia e storicismo nella filosofia contemporanea, cit., págs. 333-60; O. ANDERLE, Das universalhistorische System A. J. T., Frankfurt am. Main, 1955 (inclui uma bíbliografia). § 748. Sobre os autores citados na última parte do capitulo, consultar PIETRo Rossi, Storia e storicismo nella filosofia contemporanea, cit., e as indicações bibliográficas nele incluídas.
267 íNDICE III - BERGSON
... ... ... ...
7
§ 692- Vida e Obra ... ... ... ... ... 7 § 693. A duração real ... ... ... ... 9§ 694. Espírito e corpo ... ... ... ... 13 § 695. O impulso vital ... ... ... ... 17 § 696. Instinto e inteligência ... ... ... 20 § 697. A intuição ... ... ... ... ... 24 § 698. Gênese ideal da matéria ... ... 27 § 699. Sociedade fechada e sociedade aberta ... ... ... ... ... . 1. 30 § 700. Religião estática e religião dinâmica ... ... ... ... ... ... 32 § 701. O possível e o virtual - . ... ... Nota bibliográfica ... ... ... ...
40
IV-0 IDEALIS1W0 INGLÊS E NORTE-AMERICANO § 702. Características do idealismo norte-americano
36
... ... ... ...
...
... ... ... ... ... ... ... ...
43
43 § 703. As origens do idealismo inglês e
45
269 § 704. Bradley ... ... ... ... ... ... 53 § 705. Desenvolvimento do idealismo inglés ... ... ... ... ... ... ... 59 § 706. MeTaggart ... ... ... ... ... 61 § 707. Royce ... ... ... ... ... ... 68 § 708. Outras manifestações do idealismo inglês e norte-americano 77 Nota bibliográfica ... ... ... ...
81
V -0 IDEALISMO ITALIANO
... ... ... ...
85
§ 709. Características e origens do idealismo italiano ... ... ... ... ... 85 §710. Gentile: Vida e Obra ... ... ... 90 §711. Gentile: o acto puro ... ... ... 92 §712. Gentile: a dialéctica -do concreto e do abstracto
... ... ... ... ...
96
§713. Gentile: a arte ... ... ... ... 102 §714. Gentile: a religião ... ... ... ... 105 §715. Gentile: o direito e o estado ... 107 §716. Croce: Vida e Obra ... ... ... 111 270 § 717. Croce: a filosofia do espírito ... 113 § 718. Croce: a arte ... ... ... ... ... 116 § 719. Cr(>ce: a ciência, o erro e a forma económica
... ... ... ... ... 123
§ 720. Croce: direito e estado como acções económicas
... ... . --- ... 126
§ 721. Croce: história e filosofia
... ...
Nota bibliográfica ... ... ... ...
130
137
VI -0 NEO-CRITICISMO
... ... ... ... ... 139
§ 722. Caracteres do neo-criticismo Alemanha ... ... ... ... ... ... 140
... 139 § 723. Origens do neo-criticismo na
§ 724. Renouvier: a filosofia critica ... 146 § 725. Renouvier: o conceito da história 151 § 726. O criticismo inglês ... ... ... 155 § 727. A flcxsofia dos valores Windelband 163 § 728. Rickert ... ... ... ... ... ... 168 § 729. Outras manifestações da filosofia dos valores
... ... ... ... ... 174
271 § 730. A escola de Marburgo: Cohen ... 176 § 731. Nato.rp ... ... ... ... ... ... 184 § 732. Cassirer ... ... ... ... ... ... 189 § 733. Brunschvieg ... ... ... ... ... 194 § 734. Banfi ... ... .1 . ... ... ... 200 Nota bibliográfica ... ... ... ...
203
VII -0 HISTORICISMO
... ... ... - ...
§ 735. A filosofia e o mundo histórico ecmpre,ender
207 207 § 736. Dilthey: a experiência vivida e o
... ... ... ... ... 210 § 737. Dil'hoy: as estrutura-- do mundo
histórico ... ... ... ... ... ... 215 § 738. Dilthey: o c,)nceito da filosofia 219 § 739. Simmel - ... ... ... ... ... 222 § 740. Spengler ... ... ... ... ... ... 227 § 741. Troeltsch ... ... ... ... ... ... 231 § 7-12. Meinecke ... ... ... ... ... ... 236 § 743. Weber: 4ndividualidade, significado, valor ... ... ... ... ... 239 272 § 744. Weber: a possibilidade objectiva 243 § 745. Weber: a sociologia interpretativa 248 § 746. Weber: descrição e valoração ... 251 § 747. Toynbee ... ... ... ... ... - 255 § 748. Correntes metodológicas Nota bibliográfica .. ... (fim)
... - 264
... - 259
História da Filosofia Volume treze
Copyright by NICOLA AB13AGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. R. Augusto Gil, 2 e/v.-E. - Lisboa VIII O PRAGMATISMO § 749. PRAGMATISMO E PRAGMATICISMO O pragmatismo é a forma que foi assumida, na filosofia contemporânea, pela tradição clássica do empirismo inglês. O caminho seguido pelo empirismo clássico consistia em explicar a validade de um conhecimento reportando esse mesmo conhecimento às condições empíricas que o determinavam, e em realizar uma análise da experiência com vista a determinar tais condições empíricas. Para Locke como para Hume, para Hume como para Stuart MilI, pode-se considerar verdadeira uma determinada proposição ou, em geral, pode-se considerar válido qualquer produto da actividade humana desde que se possa encontrar na experiência os elementos de que resulta e desde que estes estejam relacionados entre si do mesmo modo que na experiência. Neste contexto, a experiência é uma progressiva acumulação e registo de dados e, também, a sua organização ou sistematização. Deste modo, a experiência em que se baseava o empirismo clássico era, substancialmente, uma experiência passada: constituía um património limitado que podia ser inventariado e sistematizado de forma total e definitiva. Para o pragmatismo, a experiência é substancialmente abertura para o futuro: uma sua característica básica será a sua possibilidade de fundamentar uma previsão. A análise da experiência não é portanto o inventário de um património acumulado mas a antecipação ou previsão do possível desenvolvimento ou utilização deste património. Deste ponto de vista, uma "verdade" é-o não porque possa ser confrontada com os dados acumulados da experiência passada mas sim por ser susceptível de um qualquer uso na experiência futura. A previsão deste possível uso, a determinação dos seus limites, das suas condições e dos seus efeitos, constitui o significado dessa verdade. Neste sentido, a tese fundamental do pragmatismo é a de que toda a verdade é uma regra de acção, uma norma para a conduta futura, entendendo-se por "acção" e por "conduta futura" toda a espécie ou forma de actividade, quer seja cognoscitiva quer emotiva. O pragmatismo constitui o primeiro contributo original dos Estados Unidos da América para a filosofia ocidental. Assumiu duas formas básicas: uma forma metafísica, que é uma teoria da verdade e da realidade (James, Schiller, etc.) e uma forma metodológica, que pode ser considerada como uma
teoria do significado (Peirce, Mead, Dewey, etc.). O próprio Peirce, que é o seu fundador, prefere designar esta segunda forma de pragmatismo com o nome de pragmaticismo para a distinguir da forma metafísica (Coll. Pap., 5, 411-37). § 750. PRAGMATISMO: PEIRCE O fundador do pragmatismo foi Charles Sanders Peirce (1839-1914), um conhecedor de lógica simbólica e de semiótica e um genial divulgador de doutrinas científicas. Os seus escritos aparecem, sob forma de ensaios e artigos, em vários periódicos americanos. Uma primeira recolha, publicada em 1923, com o título Acaso, amor e lógica, chamou a atenção para a importância da sua obra: importância que nos parece ainda maior depois da publicação da recolha completa dos seus escritos. No campo da lógica simbólica, o seu maior contributo relaciona-se com a lógica das relações que devia, mais tarde, encontrar a sua sistematização na obra de Russell. No âmbito da semiótica, ou seja, da teoria dos signos, Peirce retomou-a teoria estóica do significado (§ 92) em termos que lhe deram direitos de cidadania na lógica moderna. "Um signo ou representação é qualquer coisa que se encontra em qualquer relação com outra coisa. Ele surge numa determinada pessoa e dirige-se a uma outra em cujo espírito cria um signo equivalente ou até mais desenvolvido. O signo que ele cria é chamado interpretante do primeiro signo. O signo existe para qualquer coisa que é o seu objecto. Entre o objecto e o signo estabelece-se um determinado tipo de ideia que é chamado fundamento (groud) do signo" (Coli. Pap., 2, 228). Aquilo que Peirce entende por interpretante-fundamento é o que os estóicos designavam por significado. Aquilo a que Peirce chama objecto é o que os estóicos chamavam coisa, com a diferença de que o objecto pode ser qualquer coisa, perceptível, imaginável ou, se for possível, não imaginável. Quando o objecto do signo é uma coisa real, o signo torna-se uma proposição que, relativamente ao objecto, pode ser considerada verdadeira ou falsa (ib., 2, 310). Um aspecto original da semiótica de Peirce é a consideração daquela característica do processo semiótico que mais tarde seria chamado de pragmático: isto é, da situação em que se pode verificar esse processo assumindo a forma de asserção. Com efeito, Peirce define a asserção como sendo a prova, dada por quem fala a quem escuta, de que se acredita em qualquer coisa, ou seja, que se considera uma determinada ideia como definitivamente correcta em certa ocasião. Assim, pode-se considerar a existência de três partes em qualquer asserção: um signo da ocasião, um outro da ideia e ainda uma representação da evidência dessa ideia, evidência que é sentida por aquele que fala ao identificar-se com o próprio rigor científico (ib., 2, 335). Estas concepções de Peirce demonstraram ser fecundas na lógica e na semiótica contemporânea, do mesmo modo que se tomaram fecundas as múltiplas distinções e clas10
sificações dos signos que ele forneceu nos seus escritos. A tese filosófica fundamental de Peirce é que o único fim de toda a indagação ou forma de proceder racional é o estabelecimento de uma crença, entendendo-se por crença um hábito ou uma regra de acção que, mesmo que não conduza imediatamente a um acto, toma possível um dado comportamento quando se apresenta uma certa ocasião. Peirce admite que existem vá rios métodos para estabelecer uma crença e reconhece vantagens em qualquer um desses métodos. O método da tenacidade, utilizado por quem se recusa a pôr em discussão as suas próprias ideias, pode conduzir ao sucesso a pessoa obstinada. O da autoridade, impedindo a manifestação de opiniões discordantes, pode conduzir à paz. O método a priori ou metafísico, que admite apenas os princípios que estão "de acordo com a razão", dá origem a brilhantes construções intelectuais, mesmo que sejam disparatadas e incontroláveis. Todos estes métodos têm em comum o facto de não poderem, em si mesmos, serem considerados falsos: qualquer deles exclui a possibilidade de erro e, portanto, duma eventual correcção. O método científico é o único que inclui em si próprio a possibilidade de erro e que se apresenta organizado de modo a admitir correcções. "Posso partir de factos conhecidos ou observados para chegar àquilo que não conheço - afirma Peirce. No entanto, as regras que utiliza ao fazê-lo podem não estar de acordo com a minha indagação; mas o único critério para o avaliar, para ver se sigo ou não o método mais aconselhável, consiste não 11 em fazer apelo aos meus sentimentos ou aos meus fins mas, pelo contrário, em aplicar o próprio método" (Coll. Pap., 5, 585). Por outros termos, a essência do método científico consiste em reconhecer em princípio a sua possibilidade de erro e em ter em si mesmo um critério para avaliar os resultados a que chega e para se corrigir. A possibilidade de erro é, assim, um aspecto essencial da filosofia de Peirce (Ib., 1, págs. 141 e sgs.). Deste ponto de vista, todos os processos de raciocínio se caracterizam pelo facto de se ter,-,.m de corrigir a si próprios. Assim acontece com a indução, que efectua sucessivas generalizações e em que cada uma delas lança uma nova luz sobre as premissas de que se partiu; assim acontece com a dedução, cuja certeza se baseia não na ausência de erro, mas sim na possibilidade de utilizar controles que permitam reconhecer e corrigir os erros (Ib., 5, págs. 575 e s-s.). A sua segunda característica é o critério pragmático do significado, que Peirce expôs pela primeira vez num famoso ensaio de 1878 intitulado "Como tornar claras as nossas ideias". Se a função do pensamento é a de produzir crenças e se a crença é uma regra ou um hábito de actuação, o único caminho para determinar o significado exacto de uma crença e para não nos deixarmos desviar pela diversidade de formulações que ela pode assumir, é o de considerar os efeitos previsíveis que a crença possa ter sobre a acção. Diz Peirce: "Para
desenvolver o significado de uma coisa, devemos simplesmente determinar quais os hábitos que ela produz, pois aquilo que uma deter12 minada coisa significa consiste precisamente nos hábitos a que dá origem. Ora a identidade de um hábito depende da forma como ele pode conduzir a uma dada actuação, não só nas circunstâncias que é provável que se verifiquem mas, também, naquelas que, por muito improváveis que sejam, possam ainda ocorrer. Aquilo que o hábito é depende do quando e do como ele se transforma em acção. Devemo-nos lembrar de que, no que diz respeito ao quando, todo o estímulo à acção deriva da percepção; e que, quanto ao como, o fim da acção consiste em produzir qualquer resultado sensível. E assim chegamos àquilo que é tangível e conceptualmente prático do mesmo modo que se torna possível atingir a raiz de toda a distinção real do pensamento, mesmo da mais subtil; e não existe uma única diferença de significados que não consista numa possível diferença prática" (Coll. Pap., 5, p. 400). Assim, a regra para obter a clareza de uma ideia consiste apenas em considerar os efeitos práticos que possa ter o objecto de tal ideia. A "concepção" do objecto reduz-se assim inteiramente à concepção destes efeitos possíveis (ib., 5, p. 412). Segundo Peirce, isto não nos autoriza no entanto a reduzir a verdade à simples utilidade. Peirce mantém a definição tradicional da verdade como correspondência, no sentido de "conformidade entre um signo e o seu objecto" (Ib., 5, p. 544). No entanto, esta conformidade não é estática mas dinâmica: encontra-se no limite de um processo de indagação que controla ou corri,,e indefinidamente os seus resultados. Neste sentido, a verdade da proposição segundo a qual César atra13 vessou o Rubicão consiste no facto de, quanto mais 71 se desenvolvem os estudos arqueológicos ou de qualquer outra natureza, mais somos obrigados a considerar exacta a conclusão nela expressa (ib., 5, p. 566). Em geral, pode-se dizer que "uma proposição é verdadeira quando é uma crença que não conduz a nenhuma desilusão enquanto não for compreendida de forma diferente daquela como foi inicialmente entendida" (M., 5, p. 569). Este ponto de vista metodológico exige algumas condições para que seja realizado. A primeira consiste na renúncia a todo o "necessitarismo", isto é, a toda a concepção que implique uma necessidade no mundo ou no procedimento da ciência. Todas as formas de proceder utilizadas na ciência (a indução, a hipótese, a analogia) são, segundo Peirce, de natureza probabilística e surgem por sucessivas generalizações a partir de um certo número de casos que se podem considerar como uma razoável amostragem do conjunto. Isto quer dizer que no próprio mundo não existe nenhuma necessidade e que esta não pode ser "postulada" como fundamento do procedimento cientifico e, em geral, de qualquer consideração racional do universo. Esta consideração não exige mas exclui a necessidade; por sua vez, esta não se
pode apoiar em nenhuma prova empírica. Para todos os efeitos, e segundo Peirce, o mundo é o reino do acaso: um acaso onde, no entanto, se podem encontrar constantes ou uniformidades que constituem o objecto da indagação científica e que podem ser expressas por leis (Coll. Pap., 6, págs. 398 e sgs.). Tais uniformidades são simplesmente constituídas pela concor14 dância de certos aspectos positivos e negativos dos objectos, não manifestando portanto nenhuma "ordem" total (ib.). Peirce chama tiquismo a esta concepção do mundo (de tycheacaso ou fortuna). Estas ideias de Peirce revelaram-se extraordinariamente fecundas na filosofia contemporânea e conservam a sua actualidade, sendo ainda eficazes para contrapor a qualquer concepção necessitarista do mundo, quer se trate de um mecanismo materialista quer de um espiritualismo. Mas Peirce apresenta ainda outras ideias mais estreitamente de acordo com o espírito do seu tempo. Na base da sua especulação surge-nos o conceito de evolução, num sentido progressivo e optimista que era aceite por muitos pensadores da época e de anos mais recentes. A característica da evolução a que ele mais se referiu foi a sua continuidade, chamando sinequismo à sua doutrina sobre o assunto. O espírito, isto é, a consciência, é considerado no cume da evolução, e nele se reconhecem três formas da própria evolução: a ticástica, devida ao acaso, a anancástica, devida à necessidade e a agapástica, devida ao amor. É nesta que Peirce mais insiste, pois vê no amor da humanidade o mais alto produto da evolução espiritual (Ib., 6, pgs. 302 e sgs.). § 751. PRAGMATISMO: JAMES O método pragmatista foi enxertado no tronco da filosofia tradicional e utilizado para uma defesa do espiritualismo por William James. Nascido em Nova 15 Iorque em 1842, estudou também na Europa, onde permaneceu posteriormente durante largos períodos. Foi professor de psicologia (1889-97) e de filosofia (1897-1907) na Universidade de Harvard e morreu em 1910. Os seus primeiros estudos foram de fisiologia e de psicologia; é autor de uma obra clássica, Os princípios de psicologia (1890), e de uma obra, igualmente clássica, sobre As diversas formas de experiência religiosa (1902). Os escritos filosóficos de James são colecções de ensaios, de leituras ou cursos de conferências: A vontade de crer (1897); Pragmatismo: novo nome para velhos modos de pensar (1907); O significado da verdade: continuação do pragmatismo (1909); Um universo pluralista (1909). A estes escritos devem acrescentar-se os que foram publicados postumamente: Problemas da filosofia. Começo de uma introdução à filosofia (1911); Memórias e estudos (1911); Ensaios sobre o empirismo radical (1912); Ensaios e recensões (1920), e dois volumes de Cartas (1920), editadas pelo seu filho. James dominou a sua filosofia de empirismo radical; mas o seu empirismo é, como o de Peirce, mais uma perspectivação do futuro do que um balanço do passado. Já nos Princípios de psicologia se pode encontrar a vida psíquica, em geral caracterizada em termos concordantes com essa perspectiva. "A prossecução dos fins futuros e a escolha dos
meios necessários para os alcançar são o aspecto característico e o critério da presença da mentalidade num fenómeno -afirmou James. Todos nós usamos este critério para distinguir o procedimento inteligente e o mecânico. Não atribuímos mentalidade aos paus 16 WILLIAM JAMES e às pedras porque nos parece que nunca se movem com vista a um fim, mas apenas ao serem impulsionados e, neste caso, de forma indiferente e sem sinal de opção" (Princ. of Psych., 1, p. 8). Consequentemente, James acentua a importância do termo final na acção reflexa, típica de toda a actividade mental. A impressão sensorial, deste modo, existe apenas para despertar o processo central de elaboração ou de reflexão, e esse processo central existe só para provocar o acto final. Por isso, toda a acção é uma reacção frente ao mundo externo e o estádio intermédio (pensamento, reflexão, contemplação) é apenas um lugar de trânsito para conduzir à acção. Por outras palavras, "a parte volitiva da nossa natureza domina tanto a parte racional como a parte sensível; ou, em linguagem mais clara, a percepção e o pensamento existem apenas tendo em vista a conduta" (The Will to Believe, p. 114). Ora isto não é mais do que a retomada da tese de Peirce segundo a qual todo o processo de indagação dá origem à determinação de uma crença. Mas enquanto que Peirce se encaminha desta tese para a consideração dos métodos que consentem a determinação da crença e para uma preferência pelo método que torna possível a sua contínua rectificação (método que Peirce considera próprio da ciência), James, assumindo as crenças de que o homem já dispõe, transforma a própria tese num critério para salvar a validade das crenças. E assim se tornam "verdadeiras" as crenças que são "úteis" para a acção. James considera que este método se aplica à própria ciência. Se se prescinde dos fins que são 17 próprios da conduta humana, afirma, a elaboração, feita pela ciência, do material bruto que nos é fornecido pela experiência, não tem significado nem fim algum. Com efeito, a ciência não é um registo impassível dos factos objectivos: pelo contrário, rompe a ordem dada dos fenómenos, estabelece entre eles relações que não pertencem à sua natureza em bruto, tudo isto com o fim de simplificar e de prever. Mas a simplificação e a previsão são fins humanos e, portanto, todo o trabalho da ciência se organiza para a realização desses fins. Seria fácil objectar que a
ciência só pode simplificar e prover na medida em que os próprios factos o consintam, não bastando que se deseje alcançar um determinado fim para que o objecto indagado esteja de acordo com esse fim. Mas James é pouco acessível a este tipo de considerações porque, diferentemente de Peirce, os seus interesses se movem não no campo da ciência mas sim no da moral e da religião. E é nestes campos que ele utiliza o seu critério pragmático da verdade num sentido estritamente fideísta. A tese fundamental de A vontade de crer consiste em que, por ser função do pensamento o servir para a acção, o pensamento não tem o direito de inibir ou cortar a passagem a crenças úteis e necessárias para uma acção eficaz no mundo. Isto não pressupõe, como se deve notar, o direito de crer em tudo o que se queira. Pode suceder que a hipótese a que se refere a crença seja daquelas cuja verdade ou falsidade não pode ser demonstrada; ou, também, que seja uma hipótese viva, isto é, que exerça uma atracção real sobre o espírito daquele que a consi18 dera; ou, finalmente, que seja importante, isto é, decisiva para o indivíduo e que não se refira a questões triviais. Mas se uma hipótese tem estes três caracteres, o homem tem direito a crer, sem esperar que se transforme numa hipótese demonstrada. Em tais casos, deve assumir o risco de tropeçar com o erro, já que, ainda que não assuma esse risco, renunciando a crer, também decide e escolhe praticamente em sentido negativo, comportando-se como se não cresse e afrontando assim praticamente o risco da tese negativa. James apela, a este propósito, para a "aposta" de Pascal e interpreta-a como um risco inevitável que a fé. assim como a falta de fé, comporta. Mas enquanto a renúncia à fé é renúncia a todas as vantagens eventuais que podem proceder da própria fé, a fé, em troca, tem esta vantagem fundamental: pode provocar a sua própria verificação. Isto é verdade. sobretudo, nas relações entre os homens. A simpatia, o amor, conquistam-se com a fé na sua possibilidade. E todo o organismo social, por pequeno ou grande que seja, rege-se pela confiança em que cada um fará o que deve, e é, pois, uma consequência desta confiança. Mas James estende este princípio ainda à estrutura moral do universo. Ainda aqui o homem tem que enfrentar-se com um pode ser e deve correr o risco da fé. Que, por exemplo, a vida seja digna de ser vivida, é coisa que depende unicamente da fé, já que a vida é tal qual nós a consideramos do ponto de vista moral. Certamente, a fé na bondade do mundo visível pode verificar-se apenas partindo da fé num mundo invisível. Mas James crê que esta mesma fé 19 pode, em certa medida, dar origem à sua própria verificação e que o homem se encontra também aqui frente a um pode ser, cujo risco e responsabilidade lhe convém aceitar (The Will to Believe, pág. 61). Deste modo, o pragmatismo é, para James, uma
simples ponte de passagem para o espiritualismo. Ele próprio sublinhou a concordância da sua filosofia com a de alguns espiritualistas franceses, especialmente de Bergson-, mas, por outro lado, ele tentou formular menos dogmaticamente as teses do espiritualismo clássico. A visão espiritualista exige, segundo James, um universo pluralista, isto é, um universo no qual a multiplicidade e a independência relativa dos seres e das consciências tome possível a indeterminação, a sorte, a liberdade, e no qual o progresso seja, por conseguinte, resultante da cooperação de todos os esforços. O monismo, tanto materialista como idealista, faz do universo uma massa compacta no qual tudo é bom ou tudo é mau; no qual tudo está determinado e não há lugar para a acção criadora. Obriga todos os seres a uma responsabilidade comum necessária e tornalhes impossível a opção. O pluralismo, em troca, divide a responsabilidade de cada parte, sem que por isso negue a sua solidariedade efectiva. Reconhece que podem agir mal e que esta possibilidade não é inevitável, nem absolutamente evitável. O progresso do mundo depende assim da colaboração voluntária das suas partes. "0 universo progressivo-diz James no seu último escrito (Introd. à filos., trad. ital., p. 169)-concebe-se, segundo uma analogia social, como uma multiplicidade, um pluralismo de forças 20 independentes que cristalizará exactamente na medida em que o maior número possível delas colaborem para o seu êxito. Se nenhuma delas trabalha nele, falhará; se cada uma delas executa a sua parte o melhor possível, terá êxito. Assim, os seus destinos dependem de um se ou, melhor, de uma série de condições, o que equivale a repetir, na linguagem própria da lógica, que, sendo o mundo até hoje incompleto, o seu carácter total não pode expressar-se senão com hipóteses e não, certamente, com proposições categóricas". Num universo deste tipo, nem mesmo Deus pode ser concebido como omnisciente ou como omnipotente; trata-se de um Deus finito. "No sistema pluralista, Deus, não sendo já o absoluto, tem funções que podem ser consideradas não totalmente diferentes das funções das outras partes menores e por isso semelhantes às nossas. Tendo um meio externo a ele, existindo no tempo e criando a sua história exactamente como nós o fazemos, deixa de ser estranho a tudo o que é humano, pois essa estranheza é própria do estático, intemporal e perfeito Absoluto" (A Pluralistic Universe, págs. 318-19). Um universo pluralista deste tipo assemelha-se mais a uma república federal do que a um império ou a um reino. "Se uma qualquer parte dele constituir uma unidade, referindo-se a um centro efectivo de consciência ou de acção, alguma outra parte governa-se por si mesma e permanece ausente e não reduzida à unidade" (Ib., p. 322). O universo pluralista é assim, em certa medida, sempre um multiuniverso: a sua unidade não é a implicação universal, a integração abso21 luta e a interpretação total das suas partes: é uma unidade de continuidade, contiguidade e concatenação, isto é, uma unidade de tipo sinequista, no sentido que à palavra atribuiu Peirce (Ib., p. 325),
§ 752. PRAGMATISMO: SCHILLER O critério da verdade como utilidade, que James tinha adoptado no domínio moral e religioso, é explicado no domínio lógico e gnoseológico pelo representante inglês do pragmatismo Ferdinand Canning Scott Schiller (1864-1937). Schiller foi primeiro aluno e depois professor em Oxford, Inglaterra; ensinando mais tarde na Universidade de Los Angeles, na América. O seu primeiro livro, Os enigmas da effinge, um estudo sobre a filosofia da evolução (1891), é uma defesa do pluralismo metafísico e uma interpretação do processo evolutivo como coordenação crescente das mónadas individuais que constituem o universo. A sua primeira defesa do pragmatismo encontra-se no ensaio Os axiomas como postulados, publicado no volume de estudos, em colaboração, Idealismo pessoal (editado por H. C. Sturt, 1902). Os seus escritos mais notáveis são os seguintes: Humanismo (1903); Estudos sobre o human.,*smo (1907); Lógica formal (1922); Problemas da crença (1924); Lógica para uso: introdução à teoria voluntarista do conhecimento (1930): Devem os filósofos discordar? e outros ensaios (1934) As nossas verdades humanas (1939). 22 Schiller denomina humanismo o seu pragmatismo e pretende restabelecer todo o pensamento ou procedimento lógico na situação psicológica que lhe dá colorido e significado. Uma "razão pura" que prescinda completamente das exigências da acção parece-lhe uma aberração patológica, uma falta de adaptação que a selecção natural deverá tarde ou cedo eliminar (Studies in Humanism, 1902, p. 8). Na base de todo o conhecimento há um postulado emocional, e na base de todo o raciocínio, uma necessidade prática. O acto lógico fundamental, o juízo, é um acto especificamente humano e pessoal, provocado por um interesse próprio ou por uma necessidade imperiosa. A lógica que quer despersonalizar este acto, redú-lo a um conjunto de palavras e reduz o seu significado ao das palavras que o expressam; mas, assim entendido, não é já um juízo, mas uma pura proposição verbal. O escrito de Schiller intitulado Lógica formal é uma crítica desta lógica e de toda a lógica tradicional; esta última não pode ser utilizada para compreender os procedimentos da ciência e do saber efectivo, e o seu único uso possível é o de servir de jogo intelectual, de um agradável e divertido passatempo (Formal Logic, 1931, p. 388). O procedimento efectivo da ciência obedece ao critério do útil. A verdade da geometria encontra-se toda na sua utilidade para certos fins práticos e a sua validade universal baseia-se somente no interesse universal em reconhecê-la como válida. Nas ciências físicas, a crença nas leis universais baseia-se na necessidade de fazer previsões sobre a existência futura das coisas, a fim de regular a nossa conduta. E o 23 postulado da uniformidade das leis da natureza é apenas um expediente que permite calcular os factos sem esperar pela sua verificação. Uma lei da natureza não é, portanto, senão uma forma compendeada, uma ficção conveniente para descrever o comportamento de uma determinada série de acontecimentos. As coisas do senso comum, os átomos do físico, o
absoluto do filósofo, não são mais do que esquemas de ordenação das múltiplas qualidades dos fenómenos, correspondendo a necessidades práticas determinadas: são abstracções e só valem como realidade enquanto instrumentos para actuar sobre a experiência. Com isto o homem converte-se verdadeiramente, como dizia Protágoras, na "medida de todas as coisas". Contudo, nem tudo o que é útil é verdadeiro. O critério pragmatista não anula a distinção entre verdade e falsidade, e não justifica o uso de ficções, erros, mentiras ou pretensas verdades. O princípio pragmatista age no indivíduo como princípio selectivo, que procura e consolida a utilidade e nela baseia as suas valorações relativamente mais sólidas. Os gostos e os actos dos indivíduos encontram na sociedade uma valoração variável e nem sempre o fim, escolhido por eles obtém a aprovação social, de modo que o acto que eles supõem digno de ser realizado com vista a um fim desejável, pode ser considerado falso e erróneo pelos outros indivíduos. Mas também aqui o único critério selectivo é o da utilidade e eficácia dos conhecimentos ou das proposições examinadas. É esta utilidade e eficácia que determinam o seu reconhecimento social (Humanism, 1912, p. 59). Con24 tudo, a eficácia operatória de uma crença não é igual para todos os homens. Muitos estão dispostos a negar inclusive a eficácia da fé em Deus. Nisto, tudo depende do temperamento pessoal e é impossível dizer alguma coisa a título de regra. O pragmatismo, por este motivo, não conduz (como acreditava James) a uma **con~o espiritualista; apenas se deve preocupar com a defesa da liberdade de escolha humana e da indeterminação -do mundo, isto é, das duas condições que tomam possível a cada indivíduo ou a cada grupo de indivíduos a escolha da sua verdade. Schiller objecta ao determinismo o facto de ser, em si mesmo, um fruto daquela liberdade que nega (Humanism, p. 311); e defende a natureza flexível da realidade, que deve ser tal que se adapte aos fins humanos. É até perigoso estabelecer limites precisos a esta flexibilidade, porque a aceitação destes limites impediria a descoberta das ulteriores possibilidades que essa característica da realidade oferece ao homem. Deste ponto de vista, a filosofia deve incluir na sua síntese toda a idiossincrasia e características da personalidade que a constrói. As filosofias pessoais diferem necessariamente entre si, por mais que possam ser agrupadas em classes naturais segundo certas semelhanças consideráveis que não se verificam entre classes diferentes. Por isso, a história da filosofia mostra o aparecimento periódico dos grandes tipos de filosofia e dos grandes problemas sobre os quais os filósofos discordam. Na realidade, a verdade de unia filosofia só pode ser testemunhada reconstruindo a história 25 psicológica do filósofo (Must Philosophers Disagree?, P. 10). A referência à psicologia individual é característica do pragmatismo de Schiller. O seu humanismo está fortemente impregnado de subjectivismo e de idealismo; e precisamente por isto resolve-se num relativismo radical.
§ 753. PRAGMATISMO: VAIHINGER Urna manifestação análoga e paralela ao pragmatismo é, na Alemanha, a filosofia do como se de Hans Vaihinger (1852-1933), que leva até ao limite extremo a subordinação do conhecimento à acção, recusando identificar a utilidade com a verdade e reconhecendo que podem ser úteis e, portanto, válidas crenças ou doutrinas abertamente contraditórias e falsas. Vaihinger é, em primeiro lugar, um estudioso de Kant, ao qual dedicou um importante comentário (Comentário à crítica da razão pura, 1881-1892). Foi na Crítica da razão pura, e precisamente na dialéctica transcendental, que encontrou a sua primeira inspiração. Ali, com efeito, Kant, depois de ter negado às ideias da razão pura todo o valor objectivo, considerou-as como critérios reguladores da investigação científica, a qual deve proceder como se a unidade absoluta da experiência, expressa pelas ideias de alma, mundo e Deus, fosse possível. Este ponto tinha adquirido particular relevo no neocriticismo de Lange (§ 723) que Vaihinger considera como seu 26 mestre. Lange tinha considerado a metafísica e a religião como livres criações poéticas, falhas de validade científica e destinadas a embelezar e elevar a vida. Já num escrito sobre Lange e duas outras figuras da filosofia alemã (Hartman, Dühring und Lange, 1876, p. 194), Vaihinger atribuía-lhe o mérito de ter colocado a essência da religião na "livre poesia do espírito nos mitos"; e tinha afirmado a necessidade de acudir ao criticismo, não enquanto sistema cerrado, mas enquanto método científico continuamente aberto (Ib., p. 235). Mas, além de encontrar antecedentes nestes pontos kantianos ou neokantianos, a filosofia de Vaihinger encontra-os também na doutrina de Nietzsche, que tinha afirmado decididamente a subordinação dos valores intelectuais à vida e à vontade do poder. A tese fundamental de Vaihinger é a de que todo o conhecimento humano é ficção. A Filosofia do como se (1911) propõe-se demonstrar que todos os conceitos, categorias, princípios e hipóteses de que se servem o saber comum, as ciências e a filosofia são ficções carentes de qualquer validade teórica, muitas vezes contraditórias, e que só se mantêm por É serem úteis. Vaihinger considera que não apenas é assim de facto, porque assim deve ser, como pensa ainda que a única alternativa para o futuro é a de um uso consciente e prudente das ficções como tais. A ficção não pode ser considerada como hipótese. Esta espera ser verificada na realidade e tem a pretensão de reproduzi-Ia. A ficção não tem esta pretensão: é útil, serve para alguma coisa, mas nada mais. São ficções, neste sentido, as categorias fundamentais 27 de que se sorve o pensamento científico: a de coisa e sua propriedade, a de causalidade, a de princípio e consequência. Os conceitos de unidade, de multiplicidade, de existência, etc., não são propriamente categorias, mas antes juízos de percepção que dependem directamente das sensações. Vaihinger mantém-se fiel a um princípio sensualista e vê na realidade apenas a sucessão e a coexistência de sensações singulares, de tendências e de sentimentos. As categorias intelectuais têm como objectivo dominar a massa das
sensações; afora isso, não têm sentido. Todas as ciências se servem de conceitos que têm o mesmo valor pragmático. A primeira ciência que deu o exemplo de um uso sem prejuízo de tais conceitos foi a matemática. Esta, com efeito, tomou como fundamento ficções contraditórias, como as de grandeza infinitamente pequena, de números negativos, racionais ou imaginários, e baseou nestas ficções as suas mais belas construções sistemáticas. Mas também as outras ciências procedem deste modo: assim, a economia política toma como princípio o homo oeconomicus, isto é, movido exclusivamente pelo interesse material. Fertilíssima ficção é, ainda, a própria filosofia, desde a estátua de Condillac até ao Eu de Fichte. Naturalmente, a ficção nem sempre é admitida como tal, e esta tendência produz a oscilação incessante que domina a história do pensamento. Amiúde, com efeito, a ficção transforma-se em hipótese, e esta em verdade demonstrada, em dogma. Este processo é nefasto, mas, felizmente, não é o único: a crítica actua em sentido inverso e trans28 forma o dogma em hipótese; a qual, quando provou ser impossível de demonstrar e intrinsecamente contraditória, converte-se de novo em ficção, isto é, em conhecimento útil. útil para quê? O fim do conhecimento é a vida, e por isso a filosofia não pode propor-se, nem agora nem no futuro, outro objectivo que não seja o de elaborar uma visão do mundo não já teoricamente válida, mas que tome a vida cada vez mais digna de ser vivida e cada vez mais intensa. Uma característica de Vaihinger é ter levado à exasperação o contraste entre o valor teórico e o valor utilitário ou vital da ficção. Vaihinger não renuncia ao valor teórico, entendido no sentido tradicional, como valor puramente racional, porque inclusivamente se serve dele como critério para julgar contraditórias ou falsas as ficções cognitivas. Mas, por outro lado, afirma que todo o conhecimento é ficção, porque o seu objectivo não é nem pode ser outro senão o de servir a vida. Como se explica então a origem e a persistência no conhecer, e na própria filosofia de Vaihinger, daquele valor teórico que permite julgar logicamente o próprio conhecimento? Vaihinger vê nos conceitos fundamentais da matemática ficções contraditórias; mas, na realidade, esses conceitos não são tais no âmbito do discurso matemático pois, se os considerasse como contraditórios, já não os poderia empregar. A contradição é extrínseca, e nasce do facto de considerar os conceitos matemáticos tomando como base um critério que não é aquele pelo qual são formulados e empregues na própria matemática. 29 § 754. PRAGMATISMO: DE UNAMUNO Como manifestação do fideísmo pragmático contemporâneo podemos considerar a obra de Miguel de Unamuno. Nasceu em Bilbau, Espanha, em 29 de Setembro de 1864 e foi durante muitos anos professor e reitor da mais famosa Universidade espanhola: a de Salamanca. Exaltador entusiasta de Espanha e, sobretudo, da tradição espanhola, Unamuno defendeu a liberdade contra o rei Afonso XIII e a ditadura de Primo de Rivera; perdeu a cátedra, foi deportado e depois viveu desterrado em Paris. Voltou a Espanha em 1930, após a queda da ditadura. Durante a guerra civil foi partidário do regime franquista. Morreu em 31 de Dezembro de 1.936. Unamuno foi literato, novelista, dramaturgo, poeta: as suas ideias filosóficas encontram-se expostas, sobretudo, na Vida de D. Quixote e Sancho (1905) e no escrito O sentimento trágico da vida (1913), assim como em numerosos artigos e ensaios menores.
A tese fundamental de Unamuno é a mesma do pragmatismo e de toda a filosofia da acção: a subordinação do conhecimento, do pensamento, da razão, à vida e à acção. "A vida - diz (Vida de D. Quixote e Sancho, p. 111) - é o critério da verdade e não a concordância lógica, que o é apenas da razão. Se a minha fé me leva a criar ou a dignificar a vida, para que quereis mais provas da minha fé? Quando as matemáticas matam, as matemáticas mentem. Se caminhando, moribundo de sede, vês uma visão daquilo que chamamos água e te diriges para ela e bebes, e te salvas aplacando a sede, aquela visão em 30 verdadeira e a água era real. Verdade é o que, levando-nos a agir de um modo ou doutro, nos leva a conseguir realizar o nosso intento". A verdade, quer seja doutrina ou lenda, poesia ou ciência, mito ou conceito, só o é pelo impulso que dá à vida, por ajudar a viver e a agir. A resposta que D. Quixote dá ao Padre que põe em dúvida a verdade dos livros da cavalaria, sabendo que ele, D. Quixote, desde que se armou cavaleiro, adquiriu todas as virtudes, parece a Unamuno a própria definição da verdade como tal (ib., p. 134). Mas, ao lado deste elemento pragmatista, há na doutrina de Unamuno um elemento racionalista, que contrasta mais ou menos com ele: a afirmação do carácter obscuro, arbitrário, inconsciente e, no fundo, irracional de toda a doutrina ou crença. "A filosofia - diz Unamuno (Sentimento trágico, trad. ital. p. 10-11)responde à necessidade de formar uma concepção unitária e total do mundo e da vida e, como consequência desta concepção, um sentimento que gera uma atitude íntima e, por último, uma acção. Mas resulta que este sentimento, em vez de ser consequência daquela concepção, é uma sua causa. A nossa filosofia, isto é, o nosso modo de compreender ou não compreender o mundo e a vida, nasce do nosso sentimento relativamente à própria vida. E este, como tudo o que é afectivo, tem raízes subconscientes, inconscientes talvez". Devido a esta origem irracional a filosofia não é, para Unamuno (como o é, contrariamente, para o pragmatismo americano), uma investigação que, apoiando-se precisamente no critério da validade pragmática, critique, escolha ou 31 construa conceitos ou doutrinas; é uma exaltação da fé pela fé, do crer pelo crer e (dado que a fé e o crer não são mais que a própria vida) da vida pela vida. Assim, a fronteira entre a realidade e o sonho esfuma-se; e Una-muno repete continuamente o toma do famoso drama de Calderón, A vida é um sonho, reduzindo a verificação pragmática da fé a um elemento do sonho e tirando-lhe assim toda a consistência e valor. "Era vez de investigar se são gigantes ou moinhos aquelas coisas que se nos apresentam como prejudiciais, não seria talvez melhor escutar a voz do coração e atacar? Porque todo o assalto generoso
transcende o sonho da vida. Dos nossos actos e não das nossas contemplações extrairemos sabedoria. Sonhai, Deus do nosso sonho!" (Vida de D. Quixote e Sancho, II, p. 148). O próprio Deus se converte num "Deus do sonho", um Deus que nada tem de racional, um "Deus arbitrário" (Sent. trág., p. 182). Esta posição tira ao critério pragmatista toda a capacidade de escolha, de crítica, de libertação; e conduz de facto Unamuno à aceitação pura e simples da tradição espanhola, que ele identifica com a vontade de ser o braço secular da Igreja católica, contra a razão, contra a ciência, contra todo o desvio da fé. "Sinto em mim uma alma medieval - diz Unamuno (Sent. trág., p. 344) -e creio que é medieval a alma da minha pátria... O quixotismo não é mais que a luta da Idade Média contra o Renascimento, que deriva dela". A exaltação que Unamuno faz da Espanha (sobretudo no escrito Em redor do casti32 UNAMUNO cismo, 1902) é a exaltação de um sonho imóvel, fora do tempo. Há, indubitavelmente, um elemento existencialista na filosofia de Unamuno e é um elemento que tira de Kierkegaard, o "irmão. Kierkegaard". É o conhecimento, de que a verdade é intrínseca ao homem, à própria substância do homem singular, e o repúdio de toda a verdade abstracta e objectiva, considerada como inoperante e estéril. E do existencialismo há também em Unamuno o sentido da incerteza incliminável da vida e da própria fé que, precisamente porque é incerta, luta e se esforça por revelar-se na acção. Mas estes elementos fá-los valer Unamuno a propósito de um único problema, o da imortalidade, levado até à sua mais aguda exasperação irracionalista. Vê na exigência de imortalidade, na fé na imortalidade, a afirmação da vida contra a morte; e no carácter irracional desta exigência e desta fé vê a própria condenação da razão. E, contudo, a sua conclusão é que a incerteza deve permanecer e que a vida humana só é possível na base desta -incerteza (Sentim. trág., p. 134 e sgs.). O quem sabe? - diz ressoa na consciência tanto daquele que afirma como daquele que nega a imortalidade. Mas, assim, a função central e directiva que Unamuno quer atribuir à crenç a na imortalidade resulta implicitamente negada. A incerteza é própria também, inclusive mais própria, daquele que não crê; e se só a incerteza é vital, nenhuma diferença pragmática subsiste verdadeiramente entre quem afirma e quem nega a imortalidade. 33 § 755. PRAGMATISMO: ORTEGA Y GASSET No limite entre o pragmatismo e o existencialismo pode ser colocada a obra do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), que nasceu em Madrid mas estudou e se formou na Alemanha. As ideias filosóficas de Ortega y Gasset estão expostas sobretudo nos ensaios O tema do nosso tempo (1923), Meditação sobre Quixote (1914), A rebelião das massas (1930), Em torno de Galileu (1933), Ideias e crenças (1940), História como sistema (1941).
Ortega vincula-se ao pragmatismo pela sua afirmação explícita de que a inteligência, a ciência, a cultura, estão subordinadas à vida e não têm outra função para além daquela que lhes é inerente como utensílios para a vida. A crença contrária, a subordinação da vida à inteligência, deixa a inteligência suspensa no ar, sem raízes, à mercê de duas tendências opostas que concordam em destruí-Ia: a hipocrisia da cultura e a insolência anticultural. Contra o intelectualismo tradicional, que acreditava que o homem tem, certamente, a obrigação de pensar, mas que não pode viver sem pensar, Ortega afirma que o homem, para viver, deve pensar; e se pensa mal vive mal, "em pura angústia, dificuldades e mal-estar" (Esquema da crise, trad. ital., p. 47). Ora esta subordinação do saber à vida implica a resolução do ser das coisas no agir humano. As coisas não têm um ser em si: têm um ser construído pelo homem que, tendo que operar com elas, deve elaborar o programa da Sua conduta e planear o que lhes pode ou não fazer e o que delas pode esperar. "Na realidade, eu preciso 34 de saber o que devo fazer com aquilo que me rodeia. Este é o verdadeiro sentido originário do saber: saber o que devo fazer. O ser das coisas consistiria na forma do meu comportamento relativamente a elas" (Ib., p. 43). Daqui nasce o carácter subjectivo e pessoal de todo o saber: nenhum problema diz respeito ao ser das coisas mas apenas e sempre à atitude humana em relação a elas. No entanto, isto não torna as coisas subjectivas, do mesmo modo que não torna objectivas as relações do eu com as coisas. "Eu sou eu e a minha circunstância", diz Ortega na Meditação sobre Quixote.- englobando na "circunstância" todo o mundo externo ou interno, todo o mundo que está em relação com o eu mas não se identifica com ele. A relação entre o eu e o mundo, no entanto, multi- plica o próprio mundo segundo a diversidade dos "eu". A realidade aparece ao homem dividida em perspectivas que são tantas quantos os indivíduos; e em todas elas entram a sensibilidade, a imaginação, a inteligência, o desejo e a valoração do indivíduo. A razão do homem tem a tarefa de dominar a circunstância que a sua perspectiva lhe oferece, de absorvê-la no próprio homem, de humanizá-la: por isso, ela é uma razão vital, não oposta à vida nem diferente dela. O elemento existencialista da filosofia de Ortega reconhece"se na antítese que estabelece entre autenticidade e inautenticidade. O homem "lançado na situação, no enxame caótico e pungente das coisas", altera-se, confunde-se, perde-se de vista a si mesmo. A sua possível salvação é voltar a coincidir consigo próprio, saber claramente qual é a sua sincera po35 sição frente a cada coisa. Nesta coincidência consigo próprio, na paz interior do indivíduo com a sua espiritualidade. está a autenticidade da vida, está o que denomina felicidade. Também o céptico pode realizar esta autenticidade. se coincide verdadeira e plenamente com o seu cepticismo, se não duvida da sua dúvida. As épocas de crise caracterizam-se pela falta de condições que tornam possível esta posição autêntica. Em tais
épocas existiu um certo saber, isto é, um certo mundo, e não se afirmou contudo o outro saber, o mundo novo, onde o homem pode encontrar o seu ubi consistam. "A mudança do mundo consistiu no facto de que o mundo em que vivíamos desmoronou e, de momento, em nada mais. É uma mudança que ao princípio é negativa e crítica. Não se sabe que pensar de novo: só se sabe, ou julga-se saber, que as ideias e as normas tradicionais são falsas e inadmissíveis" (Esquema da crise, p. 26). A época de crise é uma época de fluidez, na qual, por ausência de convicções positivas, o homem pode passar com grande facilidade do branco para o preto e na qual, por conseguinte, tudo é possível. A crise das crises, a que alcançou a própria essência do homem e seu destino, surgiu no mundo ocidental nos últimos séculos do império romano; e a sua solução. o Cristianismo, aparece a Ortega, de certo modo, corno a solução das soluções, a única verdadeiramente radical: a negação do homem e do mundo e de tOdos os seus problemas, o abandono ao sobrenatural e a Deus. A época actual, caracterizada pela "rebelião das massas", é considerada por Ortega como a pior de todas, devido à incerteza para i
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a qual o aparecimento das massas e a "socialização do homem" atiraram a sociedade actual. "Já não existe ' plenitude dos tempos', pois esta pressupõe um futuro claro, préestabelecido, inequívoco, como era o do século XIX. Nessa época, julgava-se saber aquilo que aconteceria no amanhã. Mas o horizonte abre-se de novo em direcções desconhecidas, pois não se sabe quem poderá mandar nem como se articulará o poder à face da terra. Quem poderá mandar: que povo ou grupo de povos, qual o seu tipo étnico; e também qual a sua ideologia, sistema de preferências, de normas, de impulsos vitais". Portanto, "a existência actual é o fruto de um interregno, de um vazio entre dois tipos de organização do poder histórico: aquela existiu e aquela que existirá. É por esta razão que ela é essencialmente provisória" (A rebelião das massas, trad. ital., p. 169-70). É característico em Ortega y Gasset a contraposição dogmática que estabelece entre a autenticidade e a inautenticidade do indivíduo, entre as épocas orgânicas e as épocas críticas da história. A coincidência do homem consigo mesmo, na qual põe a autenticidade, parece-lhe uma solução definitiva, que elimina o problema do homem; donde aquela coincidência é, contudo, sempre em si mesma problemática e, por isso, somente pode ser vivida e realizada como contínua possibilidade de solução. De modo que o problema não se elimina nunca e a época orgânica não pode valer (se não por uma idealização mitológica) como um mundo pacificado e feliz. Em última análise, o conceito de crise, do qual Ortega y Gasset é o mais eloquente e lúcido defensor, nasce de uma 37 nostalgia de carácter mitológico, que põe no passado aquela perfeita estabilidade e segurança da vida que o homem sente que lhe falta no presente.
No ensaio História como sistema (1935) reconhece-se explicitamente a historicidade fundamental do homem, no sentido existencialista. "Esse peregrino do ser, esse substancial emigrante é o homem. Por isso carece de sentido pôr limites ao que o homem é capaz de ser. Nessa il-imitação das suas possibilidades, própria de quem não tem uma natureza, só há uma linha fixa, pré-estabelecida e dada que pode orientar-nos; só há um limite: o passado. As experiências da vida já realizadas estreitam o futuro do homem. Se não sabemos o que vai ser, sabemos o que não vai ser. Vive-se à vista do passado" (Ib., p. 111). Mas também este reconhecimento é depois dogmatizado como exigência de "uma nova revelação", que deveria ser para o homem a razão histórica: "não uma razão anti-histórica que parece cumprir-se na história, mas literalmente aquilo que aconteceu ao homem, constituindo a razão substancial, a revelação de uma realidade transcendente às teorias do homem e que é ele mesmo para além das suas teorias" (ib., p. 122). Esta razão histórica não deveria aceitar nada como facto puro, mas fluidificar todo o facto no orgulho de que provém, e ver como se forma o facto; mas quanto aos problemas, às categorias, aos métodos que deveriam presidi-Ia Ortega nada diz. A distinção e a oposição entre o conhecimento e a vida, o saber e a acção, mantém este pensador no esquema do pragmatismo contemporâneo. As exigên38 cias existencialistas, que são nele as mais vivas, não receberam da sua filosofia a justificação que poderia provir-lhes de uma profunda e detalhada análise existencial, donde esse carácter amiúde demasiado expeditivo e dogmático, das conclusões de Ortega. § 756. PRAGMATISMO: VAILATI Pode-se considerar relacionada com o pragmatismo de Peirce a investigação realizada em Itália por Giovanni Vailati (1863-1909). Vailati foi um lógico e um metodólogo das ciências que ilustrou em claros e sucintos escritos o trabalho de crítica e de esclarecimento que a matemática contemporânea fazia relativamente aos seus princípios e aos seus processos específicos. Vailati via nas teses do pragmatismo a própria expressão dos processos da matemática, os quais eram esclarecidos pelos lógicos matemáticos; e é nisto que talvez se possa reconhecer uma originalidade das suas posições. Peirce, com efeito, que pela primeira vez enunciara o critério pragmático para a individualização das crenças, não acreditava que tal critério tivesse validade para a "determinação" das próprias crenças, o que era atribuído ao método das ciências. Segundo Vailati, a validade do pragmatismo consiste no facto de o critério pragmático ser usado na própria ciência, especialmente nas matemáticas. Por outro lado, este critério não tem nada que ver com as "consequências práticas" ou com a acção, prescrevendo apenas o assumir como significado de uma noção, no 39
âmbito de uma ciência, o uso que essa ciência faz de tal noção. Deste ponto de vista, os postulados da matemática, por exemplo, deixaram de ser proposições privilegiadas, tornando-se proposições semelhantes a quaisquer outras, opções oportunas entre os fins que o conjunto da indagação deve servir. Deste modo, eles foram obrigados a renunciar, afirma Vailati, "àquela espécie de direito divino de que parecia estar investida a sua pretendida evidência, resignando-se a serem, em lugar de árbitros, os servi servorum, os elementos usados pelas grandes associações de proposições que constituem os vários ramos da matemática" (Scritti, p. 689 e segs.). O pragmatismo e a lógica matemática concordam assim na exigência de eliminar qualquer falta de rigor nos termos usados e no reduzir toda a asserção aos termos mais simples, que se refiram a factos ou a relações entre factos; do mesmo modo que concordam em reconhecer o carácter apenas instrumental das teorias científicas, além de outros pontos e exigências doutrinais mais especificamente lógicos. Como se vê, Vailati pretendia uma interpretação lógica do pragmatismo e um seu uso metodológico no campo das matemáticas. Por isso se recusava a aceitar a acusação de "subjectivismo" que era lançada contra o pragmatismo (e que talvez se justificasse em relação a outras correntes do próprio pragmatismo), declarando ver nele um convite a traduzir as nossas afirmações numa forma "apta a assinalar de um modo mais claro quais as experiências ou constatações às quais todos deveríamos recorrer para decidir se e até que ponto elas seriam verdadeiras", 40 quer dizer, um convite para usar critérios mais objectivos, isto é, mais independentes de qualquer impressão ou preferência individual (Scritti, p. 921). A posição de Vailati encontra-se no limite entre positivismo e pragmatismo; mais próximo do positivismo está Mario Calderoni (1879-1914) que identificou as "consequências práticas" de que falava o pragmatismo com a verificação experimental que a ciência exige como prova das suas posições. § 757. PRAGMATISMO: ALIOTTA O pragmatismo de James encontrou, em Itália, uma manifestação análoga no experimentalismo de Antônio Aliotta, nascido em 1881, professor da Universidade de Nápoles. Aliotta foi, nos anos que vão da primeira à segunda guerra mundial, o mais eficaz opositor e crítico do neo-hegelianismo; e com o seu professorado e os seus escritos abriu, em Itália, a passagem para movimentos contemporâneos, tais como a crítica da ciência, o pragmatismo e o realismo, que o idealismo imperante prescrevia antecipadamente como desvios e erros. Sendo primeiro defensor de um espiritualismo monadológico de tendência teísta (o fruto mais notável desta posição é A reacção idealista contra a ciência, 1912, uma vasta análise crítica da filosofia contemporânea), orientou-se depois para o pragmatismo e o pluralismo, (A guerra eterna e o drama da existência, 1917, Relativismo e idealismo, 1922; A teoria de Einstein, 41
1922; A experimentação na ciência, na filosofia e na religião, 1936). Contra o idealismo, Aliotta fez valer a impossibilidade de resolver toda a realidade no pensamento. Esta redução nunca foi efectivamente conseguida. O Eu de Fichte, que cria inconscientemente o mundo da natureza, o Absoluto de Schelling como identidade de natureza e espírito, a Ideia de Hegel, que é lógica e natureza antes de ser espírito, conservam uni resíduo de transcendência no reconhecimento de uma fase inconsciente e objectiva, que o pensamento deve pressupor. E o idealismo de Gentile, que reduz toda a realidade ao acto pensante, reconhece implicitamente a transcendência deste mesmo acto, o qual, como Gentíle afirma, nunca pode ser apreendido como tal. Mas, por outro lado, o pensamento não é aquela cópia passiva da realidade que o realismo tradicional supõe. É antes um processo vivente, uma experiência, na qual os centros individuais se encontram e se limitam mutuamente, procurando realizar um acordo cada vez maior. O pensamento filosófico é a continuação consciente da tendência das actividades do universo para se unirem em harmonia. Assim como do estado de primitiva incoerência e divIsão, que é a matéria, se passa para os organismos biológicos mais simples e, depois, para formas cada vez mais complexas de organização vital, do mesmo modo no campo do conhecimento este processo de coordenação continua, conciliando e harmonizando as diferentes perspectivas dos indivíduos. O senso comum, a ciência e a filosofia, são graus ou fases desta coordenação crescente. E a coisa do senso comum torna 42 possível que as intuições individuais se coordenem e coexistam. Escolhe-se uma destas intuições como tipo e considera-se como verdadeira, realizando assim uma concordância prática entre os diversos indivíduos, as outras condenam-,se como aparências. As sínteses da ciência constituem um passo em frente, eliminando a disparidade dos direitos entre as perspectivas do sentido comum e coordenando-as num organismo no qual cada uma encontra o seu lugar. Por último, a investigação filosófica procura conciliar as oposições que ficam, corrigir a unilateridade das ciências particulares e coordená-las numa visão mais compreensiva. O conceito-limite para que tende a própria realidade através do pensamento, é a coordenação completa de todas as suas actividades e a sua convergência para um fim único. Daqui resulta que uma ideia ou uma teoria é verdadeira apenas na medida em que realize uma coordenação das actividades humanas entre si e cGin todas as outras que actuam no mundo da experiência. Há, pois, graus de verdade; e os graus superiores não anulam os inferiores, antes os conservam e coordenam. O único critério de verdade é o da experimentação. Não conhecendo o caminho desde o princípio, devemos proceder por tentativas, isto é, mediante um complexo de acções, sugeridas e guiadas por hipóteses, que se repetem agora de um modo e depois de outro, até que se consiga encontrar um sistema novo no qual as diferentes actividades convirjam para um fim comum. A experimentação filosófica tem um campo
mais vasto que o científico; o seu laboratório é a história, através de cujas vicissitudes se revela o 43 valor das doutrinas, a sua fecundidade sugestiva de mais ricas e harmónicas formas de existência. Nos outros escritos posteriores (0 sacrifício como significado do mundo, 1947) Aliotta acentua o aspecto metafísico e espiritualista da sua doutrina frente aos aspectos metodológico e experimentalista que prevalecia nas precedentes formulações. Tende a pôr em relevo os "postulados, da acção": a indeterminação do mundo e a sua relativa uniformidade, a validade da pessoa humana e a transcendência da realidade relativamente a ela, a pluralidade das pessoas e as suas tendências para a unidade. Ao carácter relativo e construtivo da racionalidade humana, que vale unicamente como meio de cooperação e de entendimento, Aliotta contrapõe o carácter absoluto da experiência moral, na qual vê "o significado do mundo". O culminar da experiência moral, o sacrifício, é ao mesmo tempo a afirmação mais elevada da pessoa individual e a realização mais completa da harmonia inter-pessoal. Aliotta considera, pois, que o postulado fundamental da acção é o da "perenidade dos valores humanos" e que esta perenidade implica a imortalidade das pessoas, cujos valores humanos são indissociáveis. Mas, na realidade, não se vê que garantia possa oferecer a esta perenidade um universo instável, imperfeito e em movimento, como o que Aliotta reconhece, e de que modo o processo da experiência, continuamente aberto e cheio de riscos, Possa fazer crer, de qualquer modo que seja, na Perenidade dos valores e na inevitabilidade do PrOgresSO- Na doutrina de Aliotta (como na de Jam<--), O trânsito do pragmatismo, ao espiritualismo 44 indica a negação implícita das categorias próprias do pragmatismo, e priva o espiritualismo das categorias que o justificam, reduzindo-o a uma hipótese fideísta, o que lhe tira precisamente aquela força pragmática de que pretendia usufruir. § 758. PRAGMATISMO: MEAD: A CONDICIONALIDADE BICONTINUA Um dos mais importantes defensores do pragmatismo, para além de Peirce e de Dewey, foi George Herbert Mead (1863-1931) que foi colega de Dewey na Universidade de Chicago e que colaborou com ele na formação de um conjunto de ideais comuns. A obra dos dois pensadores é, por esta razão, complementar; e a diferente contribuição de cada um deles pode ser expressa pelas seguintes palavras de Charles Morris: "Se Dewey contribuiu com a sua largueza de ideias, Mead trouxe profundidade analítica e rigor científico. Se Dewey pode ser comparado a uma roda percorrendo o caminho do pragmatismo, então Mead será o eixo dessa roda; e, por muitos quilómetros que essa roda possa percorrer, ela nunca se poderá afastar do seu eixo" (Mind. Self and Society, p. XI). Os escritos de Mead foram recolhidos após a sua morte em três volumes: A filosofia do presente (1932), Espírito, eu e sociedade (1934) e A filosofia do acto (1938). A tarefa da filosofia, segundo Mead, é a de tentar compreender a relação entre o universo e o homem; entre o processo de evolução emergente (ou 45
criador) em que consiste o universo, e a inteligência reflexa que transforma as causas e os efeitos em meios e consequências, as reacções em respostas e os termos do processo natural em fins (The Phylosophy of the Act, p. 517). Para se poder encarregar desta tarefa, a filosofia deve primeiramente recusar o dualismo, estabelecido pela filosofia tradicional, entre o universo e a razão, e o materialismo que seria urna reacção a ela; por outro lado, deve integrar em si mesma a unilateridade da ciência, que insiste no aspecto quantitativo e uniforme da natureza e descura o qualitativo e contingente. A missão da filosofia consiste em apresentar um universo uno, um conjunto quantitativo e qualitativo, compreendendo todos os seus significados, um universo no qual os métodos da ciência experimental, as interpretações que a ciência dá de si própria e as da experiência quotidiana, se encontrem incluídas (Ib., p. 516). Estamos aqui em presença de uma reafirmação da continuidade entre o universo e o homem (ou a sua actividade específica que é inteligência e razão) que é característica de todas as formas do pragmatismo, do realismo e do empirismo contemporâneos, além de o ser igualmente de algumas formas de criticismo (Cassirer) e de espiritualismo (Bergson). O esquema conceptual utilizado por Mead para conduzir as suas análises não foi por ele esclarecido propositadamente, mas pode ser designado com suficiente exactidão por condicionalidade bicontínua ou contínua nos dois sentidos. A relação de determinação não se exerce apenas da condição para o condicionado mas, simultaneamente, no sentido contrário, 46 pois a própria condição é, de qualquer forma, condicionada pelo seu condicionado. Este esquema serviu igualmente a Dewey, que nos últimos tempos o exprimiu como conceito de transição (§ 764). Mead faz dele um uso mais radical e rigoroso. Pode-se dizer que todos os pontos da sua filosofia se inspiram neste esquema explicativo, o qual nos surge de forma mais evidente na sua especulação sobre o tempo. O presente é novo em relação ao passado; mas, como o presente se inscreve como parte essencial do universo, ele "rescreve o seu passado". Afirma Mead: "Dado um conceito emergente, as suas relações com processos anteriores tomam-se condições ou causas. Uma tal situação é um presente; isto individualiza e, num certo sentido, escolhe aquilo que tornou possível a peculiaridade. Assim se cria, a partir da sua unicidade, um passado e um futuro. Se o quisermos, torna-se urna história e uma profecia" (The Philosophy of the Present, p. 23). Quando a vida e a consciência "emergem" do universo, elas tornam-se parte das condições determinantes do presente real e nós interessamo-nos em reconstruir o passado que condicionou a emergência de tais acontecimentos, reconstrução essa que é feita de modo a conduzir a uma nova aparência desses objectos. "Quando a vida apareceu, nós podíamos gerar a vida e, através da consciência, podíamos controlar o seu aparecimento e as suas manifestações. Mesmo a afirmação do passado, no qual aparece o emergente, é inevitavelmente feita a partir de um mundo no qual o emerge, é um factor condicionante e condicionado" gen
p. 1 47 1 Deste ponto de vista, o conceito de experiência é importante precisamente por se situar no ponto nodal do condicionamento bicontínuo entre o mundo e o indivíduo. "0 mundo que se nos depara, este pedaço de natureza, existe por obra da determinação teológica do indivíduo. Se lhe chamarmos "experiência", não se tratará apenas de experiência subjectiva do indivíduo. Por outro lado, a estrutura causal do conjunto ou do ambiente que escolhemos, não determina de forma alguma uma sua selecção. Projectamos o mecanismo causal no futuro, como futura margem de experiência, mas sempre como condição para o futuro que foi seleccionado, nunca como condição da própria selecção" (The Philosophy of the Act, p. 348). A consciência, o conhecimento e a ciência são interpretados por Mead nos termos deste processo de selecção, que é ao mesmo tempo condicionado e condicionante. "Existe, diz Mead, uma estrutura definida e necessária, ou gestalt, da sensibilidade dentro do nosso organismo e que determina selectiva e relativamente o carácter do objecto externo de que se apercebe. Aquilo a que chamamos consciência deve ser considerado precisamente nesta relação entre o organismo e o seu ambiente. A nossa selecção construtiva de uni ambiente -cores, valores emocionais e outros-em termos da nossa sensibilidade fisiológica, é essencialmente aquilo que designamos por consciência... Num certo sentido, o organismo é responsável pelo seu ambiente e, visto que organismo e ambiente se determinam um ao outro, dado que a existência de cada um deles depende da existência do outro, então o processo da 48 vida, para ser compreendido de forma adequada, deve ser considerado em termos de tais inter-relações" (Mind, Self and Society, p. 129-30). O acto do conhecer é ele próprio um processo de selecção: consiste em "encontrar qualquer coisa que exista objectivamente no mundo que nos rodeia", se bem que "o mundo que nos rodeia é o pressuposto do processo que nós chamamos consciência (Ib., p. 64). O conhecimento científico é investigação sobre aquilo que desconhecemos, é descoberta; mas ele supõe um mundo real que não se compromete nessa descoberta, podendo ser usado para pôr à prova essa mesma descoberta (Ib., p. 45 e segs.). O conjunto de problemas que podem ser enfrentados pela ciência deixa de ser a totalidade do mundo. O mundo que constitui o teste de todas as observações e de todas as hipóteses científicas não é um sistema que possa ser isolado enquanto estrutura de uniformidade ou de leis; pelo contrário, todas as leis e outras formulações de uniformidade devem comparecer no seu tribunal a fim de receberem o imprimatur. "Os confins da área problemática da ciência, diz Mead, dividem o mundo do campo em que a ciência trabalha. No entanto, estes confins, apesar de serem definidos em relação aos fins da experimentação de observações e de hipóteses, não são permanentes já que a ciência assume dentro deles uma atitude dupla; para os
fins da sua indagação imediata, esses limites são suficientes para a experimentação e para a confirmação, mas esse mesmo território que é a sede da sua autoridade pode tornar-se problemático" (Ib., p. 31-2). De qualquer modo, "a pedra de toque da realidade 49
é um pedaço de um mundo ainda não analisado que se utiliza para a experiência" (Ib., p. 32). o mundo onde a ciência opera tem assim um nó formado pela experiência imediata: o controle dos elementos puros que são necessários à definição & uma teoria científica é, em última análise, confiado a dados vagos, indeterminados e conting ,entes que constituem o campo da observação e da experiência (Ib., p. 57). Este campo não é único nem permanente: os seus sectores e os seus problemas de indagação científica específicos são diferentes, sendo determinado negativamente pela área problemática em que se move esta indagação. § 759. PRAGMATISMO: MEAD: SOCIABILIDADE DO MUNDO Outro tema fundamental da filosofia de Mead é o do carácter social de todos os aspectos da experiência humana e de todos os seus objectos possíveis. Mead fala até de um "carácter social do universo", consistindo no facto de cada novo acontecimento pertencer, simultaneamente, à velha ordem (isto é, ao mundo que existia antes de surgir esse acontecimento) e à nova ordem, aquela que o próprio acontecimento anuncia. A sociabilidade é, neste sentido, "a capacida-de de ser diferentes coisas ao mesmo tempo" (The Philosophy of the Present, p. 49). Mas, num sentido mais específico, a sociabilidade existe em toda a experiência humana. Enquanto experiência de coisas físicas, ela é com efeito "uma organização de pers50 pectivas". Nesta organização, as perspectivas não são separadas ou independentes umas das outras. "A coisa de que um indivíduo se apercebe é e pode ser apercebida por outros que possam estar situados num espaço-tempo adequado e investidos dos poderes necessários. O indivíduo apercebe-se da mesma coisa de que os outros se apercebem: tanto a coisa como a percepção têm este carácter generalizado" (The Philosophy of the Act, p. 140). No nível imediatamente superior, o simbolismo (através dos gestos ou da linguagem, que é um tipo particular de gesto) constitui um objecto que antes não existia e que existe apenas no contexto de relações sociais em que surgem os símbolos. "0 processo social relaciona entre si a resposta de um indivíduo e os gestos de um outro, assim como os significados de tais gestos, sendo ainda responsável pela origem e existência, na situação social, de novos objectos que dependam ou sejam constituídos por esses significados" (Mind, Self and Society, p. 78). Todo o processo do pensamento é, segundo Mead, a conversação entre o indivíduo que pensa e os outros. No acto do seu pensamento reflecte-se por isso a organização do acto social. "A comunidade fala-lhe com uma mesma voz, mas cada indivíduo fala-lhe partindo de um ponto de vista diferente; no entanto, estes pontos de vista estão em relação com a actividade social cooperativa e o indivíduo, ao assumir uma atitude, passa a fazer parte, devido ao próprio carácter da sua resposta, das respostas dos outros" (The Philosophy of the Act, p. 153). Mead define em termos de sociabilidade as noções lógicas de universalidade e de necessidade:
51 "A universalidade é a atitude de lançar um símbolo significante, como estímulo, a todo e qualquer membro de um grupo indefinido a fim de provocar a resposta exigida pela continuação do acto, estando o indivíduo em questão incluído no mesmo grupo. A necessidade é uma atitude que consiste em aceitar uma situação reflexa, ou qualquer elemento dessa situação, como condição da possibilidade de provocar o acto por ela requerido, isto partindo do princípio de que o próprio indivíduo de cuja atitude se trata é membro do grupo em cuja actividade cooperativa surgiu o problema" (Ib., p. 389-90). Deste modo, a universalidade e a necessidade constituem, por assim dizer, a intencionalidade do símbolo linguístico quando é utilizado como estímulo para provocar uma determinada resposta de qualquer um dos membros d.- um grupo ao qual pertence o próprio indivíduo que utiliza o símbolo, A condição essencial é, portanto, a inclusão do indivíduo que fala no mesmo grupo daqueles a que se dirige; ou seja, por outros palavras, a sua sociabilidade. A sociabilidade assim definida, como relação que existe na própria estrutura e actividade do indivíduo, é o fundamento usado por Mead para esclarecer a noção de espírito, eu e sociedade. O espírito (Mind) é deste modo a capacidade para se servir de símbolos que se refiram a uma determinada situação, de tal forma que eles possam ser utilizados da mesma maneira pelos diferentes membros do grupo; ou, por outros termos, é "aquela relação do organismo com a situação que é mediatizada por um conjunto de símbolos" (Mind, Self and Society, p. 120-125). E 52 neste sentido o espírito é próprio do processo social dado que a totalidade deste processo apresenta-se a cada um dos indivíduos que nele estão implicados (Ib., p. 134). Por outro lado, o "si mesmo" (self) é ainda uma estrutura social, isto é, uma estrutura que reflecte todo o processo social. Mea-d distingue no si mesmo o eu e o me. O me é "o conjunto organizado pelas atitudes dos outros que possam ser assumidas, como próprias, por um dado indivíduo"; o eu é a resposta do organismo a tais atitudes. O eu constitui o aspecto novo e livre da personalidade humana. "A situação chama-nos para a acção de uma forma conhecida. Nós somos conscientes de nós próprios e daquilo em que consiste a situação, mas a forma como agiremos é coisa que só entrará na nossa experiência quando a acção tiver lugar" (Ib., p. 177-78). O conceito de instituição está ligado à estrutura do me. A instituição é apenas a "organização das atitudes que trazemos em nós próprios, das atitudes que são organizadas pelos outros e que controlam e determinam a conduta" (Ib., p. 211). A instituição representa a resposta comum dada pelos membros da comunidade a uma situação particular (Ib., p. 261), mas esta resposta nunca se encontra em pessoa alguma, na estrutura do seu me. A relação entre o
eu e o me constitui a personalidade, a qual surge na experiência social. Nela, o peso relativo do eu e do me, isto é, da iniciativa pessoal e da forma ou estrutura convencional do eu, podem ser diferentes: O peso do me pode até estar reduzido ao mínimo, como acontece com os artistas e em certos tipos de comportamento impulsivo. A acção limitativa que 53
o me exerce sobre o eu é o controle social. Ã acção que a sociedade exerce sobre o eu através do me, responde a iniciativa do eu, sendo esta resposta "uma adaptação que age não só sobre si mesmo mas, também, sobre o ambiente social que ajuda a constituir-se a si mesmo, e isto porque, do mesmo modo que o ambiente age sobre o indivíduo, também o indivíduo age sobre o ambiente" (Ib., p. 214). Mead não nega que existam alguns aspectos da experiência humana que sejam "subjectivos" ou "privados", isto é, apenas acessíveis pelo próprio indivíduo; mas pensa que este carácter de subjectividade não exclui a natureza e a origem social de tais aspectos. "A existência de conteúdos de experiência privados ou subjectivos não altera o facto de que a auto-consciência implique que o indivíduo se tome um objecto de si mesmo, assumindo as atitudes dos outros indivíduos para com ele adentro de um conjunto organizado de relações sociais, e de que o indivíduo não pode ser consciente de si mesmo ou ter um si mesmo sem se tomar um objecto de si mesmo" (Ib., p. 225). Espírito, eu e me constituem as características próprias da sociedade humana. "A situação humana, afirma Mead, é um desenvolvimento do controle que todas as formas vivas exercem sobre o seu ambiente através da selecção e da organização, se bem que a sociedade humana tenha atingido um ponto que nenhuma outra forma conseguiu atingir, o da determinaÇão real, dentro de certos limites, de qual será o seu ambiente inorgânico" (Ib., p. 252). Este fim tomou-se possível à sociedade humana devido à forma específica que nela assumiu a comunicação; 54 ou seja, devido à forma pela qual um indivíduo pode assumir a tarefa de um outro com o qual comunica. O poder assumir a tarefa de outro torna possível a cada indivíduo exercer um controle sobre a sua própria resposta e, através deste, o controle social pode assumir a forma de autocrítica, dando origem à integração do indivíduo e das suas acções no processo social da experiência e do comportamento (Ib., p. 254 e segs.). A correlação estrutural entre o indivíduo e a sociedade, e simultaneamente a capacidade de iniciativa (logo, de liberdade) do indivíduo, são as ideias fundamentais da filosofia social de Mead. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 750. De Peirce: Chawe, bove and Logic foi publicado por M. R. Cohen, New York, 1923 (trad. italiana, Turim, 1956). Os Collected Papers conipreendem 8 volumes e foram
editados em Cambridge, Mass., 1931-58. ,Sobre a lógica de Peirce: W. e M. KNEALE, The Develo~ of Logic, Oxford, 1962, p. 247 e segs. E ainda: J. BUCHLM, C. P.'s Empirism, New York, 1939; "The Journal orf Plúlowphy", 1916, n.o 26 (número especial dedicado a Peirce); A. W. BURKS, in "Philosaphical Review", 1943; J. FEIBLEMANN, Introduction to P.'s Philosophy, Interpreted as a System, Nova Iorque, 1948; W. B. GALLIE, P. And Pragmatism, Londres, 1952; Studies in the Philosophy of C. S. P., volume colectivo editado por P. P. Wiener e F. H. Young, Cambridge, Mass., 1952. § 751. Sobre James, especialmente: R. BARTON PERRY, The Thought and Character of W. J., Boston, 1935, e ainda Annotated Bibliography of the Wiitings 5-5 of W. J., Nova Yorque, 1920. E. E. SABIN, W. J. and Pra~tism, Lancaster, 1916; U. CUGINI, Llempirismo radicale de W. J., Nápoles, 1925; Essays Philosophical and Pmjchological in Honor of W. J., de vários autores, Nova Iorque, 1908; In Commemoration of W. J., 1842-1942, de vários autores, Nova Yorque, 1912; W. J., The Man and the Thinker, de vários autores, Madison, 1942; J. DEWEY, Problem& of Men, Nova Yorque, 1946, p. 379-409; G. A. ROGGERONE, J. e Ia crisi della coscienza contemporanea, Milã>o, 1961. § 752. Sobre Schifier: STEMEN S. WHITE, -4 COMparison of the Philasophies of F. C. S. Schiller and J. Dewey, Chicago, 1940; M. T. VIRETTo GiLLiOTOs, LIumanesimo di F. C. S. Schiller, in Filosofi contemporanei (Ist. di Studi filos. di Torino), Milão, 1943, p. 161-222; REUBEN ABEL, The Pragmatic Humanism of F. C. S. Schiller, Nova Yorque, 1955. § 753. Sobre VaihInger: P. SCHWARTKOPF, 11. HEGENWALD, G. SPENGLER, in "Zeit. %chrift für Philosophie", 1912, n., 147; W. SWITALSKY, in "Philosophische Jahrb.", 1913; W. DEL NEGRO, in "Kantstudien", 1934. § 754. De Unamuno: Obras Completas, Madrid, 1950 e seguintes. Sobre Unamuno: J. FERRATER MORA, U., Bosquejo de una filosofia, Ruenos Aires, 1944, segunda edição, 1957; F. VEGAS, II pensiero di M. de U., in "Riv. di Stoiria della Filosofia", Milão, 1948 (com indicaçõe-s de ordem bibliográfica); S. SERRANO PONCELA, El Pensamiento de U., Cidade do México, 1953. De Ortega: Obras Completas, 6 volumes, Madrid, 1946-1947. § 755. Sobre Ortega: F. MEREGALLI in "Studi Filosofici", Milão, 1943; J. MARIAS, O., Circunstancia y vocación, Madrid, 1960; R. TREVES, Libertà politica e verità, Milão, 1962, p. 63-101. § 756. De Vailati: os Seritti foram recolhidos por M. Calderoni, U. Ricei e G. Vacca, Florença, 1911
56 Il metodo della filosofia, antologia realizada por F. Rossi-Land@ Bari, 1957. Contém uma bibliografiaDe Caldecroni: existe uma recolha das suas obras em Scritti, 2 volumes, Florença@ 1924. § 757. De Aliotta: Opere Co-mplete, ed. Perella di Roma. Alguns ensaios notáveis foram recolhidos em Evoluzionismo e spiritualismo, Nápoles, 1948. Sobre Aliotta: GRENIER, in "Revue Philosephique", 1926; M. F. SCIAmk, Il pensiero di A. A., in "Archivio di storia della filosofia italiana", 1936. § 758. De Mead, existe uma bl-ibilografia dos seus escritos em Mind, Self and Society, p. 390-2. Sobre Mead: D. VICTOROFF, G. H. M. Sociolog-ue et philosophe, Paris, 1953 (com bibliografia); M. NATANSON, Th-e Social Dynamics of G. H. M., Washington, 1956 (com bibliografla); e ainda a extensa introdução de C. W. MopRis a Mind, Self and Society, Chicago, 1934, e a The Philosophy of the Act, Chicago, 1938, segunda edição, 1953. 57 rX DEWEY § 760. A OBRA DE DEWEY Pragmatismo, Iluminismo e naturalismo constituem os três aspectos fundamentais da obra de Dewey. Está ligado ao pragmatismo pela sua polémica contra o idealismo e pelo mito de um intelecto puro, para além da afirmação do carácter instrumental da razão. Ao iluminismo, liga-o o facto de atribuir à razão a tarefa de dar ordem e estabilidade ao mundo da natureza e do social. Ao naturalismo, liga-o a convicção de que entre o homem e a natureza não existe oposição mas sim continuidade, devendo essa continuidade ser assumida como fundamento da conduta humana. "0 reconhecimento inteligente da continuidade entre natureza, homem e sociedade, afirma Dewey, é a única base para o desenvolvimento de uma moral que seja responsável sem ser 59 fanática, rica de aspirações irias sem sentimentalismo, adaptada à realidade mas sem convenções, prudente mas sem tomar a forma de um cálculo de possíveis lucros, idealista sem ser romântica" (Human Nature and Conduct, 1950, p. 13). John Dewey, nascido em Burlington, Vermont (E.U.A.), a 20 de Outubro de 1859, e tendo falecido em Nova Iorque a 2 de Junho de 1952, ensinou nas Universidades de Michigan (1884-88), Minnesota (1888-89), Michigan (1889-94), Chicago (1894-1904) e na Columbia University de New York (1904-1929). Os Estudos sobre a teoria lógica (1903), publicado por ele em colaboração com outros estudiosos, assinalaram o nascimento da " Escola de
Chicago", cuja influência sobre o pensamento filosófico dos Estados Unidos foi bastante importante nos anos ulteriores. A sua última grande obra, A lógica como teoria da investigação (1938), conclui e sistematiza os resultados fundamentais da investigação lógica e poseológica de Dewey e da sua escola. Esta obra, simultaneamente com Experiência e natureza (1925) e A procura da certeza, duas outras obras fundamentais, fazem deste autor uma das personagens mais representativas da filosofia contemporânea. Temos ainda à nossa disposição vários escritos notáveis e recolhas de ensaios: Reconstrução filosófica (1920); Natureza e comportamento do homem, introdução à psicologia social (1922); Filosofia e civilização (1931); Uma fé comum (1934); Liberdade e cultura (1939); Teoria da valoração (1939), incluído na "Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada"; Problemas dos homens (1946) e O Cognoscente e o 60 conhecido, este último em colaboração com Arthur F. Bentley (1949). Dewey passou pela experiência do pensamento idealista, especialmente pelo de Hegel. Daí extraiu a convicção de que a realidade é um todo (monismo) no qual todas as distinções e oposições sobrevêm apenas num segundo momento. Mas enquanto para Hegel o todo é racionalidade absoluta na qual coincidem o ser e o dever ser e em que a presença do facto se identifica com o valor, para Dewey o todo implica a incerteza e o erro, precaridade e risco, e a razão é apenas um meio para fornecer a uma situação uma maior estabilidade e segurança. § 761. DEWEY: O CONCEITO DE EXPERIÊNCIA O ponto de partida de Dewey é a experiência, e nisto a sua doutrina relaciona-se (como já tinha feito James com o seu pragmatismo) com o empirismo clássico da tradição inglesa. Contudo, o seu conceito da experiência é diferente do tradicional no empirismo. A experiência de que fala o empirismo é, certamente, a totalidade do mundo do homem, mas um mundo simplificado e depurado de todos os elementos de desordem, perturbação e erro, e reduzido a estados de consciência, concebidos cartesianamente como claros e distintos. A experiência de que fala Dewey é, pelo contrário, a experiência primitiva, indiscriminada e tosca, que inclui dentro de si todas as qualidades e factores de perturbação, de risco, de perversidade e de erro que afectam inevitavelmente a 61 vida humana. "Nada. é mais irónico do que o facto, diz Dewey, de que precisamente os filósofos que ensinaram na universidade tenham sido tão frequentemente especialistas unilaterais e se tenham limitado ao que é autêntica e seguramente conhecido, ignorando a ignorância, o erro, a loucura, os prazeres comuns e aliciantes da vida". E que dizer de um empirismo que esquece e ignora a morte? "Considerando o papel que a antecipação e a memória da morte desempenham na vida humana, desde a religião até às companhias de
seguros, que pode dizer-se de uma teoria que define a experiência de tal modo que faz logicamente concluir que a morte não é nunca matéria de experiência?". A experiência não se reduz, pois, como o empirismo tinha julgado, a uma consciência clara e distinta. E também não se reduz a conhecimento. O ser e o ter precedem a consciência e condicionam-na. "Existem duas dimensões nas coisas experimentadas, afirma Dewey: uma é tê-la, e a outra é conhecê-la, a fim de a ter de forma mais significativa e segura" (Experience and Nature, p. 21). Não existe um problema do conhecimento no sentido em que ele foi concebido pela gnoseologia tradicional; existe apenas o problema de encontrar, através dos processos cognitivos, aquilo que é necessário que exista nas coisas que temos ou naquilo que somos, "para garantir, rectificar ou evitar sê-lo ou tê-lo". A supremacia do ser e do ter é um aspecto caracteristicamente pragmático da filosofia de Dewey. O conhecimento, na- opinião deste autor, não tem uma tarefa autónoma ou privilegiada. O aspecto cognitivo da experiência é importante pela simples razão de ser 62 instrumental e de estar subordinado a aspectos não cognitivos que Dewey sintetiza no ser e no ter e que designa serem os "do muor, do desejo, da esperança, do medo e dos outros aspectos característicos da individualidade humana" (in. The Phil, of J. D., ed. Schilpp, 1939, p. 548). Deste ponto de vista, os problemas da consciência e da lógica nascem sempre num terreno que não é cognoscitivo nem lógico, mas que o procede e que pertence à experiência imediata. Assim, um homem pode ou não ter a certeza de estar com sarampo, dado que o sarampo é um termo classificatório; mas não pode duvidar daquilo que tem (daquilo de que se apercebe ou sente) não porque seja "imediatamente óbvio", mas porque não constitui matéria de conhecimento (logo de verdade ou de falsidade, de certeza ou de dúvida), mas apenas de existência (Experience and Nature, p. 21). Não tendo um carácter principalmente cognitivo, a experiência não será também um simples registo ou acumulação de dados. Por um lado, Dewey acentua e esclarece o seu carácter de orientação para o futuro, de acordo com a posição pragmática (Philosophy and Civilizat,'on, 1931, p. 24-25). Por outro, contrapõe-a à "fisiologia das sensações", aproximando-a da história enquanto conjunto de "condições objectivas - forças e acontecimentos - e do registo e valoração destes acontecimentos, realizado pelos homens" (Experience and Nature, p. 27). De acordo com esta última particularidade, a experiência é sempre uma experiência humana na medida em que o facto de o homem pertencer à natureza é algo "que qualifica tanto a natureza como a sua experiência" 63 (Problems of Men, p. 351). De qualquer modo, a
experiência vale para o filósofo como memento: "um memento de qualquer coisa que não é exclusiva e isoladamente nem sujeito nem objecto, nem matéria nem espirito, e que não releva de um desses caracteres mais do que de qualquer outro" (Ib., p. 27). Por outros termos, o apelo à experiência serve para recordar que a natureza não existe sem o homem, nem o homem sem a natureza; e que por isso não se pode considerar a si mesmo nem como um anjo que tenha caído por mero acaso num mundo de coisas nem como um pedaço qualquer de um complexo mecanismo. De acordo com o naturalismo de Dewey, o homem deve sentir-se solidamente implantado na natureza apesar de estar destinado a modificar-lhe a estrutura e a realizar-lhe o significado. § 762. DEWEY: A INSTABILIDADE DA EXISTÊNCIA Segundo Dewey, a instabilidade, o precário, o risco e a incerteza, são os traços característicos da existência em todas as suas formas e em todos os seus graus. Não é o temor que faz nascer os deuses, mas antes a situação precária da qual nasce o temor. As forças mágicas e sobrenaturais a que apela são a primeira garantia em que o homem se apoia contra este estado precário. Quando ela falta, outras tornam o seu lugar: a imutabilidade do ser, as leis universais e necessárias, a uniformidade da natureza, o progresso universal, a racionalidade inerente ao universo. A filo64 sofia toma o lugar da superstição e da magia, e inclusivamente também o seu ofício: o de entreter o homem na ilusão de que as coisas que ama, os valores de que depende a sua existência, estão garantidos pela própria realidade em que ele vive e que, por isso, serão conserva-dos e preservados em qualquer Caso. Toda a filosofia deste género é fruto de uma simplificação e de uma sofisticação da experiência: simplificação, porque se considera unicamente um dos seus traços, o mais favorável, que se manifesta nas uniformidades e nas repetições aproximadas dos seus caracteres; sofisticação, porque este traço, considerado abstractamente, se estende à totalidade da experiência. Os sistemas filosóficos tradicionais, tanto realistas como idealistas, materialistas como espiritualista--,, não se eximiram a esta sofisticação. As próprias filosofias de Heraclito, Hegel e Bergson, que insistem na incessante transformação, acabam por divinizar tal transformação ou devir, fazendo deles um elemento de estabilidade e de ordem e, portanto, uma garantia infalível para os desejos ou objectivos humanos. Ora esta é precisamente, segundo Dewey, a falácia filosófica por excelência. Fazer prevalecer a estabilidade sobre a instabilidade, garantir, tanto quanto possível, o uso e o desfrute dos bens e dos valores que lhe são necessários é, certamente, o objectivo fundamental de uma direcção inteligente da vida humana; mas é um objectivo que nada pode garantir, a não ser precisamente a obra activa da inteligência humana nos limites em que esta obra obtém êxitos. 65 Transformar esse objectivo numa realidade, num antecedente condição causal dela, é o que
constitui o sofisma básico da filosofia tradicional, a qual, por isso, confina ao domínio da aparência, do erro, da ilusão, tudo o que lhe parece incompatível com a imutabilidade, a necessidade, a racionalidade e a perfeição do ser; e assim divide o mundo da experiência em dois troços ou troncos, fazendo surgir o problema da sua relação. A persistência com que o problema do mal, do erro, da ilusão, se apresenta na história da filosofia é uma prova da tendência, inerente à filosofia, de considerar real só o que é perfeito, ordenado, racional e verdadeiro. Tal problema é, naturalmente, insolúvel; mas é insolúvel apenas por ser um problema falso, nascido da divisão, que não deve estabelecer-se, entre o ser e a aparência. O erro, o mal, a desordem, irracionalidade, não são aparências mas realidades com o mesmo título e direito que os seus contrários. Declará-los aparência e não-ser de nada serve. O homem deve, antes, esforçar-se e lutar por reduzir, o mais possível, as suas consequências relativamente a ele. No entanto, Dewey é optimista acerca do êxito deste esforço. A doutrina da evolução que ele, como muitos outros filósofos do seu tempo, defendia como esquema geral do universo, levava-o a admitir o sentido progressivo da evolução do universo, mesmo naquela sua parte restrita que é o homem. De certo modo, isto limita ou prejudica o seu reconhecimento do carácter instável do mundo e da incerteza das vicissitudes humanas. No entanto, não nos podemos esquecer que Dewey foi, principalmente nas suas 66 obras da maturidade, um dos mais enérgicos e eloquentes defensores de tais características. § 763. DEWEY: A LÓGICA Ora acontece que esse esforço e essa luta pela aceitação de tais ideias são condicionados pela investigação científica, e filosófica. Dewey chama Lógica à sua Teoria da investigação, se bem que não se trate de uma lógica no sentido próprio do termo. Apesar de os objectos tradicionais da lógica (termos, proposições, silogismos, processos de comprovação) serem examinados e discutidos nesta obra, esta última não tem por objecto operações linguísticas ou cognitivas mas, de acordo com a sua expressão, operações existenciais que consistem na manipulação ou transformação das coisas tendo em vista o seu uso ou o seu consumo. É certo, segundo este autor, que existem operações efectuadas com símbolos ou sobre símbolos, mas estes só aparecem nelas a fim de indicar "possíveis condições existenciais finais" e, portanto, também elas consistem, em última análise, em operações existenciais (Logic, p. 15). Deste ponto de vista, o predicado não é a enunciação "realista" de algo existente, mas sim uma valoração "que respeita a qualquer coisa ainda não realizada" (Ib., p. 167). As proposições universais são "formulações de possíveis formas de agir ou de operam (Ib., p. 264); elas formulam "a efectiva execução de um
modo de operar" (Ib., p. 274). Uma proposição **´numnérica será o produto da execução da operação 67 indicada como possível por uma proposição universal Qb., p. 275). O silogismo é constituído por duas condições proposicionais, sendo uma delas uma proposição universal exprimindo uma relação entre características abstractas (do tipo "Se A, então B"), e a outra uma proposição relativa a matéria de facto; no seu conjunto, o silogismo é "a análise de uni juízo final", isto é, de uma "decisão que se concretiza como consequência de uma ordem existencial" Qb., p. 323). Estas definições mostram claramente que, para Dewey, as expressões linguísticas não têm uma sintaxe própria, não sendo tarefa da lógica descrever essa sintaxe, mas antes de considerar a sua inserção no processo da investigação que se move numa dada situação existencial e que tenta transformá-la. O estudo do método indutivo é, neste autor, característico de tal ponto de vista. Segundo Dewey, "a indução é o nome dado a um conjunto de métodos aptos a determinar se um dado caso é representativo [da generalidade dos casos], função essa que se exprime dizendo que o caso considerado é um caso exemplar" (Logic, p. 436). Assim, todo o trabalho da indução consiste em determinar quais são os casos singulares (ou conjuntos de casos) que podem ser considerados como representativos ou exemplares relativamente a todos os outros. Efectuada esta operação, o problema da indução pode considerar-se resolvido pois a generalização indutiva torna-se uma pura tautologia que consiste em afirmar que o caso considerado é representativo de todos os outros e que, por isso, aquilo que vale para ele vale para todos. Por outras palavras, escolhendo **"V>wates,,> 68 como representativo de "os homens", o afirmar que "os homens são mortais" é uma repetição tautológica de "Sócrates é mortal", visto que a generalização indutiva já está compreendida na escolha do exemplar "Sócrates". Ora, segundo Dewey, a escolha do exemplar é uma operação experimental, isto é, um processo cognitivo mas existencial: isto porque todo o processo indutivo é dado e resolvido, sem ulteriores dificuldades ou problemas, na própria escolha operacional (que não é justificada de nenhum outro modo) do modelo exemplar. Deste ponto de vista, desaparecem óbviamente todos os problemas tradicionais da indução, principalmente aquele que se refere à possibilidade de justificar a generalização a partir da justeza de um número limitado de casos; mas, por outro lado, a indução reduz-se a um acto pouco menos que arbitrário cuja base é reenviada pala um fundamento "operacional" do qual, verdadeiramente, nada se pode dizer. Vemos ainda que a indução e a dedução deixam de ser dois processos de indagação diferentes, tornando-se dois sentidos diferentes dum mesmo processo "conforme o objectivo for a determinação de da-dos existenciais adaptados e fecundos ou de adaptados e fecundos conceitos inter-relativos", como o viajar de Nova Iorque para Chicago ou de Chicago para Nova Iorque (Ib., p. 484). § 764. DEWEY: A TEORIA DA INDAGAÇÃO
A lógica de Dewey não é, portanto, uma "lógica" no sentido em que essa designação foi e é atribuída 69 a tal disciplina. Dificilmente poderão ser consideradas como grandemente importantes as críticas, notações e interpretações, no entanto engenhosas e elaboradas, que Dewey forneceu sobro os conceitos da lógica. Aquilo que mais lhe interessava era antes uma teoria da indagação tendo por objecto a definição das condições que lhe possam garantir o sucesso. Dewey interessa-se principalmente pelo estabelecimento de um ponto de partida e de um ponto de chegada da indagação. A investigação é, em geral, definida como "a transformação controlada e dirigida de uma situação indeterminada para uma situação determinada nas suas distinções e relações constitutivas, de modo que converta os elementos da situação primitiva num todo unificado" (Logic, pgs. 104-105). A situação da qual parte toda a investigação racional é uma situação real que implica incerteza, perturbação e dúvida. Por isso, a dúvida não é um estado subjectivo (a menos que se trate de uma dúvida patológica); é o carácter de uma situação em si mesma indeterminada, confusa e incerta. Esta situação torna-se problemática, não é apenas objecto de uma investigação. A determinação de um problema é sempre o encaminhamento para a sua solução e, por isso, é o começo de uma investigação progressiva. Logo que um problema sobre factos que constituem a situação primitiva é colocado, apresenta-se já a possibilidade da sua solução, que se chama ideia e que consiste numa antecipação ou previsão do que pode suceder. A necessidade de desenvolver o significado implícito da ideia dá lugar ao raciocínio, o qual se serve de símbolos, isto é, de 70 palavras, mediante os quais o significado da ideia é referido ao sistema das outras ideias e é assim explicado nos seus diversos aspectos. A solução do problema, antecipada na ideia e no raciocínio que tomou explícito o seu sentido, converte-se no ponto de partida de uma experiência capaz de nos esclarecer sobre se devemos ou não aceitar como válida essa solução, ou se e em que sentido ela deverá ser modificada a fim de ser aplicável para a interpretação e organização dos factos em questão. Dewey faz notar, quanto a isto, que enquanto os factos observados são de natureza existencial, a matéria de idealização não o é: como é que esses dois factores heterogéneos podem colaborar um com o outro para a solução de uma situação existencial? A resposta inevitável, segundo Dewey, é que tanto as ideias como os factos são de natureza operacional. As ideias são operacionais enquanto propostas e planos de intervenção sobre as condições existentes (Ib., p. 113); e os factos são-no enquanto resultados de operações de organização e de escolha (Ib., p. 113), A conclusão da indagação é o juízo, mais precisamente o juízo final, semelhante ao veredicto de um tribunal de justiça, e consistindo na efectiva sistematização da situação através de uma "decisão directiva da actividade futura" (Ib., p. 121). Dewey parece assemelhar o juízo aos veredictos daqueles tribunais de justiça em que não
se pode recorrer das sentenças. Por outros termos, ele considera o juízo com o qual termina uma indagação como definitivo e não susceptível de ser posto em dúvida por uma outra indagação suplementar, ou até 71 mesmo diferente e independente dela, mas cujos resultados estejam de qualquer modo relacionados com ela. No entanto, isto parece reduzir a "solução" do "problema" à pura e simples eliminação desse mesmo problema, isto é, ao advento de uma situação na qual o problema deixa de ter sentido. Pode-se objectar que esta caracterização do problema não é suficientemente precisa e é demasiado optimista. Uma fórmula matemática ou um medicamento não eliminam o problema ou a doença para os quais foram escolhidas; podem apenas superálos de todas as vezes que se apresentam. Por outras palavras, não dão origem a uma situação definitivamente não problemática. Dewey considera que este tipo de processos de indagação serve para constituir, em primeiro lugar, o mundo do senso comum, que é a cultura habitual de um grupo social e é constituída pelas tradições, ocupações, técnicas, interesses e instituições do grupo. Os significados implícitos no sistema comum da linguagem determinam o que os indivíduos do grupo podem ou não podem fazer relativamente aos objectos físicos e nas suas relações mútuas. É pelo mesmo processo que se forma a ciência, a qual liberta os significados da linguagem de qualquer referência ao grupo limitado a que a linguagem pertence, dando assim origem a uma nova linguagem, regulada apenas por um princípio de coerência interior. Dado que na ciência os significados das palavras se determinam a partir da sua relação com outros significados, as relações convertem-se no próprio objecto da investigação científica, enquanto que as qualidades são relegadas para 72 DEWEY um plano secundário e usadas apenas quando servem para estabelecer relações. Deste ponto de vista, o objecto e o sujeito da investigação adquirem um novo significado. O objecto da investigação, logicamente falando, é "aquela série de distinções e de características correlativas que emergem como constituinte bem definido de uma situação resolvida e que são confirmadas no prosseguimento da investigação". Dado que os objectos são usados sempre deste mesmo modo em investigações ulteriores, apresentamse, relativamente a elas, como objectos já constituídos e, portanto, reais. E assim se justifica o realismo. "Que as pedras, as estrelas, as árvores, os cães, os gatos, etc., existam independentemente dos processos particulares de um sujeito cognoscente, afirma Dewey (Logic, p. 521), é um facto de conhecimento tão bem fundamentado como qualquer outro. Isto porque, enquanto conjuntos de diferenças existenciais correlativas, eles sursistemàticamente nas investigações dos indivíduos e da
raça. Em muitos casos seria um gasto inútil de energia repetir as operações pelas quais se instituiu e confirmou a existência desses seres. Supor que é o sujeito individual quem os constrói com os seus processos mentais imediatos é tão absurdo como supor que é ele quem cria as ruas e as casas que vê ao percorrer a cidade. Contudo, as ruas e as casas foram construídas, utilizando operações existenciais e actuando sobre materiais existentes independentemente, e não por processos " mentais". 73 Por outro lado, o sujeito do conhecimento surge e constitui-se no decurso da investigação. "Uma pessoa ou, mais genericamente, um organismo, converte-se em sujeito cognoscente pelo seu empenho em realizar operações de investigação organizada" (M., p. 526). Admitir que há um sujeito cognoscente independente e anterior à investigação, significa fazer uma suposição que é impossível verificar empiricamente e que, por isso mesmo, é apenas um preconceito metafísico. Para exprimir o carácter inter-relativo ou complementar dos factores que entram na constituição do senso comum e da ciência, e para excluir a possibilidade de cristalização desses factores em entidades pressupostas pelos processos em cuja constituição eles entram, Dewey utilizou nos seus últimos escritos (e especialmente na obra O cognoscente e o conhecido, escrita em colaboração com Bentley) o termo transacção, extraído da linguagem de negócios. Do mesmo modo que não existem nem "compradores" nem "vendedores", nem "bens" nem "serviços", a não ser nas transacções em que participam as coisas e os seres humanos, também não existe nem sujeito nem objecto e, portanto, nem factos nem expressões linguísticas, a não ser nos processos activos do conhecer. § 765. DEWEY: CONSCIÊNCIA, ESPÍRITO EU Todo o processo cognitivo, segundo Dewey, releva de um desejo humano de transformar a realidade. Os signIficados que emergem no decurso de tal processo, isto é, os conceitos, delineiam novos métodos 74 de transformação e de operação tendo em vista adaptar melhor a realidade aos fins humanos. Enquanto métodos deste tipo, os significados têm uma tal importância para a vida humana que foram considerados durante muito tempo, sob o nome de essência ou de forma, a própria substância da realidade. Em lugar disso e como já se disse, eles são apenas instrumentos para agir sobre ela; e porque o seu uso não está limitado a um determinado momento, eles podem ser considerados intemporais, mas não "eternos", no sentido elogiativo que esta palavra comporta, pois que todo o seu possível uso se refere a acontecimentos no tempo. Na tentativa de adaptar a experiência aos fins humanos surgem, no decurso dessa mesma experiência, aqueles aspectos que a filosofia tradicional considerou como realidades existentes em si mesmas ou substanciais: a consciência, o espírito e o eu. A análise mais exaustiva que Dewey fez destes aspectos foi a publicada na sua obra Experiência e natureza, a qual nos apresenta alguns pontos análogos à doutrina -de Mead.
A consciência constitui o momento crítico de uma transformação da experiência, o ponto crucial no qual a exigência de uma readaptação ou de unia nova direcção da experiência se faz sentir com maior força. A consciência não é a causa da mudança, do mesmo modo que não o é a força que a produz ou o substracto que a rege; ela é a própria mudança. O que constitui a consciência é, na realidade, a dúvida: o sentimento da existência de uma situação indeterminada, suspensa, que urge readaptar e determinar. 75 A ideia que constitui o objecto da consciência, e que é a própria consciência na sua clareza e vivacidade, não é mais do que a previsão e o anúncio da direcção em que a mudança ou a readaptação é possível; por isso, Dewey diz que, num mundo que não tivesse instabilidade e incerteza, a chama vacilante da consciência apagar-se-ia para sempre. Por outro lado, o espírito é o sistema organizado dos significados expressáveis (conceitospalavras ou palavras-conceitos); ou seja, é o sistema de crenças, noções e ignorância, de aceitações e repúdios, que se formaram sob a influência do hábito e da tradição". O espírito existe nos indivíduos, mas não é o indivíduo. O indivíduo só se constitui como eu ou pessoa no acto em que emerge do espírito do seu grupo e do seu tempo, de um modo único e específico, como autor de alguma nova invenção. O constituir-se funcional do eu ou da pessoa é particularmente evidente no caso da experiência política. Quem se torna crítico de uma instituição ou de um regime em nome de uma instituição ou de um regime melhor não tem a vantagem do filósofo naturalista que contra o erro ou o prejuízo existente apela para a realidade da natureza. Naquele caso, o indivíduo não pode apelar senão para si mesmo, para os seus direitos como indivíduo e para os dos outros indivíduos; e assim sucedeu historicamente, com efeito, no jusnaturalismo do séc. XVII. Nesta condição, o indivíduo emerge como personalidade ou eu que escapa ao peso da tradição e se põe em luta contra ela. Não se pode, com efeito, ver no eu uma substância, uma causa, uma força, independente da experiência e das con76 dições em que esta se verifica. O eu é a experiência no ponto crucial do seu esforço de renovação. É por isso que, normalmente, as frases "eu penso, eu creio, etc." são impróprias, porque se referem ao sistema comum dos significados tradicionais e não supõem nenhuma tomada de posição pessoal e responsável. Seria preciso dizer: "pensa-se, crê-se, etc.", já que a sua referência é impessoal e anónima. A frase "eu penso, eu creio, etc.", adquire a sua autêntica significação apenas quando se assume a responsabilidade da crença ou da acção de que se trata, ou se anuncia a pretensão aos benefícios eventuais que derivam da mesma, enquanto se aceita a responsabilidade dos males que dela podem derivar. Daqui surge o que Dewey chama "a ambiguidade do eu", isto é, a sua possibilidade de situar-se de duas maneiras diferentes frente ao mundo: aceitando-o ou repudiando-o. O eu, com efeito, pode sentir-se bem no mundo em que vive, aceitá-lo Plenamente e sentir-se membro dele: neste caso, está terminado e completo. Mas pode também sentir-se em desacordo com o mundo e refutá-lo intimamente. Então, ou se rende ao mundo, deixandose levar pela rotina que ele apresenta, por amor à paz, convertendo-se em seu parasita ou
num solitário egoísta, ou tende a mudar activamente o mundo, e tem-se então o eu caracterizado pelo espírito de iniciativa e de aventura, o eu crítico e dissolvente. A este eu deve o mundo as suas alterações e as suas revoluções com todos os riscos inerentes, já que em toda a tentativa de renovação nada está garantido de antemão 77 e o êxito do mesmo não responde, a maior parte das vezes, à intenção de quem o promoveu. Deste ponto de vista assumem diferente significado os problemas tradicionais do homem, por exemplo, o da liberdade. A liberdade que cada homem estima o pela qual combate, diz Dewey, não é um livre arbítrio metafísico mas qualquer coisa que inclui três factores: 1) a eficiência da acção, a habilidade de realizar os projectos e a ausência de obstáculos; 2) a idade de variar os próprio **capac, de experimentar a novidade; 3) a
s projectos, de mudar o curso da acção e
'dade de desejar e escolher o ser ou não factor capac, determinante dos acontecimentos. Sob este último aspecto, o homem tem necessidade de possibilidades efectivas abertas no mundo e dirigidas para o futuro. "Prever as futuras alternativas, pode deliberar sobre a -escolha de uma delas, avaliar as suas chances 1 na luta pela existência futura, é o que mede a nossa liberdade" (Hvman Nature and Corduct, p. 311). A afirmação do determinismo segundo a qual a escolha, por ser determinada pelo carácter e pelas condições, exclui a liberdade, é semelhante àquela outra que nos diz: "visto que uma flor vem da raiz e do caule, ela não pode dar frutos". A liberdade depende das consequências da escolha, não dos seus antecedentes. Ela naturalmente não teria sentido num mundo perfeito e imóvel: mas já vimos que, lia opinião de Dewey, o mundo não é assim. N. dos T.: em francês no texto original. 78 § 766. DEWEY: VALORES E ARTE A tese fundamental de Dewey, de que o homem e o mundo constituem uma unidade e que a experiência autêntica é a história desta unidade, exclui a possibilidade de o homem, em alguma actividade, quer seja a arte, a ciência ou a filosofia, poder ser espectador desinteressado do mundo sem ver-se envolvido nas suas vicissitudes. Toda a actividade humana é produtiva e operatória, envolve o mundo e o homem na sua acção recíproca. Por isso, toda a actividade humana implica uma relação de meios a fins e de fins a meios; nenhuma delas é exclusivamente final e consumidora e nenhuma é exclusivamente instrumental ou produtiva. É característico da doutrina de Dewey a reintegração do conceito de fim natural. O finalismo da natureza, destruído pela ciência moderna desde os seus começos, parece inconciliável com uma filosofia que não
queira adormecer o homem na ilusão de que o mundo tenha sido feito e esteja dirigido unicamente para a satisfação das suas necessidades e desejos. Mas o conceito de fim natural perde, na doutrina de Dewey, todo o carácter antropomórfico e antropocêntrico. Não tem nada que ver com os fins que o homem se propõe nem com os valores que respeita. Um fim natural é o termo de um processo natural; termo que pode ser bom ou mau, agradável ou desagradável para o homem, e que não tem, em si, por conseguinte, qualquer qualidade antropocêntrica. O finalismo tradicional confundiu os termos naturais com os fins humanos; e assim falou de um termo último ou de 79 um fim último, relativamente ao qual todos os outros fins estariam ordenados e distribuídos numa hierarquia progressiva. Ora não existe nada disto, segundo Dewey. Todo o fim é também um meio e todo o meio para alcançar um fim é em si mesmo satisfeito ou sofrido como um fim. A actividade produtiva, que diz respeito aos meios, e a actividade consumidora, que diz respeito aos fins, estão estreitamente unidas e não podem ser separadas uma da outra. Esta conexão abre o caminho para entender o processo da valoração e, portanto, a arte e a cultura. Dewey admite, de acordo com Moore, que os valores são qualidades imediatas. "Enquanto valores, nada há a dizer deles: são aquilo que são" (Experience and Nature, p. 396). Explicar a razão porque um objecto nos agrada e nos dá prazer é coisa que diz respeito ao porquê da existência de um valor mas não ao próprio, valor. O homem orienta-se para essa explicação, e portanto para os problemas e escolha dos valores, através de uma actividade crítica e reflexiva que nasce como resultado de uma satisfação parcial. Todo o processo de valoração supõe, em primeiro lugar, a aversão a uma situação existente e a atracção para uma situação possível no futuro; e, em segundo lugar, uma relação determinável e comprovável entre a situação possível, que é um fim, e as actividades que constituem os meios para a realizar (Theory of Valuation, 1939, p. 13). A consideração dos meios é essencial para qualquer fim genuíno que não seja um desejo fútil ou uma fantasia vã. As coisas que aparecem como fim são, na realidade, apenas antecipações ou previsões daquilo que pode 80 ser levado a existir em determinadas condições: é por isso que, fora da relação entre meios e fins, não existe um problema da valoração (Ib., p. 53). A coisa é evidente no campo da arte. Com efeito, admite-se explicitamente no mundo moderno que a criação dos valores estéticos é algo superior ao seu mero desfrute. Ora a criação é produção, e implica a entrada na prática dos meios adequados à produção dos significados estéticos. Mas, sendo assim, a distinção nítida entre artes belas e artes úteis está destinada a desaparecer. As artes belas são, elas próprias, úteis e produtivas, como as chamadas úteis; e se as artes úteis, por seu lado, o são verdadeiramente, isto é, se contribuem para enriquecer o sentido da vida humana, são também belas. "A história da separação e da aguda oposição final entre o útil e o belo, afirma Dewey, é a história do desenvolvimento industrial, no qual uma tão grande parte da
produção se tornou uma forma de vida escravizada e em que uma tão grande parte do consumo constitui um gozo parasitário dos frutos da fadiga dos outros" (Art as Experience, trad. ital., p. 35). entre a experiência estética e os outros tipos de experiência (intelectuais ou práticos) não existe portanto nenhuma diferença radical. Todas são igualmente um compromisso entre o sofrer e o fazer: implicam um momento passivo ou de receptividade e um momento activo, de criatividade. Mas na experiência especificamente estética prevalecem características que nas outras experiências são secundárias: concretamente, aquelas que tomam esse tipo de experiência "completo e orgânico em si mesmo". Para 81 constituir uma tal experiência, os seus elementos devem-se subordinar ao único fim de contribuir para a perfeição do todo; e, nesse sentido, esses elementos tornam-se forma. Enquanto que os objectos das artes industriais têm uma forma adaptada ao seu uso particular, o objecto estético tem uma forma que não se encontra subordinada a nenhum fim especial, a não ser a uma exigência de totalidade (Ib., p. 139). Uma forma deste tipo é uma forma expressiva, ou seja, não instrumental mas final. A expressão artística transfigura a emoção original sem a abolir; ela não é, como esta última, um simples desabafo ou a manifestação de um impulso. " No desabafo propriamente dito, uma situação objectiva é o estímulo, a causa da emoção. Na poesia, o material objectivo torna-se o conteúdo e a matéria da emoção e não a sua ocasião evocativa" (Ib., p. 83). É por isso que uma emoção excessiva é contrária à expressão estética. Nela, existe muita "natureza"; e a arte não é natureza, mas sim natureza transformada por novas relações que consentem uma nova reacção emotiva. § 767. DEWEY: A FILOSOFIA Do mesmo modo que a arte, a filosofia é um comentário à natureza e à vida que pretende enriquecer-lhe o significado; mas possui ainda um objectivo específico que é essencialmente crítico. Dewey retoma a velha definição de filosofia como "amor à sabedoria". Neste aspecto, a filosofia contribui para a expansão e renovação dos valores tradicionais através da crí82 tica. Esta é uma crítica das críticas, que tem como finalidade interpretar os acontecimentos para fazer deles instrumentos e meios da realização dos valores humanos, mas que tenta igualmente renovar o significado desses valores. É por isso que, mesmo estando condicionada por uma determinada cultura e pelas formas da ciência e da actividade prática que lhe são próprias, não é um reflexo dela, pois implica uma mudança e elabora um plano de reforma e de renovação. Sem dúvida, nada garante que um tal objectivo da filosofia seja alcançado; mas a filosofia apela precisamente para aqueles elementos que estão em poder do homem e que são os únicos de que ele pode valer-se e em que pode ter confiança. A renúncia a estes poderes é vileza, assim como considerá-los omnipotentes é arrogância. O homem não é um pequeno Deus dentro ou fora da natureza, mas simplesmente um homem, isto é, uma parte da própria natureza em acção recíproca com as outras. Por isso
deve, enquanto pode, valer-se dos seus poderes, filosofar. A contemplação sonhadora, o isolamento egoísta, o deixar-se levar pela rotina do mundo, são, para ele, soluções piores. Deve pôr à prova no mundo e entre os outros homens o projecto de vida futura que a filosofia lhe apresenta. O valor de uma filosofia reduz-se essencialmente a justificar a possibilidade de semelhante prova. Neste sentido, Dewey fala de uma revolução da filosofia de acordo com as concepções de Copérnico. A de Kant terá sido antes uma revolução ptolomaica, já que fez do conhecimento humano a medida da realidade. A revolução da filosofia, segundo Dewey, de83 verá consistir na compreensão de que o conhecimento não é nem oferece a totalidade do real e que, por isso, a filosofia não pode propor-se este ideal. O seu objectivo é mais modesto, mas mais eficaz. "Abandonar a busca da realidade e do valor absoluto e imutável pode parecer um sacrifício. Mas esta renúncia é a condição requerida para empenhar-se numa vocação mais vital. A procura dos valores que podem ser assegurados e compartilhados por todos, porque estão vinculados aos fundamentos da vida social, é uma investigação em que a filosofia não encontrará rivais mas sim colaboradores em todos os homens de boa vontade" (The Quest for Certainty, p. 295). A filosofia deve substituir a afirmação fantástico-mitológica de uma segurança e estabilidade ilusória pela investigação das condições efectivas que podem, em certa medida, contribuir para dar maior estabilidade e segurança à vida humana e aos seus valores fundamentais. § 768. DEWEy: RELIGIOSIDADE E RELIGIÃO Parece que deste ponto de vista a filosofia se opõe radicalmente à religião, a qual está ligada ao reconhecimento da substancialidade dos valores. E, na realidade, esta oposição não é minimizada por Dewey, se bem que numa conferência sobre o problema religioso intitulada Uma fé comum, ele tenha procurado de certo modo recuperar o significado "religioso" da experiência, distinguindo-o das crenças e das prá84 ticas que constituem as religiões históricas. Na experiência religiosa, afirmou, "a efectiva qualidade religiosa é o efeito produzido, a melhor adaptação à vida e às suas condições, e não a forma como se produz ou a sua causa. O modo como agiu a experiência, a sua função, determina o seu valor religioso. Se surge alguma nova orientação da vida, ela será, do mesmo modo que o sentimento de segurança e estabilidade que a acompanha, urna força que vale por si mesma" (A Common Faith, trad. ital., p. 16). O poder determinar esta atitude é uma pretensão comum a todas as religiões. Dewey considera que se deve derrubar esta afirmação e dizer que só existe uma atitude religiosa quando se verifica aquela mutação. Deste modo, o carácter propriamente religioso de uma experiência existe independentemente das crenças e das práticas das religiões particulares e torna-se "moralidade imbuída de emoção". A "religiosidade" é assim recuperada à custa da "religião". E ao conceito de Deus como "ser particulam, torna-se preferível o conceito de Deus como unidade dos fins ideais que o indivíduo reconhece como superiores autoridades sobre as suas vontades e as suas emoções, isto é, como unidade dos valores a que ele obedece.
Deste ponto de vista, Deus não é uma realidade mas sim um ideal. Por outro lado, como nota Dewey, um ideal não é uma ilusão pelo simples facto de ser. um produto da imaginação: "a nossa imaginação apercebe-se de todas as possibilidades". Mas considerálo como ideal significa aceitar que as suas raízes só possam ser procuradas na natureza e na história. "Ele emerge quando a imaginação idealiza a exis85 tência, assenhoreando-se das possibilidades oferecidas ao pensamento e à acção. Estas são valores ou bens já efectivamente realizados sobre uma base natural: os bens da associação humana, da arte e do conhecimento. A imaginação idealizante apropria-se das coisas mais preciosas, encontradas em momentos dominantes da experiência, e considera-as corno perspectivas" (Ib., p. 52). Dewey acoita substancialmente a tese de Durkheim segundo a qual a experiência religiosa é sobretudo uma idealização das relações humanas. A fase final desta experiência consiste precisamente, segundo Dewey, no reconhecimento explícito desta radical sociabilidade do ideal religioso. E nesta fase as crenças, as práticas e as formas organizativas da religião, aparecem como anexos ou superestruturas importantes mas não essenciais do elemento religioso da experiência. Uma tal religiosidade não contradiz decerto os cânones do naturalismo, porque não é referida ao sobrenatural. É uma nova versão daquilo que tradicionalmente se chama religião natural ou racional; é no entanto duvidoso que esta religiosidade possa ser utilizada para a explicação da estrutura das religiões históricas, nas quais aquilo que Dewey chama "superestrutura" exerce uma função essencial. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 760- Bibliogri&fia completa de Dewey e sobre ~ey: MIÈTON H. THOMAS, LD., .4 CentennUa Biblio-~hY, Chicago, 1962. 86 De Dewey, foram traduzidas em italiano as seguintes obras: Ricostruzione filosofica, por G. de Ruggiero, Bari, 1931; Esperienza e natura, tradução parcial, por N. Abbagnano, Turim, 1948; Logica teoria deUlindagine, por A. Visalberghi, Turim, 1949; Problemi di tutti, Milão, 1950, por G. Petri; L'arte come ~eiienza, Florença, 1951, por C. Maltese; Una fede comune, Florença, 1959, por G. Calogero; e quase todas as obras de pedagogia. § 761. Sobre Dewey: J.D., The Man and Ms Philosophy, in Addresses delivered in New York in Celebration of his Seventieth Birthday, Cambridge, Mass., 1930; FOLKE LEANDER, The PhUosophy of J.D., in A Critical Study, Gõteborg, 1939; The Philosophy of J.D., por P. A. Sch11pp, Evanston, Chicago, 1939, na "Library of Living Philosophers"; The, Philosopher of the commun Man, Nova Iorque, 1940; M. G. WHITE, The Origin of Ws InstrumentaUsm, Nova Iorque, 1943; J.D., Philosopher of Science ande Friedom, por S. Hook, Nova lorque, 19W; L. BORGH1, J.D. e il pensiero pedagogico contemporaneo negli Stati Uniti, Florença, 1951; A. VISALBERGHI, J.D., Florença, 1951; J. NATHANSON, J.D., Nova Iorque, 1951; H. S. THAYER, The Logie of Pragmatism, Nova Iorque, 1952; 1. EDMAN J.D., His Contribution to the American Tradition, Indianapolís, 1955; consultar também os fascículos dedicados a Dewey pela "Rivista critica di storia della filosofia", 1951, n., 4; e pela "Rivista di filosofia", 1960, n., 3; e sobre o acolhimento a Dewey em Itália: G. FEDERICI VESCOVINI, in "Rivista, di filosofia", 1961, n., 1.
87 x REALISMO E NATURALISMO § 769. CARACTERISTICAS DO REALISMO O idealismo gnoseológico constitui o clima dominante da filosofia contemporânea até aos primeiros decénios do século actual; com efeito, foi característico não apenas do idealismo em sentido histórico (idealismo romântico), como também do espiritualismo, do neocriticismo e da filosofia da acção. Todas estas correntes partem da hipótese de que o objecto nada é independentemente do sujeito cognoscente, e de que se reduz a uma actividade ou a um produto deste. Não obstante, o realismo nunca se eclipsou completamente e teve sempre manifestações notáveis, até ao ponto de constituir a orientação gnoseológica própria das mais representativas tendências dos últimos tempos: do instrumentalismo, do empirismo lógico, da 89 fenomenologia e do existencialismo. A gnoseologia realista destas correntes forma parte integrante do seu delineamento sistemático, e por isso foi examinada, ou será examinada, a propósito deste. Neste capítulo procurará tratar-se apenas daquelas doutrinas que não têm lugar nas correntes citadas e que se caracterizam essencialmente pelo seu delineamento realista. A defesa do realismo é normalmente sugerida por uma qualquer forma de naturalismo, ou tende a fundá-la. Para todas as correntes que se servem da gnoseologia idealista, a natureza não tem interesse senão como termo ou produto de uma actividade intelectual ou espiritual. Em si mesma, ela é nula. Mesmo e neo-criticismo, que assume como ponto de partida das suas análises gnoseológicas a ciência da natureza, não está interessado na própria natureza a não ser como objecto do conhecimento científico, sendo portanto levado a aceitar a sua redução idealista ao dado da consciência. O realismo, pelo contrário, tende a assumir como ponto de partida das suas especulações a própria existência ou modo de ser da natureza. Assim, a natureza será a realidade única ou fundamental, sendo o homem e a sua actividade espiritual uma simples parte ou manifestação dela. O naturalismo tem assim uma tendência para formular uma cosmologia e, na sua expressão mais consegui-da, constitui precisamente uma cosmologia. Mas a sua primeira tarefa é, óbviamente, a crítica da tese idealista, a fim de abrir caminho ao reconhecimento da realidade do mundo natural. As teses fundamentais que o permitem reconhecer são as seguin90 tes: 1) o objecto do conhecimento não é parte ou elemento do sujeito cognoscente 2) o objecto tem um modo de ser próprio, independente da consciência mas que pode ser conhecido e descrito. Estas duas teses são comuns a todas as formas do realismo. O realismo naturalista defende ainda uma terceira tese, segundo a qual o modo de ser de todos os objectos conhecíveis
pode ser modelado a partir do dos objectos naturais. E a esta tese contrapõem-se óbviamente as formas não naturalistas do realismo (por exemplo, o neo-tomismo), as quais recorrem aos expedientes da metafísica tradicional para definir o modo de ser dos objectos. § 770. A FILOSOFIA DA IMANÊNCIA Pode-se considerar como incluída no realismo a chamada "filosofia, da imanência", que se desenvolveu na Alemanha e que tinha por fim defender o realismo ingénuo, ou seja, o realismo do senso comum. Wilhelm Schuppe (1836-1913) foi o seu fundador, e a sua principal obra é o Ensaio de gnoseologia, e lógica (1894, 2 a ed. aumentada, 1910) sendo ainda autor de outros numerosos escritos (0 pensamento humano, 1870; Lógica gnoseológica, 1878; O conceito do dire.," to subjectivo, 1887; O problema da responsabilidade, 1913). O objectivo explícito de Schuppe é o de defender o realismo ingénuo nas suas afirmações evidentes, isto é: LO, que a realidade sobre a qual versa o pensamento é independente do sujeito pensante e é o mundo das coisas perceptíveis (as 91 quais existem tanto se as penso como se as não penso); 2.O, que o pensamento pode existir somente nos sujeitos individuais; 3.O, que o pensamento verdadeiro, ou seja, o pensamento confirmado pela aparência sensível, concorda com aquela realidade (Grundriss der Erkenntnistheorie und Logik, 1910, págs. 1-2). Para justificar estes princípios é preciso notar que nem o sujeito independentemente do objecto (como o considera o idealismo), nem o objecto independentemente do sujeito (como o considera o realismo teórico) são realidades, mas puras abstracções. Toda a individualidade do eu depende do seu conteúdo objectivo e muda com este conteúdo. Por isso, o eu não se pode conhecer como eu sem conhecer um conteúdo distinto de si. "Não há saber de outrem sem se saber de si, não há saber de si sem saber de outrem" (Ib., p. 21). Mas isto significa também que o eu não se identifica com o seu conteúdo objectivo. Não é espacial, mesmo quando inclua o espaço como conteúdo da sua consciência; e converte-se ele mesmo em espacial, como um objecto entre os outros objectos, só na medida em que tem um corpo. Por outro lado, a realidade, que é objecto do pensamento, é originariamente a percepção sensível ou, melhor, o conteúdo espacio-temporal da percepção, que é uno e idêntico para todos os sujeitos. A garantia desta unidade está no que Schuppe denomina de "consciência em geral": uma consciência própria da espécie humana, que condiciona aquela parte da experiência que constitui o conteúdo comum das consciências individuais (Ib., § 45). Deste modo, Schuppe pode afirmar que "o mundo está no eu", 92 mas não no sentido do idealismo subjectivo, para o qual aquele se volatiliza em ideias, mas no sentido de que existe como objecto da
consciência (Grundriss d. Erkennt. u. Logik, § 31). O elemento subjectivo, aquele em que habitualmente se admite o pensamento como tal, consiste apenas na consciência da identidade, das distinções e das conexões causais do dado objectivo (Ib., § 83), e neste sentido forma o objecto da lógica. A exigência realista de Schuppe detém-se no reconhecimento de que o objecto do pensamento não é, em si mesmo, pensamento; tal reconhecimento basta, segundo Schuppe, para garantir as pretensões do realismo ingénuo. O objecto do pensamento é, não obstante, um conteúdo de consciência; e, portanto, é imanente à própria consciência (donde o nome de filosofia da imanência): Schuppe recusa, por isso, admitir qualquer transcendência da realidade relativamente à consciência e recorre à consciência em geral para explicar a -identidade ou a concordância dos conteúdos das consciências individuais. Este consciencialismo é combatido por Külpe, defensor de um realismo muito mais radical. § 771. Kulpe Oswald Külpe (1862-1915) foi inicialmente um estudioso da psicologia, à qual dedicou importantes obras (Princípios, de psicologia, 1893; Psicologia e medicina, 1912). É, ainda, autor de uma Introdução à filosofia (1896), que teve grande êxito na Alemanha, de uma monografia sobre Kant e de um estudo sobre 93 Teoria do conhecimento e ciências naturais (1910). Mas a sua obra mais notável é a que se intitula A realização, cujo primeiro volume se publicou em 1912 e os outros dois, postumamente, em 1920, por Augusto Messer. Nesta obra é evidente a influência da primeira fase (realista) do pensamento de Husserl. Külpe rejeita todo o tipo e forma de consciencialismo, isto é, toda a doutrina que de algum modo reduza a realidade a um simples objecto de consciência. Ao argumento de Schuppe (e de muitos outros) contra a transcendência do objecto, de que é impossível e contraditório pensar algo que não seja um conteúdo de consciência, Külpe responde que pensar algo e tê-lo pensado na consciência não é a mesma coisa. O objecto pensado oferece-se ou manifesta-se ao pensamento precisamente na sua independência do próprio pensamento, isto é, de maneira que a sua origem e o seu comportamento, as suas propriedades e mudanças, sejam independentes de qualquer influxo que o pensamento possa exercer sobre eles. Isto é verdade não somente para os objectos pertencentes ao mundo externo mas também para os objectos ideais como, por exemplo, os da matemática que, como Husserl mostrou, apresentam caracteres e relações sobre os quais o pensamento não actua. Por outro lado, a prova mais segura da independência dos objectos do pensamento é o próprio princípio de identidade, o qual permite admitir a identidade do objecto independentemente da multiplicidade das operações lógicas (juízos, raciocínios, demonstrações, etc.) que conduzem a reconhecê-la (Die Realisierung, 1, p. 92). Por conseguinte, a consciência 94 não é nem potência criadora nem potência determinante; e, para a realidade ou a
existência do objecto, é tão indiferente como, para um quadro, o estar pregado a uma parede (Ib., p. 100). Tudo isto demonstra que as provas e argumentos apresentados contra o realismo não são válidos e que, por conseguinte, o realismo é possível; mas não demonstra também que é necessário, isto é, que se deva necessariamente chegar à afirmação de uma realidade independente da consciência e do sujeito cognoscente. Para alcançar este objectivo existem três classes de argumentos, que Külpe examina no segundo volume da sua obra: argumentos empíricos, o argumentos racionais e argumentos mistos, isto é, que consistem numa união dos dois primeiros. Todavia, nem os argumentos empíricos (por exemplo, aqueles que aceitam a vivacidade das sensações, a diferença entre percepção e imagem, etc.), nem os argumentos racionais (por exemplo, aqueles que aceitam a validade da indução, a não contraditoriedade da ideia do mundo externo, etc.), são válidos por si mesmos; restam apenas os argumentos mistos. Estes levam-nos a reconhecer o mundo externo mostrando como, na percepção, se revela algo que é independente dela e que é a sua causa; ou ainda, como o objecto constitui a unidade das percepções de diferentes indivíduos e é condição da sua continuidade e regularidade. Estes argumentos levam-nos ainda a afirmar que a existência de um mundo externo deve ser considerado; mas que exista efectivamente é coisa que, segundo Külpe, implica um elemento hipotético que não se pode eliminar. "0 realismo científico, conclui 95 este autor, é um axioma para as ciências naturais que, já na sua definição, antecipam a suposição de um mundo externo; é um teorema para a consideração gnoseológica, que pode baseá-lo suficientemente em hipóteses empíricas e racionais; mas é uma hipótese quando se admite que a suposição de um mundo externo exprime a existência de uma realidade desse tipo (Ib., 11, p. 148). § 772. MOORE Na filosofia anglo-americana, a introdução da alternativa realista no clima idealista dominante foi devida a George Edward Moore (1873-1958), que, foi professor em Cambridge e autor de duas obras de ética (Principia Ethica, 1903; Etica, 1912), de numerosos ensaios parcialmente reunidos no volume Estudos Filosóficos (1922) e de um ciclo de vinte lições proferidas em 1910-11 mas publicadas em 1953 com o título Alguns problemas principais da filosofia. A obra mais famosa de Moore é A refutação do idealismo, publicada pela primeira vez no "Mind", em 1903. Ela trata da análise da relação cognitiva, isto é, da relação entre a
consciência e os seus objectos. Segundo o idealismo, esta é uma relação de inclusão ou de pertença: "ser objecto" significa "fazer parte" da consciência ou "ser uma qualidade" da própria consciência; deste modo, assim como uma parte não pode existir fora do todo, ou uma qualidade não pode existir independentemente da coisa da qual é qualidade, também os objectos da cons96 MOORE ciência não poderão existir fora ou independentemente dela. Moore defende que o "conhecer", o "ser consciente de", o "ter experiência de", constituem um tipo de realização sui generis: um tipo de realização externa, isto é, tal que não modifica a natureza dos entes correlativos, tornando-os outros diferentes MI1M1 r44, que seriam sem a relação em que se encontram. O próprio Moore esclareceu, por outro lado, contra os idealistas (e especialmente Bradley) que defendiam, et pour cause', a doutrina das relações internas, a tese da exterioridade das relações no sentido de que, se um termo tem uma certa propriedade relacional, não devemos daí concluir que ela é característica dele: "da proposição que afirma que um termo é aquilo que é, não se segue que se possa aceitar uma qualquer proposição que afirme uma propriedade relacional desse termo" (Philosophical Studies, p. 306). A doutrina das relações assim concebida é o objecto da lógica de Russell; e constitui, provavelmente, o ponto de encontro entre Russell e Moore. A exterioridade das relações é o pressuposto implícito ou explícito de todas as formas do realismo moderno; e é um mérito de Moore o tê-la declarado e ilustrado. É, no entanto, um pressuposto negativo: diz aquilo que a relação cognitiva não é e não aquilo que ela é no seu carácter específico. Sobre esta segunda questão, a doutrina de Moore nada afirma. N. dos T.: Em francês no texto original. 97 A filosofia de Moore pretende ser unia defesa do senso comum; e é por esta razão que ela foi utilizada pelos analistas ingleses da linguagem, os quais viram nela a defesa da linguagem comum. Mas a verdadeira intenção de Moore é assumir a defesa das crenças do senso comum, crenças essas que ele declara considerar como critério de juízo das opiniões filosóficas (Some Main Problems of Philosophy, p. 2). Neste aspecto, a sua filosofia integra-se nas tradições da escola escocesa, cujo último representante foi Hamilton. As crenças do senso comum são, de acordo c~ Moore, principalmente duas: a da existência dos objectos materiais e a da existência de uma multiplicidade de sujeitos humanos todos eles dotados de corpo e de consciência. A negação destas crenças é, na opinião do autor, impossível, por ser contraditória, visto que se nega a existência de seres humanos dotados de um corpo e da capacidade de falar e de escrever para outros seres humanos, nega-se com isso a existência de filósofos que possam negar a existência dos corpos; e reciprocamente, se existem filósofos que efectuam esta negação, eles mesmos, contraditoriamente, admitem a existência de outros seres com os quais falam, discutem, polemizam, etc., admitem implicitamente a verdade daquele senso comum que pretendem
negar. Moore considera no entanto que, se a verdade das crenças do senso comum está fora de discussão, a correcta análise delas, ou seja, a sua exacta interpretação está muito longe de ser fácil. As suas próprias tentativas de interpretação (que se encontram sobretudo na obra Alguns problemas prin98 cipais, da filosofia) são sempre apresentadas com muita cautela e mostram claramente a diversidade das interpretações possíveis. De qualquer modo, Moore estabelece uma espécie de equação entre a verdade e o senso comum, a qual não tem em conta o facto de a origem histórica da filosofia se encontrar precisamente nas dificuldades, conflitos e problemas que o senso comum faz aparecer e para cuja resolução apela para os processos autónomos da razão. Por outro lado, se o senso comum tem necessidade de uma "defesa" ou de uma "análise esclarecedora", isto é uma prova de que não se basta a si mesmo e de que não constitui toda a "verdade". Um tal apelo ao senso comum pode até ser encontrado nas premissas da ética de Moore. A tarefa da ética é, segundo Moore e em primeiro lugar, a determinação da natureza do bem em geral; e só em segundo lugar se pode considerar como sua tarefa a determinação do comportamento humano que pode ser considerado correcto. Ora o bem, na opinião deste autor, é uma noção simples como, por exemplo, a de "amarelo"; e, do mesmo modo que não se pode explicar o que é o amarelo a quem não o saiba, também não se pode explicar o que é o bem (Principia Ethica, 1, § 7). Neste sentido, a noção de bem é intuitiva; mas Moore nega que exista um órgão encarregado desta intuição. Aquilo que ele acha correcto dizer-se é que "todos sabem em qualquer situação o que é o bem" (Ib., 1, 13): o que equivale a dizer que todos sabem o que é o bem desde que apelem implicitamente para o senso comum. Deste ponto de 99 vista, a tarefa da ética será a de analisar as asserções que podem ser feitas sobre a qualidade das coisas que é designada pelo termo "bem" ou pelo termo oposto "mal". Estas asserções são de duas espécies: ou dão a conhecer em que grau é que as coisas possuem aquela propriedade ou afirmam quais são as relações causais existentes entre as coisas que possuem tal propriedade e as outras. Moore inverte o ponto de vista de Kant: a noção de bem já não se baseia na do dever mas, pelo contrário, a noção de dever é que se baseia na de bem. Todas as leis morais são assim reduzidas à afirmação de que certas acções produziram bons efeitos e, por isso, "o nosso dever pode apenas ser definido como sendo a realização daquela actuação que causará mais bem ao universo do que qualquer sua outra alternativa" (Ib., V § 89). A ética é assim uma disciplina inteiramente objectiva, que diz respeito a certas qualidades reais das coisas, designadas por bem. Quais são estas qualidades? Em primeiro lugar, o amor às coisas belas e às pessoas boas. Estas são indubitavelmente um bem puro, mesmo se as coisas ou pessoas amadas são imaginárias; mas se forem reais, a combinação da sua realidade com a qualidade em questão constitui um todo que é bastante melhor do que o simples amor. O amor às qualidades mentais em si mesmas não é um bem tão grande quanto o amor às
qualidades mentais e materiais juntas; e de qualquer modo, um grande número de coisas, entre as melhores, incluem o amor a qualidades materiais. Tais são, por exemplo, o prazer estético, a amizade, O amor, etc. Aos grandes bens 100 opõem-se os grandes males, que consistem no amor àquilo que é feio ou ruim, no ódio àquilo que é bom e belo ou na consciência da dor. Existem ainda bens mistos que incluem, por exemplo, um elemento de feio ou de mau, o ódio àquilo que é feio ou mau ou a compaixão para com a dor. Estes bens, se incluem um mal real, têm um menor valor positivo do que os outros. O princípio, afirmado na ética de Moore, do bem ou, em geral, do valor como qualidade objectiva, e da ética como indagação que tem por fim estabelecer quais as coisas dotadas de tal qualidade, foi largamente aceite pelas correntes naturalistas e instrumentalistas da filosofia angloamericana, da mesma forma que a sua técnica de discussão das proposições éticas foi largamente seguida pelo neoempirismo. Por outro lado, a ética de Moore é estática e conformista e não oferece nenhuma ajuda à solução dos problemas efectivos que a vida moral apresenta. Definindo o dever como "a acção que acumula a maior soma possível de bem", o próprio conhecimento do dever torna-se impossível ao homem pois exige o conhecimento de todos os efeitos possíveis de todas as possíveis acções. Moore acaba portanto por aceitar pura e simplesmente todas as regras já estabelecidas, chegando a afirmar que "existe uma forte probabilidade de aderir a um hábito já existente mesmo que ele seja mau" (Ib., V, § 99). Assim, o único ensinamento prático da ética de Moore é o do mais rigoroso conformismo; e a "base científica" que ele tentou en101
contrar para a ética reduz-se ao abandono total da tradição. § 773. BROAD Na mesma linha do realismo de Moore encontramos ainda a obra do inglês Charlie Duribar Broad (nascido em 1887), autor de numerosos escritos sobre o mundo da ciência, da percepção sensível e da percepção supra-sensorial (Percepção, física e realidade, 1914; Pensamento científico, 1923; O espírito e o seu lugar na natureza, 1925; Cinco tipos de teorias éticas, 1930; Exame da filosofia de McTaggart, 1933-1938; A ética e a história da filosofia, 1952; Religião, filosofia e investigação psíquica, 1953). Os problemas que monopolizaram a actividade filosófica de Broad são essencialmente três:
o valor cognitivo da ciência, o valor cognoscitivo da percepção e a relação entre a alma e o corpo. As soluções que Broad deu a tais problemas são realistas e naturalistas, pois são expressas de forma prudente e algumas vezes problemática; mas Broad procurou uma base para uma sua integração espiritualista nos factos apresentados pelas chamadas "investigações psíquicas". O carácter prudente ou problemático das suas soluções é uma consequência da tarefa "crítica" que ele atribui à filosofia e que o recomenda à atenção dos filósofos analistas contemporâneos; tal análise consiste na análise e determinação do significado preciso dos conceitos usados na vida comum e na crítica às crenças comuns que possam ser considera102 das como fundamentais. Ã "filosofia especulativa", que quer alcançar uma concepção total do mundo utilizando não só os resultados das ciências mas também os da experiência ética e religiosa da comunidade, Broad reconhece-lhe apenas o valor de uma conjectura mais ou menos conseguida e a sua função como apelo, contra o especialismo, a uma concepção sintética da realidade. O processo de que Broad se serve é psicológico, no sentido da psicologia psicofísica; e a esta psicologia, com efeito, ele atribui uma particular importância para a indagação filosófica (Scientific Thought, p. 25). Àcerca do primeiro problema, o da validade da ciência, a solução de Broad consiste em afirmar que a ciência é válida porque os seus objectos são perceptíveis e porque as relações entre eles são igualmente perceptíveis. Os desenvolvimentos modernos das ciências (a teoria da relatividade) tendem cada vez mais a aproximar os conceitos da ciência (e, portanto, os do senso comum de que parte a ciência) às sensações e às percepções. "Se, afirma Broad, nós verificarmos, como penso que acontecerá, que as recentes modificações dos conceitos tradicionais, feitas numa base puramente científica, conduzem o esquema geral a uma mais estreita conexão com a sua base sensorial e perceptiva, isto será um argumento adicional a favor de tais modificações e tenderá a neutralizar a impressão de paradoxo que os seus últimos desenvolvimentos produziram nos homens que foram educados segundo o esquema tradicional" (Scientifie Thought, p. 228). Quanto à validade da percepção, que é o segundo dos problemas fundamentais tratados por 103 Broad, a teoria que ele prefere é a do realismo dualista, segundo o qual existem "corpos", ou seja, substâncias com qualidades extensivas e em relação às quais se pode definir uma posição no espaço a três dimensões; mas o objecto imediato da percepção (as qualidades ou dados sensoriais e o conteúdo objectivo da própria percepção) não é por sua vez um corpo ou uma parte de um corpo. Dever-se-á antes considerar um dualismo entre o corpo físico e o objecto da percepção, se bem que exista simultaneamente uma correspondência entre as duas coisas. Deste ponto de vista dualista, "a noção de objectos físicos persistentes é apenas uma hipótese para explicar as correlações entre as situações perceptivas" (The Mind and Its Place in Nature, p. 152; Perception, Physics and Reality, págs. 108,c sgs.; Scientific Thought, p. 278). Esta hipótese ou postulado é ainda chamada por Broad "categoria", ou seja, "princípio inato de interpretação" (The Mind and Its Place in Nature, p. 217). O realismo de Broad é, assim, diferentemente do de Moore, um realismo do intelecto, não um realismo dos sentidos: estes só nos fornecem conteúdos objectivos que não pertencem aos corpos, enquanto que o intelecto leva a admitir a existência dos
próprios corpos. Quanto ao terceiro problema, o da relação entre alma e corpo, a solução adoptada por Broad foi a do epifenomenismo que, muitas vezes, ele chamou de "materialismo emergente" (Ib., p. 647). Segundo esta doutrina, todos os acontecimentos mentais são produtos causais de acontecimentos fisiológicos, se bem que nenhum acontecimento fisiológico seja pro104 duto causal de acontecimentos mentais; por outros termos, a consciência é um epifenómeno ou um produto secundário da actividade fisiológica (Ib., p. 472). É certo que Broad não pretende reduzir os acontecimentos mentais a acontecimentos fisiológicos, mas a tese epifenomenista faz dele, apesar de tudo, um naturalista. O naturalismo de Broad é menos evidente no campo da moral. As qualidades éticas não são empíricas mas sim apriorísticas e constituem o objecto de uma intuição racional (Five Types of Ethical Theory, págs. 178 e sgs.; 281 e sgs.). A liberdade, exigida pela obrigação moral, exige como condição negativa a completa independência do seu sujeito relativamente a todas as determinações causais e como condição positiva a capacidade do próprio sujeito de ser a causa única do seu esforço (Ethics and the History of PHosophy, págs. 214 e sgs.). Finalmente, Broad considera que "a noção cientifiicamente ortodoxa do homem como uma qualquer máquina calculadora e da natureza não-humana como um mecanismo mais vasto que produz, entre outras coisas, esta máquina, é uma estupidez fantástica em que nenhum homem de bom senso pode acreditar a menos que não conserve num compartimento estanque, separada de todas as suas outras experiências, actividades e crenças" (Autobiography, in C. D. Broad, p. 58). É desta insuficiência da concepção científica, que Broad se utiliza para cultivar a investigação psíquica, a qual, em sua opinião, fornece factos que permitem entrever uma diferente e mais consoladora estrutura do mundo. 105 § 774. O NOVO REALISMO AMERICANO Seguindo o caminho de Moore, um grupo de pensadores americanos preconizava, em 1912, o regresso ao realismo com um volume de estudos em cooperação, intitulado O novo realismo; eram eles Edwin B. Holt, Walter T. Marwin, William Pepperell Montague, Ralph Barton Perry, Walter B. Pitkin e Edmond Gleason Spaulding. Todos estavam de acordo em negar o princípio em que se baseia a gnoseologia idealista: o carácter intrínseco das relações. Afirmar, como faz o idealismo, que as coisas existem apenas em relação ao espírito que as pensa e que, por conseguinte, a sua realidade se reduz ao acto do conhecer ou do perceber, só é possível se se admite o princípio de que a relação modifica substancialmente os termos que a constituem. Mas este princípio é desmentido pelos factos. Um mesmo homem, por exemplo, pode fazer parte de núcleos sociais diferentes sem que nenhuma destas relações implique a outra, e a lógica matemática (na qual se
baseiam principalmente os novos realistas) demonstra como o mesmo pode fazer parte de diversos conjuntos sem ser modificado por eles. As relações devem, pois, ser concebidas tal como o faz a lógica matemática: extrínsecas à natureza dos termos relativos. Assim sendo, a própria relação cognitiva não modifica os objectos conhecidos; e o facto de eles só aparecerem em relação connosco não implica que o seu ser se esgote nesta relação, nem anula a sua realidade independente. Deste modo, o princípio idealista do esse est percipi transforma-se 106 no do percipi esse est. Todos os objectos possíveis do nosso pensamento, que não se deixam decompor pela análise, são entidades simples que subsistem por sua conta, independentemente de toda a actividade ou função subjectiva. O novo realismo nega o dualismo metafísico entre sujeito e objecto e afirma um monismo radical. Pensamento e realidade não são duas substâncias, mas dois agrupamentos diversos das mesmas entidades simples, segundo a tese que havia já enunciado Mach. Mas estas entidades simples não são, como queria Mach, apenas as sensações; são também os seres conceptuais e abstractos da matemática e da ciência. As entidades que fazem parte do complexo "consciência" podem fazer parte, simultaneamente, de muitos outros complexos. O conjunto destas entidades simples, que podem ser reais ou irreais, boas ou más, mentais, físicas, etc., constitui o universo subsistente. Um espírito ou uma consciência é uma classe ou grupo de entidades dentro deste universo, assim como um objecto físico constitui outra classe ou grupo; deste modo, a diferença entre o físico e o mental não é de substância ou de entidade, mas apenas de relação. A consciência é um grupo escolhido ou determinado pelo sistema nervoso, que com a sua acção produz uma espécie de secção transversal do universo, da mesma maneira que um raio de luz percorrendo uma paisagem e iluminando este ou aquele objecto, define uma nova colecção de objectos que, contudo, são e permanecem partes integrantes da paisagem. O próprio erro é um facto objectivo, devido a urna distorção fisiológica, 107 periférica no caso dos erros sensoriais, ou central no caso dos erros conceptuais. Dos seis neo-realistas, a maioria voltou-se depois para uma forma de pragmatismo ou instrumentalismo. Um deles, William Popperell Montague (1878-1953), professor na Columbia University de Nova Iorque, deu uma orientação eclética à sua doutrina, tentando conciliar no seio do realismo as tendências opostas da gnoseologia e da metafísica contemporâneas (Os caminhos do conhecer, 1925; Os caminhos das coisas, 1940; As grandes visões da filosofia, 1950). No campo da gnoseologia Montague distingue dois problemas: um problema lógico sobre o critério último da verdade e um problema epistemológico sobre a dependência ou a independência das coisas relativamente ao sujeito cognoscente. Em relação ao primeiro problema, Montague distingue seis métodos diferentes (autoritarismo, misticismo, racionalismo, empirismo, pragmatismo e cepticismo) e procura estabelecer uma "federação" de tais métodos, delimitando para cada
um deles o campo da sua aplicação legítima. Assim, o autoritarismo aplica-se no domínio dos objectos ou dos acontecimentos que não podem ser experimentados por nós e para cujo conhecimento é mister confiar-se no testemunho de outros. Ao misticismo fica reservado o domínio dos valores últimos e não instrumentais e das supostas verdades últimas e inefáveis. O racionalismo aplica-se, contrariamente, às relações abstractas e também aos conjuntos de factos particulares enquanto admitem entre si relações comensuráveis. O empirismo é o método mais amplamente aplicável, porque é o único que se 108 refere aos factos e às relações particulares, e é inclusive susceptível de ser empregue indirectamente nos restantes campos. O pragmatismo, que é falso no mundo do conhecimento porque neste o indivíduo deve subordinar-se à vida externa, é verdadeiro no caso dos interesses práticos, cuja satisfação se obtém mediante a subordinação do meio externo ao indivíduo. O cepticismo, por último, exerce uma útil função negativa e limitadora, mostrando que nenhum conhecimento humano é absolutamente verdadeiro. Em relação ao problema mais estritamente gnoseológico, o de saber em que medida os objectos conhecidos têm ou não uma existência e um carácter independente das suas relações com o sujeito cognoscente, Montague distingue três posições fundamentais: a primeira, a do objectivismo, atribui a existência tanto aos objectos da experiência verdadeira como aos da experiência falsa e anula, portanto, toda a distinção entre o real e o irreal. A segunda, a do dualismo, separa os dados sensíveis das coisas externas, que são tidas como causas deles. A terceira, a do subjectivismo, afirma que os objectos não podem existir independentemente da consciência e que por isso a sua realidade se resolve na própria consciência. O realismo constitui a reinterpretação e a conciliação destas três posições. O objectivismo é falso porque afirma que todos os objectos percebidos têm existência física actual; mas é verdadeiro na medida em que têm sempre um significado ou uma essência independente pela qual são estados de existência possível. O objecto experimentado é, em todo o caso, uma entidade lógica independente e, portanto, é mais do que um simples es109 tado do sujeito perceptivo: o seu carácter ou a sua essência é independente do ser percebido e é independente da sua existência de facto. O subjectivismo é verdadeiro no sentido de que todos os objectos são selectivamente relativos a um eu e objectos possíveis da sua experiência; mas é falso no sentido de que eles sejam constitutivamente relativos ao eu e existam apenas como objectos actuais da sua experiência. O dualismo é verdadeiro ao afirmar que o sistema dos objectos experimentados por um eu e o sistema dos objectos externos variam independentemente um do outro; é falso ao afirmar que estes dois sistemas são constituídos por entidades metafísicas diferentes e que mutuamente se excluem. Montague recusa-se a admitir como realidades existentes as entidades abstractas de que falam alguns dos novos realistas. A realidade existente é constituída por coisas espacial e temporalmente localizadas; e toda a coisa é uma série de factos, cada um dos quais tem também uma
posição absoluta no continuum espacio-temporal. Pelo que se refere à metafísica, Montague sustenta um espiritualismo cosmológico que pode ser também expresso por conceitos físicos: o mundo é um fluxo de energia ao mesmo tempo espiritual e física; é, por outras palavras, segundo a velha concepção, um grande animal, cujo núcleo é uma vontade racional, mas finita, que age e luta contra um conjunto de possibilidades recalcitrantes. A unidade de energia física e psíquica revela-se na sensação, que é o ponto em que a energia do estímulo externo deixa de ser observável como movimento e se transforma numa nova espécie de energia observada interiormente como sen110 sação. "0 que do ponto de vista do físico é simples potencialidade de movimento futuro, é em si e por si a actualidade do sentimento e da sensação". A unidade entre o espírito e a matéria realiza-se no conhecimento, para o qual alguns factos ou objectos gozam de uma eficácia em espaços e tempos diferentes dos que lhe são próprios, isto é, nos do cérebro que os conhece. O conhecimento é selectivo, não constitutivo; é um fluxo de energia que se volta para o passado, escolhendo os factos a conhecer (que permanecem independentes) a fim de se dirigir para o futuro. A vida é também um fluxo de energia que se acumula e incrementa a si mesma através da hereditariedade; e o mundo é um **pleon, cuja alma está suspensa no tempo e cuja existência material é, em cada instante, uma secção transversal do todo. O sentido destas concepções metafísicas é nitidamente optimista; significam, segundo Montague, que o mundo é espírito e que nós, sendo também espírito, talvez partilhemos até à imortalidade a vida que nos contém e sustenta. § 775. O REALISMO CRÍTICO AMERICANO Durant Drake, Arthur O. Lovejoy, James Bisset Pratt, Arthur K. Rogers, George Santayana, Roy Wood Sellars e C. A. Strong publicaram em 1920 uns Ensaios, de realismo crítico com uma orientação intimamente relacionada com a fenomenologia e a teoria dos objectos (§ 833). Segundo os realistas críticos 111 (e o adjectivo não se refere aqui, de modo algum, à doutrina kantiana), o objecto imediato do conhecimento não é o estado mental nem a própria coisa, mas um conjunto de qualidades ou caracteres (uma essência) que no acto do conhecimento são irresistivelmente considerados como qualidades e caracteres (essência) de um objecto externo. A existência efectiva de um objecto nunca é experimenta-da directamente: enquanto intuimos as essêncIas, apenas conhecemos a existência; e conhecemo-la indirectamente, isto é, afirmamo-la por um acto cuja legitimidade pode ser de vez em quando provada pelos meios indirectos de experiência e raciocínio de que se valem o senso comum e a ciência. Conhecer um objecto significa dar a
este objecto uma essência determinada, pensar a sua natureza em termos de um dado conteúdo de pensamento. O conhecimento é, por isso, sempre mediatizado pela essência, de modo que não é possível ter dos seus objectos a experiência imediata que cada um tem dos seus próprios conteúdos mentais. Isto torna possível o erro, que seria impossível se, como o idealismo e o neo-realismo sustentam, o objecto real estivesse imediatamente presente na consciência. A verdade é a identidade da essência com o carácter actual da realidade a que ela se refere; o erro é a falta de tal identidade ou a atribuição de uma essência a um objecto que é tido por real e não o é. A natureza lógica e universal do dado (isto é, da essência), que é sempre diferente do estado psíquico que lhe serve de veículo, torna possível a identidade entre a essência dada e a essência do objecto, as quais são, de facto, idênticas quando o 112 conhecimento é verdadeiro. Mas a essência não tem uma existência própria e não pode ser hipostasiada numa existência; e, por seu lado, a existência, se é pensada, não é mais do que uma essência, isto é, uma não-existência pura. A essência intui-se, não se conhece; a existência conhece-se, não se intui; e toda a tentativa de conhecer a essência ou de intuir a existência não faz mais do que transformar a existência em essência e esta naquela. Este ponto de vista, se por um lado toma impossível o dualismo metafísico do realismo tradicional, que fazia da realidade e da ideia duas existências separadas e independentes, por outro lado torna também impossível toda a forma de idealismo por negar o seu pressuposto fundamental, isto é, que os estados mentais são a única realidade conhecida imediatamente. No acto da percepção, que é o estado mental vivido, é dada apenas a essência de um objecto reconhecido como independente; quando, com a introspecção, este mesmo estado mental se converte em objecto do conhecer, intui-se dele, como de qualquer outro objecto, apenas a sua essência. A existência dos estados mentais e, em geral, do psiquismo ou do espírito, não tem, portanto, nenhuma certeza privilegiada; como a de qualquer outra realidade, pode ser unicamente conhecida ou afirmada, sem nunca ser alcançada de uma maneira directa. Quer se trate de uma realidade física ou de uma realidade psíquica, o que nós podemos directamente experimentar consiste nas suas qualidades ou caracteres, ou seja, numa essência ideal ou lógica. Quando o idealista afirma 113 que o pensamento é a única realidade e que fora do pensamento nada existe, esquece que o pensamento não tem realidade própria e que tem valor somente como representação ou símbolo de uma existência real, que não é, por sua vez, pensamento. E mesmo no caso daquele pensamento hipostasiado e, logo, negado como pensamento, que o idealista põe como substância do universo, só se pode intuir a simples essência; nem sequer se chega, pois, a captar a sua existência. Se o pensamento permanece fechado no
mundo das essências lógicas, a afirmação da existência não é obra do pensamento. Os realistas críticos acreditam, com efeito, que só o aguilhão das necessidades vitais leva a dar existência ou realidade ao dado ideal. A existência é uma honra atribuída à essência pelo organismo vivente que, encontrando o dado, se alarma e vê nele um perigo ou uma ajuda, um obstáculo ou um instrumento. Apenas a situação de um organismo que se encontre num contínuo intercâmbio de acções e reacções com o universo externo pode ser a raiz de uma afirmação da existência real. "Deste modo", diz Santayana (Critical Realism, p. 179), "o eu, realmente, supõe o não-eu; mas não de uma forma absoluta, como Fichte imaginou, nem por um fiat gratuito, mas ocasionalmente e pelo melhor dos motivos, quando o nãoeu, com a sua força, sacode o eu da sua PrimItiva sonolência". Os realistas críticos tinham em comum um programa muito mais circunstanciado e coerente que os novos realistas. Mas também eles evoluíram diversamente e, assim, enquanto uns deram significado espi114 ritualista ao seu realismo, outros acentuaram o seu carácter naturalista. Entre os primeiros, Durant Dralce insistiu no valor da introspecção, que lhe parece ser reveladora da própria natureza da substância física portanto, reduzida analogamente à vida psíquica do homem (0 espírito e o seu lugar na natureza, 1925); e insistiu numa moral optimista de fundo religioso (A nova moralidade, 1928). Arthur Kenyon. Rogers orientou-se para a defesa da personalidade humana e do teísmo (Teoria da ética, 1922; Ensaios de filosofia, 1929). Por outro lado, o valor privilegiado da introspecção é negado por Charles August Strong, que se inclina para um naturalismo panpsiquista (A sabedoria dos animais, 1921; Teoria do conhecimento, 1923). Um declarado naturalismo de tipo materialista é defendido por Roy Wood Sellars, que nega o dualismo de espírito e corpo e repudia Igualmente o pan-psiquismo (Naturalismo evolutivo, 1921; Princípios, e problemas da filosofia, 1926-, A maioridade da religião, 1928). Sobre a temporalidade do mundo e sobre uma forma de dualismo ou, pelo menos, de "bifurcação da experiência" que justifique a distinção entre a aparência ilusória e a realidade física, insiste Arthur O. Lovejoy (1873-1962), que examinou historicamente, chegando a conclusões negativas, A rebelião contra o dualismo (1935) e as tentativas de conceber o universo como um desenvolvimento contínuo e gradual dos seres mais inferiores até aos mais perfeitos (A grande cadeia do Yer, 1936). 115 § 776. SANTAYANA Entre os realistas críticos, a figura mais notável é a de Georges Santayana, que nasceu em Espanha em 1863, foi professor de filosofia na Universidade de Harvard, e viveu muitos anos em Roma onde morreu em 1952. Foi um escritor fecundíssimo, não só de filosofia,
como também de obras literárias. Os seus escritos filosóficos principais são os seguintes: O sentido da beleza, 1896; Interpretação da poesia e da religião, 1900; A vida da razão, 5 vol., 1905-1906 (2.- ed, 1954). Cepticismo e fé animal, 1923; Diálogos, no limbo, 1925; O platonismo e a vida espiritual, 1927; O reino do ser, em 4 vols.: O reino da essência, 1927; O reino da matéria, 1930; O reino da verdade, 1938; O reino do espírito 1940. O tema fundamental da filosofia de Santayana foi o da continuidade e, portanto, do contraste entre natureza e razão. Na primeira das suas obras filosóficas mais importantes, A vida da razão, Santayana exprimiu a relação entre natureza e razão como sendo análoga à que existe entre as "forças mecânicas", ou "o fluxo dos acontecimentos", ou ainda "os impulsos racionais", e a unidade, a ordem ou a harmonia da vida. Na sua outra obra importante, O reino do ser, comparou essa relação com a que se verifica entre o reino da existência e o reino da essência. Na primeira destas obras, que tem como subtítulo As fases do progresso humano, Santayana exprime deste modo as relações entre a razão e a vida: "A vida da razão é simplesmente a unidade dada a 116 toda a existência por um espírito informado pelo bem. Tanto nos estádios mais desenvolvidos da natureza humana como nos menos desenvolvidos, a racionalidade depende da diferenciação daquilo que é excelente daquilo que não o é: e esta diferenciação pode ser feita, em última análise, por um impulso meramente irracional. Do mesmo modo que a vida é uma forma melhor atribuída a uma força, forma essa cujo fluxo universal é submetido e orientado para a criação e para o serviço de um qualquer interesse permanente, também a razão é a melhor forma atribuída a este interesse, através da qual ele se fortifica, propaga e, talvez possa garantir a sua satisfação. A substância a que se atribui esta forma mantém-se irracional; e é assim que a racionalidade, como qualquer outro atributo maior das coisas, se torna algo secundário e relativo que exige um ser natural que a possua ou ao qual possa ser atribuída" (The Life of Reason, 1954, 2 aedição, págs. 7-8). Por um lado, a razão seria algo acidental relativamente à vida, no sentido de que o desenvolvimento dos acontecimentos poderia até não dar origem a ela ou de que a ordem e as categorias que a razão aconselha poderiam ser diferentes daquelas que são; por outro lado, a obra da razão é a da própria vida, já que não poderia agir "se não fosse a expressão das forças físicas que presidem ao desenvolvimento dos acontecimentos e que os tornam concordantes ou não concordantes com os interesses humanos" (Ib., p. 15). A razão cria um mundo ou uma esfera "ideal" que não é de modo algum fictícia, sendo antes considerada, a justo título, como "real", visto basear-se em 117 indícios ou provas; mas já não é "real" no sentido em que o são os impulsos ou o fluxo irracional da vida. Assim, o mundo externo é sem dúvida "real" mas apenas enquanto construção ideal e objecto de um conhecimento intelectual, isto é, não imediato-, como tal, não deverá ser concebido como uni "facto". A
natureza e Deus são também ideais, no sentido de que apenas a inteligência pode descobrilos e utilizá-los Qb., p. 173); mas, por outro lado, também eles são produtos ou criações das "forças mecânicas". "A base histórica da vida", afirma Santayana, "é constituída por uma parte da sua própria substância e o ideal não se pode desenvolver independentemente dessa raiz" Qb., p. 167). Até no domínio da ciência Santayana consegue encontrar reflexos deste dualismo: a física (as ciências naturais) estuda a existência, os acontecimentos, os fenómenos; a dialéctica (na qual este autor inclui a matemática, a metafísica e as ciências morais) estuda a essência e concentra-se na harmonia e nas implicações da forma (Ib., p. 436). Na sua segunda obra mais importante, O reino do ser, Santayana refere-se às relações entre natureza e espírito como sendo precisamente aquelas que situam entre a existência e a essência. As essências constituem um reino infinito, do qual faz parte tudo o que pode ser percebido, imaginado, pensado ou, de qualquer modo, experimentado; não existem em nenhum espaço ou tempo, não têm substância ou quaisquer partes ocultas, dado que o seu ser se reduz à sua aparência. A essência é aquilo que resta quando o céptico nega ou põe entre parêntesis a realidade 118 do mundo e do eu; é o domínio da dialéctica pura, isto é, das formas ideais puras, que prescindem de toda a exigência e realidade biológica e humana. A essência é ainda o objecto da contemplação estética ou moral e da disciplina espiritual na medida em que emancipa o homem das necessidades animais. O princípio que pode ser considerado como característico das essências é o da identidade: toda a essência é o que é, e é perfeitamente individual. Mas a sua individualidade torna-a universal dado que carece de referências a qualquer sector do espaço e do tempo ou a qualquer relação adventícia com outras coisas. O reino da essência é infinito e todas as essências são eternas e imutáveis. O seu ser -não é a existência, nem mesmo a existência possível, a qual pertence apenas ao discurso e não diz verdadeiramente respeito nem à essência nem à existência. A essência não é uma abstracção ou um termo geral; é, antes, uma ideia no sentido platónico, "um tema aberto à consideração". O reino das essências é o reino do "puro ser", que se contrapõe assim ao domínio da existência, que é o do futuro, da luta, do acaso e da necessidade. De certo modo, Santayana inspira-se no dualismo platónico do mundo ideal e do mundo sensível. A existência é sempre existência sensível, material. A essência é o objecto da contemplação desinteressada, da teoricidade pura. Mas este autor não admite a existência de uma ordem e de um sistema organizado no mundo das essências. Estas não se encadeiam e não constituem um sistema. A atenção, o discurso, o raciocínio, são-lhe alheias; são puros objectos da 119 intuição, e a intuição é a única experiência imediata possível. Atenção, raciocínio, discurso,
pressupõem a existência; e a existência é um reino completamente à parte do das essências. É o reino da acção, da energia vital; numa palavra, da matéria. A matéria é o outro termo do dualismo platónico, o tema preferido de Santayana. A existência humana e cósmica é essencialmente matéria. Há um grande cosmos inorgânico, astronómico, geográfico, químico, e sobre a terra há organismos vivos capazes de se adaptarem progressivamente ao ambiente e de o modificarem para poderem satisfazer as suas futuras necessidades. A inteligência, a sensibilidade, as línguas e as artes, mesmo quando exprimem algo espiritual, não têm nada de espiritual na sua estrutura reconhecível: todas as essências que incorporam são essências incorporadas à matéria; pertencem ao fluxo de acontecimentos no espaço e no tempo que se chama natureza. Por isso estão abertas à investigaÇão e à medida científica e são determináveis na sua génese e nos seus efeitos no interior da esfera material. Nesta esfera fixa-se o conhecimento enquanto afirmação ou reconhecimento de uma realidade objectiva. A garantia de que há algo para além das essências é dada pela acção, pela espera, pelo medo, pela esperança e pela necessidade; esta garantia é denominada por Santayana fé animal. O objecto da fé animal é a realidade que encontramos na acção, de que temos necessidade para a nossa vida fisiológica, que determina em nós a espera, o temor, a esperança. Tal realidade, porém, nunca é conhecida imediatamente: para descrevê-la não podemos servir-nos 120 senão das essências que os sentidos ou o pensamento evocam quando ela se apresenta. O reino das essências é o depósito do qual devemos tirar os termos para descrever a realidade natural. Isto faz nascer o problema da verdade do conhecimento. A verdade não é a própria realidade, isto é, o facto ou a matéria, que não contém em si a sua própria descrição. É antes a exacta, completa e acabada descrição da realidade ou do facto (Scepticism and Animal Faith, págs. 266-267). A realidade é exterior ao domínio da essência e a verdade é exterior ao da existência (The Realm of Truth, p. 39). O conhecimento não é a própria verdade, é apenas a noção que um ser existente tem de um outro e é sempre, portanto, uma forma de fé, ainda que esta seja justificada pelo contínuo contacto físico entre o cognoscente e o conhecido (Ib., p. 29). Implica sempre confusão e erro: no melhor dos casos é uma visão ou uma expressão da verdade; uma observação que pode dar-nos a conhecer um animal provido de órgãos especiais, Z:> em circunstâncias especiais (Ib., p. 63). Mas esta limitação é também condição necessária do conhecimento, que já não o seria se fosse completo e total. Se o conhecimento fosse a própria verdade, seria imutável e eterno, como a verdade: o sujeito e o objecto da experiência coincidiriam e não haveria, de facto, experiência. De modo que "o fim irracional e as tendências da vida animal, longe de negar-nos a verdade, impelem-nos a agir no sentido de a procurarmos e dão-nos, em certa medida, os meios para alcançá -la" (Ib., p. 64). 121
A vida do espírito, característica do homem, radica-se na matéria e é condicionada por ela. O espírito não é um poder infinito sem qualquer sustentáculo material, mas sim finito e intimamente relacionado com a matéria. " Há um só mundo, o mundo natural, e só uma verdade acerca dele; mas este mundo tem em si uma vida espiritual possível que não olha para outro mundo, mas para a beleza e para a perfeição que este mundo nos sugere, para a qual tende sem a atingir" (The Realm of Spirit, p. 279). O espírito existe num corpo por natureza, não por acidente. O seu lugar necessário é a alma, isto é, a vida de um corpo orgânico espírito é mediador entre o reino da matéria e o reino das essências. É através dele que são possíveis a liberdade da vontade e a intuição das essências, e torna-se assim possível a libertação que, porém, não é abolição ou separação do mundo, mas antes libertação da distracção do mundo, isto é, da ignorância e da obscuridade sobre a sua essência. O cristianismo revelou, com o dogma da morte e paixão de Cristo, a verdade fundamental sobre este ponto: a possível libertação do espírito não é uma libertação do sofrimento e da morte, mas através do sofrimento e da morte. "Aceitando a morte de antemão podemo-nos identificar dramaticamente com o espírito, que resiste e supera, quaisquer acidentes rindose dessa morte, pois que, independentemente de tais acidentes, o espírito em nós é idêntico ao espírito nos outros: é um testemunho divino, de uma 122 divindade paciente e imortal que só temporal e involuntariamente se encarna numa miriade de vidas separadas" (The Realm of Spirit, p. 207). Sobre a relação do espírito com a natureza, as ideias de Santayana não são claras. Por um lado, afirma que toda a evolução natural tende a tornar possível a vida espiritual. "A matéria" - diz (Ib., p.79) - "não se teria desenvolvido até aos animais se a organização necessária não estivesse potencialmente nela desde o princípio; e a sua organização nunca teria despertado a consciência se a essência e a verdade não tivessem superado a existência desde a eternidade apresentando-se, finalmente, com todas as suas perspectivas suficientemente claras para que o espírito as pudesse percebem. E assim estabelece um sentido, uma direcção unívoca ao desenvolvimento do mundo material para a realização do espírito. Mas, por outro lado, insiste no carácter arbitrário, casual e contingente da evolução física, devido ao qual é apenas a física, e não a metafísica, que nos pode revelar os fundamentos das coisas (Ib., p. 274). Deste modo há uma contínua oscilação no seu pensamento entre uma concepção finalista, para a qual a matéria teria já, na sua cega fatalidade, predeterminado a realização do espírito, e uma concepção naturalista, para a qual o espírito seria um produto causal finito e temporal da evolução cósmica. Contudo, a primeira concepção acaba por prevalecer quando, seguindo o exemplo de Comte, Santayana não resiste à tentação de interpretar de modo 123 materialista a trindade cristã: a matéria, pelo seu poder, seria Deus Pai, o reino das essências seria o Filho ou Logos, e o reino do espírito, o Espírito Santo (Ib., págs. 292 e segs.). O facto de se
deixar levar por estas especulações, mostra-nos que em Santayana prevalece finalmente o elemento romântico da sua filosofia. Ao longo de toda a sua vida de pensador, este elemento chocou continuamente com o elemento oposto, representado pela exigência de entender e explicar o finito com tudo o que ele implica, exigência que ele considerou materialista, naturalista ou empirista. Santayana quis ter os olhos abertos sobre os caracteres da existência finita, condicionada e limitada por todos os lados; e esta exigência está representada no seu pensamento pelo que ele chamou o reino da matéria e o reino da verdade. Mas a exigência de um infinito (representada pelo reino das essências) acabou por prevalecer na sua filosofia. Santayana ocupou-se também da arte e da poesia, mas não descobriu nestas actividades nenhum carácter específico. Pelo lado prático, existe apenas na arte uma habilidade manual e uma tradição profissional; e pelo lado teórico, não há mais do que uma pura intuição das essências, com o inevitável prazer sensível e intelectual que acompanha a intuição. Também não há diferença entre valores estéticos e valores morais: a beleza é um bem moral, assim como o bem moral é um deleite estético. A harmonia é, ao mesmo tempo, um princípio estético e o princípio da salvação, da justiça e da felicidade. 124 § 777. ALEXANDER A teoria da evolução (no sentido de Spencer), como progresso universal e necessário da realidade cósmica, é o pressuposto da doutrina de Santayana ainda que não encontre nela um tratamento ou uma defesa específicos. E é também o pressuposto da doutrina de Samuel Alexander (18591938), um australiano que estudou em Oxford e foi professor em Manchester. O primeiro escrito de Alexander intitula-se Ordem moral e progresso (1889); a sua obra fundamental é a que se intitula Espaço, tempo e deidade, (2 vols., 1920). Alexander é também o autor de um ensaio sobre Locke (1908), de um outro sobre Espinosa e o tempo (1921) e de numerosos artigos em revistas inglesas da sua época. Este autor tem da filosofia o mesmo conceito que os outros neo-realistas. A gnoseologia não tem nenhuma primazia sobre a metafísica, sendo antes um capítulo da própria metafísica. Esta é uma ciência empírica que apenas difere das outras pela natureza do seu objecto: os caracteres estáveis e universais das coisas, que Alexander chama a priori ou categorias. O espírito, se é condição essencial da experiência, não o é do ser das coisas. Os espíritos não são mais do que membros de uma democracia de coisas: os membros mais elevados que conhecemos, mas que não são diferentes dos outros na sua realidade. Alexander faz sua a análise de Moore sobre o acto cognitivo e volta a expô-la com uma nova terminologia. Há a consciência e o objecto da consciência; mas enquanto contemplamos o objecto da
125 consciência, gozamos (isto é, intuímos ou percebemos directamente) a própria consciência. Não podemos contemplar o nosso espírito como contemplamos as coisas: ele nunca é para nós um objecto no sentido em que o é uma mesa ou uma árvore; mas é por nós gozado no próprio acto do contemplar. Só para um ser mais elevado, para um anjo, poderia a consciência ser um objecto tal como uma árvore e ele veria o meu prazer ao mesmo tempo que a árvore, assim como eu vejo a árvore ao mesmo tempo que a terra. Mas o que o anjo veria como a co-presença de dois objectos, a nós aparece-nos como a co-presença de um espírito deleitado e de um objecto não-mental que contemplamos. Toda a experiência nos mostra estes dois elementos rEferentes, cuja relação não é em nada diferente da que existe entre quaisquer outros dois objectos de experiência. A diferença, como seria óbvio para o anjo, não está na relação, mas nos seus termos: no caso de dois objectos físicos, os dois termos são físicos; no caso da relação cognitiva, um dos termos é um ser consciente ou mental. Esta relação não é única, sendo até a mais simples de todas: o mero conjunto de dois termos, a sua simultânea pertença a um mundo. Não há ideias que sejam intermediárias entre o espírito e as coisas. Alexander, como todos os novos realistas, é defensor de um monismo metafísico; só que este monismo é realista: as coisas não são já ideias, como queria Berkeley, porque as próprias ideias são coisas. Mas as coisas não são matéria pura: são partes, determinações ou diferenciações de uma substância originária, que é o espaço-tempo. O espaço e o tempo, 126 que Alexander considera indissoluvelmente unidos, como no mundo quadrimensional da física relativista, sã o a fibra de que estão tecidas todas as coisas; e as categorias são os constituintes essenciais e universais de tudo o que é experimentado, "o cânhamo cinzento de que estão revestidas as cores vivas do universo" (Space, Time and Deity, 1, p. 186). As relações entre as coisas e as diferentes ordens de existência em que se distribuem não são mais do que modos ou formas da relação fundamental que há entre o espaço e o tempo. Esta relação deve conceber-se analogamente à que existe entre o espírito e o corpo, que nós vivemos directamente. O espírito e o corpo não são duas entidades diferentes: o que é visto do interior, ou gozado, é um processo consciente, e o que é visto do exterior, ou contemplado, é um processo nervoso. Nem todos os processos vitais são também mentais: os mais simples processos fisiológicos são puramente vitais; mas sem uma base fisiológica específica não há espírito. O processo mental pode exprimir-se completamente em termos fisiológicos, mas não é apenas fisiológico: o que lhe dá individualidade é a sua qualidade específica, mental ou consciente. Mas isto é algo de novo, uma criação original que surge no mundo dos processos vitais, mas que, ao mesmo
tempo, não está separado daqueles, porque os continua e tem neles as suas raízes. Neste modelo, que nos é familiar, fica plasmado o mundo inteiro: o tempo está para o espaço numa relação análoga à que o espírito está para o corpo; e pode dizer-se que o tempo é o espírito do espaço, e o espaço o corpo do tempo. Com isto, porém, Alexander não chega a 127 um pan-psiquismo, pois não afirma que o tempo seja espírito ou uma forma inferior de espírito. O espírito existe apenas no seu próprio nível de existência; mas na matriz de todas as coisas finitas e em todas as coisas finitas há algo, um elemento, que no seu mais alto nível de existência corresponde ao espírito e exerce a mesma função. Ao nível do espaçotempo este elemento será o tempo: como vemos, não é o tempo que é uma forma do espírito, mas sim o espírito que é uma forma do tempo (Ib., 11, p. 44). Dentro da substância universal do espaço-tempo, revelam-se continuamente novas ordens de realidade. Alexander considera a realidade como um processo de evolução emergente; o mundo desenvolve-se a partir das primeiras condições elementares do espaço e complica-se pouco a pouco com o aparecimento de qualidades novas. Da matéria emerge a vida e da vida emerge o espírito, o qual constitui a mais elevada das existências finitas que nós conhecemos. Mas, dado que o tempo é o princípio do devir e é infinito, o desenvolvimento interno do mundo não pode cessar com a emergência do espírito, pois temos de presumir que, na linha já traçada pela experiência, aparecerão novas qualidades mais elevadas, também empíricas. O esforço que impele as criaturas através da matéria e da vida para o espírito deve conduzi-Ias para um nível mais elevado de existência. A deidade é precisamente a qualidade empírica pouco superior ao espírito que o universo se empenha em fazer nascer. O que quer que seja a deidade não o podemos dizer, porque não podemos gozá-la nem sequer contemplá-la. Se a conhecêssemos, seríamos deuses; mas 128 ALEXANDER os nossos altares humanos estão levantados ao Deus desconhecido (Space, Time and Deity, 11, p. 346). A deidade não é espírito, ainda que pressuponha em Deus o espírito da mesma maneira que o espírito pressupõe a vida, e esta os processos materiais físico-químicos. O espírito, a personalidade, os caracteres humanos ou mentais, pertencem a Deus mas não à sua deidade: pertencem ao corpo de Deus. A deidade de Deus é diferente do espírito não em grau, mas em espécie, e é uma emergência radicalmente nova na série das qualidades empíricas. Deus, pela sua infinidade, não é actual, mas apenas ideal e conceptual. Unia vez ligada à existência, a qualidade divina, exactamente como o espírito, poderá servir para diferenciar muitos indivíduos finitos. Não há, pois, um ser infinito actual que tenha aquela qualidade; há um infinito actual, o universo inteiro, que tende para a deidade. A realidade de Deus está neste tender do mundo do espaço-tempo para uma qualidade mais elevada: é um esforço, não uma realização. A tese metafísica fundamental da doutrina de Alexander (o espaço-tempo como substância da evolução emergente), é um exemplo típico da tendência para manipular
metafisicamente conceitos científicos e para dar-lhes um significado que a ciência não autoriza nem legitima. Conceber a relação entre o espaço e o tempo por analogia com a que existe entre o espírito e o corpo significa dar a estes conceitos um carácter antropomórfico que lhes tira toda a possível referência ao espaço-tempo da física. E se se prescinde das suas conexões com a física contem129
porânea, a metafísica de Alexander aparece como outra manifestação do desenvolvimento romântico, isto é, do conceito do mundo enquanto manifestação progressiva e necessária do infinito. § 778. WHITEHEAD No mesmo quadro de uma "filosofia científica da natureza", que é substancialmente uma cosmologia, podemos situar a obra de Alfred North Whitehead (1861-1947), que foi professor de matemática em Londres e de filosofia na Harvard University dos Estados Unidos. Whitehead é, com Russel, autor dos Principia Matematica, que apareceram em três volumes entre 1910 e 1913. O seu primeiro escrito filosófico notável foi a Investigação sobre os princípios do conhecimento natural (1919), seguido pelo Conceito da natureza (1920) e pelo Princípio da relatividade (1922). O seu pensamento filosófico mais amadurecido está contido nos três livros A ciência e o mundo moderno (1926), Processo e realidade (1929) e Aventuras das ideias (1933), sendo o segundo o mais importante. Os aspectos notáveis do que ele chamava "filosofia orgânica" encontram-se nas obras O futuro da religião (1926), Simbolismo (1927) e A função da razão (1929). Whitehead tem da filosofia um conceito positivista. "A missão da filosofia" afirma (Process and Reality, p. 13) - "é a de desafiar as meias verdades que constituem os primeiros princípios da ciência. A sistematização do conhecimento não pode fazer-se em compartimentos estanques. As verdades gerais condicionam-se todas umas 130 às outras; e os limites da sua aplicação não podem ser definidos adequadamente sem os relacionar com uma generalidade mais ampla. A critica dos princípios deve tomar, principalmente, a forma de uma determinação dos significados próprios que devem ser atribuídos às noções fundamentais das diferentes ciências, quando estas noções são consideradas no seu estado de correlatividade recíproca. A determinação deste estado exige uma generalidade que transcende todo o conteúdo objectivo especial". Whitehead insiste bastante na noção de correlatividade ou de organização, pelo que chama "orgânica" à sua filosofia. Assim, toda a proposição que afirma um facto deve, na sua análise completa, afirmar o carácter geral do universo requerido por aquele facto; e, em ,era], toda a entidade exige um universo particular, e toda a transformação da entidade
uma nova acomodação total do universo inteiro. No Conceito da natureza, Whitehead tinha já formulado claramente a tese fundamental do seu realismo. A natureza é o objecto da percepção sensível e nesta percepção temos consciência de algo que não é pensamento e que é estranho ao pensamento. Esta propriedade é fundamental para o objecto da ciência natural. Contudo, não implica de facto um dualismo de pensamento e natureza. Significa apenas que se pode pensar a natureza de um modo homogéneo, como um sistema fechado, sem pensar ao mesmo tempo o pensamento. Pode-se também, indubitavelmente, pensar a natureza relacionando-a com o pensamento, e em tal caso é pensada de uma maneira heterogénea; mas apenas o modo homo131 géneo de considerar a natureza é inerente à ciência. Em todos os casos, na percepção sensorial ou na sensação, o que é percebido aparece como não-pensamento; "é percebido como um ente que é o termo da sensação, algo que, para o pensamento, está para além do facto da própria sensação". Os objectos da percepção ou do pensamento são, pois, entes que, no próprio acto de serem percebidos ou pensados, se revelam como independentes da percepção ou do pensamento. Esta tese permanece imutável na obra capital de Whitehead, Processo e realidade, na qual se volta a exprimir numa terminologia complicada, tosca e, em certa medida, inútil aos fins da precisão e da clareza. O ente ou coisa, objecto da percepção, é chamado "entidade actual" ou "ocasião actual". Entidades ou ocasiões são as coisas reais e últimas pelas quais o mundo é constituído. Sã o em número infinito e diferem entre si; além disso, são divisíveis, mediante a análise, de um número infinito de modos. A percepção é denominada "preensão": reproduz em si mesma as características gerais de uma entidade actual, refere-se a um mundo externo e neste sentido tem um "carácter vector" e implica emoção, finalidade, valoração, causalidade. Uma conexão particular entre entidades actuais chama-se "nexo". Os nexos são reais, individuais e particulares, como as entidades e as preensões. Os factos últimos da experiência real reduzem.-se precisamente a entidades, preensões e nexos. A razão suficiente de toda a condição ou mudança do universo deve sempre procurar-se numa ou mais entidades actuais: este "princípio ontológico" é o princípio de toda a possível explicação. 132 Posto isto, o universo, na sua evolução emergente (ou criadora), é um processo de crescimento para o qual contribuem igualmente o aspecto físico e o aspecto espiritual, indissoluvelmente unidos e ambos activos. "Toda a actualidade -diz Whitehead (Process and Reality, p. 15 1) é essencialmente bipolar, física e mental, e a sua herança física é essencialmente acompanhada por uma reacção conceptual que em parte se conforma e em parte conduz a uma nova oposição relevante, mas que sempre introduz ênfase, valoração e finalidade. A integração do aspecto físico e do mental na unidade da experiência é a autoformação, que é um processo de crescimento e que, pelo princípio da imortalidade objectiva, caracteriza a criatividade que o transcende. Assim, mesmo quando a mentalidade seja não-espacial, é sempre uma reacção à experiência física, que é espacial, ou urna integração da mesma". Esta concepção leva a um pan-psiquismo e, em última
análise, a uma forma de monadismo de cunho leibniziano. "A filosofia do organismo atribui sensibilidade a todo o mundo actual. Ela baseia a sua doutrina no facto directamente observado de que a sensibilidade sobrevém como um elemento conhecido, constitutivo da existência formal das entidades actuais que nós podemos observar. Mesmo quando observamos o nexo causal privado de relações com as apresentações sensíveis acabamos por admitir o influxo da sensibilidade pela definição vagamente qualificativa e vectorial do mesmo. O domínio da quantidade física escalar, a inércia da física newtoniana, obscureceu o reconhecimento da verdade segundo a qual todas as 133 quantidades físicas fundamentais são vectores, não escalares" (Ib., p. 249). O vector é a referência ao exterior e exprime a direcção e sentido com que a experiência sensível se refere a qualquer outra coisa, a uma realidade independente. Sensibilidade significa experiência, mas não consciência. A experiência precede e condiciona a consciência, mas não se verifica o inverso. A consciência é a "forma subjectiva implícita no sentido da oposição entre a "teoria", que pode ser errónea, e o "facto" que é dado" ( Process and Reality, p. 226). Como tal, nasce muito tarde e pertence apenas às fases mais elevadas do crescimento. Portanto, ilumina primordialmente estas fases, só iluminando as anteriores de forma indirecta e quando entram na composição daquelas. Daqui se conclui que a prioridade do que é claro e distinto não tem valor metafísico e que o conhecimento não é um elemento necessário da entidade actual concreta. "Toda a entidade actual tem a capacidade de conhecer, e existe uma graduação de intensidade nos diversos campos do conhecer; mas, em geral, o conhecimento parece descurável, fora da complexidade particular da constituição de algumas ocasiões actuais" (Ib., p. 225). Com isso, a entidade actual (ou "ocasião de experiência") apresenta-se exactamente como uma mónada em sentido leibniziano: mónada que na sua experiência (as pequenas percepções de Leibniz) abarca todas as outras mónadas e que só em parte ilumina o seu conteúdo com consciência clara e distinta. Como Leibniz, Whitehead acredita que todo o universo consiste na experiência das mónadas. "0 princípio subjectivista afirma que 134 todo o universo consiste nos elementos que se manifestam na análise da experiência dos sujeitos. O processo é o futuro da experiência. Daqui se segue que a filosofia do organismo aceita inteiramente a tendência subjectivista da filosofia moderna" (Ib., p. 233). Whitehead aproxima a sua filosofia à de Hegel, no sentido de que aquilo que ele chama "o crescimento de uma entidade actual" seria o hegeliano "desenvolvimento de uma ideia" (Ib., p. 234). É de Hegel e, em geral, do romantismo, que Whitehead tira o sentido progressivo, finalista e optimista do devir do mundo. Mas o próprio mundo é concebido segundo o esquema monadológico, de Leibniz; e as entidades actuais, entendidas como realidades eternas e sujeitos permanentes e imortais de todo o devir, não poderiam ter lugar numa filosofia de tipo hegeliano. É muito menos conciliável com o esquema hegeliano o conceito de que o mal é redutível ao tempo, enquanto causa e origem de toda a perda e destruição. A solução do problema do
mal só se pode conseguir recorrendo ao conceito de Deus. Na sua natureza primordial, Deus é potencialidade infinita, uma potencialidade que acompanha toda a criação. Mas, como tal, é "pouco actual": falta-lhe a plenitude da sensibilidade física e, portanto, a consciência e o conhecimento, sendo a sua experiência puramente conceptual. Mas Deus não é só o princípio, como também o fim: tem uma natureza não só primordial em relação ao mundo, mas também consequente ao próprio mundo. Há, pois, uma reacção do mundo sobre Deus; e, em virtude desta reacção, a natureza 135 de Deus adquire a plenitude da sensibilidade física, que deriva do facto de o próprio mundo se objectivar em Deus, ou seja, ser conhecido por ele. A natureza primordial de Deus permanece sem alteração porque compreende tudo; mas a sua natureza derivada depende do progresso criador do mundo. A natureza primordial de Deus é "livre, completa, eterna, actualmente deficiente e inconsciente". A natureza derivada de Deus é "determinada, incompleta, duradoura, plenamente actual e consciente" (Process and Reality, págs. 488-489). A conclusão de Whitehead é decididamente panteísta. O mundo é parte de Deus e Deus é parte do mundo. "Deus e o mundo dirigem-se reciprocamente ao encontro um do outro através dos seus processos. Deus é primordialmente uno, é a unidade primordial das muitas formas potenciais: no processo adquire uma multiplicidade consequente, que o carácter primordial absorve na sua unidade. O mundo é primordialmente múltiplo, é a multiplicidade das ocasiões. na sua finitude física; no processo adquire uma unidade consequente, que é uma nova ocasião e que é absorvida na multiplicidade do carácter primordial. Assim, Deus deve ser concebido como uno e como múltiplo e, em sentido inverso, o mundo deve ser concebido como múltiplo e como uno. O tema da cosmologia, que é a base de toda a religião, é a história do esforço dinâmico do mundo para alcançar uma unidade duradoura e da majestade estática da visão de Deus, que executa, a sua tarefa absorvendo a multiplicidade dos esforços do mundo (Ib., p. 494). 136 A. N. WHITEHEAD Nas suas conferências sobre O futuro da religião (1926), este conceito da divindade é desenvolvido, com escassos fundamentos, até ser considerado como termo final da evolução histórica da religião, isto é, do seu esforço para subtrair-se à superstição e ao dogmatismo. E nas Funções da razão (1929), a própria razão acaba por ser identificada com Deus e considerada como sendo a força cósmica a que se deve simultaneamente o progresso e a ordem do mundo: força essa que, ao nível da vida animal, tem um carácter prático e, ao nível da vida humana, um carácter especulativo tornando-se uma actividade cognitiva desinteressada que se exprime numa cosmologia. No seu último livro, Aventuras das Ideias (1933), Whitehead entendeu fazer uma "história, da raça humana no que se refere à sua infinita variedade de experiências mentais", considerando esta história sob quatro aspectos: sociológico, cosmológico, filosófico e social. Os conceitos de Whitehead tornam-se aqui ainda menos preciosos e mais arbitrários do que no resto da sua obra. O tom optimista da sua cosmologia acentua-se na exaltação da harmonia, conceito que estaria na base da beleza, da verdade, do bem, da liberdade, da paz e de qualquer grande
aventura cósmica. "A grande harmonia", afirma, "é a harmonia de individualidades duradouras e conexas na unidade de um fundamento. É por esta razão que a noção de liberdade nunca abandona as culturas mais elevadas: a liberdade, em cada um dos seus múltiplos sentidos, é a exigência de uma vigorosa auto-afirmação" (Adventures of Ideas, p. 362). 137 § 779. WOODBRIDGE. RANDALL Podemos encontrar uma forma de realismo naturalista em Frederick J. E. Woodbridge (1867-1940), professor na Columbia University de Nova Iorque e director do "Journal of Philosophy" durante muitos anos. Eis as suas obras: A tarefa da história (1916); O reino do espírito (1926); Natureza e espírito (1937); Ensaio sobre a natureza (1940). Os temas preferidos de Woodbridge são a unidade da natureza e do homem no conhecimento, e a dualidade entre a natureza e o sobrenatural na moralidade. "0 nosso estado natural", afirma, "está tão intimamente ligado à natureza. quanto o está a maior estrela ou o mais pequeno micróbio" (An Essay on Nature, p. 14). Esta relação permite ao homem apreender os sinais da natureza e considerá-la no seu conjunto como uni "universo do discurso". O mundo visível é a primeira e mais evidente manifestação da natureza; mas apresenta-nos a natureza no espaço, num espaço vazio em que ela estivesse contida, enquanto que, na realidade, o espaço não é mais do que o conjunto de todas as determinações ou relações da natureza que nela se podem distinguir. No mundo visível torna-se ainda evidente o esquema temporal da natureza, isto é, a unificação e integração dos acontecimentos na sua duração relativa e no seu devir. Ainda neste caso as divisões e a medida do tempo, a memória do passado, a história, não se relacionam com uma natureza intemporal, sendo antes manifestações da própria estrutura temporal da natureza. Em geral, segundo Woodbridge, todas as "possibi138 dades" oferecidas ao engenho e ao trabalho humano são possibilidades da natureza. O finalismo que aparece no mundo humano pertence à própria natureza, visto que não só não exclui o organismo como até o integra. Não existe por essa razão nenhuma realidade nem qualquer princípio que possa ser considerado independente da natureza antes de entrar no campo do conhecimento. O mesmo não acontece quando se passa para o campo da moral, isto é, quando se considera a natureza não como o objecto do conhecer mas sim como o domínio em que se deve procurar a felicidade. Neste campo surge um dualismo entre o ser e o dever ser, entre o real e o ideal ou, por outras palavras, entre o natural e o sobrenatural. Com efeito, o dever ser, o ideal, está sempre para além da natureza, O dualismo entre a natureza e o sobrenatural não nasce portanto no domínio do conhecimento, sendo antes o próprio dualismo entre o conhecimento e a fé. Na medida em que defende a legitimidade da fé, a filosofia de Woodbridge pode ser considerada como uma escolástica do naturalismo. A sua influência manifestou-se na América, paralelamente à de Dewey, enquanto defesa de
uma tarefa específica e imprescindível da metafísica, considerando esta como uma descrição das características gerais da existência. "Ao considerar a metafísica", afirmou, "corno o resultado da reflexão sobre a exIstência em geral, e logo como uma divisão do conhecimento natural, pressupus a existência de pessoas inteligentes que possam empreender esta reflexão e chegar a resultados interessantes e importantes 139 seguindo o método experimental de observação e generalização controlada" (Nature and Mind, 1937, p. 108). Por outro lado, Woodbridge sabe que uma metafísica descritiva não pode apelar para uma intuição do ser enquanto tal; na realidade, este autor considera a metafísica tradicional do ser como uma espécie de jogo de palavras: "Começamos por dizer que os objectos do pensamento têm ser, que o ser necessariamente é, que sem ele nada pode ser ou ser concebido, que conhecê-lo é conhecer de uma forma plena e completa, e que repousar nele é repousar em paz. Isto é bastante, em palavras, mas o seu valor é apenas o de uma rapsódia linguística" (The Realm of Mind, 1926, p. 34). John Hermann Randall (nascido em 1899), professor na Columbia University de Nova Iorque e historiador da cultura e da ciência, deu um contributo notável para uma metafísica descritiva na sua obra intitulada A natureza e a experiência histórica (1958). Randall nega que se possa falar da existência como totalidade e aceita neste ponto a crítica de Kant. "Podemos", disse, "falar legitimamente do universo ou da existência em geral; mas neste caso falamos de toda a existência ou de todas as questões existenciais. Não falamos de uma substância, de um ser, de uma realidade ou de um todo unificado que abranja toda a existência" (Nature and Historical Experience, p. 130). O conceito fundamental da metafísica tradicional, o de substância, é interpretado por Randall como "processo", ou melhor, como "um conjunto de processos actuantes e cooperantes entre si, cada um dos quais evidencia formas próprias 140 e bem determinadas de cooperar" (Ib., p. 152). Neste sentido, a substância pode ainda ser chamada estrutura e constitui um contexto de relações, um contexto sempre específico, particular, nunca geral ou abstracto. Podem-se então distinguir a estrutura formal, isto é, da forma como as coisas estão em conjunto, e a estrutura funcional, da forma como as coisas se comportam numa ocasião específica. Estas noções aplicam-se tanto a coisas materiais como a entidades espirituais. Randall reconhece uma certa validade na arte e na religião consideradas como sistemas de símbolos. Mas assemelha esta
validade à dos conectivos da lógica ("e", "ou", "se.... então ... ", etc.). "Os conectivos", afirma, "enquanto símbolos cognoscitivos como uma função determinada em todo o conhecimento, não são 'verdadeiros' em si mesmos. Enquanto usados na formulação de proposições verdadeiras, nem a linguagem nem os sistemas de medida podem ser considerados verdadeiros em si mesmos. Ideais como a democracia e a liberdade dificilmente poderão ser tidos como 'verdadeiros'. A matemática é formalmente 'válida' mas não é, em si, 'verdadeira'. As teorias e as hipóteses científicas não são tomadas como ' verdadeiras' nas filosofias contemporâneas da ciência, sendo antes 'confirmadas' ou 'controladas" (Ib., p. 269). Estes diversos tipos de validade que podem ser atribuídos aos vários ramos do saber humano dão origem ao problema da unidade do saber, que é também o da unidade do mundo em que vive o homem. Randall limita-se a colocar o problema e a reconhecer que a procura de uma pos141 sível solução não pode ser realizada nem pela arte nem pela ciência mas apenas pela filosofia. § 780. M. R. COHEN Morris R. Cohen (1880-1947), professor do City College de Nova iorque que exerceu uma grande influência no pensamento americano, defendia um naturalismo racionalista. Escreveu as seguintes obras: Razão e natureza (1931), O direito e a ordem social (1933); Introdução à lógica (1944); A fé de um liberal (1946), O significado da história humana (1948); A viagem de um sonhador (autobiografia, 1949); Estudos de filosofia e ciência (1949); O pensamento americano: uma revisão crítica (1954). O tema fundamental da filosofia de Cohen é a defesa das tarefas da razão em todos os campos da actividade humana. A mais importante obra de Cohen, Razão e natureza, ensaio sobre o significado do método científico, refere-se precisamente a este assunto: em primeiro lugar, tenta mostrar a insuficiência dos "rivais e substitutos da razão" (a autoridade, a experiência pura, a intuição, a imaginação), e em segundo lugar mostra a função da razão no campo da filosofia e no das ciências naturais e morais. Mas a obra tende simultaneamente a mostrar a estreita união existente entre a razão e a natureza e a evitar que o "apelo à razão" tenda a suprimir a natureza ou que o "apelo à natureza" dê origem a uma espécie de irracionalismo sentimental (Reason and Nature, p. VII). O instrumento que 142 Cohen considera adaptado a esta tarefa é a análise do método científico: é por esta razão que se considerou a si mesmo como um lógico e designou por "A fé de um lógico" a apresentação da sua filosofia publicada na Contemporary American Philosophy (1930). Na sua defesa da razão, Cohen mantém alguns aspectos e conclusões da filosofia tradicional. Assim, este autor defende o carácter metafísico da filosofia, considerando esta não apenas como síntese dos resultados das ciências e crítica dos pressupostos da própria ciência, mas também como extensão do método científico a argumentos que não se encontram no âmbito específico de cada um dos ramos do saber científico. Nesta questão o
autor defende o conceito aristotélico, de substância como razão de ser das coisas e identifica a substância com as "relações ou estruturas" que constituem os objectos da ciência racional (Reason and Nature, p. 161). No entanto, Cohen não pretende dizer com isto que a raciona- ]idade esgote a existência das coisas. "A forma ou o esquema racional das coisas refere-se a um elemento não racional ou alógico sem o qual ela não tem nenhum significado genuíno. Negar a existência de todos os elementos irracionais significa fazer da própria racionalidade um facto bruto, contingente e **aló,-co" W., p. 164). A relação entre a substância racional das coisas o os seus elementos não racionais é um caso particular de um princípio mais vasto que Cohen chama princípio de polaridade. Este princípio afirma que "os opostos tais como o mediato e o imediato, a unidade e a pluralidade, a 143 permanência e o fluxo, a substância e a função, o ideal e o real, o actual e o possível, etc., implicam-se um ao outro, como os polos de um íman, quando são aplicados a uma entidade significante" (Ib,, p. 165; A Preface to Logic, IV). O próprio reconhecimento de uma substância racional das coisas, constituída por estruturas ou relações de natureza lógica ou matemática, exclui, segundo Cohen, a natureza puramente mecânica do mundo tal como exclui o determinismo rigoroso que é próprio do mecanismo (Reason and Nature, págs. 230 e segs.). Quanto ao finalismo, a razão é incapaz de o demonstrar ou de o refutar; no entanto, "a ideia de que forças humanas ou quase humanas sejam cosmicamente dominantes produz uma satisfação similar à que se sente quando se volta para casa depois de uma solitária viagem pelo deserto" (Ib., p. 291). No campo da psicologia, Cohen exclui a possibilidade de admitir a "alma" como entidade estranha ao corpo e que se encontre para além dos fenómenos observáveis; mas exclui igualmente que se possa reduzir a consciência ao simples comportamento, como pretende o behaviorismo. E no campo das ciências morais defende a ideia do direito de natureza, mas considerando que as normas deste direito não são "evidentes", devendo antes ser demonstrada a sua "certeza, exactidão, universalidade e coerência" (Ib., p. 413). Contra o positivismo jurídico (Kelsen), afirma que não pode faltar ao direito o aspecto natural ou existencial, como polo complementar do aspecto racional ou espiritual (Reason and Law, p. 4). Nestes pontos, como se vê, Cohen chega a unia 144 parcial confirmação de certos resultados da filosofia tradicional. No campo da Lógica, do mesmo modo, as suas ideias são concordantes com os desenvolvimentos que esta ciência teve nos primeiros decénios do século XIX. O objecto da Lógica é constituído pelas verdades formais que dizem respeito à relação se... então, dado que as verdades deste tipo não são, puras e simples tautologias, implicando sempre um elemento qualquer de novidade. Das
poucas regras do jogo do xadrez podem ser deduzidas todas as partidas susceptíveis de ser jogadas; no entanto, essas partidas não estão contidas naquelas regras, a menos que se considere que as regras estão contidas em todas as partidas "enquanto modificações invariáveis ou transformações comuns a todas elas" (A Preface to Logic, trad. ital., págs. 34-35). As relações lógicas são necessárias mas as relações de facto são contingentes. As hipóteses são "o nosso guia no labirinto das possibilidades" (Ib., p. 40). A indução é apenas um raciocínio disjuntivo que entre várias hipóteses possíveis determina a melhor a partir da análise das suas consequências. Os conceitos são signos de "relações invariáveis" (Ib., p. 119), e a probabilidade consiste na frequência relativa de um acontecimento (Ib., págs. 186 e segs.). Contra a tese do positivismo lógico segundo a qual as proposições não susceptíveis de verificação são destituídas de significado, Cohen afirma que o significado é independente da verificação, pondo assim em risco a tese, de Carnap sobre a impossibilidade da metafísica enquanto conjunto de proposições não susceptíveis de verificação (Ib., págs. 102 e segs.). 145 Mas a ideia mais importante que Cohen enunciou foi a da capacidade para se auto-corrigir, a qual seria típica da ciência. "Se fizermos uma distinção, como devemos fazer, entre as verdades verificáveis da ciência e as opiniões falíveis dos sábios, poderemos definir a ciência como sendo um sistema atito-correctivo. Um sistema de teologia, por exemplo, não pode admitir a possibilidade de estar errado seja onde for: as suas verdades uma vez reveladas, devem permanecer acima de quaisquer dúvidas... A ciência, pelo contrário, convida à incerteza. Ela pode desenvolver-se e progredir só por ser fragmentária mas também por nenhuma das suas proposições ser em si própria absolutamente certa, podendo o processo de correcção actuar assim que se encontrar uma evidência mais adequada" (Studies in Philosophy and Science, p. 50). Neste sentido, existe um paralelo entre a ciência e o governo constitucional: "Um governo constitucional é aquele em que todas as leis ou instituições particulares podem ser aceites ou abolidas por meios especificamente constitucionais. O mesmo não é possível numa monarquia absoluta ou em qualquer forma de ditadura" (Ib., p. 50). No entanto, Cohen não considera que esta capacidade para se auto-corrigir se estenda também ao método da ciência, já que afirma, pelo contrário, serem as próprias correcções que deverão concordar com os cânones do método científico (Ib., p. 50). isto é certamente um limite ou insuficiência da expressão que nele teve uma ideia muito mais profunda, ideia que se inspira por um lado em Peirce 146 (§ 750) e por outro no conceito de Popper que define a ciência corno sistema de autorefutação (§ 817). § 781. O MATERIALISMO DIALÉCTICO O "materialismo dialéctico", filosofia oficial dos partidos comunistas, que reconhece como fontes as obras de Marx e Engels e que se inspira sobretudo neste último, pode ainda ser considerado um realismo naturalista. Um dos escritos mais importantes do materialismo dialéctico é a obra de Vladimir Lenine (1870-1924) intitulada Materialismo e empiriocriticismo (1909), que é dirigida contra
Avenarius, Mach, Ostwald e Poincaré, contra alguns dos seus discípulos russos e, em geral, contra toda a forma de idealismo, espiritualismo e fideísmo. As teses fundamentais do materialismo dialéctico podem ser resumidas do seguinte modo: "1.0-As coisas existem independentemente da nossa consciência e das nossas sensações, exteriormente a nós [ ... ] 2.-Não existe nem pode existir nenhuma diferença de princípio entre o fenómeno e a coisa em si. Há apenas diferença entre aquilo que já é conhecido e aquilo que ainda não o é. [ ... ] 3.O - No campo da teoria do conhecimento, como aliás em todos os outros domínios da ciência, é necessário raciocinar dialecticamente, isto é, não supor a nossa consciência como sendo algo de acabado e imutável, mas antes analisar a forma como o conhecimento nasce da ignorância, 147 a forma como o conhecimento incompleto e impreciso se torna mais completo e mais rigoroso" (Materialismo e Empir., trad. ital., p. 75). Estas teses são apresentadas por Lenine como sendo a expressão do próprio pensamento de Engels. YEste falava de uma dialéctica da natureza obedecendo a três leis fundamentais, concretamente a da unidade dos opostos, a do aparecimento brusco de uma qualidade nova como consequência de uma evolução gradual quantitativa, e a da negação da negação (§ 612); para Lenine, a dialéctica esclarece o ritmo do saber humano, o qual evolui da ignorância para o conhecimento e de um conhecimento inadequado para outro mais adequado. Mas é precisamente a existência da ignorância e do conhecimento imperfeito que demonstra, segundo Lenine, * verdade do realismo: as coisas já existem antes de * homem as conhecer, e são independentes do próprio conhecimento. "As ciências da natureza não nos permitem duvidar de que a afirmação da existência da terra anteriormente à existência dos homens seja uma afirmação verdadeira. [ ... 1 a existência daquilo que pode constituir objecto do pensamento independentemente de quem pensa (isto é, a existência do mundo exterior independentemente da consciência) é o princípio fundamental do materialismo" (Ib., p. 91). Isto demonstra que a realidade material não pode ser resumida a um complexo de sensações, como pretendiam Avenarius e Mach, já que as sensações não existem e não podem existir antes e independentemente da sensibilidade e da consciência. A existência indubitável da realidade material garante o valor plenamente objectivo da ciência que, apesar de nunca 148 estar na posse da verdade total, progride incessantemente para ela, descoberta a descoberta, dando no seu conjunto uma ideia aproximada dessa verdade. "Do ponto de vista do materialismo moderno, quer dizer, do marxismo, os limites da aproximação dos nossos conhecimentos à verdade objectiva, absoluta, são historicamente relativos, mas a própria existência dessa verdade é tão incontestável como o facto de nos aproximarmos dela" (Ib., p. 101). Apenas este materialismo realista permite entender a evolução histórico-Social da humanidade como um facto objectivo indubitável que se efectua necessariamente. "0 facto de viverem, exercerem uma actividade económica, procriarem e fabricarem produtos que depois são trocados, determina uma sucessão objectivamente necessária de acontecimentos, de desenvolvimentos, independente da vossa consciência social, que nunca a
pode abarcar na sua totalidade. A mais nobre tarefa da humanidade é a de compreender esta lógica objectiva da evolução económica (evolução da existência social) nos seus aspectos gerais e essenciais, para lhe adaptar o mais clara e nitidamente possível, com espírito crítico, a sua consciência social e a consciência das classes avançadas de todos os países capitalistas" (Ib., p. 257). A lógica objectiva de que fala Lenine é a necessidade dialéctica da história de que falam Marx e Engels, à qual está confiada a realização inevitável da sociedade comunista. Subsiste em Lenine o sentido da absoluta necessidade da história, cuja interpretação fica assim confiada unicamente às categorias fundamentais do romantismo. Mantém ainda o 149 conceito (que reafirmou, sobretudo, nos seus comentários a Hegel, publicados depois da sua morte com o título Cadernos filosóficos, 1933) de uma dialéctica da história constituída pela luta dos opostos (luta de classes), à qual se deve seguir a síntese final dos opostos numa sociedade sem classes. Esta concepção dialéctica é aplicada por Lenine à teoria do Estado (0 Estado e a revolução, 1917). O Estado é o resultado do antagonismo entre as classes e é o instrumento do domínio de uma classe sobre outra. Na passagem do capitalismo para o comunismo, que é o período da ditadura do proletariado, o Estado torna-se instrumento da classe proletária no sentido de que a maioria dos oprimidos passa a reprimir a minoria dos opressores. Mas, uma vez instaurado o comunismo, o Estado tende a tornar-se inútil e a desaparecer, já que o =unismo elimina a própria oportunidades dos delitos, e os crimes individuais que pudessem verificar-se seriam então reprimidos pelos próprios cidadãos. A negação dialéctica é, porém, em todo o caso, conservação e progresso: o comunismo não elimina as conquistas do capitalismo, antes as conserva e eleva a um nível mais alto. A dialéctica progressiva e necessária do romantismo é aceite totalmente por este autor. Lenine introduz nesta dialéctica, contudo, um elemento voluntarista: a acção da teoria política e do partido que a propugna. "Só um partido guiado por uma teoria de vanguarda é capaz de desempenhar o papel de combatente de vanguarda"afirma (Obras escolhidas, trad. ital., 1, p. 157). E a teoria não germina espontaneamente no movimento 150 da classe operária, mas é trazida do exterior. "Quanto à doutrina socialista, nasceu das teorias filosóficas, históricas e económicas, elaboradas pelos representantes cultos das classes possuidoras, pelos intelectuais. Os próprios fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels, pertenciam, pela sua situação social, aos intelectuais burgueses" (Ib., p. 161). Corresponde assim ao partido comunista e à sua doutrina a tradução em acto daquela possibilidade real da sociedade comunista, que está implícita no desenvolvimento da própria sociedade burguesa. No entanto, isto não introduz nenhum elemento de problematicidade ou de incerteza no decurso da história: esta acção do
partido insere-se na dialéctica necessária da história e constitui um seu elemento. A filosofia é explicitamente entendida por Lenine como um instrumento da acção do partido. A polémica filosófica deste autor tem o objectivo de, por um lado, barrar o caminho ao "idealismo", no qual vê o pressuposto das crenças religiosas e, por outro lado, defender uma "verdade objectiva" que constitua uma sólida base ideológica para a acção do partido. Deste ponto de vista, vê no próprio agnosticismo uma espécie de tolerância ou benevolência implícita para com a religião. "0 agnóstico diz: ignoro se existe uma realidade objectiva reflectida pelas nossas sensações e declaro que é impossível sabê-lo. Daí a negação da verdade objectiva e a tolerância pequeno - burguesa, filisteia, pusilânime, para com as crenças nos fantasmas, nos espíritos, nos santos católicos e noutras coisas semelhantes" 151 (Ib., p, 95). Partindo do relativismo puro pode justificar-se toda a espécie de sofística e, por exemplo, considerar "relativo" que Napoleão tenha ou não morrido em 5 de Maio de 1821; pode declarar-se que é cómodo (de certo ponto de vista) para o homem e para a humanidade admitir, ao lado da ideologia científica, a ideologia religiosa (uma das mais cómodas de outro ponto de vista ... ), etc" (Ib., p. 102). Por outro lado, a necessidade de admitir uma verdade objectiva tem o seu fundamento na exigência política de reconhecer como absolutamente válido o diagnóstico de Marx sobre a evolução da sociedade burguesa. "Mas como o critério da prática-por outras palavras, o desenvolvimento dos países capitalistas nestes últimos decénios -demonstra a verdade objectiva de toda a teoria económica e social de Marx, e não desta ou daquela parte, desta ou daquela fórmula, etc., é evidente que falar aqui do "dogmatismo" dos marxistas é fazer uma concessão imperdoável à economia burguesa" (Ib., p. 107). E assim, o "espírito de partido" permeabiliza e deve permeabilizar toda a filosofia e fazer dela substancialmente um órgão ou instrumento de propaganda. Neste caso, a única verdadeira superioridade do materialismo consiste no facto de se prestar, muito melhor do que as doutrinas opostas, a estabelecer uma base firme para a propaganda. Idêntico ao de Lenine é o conceito da história que encontramos nos escritos de Estaline, que considera como elementos decisivos da história, junta- mente com as forças objectivas da produção, "as relações de produção entre os homens" (História do 152 partido comunista da U.R.S.S., Roma, 1944, p. 147). Em Trotsky, pelo contrário, a importância dada ao elemento objectivo, às forças inconscientes, é maior. "0 método materialista -diz (História da revolução russa, trad. ital., 11, Milão, 2aed., 1946, p. VIII) impõe uma disciplina, obrigando a tomar como ponto de partida os factos concretos da estrutura social. As forças fundamentais do processo histórico são, para nós, as classes; nestas se apoiam os partidos políticos; as ideias e as palavras de ordem aparecem como moedas correntes dos interesses
objectivos". É nesta preponderância do elemento objectivo que se baseia a exigência de Trotsky de uma "revolução permanente", que não se esgote na constituição de um só estado comunista; daí, portanto, a sua impossibilidade de aceitar a transformação do comunismo em nacionalismo do estado comunista, que é a tese fundamental de Estaline. Contudo, em Trotsky como em Estaline, em Lenine como em Marx e Engels, o conceito filosófico da história não varia. Trata-se de um processo necessário, e necessariamente progressivo, no qual se pode dar maior ou menor importância à teoria e actividade do partido, mas no qual, em todo o caso, a teoria e a actividade desempenham o papel de momentos necessários de um desenvolvimento infalível. O "partidarismo da filosofia", afirmado por Lenine e aplicado por Estaline em todo o mundo comunista, tornou impossível durante muitos anos o aparecimento, nesses países, de desenvolvimentos originais ou novos do materialismo dialéctico, que foi principalmente cultivado como uma espécie de 153 escolástica de partido, isto é, como uni trabalho filosófico não autónomo tendente a justificar as directrizes do partido e a fornecer a base ideológica para a sua obra de educação e de propaganda. Os conceitos principais desta escolástica podem ser resumidos do seguinte modo: 1.O A dialéctica (e as suas três leis estabelecidas por Engels) constitui a estrutura geral da realidade e, portanto, da natureza e da história. Por essa razão, ela constitui o verdadeiro objecto da filosofia, quanto às ciências, têm por tarefa a especificação ou determinação dos processos dialécticos nos seus respectivos campos. 2.O A dialéctica aplica-se necessariamente a toda a realidade e serve portanto para a previsão infalível dos resultados a que é possível chegar. Este ponto é importante sobretudo no campo da história, dado que permite afirmar que a sociedade comunista é uma consequência necessária do desenvolvimento da sociedade burguesa. Sem tal previsão, não poderia haver um movimento revolucionário. 3.O Todo o desenvolvimento dialéctico é antecipado e preparado por possibilidades reais, isto é, por possibilidades que não são puramente lógicas mas que constituem potencialidades da própria natureza das coisas e dos acontecimentos e cuja realização é infalível. Faz parte destas possibilidades, ou insere-se nelas, a acção " consciente" das massas ou do partido, cujo grau relativo de independência das condições objectivas é (como vimos) diferentemente avaliado conforme as tarefas que lhes são atribuídas. 154 Os mais recentes desenvolvimentos do marxismo verificaram-se fora desta escolástica, através de uma tentativa de reedificação da verdadeira doutrina de Marx, a partir sobretudo das duas obras juvenis. As várias interpretações da obra de Marx orientaram-se para dois polos diferentes: o hegelianismo e o existencialismo. Mas, quer se considere uma
ou outra destas interpretações, pode-se dizer que o marxismo deixou de ser um realismo naturalista. § 782. O NEO-TOMISMO Pode-se considerar o neo-tomismo contemporâneo como um realismo não naturalista. Esta corrente defende não só a realidade independente dos objectos materiais ou naturais como também dos objectos espirituais (alma e Deus), recusando-se assim à redução, própria das outras formas de realismo, do modo de ser de todos os objectos ao dos objectos naturais. A defesa do realismo coincide, deste ponto de vista, com a defesa da metafísica clássica aristotélico-tomista e dos seus conceitos fundamentais, os de substância e de causa, que não incluem conotações que limitem a validade do mundo natural. O realismo neo-tomista pode assim ser considerado como um realismo metafísico, ao qual a polémica anti-idealista é sugerida pela exigência de utilizar os conceitos tradicionais da metafísica para as necessidades da apologética religiosa. O desenvolvimento do movimento neo-tomista pode considerar-se iniciado com a encíclica Aeterni Patris de Leão XIII (4 de Agosto de 1879), a qual 155 exortava ao estudo da filosofia de S. Tomás, reconhecida como sendo a única verdadeira. Pouco depois surgiram alguns centros do movimento neo-tomista, tais como a Universidade de Freiburg, na Suíça, e a de Lovaina, na Bélgica, fundando-se em 1889, nesta última, um Instituto Superior de Filosofia. Na Itália fundou-se em 1891 a Academia Romana de S. Tomás; mais tarde, a Universidade Católica de Milão constituiu o centro dos estudos filosóficos tomistas. Hoje, um numeroso, grupo de pensadores de todos os países expõe, nos seus diversos aspectos, o pensamento de S. Tomás, defendendo-o polemicamente contra as diversas orientações da filosofia contemporânea. O desenvolvimento do neo-tomismo teve como consequência um novo florescimento dos estudos da filosofia medieval e chamou eficazmente a atenção da especulação contemporânea sobre as figuras e os temas daquela época. Naturalmente, o próprio carácter do movimento oferece pouca margem à tomada de posições filosóficas originais. A originalidade do neo-tomismo contemporâneo relativamente às correntes tomistas, que no período precedente tinham ficado confinadas ao âmbito da cultura eclesiástica, consiste na nova problemática que o neo-tomismo tira da própria filosofia contemporânea com que polemiza. A aceitação desta problemática com o objectivo de clarificar, defender, continuar e desenvolver as teses do tomismo, é o traço fundamental que introduz o neo-tomismo na filosofia contemporânea e faz dele o seu elemento vivo. É também o carácter que determina os seus limites, porque mostra que não se pode esperar do neo-tomismo, a não ser 156 a nível muito reduzido, uma renovação da problemática filosófica. Além disso, o neotomismo não é a única corrente que sofre esta limitação: outras escolas filosóficas permanecem imóveis na problemática oitocentista e mostram pouca vontade de a renovar.
Uma das principais figuras do neo-tomismo é a do cardeal belga Désiré Mercier (1851-1925) que foi o fundador da escola de Lovaina, mais tarde chamada " Institut Supérieur de Philosophie". A obra deste autor forneceu à orientação neo-tomista o seu primeiro guia (Psicologia, 1883-, Metafísica geral ou ontologia, 1886; Introdução à filosofia e curso de lógica, 1891; Criteriologia geral, 1899). Entre as figuras mais conhecidas do tomismo destaca-se a de Jacques Maritain, nascido em 1882, que começou a sua carreira de escritor com uma áspera crítica a Bergson, de quem antes tinha sido discípulo (A filosofia bergsoniana, 1914). Entre as numerosíssimas obras deste fecundo escritor citaremos a que trata de Três reformadores: Lutero, Descartes, Rousseau (1925), nos quais vê os maiores responsáveis pelo desvio fatal do pensamento moderno da fonte tomista, as Reflexões sobre a inteligência e sobre a sua própria vida (1924) e Distinguir para unir, ou os graus do saber (1932). Esta última obra, das mais importantes que escreveu, contém a defesa dos aspectos fundamentais das suas doutrinas gnoseológicas, que são por ele definidos como um realismo crítico, mas que constituem uma espécie de espiritualismo de carácter ontológico, Maritain toma como ponto de partida a evidência do ser, na sua identidade, para a consciência. "Dado que a inte157 ligência se dirige primeiro não a si mesma, nem a ml .m, mas ao ser, a primeira evidência (primeira na ordem da natureza mas não na ordem cronológica, na qual muitas vezes o que é anterior está somente implícito) para a inteligência é a do princípio da identidade, que se descobre na apreensão intelectual do ser ou do real" (Distinguer pour unir, p. 149). Na realidade, apesar de se referirem vulgarmente a S. Tomás e à sua boa vontade de permanecer fiéis aos seus ensinamentos, os pensadores neo-tomistas diferenciam-se amiúde entre si tal como os filósofos que pertencem a outras escolas. Isto acontece devido à diferente importância que atribuem aos argumentos da filosofia moderna e contemporânea e é, por outro lado, uma prova da vitalidade da sua investigação. Procuram restaurar um realismo baseado na diversidade metafísica entre o intelecto e a realidade e também na possibilidade de correspondência entre um e outro. Para atingir este fim eles defendem a função da abstracção, a qual permite compreender a forma como a substância-alma pode assimilar a essência das coisas, abstraindo-a das próprias coisas e sem as identificar a si ou identificar-se com elas. A defesa da validade da abstracção é, portanto, uma das características principais do neotomismo. O outro aspecto principal é o princípio da analogia do ser. Este princípio permite estabelecer a diversidade entre o ser finito (criatura) e de Deus, garantindo a transcendência de Deus, e justificar simultaneamente a validade parcial (e analógica) do conhecimento humano do ser divino, garan158 tindo desta forma o valor das vias demonstrativas que conduzem a Deus.
O neo-tomismo toma ainda o nome de neo-escolástica, mas este vocábulo é impróprio dado que a escolástica não se reduz ao tomismo por apresentar historicamente uma riqueza de orientações especulativas que não podem ser reduzidas a uma só das suas manifestações. Como se disse, um -dos efeitos do neo-tomismo foi a revalorização histórica da filosofia medieval. O alemão Martin Grabmarm (1875-1949) deu a esta revalorização um impulso notável com uma obra de carácter geral intitulada História do método escolástico (1, 1909-, 11, 1911) que ilustrou com objectividade histórica os problemas fundamentais da escolástica medieval, para além de numerosos estudos particulares sobre o mesmo assunto. Além deste autor, deram e continuam a dar contributos importantes numerosíssimos neo-tomistas, entre os quais se pode recordar o francês Étierme Gilson (nascido em 1884), cujos estudos sobre Dante, S. Tomás, S. Boaventura e Duns Escoto se situam entre os mais importantes escritos sobre tais argumentos e nos quais se deve fazer notar a indagação sobre as fontes escolásticas da filosofia cartesiana. Os historiadores neo-tomistas da escolástica medieval são muitas vezes levados a reconduzir ao tomismo as manifestações mais díspares desta filosofia, a descurar e a esquecer aquelas que não se prestam a esta redução e a valorizar todas as doutrinas tomando como única referência o tom'smo. Esta é certamente uma limitação da validade de alguns dos 159 seus contributos; mas a amplitude e a importância de tais contributos são ainda notáveis. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 770. Sobre Schuppe: P. NATORP, in "Archiv für sistematische Philosophie", 111, 1896; A. ALIOTTA, in "Cultura filosofica", 1908, agora editado em Pensatori tedeschi della fine dell' 800, Nápoles, 1950, págs. 78-104; A. PELAZZA, G. S. e Ia filosofia dell'immanenza, Milão, 1914; R. ZOCHER, Husserls Phãnomenologie und 8.s Logik, Heidelberga, 1932; G. JACOBY, W. S., Greifswald, 1936. § 771. Sobre Külpe: M. GRABMANN, in "Philosophische Jahrbücher", 1916; P. LINKE, in "Kantstudien", 1917. § 772. Sobre Moore: C. A. STRONG, in "Mind", N. S., XIV, 1905; G. DAWES HICKS, in "Proceedings of the Arístotelian Society", N. S. X, 1910; A. ALIOTTA, in "Cultura filosofica", 1915 (agora em Il problema de Dio e il nuovo pluralismo, Roma 1949); A. K. ROGERS, in "Philosophical Review", 1916; J. LAIRD, in "Mind", N. S., 1923; The Phil. of G.E.M., ao cuidado de P. A. Schilpp, na "Library of Living Philosophers", 1942, New York, 1952; G. PRETI, in Linguaggio comune e linguaggi scientifici, Roma-Milão, 1953, págs. 17 esegs.; F. Rossi LANDI, in "Rivista di filosofia", 1955, págs. 304-26; A. R. WHITY,, G.E.M.A. Critical Exposition, Oxford, 1958. § 773. Sobre Broad: M. LEAN, Sense-Perception and Matter. A Critical Analysis of C.D.
B.Is Theory of Perception, Londres, 1953; The Philosophy of C.D.B., ao cuidado de P. A. Schilpp, Nova Iorque, 1959. § 774. Sobre o novo realismo: 1. Woodbridge RileY, American Thought from Puritanism to Pragmatism, 160 Nova Iorque, 1915; A. ALIOTTA, in "Cultura filosofica", 1915 (agora publicado in 11 problema di Dio e il nuovo pluralismo, já citado) e as referências contidas neste ensaio às discussões sobre o tempo; R. KREMER, Le néoréalisme américain, Paris, 1920; ID., La Worie de Ia connaissance chez les néo-réalistes anglais, Paris, 1928. ,Sobre Montague: "The. Journal of Philosophy", 1954, págs. 593-630 (fascículo dedicado a M.); P. ROMANELL, in "Riviista di Filosofia", 1954, págs. 196-200. Na mesma orientação da obra de Montague: P. ROMANELL, Toward a Critical NaturaZism, Nova Iorque, 1958 (em italiano: Verso un naturalismo critico, Turim, 1953). § 775. Sobre Lovejoy: A. C. VEZZETTI, in Filosofi contemporanei (Instituto de Estudos Filosóficos de Turim), Mlão, 1943, págts. 225-69. § 776. De Santayana: Works (recolha completa dos seus escritos, em 15 vols.), Nova Iorque, 1936-1940. Bibliografia in The phil. of G. S., ao cuidado de P. A. Sch11pp, Evanston e Chicago, 1940, na "Library of Living Philosophers" e in SANTAYANA, Obiter Scripta, Lectures, Essays and Reviews, Nova Iorque, 1H6. Sobre Santayana: G. 1. EDMAN, The Philosophy of G.S., Nova lorque, 1936; M. K. MUNITZ, The Moral Philosophy of S., Nova Iorque, 1939; J. DURON, La pemée de G.S., Paris, 1950; N. BOSCO, Il realismo critico di G.S., Turim, 1955; R. BUTLER, The Mind of S., Londres, 1956; "Revue intemationale de philosophie", 1963, 1 (fascículo dedicado a S.). § 777. Sobre Alexander: G. DAwEs HicKs, in "Hibbert Journal", 1921; C. D. BROAD, in "Mind", N.S., 1921; J. WATSON, in "Philosophical Review", 1924; PH. DEVAUX, Le système dIA., Paris, 1925; R. M. KONVITZ, On the Nature of Value. The Philosophy of S.A., Nova Iorque, 1946; J. W. McCARTHY, The Naturalism of S.A., Nova Iorque, 1948; A. P. STIERNOTTE, God and Space-Time. Deity in Philosophy of S.A., Nova Iorque, 1954. 161 § 778. De WHITEHEAD: foram traduzidas em italiano La scienza e il mondo moderno, ao cuidado de A. Banfi, Milão, 1945; Il concetto della natura, ao cuidado de M. Meyer, Turim, 1948; Natura e vita, Milão, 1951; La funzione della ragione, ao cuidado de F. Cafaro, Florença, 1958; Avventure di idee, ao cuidado de G. Gnoli, Milão, 1961. Sobre Whitchead: bibliografia in The Phüosophy of W., ao cuidado de P. A. Schilpp, na colecção dos "Living Philosophers", Chicago, 1941; F. CESSELIN, La philosophie organique de W., Paris, 1950; A. H. JOHNSON, W.Is TheoTy of Reality, Boston, 1953; R. SmiTH, W.'s
Concept of Logic, Westminster, 1953; N. LAwRENCE, W.Is Philosophical Develop,?nent, Berkeley, 1956; C. ORsi, La filosofia dell'organismo di A. N. W., Ná,poles, 1956; W. A. CHRISTIAN, An Interpretation of W.Is Metaphysics, New Haven, 1959; "RE5vue Internationale di philosophie", 19C31, 2-3 (fascículo dedicado a W., com bibliografia). § 779. De WOODI3RIDGE: Saggio sulla natura, trad. ital., F. Tató, Milão, 1956. § 780. De COREN: Introduzione alla logica, trad. ital. de C. Pellizzi, Milão, 1948. Sobre Cohen: Freedom and Reason, Studies in Philosophy and Jewish Culture, in Memory M.R. Cohen, ed. por S. W. BARON, E. NAGEL, K. S. PINSON, Glencoe, U, 1951 (a primeira parte desta obra contém estudos sobre a filosofia de C.); A. DEREGIBUS, Il raZionaliSMO di M. R. C. nella filosofia americana dloggi, Turim. 1960. § 781- As obras de Lenine e de Estaline foram traduzidas nos "Classici del marxisrno" das Edizioni Rinascita, Roma. Sobre estes autores: N. BUDJAEV, 11 senso e le premesse del comunismo russo, Roma, 1944; G. A. WETTER. Il materialismo dialettico sovietico, Turim 1948 (com bibliografia); C. J. GiANOUX, Lénine, Paris, 1952; R. GARAUDY, La théorie matérialiste de Ia cownaissance, Paris, 1953. 162 § 782. Sobre o neo-tomis-o: A. XASNOVO, Il neotomismo ia Italia, MIão, 1923; F. EHRLE, La scolastica o i ~ compiti odierni, trad. ital, Turim 1935; J. L. PERRIER, Revival of Scholastic Philosophy, Nova Iorque, 1948; L. DE P.=MAEKER, Le card. Mercier et Unstitut Supérieur de Philosophie de Louvain, Lovaina, 1952; M. DE WULF, An Introduction to Schol~ic Philosophy Me,dievaZ and Modera, Nova Iorque, 1956. 163 XI A FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS § 783. FILOSOFIA, METODOLOGIA E CRITICA DAS CIÊNCIAS Sob o nome de "filosofia das ciências" são agrupados dois tipos diferentes de indagação. Concretamente: 1.O A indagação filosófica que se pretende constituir em ciência rigorosa segundo o modelo das ciências naturais e que por isso tenta adaptar-se aos factos analisados por essas ciências e realizar a sua melhor ou mais completa sistematização. M **Iffiffi-MIEM *)~~ONN-4. sos e as técnicas, lógicas e experimentais, utilizados pelas ciências, quer tal indagação faç a parte das próprias ciências a um dado nível da sua organização conceptual quer possa ser considerada como actividade filosófica relativamente autónoma das ciências.
165 Estes dois tipos de investigação encontram-se normalmente unidos ou misturados na obra de um qualquer filósofo ou cientista; não são por isso susceptíveis de um estudo separado. Pode-se no entanto mostrar a correspondência entre certas fases metodológicas e certas posições da filosofia científica. Em geral, a filosofia das ciências apresenta-se como continuação histórica actual do positivismo oitocentista. Distingue-se do positivismo pelo seu conceito crítico da ciência, o qual tende a determinar os limites exactos da validade da própria ciência, subtraindo-a à pretensão absolutista e, em última análise, metafísica, que conservava no positivismo. Sob este aspecto, a filosofia da ciência é sempre acompanhada por uma crítica da ciência; mas é necessário observar-se que nem toda a crítica da ciência constitui uma filosofia da ciência. Uma tal crítica pode ser instituída, realizada ou repetida mesmo por uma doutrina que tenda a reduzir ao mínimo ou a negar totalmente o valor cognitivo da ciência, atribuindo-o na sua totalidade à filosofia. Assim acontece habitualmente com o espiritualismo, o idealismo e o pragmatismo; a crítica da ciência que podemos encontrar, por exemplo, em Croce, Bergson ou James faz parte integrante das doutrinas destes filósofos e não é portanto considerada no estudo histórico da filosofia das ciências. A crítica que podemos admitir como historicamente mais fecunda é a inerente ao próprio desenvolvimento histórico da ciência, a qual foi levada a evoluir dos seus problemas para a consciência dos processos que utiliza e dos limites da sua validade, sendo esta inerente à própria consideração 166 metodológica das ciências. A primeira manifestação importante deste facto pode ser encontrada na obra de Mach, se bem que esta já tivesse sido precedida e preparada pela de Avenarius. § 784. FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS: AVENARIUS Richard Avenarius (1843-1896) foi professor de filosofia indutiva em Zurique e dirigiu desde 1877 até à sua morte, em colaboração com Wunt e outros, a "Revista Trimestral de Filosofia Científica" (WierteIjahrsschrift für wissenschaftliche Philosophie). A sua primeira obra foi um ensaio sobre Espinosa (As duas primeiras fases do panteísmo de Espinosa e a relação da segunda com a terceira fase, Leipzig, 1868), ao qual se seguiram A filosofia como pensamento do mundo segundo a lei do menor esforço, 1876; A crítica da experiência pura, 2 vols., 1888- 1890; O conceito humano do mundo, 1891. Os escritos de Avenarius tornam-se pesados e obscuros devido a uma terminologia insólita e artificiosa; mas a orientação do seu pensamento é bastante clara. Avenarius pretende construir uma filosofia que seja uma ciência rigorosa, como as ciências positivas da natureza, e que por isso exclua toda a metafísica e se limite ao reconhecimento e à elaboração da experiência pura. A experiência pura é a que precede a distinção entre o físico e o psíquico, e que por isso não pode ser interpretada como o fazem o materialismo ou o idealismo. Avenarius pretende voltar ao que ele crê "o conceito natural do mundo".
Todo 167 o homem se encontra originariamente frente a um ambiente circundante e frente a outros indivíduos humanos; mas o indivíduo e o mundo ambiente não são duas realidades separadas e o-postas, pois o homem tem experiência do ambiente precisamente no mesmo sentido em que tem experiência de si mesmo: uma e outra realidade pertencem a uma única experiência e são constituídas pelos mesmos elementos. Estes elementos dependem da acção recíproca do ambiente e do sistema nervoso do indivíduo e Avenarius divide-os em elementos e caracteres. Os elementos são as sensações propriamente ditas (cores, sons, etc.). Os caracteres são o prazer e a dor, que constituem o "afeccional"; identidade e alteridade, que constituem o "identicial"; familiar e não familiar que constituem o "fidencial", e ainda as três especializações do "existencial": ser, aparência, não-ser; as do "segurancial", segurança e não segurança; do "notal", ser conhecido ou ser desconhecido, e assim sucessivamente. As modificações dos caracteres dão ainda lugar a outras determinações: actividade, passividade, corporeidade, etc. A primeira consequência fundamental deste ponto de vista é a eliminação de qualquer contraposição entre o físico e o psíquico. Estes são apenas "caracteres", que resultam de uma relação de dependência biológica entre o indivíduo humano e o ambiente que o rodeia; mas não determinam nenhuma dualidade real na experiência pura. O que chamamos "coisa" e "pensamento" correspondem somente a diferentes posições dos mesmos conjuntos de elementos. O pensamento é apenas uma sensação ca168 MACH caracterizada de forma diferente da que corresponde à coisa: esta é "percebida", aquele é "representado". Mas todo o complexo de elementos pode ser caracterizado tanto de um modo como de outro. A segunda consequência é que os termos "existentes" e "não existentes", "semelhantes" e "não semelhantes", etc., não têm nenhum significado lógico e objectivo, sendo simples "caracteres" que dependem do decurso dos acontecimentos biológicos e mudam com eles. É pois evidente a base biológica de toda a filosofia de Avenarius. A experiência pura é falsificada por um processo fictício, chamado introjecção. Tudo o que a existência permite afirmar é que uma coisa (por exemplo, uma árvore) que existe para mim existe do mesmo modo para os outros indivíduos humanos; neste reconhecimento não se ultrapassam os limites de uma analogia lógico-formal entre mim e os outros indivíduos. A introjecção consiste, por outro lado, em interiorizar a coisa, considerando-a como uma representação ou sensação minha, e em admitir deste modo uma relação entre os elementos do ambiente externo e a minha consciência ou o meu pensamento. Na medida em que a experiência testemunha apenas uma relação entre os elementos do ambiente externo do meu corpo, a introjecção é uma falsificação da experiência, e é impossível qualquer tentativa de a
fazer concordar com os factos da experiência. Ela rompe a unidade natural do mundo empírico e divide-o em mundo externo e mundo interno, em objecto e sujeito, em ser e pensamento. Nasce então o problema insolúvel de compreender a relação entre os 169 dois troncos assim obtidos a partir da experiência originária; e nascem os conceitos de alma, de imortalidade, de espírito, com todas as dificuldades que trazem consigo. A questão das relações entre a alma e o corpo é outra das dificuldades que nascem da introjecção. Ao recusar a introjecção, Avenarius deduz como consequência que a psicologia apenas pode ser fisiológica. Os chamados estados de consciência ou processos psíquicos são os elementos do ambiente enquanto actuam sobre o sistema nervoso e são observados somente como mudanças fisiológicas do próprio sistema nervoso. Toda a causalidade psíquica específica é assim eliminada. § 785. FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS: MACH Os pressupostos desta filosofia da experiência pura são aceites e integrados numa doutrina dos conceitos científicos por Errist Mach (1838-1916), que foi professor de física e depois de filosofia na Universidade de Viena. Os principais escritos de Mach são os seguintes: A história e a raiz do princípio da conservação do trabalho, 1872; Esboços da doutrina das sensações de movimento, 1875; A mecânica no seu desenvolvimento histórico, 1883; Contribuição para a análise das sensações, 1886, 2.a ed. com o título de Análise das sensações, 1900; Os princípios da doutrina do calor, 1896; O princípio da analogia na física, 1894; Leituras científicas populares, 1896; Conhecimento e erro, 1905. 170 Mach, como Avenarius, parte de um conceito biológico do conhecimento: este é uma progressiva adaptação aos factos da experiência, adaptação requerida pelas necessidades biológicas. A investigação científica não faz mais do que continuar e aperfeiçoar o processo vital utilizado pelos animais inferiores para se adaptarem, mediante reflexos inatos, às circunstâncias do ambiente. Adapta os pensamentos aos factos mediante a observação e os pensamentos entre si mediante a teoria; mas a observação e a teoria nunca se separam. Conforme o princípio básico do positivismo, Mach sustenta que o facto é o fundamento último do conhecimento. Mas afasta-se depois do positivismo ao reconhecer que o facto não é uma realidade última e ao resolvê-lo nos elementos que considera originários: as sensações. Um facto físico ou um facto psíquico é apenas um conjunto relativamente persistente de elementos simples: cores, sons, calor, pressão, espaço, tempo, etc. O eu é um destes agrupamentos persistentes, assim como os corpos externos; mas os elementos que constituem o eu e os corpos são os mesmos: as sensações. Desta maneira, qualquer diferença substancial entre o físico -e o psíquico fica eliminada. "Uma cor - diz Mach (Die Analyse der Empfindungen, 9.a ed., 1922, p. 14) - é um objecto físico se considerarmos, por exemplo, a sua dependência das fontes luminosas (outras cores, calor, espaço, etc.); mas se a considerarmos dependente da retina, é um objecto psicológico, uma sensação. A direcção, mas não a substância, da investigação
é diferente nos dois campos". Por conseguinte, não há qualquer diversidade entre o elemento 171 físico e o psíquico: todo o objecto é físico e psíquico ao mesmo tempo. Deste ponto de vista não subsiste o problema de entender a génese das sensações pelo influxo causal do mundo externo. Não são os corpos externos que geram as sensações; são antes os complexos de sensações que formam os corpos. O físico considera como "corpos" o que é persistente, e como elementos as suas manifestações transitórias, mas, ao fazê-lo, esquece que todos os corpos são apenas símbolos do pensamento que servem para indicar complexos de sensações. Analogamente, o eu não é uma unidade substancial mas somente a unidade prática dos elementos sensíveis mais fortemente unidos entre si e menos unidos aos outros, unidade que tem um valor simplesmente orientador e biológico (Ib., p. 23). Os limites entre fenómeno físico e fenómeno psíquico são de uso exclusivamente prático e puramente convencionais. O fenómeno físico obtém-se fazendo abstracção de qualquer relação com o corpo humano; se, em troca, se considera esta relação, tem-se o facto psíquico. Mas interioridade e exterioridade não têm qualquer sentido: os elementos últimos são os mesmos (IB., p. 254). Deste ponto de vista, o conceito deve encontrar o seu ponto de partida e o seu ponto de chegada nas sensações. O conceito é uma reacção da actividade sensível que tem por resultado uma extensão e um enriquecimento desta mesma actividade (Die Ánalyse der Empfindungen, p. 269). O princípio de economia domina na construção e no uso dos conceitos. A economia é requerida pelo facto de a varie172 dade das reacções biologicamente importantes ser muito menor que a variedade daquilo que realmente existe, Por isso, o homem é levado a classificar os factos mediante os conceitos. Estes têm a missão de reunir todas as reacções inerentes ao objecto designado e atrair estas recordações à consciência tal como se puxassem um fio (Erkennt. u. Irrt., trad. francesa, págs. 136-37). Daí que o conceito não tenha por si mesmo carácter intuitivo, mas represente e simbolize grandes classes de factos. Substitui a intuição actual por uma intuição potencial, que consiste no sentimento de possibilidade certa de reproduzir os elementos intuitivos (Ib., p. 143). O conceito científico corresponde plenamente a estas características. "A ciência -diz Mach (Die Machanik., p. 5 10) - substitui a experiência por representações ou imagens através das quais se torna mais fácil manejar a própria experiência". Os conceitos de que se serve a ciência são meros signos que resumem e indicam as possíveis reacções do organismo humano perante os factos. No entanto, estes signos não são subjectivos ou arbitrários. Mach conserva o conceito de ciência que Newton tinha feito prevalecer, definindo-a como uma descrição dos factos e daquilo que neles existe de uniforme ou constante. Mas o que nos factos é uniforme e constante é constituído pelas reacções orgânicas que os ordenam e classificam e não por uma hipotética substância material. Mach afirma: "os corpos são apenas feixes de reacções regularmente ligadas entre si. Isto acontece em todos os fenómenos que a nossa necessidade de conhecer obriga
a classificar e a nomear. Quer 173 se trate de ondas líquidas de que nos possamos aperceber pela vista ou pelo tacto, ou de ondas sonoras que se propagam através do ar e que nós concebemos e podemos tomar visíveis artificialmente, ou ainda de uma corrente eléctrica cujas reacções só possamos conhecer por artifícios apropriados, aquilo que é constante consiste sempre e apenas na dependência regular das reacções entre si. É esta a noção crítica de substância, a qual deve suplantar cientificamente a noção vulgar" (Erkenntniss und Irrtum, págs. 157-58). Deste ponto de vista, a relação tradicional de causalidade deve ser substituída pelo conceito matemático de função, isto é, de interdependência dos fenómenos entre si (Ib., p. 275-, Die Analyse der Empfindungen, p. 74). E as leis naturais deixam de ser regras invioláveis que devem ser respeitadas pelos fenómenos da natureza, para se tornarem instrumentos da previsão científica. "Em lugar da palavra descrição que já foi analisada por Mill e Whewell e que adquiriu direitos da cidadania depois de Kirchhoff, proponho a expressão restrição de considerandos para indicar o significado biológico das leis da natureza. Quer a consideremos como uma restrição da acção, como um guia invariável daquilo que acontece na natureza, ou como um indicador utilizado pelo nosso pensamento para completar antecipadamente os acontecimentos, uma lei é sempre uma limitação de possibilidades" (Erkenntniss und Irrtum, p. 369). O progresso da ciência conduz à restrição, isto é, à determinação e rigor crescentes daquilo que esperamos do futuro. A determinação e o rigor só se podem obter abstraindo, simplificando e esquematizando os factos, 174 e construindo elementos que, enquanto tais, não se encontram na natureza: tais como, por exemplo, os movimentos uniformes e uniformemente acelerados, as correntes térmicas e eléctricas estacionárias, as correntes de intensidade uniformemente crescente ou decrescente. Mas se o facto corresponde exactamente a estas construções ideais, também a nossa espectativa poderá ser determinada exactamente. "Uma proposição científica, afirma Mach, tem apenas um significado hipotético: se o facto A corresponde exactamente aos conceitos M, a consequência B corresponde exactamente aos conceitos N; B corresponde a N tão exactamente como A a M" (Ib., p. 377). Contrariamente a Avenarius, Mach não pensa que a distinção entre o físico e o psíquico seja uma mera deformação da experiência, vendo antes nela o resultado natural de uma classificação muito útil no desenvolvimento da experiência. Nasce, com efeito, da divisão dos fenómenos em duas classes: os que são perceptíveis por todos os homens e aqueles de que um único homem se pode aperceber. A separação destas duas classes obriga simultaneamente à separação entre
o meu eu e o eu dos outros, formando-se assim as abstracções do físico e do psíquico, da sensação interna e da sensação externa, etc. Para uma orientação exaustiva é preciso unir os dois pontos de vista que resultam destas abstracções. A consideração do homem na sua totalidade não pode ser confiada apenas à introspecção ou à fisiologia, exigindo que os dois métodos sejam combinados (Erkennt. u. Irrt., p. 386). 175 A doutrina de Mach assinala o abandono do conceito positivista da ciência. Os dois pontos fundamentais desta doutrina, a saber, a interpretação dos conceitos na sua qualidade de signos e a das leis científicas como instrumentos de previsão, constituem os dois resultados da fase crítica da física que serão mais tarde desenvolvidos pela teoria da relatividade e pela mecânica quântica. § 786. FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS: HERTZ. DITHEM Heinrich Hertz (1857-94) deu também o seu contributo para o desenvolvimento desta fase crítica. Aluno de Hehnholtz e físico eminente Hertz foi autor de uns Princípios de Mecânica (l89) que constituiram uma primeira revisão crítica da mecânica clássica. Aceitando a teoria de **HeIm.holIz e de Mach que atribui aos conceitos o valor de signos, este autor modifica consequentemente o conceito da descrição enquanto tarefa própria das ciências. Afirma Hertz: "formamos imagens ou símbolos dos objectos externos, e a forma que lhes damos é tal que as consequências logicamente necessárias das imagens são invariavelmente as imagens das consequências necessárias dos objectos correspondentes" (Die Prinzipien der Mechanik, intr.). Esta correspondência, que existe não entre símbolos e coisas mas entre as relações dos símbolos e das coisas, torna possível a previsão dos acontecimentos, o que constitui a tarefa fundamental do nosso conhecimento da natureza. Ela garante por outro lado a validade desse conhecimento; 176 e, acrescenta Hertz, "não temos possibilidades de saber se os nossos conceitos das coisas lhes estão adaptados quando estão em causa aspectos para além deste, considerado fundamental" (Ib. intr.). Mas Hertz verifica que, deste ponto de vista, os princípios da ciência não se lhe impõem pela sua evidência, sendo antes escolhidos a fim de tornar possível a organização dedutiva da própria ciência. "Variando a escolha das proposições que consideramos fundamentais, diz o autor, podemos dar várias representações dos princípios da mecânica. Poderemos deste modo obter várias imagens das coisas; poderemos experimentar estas imagens e compará-las umas com as outras, tendo em conta a sua correcção e adequação às coisas" (Ib., intr.). O próprio Hertz serve-se desta liberdade (certamente não arbitrária) de escolha dos princípios de uma ciência ao reconstruir a mecânica partindo das noções de tempo, espaço e massa, relegando para um segundo plano o conceito de forçaO reconhecimento da natureza convencional (portanto não arbitrária) dos princípios da ciência é um dos resultados do desenvolvimento da metodologia científica moderna. A obra de Pierre Dulieni. (1861-1916) aproxima-se da de Mach. Dulicin foi um historiador da ciência (Estudo sobre Leonardo da Vinci, 1906-13; O sistema do mundo, 1913-54) e autor de um estudo sobre A teoria física, o seu objecto e a sua estrutura (1906) em que o carácter altamente convencional da teoria física é esclarecido em todos os
seus aspectos. Esta teoria é para Duliem "não uma explicação mas 177 um sistema de proposições matemáticas, deduzidas de um pequeno número de principlos que pretendem representar do modo mais simples, completo e exacto que seja possível um conjunto de leis experimentais" (Théorie physique, p. 26). Duhern insiste, tal como Mach, no carácter económico da teoria física, mas sublinha também o seu carácter classificativo: realça o carácter simbólico das leis físicas e esclarece um aspecto que a metodologia posterior acabou por confirmar: o de a experiência não poder retirar toda a validade a uma hipótese isolada, só o podendo fazer quando se trate de todo um conjunto teórico 'Ib., p. 301). § 787. ENERGETISMO E VITALISMO A obra dos filósofos-cientistas que examinámos encaminhou a ciência e em particular a física para aquela viragem crítica que devia acentuar-se no terceiro decénio do nosso século. Mas entretanto, não faltaram, mesmo por parte de cientistas, tentativas de utilização da ciência para uma especulação metafísica sobre a natureza. O energetismo e o vitalismo são duas dessas tentativas. O químico Wilhelm, Ostwald (1853-1932), fundador da Química-Física é o grande defensor do energetismo (A energia e as suas transformações, 1888; A crise do materialismo científico, 1895; Lições de filosofia da natureza, 1902; As energias, 1908; Ensaio sobre uma filosofia da natureza (1908); Fundamen178 tos da ciência do espírito, 1909; os grandes homens, 1909; O imperativo energético, 1912; A filosofia do valor, 1913; A moderna filosofia da natureza, 1914; e ainda numerosos escritos sobre a teoria das cores, a cujo estudo Ostwald se dedicou nos últimos anos da sua vida. Aceitando a ideia fundamental de Comte e Mach, Ostwald considera que a ciência não tem outro objectivo que não seja o de prever os acontecimentos futuros. O instrumento desta previsão é o conceito, que resume e conserva os caracteres gerais e constantes da experiência passada e permite assim antecipar a futura. Mas os conceitos científicos são, na maior parte das vezes, conceitos compostos, que resultam de uma escolha e de uma combinação de elementos tirados da experiência; deste modo, o objectivo da ciência pode definir-se como o de "permitir enunciar conceitos arbitrários que, nas condições previstas, possam transformar-se em conceitos experimentais" (Grundriss der Naturaphil., § 12). Esta concepção supõe, naturalmente, que haja um certo determinismo nos factos naturais, que estes se encadeiem causalmente; mas, dado que nós não conhecemos a cadeia causal na sua totalidade, a afirmação de que tudo é determinado e a afirmação oposta, de que há no mundo algo não
determinado que permite o livre arbítrio do homem, conduzem, na prática, ao mesmo resultado; podemos e devemos comportar-nos em relação ao mundo como se este estivesse só parcialmente determinado. Estas ideias coincidem substancialmente com as de Mach. Ostwald tira ainda de Comte o princípio de uma classificação das ciências, ordenadas segundo 179 o grau de abstracção que pressupõem, em três grupos: 1.o Ciências formais: lógica ou teoria do conhecimento, matemática ou teoria da grandeza, geometria ou teoria do espaço, foronomia ou teoria do movimento; 2.o Ciências físicas: mecânica, física, química; 3.11 Ciências biológicas: fisiologia, psicologia, sociologia. O conceito mais geral das ciências formais é o de coordenação ou de função; o conceito mais geral das ciências físicas é o de energ.-a; o das ciências biológicas é o de vida. Na realidade, o conceito que domina tanto as ciências físicas como as ciências biológicas é o de energia. De facto, os seres vivos podem procurar a energia livre de que têm necessidade para garantir a manutenção da vida na energia solar. "Sem este contributo constante, podemos afirmar, pelo menos dentro dos limites dos nossos conhecimentos, que as energias livres teriam atingido há muito tempo um estado de equilíbrio e os sistemas existentes na terra estariam fixos, isto é, mortos" (Ib., § 55). A energia livre, com efeito, é a que escapa à degradação da energia prevista pelo segundo princípio da termodinâmica, constituindo assim o fundamento da vida. Daqui surge a necessidade de administrá-la economicamente; e, para este fim, tanto serve o organismo vivo como servem os processos psíquicos da sensação, do pensamento e da acção, e a organização social. Desite princípio Ostwald deduz também a justificação da tendência político-social para a igualdade entre os homens. A própria descoberta do princípio da energia não tem outro significado senão o de economizar uma certa quantidade de energia para todas as gerações 180 futuras. Com efeito, aquele princípio, ao mostrar que a energia livre (pelo segundo princípio da termodinâmica) diminui necessariamente, comunica aos homens a exigência e os meios de economizá-la o mais possível. Como Ostwald Driesch pretende conciliar uma metafísica com o conceito crítico da ciência; mas trata-se de uma metafísica biológica: o vitalismo. Hans Driesch (1867-1941) foi zoólogo e aluno de Haeckel e, depois, professor de filosofia da natureza em várias universidades alemãs. Os seus escritos mais declaradamente filosóficos são os seguintes: * alma como factor elementar da natureza, 1903; * vitalismo como história e como doutrina, 1906; Filosofia do orgânico, 1909-, Doutrina da ordem, 1912; A doutrina da realidade, 1917; Saber e pensamento,
1919. O ponto de partida da filosofia de Driesch é idealista; mas o seu espírito e as suas conclusões são realistas. A filosofia é "o saber do saber" e tem o seu primeiro fundamento na reflexão autoconsciente, pela qual sei que sei alguma coisa. Mas este primeiro fundamento é já algo ordenado e a explicitação desta ordem é o objectivo da "doutrina da ordem", que é a primeira parte da filosofia (e corresponde à ontologia e à lógica tradicionais). A ordem é objectiva e as suas formas ou condições (categorias, no sentido kantiano) são também objectivas. Por conseguinte, Kant equivocou-se ao considerá-las subjectivas. Driesch modifica e acrescenta a tábua kantiana, acrescentando-lhe a categoria da individualidade, isto é, o conceito do todo e da parte, que é fundamental para o seu vitalismo. Tam181 bém são objectivos o espaço e o tempo, enquanto formas ou condições de ordem. A metafísica de Driesch é o vitalismo. Ela começa, com efeito, onde termina a teoria da ordem, a qual compreende todo o mundo inorgânico, Mas o organismo biológico não é redutível a formas ou a manifestações desta ordem: por outras palavras, não é uma máquina. Além dos factores físico-químicos, o organismo inclui outro factor natural: a enteléquia (isto é, a alma). O vocábulo é aristotélico, mas o conceito é antes platónico: a enteléquia é uma espécie em sentido platónico, um "agente individualizante", que é, porém, supra-individual e supra-pessoal em si mesmo. Não é espacial, ainda que actue somente no espaço; e actua como um factor natural juntamente com os outros, sem nunca contradizer o princípio da conservação da energia, já que só pode suspender ou propor os acontecimentos possíveis. A acção da enteléquia é análoga à do homem. Driesch fala também de outro agente que actua no corpo e o move: o psicóide, que se distinguiria da enteléquia por actuar na experiência enquanto que aquela é o pressuposto dessa mesma experiência. Por exemplo, a enteléquia no homem (o eu) nunca é activa porque é a que tem (isto é, intui) o seu "eU próprio"; o psicóide é o princípio activo, estando o eu fora do tempo enquanto que o psicóide está no tempo (Ordnungslehre, 1923, págs. 316 e segs.). Contudo, os dois factores identificam-se facilmente e a enteléquia acaba por ser considerada por Driesch como uma espécie de mónada no sentido leibniziano, que determina todo o desenvolvimento futuro de tini 1 J2 ser vivo. Um intelecto mais amplo do que o humano poderia predizer todas as acções da enteléquia. Driesch crê que a metafísica nada pode dizer sobre a origem da vida orgânica nem sobre o nascimento e a morte dos indivíduos. Os indivíduos são partes de um ser supra-pessoal e não é possível determinar se têm uma certa margem de existência ou de realidade própria. O que seguramente persiste para além do indivíduo é o saber, que, segundo Driesch, é o único valor real, dado que abarca em si não só o conhecimento científico como também o estético, ético e religioso. Deus não é mais do que um "demiurgo que sabe". Mas a antítese entre panteísmo e
teísmo é insolúvel. Driesch quis utilizar também a enteléquia para explicar os fenómenos do espiritismo nos quais reconheceu o signo de um destino do homem para além do mundo. Mas inclusivamente na parte menos fantástica da sua metafísica é evidente a tendência para transformar as exigências metódicas com que tinha deparado no seu trabalho como biólogo em entidades metafísicas que aquelas ex-jgências não podem fundamentar. § 788. FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS: MEYERSON Émile Meyerson (1859-1933) apresenta-nos nas suas obras não uma metafísica científica mas uma interpretação da ciência apoiada numa vastíssima cultura científica e filosófica: Identidade e realidade, 1908-, A educação relativista, 1925; A explicação, nas ciências, 1927; O caminho do pensamento, 3 veis., 183 1931. Segundo Meyerson, ciência e filosofia têm o mesmo ponto de partida, isto é, o mundo da percepção, e o mesmo ponto de chegada, o acosmismo, empregando ainda o mesmo mecanismo fundamental da razão. As análises de Meyerson tratam especialmente deste mecanismo. A sua tese básica é a de que só a identidade do ser consigo mesmo, tal como foi concebida por Parménides, é perfeitamente homogénea com a razão e permeável por ela; e que, por conseguinte, toda a explicação racional é uma identificação da diversidade que consiste na redução da multiplicidade e da constante modificação que nos são dadas pela experiência, à identidade e à imutabilidade. Meyerson procura mostrar, servindo-se de um vastíssimo material científico, que tal é, em primeiro lugar, o processo de facto utilizado pela razão tanto no senso comum como na ciência ou na filosofia, e que, em segundo lugar, tal deve ser, por direito próprio, não havendo outro critério ou medida de inteligibilidade. O conceito de coisa, de que têm necessidade tanto o senso comum como a ciência, é um caso de identificação da diversidade sensível. O conceito de causa é um segundo caso fundamental, já que toda a explicação causal tende, segundo Meyerson, a identificar, no limite, o efeito com a causa. Explicar as causas de um fenómeno significa demonstrar que, de certo modo, ele pré-existe na sua causa, isto é, que há uma identidade substancial entre causa e efeito (Identité et Réalité, 1926, p. 38). A superioridade explicativa das hipóteses mecânicas e das teorias quantitativas da natureza relativamente às qualitativas reside precisamente no facto de tor184 nar mais fácil a identificação. O relativismo de Einstein, conduzindo à resolução da realidade física no espaço, leva o processo de identificação muito para além do mecanismo. A esse processo se devem os princípios fundamentais da física, isto é, o da inércia e o da conservação da matéria e da energia. Com efeito, estes princípios não são aceites a partir da sua
verificação experimental, que é necessariamente imperfeita ou parcial, mas apenas por serem expressões do princípio de causalidade enquanto identidade das coisas no tempo. No entanto, a ciência encontra neste processo de identificação obstáculos ou pontos de paragem que constituem verdadeiros irracionais. A redução dos fenómenos ao esquema da identificação, implicando a negação do tempo, leva a considerar os fenómenos como reversíveis; e assim os considera, com efeito, a mecânica racional. Mas o segundo princípio da termodinâmica (Carnot-Clausius) não admite esta reversibilidade. O calor nunca passará naturalmente de um corpo menos quente para um mais quente; isto estabelece uma ordem irreversível dos fenómenos naturais. Ora o princípio de Carnot-Clausius, diferentemente dos outros princípios da física, baseia-se exclusivamente em factos da experiência; daí a sua falta de plausibilidade e a tentativa que sempre se fez para negá-lo substancialmente e estabelecer a reversibilidade e a identidade dos fenómenos. Mas esta tentativa é impossível devido à presença daqueles irracionais que a ciência encontra a cada passo. Um deles é a sensação, com a sua natureza de dado último e irredutível; outros serão a acção recíproca 185 dos corpos, os estados iniciais de que partem os sistemas de energia, a dimensão absoluta das moléculas, etc. A existência de tais irracionais é tão essencial à ciência como a sua tendência para a identificação. Mas só esta tendência constitui a racionalidade própria da ciência: racionalidade que nunca é identidade analítica, mas identidade sintética, isto é, identificação. Isto é evidente na matemática, cujo método consiste em reconhecer a identidade de certos termos sob certas condições que ou são estabelecidas pelas convenções iniciais ou são dadas por outros teoremas. O esquema de identificação é próprio da ciência, porque é próprio da razão humana: mesmo a filosofia não pode fazer mais do que se,-,,ú-lo. Meyerson crê que é completamente ilusória a pretensão da lógica de Hegel de subtrair-se à exigência da identidade. O procedimento de Hegel confirma esta exigência, já que considera o movimento da Ideia como um desenvolvimento mediante o qual se revela o q!1e está presente em si; este em si não é mais do que a virtualidade ou potencialidade que, mostrando o consequente já contido no antecedente, tende a estabelecer a identidade dos dois termos (De 1'explicai.'on dans les sciences, p. 324). A única diferença entre ciência e filosofia consiste em que a filosofia tenta alcançar, de repente e completamente, a identidade que a ciência só realiza parcial e provisoriamente. Por outras palavras, a filosofia não pode reconhecer os elementos irracionais aos quais a ciência se adapta: tal reconhecimento seria para ela um suicídio. Mas a unidade da ciência e da filosofia é substancial e 186 profunda. Os filósofos devem ter em conta não os resultados da ciência mas os seus métodos e a sua atitude relativamente ao mundo externo; e os cientistas não podem deixar de entrar no campo da metafísica quando se elevam a uma concepção geral. A unidade da ciência e da filosofia é a própria unidade da razão como procedimento ou esquema de identificação.
A doutrina de Meyerson pode ser considerada como sendo, mais do que um contributo para uma nova metodologia, urna crítica ou redução ao absurdo da velha metodologia baseada na explicação causal, entendendo esta como uma explicação racional dos fenómenos. Na realidade, a ciência contemporânea abandonou este ideal de explicação e optou pelo recurso à mera descrição dos fenómenos de que falava Newton e toda a ciência, setecentista; tal como optou pela exigência de previsão que prevalecera nas concepções de Mach e Hertz e que suplantaram definitivamente quaisquer outras concepções no decorrer dos mais modernos desenvolvimentos da própria ciência. § 789. FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS: O DESENVOLVIMENTO CRÍTICO DA GEOMETRIA A doutrina de Mach pode ser considerada como a primeira manifestação da nova filosofia das ciências que acompanhou o desenvolvimento crítico das ciências físicas e matemáticas. Poderemos fazer corresponder o início deste desenvolvimento à descoberta das geometrias não-euclideanas. 187 As tentativas de demonstrar o V postulado de Euclides (ou postulado das rectas paralelas: "por um único ponto só se pode fazer passar uma recta paralela a outra recta dada") tinham, nos fins do século XVIII, feito entrever a possibilidade de construir geometrias que não se baseassem naquele postulado. C. F. Gauss (1777-1859) afirmou, cerca de 1830, que uma geometria não-euclideana não tem em si nada de contraditório e pode ser desenvolvida com o mesmo rigor e a mesma amplitude da euclideana. O russo N. 1. Lobachevsky (1793-1856) e o húngaro G. Bolyai (1802-60), construíram teorias geométricas não-euclideanas e perfeitamente coerentes. E B. Riemann (1826-66), numa memória publicada em 1855 (Sobre as hipóteses que estão na base da geometria), fazia notar como, variando convenientemente o postulado V, se pode obter não só a geometria de Euclides e a de Lobachevsky e Bolyai como ainda uma terceira geometria, à qual mais tarde foi dado o nome deste autor. O postulado V de Euclides afirma que por um ponto só pode passar uma recta paralela a uma outra; de acordo com a geometria de Lobachevsky e de Bolyai podem passar por tal ponto um número infinito de rectas paralelas à recta dada; segundo Riemann, não existe nenhuma recta paralela a outra, o que dá lugar a uma geometria simétrica e oposta à de Lobachevsky e Bolyai. Estes desenvolvimentos mostram que as proposições fundamentais da geometria não são axiomas ou verdades evidentes mas sim meras hipóteses que podem ser escolhidas a fim de se alcançar uma maior particularização ou uma mais vasta generalização do problema em estudo. 188 Nesta segunda via, podemos referir as investigações de Felix Klein (1849-1925), que se encontram expostas no seu célebre Programa de Erlangen (1872) e que relacionam a geometria com a "teoria dos grupos" mostrando que "toda a geometria se resume no
estudo das propriedades invariantes relativamente a um grupo de transformações", entendendo-se por tal grupo um conjunto de transformações no qual está associada a cada transformação a sua inversa, isto é, a que destrói os efeitos da primeira. Deste ponto de vista, as propriedades geométricas dependem do grupo de transformações que se consideram fundamentais; e esta questão tornou-se ainda mais ampla com o aparecimento da tipologia, a qual estuda as propriedades invariantes relativamente ao grupo muito geral das transformações contínuas. Foi deste modo que a geometria assumiu uma grande generalidade, incluindo em si vários sistemas independentes uns dos outros. Quando apareceram as geometrias não-euclideanas contestava-se que todas elas tivessem o mesmo valor e esperava-se que a experiência fornecesse o critério para determinar qual das várias geometrias era verdadeira; verificou-se no entanto que os métodos e os instrumentos de medição já pressupunham a escolha de uma determinada geometria. Tornou-se pois necessário renunciar ao conceito de verdade da geometria enquanto correspondência entre ela e a realidade empírica. Admite-se hoje que a escolha de uma determinada geometria para o estudo de qualquer problema relacionado com as ciências naturais e com a vida se efectua atendendo apenas a meras questões de como189 didade. Nenhuma geometria é mais "verdadeira" do que outra, mas todas elas têm uma verdade (ou validade) lógica devida à coerência intrínseca da sua linguagem. Estes resultados permitiram a Hilbert (§ 794) dar à geometria aquela forma axiomática que se tornou mais tarde o ideal das ciências formais ou formalizáveis (Os fundamentos da geometria, 1899), e relacioná-la, por esta via, com as matemáticas. Poderemos então resumir os resultados da viragem crítica da geometria do seguinte modo: 1) o objecto da geometria não é constituído pelas propriedades necessárias de um dado espaço (fornecido por uma "intuição pura" kantiana ou por qualquer órgão), mas sim pelas propriedades que se podem considerar invariantes relativamente a um qualquer grupo de transformações, cuja escolha determina o carácter e o grau de generalidade da própria geometria; 2) os princípios defendidos por uma dada geometria não são evidentes nem necessários, resultando de uma mera escolha e valendo apenas como hipóteses que podem sempre ser modificadas; 3) tais hipóteses constituem regras que guiam a dedução e definem a sintaxe da linguagem geométrica. § 790. POINCARÉ A teoria gnoseológica do matemático e astrónomo francês Henri Poincaré (1854-1912) encontra-se ligada à primeira fase do desenvolvimento da geometria não-euclideana. Os escritos epistemológicos de Poin-
190 caré estão recolhidos nos seguintes volumes: A ciência e a hipótese (1902); O valor da ciência (1905); Ciência e método (1909); últimos pensamentos. (1913). Poincaré reconhece plenamente o carácter convencional dos postulados geométricos. "Os axiomas geométricos -diz (La Science et l'Hypothèse, p. 66) não são juízos sintéticos a priori nem factos experimentais: são convenções. A nossa escolha entre todas as convenções possíveis é guiada por factos experimentais, mas é livre e está limitada somente pela necessidade de evitar a contradição. Deste modo, os postulados podem continuar a ser rigorosamente verdadeiros mesmo quando as leis experimentais que determinaram a sua adopção são só aproximadas". A relação com a experiência é, contudo, necessária em geometria, que Poincaré considera ligada à existência dos corpos sólidos da natureza. A experiência fornece as primeiras indicações à geometria e esta ocupa-se posteriormente com o estudo de corpos sólidos ideais, absolutamente invariáveis, que são imagens simplificadas e muito diferentes dos sólidos naturais (Ib., p. 90). Os postulados da geometria são, pois, na sua função lógica, análogos às hipóteses das ciências da natureza. Toda a hipótese é uma generalização de algum teorema ou de alguma observação particular; e o carácter matemático da hipótese deve-se ao facto de todo o fenómeno observável ser o resultado de uma sobreposição de um grande número de fenómenos elementares semelhantes, tornando possível o uso das equações diferentes. (Ib., p. 187). O espaço matemático é certamente uma construção que não encontra correspondência exacta no espaço per191 cebido; mas os materiais desta construção são sempre fornecidos pela própria experiência e, além disso, a escolha entre uma ou outra construção matemática (por exemplo, entre o espaço a quatro e o espaço a três dimensões) só pode fazer-se segundo as indicações da experiência (La valeur de Ia science, p. 132). Por isso o método matemático não pode desprezar a intuição. Ele começa sempre por uma imagem intuitiva que serve depois para construir um sistema complexo de desigualdades que reproduz todas as suas linhas. Depois de terminada a construção, a representação grosseira que lhe tinha servido de apoio é rejeitada por se ter tornado inútil. Contudo, "se a imagem primitiva tivesse desaparecido totalmente da nossa mente, como poderíamos adivinhar qual o motivo porque todas as desigualdades se uniram daquele modo umas com as outras?" (La valeur de la science, p. 28). A intuição e a lógica são, pois, igualmente indispensáveis. "A lógica, que é a única que pode garantir a certeza, é o instrumento da deMonstração; a intuição é o instrumento da invenção. Poincaré recusa-se a reconhecer a qualquer ciência um carácter meramente convencional e polemiza contra a defesa desta tese feita por Le Roy. É impossível atribuir à ciência apenas um valor prático, pois este deriva da sua capacidade de previsão; e, se se reconhece que estas previsões são exactas, é necessário também reconhecer que têm valor teórIco (Ib., p. 234). Por outro lado, o cientista não é, como crê Le Roy, o "criador" do facto científico. Ele não faz mais do que traduzir um facto bruto para uma linguagem cómoda e é, portanto, o criador desta 192
linguagem, mas não do facto originário que é o seu ponto de partida. As leis científicas têm um valor objectivo; e a sua objectividade baseia-se no facto de que, mesmo quando são livremente elaboradas pelo espírito humano numa linguagem apropriada, se referem a uma realidade que é comum a todos os seres pensantes e que constitui o sistema das suas relações. "A ciência-diz Poincaré (Ib., págs. 265-266) - é, antes de tudo, uma classificação, um modo de aproximar os factos que as aparências separam, se bem que eles se encontrem ligados por algum parentesco natural e oculto. A ciência, por outras palavras, é um sistema de relações. Portanto, só nas relações se deve procurar a objectividade; seria inútil procurá-las nos seres considerados isoladamente uns dos outros". Estes últimos aspectos vinculam Poincaré a Kant e, principalmente, aos neo-kantianos, para os quais, precisamente, o único fundamento da objectividade científica é a relação. E Poincaré inspira-se também em Kant ao contrapor à realidade de facto da ciência o dever ser da vida moral. A ciência só fala no indicativo: não pode, pois, dar lugar a imperativos morais; contudo, não implica nada que seja contrário à moral. Esta move-se num outro horizonte, o da liberdade; e é impossível ao homem não agir como homem livre, quando age, do mesmo modo que lhe é impossível não raciocinar como um determinista quando faz ciência (Dernières pensées, p. 246). Por outro lado, a própria ciência é, indirectamente, fonte de moralidade, enquanto inspira o amor desinteressado pela verdade e habitua os homens a tra193 balhar pela humanidade, obrigando-os a um labor colectivo e solidário que dura e se acumula através dos séculos (Ib., págs. 232-233). § 791. O DESENVOLVIMENTO CRíTICO DA FíSICA. A RELATIVIDADE No domínio da física, a fase crítica surgiu com a teoria relativista de Albert Einstein (1879-1955). Esta teoria tornou-se necessária com o aparecimento de factos experimentais contraditórios com os princípios até então aceites pela ciência; mas o próprio Einstein declarou que "o tipo de raciocínio crítico" de que se serviu ao formular as suas concepções foi recolhido nos escritos filosóficos de Hume e de Mach (A. Einstein, cientista e filósofo, trad. ital., p. 29). A constância da velocidade da luz, verificada por repetidas medições experimentais, era um facto contraditório com toda a mecânica clássica; dado que esta afirma que as velocidades dos corpos que se movem em direcções opostas se adicionam, a luz proveniente dos longínquos astros de que a Terra se aproxima deveria viajar mais rapidamente do que aquela que é irradiada pelos astros de que nos afastamos. A constância da velocidade da luz levou Einstein a pensar numa possível deformação dos instrumentos de medida (réguas e relógios) que se encontram animados de um movimento muito rápido; e induziu-o a introduzir na física, pela primeira vez, a consideração crítica desses instrumentos e até das possibili194 dades do observador. Os procedimentos e os métodos de medida, assim como a própria acção do observador, entraram deste modo pela primeira vez na verdadeira análise científica. Enquanto que a física clássica prescindia deste tipo de problemas e podia assim pressupor a existência na realidade de características e determinações não passíveis de medida e
observação efectivas, a física relativista afirmou a necessidade de realizar observações em todos os casos e de renunciar à atribuição a um objecto físico de determinações que não resultassem de observações suficientemente explícitas. Os resultados desta consideração crítica da ciência (crítica na medida em que se efectuou sobre os próprios métodos de indagação de que ela se serve) constituem a chamada relatividade restrita, formulada por Einstein. em 1905. A sua primeira afirmação é a de que a distância espacial ou temporal não é uma entidade ou um valor em si, sendo antes relativa ao corpo que se escolhe como sistema de referência; e a segunda nega a existência de um sistema de referência absoluto ou privilegiado. Segundo estes princípios, quaisquer acontecimentos que sejam "simultâneos" relativamente a um dado sistema de referência não o são num outro sistema que se encontre em movimento em relação ao primeiro; a simultaneidade, e com ela a distância espacial e temporal, torna-se relativa ao sistema de referência que é escolhido, tornando-se relativos todos os conceitos em que entrem determinações espacio-temporais (comprimento, volume, massa, aceleração, etc.). A teoria da relatividade admite ainda a existência de leis, expres- 195 sas por equações diferenciais, que permitem passar de um sistema de referência para outro. Nestas condições, modifica-se o próprio objecto da ciência. A uniformidade em que ela se baseia não é a uniformidade do fenómeno mas sim a das leis físicas que permitem relacionar fenómenos percebidos de forma diferente. A teoria da relatividade reconhece portanto a variabilidade de um fenómeno que é apercebido por diferentes observadores, mas tende a estabelecer a invariância das leis que se referem a tais fenómenos, transferindo assim a própria noção de objectividade dos fenómenos para as leis. Por outro lado, o uso das equações diferenciais em lugar daquelas com que normalmente operava a física clássica é sugerido, na teoria da relatividade, pelo facto de aquelas equações serem menos categóricas ou mais genéricas: a invariância (e com ela a objectividade) verifica-se assim a um nível menos específico e num grau menos rigoroso do que na física clássica. Em 1912, Einstein alargou a aplicação destes conceitos, passando dos referenciais de inércia, aos quais se referia a primeira forma da relatividade, para os sistemas gravitacionais. A relatividade generalizada é uma teoria da gravitação que torna inútil a hipótese da força de gravidade tal como foi admitida por Newton e que explica os movimentos dos corpos utilizando a acção de curvatura do espaço-tempo, segundo a qual todos os corpos seguem no seu movimento uma trajectória curva, constituindo esta o caminho mais curto, dada a curvatura da região que atravessam. Esta curvatura é medida por expressões em que entram um certo número de coefi196 cientes cujos valores no espaço vazio são iguais a zero. O mais importante destes coeficientes é a massa, a qual gera a deformação do espaço-tempo que determina o fenómeno da gravidade. A relatividade generalizada utiliza uma noção de espaço diferente daquela que é aceite pela
geometria euclideana: a noção abstracta ou generalizada que foi descrita por Riemann (§ 789). É esta a primeira vez que a geometria não euclideana é utilizada para a interpretação da realidade física. Surge ainda em primeiro plano o conceito de campo, que fora elaborado a propósito dos estudos de electricidade e que Einstein aplica à interpretação de toda a realidade física. A noção de campo implica o desaparecimento da diferença entre matéria e energia, na qual se baseava toda a física clássica. A interpretação relativista tende a considerar os próprios corpos como "densidades de campo" especiais, a fim de eliminar * diferença qualitativa entre matéria e campo e de * substituir por uma diferença meramente quantitativa. A física relativista afasta-se totalmente, com este conceito, da representação da natureza que é própria da percepção e do senso comum. O "campo" não se assemelha a nenhuma coisa perceptível; é uma construção conceptual cuja utilidade para a interpretação matemática da natureza é enorme mas cuja base representativa ou perceptiva é praticamente nula. Eis o que afirma Einstein acerca disto: "Antes de Maxwel], todos concebíamos a realidade física, na medida em que se pensava que esta representava os fenómenos naturais, sob a forma de pontos materiais cujas únicas variações consistiam em mover-se se197 gundo trajectórias definidas por equações diferenciais e derivadas parciais. Depois de Maxwell, todos conceberam a realidade física sob a forma de campos contínuos, não explicáveis mecanicamente e sujeitos igualmente a equações diferenciais a derivadas parciais. Esta modificação na concepção da realidade é a mais profunda e frutífera que surgiu na física desde os tempos de Newton; mas ainda, somos forçados a admitir que a questão não está completamente resolvida" (The World as I see it, 1934, p. 65). § 792. A FÍSICA DOS QUANTA Como dissemos, a viragem crítica que é pressuposta pela teoria da relatividade consiste no facto de a esta teoria ser indispensável a consideração das condições que possibilitam o processo de observação. Este ponto teve ulterior confirmação no desenvolvimento da física atómica, a qual tem por objecto de estudo as partículas que resultam da desintegração do átomo. À escala atómica, com efeito, demonstrou-se que a observação de um fenómeno modifica o próprio fenómeno de forma imprevisível. A energia utilizada na observação (por exemplo, a luz) não pode ser inferior a uma certa quantidade mínima (o quantum de energia ou constante h, descoberta por Max Planck em 1900); e esta energia é suficiente para modificar o fenómeno observado. Daqui resulta que toda a observação que tenha por fim determinar a posição de uma partícula atómica modifica a velocidade dessa partícula ou, inversamente, toda a 198 determinação da velocidade modifica a posição, dado que não é possível determinar simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula qualquer. Se se determina a velocidade a posição fica indeterminada, isto é , não é possível prevê-Ia de modo rigoroso. É este o conteúdo do princípio de incerteza enunciado por Werner Heisenberg em 1927. Heisenberg escreveu: "Na interpretação de algumas experiências considera-se a interacção entre objecto e observador, que é necessariamente inerente a todas as observações. Nas teorias clássicas considerava-se esta interacção como sendo demasiado pequena ou de tal
forma controlável que a sua influência podia ser eliminada através dos cálculos. Na física atómica isto já não é admissível porque, devido à descontinuidade dos fenómenos atómicos, toda a interacção pode produzir variações parcialmente incontroláveis e relativamente graves" (Die physikalischen Prinzipien der Quantentheorie, 1930). Consequentemente, o comportamento futuro de uma partícula só pode ser objecto de previsões prováveis que se baseiam em estatísticas adequadas, mas não de previsões rigorosas. Deste modo, o determinismo foi expulso da ciência; e até mesmo o princípio de causalidade, que era considerado o fundamento da explicação científica, tanto pela ciência como pela filosofia do século XIX, foi posto em discussão. Com efeito, não há dúvida de que a interpretação rigorosa do princípio de causalidade inclui o determinismo, na medida em que nele se admite a possibilidade de previsão infalível de acontecimentos futuros. Pierre Simon Laplace 199 (1749-1827) exprimira por palavras célebres o ideal determinista da ciência: "Devemos considerar o actual estado do universo como sendo o efeito do estado anterior e a causa daquele que se seguirá. Uma inteligência que, num dado instante, conhecesse todas as forças que animam a natureza e a situação dos seres que a compõem e que fosse suficientemente desenvolvida para submeter todos estes dados ao cálculo, colocaria numa mesma fórmula não só os movimentos dos maiores corpos do universo como também o do mais leve átomo: nada seria incerto para ela e tanto o futuro como o passado seriam presente, aos seus olhos" (Théorie analytique des probabilités, 1820). A física dos quanta desmentiu este ideal. Não pode haver previsão infalível, e a razão deste facto não reside numa imperfeição dos meios de observação ou de cálculo em poder do homem mas sim na influência imprevisível que tais meios podem ter sobre os fenómenos observados. Niels Bohr, o físico dinamarquês (nascido em 1885) a quem a mecânica quântica deve os seus mais fecundos aprofundamentos, enunciou em 1928 o chamado "princípio de complementaridade", segundo o qual a descrição espacio-temporal e a causalidade clássica são dois aspectos "complementares" dos fenómenos que se excluem mutuamente. Este princípio traduzia o reconhecimento da impossibilidade de separar o comportamento dos objectos atómicos da influência que sobre eles exerce a observação (isto é, das condições em que se manifestam), excluindo assim a hipótese de a física poder descrever uma cadeia causal necessária de acontecimentos. Esta conclusão 200 tornou-se, no entanto, um dos mais importantes assuntos de discussão entre os cientistas. A fim de salvaguardar o determinismo rigoroso, Max Planck (1858-1947), o descobridor dos quanta, recorria à hipótese da existência de um espírito ideal que, diferentemente do homem, não faria parte da natureza nem sentiria os efeitos das suas leis, podendo conhecê-la sem a influenciar (Der Kausalbegriff in der Physik, 1932). Como é óbvio, esta hipótese não pode ser refutada nem verificada; como tal, é estranha à física moderna. Um outro físico, Von Neumann, escrevia em 1932: "Actualmente, nem a razão nem a
experiência nos permitem afirmar a existência de uma causalidade na natureza" (Les fondements mathématiques de Ia mécanique quantique, p. 224). Isto não significa evidentemente que se tenha reconhecido a "liberdade" ou o arbítrio como dominantes na natureza. O fim do determinismo rigoroso, tal como foi expresso na formulação clássica do princípio de causalidade, não releva de uma vitória do "indeterminismo" mas sim do início da elaboração de novos esquemas explicativos nos quais a relação necessária entre os acontecimentos é substituída pelas relações possíveis e pela consideração e cálculo dos seus respectivos graus de possibilidade, isto é, pela sua probabilidade relativa. Se bem que alguns cientistas tenham efectuado extrapolações indeterministas ou espiritualistas a partir destes conceitos da física moderna, não podemos duvidar de que esta mesma física não autorize especulações deste género, dirigindo-se até para a elaboração de um conceito de "indeterminismo" mais ágil e articulado e simulta201 neamente mais eficaz para a previsão dos fenómenos. A crise do princípio de causalidade (ou da sua forma clássica) é acompanhada, na física quântica, pela crise do próprio ideal científico tal como foi concebido desde os primórdios da ciência até à idade moderna: o da descrição da natureza. Vimos anteriormente como o conceito de descrição foi contraposto, de Newton em diante, ao de explicação global da natureza baseada em "hipóteses". O conceito de descrição serviu na ciência dos séculos XVIII e XIX para libertar a ciência das suas superestruturas metafísicas e, simultaneamente, para acentuar o carácter experimental ou de observação. Mas é a própria possibilidade de uma descrição da natureza, isto é, do decurso objectivo dos fenómenos, que foi posta em causa pela física quântica. De facto, não é possível reconstituir, por exemplo, o comportamento global de uma partícula considerada individualmente, dado que a probabilidade estatística não se aplica a um único objecto mas sim a um conjunto de objectos idênticos. "A física quântica prescinde das leis individuais referentes às partículas elementares e formula directamente leis estatísticas traduzindo O compotamento dos grupos de partículas. Não nos podemos basear na física dos quanta para descrever a posição e a velocidade de uma partícula elementar ou para prever o seu percurso tal como acontecia na física clássica. A física quântica trata unicamente dos grupos de partículas e as suas leis são apenas válidas para esses grupos e não para partículas isoladas" 202 (Einstein-Infeld, The Evolution of Physics, trad. ital., págs. 293-94). Já na teoria da relatividade a noção de espaço deixou de ter qualquer relação com o espaço da percepção, sendo posta em relevo a noção de campo, que não corresponde a uma realidade física mas a uma construção conceptual que torna possíveis certas operações de medida e de observação. Na física quântica, este assunto torna-se ainda mais complexo. Os corpúsculos e as ondas de que aí se fala perderam o carácter da realidade física. Einstein disse acerca desta questão que: "Os campos de ondas de De Broglie-Schrõdinger não
devem ser interpretados como uma descrição matemática da forma como um acontecimento se processa no tempo e no espaço, ainda que se refiram a esse acontecimento. São antes uma descrição matemática daquilo que podemos realmente saber sobre os sistemas. Servem apenas para apresentar enunciados estatísticos e previsões referentes aos resultados de todas as medições que não podemos efectuar... A teoria dos quanta não nos fornece um modelo de descrição dos acontecimentos reais do espaço-tempo mas apenas a distribuição da probabilidade pelas medidas possíveis em função do tempo" (Conceptions scientifiques morales et sociales, págs. 120-22). E Dirac, um outro fundador da mecânica quântica, escreveu: "0 único objectivo da física teórica é o de calcular resultados que se possam comparar com a experiência, sendo inútil fornecer-se uma descrição satisfatória do desenvolvimento global do fenómeno" (Principles of Quantum Mechanics, 1930, p. 7). 203 Deste ponto de vista, entrou em crise o próprio conceito de "realidade física", a qual foi diferentemente interpretada pelos físicos. Podemos actualmente distinguir duas interpretações fundamentais. A primeira foi fornecida por Niels Bohr e por aqueles que nele se inspiraram, e afirma que o conceito de realidade física deve incluir as condições que tornam possível a observação da própria realidade. Deste ponto de vista, a influência exercida pela observação sobre o comportamento futuro de um sistema faz parte do próprio sistema físico (Discussione epistemologica con Einstein, in Einstein, editado por Schilpp, trad. ital., págs. 182 -e segs.). Sendo assim, a mecânica quântica não é incompleta ou provisória (exceptuando os problemas insolúveis que nos apresenta), estando antes destinada a desenvolver-se na direcção já tomada. A outra interpretação foi fornecida pelo próprio Einstein, que se mantém fiel ao conceito tradicional da realidade física como conjunto de entidades individuais cujas características seriam independentes da observação. "Não posso deixar de confessar que só atribuo uma importância transitória à interpretação quântica. Creio ainda na possibilidade de um modelo da realidade, creio numa teoria que represente as próprias coisas e não uma simples probabilidade de ocorrência das suas manifestações" (On the Method of Theoretical Physics, 1933). E na resposta aos seus críticos (no livro editado por Schilpp que anteriormente citámos,) afirma: "Aquilo, que não me satisfaz nesta teoria, em princípio, é a sua atitude relativamente àquilo que me parece ser o objectivo 204 máximo da própria física: a completa descrição de qualquer situação real (individual) que se suponha poder existir independentemente de qualquer acto de observação ou verificação" (A. Einstein, cit., p. 611). No entanto, não é previsível actualmente a ocorrência de uma viragem conceptual que reporte a física ao ideal descritivo da física clássica ou ao seu determinismo. Podemos recapitular do
seguinte modo os resultados fundamentais da viragem crítica da física nos últimos decénios: 1) A consideração crítica dos processos de investigação e das suas condições de uso, passou a fazer parte integrante da própria investigação. 2) A objectividade da física não consiste na sua referência a uniformidades percebidas ou perceptíveis, a uniformidades causais, mas na sua referência a uniformidades conceptuais, isto é, a construções ou leis matemáticas. 3) As entidades de que se fala na física não são "coisas" no sentido vulgar do termo, isto é, não se aplicam a elas os modos de ser e de comportamento que na linguagem comum são atribuídos às coisas; a sua "existência é definida implícita ou explicitamente pelos processos utilizados na física. 4) A linguagem da física não é necessariamente valorizada pela linguagem comum, não sendo tão pouco um substituto ou uma correcção desta linguagem. 5) As explicações dadas pela física não têm uma natureza determinista mas sim probabilística, isto é, são explicações condicionais. 205
§ 793. ESPIRITUALISMO E EMPIRISMO O desenvolvimento tido pela física nos primeiros decénios do nosso século foi objecto das mais díspares interpretações filosóficas. Duas destas interpretações, devido ao seu carácter manifestamente contraditório, podem ser consideradas típicas: a espiritualista e a empirista. A interpretação espiritualista teve como principal defensor o astrónomo e físico inglês Arthur Stanley Eddington (1882-1944). As suas obras mais importantes sobre este assunto são A natureza do mundo físico (1928) ;e A filosofia da ciência física (1939). Eddington defende uma gnoseologia idealista e uma metafísica espiritualista. A gnoseologia idealista, segundo as suas afirmações, baseia-se no facto de a ciência física reconhecer, nas suas fases mais recentes, que trabalha num "mundo de sombras" perante o qual a única realidade sólida é a que o homem pode colher em si mesmo, na sua consciência. Por esta razão, a única definição possível da realidade é aquela que a identifica com o "conteúdo da consciência". Mas dado que todo o conteúdo da consciência é somente um ponto de vista particular e que as consciências são muitas, a coincidência parcial dos seus conteúdos constitui um campo comum de experiências, o chamado "mundo externo". "0 mundo externo da física, afirma Eddington, é assim um conjunto de mundos apresentados sob diferentes pontos de vista" (The Nature of the Physical World, trad. ital., P. 318). É esta precisamente a posição de Leib206
niz. O mundo de que fala a ciência, por ser constituído por símbolos e fórmulas matemáticas, é deste ponto de vista a sombra ou o símbolo do mundo real constituído pela comunidade dos espíritos, e se a ciência se fecha na sombra, é o misticismo que deve atingir a verdadeira substância do próprio mundo. Esta visão espiritualista, que aliás tem muito pouca coerência por afirmar que "o mundo externo" seria um mundo físico, isto é, um mundo dos símbolos, mas também um mundo real constituído de acordo com as consciências, não resiste à análise da ciência moderna, segundo a qual a ciência reencontraria no mundo aquela ordem que ela própria lhe atribuiu. A obra da ciência seria deste modo a de uma "mente" demiúrgica. Eddington. afirma: "devido ao seu poder selectivo, a Mente enquadrou os fenómenos da natureza num sistema de leis que segue um modelo em grande parte escolhido pela própria ciência; ao descobrir este sistema de leis, pode-se dizer que a Mente recuperou da Natureza aquilo que ela própria lá tinha posto" (Ib., p. 276). Eddington insiste neste " subjectivismo selectivo" segundo o qual as leis fundamentais da natureza seriam subjectivas, isto é, tautológicas e necessárias, impostas à natureza pelas exigências da Mente cognoscente e aceites por essa mesma natureza na medida em que ela não é estranha à Mente que lhas impõe. É a segunda obra, mais estritamente epistemológica e intitulada A filosofia da ciência física, que insiste sobretudo nestes aspectos da sua doutrina. Podemos referir uma outra interpretação da física apresentada pelo físico americano Percy Williams 207 Bridgman (nascido em 1882), expôs as suas ideias numa obra intitulada A lógica da física moderna (1927) e as aprofundou em escritos posteriores (A natureza da teoria física, 1936; Reflexões de um físico, 1950; A natureza de alguns conceitos físicos, 1952). Bridgman parte de uma defesa do empirismo radical. "A atitude do físico, afirma, deve ser empirista. Não deve admitir qualquer princípio a priori que determine ou limite a possibilidade de novas experiências. A experiência é apenas determinada pela própria experiência" (The Logic of Modern Physics, trad. ital., p. 23). Ora a única maneira de fazer da experiência o guia de si mesma consiste em reduzir o significado dos conceitos científicos a uma certa operação empírica ou a um conjunto de tais operações. O conceito de comprimento, por exemplo, deve ser considerado como sendo meramente indicativo das operações físicas através das quais se pode determinar o comprimento (Ib., p. 25). O carácter operatório dos conceitos responde, segundo Bridgman, à exigência apresentada pela teoria de Einstein segundo a qual conceitos como simultaneidade" não têm sentido senão relativamente a operações de medida efectivamente realizadas (The Nature f Physical Theory, págs. 9 e segs.). Bridgman admite, no entanto, que a redução do significado do conceito a operações empíricas implica um certo "solipsismo", pelo facto de as operações em causa serem sempre partes da experiência consciente de um certo indivíduo (Ib., p. 14). Mas trata-se de um solipsismo que não encerra o sujeito no seu isolamento, pois pode afirmar a
existência da coisa externa (que é apenas uma parte 208 da sua experiência directa) e verifica que os outros reagem de determinado modo a tal experiência (Ib., págs. 14 e segs.). A própria noção de "existência" tem ,geralmente um significado operatório. "Ao tentar resolver os meus problemas de adaptação ao ambiente eu invento certos artifícios que utilizo no meu pensamento. A existência é um termo que pressupõe o sucesso de alguns destes artifícios. Os conceitos de tábua, nuvem ou estrela permitem-me pensar sobre certos aspectos da minha experiência; lo-0, eles existem". É no mesmo sentido que se pode afirmar a existência do conceito de número, cuja exigência fundamental é que o seu uso não conduza a contradições, isto é, que seja "possível" (Ib., p. 51). Quando, porém, não se consegue estabelecer mediante qualquer operação a existência ou não existência de uma dada relação, tal como acontece com certas relações matemáticas, é necessário reconhecer, segundo Bridgman, que o princípio do terceiro excluído não é aplicável e, então, não é possível afirmar ou negar a existência da relação. Deste ponto de vista, a relatividade do conhecimento torna-se uma conclusão inevitável e óbvia. "Todos os movimentos são relativos" significa que "não se encontrou nenhuma operação de medida do movimento que torne possível uma descrição simples do comportamento da natureza e que não dependa do observador que a realiza" (The Logic of Modern Physies, cit., p. 42). Por outro lado, perdem todo o sentido as questões a que não se pode dar uma resposta mediante uma qualquer operação. O operativismo não exclui a possibilidade de uso de cons209 truções conceptuais que não sejam dadas pela experiência. Deve apenas recusar-lhes uma realidade física, como no caso do campo eléctrico cuja existência não pode ser admitida independentemente das operações introduzidas para o definir. A explicação científica consiste (em reduzir uma situação a elementos que sejam de tal forma familiares que possam ser aceites como óbvios e que possam extinguir a nossa curiosidade". Os "elementos últimos" da explicação são análogos aos axiomas da matemática formal, mas têm na física o aspecto de "correlações familiares entre os fenómenos que compõem a situação" (Ib., p. 50). No entanto, não é sempre possível obter na física moderna uma explicação deste tipo, apresentando Bridgman algumas questões da mecânica quântica para as quais essa explicação é precisamente impossível (Ib., p. 184; The Nature of Physical Theory p. 121). O operativismo de Bridgman é uma espécie de empirismo pragmatista que sublinha um aspecto importante da ciência contemporânea e que pode servir como um bom critério de exclusão de muitos conceitos e problemas inúteis; no entanto, constitui uma interpretação unilateral da física contemporânea. Max Born notava que as definições operativistas estão fora do campo da teoria dos quanta (Experiment and Theory in Physics, 1943, p. 39). E vêse, por aquilo que dissemos anteriormente, como a atitude de Bridgman é confusa e reticente em relação àquela teoria. Por outro lado, como o notava o próprio Born, a exigência de operatoriedade das definições, 210
apresentada por Bridgman, constituiu e constitui uma salutar reacção contra o fetichismo da palavra. § 794. O DESENVOLVIMENTO CRITICO DA MATEMÁTICA O desenvolvimento crítico da matemática iniciou-se por volta de meados do século XIX, com o aumento da exigência de rigor nas construções matemáticas. Com efeito, esta exigência leva a considerar nas matemáticas não só os resultados dos seus procedimentos mas também os próprios procedimentos, e isto a fim de lhes atribuir uma validade. É esta a forma especifica que revestiu, no âmbito das matemáticas, a viragem crítica que, em todas as ciências mais avançadas, levou a considerar como parte fundamental da investigação científica a análise da natureza e dos limites de validade dos instrumentos de que dispõe. Karl Weierstrass (1815-97) foi o primeiro a afirmar, em 1886, a necessidade de uma indagação sobre os fundamentos da matemática e a reconhecer que tais fundamentos só podem ser esclarecidos a partir de uma teoria dos números reais, da qual ele fornece as bases principais. A teoria dos números reais, enquanto fundamento de toda a análise matemática, foi mais tarde desenvolvida por Georg Cantor (1845-1918) e por Richard Dedekind (1831-1916), que construíram uma teoria dos conjuntos que se mantém actual apesar de ter sofrido algumas críticas e rectificações na matemática contemporânea. 211
!TA teoria dos conjuntos foi apresentada por Cantor numa famosa obra intitulada Fundamentos de uma teoria universal dos conjuntos, publicada em 1883, e que foi considerada como uma teoria do infinito autêntico ou actual. Este infinito, segundo Cantor, não é um infinito que possa crescer ou diminuir indefinidamente mas continuando sempre finito; constitui antes uma grandeza sui generis, claramente definível. Neste sentido, é um conjunto cujos elementos estão em correspondência biunívoca com os elementos de qualquer dos seus subconjuntos; segundo o exemplo adoptado por Royce para ilustrar este conceito (§ 707), poderemos imaginar um mapa geográfico idealmente perfeito de um país, desenhado no próprio país; esse mapa conteria a sua representação e também uma série de mapas representando cada um deles uma parte desse território, e os pontos comuns corresponder-se-iam exactamente. A série dos números naturais é, neste sentido, um conjunto infinito: pode considerar-se uma correspondência biunívoca entre os seus elementos e os dos seus subconjuntos, tais como o dos números primos, por exemplo. Deste ponto de vista, existem infinitos de diferentes ordens; e uni infinito pode ser "maior" ou "menor" do que um outro. Cantor define o número cardinal como a potência comum de dois conjuntos entre os quais exista uma correspondência biunívoca, e chamou transfinito a cada um dos elementos de um conjunto infinito. Tanto Cantor como Dedekind (0 que são ou o que devem ser os números?, 1888) consideraram as formis de proceder matemáticas como operações que 2 12
se executam no "intelecto" ou no "mundo do pensamento" mas que não podem ser reduzidas a operações psicológicas. Cantor referiu-se ainda ao problema da existência dos objectos matemáticos, dando-lhe uma solução que veio a ter muita influência nos desenvolvimentos ulteriores da matemática. Distingue a existência dos números enquanto imagens dos processos e relações que ocorrem no mundo externo, da sua existência como entidades intelectuais que, "graças à sua definição, têm um papel perfeitamente determinado no nosso intelecto, se diferenciam claramente de todos os outros elementos do nosso pensamento, estão em relações bem definidas com esses outros elementos e modificam deste modo, definitivamente, a substância do nosso espírito". Só considera essencial para os objectos matemáticos esta última espécie de "existência", esses objectos terão, por isso, uma existência lógico-objectiva que consiste na definição que lhes assegura um determinado tipo de comportamento. Tudo isto equivale a uma redução das entidades matemáticas a objectos lógicos e, portanto, a uma aproximação entre a matemática e a lógica. A obra de Giuseppe Peano (1858-1932) contribuiu grandemente para esta aproximação; em 1889, este autor publicava a sua Arithmetices, principia nova methodo exposita, e em 1895 surgiu a primeira edição do seu famoso Formulário de matemática. Peano tenta reconduzir toda a aritmética a três noções primitivas (a de número natural, a de zero e a de sucessor) e a cinco axiomas, mostrando simultaneamente como todos os ramos da matemática se podem considerar 213 baseados na aritmética. A obra de Peano conseguiu incluir toda a matemática num único sistema de sinais e mostrar como todas as proposições matemáticas podem ser inseridas num sistema dedutivo hipotético. A necessidade de rigor, apresentada por Weierstrass, teve nesta obra a sua realização; dela, porém, não faziam parte os problemas e as exigências que foram apresentados pelos desenvolvimentos ulteriores da matemática e da lógica. É à obra de Peano, assim como à de Frege (de quem falaremos noutra ocasião) que se deve a mais conseguida expressão do logicismo contemporâneo, isto é, da obra matemática de Russell (capitulo XII). É a esta fase do desenvolvimento da matemática que pertence ainda a descoberta e a discussão das chamadas antinomias ou paradoxos lógicos, que surgem no campo da teoria dos conjuntos e de outras doutrinas matemáticas e constituem o foco da consideração crítica que a matemática realizou sobre os seus próprios fundamentos. A matemática axiomática de Hilbert, que constitui um aspecto fundamental da actual fase crítica das matemáticas, tem em conta todos estes aprofundamentos. David Hilbert (1862-1943) ensinou nas Universidades de Kanigsberg e de Goettingen. As suas obras mais importantes são: Os fundamentos da geometria (1899); Princípios de lógica teórica (1928), escritos em colaboração com W. Ackermann, e Os fundamentos da matemática (1, 1934; 11, 1939), escritos em colaboração com P. Bernays. A ideia básica de Hilbert é a de que a matemática é um cálculo ou sistema axiOmático no qual: 1) todos os conceitos de base 214 e todas as relações de base são completamente enumeradas quando lhes são reconduzidos, através de uma definição, os conceitos ulteriormente introduzidos; 2) os axiomas estão completamente enumerados e deles se podem deduzir todos os outros enunciados, desde
que isto seja feito de acordo com as relações de base. Num tal sistema a demonstração matemática é um processo puramente mecânico de derivação de fórmulas-, mas, simultaneamente, associa-se à matemática formal uma matemática constituída por raciocínios não formais sobre a matemática. Hilbert afirmou: "Deste modo efectua-se, de duas formas diferentes, mediante trocas sistemáticas, um desenvolvimento da totalidade da ciência matemática: derivando dos axiomas novas fórmulas demonstráveis, utilizando noções formais e associando simultaneamente a prova de não contradição e novos axiomas por meio de raciocínios que têm um conteúdo". As matemáticas constituem então um sistema completamente autónomo, isto é, que não pressupõe um limite ou um guia que lhe seja exterior e que pode desenvolver-se em todas as direcções possíveis, entendendo-se por direcções possíveis aquelas que não conduzem a uma qualquer contradição. A este conceito da matemática, muitas vezes chamado formalismo, é necessária a determinação da possibilidade, isto é, da não-contradição dos sistemas axiomáticos. Por esta razão, o significado da existência das entidades matemáticas é reconduzido à possibilidade: um objecto matemático existe se a admissão da sua existência não conduz a contradições. No entanto, um teorema descoberto por Kurt 215 Gõdel em 1931 atribuía limites precisos à possibilidade de demonstrar a não-contradição dos sistemas axiomá ticos. Com efeito, estabelecia a impossibilidade de demonstrar a nãocontradição de um sistema com os meios (axiomas, definições, regras de dedução, etc.) que pertencem ao próprio sistema, afirmando ainda que, para efectuar esta demonstração, é necessário recorrer a um sistema mais rico em processos lógicos do que o primeiro. Com base neste teorema, pode certamente demonstrar-se a não-contradição de algumas partes da matemática (por exemplo, da aritmética), mas não se pode demonstrar, definitivamente, a não-contradição de toda a matemática. Deriva assim deste teorema um limite da axiomática, no sentido de que nenhum sistema axiomático contém todos os axiomas possíveis e, portanto, não se pode excluir a hipótese de que possam ser descobertos novos princípios. A matemática de Hilbert, mecanizando os processos de demonstração, facilitou bastante a construção das máquinas de calcular. O teorema de Gõdel põe ainda um limite à capacidade destas máquinas, na medida em que exclui a possibilidade de elas resolverem todos os problemas. Ao logicismo e ao formalismo opõe-se, em certa medida, o intuicionismo defendido pelo matemático holandês L. E. J. Brouwer (nascido em 1881) que recorre principalmente a Kant e a Poincaré para afirmar que a matemática se deve basear na intuição do tempo, e que só tem por objecto as entidades que podem ser construídas partindo desta intuição. O intuicionismo parece assim referir-se a construções 216 mentais. Heyting (um dos membros mais influentes desta escola) afirma: "Um teorema
matemático exprime um facto puramente empírico, isto é, o sucesso de uma certa construção. 2 + 2 = 3 + 1 deve entender-se como sendo uma abreviatura da expressão: Efectuei as construções mentais indicadas por 2 + 2 e por 3 + 1 e verifiquei que ambas conduzem ao mesmo resultado" (Intuitionism, an Introduction, 19561 p. 8). A existência, em matemática, seria assim determinada como uma "possibilidade de construção". Os intuicionistas rejeitam deste modo o critério formalista da existência como ausência de contradição; consequentemente, rejeitam a validade do princípio lógico do terceiro excluído, segundo o qual a negação de uma negação é uma afirmação, porque, de acordo com ele, a demonstração da não-contradição equivaleria à da possibilidade da afirmação. § 795. DESENVOLVIMENTO DA LÓGICA O desenvolvimento da lógica contemporânea deve-se à retomada e à realização da aspiração de Leibniz a uma língua ou cálculo universal, capaz de exprimir as verdades de todas as ciências e de servir ainda como instrumento de invenção científica. O inglês George Boole (1815-1864) foi o primeiro a reconhecer a possibilidade de construir uma tal linguagem universal a partir da álgebra simbólica. Na obra intitulada A análise matemática da lógica (1847), este autor escreve: "Quem conhece o estado actual da 217 teoria da álgebra simbólica sabe que a validade dos processos de análise não depende da interpretação dos símbolos com que se trabalha mas sim das leis que regulam as suas combinações. Todo o sistema de interpretação que não modifique a verdade das relações consideradas pode ser igualmente empregue, é por esta razão que um dado processo pode, num certo esquema de interpretação, representar a solução de um problema que diga respeito às propriedades dos números que, em princípio, corresponderiam a um outro esquema: assim acontece com os problemas geométricos, com os de dinâmica, de óptica, ete". Em 1854, Boole publicava a Indagação sobre as leis do pensamento em que se baseiam as teorias matemáticas da lógica e das probabilidades. Esta obra tinha por objectivo "mostrar a lógica, no seu aspecto prático, como um sistema de processos efectuados com a ajuda de símbolos cuja interpretação é bem definida, e que está sujeita a leis baseadas apenas nessa mesma interpretação; e mostrar ainda que essas leis são idênticas, na sua forma, às dos símbolos gerais, da álgebra" (Laws of Thought, 1, 6), tendo apenas em conta que na lógica não se considera a potenciação e que, por isso, o símbolo xx ou xI (no qual x indica uma classe de coisas) é igual a x. Com efeito, se x se refere à classe dos "homens", xx ou xI também só se podem referir a esta classe, homem homem significa apenas homem. O princípio da contradição é, segundo Boole, uma consequência destas leis: significa que uma classe cujos elementos são simultaneamente homens e não-homens não pode existir (Ib., 111, § 15). Boole adopta o símbolo "+" 218
para indicar as relações linguísticas "e" e "ou"; o sinal "=" para indicar "é"-, e o sinal "-" para indicar excepção, isto é, frases do tipo "todos os estados excepto este, são monárquicos", que seriam expressas por " x - xy". A obra de Boole é rica em considerações filosóficas. Afirma o carácter probabilístico das leis naturais (Ib., 1, § 4); submete a uma crítica lógica as provas a priori da existência de Deus dadas por Clarke e por Spinoza, demonstrando que não é possível concluir nada delas; (Ib., XIII); reconhece a insuficiência da lógica aristotélica, especialmente da teoria do silogismo, e debruça-se principalmente sobre aquilo que chama "as proposições secundárias" do tipo "se o sol brilha, a terra aquece", que constituem os juízos não evidentes da lógica estóica (§ 92). Mas a etapa mais importante da identificação da matemática com a lógica é constituída pela obra de GottIob Frege (1848-1925), actualmente considerado um dos fundadores da lógica moderna. Os seus escritos principais são: Ideografia. Uma linguagem formal do pensamento puro representado aritmeticamente (1879), Os fundamentos da aritmética (1884); Função e conceito (1891); Conceito e objecto (1892); Sentido e significado (1892); Princípios da aritmética (1, 1893; 11, 1903). Esta última é uma importante obra sistemática na qual Frege trabalhou durante bastantes anos. O pressuposto de Frege é o mesmo da escola do criticismo alemão: o conceito tem uma validade objectiva, independente das condições subjectivas ou psicológicas em que é pensado. Afirma Frege: "Não se tome como dedução matemática a simples des219 crição do modo como se forma em nós uma certa imagem, nem como demonstração de um teorema a indicação das condições físicas e psíquicas que devem ser satisfeitas para que lhe possamos compreender o enunciado. Não se confunda a verdade de uma proposição com o ser pensada... Uma proposição não deixa de ser verdadeira pelo facto de eu não a pensar, tal como o Sol não deixa de existir quando eu fecho os olhos" (Die Grundlagen der Aritmetik, lntr., trad., ital., in Aritmetica e logica, p. 23). Por um lado, este ponto de vista permite diferenciar claramente a lógica e a psicologia, evitando que a lógica reduza o significado dos conceitos aos actos psíquicos que presidem à sua aquisição ou compreensão, constituindo assim um aprofundamento polémico contra a lógica empirista. Por outro lado, permite basear a identidade entre a matemática e a lógica na identidade entre número e conceito, e mais precisamente entre o número e a extensão do conceito (Ib., § 68). Esta identificação é esclarecida pela distinção entre o sentido (Sinn) e o significado (Bedeutung), que é um dos pontos chave da lógica de Frege. O significado de um conceito e, em geral, de um signo, é o objecto designado por esse signo; pelo contrário, o sentido é "o modo como o objecto é dado" ou "uma qualquer indicação que desempenhe o papel de nome próprio" (Ueber Sinn und Bedeutung, § 1; Ib., págs. 218-219). Esta distinção reproduz a que foi feita pelos Estóicos entre o objecto de um signo e a "representação racional" que o signo suscita; distinção que foi depois expressa de várias
formas pela tradição lógica (como relação entre significado e suposição, na 220 lógica medieval; entre intenção e extensão, na lógica de Leibniz; entre conotação e denotação, na de Stuart Mill). A relação entre signo e significado resulta do facto de um sentido só poder ter um dado significado, enquanto que um significado pode ter vários sentidos: por exemplo, "o autor da Divina Commedia", "o autor da Vita Nuova", "o maior poeta italiano", são expressões que têm Dante como único objecto ou significado, mas que têm sentidos diferentes. Para aquele que estuda a proposição, o significado que ela tem é, segundo Frege, o seu valor de verdade, já que esse valor depende da sua correspondência com o objecto (Ib., § 5). No apêndice ao segundo volume dos Princípios da aritmética Frege referia-se à carta de Russell em que este lhe comunicava ter descoberto que um dos métodos demonstrativos utilizados por Frege conduzia a uma antinomia. No entanto, Frege manteve a sua doutrina sobre as relações entre a aritmética e a lógica e indicou uma possível forma de fugir à antinomia. Iniciava-se assim a fase crítica da lógica, isto é, a fase em que a lógica põe em discussão os próprios fundamentos da sua validade. § 796. DESENVOLVIMENTO DA PSICOLOGIA A psicologia moderna nasceu com a obra de c Fechner e Wundt (§ 660), sendo por elos denominada psicofísica, isto é (nas palavras de Fechner), uma "ciência exacta das relações funcionais ou rola221 cionais de dependência existentes entre o espírito e o corpo". Esta psicologia servia-se, por um fado, da introspecção como método para determinar os "fenómenos internos" ou "factos de consciência" e, por outro lado, da observação fisiológica que lhe permitia determinar a correlação entre esses fenómenos e os fenómenos físicos. A fase crítica da psicologia iniciou-se ao ser posta em dúvida a introspecção como método de indagação científica. Nos primeiros anos do nosso século, Ivan Pavlov (1849-1936), autor da teoria dos reflexos condicionados, negava que a psicologia pudesse constituir-se como ciência partindo do estudo dos estados subjectivos, E, em 1914, o americano J. B. Watson (nascido em 1878) expunha num livro (Comportamento. Introdução à psicologia comparada) a tese do comportamentismo (behaviorism), segundo a qual a indagação psicológica deve limitar-se ao estudo das reacções observáveis objectivamente. Assim, o comportamento fazia valer no campo da psicologia a mesma exigência metodológica das ciências naturais, isto é, a de não se poder falar cientifica- mente daquilo que foge a todas as possibilidades de observação objectiva e de controle. Segundo Watson, a tarefa da psicologia consiste em descobrir as
conexões, causais entre o ambiente exterior, que fornece os estímulos, e a reacção do organismo; isto é, entre duas ordens de acontecimentos observáveis e susceptíveis de medição. Dado que o comportamento é a reacção total do organismo, o comportamentismo aderiu rapidamente à chamada psicologia da forma (Wertheimer, Kõhler, Koffka), ao rejeitar o atomismo 222 psíquico que era a outra característica fundamental da psicofísica. Na mesma época, a psicologia desenvolvia-se numa direcção aparentemente oposta através da obra de Sigmund Freud (1856-1939), que deu origem ao que hoje se chama psicologia abissais ou do profundo. O instrumento de indagação utilizado por esta psicologia consiste exclusivamente na confissão do sujeito que é examinado; mas nessa confissão (que aparentemente exprime os resultados de uma introspecção) o psicanalista procura unicamente os sinais ou sintomas, dos conflitos latentes, cuja razão de ser está nos acontecimentos passados da vida do sujeito. Deste modo, também a psicanálise partilha, dentro de certos limites, a tendência objectivista da psicologia contemporânea. O seu fundamento teórico consiste em admitir no homem a presença de um instinto fundamental de natureza genericamente sexual, chamado libido, que tende indiscriminadamente para o prazer e que entra em conflito com as proibições, as ordens e as censuras que constituem o resultado da vida social, conflito este que dá origem a uma inibição parcial do homem. O próprio conflito é, segundo Freud e, em geral, segundo todos os psicanalistas, o único e verdadeiro protagonista da vida individual e social do homem. A ele se devem, com efeito, não só as manifestações patológicas da forma de vida, que consistem numa espécie de vingança efectuada pelo instinto no confronto com as inibições, mas também as manifestações normais e mais elevadas (a arte, a religião, a própria ciên223 cia), que consistem numa sublimação do instinto, isto é, na sua transferência para outros tipos de objectos. Freud exprimiu de várias formas, no decurso da sua actividade, os termos do conflito que, segundo ele, constituía a vida dos seres humanos. Num certo número de obras (Para além do princípio do prazer, 1916; O Ego e o Id, 1923) declarou que os termos do conflito são o Id, constituído pelos múltiplos impulsos da libido, e o Super-Ego, isto é, o conjunto de proibições que foram instiladas ao homem nos primeiros anos da sua vida e que o acompanharam daí em diante sem que tivesse consciência do facto, constituindo aquilo a que se chama normalmente consciência moral. O Ego, enquanto organização consciente da personalidade, é o resultado do acomodamento ou do equilíbrio parcial ou instável destes dois elementos. Depois, Freud insistiu sistematicamente no carácter agressivo dos instintos que constituem o Id; e na sua última obra, O mal-estar na civilização (1930), considerou toda a história da humanidade como sendo a luta entre dois instintos: o instinto da vida ou Eros e o da destruição ou Thanatos. "Esta luta, escreveu, é aquilo em que consiste essencialmente a vida, e é por isso que o desenvolvimento da civilização pode ser descrito como uma luta da
espécie humana pela existência" (Civilization and its Discontents, 1943, p. 102). Considerando-se esta doutrina de acordo com a tradição filosófica, verifica-se que ela não é mais do que uma actualização do velho dualismo maniqueísti. Mas a sua importância reside principalmente na forca polémica com que defendeu exigências que na Uo224 sofia tradicional não tiveram uma satisfação adequada. Em primeiro lugar, o conceito da vida humana, individual e social, constituída por um conflito imanente que só pode encontrar soluções ou equilíbrios precários ou parciais, é a antítese precisa das concepções clássicas segundo as quais a alma e a sua instância maior, a sociedade humana, são sistemas harmónicos de poderes ou faculdades destinadas a colaborar, e cujo conflito é uma excepção insignificante. Em segundo lugar, a noção da sexualidade fundamental do homem acentuou um aspecto que a antropologia tradicional ignorava completamente e confirmou o carácter terrestre ou mundano do homem, tirando simultaneamente à sexualidade o carácter de degradação ou condenação e induzindo ao reconhecimento da sua acção nas mais diversas manifestações da vida. Em terceiro lugar, o reconhecimento da acção exercida pela sociedade sobre o homem através das cristalizações do Super-Ego equivale ao reconhecimento do aspecto social da personalidade humana: um aspecto que é hoje amplamente reconhecido, se bem que não o seja nesta forma específica, nas investigações psicológicas e antropológicas. § 797. A SEMIÓTICA Ao comportamentismo e ao pragmatismo (especialmente ao de Mead) poderemos associar a semiótica de Charles Morris (nascido em 1901), professor da Universidade de Chicago. Morris é autor de vários 225 mritos de psicologia e de ética (Seis teorias do espírito, 1932; Caminhos da vida, introdução a uma religião cósmica, 1942; O eu aberto, 1948-, Variedade do valor humano, 1956). Esta última obra reúne os resultados de um inquérito feito a estudantes de vários países sobre as "dimensões do valor", isto é, sobre as preferências em relação a este ou àquele modo de -vida. Morris acredita poder assim determinar algumas constantes que se encontram em todas as civilizações e que constituem, por isso, uma espécie de consciência do valor comum a toda a humanidade. Mas as suas obras mais interessantes são as que se referem à semiótica (Positivismo lógico, Pragmatismo e empirismo científico, 1937; Fundamentos de uma teoria dos signos, 1938, na Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada; Signos, linguagem e comportamento, 1946). Morris defende um "empirismo científico" que deveria abarcar simultaneamente o empirismo radical, o racionalismo metodológico e o pragmatismo crítico. Para um tal empirismo, a lógica é, como Peirce afirmara, uma teoria geral dos signos, enquanto que a lógica formal (ou matemática) é o estudo das relações entre os signos de uma determinada linguagem. Entendida deste modo, a lógica deixa de rivalizar com o conhecimento empírico da natureza e limita-se a considerar a linguagem em que são formuladas as proposições sobre a natureza, evitando ocupar-se do mundo não-linguístico. Além disso, a
lógica deve ter Presente que a linguagem é usada por seres vivos e deve. portanto, tomar em consideração a relação entre Os signos linguísticos e aqueles que os utilizam. Deste 226 ponto de vista, a lógica geral, como teoria dos signos, divide-se em três partes: a pragmática, a semântica e a sintáctica. "A pragmática é a parte da semiótica que examina a origem, as utilizações e os efeitos dos signos em cada um dos comportamentos a que são aplicados; a semântica trata da significação dos signos, de todas as possíveis maneiras de significar; a sintáctica ocupa-se das combinações dos signos, prescindindo das suas significações específicas e das suas relações com cada aplicação particular (Signs, Language and Behavior, trad. ital., p. 293). Morris introduz portanto, na semiótica (e como veremos na própria definição de signo) a consideração do comportamento do homem no mundo; as suas investigações linguísticas adquirem, por isso, um significado pragmático que é estranho às formulações do neo-empirismo. Mais do que o signo, o objecto da semiótica de Morris é o comportamento do homem e, em geral, dos seres vivos, manifestado através de signos. Como exemplos significativos de comportamentos deste tipo, Morris considera o de um cão que responde com movimentos musculares ou secreções glandulares ao som de uma campainha que foi constantemente associado à administração da comida (o que é o exemplo típico dum reflexo condicionado); ou o do automobilista que muda a direcção da marcha porque alguém o adverte de que o caminho está interrompido mais adiante. Aqui, o cão e o automobilista actuam como se tivessem visto a comida ou o caminho interrompido. Contudo, nada viram e o seu comportamento foi determinado por um signo: o som da campainha ou as palavras de quem advertiu. 227 Por isso, o signo é definido do seguinte modo: "Se uma determinada coisa, A, guia um comportamento de uma forma semelhante (mas não necessariamente igual) àquela que seria utilizada por uma outra coisa, B, para atingir o mesmo objectivo, então A é um signo". Os signos serão denominados símbolos se forem produzidos em substituição de outros signos de que sejam sinónimos; se assim não for, chamam-se sinais. O símbolo é evidentemente mais autónomo e convencional do que o sinal. Estas definições põem completamente de parte termos como ideia, representação, conceito, etc., isto é, todos os termos que se referem a um ponto de vista "mental"; e isto porque a introdução de tais termos não oferece nenhuma vantagem para o conhecimento objectivo e verificável do fenómeno que é significado. Admitir, por exemplo, que entre o signo e a resposta do cão há, na mente deste, uma "representação" ou uma ideia, significa fazer uma afirmação que não pode ser verificada e que, por conseguinte, não tem nenhum significado objectivo. Uma linguagem é um sistema de signos que são apreendidos da mesma forma por um certo número de pessoas, que podem ser reproduzidos por essas mesmas
pessoas, que têm um significado relativamente constante e que se podem combinar segundo certas regras. As características da linguagem são tais que Morris é levado a considerá-la como um atributo exclusivo do homem (Ib., p. 82). Os signos podem ser designatórios, apreciativos, prescritivos e formativos; e o uso dos signos é precisamente determinado por esta sua natureza. Os signos, com efeito, podem ser usados 228 para informar o organismo sobre qualquer coisa; para ajudá-lo na escolha de objectos, para provocar sequências de respostas pertencentes a um dado tipo de comportamentos; e para organizar num conjunto unitário o comportamento provocado pelos signos. É evidente que o principal uso dos signos designatórios é de carácter informativo, que o dos apreciativos é de carácter valorativo, que o dos prescritivos é estimulante e que o dos formativos é sistematizador. Estas utilizações aparecem normalmente associadas e servem a Morris para classificar os diversos tipos de discurso: o discurso científico, que seria designatório e informativo; o fantástico, que é designatório-valorativo; o legal, que é designatório-estimulante; o cosmológico (ou filosófico), que é designatório-sistematizante; o mítico, que é apreciativo-informativo; o poético, que é valorativo-apreciativo; o moral, que é apreciativo e estimulante; o crítico, que é apreciativo-sistematizante, o tecnológico, que é prescritivo-informativo; o político, que é prescritivo-valorativo; o religioso, que é prescritivo-estimulante; o propagandístico, que é prescritivo e que organiza, por si mesmo, quem prescreve. Trata-se, como se vê, de classificações e determinações puramente verbais e extremamente simplistas. Devido ao seu carácter semiótico, isto é, simplesmente terminológico, não deveriam ter outra pretensão que a de esclarecer o uso dos termos em questão; mas dado que estes termos (discurso científico, fantástico, legal, etc.) se referem a atitudes, situações e condições que se situam para além do uso linguístico, o estudo terminológico inclui 229 subrepticiamente a pretensão de valer também como estudo de tais atitudes, condições e situações; e é nesta pretensão que se revela simplista. É preciso, não obstante, reconhecer que Morris insistiu cada vez mais no aspecto pragmático da linguagem e, em geral, do comportamento dos signos, afastando-se simultaneamente cada vez mais do nominalismo da escola de Viena. Esta sua tendência manifesta-se, em primeiro lugar, na importância que atribui à explicação dos signos "ou", "?" "()", os quais se encontram sempre fora de lugar numa lógica nominalista que tenda a modelar-se sobre proposições que têm um sentido acabado e se podem verificar empiricamente. Morris designa aqueles signos por formadores (ou signos formativos) no sentido de que eles modificam o significado das combinações de signos em que aparecem, e crê que significam uma situação de alternativa. É evidente que aqui o aspecto pragmático adquire predomínio sobre o formalista, e que os sinais formativos radicam naquela situação de dúvida, de incerteza, de instabilidade que não é propriamente linguística. A mesma atitude permite a Morris reconhecer um valor positivo à metafísica que sempre foi característica do positivismo. Considera que os
sistemas metafísicos são precisamente formativos por organizarem o comportamento humano num sentido ou noutro, mas sempre de tal forma que o seu intérprete não tenha surpresas. Portanto, se a metafísica não tem valor científico (não é um discurso informativo), tem, em troca, um enorme valor formativo na organização do comportamento humano. 230 isto leva Morris a abandonar a identificação da filosofia com a semiótica, isto é, com a análise da linguagem que ele mesmo tinha anteriormente defendido (Foundations of the Theory of Signs, 1938, p. 59). No seu escrito mais importante, Signos, linguagem e comportamento (1946), define a filosofia como "uma organização sistemática que engloba as crenças fundamentais: crenças sobre a natureza do mundo e do homem, do que é o bem, sobre os méto-dos que hão-de seguir-se para alcançar o conhecimento, sobre a maneira como a vida deve ser vivida. O filósofo encontra-se perante asserções de facto, valorações, prescrições de conduta próprias do mundo da sua cultura; e organiza criticamente estas asserções, valorações e prescrições dentro de outro sistema de crenças" (Ib., trad. ital., págs. 314-315). Assim se explica a pluralidade das filosofias, que têm a sua raiz nas diferenças das personalidades dos filósofos e do material cultural que empregam. Mas esta pluralidade não entrava o caminho a uma síntese futura, à qual a semiótica poderá trazer uma valiosa contribuição. "Esta é uma época em que a personalidade deve abrir-se e não encerrar-se na posse do que já é e tem. A estrutura de uma personalidade fechada e autoritária encontra-se hoje frente a uma estrutura aberta e elástica; visto no plano psicológico, este é o conflito principal do nosso tempo. São necessários novos tipos de filosofia, numerosos e diferentes, antes que possa existir uma síntese filosófica apropriada a amplas zonas do mundo actual. O reconhecer a pluralidade das filosofias do passado, tentando eliminar as pretensões dogmáticas de cada uma delas, e mesmo 231 de todas, constitui um contributo positivo para um trabalho filosófico significativo do nosso tempo". Estas conclusões de Morris permitem uma compreensão e uma apreciação de boa parte da filosofia contemporânea. Contudo, a sua pretensão de que a semiótica não suponha uma filosofia particular (Ib., P. 318) é ilusória. Implica um realismo empírico, que é uma filosofia como qualquer outra. E Morris reconhece-o: "Existe um mundo e isto fornece a prova que os nossos signos denotam. Se não existisse este mundo, então não haveria signos, conhecimento, ou verdade, nem mesmo a certeza de que nada existe" (Ib., p. 229). NOTA BIBLIOGRÁFICA 783. Sobre as atribuições actuais da filosofia das ciências: L. GE=NAT, Filosofia e filosofia della scienza, Milão, 1960. Para um panorama da ciência contemporánea: ERNEST
NAGEL, The Structure of Science, Problems in the Logic of Scientific Explanation, Londres, 1961. § 784. Sobre Avenarius: W. WUNDT, in "Philosophische Studien", 13, 1896; H. DELACROIX, in "Revue de Métaph. et Mor.", VI, 1898; O. EWALD, R. A. aIs Begründer des Empiriokriticismus, Berlim, 1905; A. PELAzzA, R. A. e llempiriocriticismo, Turim, 1909; RAAH, Die Phil. von R. A., Leipzig, 1912. § 785. Sobre Mach: A. ALIOTTA, in "Cultura Filosofica", Florença, 1908; F. REINHOLD, 31.s Erkenntnistheorie, Leipzig, 1908; H. HENNING, E. M. aIs PhiZasoph, Physiker und Psychologe, Leipzig, 1915; M. H. BAEGE, Die Naturphilosophie von E. M., Berlim, 1916; H. DiN232 GLER, Die Grundgedanken der Machschen Philosophie, Leipzig, 1924; C. B. WEIMBERG, M.s Empirio-pragmatism in Physwal Science, Nova Ic>rque, 1937; R. V. Misw, E. M. und die empiristische Wissenschaftsanfass-ung, Leipzig, 1938. § 786. Sobre Hertz: H. H~DING, Moderne Philosophen, Leipzig, 1905; J. ZENNECK, H. H., Berlim, 1929; E. MEYERSON, Essais; Paris, 1936; E. CAssiRER, Erkenntnisproblem, IV (trad. ital., págs. 166-74); R. B. BRAITHWAITE, Scientific Explanation, Cambridge, 1953, cap. M e IV. Sobre Duhem: H. P. DUHEM, Un savant français: P. D,. Paris, 1936; A. LowINGER, The Methodology of P. D.' Nova Iorque, 1941. §787. Sobre Ostwald: A. RoLLA, La filosofia energetica, Turim, 1908; V. DELBOS, Une théorie allemande de Ia culture. W. O. et sa philosophie, Paris, 1916; G. OSTWALD, W. O., mein Vater, Estugarda, 1953. Sobre Driesch: O. HEINICITEN, D.s Philosophie, Leipzig, 1924; A. WENZL, H. D.s philosophische Herbe, Heidelberga, 1943; M. SCHLICK, Philosophy of Nature, Nova lorque, 1949, págs. 78-86. § 788. De Meyerson, está
publicado um volume
póstumo de Essais, Paris, 1936. Sobre Meyerson: A. METZ, Une nouvelle phil. des sciences. Le causalisme de M. E. M., Paris, 1928; ABBAGNANO, La fil"ofia di E. M. e Ia logica delilidentità, Nápoles, 1929; R. JOHAN, La Raison et Ilirrationnel chez M. M., in "Recherches philosophiques", 1931-32; M. A. DENTI, Scienza e filosofia in M., Florença, 1940. § 789. Sobre os dados históricos que são referidos no parágrafo sobre o desenvolvimento crítico da geometria: L. GEYMONAT, Storia della matematica, in Storia delle scienze, ao cuidado de N. Abbagnano, vol. I, Turim, 1962. Consultar ainda R. COURANT-H. ROBBINS, Che coslè Ia matematica, trad. ital., Turim, 1950, cap. III-V, e a bibliografia aí contida. 233 § 790. De Poincaré: Il valoe della seiewza, trad. !tal., Florença, 1952; La scienza e Ilipotesi, trad. ital., Florença, 1950; Antologia, com introduçã o de F. Severi, Florença, 1949.
Sobre Poincaré: L. RoUGIER, La philosophie géometrique de H. P., Paris, 1920; T. DANTZIG, H. P.: Critic of Crisis, Nova lorque, 1954. § 791. De Einstein: as seguintes traduções italianas: Sulla teoria speciale e generaZe della relatività, Bolonha, 1921; Prospettive relativistiche dellIetere e della geometria, Milão, 1922; L'evoluzione della fisica (em colaboxação com Infeld), Turim, 1950; Il significato della relitività Turim, 1950; e outros escritos, fundamentais in CinquantIanni di relatività, de vários autores, Florença, 1955. Sobre Einstein: A. D'ABRO, The Evolution of Scientif ic Thought, Nova Iorque, 1950; L. INFELD, A.E., trad. ital., Turim, 1952; C. SEELIG, A.E., Zurique, 1954; A. VALLENTIN, A.E., A Riography, Londres, 1954; L. BARNETT, E. et Ilunivers, Paris, 1955; A.E., Phil~pher Scientist, ao cuidado de P. A. SCHILPP, Nova lorque, 1951, trad. ital., Turim, 1958. § 792. Sobre os problemas da física actual consultar: o volume dedicado a Einstein no "Living Philosophers" de Schilpp (já citado); e ainda IIWSENBERG, SCHõDINGER, BORN, AUGER, Discussione su" fisica moderna (Rencontres Internationales de Genève), Turim, 1959. § 793. De Eddington: as seguintes traduções italianas: Stelle e atomi, Milão, 1933; Luniverso in e.@pansione, Bolonha, 1934; La natura del mondo fisico, Bari, 1935; La scienza e il mondo invi.@ibile, Verona, 1948; La filosofi" della scienza fisica, Bari, 1941. Sobre Eddington: E. T. WHITTAIIER, From Euclid to E., Nova lorque, 1949; L. P. JAcKs, Sir A. E.; Man Of SCience and Mystic, Londres, 1949; E. NAGEL, SOvereign Reason, Glencoe, 111, 1954, págs. 216 e segs. 234 De Bridgman: La logica delta fisica moderna, trad. ital., Turim, 1952. Sobre Bridgman: R. B. LINDSAY, in "Philosophy of Science", 1937, págs. 456-70; J. BERNSTEIN, in "Synthèse", 1952, págs. 331-@11. § 794. De Cantor: Gesammeite Abhandlungen, ed. Zermeld, Berlim, 1932. Sobre Cantor: F. ENRIQUES, Per Ia storia delta logica, Bolonha, 1922; A. FRANKEL, G.C., Leipzig, 1930. De Dedekind: Gesammelte mathematischen Werke, Brunswick, 1930; Che cosa sono e che cosa debbono essere i numeri, trad. ital., -Roma, 1926. Sobre Dedekind: E. LANDAU, in "Nachrichten von d. GeselIschaft ter Wissenschaften zu CTõttingen", 1917. De Peano: Opere scelte, ao cuidado da Unione matematica italiana, 3 vols., Roma, 1957-59. Sobre Peano: In memoria di G. P., ao cuidado de A. TERRACINI, Cuneo, 1955.
De Hilbert: Gesammelte Abhandlungen, 3 vols., Berlim, 1932-35. Sobre Hilbert: E. COLERUS, Von Pythagoras bis H., Viena, 1947, trad. ital., Turim, 1949. Sobre Brouwer. A. HEYTING Mathematische GrundIagen Forschung. Intuitionismu-s und Beweistheorie, 1934, trad. frane., Paris, 1955; Intuitionism, an Introduction, Amesterdão, 1956. Sobre o teorema de G5del: E. NAGEL-G. R. NEWMAN Gijdel's Proof., Nova Iorque, 1958. § 795. Sobre o desenvolvimento da lógica: W. e M. KNEALE, The Development of Logic, Oxford, 1962, págs. 404-20, 478-512. Sobre Boole: W. KNEALE, in "Mind", 1948, págs. 149-75. De Frege: Aritmetica e logica, trad. ital., L. Geymonat, Turim, 1948 (contém 1 fondamenti dell'aritmetica, Oggetto e concetto, Concetto e rappresentazione, 235 **RUSSELL (FALTA AQUI UMA PEQUENA PARTE, POR CAUSA DA FOTOGRAFIA) rias éticas e sociais, foi obrigado a deixar o City College de Nova Iorque; em 1943, pelo mesmo motivo, a Fundação Barnes de Marion, na Pensilvânea, cancelou um contacto de cinco anos que lhe tinha oferecido. Em 1944 voltou à cátedra do Trinity College, terminando aí uma das suas obras fundamentais: O conhecimento humano, o seu âmbito e os seus limites. Em 1950 recebeu o prémio Nobel da literatura. ultimamente, habitando numa sua casa de campo no País de Gales, concentrou a sua actividade na defesa dos seus ideais é tico-políticos e, sobretudo, na defesa da liberdade e da paz. O próprio Russell declarou que o ano mais importante da sua vida intelectual foi o de 1900 quando, no Congresso internacional de filosofia, em Paris, verificou que Peano e os seus discípulos, nas suas discussões, apresentavam um rigor de concepções que não existia nos outros congressistas. Este facto levou-o a estudar a obra de Peano, tendo verificado que o simbolismo lógico podia aplicar o rigor matemático a outros domínios que tinham sido até então objecto da "imprecisão filosófica" (My Mental Development, in The Philosophy of Bertrand Russell, ao cuidado de Schilpp, p. 12). O primeiro resultado desta orientação foi a edição dos Princípios da matemática (1903), cujo conteúdo foi depois reelaborado, a fim de resolver o problema das antinomias, na grande obra em três volumes Principia Mathematica (1910-1913), que Russell escreveu em colaboração com Whitehead. Daí em diante, Russell expõe em numerosas obras a sua "filosofia científica": O nosso conhecimento do mundo externo, 1914; 238
O método científico na filosofia, 1914; Introdução à filosofia matemática, 1919; A análise do espírito, 1921; A análise da matéria, 1927; Panorama científico, 1931; O significado e a verdade, 1940; História da filosofia ocidental, 1945; O conhecimento humano: o seu âmbito e os seus limites, 1948. Simultaneamente, publicou numerosas obras que, de forma polémica, tratavam problemas de ética, política ou religião: Princípios de reconstrução social, 1916; Misticismo e Lógica e outros ensaios, 1918; Vias para a liberdade: socialismo, anarquismo e sindicalismo, 1918; A prática e a teoria do bolchevismo, 1920; Prospectiva da civilização industrial, 1923; Aquilo em que creio, 1925; Porque não sou cristão, 1927; Ensaios cépticos, 1928; Matrimónio e moral, 1929; A conquista da felicidade, 1930; A educação e a ordem social, 1932; Liberdade e organização 1814-1914, 1934; Religião e ciência, 1935; O poder, nova análise social, 1938; A autoridade e o indivíduo, 1949; Ensaios impopulares, 1951; A influência da ciência na sociedade, 1951. Alguns dos ensaios mais importantes sobre lógica e sobre a teoria do conhecimento estão agora recolhidos em Lógica e conhecimento, Ensaios 1901-50, 1956. § 799. RUSSELL: A LóGICA: CARACTERÍSTICAS A obra lógica de Russell é o seu maior contributo para o pensamento contemporâneo. Os Princípios de Matemática e os Principia Mathematica são considerados clássicos, sendo comparados com os maiores 239 0@' .01 - escritos sobre a lógica da Antiguidade e da Idade Média. Mas a influência destas obras exerceu-se num sentido diferente daquele que pretendia o seu autor, que acabou por aceitar em parte os resultados obtidos em tal direcção. As características fundamentais da lógica de Russell são duas: a identificação da lógica com a matemática e a sua tendência realista. Quanto ao primeiro aspecto, disse Russell: "Se não fosse o desejo de nos prendermos ao hábito, poderíamos identificar a matemática à lógica e definir uma e outra como sendo o conjunto de proposições que apenas contêm variáveis e constantes lógicas; mas o respeito pela tradição leva-me a preferir a distinção habitual, se bem que reconheça que estas proposições pertencem a ambas as ciências" (The Principles of Mathematics, § 10). A distinção a que Russell alude é a de que a lógica é constituída pelas "premissas da matemática" (Ib., § 10). A posição de Russell é portanto a do chamado logicismo, o qual defende uma prioridade da lógica sobre a matemática e assume a lógica como guia ou disciplina intrínseca da matemática. Esta, por sua vez, é definida por Russell como sendo "a classe de todas as proposições da forma 'p implica q', onde p e q são proposições contendo uma ou mais variáveis e não contendo nenhuma constante à excepção das constantes lógicas" (Ib., § 1). Constantes lógicas são as noções definíveis através da implicação, da relacionação de um termo com a classe a que pertence, da noção de tal que, da noção de relação e de outras noções similares
que possam entrar na noção geral de proposição. Serão 240 BERTRAND RUSSELL variáveis os termos precedidos de qualquer ou de algum. Assim, a proposição, a implicação, a classe, etc., serão constantes; mas uma proposição, qualquer proposição ou alguma proposição, não são constantes dado que denotam um objecto definido mas variável (Ib., § 6). A identidade entro a matemática e a lógica pode, segundo Russell, exprimir-se na sua forma mais simples observando que ambas têm por único objecto a teoria geral das relações. Se bem que o " cálculo das relações" seja considerado por Russell como constituindo a terceira parte da lógica simbólica, as outras duas partes, isto é, o cálculo das proposições e o cálculo das classes, referem-se igualmente a relações: o primeiro sobre as relações de inferência das proposições e o segundo sobre as relações do indivíduo com a classe a que pertence ou das classes entre si. A outra característica fundamental da lógica de Russell é a sua tendência realista. Criticando a doutrina de Lotze, Russell afirmava: "A aritmética deve ser descoberta do mesmo modo que Colombo descobriu as índias Ocidentais, e é-nos tão impossível inventar números como a Colombo inventar indianos. O número 2 não é puramente mental, constituindo antes uma entidade a que pode ser pensada. Tudo o que pode ser pensado tem existência, e tal existência é uma condição prévia e não um resultado do seu ser pensado" (Ib., § 427). Mais tarde, Russell declarava ter partilhado com Frege "a crença na realidade platónica dos números, os quais povoavam o reino intemporal do sem (Intr. à 2. ed. dos Principles, trad. ital., p. 14). Mas este platónico "reino 241 do ser foi sempre identificado por Russell com a própria estrutura do mundo. "A lógica, afirmava, ocupa-se do mundo real tal como a zoologia o faz, se bem que se ocupe primordialmente dos seus aspectos mais gerais e abstractos" (Introduction to Mathematical Philosophy, 1920, p. 169). E mesmo depois de ter renunciado a grande parte do seu "platonismo", reduzindo a "ficções" ou a "mitos" muitas das "entidades" em que anteriormente acreditara, Russell nunca negou que a matemática e a lógica constituíssem de certo modo a substância das coisas. "Não desejamos apenas que os nossos números verifiquem as fórmulas matemáticas, mas sim que se apliquem de forma exacta aos objectos que encontramos" (Intr., cit., trad. ital., p. 20). E contra o formalismo de Hilbert (§ 794), afirmava: "A aplicação do número ao material empírico não faz parte nem da lógica nem da aritmética; mas uma teoria que a torne a priori impossível não é correcta. A definição lógica dos números toma inteligível a sua relação com o mundo efectivo dos
objectos que se podem contar; mas já não acontece assim com a teoria formalista" (Intr., à 2.a ed. dos Principles, trad. ital., p. 7). A lógica de Russell está portanto em polémica com a tendência mentalista ou subjectivista da lógica como "arte de pensar" que surgiu na tradição ocidental a partir da lógica de Port Royal (§416). Mas, por outro lado, concorda com o conceito clássico e já antigo da lógica, mais concretamente com o seu conceito aristotélico, isto é, como estrutura necessária ou intemporal do ser. Os Princípios da matemática 242 contêm assim, para além dos conceitos fundamentais da matemática, os do espaço (parte VI) e os da matéria e do movimento (parte VII), pretendendo deste modo fornecer a base lógica do mundo. Deste ponto de vista, compreende-se que Russell não tenha aceite o método axiomático e a interpretação convencionalista dos axiomas: "Parece-me que estes axiomas deveriam ter, ou então não ter, as características de verdades formais que são próprias da lógica, o que implica que, no primeiro caso, esta deveria incluí-los, enquanto que no segundo deveria excluí-los totalmente; mas sou obrigado a confessar que não consigo dar nenhuma explicação clara daquilo que se pretende dizer ao afirmar que urna proposição 6 verdadeira devido à sua forma" (Intr. à 2.a ed. dos Principles, trad. ital., p. 19). § 800. RUSSELL: A LÓGICA: DIVISõES FUNDAMENTAIS Como vimos, ede acordo com Russell, as partes da lógica são: o cálculo das proposições, o cálculo das classes e o cálculo das relações. O cálculo das proposições estuda as relações de implicação material entre as proposições. Entende-se por implicação material aquela que é verdadeira se o for a conclusão. A implicação "Sócrates é um homem implica que Sócrates é mortal" é uma implicação formal que exige, para ser verdadeira, que o sejam ambas as proposições que a constituem; isto permite-nos substituir, nesta implicação, Sócrates por qualquer outro homem mas não por qualquer outra entidade. Pelo con243 trário, na implicação material a variável pode ser substituída por uma entidade qualquer, isto é, por um outro homem, por uma torta, uma árvore ou uma pedra. Pode-se até dizer, por exemplo, "Se Napoleão foi inglês, Sócrates é mortal ou "Se Sócrates foi um elefante, Napoleão foi francês". Estas implicações são válidas materialmente porque a conclusão é verdadeira. Mas não se pode dizer "Se Sócrates é homem, Napoleão foi francês", pois nesta implicação a tese é falsa. Este tipo de implicação está em desacordo com a noção comum de raciocínio dedutivo, isto é, daquela que o define como uma relação intrínseca entre as proposições que o constituem; mas, como Russell demonstrou, só ele permite a generalização matemática. De acordo com a noção de implicação material, as proposições falsas implicam todas as proposições e as verdadeiras são implicadas por todas as proposições. Por outro lado, dadas duas proposições quaisquer, uma delas implicará sempre a outra. É nesta base que a lógica de Russell estabelece a prova das leis da contradição e do terceiro excluído, e ainda das propriedades formais da multiplicação lógica (que consiste na afirmação simultânea de duas proposições, isto é, "p e q") e da adição lógica (que consiste na distinção entre duas proposições, isto é "p ou q").
No cálculo das classes, Russell distingue a classe do conceito-classe ou predicado que a define; assim, os homens constituem uma classe, enquanto que o homem é um conceitoclasse. Russell pensa que dos dois aspectos que a lógica sempre considerou, a extensão e a intenção (que outros autores designam 244 por denotação e conotação), o primeiro seria o mais importante, sendo a classe interpretada no sentido da extensão. Deste ponto de vista, a classe ou é expressa por um único termo (se for considerada na sua totalidade) ou pela combinação de termos onde estes são relacionados pela conjunção e. Assim, a frase "Sócrates é um homem" pode ser interpretada de qualquer destas formas 1.0--"Sócrates é humano" ou "Sócrates tem humanidade", que é a interpretação predicativa ou simplesmente intensional da própria frase; 2.O "Sócrates é um-homem" que exprime a identidade de Sócrates com um dos termos denotados por um homem; 3.O - "Sócrates é um entre os homens"; 4.O - "Sócrates pertence à raça humana". Só esta última exprime a relação de um indivíduo com a sua classe e permite considerar a classe como una e não como múltipla; isto é, na forma requerida pela possibilidade da relação. Ela constitui a expressão absolutamente extensional daquela proposição e é a forma que mais nos aparece na matemática simbólica, se bem que esta não possa, segundo Russell, prescindir dos conceitos-classe e da intenção (Principles, § 79). No campo do cálculo das classes é ainda introduzido o conceito de função proposicional, que se obtém substituindo Sócrates por x na proposição "Sócrates é um homem". A proposição "x é um homem" será uma função proposicional verdadeira para alguns valores da variável (para aqueles que substituem x por Sócrates, Platão ou qualquer outro homem) e falsa para outros. Os valores que a tornam verdadeira introduzem o conceito de tal que. Assim: Sócrates é tal que, substituindo x na função "x é um 245 homem", a torna verdadeira. O silogismo é interpretado por Russell em termos de classes e de inclusões nas classes: se a está contido em b e se b está contido em c, então a está contido em c. Introduz ainda o conceito de classe vazia, que pode ser definida de várias formas: como uma classe que não existe, isto é, que não tem nenhum termo; como uma classe tal que a função proposicional "x é um N" é falsa para todos os valores de x; como a classe dos x tal que nenhum dos seus valores -satisfaça qualquer função proposicional. Nestas duas partes da lógica Russell baseava-se na obra de Peano e na lógica clássica. Na lógica das relações ele refere-se particularmente à obra de Peirce (§ 750). "Uma análise adequada do raciocínio matemático, afirma Russel, demonstra que os tipos de relação constituem precisamente o seu objecto de estudo, se bem que uma terminologia imprópria possa esconder este facto, é por isso que a lógica das relações se refere mais imediatamente à matemática do que a lógica das classes ou a das proposições, sendo apenas ela que permite uma expressão teoricamente correcta e adequada das verdades matemáticas" (Ib., § 27). A lógica das relações estabelece a diferença fundamental entre a velha e a nova lógica: a velha considerava uma única forma de proposição, aquela que resulta da existência de um sujeito e de um predicado (por exemplo: "esta coisa é redonda ou
vermelha", etc.) e que se baseia no pressuposto metafísico de que não existem senão as coisas e as suas qualidades; a nova lógica toma como objecto as proposições que exprimem uma relação (por exemplo: 246 a é maior do que b, ou então: a é irmão de b) e nega que as relações possam ser reduzidas às qualidades das coisas. Com efeito, a classificação fundamental das relações estabelecida por Russell, torna impossível esta identificação. Uma relação pode ser simétrica ou assimétrica, transitiva ou intransitiva. É simétrica se, sendo definida entre a e b, também o é entre b e a; é assimétrica no caso contrário. A relação de fraternidade, por exemplo, é simétrica: se a é irmão ou irmã de b, b é irmão ou irmã de a. Pelo contrário, as relações expressas pelas palavras marido, pai, avô, etc., são assimétricas, sendo-o igualmente todas as relações expressas pelas palavras: à frente de, maior, acima de, etc. Uma relação é transitiva sempre que, existindo entre a e b e entre b e c, exista também entre a e c; não é transitiva quando, nas mesmas condições, não existir entre a e c. São transitivas as relações de primeiro, depois, maior acima de, e ainda as relações simétrica,-, de igualdade, identidade, etc. São intransitivas aquelas que são expressas pelas palavras: pai de, maior do que unia polegada de, um ano depois de, etc. Ora se as relações simétricas, transitivas ou intransitivas, podem exprimir a existência de qualidades comuns ou diferentes, as relações assimétricas tais como primeiro, depois, maior, mais pequeno, etc., não exprimem a existência de qualquer qualidade e não são portanto redutíveis a qualidades das coisas. A existência de tais relações torna impossível o pressuposto da velha lógica (e da velha metafísica) segundo o qual apenas existem as coisas e as suas qualidades. Um proposição que exprima que uma coisa tem 247 uma certa qualidade ou que certas coisas existem numa determinada relação, é unia proposição atómica, isto é, a forma mais simples de proposição. Afirmar ou negar uma proposição atómica (por ex., "isto é vermelho", " isto precede aquilo") só pode fazer-se partindo da experiência, pois as proposições atómicas não podem ser deduzidas de outras proposições. A lógica pura, por outro lado, é independente dos factos expressos pelas proposições atómicas (factos atómicos); deste modo, a lógica pura e os factos atómicos são dois pólos opostos entre os quais existe uma região intermédia onde se situa aquilo a que Russell chama proposições moleculares do tipo "se chover, levarei o chapéu-de-chuva", que incluem o conteúdo dos factos atómicos (a chuva e o levar o chapéu-de-chuva) mas que incluem ainda uma relação entre estes factos, que já não pode ser reduzida a um facto atómico, Existem também proposições gerais que não podem ser reduzidas a factos atómicos; por exemplo, a proposição "Todos os homens ,são mortais" nunca será suficientemente justificada partindo da observação e dos factos atómicos. Na lógica, a fórmula das
proposições gerais é a seguinte: "Se Sócrates é um homem e se todos os homens são mortais, Sócrates é mortal", isto é, "Se uma coisa possui uma dada propriedade e se tudo aquilo que possui essa propriedade possui igualmente uma outra propriedade, então a coisa de que falamos possuí essa outra propriedade". A matemática e a lógica estão de acordo em todos os pontos da teoria geral das relações. Contar significa estabelecer uma relação de termo a termo 248 entre a série dos objectos contáveis e os números naturais. E o número natural, aquele que utilizamos ao contar, não é nem um número particular nem as várias colecções de objectos a que são aplicáveis os números particulares: é antes aquilo que todos os núnieros têm em comum. O número 12, por exemplo, não é nem os 12 apóstolos nem as 12 tribos de Israel, os 12 signos do Zodíaco ou qualquer outra colecção ou classe de 12 objectos; será aquilo que todas estas colecções ou classes têm em comum, podendo assim ser definido como "a classe de todas as classes que lhe são semelhantes", isto é, a classe de todas as classes cujos termos têm uma relação de um a um entre si. Todas as classes de 12 objectos são tais que qualquer membro de uma delas corresponde a um e um só membro de qualquer outra classe (e é nisto que consiste precisamente a relação de semelhança), dado que a classe de todas estas classes é o número 12. Se definirmos assim o número particular, o número em geral será apenas o conjunto constituído pelo número dos seus membros ou, como Russell diz, "número é aquela entidade que é o número de Lima dada classe". Então, utilizando o princípio da indução matemática que fora admitido por Peano e que o próprio Russell transformou em definição ("Toda a propriedade de que gozem o zero e o sucessor de um número que tenha essa propriedade, pertence a to-dos os números naturais), é possível transformar em enunciados lógicos as afirmações de toda a teoria dos números reais e, assim, reduzir completamente a matemática à lógica (dentro dos limites em que a matemática pode ser deduzida da teoria dos núme249 ros reais). Russell chama indutivos aos números naturais, indicando assim que a sua definição obriga ao uso da indução matemática; mas considera que existem números não indutivos aos quais não se aplicam todas as propriedades induzidas: os números infinitos. Estes números são definidos por Russell, no mesmo sentido de Cantor e de Dedekind, como uma classe "reflexiva", isto é, semelhante a uma sua parte (entendendo-se aqui semelhança como correspondência termo a termo) (Cfr. § 794). Mas até no uso do processo reflexivo Russell encontrou aquelas antinomias cujo reconhecimento e cujas tentativas de solução conduziram a uma importante viragem não só na sua obra como ainda em toda a lógica contemporânea.
§ 801. RUSSELL: AS ANTINOMIAS Numa adenda (datada de Outubro de 1902) ao segundo volume dos seus Grundgesetze der Arithmetik (1903), Frege referia-se a uma carta de Russell em que este lhe comunicava a descoberta de uma contradição na teoria das classes. E o próprio Russell, nos Principles, publicados nesse mesmo ano, exprimia assim a contradição: "Um conceito-classe pode ser ou não um termo da própria extensão [p. ex., a classe dos conceitos, sendo também um conceito, é um termo da sua própria extensão; a classe dos homens, não sendo um homem, não é um termo da sua própria extensão]. A expressão, conceito-classe que não é um termo da sua própria extensão, é claramente um conceito-classe. Mas se ela é um termo da sua 250 extensão, será um conceito-classe que não é um termo da sua própria extensão e viceversa" (Principles, § 101). Por outras palavras: a classe de todas as classes que não se contêm a si próprias como elementos (chamemos-lhe K) é ou não um elemento de si mesma? Se K está contido em si mesmo, conterá uma classe que se contém a si própria como elemento e, portanto, não será "a classe das classes que não se contêm a si mesmas como elementos". Se K não está contido em si mesmo, entra assim na colecção das classes que não se contêm a si próprias como elementos e deverá portanto estar contido em si mesmo. Em qualquer dos casos, obtém-se uma contradição. Esta contradição parecia pôr em crise toda a teoria das classes. Mas não continuou sozinha; outros paradoxos ou antinomias foram assinalados ou recordados, tais como o antiquíssimo paradoxo do mentiroso ou de Epiménides que já tinha sido discutido pela lógica antiga e medieval. Num artigo publicado em 1908 (A lógica matemática baseada na teoria dos tipos, agora em Logic and Knowledge, págs. 59-102) Russell, recordando estas antinomias, assinalava que todas elas têm em comum a auto-referência w reflexividade, isto é, todas elas partem do seguinte princípio: se considerarmos uma totalidade, por exemplo, a totalidade dos x, essa totalidade está incluída entre os x e é, ela própria, um x. Logo, poderemos evitar as antinomias assumindo como regra que nenhuma totalidade possa ser considerada como elemento dessa mesma totalidade; mas este princípio é puramente negativo e não nos fornece nenhuma indicação sobre 251
a forma como os paradoxos possam ser resolvidos. Para responder a este problema Russell elaborou a chamada teoria dos tipos, exposta no apêndice aos Princípios da matemática. Segundo esta teoria, devemos considerar vários tipos de conceitos: os de tipo zero, isto é, os conceitos individuais tais como os nomes próprios; os do tipo um, que são propriedades dos indivíduos (por ex., branco, vermelho, grande, etc.); os do tipo dois, que são as propriedades das propriedades, e assim por diante. Então, a regra para evitar a antinomia será a seguinte: um conceito não pode ser predicado numa proposição cujo sujeito seja de tipo igual ou superior ao conceito dado.
Em seguida, Russell insere nesta teoria dos tipos urna teoria dos graus, dando lugar à chamada teoria ramificada dos tipos, que vem exposta no artigo publicado em 1908 e, de uma forma mais ampla, nos Principia Mathematica (1, Intr., cap. 11); e formulou um axioma de redutibilidade que afirma a existência, para toda a função proposicional de qualquer nível, de uma outra função proposicional, formalmente equivalente, de primeiro nível. Mas este princípio, introduzido por Russell para tornar possíveis certas generalizações matemáticas, parecia reintroduzir a possibilidade de afirmações antinómicas resultantes da combinação de tipos diferentes de termos; e o próprio Russell aconselhou o seu abandono na introdução à segunda edição dos Principia Mathematica (1925). Por outro lado, a teoria ramificada dos tipos introduzia no conjunto da teoria lógica uma complexidade que muitos lógicos e matemáticos consideraram inútil. 252 Depois de Russell, o problema das antinomias tornou-se um dos pontos-chave da lógica contemporânea. Por proposta de Rarasey (Foundations of Mathematics, 1931), distinguem-se hoje as antinomias lógicas (num sentido restrito), exemplificadas pela antinomia de Russell e que não se referem à verdade ou falsidade das expressões, e as antinomias sintácticas, exemplificadas pela antinomia do mentiroso e que nascem duma referência semântica, sendo por isso chamadas semânticas ou epistemológicas. Para as antinomias lógicas, Rarasey notou que bastava considerar a teoria simples dos tipos, cuja regra foi for- mulada por Carnap do seguinte modo: "Um predicado pertence sempre a um tipo diferente do dos seus argumentos (isto é, pertence a um nível mais elevado)" (The Logical Syntax of Language, § 60 a). Esta regra basta para evitar que uma classe (que é também um predicado) possa ser predicado de si mesma, e evita assim a antinomia das classes. Por outro lado, no caso das antinomias sintácticas, a distinção dos níveis da linguagem, estabelecida por Tarski (§ 820), permite-nos considerar que a mesma proposição possa ser verdadeira a um dado nível e falsa a outro. Assim, a frase "eu minto" pode ser verdadeira ao nível daquilo que Tarski chamava a linguagem objecto, e falsa se for auto-reflexiva, isto é, se for compreendida como referindo-se a si própria. Esta solução, que faz uso do teorema de Gõdel (§ 794), é defendida por Carnap (Logical Syntax of Language, § 60 b) e por Quine (Mathema253 tical Logic, 1940, cap. VII; From a Logical Point of View, VII, 3). § 802. RUSSELL: TEORIA DA LINGUAGEM Como se disse, a lógica de Russell tem uma filiação realista. Mas ao longo da sua vida, o próprio autor atenuou e negou parcialmente o seu realismo. Os Princípios de Matemática (1903) e os Principia Mathematica (1910) revelam já notáveis diferenças sob este aspecto. Na primeira obra, as classes são realidades objectivas, tão reais como os "indivíduos" que os compõem; na segunda obra, são considerados como "convenções simbólicas ou linguísticas, não autênticos objectos" (Principia Mathematica, 1, p. 72). Na primeira, dizia ainda que "termo é qualquer entidade que possa ser objecto do pensamento e que possa encontrar-se numa proposição verdadeira ou falsa" e que "todo o termo tem uma existência, isto é, existe de qualquer modo" (Principles,
§ 47). Na segunda, admite que todos os vocábulos contribuem para o significado da frase em que se encontram, mas que nem sempre têm um significado. Esta atenuação do realismo é acompanhada por uma crescente preocupação pela importância da linguagem e da natureza linguística de muitos termos ou construções lógicas; mas a própria teoria da linguagem de Russell é de natureza realista. A obra sobre a denotação, publicada em 1905, e cujos resultados foram depois incluídos nos Principia mathematica, e a Filosofia do atomismo lógico, de 254 1908, contêm a teoria da linguagem de Russell, na qual se baseia ainda a Indagação sobre o significado e a verdade. Os pontos mais importantes desta teoria podem indicar-se do seguinte modo: 1.o A linguagem é constituída por proposições. 2.O Os constituintes das proposições, isto é, os símbolos, significam os constituintes dos factos que tornam as proposições verdadeiras ou falsas; ou, por outras palavras, correspondem a esses constituintes. 3.O É preciso ter um conhecimento directo (acquaintance) dos constituintes dos factos para poder compreender o significado dos símbolos. 4.O O conhecimento directo difere de indivíduo para indivíduo (Logic and Knowledge, págs. 195-96). Uma linguagem logicamente perfeita basear-se-ia nos três primeiros pontos. Nela "apenas existiria uma palavra para qualquer objecto simples, e qualquer coisa que não fosse simples exprimir-se-ia por uma combinação de palavras, sendo cada uma delas um componente simples. Uma linguagem deste género seria completamente analítica e mostraria claramente a estrutura lógica dos factos afirmados ou nega-dos" (Ib., págs. 178-98). Segundo Russell, a linguagem dos Principia Mathematica tenta ser uma linguagem deste tipo. Nela existe apenas sintaxe e nenhum vocabulário; juntando-lhe o vocabulário, tornar-se-ia uma linguagem logicamente perfeita. O quarto ponto torna irrealizável este ideal. Na medida em que diferentes pessoas têm conhecimento directo de objectos diferentes, se cada palavra não tivesse apenas um significado, aquele que corresponde ao objecto que existe na experiência directa da pessoa 255 que fala, esta nunca poderia comunicar com os outros. Paradoxalmente, segundo Russell, a linguagem só pode exercer a sua função de comunicação sendo imperfeita e ambígua; dirse-ia que serve tanto melhor para a comunicação quanto mais é imperfeita, vaga e ambígua. Deste ponto de vista, a existência dos objectos que são os componentes dos factos e que constituem os significados dos símbolos, é indispensável para a linguagem. Mas nas proposições da linguagem existem não só nomes, que são símbolos de objectos particulares, mas também verbos, que exprimem relações entre tais objectos; e as relações não são objectos perceptíveis particulares, mas sim universais. Russell é assim levado a
admitir a existência dos universais. "Parece, afirma no Inquiry imo Meaning and Truth, que não é possível deixar de admitir que as relações fazem parte da constituição não linguística do mundo; a semelhança, e talvez ainda as relações assimétricas, não podem ser consideradas, do mesmo modo que o "ou" e o "não", como pertencendo apenas à linguagem. Palavras como "primeiro" e "sobre", tal como os nomes próprios, significam qualquer coisa que pertence aos objectos da percepção" (efr. ainda Reply to Criticism, in The Phil. of B. R., p. 688). O conceito de existência é assim generalizado, na filosofia de Russell, até compreender não só as coisas físicas, existentes no espaço e no tempo, como ainda as coisas a que ele chama intemporais; mas sobre aquilo que se deve entender por existência, neste seu sentido mais generalizado, as determinações de Russell são incertas e equívocas. Uma 256 única determinação é clara: a negativa, que exclui que a existência seja possibilidade. Russell chama possível à função proposicional que só algumas vezes é verdadeira, como por exemplo, "x -- um homem"; chama necessária àquela que é sempre verdadeira ("se x é um homem, x é mortal"), e chama impossível à que nunca é verdadeira ("x é um unicórnio"). Acrescenta, no entanto, que as proposições possíveis o são apenas porque existem casos em que são verdadeiras, isto é, em que correspondem aos factos, já que a existência é o pressuposto da possibilidade (Logic and Knowledge, págs. 230, 254). Por outro lado, Russell admite que se possa falar de objectos não existentes e de objectos de que não se tem uma consciência directa; ambos os casos estão em contradição com as condições que ele atribuiu à estrutura da linguagem. Para resolver este problema, elaborou a teoria da denotação (exposta pela primeira vez num artigo de 1905, On Denoting, agora em Logic and Knowledge). De acordo com esta teoria, existem frases que não dizem verdadeiramente nada sobre os objectos existentes mas que dizem alguma coisa sobre os símbolos existentes na própria frase. Por exemplo, a frase "0 autor de Waverley é escocês" nada nos diz sobre Scott (porque não contém nenhum constituinte que denote Scott), mas deve ser interpretada como se dissesse: "Existe apenas uma entidade que escreve Waverley, e tal entidade é escocesa". Uma tal tradução da frase denotante -torna possível falar até de coisas não existentes. Assim, a frase "0 actual rei de França é calvo" deve ser traduzida do seguinte modo: "Existe uma enti257 dade que é actualmente rei de França e essa entidade é calva". Esta frase é evidentemente falsa, mas tem um significado que pode ser expresso e compreendido. Este ponto de ^vista elimina a necessidade de admitir, como pretendia Meinong, a existência de objectos ou entidades correspondentes a todos os símbolos usados na linguagem. Mesmo as proposições idênticas que contenham objectos impossíveis, são falsas deste ponto de vista; assim, "0 quadrado redondo é redondo", que significa "Existe uma única entidade que é quadrada e redonda e esta entidade é redonda" é uma proposição falsa, e não verdadeira como queria Meinong (Logic and Knowledge, p. 54). A teoria da denotação pretende tornar inútil o uso da intenção ou conotação na análise das proposições. Frege admitia a possibilidade de um
mesmo objecto poder ser conotado de diversos sentidos; por exemplo, Scott poderia ser conotado pelo nome "Scott" ou por " autor de Waverley". Russell não admite que o sentido ou conotação possa seguir uma regra diferente da que rege o significado: se o objecto significado é uno, os seus sentidos ou conotações devem poder ser substituídos uns pelos outros. Não será o mesmo dizer "Quem era o autor de Waverley?" ou "Quem era Scott?"? A teoria da denotação permite identificar os sentidos quando o significado é único, e isto porque permite dizer que "um e um só homem escreveu Waverley, e esse homem foi Scott". No entanto, esta eliminação do uso da conotação, isto é, do sentido (Sinn) segundo Frege, na qual se baseia a doutrina da denotação, não é aceite pelos lógicos contemporâneos. 258 § 803. RUSSELL: A TEORIA DO CONHECIMENTO Quando em 1943 Russell escreveu, para o volume dos "Living Philosophers" que lhe era dedicado, um esquema do seu "desenvolvimento mental", ao declarar-se insatisfeito com todas as suas obras publicadas exceptuando as de lógica matemática, disse: "A teoria do conhecimento, a que dediquei muita atenção, tem uma certa subjectividade essencial: obriga-nos a pensar "Como conheço eu aquilo que conheço?", e assume inevitavelmente como ponto de partida a experiência pessoal. Os seus dados são egocêntricos, assim como os primeiros estádios da sua argumentação" (The Phil. of B. R., p. 16). E a obra em que os problemas do conhecimento são tratados de uma forma mais completa e madura, O conhecimento humano, o seu âmbito e os seus limites (1948), tem uma introdução que se inicia com as seguintes palavras: "A tarefa principal deste livro consiste em examinar a relação entre a experiência individual e o corpo geral do conhecimento científico". Russell nunca duvidou de que o ponto de partida do conhecimento seja a experiência individual, o domínio privado ou "egocêntrico" dos dados imediatos; mas também nunca admitiu que o conhecimento pudesse ser reduzido a esse domínio, antes afirmando que ele compreende um outro campo que só pode ser alcançado da inferência e que só pode ser reconhecido e expresso de uma forma completamente diferente do primeiro; e isto porque os seus elementos não são iguais aos que constituem o domínio privado. Enquanto ponto de 259 partida de todo o conhecimento, a experiência não pode ser, segundo Russell, um método de verificação. É neste ponto que se baseia a crítica de Russell ao neo-empirismo (cfr. capítulo XIII). Quando os neo-empiristas afirmam que "o significado de uma proposição é o método da sua verificação", descuram as proposições mais correctas, isto é, os juízos de percepção: para estes não existe nenhum método de verificação porque "constituem a verificação de todas as outras proposições empíricas que podem ser conhecidas de qualquer modo" (An Inquiry imo Meaning and Truth, p. 387). Por outro lado, os neoempiristas não tomam em conta o facto de todas as palavras necessárias terem definições ostensivas (que são aquelas que ensinam a compreender uma palavra sem usar
outras palavras, isto é, fazendo referência ao dado imediato a que a palavra se refere) e de um enunciado poder ser compreendido se for composto por palavras que nós compreendemos, mesmo que não tenhamos uma experiência que corresponda ao significado total do próprio enunciado (Ib., p. 386). Esta crítica confirma o facto de a experiência não ser para Russell um método de verificação dos enunciados mas antes o ponto de partida de que nasce o conhecimento e a linguagem. Mas enquanto ponto de partida, a experiência é imediata e privada. Os Problemas da filosofia (1912) já continham uma exposição completa e ordenada daquilo que Russell pretende dizer com estes termos. A experiência é a esfera do conhecimento directo (acquaintance), de cujos objectos "ternos uma consciência directa, sem necessitarmos de nenhum processo intermédio de in260 ferência ou de qualquer conhecimento da verdade". Os objectos do conhecimento directo não são as coisas mas sim os dados sensíveis, por um lado, os dados da introspecção (isto é, da reflexão no sentido dado por Locke) por outro lado, e ainda aqueles que nos são fornecidos pela memória. É ainda provável, segundo Russell, que tenhamos um conhecimento directo de nós mesmos, isto é, do nosso eu, já que não podemos conceber a verdade da proposição "Eu tenho conhecimento imediato dos dados sensíveis" se não tivermos um conhecimento imediato de qualquer coisa a que chamamos "eu". Russell admite ainda que haja um conhecimento imediato de universais (isto é, das relações que entram como componentes essenciais em qualquer enunciado), e que tal conhecimento seja o conceito. Mas para além do conhecimento imediato, existe aquilo que Russell chama conhecimento por descrição, constituído pelo conhecimento das verdades; neste caso, aquilo que conhecemos é precisamente uma descrição, e sabemos ainda que só existe um objecto a que se aplica essa descrição mesmo que não o conheçamos directamente. A mesa que está à minha frente, por exemplo, é "o objecto físico que causa este ou aquele dado sensível": esta frase descreve a mesa por meio dos dados sensíveis. Quer se trate de objectos físicos ou do espírito de outra pessoa, o nosso conhecimento nunca é directo, é antes um conhecimento por descrição. Mas o conhecimento por descrição é sempre redutível de qualquer forma ao conhecimento directo. É nisto que se baseia o princípio que regula a análise das proposições: "Toda 261 a proposição que nós possamos compreender deve ser composta inteiramente por constituintes de que nós tenhamos um conhecimento imediato". E vimos que este princípio é a base da lógica e da teoria do conhecimento de Russell. Como consequência do privilégio que Russell atribui à experiência imediata e pessoal, o solipsismo foi sempre uma tentação para este autor; mas foi uma tentação à qual ele nunca cedeu. Russell reconheceu a coerência e a força de solipsismo rigoroso que se
recusa a fugir aos dados imediatos do momento; mas também afirmou sempre que, se admitirmos como boa a inferência sobre o espírito das outras pessoas a partir de tais dados, teremos que considerar boa a inferência acerca das coisas que parte desses mesmos dados; donde se conclui que o solipsismo atenuado (ou o idealismo no sentido de Berkeley) não é defensável (Human Knowledge, p. 196). No entanto, a inferência de coisas físicas ou do espírito das outras pessoas a partir do dado imediato é considerada por Russell bastante difícil, na medida em que reconhece o carácter privado ou pessoal do próprio dado. "Se o dado da minha percepção é sempre privado, porque é que eu o considero como um signo por meio do qual posso inferir uma coisa física?". Russell responde a esta pergunta admitindo, com uma certa incongruência, o carácter "quase público" de muitas sensações, o que justifica, por exemplo, que "dois homens vizinhos, que não têm exactamente os mesmos dados visíveis, tenham dados semelhantes" (Ib., p. 242); mas é óbvio que esta semelhança não é um dado mas sim uma inferência 262 porque os dados que pertencem a pessoas diferentes não Podem ser postos directamente em confronto - e não pode assim ser considerada como justificação da inferência. E na realidade as tentativas feitas repetidamente por Russell e apresentadas nos seus vários escritos, tendentes a determinar e a justificar as modalidades da inferência que parte destes dados para a realidade física ou psíquica a que se refere o senso comum e a ciência, fazem parte dos aspectos mais débeis da sua obra. São, mais do que verdadeiras inferências, tentativas de redução dos conceitos da ciência a dados psíquicos pressupostos, isto é, a dados que pela imediatez que lhes é atribuída ex hypothesi são assumidos como definitivos e indiscutíveis. Acontece ainda que estas tentativas de redução concluem muitas vezes pela negativa, tal como acontece com os conceitos da relatividade. "Dado que não existem dois seres humanos que tenham uma velocidade relativa próxima da da luz, a comparação das suas experiências nunca revelará as discrepâncias que resultariam do facto de os seus veículos se moverem à mesma velocidade das partículas beta. No estudo psicológico do espaço e do tempo, a teoria da relatividade pode ser ignorada" (Ib., p. 309). Por outro lado, a noção de inferência que é usada pelo senso comum e pela ciência é ilustrada por Russell num sentido mais de acordo com a lógica oitocentista do que com a moderna. O princípio da inferência seria constituído pelo seguinte postulado: "Quando um grupo de acontecimentos complexos, mais ou menos vizinhos e ordenados relativamente a um acontecimento central, tem uma estrutura comum, é pro263 vável que tenha um antecedente causal comum" (Ib., p. 483). Este princípio garantiria ainda, de acordo com Russell, a identidade de estruturas existente nas experiências sensíveis e nas suas causas físicas; mas na realidade isto não é mais do que uma retomada do velho postulado da uniformidade da natureza admitido por Suart Mill (§ 640), que já não é aceite pelos lógicos contemporâneos (§ 816). § 804. RUSSELL: A ÉTICA
Como todas as outras partes da filosofia de Russell, a ética tem o seu ponto de partida na experiência imediata e privada dos indivíduos. Esta experiência, no campo da ética, resume-se ao desejo. Quando um indivíduo diz "Isto é bom", dir-se-ia que está a fazer uma afirmação do tipo "Isto é um quadrado" ou "Isto, é doce". Mas na realidade aquilo que esse indivíduo pretende dizer é o seguinte: "Desejo que todos desejem isto". Os enunciados da ética não são proposições ou asserções cuja verdade ou falsidade possam ser provadas, mas sim meras expressões de desejo. "A ética, diz Russell, não contém asserções verdadeiras ou falsas, mas afirmações que traduzem desejos de um certo tipo geral, a saber, daquele que se refere aos desejos da humanidade em geral e dos deuses, anjos ou diabos, se existirem. A ciência pode discutir a causa dos desejos e os meios para actuar sobre eles mas não pode conter nenhum juízo genuinamente ético, dado que se refere àquilo que é verdadeiro ou falso" (Religion and 264 Science, cap. lX; trad. ital., p. 199). No entanto, se no seu ponto de partida o juízo ético é pessoal e privado, no seu objecto ele é universal dado que aquilo que é desejado é universal. Por outras palavras, deseja-se, em ética, que o desejo próprio seja o desejo de todos (Ib., p. 198; Power: A New Social Analisys, p. 247). A universalidade, que depois de Karit tem sido considerada como sendo a característica fundamental das normas morais, é referida por Russell aos desejos, mas não como critério de valoração dos próprios desejos; apenas como exigência, carácter que de facto possuem os desejos a que chamamos "morais". Deste ponto de vista, as regras morais servem apenas para realizar os fins que desejamos atingir. Mas esses fins não são aqueles que "devemos desejar", dado que aquilo que devemos desejar é apenas aquilo que qualquer outra pessoa deseja que nós desejemos (What 1 Believe, p. 29). Apesar do carácter díspar e contraditório dos desejos humanos, a tentativa de os disciplinar e de os coordenar a fim de atingir a máxima satisfação possível não pode ser omitida. As regras de que se servem os vários tipos de sociedades para atingir este fim constituem uma curiosa mistura de utilitarismo e de superstição, e como tal sacrificam normalmente o homem, os seus interesses, os seus instintos, a tabús de todo o género dos quais muitas vezes a única salvação é a hipocrisia. Russell entende que a moral deve procurar apenas alterar os desejos dos homens de modo a diminuir o número de ocasiões de conflito, tornando possível a realização dos respectivos desejos. "0 amor guiado 265
pelo, conhecimento" é aquilo que ele acha poder servir para este fim, segundo o que escreve no livro Aquilo em que creio (1925); outras vezes, exprime o mesmo
ideal como "conquista. da felicidade" (The Conquest of Happiness, 1930). De qualquer modo, não se trata de destruir as paixões mas sim de reforçar algumas delas em prejuízo daquelas que dão origem à infelicidade, ao desequilíbrio, ao ódio e à dor. "No amor apaixonado, no afecto pelos filhos, na amizade, na benevolência, na devoção à ciência ou à arte, não há nada que a razão deseje diminuir. O homem racional, quando sente uma ou todas estas emoções, ficará contente por as sentir e nada fará para diminuir a sua intensidade dado que elas fazem parte de uma vida bem vivida, isto é, de uma vida que favorece a nossa felicidade e a dos outros". Como se vê, Russell é muitas vezes incoerente, relativamente às suas premissas teóricas, ao determinar a tarefa da ética. É óbvio que uma disciplina racional dos desejos que tenha por fim reforçar alguns e abolir outros não tem nada que ver com os próprios desejos; e o fim que esta disciplina tenderia a realizar, a coexistência dos desejos ou a conquista da felicidade, não é por sua vez um desejo privado mas sim uma condição de realizabilidade dos próprios desejos, A disciplina dos desejos que Russell propõe não tem nenhum carácter religioso ou transcendente. Não existem valores absolutos, não se pode falar de "culpa" ou de "pecado". Russell limita-se a mostrar complacentemente os conflitos entre a religião e a ciência, conflitos que para ele significam a falsidade da religião; a ilustrar os aspectos mais supersticiosos 266 e incoerentes das doutrinas morais e religiosas tradicionais; a notar os desequilíbrios que estas introduzem no homem com todas as suas inibições e tabús, e a miséria da sua hipocrisia. Um espírito iluminista e voltaireano domina esta parte da sua obra que se exprimiu em ensaios vivos e populares que algumas vezes se tomaram escandalosos (e que por isso ele chamava muitas vezes de impopulares) mas que contribuíram grandemente, e ainda contribuem, para a formação de uma consciência moral mais aberta e sobretudo livre de dogmatismos. A luta' contra o dogmatismo e contra a sua consequência directa, a opressão da liberdade, resume toda a actividade a que Russell se dedicou nos últimos decénios. Este autor nunca esqueceu o risco de dogmatismo que se esconde na ciência ou, pelo menos, em certos usos possíveis das ciências. Nos seus livros Panorama científico, Religião e ciência, O impulso da ciência sobre a sociedade e em outros, Russell estudou os perigos de uma sociedade organizada cientificamente. "A nova ética, que se está a desenvolver ao mesmo tempo que a técnica científica, deve preocupar-se com a sociedade e não com o indivíduo. A nova ética não permitirá a existência da superstição do pecado e do castigo, mas tenderá a fazer sofrer os indivíduos a fim de salvar o bem público, e isto sem se sentir obrigada a provar que esse sofrimento seja merecido". Este desenvolvimento processar-se-á espontaneamente, mesmo que seja considerado imoral pelas tendências e teorias tradicionais. No entanto, uma sociedade científica assim organizada é incompatível com a procura da verdade, com o amor, a 267
rte, o prazer espontâneo e todos os ideais que o homem preferiu até hoje. A raiz deste perigo não está na ciência mas sim no seu uso como instrumento do poder. O espírito científico é cauteloso, procede por tentativas e é antidogmático: nunca julga conhecer toda a verdade nem mesmo que o seu melhor conhecimento seja inteiramente verdadeiro. Sabe que toda a doutrina será emendada mais tarde ou mais cedo e que a emenda necessária exige liberdade de investigação e liberdade de discussão. Mas por outro lado a técnica científica parece ter apostado em fazer surgir sonhos de poder e de domínio. "Os técnicos que utilizam a técnica científica e, mais ainda, os governos e as grandes indústrias que utilizam os técnicos adquirem uma mentalidade completamente diferente da que caracteriza o homem de ciência, uma mentalidade onde impera a convicção de um poder ilimitado, de uma certeza arrogante e de um prazer em manipular o material humano". Considerada deste ponto de vista, a ciência deixa de merecer a admiração ou o respeito. "A esfera dos valores está fora da ciência, salvo no que diz respeito ao facto de a ciência consistir na investigação do saber. A ciência, enquanto investigação do poder, não deve ser um obstáculo à esfera dos valores, e a técnica científica, se pretende enriquecer a vida humana, não deve superar os fins que deveria servir". Em conclusão, "os novos poderes que a ciência deu ao homem só podem ser manejados com segurança por aqueles que, devido ao estudo da história ou à experiência da sua vida, adquiriram um certo respeito pelos sentimentos humanos e ternura pelas paixões que dão 268 cor à existência dos homens e das mulheres". No entanto, Russell não duvida de que a ciência possa oferecer, na situação presente da humanidade, a possibilidade de um bemestar que a humanidade nunca conheceu. E isto porque ela permite resolver três problemas: o da abolição da guerra, o de uma igual distribuição das capacidades físicas e o da limitação do desenvolvimento das populações. Os obstáculos à realização destas condições não são físicos ou técnicos; antes relevam nas piores paixões dos homens: a suspeita, o medo, a volúpia da força, o ódio e a intolerância. Da vitória ou do desaparecimento destas paixões dependerá o futuro do mundo, o ser melhor ou pior do que aquele que conhecemos. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 798. Bibliografia completa dos escritos de Russell publicados até 1945 in The philosophy of B. R., ed. by P. A. Schilpp, Evanston, 111, 1946, págs. 746-91; até 1951, in "Rivista critica di storia della filosofia", 1953, págs. 308-26. Principais traduções italianas: I problemi della filosofia, Milão, 1922; Lleducazione dei nostri figli, Bari, 1934; Panorama Scientifico, Bari, 1934; Socialismo, anarchis,mo, sindicalismo, Milão, 1946; Introduzione alla filosofia matematica, Milão, 1947; La conquista deZIa felicità,
Milão, 1947; Storia della filosofia occidentale, Milão, 1948; Autorità e individuo, Milão, 1949; Matrimonio e morale, Milão, 1949; Storia delle idec nel secolo XIX, Turim, 1950; La conoscenza umana, le sue possibilità e i suoi Zimiti, Milão, 1951; 1 principi della matematica, Milão, 1951; Religione e scienza, Florença, 1951; Lleducazione e Vordinamento sociale, Florença, 269 1951; Nuove speranze in un mondo che cambia, Milão, 1952; ~pu-lso della scienza sulta società, Milão, 1952; Analisi della mente, Florença, 1955; Saggi mpopolari, Florença, 1963. Bibliografia dos escritos sobre Russeli, até 1951, in "Rivista. critica di storia della filosofia", 1953, págs. 330-35, ao cuidado de M. E. Reina. § 799. Sobre a lógica: JORGENSEN, A Treatise of Formal Logic, Copenhague-Londres, 1931, 1, págs. 145 e segs. III, págs. 161 e segs.; A. DARBON, La phiZosophie des mathématiques, Paris, 1949; K. GõDEL, ni The Phil. of B. R., cit, págs. 123-53; G. PRETi, In. "Rivista critica di storia della filosofia", 1953, pãgs. 139-74. § 802. Sobre a teoria da linguageni: M. BLACK, in The Phil. of B. R., cit., págs. 227-55, agora em Language and Philosophy, 1952, cap. V, trad. ital., págs. 139-76; P. F. STRAWSON, in "Mind", 1950, págs. 320-44. § 803. Sobre a teoria do conhecimento: A. EINSTEIN, in The Phil. of B. R., cit. págs. 27891. § 804. Sobre a ética: I. BUCHLER, E. S. BRIGHTMAN, E. C. LINDEMAN, I. I. MCGILL, in The Phil. of R. R., cit., pãgs. 511 e segs. 270 íND1CE VIII - O PRAGMÁTISMO
... ... ... ... ...
7
§749. Pragmatismo e pragmaticismo ... 7 §750. Peirce ... ... ... ... ... ... 9 §751. James ... ... ... ... ... ... 15 §752. Schiller ... ... ... ... ... ... 22 §753. Vaihinger ... ... ... ... ... 26 §754. De Unamuno ... ... ... ... ... 30 §755Ortega y Gasset ... ... ... ... 34 §756. Vailati ... ... ... ... ... ... 39 §757. Aliotta, ... ... ... ... ... ... 41 §758. Mead: a condicionalidade bicontinua ... ... ... ... ... ... 45 §759. Mead: sociabilidade do mundo 50 Nota
bibliográfica
IX - DEWEY
... ... ... 55
... ... ... ... ... ... ... ...
§ 760. A obra de Dewey
... ... ... ...
59 59 § 761. O conceito de experiência
... ...
61
271 § 762. A instabilidade da existência ... 64 § 763. A lógica ... ... ... ... ... ... 67 § 764. A teoria da indagação ... ... ... 69 § 765. Consciênoia, Espírito, Eu ... ... 74
§ 766. Valores e arte
. 1. ... ... ...
§ 767. A Filosofia
... ...
Nota bíbliogrUica
... ... ... ...
79
... ... ... 82 § 768. Religiosàdade e Religião
... ...
84
86
X -REALISMO E NATURALISMO
... ...
89
§ 769. Características do realismo ... 89 § 770. A filosofia da imanênciã ... ... 91 § 771. Killpe ... ... ... ... ... ... 93 § 772. Moore ... ... ... ... ... ... 96 § 773. Broad ... ... ... ... ... ... 102 § 774. O novo realismo americano ... 106 § 775. O realismo crítico americano ... 111 § 776. Santayana ... ... ... ... ... 116 § 777. Alexander ... ... ... ... 125 272 § 778. Whitehead ... ... ... ... ... 130 §779. Woodhridge. Randall ... ... ... 138 §780. M. R. Cohen ... ... ... ... ... 142 §7SI. O materialismo dialéctico ... ... 147 §782. O neo4omismo ... ... ... ... 155 Nota bibliográfica ... ... ... ... 160 XI - A FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS §783. Filosofia, Metodologia e
... ... 165
Crítica
das Ciências ... ... ... ... ... 165 §784. Avenarius ... ... ... ... ... 167 §785. Mach ... ... ... ... ... ... 170 §786. Hertz. Duliem ... ... ... ... 176 §787. Energetismo e vitalismo ... ... 178 §788. Meyerson ... ... ... ... ... 183 §789. O desenvolvimento crítico da geometria ... ... ... ... ... ... 187 §790. Podnearé ... ... ... ... ... 190 §791. O desenvolvimento crítico da física. A relatividade ... ... ... 194 273 § 792. A f"ea dos Quanta ... ... ... 198 § 793. Espiritualismo e empirismo 206 § 794. O desenvolvimento critico da matemática ... ... ... ... ... ... 211
...
§ 795. Desenvolvimento da lógica ... 217 § 796. Desenvolvimento da psicologia 221 § 797. A semiótica ... ... ... ... ... 225 Nota bibliográfica ... ... ... ... 232 XU - RUSSELL
... ... ... ... . .. ... ... 237
§ 798. Vida e Obra ... ... ... ... ... 237 § 799. A Lógica: caracteristicas ... ... 239 § 800. A Lógica: divisões fundamentais 243 § 801. As antinomias ... ... ... ... 250 § 802. Teoria da linguagem ... ... ... 254 § 803. A teoria do conhecimento ... ... 259 § 804. A ntica ... ... ... ... ... ... 264 Nota bibliográfica ... ... ... ... 269 274
Composto e impresso para a EDITORIAL PRESENÇA na Tipografia Nunes Porto O A
HistÓria da Filosofia Volume catorze Nicola A bbagnano obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes. Se quiser possuir obras do mesmo tipo ou, por outro lado, tem livros que não se importa de ceder, por favor, contacte-me: Ângelo Miguel Abrantes, R. das Açucenas, lote 7, Bairro Mata da Torre, 2785-291, S. Domingos de Rana. telef: 21.4442383. móvel: 91.9852117. Mail: [email protected] [email protected]. HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME XIV TRADUÇÃO DE: CONCEiÇÃO JARDIM EDUARDO LOCIO NOGUEIRA NUNO VALA.DAS CAPA DE: J. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES R. D. João I V, 590 - Porto EDITORIAL PRESENÇA . Lishoa 1970 TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. R. Augusto Gil, 2 e/v.-E. ~ Lisboa xiii O NEO-EMPIRISMO § 805. CARACTERISTICAS DO NEO-EMPIRISMO Sob o nome de "neo-empirismo" ou de "empirismo lógico" podem ser reagrupadas todas aquelas filosofias que entendem e praticam a filosofia como análise da linguagem. Mas por
análise da linguagem podem compreender-se duas coisas diferentes: 1.o A análise da linguagem científica, isto é, da linguagem própria das ciências parcelares; e neste caso a filosofia é reduzida à lógica, à qual é ainda atribuída a tarefa de determinar as condições gerais e formais que tornam possível uma qualquer linguagem. 2.o A análise da linguagem comum, isto é, das formas de expressão próprias do senso comum e usadas na vida quotidiana; e neste caso a tarefa da filosofia será a de interpretar estas formas e de investigar o seu significado ou os seus significados autênticos, eliminando os equívocos a que conduz o uso impróprio de tais significados. À primeira posição pode dar-se o nome de "positivismo lógico" porque, tal como o positivismo clássico, privilegia a ciência e considera-a como única forma válida de conhecimento. À segunda pode chamar-se "filosofia analítica", nome que é usado pelos seus próprios defensores. Ambas as formas do neo-empirismo consideram que a simplificação da linguagem conduz à eliminação dos problemas tradicionais da filosofia e, sobretudo, dos da metafísica que façam uso do vocabulário e da sintaxe da linguagem científica ou comum que é estranho a esse vocabulário e a essa sintaxe. Esses problemas tornam-se assim "privados de sentido" se a linguagem em que vêm expressos for reconduzida às suas regras. Reconhecê-los como privados de sentido é o papel curativo ou terapêutico da filosofia, da qual portanto se pode dizer que tem por tarefa a libertação da própria filosofia. A esfera da linguagem, isto é, dos significados ou dos usos linguísticos, tem no neoempirismo, e em certa medida, a função que a "experiência" tinha no velho empirismo; ou seja, a de constituir o critério ou norma da investigação filosófica. Mas o mais importante precedente histórico do neo-empirismo é a dicotomia instaurada por Hume entre as proposições que se referem às relações entre as ideias (tais como as proposições matemáticas) e as proposições que se referem a factos: as primeiras têm em si mesmas a sua verdade, as segundas só são verdadeiras se estiverem de acordo com a experiência (§ 468). Esta dicotomia é geralmente admitida pelas correntes neoempiristas, e é para elas, tal como para Hume, a base para a eliminação da metafísica, cujas proposições não entram nem numa nem noutra categoria. Mas a verificação empírica supõe o recurso a dados imediatos e, portanto, uma teoria da experiência, do mesmo modo que a análise das proposições matemáticas supõe a lógica. O neo-empirismo aproveita de Mach a teoria da experiencia, e de Russell os princípios fundamentais da sua indagação lógica. Simultâneamente, utiliza todo o rico património de investigações metodológicas provocadas pela tendência crítica prevalecente nas matemáticas, na física e nas outras ciências nos últimos decénios; e participa no enriquecimento dessa tendência com contributos de importância fundamental. § 806. ESCOLAS NEO-EMPIRISTAS O neo-empirismo foi primeiro uma tendência seguida pelo chamado "Círculo de Viena", isto é, por aquele conjunto de estudiosos de várias proveniências que se juntou, a partir de 1923, à volta de Moritz Schlick. O Tractatus, de Wittgenstein. (o qual, no entanto, só ocasionalmente se encontrava com alguns membros do Círculo), publicado pela primeira
vez nos "Annalen der Naturphilosophie" de 1921, e a obra de Carnap, que fora chamado para a Universidade de Viena em 1926, forneceram as principais bases das discussões do Círculo, nas quais tomaram parte, entre outros, H. Haim, F. Waisman, H. FeigI, Otto Neurath, Philip Frank, K. Gõdel, G. Bergmann, K. Popper e H. Kelsen. Ao Círculo de Viena ligou-se o grupo de Berlim, que se constituiu em 1928 com o nome de "Gesellschaft fü r empírische Philosophie" à volta de Hans Reichenbach, e que inclui entre outros K. Lewin, W. KõhIer e C. G. Hempel. A colaboração entre os dois grupos estabeleceu-se sobretudo na revista "Erkenntnis" que se publicou de 1930 a 1938 e que foi dirigida por Carnap e Reichenbach, Na Polónia, surgiu um movimento análogo por influência de Casimir Twardowsky, que fora aluno de Bolzano na Universidade de Viena e que renovou na Polónia a tradição dos estudos lógicos, mais tarde retomada por T. Kotarbinski, Jan. Lukasiewiez, Alfred Tarsky e muitos outros. Depois da vitória do nazismo na Alemanha e na Áustria, muitos representantes do neoempirismo retiraram-se para os Estados Unidos da América, tendo aí encontrado um ambiente receptivo sobretudo entre os pensadores da corrente pragmatista que se inspiravam em Peirce e Dewey. Foi assim possível retomar a ideia, expressa em 1929 numa espécie de manifesto, do Círculo, de uma "ciência unificada" que tivesse por objecto toda a realidade acessível ao homem e que se servisse de um único método de análise lógica. Nascia assim a Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada, que se começou a publicar em Chicago em 1938 sob a direcção 10 de Neurath, Carnap e Morris e que publicou monografias assinadas por cientistas e filósofos de muitos países (Bohr, Dewey, Rougier, Reichenbach, Russell, Tarski, etc.). Apesar do valor de muitos dos contributos publicados na Enciclopédia, não nos devemos esquecer de que ela mostra uma substancial diferença de opiniões sobre o próprio modo de entender a unidade da ciência. Com efeito, esta unidade é ainda compreendida por Neurath no sentido clássico, como combinação dos resultados das várias ciências e tentativa de os reunir num sistema axiomático, único (Internat. Enc. of Un. Sc., 1, 1, 1938, p. 20). É entendida por Dewey como uma exigência de estender o papel e a função da ciência a todo o palco da vida (Ib., p. 33); para Russell, apresenta-se como "unidade de método"; para Carnap, como unidade formal que respeita às "relações, lógicas entre os termos e as leis dos vários ramos da ciência" (Ib., p. 49); para Morris, como "uma ciência da ciência", isto é, implicando que tal unidade se verificasse no âmbito da semiótica, de que ele é defensor (Ib., p. 70). Por outros termos, o próprio conceito da ciência unificada não se apresenta suficientemente unificado nos seus diversos defensores, que atribuem a essa expressão significados diversos e demonstram assim, de facto, o seu carácter utópico. Na realidade, o conceito de unidade da ciência não é um conceito científico mas sim filosófico que, portanto, acolhe e respeita a diversidade das filosofias. Mais do que unidade, pode-se falar legitimamente de "conexões" ou relações recíprocas entre as ciências; e tais conexões ou relações constituem 11 problemas filosóficos importantes aos quais se dedicam útilmente os neo-empiristas (e não apenas eles).
Em 1939 Wittgenstein foi chamado a Cambridge, na Inglaterra, para suceder na cátedra a G. E. Moore. Nessa época, começava a elaborar a segunda forma da sua filosofia, que se inspira no clima filosófico característico da Inglaterra nestes últimos decénios: o da chamada "filosofia analítica", que assume como tarefa fundamental a análise da linguagem comum. Hoje, no entanto, o neo-empirismo já não é apanágio de uma escola localizada. Muitas das suas exigências foram largamente aceites, e os resultados a que se chegou, sobretudo no campo da metodologia das ciências e da crítica da lógica, podem ser examinados e discutidos independentemente das posições polémicas em que se inspiravam os seus primeiros defensores. § 807. NEO-EMPIRISMO: SCHliCK O homem em torno do qual se concentra o Círculo de Viena, Moritz Selilick (1882-1936), foi assassinado na escadaria da Universidade de Viena e o seu assassino foi exaltado pelo nazismo como sendo o homem que impedira o desenvolvimento de uma filosofia "viciosa". Os fragmentos publicados postumamente com o título Natureza e cultura (1952) dão-nos a conhecer a oposição de Sclilick à estrutura moral da sociedade e do estado nazis. A vida moral era considerada por Sclilick como a continuação da vida natural e, logo, como directamente 12 dirigida ao prazer e consistindo essencialmente na escolha do prazer. A antítese polémica desta posição era constituída, segundo Schlick, pela filosofia dos valores e pela sua tentativa de tornar absolutos os próprios valores. Schlick começava por realizar uma interpretação crítico-realista da ciência (Teoria geral do conhecimento, 1918); mas aceitou imediatamente o ponto de vista de Wittgenstein e Carnap, reproduzindo-o e desenvolvendo-o em numerosos artigos publicados no "Erkenritnis" e noutras revistas, artigos que depois da sua morte foram recolhidos em livro. O seu ponto de partida é o de Wittgenstein: a filosofia não é uma ciência mas sim uma actividade; e é uma actividade intrínseca ao próprio exercício da investigação científica. Esta, com efeito, é condicionada pela rigorosa comprovação dos termos que emprega; e esta comprovação é precisamente o objectivo da filosofia. Mas a filosofia não pode ser definida como "ciência do significado" dado que na comprovação dos significados não chega a proposições mas sim a actividades ou a experiências imediatas. "A descoberta do significado de uma proposição deve, em última análise, terminar num acto, num procedimento imediato, como por exemplo na indicação de uma cor; não pode ser dada numa proposição. A filosofia como procura do significado, não pode consistir em proposições, não pode ser um ciência. Essa procura não é mais do que uma espécie de actividade mental" (Gesammelte Aufsãtze, 1938, p. 130). A filosofia conserva assim, aos olhos de Schlick, a sua dignidade -de "rainha das ciências"-, 13 mas a rainha das ciências não pode ser uma ciência, mesmo atendendo à sua inclusão no campo especulativo de todas as actividades científicas. Deste ponto de vista, não existem outros problemas cognitivos além dos científicos. Quanto aos chamados problemas filosóficos, ou são resolúveis pelos métodos das ciências parcelares ou são problemas
fictícios que devem ser considerados carentes de sentido. Por exemplo, o problema de o mundo ser finito ou infinito, que Katit julgara impossível de resolver, foi resolvido, no sentido da finitude do mundo, pela física moderna, mais precisamente pela teoria da relatividade generalizada e por observações astronómicas. Por outro lado, existem problemas que não são susceptíveis de uma solução que possa ser verificada empIricamente: tal é, por exemplo, o problema do "mundo externo", entendido como uma realidade transcendente que se encontra para além da natureza dada empiricamente. A existência ou não existência deste inundo externo nada altera em relação à experiência efectiva: não pode assim ser comprovada experimentalmente e, como tal, carece de sentido. Aqui deparamos, segundo Sclilick, com o critério que permite distinguir os problemas verdadeiros dos falsos. "Uma questão é em princípio resolúvel se pudermos imaginar as experiências que deveríamos fazer para dar-lhe uma resposta. A resposta a uma pergunta é sempre uma proposição. Mas para entender uma proposição devemos poder indicar exactamente quais as circunstâncias particulares que a tornariam verdadeira ou falsa. 'Circunstâncias' significa factos de experiência; sendo assim, a experiên14 cia decide sobre a verdade ou falsidade das proposições, isto é, verifica as proposições; será resolúvel todo o problema que puder ser reduzido à experiência possível" (Ib., págs. 141142). A diferença entre o velho e o novo empirismo consiste no facto de o primeiro ser uma análise das faculdades humanas e o segundo uma análise das expressões em geral. Todas as proposições, linguagens, sistemas de símbolos, e mesmo filosofias, devem exprimir qualquer coisa. Mas para que assim seja é necessário que exista alguma coisa que possa ser expressa: esse é o material do conhecimento, e afirmar que deve ser dado pela experiência é uma forma de dizer que as coisas devem existir antes de as conhecermos. Schlick mostranos o pressuposto fundamental da sua concepção, pressuposto que é também o de toda a moderna metodologia da ciência: conhecer não significa identificar-se com o objecto conhecido. "A** ffituição, a identificação do espírito com um objecto, não é o conhecimento do objecto e não ajuda a alcançá-lo, pois não realiza a tarefa que define o conhecimento. Esta tarefa consiste em encontrar o nosso caminho por entre os objectos, em prever o seu comportamento, e isto faz-se descobrindo a sua ordem, assinalando a cada objecto o seu lugar na estrutura do mundo. A identificação com uma coisa não nos ajuda a encontrar esta ordem, antes nos impede de o fazer. A intuição é desfrute, e este é vida, não conhecimento. E se disserem que isto é mais importante do que o conhecimento, eu não os contradirei; mas esta é mais uma razão para não o confundir com o conheci15 mento (que tem uma importância própria)" (Ib., p. 196). Schlick vê em Sócrates o pai da filosofia assim entendida. "Foi um investigador do significado das proposições, particularmente daquelas que servem aos homens para avaliar mutuamente o seu comportamento moral. Reconheceu que estas proposições, as mais importantes para dirigir a nossa
conduta, são também as mais incertas e difíceis dado que não se atribui às proposições morais nenhum significado claro e unívoco. E o mesmo sucede ainda nos nossos dias, salvo no que se refere ao significado das proposições que são continuamente confirmadas ou refutadas pelas nossas experiências quotidianas, tais como as que tratam dos utensílios, da nutrição, das necessidades e das comodidades da existência humana. Pelo contrário, reina hoje nas coisas de ordem moral a mesma confusão que nos tempos de Sócrates" (Ib., p. 396). § 808. NEO-EMPIRISMO: NEURATH A ala extrema das primeiras posições empiristas é representada pelo sociólogo e economista vienense Otto Neurath (1882-1945), que foi um dos filósofos mais importantes do Círculo de Viena e o mais resoluto defensor da unidade de todas as ciências na linguagem (Sociologia empírica, 1931; Unidade da ciência e da psicologia, 1933; Fundamentos das ciências sociais, 1944, na EncicUintern. da ciência unificada). O ponto de vista de Neurath é o de um nominalismo radical que reduz a ciência à linguagem, 16 sem referência a nada externo. "A linguagem, afirma (in "Scientia", 1931, p. 299), é essencial para a ciência: é apenas no seio da linguagem que ocorrem todas as transformações da ciência, e não num confronto da linguagem com um 'mundo', com um conjunto de 'coisas', cuja diversidade seria reproduzida pela linguagem. Fazer uma tal tentativa seria entrar no campo da metafísica. Apenas a linguagem científica pode falar da própria linguagem, isto é, uma parte dela pode falar da outra parte; mas não se pode passar para além da linguagem". Esta intranscendibilidade da linguagem, é a tese fundamental de Neurath, que se encontra neste ponto em polémica com os outros representantes do Círculo de Viena, especialmente com Carnap e Sclilick ("Erkenntnis", 111, 1932, págs. 204 e segs.; IV, 1933, págs. 346 e segs.). O critério de verdade das proposições linguísticas não consiste no seu confronto com dados ou experiências imediatas mas sim no seu confronto com outras proposições linguísticas, dentro do sistema universal da linguagem científica. As expressões só podem ser confrontadas com outras expressões; são consideradas verdadeiras quando cabem no sistema linguístico geral e falsas quando não encontram lugar nele, mas não é possível falar de "linguagem" e emitir juízos sobre ela colocando-nos fora da própria linguagem, no ponto de vista da "realidade". Esta é, para Neurath, "a totalidade das proposições", isto é, a linguagem, já que não existe isomorfismo, ou seja, correspondência entre linguagem e realidade, mas sim uma identidade; e como a realidade é a linguagem, também a linguagem é a realidade, isto 17 é, um facto físico ao mesmo título de qualquer outro. É esta a tese do fisicalismo, na sua forma extrema. Deste ponto de vista, Neurath rejeita a existência de "protocolos originários" relativamente
a um sujeito singular, rejeitando deste modo o solipsismo de Carnap. Uma proposição protocolar, enquanto proposição linguística, é em si mesma universal e inter-subjectiva mesmo que inclua nomes próprios e circunstâncias bem determinadas. É evidente que este ponto de vista deve excluir, como privado de sentido ou como puro lirismo", qualquer problema filosófico que não possa ser formulado na linguagem física, e tende mesmo a reduzir a própria linguagem ao facto físico do som. Neurath formulou nestes termos as premissas de uma sociologia fisicalista, uma parte da ciência unificada que estudaria o comportamento social. Esta sociologia devia limitar-se à observação das correlações de factos existentes entre os fenómenos sociais, tentando prever o futuro. A sua última formulação deste conceito (na Enciclopédia da ciência unificada), no entanto, refere-se largamente ao carácter incerto e problemático de toda a previsão sociológica. § 809. WITTGENSTEIN: LINGUAGEM E FACTOS A figura dominante do neo-empirismo é a de Ludwig Wittgenstein, nascido em Viena em 26 de Abril de 1889 e falecido em Cambridge a 29 de Abril de 1951. Antes da primeira guerra mundial 18 foi para Cambridge estudar com Russell durante alguns anos. Depois da guerra foi professor em escolas elementares austríacas e esteve em contacto com alguns membros do Círculo de Viena. Em 1929 voltou a Cambridge onde, em 1939, sucedeu na cátedra a Moore. Durante a segunda guerra mundial foi por algum tempo empregado num hospital de Londres. Demitiu-se da cátedra em 1947. Em 1921 publicava nos "Annalen der Naturphilosophie" o Tratado lógico-filosófico, que no ano seguinte (1922) foi publicado em Londres, traduzido e prefaciado por Russell. Durante todo o resto da sua vida só publicou um artigo (Observações sobre a forma lógica, nos Actos da "Aristotelian Society", 1929). Mas deixou inéditos numerosos manuscritos, alguns dos quais correram privadamente a Inglaterra com o nome de Cadernos azuis (Blue Book, 1933-34) e de Cadernos castanhos (Brown Book, 1934-35). Foi deste material inédito que se extraíram mais tarde as Investigações filosóficas., publicadas em 1953, as Notas sobre os fundamentos da matemática, em 1956, e os Cadernos azuis e castanhos, em 1958. O Tratado e os outros escritos, especialmente os publicados nas Investigações filosóficas, constituem as principais fontes de inspiração das duas correntes fundamentais do neoempirismo: o Tratado foi a base do neo-positivismo, e os outros escritos da filosofia analítica. A principal fonte de inspiração da primeira fase do pensamento de, Wittgenstein foi a obra de Russell. A filosofia de Wittgenstein é substancialmente, nas suas duas faces, uma teoria da
linguagem. Com 19 efeito, os termos de que se serve são dois: o mundo, como totalidade de factos, e a linguagem como totalidade de proposições que significam tais factos. As proposições, por sua vez, enquanto palavras, signos, sons, etc., são factos; mas, diferentemente dos outros factos, que ocorrem mas que são mudos, eles têm um significado que consiste precisamente em factos. Estes pressupostos constituem os limites genéricos de todas as investigações de Wittgenstein. No Tratado lógico-filosófico, a relação entre os factos do mundo e os da linguagem é expressa pela tese segundo a qual a linguagem é a refiguração lógica do mundo. Não existe, de acordo com este autor, uma esfera do "pensamento" ou do "conhecimento" que seja mediadora entre o mundo e a linguagem. Afirmações como as seguintes: "A refiguração lógica dos factos é o pensamento" (Tract., 3); "A totalidade dos pensamentos verdadeiros é uma refiguração do mundo" (3.01); "0 pensamento é a proposição significante" (4), equivalem à identificação do pensamento com a linguagem e à extensão ao pensamento da mesma limitação que vale para a linguagem: não é pensável nem exprimível aquilo que não for um facto do mundo. É este o pressuposto empirista fundamental da filosofia de Wittgenstein. Como se disse, e na opinião de Wittgenstein, o mundo é "a totalidade dos factos"; mais precisa' mente, a totalidade dos factos atómicos (Sachverhalte = estados das coisas), isto é, dos factos que ocorrem independentemente uns dos outros (2.04-2.062). Todo o facto complexo é composto por factos atómicos. Por sua vez, um facto atómico é 20 composto por objectos simples, isto é, indecomponíveis, que constituem "a substância do mundo" (2.021). Chama-se forma dos objectos ao conjunto dos modos determinados em que eles se podem combinar nos factos atómicos. É por isso que a forma dos objectos é também a estrutura do facto atómico, sendo o espaço, o tempo e a cor considerados como formas dos objectos (2.0251-2.034). Os objectos assim entendidos são aquilo a que Mach chamava "elementos" e que identificava com as sensações (§ 785). Segundo Mach, estes elementos entram na composição das coisas e dos processos psíquicos que permitem o conhecimento das coisas. Segundo Wittgenstein, os objectos entram na composição dos factos atómicos que são os elementos constitutivos do mundo e, sob a forma de nomes, na composição das proposições atómicas que são os elementos constitutivos da linguagem. Com efeito, a proposição é, segundo este autor, a refiguração (Bild) de um facto; mas não no sentido de construção de uma imagem ou cópia e sim no de uma refiguração formal ou lógica do facto, isto é, da representação de uma configuração possível dos objectos que constituem o facto. Toda a refiguração deve ter qualquer coisa em comum com a realidade refigurada. A proposição tem em comum com o facto atómico a forma dos objectos, isto é, uma determinada possibilidade de combinação dos objectos entre si. Isto estabelece a conexão necessária entre as proposições e os factos: conexão que por um lado torna os factos refiguráveis, isto é, exprimíveis na linguagem, e que por outro lado toma válida, ou 21
seja, dotada de sentido, a própria linguagem, garantindo-lhe a sua concordância com o mundo. Deste ponto de vista, uma proposição tem sentido se exprime a possibilidade de um facto: isto é, se os seus constituintes (signos ou palavras) se combinam numa forma que seja uma forma possível de combinação dos objectos que constituem o facto. Wittgenstein afirma que o sentido de uma proposição consiste numa "situação construída através da experiência" (4.031), pretendendo dizer com isto que uma proposição que seja dotada de sentido refigura um facto possível, e possível na medida em que é possível a combinação de objectos que o constituem. O sentido da proposição é diferenciada da sua verdade, que existe quando a proposição refigura não um facto possível mas sim um facto real. A forma afirmativa e a forma negativa da mesma proposição (por ex., " Esta rosa é vermelha", "esta rosa não é vermelha") têm sentido por serem igualmente possíveis; mas só uma delas é verdadeira (4.05-4.061). Deste ponto de vista, é fácil justificar a validade das ciências empíricas da natureza. Com efeito, "o mundo é completamente descrito por todas as proposições elementares acrescidas da indicação de quais são verdadeiras ou falsas" (4.26); e "a totalidade das proposições verdadeiras c constitui a ciência natural total ou a totalidade das ciências naturais" (4.11). Mas as ciências são constituídas, para além das proposições elementares, por leis, hipóteses e teorias; acerca do valor destes instrumentos, Wittgenstein assume uma atitude que reproduz a 22 de Hume. De uma proposição elementar não se pode inferir nenhuma outra (5.134) porque toda a proposição elementar diz respeito a um facto atómico e os factos atómicos são independentes uns dos outros. Não existe nenhum nexo causal que justifique tais inferências e é assim impossível inferir os acontecimentos do futuro a partir dos do presente. "A fé no nexo causal é uma superstição" (5.1361), afirma Wittgenstein. Deste ponto de vista, não existem propriamente leis naturais. Estas, ou melhor, a regularidade que elas exprimem, pertencem apenas à lógica e "fora da lógica tudo é acontecimento" (6.3). As teorias que reduzem a uma forma unitária a descrição do universo, como por exemplo a mecânica de Newton, são comparadas por Wittgenstein a um reticulado bastante fino, de malha quadrada, que cubra uma superfície branca na qual existam manchas negras irregulares. Com o reticulado é possível reduzir a uma forma unitária a descrição da superfície, na medida em que se pode afirmar que cada um dos quadradinhos é negro ou branco. Mas trata-se então de uma forma arbitrária, dado que poderia utilizar-se uma malha triangular ou hexagonal. Da mesma forma, são arbitrários os vários sistemas que podem ser usados para descrever o universo, e quanto muito pode-se dizer que é possível conseguir com um sistema uma descrição mais simples do que com outro. A rede é a instrumentação lógica da teoria, instrumentação que fornece os tijolos para a construção do edifício da ciência, e isto porque uma teoria científica significa apenas: "Se queres construir um edifício, tens de o construir
23 com estes tijolos e só com estes" (6.341). Uma teoria científica não nos diz nada, portanto, sobre o universo, tal como a rede do exemplo anterior nada nos diz sobre a forma das manchas. Mas já nos diz algo sobro o universo o facto de ser possível descrevê-lo mais simplesmente utilizando uma teoria em lugar de outra (6.342). Estas considerações retiram ao universo todo o tipo de necessidade: "Não existe nenhuma necessidade que obrigue uma dada coisa a acontecer pelo simples facto de outra ter acontecido" (6.37). O facto de o Sol surgir amanhã é uma hipótese, o que equivale a dizer que não sabemos se ele surgirá. Mesmo a probabilidade não é senão ignorância. Com efeito, uma proposição não é em si mesma provável ou improvável, porque o facto a que ela necessariamente se refere ocorre ou não ocorre, sem que haja soluções intermédias (5.153). Utiliza-se a probabilidade quando nos falta a certeza, quando não se conhece perfeitamente um facto mas se sabe algo sobre a sua forma, isto é, sobre a sua possibilidade (5.156). § 810. WITTGENSTEIN: AS TAUTOLOGIAS Estas considerações do autor equivalem à confirmação da doutrina, comum a Leibnitz e a Hume, do carácter contingente (não necessário) das proposições relativas aos factos. Mas paralelamente a tais proposições Leibnitz admitia "a verdade da razão" e Hume as verdades que respeitam às "relações entre ideias"; e a este outro tipo de proposições 24 ambos atribuíam a "necessidade", no sentido de que a sua negação implica a contradição. Wittgenstein admite, além das proposições elementares que exprimem a possibilidade dos factos e que são verdadeiras quando os factos as confirmam, proposições que exprimem a possibilidade geral ou essencial dos factos mas que são verdadeiras independentemente dos próprios factos. Estas proposições são chamadas tautologias e o seu estudo constitui uma das maiores contribuições de Wittgenstein para a teoria lógica. A proposição "Chove" exprime a possibilidade de um facto e é verdadeira se o facto acontece, isto é, se na realidade chove. A proposição "Não chove" exprime também a possibilidade de um facto e é do mesmo modo verdadeira se na realidade não chove. Mas a proposição "Chove ou não chove" exprime todas as possibilidades que se referem ao tempo. Ela é verdadeira independentemente do tempo que faz; e o facto de chover não a confirma nem a desmente. Por outro lado, a proposição "Este solteiro está casado" não exprime um facto mas sim uma impossibilidade (já que "solteiro" significa "não casado"): ela é portanto falsa independentemente de qualquer facto, dado que o estado de solteiro ou casado em que se encontre o homem a que ela se refere não adianta nada relativamente à impossibilidade da frase. Ora "Chove ou não chove" é um exemplo de tautologia, "Este solteiro é casado" é um exemplo de contradição. Tautologia e contradição são assim necessariamente verdadeiras ou falsas, independentemente de qualquer experiên25 cia. Isto acontece, segundo Wittgenstein, porque a
tautologia é verdadeira e a contradição falsa para todas as possibilidades de verdade das proposições elementares que as constituem; ou por outros termos, a primeira é verdadeira e a segunda falsa seja o que for que aconteça (4.46-4.461). Mas isto quer dizer que tautologia e contradição não são refigurações da realidade, isto é, não representam nenhuma situação possível. A primeira permite toda a situação possível, a segunda nenhuma (4.462). Então, elas i-ião têm o "sentido" que se pode atribuir às proposições elementares; mas também não se podem considerar "sem sentido" porque faz= pai-te do simbolismo, isto é, constituem o verdadeiro campo da lógica. Todas as proposições da lógica são tautologias, segundo Wittgenstein (6.1). "Não dizem nada": são analíticas, no sentido kantiano (6.11). A sua característica fundamental consiste em só se poder reconhecê-las como verdadeiras tendo em conta o símbolo, enquanto que a característica das proposições não lógicas é o não se saber se são verdadeiras ou falsas atendendo apenas às proposições (6.113). As proposições lógicas não dizem nada porque não dizem respeito a factos mas a possíveis modos de conexão entre as proposições ou de transformação de uma proposição noutra; isto é, respeitam a operações puramente linguísticas que estabelecem equivalência (ou não equivalência) de significado entre expressões linguísticas. É por esta razão que a experiência não pode confirmar ou negar as proposições lógicas (6.121-6.1222). A única relação entre as pro26 posições lógicas e o mundo é que elas pressupõem que os nomes tenham significado e que as proposições elementares tenham sentido. A lógica revela aquilo que existe de necessário na natureza dos signos linguísticos: "Na lógica, fala a própria natureza dos signos necessários" (6.124). A matemática que, segundo Wittgenstein, é "um método da lógica" (6.2), reduz-se a esta última. O sinal de igualdade, usado na matemática, exprime a substituibilidade recíproca das expressões que reúne, o que quer dizer que as duas expressões têm o mesmo significado, isto é, são tautológicas. A lógica e a matemática constituem todo o campo da necessidade. A necessidade e a impossibilidade só existem na lógica, dado que os factos não têm necessidade e que as proposições que exprimem factos não a podem ter como característica. Wittgenstein diz sobre isto que a verdade das tautologias é certa, a das proposições é possível, e a das contradições é impossível (4.464). No entanto, a necessidade da lógica não restringe nada; deixa que os factos aconteçam de forma puramente casual (6.37; 6.41). Assim, Wittgenstein retomou a dicotomia instaurada por Hume corno distinção entre as proposições significantes que exprimem os factos possíveis e as proposições não significantes, mas verdadeiras, que são chamadas tautologias. Como Hume, admite também a existência de proposições nem significantes nem tautológicas, os não-sensos. A maior parte das proposições filosóficas são não-sensos, isto é, derivam do facto de não se compreender a lógica da 27 linguagem. Com efeito, as proposições significantes são apanágio das ciências naturais e não consentem nenhuma inferência para além daquilo que mostram ou manifestam; por outro lado, as tautologias, de que se ocupa a lógica, só se referem à forma das proposições e não permitem dizer nada sobre a realidade do mundo. Nem umas nem outras permitem
assim nenhuma generalização filosófica, nenhuma visão ou intuição do mundo na sua totalidade. A única tarefa positiva que Wittgenstein reconhece na filosofia é a de ser uma "crítica da linguagem" (4.0031), isto é, "uma aclaração lógica do pensamento" (4.112). Mas neste sentido a filosofia não é uma doutrina e sim uma actividade; e a sua tarefa não consiste em fornecer "proposições filosóficas" mas em esclarecer o significado das proposições. "A filosofia deve esclarecer e delimitar com precisão as ideias que de outro modo seriam, por assim dizer, turvas e confusas" (4.112). E é esta precisamente a tarefa a que se dedicou o Tratado lógico-filosófico. Todas as teses desta obra são condicionadas pelo princípio que constitui a posição ontológica fundamental de Wittgenstein: o mundo é constituído por factos, e os factos ocorrem e manifestam-se nesses outros factos que são as proposições significantes. Assim, os limites da linguagem são os limites do mundo e os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo, isto é, de tudo aquilo que compreendo, penso e exprimo. Neste sentido, o solipsismo será verdadeiro não quando reduz o 28 mundo ao eu mas sim quando reduz o eu ao mundo. Mas os limites de que falamos não pertencem ao mundo (não são factos do mundo), e por isso não se exprimem na linguagem e não podem ser ditos: então, até o solipsismo é inexprimível (5.62-5.641). E não se pode falar do mundo na sua totalidade, dado que então deixa de ser um facto. Afirma Wittgenstein: "Aquilo que é místico é o que é o mundo, e não o como ele é" (6.44). Os factos constituem, e as proposições manifestam, o como do mundo, as suas determinações; nunca o que, a sua essência total e única, o seu valor, o seu porquê. E o valor, que é um dever ser, nunca é um facto; se for um facto deixa de ser valor, já que "no mundo não existe nenhum valor e, se existisse, não teria valor" (6.41). Também não podem existir proposições da ética; e a ética, é inexprimível (6.42). Nem se pode falar da morte, que já não é um facto ("Não se vive a morte", 6.4311). Assim, não se pode pôr nenhum dos problemas relativos ao mundo, à vida, à morte ou aos fins humanos: não podem ter resposta porque nem sequer podem ser formulados como perguntas. Wittgenstein não nega que o inexprimível exista: afirma que ele "se mostra, e que constitui o místico" (6.522). Mas o que significa este existir do inexprimível, é coisa a que o autor se não refere. E quanto ao seu mostrar-se, também nada nos diz. Quando se mostrou que todas as perguntas metafísicas carecem de sentido e que se deve guardar segredo de tudo aquilo de que não se pode falar, não resta nenhuma pergunta. Mas é esta precisamente a rês29 posta: o problema da vida resolve-se quando desaparece (6.52-7). § 811. WITTGENSTEIN: A PLURALIDADE DAS LINGUAGENS A teoria da linguagem que é exposta no Tratado é, tal como a de Aristóteles, uma teoria afirmativa: a linguagem é a manifestação daquilo que é. Mas para Aristóteles "aquilo que
é" constitui a estrutura necessária do mundo, e essa estrutura determina necessariamente as formas linguísticas que, nas suas expressões essenciais, a reproduzem. Para Wittgenstein, pelo contrário, "aquilo que é" é um conjunto de factos que simplesmente "acontecem", sem ordem e sem relações recíprocas, isto é, sem serem necessários. No entanto, esses factos determinam as suas manifestações linguísticas, isto é, as proposições atómicas; e indirectamente determinam a necessidade das proposições da lógica. Ora a necessidade da relação mundo-linguagem, se bem que concorde com o empenho ontológico de Aristóteles, para o qual o mundo é necessidade, não é corrente com o de Wittgenstein, para o qual o mundo é causalidade. Não admira portanto que este autor tenha a certa altura abandonado as teses do Tratado e tenha introduzido na relação mundolinguagem o carácter não necessário que reconhecera nos factos do mundo. Ora se tal relação fosse necessária, seria também única (não pode ser diferente da que é), e seria única a linguagem definida pela natureza da própria relação. Mas se essa relação não é necessá30 ria, pode assumir formas diferentes; e são então possíveis diversas formas de linguagem, correspondentes às várias formas que a relação pode assumir. Foi esta tese que Wittgenstein começou a desenvolver a partir de 1933 e que tem a sua melhor expressão nas Philosophical Investigations, cuja primeira parte só ficou completa em 1945 e cuja segunda parte foi escrita entre 1947 e 1949. Deste ponto de vista, a linguagem definida no Tratado, onde a todas as palavras é atribuído um significado que é constituído precisamente pelo objecto a que corresponde a palavra, é apenas uma das infinitas formas da linguagem. A multiplicidade das linguagens não pode também ser estabelecida de uma vez por todas: novos tipos de linguagem, novos jogos linguísticos nascem continuamente enquanto que outros caiem em desuso e são esquecidos. A expressão "jogos linguísticos" é utilizada por Wittgenstein para sublinhar o facto de a linguagem ser uma actividade ou uma forma de vida. Como exemplos da multiplicidade dos jogos linguísticos, apresenta os seguintes: dar ordens e obedecer-lhes; descrever a aparência de um objecto ou dar as suas medidas; construir um objecto partindo de uma descrição (um desenho); relatar um acontecimento; especular sobre um acontecimento; formular uma hipótese e pô-la à prova; apresentar os resultados de uma experiência em tabelas e diagramas; inventar Lima. história e lê-Ia; representar uma peça teatral; cantar um estribilho; descobrir enigmas; inventar uma anedota ou contá-la; resolver um problema de aritmética; traduzir de uma língua para 31
outra, mendigar, agradecer, maldizer, augurar, pregar (Phil. Inv., 23). A própria matemática é um jogo linguístico. Com efeito, fazer matemática significa "agir de acordo com certas regras" (Remarks on the Foundations of Mathematics, IV, 1). A necessidade que preside a esta actuação, o "deve" (Must), é próprio das técnicas em que consiste a matemática e que constituem um modo particular de tratar as situações. "A matemática, diz Wittgenstein, constitui uma rede de nonnas" (Ib., V, 46). A heterogeneidade dos jogos linguísticos é tal que não podem ser reduzidos a qualquer conceito comum, as suas relações recíprocas podem ser caracterizadas como "reuniões de família" e, tal como os membros de uma família apresentam várias semelhanças, seja na estatura, na fisionomia, etc., também as várias linguagens têm entre si relações diversas que não se podem reduzir a um só (Phil. Inv., 67). Em muitos jogos linguísticos, o significado das palavras consiste no seu uso. "Num grande número de casos, se bem que não em todos, em que utilizamos a palavra 'significado', ela pode ser assim definida: o significado de uma palavra é o uso que tem na linguagem" (Ib., 43). Mas o uso não é uma regra normativa que possa ser imposta à linguagem: é aquilo que surge na própria linguagem, é o que há de habitual nas suas técnicas. O ideal da linguagem deve ser procurado na sua própria realidade (101). "É claro, diz Wittgenstein, que todas as proposições da nossa linguagem se encontram numa ordem que a caracteriza. Não procuramos a ordem ideal, tal como se as nossas frases habituais não tivessem ainda um sentido acabado e 32 WITTGENSTEIN como se ainda tivéssemos de construir uma linguagem perfeita. Por outro lado parece evidente que, onde existe sentido, existe ordem. Logo, deve existir uma ordem perfeita mesmo na mais vaga das proposições" (98). A filosofia, enquanto análise da linguagem, não pode portanto ter como tarefa a sua rectificação ou o seu desenvolvimento, até atingir uma forma mais completa ou perfeita. Segundo Wittgenstein, "não pode de forma alguma interferir no uso efectivo da linguagem mas sim, e apenas, descrevê-la. Com efeito, a filosofia não pode fundar a linguagem, e é obrigada a deixar tudo como encontra" (124). Ela não explica nem deduz coisa alguma: limita-se a pôr as coisas à nossa frente. A partir do momento em que todas as coisas se encontram perante nós, já não há nada para explicar. O que está oculto, está-o apenas devido à sua simplicidade e familiaridade: não se nota porque está sempre à frente dos nossos olhos, e está sempre à frente dos nossos olhos porque é aquilo que mais nos interessa (129). A filosofia pode igualmente comparar entre si os vários jogos linguísticos e estabelecer entre eles uma ordem, com vista à realização de uma tarefa particular mas tal ordem será apenas uma das muitas possíveis (132). "Não pretendemos, diz Wittgenstein, refinar ou completar o sistema de regras que regula o uso das nossas palavras. A clareza para que tendemos é sempre uma clareza completa e isto significa simplesmente que os
problemas filosóficos devem desaparecer completamente. A descoberta real é aquela que me toma capaz de deixar de filosofar quando quero: 33 só ela elimina a filosofia, na medida em que deixa de a atormentar com as questões que servem para a justificar (133). O conceito da filosofia como "doença", e da cura desta doença pela abstenção de filosofar domina a segunda fase da filosofia do pensamento de Wittgenstein, tal como a procura de um silêncio místico relativamente aos problemas filosóficos dominara a primeira. No entanto, não existe uma cura definitiva e imunizante: "Não existe um método de cura da filosofia, mas existem vários tipos de tratamento" (133). Todas estas terapias consistem essencialmente em dizer as palavras do seu uso metafísico para o seu uso quotidiano; e os resultados dessas terapias são a descoberta deste ou daquele não-senso que o intelecto inventara batendo com a cabeça contra os limites da linguagem. É o próprio não-senso que mostra o valor da descoberta (119). Eliminando os não-sensos, a actividade filosófica curativa limita-se a reportar as palavras aos seus usos correntes e quotidianos sem afirma nada de novo. "A filosofia, diz Wittgenstein, afirma apenas aquilo que todos já sabemos" (599). A defesa da multiplicidade das linguagens ou, como se poderia dizer, do relativismo linguístico, é o aspecto mais importante da segunda fase de Wittgenstein. Esta tese, que é paralela e semelhante à do relativismo das culturas, é hoje confirmada, no terreno dos factos, pelos estudos linguísticos. Está relacionada com ela uma outra tese fundamental que surge aqui e ali nas Philosophical Investigations: a linguagem é um instrumento (uma técnica ou um 34 conjunto de técnicas) para resolver situações existenciais. Afirma WitIgenstein: "A linguagem é um instrumento. Os seus conceitos são instrumentos... Os conceitos aplicam-se à investigação; são a expressão dos nossos interesses e dirigem esses mesmos interesses" (569-70; cfr. 11). Por outro lado, existem outras teses fundamentais de Wittgenstein que não parecem muito coerentes com estas. A primeira é a de a linguagem ser um "jogo". Se bem que Wittgenstein declare servir-se desta palavra para sublinhar o carácter de actividade ou de vida da linguagem, é difícil não ligar à palavra a conotação comum segundo a qual o jogo é unia actividade que se efectua tendo-a em vista a si mesma e não para atingir outro fim qualquer. Se a linguagem fosse jogo (pelo menos assim parece) seria um fim e não um instrumento, A segunda tese é a do privilégio concedido à linguagem ordinária ou quotidiana que é óbviamente apenas um dos jogos linguísticos possíveis, e que portanto não se sabe porque deverá ser a indicada para fornecer o critério e a norma para a eliminação dos problemas filosóficos e das suas dúvidas. Diz o autor: "Pensem nos instrumentos que se encontram na caixa de ferramentas de um operário: há um martelo, um alicate, uma serra, uma chave de parafusos, uma
régua, grude, pregos e parafusos. As funções das palavras são tão diferentes como as destes objectos" (Phil. Inv., 11). Mas basta interessarmo-nos um pouco pela actividade de um artesão qualquer para nos rendermos conta de como, na linguagem em que ele se exprime, se encontram palavras, expressões ou modos de dizer que não se referem à linguagem nor35 mal mas sim à actividade específica do artesão. As linguagens científicas estão óbviamente ainda mais longínquas da quotidiana, e têm significados ainda menos redutíveis aos de uso corrente, mesmo que sejam expressos pelas mesmas palavras. Se pluralismo linguístico significa relativismo linguístico, se qualquer linguagem, como afirma Wittgenstein, está numa certa ordem tal como está, não existe nenhuma linguagem que compreenda todas as outras ou que possa oferecer às outras um critério qualquer de interpretação ou de rectificação. Por outro lado, se a linguagem comum está sempre em ordem, se ela apresenta de uma forma aberta e evidente tudo aquilo que deve significar, como é possível que nela nasçam os não-sensos que levam a dúvidas angustiantes e nos tiram o sossego? § 812. CARNAP: RELAÇõES E EXPERIÊNCIAS Uma outra figura dominante do neo-positivismo foi a de Rudolf Carnap, que nasceu em Wuppertal, na Alemanha, em 1891, ensinou na Universidade de Viena e na de Praga, e que posteriormente a 1936 foi para a América onde ensinou nas Universidades de Chicago e Los Angeles. As seguintes obras pertencem ao período em que este autor viveu na Áustria e na Alemanha: A construção lógica do mundo, 1928; Pseudo-problemas da filosofia, 1928, Compêndio de lógica, 1929; Sobre Deus e a alma, 1930; A sintaxe lógica da linguagem, 1934, e ainda numerosos artigos publicados em "Erkenntnis", sendo 36 o mais importante intitulado A eliminação da metafísica através da análise lógica da linguagem. Durante a sua estadia na América publicou as seguintes obras: Os fundamentos da lógica e da matemática (na " Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada"), 1939; Introdução à semântica, 1942; A formalização da lógica, 1943; Significado e necessidade, 1947; Fundamentos lógicos da probabilidade, 1950, e ainda muitos outros artigos entre os quais sobressai o intitulado Probabilidade e significado (1936), que marca uma viragem na interpretação da exigência básica do neopositivismo. Se as obras de Wittgenstein constituíram a principal fonte de inspiração para os filósofos do neo- _empirismo, as de Carnap deram às teses polémicas e construtivas desta corrente a clareza e o desenvolvimento analítico que a tornaram muito importante na filosofia contemporânea. Carnap teve sempre presente e defendeu constantemente uma das teses básicas do Círculo de Viena: a ciência é una, apesar da diversidade de conteúdo existente nos vários campos específicos correspondentes às diversas ciências, e a sua linguagem é também una. É por isso que a
doutrina de Carnap é substancialmente, tal como a de Wittgenstein, uma teoria da linguagem. Mas enquanto Wittgenstein insiste no atomismo da linguagem, a qual reflecte nas suas proposições elementares a não relatividade e a causalidade dos factos atómicos, Carnap insiste no seu carácter sintáctico, isto é, nas relações que ligam as proposições entre si. Assim, concorda com Wittgenstein quando admite, pelo menos a um certo nível ou para um certo tipo 37 de linguagem, uma relação ou contacto com um dado imediato; no entanto, este dado não é um "facto" mas sim um elemento de natureza psíquica. A primeira obra de Carnap, .4 construção lógica do mundo, tem a tarefa explícita de formular o sistema de conceitos (ou objectos) constitutivos da ciência utilizando por um lado a teoria das relações aceite na lógica de Russell e Whitchead e, por outro lado, a redução da realidade a dados elementares que é própria da filosofia de Avenarius, Mach e Driesch (Der Logische Aufbau der Welt, § 3). Mas é evidente na obra de Carnap a influência do neo-criticismo, o qual insistira no carácter logicamente construtivo do conhecimento humano e que tinha considerado a relação como categoria fundamental (§ 730). Deste ponto de vista, a teoria do conhecimento é uma análise do modo como são logicamente construídos os objectos da ciência a partir de certos elementos originários que, precisamente enquanto tais, não podem ser considerados por sua vez como construções lógicas. Esses elementos são, segundo Carnap, as experiências elementares vividas (Elementarerlebnisse), que ele prefere às "sensações" de Mach porque a psicologia da forma (Kõhler, Wertheimer) mostrou que as sensações não são dados mas sim abstracções dos dados, pelo que não podem ter prioridade gnoseológica. No entanto, Carnap defende que as experiências elementares são, tal como as sensações de Mach, neutras no sentido de nem serem propriamente físicas nem psíquicas, e que são referidas ao eu, não originariamente, mas apenas na medida em que se fala das experiências 38 vividas pelos outros e que são reconstruídas através das minhas (Ib., § 65). As experiências elementares têm entre si "relações fundamentais" já que
dado que o signo só tem significado quando se encontra numa proposição, a essência consistirá na indicação dos critérios de verdade das frases em que pode aparecer esse objecto (Ib., p. 161). Definindo a ,essência deste modo segue-se que o eu é apenas "o conjunto das experiências elementares": Carnap nega que a existência do eu seja um dado originário e repete a crítica de Nietzsche (§ 664) ao cogito cartesiano Qb., § 163). Por outro lado, a "realidade" (diferente do sonho, da alucinação, da fantasia) é constituída por objectos que têm as seguintes características: 1.o -pertencem a um sistema que obedece a leis, isto é, ao mundo físico, psíquico ou espiritual; 39 2.o - são inter-subjectivos; 3.o - têm um lugar na ordem do tempo (Ib., § 171). A realidade dos objectos não consiste pois no serem independentes da consciência cognoscente (como afirma o realismo) ou no serem dependentes dela (como afirma o idealismo), mas sim no pertencerem a um campo em que são válidas leis objectivas independentes da vontade do indivíduo e que portanto são interpretadas pela metafísica como sendo a expressão de uma "substância": a matéria, a energia, ou qualquer outra (Ib., § 178). Como vemos, a reconstrução da estrutura lógica do mundo põe, segundo Carnap, a metafísica fora de jogo. E a crítica à metafísica é reavivada por Carnap num artigo famoso que foi publicado em "Erkenntnis" no ano de 1931 e que se intitulava A eliminação da metafísica através da análise lógica da linguagem. Uma linguagem, afirmava Carnap, consiste num vocabulário e numa sintaxe, isto é, num conjunto de palavras que têm um mesmo significado e nas regras que presidem à formação dos enunciados indicando como estes devem ser construídos a partir de vários tipos de palavras. Quando não se têm em conta estes dois aspectos fundamentais, fica-se perante duas espécies de "pseudoproposições": aquelas em que figuram palavras que se julga, erradamente, terem um significado e aquelas que são compostas por palavras individualmente dotadas de sentido mas reunidas de uma forma não concordante com as regras de sintaxe formando por isso frases sem sentido. Estas duas espécies de pseudo-proposições são aquelas que se encontram na metafísica, 40 não só na antiga como até na mais recente. Carnap mostrava como na metafísica de Heidegger a palavra "nada" era considerada como o nome de um objecto e tratada como tal, se bem que nada não seja nome de nenhum objecto mas apenas a negação de uma proposição possível como por exemplo ao dizer-se "lá fora não há nada" se pretende afirma o contrário de " lá fora há uma determinada coisa" (Ueberwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Sprache, § 5). **Cam&p via na metafísica uma expressão da atitude da pessoa relativamente à vida, isto é, qualquer coisa de semelhante à arte, tendo para além desta a
vã pretensão de querer raciocinar. "No fundo, afirmava, os metafísicos são músicos sem talento musical" (Ib., § 7). Numa nota datada de 1957 e acrescentada à tradução inglesa desta obra, Carnap declarou que ela era dirigida contra a metafísica tal como era entendida por Fichte, Schelling, Hegel, Bergson, Heidegger, isto é, como pretensão de conhecer a essência das coisas de uma forma que transcende o empirismo da ciência indutiva, mas não contra as tentativas de síntese e de generalização dos resultados das várias ciências. Esta limitação não estava certamente presente nas suas primeiras obras, e o prefácio à Sintaxe lógica da linguagem (1934) exprime perfeitamente a tarefa que Carnap, atribuía verdadeiramente à filosofia: "A filosofia deve ser substituída pela lógica da ciência, isto é, pela análise lógica dos conceitos e das proposições das ciências, e isto porque a lógica da ciência é precisamente a sintaxe lógica da linguagem da ciência" (Logical Syntax of Language, prefácio). 41 § 813. CARNAP: DADO, PROTOCOLO, PREDICADOS OBSERVÁVEIS Na Construção lógica do Mundo, Carnap utilizou, como vimos, dois tipos de elementos: um estrictamente lógico, a relação, e outro psicológico, a experiência vivida. Estes dois tipos de elementos, com diferentes designações, foram os temas fundamentais de todas as suas investigações ulteriores. No que diz respeito ao segundo tipo de elementos, isto é, ao dado como ponto de partida e de referência da construção lógica, Carnap aceitou (a partir de 1931) a tese de Neurath sobre a intranscendibilidade da linguagem, afirmando que isso não se apresenta, por assim dizer, em pessoa na própria linguagem, mas sim através da sua expressão ou formulação linguística. No ensaio A linguagem física como linguagem universal da ciência (publicado em "Erkemtnis", 11, 1931), distingue na ciência a liberdade sistemática e a linguagem dos protocolos. A primeira compreende as proposições gerais ou leis da natureza; a segunda é constituída por proposições protocolares que se referem imediatamente ao dado e que descrevem o conteúdo da experiência imediata e as mais simples relações reais conhecidas. Qual é precisamente a natureza do dado, se consiste em sensações elementares, como pretendia Mach, ou em experiências vividas, ou ainda em coisas, isto é, em corpos tridimensionais imediatamente perceptíveis, é uma questão que, segundo Carnap, se pode deixar em suspenso ("Erkenntnis", 11, 1931, p. 439). As proposições protocolares permitem realizar a ve42 rificação empírica da ciência se bem que esta verificação não diga respeito às proposições singulares da própria ciência mas sim a todo o sistema ou, pelo menos, a uma certa parte do sistema. Isto implica necessariamente um momento convencional, que constitui
precisamente a forma do sistema; e mesmo uma lei natural, relativamente às proposições simples, é apenas uma hipótese. Mas dado que qualquer homem só pode assumir como ponto de partida das suas afirmações os seus próprios protocolos, Carnap fala de um solipsismo metódico. O adjectivo "metódico" realça o facto de não se pretender afirmar a existência de um único sujeito e a não existência dos outros, mas tão-somente reconhecer o carácter dos protocolos originários a fim de construir proposições linguísticas que possam valer para todos os sujeitos. Ora uma afirmação qualquer, mesmo baseando-se nos protocolos do sujeito que a faz, só tem validade inter-subjectiva se puder exprimir-se em linguagem física. "Se, afirma Carnap, dois sujeitos tiverem opiniões diferentes sobre o comportamento de um segmento, sobre a temperatura de um corpo ou sobre a frequência de uma oscilação, esta diversidade de opiniões não é, na física, atribuída a uma insuperável diferença, tentando-se antes chegar a uma unificação dessas opiniões através de uma experiência apropriada" (Ib., p. 447). A linguagem física é deste modo, e em si mesma, inter-subjectiva e universalmente válida; e na medida em que as várias ciências (compreendendo aqui as do espírito, psicologia, sociologia, etc.) são autenticamente ciências, devem ser expressas em 43 linguagem física e relacionar assim os próprios fenómenos psíquicos ou espirituais com estados ou condições de um corpo físico. Daqui deriva um materialismo metódico, isto é, um materialismo que não afirma nem nega a existência da matéria ou do espírito mas que exprime apenas a exigência de traduzir em termos físicos os diferentes protocolos, a fim de construir com eles uma linguagem verdadeiramente inter-subjectiva, isto é, válida universalmente. Enquanto que na Construção lógica do mundo o dado se apresentava em pessoa na linguagem, na forma da experiência imediata, nesta segunda fase das investigações de Carnap apresenta-se na forma de uma expressão linguística, a proposição protocolar, que permite qualquer interpretação da natureza do próprio dado (que pode ser uma coisa ou um processo psíquico). Numa terceira fase, que se inicia com a obra Probabilidade e significado (1936-37), o dado afasta-se ainda mais, apresenta-se agora sob a forma de uma possibilidade, a possibilidade de reduzir, mediante um processo mais ou menos longo e complexo, os predicados descritivos, da linguagem científica a predicados observáveis que pertençam à "linguagem cousal", isto é, à linguagem que usamos na vida de todos os dias ao falar das coisas perceptíveis que nos rodeiam. É evidente que os " predicados observáveis" são já a transcrição linguística, na linguagem comum, da possibilidade de obter certos dados, enquanto que os predicados descritivos da ciência são transcrições, no sentido de poderem ser reconduzidos a estas últimas por um oportuno processo de redução. Por outro lado, Carnap substitui a 44 exigência de uma verificação empírica directa dos enunciados científicos, que fora defendida pelo Círculo de Viena e pela primeira fase do neo-empirismo e era considerada
como critério de significação das proposições sintéticas, pela exigência muito mais débil da confirmabilidade, que consiste precisamente na possibilidade de reduzir os predicados descritivos a predicados observáveis (Testability and Meaning, in Readings in the Philosophy of Science, 1953, p. 70). Deste ponto de vista, já não é possível uma verificação completa e exaustiva; só é possível uma confirmação gradualmente maior dos enunciados. Por outras palavras, e de acordo com a terminologia que Carnap adoptou nos últimos tempos, o acontecimento que constitui a confirmação de um enunciado científico é um acontecimento possível, entendendo-se por "possibilidade" a possibilidade física ou causal e não a simplesmente lógica. Por exemplo, um acontecimento que implique a transmissão de um sinal a uma velocidade superior à da luz não é um acontecimento possível, de acordo com o princípio físico que exclui a possibilidade de exceder a velocidade da luz; mas já é possível, se bem que inverosímil, que um homem consiga levantar um automóvel (The Methodological Character of Theoretical Concepts, in Minnesota Studies in Philosophy of Science, 1956, 1, págs. 53-54). Estes desenvolvimentos foram sugeridos a Carnap depois de uma atenta consideração da ciência contemporânea, especialmente da física, a qual faz, como vimos (§ 791), um uso bastante grande de 45 termos ou de entidades (chamadas por vezes "construções") que não têm nenhuma referência aparente às coisas ou aos dados simples da experiência. Uma destas entidades é o "campo", que tem uma função básica na física relativista. Carnap entende que esta entidade em particular é redutível a termos elementares e que esses termos elementares podem ser, por sua vez, reduzidos a propriedades observáveis das coisas (Foundations of Logic and Mathematics, 1939, § 24). Mas é duvidoso que esta dupla redução tenha fundamento, ou melhor, sentido, no âmbito da própria física. Carnap observou que, na física, compreender uma expressão, um enunciado, uma teoria, significa "capacidade para a usar na descrição dos factos conhecidos ou na previsão de factos novos", e que portanto uma "compreensão intuitiva ou uma tradução directa de um enunciado científico em termos que se refiram a propriedades observáveis não é necessária nem tão-pouco possível" (Ib., § 25). § 814. CARNAP: A SINTAXE LóGICA O outro terna fundamental em que se concentraram as indagações de Carnap é o da estrutura lógica da linguagem. Como vimos, Carnap considerou a linguagem como um contexto de relações e não como um atomismo de proposições (segundo a opinião de Wittgenstein no Tractatus). Por outro lado, acabou por reconhecer o carácter arbitrário e convencional do sistema de relações (isto é, da lógica) 46 em que consiste a linguagem. Estes temas encontram o seu melhor estudo analítico na obra A sintaxe lógica da linguagem, publicada em 1934 e, em edição inglesa, em 1937. A tese fundamental desta obra é a da multiplicidade e relatividade das linguagens, que Carnap exprime sob a forma do princípio de tolerância: "Não é nossa tarefa estabelecer
proibição mas apenas chegar a convenções... Em lógica não existe moral. Qualquer pessoa pode construir corno bem entender a sua própria lógica, isto é, a sua forma de linguagem. Se quiser discutir connosco, deve apenas indicar como o deseja fazer, quais as regras sintácticas que irá respeitar, e não argumentos filosóficos" (Logical SyWax of Language, § 17). Não existe, deste ponto de vista, uma linguagem única ou uma linguagem privilegiada; mas existem para cada linguagem regras determinadas, próprias dessa linguagem, além das regras que são válidas para todas as linguagens. Tais regras - e é esta a segunda tese fundamental da obra - são de natureza sintáctica: exprimem simplesmente a possibilidade de combinação dos termos linguísticos nos enunciados e dos enunciados nas suas consequências. Trata-se aqui de unia "arte combinatória" no sentido de Leibnitz ou, de acordo com a definição de Carnap, de um cálculo cujas regras determinam "em primeiro lugar as condições em que uma expressão [isto é, uma série de símbolos] pertence a uma certa categoria de expressões, e, em segundo lugar, as condições que tornam lícita a transformação de uma ou mais expressões numa outra ou noutras expressões" (Ib., § 2). Este cálculo prescinde completamente do signi47 ficado dos termos e do sentido das proposições, já que não é nem pressupõe nenhuma referência semântica a factos, realidades ou entidades de qualquer tipo. Afirma Carnap: "Para, determinar se uma proposição é ou não consequência de outra, não se faz nenhuma referência aos seus significados... Basta que seja dada a figura sintáctica das proposições" já que "uma lógica especial do significado é supérflua; uma lógica não formal é uma contradictio in adjecto. A lógica é sintaxe" (Ib., § 61). Posto isto, a sintaxe lógica de Carnap reduz-se a uma formulação simbólica generalizada dos processos matemáticos, que muito deve à obra de Hilbert (§ 794). Distingue uma linguagem 1 que compreende a aritmética elementar e que é caracterizada pelo facto de nela só serem admitidas propriedades numéricas definidas, isto é, tais que a sua aplicabilidade a um qualquer número pode ser estabelecida por uma série finita de passagens dedutivas que sigam um método pré-estabelecido; uma linguagem 11, que além de conter a 1, compreende ainda conceitos indefinidos e na qual pode ser expressa a aritmética dos números reais, a análise matemática e a teoria dos conjuntos; e ainda uma ulterior generalização que Carnap chama "sintaxe de qualquer linguagem", que se baseia nas precedentes e especialmente na segunda. A propósito desta última, Carnap insiste na importância fundamental da noção de "consequência". " Dada uma linguagem qualquer, afirma, ao ser estabelecida a relação consequência fica imediatamente determinada toda a asserção que diga respeito às relações lógicas" (Logical Syntax, § 46). 48 A sintaxe universal Ocupa-se do estabelecimento das regras com as quais deve concordar a definição de consequência ou, por outros termos, com as quais devem concordar as regras de transformação de uma expressão noutra.
A parte final desta obra é a propriamente filosófica, sendo o seu tema "Filosofia e sintaxe". Aí se pretende defender aquilo que Carnap chama "modo formal" ou "sintáctico" de falar, oposto ao "modo, material". A diferença entre estes dois modos é ilustrada pelos seguintes exemplos, escolhidos entre aqueles que são dados por Carnap: MODO MATERIAL 1. -Os números são classes de coisas. 2. -Os números fazem parte de um tipo primitivo especial de objectos. 3. - Uma coisa é um complexo de dados sensoriais. MODO FORMAL 1. - A s expressões numéricas são expressões de classes do segundo nível. 2. - A s expressões numéricas são expressões do nível zero. 3. - Qualquer proPOSição em que figure uma designação de coisas é equivalente a uma classe de proposições em que não figurem designações de qualidade mas apenas designações de dados sensoriais. 49 4. - O mundo é a to4. -A ciência é um talidade dos factos e proposições não das coisas. e não de nomes.
sistema de
5. -Deus criou os S. -Os símbolos dos números naturais (**Kronaturais são **necker). símbolos primitivos. 6.-Toda a cor
6. -Uma expressão ocupa uma posição.
números
decores é sempre
acompanhada, nas proposições, por uma designação posicional. A vantagem do modo formal de falar consiste, segundo Carnap, no facto de eliminar a possibilidade de controvérsias filosóficas, possibilidade essa que é deixada em aberto pelo modo material. Esta. é uma forma desviada ou metafórica de falar, que não está errada em si mesma mas que se presta facilmente a ser utilizada de uma forma incorrecta. Carnap pensa "que a tradutibilidade no modo de falar representa a pedra de toque de todas as proposições filosóficas ou, mais exactamente, de todas as proposições que não entrem na linguagem de uma ciência empírica" (Ib., § 81). Não possui essa característica nenhuma das proposições que apelam para o inexprimível, compreendendo aqui as de Wittgenstein. A proposição de que "o inexprimível existe, equivale a "existem objectos que não podem ser descritos", isto é, "existem objectos a que não se dá nenhuma designação objectiva", e é traduzida
50 em linguagem formal pela frase contraditória "existem designações objectivas que não são designações objectivas" Qb., § 81). Carnap admitiu sempre a distinção tradicional entre intenção e extensão (ou conotação e denotação) do conceito (ou em geral do signo), distinção que fora reintroduzida por Frege entre sentido e significado (§ 795). No entanto, e seguindo as pegadas de Russell (§ 800) e de Wittgenstein (Tractatus, 5.541-5.421), Carnap concebe a lógica inteiramente im dimensão extensiva, identificando o ponto de vista sintáctico (ao qual se reduz a lógica) com o ponto de vista extensional. Isto significa que para ele os conceitos são classes, ou classes de classes, e não essências, qualidades ou predicados; que, por exemplo, "homem" significa o "conjunto dos homens" e não a propriedade de ser homem, animal racional ou qualquer coisa semelhante. No entanto, Carnap não nega que existam proposições intensionais e que tais proposições tenham uma certa relevância na lógica: são aquelas que parecem exprimir uma relação de inerência do predicado ao sujeito (por exemplo, "os corpos são compridos") ou as modais ("A é possível", "A é impossível", "A é necessário", "A é contingente"). No entanto, segundo Carnap, estas proposições podem ser consideradas "quase-sintácticas", já que são redutíveis a enunciados sintácticos ou extensionais se forem traduzidas do modo material de falar para o modo formal. Assim, "os corpos são pesados" transforma-se em "o enunciado 'os corpos são pesados' é analítico"; e os enunciados modais 51 que referimos transformam-se em "A' é possível", "IAI é impossível", "'A' é necessário", nos quais A representa um enunciado (Logical Syntax, §§ 67-69). Nos escritos posteriores e sobretudo no mais especificamente dedicado à lógica modal, intitulado Significado e necessidade (1947), o autor confirma substancialmente esta redução, assumindo no entanto como base o conceito da necessidade lógica (ou analítica) e definindo os outros significados modais relativamente a ele; então, "p é impossível" significa "não-p é necessário"; "p é contingente" significa "p não é nem necessário nem impossível"-, "p é possível" significa "p não é impossível" (Meanin., and Necessity, 1956, 2 a edição, § 39). No entanto, na última fase da sua actividade, Carnap dirigiu cada vez mais a sua atenção para o aspecto semântico e pragmático da linguagem que, como vimos, excluía anteriormente da lógica, sendo esta reduzida à sintaxe; deu também uma análise pragmática do significado intensional, considerando como "intenção de um predicado, para o orador X a condição geral a que um objecto deve satisfazer para que X lhe possa aplicar um predicado" (Ib., p. 246). Sublinha que com isto não se reduz a intenção a um acontecimento mental, visto ela não poder ser tão bem determinada por um robot como por um homem. Estas investigações de Carnap inserem-se nas discussões entre os neoempiristas sobre alguns temas de lógica e de metodologia, e voltaremos a falar nelas a propósito destes últimos (§ 818). 52 § 815. REICHENBACH O mundo a que Carnap dedica principalmente
a sua atenção é o da matemática; ao da física dedica-se quase exclusivamente Hans Reichenbach. (1891-1953), expoente máximo do neo-positivismo na Alemanha. Reichenbach foi professor de física em Berlim de 1926 a 1933, de filosofia em istambul de 1933 a 1938 e na Universidade da Califórnia, cin Los Angeles, de 1938 até à data da sua morte. As suas obras principais são as seguintes: Filosofia da doutrina do espaço-tempo, 1928; Átomo e cosmos, 1930; A tarefa e as vias da moderna filosofia da natureza, 1931; Teoria da probabilidade, 1935. Estas obras foram publicadas na Alemanha, assim como numerosos artigos, alguns dos quais apareceram em "Erkenntnis", revista que ele dirigiu juntamente com Carnap. Na América, Reichenbach. publicou: Experiência e previsão, 1938; Elementos de lógica simbólica, 1947; Teoria da probabilidade, 1949 (nova edição aumentada da obra publicada na Alemanha em 1935); O nascimento da filosofia científica, 1951; A direcção do tempo, 1956 (póstuma). Nesta última obra Reichenbach identifica a ordem do tempo com a da causalidade, e entende que esta ordem é estabelecida pela entropia. As investigações de Reichenbach são muitas vezes enquadradas por considerações históricas que são, simultaneamente, toscas e fantásticas. Por outro lado, nota-se uma certa dogmatização da ciência nas suas obras, o que contrasta singularmente com o carácter probabilista que ele reconhece existir no conhecimento científico. 53 As investigações de Reichenbach dirigem-se em grande parte para uma defesa e uma justificação analítica da estrutura probabilista da ciência. Lógica dedutiva e lógica indutiva são, segundo Reichenbach, duas características fundamentais da ciência; mas assim como todos os positivistas, pensa que a dedução, enquanto procedimento puramente lógico, nunca alcança a realidade. Os seus resultados são necessários mas ocos, porque a dedução liga as proposições de tal forma que as combinações resultantes são verdadeiras independentemente da verdade das proposições componentes. A combinação "se nem Napoleão nem César chegaram à idade de 60 anos, então Napoleão não chegou à idade de 60 anos" é verdadeira quer Napoleão e César tenham morrido antes dos sessenta anos quer tenham morrido depois; nada se diz sobre o facto que a frase refere. Por outro lado, a situação chega a expressões que respeitam a factos e que tomam possível a sua previsão, mas não os dá como necessários. No final da Filosofia da doutrina do espaço-tempo, Reichenbach criticava a interpretação rigorosamente determinista da causalidade que se exprime nas leis naturais e insistia no carácter probabilístico da própria causalidade. A física quântica parece-lhe ser a maior confirmação desta tese e a ela Reichenbach. dedicou um importante ensaio de interpretação. Partindo das relações de
indeterminação de Heisenberg, Reichenbach refere-se aos acontecimentos observáveis e aos não observáveis: estes últimos seriam inter-fenómenos e só poderiam ser introduzidos por inferências de tipo muito mais' 54 complicado do que as usadas para os acontecimentos observáveis. A introdução dos inter-,fenómenos serviria para eliminar as anomalias causais, isto é, a relativa imprevisibilidade dos fenómenos quânticos (Philosophic Foundations of Quantum Mechanics, § 8). Quanto às linguagens em que o mundo físico pode ser descrito, o autor distingue a linguagem corpuscular, a ondulatória e a neutra. As duas primeiras incluem anomalias causais e tornam impossível uma completa descrição dos fenómenos; quanto à terceira, apresenta ainda uma anomalia na medida em que elimina o princípio do terceiro excluído e introduz uma lógica a três valores na qual, além do verdadeiro e do falso, existe o indeterminado, (Ib., § 30). De acordo com esta concepção da ciência, a teoria das probabilidades toma um interesse fundamental; e os resultados que Reichenbach conseguiu neste campo serão expostos um pouco mais à frente (§ 816). Reichenbach partilha com todos os outros neo-empiristas a teoria segundo a qual o significado de uma proposição consiste na sua :verificação; mas considera que se deva apelar para uma verificação possível e não para uma que o seja de facto. A este propósito, o autor distingue três tipos de possibilidade: a lógica, que significa não contraditoriedade, à física, que significa a não contraditoridade com as leis físicas e a técnica que consiste no uso dos métodos práticos conhecidos. A física assume normalmente como critério de significação para os seus enunciados a possibilidade física; mas na discussão das teorias físicas usa muitas vezes a possibilidade 55 lógica para mostrar a inconsistência de algumas delas (Verifiability Theory of Meaning, in Proceedings of the American Academy of Arts and Science, vol. 80, 1951, págs. 53 e segs.). § 816. REICHENBACH: PROBABILIDADE E INDUÇÃO Como vimos, é um lugar-comum no neo-empirismo a afirmação de que a ciência é constituída por duas formas diferentes de proceder: aquela que consiste na formulação de inferência ou deduções analíticas e a que consiste na formulação indutiva de proposições sobre a realidade. As análises dos neo-positivistas dirigiram-se sobretudo para a primeira destas formas de proceder e para os problemas lógicos a que ela dá origem (cfr. § 819). Quanto à análise da segunda, podemos encontrar alguns contributos importantes em Carnap, Reichenbach e outros. Vamos agora falar deles. Segundo o neo-positivismo, que repete neste ponto a doutrina de Hume, as proposições que se referem a factos serão possíveis ou contingentes mas nunca necessárias. Além disso, as proposições universais ou leis são apenas (de acordo com a doutrina comum de Wittgenstein, Sclilick e Carnap) hipóteses dotadas de um valor provável. O neo-positivismo acabou assim por se voltar contra a tese, própria do positivismo oitocentista, do rigoroso determinismo causal
dos fenómenos. O físico austríaco Philipp Frank (nascido em 1884), que se encontrava entre os fun56 dadores do Círculo de Viena, foi um dos críticos do conceito clássico da causalidade (O significado da moderna teoria física para a teoria do conhecimento, 1933; O princípio causal e os seus limites, 1932; O fim da mecânica, 1935; Entre a física e a filosofia, 1941, A ciência moderna e a sua filosofia, 1949, sendo as duas últimas obras, publicadas na América, compostas por ensaios escritos entre 1907 e 1947). Frank criticou o significado ontológico ou metafísico do princípio da causalidade e considerou-o simplesmente como uma regra de previsão. Neste sentido, a diferença entre a física clássica e a quântica reside apenas no facto de a primeira explicar a coincidência aproximada entre as previsões dos acontecimentos e os próprios acontecimentos, recorrendo ao carácter aproximado da descrição em que se baseia a previsão, enquanto que a segunda admite explicitamente o carácter indeterminado da relação entre previsão e acontecimento futuro. Frank notou ainda que é ilegítimo construir generalizações metafísicas dos princípios ou dos resultados da ciência experimental; e viu a razão de ser das diferenças existentes entre a ciência e a filosofia no facto de esta se manter em fases já superadas pela ciência. No âmbito destas ideias, que se tornaram património comum dos neo-empiristas, o conceito da probabilidade adquiriu grande importância para a interpretação dos enunciados factuais da ciência e em particular das leis científicas. E os neo-positivistas preferem uma interpretação estatística deste conceito, admitindo que a probabilidade consiste na frequência relativa com que se verifica um aconte57 cimento; logo, ela diz respeito não a acontecimentos individuais mas sim a conjuntos de acontecimentos. Em fins de 1919 o matemático austríaco Richard Von Mises (nascido em 1883), membro do Círculo de Berlim e autor, entre outras obras, de um Manual do positivismo (1939; trad. ital, com o título Manuale di critica científica e filosófica, 1950), defendera a concepção estatística das probabilidades, que expôs mais tarde no livro Probabilidade, estatística e verdade (1928; trad. inglesa, 1939). Mais precisamente, Von Mises achava que a probabilidade consiste no limite das frequências relativas; se em n observações o acontecimento teve lugar m vezes, então o quociente mIn (frequência relativa) tende para um valor limite quando o numerador e o denominador se tornam sempre maiores e este valor limite pode ser considerado como a medida da probabilidade. Von Mises achava porém que o cálculo das probabilidades não pode servir para justificar a inferência indutiva porque a passagem das observações para os princípios teóricos gerais não e uma conclusão lógica mas sim uma escolha; pode-se supor que essa escolha resista a futuras observações, mas acontece que, na realidade, ela pode variar em qualquer momento e das formas mais imprevistas (Kleines Lehrbuch des Positivismus, § 14). Pelo contrário, Reichenbach considerou que a
probabilidade é um fundamento suficiente para a indução (Theory of Probability, 1949, p. 446; Experience and Prediction, 1938, págs. 339 e segs.); e concordaram com esta tese o americano C. I. Lewis (Analysis of Knowledge, 1946) e os ingleses W. 58 Kneale (Probability and Induction, 1949), 1. O. Wisdom (Foundation of Inference, in Natural Science, 1952) e R. B. Braithwaite (Scientific Explanation, 1953). Por outro lado, nenhum destes escritores considera que o fundamento probabilístico da indução equivalha a uma justificação da indução, no sentido de que lhe garanta uma validade em todos os casos. A indução é por eles considerada, por um lado, como o único método à disposição do homem para obter aquilo de que tem necessidade, a saber, previsões exactas; por outro lado, como um método susceptível de auto-correcção (Kneale, op. cit., p. 235; Reichenbach, op. cit-, págs. 446 e 475). De qualquer modo, é um método que implica necessariamente um certo risco se bem que sirva ao mesmo tempo para limitar ou tornar calculável o próprio risco. Por outro lado, Carnap (num artigo de 1945 e depois na obra Fundamentos lógicos da probabilidade, 1950) e Russell (Human Knowledge, 1948, V, cap. 1) defenderam o outro conceito fundamental da probabilidade (aquele que permitiu o nascimento do próprio cálculo das probabilidades), segundo o qual a probabilidade consiste no "grau de credibilidade", de "racionalidade" ou de "confirmação" da proposição ou acontecimento individuais que exprime; e reconhecem que este segundo tipo de probabilidade é tão legítimo quanto o outro (que considera a frequência relativa de classes de acontecimentos) e cumpre tarefas que o outro não pode cumprir. Carnap, particularmente, mostrou que a objecção empirista contra a probabilidade individual - o facto de a proposição "a probabilidade de que amanhã 59 chova é de 1 /5" não pode ser verificada empiricamente porque amanhã ou chove ou não chove - não é válida, pois aquela proposição não atribui uma probabilidade de 1 /5 à possível chuva de amanhã mas a certas relações lógicas existentes entre a previsão de chuva e as informações metereológicas. Além disso a probabilidade individual, segundo Carnap, não é subjectiva nem psicológica mesmo sendo chamada de "credibilidade" ou de "racionalidade", pois depende da existência e da natureza das provas que podem confirmar a hipótese. Carnap construiu por isso um sistema de lógica quantitativa indutiva, baseado no conceito de confirmação assumido nas suas três formas: positiva, comparativa e quantitativa. O conceito positivo de confirmação é a relação entre os dois enunciados h (hipótese) e p (prova), que pode ser expressa por enunciados do tipo "h é confirmado por p", "H é apoiado por p", "p é uma prova (positiva) de h", "p é uma prova que corrobora a afirmação de h". O conceito comparativo ou tipológico de confirmação é normalmente expresso por enunciados que têm a forma "h é melhor confirmado (ou apoiado ou corroborado, etc) por p do que h' por p'". Finalmente, o conceito qualitativo ou métrico de confirmação, isto é, o conceito de grau de confirmação, pode ser determinado por procedimentos análogos aos necessários para introduzir o
conceito de temperatura a fim de explicar o que significam as expressões "mais quente" ou "menos quente", ou ainda o conceito de quociente de inteligência para determinar o desenvolvimento intelectual. Carnap acaba por atribuir uma importância 60 fundamental a este conceito de probabilidade, se bem que admita a legitimidade do outro; e os seus passos foram seguidos pelos neo-empiristas. Até Popper, que anteriormente defendera a probabilidade estatística (Logik der Forschung, 1934, cap. VIII), acabou por apresentar uma interpretação da probabilidade estatística que a assemelha à probabilidade indIvidual, considerando-a como a disposição ou propensão de uma certa ordem experimental. Deste ponto de vista, pode-se admitir por exemplo que um dado tenha uma posição definida nessa ordem, que a disposição pode ser modificada variando a posição do dado, que as disposições deste género podem variar continuamente e que, finalmente, podemos trabalhar com campos de disposições ou de entidades que determinem disposições. A probabilidade ou disposição pode ser então representada por um vector pertencente a um espaço de possibilidades (The Propensity Interpretation of the Calculus of Probability, and the Quantum Theory, in Observation and Interpretation, ed. by S. Kõmer, 1957, págs. 67-68). Mas quer a indução se baseie na probabilidade estatística ou na probabilidade individual, o seu risco não varia, pois tanto rum caso como noutro ela constitui um procedimento racional, mas não infalível, de formular previsões. "Uma decisão é racional, afirma Carnap, quando está de acordo com a probabilidade que é calculada partindo das provas disponíveis; e isto mesmo que depois a decisão tomada não seja bem sucedida" (Logical Foundations of Probability, p. 181). 61 § 817. O PRINCíPIO DA REFUTABILIDADE: POPPER O principal instrumento polémico usado pelo neo-empirismo para criticar a metafísica clássica e em geral qualquer proposição que não pertença à lógica ou às ciências empíricas, é o critério adoptado para definir o significado de urna proposição qualquer. Uma proposição tem sentido se for susceptível de verificação. A possibilidade de tal verificação (leia-se: verificação empírica) constitui o único sentido possível das proposições factuais, já que quando uma proposição não pode ser verificada nem refutada deixa de ter sentido e de ser uma "proposição": torna-se uma "pseudo-proposição". Por outras palavras, "o significado de uma proposição consiste no método da sua verificação". Assim entendido, o critério de significação fundamentou a posição polémica do neoempirismo contra todas as formas da metafísica e, em geral, da filosofia tradicional, já que parecia reduzir a simples "não-sensos" todas as proposições que não se referiam a factos ou acontecimentos empíricos, isto é, a todas as proposições não compreendidas nas
ciências da natureza. No entanto o significado e o alcance desse critério nunca deixaram de ser objectos de discussões o de críticas, tendo sido interpretado de formas diferentes e sofrendo restrições ou limitações cada vez maiores, apesar de constituir sempre uma posição fundamental do neo-criticismo. O primeiro ataque contra esta concepção surgiu no interior do próprio Círculo de Viena, da arte 'do 62 austríaco Karl Popper (nascido em 1902 e actual professor da Universidade de Londres), na sua obra intitulada A lógica da investigação, publicada em 1934 numa colecção dirigida por Frank e Schlick (a edição inglesa desta obra, com um importante apêndice, foi publicada em 1959). Popper considera em primeiro lugar que a divisão das proposições em duas classes, a das proposições significantes ou científicas e a das proposições não significantes ou metafísicas, é dogmática, por pretender basear-se na própria natureza das proposições, a qual lhes é atribuída definitivamente. Trata-se antes, segundo Popper, de definir unia linha de demarcação, isto é, de propor ou estabelecer uma convenção oportuna para a demarcação do próprio domínio da ciência. Em segundo lugar, defende que a experiência deva ser compreendida não como um mundo de dados mas como um método, precisamente o método de verificação ou de controle, dos diversos sistemas teóricos logicamente possíveis. Partindo desta base, o autor propõe como critério de demarcação não a verificabilidade mas a falsificabilidade das proposições: ou seja, o considerar como característica de um sistema científico a possibilidade de ser refutado pela experiência. Assim, a afirmação "amanhã choverá ou não choverá" não é empírica na medida em que não pode ser refutada, mas já o é esta outra: "amanhã choverá". A superioridade deste critério baseia-se, segundo Popper, na assimetria entre a verificabilidade e a falsificabilidade: se bem que as proposições universais não possam derivar das particulares, elas podem ser negadas por uma destas. 63 Não basta verificar que "este homem é mortal" para dizer que "todos os homens são mortais"; mas basta tê-lo verificado para garantir que "todos os homens são imortais" é uma proposição falsa. O método da refutação consiste em sobrepor à inferência indutiva a verificação da falsidade dos sistemas dedutivos constituídos pelas transformações tautológicas das proposições (The Logic of Scientific Discovery, § 6). Assim, uma teoria pode ser considerada empírica ou falsificável se dividir sem nenhuma ambiguidade a classe de todas as proposições fundamentais possíveis em duas subclasses: a das proposições com as quais é incompatível e que constituem os falsificadores potenciais da teoria e a das proposições que não a contradizem. Mais resumidamente, "uma teoria é falsificável se a classe dos seus falsificadores potenciais não for uma classe vazia" (Ib., § 21).
Na obra de Popper, o carácter problemático da ciência é ainda mais fortemente sublinhado do que na dos outros empiristas. Não hesita em considerar a ciência como um amontoado de conjecturas ou de "antecipações" no sentido de Bacon, se bem que esteja sob um controle sistemático. "0 nosso método de investigação não consiste em defender essas antecipações para provarmos que temos razão. Pelo contrário, procuramos sempre negálas. Usando todas as armas do nosso arsenal lógico, matemático e técnico, tentamos provar que as nossas antecipações são falsas, a fim de construir novas antecipações, injustificadas e injustificáveis, novos 'juízos arriscados e prematuros', como lhes chamou escar64 necedoramente Bacon" (Ib., § 85). Nas suas obras mais recentes, Popper opôs esta doutrina à do essencialismo, segundo o qual é possível fazer uma descrição exaustiva e completa do mundo (da sua "essência"); e considerou a própria ciência galileu-newtoniana como uma manifestação do essencialismo. Contrapôs igualmente a sua teoria ao instrumentalismo (Duhem), segundo o qual as teorias científicas são meros instrumentos de cálculo (Three Views Concerning Human Knowledge, in Contemporany British Philosophy, 1956, págs. 357 e segs.); e estendeu a crítica do essencialismo ao domínio das ciências históricas, considerando o historicismo, por aceitar a história na sua totalidade, como uma manifestação desse mesmo essencialismo (The Poverty of Historicism, 1944). Finalmente, viu no essencialismo a base do absolutismo político, cujo fundador teria sido, a seus olhos, Platão (The Open Society and its Ennetnies, 1945). § 818. NEO-EMPIRISMO: O PRINCíPIO DE VERIFICABILIDADE A obra de Carnap Probabilidade e significado (1936) marca o abandono definitivo, por parte do neo-empirismo, do critério de significação tal como tinha sido considerado pelo Círculo de V,,-n-,,.. Como vimos (§ 813), Carnap sugeria naquele ensaio que basta, para estabelecer o significado de um enunciado empírico, a possibilidade de reduzir os seus termos a predicados observáveis, mesmo que esta 65 redução só seja possível através de uma longa cadeia de enunciados intermédios. Nesta forma, que entre outros factos toma em consideração o uso crescente que as disciplinas científicas fazem de entidades ou construções que nada têm a ver com as coisas percebidas, o critério de significação foi largamente aceite pelos neo-empiristas, sendo ainda defendido por alguns deles. Por outro lado, e mesmo nesta sua forma, o critério foi submetido a críticas radicais. C. G. Hempel (nascido na Alemanha em 1905), um dos membros do Círculo de Viena que, depois de 1934, ensinou em Universidades americanas, considerou que mesmo a exigência de redutibilidade introduzida por Carnap é demasiado restrita para dar conta do significado dos enunciados científicos. A tese de Hempel é a de que nenhum enunciado particular de uma teoria científica é redutível a enunciados de observação, e de que o "significado" de uma expressão relativamente a dados empíricos potenciais depende de dois factores, a saber: a estrutura linguística a que pertence a expressão e que determina as regras de inferência dos enunciados, e o contexto teórico a que ela recorre, isto é, o conjunto de hipóteses subsidiárias que se encontram disponíveis. Assim, os enunciados que exprimem a lei da gravitação universal de Newton não têm nenhum significado experimental em si mesmos; só quando vêm expressas numa
linguagem que permita o desenvolvimento do cálculo e combinados com um sistema apropriado de outras hipóteses é que adquirem uma certa importância na interpretação dos fenómenos observá66 veis. Deste ponto de vista, só os enunciados que formam um sistema teórico, ou melhor, só os sistemas na sua totalidade têm significado cognitivo. Este significado é uma questão de grau: existem sistemas cujo vocabulário extra-lógico consiste totalmente em termos observáveis e outros que dificilmente têm qualquer alcance sobre eventuais situações empíricas (The Concept of Cognitive Significance, in Proceedings of the American Academy of Arts and Science, vol. 80, 1951, p. 74). Partindo desta base, Hempel elucida a formação das teorias científicas mostrando que o significado empírico dos sistemas axiomáticos consiste na sua possibilidade de serem interpretados a partir de fenómenos empíricos, isto é, mediante proposições que relacionam certos termos do vocabulário teórico com termos observáveis; e insistiu ainda no carácter parcial desta possibilidade de interpretação (The Theoretician's Dilenuna, 1958, trad. ital. in La formazione dei conceui e delle leorie nella scienza empirica, pá-s. 145 c, segs.). Um ponto de vista semelhante foi defendido, de forma ainda mais radical, pelo lógico americano Willard Van Orman Qu;ne em obras (Lógica matemática, 1940; Métodos de lógica, 1950; De um ponto de vista lógico, 1953; Palavra e objecto, 1960) que fornecem importantes desenvolvimentos da lógica simbólica e que contêm determinações igualmente importantes da relação entre lógica e filosofia. Num ensaio de 1951, Dois dogmas do empirismo, Quine considerou precisamente como "doama" a existência neoempirista de definição do significado das proposições factuais em termos de experiência. Mes67 mo na forma atenuada que esta exigência reveste para Carnap, isto é, na forma de redução dos termos de tais proposições a predicados observáveis, ela não pode ser satisfeita por todos os enunciados científicos e não pode assim valer como critério para avaliar o seu "significado". Quine afirma que a menor unidade que se pode considerar dotada de significado é a totalidade da ciência. "A ciência total, matemática, natural e humana, afirma, é, em graus diversos, determinada pela experiência. As margens do sistema devem concordar com a experiência; o resto, com todas as suas elaborações míticas ou fictícias, tem como único objectivo simplificar as leis" (From a Logical Point of View, 116). Não há dúvida de que o esquema conceptual da experiência é um instrumento para a previsão das experiências futuras a partir das experiências passadas. Mas os chamados objectos físicos são introduzidos nas situações a título de cómodos intermédios, não para construir definições em termos de experiência mas apenas como posições (posits) irredutíveis não muito diferentes dos deuses de Homero. "Os objectos físicos e os deuses só diferem por uma questão de grau, não de espécie. Ambos estes tipos de entidades entram nas nossas concepções como simples posições culturais. O mito dos objectos físicos é epistemologicamente superior aos outros porque demonstrou ser um expediente mais cómodo para forjar uma estrutura manejável no fluxo da experiência" (Ib., 11, 6). Falar de "objectos físicos" ou de "acontecimentos individuais subjectivos, sensações ou reflexões", como de entidades a que se refere a física,
68 depende da posição ontológica que se escolhe. Quer a tese do realismo quer a do fenomenismo são "mitos"; e a escolha de um deles depende dos interesses e dos fins que se pretendem atingir (Ib., págs. 16 e segs.). Segundo Quine, o dogma da verificabilidade empírica está estreitamente ligado ao da distinção rigorosa entre as proposições analíticas e as sintéticas, distinção que constitui um dos pontos mais polémicos do neo-empirismo (§ 819). Quine representa, em certa medida, a ala esquerda das posições neo-empiristas. Aquela a que poderemos chamar ala direita é a mais fiel à formulação original do critério de significação, aceitando quanto muito a forma atenuada que lhe foi dada por Carnap. Assim, Herbert Feigl, um outro membro do Círculo de Viena que actualmente ensina na Universidade de Minnesota, defendeu precisamente esta formulação do critério, considerando-o no entanto como uma "proposta" e não como uma proposição, e isto para evitar que ele caia na sua própria jurisdição (o que o tornaria não válido para não poder ser verificado empiricamente), e para lhe reconhecer uma validade não teórica mas prática. Fiegl defende ainda uma interpretação "realista" da ciência, admitindo a existência de "entidades teóricas" que podem ser relacionadas com termos que designem dados da observação directa (Existencial Hypotheses, in "Philosophy of Science", 1950; Some Major Issues and Developinents in the Philosophy of Science of Logical Empiricism, in Minnesota Studies in Philosophy of Science, 1956, págs. 3-37). 69 Gustav Bergmann, um outro membro do Círculo de Viena que é actualmente professor na Universidade do Estado de lowa, exprimiu com intenções análogas o critério de significação como sendo um "princípio da experiência imediata" (acquaintance), no sentido de que "todos os predicados descritivos, pertencem a, ou podem ser explicitamente (textualmente) definidos por um conjunto de termos que representam características imediatas e observáveis" (in Proceedings of the American Academy of Arts and Science, vol. 80, 1951, p. 80). Por outras palavras, o princípio exige que termos como "electrão", "peso específico", etc., possam ser definidos de tal modo que todos os termos que entram nas respectivas definições (excepto os relacionadores lógicos e, é, tudo, etc.) sejam nomes de coisas imediatamente perceptíveis ou de constituintes das coisas que possam ser imediatamente experimentadas (Philosophy of Science, 1957, págs. 5 e segs.). No entanto, é característica de Bergmann a tentativa para analisar de forma lógica a experiência imediata recorrendo ao conceito de intencionalidade (deduzido por Brentano e Husserl): o significado é o acto de consciência que se refere ao seu conteúdo ou, mais exactamente, ao seu "referente" (Intentionality, in "Arquivo de Filosofia", 1955, p. 184). § 819. NEO-EMPIRISMO: PROPOSIÇõES ANALÍTICAS E SINTÉTICAS O segundo princípio básico do neo-empirismo consiste na distinção entre proposições analíticas 70 e proposições sintéticas. Encontra-se intimamente relacionado com o primeiro, isto é, com a exigência de verificabilidade empírica das proposições sintéticas. Estas são as que exprimem factos; a sua validade (ou o seu "significado") consiste precisamente na sua
verificabilidade no domínio dos factos (seja como for que estes se compreendam). As proposições analíticas são válidas independentemente dos factos: são as tautologias de que falava WitIgenstein. Carnap, Reichenbach e todos os neo-positivistas defendem o carácter analítico ou tautológico das proposições da lógica e da matemática. Num artigo de 1931 (depois reproduzido em Readings in the Philosophy of Science, 1953, págs. 122-28) Carnap dava a conhecer a diferença entre ciências formais (lógica e matemática) e ciências factuais (física, biologia, psicologia, sociologia, etc.) baseada precisamente na diferença entre proposições analíticas e proposições sintéticas: as ciências formais conteriam apenas enunciados analíticos e as factuais enunciados sintéticos. Julius R. Weinberg, num Exame do positivismo lógico (1936) mostrava como o reconhecimento do carácter analítico da lógica impede a aceitação da metafísica. "Se a ló gica não nos puder dizer nada sobre o mundo, afirma, torna-se absolutamente impossível construir uma metafísica dedutiva. A eliminação desta última, já realizada em certa medida por Hume e Kant, é completada por esta demonstração" (An Experiment of Logical Positivism, 1, cap. 11; trad. ital., p. 99). Mais tarde, no entanto, o carácter analítico ou tautológico das matemáticas foi negado por Friedrich Waismann na sua Introdução 71 ao pensamento matemático (1936). "A matemática não consiste em tautologias, afirmava. Se bem que mantenha o sinal de igualdade, observemos que a expressão a=b é usada na matemática como uma regra que exprime que a, onde quer que apareça, pode ser substituído por b... A igualdade não consiste portanto numa tautologia mas antes numa ordem e está muito mais próxima de uma proposição empírica do que de uma tautologia. É efectivamente uma regra que dirige as nossas acções (tal como uma regra do jogo de xadrez) e que pode ser aceite ou Denken, IX, Q trad. ital., págs. 164-65). Mas a própria possibilidade de uma distinção rigorosa entre proposições analíticas e sintéticas é posta em dúvida por Morton White num ensaio publicado em 1950 (em Sydney Hook, ed., J. Dewey, 1950, págs. 316-30) e por Quine. Este último mostrava que todos os caminhos usados para esclarecer a própria noção de analiticidade a pressupõem. Assim, a analiticidade introduzida por definição ou pelo critério de intercambialidade (segundo o qual dois termos serão considerados analíticos se puderem ser substituídos um pelo outro nas expressões em que surgem sem que estas se tornem menos verdadeiras) serve para estabelecer a analiticidade de certos termos mas não esclarece o significado da própria analiticidade. Também não a podem definir as "regras semânticas", que definem a analiticidade dentro de um sistema linguístico determinado. Em todos estes casos, a analiticidade é simplesmente pressuposta. "Não foi delineada nenhuma distinção entre enunciados analíticos e sintéticos, e a afirma72 ção de que unia tal distinção deve ser estabelecida é um dogma não empírico dos empiristas, um artigo metafísico de fé" (From a Logical Point of Viw, 11, 4). Isto quer dizer, segundo Quine, que a própria distinção entre a parte que é devida à
experiência e aquela que é devida à linguagem não pode ser feita no caso dos enunciados particulares. A totalidade do nosso conhecimento ou das nossas crenças é uma construção humana que só atinge a experiência nos seus confins. Um conflito periférico com a experiência dá origem ocasionalmente a um reacomodamento no interior do campo, o que significa que os valores de verdade são redistribuídos por algumas das nossas afirmações. A revalorização de algumas delas obriga à revalorização das outras, por existirem entre si relações lógicas; mas as próprias leis lógicas não são mais do que afirmações do sistema, isto é, elementos do campo. Quando um elemento do sistema cognitivo entra em conflito com a periferia empírica do sistema, temos sempre uma ampla possibilidade de escolha das afirmações que é necessário reavaliar. Uma afirmação bastante próxima da periferia do sistema pode manter-se ao ser comparada com uma experiência recalcitrante, a qual será então considerada ilusória. Mas, por outro lado, até as leis fundamentais para a construção do sistema, por exemplo, as leis lógicas, podem ser submetidas a revisão ou negadas, tal como aconteceu com o princípio do terceiro excluído ao ser confrontado com a mecânica quântica. De qualquer modo, "é perfeita loucura procurar uma distinção entre as asserções sintéticas que se reflectem contin73 gentemente sobre a experiência e as asserções analíticas, válidas para o que quer que aconteça" (Ib., 11, 6). A última obra de Quine, Palavra e objecto (1960), é a defesa e a ilustração analítica deste ponto de vista. É óbvio que se a eliminação daquilo a que Quine chamou "os dois dogmas do empirismo" fosse realizada mesmo a fundo, mudaria radicalmente a estrutura do empirismo. Por outro lado, dificilmente se poderia continuar a falar do neo-empirismo como sendo um empirismo "lógico". Com efeito, e nesta direcção, Arthur Pap propôs o abandono da teoria linguística da necessidade lógica e considerou essa necessidade como "uma propriedade intrínseca das proposições, isto é, como uma espécie de a priori intuitivo", sugerindo ao mesmo tempo que as proposições não são "meros enunciados linguísticos" mas sim "objectos de crença", no mesmo sentido em que os valores são objectos de preferência ou os sons objectos do ouvido (Smantics and Necessary Truth, 1958, p. 201). No entanto, a renúncia aos dois "dogmas" está bem longe de ser aceite por todos os neo-empiristas, alguns dos quais defenderam até explicitamente a distinção entre as proposições analíticas e sintéticas. Assim fez Feigl (no segundo dos artigos citados), acentuando que a descoberta de uma distinção precisa entre proposições analíticas e sintéticas e não apenas útil como até indispensável, e que a sua refutação é o resultado da confusão entre a análise das linguagens artificialmente estabelecidas e a investigação histórica das linguagens naturais. 74 § 820. NEO-EMPIRISMO: A SEMÂNTICA Na Sintaxe lógica da linguagem (1934), Carnap concebia a lógica (na qual resumia toda a tarefa da filosofia) como pura sintaxe ou arte combinatória,
à qual era estranha a consideração do significado dos termos. Afirmava então que "uma lógica especial do significado é supérflua"" (Logical Syntax, § 71). Mas nos anos que se seguiram à publicação daquela obra, Carnap foi-se interessando cada vez mais pelos problemas inerentes à teoria do significado, isto é, a semântica num sentido restrito. As suas investigações sobre o princípio de verificabilidade, a modalidade, a probabilidade e a indução são precisamente o resultado deste novo interesse pela semântica, à qual dedicava em 1941 uma obra com o título Introdução à semântica; estabeleceu as relações entre a semântica e a sintaxe num outro escrito intitulado Formalização da lógica (1942). Declarava nesta altura aceitar a divisão, proposta por Morris, da semiótica em sintaxe, semântica e pragmática (§ 797). A semântica contém "a teoria daquilo a que chamamos habitualmente o significado das expressões e, portanto, o estudo que conduz à construção de um dicionário que traduza a linguagem-Objecto numa metalinguagem" (Introduction to Semantics, 1959, p. 10). E contém ainda a teoria da verdade e a da dedução lógica, pois verdade e consequência lógica são conceitos baseados na relação de designação e, portanto, são conceitos semânticos. 75 O desenvolvimento da semântica nesta direcção tivera um contributo fundamental por parte da escola polaca de lógica e, particularmente, de Alfred Tarski (nascido em 1901), professor de filosofia da matemática em Varsóvia que, mais tarde viveu nos Estados Unidos. Segundo Tarski, a semântica é a disciplina que "trata de certas relações entre as expressões de uma linguagem e os objectos (ou 'estados de facto') a que essas expressões se referem". Como exemplos típicos dos conceitos semânticos, podem-se mencionar os de designação, satisfação e definição, que aparecem nos exemplos seguintes: a expressão w pai da pátria" designa (denota) George Washington; a neve satisfaz à função proposicional (condição) "x é branco"; a equação "2x=1" define (determina univocamente) o número 1/2. Por outro lado a palavra verdade é de natureza diferente: exprime a propriedade (ou denota uma classe) de certas expressões, isto é, dos enunciados. Partindo da teoria tradicional da verdade (teoria da correspondência) um enunciado só é verdadeiro se corresponder à realidade ou, como também se pode dizer, se designa um estado de coisas existente. Mais precisamente, pode-se dizer: o enunciado "a neve é branca" é verdadeiro se e só se a neve é branca. A frase a neve é branca, quando está entre aspas, pertence à linguagem-objecto, isto é, à linguagem de que se fala: pode ser considerada como um nome porque o objecto de que se fala é sempre representado por um nome. Mas a mesma frase, sem estar entre aspas, pertence, à metalinguagem, isto é, à linguagem com que falamos da primeira linguagem e em cujos termos 76 desejaríamos construir a definição de verdade para a primeira linguagem. Ora a metalinguagem, que permite uma definição exacta da verdade e, em geral, dos conceitos semânticos, deve conter, para além das expressões da linguagem-objecto, os nomes destas
expressões, isto é, uma riqueza maior. A distinção entre a linguagem-objecto e a metalinguagem permite, segundo Tarski, eliminar a famosa antinomia do mentiroso, pois a frase "eu minto" é compreendida no sentido "eu minto ao dizer p", onde p é um enunciado da linguagem-objecto e não pertence à metalinguagem em que é expressa a frase "eu minto". Assim sendo, podemos indicar com um X a frase a neve é branca posta entre aspas e com um p a mesma frase sem estar entre aspas; então, "X é verdadeira se e só se, p". Esta, como nota Tarski, não é uma definição da verdade; mas "qualquer equivalência que se obtenha substituindo p por um enunciado particular e X pelo nome deste enunciado pode ser considerada como uma definição parcial da verdade, que explica em que consiste a verdade de um enunciado particular (The Semantic Conception of Truth, 1944, in Readings in Philosophical Analysis, 1949, p. 55). A definição semântica da verdade foi interpretada de várias formas, Por um lado, foi entendida como se dissesse que "a afirmação da verdade de uma proposição equivale à afirmação da proposição": assim aconteceu com Max Black em Language and Philosophy (1952, trad. ital., p. 103). Por outro lado, foi entendida como substituindo o velho conceito de correspondência pelo de satisfação ou preenchi77 mento das condições: o enunciado "a neve é branca" é verdadeiro se a neve satisfaz a função proposicional "x é branco". Assim acontece, por exemplo, no caso de Popper (The Logic of Scientifie Discaversy, p. 274). De qualquer modo, trata-se de uma noção introduzida para a construção das linguagens axiomáticas ou formais mas que dificilmente pode ser utilizada, como pretendia Tarski, no domínio das ciências empíricas. § 821. NEO-EMPIRISMO: A FILOSOFIA ANALÍTICA A outra direcção em que se manifesta o actual pensamento neo-empirista é a da filosofia analítica, que tem o seu centro nas Universidades inglesas de Oxford e de Cambridge e encontrou defensores noutros países, principalmente nos escandinavos. Se o neo-positivismo extraiu muitas das suas posições do Tractatus de Wittgenstein, a filosofia analítica deve a sua inspiração fundamental à reelaboração da doutrina de Wittgenstein feita por ele próprio em Inglaterra, à influência que este autor exerceu através da sua actividade de professor e às obras que fez circular a título privado e que apenas foram publicadas postumamente (§ 809). Se bem que Moore, como vimos (§ 772), considerasse como tarefa da filosofia a defesa das crenças do senso comum e como seu método o exame das asserções filosóficas, não reduzindo assim a filosofia à análise da linguagem, o procedimento que ele aplicou foi considerado como um importante precedente da filosofia analítica con78
temporânea. Mas é óbvio que o precedente fundamental ou ponto de partida dessa corrente é a tese da segunda fase do pensamento de Wittgenstein, na qual se consagra a multiplicidade e relatividade das linguagens, que são caracterizadas pelo uso que delas se faz na conservação normal dos homens. Os temas do neo-positivismo foram introduzidos na Inglaterra por uma obra de Ayer, Linguagem, verdade e lógica, publicada em 1936. Mas já numa obra de Gilbert Ryle, de 1931, era atribuída à filosofia a tarefa de eliminar ou rectificar as expressões **l'@nÍcuíst,*Lc-.s desviadas (Systematically Misleading Expressions, actualmente em A. G. N. Flew, ed., Logic and Language, 1, cap. 11). E John Wisdom, num artigo de 1938, considerava o princípio de verificação proposto pelos neo-positivistas como "teoria. metafísica" ("Mind", 1938, p. 340). Como foi dito por um dos mais qualificados membros desta corrente, J. O. Urmson (Philosophical Analysis, 1956, p. 179), substituía-se o slogan do neo-positivismo "o significado de uma asserção é o método da sua verificação", por dois outros slogans: "não se deve procurar o significado mas sim o uso" e "toda a afirmação tem a sua própria lógica". O primeiro destes slogans convida a esclarecer a tarefa que uma afirmação pode desempenhar e não o seu significado analítico; e o segundo faz notar que a linguagem tem muitas **4tareíqs e mu-Aos 4níve:s, e que a descrição do mundo é apenas uma das tarefas, e não a única, a que os outros são redutíveis. Esta atitude, se bem que esteja de acordo com a tese da segunda fase do pensamento de Wittgenstein sobre a multiplicidade e 79 a relatividade das linguagens, constitui também o abandono do conceito da análise como redução do mundo aos seus elementos ou como tradução dos hábitos linguísticos numa linguagem ideal. Deste ponto de vista, a filosofia conserva a sua função terapêutica, isto é, de libertação das dúvidas, adivinhas, perplexidades e confusões linguísticas que nos surgem. Mas o instrumento de libertação deixa de ser a lógica (como o considerava o neo-positivismo), isto é, a tradução dos modos habituais de falar numa linguagem formalizada que lhes elimine os equívocos, para se transformar numa consideração das utilizações efectivas das expressões linguísticas e dos fins que com elas se pretendem atingir. As investigações lógicas, tal como as de metodologia científica, caiem assim fora da esfera de interesses em que se move esta corrente da filosofia analítica. Entre os seus vários defensores, aquele que mais se avizinha dos interesses e dos temas do neo-positivismo é Alfred Julius Ayer (nascido em 1910), professor em Oxford e autor de uma série de obras (Os fundamentos do conhecimento empírico, 1940; Pensamento e significado, 1947; Ensaios filosóficos, 1954; O problema do conhecimento, 1956). Muitos dos problemas da filosofia foram tratados por Ayer num sentido que se avizinha mais do empirismo inglês tradicional do que das exigências do neo-empirismo. Assim, a sua análise do conhecimento é essencialmente uma defesa, contra as instâncias cépticas, das crenças do senso comum na realidade das coisas e dos outros espíritos e na possibilidade de exprimir estas crenças numa forma comunicável de lingua80 gem. "A razão pela qual as nossas experiências sensíveis oferecem uma base para crer na
existência dos objectos físicos é a de que os enunciados que, se referem a esses objectos são usados de tal modo que as nossas experiências nos levam a acreditar na sua verdade" (The problem of Knowledge, págs. 147-48). No entanto, Ayer não afirma que só existem os objectos físicos. existem ainda os estados mentais, cujo carácter privado não nos impede de os descrever (Ib., p. 242). E, em geral, Ayer é favorável a um uso generalizado e múltiplo da palavra existe. "Se uma dada pessoa usa símbolos que não se aplicam a nada de observável, poderá do mesmo modo afirmar que existe aquilo que tenta designar por tais símbolos. Pode acontecer que, procedendo deste modo, ele use a palavra 'existe' de uma forma não sancionada pelo seu uso normal, mas isto só é criticável na medida em que torne possível qualquer malentendido" (Philosophical Essays, p. 227). Para a crítica dos acontecimentos mentais, entendendo estes como um conjunto independente de acontecimentos diferentes de quaisquer outros, deu um contributo fundamental Gilbert Ryle (nascido em 1900), professor em Oxford e dIrector do **"M,*l,ld>-.>. No Conceito do espírito (1949) rectificou chama "o dogma do espectro existente na máquina", isto é, a doutrina cartesiana sobre a existência de uma substância espiritual, diferente e independente do mecanismo corpóreo. Na base deste dogma está um "erro de categoria" semelhante ao cometido por quem visitasse as salas de aula, as bibliotecas, as faculdades e os laboratórios de uma 81 universidade e considerasse não ter ainda visto a própria universidade. O erro de categoria consiste na substancialização da alma ou do espírito como realidade à parte, como se aquela não consistisse num certo conjunto de comportamentos da pessoa. O espírito é precisamente, tal como a universidade, o nome dado a um conjunto de comportamentos de um certo nível. Deste ponto de vista, a consciência não constitui uma via de acesso privilegiada a uma esfera de certezas imediatas ou originárias, mas apenas (no seu sentido mais estritamente filosófico) um conhecimento de certas actividades ou operações, conhecimento esse que não pode ser considerado como privilegiado pelo simples facto de não ser isento de erro (The Concept of Mind, VI, 2; trad. ital., págs. 158 e segs.). Contudo, Ryle não se inclina para uma concepção materialista ou fisicalista. Afirma que a percepção não é nem um processo ou estado corpóreo nem um processo ou estado incorpóreo, mas antes o fim de um processo, isto é , a sua realização, o seu ponto final, tal como a chegada à meta é o ponto final de uma competição desportiva (Dilenimas, 1954, págs. 108-9). Ryle considera que o mundo da percepção (ou melhor, o seu campo) não é contraditório com o mundo ou campo da física, variando apenas os respectivos modos de descrição, que são diferentes e independentes um do outro. Aquilo que não é mencionado numa fórmula científica não pode ser negado por ela, da mesma forma que a linguagem do bridge não exclui a do poder, se bem que as cartas usadas num e noutro jogo sejam as mesmas. Do mesmo modo, a lógica e a 82 filosofia não coincidem nem se opõem, já que a filosofia utiliza a lógica da mesma forma que o cartógrafo utiliza a geometria ou o comerciante utiliza a contabilidade. Mas "enquanto o filósofo se ocupa de conceitos com sangue e carne, tais como os de prazer ou de memória, o lógico formal ocupa-se apenas de conceitos esqueléticos como os de não ou de alguns, e mesmo estes devem limitar-se a um alcance reduzido e a uma forma que nada tenha de natural, sob pena de o lógico nem sequer os consideram (Ib., p. 118).
Assim como Ryle nega que se possa atribuir qualquer privilégio à experiência interior, um outro neo-analista, John Wisdom (nascido em 1904), professor em Oxford, afirma a posição contrária, assumindo tal experiência interior como correspondendo ao único tipo de conhecimento que pode ser considerado como certo e autêntico. Os outros espíritos, deste ponto de vista, são reconstituídos partindo dos sintomas que cada um de nós encontra na experiência de si próprio (Os outros espíritos, 1952). Partindo desta atitude, Wis-dom foi levado a uma interpretação filosófica da psicanálise, que lhe parece precisamente baseada na experiência 1953). E é óbvio que, deste ponto de vista, as limitações drásticas que o neo-empirismo impôs à possibilidade de falar dos objectos que transcendem a experiência, caiem automaticamente: "sintomas" de tais objectos podem ser sempre encontrados. O próprio Wisdom, num artigo de 1955, encontrou sintomas da existência de Deus no comportamento religioso dos homens (Gods, in A. G. N. Flew, 83 ed., Logic and Language, 1, Cap. X). Por outro lado, pode notar-se também uma certa abertura para uma metafísica tradicional noutros representantes da filosofia analítica inglesa. P. F. Strawson (nascido em 1919), professor em Oxford, conhecido por ter tentado elaborar um estudo sobre lógica da linguagem ordinária (Introdução à teoria lógica, 1952), defendeu o papel construtivo e inventivo da metafísica, afirmando que esta pode esclarecer directa ou indirectamente os aspectos fundamentais dos modos como realmente pensamos e falamos, e fornecer instrumentos úteis ou indispensáveis para o progresso das matemáticas e das outras ciências (Construction and Analysis, in G. Ryle, ed., The Revolution in Philosophy, 1956, pá,-s. 109-10). E ele próprio tentou dar um contributo para uma metafísica, descritiva contraposta à tradicional, considerada prescritiva, num livro intitulado Indivíduos (1959). Por outro lado, pode encontrar-se uma maior aderência aos cânones clássicos do neoempirismo analítico nas obras de John L. Austin (1911-60; Escritos filosóficos, 1961; Como fazer coisas através das palavras, 1962; Sentidos e dados sensíveis, 1962). Austin não aceita que o ponto de partida da investigação filosófica deva ser a linguagem comum; mas não nega que ela contenha equívocos ou confusões, embora individualizáveis, e afirma que ela não pode constituir a última palavra para a filosofia. Na realidade, muitas das suas notações mais originais não SãO meramente linguísticas. Assim, a frase "eu sou" é por ele considerada não como uma descrição mas COMO Uma posição assumida. "Quando digo 'eu sou', 84 autorizo os outros a dizerem S é N. E criticando a opinião de Wisdom. sobre os outros espíritos, afirma: "Crer nas outras pessoas, na autoridade e no testemunho é um aspecto essencial do acto de comuniCar, e um acto que realizamos constantemente. É uma parte irredutível da nossa experiência, tal como fazer promessas, participar em jogos competitivos ou ver
uma fechadura" (Other Minds, in A. C. N. Flew, ed., Logic and Language, 11, págs. 144 e 157). § 822. O NEO-EMPIRISMO ÉTICO Em todas as suas ramificações o neo-empirismo considerou a linguagem descritiva como privilegiada, pelo facto de as proposições (enunciados ou asserções declarativas) que constituem tal linguagem serem as únicas expressões (como já tinha sido reconhecido por Aristóteles) que podem ser declaradas verdadeiras ou falsas, constituindo por isso o património da ciência. Ora, do ponto de vista da linguagem descritiva, as regras, as normas e os imperativos que constituem a moral não têm o mínimo sentido. Por isso, o neoempirismo negou quase unanimemente à ética, enquanto ciência da moral, o carácter de uma disciplina racional. O domínio da moral foi assim remetido pelos neo-empiristas para o campo das emoções. Wittgenstein afirmava que "a ética é inexprimível" (Tractatus, 1921, 6.42). Schlick afirmava: "quando recomendo a alguém uma acção que considero boa, exprimo o facto de eu a desejar" (fragen der Ethik, 1930, 1, 85 § 6), que é um ponto de vista que coincide com o de Russell § 1041, Carnap afirmava que as proposições da ética são pseudo-proposições que "não têm conteúdo lógico", não sendo mais do que "expressões de sentimentos que tendem por sua vez a suscitar sentimentos e vontades naqueles que as ouvem" (Logical Syntax of Language, 1934, § 72). Ayer contribuiu para difundir este ponto de vista, exprimindo-o numa forma mais crua: "ao dizer que um dado tipo de acção é bom ou mau, faço apenas uma asserção factual e não uma afirmação sobre o meu estado de espírito. Exprimo simplesmente certos sentimentos morais. E o homem que abertamente me contradiga exprime também os seus sentimentos morais. Assim, não faz sentido discutir qual de nós terá razão porque nenhum de nós afirma uma proposição genuína. A função da linguagem ética é portanto emotiva, no sentido de estimular emoções e de conduzir à acção, mas é impossível encontrar um critério para determinar a validade dos juízos éticos" (Language, Truth and Logic, 1936; ed. 1948, págs. 107-8). Mais tarde, Ayer rebatia substancialmente este ponto de vista (Philosophical Essays, 1954, págs. 231 c seas.). Na mesma ordem de ideias Feig] declarava: "0 termo valioso (no sentido não instrumental) é usado como uma afirmação puramente emotiva para a orientação ou rectificação das posições" (Logical Empiricism, in Readings in Philosophical Analysis, 1949, p. 24). E Pap corrigia esta tese afirmando que o valor só é objectivo quando é intersubjectivo, isto é, quando é o objecto de desejos comparticipados ou comparticipáveis por um 86
grande número de pessoas (Elements of Analytic Philosophy, 1949, págs. 38 e segs.). Contribuiu bastante para reforçar este ponto de vista comum a todos os neo-empiristas, o livro de Charles L. Stevenson intitulado Ética e linguagem (1945), que é uma análise detalhada da linguagem prescritiva da moral. Aceitando uma distinção já feita por Ogden e Richards, Stevenson estabelece a distinção entre significado descritivo e significado emotivo das palavras, mediante o conceito de disposição já utilizado por Carnap e outros. O significado descritivo de um signo é "a sua disposição para modificar o conhecimento, se bem que a disposição seja causada por um processo elaborado de condicionamento que acompanhou o uso do signo na comunicação, e seja fixada, pelo menos num grau considerável, por regras linguísticas" (Ethics and Language, 1950, p. 70). Por outro lado, o significado emotivo de uma palavra é "a força que a palavra adquire, partindo da sua utilização em situações emocionais, para evocar ou exprimir directamente atitudes sem as descrever ou designar" (Ib., p. 33). Os dois tipos de significado não constituem partes mas sim aspectos diferentes de uma situação total; mas o significado emotivo pode ser mais ou menos independente do descritivo. Ora os juízos éticos baseiam-se inteiramente no significado emotivo. Se Ticiano e Caio têm duas atitudes diferentes, se Ticiano aprova e Caio desaprova a mesma coisa x, o desacordo não diz respeito à natureza de x, que até pode ser descrito da mesma forma por ambos, mas sim na atitude valorativa que assumem. Com 87 efeito, se o seu desacordo é determinado por um conhecimento insuficiente da coisa x, pode ser eliminado de forma puramente racional mediante uma descrição exacta da coisa. Mas quando o desacordo diz respeito a atitudes, o método para o eliminar não é racional mas sim persuasivo, dependendo então do alcance emocional das palavras, isto é, "do significado emotivo, do uso de uma retórica conveniente, de uma metáfora adequada, de um tom de voz peremptório, estimulante ou suplicante, de gestos dramáticos, da preocupação em estabelecer uma relação com quem nos ouve, etc." Qb., págs. 138 e segs). Podem considerar-se como instrumentos fundamentais do procedimento persuasivo as definições persuasivas, que alteram o significado descritivo dos termos dando-lhos um maior rigor, dentro dos limites da sua imprecisão habitual, mas não modificando o seu significado emotivo (Ib., p. 210). Estas teses de Stevenson são aperfeiçoa-das pelas de R. M. Hare na obra A linguagem da moral, publicada em 1952. Hare reafirma a distinção entre proposições imperativas e proposições descritivas e também a inderivabilidade (já reconhecida por Hume) das primeiras a partir das segundas. Insiste no entanto, com uma terminologia diferente da usada por Stevenson, na existência de um conteúdo comum aos dois tipos de frases (indicativo ou designativo), no sentido de que as duas frases "fecha a porta" (imperativo) e "a porta está por fechar" (indicativo) têm em comum o elemento "fechar a porta"; e reconhece a diferença entre os dois tipos de proposições afirmando que "o consentimento sincero numa delas
88 implica acreditar em qualquer coisa e o consentimento na outra indica fazer qualquer coisa" (The Language of Morals, p. 20). As proposições imperativas, não podendo ser deduzidas de qualquer princípio indicativo, são deduzidas de princípios também prescritivos, os quais são os geralmente aceites pela sociedade em que se vive, mas que não são imutáveis na medida em que podem ser repropostos, corrigidos ou modificados (Ib., p. 150). No recente livro Liberdade e razão (1963), Hare insistiu na universalidade que os juízos morais compartilham com os descritivos, aceitando assim a tese de Kant (Freedom and Reason, p. 34)-, e também na possibilidade de os pôr à prova (como Popper aconselhou para o caso das proposições científicas) através da tentativa de os refutar. "Assim como a ciência, honestamente cultivada, é a procura das hipóteses e o pô-las à prova tentando mostrar a falsidade das suas consequências, também a moral, considera-da seriamente, consiste na procura dos princípios e no pô-los à prova em casos particulares. Toda a actividade racional tem a sua disciplina, que será a disciplina do pensamento moral: pôr à prova os princípios morais que sugere, extraindo as suas consequências e vendo se as podemos aceitar" (Ib., p. 92). Pode dizer-se a propósito que o carácter, considerado "emotivo", das proposições morais, em que tanto insistiram os neo-empiristas, foi posto de parte. É certo que, segundo Hare, o discurso ético parte da prescrição de acções e não da descrição de factos; mas a disciplina lógica a que está submetido - universalização da restrição e tentativa de refutar as consequências - é 89 idêntica à que é característica da ciência.'Isto deveria significar que ao discurso moral corresponde a mesma validade do discurso científico. § 823. O NEO-EMPIRISMO ESTÉTICO Assim como o objecto da moral, o da estética foi geralmente reduzido pelos neo-empiristas ao domínio das emoções. Nos fins de 1923, num livro que teve muita expansão, O significado do significado, estudo sobre a influência das linguagens no pensamento e sobre a ciência do simbolismo, C. K. Ogden e 1. A. Richards estabeleceram a distinção que, como se viu, foi amplamente adoptada pelos neo-empiristas no campo da moral, isto é, a distinção entre o significado cognitivo e o significado emotivo das palavras. A função cognitiva ou simbólica compreende "a subordinação da referência da palavra à coisa e a sua comunicação ao observador, isto é, o provocar neste uma referência semelhante". A função emotiva compreende "a expansão das emoções, das atitudes, do humor, das intenções do orador e a sua comunicação, isto é, a sua evocação no ouvinte" (The Meaning of Meaning, 1952, p. 149). O próprio Richards reconhecia na linguagem poética "a suprema forma da linguagem emotiva", isto é, daquela que tem a função de estimular "emoções e
atitudes" (Principles of Literary Criticism, 1924; ed. de 1955, p. 273). Deste ponto de vista, nenhuma distinção em possível entre a arte e a moral, a qual é 90 ainda contemporaneamente reduzida ao estímulo das atitudes, e na realidade essa distinção nunca foi tentada pelos neo-empiristas. Todavia, no próprio domínio da semântica foi realizada uma tentativa mais eficaz para determinar a posição da arte, partindo dos problemas concretos da crítica de arte, por Bernard C. Heyl, no livro Novas orientações na estética e na crítica de arte (1943), o qual teve uma importância notável no desenvolvimento das ideias estéticas contemporâneas. Heyl prescinde da distinção, entre significado emotivo e significa-do descritivo, dado prescindir do próprio conceito de verdade artística, que substitui pelo conceito de significado artístico. Este depende do conteúdo do objecto artístico, isto é, dos inumeráveis estados de espírito que exprime e que são totalmente diferentes dos factores não estéticos do tema que representa ou do argumento sobre que se debruçou. E depende ainda da forma, isto é, da organização e da ordem ou forma como os elementos do objecto artístico se encontram reciprocamente relacionados. O nível do significado artístico não é de modo algum confundido com a "perfeição", isto é, com o modo como o artista exprimiu as suas intenções, e isto porque obras igualmente perfeitas podem ter significado artístico diferente (New Bearings in Esthetics and Art Criticism, 1947, págs. 79-81). A medida do significado artístico não é absoluta mas sim relativa, pois admite a possibilidade de diferentes escalas de valores. "Aquilo que indubitavelmente é necessário é uma medida que não admita valores independentes das valorações humanas mas que, todavia, reconheça 91 a necessidade e justifique a existência de juízos bem alicerçados de melhor e pior. No entanto, estes não podem ser considerados absolutos visto dependerem de opiniões filosóficas e de critérios empíricos que variam de indivíduo para indivíduo e de cultura para cultura. Mas isto significa apenas que é inevitável e desejável a existência na crítica de uma certa elasticidade e variedade, o que corresponde à natureza humana (Ib., págs. 154155). Os outros temas a que o neo-empirismo se referiu no domínio da estética consistem principalmente nas polémicas que efectuou contra a estética realista ou idealista. A impossibilidade de formular uma única definição que contenha a "essência" da arte e que por isso valha para todas as artes e para todas as suas modalidades; a impossibilidade de formular juízos estéticos e escalas de valores imutáveis e definitivas; a necessidade de ter em conta as valorações estéticas e os princípios de tais valorações que estejam em uso na crítica estética ou no gosto comum são alguns dos temas que foram tratados, por exemplo, numa recolha de textos publicada em 1954 por um grupo de escritores neo-empiristas (W. Elton, ed., Esthetics and Language, Oxford, 1954).
§ 824. O NEO-POSITIVISMO JURÍDICO maior expoente do neo-positivismo jurídico é Hans Kelsen, nascido em Praga em 1881 e professor em universidades americanas. As obras principais 92 deste autor são: Teoria geral do estado, 1925; Os princípios filosóficos da doutrina do direito e do positivismo jurídico, 1928-, Teoria pura do direito, 1934 (todas estas obras foram publicadas na Europa); A teoria geral do direito e do estado, 1943; Sociedade e natureza, 1943; A paz e o direito, 1944; A teoria política do bolchevismo, 1948 (publicada na América). O pressuposto fundamental de Kelsen é o comum a todos os neo-positivistas, isto é, o do carácter descritivo da ciência e do carácter prático ou irracional dos juízos de valor. "A ciência, afirma Kelsen, não tem capacidade para pronunciar juízos de valor, logo isso não lhe é autorizado. Isto aplica-se igualmente à ciência do direito, mesmo que ela seja considerada como uma ciência dos valores. Assim como todas as outras ciências dos valores, ela consiste no conhecimento de tais valores mas não os pode produzir; pode compreender as normas mas não as pode criam (General Theory of Law and State, apêndice M trad. ital., p. 448). Deste ponto de vista, o neopositivismo, jurídico deve precaver-se contra qualquer especulação do tipo jus-naturalista sobre o "direito em si" e limitar-se a uma teoria do direito positivo, considerado como um produto humano e, logo, sem uma justificação absoluta. Por outras palavras, reconhece-se ao direito positivo uma validade hipotético-relativa, o que não o impede de concretizar-se em normas válidas. O conceito fundamental da teoria do direito será o de norma. Uma norma é válida se tiver força para disciplinar o comportamento daqueles a que se dirige; é por isso que a 93 sua validade não depende da vontade dos indivíduos ou da vontade do legislador. Não é o -facto de ser ou não desejada que constitui a validade ou não validade da norma, mas sim a sua capacidade de vincular pela força o comportamento do indivíduo. O direito é assim uma técnica social, precisamente aquela que consiste na organização da força (Ib., págs.21 e segs.). Todas as normas jurídicas são expressas por uma proposição hipotética que prevê uma sanção em condições determinadas; visto que ela obriga um indivíduo a comportar-se de determinada forma perante um outro indivíduo, ela garante a este último um comportamento correspondente ao comportamento do primeiro. Dos dois aspectos importantes de qualquer norma, o que corresponde ao dever ser que ela estabelece e o que corresponde à sanção que recai sobre aquele que não a respeita, deveremos considerar como fundamental o segui-ido. "Se se considera que uma primeira norma proibindo o roubo só é válida se existir uma outra que aplique uma sanção a este delito, então, a primeira é certamente supérflua numa correcta exposição do direito. Mas se existir, essa primeira norma estará contida na segunda, a qual será a única norma jurídica genuína" (Ib., p. 61). A insistência de Kelsen sobre a independência da norma, em -1ral, de unia qualquer ordem c,
normativa das condições de facto psicológicas ou sociológicas, está ligada por um lado à dualidade neo-empirista do facto e do valor e, por outro lado, à exigência 'das escolas neo-criticistas de subtrair a validade de uma norma a todas as condições de 94 facto. Kelsen serve-se com rigor do conceito de norma para esclarecer os outros conceitos fundamentais da filosofia do direito, a saber, os do estado e dos elementos do estado (território, população). O estado não é mais do que a própria ordem jurídica. O conceito sociológico do estado (dado, por exemplo, por Max Weber), entendendo este como uni conjunto de comportamentos orientados para a ordem jurídica, pressupõe a existência dessa mesma ordem. "0 conceito sociológico de um modelo efectivo de comportamento, orientado para a ordem jurídica, não é um conceito do estado mas pressupõe esse conceito, o qual será exclusivamente jurídico" (Ib., p. 193). Deste ponto de vista, o território do estado é a esfera espacial de validade da ordem jurídica estatal (Ib., p. 211), e o povo, o outro elemento do estado, é a esfera pessoal de validade dessa mesma ordem (Ib., p. 238). Visto que "o direito regula a própria criação", o direito internacional, enquanto ordem jurídica superior aos estados, é aquilo que torna possível a criação de normas válidas para a esfera de dois ou mais estados, isto é, de normas internacionais (Ib., p. 359). A afirmação de que o direito estatal antecede e dá origem ao direito internacional (subjectivismo ou solipsismo de estado) ou a de que o direito internacional antecede e dá origem ao direito estatal (objectivismo), são apenas duas hipóteses sobre as quais nada se pode decidir no terreno da ciência jurídica: "Na escolha de qualquer uma destas afirmações somos tão livres como quando escolhemos uma filosofia subjectivista ou uma objectivista" (Ib., p. 394). 95 Aquilo que é característico do neo-positivismo jurídico, na forma como este é entendido por Kelsen, é o reconhecimento da existência de uma esfera de validade da norma jurídica, que não se identifica nem com a dos factos nem com a das valorações emocionais. Kelsen. faz sua e defende a tese neo-empirista do carácter não racional mas emotivo da valoração moral, -distinguindo claramente a esfera do direito da de tais valorações. As normas do direito devem ser obedecidas não por serem boas OU justas mas sim por terem sido produzidas de uma dada maneira, dependendo a sua validade apenas do assunto que constitui a norma fundamental que estabelece a autoridade criadora do direito (Ib., p. 401). Mas, por outro lado, o direito nunca é um facto, isto é, nunca se identifica com os comportamentos efectivos dos indivíduos que lhe estão submetidos ou que o instituem. Uma espécie de "terceiro reino" é assim introduzido por Kelsen na dicotomia clássica do neo-empirismo. É a introdução deste terceiro reino que justifica a originalidade e a força da doutrina de Kelsen, a qual se distingue assim do posItivismo jurídico o"tocontista que considerava o
direito como a ordem ou a acção imperativa do estado ou de qualquer outra autoridade, ou que tendia a identificá-lo com a média dos comportamentos efectivos. Uma importante variante deste neo-positivismo jurídico é constituída pela obra do inglês H. L. A. Hart, professor em Oxford, intitulada O conceito de direito (1961). Segundo Hart a tese do positivismo jurídico segundo a qual o direito é essencialmente a estipulação de 96 uma sanção (a norma secundária de que fala Kelsen), não só ignora a variedade das normas de direito com o ainda reduz a uma ilusão a noção de obrigação jurídica. O carácter obrigatório do direito radica no facto de ele servir para resolver condições ou situações humanas específicas, as quais não só marcam o conteúdo das normas de direito como ainda constituem a sua justificação (The concept of Law, p. 82). Como exemplos de tais condições e situações poderemos citar a vulnerabilidade e a igualdade aproximada dos seres humanos, o seu relativo altruismo por aqueles que sofreram unia agressão ou qualquer tipo de violência, a limitação dos recursos disponíveis e a imperfeita capacidade de previsão dos homens, que até agora têm preferido os seus interesses imediatos esquecendo-se de si mesmos e dos outros. As normas morais e as jurídicas têm em comum a função de resolver essas situações, mas distinguem-se uma da outra pelo facto de as primeiras exigirem uma adesão intencional ou voluntária, de se manterem imutáveis e de tenderem a delinear um ideal de perfeição que está para além de qualquer obrigação jurídica. Nas ordens jurídicas modernas, existe um conjunto de normas secundárias que tendem a colmatar a incerteza, o carácter estático e a ineficácia que caracterizam habitualmente as normas primárias, próprias de grupos sociais que não têm um sistema legislativo nem magistrados ou agentes que o possam pôr em prática. As normas secundárias fornecem a regra de reconhecimento que permite ajuizar da validade de uma lei e do alcance de tal validade, as regras de modificação que autorizam 97 algumas pessoas a introduzir novas normas primárias ou a abolir as velhas, e finalmente as regras institucionais que permitem a formação das magistraturas, isto é, de corpos investidos da autoridade necessária para determinar se um dado caso particular constitui ou não uma violação das leis (Ib., págs. 89 e segs.). Deste ponto de vista, a validade de um sistema jurídico apoia-se, segundo Hart, nas regras de reconhecimento que inclui. Numa monarquia absoluta, a única regra de reconhecimento é a vontade do soberano, dado que basta uma decisão sua para dar a uma regra o valor de lei. Nos sistemas jurídicos modernos, os critérios são múltiplos e normalmente incluem uma constituição escrita, a existência de poderes destinados a aprovar e a promulgar leis e, por vezes (como no caso de Common Law inglesa), um certo número de precedentes judiciários. Quando uma norma tem os requisitos exigidos pelas regras de reconhecimento, ela é juridicamente válida mesmo
que do ponto de vista moral seja má ou injusta. Hart propõe a distinção entre a validade das leis, baseada na regra de reconhecimento, e a sua moralidade ou justiça; e faz notar que se deve distinguir rigorosamente entre os juízos que dizem respeito à validade e aqueles que se referem à moralidade ou justiça de uma lei. Deve-se portanto dizer: "a lei x .- válida mas injusta", e não "a lei x não é lei porque não é justa" (Ib., p. 206). Hart continua assim fiel à exigência fundamental do positivismo jurídico, a saber, a de considerar 98 a validade dos sistemas jurídicos independentemente das regras ou dos critérios da moral. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 805. Sobre o neo-positivismo: H. REICHENBACH, Ziele und Wege der h@utigen Naturphilosophie, Leipzig, 1931; L. GEYMONAT, La nuova filosofia della natura in Gern~ia, Turim, 1934; 1d., Studi per un nuovo razioftalimo, Turim, 1945, os quais incluem diversos a,profundamentos originais da doutrina lógico-matemática; S. K. LANGER, Philosophy in a New Key, Nova Yorque, 1942; J. WEINBERG, Introduzione al positivismo lógico, Turim, 1950; V. I--'RAFT, Der Wiener Kreis, Viena, 1950; F. BARONE, Il neo-positivismo logico, Turim, 1953, e ainda as obras citadas no parágrafo seguinte. § 806. Sobre o Círculo de Viena e as escolas corn ele relacionadas: E. O. NEURATH, in "Erkenntnis", 1, 1930, págs. 321-39 (trad. frane., Paris, 1935); H. REiCHENBACH, in "The Journal of Philosophy", 1936, págs. 141-60; H. "IGL, in Twentieth Century Philohophy, ao cuidado de D. Runes, Nova Yorque, 1947, págs. 406 e segs.; J. JOERGENSEN, The Developrnent of Logical Empiricis?n, in "International Encyclopedia of Unified Seience", Chicago, 1951; T. KOTARBINSKI, La Logique en Pologne (de uma edição dq Academia polaca de ciências e letras), Bibl. di Roma, 1959. Da International Encyclopedia of United Science fazem parte várias monografias, repartidas em dois volumes de Foundations of Unity of Sciejwe. O vol. I compreende: O. NEURATH, N. BOHR, J. DEwEY, B. RuSSELL, C. CARNAP, C. MORRIS, Encyclopedia and Unified Science, 1938; C. MORRIS, Foundations of the Theory of Signs, 1938; R. CARNAP, Foundations of Logie and Mathematics, 1939; L. BLOOlUFIELD, Linguistic Aspects of Sciffice, 1939; V. LENZEN, Proce99 dures of Empirtical Sciences, 1938; E. NACEL, Principies of the Theory of Probability, 1939; P. FRANK, Foundations of Physics, 1946; E, FINLAY-FREUNDLICH, COSmology, 1951; E. BRUNSWIK, The Conceptual Framework of Psychology, 1952. O vol. II compreende: O. NEURATH, Foundations of the Social Sciences, 1944; J. DEwEY, Theory of VaZuation, 1939; J. WOODGER, The Technique of Theory Construction, 1949; C. HEmFEL, The FundamentaIs of Concept Formation in Empirical Science, 1952; G. DE SANTILLANA e E. ZILSEL, The Development of Rationalismand Empiricism, 1941; J. JOERGENSEN, The Development of Logical Empiricism, 1941. - Consulte-se: U. SCARPELLI, in "Revista de filosofia", 1950; A. PASQUINELLI, iVi, 1952.
§ 807. De Schlick: Fragen der Ethi7z, Viena, 1930; Gesammelte Aufsãtze (1926-36), prefácio de F. WAISMANN, Viena, 1938; Philcsophie der Natur, Viena, 1948; Natur und Kultur, ao cuidado de J. RAUSCHER, Viena, 1952. Sobre Schlick: H. FEIGL, in "Erkenntnis", 1937, págs. 393-419; F. BARONE, in "Filoc@ofi--", 1952, págs. 440-71; 11 neo-positivisnio logico, Turim, 1953, págs. 170-201; P. CHIODI, in "Revista de filosofia", 1954, págs. 26-35. § 808. De Neurath, para além dos escritos já citados: Unified Science as Encyclopedic integration, no vol. I da International Encyclopedia of Unified Science, Chicago, 1938; Man in the Making, Londres, 1939. Sobre Neurath: F. BARONE, 11 neo-positivisrno logíco, cit., págs. 216 e segs. § 809. De WittgcnsteJn: Tractat," Logi,-ú-Pizí1@)scphicus, trad. !tal. de G. C. M. COLOMBO, Milão, 1954 (Com bibliog.). SObre a primeira fase do pensamento de Wittgenstcin: J. R. WEINBERG, Introduzione al positivismo lOgicO, Turim, 1950; F. BAPONE, O neO-POSitiVi.Smo 100 lógico, cit., págs. 95-122; G. E. M. ANSCOMBE, An Introduction to W.'s Tractatus, Hutchinson's University Library, 1959; A. MASLOW, A ;Study in W.'s Tractatus, Berkeley (Calif.), 1961; E. STENIUS, W.'s Tractatus, Uhaca (N. Y.), 1960; G. BERGMANN, in "Rivista di filosofia", 1961, págs. 387-406. § 811, Sobre a segunda fase do pensamento de Wittgenstein: E. G. MOORE, in "Mind", 1954, págs.1-15, 289-316; ed. de 1955, págs. 1-27; P. F. STRAWSON, in "Mind", 1954, págs. 70-99; N. ABBAGNANO, Possibilidade e liberdade, Turim, 1956, págs. 215-26; M. DUMMET in "The Philosophical Review", 1959, págs. 324-48. § 812. De Carnap: Fundamentos de lógica e matemática, trad. ital. de G. PRETI, Turim, 1956; A Mintaxe lógica da linguagem, trad. ital. de A. PASQUINELLI, Milão, 1961. A bibliografia de Carnap até 1955 in "Rivista, critica di storia della filosofia", 1955, págs. 462-78. § 815. De Reichenbach: Os fundamentos filosóficas da mecânica quântica, trad. ital. de A. CARACCIOLO, Turim, 1954; O nascimento da filosofia científica, trad. ital., de D. PARisi e A. PASQUINELLI, Bolonha, 1961. Bibliografia completa de Reichenbach na já citada tradução do Nascimento da filosofia científica. § 817. De Popper: Miséria do historicismo, trad. ital., de C. ROATTA, Milão, 1954. Sobre Popper: PIETRO ROSSI, História e historicismo na filosofia contemporânea, págs. 405-40.
§ 818. De Quine: Methods of Logic foram traduzidos em italiano com o título Manuais de lógica, Milão, 1960. Sobre Quine: C. A. VIANO, in "Rivista di filosofia", 1956, págs. 454-70. De Hempel: FundamentaIs of Concept Formation in Empirical Science, 1952, e The Theoretici~s Dilemma, 1958, foram traduzidos em italiano com o 101 título A formação dos conceitos e das teorias na ciência empírica, Milão, 1961. § 821. Traduções italianas: G. Ryle, O espírito como- comportamento, ao cuidado de F. Rossi-LANDI, Turim, 1955; A. J. Ayer, Linguagem, verdade e lógica, ao cuidado de G. DE TONI, Milão, 1961; P. F. Strawson, Introdução à teoria lógica, ao cuidado de A. VISALBERGHi, Turim, 1961. Sobre filosofia analítica: 1. O. URMSON, Philosophical Analysis, Its Development Between the two World Wars, Oxford, 1956; F. Rossi-LANDI, Significado, comunicação e linguagem comum, Pádua, 1961. Traduções italiana: G. Ryle, O e&pírito como comportamento, ao cuidado de F. Rossi-LANDi, Turim, 1955; A. J. Ayer, Linguagem, verdade e lógica, ao cuidado de G. BE TONI, Milão, 1961; P. F. Strawson, Introdução à teoria lógica, ao cuidado de A. VISALBERGHi, Turim, 1961. Sobre Wisdom: C. A. VIANO, ill <@,,Rivista di filosofia", 1954, págs. 48-54. § 822. Sobre a ética neo-empirista: U. SCARPELLI, in "Rivista di filosofia", 1953, págs. 320-37 (sobre Pap); ID., in. "Rivista di filosorfia", 1954, págs. 170-95 (sobre Stevenson); ID. in "Jus", 1953, págs. 305-25. (sobre Hare); ID., in "Rivista di filosofia", 1963, p.@,gs. 191-208 (sobre Hare); G. MORRA, O problema moral no neo-positivismo, Manduria-Bari, 1962. Neste último escrito encontram-se outras indicações bibliográficas. § 823. Sobre a estética neo-empirista: P. RAFFA, in "Rivista di filosofia", 1962, págs. 15997). § 824. Sobre o neo--positivismo jurídico: N. Boi3ino, in. "Rivista di filosofia", 1961, págs. 14-34; A. PASSERIN d'ENTREVES, in "Rivista di filosofia", 1962, págs. 12-26. Bibliografia das obras de Kelsen em Teoria generale del diritto e dello stato, trad. ital. de S. COTTA e G. TREvEs,Milão, 1954, págs. 455-63. Outras traduções 102 italianas de Kelsen: Teoria pura del diritto, ao cuidado de R. TREVES, Turim, 1952; Sociedade e natureza, ao cuidado de L. FuÀ, Turim, 1953; La teoria comunista deZ diritto, ao cuidado de G. TREVES, Milão, 1956. Sobre Kelsen: II fundamento filosofico della dottrina pura del diritto di A. K., Turim 1934; U. SCAPPELLI, in "Rivista Internazionale di filosofia del diritto>, 1954, págs. 767-780; P. L. ZAMPETTI, Metafísica e sci&nza del diritto neZ K., Milão, 1956.
Sobre Hart: N. ABBAGNANO, in "Rivista di filosofia", 1952, págs. 63-68. 103 XIV A FENOMENOLOGIA § 825. CARACTERíSTICAS DA FENOMENOLOGIA A fenomenologia-no sentido específico em que esta palavra é empregue para designar uma corrente da filosofia contemporânea -concebe e exerce a filosofia como análise da consciência na sua intencionalidade. Dado que a consciência é sempre intencionalidade, pela simples razão de ser consciência de alguma coisa, a sua análise é a análise de todas as possíveis formas de uma coisa ser dada à consciência (percebida, pensada, recordada, simbolizada, amada, desejada, etc.), e portanto de todos os tipos de sentido ou de validade que podem ser reconhecidos aos objectos da consciência. A análise fenomenológica da consciência só se poderá então efectuar se, em primeiro lugar, a própria consciência não for 105 assumida como uma "realidade", ao mesmo título das outras realidades do mundo, mas sim como fonte ou princípio, já que a realidade é --penas uni dos modos como o objecto pode ser dado à consciência; e, em segundo lugar, e consequentemente, ZD se a consciência assume nos seus contactos com o mundo a atitude de um espectador desinteressado, para o qual os objectos se apresentam como fenómenos, isto é, nos modos específicos como eles são dados, mas que não se envolve nas vicissitudes sofridas pelos próprios objectos. Qualquer investigação autenticamente racional será, deste ponto de vista, uma via que permite aos objectos da conscIência revelarem-se no seu "ser verdadeiro" ou na sua essência: o conceito da razão como manifestação ou revelação do ser toma assim uma importância essencial na fenomenologia. Na obra de Husserl, a filosofia enquanto indagação fenomenológica apresenta as seguintes características: 1) É uma ciência teórica (contemplativa) e rigorosa, isto é, "fundamentada", no sentido de ser "dotada de fundamentos absolutos". 2) É uma consciência intuitiva porque tenta d--r as essências que se apresentam à razão de uma forma análoga àquela em que as coisas se apresentam à percepção sensível. Este aspecto da filosofia mantém o carácter da razão acima descrito, isto é, como manifestação ou revelação do ser.
3) É uma ciência não-objectiva, dado ser completamente diferente das outras ciências parcelares, 106 consideradas ciências dos factos ou das realidades (físicas ou psíquicas), enquanto que ela prescinde de qualquer facto ou realidade e se preocupa apenas com as essências. 4) É uma ciência das origens e dos primeiros princípios, dado que a consciência contém o sentido de todos os possíveis modos como as coisas podem ser dadas ou constituídas. 5) É uma ciência da subjectividade, na medida em que a análise da consciência se dirige para o eu considerado como sujeito ou pólo unificador de todas as intencionalidades constitutivas. 6) É uma ciência impessoal porque "os seus colaboradores não têm necessidade de prudência mas de conhecimentos teóricos". Estes aspectos definem a filosofia lia forma como ela foi entendida por Husserl. mas não as posições definidas no seio do movimento fenomenológico, do qual as várias manifestações assumem isoladamente um ou mais destes aspectos. A característica mais comummente aceite é a segunda, isto é, a defesa do conceito de razão segundo o qual esta é uma auto-revelação evidente do ser e da filosofia (que é a actividade racional por excelência) como explIcitação de todas as formas possíveis de manifestação do ser. Este conceito é sobretudo utilizado por Meinong e Hartmann, que constituem a ala realista ido movimento fenomenológico, e por Scheler, que o utilizou na ética, entendendo esta como o campo da auto-manifestação evidente dos valores objectivos. O próprio existencialismo compartilha, como veremos, este 107 conceito da razão (se bem que isto se limite às suas correntes fenomenológicas); mas o existencialismo distingue-se da filosofia fenomenológica de Husserl por considerar o modo de ser do homem como tal, determinando este modo de ser não como "alma" ou "subjectividade" transcendental mas como estar no mundo. Substitui-se deste modo a análise das estruturas subjectivas, que constituem o tema próprio da fenomenologia de Husserl, pela análise das estruturas que ligam o homem ao mundo e que fazem um todo com o mundo que se manifesta ao homem. § 826. ANTECEDENTES DA FENOMENOLOGIA: BOLZANO, BRENTANO A fenomenologia de Husserl nasce, como veremos, da polémica contra a posição empirista ou psicologista da lógica e,,em geral, da teoria do conhecimento. Além disso baseia-se, como
se viu, no conceito de intencionalidade. Ora a polémica anti-empirista e anti-psicologista, a d'stinção entre os problemas de facto relativos à origem e ao desenvolvimento do conhecimento e o problema de direito da validade do próprio conhecimento encontram a sua origem na obra de Kant e são depois retomados e continuados pelo neo-crIticismo contemporâneo. Esta polémica chega a Husserl através das obras dos lógicos matemáticos, especialmente de Frege (§ 795) e de Bolzano, no qual se baseia explicitamente. 108 Bernhard Bolzano (1781-1848) foi matemático, metafísico e filósofo da religião. Os seus Paradoxos O do infinito (1851) têm uma grande importância no desenvolvimento do pensamento matemático do séc. _XIX e constituem um precedente da obra de Cantor (§ 794). Os seus escritos de filosofia religiosa foram quase todos anónimos: tinha sido afastado em 1819 da cátedra de doutrina filosófica da reli-ião, que ocupava desde 1805 na Universidade de Praga. A sua metafísica (Athanasia ou provas para a imortalidade da alma, 1827) nada tem de original, e remete sobretudo para Leibniz. A sua obra verdadeiramente notável é a Doutrina da ciência (1837), a que mesmo admitindo uma certa dependência da lógica relativamente à psicologia, na medida em que a lógica deve ensinar o homem a atingir a verdade (Wissenschc.,ftslehre, § 13), tenta elaborar a doutrina da "proposição em si", da "representação em si" e da "verdade em si". A proposição em si é o simples significado lógico da proposição, na medida em que é independente de ser verdadeiro ou falso, de estar ou não expresso em palavras e de ser ou não pensado por um espírito (1h., § 19). A representação em si é o aspecto objectivo da representação, que não exige nenhuma relação com o sujeito e constitui a matéria da representação subjectiva, isto é, da representação com acto de um sujeito pemsante (Ib., § 48-49). A verdade em si é toda a proposição válida, quer seja expressa ou pensada ou não seja expressa nem pensada. As proposições em si não têm nenhuma existência real: adquirem-na, quando são reconhecidas e portanto pensadas, tornando-se verdades em sen109 tido subjectivo. Mias a matéria destas verdades subjectivas é sempre uma verdade em si, que é válida independentemente do seu reconhecimento (Ib., § 25). Proposições e verdades em si constituem o domínio das matemáticas puras, enquanto que o conhecimento verdadeiro entra já no campo do subjectivo, porque lhe é essencial o aspecto subjectivo das representações e idos juízos. O em si de que fala Bolzano é a dimensão lógico-objectiva da experiência, na medida em que possuí unia validade independente das condições subjectivas do conhecer. O outro pressuposto fundamental da fenomenologia, a intencionalidade da consciência, chega a Flusserl através de Franz Brentano (1838-1917), de quem foi discípulo. Brentano,
inicialmente padre católico, afastou-se depois da, Igreja e foi professor de filosofia em Viena; viveu muito tempo em Florença e morreu em Zurique, para onde se tinha retirado no início da, primeira guerra mundial. As suas obras principais são as seguintes: Psicologia do ponto de vista empírico (1874); A origem do conhecimento moral (1889); O futuro da filosofia (1893); As quatro fases da filosofia e o seu momento presente (1895): Investigações sobre a psicologia dos sentidos (1907). É também autor de estudos aristotélicos (Sobre os muitos significados do existente em Aristóteles, 1862; A psicologia de Aristóteles' 1867-, O creacionismo de Ar"stóteles, 1882; Aristóteles e a sua visão do mundo, 1911; A doutrina de Aristóteles sobre a origem do espírito humano, 1911); e inspira-se primeiramente em Aristóteles e na Escolástica. 110 A tese fundamental de Brentano é a do carácter intencional da consciência ou da experiência emgeral. Intentio é um termo escolástico e foi usado na última fase da escolástica para indicar o conceito, quando este se refere a alguma coisa diferente de si e lhe toma o lugar. A lógica dos termos, por exemplo a de Ockham (§ 316), baseia-se inteiramente no carácter intencional do conceito, que tinha vindo a substituir o conceito como species. Segundo Brentano, a intencional idade é o carácter específico dos fenómenos psíquicos enquanto se referem a um objecto imanente. Brentano baseia a classificação dos fenómenos psíquicos nas diversas formas de intencionalidade, A representação, o juízo e o **senflnionto, que são precisamente as três classes fundamentais de tais fenómenos, distinguem-se entre si pela natureza do acto intencional que os constitui. Na representação, o objecto está simplesmente presente, no juízo, é afirmado ou negado; no sentimento, é amado ou odiado. Todos estes actos se referem a um (objecto imanente" e são, portanto, intencionais; mas a sua intencionalidade, isto é, a sua referência ao objecto, é diferente para cada um deles. O objecto do acto intencional é imanente enquanto cai no âmbito do próprio acto, ou seja, no âmbito da prÓpria experiência psíquIca. Brentano defende, pois, numa primeira fase (Psicologia, 1874), que o objecto da intencional idade possa ser real ou irreal; e a esta fase do seu pensamento vinculam-se Husserl e Meinong. Depois, o seu parecer sobre esta questão **muc@@)u. Na Classificação dos fenómenos psíquicos (1911) afirma que o objecto da intencionalidade é sempre 111 um objecto real e que a referência a um objecto irreal é sempre uma referência indirecta, isto é, feita através de um sujeito que afirme ou negue o próprio objecto. A referência ao objecto é apenas a relação primária do espírito, que tem no próprio acto uma relação secundária consigo mesmo. Isto permite-lhe que na actividade psíquica una haja multiplicidade, de relações e de objectos (Von der Massifikalion der I)sychischen Phünontene, 1911, p. 127). Brentano afirmava ainda o princípio de que, enquanto a realidade é sempre individual ou singular, o conhecimento apreende o real na sua generalidade. Com tudo isto, Brentano permaneceu no âmbito da investigação psicológica; de facto, as suas outras especulações não evidenciam nenhuma conexão sistemática particular com o princípio da intencionalidade da consciência. Assim, por exemplo, pensa que os conceitos
de substância e de causa derivam da experiência; que as partículas ou os acontecimentos materiais são manifestações de uma única substância, imóvel; que o espaço e o tempo têm carácter substancial e constituem determinações das próprias coisas. Estas especulações têm apenas valor como provas de que a intencionalidade da consciência é para este autor um princípio limitado à explicação dos fenómenos psíquicos, tal como se revelam à Psicologia empírica, mas que não constituía de modo algum a base de um método filosófico verdadeiro e pessoal. A originalidade de Husserl consiste precisamente em ter adoptado este ponto de vista. Subtraiu a intencionalidade da consciência à esfera da experiência psíquica e atribuiu-a à esfera da simples 112 validade lógico-objectiva que lhe tinha sido revelada (como vimos) pelo neo-criticismo e por Bolzano. § 827. HUSSERL: VIDA E OBRA Edmund Husserl nasceu em Prossnitz (Morávia) a 8 de AbrI de 1859 e morreu em. Freiburg im Breisgau a 26 de Abril de 1938. Estudou matemática com Weierstrass e foi aluno de Brentano. Ensinou filosofia na Universidade de Goettingen e depois na de Freiburg até 1929. As suas obras publicadas foram as seguintes: Sobre o conceito de número (1887); Cálculo das consequências e lógica do conteúdo (1891); Filosofia da aritmética (1891)-, Estudos psicológicos sobre lógica elementar (1894); Pesquisas lógicas I, Prolegóinenos à lógica pura (1900); Pesquisas lógicas II, Estudos sobre a teoria e a fenomenologia da consciência (1901); Relatório das obras alemãs sobre lógica dos anos 1895-99 (in "Archiv für systematische Philosophie", 1903); A filosofia como ciência rigorosa (in "Logos", 1910); Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica (1913); Lições sobre a fenomenologia da consciência interna do tempo (1928); Lógica formal e transcendental, ensaio de uma crítica da razão lógica (1929); Meditações cartesianas (em francês, 1931); A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, parte 1 e II (in "Philosophia", Belgrado, 1936). Já em 1928 Husserl tinha encarregado um seu assistente, Ludwig Landgrebe, de extrair dos seus ma113 nuscritos um trabalho sobre lógica transcendental. Utilizando sobretudo as lições proferidas por Russerl em Freiburg de 1919 a 1920 e outros manuscritos mais antigos, Landgrebe organizou o livro intitulado Experiência e Juízo, publicado em Praga em 1939 numa edição limitada (estava-se em plena época nazi e Husserl era judeu) e reimpresso em 1948. Mas Husserl foi durante toda a sua vida um produtor incansável de esquemas, esboços, projectos, notas e comentários, retomando sistematicamente as suas ideias. Quando morreu deixou 45000 páginas manuscritas que foram salvas durante a guerra pelo padre belga Van Breda e constituem hoje o património dos Arquivos Husserl da Universidade de Lovaina. Daí foram extraídas as seguintes obras: Meditações cartesianas (no texto alemão) e Discursos parisienses, (1929), publicados em 1950; A ideia da fenomenologia (cinco lições inéditas de 1907), publicadas em 1950; Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (texto de 1913 com notas e
apêndices extraídos dos manuscritos), publicadas em 1950; 11 parte da mesma obra (inédita), publicada em 1952; 111 parte da mesma obra (inédita), publicadas em 1952; A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (escrita na sua maior parte em 1935-36; as partes 1 e 11 foram publicadas em 1936 e a parte 111 era inédita), publicada em 1954; Filosofia elementar (um curso inédito de 1923-24), publicada em dois volumes em 1956. Baseia-se nos mesmos manuscritos a exposição feita por Alois Roth sobre as Pesquisas éticas de Husserl (1960). 114 Do material inédito publicado até agora, a única obra que acrescenta algo de verdadeiramente novo à imagem de Husserl já formada a partir das suas obras anteriores, Intitula-se A crise das cIências europeias. No entanto, podem encontrarse diversos esclarecimentos e desenvolvimentos ao longo de todos esses escritos inéditos. § 828. HUSSERL: A EPOCHÉ As Pesquisas lógicas constituem em primeiro lugar, o abandono e a crítica da posição empirista que Husserl assumira na Filosofia da aritmética (1891). À tentativa de reconduzir as noções da lógica a operações psíquicas efectuadas sobre um conteúdo dado empiricamente, Husserl contrapunha nessa obra uma "lógica pura", cuja função seria a de obter "uma visão evidente da essência dos modos de conhecimento" que entram em jogo em todas as operações lógicas e cognoscitivas (Logische Untersuchungen, 11, 1, § 1). Mas conhecer a essência dos "modos de conhecimento" significa referir-se ao mundo da consciência, o qual é objecto da psicologia; e Husserl opusera, neste ponto, a psicologia descritiva, que ele chamara "fenomenologia pura", à psicologia "empírica". Só nas Lições sobre a Ideia de fenomenologia te (1907), e de uma forma mais sucinta na obra A filosofia como ciência rigorosa (1910), é que Husserl caracteriza melhor a natureza da indagação sobre a "essência dos modos de consciência" que ele sugerira nas Pesquisas. Esta indagação é claramente 115 diferenciada da psicologia, à qual é reconhecido o carácter de ciência natural. A psicologia considera os acontecimentos psíquicos como pertencendo a cortas consciências humanas ou animais que por sua vez estão ligadas a corpos humanos ou animais, atribuindo deste modo aos acontecimentos psíquicos o carácter de acontecimentos naturais. Assim, a psicologia não se pode aperceber da essência da consciência e Idos modos como são fornecidos a esta os seus dados e objectos reais ou possíveis. Diferentemente da psicologia, a fenomenologia pura não é uma ciência dos factos mas de essências (é uma ciência eidéctica) e os fenómenos de que se ocupa não são reais mais sim irreais (Ideen, 1, p. 6). Para entrarmos no campo da fenomenologia é assim indispensável uma mudança radical na nossa atitude, mudança essa que consiste essencialmente em evitar a afirmação ou o reconhecimento da realidade,
que está implícito em qualquer atitude natural, com todo o seu cortejo de interesses práticos, e em assumir a atitude de espectador, interessado apenas em se aperceber da essência dos actos através dos quais a consciência se reporta à realidade ou a , significa. Esta mudança de atitude constitui a epoché fenomenológica. A epoché dos antigos cépticos consistia na suspensão total do juízo afirmativo. A dúvida cartesiana não é mais do que a suspensão total -de qualquer tipo de conhecimento. No caso da fenomenologia, trata-se apenas de evitar o tipo de afirmações sobre a realidade (teses) que estão implícitas em todas as atitudes e em todas as ciências naturais. "Não uti116 lizamos, afirma Husserl, a tese genérica que pertence à essência da atitude natural, colocando entre parêntesis tudo o que ela contém sob o seu aspecto ôntico, isto é, todo o mundo natural que está constantemente ao nosso alcance c que continuará a ser uma realidade para a consciência mesmo que o coloquemos entre parêntesis. Assim fazendo, eu não nego este mundo, como um sofista, nem ponho em dúvida a sua existência, como se fosse um céptico; limito-me a realizar a epoché fenomenológica que me impede de considerar como existente o mundo que se encontra perante mim, contrariamente àquilo que faço na vida prática ou àquilo que se faz nas ciências positivas" (Ideen, I, § 32). Suspendendo a afirmação da realidade do mundo, este torna-se um puro fenómeno de consciência mas não se anula, antes continuando presente na base da investigação que é feita, com todas as suas determinações e as suas verdades (que se mantêm como tais); mas ao mesmo tempo a atenção do investigador desloca-se do próprio mundo (da sua realidade) para os fenómenos que o anunciam e que o apresentam à consciência, isto é, à própria consciência e às suas estruturas essenciais. Neste sentido, a consciência constitui o resíduo fenomenológico, isto é, aquilo que se mantém depois da epoché; ü sou ser mantém-se inalterável apesar de o mundo ser colocado entre parêntesis e torna-se assim o campo específico de investigação fenomenológica (Ib., § 33). Se a atitude de epoché for considerada do ponto de vista do eu que a pratica, poderá ser expressa da seguinte forma: "Se considerarmos o eu que se apercebe 117 do mundo e que vive naturalmente de uma forma interessado no mundo, ao modificarmos fenomonologicamente a sua atitude dar-se-á uma cisão do eu acima do eu ingenuamente interessado no mundo estabelecer-se-á o eu fenomenológico na qualidade de espectador desinteressado (Cartesianhdhe Meditationen, § 15). Na Crise, Hus-serl afirma: "Efectuando a epoché, tornamo-nos observadores completamente desinteressados do mundo, no seu aspecto subjectivo-relativo (isto é, do mundo em que se realiza a nossa vida, acompanhada dos seus esforços, dos seus cuidados, das suas ocupações), e
deitamos-lhe um primeiro olhar ingénuo que não pretende indagar qual o seu ser ou o seu modo de ser (Sosein) mas apenas aperceber-se daquilo que é sempre válido para nós pelo simples facto de existir, e de existir de determinada forma, e considerá-lo do ponto de vista do seu modo subjectivo de valer, dos seus vários aspectos, etc." (Die Krisis der europüischen Wissenschaften, § 45). E nas obras compiladas sob o título -de Filosofa elementar, depois de se ter detido no esclarecimento da noção de "interesse", defende a possibilidade de um "interesse puro" que se oriente para o ser subjectivo na epoché fenomenológiCa e no âmbito do qual o eu se subtraia ao complexo dos actos emotivos e volitivos (que também estão presentes na actividade artística) para tornar-se no "espectador puro e desinteressado e observador teórico" (Erste Philosophie, 11, p. 107). A atitude fenomenológica assim descrita tem pois duas condições fundamentais: a redução eidética que 118 substitui a consideração dos factos ou das coisas naturais pela intuição das essências; e a epoché que suspende ou põe entre parêntesis a tese da existência do mundo em geral. Mas Husserl serve-se ainda da epoché para isolar domínios específicos da investigação fenomenológica. Assim faz, por exemplo, para efectuar a redução da experiência transcendental à "esfera de propriedade", isto é, à esfera daquilo que realmente pertence ao meu eu e da qual foi eliminada toda a referência às outras subjectividades (Cartesiartische Medítationen, § 44); na esfera assim isolada, a experiência do OUtrO é uma espécie de Einfühlung ou empatia pela qual o outro se constitui por "apresentação" como sendo "um outro cu próprio" (M., § 52). Finalmente, na Crise, Husserl serve-se ida epoché ao debruçar-se sobre as ciências objectivas a fim de determinar o chamado "mundo da vida" (Krisis, § 35); serve-se ainda de um outro acto de epoché para alcançar "o eu que funciona constitutivamente na inter-subjectividade" Qb., § 50) e de um terceiro e último a--to de epoché para alcançar o w eu absoluto, o eu corno centro funcional de qualquer constituição" (Krisis, § 55). Com este último acto, atinge-se verdadeiramente o ponto final ida epoché: para além do eu nenhuma outra redução é possível, porque se está -ria esfera da evidência apodíctica (Ib., § 55). § 829. HUSSERL: A INTENCIONALIDADE Na medida em que a consciência é sempre consciência de qualquer coisa (todo o cogito tem o seu 119 cogitatum), a análise da consciência é análise dos actos com que a própria consciência se relaciona com os seus objectos; ou, o que é o mesmo, das formas como estes objectos se dão à
consciência. Os actos da consciência ou (que é o mesmo) as formas como os objectos se entregam à consciência constituem a intencionalidade da consciência. A característica fundamental da intencionalidade reside no facto de a relação que ela estabelece entre a consciência e o seu objecto não tornar este objecto numa parte ou elemento da consciência no sentido em que unia realidade ou coisa pode ser parte ou elemento de uma outra coisa. Husserl afirma: "Se o eu reduzido (isto é, o eu que efectuou uma epoché, o eu transcendental) não é uma parte do mundo, reciprocamente, o mundo e os objectos do mundo não são peças do meu eu, não se podem encontrar realmente na minha vida psíquica como suas partes reais, como complexos de dados sensíveis ou de dados psíquicos" (Cartesianische Meditationen, § 11, cfr. Ideen, 1, § 36). O mundo e os seus objectos permanecem igualmente transcendentes se não for possível atribuir-lhes outro sentido para além daquele que inferimos das nossas experiências, representações, pensamentos, juízos de valor e acções; e também se apenas pudermos atribuir ao mundo uma existência evidente baseada na nossa própria evidência e na dos nossos actos. O aspecto realista da fenomenologia baseia-se nesta essência da intencionalidade, a qual relaciona o mundo com a consciência sem fazer da consciência uma parte do mundo ou do mundo uma parte da consciência. Vimos, de 120 HUSSERL facto, que a crítica que o realismo faz ao idealismo gnoseológico (por exemplo, a de Moore, § 772) consiste precisamente em negar que um objecto, por ser objecto de conhecimento, seja, na sua própria existência, uma parte constitutiva da consciência. Mas a consciência é, para Husserl, uma
corrente
de experiências vividas (Erlebnisse) tendo cada uma delas a sua essência (percepção, recordação, signo, emoção ou vontade, etc.) e às quais o objecto transcendente se anuncia ou se entrega de uma forma mais ou menos adequada. Na percepção, por exemplo, a coisa percebida manifesta-se mediante aparições parciais e mutáveis, que são as únicas possíveis e que a esboçam de uma forma mais ou menos adequada, mas sem lhe anular a transcendência (Ideen, 1, § 35). Husserl diz: "0 objecto é, por assim dizer, um pólo de identidade sempre dotado de um sentido preconcebido e por realizar; em cada momento da consciência, ele é o índice de uma intencionalidade não-,ética que constitui o seu sentido e que pode ser problematizada e tornar-se explícita" (Cartesianische Meditationen, § 19). O objecto, portanto, não faz parte das experiências vividas. Aqui, Husserl distingue um aspecto subjectivo constituído pelos actos que aspiram a apropriar-se do objecto (por exemplo, o perceber, o recordar, o imaginar etc.)--&--qüe é **ef@ãmadõ no esis, do aspecto objectivo (o percebido, o recordado, o imaginado) que é chamado noema. O noema e o próprio objecto: por exemplo, na percepção de uma árvore, o objecto é a árvore mas o noema desta o conjunto dos predicados ou dos modos como ela é dada 121
à nossa experiência: árvore verde, iluminada, não iluminada, percebida, recordada, etc. o conceito constitui o pólo em torno do qual se orientam -e se reagrupamos noemas da experiência vivida (Ideen, 1, § 97). Por outro lado, nem em todos os noemas o objecto é dado ou está presente "em pessoa". O sentido de um noema pode permanecer vazio, é, não realizado, no sentido de estar privado do objecto correspondente. Quando o objecto se apresenta (por exemplo, numa percepção), tem-se a intuição que nos dá a coisa adequadamente, isto é, que no-la apresenta "em pessoa" (Ib., 1, § 135). A evidência está ligada à intuição; e, segundo Ilusser], intuição, evidência e verdade coincidem. Elas consistem na visão directa do objecto e caracterizam-se pela presença do próprio objecto. Por outro lado, a intuição oferece não só objectos materiais ou coisas, mas também objectos ideais que têm uma existência diferente. Categorias lógicas, essências materiais (como casa, árvore, cor, ou sensações, sentimentos, etc.) são aceites por Husserl como objectos ideais que se oferecem à experiência vivida de forma análoga embora não idêntica àquela como as coisas sensíveis se oferecem à percepção (Ib., 1, § 23). Husserl identifica a própria razão com a evidência, afirmando que são racionais todas as posições reconduzíveis a urna evidência originária. Por outras palavras, toda a demonstração conduz à consciência de qualquer coisa que é dada de forma evidente (Ib., 1, § 140). Por outro lado, nem todas as experiências vividas, assim como nem todos os seus elementos, 122 têm carácter intencional; por vezes contêm tos que não possuem este carácter taIs como, por exemplo, a cor, o som e o contacto, que não devem ser confundidos com os correspondentes elementos das coisas (cor, dureza, etc.). Também serão elementos deste tipo as emoções da dor, do prazer, do excitamento, etc,, e os momentos sensuais na esfera das tendências (Ideen, 1, § 85). Por outro lado, nem todos os actos intencionais têm um significado puramente cognitivo: os predicados dos valores e os emotivos pertencem igualmente ao ser do mundo e não se reduzem a estados puramente subjectivos. Por exemplo, o carácter próprio de um objecto amado consiste no apresentar-se com uma intenção de amor que é irredutível à representação teórica. E em todo o acto de valoração está presente uni elemento objectivo intencional e transcendente (Ideen, 1, § 117). § 830. HUSSERL: O EU A interpretação da relação existente entre sujeito e objecto em termos de intencionalidade abre, como se viu, a porta para o realismo. Do mesmo modo que o sujeito que dá uma intenção ao objecto não se torna dessa forma parte integrante do objecto, também o objecto em questão não se torna, enquanto tal, parte do sujeito. É nesta estrutura da
intencionalidade que se baseiam (como verei-nos) as correntes realistas da fenomenologia e especialmente Meinong e Hartmann. Ela encontra-se ainda na base do mé123 todo fenomenológicO tal como é entendido por Sebeler, Heideger e outros existencialistas (cfr. cap. XV). Mas para Husserl a intencionalidade da consciência não esgota a sua essência. A consciência é uma "corrente de experiências vividas", e a intencionalidade constitui apenas o carácter de tais experiências. Segue-se daqui que as experiências não são objectos intencionais tal como as coisas da percepção, sendo antes dadas, ou melhor, vividas de uma forma imediata, original e indubitável, o que faz delas a esfera do "ser absoluto". É neste privilegiamento da consciência que está o cartesianismo de Husserl, o qual a partir das lições sobre A Ideia da fenomenologia (1907) apresentou sempre a sua doutrina como uma nova proposta e um aprofundamento coerente do Cogito cartesiano. Husserl chamou percepção imanente à percepção que a consciência tem de si mesma (das suas próprias experiências) e opô-'Ia à percepção transcendente que a consciência tem das coisas. No caso da percepção imanente, tanto a percepção como aquilo que é percebido formam uma unidade imediata, a unidade de uma concreta e única cogitatio (Ideen, 1, § 38). Na percepção transcendente, a coisa é dada de múltiplas formas, as quais, se bem que renovadas ou repetidas, nunca nos dão a pró pria coisa de forma adequada, mesmo quando tal coisa está presente "em pessoa". A realidade das coisas é assim uma realidade sempre presumida, de que se pode duvidar ou que exige provas ou confirmações, enquanto que a existência da experiência vivida é muitas vezes impossível de pôr em dúvida. "Se bem 124 que a minha corrente de consciência não possa ser apreendida senão de uma forma restrita, se bem que nos seja desconhecida nas suas partes já desfrutadas ou que ainda estão por vir, no entanto, deitando uma vista de olhos ao fluir da minha vida no seu efectivo presente e considerando-me a mim mesmo como um puro sujeito dessa vida, eu necessariamente faço afirmações: eu sou, a minha vida é, eu vivo: cogito" (Ib., 1, § 46). E dado que, por outro lado, nós podemos duvidar não só da realidade das coisas mas ainda da existência das outras consciências que deduzimos daquela forma particular da experiência que é a empatia (Einfühlun,,,), a afirmação da existência do mundo será acidental, enquanto que a do meu eu puro e do seu viver é necessária e indubitável (Ib., § 46). Deste modo a epoché cria "uma curiosa solidão filosófica" na qual não conservam a sua validade nem as distinções do eu e do tu nem o reconhecimento de uma comunidade de sujeitos iguais. "Tanto a humanidade como a distinção ou a ordem dos pronomes pessoais, através da epoché, tornam-se fenómenos e são observadas de tal modo que o eu ganha uni relevo próprio relativamente aos outros homens" (Krisis, § 54 b). Só se pode fugir a esta solidão (como veremos) dando um fundamento fenomenológico aos outros eu no seio da própria experiência do eu. Os Discursos paris' `enses, as Meditações cartesianas e o segundo volume das Ideen contêm a exposição analítica deste ponto de vista, ao qual Husserl chama idealismo transcendental. Este não poderá ser confundido com o idealismo psicológico ou com 125 qualquer outra forma de idealismo que pretenda deduzir um mundo cheio de significado a
partir de dados sensíveis privados de sentido, nem tão-pouco com o idealismo kantiano que deixa em aberto a possibilidade de a coisa em si não ser mais do que um conceito-1 imite. É um idealismo que consiste "na auto-exposição do meu eu enquanto sujeito de conhecimentos possíveis, exposição essa que é conduzida na forma de uma ciência egológica sistemática que tem em conta todos os dados existenciais possíveis para mim enquanto ego"; e que portanto não se contrapõe ao realismo por ser "a exposição do sentido de qualquer tipo de ser que eu, o ego, possa pensar, e especialmente do sentido da transcendência (que a experiência me dá realmente) da natureza, da cultura-, do mundo em geral, isto é, e por outros termos, por constituir a revelação sistemática da própria intencional idade constitutiva" (Cartesianische Meditationen, § 41; Die pariser Vortrüge, pá-s. 33-34). É claro que deste ponto de vista a explicitação dos sentidos do ser se identifica com a explicitação das possibilidades puras do eu. "0 facto de a natureza e de o mundo da cultura e dos homens, com as suas formas sociais, existirem para mim, significa que me é possível ter as experiências que lhes correspondem, isto é, que independentemente da minha experiência real destes objectos, ou posso em qualquer momento realizá-los e desenvolvê-los sintetizando as experiências alheias" (Cart Me.I., § 37). Mas só o eu pode ser auto-suficiente por "pertencer à sua essência a possibilidade de uma auto-apreensão, de unia auto-percepção" 126 (Ideen, 11, § 22). E Husserl não hesita em utilizar a mesma terminologia de Fichte. "0 eu éo nos confrontos consigo mesmo, e constitui-se em si mesmo e para si mesmo. Pode ainda enfrentar-se com outros, constituir um objecto para eles e ser por eles apreendido, experimentado, etc. Mas continuará do mesmo modo a existir para si mesmo e a ter um mundo ambiente que lhe é próprio e que será uni não-ou, um conjunto de puros objectos que não são em si mesmos, como tais, constituídos do mesmo modo que o eu" (Ideen, 11, p. 318). Dado que se constitui como sujeito relativamente a um mundo ambiente (Umwelt), o eu é pessoa no sentido em que a essência da pessoa é a subjectividade (Ib., 11, § 50). Então, ele será também uma individualidade espiritual, num sentido inteiramente diferente da individualidade porque "tem em si mesmo a sua motivareais, isto é, do conjunto da natureza real; mas o indivíduo espiritual tem em si mesmo a sua individualidade porque "tem em si mesmo a sua motivação" (Ih., 11, § C4). O eu é uma mónada no sentido leibniziano; os outros eu (as outras mónadas) constituem-se no seio do eu partindo de uma consideração por analogia que Husserl denomina apresentação e que utilizo para, partindo dos corpos vivos que me são dados, atribuir a esses corpos uni modo de ser análogo ao meu eu. Do ponto de vista fenomenológico, "o outro é uma modificação do meu eu" (Cart. Med., § 52); ou é ainda o próprio ou original, que através de uma "operação motivada e constitutiva" dá origem a que "uma modificação intencional de si mesmo e da sua primor127 díalidade se torne válida sob o título de percepção do exterior, percepção do outro, de um outro eu, que é um eu para si mesmo tal como ou sou um eu para mim" (Krisis, § 54 b). Isto acontece da mesma forma em que o eu, que na realidade é o eu da
presença actual, se reconhece no passado e se constitui a si próprio como um eu que se mantém através do seu passado como "auto-temporalidade" (Ib., § 54 b). Mas a existência de um sistema de mónadas é justificada pela existência de um mundo objectivo que lhes é comum. "0 meu ego, que me é dado de forma apodíctica e que é o único ego que me surge de forma absolutamente apodíctica, só pode ter experiência do mundo se se encontrar em comunidade com outros egos que sejam semelhantes a ele, isto é, se for membro de uma comunidade de mónadas que está orientada a partir dele. A justificação consequente do mundo da experiência objectiva implica uma justificação simultânea da existência das outras mónadas" (Cart. Med., § 60). § 831. HUSSERL: O MUNDO DA VIDA O único domínio da análise fenomenológica é o da intencionalidade da consciência. Mas esta (e como se viu) não esgota a essência da consciência, visto que exige um portador que é constituído pela experiência vivida, de que é apenas uma propriedade ou constituinte; e por sua vez a experiência vivida exige uni sujeito (isto é, um portador) que é o eu. 128 Partindo desta base, Husserl reconheceu, tal como Descartes, a prioridade ontológica do eu, o seu carácter necessário ou "apodídico". Este último ponto não sofreu modificação alguma na obra posterior de Husserl; e a Crise das ciências europeias, assume-o como tema fundamental. Mas nesta obra é introduzida uma importante modificação terminológica no que diz respeito ao portador da intencionalidade: em lugar da experiência vivida ou da "corrente de experiências vividas" aparece o mundo da vida (Lebenswelt). Ora o mundo da vida pode ser ainda entendido (como veremos) como uma "tota- ]idade das experiências vividas"; mas a modificação da terminologia implica, em primeiro lugar, a acentuação do carácter unitário e sintético dessa totalidade e em segundo lugar, consequentemente, a possibilidade de o considerar como o domínio das evidências originárias, contraposto ao "mundo objectivo" das ciências. Verifica-se que esta contraposição constitui o motivo polémico mais importante da obra e até a sua justificação. No entanto, é possível que esta noção tenha sido sugerida a Husserl. pela necessidade -de recuperar a dimensão "mundana" em que tanto insistiram os fenomenólogos d'ssidentes (especialmente, Heidegger), assumindo o estar no mundo como tema fundamental das suas investigações. Considerado concretamente "na sua descuidada relatividade" e em todos os tipos de relatividade que lhe são essencialmente inerentes, o mundo da vida, isto é, aquele em que vivemos intuitivamente, com todas as suas realidades que nos surgem de 129 formas mais ou menos válidas ou que são mesmo aparentes, é "uma espécie de rio heraclitiano meramente subjectivo e aparentemente impossível de apreendem (Die Krisi@- der europüischen Wissenschaften, § 44). Mais precisamente, elo será "um
reino de evidências originárias"; e a tarefa da filoSofia relativamente a ele será a de valorizar o direito **on.ário destas evidências e de moStrar como todas as operações lógico-objectivas de que se servem as ciências naturais retiram a sua evidência (isto é, o seu fundamento) das evidências pré-científicas do mundo da vida (Krisis, § 33 d). A própria lógica deve admitir, como fundamento do juízo predicativo que é o seu núcleo fundamental, uma evidência prépredicativa que será característica da forma como nos são dados os objectos, i-ias várias modalidades do seu ser, no mundo da vida; e deve ainda reconduzir a evidência predicativa a este outro tipo de evidência (Erfahrung und Urteil; consultar principalmente a tradução feita por Landgrebe, o qual, de acordo com Husserl, tenta mostrar a relação existente entre esta obra e a **Kris..,*s,). Para realizar uma especulação filosófica sobre o mundo da vida, devemos adoptar não só a atitude genérica da fenomenologia como também a ;de todas as ciências objectivas, aceitando assim a ideia de um conhecimento objectivo do mundo (Krisis, § 35). E depois de efectuarmos esta epoché e de nos transformarmos em "observadores completamente desinteressados do mundo", este terá perdido para nós toda a parcela de objectividade. "Graças ao método da epoché, toda a objectividade se transformou em subjectividade 130 ". "0 mundo, acrescenta Husserl, que na atitude da epoché se torna um fenómeno transcendental, é apreendido finalmente como uma entidade correlativa das ocorrências, intenções, actos e faculdades subjectivas que nos permitem construir uma opinião sobre a sua unidade" (Krisis, § 53). Esta subjectividade é primeiro entendida no seu sentido mais restrito, isto é, como subjectividade do eu originário, que "nunca pode renunciar à sua peculiaridade e à sua pessoa inaLenável". Mas o eu originário pode ser alienado por si mesmo, e é a partir disso, e nisso, que se constitui a inter-subjectividade transcendental na qual ele reentra mais tarde como um simples membro privilegiado, como "o eu dos outros eu transcendentais" (Ib., § 54 b). Já vimos como isto pode ser feito através de um procedimento analógico, (§ 830); Husserl acrescenta agora que por esta via "se pode chegar a uma compreensão última do facto de qualquer eu transcendental que seja elemento 'da intersubjectividade (e durante todo o tempo em que for necessário utilizar esta via para compreender o mundo) dever existir necessariamente como homem no mundo e de que, logo, qualquer homem detém em si um eu transcendental" (Krisis, § 54 b). Mas nesta passa-em da monarquia à república o eu não perde a sua "apodicidade". A tentativa de uma indagação que queira passar para além da evidência do eu constitui uni não-senso. "Exceptuando a evidência fenomenológica, qualquer outra evidência passa a constituir uni problema-tipo depois de se ter esclarecido critica131 mente a si mesma e de se ter apresentado como evidência última" (Ib., § 55). A alternativa filosófica fundamental será assim a existente entre objectivismo e transcendentalismD. O objectivismo move-se no âmbito do mundo, já dado como óbvio pela experiência, e
procura alcançar as verdades objectivas, isto é, aquilo que no mundo é incondicionalmente válido para qualquer ser racional. O transcendentalismo considera pelo contrário que a nossa opinião sobre o ser do mundo da vida se forma subjectivamente partindo da nossa experiência pré-científica. Para o objectivismo a posição de partida é o estar no mundo; para o transcendentalismo é a subjectividade, visto ser ela que ingenuamente se apercebe do estar no mundo e que depois o racionaliza ou (o que é o mesmo) o objectiviza (Krisis, § 14). No entanto, o transcendentalismo é simultaneamente um realismo, se com esta palavra designarmos o seguinte: "Eu tenho a certeza de ser um homem que vive -neste mundo, e esta certeza é absoluta". O problema começa apenas quando se tenta compreender o que é a evidência do mundo; só se pode responder a este problema quando, depois de realizarmos a epoché a fim de efectuarmos uma redução ao ego absoluto, interrogamos esse mesmo ego, e acabamos por o conhecer na sua consistência, na sistemática dos seus estractos constitutivos e nos fundamentos da sua validade (Ib., § 55). Mas chegados a este ponto já não podemos falar de realismo: "0 espírito e só ele tem uma essência em si mesmo e por si mesmo; é autónomo e é apenas tendo em conta esta autono132 mia que pode ser tratado de uma forma verdadeiramente racional e de um modo radicalmente científico" (Ib., § 345). § 832. HUSSERL: A TAREFA DA FILOSOFIA A filosofia foi sempre entendida por Husserl como simples teorização ou contemplação pura. Já vimos como a atitude fenomenológica é constantemente descrita por Husserl como sendo a de um "espectador desinteressado" ou de um "observador teórico". Os graus de conhecimento são considerados na obra Experiência e Juízo como graus de contemplação: o grau inferior consistirá numa contemplação simples e o superior numa contemplação explicativa do objecto. Mas em todos os casos a tarefa do conhecer consiste na "apreensão do objecto na sua determinação particular, no esclarecimento definitivo dos resultados a que se chega na percepção contemplativa" (Erfahrung und Urteil, § 47). Isto acontece porque, de acordo com Husserl, a única forma da verdade é a evidência, isto é, a revelação do objecto no seu ser ou na sua essência. O modelo ou a forma primordial e pré-categorial da verdade é assim a percepção sensível, à qual a própria coisa surge em "carne e osso". E a razão tem por tarefa a procura, o reconhecimento ou a explicação das evidências já dadas: o seu órgão é a intuição. Posto isto, a tarefa da filosofia só pode consistir naquilo que os Gregos chamavam "vida teórica", 133 isto é, a vida dedicada ao conhecer puro, desinteressado ou livre de quaisquer interesses práticos. Mas como vimos só o domínio da subjectividade transcendente pode ser conhecido deste modo. Enquanto não alcançar este domínio (através da epoché), o homem está interessado na existência e na possessão das coisas, envolvido nas vicissitudes
dos factos, e será ele próprio um "facto". Ao colocar-se como espectador desinteressado do mundo, ele fica em presença da própria subjectividade, que se torna o domínio específico do seu conhecimento puro e fonte de todas as evidências de que a razão se pode ocupar. Mas o domínio da subjectividade é completamente descurado pelas ciências positivas. Daí a crise das ciências e da sociedade contemporânea. A última obra de Husserl, A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, mostra rio próprio título qual é o ponto de partida e o ponto de chegada do seu diagnóstico da crise. As ciências, enquanto ciências de factos, não têm nada a dizer sobre o problema do sentido ou da ausência de sentido da existência humana. Nada se pode dizer sobre este problema até que os ideais, os valores, as normas e as formas de vida dos homens sejam considerados como termos de uma cadeia causal que tanto lhes pode permitir a existência como os pode destruir. Mas a filosofia nasceu no inundo clássico como fé na razão, numa razão que confere um sentido a todas as coisas, valores e fins aos quais é atribuída uma verdade em si que será a própria manifestação do verdadeIro ser. "0 verda134 deiro ser é sempre um fim ideal, uma tarefa da razão, que se opõe àquele ser que comumente se admite e se supõe óbvio" (Krisis, § 5). É por isso que a eterna tarefa da filosofia, a tarefa de uma philosophia perennis, é a procura do verdadeiro ser; e, dado que o verdadeiro ser só se manifesta à razão, aquela tarefa constitui a realização da razão. Husserl vê em tal realização o destino da humanidade e em particular dos europeus, nos quais se exprimiria ou realizaria a essência da humanidade inteira. Mas a humanidade tende para realizar a razão porque a sua essência é precisamente a razão; e deste ponto de vista a filosofia consistirá no "movimento histórico de revelação da razão universal, inata enquanto tal na humanidade" (Ib., § 6). Os filósofos serão assim funcionários da humanidade responsáveis não apenas perante si mesmos mas ainda perante a humanidade; e serão substancialmente duas as condições que lhes tornam possível a tarefa. A primeira é a de que a razão, a que fazem apelo, pertença à humanidade, a acompanhe no decurso da sua história e esteja continuamente presente no mundo da vida, isto é, na vida tal como é directamente vivida por cada um de nós. A segunda é a de se encontrar um método para despertar a razão e para a conduzir ao conhecimento do verdadeiro ser; tal método consistirá na fenomenologia que, repetindo a atitude de admiração a que os filósofos gregos faziam remontar as origens da filosofia, faz do homem um espectador desinteressado do mundo (Ib., p. 331). Este método, e só ele, poderá conduzir até ao fim a luta que a razão 135 sustentou durante toda a sua história (a história "interna" ou autêntica da filosofia) a fim de despertar e de se alcançar a si mesma, "à sua própria auto-compreensão, a uma razão que se compreenda a si mesma como constituindo um mundo no qual se realiza a própria verdade universal" (Ib., § 73). A primeira condição exige o recuperar daquele mundo da vida que foi esquecido pelo "mundo objectivo" constituído pelas ciências, recuperação essa
que se destinaria a enfrentar as tarefas práticas da vida. Husserl insiste no facto de o mundo da vida compreender em si mesmo o mundo construído pelas ciências. e de não se verificar o contrário. "0 mundo da vida é o terreno em que se fundamenta o mundo cientificamente verdadeiro, e que o inclui no todo universal" (Krisis, § 34c). A bem confeccionada roupa simbólica das ciências matemáticas e naturais apenas serve para esconder tudo aquilo que representa o mundo da vida; essa roupa constitui um método para aperfeiçoar, mediante "previsões científicas", as previsões grosseiras que são as únicas possíveis no âmbito daquilo que é realmente experimentado e experimentável no mundo da vida (Ib., § 8 g). Mas este método tenta apresentar-se aos nossos olhos como constituindo o que não é mais do que uma ilusão de que é fácil ter consciência mal se deite uma vista de olhos ao mundo da vida e se descubra a subjectividade radical desse mesmo mundo. A análise do mundo da vida constitui o único antídoto eficaz contra os males do objectivismo científico; e Husserl, na Krisis, confia a execução desta análise à psicologia fe136 nomenológica que é a única a possuir, no método da epoché, o instrumento necessário para alcançar a subjectividade pura da alma. Neste sentido, a psicologia é definida como "a ciência das almas em geral" (Ib., § 71), e terá por tema "a subjectividade universal, que é una nas suas realidades e possibilidades" (Ib., § 58). E já vimos (§ 831) como a tarefa correspondente a esta ciência se torna possível a partir da epoché, o único método que torna a subjectividade verdadeiramente transparente a si mesma. O conceito da razão como auto-revelação evidente e progressiva do ser, e em primeiro lugar do ser da consciência no qual todas as outras evidências encontram a sua possibilidade e o seu fundamento, domina de uma ponta à outra a obra de Husserl e tem na Krisis a sua expressão mais eloquente. Aquilo que este livro aconselha como solução da crise da "humanidade europeia" é urna comunidade de espectadores cuja razão, adormecida no mundo da vida, se revele em toda a força das suas evidências originárias. § 833. A TEORIA DOS OBJECTOS: MEINONG A teoria dos objectos de Meinong pode considerar-se como um analogon da fenomenologia de Husserl porque partilha com ela o conceito do conhecimento como auto-manifestação do ser; enquanto 137 que a posição realista na análise dos objectos exclui a validade da corrente fenomenológica. Alexius Von Meinong (1853-1921), discípulo de Brentano, tal como Husserl, e professor de psicologia em Gratz, exerceu na Áustria uma influência paralela à exercida por Husserl na Alemanha. As suas principais obras são: Estudos sobre Hume (1877-82); A ciência filosófica e a sua propedêutica (1885); Investigações ético-psicológicas sobre a teoria do valor (1894); A recepção (1902); A teoria dos objectos, em Investigações sobre a teoria dos
objectos e sobre a psicologia (1904); O lugar da teoria dos objectos rio sistema das ciências, (1907); Possibilidade e verosimilhança (1915); Sobre a apresentação emotiva (1917); Sobre a prova de lei universal de causalidade (1918); Criação de uma teoria universal dos valores (1923, póstuma). Meimong afirma que o conhecimento é sempre conhecimento de alguma coisa, isto é, que toda a representação ou juízo tem necessariamente um objecto, mas que este objecto não é parte ou elemento da representação ou do juízo embora seja algo que, nos actos cognitivos, remete para o próprio objecto. Este princípio não é mais do que a expressão da intencionalidade da consciência que Meinong, assim como Husserl, considera como característica própria das experiências vividas. Todo o acto de conhecimento é, deste ponto de vista, um acto de transcendência para um objecto; e na medida em que um acto de conhecimento está implícito (como já pensava Brentano) mesmo nos actos não **coá-mtivos (desejo, sentimento, vontade, etc.), surge 138 a necessidade de uma ciência que considere os objectos enquanto objectos, isto é, que tenha como finalidade a consideração da totalidade dos objectos. Esta ciência não é a metafísica, no sentido trad`Cional do termo, pois a metafísica tem indubitavelmente por objecto a totalidade dos objectos existentes; mas os objectos existentes são unicamente uma pequena parte dos objectos do conhecimento. Há, por exemplo, os objectos ideais, que subsistem (bestehen), de qualquer forma, mas que não existem e portanto não podem ser considerados reais. Semelhança e diferenciação constituem, por exemplo, objectos deste tipo: subsistem em certas condições entre as coisas reais, mas não são em si mesmos **parc@flas da realidade. O número é um outro objecto deste género: não há dúvida de que se podem enumerar coisas que não existem. O não existente deve, pois, entrar na totalidade dos objectos do conhecimento da mesma forma que o existente. O objecto do conhecimento não deve, enquanto tal, existir necessariamente. Posto isto, Meinong divide os objectos (em geral) em dois grandes conjuntos: o dos objectos (Objekten) ou objectos reais e o dos objectivos (Objeklive), distinção que corresponde exactamente à que foi estabelecida por Frege entre significado e sentido (§ 795). O objecto constitui o significador de uma palavra, e da sua existência depende a verdade ou falsidade da proposição que se lhe refere; o objectivo é o conteúdo ou conotação da palavra (ou o conteúdo do juízo). Todo o juízo terá deste modo, como conteúdo, um objectivo que, por assim 139 dizer, é interno ao próprio juízo, e um objecto que é constituído pela entidade externa a que se refere. O objectivo é por isso o objecto primário do juízo e o objecto só é dado indirectamente como sendo aquilo a que o juízo se refere (Ober Annahmen, p. 52). Meinong divide todos os objectivos em objectivos do, ser (Seinsobjektíve), do tipo "a neve é", e em objectivos do modo de ser (Soseinsobjektive), do tipo ca neve é branca". Nos primeiros, o predicado é constituído por "ser", e nos segundos por "ser deste ou daquele modo". Todo o objectivo é o
ser ou o ser de determinado modo de uma entidade qualquer. A principal característica dos objectivos é a sua incapacidade de existir. Se é certo que existem os antípodas, já não será possível dizer que existe a "existência dos antípodas", pois isto acarretaria o início de um processo infinito no qual seria necessário admitir a existência da existência. Mas já se pode dizer que o objectivo subsiste quando constitui um facto: e a palavra facto designa precisamente um objectivo que subsiste e que não pode ser referido a objectos ou pessoas (Ib., p. 69). Se constituem factos, os objectivos são verdadeiros: a verdade ou falsidade é um carácter exclusivo dos objectivos e não dos objectos da experiência (Uber Mõglichkek und Wahrscheitdichkeit, p. 40). Mas mesmo quando dizem respeito a factos, e segundo Meinong, os objectivos estão fora do tempo porque são completamente indiferentes às determinações de passado, presente ou futuro. Por outro lado, eles podem ser negativos, como acontece quando se referem às propriedades nulas que os objectos podem 140 ter, ou seja, a não existência da cor, etc. Um objecto só pode ter qualidades positivas, mas um objectivo já pode ter qualidades negativas. E até os objectos impossíveis subsistem como objectivos. Se os antípodas não existirem' a não existência dos antípodas é um objectivo tanto como o seria a sua existência. Os objectivos deste tipo estão para o objecto tal como a parte está para o todo: se o todo subsiste, também a parte deve subsistir, e é por isso necessário reconhecer a subsistência dos próprios objectos impossíveis. Neste sentido, Meinong afirma que "o objecto puro está para além do ser e do não ser". O conhecimento não tem o seu pressuposto no ser, mas encontra o seu ponto de apoio tanto no ser como no não ser. Tudo o que cabe no âmbito de um objecto constitui o seu ser específico, quer esse objecto exista quer não. Por isso, a verdade do conhecimento e, em particular, do juízo, não depende da existência ou não existência do seu objecto, mas antes da do seu objectivo. A existência dos cisnes negros e a não existência de um perpetinim mobile constituem juízos verdadeiros apesar de o primeiro se referir a um objecto existente e o outro a um objecto não existente. A sua verdade depende do ser do seu objectivo que, no segundo destes casos, é o não-ser do objecto em questão. O juízo não é verdadeiro se o seu objectivo não é verdadeiro, e também não o será se estiver constituído de uma forma que não corresponda ao seu objectivo e que não concorde com os factos. A existência de condições objectivas e de exigências subjectivas num mesmo juízo pode ser até puramente casual; sucede 141 às vezes que de uma premissa falsa se deduzem conclusões verdadeiras. Se não é certo que todo o conhecimento tenha de referir-se a objectos existentes, é no entanto verdadeiro, segundo Meinong, que todo o conhecimento está em última análise relacionado com os factos, sem os quais não pode valer como conhecimento. Incumbe à psicologia do conhecimento, determinar as condições em que o próprio conhecimento se
refere aos factos e adquire valor real. Facto, em sentido lato, é o objectivo do juízo; e, por compreender um facto, todo o juízo é uma evidência. A evidência pode ser a priori, isto é, baseada na natureza do juízo e aplicável à realidade, ou empírica; e oferece diversos graus de certeza, porque a sua evidência é meramente suposta. A percepção é um caso limite da evidência, e esta é máxima quando a percepção se refere aos factos psíquicos actuais, ou seja, quando é uma percepção interna. Se o juízo se refere a objectivos, a representação refere-se a objectos. O objecto origina a representação e vem nela directa ou indirectamente intuído, ou mesmo simplesmente mostrado ou indicado. A produção das representações é um facto puramente empírico; o seu fundamentar-se no objecto é, contrariamente, condicionado a priori. Há também, segundo Meinong, um valor objectivo, que se evidencia no sentimento estético ou intelectual quando se diz que o objecto deste sentimento merece o próprio sentimento. Mas paralelamente a este valor objectivo existem, os valores puramente subjectivos, que con142 sistem na relação do objecto com o sujeito que se interessa por ele. A teoria dos objectos pode ser considerada como a expressão realista mais conseguida da teoria da intencionalidade da consciência. Ela subtraiu esta teoria ao contexto subjectivista em que se encontrava na obra de Husserl; e pôde assim ser utilizada na filosofia orientada empiricamente. Russell refere-se várias vezes à teoria dos objectos e o ponto de partida para a sua doutrina da denotação surgiu precisamente da noção dos objectivos negativos de Meinong (§ 802). Nela se baseou ainda o novo realismo americano e o próprio Santayana (§ 776). § 834. HARTMANN: A ONTOLOGIA A obra de Nicolau Hartmann, nascido em Riga em 1882 e falecido em Marburgo em 1950, inseriu na fenomenologia, interpretada num sentido rigorosamente realista, um sistema extremamente complexo. As principais obras de Hartmann são: A lógica platónica do ser (1909); As questões filosóficas fundamentais da biologia (1912); Princípios de uma metafísica do conhecimento (1921); Ética (1926); A filosofia do idealismo alemão (192329); Filosofia sistemática (1931); O problema do ser espiritual (1931); Os fundamentos da ontologia (1935); O pensamento filosófico e a sua história (1936); Possibilidade e realidade,(1938); A construção do mundo real (1940); O novo caminho (Ia ontologia (1942); Filosofia da 143 natureza (1950); Pensamento teleológico (1951); Estética (1953). Se bem que considere a fenomenologia apenas
como o primeiro estádio da investigação filosófica (ao qual depois se seguiria o da aporética que ilumina os problemas que emergem dos próprios fenómenos e, finalmente, o da teoria, isto é, da solução das aporias), Hartmann tira da fenomenologia o conceito básico da gnoseologia: o conhecimento como transcendência. O conhecimento não coincide com a consciência e não é, portanto, um seu fenómeno puro: é uma relação transcendente entre um sujeito e o um objecto, ou melhor, entre a representação que o sujeito tem do objecto e o próprio objecto que existe independentemente dela. A representação pode apreender ou não o objecto; se o apreende, é verdadeira, se não, é falsa. Isto implica que o objecto do conhecimento não se reduz a um ser objecto e não é essencialmente determinado pela relação cognitiva. "Ser objecto" significa etimologicamente ser objectado a um sujeito, isto é, ser lançado contra, dado, oferecido a um sujeito. Mas isto não muda a natureza do objecto, que permanece independente. "Ser objecto" não pode confundir-se com objectivação, que designa o processo através do qual algo subjectivo se converte em objectivo: e isto porque tem as suas raízes no ser, não no sujeito. A realidade fica sempre para além da consciência, mesmo quando lhe é objectada. O conhecimento dirige-se incessantemente para a realidade independente que constitui o seu objecto. Mas isto significa que o conhecimento nunca domina completamente o seu ob144 jecto; para além do que compreende dele, fica sempre um resíduo incognoscível (transobjectivo, na medida em que está para além do que é objectado). O limite de cognoscibilidade pode afastar-se indefinidamente, mas não desaparece. Encontra-se cada vez mais perto do ser à medida que se passa da realidade mais primária (a matéria) às realidades mais elevadas, que são a vida orgânica e a vida espiritual e social do homem. No reconhecimento da existência deste resíduo trans-objectivo está a originalidade da nova ontologia relativamente à antiga, que pretendia ser unia "lógica do sem e que assim identificava a esfera do pensamento com a do ser real, não admitindo os limites que a investigação ontológica encontrava nos problemas insolúveis. A ontologia crítica deve, segundo Hartmann, distinguir essas duas esferas e admitir que a do pensamento é uma consequência da do ser; e deverá admitir ainda a existência de uma outra esfera do ser, a do ser ideal, que será constituída pelas estruturas dos conteúdos cognitivos que se encontram no sujeito mas que não constituem estruturas do próprio sujeito. A esta esfera do ser ideal pertencem os objectos dotados de idealidade independente, tais como as entidades da lógica e da matemática e as leis que regulam o comportamento de tais entidades, os valores jurídicos, vitais, éticos, etc.; e ainda os objectos dotados de idealidade aderente, isto é, as formas ideais (essências, leis, relações essenciais que existam nos objectos reais) (Grundzüge elner Metaphisik der ErkennTnís, cap. LX11). As formas do ser ideal existem independente145
mente do conhecimento, porque têm um ser em si, mas são fundamentalmente irreais. As estruturas matemáticas, por exemplo, penetram a realidade mas não mudam, por tal razão, a sua essência. Hartmann assume, todavia, uma posição oposta à do platonismo: o ser ideal já não é superior ao ser real mas, contrariamente, é o ser real que é superior ao ideal. O ser ideal, em si mesmo, é apenas a universalidade individual; "é um ser subtil, fora de alcance, carente de substância, quase só um meio-ser, a quem falta ainda todo o peso do ser" (Grundlegung der Ontologie, p. 317). Se todas as formas ideais são irreais, já não é verdade que todas as formas irreais sejam ideais. Na Metafísica do conhecimento, Hartmann limita-se a enumerar os "irreais puros", isto é, os irreais que não são formas ideais e que, portanto, não têm valor cognitivo. Entre esses, enumera (Met. d. Erk., cap. 62, d): a esfera do pensamento, da fantasia, dos sonhos, as ideias e os ideais artísticos, mitológicos ou religiosos, os elementos sensíveis. Mas nos Fundamentos da ontologia (1935) retoma o exame desta questão com o fim de mostrar o carácter transcendental dos actos emocionais ou fantásticos. Nesta obra é evidente a influência das análises de Scheler e de Heidegger, ao mesmo tempo que a polémica contra eles. Os actos não cognitivos são dirigidos para um ser em si que não é o ser da esfera ideal, mas o da realidade (Realitãt); e põem em contacto o sujeito e aquele aspecto da realidade que suscita temor, esperança, reacções emotivas diversas, e que 146 obriga o sujeito a ter decisão e a lutar com empenho. Os actos emocionais transcendentes dividem-se em três categorias: receptivos, perspectivos e espontâneos. Nos actos receptivos o sujeito "é afectado" "por um facto ou por um acontecimento do mundo real, ainda que não se dê conta intelectualmente do que o impressiona. As surpresas que a vida reserva, a experiência vivida e a dureza que frequentemente apresenta ao homem, a necessidade de ter que suportar as situações provocadas pelas coisas ou pelos homens, são exemplos fundamentais de actos receptivos. Os actos respectivos antecipam o futuro quer na forma de uma previsão indiferente, como na expectativa, no pressentimento, na curiosidade, etc., quer na forma de uma previsão emocional, como no caso da esperança e do medo ou no caso angústia, onde, contrariamente a Heide-gger, Hartmann vê apenas uma sombra do medo. Finalmente, os actos emocionais espontâneos são os que tendem a alcançar um objecto transcendente real. São assim o querer, o desejar, o estimar. Estes actos produzem a reacção do objecto cobiçado que, por sua vez, tenta cativar quem o cobiça, incluem, pois, um testemunho vivo da realidade transcendente dos objectos ou das pessoas para as quais se dirigem e são o melhor desmentido do cepticismo (Grundl, d. Ont., p. 204). Estes diferentes actos emocionais não se apresentam isolados; constituem muitas vezes conexões típicas, sendo básicas a do valor que adquire a relação entre as pessoas na sua compreensão recíproca e nas diferentes formas de solidariedade social, e a de ordenação das coisas a fim de serem
147 utilizadas. O trabalho é, por exemplo, uma prova da transcendência da realidade: à força do homem contrapõe-se uma força estranha e ambas as forças são reais. § 835. HARTMANN: A NECESSIDADE DO SER A obra mais significativa de Hartmann é a que se intitula Mõglichkeit und Wirklichkeit (1938). O título significa exactamente Potencialidade e actualidade, porque Hartmann atribui a Mõglichkeit o significado aristotélico de potencialidade (e não o de possibilidade verdadeira e própria, como aparece, por exemplo, na "impossibilidade transcendental" de Kant), e a Wirklichkeit o significado, igualmente aristotélico, de actualidade em geral, diferente da realidade verdadeira e própria ou Realitãt. Mas o título verdadeiro da obra, o que exprimiria verdadeiramente o seu espírito e as suas conclusões, deveria ser Necessidade e realidade (Notwendigkeit und Realitãt). Com efeito, nela Hartinann não faz mais do que declarar incluídos na necessidade os outros modos do ser, negando-os por isso como tais, e identificar a necessidade com a realidade actual ou efectiva, que é, pois, a realidade de facto. Explicitamente, Hartmann remete para Diodoro Crono (§ 37) e para o seu argumento dito " vitorioso", segundo o qual só o que se verifica é possível, porque se fosse possível o que não se verifica, do possível tirar-se-ia o impossível. Este argumento levava Diodoro Crono a admitir que tudo o que sucede deve necessária148 mente suceder e que a imutabilidade que existe para os factos passados -existe também para os factos futuros, ainda que não pareça. E esta é também a última convicção de Hartmann. Possível é só o que foi, é ou será real; o possível não tem por isso um status próprio e reduz-se inteiramente ao real. A realidade é, contrariamente, a "existência preponderante e não anulável", a "maneira tosca e não conciliadora -de pretender o próprio lugar" que recorda, "traduzida em termos espaciais, a impenetrabilidade da matéria". Hartmann. acrescenta que estas são unicamente imagens: não obstante, "algo de tudo isto existe, sem dúvida, na essência da realidade efectiva" (Mõgl. u. Wirkl., p. 59). A eliminação de todo o elemento de indeterminação e problematicidade do real é efectuada por Hartmann mediante a chamada "lei modal fundamental": possibilidade e necessidade são unicamente modos relativos do ser, que não teriam sentido sem o modo fundamental, o da efectividade. Com efeito, "a impossibilidade de A significa que A não pode ser; a sua possibilidade significa que A pode ser; a sua necessidade que A deve ser. Assim, o não poder, o poder e o dever referem-se a um ser que é o seu fundamento modal e o seu núcleo fundamental. Sem este ser, todo o poder ser ou dever ser careceria de sentido, já que consistiria no poder ser ou no dever ser de nada" (Ib., p. 72). Mas que é o ser ao qual dever ser e poder ser se referem como ao seu ubi consistam? É o ser simplesmente, na sua pura efectividade ou actualidade; o ser que, no domínio da realidade de facto, se apresenta como um "ser
149 assim e não de outro modo", isto é, como existência análoga à matéria. A lei modal fundamental, implicando a conexão dos diversos modos de ser sobre a base comum do modo fundamental, a efectividade, leva Flartinann a enunciar as seguintes seis leis "paradoxais": 1.a O que é realmente possível é também realmente efectivo; 2 a O que é realmente efectivo é também realmente necessário; 3.a O que é realmente possível é também realmente necessário, e vice-versa; 4 a Aquilo cujo não ser é realmente possível, é também realmente não-efectivo; 5.a O que não se pode realmente efectuar, é também realmente impossível; 6 a Aquilo cujo não ser é realmente possível, é também realmente impossível (Ib., p. 126). Estas seis leis não são mais do que a tradução analítica do princípio de Diodoro Crono. Isto é claro sobretudo no domínio da realidade verdadeira e própria, isto é, da realidade do mundo. Por exemplo, a possibilidade de queda de uma pedra que se encontre em equilíbrio numa montanha, só é real quando o conjunto das condições que determinam a queda é completo; mas é evidente que neste caso, a queda não é possível, mas necessária e efectiva. Se esta "lei real da necessidade" parece paradoxal e repugnante à consciência, isto sucede unicamente porque não estão presentes na consciência todas as condições que determinam a efectividade; e, portanto, o sentido da possibilidade, considerada distinta da realidade e da efectividade, deriva unicamente do facto de o conhecimento ser incompleto, isto é, da inadequação dos modos da cons150 ciência (Ib., p. 173). Hartmann chama "lei real da efectividade" ao princípio de que na realidade não existe o possível nem o necessário, mas apenas o efectivo. "A efectividade do efectivo consiste em ser ao mesmo tempo, possível e necessário" (Ib., p. 147). As condições que tornam possível o real são as que o tornam necessário e, portanto, efectivo. O que significa que "o real efectivo nunca pode ser diferente do que é, e se bem que possa vir a ser outra coisa diferente do que é, só pode vir a ser aquilo em que se transforma" (Ib., p. 205). Esta última observação demonstra que, para Hartmann, o devir não é o realizar-se de uma possibilidade entre muitas outras, mas antes a concretização da única possibilidade real que a cadeia anterior das condições determina necessariamente (Ib., p. 237). O tempo não é, pois, um desmentido à lei da necessidade real. "0 que uma vez foi real no seu tempo - diz Hartmann. (Ib., p. 133-134) - inclusive sob a forma da mais fluida transitoriedade, permanece por toda a eternidade como um ser efectivo no seu próprio tempo, sem que interesse o facto de posteriormente não ser já efectivo; e assim, aquele que não foi uma vez efectivo num determinado tempo, permanece por toda a eternidade não-efectivo nesse tempo, ainda que viesse a ser real num tempo posterior. Neste caso, não se trata já na realidade, da mesma coisa, mas de uma outra coisa noutra conexão real". Hartmann adopta aqui a mesma posição de Hegel: a realidade justifica-se por si mesma, através da sua simples presença; é possível e necessária, porque é efectiva. Deveria, portanto, como faz He151 gel, troçar do dever ser (Sollen), que pretende dar lições ao ser. Mas Hartmann prefere interpretar o
dever ser como a necessidade de alguma coisa que é ela mesma possível, porque encontra o seu fundamento num conjunto de condições efectivas: deve-se continuar a realizar estas condições até à efectivação real. Portanto, não prescreve mais do que a realização do que pode e deve necessariamente realizar-se e refere-se, por outras palavras, à possibilidade real que é por si mesma efectiva, ainda que possa não o parecer ~g1. u. Wirkl., p. 266). Mas, deste modo, o dever ser ou Sollen identifica-se com o Müssen da realidade efectiva e encontra o seu fundamento na concatenação necessária desta realidade. O Sollen, como acto de liberdade, é aqui praticamente negado. E a necessidade real (neste sentido) estende-se também, segundo Hartmann, ao domínio do conhecimento. Hartmann distingue neste campo a consciência intuitiva e a consciência compreensiva. A primeira é a que se abre, sem mais, ao ser efectivo, que lhe é dado como tal, sem referência à sua possibilidade e necessidade. A segunda, que é a consciência intelectual, procura compreender ou interpretar a efectividade mediante a !sua possibilidade e necessidade; não obstante, o seu ponto de partida com o seu ponto de chegada é a própria efectividade, tal como é dada à consciência que intui. Hartmann exemplifica este procedimento com a construção de uma hipótese. "Esta - afirma (Ib., p. 370) - parte da consciência da efectividade e pergunta a si própria como ela é possível. Res152 NICOLAI HARTMANN ponde com a compreensão da necessidade de uma certa condição; mas, dado que esta condição só é possível baseando-se numa realidade, deve haver realidade e, assim, o compreender, através da possibilidade e da necessidade, retorna à consciência da efectividade". A efectividade é, pois, verdadeiramente o único modo do ser e o único fundamento possível da compreensão intelectual. A arte, que Hartmann não consegue reduzir à realidade efectiva, é considerada como inferior a esta última e como provida de uma liberdade negativa que, na realidade, é uma simples veleidade ou tentativa de liberdade (Ib., p. 275). Para Hegel, a superioridade da realidade efectiva era justificada pela sua racionalidade intrínseca; para Hartmann, a realidade efectiva não se justifica, mas aceita-se tal como é, como não pode deixar de ser pela sua condição de facto, completa e bem determinada. Este condicionamento não é, literalmente falando, a causalidade necessária da física do séc. XIX, porque tal causalidade é, segundo Hartmann, a forma que o condicionamento adquire no domínio particular da realidade física. Todavia, toma como modelo precisamente a causalidade necessária da física oitocentista; toda a ontolcygia de Hartmann se modela, como ele explicitamente reconhece, sobre o conceito de matéria próprio dessa física. Se a fenomenologia, nas mãos de Husserl, se converteu num espiritualismo transcendental, nas mãos de Hartmann converte-se num materialismo transcendental. 153 § 836. HARTMANN: OS ESTRATOS DO SER
Vimos que, para Hartmann, a realidade efectiva se caracteriza essencialmente por uma completa, absoluta -e necessária determinação. Descobrir as formas e as leis desta determinação é a tarefa das análises categoriais que Hartmann leva a cabo na obra intitulada A construção do mundo real (1940). As categorias são aí entendidas num sentido anti- _subjectivista, como princípios imanentes ao mundo e formas da sua determinação necessária. O pressuposto da análise categorial é a estratificação do mundo numa série de planos. Tal estratificação é, segundo Hartmann, um facto evidente: é evidente, por exemplo, a cisão entre a natureza inorgânica e a orgânica, entre a natureza orgânica e a psíquica, entre a natureza psíquica e o ser espiritual. Contudo, a diversidade entre as categorias não se modela -sobre a diversidade dos planos reais. São categorias fundamentais que pertencem a todos os planos do ser. Tais são, em primeiro lugar, as modais, cuja análise foi feita em Possibilidade e actualidade; em segundo lugar, as que se relacionam com pares (categorias b,,polares, como causalidade-quantidade, contínuodiscreto, forma-matéria, lete.); -em terceiro lugar, as que exprimem as leis fundamentais do ser real. Estas últimas, sobretudo, são decisivas porque nelas se baseia a determinação da realidade efectiva. Dividem-se em quatro grupos, que obedecem respectivamente ao princípio do valor, ao prIncípio da 154 coerência, ao principio da planificação e ao princípio da dependência. As leis do valor esclarecem que o valor das categorias não consiste no seu dever ser normativo, mas é análogo ao das leis da natureza ou das leis matemáticas, com a diferença de que é ainda mais universal. Por outras palavras, o valor de uma categoria é uma determinação necessária, de cunho naturalista. As leis da planificação exprimem a relação e os graus da condicionalidade recíproca entre os diversos planos da realidade. Hartmann crê que as categorias inferiores reaparecem nas superiores, mas não o contrário (lei do retorno); que todo o plano do ser implica um novo momento categorial não redutível aos elementos mais baixos ou à sua síntese (lei do novum); e que não há gradação na passagem dos planos inferiores aos superiores (lei da distância dos planos). Hartmann distingue a propósito disto a superestrutura e a superformação: existe superformação quando no plano superior se conservam todas as categorias do plano inferior; existe superestrutura quando o plano superior assume só algumas das categorias que dominam o plano inferior, deixando de fora outras. O plano psíquico, por exemplo, é, em relação ao plano orgânico, uma superestrutura na qual se abandona a categoria do espaço que domina ainda o ser orgânico. A diferença entre superformação e superestrutura impede a concepção mecânica que queria fazer úepender a vida psíquica dos fenómenos físicos. A estratificação do real implica 155 pois que a determinação, na qual todos os planos do ser se encontram justapostos, não possa ser de uma só espécie mas sim diferente para cada plano (Aufbali der Welt, p. 314). No plano físico a determinação é causal, no sentido da física oitocentista, e sobre ela se modelam as outras espécies da determinação -que, para as leis do valor, exprimem um condicionamento de facto, sem referências normativas.
O problema da liberdade é, deste ponto de vista, um problema ontológico: a liberdade reduz-se ao que Boutroux tinha chamado a contingência dos planos superiores do ser relativamente aos inferiores (§ 679). Dado que todo o plano contém um novum relativamente ao plano inferior, é condicionado por esse plano mas não é absolutamente determinado por ele. "A autonomia da determinação superior diz Hartmann (1h., p. 569)consiste no fundamento da sua condicionalidade relativamente à parte inferior, que não está em contraste e muito menos em luta com ela". Os planos do ser baseiam-se, para além da sua condicionalidade relativamente aos planos inferiores, na sua origem e absoluta determinação interna, própria de cada plano. E, dado que esta lei não pode faltar no plano em que actua a vontade, também neste plano a determinação é rigorosa e absoluta como nos outros. Hartmann fala g da inserção de "determinantes extra-causais" no processo em que se insere a vontade. Mas, porque "extra-causais", trata-se sempre de "determinantes" que pertencem ainda ao mundo real (Ib., p. 561); c o 156 próprio facto de existirem e serem reconhecidos como determinantes exclui a liberdade da vontade. E, na verdade, a liberdade é excluída no sistema da realidade de Hartmann. Uma realidade que não pode ser mais do que aquilo que é, que se torna necessidade pelo próprio facto de ser e só porque é, exclui a liberdade como um sonho impossível. E a liberdade é excluída por Hartmann, implicitamente, da história. Na história, Hartmann vê operar um. espírito objectivo que, não existindo fora dos espíritos finitos, actua neles de modo impessoal e universal. O espírito objectivo é uma superestrutura, no sentido já exposto; superestrutura que se ergue sobre a consciência do mesmo modo que a consciência se ergue sobre o organismo. Assim como a consciência deixa fora de si a espacialidade e a materialidade do mundo orgânico, do mesmo modo o espírito objectivo deixa atrás a consciência e a personalidade e se eleva a um horizonte impessoal, que vai para além da estreiteza do ser psíquico (Das Problem des geistingen Seins, p. 262). O espírito objectivo, enquanto é um novum relativamente ao plano da consciência pessoal, não é um agregado de indivíduos mas antes um conjunto !de formas, de conteúdos, de princípios: é a vida espiritual na sua totalidade, tal como surge historicamente, se desenvolve, atinge o seu máximo e cai. Pertencem a ele todas as produções espirituais (as letras, as artes, a técnica, as religiões e os mitos, as ciências e a filosofia, etc.). E é também o verdadeiro protagonista da história. "Estão sempre a de157 frontar-se duas leis heterogéneas do espírito: a da pessoa e a do espírito comum. É precisamente a penetração recíproca de ambas que constitui a plena autonomia do espírito vivente. Ambas o determinam de uma maneira só parcial, e por isso deixam uma à outra um certo campo de acção" (Ib., p. 259), Há aqui um louvável esforço para assegurar uma corta parcela de liberdade e iniciativa à pessoa individual; mas é um esforço sem êxito. A
determinação necessária é somente transplantada do espírito objectivo para o espírito vivente, que reúne em si o espírito objectivo e a consciência pessoal. Consiste na penetração recíproca de ambos e constitui a "forma categorial fundamental do ser vivente". E no âmbito desta categoria fundamental reaparece a determinação necessária própria de cada categoria (Ib., p. 44 1). A especulação de Hartmann é rica em exigências, temas -e análises que a vinculam à parte mais viva da filosofia contemporânea. A polémica radical contra o idealismo gnoscológico, o conceito do conhecimento e, em geral, de toda a actividade como transcendência, a tentativa -de reivindicar para o homem uma liberdade finita (isto é, condicionada e limitada) constituem os aspectos mais interessantes da sua especulação, No entanto, estas exigências já adquirem forma num sistema complicado que se concentre no reconhecimento maciço e preponderante da realidade dos factos, isto é, um sistema no qual estas exigências se associam inadequada e insatisfatoriamente. 1.58 § 837. SCHELER: O MUNDO DOS VALORES E DA PESSOA A análise fundamental dos aspectos emotivos e práticos da consciência foi iniciada e desenvolvida na obra de Max Scheler (1874-1928). Scheler foi professor em Colónia desde 1919; a morte, que o surpreendeu aos cinquenta e três anos, interrompeu bruscamente uma actividade intensa e fecunda. A sua obra mais conhecida, intitulada O formalismo na ética e a ética material do valor, apareceu pela primeira vez no "Jahrbuch" de Husserl entre 1913 e 1916. Mas a obra que constitui o seu maior contributo à filosofia contemporânea é a que se intitula Essência e formas da simpatia (1923). Outras obras notáveis são as seguintes: O transcendental e o método psicológico (1901); O ressentimento e o juízo moral dos valores (1912); O génio da guerra e a guerra alemã (1915); Escritos e esboços (2 vols., 1915; 2 a ed. com o título de Crise dos valores, 1919); Guerra e construção (1916); O eterno no homem (1921)-, Escritos de sociologia e da doutrina da Weltanschauung (4 vols., 1923-24); As formas do saber e a sociedade (1926); A posição do homem no cosmos (1928); Intuição filosófica do mundo (1928); A ideia da paz e o pacifismo (1931); Escritos póstumos (1933). Scheler entende a fenomenologia como sendo "a investigação de um saber cujos objectos não são considerados como existencialmente relativos à vida e aos valores; vitais" (Philosophische Weltanschauung, p. 120), isto é, de um sabor desinteressado e directo, 159 para o qual as coisas surgem na sui essência genuína e os objectos se apresentam, por assim dizer, "em pessoa", sem serem mediatizados por quaisquer pressupostos ou símbolos. Este saber é
para Scheler aquilo que constitui a experiência genuína: "A filosofia fenomenológica representa o empirismo e o positivismo na sua forma mais radical" (Zur EWk und Erkenntnislehre [Nachlass], 1933, p. 267). Se se considera fenomenológicamente a experiência emotiva, os objectos que se apresentam em pessoa a essa experiência são os valores. A ética de Scheler é por isso a análise fenomenológica da experiência emotiva, e o seu objectivo é o de fornecer esclarecimentos sobre os objectos específicos desta experiência, isto é, sobre os valores. Mas enquanto objectos da experiência fenomenológica, os valores não constituem nem bens nem fins. O bem é a coisa que incorpora um valor; o fim é o termo de unia aspiração e de uma tendência que tanto pode ter valor como não o ter. Mas o estar incorporado num valor ou o constituir o termo de urna tendência não modifica de modo algum o ser do valor, o qual é dado de uma forma directa e imediata à experiência emotiva. Todavia, a experiência emotiva à qual o valor se revela não é a simples emoção, por exemplo, uma dor ou uni prazer sensível, mas antes a experiência intencional, que Scheler chama também de intuição emotiva, e à qual o valor é fornecido directamente; ela tem por isso, com esse valor, a mesma relação que uma representação ou um conceito têm com o seu objecto (Der Formalismus in der Ethik, 1927, p. 264). O 160 mundo dos valores apresenta-se à intuição emotiva como um mundo objectivo, isto é, independente do facto ou do acto da apreensão dos valores; e como mundo objectivo tem as suas próprias leis a priori. Estas leis determinam, em primeiro lugar, a hierarquia dos valores, ainda que seja independente dos valores realizados ou das actividades que os realizam. A primeira modalidade do valor é a série do agradável ou desagradável, aos quais corresponde a função do sentir sensível com os seus modos de gozar e de sofrer. A segunda modalidade é o conjunto dos valores vitais: abarca todas as qualidades compreendidas entre o nobre e o vulgar, que correspondem aos modos do sentimento vital (saúde, doença, velhice e morte, ascensão e -decadência, esgotamento e exuberância, etc.). Pertencem também a esta modalidade o bom e o mau, no sentido da habilidade e da eficiência (por exemplo, na frase "bom artesã o"). A terceira modalidade dos valores compreende o campo dos valores espirituais, que são apreendidos pelo sentir espiritual. Pertencem a esta categoria os valores estéticos (belo e feio), os valores jurídicos que constituem o fundamento de toda a ordenação jurídica que seja independente de uma lei positiva do Estado ou da comunidade; os valores do conhecimento puro, tais como os tenta realizar a filosofia que, contrariamente à ciência, não está guiada pelo fim -de dominar os factos naturais. Aprovar ou desaprovar, estimar ou menosprezar, simpatizar espiritualmente, são alguns dos actos subjectivos nos quais se apreendem estes valores. A quarta e última modalidade dos valores é a dos va161 lores religiosos, que se movem entre o sagrado
e o profano. Correspondem a estes valores os sentimentos de beatitude e desespero, que não se devem confundir com os da felicidade e infelicidade, e que são determinados pela proximidade ou afastamento do sagrado na vida vivida. O acto com que se apreendem os valores do sagrado é uma determinada espécie de amor, na qual é essencial o dirigir-se a pessoas. Na esfera do sagrado, o valor genuíno é essencialmente um valor pessoal. Estas quatro modalidades do valor estão ordenadas hierarquicamente: os valores nobre-vulgar são mais elevados do que os valores agradável e desagradável; os valores espirituais são mais elevados do que os vitais e os valores do sagrado mais elevados do que os espirituais (Der Form. in der Ethik, p. 109). Assim como todo o valor é apreendido por um acto específico de intuição, também a hierarquia dos valores é apreendida por um acto específico, que é o de preferir. Preferir não é escolher, será antes este que se baseia no preferir. Devemos, indubitavelmente, escolher o fim baseando-nos num valor superior; mas, para fazê-lo, este valor superior deve ser dado num acto preferencial. O preferir é, portanto, independentemente de qualquer aspiração, eleição ou volição. Naturalmente, não se trata aqui do preferir empírico que se refere a bens (coisas dotadas de valor), mas do preferir a priori, que se refere aos próprios valores. O preferir é um acto mais originário que o simples sentir os valores, porque ** dência preferencial é superior e mais imediata que a evidência emotiva dos valores. Faz parte essencial 162 do carácter superior de certos valores a sua maior duração, isto é, o poder de persistir através do tempo. A duração faz parte da essência dos valores superiores, ainda que não se realize ou se realize imperfeitamente na experiência. Um amor ou uma amizade baseados no valor da pessoa são essencialmente duráveis, ainda que empiricamente possam durar menos que uma simples comunicação de interesses materiais. Em tal caso, porém, diz-se que não se tratava de um verdadeiro amor ou de uma verdadeira amizade; e assim se reconhece que pertence à essência dos valores superiores o ter uma duração maior. Finalmente, o amor e o ódio representam o grau mais elevado da nossa vida emotiva intencional. Estes diferenciam-se do preferir pelo facto de que, enquanto, este se dirige intencionalmente a uma multiplicidade de valores sentidos, àqueles pode-se-lhes atribuir um único valor. Ao amor e ao ódio, enquanto actos espontâneos, corresponde-lhes a função de ampliar ou restringir o reino do valor acessível à intuição. Ampliar ou restringir não significa criar ou destruir, já que os valores existem independentemente de todo o ser espiritual determinado. Amor e ódio somente descobrem o valor; mas descobrem-no mesmo antes que ele tenha sido intuído ou preferido; e constituem, por conseguinte, um movimento em cujo processo se irradiam e iluminam valores até então desconhecidos (Ib., p. 268). A ética, por ter como fundamento os -valores, é uma ética material que Scheler contrapõe à ética formal de Kant. A objecção de Kant contra a ética 163 material, que consiste na afirmação de que esta não é possível dado que o bem, que deveria ser uma consequência de um qualquer fundamento, não é mais do que um fim desejado e que, portanto, as normas da ética assumem a forma de imperativos hipotéticos (se desejas isto,
faz aquilo), é, segundo Scheler, uma consequência da confusão de Kant entre valores e fins. Os valores não são dados como fins mas como objectos absolutos que são intuídos emotivamente de acordo como uma dada ordem preferencial. A universalidade e a autonomia da ética são garantidas desta forma por valores, se bem que tais valores não sejam entendidos simplesmente como fins. A teoria dos valores, no entanto, é para Scheler apenas uma introdução a uma teoria da pessoa, isto é, a uma compreensão fenomenológica da personalidade humana. Tal personalidade não pode ser interpretada como "pessoa racional já que, como simples sujeito de actividade racional, seria idêntica em todos os homens",(Der Form. in der Ethik, p. 385). Segundo Scheler, a pessoa é antes uma unidade essencial, concreta, de -actos essencialmente distintos, c é o fundamento destes actos (Ib., p. 398). Em qualquer acto, vive e actua a totalidade da pessoa; mas esta não se esgota nos seus actos singulares. Dado que o seu modo de ser é o viver estes actos, não tem qualquer sentido querer aprisioná-la nos actos já vividos (Ib., p. 401). A pessoa não se identifica com a consciência, isto é, com o objecto da percepção interna, nem com o eu, enquanto se contrapõe ao tu ou ao mundo externo. A palavra eu está estrei164 tamente ligada ao tu e ao mundo externo; Deus pode ser pessoa mas não pode ser eu, porque para ele não existe nem um tu nem um mundo externo. A pessoa age, passeia, etc.; o eu não pode fazer estas coisas, se bem que a linguagem comum adopte frequentemente, nestes casos, a palavra eu. Esta é anterior -e indiferente às contraposições eu-tu, eu-mundo externo, psíquico-físico. A pessoa tem como seu correlativo o mundo; portanto, a cada pessoa individual corresponde um mundo individual. É por isso que ia verdade metafísica, que é apenas a verdade, tem um conteúdo diferente conforme as pessoas, -e torna-se uma verdade pessoal. O facto -disto acontecer não depende da relatividade ou da humanidade da verdade, mas do nexo essencial entre a pessoa e o mundo. Se cada pessoa tem um mundo que vale verdadeiramente só para ela, a ideia de um mundo único, idêntico, real -de um macrocosmos que se contraponha aos microcosmos das pessoas finitas-implica a ideia de uma pessoa espiritual infinita e perfeita, cujos actos nos são dados, na sua essência fenomenológica, nos actos de todas as possíveis pessoas finitas. Esta pessoa deve, para realizar a condição essencial de toda a realidade, ser concreta. Desta maneira, diz Scheler, "a ideia de Deus é-nos dada juntamente com a identidade e unidade do mundo, baseando-se numa conexão essencial" (Ib., p. 411). Não se pode afirmar a unidade do mundo real sem a ideia de uma pessoa infinita, isto é, de Deus. Mas a conexão entre o mundo real e a ideia de Deus é uma conexão ideal, que não implica a realidade de Deus; e, verdadeiramente, a 165 realidade de Deus nunca pode ser fornecida pela filosofia, mas somente por uma possível e positiva revelação de Deus numa pessoa concreta (Ib., p. 412). Faz parte essencial da pessoa uma relação com
o corpo orgânico pelo qual ela é imediatamente senhora do próprio corpo. O corpo deve ser dado à pessoa como uma res, como uma coisa que, por um lado, não seja absolutamente incapaz de incorporar um valor e, por outro, não o incorpore essencialmente, mas que pode incorporá-lo acidentalmente sob certas condições (Ib., págs. 16, 499). Por outros termos, aquela coisa que é o corpo da pessoa é propriedade sua, e isto constitui também o fundamento da ideia de propriedade em geral. Por isso, na antiga concepção da escravidão, o escravo não era considerado como uma pessoa social e era dado, não apenas aos outros como também a si mesmo, como uma simples coisa. Contudo, reconhecia-se-lhe uma alma, uma consciência; e esta é uma prova ulterior de que a pessoa não se define por tais determinações. Não é também constituída pelo carácter, que é aquele x constante ao qual se apela para explicar as acções particulares de uma determinada pessoa. Se um homem age de modo diferente das deduções que nós tirámos da imagem hipotética do seu carácter, limitar-nos-emos, e com razão, a modificar esta imagem. Mas a pessoa, segundo Scheler, não fica comprometida nestas mudanças subjectivas de carácter. Também as enfermidades psíquicas, que mudam o carácter, não afectam verdadeiramente a pessoa. Tudo o que podemos dizer nos casos mais graves é que a enfermidade tornou completamente 166 invisível a pessoa afectada por ela e que, portanto, não é já possível um juízo sobre a mesma. Mas esta mesma afirmação implica o reconhecimento de que a pessoa está para além das transformações do carácter e que estas transformações não conseguem afectá-la (Ib., p. 505). A compreensão da pessoa não é então possível através dos seus actos ou das suas vivências; pelo contrário, a compreensão de tais actos e experiências só é possível através da compreensão da pessoa que lhes está na origem. Somente através da inteligência, mediada pelo amor à pessoa, se torna possível a intuição da sua essência válida, ideal e individual. Este amor compreensivo (como Miguel Ângelo diz num soneto) é o grande artista plástico que da pluralidade de dados empíricos parciais-e às vezes de uma só acção, de uma só expressão -consegue extrair as linhas da essência válida da pessoa, daquela essência que o conhecimento empírico, histórico e psicológico da sua vida nos esconde mais do que nos revela" (Ib., p. 508). Toda a pessoa é uma individualidade singular, diferente e distinta das outras, mas nunca está encerrada em si mesma. Toda a pessoa se encontra a si mesma como membro de uma comunidade de pessoas de modo que a -ideia de uma comunidade está vinculada ao significado da pessoa não menos do que à de um mundo externo, e interno. A existência ou a consideração de uma comunidade em geral não está nem ética nem gnoseologicamente vinculada à existência ou consideração de um mundo corpóreo. Esta é a razão fundamental de as ciências 167 sociais e históricas permanecerem autónomas relativamente às ciências naturais. As suas formações conceptuais -tanto as de contemporaneidade como de família, raça, povo, nação, cultura, etc., como as
de sucessão, idade, período, etc.-podem constituir-se em si -e por isso nunca remetem para unidades reais cientificamente pré-formadas, como as geográficas (territórios) ou as biológicas e raciais (Ib., p. 541). A pessoa finita é essencialmente membro de uma unidade social, e a unidade social é essencialmente membro de uma mais ampla unidade: estas conexões essenciais obrigam-nos a transcender em espírito qualquer comunidade efectiva e terrena, isto é, a considerá-la como membro de uma comunidade mais vasta. Que este acto transcendente se efective depois numa experiência de factos, é indiferente para a essência da consciência social da pessoa. O ser da pessoa, como pessoa singular, constitui-se no interior dela e do seu mundo, isto é, no conjunto particular dos actos singulares; o ser da pessoa comum constitui-se no conjunto particular dos actos sociais. O conteúdo comum de todas as experiências do "conviver" (relativamente ao qual o compreender é somente uma sub-espécie) é o mundo de uma comunidade, um mundo comum, e o seu sujeito concreto é uma pessoa comum. Por outro lado, o conteúdo constante de todas as experiências vividas que são actos singularizantes, é o mundo de um indivíduo e o seu sujeito é a pessoa singular. Por isso, a toda a pessoa finita pertencem uma pessoa singular e uma pessoa comum que estão em relação recíproca e cuja relação pode ser directa168 MAX SCHELER mente vivida (Ib., p. 543). Ã essência desta relação pertence o conhecimento que a pessoa finita tem de nunca poder aprisionar na sua totalidade a pessoa comum. Por outro lado, a pessoa comum não se identifica com a existência das pessoas individuais, que são variáveis e substituíveis e se separam pela morte. A teoria de todas as possíveis unidades sociais e essenciais é a sociologia filosófica. As unidades sociais diferenciam-se entre si segundo a classe de valores em que se baseiam; e às quatro categorias de valores Scheler faz corresponder, respectivamente, a massa, a comunidade vital, a comunidade jurídica e a comunidade do amor. § 838. SCHELER: A SOCIOLOGIA FILOSóFICA Toda a obra de Scheler se pode considerar como uma tentativa de enriquecer esta sociologia filosófica. Sob este aspecto, a sua obra mais significativa é a que se intitula Essência e formas da simpatia (1923), na qual a simpatia, assumida na sua estrutura fenomenológica, é considerada como o único fundamento autêntico da relação interpessoal, por garantir simultaneamente a autonomia das pessoas e a possibilidade da sua comunicação.
Em primeiro lugar Scheler distingue a simpatia do contágio emotivo que se manifesta nas aglomerações gregárias e nas massas e que é formado pela limitação ou repetição das mesmas emoções. O caso-limite do contágio emotivo é a fusão emotiva, como 169 se verifica, por exemplo, nas sociedades primitivas, nas quais o homem se identifica com os seus antepassados e crê -ser ao mesmo tempo ele próprio e o seu antepassado. A simpatia não é um estado, mas uma função afectiva. Isto revela-se, por exemplo, no caso da piedade, que não constitui modo algum um partilhar a dor alheia e que, portanto, não multiplica a dor. " O estado afectivo de B, implícito na piedade que eu sinto, continua a ser para mim o estado afectivo de R- não passa para mim nem produz em mim um estado semelhante ou igual. Compadeço-me de B, participo do seu sofrimento, sem que se encontre reproduzida em mim a sua experiência interna, o facto psíquico que provocou o seu sofrimento ou que o constitui" (Wesen und Formen der Sympathie, trad. franc., p. 69). A simpatia supõe e, ao mesmo tempo, cria a diversidade entre as pessoas. Um sentimento considerado como conteúdo de um espírito supra-individual ou de uma consciência universal e no qual, por isso mesmo, as pessoas se encontrassem fundidas e formassem uma unidade, não teria nada em comum com a simpatia. "A verdadeira função da simpatia-diz Scheler (Ib., p. 104-105)- consiste em destruir a ilusão e em revelar a realidade do outro enquanto outro, dotada de um valor igual à nossa". A simpatia tem evidentemente certos limites, porque tanto na forma de sofrimento (piedade) como na de alegria não é um acto espontâneo, mas um estado passivo, uma reacção. É uma forma de compreensão que -está encerrada nos limites dos laços que nos relacionam com as pessoas: camaradagem, amizade, 170 laços conjugais, sociais, colectivos, nacionais, etc. Somente o amor é capaz de ultrapassar estes limites e substituir a relação periférica por uma relação de profundidade. Mas o amor, ainda mais do que a simpatia, exige a diversidade e a autonomia da pessoa. O seu sentido mais profundo consiste precisamente em não considerar e não tratar o outro como se fosse idêntico ao próprio eu. "0 verdadeiro amor consiste em compreender suficientemente outra individualidade modalmente diferente da minha, em poder pôr-me no seu lugar, mesmo considerando-a como distinta e diferente de mim e inclusive enquanto afirmo, com calor emocional e sem reserva, a sua própria realidade, o seu próprio modo de ser" (Ib., p. 110-111). Devi-do a este carácter mais radical e mais profundo do amor, Scheler crê que o amor é o fundamento da simpatia e que a esfera na qual esta se move é sempre delimitada na sua amplitude por um acto de amor. O amor dirige-se necessariamente ao núcleo válido das coisas, ao seu valor. Tende a realizar o valor mais elevado possível ( e isto é já um valor positivo) e a suprimir um valor inferior (também esta intenção é um valor moral positivo). Pode dirigir-se à natureza, à pessoa humana e a Deus, no que têm de próprio, isto é, de distinto daquele que ama. Pelo contrário, o amor da humanidade(, de que fala o positivismo não é mais do que ressentimento, ou seja, ódio aos valores positivos implícitos em "País natal, povo, pátria, Deus". Scheler reconhece na simpatia a relação emotiva originária entre as pessoas e o
fundamento da certeza da existência de outros eu, que está indissoci171 velmente unida à existência do eu. Considera quimérica a tese idealista, segundo a qual o eu só pode pensar nos seus próprios pensamentos e só pode sentir os seus próprios sentimentos. Na realidade, podemos pensar do mesmo moldo os nossos pensamentos e os dos outros, e experimentar igualmente os sentimentos alheios e os nossos. Mais ainda, todos começamos a pensar como próprios os pensamentos alheios, isto é, recebidos da tradição e do ambiente, e só numa segunda etapa conseguimos distinguir o que nos é próprio daquilo que nos é estranho. O eu não é para o próprio eu a coisa mais fácil e óbvia, mas antes a mais difícil; e à medida que se constitui na esfera dos pensamentos e dos sentimentos que reconhece como próprios, reconhece também no mesmo acto os pensamentos e os sentimentos dos outros e, portanto, a realidade desses outros. Não subsiste qualquer diferença de princípio entre a (percepção de si mesmo e a percepção dos outros, nem a primeira pode apresentar qualquer título de privilégio relativamente à segunda. A possibilidade, que é própria da simpatia, de compreender os outros como outros, constitui pois o fundamento da certeza de existência das outras pessoas. Contrasta singularmente com estes fundamentos a concepção metafísica que Scheler delineou na sua obra sobre a Simpatia e na qual insistiu cada vez mais nas obras posteriores. Na sua obra sobre a Simpatia fala, por um lado, de uma "fusão emotiva do homem com o cosmos vivente", que se verificaria no acto do amor sexual (Ib., p. 168 e segs.) e, por outro, de urna "união mística entre a 172 essência da pessoa espiritual e a ideia desta essência que repousa em Deus". A união mística estaria condicionada não pela identidade essencial entre o homem e Deus, mas pela identidade entre a essência da alma espiritual e a essência de Deus, na medida em que esta também compreende entre as suas inumeráveis essências a do mundo (Ib., p. 195). Este seria o ideal eterno ao qual o homem deveria tentar conformar-se na vida terrena. Scheler acentuou posteriormente o conceito de solidariedade entre todos os seres vivos e mesmo uma solidariedade universal que compreenda simultaneamente o mundo e Deus (Ph,'Iosophische Weltanschaulirg, 1929, p. 71). Com esta solidariedade, a história humana não seria um puro espectáculo para um contemplador e juiz supremo, mas inscrever-se-ia antes no próprio devir de Deus. Seria, por outras palavras, a própria realização de Deus (Ib., p. 103). O próprio Scheler vê o precedente desta identificação do ser proveniente de Deus com a história do mundo ou, melhor, com o mundo enquanto história, na doutrina de Hegel (Ib., p. 148), E neste ponto, evidentemente, as categorias fundamentais da sua especulação mudaram. A autonomia e a alteridade recíproca das pessoas não são possíveis se as pessoas não são mais do que momentos da realização ou do devir de Deus. Scheler não se apercebeu do facto de as categorias de que tinha partido e às quais se devem os resultados mais notáveis da sua especulação, assinalarem o abandono e a negação da intuição romântica do mundo. Pretendeu, contrariamente, efectuar um
retorno impossível ao romantismo, negando 173 assim ou desvalorizando implicitamente as suas conclusões. As suas investigações sobre a sociologia do saber seguem uma orientação análoga. O saber define-se ontologicamente como uma relação interna do ser, relação pela qual um existente participa na essência de outro existente sem que nesta essência nada mude (Die Wissensformen und die Gesellschaft, 1926, p. 247). Neste sentido, o saber serve e deve servir para três fins principais: em primeiro lugar, para um fim formativo, isto é, para o devir da pessoa que sabe; em segundo lugar, deve servir ao devir do mundo que através do saber humano alcança o destino ao qual nunca teria podido chegar -de outro modo; em terceiro lugar, deve servir para adaptar o mundo aos fins humanos. Este último saber é o da ciência. A concepção mecânica do, universo e o pragmatismo (ao qual são dedicadas muitíssimas páginas críticas em Formas do saber e sociedade) têm presente apenas o último destes fins e descurara os outros. Sociologicamente, a concepção mecânica do mundo é considerada por Scheler como a ideologia da sociedade burguesa, que identifica o mundo com a esfera do trabalho; o pragmatismo seria, pelo contrário, a ideologia oposta das novas classes do proletariado, que faz de todo o saber um instrumento de trabalho. Contra um e outro, Scheler preconiza para o futuro o ressurgimento de um " espírito filosófico e metafísico". A ética de Scheler inspirou a Ética (1926) de Hartmann e, em geral, todas aquelas doutrinas (realistas ou pragmáticas) que reconhecem a objectivi174 dade dos valores e da sua hierarquia. Mas, na análise fenomenológica da experiência emotiva do homem, o seu exemplo viria a ser continuado sobretudo por Heidegger. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 825. Sobre o movimento fenomenológico: H. SPIEGELBERG, The Phenomenological Movement. A Historical Introduction, 2 vols., The Hague, 1960. Esta obra baseia-se no entanto num conceito demasiado lato e confuso da fenomenologia, do que resulta serem nela incluídos não só muitos existencialistas como ainda filósofos como Marcel que são completamente estranhos ao movimento; por outro lado, não vêm quaisquer referências a Jaspers. § 826. Pode-se encontrar uma bibliografia de Bolzano em H. BERGMANN, Das philosophische Werk B. B.s, Halle, 1909. A Wissenschaftslehre foi editada em 4 vols., com prefácio de T. C. A. HEINROTH, Sulzbach, 1837; e foi reeditada em 2 vols. ao cuidado de A. Hofler, Leipzig, 1914-15 (esta última é a edição citada no texto). Sobre Bolzano, e para além da obra de BERGMANN já citada: FR. ST. SCHINDLER, B. B., sein Leben und Wirken, Praga, 1912.
De Brentano: Gesammelte Philosophische Schriften, ao cuidado de O. KRAUS e A. KASTIL, 10 vols., Leiipzig, 1922-30. Alguns capítulos da Psychologie vom empirischen Standpunkt foram publicados à parte pelo próprio Brentano com o título: Von der Klassification der psijchischen Phãnomene, Leipzig, 1911; existem traduções italianas ao cuidado de M. PUGLISI, Lanclano, s. a. Sobre Brentano. OSKAR KRAUS, Fr. B., Munique, 1919; A. KASTIL, Die Philosophie F. B.s, Berna, 1951; 175 LUCIE GILSON, Méthode et méthaphysique selon F. B., Paris, 1955; Id., La psychologie déscriptive selon F. B., Paris, 1955. § 827. Traduções italianas de Husserl: Idee per una fenomenologia pura, 1, ao cuidado de G. ALLINEY, Turim, 1950; La filosofia come scienza rigorosa, ao cuidado de F. COSTA, Turim, 1958; Meditazione cartesiane e discorsi parigini, ao cuidado de F. COSTA, Milão, 1960; Esperienza e giudizio, ao cuidado de F. COSTA, Milão, 1960; La crisi delle scienze europec, ao cuidado de E. FILIPPINI, Milão, 1961. Sobre Husserl: ILLEMANN, H.s vor-phaenomenologische Philosophie, Leipzig, 1932; S. VANNI-ROVICHI, La filosofia di E. H., Milão, 1939; M. FARBER, Editor, Philosophical Essays in Memory of E. H., Cambridge (Mass.), 1940; M. FARBER, The Foundation of Phenomenology, E. H. and the Quest for a Rigorous Science of Philosophy, Cambridge (Mws.), 1943; L. LANDGREBE, Phaenomenologie und Metaphysik, Hamburgo, 1949; De vários autores, Problèmes actueIs de Ia phénoménologie, Bruxelas, 1951; G. BRAND, Welt, Ich und Zeit nach Unverõffentlichen Manuskripten H., Haia, 1955 (trad. ital. de E. Filippini, Milão, 1960); G. PEDROLI, La fenomenologia di H., Turim, 1958; E. H., 1859-1959, Recueil commémoratif, Haia, 1959; H. et Ia pensée moderne, Haia, 1959; Ornaggio a II., ao cuidado de E. Paci, Milão, 1960; E. PAci, Tempo e verità nella fenomenologia di H., Bari, 1961; P. CHIODI, Esistenzialismo e fenomenologia, Milão, 1963. Bibliografia em "Revue Internationale de Pllilosophie", 1939, pág,s. 374-97; 1950, págs. 469-75. § 829. E. LEvINAS, La théorie de Fin&titution dans Ia phénoménologie de II., Paris, 1930; § 830 G. BERGEP, Le Cogito chez H. et chez Descartes, Paris, 1940. § 833. De Meinong, Gesammelte AbhandIugen, 2 vols., Leipzig, 1913-14. Sobre Meinong: B. RUSSELL, in "Mind", 1904; à. SPENGLER, in "Zeitschrift für Philosophie", 1912; 176 G. CAPONE-BRAGA, in "Cultura Filos.", VIII, 1914; Meinong Gedãnkenschrift, I, Graz, 1952; J. N. FJNDLAY, M.'& Theory of Objects and Values, Oxford, 1963. A filosofia do pensador argentino FRANCISCO ROMERO, relacionada com a de Meinong, é apresentada na sua
forma mais conseguida na última obra desse autor, Teoria del hombre, Buenos Aires, 1952; sobre ela, consultar R. FRONDIZI em "Rivista di filosofia", 1954, págs. 201-12. § 834. De Hartmann, para além vols. 1955-57.
dos escritos citados no texto: Kleinere Schriften
2
Sobre Hartmann: R. CANTONI, em "Studi filosofici", 1943; T. BALLAUFF, N. H. Der Denker und sein Werk, Gõttingen, 1952; F. BARONE, N. H. neZIa filosofia del 900, Turim, 1957, com uma bibliografia completa. § 837. A edição completa das obras de Scheler está em curso de publicação em Berna e espera-se que venha a ter um total de 13 volumes. Ainda só foram editados os seguintes volumes: E, Der Formalismus, 1954; IU, Vom Umsturz der Werte, 1955; V, Vom Ewigen im Menschen, 1954. Sobre Scheler: J. GEYSER, M. S.s Phãno.?nenologie der Religion, Freiburg, 1924; A. LAYLER, em "Blãtter für deutsehe Philosophie", 1928-29; J. HERING, Phénoménologie et philosophie religieuse, Paris, 1926; G. KRÃNZLIN, M. S.s phaenomenologische Systematik, Leipzig, 1934 (com bibliografia); N. BOBBIO, em "Rivista di Filosofia", 1936 (págs. 227-48) e 1938 (págs. 97-126); P. L. LANDSBERG, L'acte philosophique de M. S., em "Recherches Philosophiques", 1936-37, págs. 229-312; LuPORIM, L'etica di M. S., em Filosofi vecchi e nuo,vi, Florença, 1947; G. PEDROLI, S., dalla fenomenologia alla sociologia, Turim, 1953; M. Dupuy, La philosophie de M. S., son évolution et saunité, Paris, 1959; 1d., La philosophie de Ia religion chez M. S., Paris, 1959 (com bibliografia). 177 XV O EXISTENCIALISMO § 839. CARACTERISTICAS DO EXISTENCIALISMO Deve-se entender por existencialista qualquer filosofia que seja concebida e se exerça como análise da existência, sendo ",existência" uma palavra que designa o modo de estar do homem no mundo. O existencialismo é assim caracterizado, em primeiro lugar, pelo facto de pôr em questão o modo de ser do homem; e, dado que entende este modo de ser como modo de ser no mundo, caracteriza-se em segundo lugar pelo facto de pôr em questão o próprio "mundo", sem pressupor o 'ser como já dado ou constituído. A análise da existência não será então o simples esclarecimento ou interpretação dos modos **$@* $11M9M0M9M9= mundo utilizando as suas possibilidades cognitivas, emotivas e práticas, 179 mas também, e simultaneamente, o esclarecimento
e a interpretação dos modos como o mundo se manifesta ao homem e determina ou condiciona as suas possibilidades. A relação homem-mundo constitui assim o tema único de toda a filosofia existencialista. No entanto, este tema é privado, no existencialismo, de qualquer característica idealista. O ser do mundo não está no homem, ou na consciência, não é "posto" pelo homem ou pela sua consciência, constituindo antes um ser transcendente que se anuncia ou se manifesta como tal nas estruturas que constituem o homem. Por outro lado, estas estruturas são apenas os modos possíveis de relacionação entre o homem e o mundo, e de actuação ou reacção nos confrontos entre ambos, já que uma outra característica fundamental do existencialismo é a de usar a noção de possibilidade na análise da existência; a existência é essencialmente possibilidade, e os seus constituintes são os modos possíveis de relacionação ido homem com o mundo, isto é, as possibilidades de facto, bem determinadas, de tal relacionação. Os precedentes históricos próximos do existencialismo são a fenomenologia de Husserl e a filosofia de Kierkegaard. Da fenomenologia de Husserl ele aproveitou a ontologia, isto é, a concepção de um ser (mundo) que se revela melhor ou pior ao homem segundo estruturas que constituem os modos de ser do próprio homem. E da filosofia de Kierkegaard aproveitou a categoria fundamental de que se serve na análise da existência, ou seja, a da possibilidade, entendida esta no seu carácter ameaçador e paralisante que é devido ao facto de tornar 180 problemática a relação do homem com o mundo e de excluir de tal relação a garantia de um sucesso infalível. § 840. O EXISTENCIALISMO COMO CLIMA CULTURAL O existencialismo é, de todas as correntes filosóficas contemporâneas, a única que se apresenta como a expressão de um clima cultural ou que contribuiu para o formar, clima esse que poderemos designar por a crise do optimismo romântico. Este optimismo baseava-sé no reconhecimento de um princípio infinito (Razão, Absoluto, Espírito, Ideia, Humanidade, etc.) que constituiria a substância do mundo e que por isso o regeria e o dominaria assim como rege e domina o homem, garantindo-lhe a perenidade dos seus valores fundamentais e determinando-lhe um progresso infalível. O existencialismo foi levado a considerar o homem como um ser finito, isto é, limitado nas suas capacidades e nos seus poderes, "deitado, ao mundo", isto é, abandonado ao determinismo desse mesmo mundo, que lhe pode anular todas as suas possibilidades, e obrigado a manter uma luta incessante a fim de dominar as situações em que se encontra. Devido a estas características, o existencialismo acabou por se relacionar com determinadas manifestações literárias que apresentavam um maior sentido da problematicidade da vida humana. A obra de DostoYevsky e a de Kafka são dois exemplos desse tipo de manifestações. Com efeito, em DostoYevsky pode-se sentir sempre a pre181 sença do problema do homem que continuamente escolhe as possibilidades que se abrem à sua vida, que as realiza e que as conduz ao seu termo arcando com todo o peso e responsabilidade de tal realização, e que permanentemente se encontra perante o mesmo enigma, isto é, perante outras possibilidades que é preciso escolher e realizar. Nos Irmãos
Karamazov, o projecto grandioso do Grande Inquisidor, que pretende tornar os homens escravos e felizes, cede perante o silêncio e o olhar do Cristo, símbolo daquela liberdade constitutiva do homem da qual deriva todo o bem e todo o mal possíveis. Quanto a Kafka, foi um autor que ilustrou na sua obra o sentido negativo e paralisante das possibilidades humanas, que Kierkegaard já pusera a descoberto. Toda a existência humana aparece a Kafka sob o peso de uma condenação iminente, sob a ameaça indeterminada e abstracta, mas todavia certa e ineliminável, da insignificância e do nada, ameaça que se interrompe e se conclui na morte (0 Processo). O tema da insegurança fundamental da vida contra a qual nada pode qualquer defesa ou refúgio (como no caso do animal da Tana); o do apelo incessante a uma realidade estável, segura, luminosa, que continuamente se promete e se anuncia ao homem mas que sempre o ilude e lhe foge (A Mensa- ,-em do Imperador, O Castelo); e o tema da insignificância e da banalidade quotidiana que por fim tira ao homem o seu carácter humano (As Metamorfoses), não são mais do que a expressão literária daquilo que o existencialismo procura esclarecer conceptualmente nas suas análises. 182 Depois da segunda guerra mundial, o existencialismo aparece como o reflexo mais fiel ou a expressão mais autêntica da situação de incerteza existente na sociedade europeia, dominada ainda pelas destruições materiais e espirituais da guerra e preparando-se para uma reconstrução difícil. A chamada literatura existencialista, e em primeiro lugar a obra literária de Sartre, constitui o anel de junção entre a situação daquela época e as formas conceptuais do existencialismo, que tinham sido, porém, elaboradas já algum tempo antes. Com efeito, esta literatura dedicou-se a descrever as situações humanas em que mais se notam os traços da problematicidade radical do homem, sublinhando assim as vicissitudes menos respeitáveis ou mais tristes, pecaminosas ou dolorosas, a incerteza da acção humana, quer essa acção seja boa ou má, e a ambiguidade do próprio bem, que se confunde com o seu contrário. Estes temas surgem ainda na obra de Simone de Beauvoir, que além de os ilustrar na sua obra literária dedica ainda um ensaio ao último deles: Para uma moral da ambiguidade (1947). Também se podem encontrar, tratados com muita originalidade, na obra de Albert Camus (1912-60). No Mito de Sísifo (1943), este autor viu no herói mitológico o símbolo do absurdo da existência humana, hesitante entre a infinidade das suas aspirações e a finitude das suas possibilidades, resultando os seus esforços sistematicamente vãos. No Homem revoltado (1951), Camus descreveu nos seus vários aspectos a "revolta metafísica", entendendo esta como sendo "o movimento pelo qual um homem se revolta contra a sua 183 condição e contra toda a criação". O homem revoltado é o símbolo de um novo individualismo à face do qual " nós estamos perante a história e ela deve prestar contas a este nós estiamos que, por sua vez, se deve manter na história". O nós estamos significa a defesa da dignidade humana que "não posso deixar aviltar em mim mesmo nem nos outros". Mas esta defesa não necessita, antes exclui, qualquer forma de absolutismo.
Finalmente, os hábitos existencialistas próprios de alguns jovens constituíram no apósguerra, apesar das suas formas superficiais e até grotescas, um outro anel de junção que valeu sobretudo como protesto contra os valores tradicionais da sociedade. Entretanto, amadureciam no seio do existencialismo os elementos positivos de uma reconstrução filosófica sob a forma de uma revisão dos próprios instrumentos conceptuais até então utilizados pelo existencialismo; esta revisão conduziu nos anos seguintes a uma modificação radical das perspectivas abertas por esta corrente. Estas perspectivas surgem-nos agora (como veremos) muito mais alargadas. O existencialismo desenvolveu-se como uma metafísica ontológica ou ontocosmológica, por um lado, como espiritualismo radical, por outro, e ainda como uma forma de empirismo igualmente radical no qual a experiência, entendida como existência, perdeu o seu carácter de inclusividade total e se transformou em abertura para o mundo. Em alguns destes casos pode-se encontrar um retorno, mais ou menos total, a uma situação pré-existencialista e a uma recuperação das teses românticas. Noutros pode-se notar 184 uma tendência para uma filosofia que equaciona, sem optimismo e sem desesperos, uma forma mais radical da existência humana no mundo. Em qualquer dos casos, no entanto, o existencialismo serviu para elaborar instrumentos conceptuais que entraram em uso e que deram provas da sua utilidade; e tomou extremamente improvável, dada a sua insistência nos aspectos negativos das possibilidades humanas, o retorno àquele optimismo indiscriminado que, num passado ainda recente, levou os homens às maiores catástrofes. § 841. EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA A fenomenologia é, como se disse, uma componente essencial do existencialismo. Esta componente não tem a mesma importância em todas as manifestações do existencialismo, mas de -qualquer modo age em todas elas sob a forma de dois conceitos-base: o do carácter intencional da consciência e o do carácter afirmativo da razão. O segundo destes conceitos, que afirma que a razão é a "revelação do ser", conduziu algumas formas do existencialismo (em -particular, a de, Heidegger) a uma viragem radical que as modificou profundamente, dirigindo-se para objectivos diferentes. Apenas o primeiro dos dois conceitos indicados pode ser considerado como ligação essencial entre existencialismo e fenomenologia. Mas, no que diz respeito à intencional idade, viu-se que para Husserl ela constitui a essência (ou a 185' propriedade) de uma consciência que se apercebe de si mesma de uma forma directa e
privilegiada como " subjectividade pura" ou "subjectividade transcendental" (§ 830). E as investigações de Husserl dirigiram-se cada vez mais para esta subjectividade e para as formas como ela considera qualquer realidade, isto é, como ela atribui um sentido ou uma validade a todos os seus objectos. Mas no existencialismo este primado da subjectividade não é considerado. Sabemois agora que a chamada "cisão existencialista" de Scheler, Heidegger e outros discípulos de Husserl, ocorreu precisamente a partir da tese deste último sobre o primado da consciência (Edmund Husserl, 1859-1959, 1959, págs. 27, 74, 50, ')06); mas naquilo que mais directamente diz respeito ao existencialismo, pode-se dizer que tudo ocorre de forma completamente diferente. O problema que esta corrente enfrenta, com efeito, é em primeiro lugar o do modo de ser do homem, que Heidegger considera que não foi posto por Husserl nem por Scheler (Sein und Zeit,,§ 10), e em segundo lugar o do homem no mundo, isto é, do homem que está no mundo ou que o habita, entendendo isto no sentido da expressão Ser-aqui (Dasein), onde o aqui (da) corresponde precisamente a este habitar. A análise -da existência é assim (como dissemos) a análise das estruturas do mundo que condicionam o ser-aqui Ido homem. Deste ponto de vista, a subjectividade não tem nada de transcendental; com efeito, Heidegger considera transcendental "toda a manifestação do ser no seu ser transcendente" (Ib., § 7): é um carácter que só pertence 186 ao conhecimento na medida em que revela o mundo (que é o "ser transcendente"). Quanto ao eu, Heidegger afirma que "ao dizer eu exprime-se o ser-aqui como estar no mundo" (Ib., § 64), e critica o conceito do eu como "sujeito isolado". Não é por acaso que o conceito e o termo "consciência" (Bewusstsein) estão ausentes em todas as análises de Heidegger. Da diversidade destas duas orientações da investigação derivam outras diferenças fundamentais. A primeira é a de que o existencialismo não tem a pretensão, básica na fenomenologia, de colocar-se no ponto de vista de um "espectador desinteressado" e de alcançar assim um conhecimento puramente teórico. "0 conhecer, afirma Heidegger, é um modo de ser do estar no mundo" (Sein und Zeit, § 13). E é-o em todos os seus graus ou níveis, porque mesmo na análise que o ser-aqui faz de si próprio, é considerado o seu ser, já que esta análise é simultaneamente uma decisão (Ib., § 9). Por outras palavras, o existencialismo descura completamente a diferença entre o "teórico" e o "prático", a qual constitui, pelo contrário, o pressuposto básico da fenomenologia. A segunda diferença reside no carácter problemático das possibilidades constitutivas do homem, carácter que o existencialismo herda de Kierkegaard. Husserl servira-se amplamente do conceito de possibilidade e afirmara mesmo a precedência ontológica da possibilidade sobre a realidade (Ideen, 1, § 79). Mas a consideração do aspecto negativo da possibilidade (que, como tal, pode ainda não existir) mantivera-se totalmente estranho à sua consideração. 187 A fenomenologia de Husserl move-se num inundo de estabilidade e de certeza, de "evidências apodícticas" e de manifestações "necessárias" e "indubitáveis". A consideração dos elementos negativos que entram na constituição de qualquer situação humana e que se tornam particularmente evidentes em algumas delas (a doença, a morte, o insucesso, ete.)
está fora do seu alcance. E mesmo quando denuncia, como na Krisis, uma situação insatisfatória ou perigosa, pretende preparar com o "mundo da vida" um viveiro inesgotável de -evidências, valores e potencialidades positivas que é apenas necessário pôr ao alcance do conhecimento racional. Pelo contrário, o existencialismo referiu-se principalmente aos aspectos -negativos e destrutivos da existência humana no mundo, e isto porque teve sempre presente (por vezes até exclusivamente presente) o aspecto negativo das possibilidades existenciais. E mesmo quando, como acontece com as suas formas mais recentes, tenta chegar a uma valoração mais serena destas possibilidades, não nega nem oculta o seu carácter problemático e o risco que lhe é imanente. § 842. O RENASCIMENTO KIERKEGAARDIANO: BARTH Nos primeiros decénios do nosso século o chamado "renascimento kierkegaardiano" constituiu o preceito básico da teologia do cristianismo reformado e teve a sua melhor expressão na obra de 188 Karl Barth. Nascido em Basileia (Suíça) em 1886, ensinou teologia primeiro em universidades alemãs e, depois do aparecimento do nazismo, na própria Universidade de Basileia. A obra mais famosa de Barth é o comentário à epístola de S. Paulo Carta aos Romanos (1919), e é esta precisamente a que mais interessa à história da filosofia; se bem que também na Dogmática (publicada em vários volumes a partir de 1927) sejam prolongadamente tratados muitos temas filosóficos. A Carta aos Romanos refere-se explicitamente à especulação de Kierkegaard e é uma tentativa para traduzir nas formas de tal explicação um cristianismo depurado dos seus aspectos míticos e hipócritas. "Se tenho um sistema, afirma Barth, ele consiste em ter constantemente presente no seu significado negativo e positivo aquilo que Kierkegaard chamou a infinita diferença qualitativa entre tempo e eternidade". Deus está no céu e nós na terra. A relação entre este Deus e o homem, a relação entre o homem e este Deus é para mim o tema único da Bíblia e da filosofia" (Rõmerbrief, p. XIII). Mas esta relação é o único tema da Bíblia e da filosofia porque constitui a própria existência do homem. Para que este exista, deverá compreender de qualquer maneira esta relação; mas toda a compreensão de tal relação cai aquém dela, dentro dos limites do humano, o que quer dizer que a compreensão é impossível ou que a relação só é compreensível na sua impossibilidade. Barth exclui e condena toda a forma de imanentismo e de subjectividade, toda a tentativa " titânica" de ultrapassar aquilo a que ele chama 189 Transcendência não pode ser atribuído ao homem, devendo antes reconhecer aí uma obra da iniciativa divina (Dogmatik, 111, 2, 1948, págs. 128-43). § 843. HEIDEGGER: SER, SER-AQUI, EXISTIR
A primeira grande figura do existencialismo contemporâneo é Martin Heidegger, que nasceu em Messkirch em 1889. Heidegger foi -discípulo de Rickert mas é sobretudo influenciado por Husserl, ao qual dedicou a sua obra Ser e tempo (1927). Professor em Marburgo e depois em Friburgo, e por breve tempo reitor desta Universidade, Heideger manteve-se afastado da cultura oficial no -período do nazismo, embora num discurso pronunciado por ele como reitor em 1933, A auto-afirmação da Universidade alemã, se tenha pretendido ver uma adesão ao nazismo. Antes de Ser e tempo, Heidegger tinha publicado três estudos: A doutrina do juízo no psicologismo (1914); A doutrina das categorias e do significado em Duns Escoto (que se baseia, porém, na Gramática especulativa, que não é autêntica); O conceito do tempo na ciência histórica (1916). Ser e tempo apresenta-se como uma obra incompleta: devia ser completada com uma terceira secção, "Tempo e ser", dedicada ao problema do sentido do ser em geral, e seguido de uma segunda parte histórica que devia examinar a doutrina de Kant sobre o esquematismo e o tempo, o fundamento ontológico do cogito cartesiano e a teoria 192 aristotélica do tempo (Sein und Zeit, 4 a ed. 1935, p. 39-40). Estes complementos apareceram, no que se refere à doutrina kantiana, no volume Kant e o problema da metafísica (1929), ao qual se seguiram dois outros escritos importantes: A essência do fundamento (1929); Que é a metafísica (1929). Nos anos que se seguiram a 1930, as investigações de Heidegger sofrem uma mudança decisiva pois deixam do se debruçar sobre a análise existencial para a determinação do sentido do ser em geral e transformam-se numa busca que reconhece ao próprio ser a iniciativa da revelação do ser. Desta segunda fase da investigação de Heidegger destacamse as seguintes obras: Hõlderlin e a essência da poesia (1937); A doutrina platónica da verdade (1942)-, A essência da verdade (1943); Carta sobre o humanismo (1947); Holzwege (1950); Introdução à metafísica (1956); Que significa pensar (1954); Conferências e ensaios (1954); Que é a filosofia (1956); Sobre o ser (1956); Identidade e diferença (1957)-, O princípio do fundamento (1957); A resignação (1959); Sobre a linguagem (1959); Nietzsche (2 vols. 1961); O problema da coisa (1962). O fim declarado da filosofia de Heidegger é o de constituir uma ontologia que, partindo de uma compreensão vaga do ser que permita pelo menos compreendê-lo e interrogá-lo, alcance uma determinação plena e completa do sentido (Sinn) do ser; para isto apoia-se no facto de em qualquer por-unta se poderem distinguir três coisas diferentes: LO, o que se pergunta; 2.O, aquele a quem se pergunta ou que é interrogado; 3.,>, aquele que pergunta. Na 193
frase O que é o ser?, aquele que pergunta é o próprio ser, o que se encontra é o sentido do ser, mas quem se interroga é necessariamente um ente, pois o ser é sempre o ser de um ente. Deste modo, o primeiro problema da ontologia será o de determinar qual o ente que deve ser interrogado, isto é, a qual se deve dirigir especificamente a pergunta sobre o ser. Ora esta pergunta, com tudo o que ela implica (entender, compreender, etc)_é o modo de ser de um determinado ente, o homem, que possui então um primado ontológico sobre os outros entes visto que é nele que recai a escolha do interrogador. "Este ente que nós somos constantemente, diz Heidegger, e que, entre outras, tem a possibilidade de perguntar, indicamo-lo pelo termo ser-aqui (Dasein)" (Sein und Zeit, § 2). A análise do modo de ser do ser-aqui é, pois, essencial e preliminar para a ontologia, já que só interrogando-o se pode descobrir o que é o ser e encontrar-lhe o sentido. Mas o modo de ser do ser-aqui (isto é, do homem) é a existência: a análise desse modo de ser será uma análise existencial e esta constitui o único meio de chegar à determinação daquele sentido do ser que corresponde ao problema fundamental da ontologia. Mas com isto, é já dada uma determinação fundamental da existência: a compreensão do ser é uma possibilidade da existência, isto é, do ser do ser-aqui. A existência é assim a possibilidade de nos referirmos de qualquer modo ao ser (Ib., § 4). A existência é portanto constituída essencialmente por possibilidades, que não são nem possibilidades puras, isto é, simplesmente lógicas, nem simples contin194 gências empíricas, mas que formam o seu próprio ser. "0 ser-aqui é sempre a sua possibilidade", diz Heidegger (Ib., § 9); por isso, ele pode escolher-se e conquistar-se ou perder-se, isto é, não se conquistar ou conquistar-se apenas aparentemente. Esta escolha é todavia um problema que se põe ao homem singular e que dá lugar àquilo que Heidegger designa por compreensão existentiva ou ôntica, a qual se refere à existência do homem singular. Mas pode também considerar-se o problema do aprofundamento teórico da existência e das suas possibilidades, isto é, de procurar na constituição do homem as estruturas fundamentais. Esta é a compreensão existencial ou ontológica da própria existência. Mas, dado que a existência é sempre individual e singular, ou seja, nunca é a existência de um homem em geral ou da espécie humana, mas sempre a minha, tua ou sua -existência, é evidente que a própria análise existencial se -radica na condição existentiva ou ôntica do homem (Ib., § 4). A análise da existência deve tomar como método próprio o fenomenológico. A fenomenologia não é uma doutrina, mas um método: refere-se não ao objecto da investigação filosófica, mas às modalidades desta investigação. A máxima da fenomenologia pode exprimir-se dizendo: apontar directamente para as coisas. O fenómeno de que ela fala não é aparência, mas manifestação ou revelação daquilo que a coisa é no seu ser em ,d. Não se contrapõe, portanto, a uma realidade mais profunda, que o fenómeno ocultaria ou esconderia, mas é antes o abrir-se, o próprio manifestar-se desta realidade. 195 O logos, por outro lado (a fenomenologia é o logos do phaenomenon), é um discurso que
manifesta ou faz ver aquilo de que se fala; e é verdadeiro (no sentido etimológico da palavra grega aléthés) quando precisamente faz ver ou descobre o que estava oculto. Isto quer dizer que a essência da fenomenologia consiste "em fazer ver o que se manifesta exactamente como em si mesmo se manifesta", em fazer com que o ser da existência se revele e se mostre, ao ser analisado, nas suas estruturas fundamentais, sem alterações, acréscimos ou correcções. Neste sentido, Heidegger diz que a filosofia é "a ontologia universal e fenomenológica" (Ib., § 7 c). Qual é então a estrutura fundamental da existência? Aqui, Heidegger faz o seu princípio básico da fenomenologia tal como fora definido por Husserl, Hartmann e Scheler: a -existência é essencialmente transcendência. Heidegger reelaborou este tema de forma bastante conseguida na sua obra sobre a Essência do fundamento. Nele define a transcendência como superação: é transcendente o que realiza esta ultrapassagem e se mantém habitualmente nela. Neste sentido, a transcendência não é para o homem um comportamento possível ao lado de tantos outros, mas antes a sua constituição fundamental, o que forma a própria essência da sua subjectividade. O fim para que o homem transcende é o mundo e a transcendência pode, portanto, ser definida como um "estar-no-mundo". Mas o mundo neste sentido, não é nem a totalidade das coisas naturais, segundo o conceito naturalista, nem a comunidade dos homens, segundo o conceito persona196 lista. Designa, pelo contrário, a estrutura relacional que caracteriza a existência humana como transcendência. Transcender para o mundo significa fazer do próprio mundo o projecto das possíveis atitudes e acções do homem. Mas, definindo-o assim, o mundo recompreende em si o homem que se encontra aprisionado nele e submetido às suas limitações. "A transcendência significa o projecto e o esboço de um mundo, mas de tal modo que quem projecta é comandado pelo ente que transcende e é antecipadamente modelado por ele". Deste modo, a transcendência é certamente um acto de liberdade e é ainda, segundo Heidegger, a própria liberdade; mas é uma liberdade que, no próprio acto de manifestar-se, se condiciona e se limita em todas as direcções possíveis. Com efeito, fundando ou instituindo o mundo, coloca-se simultaneamente no mundo e sofre as suas imposições; qualquer projecto, mesmo que se baseie na liberdade, e compreende em si o homem como um dos entes do próprio mundo. "A liberdade revela-se como aquilo que torna possível simultaneamente a imposição e a sujeição. Só a liberdade pode conseguir que, para o homem, um mundo exista e se realize como mundo". Se o homem é livre no acto de planear o seu mundo, este mesmo projecto subordina imediatamente o homem, tornando-o ambicioso e dependente. O homem tem necessidade do mundo e das coisas que o constituem e que são a realidadeútil, os instrumentos da sua vida e da sua acção. Estar no
mundo significa para ele cuidar das coisas: mudá-las, manipulá-las, repará-las, construíIas, e esta preo197 cupação, por ser característica do homem enquanto está no mundo, determina também o ser das coisas no mundo. § 844. HEIDEGGER: O ESTAR NO MUNDO E A EXISTÊNCIA INAUTÊNTICA O mundo a que o homem está ligado pela própria estrutura transcendente da sua existência é, em primeiro lugar, um mundo de coisas. O ser destas coisas, a sua verdadeira e própria realidade, consiste em servir de instrumentos para o homem, em ser utilizáveis. A utilizabilidade não é, segundo Heidegger, uma qualidade das coisas, distinta da sua existência: é o próprio ser em si das coisas do mundo (Sein und Zeit, § 15). O ser das coisas está, por isso, subordinado e corresponde ao ser do homem; dado que para o homem, o encontrar-se no mundo significa cuidar da -coisa, e para as coisas ser significa ser utilizadas pelo homem. O fim último da utilizabilidade é, pois, a satisfação (Ib., § 18). E a satisfação implica a proximidade das coisas ao homem, implica que elas estejam "à mão", que possam alcançar-se. Nesta determinação baseia-se a espacialidade do mundo. O espaço não é uma forma abstracta, mas sim o conjunto das determinações de proximidade ou de afastamento das coisas baseadas na sua utilizabilidade. É por isso que o espaço não é uma forma subjectiva mas sim 198 a estrutura objectiva das coisas cujo ser é a utilizabilidade (Ib., § 23). Estas definições da natureza do mundo externo são fundamentalmente idênticas às do pragmatismo instrumentalista e, principalmente, de Dewey. Nelas baseiam-se, !segundo Heidegger, as actividades propriamente intelectuais: o compreender, o julgar, a ciência. Dado que existir no mundo significa para o homem planear, e este se baseia nas possibilidades que se oferecem ao homem, a compreensão de tais possibilidades é um modo de ser fundamental do próprio homem (Ib., § 31). A compreensão pode, por seu lado, dar lugar à interpretação, mediante a qual se põe em evidência "algo como algo" na base de um plano total (Ib., § 32). E, por sua vez, a interpretação pode dar lugar a um juízo, no qual uma coisa existente se revela como esta determinada coisa, ou seja, se revela na sua específica e concreta utilizabilidade (Ib., § 33). É neste processo, que vai da compreensão até ao juízo, que se baseia a ciência. A interpretação e o juízo fazem do que é utilizável uma "coisa corpórea", cuja possibilidade de utilização se insere como um possível predicado. A coisa corpórea é uma simples presença que, convertida em objecto de ciência, se transforma num tema possível de investigação e de orientação. Esta tematização é a função própria da ciência. Um caso típico será o da física matemática, cujo carácter decisivo consiste em ser "o projecto matemático da própria natureza". Este projecto oferece o fio condutor para a descoberta das coisas naturais. E, neste sentido, a
199 matemática constitui um a priori, já que torna possível a descoberta de um objecto existente dentro do quadro do projecto preliminar do seu ser (Ib., § 69 a). Mas como a existência é sempre um estar no mundo, ela constitui um ser comparável a qualquer outro. Não subsiste para Heidegger a alternativa de um idealismo ou de um solipsismo egológico porque assim como não existe "um sujeito sem mundo", também não existe "um eu isolado, sem os outros". Isto acontece porque a "substância" do homem não é "o espírito como síntese da alma e do corpo" a partir da qual se possa chegar ao ser das coisas e dos outros, mas sim a existência, que é constitutivamente uma abertura para o mundo e para os outros. Assim como a relação entre o homem e as coisas é um apropriar-se das próprias coisas, também a relação entre o homem e os outros é um tomar conta dos outros. Este tomar conta constitui a estrutura fundamental de todas as possíveis relações entre os homens. Pode assumir duas formas distintas: pode significar, em primeiro lugar, tirar aos outros os seus problemas; em segundo lugar, ajudá-los a serem livres para assumirem os seus problemas. No primeiro caso, o homem não se preocupa tanto com os outros como com as coisas que lhes deve proporcionar; no segundo, abre aos outros a possibilidade de se encontrarem a si mesmos e realizarem o seu próprio ser. Por isso, a primeira é a forma inautêntica da coexistência, é um simples "estar juntos"; enquanto que a segunda é a forma autêntica, o verdadeiro "coexistir" (Sein und Zeit, § 26). 200 Viu-se que a transcendência existencial, baseando-se nas possibilidades de ser do homem, é ao mesmo tempo um acto de compreensão existencial. Para compreender-se, o homem pode adoptar como ponto de partida ele mesmo ou o mundo e os outros homens. No primeiro caso tem uma compreensão autêntica, cujo alcance veremos seguidamente; no segundo caso tem a compreensão inautêntica, que é o fundamento da existência anónima. A existência anónima é de todos e de nenhum: é a existência na qual o "diz-se" ou o "faz-se" domina indiferentemente. Nela, tudo está nivelado, tornado "oficial", convencional e insignificante. O homem é, nela, todos e nenhum, porque é o que todos são, não no seu ser autêntico, mas num modo de ser fictício e convencional que oculta o próprio ser. A linguagem, que é por natureza a revelação do ser, aquilo em que o próprio ser se exprime e toma corpo, converte-se na existência anónima, numa charla inconsistente. Bas&a-se exclusivamente no "diz-se" e obedece ao axioma: "a coisa é assim porque assim se diz" (Ib.,
§ 35). Uma existência tão vazia procura naturalmente encher-se e, por isso, está morbidamente inclinada para o novo: a curiosidade é, pois, o seu outro carácter dominante: curiosidade não pelo ser das coisas mas pela sua aparência visível, que por isso traz consigo o equívoco. O equívoco é o terceiro distintivo da existência anónima que, 'dominada pela charla e pela curiosidade, acaba por não saber sequer de que fala ou a que se refere o "diz-se" (Ib., § 83). 201 Estas definições não implicam, no pensamento de Heidegger, uma condenação da existência anónima, já que a análise existencial não pronuncia juízos de valor. Limita-se a reconhecer que a existência anónima faz parte da estrutura existencial do homem, é um seu poder ser constitutivo. Na base deste poder ser está o que Heidegger denomina a dejecção, isto é, a queda do ser do homem ao nível das coisas do mundo. A dejecção não é um pecado original nem um acidente que o progresso da humanidade possa eliminar; faz parte essencial do ser do homem. É um processo interno, uma espécie de movimento vertiginoso (Ib., § 38) pelo qual este ser desce ao nível de um facto e se converte efectivamente num facto. A factualidade ou a efectividade da existência é o seu estar lançado num mundo no meio dos outros entes, ao mesmo nível destes. Esta condição torna-se evidente ou, melhor, vive-se directamente na situação emotiva (Befindlichkeit) em que o homem se sente abandonado a ser o que é de facto. A situação emotiva diferencia-se da compreensão existencial na medida em que esta é um contínuo projectar para o futuro a parti-r das possibilidades da existência, enquanto aquela é antes orientada para trás e apoia-se no facto de que o homem existe e é um ente entre os outros. Como todas as outras determinações existenciais, esta situação não tem nada de subjectivo ou de íntimo; é um modo de ser originário da existência (Ib., § 29). 202 A totalidade destas determinações do ser do homem está compreendida na única determinação do cuidado. O cuidado (no sentido latino do vocábulo) é a estrutura fundamental da existência. Viu-se que ser no mundo significa para o homem "cuidar das coisas" e "cuidar dos outros". O cuidado exprime assim a condição fundamental de um ser que, **lancaía na existência anónima quotidiana. A esta exispossibilidades; mas estas possibilidades devolvem-no incessantemente â sua situação de facto originária, ao seu ser lançado no mundo. A existência é, em primeiro lugar, um ser possível, isto é, um projectarse para o futuro; mas este projectar-se não faz mais do que voltar atrás para aquilo que a existência é já de facto. Tal é a estrutura circular e, portanto, completa e acabada do cuidado corno constituinte do ser do homem. É evidente que o cuidado é a estrutura do ser do homem enquanto este for um ser no mundo e enquanto, por isso, caio na existência anónima quotidiana. A esta existência anónima, que como tal é inautêntica, Heidegger atribui uma boa parte da existência humana. Não só o espaço e a palavra, como também o conhecer científico e o conhecer mundano em geral pertencem à existência quotidiana inautêntica. E pertencem-lhe até as leis morais e as teorias que procuram o seu fundamento (Ib., § 58). Para Heidegger, todo o campo da normatividade e
dos valores, não sendo possível nem compreensível fora da relação do homem com o mundo, pertence à existência quotidiana anónima e permanece fora dos limites da existência autêntica. 203 § 845. HEIDEGGER: A EXISTÊNCIA AUTÊNTICA E O VIVER PARA A MORTE O homem reclama da existência autêntica o fenómeno da consciência (Gewissen). É totalmente estranho a Heidegger o sentido psicológico ou metafísico da palavra consciência como atitude de reflexão sobre si mesmo, sobre a própria interioridade espiritual. A existência humana não é, segundo Heidegger, clausura. na intimidade, mas antes abertura ao ser nas suas estruturas ontológicas e nas suas manifestações ônticas. A consciência que o homem pede à sua existência autêntica é o fenómeno, denominado voz da consciência: esta voz dirige-se ao homem enquanto está imerso no mundo e dominado pelo cuidado, e chama-o a si mesmo, ao que ele autenticamente é e não pode deixar de ser. Qual é, pois, este núcleo sólido, certo, insuperável, para o qual a consciência chama o homem e no qual deve basear-se a sua existência autêntica? Na resposta a esta pergunta assenta a parte central e decisiva do existencialismo de Heidegger. Vimos que a existência humana é constituída por possibilidades e que nestas possibilidades se baseia todo o seu projectar ou transcender. Mas também vimos que todo o projectar ou transcender lança o homem no mundo que ele projecta ou transcende e remete-o ao facto insuperável de que ele existe e está ao nível de todos os outros entes. Todas as possibilidades humanas sob este aspecto se equiparam e a escolha entre elas seria (se existisse) in204 diferente. Mas, na realidade, não há escolha, já que todo o acto possível de projecção ou de transcendência não faz mais do que lançar o homem na condição de facto em que primitivamente se encontrava e ligá-lo a ela. Todas as possibilidades que se oferecem ao homem e que constituem o seu ser são, pois, equivalentes. Heidegger não condena nem rejeita os valores ou as normas morais que se constituem no plano da existência quotidiana anónima: regista-os como elementos desta existência, mas nega que constituam possibilidades autênticas, isto é, próprias do ser do homem como tal. Pertencem ao homem enquanto vive no plano do anónimo e se deixa guiar pelo "assim. se diz e assim se faz, como todos -dizem e fazem". Mas tudo isto -significa que, na própria estrutura do ser-aqui, está incluída uma "nulidade essencial". Tudo o que o ser-aqui pode planear a partir das suas possibilidades, reincidindo sobre o que já existe, é um projecto nulo ou um nada enquanto projecto. Isto aplica-se tanto no caso dos projectos conseguidos como no daqueles que não têm sucesso algum. "A nulidade existencial, afirma Heidegger, não tem de forma alguma o carácter de privação ou de deficiência relativamente a um ideal que é proclamado mas que
nunca se alcança. O que acontece é que o ser desta entidade é nulo anteriormente a tudo aquilo que pode planear ou alcançar, e já é nulo como mero planear" (Sein und Zeit, § 58). Posto isto, o chamamento feito pela voz da consciência ao ser autêntico do ser-aqui é precisamente o chamamento a este nada ou à sua forma. última e radical que é a morte. 205. A morte não é para o homem um ponto final, a conclusão ou o fim da sua existência; também não é um facto, pois enquanto tal nunca é a própria morte. É, "enquanto fim do ser-aqui, a possibilidade do ser-aqui que é mais propriamente incondicionada, certa e, como tal, indeterminada e impensável" (Ib., § 52). É a possibilidade pró priamente dita, porque diz respeito ao próprio ser do homem. É uma possibilidade incondicionada, porque pertence ao homem enquanto individualmente isolado. Todas as outras possibilidades põem o homem no meio das coisas ou entre os outros homens; a possibilidade da morte isola o homem consigo mesmo. É uma possibilidade insuperável, enquanto que a extrema possibilidade da existência. é a sua renúncia a si mesma. É, enfim, uma possibilidade certa: de uma certeza que não tem a evidência apodíctica das verdades em que se revela o ser das coisas do mundo, mas que se relaciona de uma maneira essencial com o aspecto autêntico da existência humana (Ib., § 50). É apenas no reconhecer a possibilidade da morte, no assumi-Ia como decisão antecipadora, que o homem encontra o seu ser autêntico. A existência anónima quotidiana é uma fuga à morte. Considera-a. como um caso entre os muitos da vida de cada dia, oculta o seu carácter de possibilidade imanente, a sua natureza incondicionada e insuperável, e procura esquecê-la, não pensar nela, entregando-se às preocupações quotidianas do viver. A voz da consciência, ao arrancar o homem à existência anónima, chama-o para a morte. Fá-lo sentir em dívida para com a sua verdadeira natureza 206 e encaminha-o para uma decisão antecipadora que projecta a existência autêntica como um viver para a morte. Mas o viver para a morte não é, em absoluto, unia tentativa de realizá-la (suicídio). A morte é uma possibilidade e não pode ser entendida e realizada senão como pura ameaça suspensa sobre o homem. Nem é sequer uma espera, porque mesmo a espera não pretende mais do que a realização, e a realização nega ou -destrói a possibilidade como tal. Viver para a morte significa compreender a impossibilidade da existência enquanto tal. "A morte -diz Heidegger (Ib., § 35)-enquanto, possibilidade, não deixa nada ao homem para realizam. É a possibilidade da impossibilidade de todo o comportamento, de toda a existência (Ib., § 53). A possibilidade da impossibilidade da existência seria uma contradição nos seus termos, se aqui possibilidade não significasse compreensão. A existência é essencialmente, radicalmente, impossível; o que é possível é a compreensão desta impossibilidade. O viver para a morte é precisamente tal compreensão. Mas, dado que toda a compreensão é acompanhada por um estado emotivo que põe o homem imediatamente perante o seu ser de facto, também a compreensão da morte é acompanhada por urna tonalidade emotiva, que é a angústia. "A angústia -salienta
Heidegger (Ib., § 53)-é a situação emotiva capaz de manter aberta a contínua e radical ameaça que sai do ser mais íntimo e isolado do homem". Com a angústia, o homem "sentese em presença do nada, da impossibilidade possível da sua existência". Ela coloca o homem fundamentalmente ante o nada. 207 E com isto faz com que este compreenda verdadeiramente na sua finitude, já que esta só é compreensível se o homem se instala e se mantém no nada. Na angústia, a totalidade da existência converte-se em algo transitório, acidental e fugidio, no qual o próprio nada se apresenta no seu poder de aniquilação. Mas, assim, a angústia revela também o significado autêntico da presença do homem no mundo: esta presença significa manter-se firme no interior do nada (Was ist Met., trad. ital., p. 92). A revelação do nada é, por isso, originária: o nada não é a negação do mundo; toda a negação possível se baseia antes na presença e na revelação do nada. O nada está, certamente, escondido ou velado na existência trivial quotidiana, mas mesmo aí actua através da negação, da renúncia, da limitação, da proibição; e actua, sobretudo, como condição oculta, mas inclimnável, do próprio revelar-se da realidade existente como tal. Este revelar-se tem lugar, com efeito, no acto da transcendência, e a transcendência é a superação do ser na sua totalidade, é um salto sobre o ser, que do nada chega a nada. A existência autêntica é, assim, segundo Heidegger, a única que compreende claramente e realiza emotivamente a nulidade radical da existência. A existência é transcendência: continua-se para além da realidade existente, antecipando e projectando, e é só neste proceder, neste antecipar e projectar, que a realidade existente se apresenta como tal e se torna compreensível. Mas transcender, antecipar e projectar apenas levam o homem a cair na realidade de facto que queria transcender e a prendê-lo 208 HEIDEGGER a ela. É assim que o transcender, e tudo o que no transcender se revela (incluindo a realidade de facto), é uma impossibilidade radical, é uni nada aniquilador. Não resta, pois, senão antecipar e projectar este nada aniquilador. Tal é a existência autêntica, segundo Heidegger. § 846. HEIDEGGER: O TEMPO E A HISTÓRIA As análises da estrutura do tempo e da história são as mais profundas e significativas de todas as que Heidegger levou a cabo. Abandona completamente as habituais questões sobre a subjectividade ou objectividade, a transcendência ou a imanência do tempo. A sua tese fundamental é a de que entre as três determinações do tempo, passado, presente e futuro, a originária e fundamental é o futuro (Sein und Zeit, § 65). Esta teoria relaciona-se, evidentemente, com toda a análise existencial de Heidegger. Se a existência é possibilidade, transcendência, projecção, antecipação, ela está constitutivamente orientada e dirigida para o futuro. Mas o futuro supõe necessariamente o passado, e o presente está necessariamente envolvido na relação entre futuro e passado. Cada uma destas
determinações do tempo não tem significado se não estiver em relação à outra, isto é, em relação a um "fora de si" que, contudo, a constitui verdadeiramente. Por isso, Heidegger diz que a temporalidade é "o originário fora de si em si mesmo e por si mesmo"e designa-a 209 com o nome grego de ekstatikón (Ib., § 65). Dado isto, os caracteres dos três momentos do tempo variam conforme se trate do tempo autêntico ou do tempo inautêntico, isto é, conforme se trate do tempo como estrutura da existência anónima quotidiana ou do tempo como estrutura da existência angustiada. Deste modo o futuro adquire, antes de mais e em geral, a forma de um prolongamento cheio de cuidado com tudo o que nos preocupa, com o que se faz, se manipula e se nos oferece. Em tal caso, o futuro significa o êxito de, pelo menos, aquilo que absorve ou preocupa o homem, numa palavra, do que constitui a sua atenção comprometida. O futuro inautêntico tem, por consequência, o carácter da atenção. Por outro lado, na existência autêntica, que assume essencialmente a única possibilidade própria e certa, a morte, o futuro adquire a forma de decisão antecipadora, do viver para a morte, e o homem permanece estranho a todas as seduções das possibilidades mundanas "b., § 66). Pelo que se refere ao passado, que se vincula estreitamente à situação emotiva (isto é, aos estados emocionais), já que esta põe o homem em presença do que ele foi de facto, apresenta-se na existência inautêntica como medo. É de facto verdade que o medo parece estar dirigido para um mal futuro; mas trata-se sempre de um mal que está vinculado à situação de facto do homem, à sua relação com o mundo, ao que ele foi. O medo é uma angústia desvirtuada e precipitada do mundo: colocar o homem perante o seu ser lançado no mundo e mantém-no encravado nele, fazendo-lhe esquecer a sua 210 possibilidade própria e autêntica. O passado da existência autêntica é evidentemente a angústia, que impede toda a relação do homem com o mundo e precipita o mundo na insignificância (Ib., § 68 b). Finalmente, o presente é, na existência inautêntica, a própria apresentação das coisas do mundo: é a unidade de -esquecimento e de esperança, na qual se baseia a existência quotidiana como rotina insignificante de dias que se sucedem uns aos outros até ao infinito. Ao presente inautêntico do agora contrapõe-se o presente autêntico do instante. Heidegger modifica a noção de instante de Kierkegaard, que lhe tinha servido para designar a irrupção paradoxal da -eternidade no tempo (§ 603). Para Heidegger, o instante é a aniquilação do agora, o repúdio daquela presencialidade das coisas que constitui o presente inautêntico. É o retomo da existência ao seu poder ser e, assim, a repetição do seu passado mais característico e privilegiado (Ib., § 68 a). É evidente que, com esta análise, ficam confinados no inautêntico todos os significados do tempo de que se serve habitualmente o pensamento comum o a ciência. A medida comum do tempo ou, como diz Heidegger, a databilidade, a medida científica do tempo, o próprio conceito da eternidade, referem-se todos ao tempo inautêntico, isto é, são determinações essencialmente vinculadas à existência, que é
lançada e imersa nas coisas do mundo (Sein und Zeit, § 82). Mas, deste modo, o tempo não se une à existência, isto é, ao ser do homem, mesmo que seja como determinação fundamental. O ser é o tempo. O título da obra principal de Heidegger 211 sugere que o tempo é o sentido do ser, isto é, aquele significado último que a pergunta sobre o ser tende a descobrir. Pareceria muito difícil, deste ponto de vista, entender o horizonte e a estrutura da história. Esta, certamente, não pode ter lugar na existência inautêntica: a trivialidade quotidiana, pela sua insignificância, não tem história. Por outro lado, a existência autêntica reassumese no instante tácito e passional da angústia e, neste instante, o homem está absolutamente só perante a única certeza insuperável do seu destino: a morte. Não obstante, Heidegger tenta basear precisamente na angústia a historicidade da existência humana. O fundamento deste intento é que a existência autêntica, mesmo projectando-se como nulidade radical do mundo e de si mesma, não elimina o mundo; mais ainda, pressupõe-no na sua realidade de facto. A compreensão da impossibilidade radical da existência, da sua nulidade essencial, não a impede de existir como impossibilidade e nulidade; torna-nos livres de aceitar a existência tal como ela é. A angústia não proporciona ao homem um fim diferente daquele que lhe propõe a sua existência quotidiana: faz-lhe ver somente a insignificância e a nulidade destes fins e oferece-lhe, assim, a possibilidade de permanecer fiel aos fins inerentes à situação em que se encontra. Dado que esta situação é um coexistir com os outros homens entre as coisas do mundo, a existência autêntica confere ao homem a possibilidade de permanecer fiel ao destino da comunidade ou do povo a que pertence. Por outras palavras, a liberdade do 212 homem, em que se baseia a sua historicidade, consiste em fazer da necessidade virtude; em escolher e aceitar como própria a situação de facto em que estamos já lançados e -em permanecer-lhe fiéis. Mas isto só é possível pela convicção de que todas as situações de facto são equivalentes, que é impossível subtrair-se a elas e que é impossível que elas sejam mais do que aquilo que são: impossibilidade e nada. Por isso, Heidegger diz, (Ib., § 74) que "só um ente que no seu ser seja essencialmente futuro, isto é, que se deixe rejeitar pela presença que realiza de facto, poderá transmitir a si mesmo a possibilidade que herda, assumir a sua própria fuga para o futuro e, nesse instante, estar no seu !tempo". O destino em que consiste a historicidade do homem, é precisamente este herdar as próprias possibilidades, querer ser aquilo que já alguém foi, repetir a situação a que alguém se ligou. Esta repetição é o destino (Schicksal). Heidegger aceita de Nietzsche o conceito do destino como -vontade daquilo que já aconteceu e que inevitavelmente acontecerá (§ 667). O destino é a
hereditariedade da tradição, o retorno às possibilidades cuja existência já é uni facto, o querer ser no futuro aquilo que já alguém foi no passado. A decisão, em que consiste o destino, é a escolha da escolha, mas não a escolha entre diferentes possibilidades tais que uma delas possa ainda constituir uma rotura com o passado ou uma conquista nova. Só se pode escolher o querer ou não ser aquilo que já se foi e que necessariamente se voltará a ser. 213 Isto acontece ainda porque o destino do indivíduo particular é sempre e ainda um destino comum (Geschick). "0 destino comum, diz Heidegger, não é a soma dos destinos singulares assim como o estar em conjunto -não se reduz à simples adição dos sujeitos singulares. No estar em conjunto num mesmo mundo e na decisão sobre determinadas possibilidades, os destinos já estão delineados" (Ib., § 74). O facto de o homem escolher os seus heróis mostra que a sua fidelidade histórica consiste no retomar e no fazer próprias as possibilidades que se herdam do passado. A repetição das possibilidades não é, porém, uma destituição do passado, mas antes uma réplica à possibilidade da existência que já foi um facto. Não tende todavia para um progresso. "Para a existência autêntica, diz Heidegger, o passado e o progresso são, em qualquer instante, indiferentes" (Ib., § 74). A historicidade da existência humana implica a historicidade do mundo e, portanto, uma história universal na qualidade de história cósmica. As coisas do mundo, na sua utilizabilidade e instrumentalidade, fazem parte desta história. Utensílios e trabalhos, os livros, por exemplo, têm o seu destino; edifícios e instituições têm a sua história. A própria natureza é histórica não no sentido em que se fala de uma "história natural" mas antes corno paisagem, como domínio de colonização ou de desfrute, como campo de batalha ou corno lugar de culto. A historicidade das coisas do mundo não se junta a elas corno um atributo exterior: faz parte do seu ser. 214 Na historicidade fundamental da existência humana e do mundo baseia-se a ciência da história, a historiografia. O tema da historiografia não é o acontecimento único da sua singularidade nem um universal (uma lei ou um tipo) suspenso sobre este acontecimento: é a possibilidade que efectivamente existiu no passado. Enquanto esta não é repetida como tal, isto é, enquadrada numa compreensão histórica autêntica, fica como um tipo supra-temporal e abstracto, mas nada -histórico. Por isso, só a atitude -existencial autêntica, decidida, a
repetir as possibilidades que já foram suas de facto, pode revelar o sentido do passado na sua autenticidade historiográfica. Heidegger faz sua a distinção proposta por Nietzsche entre história monumental, história arqueológica e história crítica. Com efeito, com a repetição, a existência autêntica abre-se às possibilidades representadas pelos monumentos do seu passado; e a própria repetição delineia a possibilidade de uma conservação respeitosa da existência passada e abre, portanto, o caminho a uma história arqueológica. Finalmente, dado que o presente autêntico é um futuro que repete o passado, a história implica uma desactualização do hoje; e é por isso necessariamente uma "crítica, do presente". Neste ponto, verdadeiramente, Heidegger não acoita totalmente a posição de Nietzsche que, com pouca coerência mas com muita verdade, reconhecera na história crítica a tarefa de romper não só com o presente mas ainda com o passado e de dar ao homem a possibilidade de se renovar (§ 667). 215 § 847. HEIDEGGER: O SER As análises existenciais referidas nas páginas anteriores constituem o maior contributo de Heidegger para a filosofia contemporânea e ainda uma das manifestações mais originais e -interessantes dessa mesma filosofia. O instrumento fundamental utilizado por Heidegger nestas análises é a noção de possibilidade que, por obra sua, foi colocada em primeiro plano não só na filosofia como ainda em muitos campos da cultura contemporânea. Como quer que se entenda esta noção, está-lhe sempre ligado o sentido da indeterminação, da instabilidade, do risco ou, numa palavra, da não-necessidade. Infelizmente, Heidegger não se preocupou em ilustrá-la, talvez porque a considerasse "óbvia"; mas, precisamente por isto, o uso que dela faz equivale, em muitos casos, à sua negação. A transcendência, o planeamento, a antecipação, que -são os modos autocompreensivos da existência, baseiam-se todos no poder ser dessa mesma existência, isto é, constituem modos e formas de possibilidade. Mas para Heidegger todos estes modos o formas servem apenas para obrigar a existência às situações em que ela já se encontra, isto é, para a reduzir ao facto ou, do ponto de vista do tempo, ao passado. Deste modo, a factualidade da existência torna-se o seu carácter fundamental, a existência só pode consistir na repetição daquilo que já fez ou daquilo que já foi. Mas assim as suas possibilidades constitutivas revelam-se como impossibilidades. O transcender-se e o planear-se transformam-se na negação da transcen216 dência e do planeamento porque, na realidade, nada podem transcender ou planear. Apesar das afirmações explícitas de Heidegger, a realidade vinga-se, na sua obra, da possibilidade, o facto vinga-se do projecto, o passado vinga-se do futuro. E as possibilidades que fariam parte do ser-aqui revelam-se, uma vez compreendidas, como autênticas impossibilidades. Se se comparar este ponto de chegada da análise existencial de Heidegger com o seu ponto de partida -a auto-compreensão da existência em termos de possibilidade- verifica-se necessariamente que um desses pontos deve ser abandonado. Não admira pois que
Heidegger tenha abandonado o ponto de partida da análise existencial e que tenha defendido o ponto de chegada. A tarefa dessa análise consistia em conduzir a uma ontologia, isto é, à determinação do sentido do ser. Ela actuou interrogando o ente para o qual se põe precisamente o problema do ser, isto é, o ser-aqui ou o homem; e a esta interrogação o ser-aqui respondeu manifestando o nada do seu ser, isto é, não respondeu. A conclusão que se deve extrair dos resultados da análise existencial é assim a de que o sentido do ser não pode ser obtido interrogando um ente, quer este seja primário ou privilegiado; ou, melhor dizendo, que por tal interrogação o sentido só é esclarecido de forma exclusivamente negativa, a saber, que o ser cujo sentido se procura não é um ser mas -sim um ente. Este facto, que as conclusões da análise existencial consideram uma ontologia autêntica, é claramente ilustrado por Heidegger na Introdução à metafísica. 217 Mas esta obra é ainda, e simultaneamente, unia crítica e uma dissolução da metafísica clássica, pois esta fez, segundo Heidegger, precisamente aquilo que a análise existencial demonstrou que não se podia fazer: procurou descobrir o sentido do ser a partir do ser dos entes. A metafísica é, por isso, e em última análise, uma "física". Perde-se entre os entes e esquece o ser; é um esquecimento do ser que obriga a esquecer esse mesmo esquecimento. Ã física pertencem apenas, segundo Heidegger, a doutrina de Aristóteles do ser como acto puro, a de Hegel sobre o conceito de absoluto, e a de Nietzsche sobre o eterno retorno (Einführung in die Metaphysik, p. 14). Quanto a Platão, terá sido o primeiro responsável por esta degradação da metafísica, porque enquanto os primeiros filósofos tinham concebido a verdade como revelação do ser (no sentido etimológico da palavra grega a-letheia, que significa revelação), ele inverteu a relação entre verdade e ser, baseando o ser na verdade. Assim, a verdade deixa de constituir o revelar-se do ser e torna-se a normatividade ou objectividade (o valor) do pensamento humano. A ideia de que fala Platão é uni olhar sobre o ente; a verdade é a justeza deste olhar (Platons Lehre von der Wahrheit mit einem Brief über den Humanismus, p. 35), Desta doutrina platónica até à afirmação de Nietzsche de que a verdade é "uma espécie de erro", há uma passagem gradual e necessária, que é constituída pela própria história da filosofia, que substituiu o pensamento do ser pelo pensamento do valor. Com a sua pretensão de derrubar os valores tradicionais, Nietzsclic 218 pensa ainda por valores e, como tal, move-se no âmbito da metafísica. Mas o pensar por valores é um autêntico niilismo porque traduz o esquecimento do ser (Holzwege, p. 242). Considerando assim a ontologia, a revelação da essência do ser não pode resultar da análise do ser
de um ente qualquer nem da iniciativa de um ente. Só pode ser o produto da iniciativa do ser; e o homem só se pode colocar nas condições de se sujeitar a esta iniciativa. Heidegger assume por isso como conceito fundamental do seu filosofar o da verdade como não ocultação ou revelação do ser, que já desenvolvera nas primeiras páginas de Ser e tempo. A revelação do ser pressupõe que o homem se abra ao ser. O homem pode medir a verdade da sua consciência através da sua concordância com as coisas (segundo o conceito tradicional da adaequatio intellectus et rei) apenas porque o ser se revela nas coisas existentes. Mas esta revelação implica que ele esteja livre; pressupõe a liberdade e é precisamente o significado original da libeli-dade e da verdade. "A liberdade perante aquilo que se revela nesta abertura permite ao ser que ele seja aquilo que é. A liberdade define-se assim como aquilo que deixa ser o ente" (Vom Wesen der Wahrheit, p. 15). A verdade e a liberdade identificam-se na medida -em que para o homem ser livre significa "abandonarse à revelação do ente como tal". Graças a esta revelação, o próprio homem é o ente que é; ou seja, está compreendido na verdade do ser. Mas, neste sentido, a liberdade não tem nada que ver com a iniciativa humana: é uma dádiva 219 preliminar (Vorgabe) do ser ao homem (Ib., p. 13). É uma iniciativa do ser, não uma iniciativa do homem. Todavia, a revelação do ser nunca é total nem directa. Não ser total significa que o ser se oculta ao mesmo tempo que se revela; -isto é, tal como ilumina o ente, desvia-o e fá-lo errar. Os erros do ente constituem a história, que é determinada pela epoché, ou melhor, pelas revelações parciais (ou ocultações parciais) do ser. "A época do ser pertence ao, próprio ser, afirma Heidegger, e é concebida partindo da concepção do esquecimento do ser. É da época do ser que deriva a essência contemporânea do seu destino, do qual faz parte a verdadeira história universal" "Holzwege, p. 311). Por outras palavras, é apenas a ordem necessária da revelação do ser, como já afirmara Hegel. Acontece ainda que a revelação do ser não é directa, por se efectuar através das coisas e estas não serem, de tal ponto de vista, os utilizáveis de que se falava em Ser e tempo, mas sim as unidades em que se manifestam os quatro aspectos do ser, isto é, a teoria, o céu, o divino e o mortal, e para os quais "habitar perto das coisas" significa "encontrar aquilo que anuncia a divindade, isto é, o ser (Unterwegs zur Sprache, p. 22). Toda a numerosa série de obras que Heidegger veio publicando nos últimos anos e que no seu conjunto constituem a segunda fase da sua filosofia, na qual já não se encontra traço algum de existencialismo, (a não ser no sentido da resposta negativa que o existencialismo forneceu à constituição de 220 uma ontologia), ilustram os conceitos fundamentais da filosofia que foi agora delineada. A existência será o " estar perante o sem (Maions Lehre, p. 66). "0 homem é lançado pelo próprio ser na verdade do ser, pelo que, estando protegido pela verdade do ser, e por isso mesmo, o ente surge ao ser exactamente como o ente que é" (Ib., p. 75). O homem não é o do-no do ente mas o pastor do ser. "Ele atinge assim a total pobreza do pastor, cuja dignidade consiste no ser chamado -pelo próprio ser para guardar a sua verdade" (Briefe über den "Humanismiís", in Platons Lehre, p. 91). O pensamento é sempre pensamento do ser, no sentido objectivo e
subjectivo, isto é, no sentido de que é o ser que pensa e que o pensamento só pode pensar o ser (Ib., p. 54). Ele não conduz portanto a qualquer saber, como por vezes acontece com as ciências, não fornece à acção qualquer impulso ou sabedoria nem resolve enigmas. Pertence ao ser, não ao homem; e o homem, enquanto pensa, só pode "deixar que o ser seja" (Was heisst Denken? p. 161, Platons Lehre, p. 111). O abandono (Gelassenheit) ao ser é a única atitude a que o pensamento pode conduzir. E é precisamente esta atitude que devemos assumir perante o mundo da técnica, cujos perigos, segundo Heidegger, nenhum poder humano pode remediar. "Nós permitimos, afirma, que os objectos da técnica existam dentro do nosso mundo quotidiano e, simultaneamente, deixamo-los fora dele, isto é, deixamo-los repousar em si mesmos como coisas que nada têm de absoluto mas que, pelo contrário, reenviam a qualquer coisa mais elevada. 221 Poderemos indicar a atitude contemporânea perante o mundo -da técnica com uma única expressão: a resignação às coisas" (Gelassenheit, p. 25). Este passivo abandono às coisas é a única forma de manter o sentido do ser oculto do mundo da técnica, e é uma autêntica "abertura ao mistério" (Ib., p. 26). A única manifestação do ser autêntica e directa é, segundo Heidegger, a linguagem. Já na conferência sobre Hõlderlin e a essência da poesia (1937), que foi o primeiro documento da nova fase da sua filosofia, Heidegger reconhecia na linguagem e em particular na linguagem poética o "fundamento do ser". A poesia é a língua primitiva que, dando nome às coisas, fundamenta o ser. Este fundamento não é uma criação mas sim um dom: é um dom livre, embora não caprichoso, obedecendo a uma necessidade superior que os poetas julgam provir dos deuses e que, na realidade, vem do ser. Estes conceitos tornaram-se fundamento da especulação posterior de Heidegger e da forma característica que ela assumiu, como investigação incessante de novos significados das palavras, de novas palavras ou de etimologias (por vezes arbitrárias) que deveriam revelar novos significados. Nesta sua forma, a filosofia, segundo Heidegger, chega a coincidir com a poesia visto que uma e outra revelam, através da palavra, o significado do ser. Nesta revelação, no entanto, o que conta não é a obra do homem. Não é ele que fala mas sim a própria linguagem, e na linguagem, o ser. O homem só pode falar enquanto escuta: a sua essência consiste precisamente em escutar a linguagem do ser, no obedecer-lho e no confiar nele (Un222 terwegs zur Sprache, p. 254). Heidegger crê que uma nova época, uma nova manifestação do ser, se prepara através da que agora se está a exaurir e é caracterizada pela metafísica. Esta nova manifestação, ocorrerá através da linguagem, e por sua obra, dado que "na essência e no âmbito da linguagem se decide sempre o destino" (Vortrãge und Aufsãtze, p. 54). O destino é o fatum, a palavra do ser: só compete ao homem esperá-la e escutá-la. Este acento profético da última parte da filosofia de Heidegger não tem todavia significado
religioso. Se bem que Heidegger parta de deuses ou de divindades e que recuse a qualificação de ateu (Identitãt iin,d Differenz, 1957, p. 51), o ser de que fala recusa constantemente as características essenciais da divindade: não é nem a Causa nem o Bem. O mundo será "a luz do sem ffilatons Lehre, p. 100); e as coisas do mundo são deuses sob os quais devemos ficar e esperar. Mas o próprio mundo, tal como as coisas, depende da revelação do ser em cada época. § 848. JASPERS: EXISTÊNCIA E RAZÃO Heidegger tira da fenomenologia a existência ontológica que acaba mais tarde por prevalecer na segunda fase da sua filosofia. A obra de Jaspers liga-se mais estreitamente à de Kierkegaard, nela o homem individual é considerado como o tema único da filosofia, cuja tarefa será portanto a do esclarecimento racional da existência individual. 223 Karl Jaspers nasceu em Oldoriburg a 23 de Fevereiro de 1883. Formou-se em medicina e estudou Espinosa e Husserl. Em 1909 conhece Max Weber, que considera seu mestre ao qual dedica seguidamente um livro. Em 1916 começa a ensinar filosofia na Universidade de Heidelberga onde, em 1921, se torna professor. Mantém a cátedra até 1937, ano em que a perde por se opôr ao nazismo. Esta oposição, com tudo aquilo que implica no plano filosófico, foi sempre uma das directrizes do pensamento de Jaspers que, num livro intitulado O problema da culpa (1946), analisa a culpa da Alemanha na iniciativa e na condução da guerra, e que num outro livro recente, Liberdade e unificação (1960), a propósito do problema da unificação das duas Alemanhas, disse que o considera um problema ultrapassado e que a única questão importante é a da **defm e da realização da liberdade. Jaspers iniciou a sua actividade científica no campo da psicologia e em 1913 publicava a Psicopatologia geral. A obra de transição deste género de estudos para a filosofia foi a Psicologia das intuições do mundo (1919), que se pode considerar como sendo a primeira obra de filosofia existencialista (anterior a Ser e tempo, que Heidegger só publicou em 1927), dado que na realidade contém todos os temas principais que Jaspers desenvolveu nas suas obras posteriores. Entre estas obras, a mais importante é a chamada Filosofia (1932), publicada em três volumes intitulados respectivamente Orientação filosófica no mundo, Definição da existência e Metafísica. Os seus outros escritos são: A situação 224 espiritual do nosso tempo (1931); Max Weber (19')2); Razão e existência (1935); Nietzsche (193); Descartes e a filosofia (1937); Filosofia da existência (1938), O espírito v.'vo da Universidade (1946); Sobre a verdade (1947); A fé filosófica (1948); A origem e o fim da história (1950); Guia de filosofia (1950); Razão e anti-razão do nosso tempo (1950); Balanço e perspectivas (Discursos e ensaios, 1951)-, Schelling (1955); Os grandes filósofos
(1957); A bomba atómica e o futuro dos homens (1958); Filosofia e mundo (Discursos e ensaios, 1958); Razão e liberdade (1959); A ideia da Universidade (1961); As fés filosóficas na revelação (1962). Jaspers partilha com a fenomenologia o conceito da intencionalidade da consciência e o da revelação da razão. Mas este carácter revelador da razão consiste essencialmente, segundo Jaspers, na sua capacidade para esclarecer a própria existência, isto é, de a trazer à consciência o à comunicação com as outras existências. A existência é o ponto de partida e simultaneamente o limite da compreensão racional. Dela saiem e para ela voltam todos os esforços e tentativas, iniciativas e empreendimentos de que o homem é capaz, incluindo aqui a procura do ser, que é o tema próprio da filosofia. A existência é sempre a minha existência, isto é, uma existência historicamente individualizada, singular, inconfundível e dotada do carácter de excepcionalidade que já fora referido por Kierkegaard e por Nietzsche. O esforço de auto-compreensão racional, de universalização e de comunicação faz parte integrante dela e mantém-se necessariamente nos seus 225 limites. Como poderá então esse esforço valer como autêntico esclarecimento e abrir a existência à comunicação universal? É este o problema fundamental que Jaspers abordou na sua filosofia. Existência e razão constituem, segundo Jaspers, os pólos do nosso ser. A razão está presente como intelecto na consciência em geral, como vida ou totalidade de ideias no espírito e, enfim, como razão esclarecedora na própria existência. Em nenhum caso a razão pode existir por sua conta: ela é um do pólos e pressupõe sempre o pólo oposto. Na existência, a razão constitui a própria acção da existência possível. Uma razão privada de existência seria um processo de pensamento arbitrário e cairia numa universalidade abstracta. Uma existência privada de razão cairia na violência cega e portanto naquela universalidade empírica que é típica dos impulsos sentimentais ou vividos sem especulação racional (Vernunft und Existenz, p. 42). A existência e a razão devem pois reunir-se para constituir a razão autêntica ou a existência autêntica; e só através da sua penetração recíproca é que a existência se abre à verdade, isto é, à comunicação com os outros. Mas a verdade que é própria da existência não consiste nem na verificação pragmática que vale no domínio da realidade empírica, nem na evidência necessária que vale no domínio da consciência em geral, nem tão-pouco na persuasão que é válida no domínio do espírito. Estas três formas da verdade constituem Lima ordem gradual em que cada das formas é superior a precedente; mas nenhuma, delas, nem sequer a sua totalidade, esgota a existência 226
de uma comunicação absoluta e total. Esta só se pode realizar através de um movimento infinito no qual a verdade se manifesta cada vez mais. E neste movimento coincidem o ser si próprio, isto é, o manter-se na sua unicidade e excepcionalidade, e o ser verdadeiro, ou seja, o revelar-se aos outros e o comunicar com eles. "A existência, afirma Jaspers (Ib., p. 62), torna-se manifesta a si mesma e, portanto, real, se com uma outra existência, através dela e com ela, se alcança a si própria". Este movimento, que nunca se conclui porque nunca alcança o seu fim último, constitui a verdade da existência, que é também a da fé. Tem-se fé quando se chegou ao limite da transcendência, isto é, quando se provou que toda a forma de comunicação se dirige para o insucesso e que por isso a comunicação é impossível. E com efeito, se a comunicação alcançasse a sua própria realização, destruirse-ia a justificação do homem na medida em que este se torna ele próprio sempre e apenas na comunicação. Por outro lado, o facto de a comunicação nunca ser completa e a gravidade do seu insucesso revelam uma profundidade que só pode ser preenchida pela transcendência. Se Deus -é eterno, ele torna-se verdade para os homens apenas enquanto devém verdade e, mais precisamente, só enquanto devém verdade na qualidade de comunicação" (Ib., p. 73). Os limites dentro dos quais a transcendência cumpre e aperfeiçoa a verdade e a comunicação são limites impensáveis, dado que o pensálos nada mais faz do que reconduzi-los às formas da verdade e da comunicação já conhecidas, isto é, a formas incom227 pletas. Os limites do pensamento e da comunicação, portanto (e se bem que actuem na existência humana), só são conhecidos na forma de silêncio (Ib., p. 74). § 849. JASPERS: EXISTÊNCIA E SITUAÇÃO Do mesmo modo que para Heidegger, também para Jaspers o aspecto característico da existência é o ser sempre uma existência no mundo: isto é, ligada a uma s;tuação de facto que a delimita e caracteriza de uma maneira específica. A existência é busca do ser; e o primeiro modo desta busca é o de considerar-se a si mesmo como um ser-aqui (Dasein), como um elemento ou coisa do mundo juntamente com outros elementos ou coisas inumeráveis. Deste ponto de vista, a investigação do ser é orientação no mundo. É uma investigação que não tem fim, que passa de uma coisa a outra, de termo a termo, até ao infinito, mas -que não encontra nem pode encontrar mais do que coisas no mundo (Phil. 1, p. 28-29). Uma investigação objectiva deste tipo é a própria de todas as ciências naturais, que, descobrindo leis universalmente válidas, superam os confins do indivíduo empírico e dirigem-se a um intelecto anónimo, isto é, comum a todos. A orientação no mundo é uma posição legítima, mas não pode ser considerada como conhecimento definitivo. Não é nem pode valer como conhecimento do mundo. O que **@atinae é um ser determinado, este ou aquele
228 objecto no mundo: o próprio mundo permanece como o horizonte transcendente ou inalcançável deste tipo de procura. Certamente, eu posso construir a imagem total do mundo e considerá-la como o próprio mundo. Mas, na verdade, esta imagem não será o mundo: será antes um cosmos, um singular e particular ponto de vista entre os muitos que há no inundo; e o mundo ficará como o horizonte transcendente deste mesmo cosmos e do ponto de vista que o sugeriu (Ib., 1, p. 68-71). Jaspers identifica este horizonte com o periécon de que falava Anaximandro: um horizonte conglobante que se estende à medida que aumenta o nosso conhecimento mas que se desloca e permanece inalcançável. O horizonte conglobante determina o fracasso da orientação no mundo. O que eu procuro é o mundo, como totalidade absoluta e que contém tudo; o que alcanço é um cosmos vinculado a um ponto de vista particular, que se insere no interior do horizonte conglobante. Mas este fracasso assinala, ao mesmo tempo, a ruptura do mundo como unidade e totalidade. O mundo rompe-se na multiplicidade das perspectivas, tendo cada uma delas a pretensão de valer absolutamente, mas dependendo todas do seu ponto de vista. Só se pode sair desta prisão desvinculando-nos da consideração objectivante, para a qual eu mesmo sou uma realidade objectiva no mundo, e colocando-nos no plano da consideração existencial, para a qual eu nunca sou objecto para mim mesmo. Neste plano, a imagem que eu formo do mundo -não é acidental ou casual, não posso mudá-la arbitrariamente: 229 eu sou a minha própria intuição do mundo. neste sentido, a minha intuição do mundo não é já um possível objecto de investigação no meio de tantos outros: é a minha própria situação no inundo, isto é, a origem do meu filosofar (Phil., 1, p. 246). Como parte de mim mesmo, a minha situação não pode ser objectivada ou considerada a partir do exterior; é idêntica a mim mesmo. Esta identidade é o ponto central da filosofia de Jaspers. À primeira vista, esta filosofia é uma filosofia da liberdade. O homem é o que escolhe ser: a sua -escolha é constitutiva do seu ser e ele não é senão enquanto escolhe. A escolha de mim mesmo é a liberdade originária, aquela liberdade sem a qual eu não sou eu mesmo (Ib., 11, p. 180). Jaspers fala do risco inerente à escolha de si mesmo, da decisão existencial que não sai do eu como de uma fonte escondida, mas constitui o próprio eu; e descobre na vontade a clareza da escolha originária (Ib., 11, p. 152). Mas (este é o ponto decisivo) o eu que escolhe é a sua própria situação no mundo, situação historicamente determinada, objectiva, particular; e a sua escolha auto-constítutiva não é mais do que a auto-constituir-se desta situação. Isto significa que a escolha, radicando-se numa situação determinada, não pode escolher senão o que já foi escolhido constituído numa situação de facto. "Eu-diz Jaspers Qb., 11, p. 182)não posso refazer-me radicalmente e escolher entre ser eu mesmo e não ser eu mesmo,
como se a liberdade estivesse diante de mira como um instrumento. Mas enquanto escolho sou; se não sou não escolho". O que quer 230 dizer que perante a escolha nunca se oferecem alternativas diferentes (Ib., III, p. 114), que ela nunca é um comparar, um extrair, um escolher, irias sempre e unicamente o reconhecimento e a aceitação daquela única possibilidade que está implícita na situação de facto que constitui o meu eu. "Eu estou numa situação histórica se me identifico com uma realidade e com, a sua tarefa imensa... Eu somente posso pertencer a um único povo, posso ter apenas estes pais e não outros, posso amar somente uma única mulher; mas eu posso, em todo o caso, trair". Admitir que podemos pertencer a outro povo, se aquele ao qual pertencemos de facto nos aparece como estranho; que podemos desconhecer os nossos próprios pais porque não temos culpa daquilo que eles são; que podemos amar outra mulher e que, em geral, podemos recorrer àquelas possibilidades sempre novas de que a vida está repleta, significa, para Jaspers, trairmo-nos a nós mesmos. O único modo de ser, a única escolha autêntica é a que aceita incondicionalmente a situação de, facto à qual se pertence. "0 meu eu é idêntico ao lugar da realidade em que mo encontro" (Ib., !I, p. 245). E, dado que a escolha é originariamente comunicativa e a escolha de si é sempre, ao mesmo tempo, escolha dos outros, também a escolha dos outros não é um escolher, irias apenas a decisão originária de uma comunicação incondicionada quer com aqueles que encontro quer comigo mesmo,(Ib., 11, p. 183). A identidade do eu e da situação, o facto intransponível de que o eu se encontra Ligado e identificado com um determInado "lugar" -da realidade, 231 aparece a Jaspers como a culpa originária e inevitável, que -é o fundamento de toda a culpa particular. O reconhecimento e a aceitação da situação elimina da realidade as culpas evitáveis, a traição para consigo mesmo, mas permite reconhecer na sua verdadeira natureza a culpa originária e inevitável (Ib., p. 249). A culpa inevitável é a limitação necessária do eu na situação; a culpa evitável é o desconhecimento, a** mexisteme ou débil aceitação da própria situação e, por conseguinte, a renúncia de, ser-se o próprio. -No fundo, esta renúncia não tem consequências decisivas, porque a identidade entre o eu e a situação actua mesmo quando não seja reconhecida e aceite: o não actuar, como o não decidir e o não escolher, não nos tira da situação em que estamos e daquilo que, por essa razão somos; e assim deixa inalterada a necessidade e a culpa desta situação. A escolha só oferece, ao homem a alternativa do reconhecimento e da aceitação apaixonada da situação originária, de maneira que é possível "chegar a ser ü que se é" (Ib., 1, p. 270). O que; Nietzsche, chamava o amor fati, que Heidegger chama o destino é, também para Jaspers, a única atitude, a única escolha possível do homem. E a liberdade? A liberdade coincide com a necessidade da situação. Jaspers fala de "existência possível" e, ao longo de toda a sua filosofia, serve-se incessantemente da categoria da possibilidade. Mas na sua filosofia, como na de Heidegger, possibilidade significa impossibilidade. Eu só posso ser o que sou; só posso vir a ser o que sou; não posso querer senão o que SOU: e o que sou é a situação em que me encontro
232 e sobre a qual nada posso. Jaspers diz que as expressões "eu. escolho", "eu quero" significam, na real-idade, eu devo (Ich muss, no sentido da necessidade de facto [1b., 11, p. 1861). A possibilidade de ser, de agir, de querer, de escolher é, na realidade, a impossibilidade de agir, querer e escolher de maneira diferente de como se é, ou seja, opondo-se às condições implícitas na situação -que nos constitui. O predomínio romântico da presencialidade, da necessidade, -do facto, domina a doutrina de Jaspers, para quem a própria história se converte em unidade de liberdade e de necessidade no sentido de ser uma necessidade que se torna consciente e é aceite como tal (Ib., 11, págs. 117 e segs.). Poderia supor-se que pelo menos a traição, o desconhecimento de si, a renúncia cega ou culpável à própria realização, fossem actos de liberdade: e assim seriam, se fossem possíveis. Mas, na realidade, para Jaspers, não são possíveis. O homem não pode subtrair-se a si mesmo porque não pode subtrair-se à sua própria situação: é esta situação. O desconhecê-la ou o ser-lhe infiel não significa abandoná-la ou prescindir dela: significa somente suportá-la sem dar-se conta dela, vivê-Ia sem ter dela consciência ou clareza racional. De modo que a única diferença que a filosofia, como esclarecimento racional, introduz na -existência do homem, consiste em fazer-lhe ver claramente e em persuadi-lo a aceitar aquela necessidade que, mesmo sem a filosofia, continuaria actuando no seu ser mais oculto. Para Jaspers, como para Heidegger, a possibilidade existencial transformou-se numa impossibilidade radical; e a liber233 dade, que ela prometia, transformou-se na aceitação da necessidade. § 850. JASPERS: TRANSCENDÊNCIA EFRACASSO Radicada na necessidade da situação de facto, lançada na busca do ser, que se pode sempre aprisionar na forma deste ou daquele ser mas que sempre se escapa na forma de totalidade e de horizonte intransponível, a existência aparece a Jaspers como uma impossibilidade radical de existência. No terceiro volume da Filosofia, A metafísica, esta impossibilidade radical converte-se no tema dominante. A existência é investigação do ser; mas o ser não é uma possibilidade da existência. Aqueles aspectos ou partes do ser que a existência alcança ou encerra em si mesma não são já o ser, que permanece como o horizonte transcendente de tudo o que pode ser e é alcançado. Isto implica que o ser, como transcendência, só pode ter na investigação humana urna manifestação ou característica: precisamente a da impossibilidade de o alcançar. Nunca estando compreendido dentro dos seus limites, o ser não se revela à existência senão como uma radical e absoluta impossibilidade de !ser: portanto (dado que toda a impossibilidade é necessidade), corno necessidade absoluta e radical. Há realmente uma forma pela qual a transcendência pode ser experimentada como presente na existência humana, e é a cifra, o símbolo. Uma coisa,
234 uma pessoa, unia doutrina, uma poesia, podem valer como símbolos ou cifras da transcendência; mas dado que não valem como ta-Is se eu não os interpretar desse modo, e dado que não posso interpretá-los senão partindo daquilo que eu mesmo sou, toda a cifra ou símbolo interpretado pela existência é uma confirmação de que a existência não pode ser senão o que é .(Phil., III, p. 206). Mas, sobretudo, a transcendência revela-se no que Jaspers denomina situações-limites, isto é, em situações imutáveis, definitivas, incompreensíveis, nas quais o homem se ,encontra como se estivesse em frente de UM MUTO, contra o qual pode apenas chocar sem esperança. Frente a tais situações, toda a rebelião é insensata: só podemos ter consciência delas. A necessidade que nelas se manifesta e que é incompreensível, enquanto não é redutível a motivos ou elementos do nosso saber, mostra precisamente que aí se experimenta, ainda que na forma negativa do choque, a própria necessidade do ser. Encontrar-se numa situação-limite significa não poder não: não poder não sofrer, não poder não morrer, não poder não pecar. A situação-limite revela por isso, da maneira mais clara, a impossibilidade constitutiva da existência. O estar sempre numa situação determinada, o não poder viver sem luta e dor, o dever tomar sobre si a culpa, o estar destinado à morte, são situações-limite, nas quais, indubitavelmente, a transcendência está presente sob a forma da impossibilidade em que o homem se encontra para superá-las. O sinal mais evidente da transcendência é o fracasso que o homem vi sofre na tentativa de superá-las ou de compreendê235 -Ias de alguma maneira: neste fracasso, a transcendência faz sentir a sua presença. É a cifra suprema, a que melhor simboliza e descreve a necessidade do ser. Certamente, no naufrágio total de todas as suas possibilidades, o homem não pode encontrar mais do que resignação e silêncio; mas resignação e silêncio constituem uma paz que não é já ilusória porque se baseia na certeza do ser que se revelou na sua necessidade (Ib., 111, p. 234). O nosso saber da divindade aparece agora como superstição; mas a verdade está onde a existência, no seu naufrágio, pode traduzir a linguagem equívoca da transcendência na mais simples certeza do que respeita ao ser. É a certeza de uma necessidade incompreensível, frente à qual não se pode fazer outra coisa que inclinar silenciosamente a cabeça e resignar-se. § 851. JASPERS: LÓGICA E COMUNICAÇÃO Como dissemos, o problema da filosofia é essencialmente, para Jaspers, o problema da comunicação: isto é, o problema de uma verdade que, ainda que indissoluvelmente dirigida à existência singular como seu auto-esclarecimento, seja universalmente comunicável. Ora a verdade filosófica não é uma verdade objectiva como a da ciência, que é anónima e, portanto, pode ser igualmente aceite por todos. É verdade existencial, ligada à mais profunda e íntima raiz da existência singular. Então, de que maneira esta verdade é comunicável, isto é,
236 pode valer para os outros. Donde tira esta verdade o seu valor para a existência individual que esclarece? Já em Razão e existência (1935) tinha surgido, este problema e tinha, de certo modo, respondido. Nesta obra (p. 46) reconhecia Jaspers a exigência de uma lógica filosófica que fosse "auto-esclarecimento da razão", assim como a filosofia é "o autoesclarecimento da existência". E tal lógica filosófica distinguia-se da "lógica da consciência em geral", isto é, da lógica entendida no seu sentido tradicional, kantiano ou idealista, como lógica das categorias do intelecto ou das ideias em Deus antes da criação. Ã exigência desta lógica responde a obra Sobre a verdade (1947). Aqui, a lógica filosófica é entendida, de acordo com oque tinha sido afirmado em Razão e existência, como o auto--esclarecimento da razão. No instituir e no levar por diante o processo deste auto-esclarecimento (que nunca se pode terminar e encerrar num sistema), residem e** manlêm-se os princípios fundamentais que Jaspers expusera na Filosofia. O problema fundamental da lógica filosófica é sempre o da relação entre a unidade e a multiplicidade da verdade. A verdade é única porque está em conexão com a singularidade e excepcionalidade da existência e constitui, por isso, a própria existência; mas é também múltiplo, porque a existência singular não está só, antes existindo juntamente outras existências, cada uma das quais tem a sua verdade. Pode-se insistir unilateralmente num e outro destes dois aspectos da verdade, e têm-se então desvios ou perversões de que é rica a história da filo237 sofia. Quando se reconhece que a verdade é una, passa-se à afirmação de que a verdade é única para todos, e entra-se no campo do dogmatismo e do fanatismo já que se identifica esta única verdade com a nossa verdade, que é sempre uma verdade individual e histórica. A verdade deste modo, torna--se estática e fixa; mas -o que se torna -estático e fixo é uma verdade histórica particular que se pretende impôr com a força da autoridade (Von der Wahrheit, p. 834). Jaspers denomina esta posição ."o ponto de vista do catolicismo". Nele, a verdade pretende excluir todas as outras porque pretende incluí-Ias todas, tende a submetê-la -à sua autoridade e a fazer dela um instrumento de domínio. Exemplos disto não apenas a Igreja Católica como ainda o Cristianismo, em geral e o idealismo alemão, (Ib., p. 856, 842-44, 851). Perante este ponto de vista, a filosofia nega a rigidez estática da verdade e, sem menosprezar a autoridade, limita o valor e a função às suas condições históricas. No fundo, a pretendida unicidade da verdade, afirmada pelo catolicismo em ,geral, é a queda da verdade existencial na objectiva: considera-se única a verdade porque é tida como válida objectivamente, independentemente da sua relação vital com a existência. Se, por outro lado, se insiste unilateralmente na conexão da verdade com a existência, chega-se ao relativismo e ao cepticismo: haverá tantas verdades como existências. Mas também este ponto de vista assinala a descida da verdade ao nível do intelecto objectivante. Reconhecer que há muitas verdades e
que todas se equivalem significa, com efeito, olhar 238 a verdade a partir -do exterior; mas a verdade não pode ser olhada do exterior porque é a própria existência. Não se pode dizer que haja muitas verdades, porque as verdades nunca se encontram uma ao lado da outra, desenvolvendo-se juntamente através da comunicação existencial e, portanto, nunca se somam num todo completo (Ib., p. 742). Uma filosofia autêntica nunca pode ser considerada como "um ponto -de vista" entre tantos outros, porque supera todos os pontos de vista e não é, por seu turno, um ponto de vista. A totalidade para a qual se deve dirigir a filosofia não !é a totalidade acabada e estática de pontos de vista co-presentes, mas uma totalidade aberta, isto é, que tome possível à existência escolher e ser a própria verdade (Ib., p. 182, 708). O dogmatismo e o cepticismo só podem evitar-se se se referir a verdade ao âmbito da comunicação e da sua possibilidade. Dado que a existência não exclui as outras existências, e que, pelo contrário, existe juntamente com elas, o reconhecImento da verdade da minha existência deve levar-me ao reconhecimento da verdade das outras existências. Na comunicação crescem juntas não só as existências diferentes mas também as diversas verdades; e nenhuma delas é uma totalidade completa, pois estão todas -em movimento e é precisamente neste movimento que existem e comunicam entre si. A verdade alheia não é para mim uma verdade diferente e oposta à minha: é a verdade de uma outra existência que procura comigo a verdade única. Naturalmente, essa verdade única nunca se alcança: está sempre para além, num horizonte transcendente, 239 que é o horizonte no qual se movem e vivem todas as verdades. Mas está presente precisamente como este " estar para além", ao qual a própria investigação no tempo está subordinada e para a qual se dirige. O carácter absoluto e incondicionado de que a verdade me aparece revestida existe no movimento complexo da investigação enquanto é coexistência ou comunicação. Por isso Jaspers diz que o filósofo "não cai no erro da verdade total e completa". Realiza o sentido da verdade em todos os tipos da verdade. Está sempre em comunicação profunda (Ib., p. 961). Avança por -um caminho difícil sem garantias e sem apoios; chama a atenção, indica os limites, fornece a consciência, escreve e revela cifras, mas nunca pode apresentar a verdade definitiva (Ib., p. 966). Por outras palavras, o fim último da lógica filosófica não é o de dar um sistema completo da verdade, nem o de determinar as condições em que a verdade é possível e proporcionar, por conseguinte, um critério para a descobrir; consiste somente em manter aberta a possibilidade da comunicação entre as existências singulares, cada uma das quais está vinculada à sua própria verdade. A verdade é assim pressuposta pela lógica de Jaspers no seu duplo carácter de verdade singular c de verdade una. E, efectivamente, deve ser pressuposta, porque não é mais do que o autoesclarecimento da existência singular e identifica-se com o próprio desenvolvimento desta
existência que, esclarecendo-se a si mesma, aceita ou escolhe conscientemente a situação de facto a que está ligada. A verdade 240 JASPERS coincide com a escolha auto-esclarecedora do eu, assim como o eu coincide com a própria situação. § 852. JASPERS: FÉ E REVELAÇÃO Depois da obra A fé filosófica (1948), Jaspers começa a insistir cada vez mais nos aspectos positivos da sua filosofia, partindo das conclusões a que chegara em escritos anteriores e realçando agora o valor da fé como revelação e manifestação imediata do ser transcendente. O conceito fundamental de que se serviu para esta reinterpretação positiva do seu pensamento é o de horizonte conglobante, ou tudo-compreendente (Umgreifende). Este conceito é utilizado como compreendendo todos os modos possíveis de manifestação do ser do homem; e em cada um desses modos é diferenciado em dois pólos, o de sujeito e o de objecto. Se eu sou enquanto ser aqui, o -tudo compreendente apresenta-se dividido em mundo interno e mundo circundante; se eu sou como consciência, em geral, encontra-se dividido em consciência e objecto; se eu sou como espírito, divide-se na ideia em mim e na ideia objectiva proveniente das coisas; se sou como existência, encontra-se dividido em existência e transcendência. Considerado como o ser, o tudo compreendente é o mundo que nos três primeiros pólos é, respectivamente, mundo circundante, objectividade do cognoscível e ideia. No quarto pólo, o ser é a transcendência. Deste modo, a fé consiste simplesmente no 241 estar presentes nestes pólos. Ela é qualquer coisa de radicalmente diferente do conhecimento objectivo, que apenas conserva o seu valor no âmbito de um daqueles pólos. É a própria vida na medida em que retorna ao tudo compreendente e se deixa guiar e preencher por ele (Der philosophische Glaube, p. 20). É um retorno à origem misteriosa da vida, um retorno em virtude do -qual as coisas perdem o seu carácter absoluto e o ser se manifesta numa experiência inexprimível, que os místicos provaram e descreveram metaforicamente. Deste ponto de vista, tudo quanto Jaspers disse a propósito das situações-limite, da transcendência, do -insucesso e da cifra conserva a sua validade. Mas, simultaneamente, aponta na fé a via para subtrair-se ao mundo, e pôr-se em contacto com o ser que está para
além dele. A negação deixa de ser a única via da afirmação na medida em que o é apenas ao nível do pensamento raciocinante, não ao do pensamento que, estimulado na negação, retorna à origem misteriosa a !que ele próprio, assim como toda a vida do homem, pertence. Enquanto que, com Sartre, o existencialismo seguia, ainda mais decididamente, a via da mundanização do homem e refutava qualquer integração metafísica ou teológica, Jaspers, contemporaneamente, acentuava em aberta polémica os aspectos metafísicos e teológicos da sua especulação. Numa advertência (1955) prévia à terceira edição da sua Filosofia fazia notar o facto das três partes da obra corresponderem às três ideias da metafísica clássica, o mundo, a alma e Deus (Philosophie, 1956, 1, p. XXIII); e considerando 242 esta metafísica como uma espécie de cifra ou de símbolo da transcendência continuou seguidamente a insistir na semelhança, para além das diferenças, do seu ponto de vista com o da metafísica clássica. Simultaneamente, insistindo na indemonstrabilidade, na longinquidade e no carácter misterioso de Deus, evidenciou o -papel de guia da teologia tradicional como "consciencialização racional da fé". E insistiu ainda na exigência de "incondicionalidade" a que a fé corresponde. A fé é o auto-esclarecimento da existência na sua "profundidade ultraconceptual", auto-esclarecimento que é simultaneamente a decisão de identificar-se com essa profundidade. A incondicionalidade dada. através da fé é intemporal: a sua revelação histórica são as situações-limite. Mas também nestas situações, e em toda a parte, o mundo é qualquer coisa de "esvanecente". Deus e a existência-a existência autêntica que é **fésão a única palavra "eterna". Como podemos ver estes últimos desenvolvimentos da especulação de Jaspers fazem dela a defesa de uma religiosidade que, ao mesmo tempo que nega identificar-se com uma das religiões históricas, pretende ser a origem e o fundamento de tudo. A visão da história que Jaspers deu no livro A origem e o fim da história, de 1949, é também substancialmente uma teologia da história. A idade axial, que constitui o eixo da história universal, é colocada por Jaspers entre o VIII e o 11 século antes de Cristo. Esta é a idade em que nasceram as grandes religiões e filosofias do Oriente, Con243 fúcio e Lao-tsé, Upanhishad e Buda, Zaratustra e os grandes profetas de Israel, Omero na Grécia e a idade clássica da filosofia, além de Tucidides e Arquimedes. Nesta idade, o homem toma-se pela primeira vez consciente do ser em geral, de si mesmo e dos seus limites. A idade em que agora vivemos, que é a da ciência e da técnica, é uma espécie de segundo início ida história da humanidade. Talvez que, através do
desenvolvimento de organizações gigantescas, se vá ao encontro de uma nova idade axial, que é o autêntico destino do homem, mas um destino longínquo e não imaginável. Entretanto, o fim imanente ou regulador da história, aquele para que a todo o momento esta deve encaminhar-se ou no qual se deve inspirar, é a unidade da humanidade, realizável através da comunicação ilimitada das verdades historicamente diferentes, comunicações por sua vez baseadas no diálogo e na competição amigável. Todavia, a história não é para Jaspers o juízo de Deus que justifica aquilo que nela acaba por prevalecer. O naufrágio histórico de uma verdade não constitui uma prova contra essa verdade, pois pode acontecer que ela se encontre ancorada não na história mas na -eternidade; e ainda uma vez mais se retoma da história à fé, a qual constitui o único acesso à eternidade. E assim, se Heidegger se tornou, na sua segunda fase, o profeta mundano de uma nova "época do sem, Jaspers nas suas últimas obras, tornou-se o profeta religioso de Deus e da sua revelação vindoura. 21,14 § 853. EXISTENCIALISMO E DESMITIFICAÇÃO. BULTMANN Falou-se de existencialismo "religioso" ou "teológico" a propósito dos pensadores franceses relacionados com a chamada "filosofia do espírito", na qual se podem encontrar algumas das questões dominantes do existencialismo. Mas a própria situação teórica desta filosofia, que tem como tema único a consciência e como ú nico instrumento de indagação a introspecção, constituindo portanto uma zona intermédia entre espiritualismo e existencialismo, leva-a a compreender a história do âmbito desse mesmo espiritualismo (§684). A utilização de uma autêntica forma de existencialismo para uma apologética encontra-se na chamada teologia da desmitificação de Rudolf Bultmann. Nascido em 1884, Bultmann foi durante muitos anos professor de teologia na Universidade de Marburg e escreveu várias obras de crítica ao Novo Testamento. Os escritos que mais directamente se relacionam com o problema da desmitificação são os seguintes: Fé e compreensão, ensaios, 3 vols. 1933, 1952, 1960; Revelação e acontecimento salutar, 1941; O Evangelho segundo S. João, 1941, História da salvação e História, 1948; Teologia do Novo Testamento, 1948, 1953; O problema da desmitificação, 1954; História e escatologia, 1958; O problema da desmitificação, ensaio, 1961. A teologia de Barth é, como vimos, uma teoria da salvação que utiliza alguns dos conceitos da filo245 sofia, existencial de Kierkegaard apesar de não pretender ser uma análise da existência. Nestas condições, Barth retoma o tema Kierkegaardiano da inserção da eternidade na
existência temporal, sem que considere indispensável esclarecer primeiramente a natureza desta existência. Bultmann, pelo contrário, considera indispensável fazê-lo dado que, para a teologia, é necessária uma reinterpretação da mensagem cristã a fim de a libertar da forma mítica de que se reveste e de a reconduzir à realidade antropológica ou existencial que constitui o seu núcleo. Não há dúvidas, na opinião de Bultmann, de que a imagem do mundo dada pelo Novo Testamento tenha um carácter mítico, por derivar do Apocalipse e do mito gnóstico; assim como também não há dúvidas de que a profecia (kerygma) que nele existe é verdadeira independentemente da cosmologia mítica. A pregação cristã moderna não pode, assim, ao mesmo tempo que pede aos homens que tenham fé, exigir deles que reconheçam a verdade do velho mito cosmológico; e sendo isto impossível, vê-se obrigada a desmitificar (entmythologisieren) a profecia cristã (Kerygma und Mythos, 1, p. 16). Esta desmitificação só poderá consistir, deste modo, no libertar a mensagem de quaisquer representações cosmológicas ou obj,ectivantes e no reinterpretá-la em termos de realidade existencial. Ora no mito o homem é colocado perante a experiência da sua incapacidade de dominar o mundo e de compreender a vida; e é assim induzido a reconhecer que o mundo e a vida têm o seu fundamento último numa força transcendente que está para além de 246 todas as forças que o homem pode enfrentar e, seja em que medida for, dominar. O pensamento mítico objectiva esta força e representa-a como uma força mundana, interpretando, por exemplo, a transcendência como um grande afastamento no espaço; oferece assim imagens e símbolos à poesia religiosa, à liturgia e ao culto. Mas se se prescinde desta objectivação, resta-nos apenas um diagnóstico da existência humana no mundo, isto é, do homem, enquanto existindo historicamente nos seus cuidados, na angústia, no momento da decisão entre o passado e o futuro, na alternativa de se perder no mundo anónimo do presente ou de alcançar uma autenticidade pessoal abandonando a sua segurança e encaminhando-se sem reservas para o futuro (Ib., 1, p. 33). Dir-se-ia então que o existencialismo, e particularmente o de Heidegger, se limita a exprimir conceptualmente aquilo que o mito tentou comunicar de uma forma simbólica adaptada à cultura do tempo em que surgiu. Com efeito, permite considerar a existência como um modo de ser completamente diferente do das outras coisas do mundo, que se realiza no tempo através de opções ou de decisões responsáveis que lhe abrem o caminho para a futuro, e entender a própria história como sendo o domínio das possibilidades humanas e da compreensão de tais possibilidades a partir do futuro. Finalmente, permite distinguir a existência autêntica que se abre para o futuro e se assume a si própria nesta abertura, da existência inautêntica que se afasta inconscientemente do homem dirigindo-se para o seu passado. É certo que a análise existencial que 247
esclarece estas estruturas não se apercebe da relação entre a existência e Deus; no entanto, permite-nos alcançar essa relação. "Se a revelação de Deus só pode ocorrer esporadicamente e sempre no agora da existência (como acontecimento escatológico), e se a análise existencial reintegra -o homem na sua temporalidade, esta põe em relevo uma característica da existência que a fé - e somente ela - interpreta no sentido de o homem estar numa relação de dependência com Deus. Esta interpretação não é impossibilitada por uma análise formal da existência, mas sim posta em relevo por ela" (Ib., 11, p. 194). Na existência que se dirige verdadeiramente para o futuro torna-se então possível a ocorrência do acontecimento salutar (Heilsgeschehen), isto é, a inserção do processo de salvação na história. O elemento característico da fé cristã é a identificação de um acontecimento histórico -a figura de Cristo -com a intervenção reveladora de Deus que chama o homem para a fé. É -devido a esta identificação que o acontecimento histórico se torna, paradoxalmente, Uni acontecimento escatológico, isto é, um acontecimento através do qual Deus põe fim ao mundo e à sua história. Mas um acontecimento escatológico não pode pertencer ao passado, mas sim constituir-se como possibilidade para o futuro; e é assim que efectivamente ele nos surge na fé e na pregação cristã de todos os dias. Deste modo, e através da fé, o acontecimento escatológico insere-se na existência autenticamente aberta para o futuro e torna-se uma possibilidade para o homem (Ib., 1, p. 38). 248 A teologia da desmitificação de Bultmann pode considerar-se baseada em dois princípios fundamentais: 1) a historicidade própria da existência pertence ao acontecimento escatológico no sentido de que este apenas pode ser considerado como um acontecimento do passado por conter a possibilidade de um acontecimento futuro; 2) para esta sua historicidade, o acontecimento escatológico é uma possibilidade da existência autêntica enquanto existência aberta para o futuro. Qualquer destes princípios utiliza conceitos próprios do existencialismo, mas o segundo deles não pode ser atribuído a Heidegger. Para Heidegger, a existência autêntica projecta o seu próprio passado como futuro e é caracterizado pelo amor fati (§ 846). Para Bultmann, a existência inautêntica é a ligada ao passado, ao facto, ao mundo, enquanto que a existência autêntica se abre ao futuro, ao não-facto, ao não-mundo: isto é, ao fim do mundo e a Deus. E, deste ponto de vista, a existência autêntica já não é, como a inautêntica, a auto-projecção do homem no mundo, mas a auto-projecção do homem no amor e na obediência a Deus. Mas esta auto-projecção deixa de ser obra da liberdade humana. "0 homem que compreende a sua historicidade radical, isto é, que se compreende radicalmente a si mesmo como futuro, deve saber que o seu próprio si mesmo lhe pode apenas ser oferecido como uma dádiva do futuro" (Geschichte und Eschatologie, 1958, p. 179). No instante da fé, a decisão passa :do homem para Deus.
249 § 854. SARTRE: EU, EMOÇÃO, IMAGINAÇÃO O existencialismo de Heidegger e de Jaspers é um fenómeno que pertence ao período entre as duas guerras. Nem a ontologia de Heidegger nem a filosofia da fé de Jaspers, que aparecem nos escritos publicados depois da segunda guerra mundial, podem ser reconduzidas ao campo do existencialismo. Constituem posições especulativas que pressupõem ou utilizam, numa certa medida, alguns dos motivos ou das conclusões da análise existencial; mas pretendem situar-se para além desta, orientando-se para um saber absoluto de que aquela análise não pode constituir nem a origem nem o fundamento. O fenómeno típico do período posterior à segunda guerra mundial é o existencialismo de Sartre, o qual se orientou por sua vez, nos últimos tempos, para a exigência de um saber absoluto. Jean-Paul Sartre, nascido em Paris a 21 de Junho de 1905, é um polígrafo, genial que se encontra à vontade nos mais diversos géneros literários: do ensaio psicológico ao literário, do romance ;(A nálísea, 1938; A idade da razão, 1945, Sursis, 1945; A morte na alma, 1949) ao teatro (As moscas, 1943; A porta fechada, 1945-, A p... respeitosa, 1946; As mãos sujas, 1948; O diabo e o bom Deus, 1951; Nekras,<,,.gv, 1956; Os sequestrados de Altona, 1960) ao escrito político (0 antisemitismo, 1946; Os comunistas e a paz, 1952) às grandes obras de carácter abertamente filosófico. A nenhum destes escritos falta o conteúdo filosófico, tendo estes muitas vezes 250 por tarefa apresentá-lo em personagens e acontecimentos nos quais toma corpo e palavra. Mas as principais obras às quais uma exposição da sua filosofia deve referir-se, são as seguintes: A transcendência do Ego, esboço de descrição fenomenológica, 1936; A imaginação, 1936; Esboço de uma teoria das emoções, 1939; O imaginário. Psicologia fenomenológica da imaginação, 1940; O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica, 1943; O existencialismo é um humanismo, 1946; Crítica da razão dialéctica (precedida por Questões, de método), tomo 1, Teoria dos conjuntos práticos, 1960. Sartre iniciou a sua actividade de escritor com investigações sobre psicologia "fenomenológica" tendo por objecto o eu, a imaginação e as emoções. O ponto de partida, destas pesquisas era a noção de intencionalidade da consciência, mas Sartre opõe-se a Husserl. pela sua interpretação existencialista desta noção. O ensaio sobre A transcendência do eu começa pela afirmação de que "o eu não é uni habitante da consciência"; que ele "não está na consciência nem formalmente nem materialmente, mas sim fora, no mundo: é um ente do
mundo como o eu de um outro". E conclui, opondo-se à tese de Husserl sobre a apodicticidade do eu, que o meu eu não é mais evidente para a consciência do que o eu de um outro, e que o eu e o mundo são dois objectos de uma consciência absoluta e impessoal que é simplesmente "a primeira condição e a fonte absoluta da existência". Com esta posição Sartre situava-se já fora do subjectivismo, ou idealismo transcendente de Husserl. No ensaio sobre a teoria 251 das emoções a consciência é compreendida corno "ser no mundo" e a emoção, como modo de ser da consciência, é interpretada como unia modificação mágica do inundo, -isto é, uma modificação destinada a combater os perigos e os obstáculos do mundo sem instrumentos ou -utensílios, resultando daí uma modificação maciça ou total do próprio mundo. A emoção surge quando "o mundo dos utensílios desaparece de improviso e o mundo trágico comparece no seu posto"-, ela, por isso, "não é um acidente mas um modo de existência da consciência, uma das modalidades em que compreende , (no sentido heideggerjano de Verstehen) o seu ser no mundo".,Analogamente, a análise fenomenológica da imaginação conduz Sartre a reconhecer as seguintes condições que tornam possível a imaginação: "Para formar imagens a consciência deve confrontar livremente todas as realidades . particulares e esta liberdade deve poder definir-se como um ser no mundo que é simultaneamente formação e aniquilamento do mundo; a situação concreta da consciência no mundo deve, em cada instante, servir de motivação singular à construção do -irreal. Assim, o irreal deve sempre ser construído sobre a destruição- do mundo que nega, ficando bem assente, por outro lado, que o mundo não' se presta apenas a uma intuição representativa e que esta destruição necessita simplesmente de ser vivida como situação" (Eimaginaire, trad. ital., págs. 273-74). A consciência como ser no mundo, a consciência nas situações, o mundo como mundo de utensílios, são os principais conceitos que Sartre utiliza 252 nas suas análises fenomenológicas; mas são conceitos que, nesta forma, deixam de pertencer à fenomenologia para pertencerem à análise existencial, que é precisamente aquela que se relaciona com o ser no mundo. Sartre, depois das suas primeiras obras, deixou de ser um fenomenólogo para ser um existencialista. § 855. SARTRE: O "EM SI" E O "POR SI" A ontologia da consciência entendida como
ser
no mundo é o fim nítido da principal obra de Sartre O ser e o nada (1943). A consciência é em primeiro lugar consciência de qualquer coisa e de qualquer coisa que não é consciência. Sartre chama a este qualquer coisa ser em si. O ser em si só pode descrever-se
analiticamente como "o ser que é aquilo que é", expressão que torna clara a sua opacidade, o seu carácter maciço e estático devido ao qual não é nem possível nem necessário, é puro positivismo, é simplesmente (L'être et le néant, p. 33). Relativamente ao ser em si a consciência é o ser por si, isto é, presente a si mesmo (Ib., p. 119). A presença a si mesmo implica uma cisão, uma separação interior, no ser da consciência. Uma crença, por exemplo, é como tal a consciência da crença; mas, para a atingir como crença, ocorre-nos sempre fixá-la enquanto tal, separá-la da consciência a que se apresenta. Separá-la através de quê? De nada. Nada existe que possa separar o sujeito de si mesmo. A dis253 tância ideal, o lapso de tempo, a diferença psicológica implicam certamente determinados elementos positivos; mas a sua função é sempre negativa. "A fissura interior à consciência não é nada fora daquilo que nega e só pode ter um ser quando não existe. Este negativo, que é um na-da enquanto ser mas que constitui um poder anulante, é o nada. Em nenhum lugar o poderemos encontrar em toda a sua pureza; é sempre necessário que lhe atribuamos uni ser enquanto nada. Mas o nada que surge no coração da consciência não é, mas sim foi" (Ib., p. 120). Condicionando a estrutura da consciência, o nada condiciona a totalidade do ser, que o é apenas para a consciência e na consciência. Sartre realça o significado negativo dos, termos aparentemente positivos com os quais Heidegger descreve ou caracteriza a existência que o Dasein esteja "fora de si, rio mundo" que seja "um ser da distância", que seja "cuidado", que seja "a sua própria possibilidade", etc., equivale a dizer, segundo Sartre, que ele não é em si, que não está para si mesmo numa proximidade imediata e que ultrapassa o mundo na medida em que se coloca a si mesmo como não existente em si e como não existente no mundo (Ib., p. 34). Estas características referem-se todas ao ser por si, isto é, ao ser da consciência. Daqui deriva a tese fundamental de Sartre: "o ser devido ao qual o nada surge no mundo deve ser o seu próprio nada" (Ib., p. 59). A consciência é o seu próprio nada na medida em que se determina perpetuamente a não ser o em si. Ela cria-se a si mesma enquanto nega um seu determinado ser -ou uma certa ma254 neira de ser. Em primeiro lugar, nega o ser em si; e em segundo lugar nega ou anula o seu por si e constitui-se precisamente neste anulamento e através da presença nela daquilo que anula, a título de coisa anulada.,, O se enquanto falha do ser em si constitui o sentido da realidade huniana (L'être et le néant, p. 132). O facto de a realidade humana ser anulamento, falta do ser, é suficientemente demonstrado pelo desejo: este só pode ser explicado precisamente como falta do ser que deseja, isto é, como
uma necessidade de se completar. Ao ser referida à consciência, a realidade objectiva (o ser em si) é afectada por aquela falta e anula-se a si mesma. Por outro lado, o ser em si está sempre completo, sempre cheio. A um círculo incompleto, a um quarto de lua, não falia verdadeiramente nada: são aquilo que são. Só a consciência lhes atribui uma falta na medida em que espera ou pretende o seu completamento, aquilo que não é. Todos os aspectos da realidade humana são interpretados por Sartre de forma análoga. O facto de a realidade humana ser constituída por possíveis significa apenas que é constituída pela falta de qualquer coisa que a completaria. "0 possível é aquilo a que falta o por si para que constitua um si" (L'être et le néant, p. 147), isto é, é aquilo que falta ao sujeito para que seja um objecto e que só existe, portanto, a título de falta ou de deficiência. O mesmo acontece com o valor, que o é enquanto não é; isto porque, mesmo quando é atribuído a um objecto ou intuído em certos actos, está sempre para além deles e constitui o limite 255 para que eles tendem. Como valor, o valor nunca e, visto estar sempre para além daquilo que é; o seu ser consiste em ser o fundamento do seu próprio nada, isto é, o fundamento daqueles actos ou situações que tendem para ele mas em que ele, como valor, não é (Ib., págs. 136-38). O conhecimento, no qual o objecto (o em si) se apresenta à consciência (por si), é do mesmo modo uma relação de anulamento: o objecto só se pode apresentar à consciência como sendo aquilo que não é consciência (Ib., p. 224). Ainda de forma análoga, a outra existência só o é na medida em que não é a minha: esta negação é "a estrutura constitutiva do ser outro" (Ib., p. 285). Neste caso, a negação é recíproca. É não apenas necessário que eu negue o outro em relação a mim mesmo, a fim de que o outro exista, mas é ainda necessário que o outro me negue relativamente a ele próprio, e isto simultaneamente à minha negação (Ib., p. 362). Mas com esta dupla negação a existência dos outros torna-se coisa, ao mesmo título de todas as outras coisas do mundo: nega-se e anula-se corno existência. O aparecimento da existência de outrem torna-se coisa entre as coisas do mundo: nega-se e anula-se como existência. Deste modo, o aparecimento da existência de outrem completa, por assim dizer, o processo da anulação que é a própria estrutura da consciência. A consciência não é apenas o ser que surge como anulação do em si que ele é e como negação interna do em si que ela não é; é também a petrificação do seu próprio em si sob o 256 olhar do outro. É aqui que se revela o significado profundo do mito de Medusa (Ib., p.
502). A filosofia de Sartre acaba por situar-se no mesmo horizonte da de Heidegger: não tanto porque o processo de que se serve para pôr a claro o nada da existência seja análogo ao seguido por Heidegger na sua obra O que é a metafísica? mas também, e sobretudo, porque o nada da existência, para ele como para Heidegger, é aquilo a que nos confrontos da realidade ou de facto Sartre chama o em si. A nulidade da consciência (que para Sartre se identifica com a existência) consiste no facto de ela não ser o seu objecto e não ser um objecto, e de introduzir no próprio objecto a imperfeição ou a deficiência que lhe é característica. As possibilidades que constituem a vida vivida da consciência são nada porque não são realidade, não são factos nem objectos; e o mesmo para os valores. Mas a analogia entre Heidegger e Sartre detém-se aqui. Perante a realidade de facto -Sugerem duas atitudes simetricamente opostas. Para Heidegger, a existência como transcendência projectora é rejeitada na própria realidade de facto que ela transcende e é aí mantida fixa e impotente. Para Sartre, a existência destrói e anula a realidade de facto e afirma-se sobro ela como poder absoluto. A filosofia de Heidegger é a filosofia de uma necessidade absoluta que se torna liberdade apenas como aceitação consciente da necessidade. A filosofia de Sartre é uma filosofia da liberdade absoluta que pretende dissolver e anular toda a necessidade. 257 § 856. SARTRE: A LIBERDADE COMO DESTINO A liberdade, segundo Sartre, é a possibilidade permanente da rotura ou anulação do inundo que é a própria estrutura da existência. "Eu estou condenado, diz Sartre (L'être et le néant, p. 515), a existir para sempre para além da minha essência, para além ;dos móbiles e dos motivos do meu acto: eu estou condenado a ser livre. Isto significa que não se podem encontrar para a minha liberdade outros limites além da própria liberdade; ou, se se preferir, que não somos livres de deixar de ser livres". A liberdade não é o arbítrio ou o capricho momentâneo do indivíduo: radica-se na mais íntima estrutura da existência, é a própria existência. "Um existente que, como consciência, está necessariamente separado de todos os outros, já que estes se encontram em relação com ele apenas na medida em que existem para ele, um existente que decide do seu passado, sob forma de tradição, à luz do seu futuro, em vez de deixá-lo pura e simplesmente determinar o seu presente, um existente que perspectiva algo distinto de si, isto é, um fim que não tem existência e que ele projecta no outro lado do mundo, eis
aquilo a que chamamos um existente livre" (Ib., P. 530). É evidente que a liberdade não se refere tanto aos actos e às volições particulares como ao projecto fundamental em que se encontram compreendidos e que constitui a possibilidade última da realidade humana, a sua escolha originária. O projecto fundamental deixa som dúvida uma certa 258 margem de contingência às volições e aos actos particulares, mas a liberdade originária é a inerente à escolha do próprio projecto. E é uma liberdade incondicionada. A modificação do projecto inicial é em cada momento possível. "A angústia que, quando revelada, manifesta à nossa consciência a nossa liberdade, testemunha a modificabilidade perpétua do nosso projecto inicial" (Ib., p. 542). Nós estamos perpetuamente ameaçados pela anulação da nossa escolha actual, perpetuamente ameaçados de escolhermos ser e, portanto, tornarmo-nos diferentes do que ;somos. "A nossa opção é frágil pelo simples facto de ser absoluta: assentando sobre ela a nossa liberdade colocamos simultaneamente a sua perpétua possibilidade de tornar-se um aquém ultrapassado pelo além que eu serei" (L'être et le néant, p. 543). Certamente, a liberdade do projecto inicial não é a possibilidade de fugir ao mundo e anular o próprio mundo. Se a liberdade significa fugir ao dado ou ao facto, ela é o facto do fugir ao facto. A liberdade permanece no limite dos factos, isto é, do mundo. Mas aqueles são indeterminados: a liberdade concretIza-os com a sua escolha. Por isso o homem é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tudo o que acontece no mundo reporta-se à liberdade e à responsabilidade da escolha originária; por isso, nada daquilo que acontece no mundo pode ser dito inumano. "A situação mais atroz da guerra, a pior tortura, não criam de facto um estado de coisas inumano. Não **Kste aí uma situação inumana: somente pelo medo, pela fuga ou pela recorrência a comportamentos 259 mágicos, eu decidirei sobre aquilo que é inumano; mas esta decisão é humana e dela terei inteira responsabilidade" (Ib., p. 639). Sou eu que decido do coeficiente de adversidade das coisas e até da sua imprevisibilidade, decidindo de mim próprio. Não existem casos acidentais: um acontecimento social que se me -depara subitamente e que me arrasta não é exterior a mim; se sou mobilizado para uma ,guerra, esta será a minha guerra, a minha própria imagem, e eu mereço-a: "Mereço-a em primeiro lugar porque poderia subtrair-me a ela suicidando-me ou desertando; devemos ter sempre presentes estas possibilidades últimas quando temos de enfrentar uma situação. Se não tive nenhuma dessas duas atitudes, então eu terei optado pela guerra: talvez que o tenha feito apenas por fraqueza perante a opinião pública, dado que prefiro certos valores à recusa de entrar na guerra. Mas de qualquer modo, trata-se sempre de uma opção" (Ib., págs. 639-40). Os actos, decisões e escolhas particulares repõem sistematIcamente em questão a escolha originária, o projecto fundamental, que por sua vez determina dentro de certos limites as opções,
vontades e actos particulares. Sartre pensa que a estrutura ontológica do projecto fundamental deva ser atingida através de uma psicanálise existencial, diferente da psicanálise de Freud na medida em que a sua justificação última consiste em reconhecer a existência não de uma forca instintiva que actua mecanicamente, mas sim de uma escolha livre. Para a psicanálise existencial, o projecto do ser, a possibilidade, o valor, 260 são termos equivalentes que exprimem todo o facto fundamental de o homem ser desejo de ser. Mas desejo de qual ser? Evidentemente do ser em si já que o por si (o ser da consciência) é um puro nada (Ib., p. 653). Mas como desejo do ser em si (isto é, do ser objectivo, de facto) a consciência tende para o ideal de uma consciência que seja, pela simples consciência de si mesma, o fundamento do seu próprio ser em si. Ora este ideal é aquilo a que se pode chamar Deus. "Pode-se dizer então que aquilo que torna mais concebível o projecto fundamental da realidade humana é o facto de que o homem é o ser que projecta ser Deus. Quaisquer que sejam os mitos e os rituais da religião considerada, Deus é em primeiro lugar 'sensível ao coração' do homem como sendo aquilo que o anuncia e o define no seu projecto último e fundamental" (Ib., p. 653). Ser homem significa tender para Deus; o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus. No entanto, o homem é um Deus falhado. Tudo parece indicar que o em si do mundo e o por si da consciência se apresentam num estado de desintegração relativamente a uma síntese ideal que nunca teve lugar mas que é sempre indicada e -sempre impossível. O seu falhanço perpétuo explica simultaneamente a indissolubilidade do em si e do por si e a sua relativa independência. A passagem do por si para o em si é de facto impossível; no entanto, é uma passagem para que tende incessantemente a acção humana. "0 problema da acção pressupõe a dilucidação da eficácia transcendente da consciência e tenta alcançar a sua verdadeira relação com o ser" (Ib., 261 p. 720). A ética apresenta-se assim como o complemento necessário da ontologia. Sartre limita-se a dizer que esta moral deverá prescindir do "espírito de seriedade", isto é, da tendência para considerar as coisas já providas dos respectivos valores e o valor como um dado transcendente, independente da subjectividade humana. Realizar o princípio de que só o homem é "o ser para quem os valores existem" não é possível, segundo Sartre, a não ser que se tenha em conta o facto de "todas as actividades humanas serem equivalentes, dado que todas tendem a sacrificar o homem para fazer surgir a sua causa, e que todas estão votadas, em princípio, ao insucesso. É a mesma coisa, em princípio, o embebedar-se sozinho ou o conduzir os povos. Se uma destas actividades é superior à outra, não o será devido à sua tarefa específica, mas sim
devido à consciência que possui da sua tarefa ideal; e neste caso a imobilidade do bêbado solitário é superior à vã agitação do condutor de povos" (Ib., págs. 721-22). § 857. SARTRE: A RAZÃO DIALÉCTICA Em O existencialismo é um humanismo (1946), Sartre apresentava estas teses de uma forma popular, atenuando ou não referindo os seus caracteres negativos. O existencialismo é aí definido como a doutrina para a qual "a existência precede a essência, no sentido de que o homem, em primeiro lugar, existe, 262 isto é, encontra-se no mundo, e só depois se define naquilo que é e quer ser. Deste ponto de vista, o homem não terá portanto uma "natureza" determinante: ele é aquele em que torna a partir do seu projecto fundamental e é plenamente responsável pelo seu ser. É ainda responsável por todos os outros homens na medida em que a sua opção é ainda a opção de todos os outros e dos valores que devem penetrar no mundo e tornar-se realidade. Deste ponto de vista, a angústia é apenas "o sentimento da nossa completa e profunda responsabilidade", não conduzindo portanto à inércia mas sim à acção. Quanto ao "desespero", significa apenas "ter em conta aquilo que depende da nossa vontade ou o conjunto de probabilidades que tornam possível a nossa acção"; como tal, também não conduz à inércia apesar de nos dissuadir de crer na realização infalível daquilo em que estamos empenhados. Em conclusão, o existencialismo é "uma doutrina optimista" porque afirma que o destino do homem está nele próprio e que o homem só pode confiar na sua acção e só pode viver através dela. Como vemos, já em 1946 Sartre insistia rios aspectos positivos do existencialismo, pondo entre parêntesis os caracteres negativos ou paralisantes que tinham sido expressos em O ser e o nada. De acordo com este pequeno escrito, que contribuiu grandemente para a difusão das ideias de Sartre, o existencialismo é definido como um pessimismo teórico e um optimismo na acção. O homem pode fazer-se, isto é, pode fazer de si aquilo que quiser: não existem essências, valores- ou normas que predisponham ou guiem o seu 263 fazer-se, não existindo também para ele nenhum limite, um não-possível que delimite aprioristicamente as suas possibilidades. Essa obra tentava essencialmente constituir o existencialismo como uma teoria da acção e da história. Esta teoria foi dada por Sartre alguns anos mais tarde, na Crítica da razão dialéctica (1960). Mas se bem que conserve o esquema geral do existencialismo e alguns dos seus conceitos, ela é apresentada coimo uma reinterpretação do marxismo, que Sartre entretanto defendia e ilustrava nos seus ensaios políticos (cfr. especialmente os artigos Les comunistes et Ia paix, in "Les temps modernes", 1952-54). E com efeito, a fim de que o existencialismo sartriano se tornasse capaz de constituir uma teoria da acção e da história, era necessária uma revisão radical das suas posições fundamentais. As teses deste existencialismo, expostas por O ser e o nada, podem ser recapituladas deste modo: 1) A filosofia é uma psicanálise existencial por ser análise do
projecto fundamental em que consiste a existência. 2) O projecto fundamental é fruto de uma escolha absolutamente livre, isto é, não vinculada ou limitada por qualquer condição ideal ou de facto. Esta liberdade é o destino do homem. 3) O projecto fundamental é um projecto totalitário: não só define o ser de quem o escolhe mas também o ser dos outros o da totalidade do mundo; é por isso que atribui, a quem o escolhe, a responsabilidade de tudo o que é ou acontece no mundo. 4) O projecto fundamental pode ser alterado ou destruído em qualquer momento e, devido ao seu carácter totalitário, está ine264 SARTRE vitàvelmente destinado ao insucesso, dado que o ,,ornem não é Deus, isto é, não dispõe de um poder finito para o conseguir realizar. 5) Todos os projectos fundamentais são equivalentes porque não existe nenhuma condição de facto ou de valor que possa de qualquer modo orientar a escolha ou **serv]]' para a julgar. Uma filosofia que defenda estes princípios básicos é óbviamente uma filosofia contemplativa: nada dá ao homem para fazer, tornando-o apenas consciente (como faz qualquer tipo de psicanálise) das suas próprias estruturas constitutivas. Mas que o homem seja consciente ou não de tais estruturas, é coisa que não influi no seu destino, que continua a ser a liberdade absoluta de escolha, isto é, a equivalência fundamental dos projectos do inundo em que a opção se concretiza. Na Crítica da razão dialéctica (1960), Sartre empreende uma revisão destas teses para as adaptar às exigências de unia teoria da acção. Em primeiro lugar modifica completamente a noção de projecto. Em O ser e o nada, o projecto não tem, como se disse, qualquer limitação: não parte de dados mas origina-os na medida em que é a manifestação de uma liberdade incondicionada. Na Crítica da razão dialéctica, o projecto é a ultrapassagem de uma situação dada, que define os limites ou condições de possibilidade desse mesmo projecto. Sartre afirma: "Dizer de um homem aquilo que ele é significa dizer aquilo que ele pode, e reciprocamente: as condições materiais da sua existência circunscrevem o campo das suas possibilidades. Assim, o campo dos possíveis é o fim em vista do qual o agente ultrapassa 265 a sua situação objectiva. E este campo, por sua vez, depende estritamente da realidade social e histórica" (Critique de Ia raison d;alectique, p. 64). Neste sentido, o projecto é "a unidade dialéctica do subjectivo e do objectivo": tal projecto, "corno ultrapassagem subjectiva de uma objectividade para outra, obrigado às condições objectivas do ambiente, por um lado, e às estruturas objectivas do campo dos possíveis por outro, representa em si mesmo a unidade móvel da subjectividade e da objectividade, isto é, das determinações fundamentais da actividade" (Ib., p. 64). Com esta noção de projecto expressa em termos de condicionamento, a liberdade absoluta do projecto fundamental de que Sartre falava em O ser e o nada é radicalmente eliminada. Tomam-se então possíveis outras determinações do projecto, a saber: 1) O projecto tem um dado que é constituído pelas condições materiais da nossa existência e da nossa própria infância (Ib., p. 68). 2) O projecto deve necessariamente atravessar "o campo das
possibilidades instrumentais" porque os caracteres particulares dos instrumentos condicionam a objectivação, isto é, tanto a situação de que se parte como aquela para que se tende (Ib., p. 74). 3) O projecto define o ser do homem como opção ou liberdade, mas é opção ou liberdade apenas enquanto a obra, o acto ou a atitude em que consiste não se reduzem aos factores que os condicionam e não possam ser reduzidos a tais factores através de uma explicação puramente mecânica (Critique, p. 95). Concebido deste modo, o projecto pouco se parece com aquilo que Sartre definia, com o mesmo nome, em O ser e o nada, apro266 ximando-se bastante mais da antropologia de Marx exposta nas suas obras de juventude (§ 607). Todavia, e diferentemente desta antropologia, o projecto de Sartre continua a ser (tal como o era em O sei, e o nada) privativo do homem singular: esgota-se no movimento subjectividadeobjectividade que constitui a existência singular. Diz ainda respeito aos outros e ao mundo, isto é, abarca os outros e o mundo no seu próprio domínio, mas enquanto projecto é apenas a escolha do indivíduo singular e constitui a sua existência. Para corrigir este solipsismo do projecto, Sartre recorre à noção de razão dialéctica. Sartre declara a propósito que aceita sem reservas o materialismo histórico de Marx. A razão dialéctica deve ser concebida, acrescenta, no interior da experiência directa e quotidiana e como sendo dotada de uma universalidade e necessidade que estão contidas em qualquer experiência e que simultaneamente a ultrapassam. No interior desta experiência, o homem, por um lado, sujeita-se à dialéctica como uma força inimiga e, por outro, aplica-a; e se a razão dialéctica deve ser a razão da história, esta contradição deve ser dialecticamente vivida e é necessário dizer que o homem se sujeita à dialéctica enquanto a aplica e aplica-a enquanto se sujeita a ela (Ib., págs. 130-31). Mas, situada no interior da experiência vivida, a dialéctica é uma "ló-;ca viva da acção" e não pode ser reduzida às leis formuladas por Engels. O carácter fundamental da dialéctica, neste sentido, é o de ser uma totalização sempre em vias de se efectuar. Já não é uma totalidade 267 como a de uma sinfonia ou a de um quadro: é antes o resíduo prático-inerte da totalização, pelo que a análise da razão dialéctica, que é portanto a transparência que tal razão tem para si mesma, é a análise das formas, dos modos, das vitórias parciais e dos objectivos que a totalização concretiza. "A dialéctica, diz Sartre, é actividade totalizadora; não tem nenhuma lei para além das regras produzidas pela totalização em curso, e estas -dizem evidentemente respeito às relações entre a unificação e o unificado, isto é, entre os modos da presença eficaz do devir totalizante nas partes totalizadas" (II)., págs. 139-40). As partes totalizadas são os homens, os indivíduos, pelo que o processo da totalização dialéctica se pode definir como a necessidade da totalização enquanto é atingida e vivida pelos indivíduos na sua própria espontaneidade prática. "Se a minha vida, ao desenvolver-se, se torna história, ela deve apresentar-se, no fundo do seu
desenvolvimento livre, como necessitando do processo histórico para reencontrar-se, ainda mais profundamente, como a liberdade desta necessidade e como a necessidade da liberdade" (Ih., p. 157). Em primeiro lugar, e segundo Sartre, a necessidade toma corpo naquilo a que ele chama o domínio práticoinerte, no qual o homem sofre a acção das coisas que produz. "A necessidade, diz Sartre, não se manifesta nem na acção do organismo isolado nem na sucessão dos factos físicoquímicos: o reino da necessidade é o domínio - real, mas ainda abstracto da história no qual a materialidade inorgânica encerra a multiplicidade humana e transforma os produtores no 268 seu produto. A necessidade, como limitação no seio da liberdade, como evidência deslumbrante e momento da conversão da praxis em actividade prático-inerte torna-se, depois de o homem se encontrar na sociedade serial, a própria estrutura de todos os processos de serialidade, isto é, a modalidade da sua ausência na presença e da sua evidência vazia" (Ib., págs. 375-76). A necessidade deste campo prático-inerte não é dialéctica mas "anti-dialéctica" por ser constituída pelas "forças monstruosas do inorgânico e da exterioridade" (Ib., p. 359). Relativamente a ela, o grupo é uma "ressurreição brusca da liberdade" (Ib., p. 425). "Não que esta, acrescenta Sartre, tenha deixado de ser a própria condição do acto e a máscara que dissimula a alienação; mas, no campo prático-inerte, ela tornou-se o modo como o homem alienado deve viver perpetuamente no seu cárcere e, finalmente, a única maneira que ele tem de descobrir a necessidade das suas alienações e das suas impotências" (Ib., p. 425). Sartre insere neste ponto uma análise do grupo como totalidade integrada no qual cada um vê no outro o mesmo que ele próprio e na liberdade de outrem a sua própria liberdade. A praxis individual constitui-se no grupo, livremente, em praxis comum, e isto não a partir de um contrato social mas sim do trabalho e da luta (Ib., p. 443). "0 acto criador do grupo é o juramento pelo qual nós somos os nossos próprios filhos, a nossa invenção comum" (Ib., p. 453). Por outro lado, os comportamentos internos dos indivíduos do grupo (a fraternIdade, o amor, a amizade, assim como a cólera ou o ódio de 269 morte) extraiem o seu terrível poder do terror que o grupo inventa para fazer face à intensidade das ameaças externas e que é ao mesmo tempo utilizado no interior do grupo para a sua recomposição (Ib., p. 455). A soberania no grupo é a relação de reciprocidade ou de consoberania entre os indivíduos, cada um dos quais é soberano. Ela não deriva de uma escolha, sendo antes o resultado de um processo no qual a soberania do chefe se constitui
como quase soberania, isto é, soberania limitada pela reciprocidade e baseada na própria interioridade daqueles sobre que se exerce (Ib., p. 589).A alienação à soberania é uma condição para evitar uma alienação às coisas. "Para evitar a recaída no campo práticoinerte, cada um se torna objecto passivo ou actualização inessencial para a liberdade do outro. Através da soberania, o grupo aliena-se a um só homem para evitar alienar-se ao conjunto material V e humano. Cada um experimenta, na realidade, a sua alienação como vida (como vida de um outro através da sua própria vida) em vez de a experimentar como morte (como reificação de todas as suas relações)" (Critique, p. 603). Deste ponto de vista, a soberania popular que seria encarnada pelo soberano é uma mistificação, porque não existe uma "soberania prolixa" (Ib., p. 609); e "a única manifestação possível de uma actividade nas massas é o seu reagrupamento revolucionário contra a inércia das instituições e contra a soberania que se constrói sobre a sua importância" (Ib., p. 624, nota). A formação do grupo é, noutros termos, considerada por Sartre da mesma forma como Rousseau considerou 270 a formação do estado: como alienação total do indivíduo, através da qual o próprio indivíduo adquire a sua liberdade. "0 grupo, afirma Sartre, define-se e produz-se não apenas como instrumento mas como modo de existência; constitui-se por si mesmo-na rigorosa determinação da sua tarefa transcendental como livre ambiente das livres instituições humanas. A partir do juramento, produz o homem como livre indivíduo comum, conferindo ao outro o seu renascimento; assim, o grupo é simultaneamente o meio mais eficaz para governar a materialidade circundante no âmbito da raridade e o fim absoluto como simples liberdade que liberta os homens da alteridade" (Ib., p. 639). Mas esta liberdade é agora "a liberdade como necessidade" (Ib., p. 638). As análises que acabámos de expor são consideradas por Sartre como preparatórias para a compreensão da história como totalização de todas as totalizações ou como "totalização inteligível e sem apelo" (Ib., p. 754). Mas então torna-se evidente que o sentido ou "a verdade única" da história, para que aponta, é a necessidade absoluta da totalidade histórica e a coincidência de tal necessidade com a liberdade interior dos indivíduos humanos. É por isso que Sartre dirige a tais indivíduos aquela prece de Cleanto (§ 95) que eles tantas vezes foram convIdados a recitar: "Conduz-me, ó JúpIter, -e tu, Destino, para onde quer que me haveis destinado e servir-vos-ei sem hesitação; já que, mesmo que o não quisesse, vos deveria seguir igualmente como um tolo". ,71 § 858. MERLEAU-PONTY
O existencialismo da obra de Maurice Merleau-Ponty (1908-61), que foi professor no Colégio de França e uma das maiores personalidades do pós-guerra filosófico, é dirigido para um resultado positivo, isto é, que pretende evitar a negação da possibilidade da existência e da sua liberdade finita. Merleau-Ponty escreveu duas obras fundamentais: A estrutura do comportamento (1942) e A fenomenologia da percepção (1945), depois das quais publicou as seguintes recolhas de ensaios filosóficos, literários e políticos: Humanismo e terror, 1947; Senso e não senso, 1948; As aventuras da dialéctica, 1955; Signos, 1960. O tema fundamental para que se dirigiram as investigações de Merleau-Ponty é o da relação entre o homem -e o mundo, entendido como relação entre consciência e natureza. Na primeira das suas obras Merleau-Ponty, através da análise dos resultados que as investigações psicológicas experimentais têm conseguido obter nos últimos decénios -e que permitem se,-u, eliminar a interpretação causal da relação entre alma e corpo, consegue ver nesta relação uma dualidade dialéctica de comportamentos. Uzer que a alma actua sobre o corpo significa supor que o corpo seja uma totalidade fechada e, por isso, invocar uma força externa responsável pelo significado espiritual de a],-,uns dos seus comportamentos. Dizer que o corpo actua sobre a alma significa imaginar a alma como sendo uma força constantemente presente no corpo, Podendo ser contrariada pela força mais potente do 272 corpo. Na realidade, estas expressões indicam apenas certos níveis de comportamento. No primeiro caso, as funções corpóreas estão integradas num nível superior ao da vida: o corpo torna-se verdadeiramente corpo humano. No segundo caso, o comportamento -desorganiza-se dando origem a estruturas menos integradas. A pretendida acção recíproca entre as duas supostas substâncias revela-se, na realidade, como a alternativa entre dois níveis de comportamento, isto é, entre dois tipos de comportamento dotados de significados diferentes. A estrutura do comportamento completa-se exactamente com a distinção entre estrutura e significado. A estrutura de um comportamento é visível tanto do exterior como do interior, pelo que através dela a outra pessoa me é tão acessível como o meu próprio eu. Mas como posso enganar-me sobre o outro, se não conseguir decifrar o sentido do seu comportamento, posso também enganar-me sobre mim próprio e captar apenas o significado aparente do meu com. portamento (La structure du comportement, trad. ital., p. 354). A Fenomenologia da percepção inspira-se mais directamente na fenomenologia de Husserl e corrige-a no sentido do existencialismo. A consciência não é, para Merleau-Ponty, o olhar lançado sobre o mundo por um espectador desinteressado, mas é sempre a consciência de um eu "consagrado ao mundo" (Phénoménologie de la perception, p. V). O ponto de partida da filosofia fenomenológica é porém o cogito, mas sob a condição de entender este no sentido do que "eu pertenço a mim mesmo enquanto pertenço 273
ao mundo" (Ib., P. 466). "A verdadeira reflexão, diz Merleau-Ponty, dá-me a mim mesmo não como subjectividade ociosa e inacessível mas identificado com a minha presença no mundo e perante os outros, tal como eu agora a realizo: eu sou tudo aquilo que vejo, sou um campo intersubjectivo, não independentemente do meu corpo e da minha situação histórica mas, pelo contrário, tendo em conta este corpo, esta situação e tudo o resto através deles" (Phénom., p. 515). Deste ponto de vista, o problema da percepção é o problema da relação entre a consciência e o mundo; por isso, Merleau-Ponty examina, partindo dele, todos os problemas clássicos da filosofia; a sensação, o conhecimento das coisas, o corpo, a comunicação com os outros, o espaço, o tempo, a liberdade. O conceito central é, todavia, o de corpo, dado que este constitui a inscrição da consciência no mundo. "0 corpo é aquilo que nos permite alcançar o mundo, diz Merleau-Ponty; por vezes, ele limita-se aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, coloca à nossa volta o mundo biológico; outras vezes, utilizando estes primeiros gestos e passando do seu sentido próprio para um sentido figurado, manifesta através deles um núcleo de significado novo: é o caso dos hábitos motores tais como a dança. Outras ainda, o significado procurado não se pode alcançar através dos meios naturais do corpo, e é então necessário que ele construa um instrumento e crie à sua volta um mundo cultural" (Ib., p. 171). Este instrumento é a linguagem que, se é um instrumento enquanto sistema particular de vocabulário e de sin274 taxe, enquanto palavra em geral é uma revelação do ser, ou melhor, da nossa ligação com o ser (Ib., p. 229). Deste ponto de vista, a percepção já não é um facto isolado ou isolável, antes reenviando para o mundo em que se insere o corpo que é a sua condição. "Toda a percepção de uma coisa, de uma forma ou de uma grandeza como sendo real, toda a constância perceptiva, reenvia às posições de um mundo e de um sistema da experiência ao qual o meu corpo e os fenómenos estão rigorosamente ligados" (Ib., p. 350). Quer o mundo quer as coisas são, por isso, abertos: reenviam sempre para além das suas manifestações determinadas e prometem sempre "qualquer coisa para vem (Ib., p. 384). Este significado incompleto das coisas que se apresentam **nGmundo e do próprio mundo é chamado por Merleau-Ponty de ambiguidade e considerado, não já como uma imperfeição da consciência ou da existência, mas como a sua definição. Portanto, o mundo não pode ser concebido como uma soma de coisas nem o tempo como uma soma de instantes, segundo o modelo cartesiano: as coisas e os instantes podem articular-se juntamente e formar o mundo apenas por intermédio daquele ser ambíguo que se chama subjectividade, e isto porque só se podem apresentar juntos de um certo ponto de vista e segundo uma dada intenção (Ib., págs. 383-84). Na medida em que a consciência é sempre abertura ao mundo, não existe para ela a alternativa solipsista. "0 fenómeno central que constitui simultaneamente a base da minha subjectividade e da
275 minha transcendência para os outros consiste no facto de eu ser dado a mim mesmo. Eu sou dado significa que me encontro já situado e impregnado num mundo físico e social, eu sou dado a mim mesmo significa que esta situação já não me é ocultada, já não me surge como -uma necessidade estranha, e que eu já não estou efectivamente encerrado nela tal como um objecto numa caixa" (Ib., p. 413). Em polémica com Husserl (do qual conhecera a Krisis e outros escritos antes de serem publicados), Merleau-Ponty aceita o facto de o "transcendental" não ser a subjectividade mas sim a ambiguidade originária da transcendência. "A partir do mundo natural e do mundo social descobrimos o verdadeiro transcendental, que não é o conjunto das operações constitutivas pelas quais o mundo transparente, sem sombra e sem opacidade, surgiria a um espectador imparcial, mas sim o caminho ambíguo em que ocorre o Ursprung das transcendências que, por uma contradição fundamental, me põe em comunicação com ele e, nesta base, torna possível o conhecimento" (Ib., págs. 418-19). Contrariamente à liberdade absoluta de Sartre, Merleau-Ponty defende a liberdade finita ou condicionada do homem. As considerações de probabilidade não são puras ficções, antes pertencendo necessariamente a um ser que está situado no mundo e que sente a ambiguidade dos acontecimentos desse mesmo mundo. A alternativa racionalista segundo a qual o acto, do homem é uma consequência do eu e é livre, ou então é uma consequência do mundo e não é livre, é considerada como sem sentido a 276 partir das relações do homem com o mundo e com o seu passado. "A nossa liberdade não destrói a nossa situação, mas engrena-se nela: a nossa situação, enquanto a vive-mos, é aberta, o que implica que ela faça apelo a modos de resolução privilegiados e que seja em si mesma impotente para arranjar um" (Ib., p. 505). A partir da situação em que me encontro, não posso inferir o que serei ou o que farei; a consciência não é por isso o mero reflexo da situação social, segundo o esquema explicativo do materialismo histórico. A economia ou a sociedade, considerados como sistemas de forças impessoais, não me qualificam nem como proletário nem como burguês; mas a sociedade ou a economia, tal como se relacionam comigo, tal como as vivo, obrigam-me a escolher -ser proletário ou burguês (Ib., págs. 506 e segs.). Não se pode retirar à escolha histórica o elemento de racionalidade, mas também não se lhe pode retirar a audácia ou o risco de insucesso. É reconhecida igualmente na história a contingência, sem a -qual não haveria culpados em politica, e a racionalidade, sem a qual só haveria doidos (Humanisme et terreur, p. 44). A história é dominada por uma dialéctica cujo decurso não é inteiramente previsível e que pode transformar as intenções do homem no seu contrário; mas, por outro lado, em certos momentos, ela é indecisa nos seus factos e a nossa intervenção ou abstenção pode conduzi-la numa ou noutra direcção. Isto não significa que possamos fazer uma -qualquer coisa, porque existem graus de verosimilhança que se não podem descurar; mas significa que, quaisquer que sejam os 277 nossos actos, sujeitar-nos-emos a uni risco (Hum. el ter., p. 70). "0 mundo humano, afirma Merleau-Ponty, é um sistema aberto e incompleto, e é a própria contingência fundamental que o ameaça de discordância, que o subtrai à fatalidade da desordem e que nos impede de
deixar de confiar nele; isto com a única condição de nos recordarmos de que os seus instrumentos são os homens e de que se mantêm e multiplicam as relações de, homem para homem (Ib., p. 206). Foi a partir desta base que Merleau-Ponty criticou a dialéctica marxista, a qual de uma forma ou de outra prevê o fim da história. Em geral, o marxismo perdeu o tipo de verdade que atribuía a si mesmo. Marx tornou-se um "clássico" no sentido de que contém verdades que vão além da letra dos enunciados que as exprimem. E neste sentido as teses de Marx podem continuar verdadeiras do mesmo modo que continuam as da geometria euclidiana no seio de uma geometria mais geral, que contém outras geometrias contraditórias com ela (Signes, págs. 16-17). Em particular, a dialéctica mantém-se verdadeira na medida em que afirma "que ninguém é verdadeiramente escravo ou livre, que as liberdades se contrapõem e se exigem reciprocamente, que a história é a história da luta entre essas liberdades, que isto -se inscreve e é visível no seio das instituições e da cultura das grandes acções históricas"; e que tudo isto pode ser compreendido no âmbito de "uma sociedade verdadeira, homogénea, última". Mas já não se pode admitir a pretensão de terminar a dialéctica através de um final da história, de uma revolução perma278 nente ou de um regime que, sendo a contestação de si próprio, não pode ser contestado de fora. (Les aventures de la dialectique, p. 276). § 859. EXISTENCIALISMO, MARXISMO, HEGELIANISMO Como dissemos (§ 840), a posição fundamental do existencialis-mo é anti-romântica e anti-idealista. Enquanto movimento cultural, o existencialismo constitui a crise do optimismo romântico em todos os seus aspectos, e sobretudo naquele que vê na estrutura do homem e no movimento da história a presença e a acção de um princípio que lhe garante o equilíbrio, a vitalidade c o progresso. Mas simultaneamente o existencialismo chamou a atenção para certos temas românticos que não estão, ou que estão de uma, forma menos estrita, relacionados com o aspecto a que nos referimos; e tornou possível uma releitura de Hegel, principalmente da Fenomenologia do espírito, que consiste essencialmente na investigação e na ilustração destes temas, independentemente de qualquer preocupação de crítica histórica. Assim numa Introdução à leitura de Hegel (1947), Alexandre Kojève interpretava de forma existencialista as figuras da Fenomenologia hegeliana, partindo do pressuposto de que o Absoluto de que fala Hegel não é senão o homem, ou melhor, o homem no mundo. Hegel, afirma Kojève, está de acordo com o cristianismo quando diz que o absoluto ou a totalidade daquilo que é, é não Identidade, Ser-dado, Subs279 tância ou Natureza, mas sim Espírito: Ser-revelado pela.'palavra ou pela razão discursiva. Mas enquanto para o crIstão este Espírito absoluto é um Deus transcendente, para Hegel é o homem no mundo (A dialéctica e a ideia da morte em Hegel, trad. parcial da obra citada, p. 201). Deste ponto de vista, o carácter dialéctico pertence ao homem na medida em que este nega o dado ou se nega a si mesmo como dado, não se deixa dominar pelo passado ou pela recordação e vive no futuro ou no projecto (M., p. 95); e a morte é "a finitude radical do ser e da realidade", isto é, do próprio homem que, nesta finitude, é ainda
historicidade (Ib., p. 121). O ponto de vista de Kojève é em certa medida o inverso do de Jean Hyppolite, segundo o qual o sentido da especulação hegeliana não é o de reduzir o homem ao absoluto mas antes o de mostrar no homem a presença e a acção do absoluto. Na filosofia de Hegel "o homem não se conquista a si mesmo enquanto homem, mas torna-se a morada do universal, do Logos do ser e torna-se capaz da Verdade. Nesta abertura, que permite o esclarecimento daquilo que existe na natureza e na própria história, o ser é compreendido como constituindo esta mesma generalização eterna de si próprio; é esta a lógica no sentido de Hegel, o saber absoluto. O homem existe então como o ser-aqui natural em que se manifesta a consciência de si, universal, do ser. Ele é o vestígio desta consciência de si, mas é um vestígio indispensável sem o qual essa consciência não existiria" (Logique et Existence, 1953, págs. 244-45). Neste mesmo conceito hegeliano da histó280 ria Hyppolite viu uma conclusão existencialista: "0 homem esforça-se por vencer ou assumir as determinações; nega-as, tal como a morte nega um determinado ser vivo, mas conserva-as ainda com um sentido novo. Assim, a existência humana gera uma história, a sua história, cujos momentos parciais são sempre negados mas simultaneamente retomados para que se possam superar" (Études. sur Marx et Hegel, 1955, trad. ital., p. 38). O existencialismo, por outro lado, centra-se precisamente no problema que é fundamental na filosofia de Hegel, isto é, o da relação entre a verdade e o ser: como é que uma verdade pode ser obra dos homens, aplicada ao próprio coração da existência, através da sua mediação, e simultaneamente superar essa mesma existência (Ib., págs. 203-4). Estas tentativas de interpretação hegelianizante do existencialismo ífectuam-se através do confronto e da redução recíproca das respectivas teses, sem ter em conta os processos através dos quais elas foram estabelecidas e muitas vezes sem sequer considerar a diversidade de contextos. No entanto, podemos considerar como uma referência mais legítima do existencialismo ao hegelianismo a que se encontra em autores que, como Sartre e Merleau-Ponty, utilizam o conceito de dialéctica num sentido genericamente hegeliano. Este conceito, com todo o seu carácter equívoco, constitui hoje o núcleo da discussão entre as duas correntes que de qualquer forma o utilizam: o existencialismo e o marxismo. E é ainda o único conceito que estas correntes têm em comum com o hegeliaffismo. 281 No que diz respeito ao marxismo, as suas manifestações que assumem um significado filosófico ou seja, quando se diferenciam daquela escolástica de partido (§ 781) que foi até há alguns anos o instrumento ideológico dos partidos comunistas - tiram a sua inspiração de um considerável retorno ao hegelianismo e ao seu conceito de dialéctica. Os escritos que António Gramsci (1891-1937) compôs entre 1929 e 1935 constituem precisamente uma tentativa de retorno ao hegelianismo através da mediação de Croce. Grarrisci defendia nestas obras a função e o
significado da dialéctica que, segundo dizia, "só podem ser concebidos em toda a sua fundamentalidade se a filosofia da praxis for concebida como unia filosofia integral que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento enquanto supera (e ao superar inclui em si novos elementos vitais) tanto o idealismo como o materialismo, expressões tradicionais das velhas sociedades" (0 materialismo histórico e a filosofia de Benedette Croce, 1948, p. 132). Grarrisci considera que a "filosofia da praxis" é superior às outras ideologias, "inorgânicas porque contraditórias", na medida em que "não tenta resolver pacificamente as contradições existentes na história e na sociedade, sendo antes a própria teoria de tais contradições"; e neste sentido não é o instrumento de governo dos grupos dominantes sobre as classes dominadas mas sim "a expressão destas classes dominadas que pretendem educar-se a si mesmas na arte de governar" Ub., p. 237). Mas Grainsci duvida de que Croce tenha efectivamente conseguido "repor o homem 282 sobre as suas pernas", isto é, fornecendo uma dialéctica da realidade histórica. "Croce afirma-se dialéctico (mas introduz na dialéctica uma dialéctica dos instintos, diferente da dos opostos, que até agora não conseguiu demonstrar que seja dialéctica ou outra coisa qualquer) e o ponto que é necessário esclarecer é este: será que ele vê no devir o próprio devir ou o seu conceito?" (Ib., págs. 215-16). Mas a manifestação mais original do retorno do marxismo a Hegel encontra-se na obra de Gyõrgy Lukács (nascido em Budapeste em 1885), intitulada História e consciência de classe (1923). A tese fundamental desta obra é a expressa no título; o sujeito da história, o princípio ou a força que faz a história, é a consciência de classe. A consciência de classe age primeiro de uma forma obscura e pouco aprofundada até que determina de uma forma clara os acontecimentos da história quando, na sociedade capitalista, o proletariado toma consciência de si como classe e assume a tarefa de transformar a sociedade capitalista numa sociedade sem classes. A consciência de classe não se identifica propriamente nem com um partido nem com um grupo ou uma comunidade de indivíduos, por ser uma entidade supra-individual, infinita e absoluta, exactamente como a Ideia ou o Espírito do mundo de que falava Hegel. Segundo Lukács, só o proletariado tem uma consciência de classe, enquanto que a burguesia não a pode ter ou tem-na "falsa". Com efeito, a burguesia pode tornar-se consciente da contradição irresolúvel da sociedade capitalista (que é constituída precisamente pela luta de classes) mas nada pode fazer para elimi283 nar a contradição e atingir a sociedade sem classes que constituiria a sua própria eliminação. Assim, a burguesia vê-se obrigada a negar a contradição, a camuflá-la, a mistificá-la com ideologias oportunistas e a sua consciência de classe, se lhe
podemos chamar assim, é abstracta na medida em que se baseia numa cisão entre teoria e prática. Pelo contrário, "a consciência que o proletariado tem da realidade social, da sua própria posição de classe, e a vocação histórica que daí lhe nasce-o método da concepção materialista da história-são produzidos no processo de evolução histórica cuja realidade é conhecida adequadamente pelo materialismo histórico, e isto pela primeira vez na história" (Geschichte und Klassenbeiviísstsein, trad. franc., p. 42). Portanto, se com o nascimento do proletariado se determinou a possibilidade formal de uma compreensão total da história que é ao mesmo tempo o primeiro passo para a resolução dos seus conflitos, com a evolução do proletariado esta possibilidade tornou-se uma possibilidade real no sentido de que conduziu ao conhecimento da realidade do facto de que a classe operária não tem que "realizar ideais mas sim libertar os elementos de uma sociedade nova" (Ib., págs. 42-43). Neste sentido, Lukács afirma que "a teoria objectiva da consciência de classe é a teoria da sua possibilidade objectiva" (Ib., p. 105); mas isto significa que a realização da verdadeira consciência de classe do proletariado é a supressão do proletariado. "0 proletariado só cumpre a sua tarefa suprimindo-se, levando até ao fim a sua luta de classe e instaurando uma sociedade sem classes" (M., p. 284 106). É óbvio que este autor, negando que a burguesia tenha uma consciência de classe, nega igualmente que ela possa determinar o curso da história, cujo único sujeito é a consciência de classe; e, portanto, coloca o proletariado, ou quem o representa, como sujeito da história. Mas é claro que se a realização total da consciência de classe é o fim do proletariado, e portanto da própria consciência de classe, ela é também o fim da história. E se é assim, o proletariado fica na mesma situação da burguesia: não pode ter uma consciência de classe porque a realização desta consciência anulá-lo-ia como proletariado, anulando o motor da história. Se bem que Lukács, após a condenação do seu livro por parte do comunismo oficial, tenha abandonado esta tese, o retorno a Hegel manteve-se constante nas suas interpretações do marxismo. Na obra O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista, escrito nos anos 30 e publicado em 1948, Lukács, combatendo de um modo bem fundamentado a interpretação do jovem Hegel como sendo um "teólogo e místico" e mostrando a continuidade do pensamento de Hegel, sublinha a importância decisiva da sua obra. "A sua forma de dialéctica, afirma, é um estádio decisivo na história universal da filosofia: é a forma superior da dialéctica idealista, e com isto da filosofia burguesa em geral, o anel intermédio ao qual se pode reenviar directamente a formação do materialismo dialéctico" (Der junge Hegel, trad. ital., p. 778). Na realidade, o interesse que o marxismo, como ideologia política dominante, tem pela dialéctica deriva do facto de ela ser considerada- como o ins285 trumento da previsão infalível do advento de uma sociedade sem classes, formada a partir das contradições da sociedade capitalista. Isto acontece porque ela apresenta as seguintes características: 1) é objectiva, isto é, constitui não um simples instrumento de interpretação mas sim a própria estrutura da realidade, mesmo da realidade natural; 2) inclui como exigência constitutiva própria a necessidade da síntese, isto é, da superação da contradição; 3) está, por consequência, relacionada
como a modalidade da necessidade. Ora esta concepção é contraditória com a de Merleau-Ponty, segundo o qual ela exprime simplesmente a exigência de unia conexão problemática entre os acontecimentos da história e entre estes acontecimentos e o homem. "Só pode existir história, escreveu, para um sujeito que seja histórico; uma história universal já acabada e contemplada do exterior não tem sentido, assim como não têm sentido tanto a referência a este balanço definitivo como a hipótese de uma necessidade rigorosa que revestiria as nossas decisões. A 'única decisão possível' só pode significar uma coisa: a decisão que, num campo de acção aberto para o futuro e com a incerteza que isto implica, orienta provavelmente as coisas no sentido por nós pretendido e consentido por elas" (Les aventures de Ia dialectique, p. 180, nota). Por outro lado, Sartre, após a Crítica -da razão dialéctica, está em posição de aceitar as três características da dialéctica como instrumento ideológico acima citadas. A única reserva parcial que põe diz respeito à primeira dessas características e precisamente à possibilidade de uma dialéctica da na286 tureza. No entanto, reconhece o carácter objectivo da dialéctica; mas uma dialéctica da natureza parece contrapor-se à exigência de interiorização da dialéctica no homem e na sua praxis. A possibilidade de uma dialéctica da natureza foi com efeito o único ponto de discordância que houve numa "controvérsia sobre a dialéctica" entre Sartre e três interlocutores marxistas (Marxisme et existencialisme, 1962). Mas uma necessidade interiorizada só se torna "liberdade" no sentido da afirmação de Espinosa de que mesmo uma pedra se sentiria livre se estivesse consciente de cair; e é de duvidar que as complexas e tormentosas análises com que Sartre pretendeu esclarecer a "razão dialéctica" tenham qualquer superioridade conceptual em relação às inúmeras ilustrações que o conceito da dialéctica como necessidade teve dentro e fora do marxismo. NOTA BIBLIOGRÁFICA § 839. L. STEFANINI, ii momento dezi, educazione. Giudizio sulPesistenzialismo, Pádua, 1938; 1d., E~tenzialismo ateo e esistenzialísmo teistico, Pádua, 1952; E. PACI, Pensiero, esistenza, valore, Milão, 1940; Id., Llesistenzialismo, Pádua, 1943; 1d., Esístenzíalísmo e storicismo, Milão, 1950; W., Il nulla e il problema delVuomo, Turim, 1950; C. FABRO, Introduzione all'esistenzialismo, Milão, 1943; P. FGULQUiÉ, L'exi&tentiali&me, Paris, 1946; LEFÈBvRE, Vexistenciali8me, Paris, 1946; J. WAHL, Petite histoire de 1'existencia?isme, Paris, 1947; A. VEDALDI, existencialismo, Verona, 1947; 1d., Essere gli altri, Turim, 1948; R. JOLIVET, Les doctrines exWencialistes de Kierkegaard à J-P. Sartre, Abbaye Saint-Wandrille, 1948; M. GRENE, 287 Dreadful Freedom. A Critique of existentialism, Chicago, 1948; A. ALIOTTA, Critica dell'esistenzialis-,no, Roma, 1951; J. VON RiNTELEN, Philosophie der Endlickheit aIs Spiegel der Gegenwart, Meisenheim am Glan, 1951; H. BLACKHAM, Six Existentialist Thinkers, Londres, 1952; J. COLLINS, The Existentialists, Chicago, 1952; V. FATONE, La existencia humana y sus filosofos, Buenos Aires, 1953; F. H. HEINEMANN, Existentiali~ and the Modern Predicament, Londres, 1953; A. SANTUcci, Esistenzialismo e filosofia italiana, Bolonha, 1959. § 840. Sobre Dostoicwsky: L. CHESTOV, La phil, de Ia tragédie. Nietzsche et D., Paris,
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Lista completa das obras de Jaspers em K. J., Werk und Wirkung (por ocasião dos seus oitenta anos), Munique 1963, págs. 175-211. Sobre Jaspers: L. PAREYSON: La filosofia dell'esis289 tenza e Carlo Jaspers, Nápoles, 1940; J. HERSCH, L'illusione della filosofia, trad. ital., Turim, 1942; M. DUFRENNE e P. RICOEUR, K. Jaspers et Ia phil. de Ilexistence, Paris, 1947; P. RiCOEUR, Gabriel Marcel et Karl Jaspers, Paris, 1947; J. WAHL, La pensée de Ilexistence, Paris, 1951; A. LICHTIGFELD, J.'8 Metaphysics, Londres, 1954. § 852. Sobre a segunda fase do pensamento de Jaspers: L. PAREYSON, Esistenza e persona, 1962, págs. 47-89. § 853. De Bultmann, Storia ed escatologia, trad. ital., Milão, 1962. Sobre o problema da desmitificação: Kerygma und Mythos, recolha de ensaios ao cuidado de H. W. BARTSCH, 5 vols., 1948-55; Il problema della demitizzazione, recolha de, ensaios, "Archivio -d@i filosofia", 1961, 1. Sobre Bultmann: G. MIEGGE, L'Evangelo e il mito nel pensiero di R. B., Milão, 1956; R. "klARLÉ, R. et Pinterprétation du Nouveau Testament, Paris, 1956; F. TilEUNIS, Offenbarung und Glaube bei R. B., Hamburgo, 1960; F. BIANCO, Distruzione e riconquista del mito, Milão, 1962. A bibliografla pode-se encontrar nestas últimas obras. § 854. Traduções italJanas de Sartre: Immagi'né e cosc4enza (L'imagiwire), Turim, 1948; L'essere e il nulla, Milão, 1958; L'immaginazione. Idee per una teoria delle emozioni, Milão, 1962; L'esistenzíalismo é un umanismo, Milão, 1963. Sobre Sartre: F. JEANSON, Le p@,oblè7ne morale et Ia pensée de S., Paris, 1947; G. VARET, L'ontologie de S., Paris, 1948; V. FATONE, El existencialismo y Ia libertad creadora, una critica al existencialismo de J-P. S., Buenos, Aires, 1948; P. DEMPSEY, The Psychology of S., Oxford, 1950; M. NATHANSON, A Critique of J.-P. 8.'s Ontology, LincoIn, Nebrasca, 1951; H. H. HOLZ, J.-P. S., Meisenheim am Glan, 1951; P. TnÉVÉNAZ, on "Revile de Théologie et de Philosophie", 290 1952; A. STERN, S.: His Philosophy and Psychoanalysis, Nova Yorque, 1953; W. DESAN, The Tragic Fínale: an Essay on the Philosophy of J-P. S., Cambridge, Mas., 1954; R. J. CHAMPIGNY, StageS on S.'s Way 1938-52, Bloomington, 1959; R. M. ALBÉRÉS, J.-P. S., Paris, 1960. § 857. A. SABETTI, in "Società", 1959; F. FERGNANI, in "II pensiero critico", 1959, págs. 46-79; A. PATRI, in "Preuves", 1960, págs. 63-69. § 858. De Merleau-Ponty: Elogio della filosofia, trad. ital., Turim, 1957; Senso e non-senso, trad. ital., Milão, 1962; La strutura del comportamento, trad. ital., Milão, 1963.
Sobre Merleau-Ponty: F. ALQUIÉ, Une philosophie de Vambiguité, Paris, 1947; A. DE WAELHENS, Une philos4ophie de Vambiguité, Lovaina, 1951; R. BAYER, M. P.Is Existentialism, Buffalo, 1951; C. A, VIANO, in "Rivista, di filosofia", 1953, págs. 39-60. § 859. Sobre as controvérsias referidas neste parágra£o: P. CHIODI, Esistenzialismo e marxismo (contribuição para um debate sobre a dialéctica), in "Rivista di filosofia", 1963, pâgs. 164-90. 291 XVI A MAIS RECENTE EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO § 860. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: TENDÊNCIAS GERAIS A mais recente evolução do pensamento filosófico pode ser reportada a ttendências já presentes no quadro da filosofia contemporânea apresentado nas páginas que antecedem. Essas tendências, porém, ampliaram-se e reforçaram-se, por um lado em virtude do influxo de métodos e resultados que se firmaram no campo das disciplinas científicas e das investigações interdisciplinares e por outro, com o objectivo de irem ao encontro de exigências e problemas da sociedade contemporânea. Nas linhas de força das tendências identificáveis subsiste o -conflito entre aquelas duas posições que já nos decénios anteriores se afrontaram, às vezes no âmbito da mesma mensagem filosófica. Tais posições !podem ser classificadas respectivamente a partir 293 das categorias modais de que explícita ou implicitamente, se servem, ou seja: 1) -a categoria da possibilidade, a qual permite reconhecer em todos os domínios da realidade natural e humana o papel do acaso e fala apenas de ordens plúrimas, relativas e variáveis, de esquemas operativos e de modelos, planos ou projectos nos quais as opções do homem se possam inserir com alguma probabilidade de êxito; 2)-a categoria da necessidade que exclui o acaso, reconhece a necessidade da ordem ou das ordens que se sucedem no movimento do universo e consente apenas que se fale em nome ou por conta da Totalidade absoluta, da Razão, do Ser, do Mundo, reduzindo a um grau mínimo ou a zero a possibilidade de interferência do homem em qualquer sector da realidade. A primeira posição, que encontrou a sua expressão filosófica no pragmatismo e nalgumas das formas do existencialismo e do neo-empirismo, domina agora todas as ciências contemporâneas e tornou possível a formação de doutrinas metodológicas interdisciplinares como a teoria da informação e o estruturalismo; tende, além disso, a penetrar no domínio da filosofia religiosa com. certos aspectos da "nova teodiceia" e no domínio do marxismo clássico com o "neo-humanismo". A segunda posição admite, de uma maneira ou doutra, o determinismo do Todo (como quer que seja concebido) sobre a parte, especialmente sobre aquela parte que é constituída pelo homem, e fala em termos de totalidade e absoluto.
294 § 861. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: A TEORIA DA INFORMAÇÃO A teoria da informação, nascida no campo da engenharia das comunicações, é hoje utilizada, não só na construção de máquinas de calcular mas também no domínio da biologia, da psicologia, da antropologia, da linguística e da estética. Está estreitamente ligada à teoria das probabilidades que predominou na mecânica quantística (§ 792) da física e que alcançou para esta ciência os maiores êxitos teóricos e tecnológicos. A teoria da informação surgiu de um teorema proposto por C. E. Shannon num artigo datado de 1948 (e mais tarde incluído na obra de Sharmon e Weaver, The Alathematical Theory of Cominunication, 1949), o quail, a propósito das comunicações telegráficas e telefónicas, observava que uma mensagem enviada através de -um qualquer canal sofre, no decurso da transmissão, várias deformações, por via das quais, à chegada, parte das informações que continha, se apresenta perdida. Nesse mesmo ano Norbort Wiener (1894-1964) introduzia numa sua obra o termo cibernética (ou seja, mais exactamente, a arte de pilotar) para designar o estudo das mensagens, especialmente daquelas que **pMotara (quer dizer, que comandam ou controlam) uma operação qualquer nas máquinas, nos animais ou no homem A introdução de considerações probabilísticas neste campo fez-se pelo recurso à analogia com o tratamento probabilístico, do segundo princípio da termodinâmica e especialmente :através do conceito de entropia que é a função matemática que exprime a 295 degradação de energia que se verifica inevitavelmente em todas as transformações do trabalho mecânico em calor, ao passo que a transformação inversa (do **cador em trabalho mecânico) nunca é completa e só uma parte do calor pode ser retransformada em energia utilizável. Shannon, Wiener e Brillouin compararam as perdas de informação ocorridas na transmissão de mensagens, em virtude da interferência de condições casuais e imprevisíveis, à degradação de energia exposta pelo segundo princípio da termodinâmica e por conseguinte definiram a quantidade de informação efectivamente transmitida, como entropia negativa; na transmissão de mensagens como na transformação de energia, a entropia negativa decresce continuamente, uma vez que a positiva (perdas de informação ou degradação de energia) aumenta também continuamente. Considerada nestes termos, a informação torna-se um modelo do qual são excluídos todos os elementos humanos e se pode portanto aplicar aos campos mais diversos do sabeÊ, O tratamento matemático da quantidade de informação torna-se uma questão de cálculo de probabilidades que tom sido objecto de vários estudos dos especialistas. Toma-se vulgarmente como base do cálculo uma situação que comporta inicialmente um número determinado de casos distintos, igualmente prováveis "a priori"; mede-se a informação pela limitação que ela própria determina no número dos casos possíveis.
Para suprir as perdas de informação que se verificam na transmissão de mensagens podem juntar-se (como já Shannon sustentava) à mensagem símbolos 296 ditos redundantes que prevêem e corrigem os erros @Z' d,,- transmissão antes que venham a introduzir-se. Deste modo o funcionamento imperfeito da transmissão pode ser previsto e, em virtude desta previsão, corrigido por um processo que se chama retroacção (feedback). O significado filosófico destas considerações (a que os matemáticos deram diversas formas em complexos sistemas simbólicos) é muito importante. Em primeiro lugar admite-se em princípio a interferência do acaso na transmissão de mensagens, quer dizer, exclui-se a hipótese de neste campo -que como veremos se pode estender aos mais diversos aspectos da realidade-se reconhecer a existência de uma ordem necessária. Em segundo lugar, exclui-se a possibilidade de -um saber absoluto, ou seja, de uma informação infinita. Uma informação infinita é, como escreveu Brililouin (Ciência e teoria da informação, 1959), impensável e impossível. Tudo o que se pode saber através de um qualquer processo cognoscitivo, por exemplo, efectuando uma certa experiência, é uma certa medida provável da quantidade de informações alcançável por meio dela. Para se alcançar esta medida é necessário saber-se qual era o campo de incerteza relativamente à quantidade a medir antes da experiência e qual é o erro resíduo, a incerteza que persiste após a realização da medida. A teoria da informação baseia-se portanto na situação, considerada típica ou fundamental, na qual se misturam a desordem devida ao acaso e uma certa ordem ou regularidade. Uma sucessão casual de símbolos não contém qualquer informação; esta deve 297 constituir sempre a medida ida regularidade de ui-ii modelo e especialmente dos tipos de -modelos conhecidos como séries cronológicas cujos componentes se desenvolvem no tempo. Afirma-se que ia regUlaridade é um facto insólito e que o irregular é sempre mais comum que o regular. "Consequentemente", escreve Wiener (The Human Use of Human Being, trad. it. com o th. Intr. à cibernética, 1953, p. 21), "qualquer definição de informação ou da -sua medida que se queira enunciar, deverá sempre ser relativa a algo que aumente enquanto diminui a probabilidade a priori de um modelo ou de uma série cronológica". É claro que desde os seus alicerces, a teoria da informação se baseia em módolos que pertencem mais ao mundo animal e humano do que ao mundo físico. No funcionamento, mais simples, dum ser humano, podem discernir-se os elementos da teoria: a transmissão, o erro possível das
mensagens e a retroacção correctiva. Se, ao ver um objecto numa certa direcção (quer dizer, ao receber dele unia mensagem visual), eu estender o braço para o agarrar e ***er -istâ : , rar na direcção ou na d ncia logo a informa ção deste erro rectifica o movimento do meu braço, permitindo-me dirigi-lo correctamente para o objecto. Todas as operações do organismo, a sua adaptação ao ambiente, o seu desenvolvimento, a sua comunicação com os outros organismos ou com as coisas, são hoje interpretadas, por meio de tentativas mais ou menos conseguidas mas sempre baseadas em considerações probabilísticas em termos de teoria da informação. Trata-se, como já se disse, de unia 298 teoria quase sempre expressa em termos objectivos, quer dizer, não antropológicos; resta toda-via a questão de saber se a informação continuaria a ter uni sentido qualquer sem a presença de uma "consciência" entendida desta ou daquela maneira. Rayfiiiond Ruyer, por exemplo, afirmou que "sem consciência não há informação". Um aparelho de rádio que continue a funcionar sem que ninguém esteja a ouvi-lo, não transmite informações e não é mais do que uma máquina em funcionamento. "Se o mundo físico e o mundo das máquinas fossem abandonados a si próprios tudo se tornaria espontaneamente numa desordem o que (provaria que jamais existiu uma verdadeira ordem, uma ordem consistente ou, por outras palavras, que jamais existiu informação". Ruyer fala por conseguinte num "enquadramento axiológico" da informação que conduz ao reconhecimento da "homogeneidade da consciência e da inteligência no âmbito da vida" (La génese des formes vivantes, 1958). Mas por outro lado e com mais frequência, não se faz apelo a factores conscientes, ao construir a teoria da informação. Basta (como costuma dizer-se) um receptor. Não há receptor no caso do aparelho de rádio que ninguém está a ouvir; um tal receptor pode porém consistir numa simples fita magnética. Uma das aplicações mais importantes da teoria da informação é a utilização que dela se faz para explicar a transmissão dos caracteres hereditários. Os portadores de caracteres hereditários são os chamados genes e após as investigações de Morgan e seus sequazes, levadas a cabo entre 1910 e 1935, os 299 genes foram considerados como matéria constituinte dos cromossomas. Ora os cromossomas de todos os organismos, desde os monocelulares até ao homem, têm uma composição química semelhante, a qual é essencialmente constituída de substâncias chamadas ácidos desoxirribonueleicos (ADN). Em 1953, Walson e Crick propuseram um modelo hipotético da estrutura molecular do ADN, considerando-o um par de espirais complementares, = tais propriedades que, ao separarem-se, cada uma delas pode reunir
em seu redor os resíduos moleculares necessários à reconstrução do primitivo par do espirais. Ora o ADN é composto por quatro bases nueleotídicas habitualmente designadas sob as letras A, G, C e T e que se podem considerar como constituindo o alfabeto genético. E assim como as vinte e uma letras do nosso alfabeto se podem combinar em inúmeras formas das quais só algumas constituem palavras e frases com sentido (como por exemplo as que servem para comunicar uma informação), também os elementos do alfabete, genético se podem combinar em numerosíssimas formas (calculadas pelos geneticistas mediante diversos processos), das quais, todavia, apenas algumas transmitem uma mensagem efectiva, isto é, determinam com certa dose de probabilidade a transmissão de -um carácter hereditário. Com base nesta hipótese, poderia concluir-se ser o material genético semelhante a uma mensagem escrita que, uma vez recebida pelo organismo, dirigiria e controlaria o seu desenvolvimento. É porém óbvio que as aplicações mais importantes da teoria da informação tiveram e continuam a 300 ter lugar no campo da construção de autómatos, ou seja, na cibernética. As relações entre a teoria da informação e a cibernética constituem um problema. Umas vezes afirma-se que a teoria da informação faz parte da cibernética, outras que é a cibernética que faz parte da teoria da informação, Esta última parece ser a solução mais adequada, pois enquanto que a teoria da informação tem por objecto principalmente as quantidades e graus de certeza e faz por conseguinte parte da matemática, a cibernética pode ser considerada como fazendo parte da lógica ou da metamatemática, e cabem ainda no seu âmbito a teoria dos autómatos e as técnicas para a sua construção. Em qualquer caso, o certo é que o campo da cibernética se alarga cada vez mais. Para além das aplicações cada vez mais numerosas que as máquinas vêm tendo no âmbito da tecnologia industrial, há já presentemente máquinas que podem fazer a demonstração de um teorema de lógica e resolver equações de trigonometria ou de cálculo diferencial e integral. Existe já uma máquina que joga as damas, sendo capaz -de corrigir a estratégia do próprio jogo e de ganhar, durante algum tempo, ao seu próprio construtor. Há máquinas de ensinar que instruem sobre um determinado tema e controlam em seguida as respostas do aluno, criticando-lhe, os erros. Foi mesmo concebida uma máquina que simula o interrogatório a que um psiquiatra submete um paciente. e, Prevê-se ainda que num futuro mais ou menos próximo as máquinas possam recordar, aprender e discernir modelos constantes em dados desordenados, descobrir novas combinações de velhas informações e efectuar verdadeiras e autênticas **~es. Não se sabe por enquanto se uma máquina poderá formular uma hipótese científica como a de Newton, e compor uma sinfonia ou um poema como o de Dante, não faltam porém esperanças (ou profecias) a esse respeito. Wiener e Von Neumann (que se
contam entre as maiores autoridades no assunto) afirmam mesmo que as máquinas poderão reproduzir-se a si próprias nesse caso toda e qualquer diferença entre a máquina e o organismo vivo (que se caracteriza precisamente pela auto-reprodução) acabaria por desaparecer. Não é pois de espantar que a propósito das máquinas, tenham sido formuladas ias profecias mais audazes entre as quais a que admite que lhes venham a ser confiadas, no futuro, as decisões fundamentais de natureza política, económica, social, etc. que digam respeito ao destino dos homens. Por outro lado, observa-se que um autómato não é melhor do que o sou programa, que a qualidade das suas decisões é determinada pelas informações que lhe são fornecidas e que relativamente a estas é o homem quem decide. Se se fornecerem à máquina informações erradas, se se escolherem problemas errados ou se se formular de maneira errada um problema verdadeiro, a máquina fornecerá por sua vez soluções insatisfatórias, por outras palavras, o homem obterá das máquinas as respostas que merece. Do ponto de vista teórico, o teorema de Gõdel (§ 794) parece excluir a possibi302 li-dade de construir uma máquina que resolva todo e qualquer problema. Há por conseguinte hoje a tendência para se falar numa "simbiose" entre o homem e a máquina, afirmando Wiener num seu livro que o homem está para a máquina como, na antiga concepção teológica, Deus estava para o homem. Do ponto de vista filosófico, o que transparece claramente dos conceitos básicos da teoria da informação, da cibernética e dos problemas e polémicas que aqueles fizeram nascer, é, em primeiro lugar, o esvaziamento de sentido sofrido pelas tradicionais antíteses metafísicas entre materialismo e espiritualismo, entre determinismo e indeterminismo e, num plano positivo, a descoberta e entrada em funcionamento de meios de investigação (cállculos, modelos, estruturas) que exprimem a situação fundamental em que o homem se encontra: atirado para um mundo em que operam, às vezes de modo hostil e imprevisível, as forças do acaso, luta contra estas forças, por uma ordem ou um complexo de ordens que nunca chega a ser total nem definitivo. § 862. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: ESTRUTURALISMO O estruturalismo não é uma doutrina científica, como a teoria da informação, nem uma doutrina filosófica como a fenomenologia ou o existencialismo. É antes urna tendência metodológica que se manifesta actualmente em muitos campos do saber e que pode manter relações mais ou menos estreitas 303
com diversas tendências filosóficas. As suas bases filosóficas são, salvo algumas excepções, as mesmas em que se apoiam a teoria da informação e a cibernética, o que representa também uma submissão à exigência de encontrar uma mediação entre a ordem e a desordem, ou seja, de reduzir a casualidade dos fenómenos que surgem num certo campo (ou em vários campos) de investigação ou experiência a uma ordem relativamente constante que mostre as suas relações recíprocas e torne possível a sua explicação e provável previsão. A palavra "estrutura" é vulgarmente -usada -ia linguagem comum e nas ciências para indicar o conjunto formado por aquelas partes dum complexo que têm por fim garantir a permanência, e o funcionamento do próprio complexo. A estrutura de uni edifício é constituída pelas partes que lhe garantem a estabilidade e consentem a sua utilização para )s fins a que se destina. Por estrutura de um organismo entende-se o conjunto de órgãos que permitem a esse mesmo organismo o desempenho das suas funções e por conseguinte a sobrevivência e o desenvolvimento. Em qualquer organização a estrutura constitui o plano da actividade ou dos órgãos, que mantêm em pé a própria organização, permitindo-lhe funcionar -em atenção aos seus fins. O termo tem sido frequentemente empregado neste sentido, na filosofia moderna e contemporânea (Marx, Dilthey, a fenomenologia, o existencialismo) e até usado pela psicologia da forma ou gestaltismo (§ 796) a qual demonstrou que os actos psíquicos não se explicam através da agregação de elementos simples preexis304 tentes mas antes constituem formas ou estruturas que determinam a natureza dos seus próprios elementos. Todavia, no sentido de uma orientação metodológica definida, o estruturalismo, contemporâneo nasceu na linguística por obra de Fernando de Saussure (1857-1913). O seu Curso de linguística geral, obra póstuma publicada pela primeira vez em 1916, só depois de 1930 começou a exercer a sua influência. As bases da concepção de Saussure são as seguintes: 1)-distinção entre língua e linguagem, considerada esta corno faculdade genérica, usada em muitos campos (físico, fisiológico, psíquico, social), e entre aquela e a palavra, que é o acto do sujeito falante; 2) -concepção da língua como "uma totalidade e um. princípio de classificação", como "um sistema que apenas conhece a ordem que lhe é própria", comparável ao jogo de xadrez no qual o sistema total das regras permanece imutável, quer as
peças, individualmente consideradas, sejam de madeira ou de marfim mas muda completamente se diminuir ou aumentar o número de peças, ou seja, a "gramática" do jogo (Cours de linguistique générale, 1922 2@ p. 43). A concepção da (língua como "sistema" ou, como se dirá mais tarde, "estrutura", permitiu a Saussure distinguir a dimensão sincrónica da dimensão diacrónica da própria língua. A dimensão sincrónica consiste na simples ordem existente entre os elementos lexicais, gramaticais e fonológicos próprios de urna língua e que no seu conjunto constituem não um simples agregado mais um "sistema" de ele305 mentos ligados entre si por relações recíprocas. A g dimensão diacrónica é o conjunto das variações sofridas por um sistema linguístico sob a acção de acontecimentos que não só lhe são estranhos como não formam qualquer sistema entre si. O próprio Saussure insistiu no carácter não necessitante da estrutura sincrónica: "Na língua", escreveu, "não há força que garanta a conservação da regularidade que eventualmente reine neste ou naquele sector" (Cours, p. 131). E em vários outros passos no decurso da obra, pôs em evidência os elementos casuais que interferem em qualquer sistema linguístico. Uma concepção semelhante da língua, com o emprego do termo estrutura, apareceu expressa nas teses anónimas apresentadas ao --primeiro congresso de filologia eslava que teve lugar em Praga em 1919, inaugurando a actividade do Círculo Linguístico de Praga. Três linguistas russos, R. Jakobson, S. Karcevsky e N. Trubetzkoy, referindo-se precisamente a Saussure, apresentaram mais tarde, no primeiro congresso internacional de linguística, reunido na Haia em 1928, uma proposta para que a língua fosse estudada através das combinações estruturais dos seus elementos, chamados fonemas. "Definir um fonema", escrevia Trubetzkoy num artigo, em 1933, "é indicar o seu lugar no sistema fonológico o que só será possível se se tiver em conta a estrutura do próprio sistema... A fonologia parte do sistema como de um todo orgânico do qual estuda a estrutura". Deste ponto de vista, cada língua escolhe os seus fonemas, esta escolha não é porém casual, quer 306 dizer, arbitrária, nem natural ou necessária, porque cada escolha condiciona ou limita as outras e cada grupo ou série de escolhas é condicionado pela exigência da eficácia comunicativa da linguagem. Os fonemas podem portanto reduzir-se a tipos que a ciência da linguagem se propõe determinar. Um passo ulterior nessa via foi dado por Noam Chomsky (Aspects of the Theory of Sintax, 1965), que veio revigorar de novo a velha teoria de uma gramática universal, ou seja, de uma gramática que estuda aquilo que todas as línguas têm necessariamente em comum e determina por isso a estrutura universal de todas as línguas. Chomsky revalorizou os
precedentes históricos desta gramática e, principalmente a gramática geral raciocinada de Portoreale (Linguistica cartesiana, 1966); falou ainda de uma gramática generativa, encarada como um "sistema de regras que de algum modo explícito e bem definido confere descrições estruturais às frases", considerando-a, não já como um modelo presente aos que falam ou escutam uma dada língua mas como "a descrição estrutural das frases que ocorrem nessa língua" (Aspects of the Theory Sintax, p. 8 e segs.). Chomsky procurou, por outras palavras, responder à questão de saber quais são as estruturas gramaticais que tornam possível a enunciação de previsões válidas e verificáveis relativamente às várias línguas em particular. Para responder a esta questão, é necessário encontrar primeiro os modelos estruturais de cada língua em particular para ;alcançar em seguida previsões verificáveis relativamente às estruturas comuns a todas as línguas. 307 A obra de Chomsky, pela sua importância, tem sido por vezes comparada à revolução de Copérnico ou à de Kant!(IE. Bach em Os problemas actuais da linguística, 1968, p. 151). Em todo o caso, o método estruturalista da linguística apresenta analogias substanciais com o método de axiomatização adoptado pelas ciências matemático-naturais. Trata-se ainda aqui de construir um modelo que em vez de objectos fornecidos por caracteres intuitivos se sirva de símbolos apropriados cujas regras de combinação sejam enunciadas por meio de axiomas. Trata-se em segundo lugar de "interpretam o modelo, pondo-o à prova num campo específico (que neste caso é uma língua determinada) e determinando quais os axiomas que devem ser modificados e mudados para que o modelo se aproxime o mais possível do campo & experiência que deve descrever. Não há dúvida que o método estruturalista favorece a dimensão sincrónica relativamente à diacrónica. Os conceitos de desenvolvimento, de história, de progresso, permanecem-lhe estranhos. Tende a reduzir as variações diacrónicas de uma estrutura **ofu ao funcionamento das regras próprias dessa mesma estrutura ou às possibilidades compreendidas numa estrutura mais geral (estrutura de grupo) que compreende conjuntamente a estrutura original e as suas variações. Não pretende porém negar o carácter "criador" da linguagem nem limitar arbitrariamente as escolhas dos indivíduos falantes. Todavia, o carácter de modelo teórico ou formal que a estrutura assume nas doutrinas de certos linguistas, levou outros a acentuarem a concepção funcionalista da lin308 guagem. André Martinet, por exemplo, afirma que "na linguagem apenas se pode encontrar uma estrutura, por assim dizer, no seu funcionamento" e que "a função é o critério da realidade dinguística" (A Functional View of Language, 1962, cap. 1). A consideração da função permite-nos penetrar mais para o
interior da realidade ida língua, definida como "um instrumento de continuação segundo o qual a experiência humana se analisa, de maneira diferente em cada comunidade, em unidades ou mon"as de conteúdo semântico e forma fóni-ca" e evitar a redução arbitrária da realidade dinguística a esquemas pre-estabelecidos que poderiam levar a descurar os factos observáveis. Na realidade não existe nenhuma oposição de principio entre estruturalistas e funcionalistas. Os primeiros acentuam a importância do modelo teórico e os segundos a da sua interpretabilidade em termos de factos empíricos. É porém claro que um modelo teórico, se não for um simples esquema formal caso em que, para a sua validade, bastará a ausência de contradições internas -deve possuir a sua funcionalidade, que é como quem diz a sua teleologia intrínseca, uma vez que deve descrever (ou seja, explicar e prever) o modo pelo qual a realidade a que se reporta, se mantém nos seus traços fundamentais e no quadro das suas possíveis variações. O modelo de um edifício, arquitectónico que não garanta a estabilidade do edifício e a satisfação pelo mesmo dos fins para que foi construído não poderá valer como "estrutura" desse edifício. Considerações semelhantes se podem fazer quanto à 309 estrutura dos organismos 'vivos- que não Pode ser entendida, se abstrairMOS das funções destes-e quanto a qualquer tipo ou qualquer que espécie de estrutura, ** seja O campo a que Se refira. A funCIOnalidade de unia estrutura fim intrín é Por Conseguinte o ** SI, da Própria estru,tura suavalidade, e a medida da 'Estas COnsiderações sã, Campos (nurnerOsissirnos) aosváqluidaaiss seara todos os ** estendeu ou tenta estender-se a metodologia estruiturajista. Entre estes campos Pode Considerar-se campeã a antropologia cultural na qual esta orientação fora já, por volta de 1930, Perfilhada pelo etnólogo inglês A. R. Radeliffe-Brown, 'tendo POrénI encontrado o seu mais brilhante defensor na pessoa do francês Claude Levi-Strauss. Já na sua obra sobre as estruturas elementares do parentesco (1947), Lévi-Strauss, para explicar essas estruturas e construir-lhes a niatriz comum, se baseava na analogia com a linguística. Considerando a Proibição do incesto, comum a todas as sociedades, ainda que em formas e limites Muito diversos, realçava a relação existente entre o acaso e a Ordem, que é pressuposto de toda e qualquer consideração estruturalista. "0 facto da regra", dizia, "cOnsiderado, independentemente das suas modalidades, Constitui a Própria essência da Proibição do incesto, uma vez que se a natureza abandona o conúbio ao acaso e ao arbítrio, é iMPOSSível à cultura não introduzir uma ordem de qualquer natureza, já Que ela não existe. A principal tarefa da cultura é a de garantir a existência do grupo como grupo e Portanto de substituir, neste domínio como nos 310 outros, a organização ao acaso". (Les structures élémentaires de Ia parenté, 19672, p. 37). Porém a ordem de que aqui se fala é de natureza objectiva e pertence à própria realidade social. Noutras obras, Lévi-Strauss considerou a ordem estrutural como um modelo não redutível às relações sociais observáveis em determinada sociedade. Um modelo estrutural,
diz-nos, deve satisfazer quatro condições. Em primeiro lugar, deve ser sistemático, quer dizer, consistir em elementos tais que a modificação de um qualquer deles, arraste a modificação de todos os outros. Em segundo lugar, deve pertencer a um grupo de transformações, cada uma das quais corresponda a um modelo da mesma família, de modo que o conjunto destas transformações constitua um grupo de modelos. Em terceiro lugar, as propriedades indicadas devem permitir prever de que maneira reagirá o -modelo em caso de modificação de um dos seus elementos. E, por fim, o modelo deve apresentar-se construído de tal maneira que o seu funcionamento possa dar conta de todos os factos observados (Anthropologie structurale, 1958, p. 306). Com estas regras, Lévi-Strauss reconduz a noção de estrutura à de modelo formal e cita expressamente determinado passo da obra de Von Neumann e Morgenstern, Teoria dos jogos e comportamento económico (1944). Este ponto de vista não é todavia mantido com coerência por Lévi-Strauss, o qual procura uma garantia da objectividade do modelo estrutural elaborado pelos etnólogos e vai encontrá-la na actividade inconsciente que domina não apenas os factos sociais, mas também o estudo 311 e consideração de tais factos e por conseguinte a construção dos modelos estruturais; reconhece assim a correspondência necessária entre estes modelos e as estruturas objectivas da sociedade para cuja compreensão servem. A "antropologia", escreveu ele a propósito disto, "não faz outra coisa senão demonstrar uma homologia de estrutura entre o pensamento humano = exercício e o objecto humano a que se aplica". (Le totémisme aujourd'hui, 1962, trad. ital., p. 129). Deste ponto de vista, o estruturalismo transforma-se de posição metodológica em metafísica de tipo antigo. A estrutura não seria um instrumento conceptual, um modelo teórico destinado a enquadrar os factos observáveis, a determinar-lhes as regras de combinação e a tornar possível a previsão, mas sim o Ser ou a Substância, a qual encontra igualmente expressão na realidade das coisas e ão conhecimento desta realidade, garantindo a correspondência ou, como diz Lévi-Strauss, a homologia entre realidade e conhecimento. Nesta base, o estruturalismo aparece-nos às vezes ligado à metafísica do Ser que inspira a última fase do pensamento de Heidegger (§ 847). Nas obras de um psicanalista francês, Jacques Lacan, as estruturas verificáveis nas mais diversas ;actividades do homem e acima de tudo na que é simbólica (a dinguística) e dominante, são atribuídas ao Inconsciente que, precisamente porque o é, é o outro do homem, outro esse que é também o Logos, ou seja, a revelação do Ser na linguagem. E é justamente através de uma análise estruturalista das chamadas "ciências humanas" (biologia, filolo312 gia, economia) que Midhel Foucault formula a sua profecia sobre o fim próximo do homem (As palavras e as coisas, 1966). Segundo Foucault,
o homem é uma !invenção linguística; o reconhecimento do mesmo como sujeito capaz de iniciativa, de escolha, etc., deve-se ao desaparecimento do conceito tradicional da linguagem como pura representação das coisas na sua ordem mutável, desaparecimento esse que faz do homem um ente limitado, opaco e impenetrável. Como tal, o homem tornase um enigma insolúvel: não se identifica com a vida que está continuamente a fugir-lhe e lhe prescreve a morte; não se identifica com o seu trabalho, que lhe foge não apenas quando já acabou mas também e fr.-quentemente quando nem chegou a começar; e não se identifica com a linguagem que encontra já expressa e articulada em leis que lhe são anteriores. Mas se a linguagem, como está a acontecer, retorna à sua natureza de manifestação do Ser, o homem "regressará à inexistência serena em que foi mantido durante certo tempo pela unidade imperiosa do Discurso" (Les mots et les choses, trad. Ital. p. 413). Trata-se aqui, como se vê, do anúncio profético duma nova "era do Sem de que já Heidegger falava. É claro que o estruturalismo, sendo um instrumento metodológico válido para a sistematização e previsão dos factos observáveis em vários campos, não se presta de modo algum a ser utilizado por profecias apocalípticas e totalitárias deste género. Encontra-se todavia uma rigidez metafísica da noção 313 de estrutura, até mesmo nas interpretações estruturalistas do marxismo. Louis Althusser, por exemplo, embora proponha uma interpretação do conceito marxista de "estrutura" em termos de estruturalismo moderno, insiste no carácter "real" da estrutura, rio sentido de que o real é independente de todo o conhecimento ainda que só através do conhecimento possa ser definido. "0 real", escreveu, "e os meios do seu conheci-mento formam um todo único; o real é a sua estrutura conhecida ou a conhecem e neste sentido é um "campo teórico imenso e vivo, desenvolvendo-se continuamente, no qual os acontecimentos da história humana podem agora ser dominados pela experiência do homem, pois estão sujeitos à sua captura conceptual, ao seu conhecimento" (Pour Marx, 1965, trad. ital., 1967, p. 221). Deste ponto de vista, a distinção estabelecida por Marx entre estrutura e superestrutura aparece menos e é substituída pela distinção entre uma estrutura global que é o modo de produção, o qual inclui todos os elementos, até mesmo ideológicos, que o condicionam, e uma estrutura regional que dá a certos fenómenos o carácter de objectos económicos e que se encontra situada num ponto definido da estrutura global (Althusser-Balibar, Lire le Capital, 1965, trad. ital., 1968, p. 191-92). O conhecimento global toma-se então a condição indispensável da praxe política. Como se vê, o estruturalismo oscila, e às vezes na obra dum mesmo autor (como no caso de LéviStrauss), entre uma interpretação realista e uma Interpretação metodológica da estrutura. Segundo a 314 interpretação realista, a estrutura é a "realidade" que constitui o Homem, ou o Ser ou o Mundo social. Segundo a interpretação metodológica, cada estrutura é um modelo hipotético que torna possível o reconhecimento de relações verificáveis entre factos ou conjuntos de factos e o fornecimento do quadro geral destas relações o qual por sua vez permite a previsão estatística das suas transformações. Em todo o caso, porém, o estruturalismo opõe-se a
toda e qualquer forma de subjectivismo idealista (do qual é a liquidação, até mesmo no domínio das ciências humanas) e de historicismo. Não é anti-histórico e sim a-histórico. A individualidade histórica, dos eventos, baseados nos parâmetros cronológicos e geográficos destes está fora da sua consideração. A dimensão diacrónica dum modelo estrutural nada tem a ver com um "processo histórico" que é sempre progresso ou regresso, involução ou desenvolvimento, nascimento ou declínio. A estrutura é antes um grupo de transformações, no sentido especificamente matemático do termo "grupo" que indica simplesmente um modelo constituído por quaisquer elementos entre os quais ocorrem relações de natureza reversívell como são as existentes entre números inteiros positivos e negativos. Pondo de lado a sua rigidez metafísica e atendendo ao uso profícuo que dele fazem as ciências, o estruturalismo aparece-nos como uma confirmação do carácter finito da razão, em -luta com o acaso e que do acaso extrai, através do cálculo de -probabilidades, o fundamento da validade dos seus conhecimentos. 315 § 863. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: A NOVA BIOLOGIA O conceito de evolução forneceu, a partir da segunda metade do século XIX, o esquema geral da concepção do mundo tal como ora aceite pelas mais diversas filosofias. O positivismo, o espiritualismo, o pragmatismo e o naturalismo recorreram igualmente a este esquema que vamos encontrar ainda, implícita ou expressamente defendido, tanto por Nietzsche como por Peirce, por Bergson como por Santay"a. Segundo este conceito, a evolução é o progresso natural e necessário de todo o universo, progresso esse que começa na nebulosa cósmica e, através do desenvolvimento ininterrupto, do mundo inorgânico e orgânico, continua com o desenvolvimento "superoirgânico" do mundo humano e histórico. As características deste processo são por conseguinte: 1) - a sua universalidade, pela qual nenhum aspecto da realidade lhe escapa; 2) -as suas unicidade e continuidade, pelas quais todos os aspectos da realidade encontram nele o seu lugar determinado; 3) -a sua necessidade, pela qual é infalivelmente progressivo e deixa prever o seu desenvolvimento ulterior e o aparecimento de novas formas superiores da vida humana e social. As interpretações espiritualistas deste conceito, que procuraram subtraí-'o ao determinismo materialista, não lhe modificaram os caracteres essenciais. Berg-son, que reconhecera à evolução vital o carácter de criação livre e imprevisível, considerando-a o :produto de uma força espiritual, apontava-lhe como fim a realização de uma humanidade unificada pelo 316 misticismo. Mais recentemente, o padre jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin (18811955) afirmava que a evolução é um postulado geral ao qual todas as teorias, todas as hipóteses, todos os sistemas deverão adequar-se e ao qual deverão satisfazer para serem pensáveis e verdadeiros. Afirmava consequentemente a unidade da vida como um plano ou projecto geral do e-urso evolutivo. "A substância vivente espalhada pela terra mostra-nos, desde os primeiros períodos da evolução, os lineamentos de um único e gigantesco organismo". O termo da evolução seria assim um "Ponto omega" constituído por uma
"Superconsciência" de dimensões planetárias, formada por uma pluralidade unificada de pensamentos individuais, combinando-se e reforçando-se uns aos outros no acto singular de um Pensamento unânime (0 fenómeno humano, 1955). O modelo evolucionista para a explicação do universo na sua totalidade foi quase completamente posto de parte nos últimos decénios. Por um lado, as filosofias neoempíricas e em geral aquelas que têm em conta os dados da ciência e o desvio crítico sofrido por esta em virtude ida sua posição ;probabilística, tendem a relegá-lo para o domínio da ",metafísica" do tipo antigo ou então a ignorá-lo praticamente. Por outro lado, as filosofias de inspiração metafísica declarada, como a fenomenologia de certas formas de existencialismo, rejeitam aquele modelo pelo seu evidente carácter "rialuralista". No domínio das ciências físicas, salvo numa ou noutra arriscada especulação cosmológica, em que se- compraz este ou aquele astrónomo, aquele mo317 delo foi já totalmente abandonado. O único campo onde permanece válido e no qual é constantemente utilizado, é o das ciências biológicas. Mas mesmo neste campo, perdeu os traços que caracterizavam a sua formulação oitocentista. A evolução de que falam presentemente os biólogos, não é única, nem contínua, nem necessária, nem necessariamente progressiva. Numa obra famosa sobre o Significado da evolução (1949), George GayQord Simpson, ao exipor numa bem elaborada síntese os resultados de estudos feitos sobre o assunto, fala-nos do oportunismo da evolução em contraste com o carácter necessitante que lhe era tradicionalmente atribuído. Na história da vida acontece o que pode acontecer e não o que deve acontecer. A vida tira proveito das possibilidades que lhe são oferecidas pelo ambiente ou pelas outras formas viventes, possibilidades estas que nunca são infinitas mas antes e sempre limitadas, e com frequência muito estreitamente limitadas. As mudanças acontecera como podem e não como seria hipo melhor que acontecessem. Cada mutação abre muitas possibilidades mas elimina outras; acontece às vezes que certas oportunidades abertas pelo desenvolvimento da vida não são aproveitadas por organismos aptos. A evolução, encarada sob este ponto de vista, não é, diz-nos Simpson, nem completamente ordenada nem completamente desordenada, não mostra um plano único e uniforme nem um progresso firme e gradual em direcção a um objectivo discernível: "a história da v"da é uma estranha mistura do controlado e do casual, do sistemático e do assistemático" (The Meaning of Evo318 lution, 1951 1, p. 185). O carácter necessariamente progressivo da evolução não é portanto admitido. Seja qual for o critério escolhido para definir o "progresso", a história da vida apresentará exemplos não apenas de progresso mas também de regresso ou de degeneração. Sob este ponto de vista não se exclui mesmo a reversibilidade da evolução, quer dizer, que certas espécies ou formas vivas possam regressar, através de mutações evolutivas a níveis inferiores. A própria evolução da espécIe humana não se desenvolveu numa linha única e ininterrupta e sim em linhas diferentes cuja origem comum é difícil de encontrar. Tal como
hoje se apresenta, a humanidade é o produto do desenvolvimento paralelo de diversas linhas. (Theodosius Dobzhansky, Mankind Evolving, 1962). As ciências biológicas atravessam presentemente um período de ajustamento conceptual análogo ao sofrido pelas ciências físicas nos primeiros decénios do -nosso século. Já no parágrafo anterior se fez referência à descoberta do ADN, ou seja, da estrutura da substância genética e do código mediante o qual o ADN transmite os caracteres genéticos. A consequente possibilidade de influenciar a transmissão dos caracteres hereditários, de produzir seres híbridos ou de regular o sexo dos nascituros, a técnica das transplantações e a descoberta de drogas, especialmente de alucinogéneos, que estimulam estados psicóticos e podem eventualmente ser utilizadas na sua correcção, são outros tantos factos e perspectivas que nos levam a falar em " revolução biológica" b e dão às vezes aos próprios cientistas a oportuni319 dade de arriscarem as mais audazes profecias sobre a capacidade do homem de controlar à sua vontade o desenvolvimento biológico. Todavia os problemas morais e sociais que emergem de tais perspectivas bem como as reacções que a sua realização poderá provocar na vida humana em geral, não foram ainda encarados com a necessária seriedade. § 864. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: A NOVA TEOLOGIA ,O pensamento teológico de Karl Barth (§ 842) e o de Rudolf Budtmann (§ 853) prenunciavam uma mudança de rumo na teologia contemporânea. Tal mudança foi iniciada com a obra de Dietrich Bo- nhoeff,er (1906-1945), pastor luterano e animador da chamada "Igreja confitente", que se opunha ao nazismo em nome do -Evangelho; preso pela Gestapo em 1943 foi assassinado pelos -nazis em Flossemburo, pouco antes da libertação. As principais obras de Bonhoeffer são as seguintes: Acto e ser (1931), Criação e queda (1933), A imitação (1937), Vida em comum (1938), Ética (póstumo, 1949), Resistência e rendição (póstumo, 1951) e Tentação (póstumo, 1953). Com a obra de Bonh9effer é a primeira vez que se tenta uma interpretação não-religiosa da fé; chega-se mesmo a contrapor fé e religião. Baxth e Bultmann, na esteira de Kierkegaard, tinham concebido a fé como a inserção da Eternidade no tempo, da Transcendência na existência, e tinham procurado (especialmente Bultmann) libErtá-la de todo e qualquer elemento cosmológico ou mítico. Todavia, nem 320 um nem outro, na opinião de Bonhoeifer, alcançou a "interpretação não-religiosa dos conceitos teológicos" e ambos pressupuseram a religião como condição da fé (Resistência e rendição, p. 248-49). Este pressuposto é negado por Bonhoeffer. O mundo tornou-se adulto e mostrou ser capaz de viver sem religião. A tentativa, frequentemente empreendida pela apologética religiosa, de o reconduzir à dependência de crenças das quais já se libertou, parece-se com a tentativa de
reconduzir à puberdade um indivíduo que é já um homem (Ib., p. 246). Quer isto dizer que o espaço a atribuir a Deus não está nos confins do conhecimento ou da existência humanos, nem para além dos limites da fraqueza, da morte e da culpa do homem, mas sim no centro do homem e do seu mundo (Ib., p. 216). Sob este ponto de vista mudam radicalmente as relações entre Deus e o mundo, assim como muda radicalmente o problema da fé. Deus não pertence à esfera do transcendente ou do sobrenatural mas sim à esfera da natureza, entendida, para além das alternativas do vitalismo e do mecanicismo, como "uma forma de vida que Deus conservou no mundo caído, dirigindo-a para a justificação, a redenção e a renovação por meio de Cristo" (Ethik, tr4d. ingl., p. 103). Do ponto de vista formal, o "natural" define-se pela vontade de Deus em conservá-lo dirigido para Cristo. Do ponto de vista do conteúdo, o "natural" é a forma de vida que se mantém, a forma que compreende a humanidade inteira. A razão não é um princípio divino de conhecimento nem a ordem à qual o homem se eleva, por sobre o natural, mas 321 é ela própria uma parte da forma conservada de vida e precisamente aquela que se apresenta apta para a função de torná-la consciente, de "entender como unidade tudo quanto há de integro e de geral no real" (Ib., p. 103). Sob este ponto de vista, Deus não é senão a própria vontade de viver que é imanente à vida, pois só Deus dá à Nida a forma na qual ela pode viver e sem a qual caminharia para a sua própria destruição (Ib., p. 106). O mundo e Deus não constituem duas mas sim uma única realidade, a realidade de Deus que "se tornou patente em Cristo como a realidade do mundo". A esfera da realidade é a da realização de Cristo na qual se unem a realidade de Deus e a do mundo (Ib., p. 64). Sob este ponto de vista, a fé identifica-se com uma moral natural e humana, adjectivos estes que implicam, no contexto de Bonhoeffer, a unidade do mundo com Deus e da humanidade com Cristo. Esta unidade conduz à aceitação integral e sem condenação, do que é natural e humano. "Tal como em Cristo a realidade de Deus se introduziu na realidade do mundo, assim o que é cristão só se deve encontrar no que é mundano, o "sobrenatural" só no ;natural, o sacro só no profano e o revelado só no racional" (Ib., p. 65). Ser cristão não significa ser religioso de um modo especial nem cultivar qualquer forma de ascetismo mas apenas ser homem. Não é o acto religioso que faz do cristão aquilo que é e sim a participação no sofrimento de Deus na vida do mundo (Resistência e rendição, p. 266). Podem facilmente reconhecer-se, nesta teologia de Bonhoeffer, certos traços do panteísmo, clássico, 322 como a unidade de Deus e do mundo, e a identificação da vontade divina com a vontade de viver. Trata-se porém, sem dúvida, de um panteísmo não naturalista, uma vez que quando Bonhoeffer fala do "mundo", da "realidade", da "natureza" e da "vida", não faz qualquer
referência ao mundo ou à natureza físicos mas unicamente ao mundo dos homens e à sua vida associada, na qual a "razão", que é ela própria uma forma de vida querida ou conservada por Deus, desempenha a tarefa de determinar direitos e deveres. E nesta determinação mostra-se ele notavelmente desabusado: reconhece e defende na verdade o direito ao uso livre do próprio corpo, ao exercício da actividade sexual e à limitação dos nascimentos e acima de tudo insiste na Ética na exigência ido amor como a única reconciliação possível do homem com Deus em Jesus Cristo. Por meio do amor cessa a desunião dos homens com Deus, com os outros homens e consigo mesmos e a origem do homem é novamente posta nas suas mãos (Ethik, p. 175). Os temas fundamentais da teologia de Bonhoeffer foram vulgarizados num pequeno livro do bispo anglicano inglês John A. T. Robinson, Diante de Deus (Honest to God, 1963), o quâ teve grande êxito junto do público. Robinson dirige a sua polémica em primeiro lugar contra o sobrenaturalismo, entendido como separação entre o ser de Deus e o ser do homem. Se uma tal separação existisse, o próprio conceito fundamental para o cristianismo-de um Deus-homem. seria impossível. Mas se não existe, a afirma323 ção de Deus como realidade transcendente ou como ser pessoal toma-se por sua vez impossível. O problema de Deus é simplesmente o do reconhecimento daquilo que de mais verdadeiro e de mais autêntico existe na experiência humana. Robinson aceita neste ponto (não sem hesitações, muitas vezes incoerentes) a tese de Feuerbach (§ 595) segundo a qual a consciência que o homem tem de Deus é na realidade a consciência que o homem tem de si próprio. Robinson acrescenta a esta tese que a última realidade que forma a unidade -do mundo com Deus é o amor. Jesus não é outra coisa senão a perfeita realização do amor de Deus. Jesus "despojou-se" inteiramente - segundo a palavra de S. Paulo (A d Phil., 11, 6- i 1) -não da sua divindade, mas de si próprio, de todo o desejo de atrair sobre si as atenções, de toda a pretensão de estar em pé de igualdade com Deus e foi assim que se revelou Deus. Com o seu reduzir-se a nada, o seu entregar-se aos outros no amor, demonstrou e tornou patente que o Fundamento do homem é o amor. No livro de Robinson, como na obra de Bonhoeffer, a polémica contra o teísmo atingiu já um ponto limite. Fala-se em Deus apenas em relação a Jesus e aos homens e da transcendência unicamente como relação entre um homem e outro homem. Porém, já em 1961 o anúncio de Nietzsche "Deus morreu" (A ciência jovial, 1882, § 108, 125, 343) se tinha tornado no estandarte de uma "nova teologia" que, embora declarando-se cristã e falando em nome da Bíblia, procurava abstrair do próprio problema de Deus. Um sociólogo americano, Gabriel Vahanian, 324 publicava nesse ano um livro intitulado A morte de Deus cuja tese em que a imagem de Deus formada pela tradição cristã é um compromisso entre o cristianismo e a cultura grega e por conseguinte uni "ídolo" sem qualquer significado para a nossa cultura. Nesse mesmo ano de 1961, o teólogo americano William Hamilton num livro intitulado A nova essência do cristianismo,
afirmava: "Quando falamos da morte de Deus, não falamos apenas da morte dos íldolos ou do ser falsamente objectivado nos céus; falamos também da morte em nós de toda a capacidade de afirmar qualquer das imagens tradicionais de Deus. Entendemos que o mundo não é Deus nem para Deus se dirige" (The New Essence of Christianity, p. 58-59). Em 1963 o teólogo Thomas Altizer, da Universidade ide Atlanta, afirmava que a primeira condição de um novo conhecimento religioso é a admissão da morte do Deus do cristianismo. "Temos de reconhecer", dizia, "que a morte de Deus é um facto histórico; Deus morreu no nosso tempo, na nossa história e na nossa existência" (Mircea Eliade and the Dialectic of the Sacred, 1963, p. 13). Nesse mesmo ano de 1963 a linguagem teológica foi submetida à crítica doutro teólogo, Paul Van Buren, na obra O significado secular do Evangelho e do ponto de vista do neoempirismo lógico. A crítica de Van Buren é a mais radical, pois tende a demonstrar que a própria palavra "Deus" não tem qualquer significado, quer dizer, não pode referir-se nem a uma realidade objectiva nem a uma realidade subjectiva, como qualquer experiência humana. 325 "0 empirista que em nós existe", escreveu Van Buren, "acha o cerne da dificuldade, não no que w diz em volta de Deus mas propriamente no falar em Deus. Não sabemos o que é Deus nem como se emprega a palavra "Deus". Parece que esta funciona como um nome e todavia os teólogos dizem-nos que não podemos empregá-la como os outros nomes, referindo-a a algo de específico". O problema não se resolve, portanto, substituindo a palavra Deus por outras palavras: ainda que substituamos a letra X o problema mantém-se, pois a dificuldade diz então respeito ao modo como X funciona (The Secular Meaning of the Gospel, 1966 1, p. 84). Sob este ponto de vista, a linguagem cristã é simplesmente uma linguagem emotiva ou exortativa, uma linguagem que deve esclarecer os homens sobre as atitudes que deverão tomar ou sobre as maneiras especiais de agir baseadas na razão inexpressa de que as coisas podem existir de um modo especial. Assim a afirmação "Está próximo o reino de Deus" não pode ser verificada empiricamente mas a atitude que exprime está aberta à verificação mediante a consideração do comportamento de quem faz essa mesma afirmação. (Ib., p. 131). O aspecto social e político ida nova teologia predomina na obra de Harvey Cox, professor em Harvard, A cidade secular (1965). A secularização é, segundo Cox, a libertação do homem da tutela religiosa e metafísica, o desviar da sua atenção de outros mundos e o voltá-la só para este mundo. É essa a característica própria de uma nova espécie de comunidade humana, a tecnópole, que sucedeu à 326 tribo e à cidade. Se, na tribo, Deus aparecia ao homem como um dos "deuses" e na cidade como uma parte da estrutura cósmica, na teonópole a palavra Deus em ambos estes sentidos (que ainda persistem) -perdeu todo o significado. Na twnópole, a política substitui a metafísica como linguagem da teologia. "Falamos em Deus de um modo seculam diz Cox, "ao reconhecermos o homem como seu sócio, como
aquele que está encarregado da tarefa de conferir sentido e ordem à história humana" (A cidade secular, trad. ital., 1968, p. 257). Introduzindo-se na disputa sobre a " morte de Deus", Cox observou que a palavra "Deus" não perdeu todo o significado para o homem moderno (como afirma Van Buren) mas, pelo contrário, adquiriu tantos que impede, mais do que facilita, a comunicação entre os homens. Sabemos hoje que todas as doutrinas, ideais, instituições e formulações, sejam religiosas, sejam seculares, nascem na história e devem ser entendidas em termos do seu contexto histórico. Como se poderá então manter uma afirmação de transcendência no contexto de uma cultura radicalmente imanentista? Só falando, não de um Deus que é mas de um Deus que será e de Jesus como o primeiro anunciante desse advento. A fé -em Deus será reconhecida pelo nosso tempo como esperança num futuro "Reinado da Paz" que torne os homens 'livres do sofrimento e de sacrifícios significativos. A nova teologia vai assim novamente inserir-se i-ia tradição profética do cristianismo primitivo e deverá desempenhar o papel de guia da comunidade de fé como uma espécie de vanguarda da humanidade, 327 abrindo caminho à hunanização da cidade e do cosmos e mantendo viva a esperança num reinado de igualdade racial, de paz entre as nações e de pão para todos (New Theology n.o 4, pp. 243-53). Foi principalmente em torno destas obras que se polarizou a discussão teológica nos últimos anos. Esta discussão envolve óbviamente não só conceitos filosóficos mas também orientações e interesses religiosos, sociais e políticos. As confusões entre estes vários pontos de vista são frequentes nas polémicas em curso que, precisamente por isso, atraem a atenção de um número crescente de pessoas. Podem todavia identificar-se os fulcros de tais discussões e polémicas, nas posições conceptuais que a seguir rapidamente se resumem. 1) - A nova teologia tende a separar a fé da religião e a contrapó-las reciprocamente. Neste aspecto inspira-se principalmente na obra de Bultmann e de Bonhoeffer. A religião é considerada como expressão mítica ou contingente da fé, condicionada pelo ambiente histórico no passado e tornada inaceitável na época contemporânea, dominada pelo racionalismo, pela ciência e pela tecnologia. Esta recusa da religião é , entre outras coisas, a recusa de todo o aspecto cultural ou ritual da mesma. Ainda que quase todos os novos teólogos sejam pastores ou ministros do culto e (tanto quanto se sabe) prossigam na sua actividade, tendem eles porém a negar ao culto todo e qualquer valor em confronto com a fé autêntica. O ensinamento kantiano parece ter sido plenamente aceite neste ponto. Ter fé não significa executar 328 certos actos ou ritos nem cultivar uma certa forma de ascetismo e de misticismo, mas apenas (como diz Bonhoeffer) "ser homem", quer dizer, participar na vida do mundo, no sofrimento e nas dores dos outros e trabalhar para um mundo melhor. Sem dúvida, a renúncia à importância do aspecto cultural da fé tende a diminuir ou a anular a distância, não só entre as várias confissões religiosas cristãs mas
até mesmo entre religiões diferentes e sobretudo entre o cristianismo e as religiões orientais, sendo esta última tendência reforçada pelo panteísmo declarado de muitos novos teólogos. Sob este ponto de vista, a função da Igreja torna-se extremamente problemática. Segundo Van Buren, esta desapareceu, pura e simplesmente (The Secular Meaning of the Gospel, p. 191). Segundo o bispo Robinson (The New Reforination, 1965) a Igreja deveria escolher o caminho da **kenosis, isto é, deveria "despojar-se" de tudo quanto lhe confere privilégios e prestígio aos olhos do mundo. Segundo Cox, é a "vanguarda, de Deus" na cidade secular, a qual porém não se identifica com nenhuma das organizações existentes (A cidade secular, cap. VI). 2) - A fé pode e deve prescindir de todo e qualquer elemento sobrenatural. O sobrenaturalismo é precisamente o resíduo da religião mítica tradicional. Ouer isto dizer que não existe um mundo diferente daquele em que o homem vive -e age, um sobremundo do qual o mundo humano constituiria apenas a aparência ou o vestíbulo. Neste aspecto a nova teologia não é senão a aceitação pura e simples do 329 racionalismo moderno tal como foi afirmado pelo iluminismo. Já não há pois lugar para o mistério. Deus não está para além dos limites do conhecimento ou dos poderes humanos, no inacessível ou no inexprimível: reside na própria natureza do homem como tal. É este o sentido da afirmação de Bonhooffer segundo a qual Deus se encontra no centro do homem e do seu mundo. 3) - Deus não é transcendente no sentido de ser uma substância ou uma realidade qualquer, separada da natureza e do mundo e dotada de causa- ]idade própria, podendo intervir nos acontecimentos do mundo e modificá-los. A causalidade de Deus identifica-se com a causalidade natural e histórica e até mesmo a iniciativa divina da graça opera por meio da livre escolha dos homens. Nesta matéria, se Bultmann afirmava que o homem deve esperar a sua vida autêntica, como dádiva do futuro, proveniente de Deus (§ 853), Bonhoeffer afirma expressamente que o homem deve mergulhar na vida de um mundo "sem Dous" e evitar a tentativa de camuflar desta ou daquela maneira o ser-emDeus do mundo (Resistência e rendição, p. 246). É neste ponto que insistem os teólogos mais radicais. E trata-se indubitavelmente do panteísmo clássico, expresso na fórmula Deus sive natura que identifica a causalidade divina com a mundana e histórica, com a única restrição (como adiante veremos) de que o "mundo" aqui -referido é somente o da vida e da sociedade humanas. 330 4) -A transcendência, negada a Deus, constitui, pelo contrário, a índole da realidade humana. Nesta matéria foi decisiva a lição do existencialismo. O ser do homem é transcendente na medida em que a existência do homem indivíduo se encontra sempre em relação com a existência dos outros. Existir, diz Bonhoeffer, quer dizer existir para os outros. "0 transcendente não é um dever ser infinito e inatingível mas sim o próximo, determinado de vez em quando e
atingível" (Resistência e rendição, p. 278). 5)-Nesta transcendência consiste o significado da figura de Cristo. Para Bonhoeffer, Jesus é aquele que viveu para os outros no amor e por essa razão é no amor que se identificam Deus, Cristo e o homem (Ethics, p. 176). Para Hamilton, a figura de Cristo encarnou o "estilo" da vida autêntica que por isso deve ser definida como imitatio Christi (The New Essence of Christianity, p. 121). Segundo Van Buren, Cristo é o protótipo do amor humano e a sua história constitui a norma daquilo que deve ser a história humana no mundo (The Secular Meaning of the Gospel, p. 149). A "divindade de Cristo" é, sob este ponto de vista, interpretada corno o modelo, a antecipação ou o anúncio daquilo que o homem é ou deverá ser no decurso da sua história no mundo. Deus vive em Cristo porque o modo de vida de Cristo' o seu "ser-para-os-outros", o amor, é o modo autêntico da existência humana. Altizer inverteu completamente a fórmula tradicional "Jesus é Deus" naqueloutra "Deus é Jesus", o que quer dizer que Deus se negou a si mesmo, ao tornar-se carne e 331 deixou de existir como espírito transcendente ou desencarnado (The Gospel of Christian Atheisni, 1967, p. 69). 6)-A nova teologia compartilha das esperanças escatológicas dos primeiros cristãos mas tende a dar à escatologia um sentido novo e puramente mundano, O "Fim do Muftdo" e o "Reinado da Graça" constituem assim a anulação ou a superação do mundo humano nas suas estruturas actuais mas apenas na medida em que representam o advento dum mundo novo e melhor. É necessário substituir--dizem--a afirmação "Deus é" pela de "Deus será"; este será não tem já, porém, o mesmo significado do é. Significa apenas que Leus se realizará como amor numa comunidade humana que siga o exemplo de Cristo. Sob este ponto de vista, o "nada" do mundo de que falam as filosofias orientais é o ser, ainda desconhecido e imprevisível, deste mundo novo. Altizer insistiu especialmente na conexão que, neste sentido, se pode -encontrar entre cristianismo e filosofias orientais, conexão essa, aliás, já estabelecida (como se viu) pelo panteísmo abertamente aceite pelos novos teólogos. Disse ele que o movimento da negação radical do mundo, própria das religiões orientais, é na realidade a recuperação de uma Totalidade sacra ou primordial, simbolicamente conhecida como Brahman-Atman, Nirvana, Tão ou Sunyata, a qual por conseguinte se resolve numa -afirmação total do Sagrado que está na base do próprio cristianismo ou de que o cristianismo constitui uma forma (The Gospel of Christian Atheism, pp. 31-40). Como re332 sultado da nova teologia formula-se assim um ecumenismo não apenas cristão mas universal, o qual compreende todas as religiões do mundo distinguindo embora de certo modo o cristianismo; esse resultado é facilitado pela negação da importância do culto, do rito e das formas mítico-simbólicas nas quais se exprimem as várias religiões bem como pela função bastante problemática atribuída à igreja. 7) - Com a negação do valor da religião e de todas as formas de culto, a nova teologia tende
a identificar-se com a ética ou com a política. Não é sem motivo que a obra fundamental de Bonhoeffer é uma Ética dedicada principalmente ao estudo dos problemas morais e políticos do mundo contemporâneo. Mas a ética de que falam Bonhoeffer e os novos teólogos é, de modo coerente com os seus pressupostos, uma ética humana e mundana que não implica renúncia, resignação ou sacrifício, exaltando até, frequentemente na esteira de Nietzsche, os valores naturais e humanos: a saúde, a alegria de viver o bem-estar corpóreo, a sexualidade. Hamilton vê no sexo o símbolo da relação do homem com o mundo (The New Essence of Christiamity, p. 155); um outro teólogo põe o problema da sexualidade de Jesus: se Jesus era homem como poderia o sexo estar ausente da sua humanidade? (Tom F. Driver, em New Theology n.' 3, 1965. pp. 118-32). A nova teologia insiste sobretudo nas modificações sociais e políticas que a fé autêntica deveria trazer, dentro do espírito do amor cristão, a toda a comunidade humana. Hamilton escreveu: "A morte de Deus é 333 o acontecimento menos abstracto que se pode imaginar. Conduz imediata e plenamente a modificações políticas revolucionárias e conduz também às tragédias e delícias deste mundo" (em "Deus morreu", Milão, 1967, p. 190). Sob este aspecto a nova teologia passa a fazer parte daquela procura de uma nova utopia de que falaremos no parágrafo seguinte. Os temas atrás esboçados constituem os pontos-chave ou conceitos-base aos quais se referem os teólogos, escritores e políticos que participam na discussão em curso. Outros teólogos protestantes, anglicanos e católicos submetem estes temas a crítica, ou reconduzem-nos (o que é bastante fácil) a posições da filosofia ou da teologia tradicionais, ou então demonstram (frequentemente não sem razão) as suas incongruidade e incoerência. É porém uni facto que as discussões em torno destes temas constituem uma parte importante do debate filosófico contemporâneo e suscitam um interesse crescente. § 865. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: A UTOPIA NEGATIVA Já na interpretação que da escatologia cristã deram alguns dos novos teólogos se vislumbra um renascer da utopia. Trata-se aqui de uma utopia cujo carácter é mais negativo que positivo pois, diversamente da utopia clássica (Platão, Tomás Moro, Campanella, Fourier) que prescrevia, às vezes pormenorizadamente, a forma da cidade ideal. coti334 centra-se sobretudo na crítica dissolvente da sociedade real.
O carácter negativo da nova utopia é evidente no movimento conhecido por "escola de Francoforte". iniciou-se este na Alemanha, em Francoforte do Meno, quando, em 1931, o "Instituto de Investigação Social" passou a ser dirigido por Max Horkheimer (nascido em 1895) e tem os seus maiores representantes nas pessoas de Theodor W. Adorno (Francoforte, 1903-1969) e Herbert Mareuse (nascido em 1898 em Berlim). Afastados da Alemanha após o advento do nazismo, estes pensadores ensinaram e trabalharam em seguida nos Estados Unidos da América. Horkheimer e Adorno regressaram depois da guerra a Francoforte; Marcuse ficou na América. Todos três ligam estreitamente a investigação filosófica à sociológica e à psicológica e declaram inspirar-se em Hegel, Marx e Freud. Com Hegol, insistem no carácter absoluto da razão e no carácter negativo ou dialéctico dessa mesma razão, ignorando porém ou desconhecendo a identidade positiva entre realidade e racionalidade que é a tese fundamental de Hegel. A Marx vão buscar sobretudo a crítica da sociedade capitalista e a prognose do seu fim iminente, ignorando todavia ou descurando, quer o desenvolvimento da estrutura económica que deveria, seguindo Marx, determinar a passagem à sociedade socialista, quer o conceito marxista de que ) homem é essencialmente constituído pelas necessidades e pelas relações de produção e trabalho que as satisfazem. A Freud vão buscar o conceito de ins335 tinto, entendido como tendência para o regresso a uma situação originária e o de repressão que é a sofrida pelo instinto na civilização, ignorando embora ou descurando a função positiva que, segundo Freud, essa repressão exerce, através do Superego, quer na formação da civilização quer na da personalidade humana normal. Horkheimer publicou as primeiras obras na "Zeitsehrifte, für Sozialforschung" (presentemente coligidas sob o título Teoria crítica, (1969); publicou seguidamente e por forma esparsa outras obras, coligidas sob o título Para uma crítica da razão instrumental, (1967). Um ensaio de 1947, publicado na América, Eclipse da razão, contém o tema hegeliano em volta do qual giram as suas reflexões: a distinção entre razão objectiva e razão subjectiva. A razão objectiva é a dos grandes sistemas filosóficos (Platão, Aristóteles, a Escolástica e o Idealismo alemão), a qual tende a estabelecer uma hierarquia de todos os seres e o fim supremo para que todos devem ser encaminhados. A razão subjectiva é aquela que se recusa a estabelecer tal hierarquia bem como a reconhecer um fim último ou, em geral, a avaliar os fins, limitando-se apenas a determinar a eficiência dos meios relativamente ao fim, seja este qual for. A razão subjectiva é o instrumento usado no domínio do homem. Com efeito, os esquemas a que obedece a visão que o homem tem da natureza, reflectem-se na imagem que o homem tem dos outros homens e transformam as relações inter-humanas numa forma de sujeição do homem por parte da sociedade em que vive. Horkheimer afirma 336 todavia que o dualismo de razão objectiva e razão subjectiva como o de espírito e natureza "é só aparente embora exprima uma real antinomia" (Eclipse da razão, p. 150). A tarefa da filosofia não é a de regressar à tradição objectivista do passado mas antes a da destruição do presente por meio de um "progresso na direcção da utopia" o qual
consiste na negação de ou na renúncia a tudo quanto é inútil ao homem e impede o seu livre desenvolvimento. Num livro escrito em colaboração por Horkheimer e Adorno e intitulado Dialéctica do iluminismo (1944), o qual -nunca passou do estado fragmentário, estas ideias aparecem substancialmente reforçadas pela identificação da razão subjectiva ou instrumental com o iluminismo. "0 iluminismo, refere-se às coisas como o ditador aos homens: só os conhece na medida em que se encontra em posição de os manejar. O cientista conhece as coisas na medida em que se encontra em posição de as criar. É assim que o seu em-si se transforma em por-ele. Nessa transformação, a essência das coisas revela-se sempre a mesma, ou seja, como substracto do domínio" (A dialéctica do iluminismo, p. 17). Esta obra pretende ser uma crítica radical da sociedade contemporânea. mas apresenta-se antes como uma colecção desordenada de lugares comuns erigidos em juízos inapeláveis. Da condenação só se **salrvam Nietzsche (na sua feição adulterada) e o Marquês de Sade porque "ao proclamarem a identidade entre razão e domínio, as doutrinas impiedosas são mais piedosas do que as dos lacaios da burguesia" (Ib., 129). Os Mínima moralia (1951) do mesmo 337 Adorno, dirigem-se expressamente à defesa do indivíduo ou da "experiência subjectiva" (Minima moralia, trad. ital., p. 8). Nada se diz porém sobre a relação eventualmente existente entre o indivíduo e a experiência subjectiva e a "razão subjectiva" ou "razão objectiva" a que se fazia referência nas obras anteriores. influenciado pela lição do anarquismo e principalmente de Stimer (§ 596), Adorno afirma por um lado que o indivíduo é a única realidade última, a suprema essência, mas por outro, afirma que essa realidade se apresenta na sociedade contemporânea reduzida à aparência ou nãoessência, uma vez que a sociedade é um "sistema" que não só "oprime e deforma os indivíduos" como "penetra mesmo até àquela humanidade que em tempos os determinava como indivíduos" (Minima moralia, trad. ital. pp. 104, 143). Mas em que sociedade eram os indivíduos "determinados" como indivíduos? Como pode o indivíduo ser isso mesmo se estiver "determinado" a sê-lo? Como poderá uma qualquer organização social abolir ou anular a essência e o que é uma essência que pode ser reduzida a uma "aparência"? Perguntas estas que não encontram resposta na obra de Adorno que parece jogar com as palavras sem se dar conta do seu significado, com o fim de se mover entre a nostalgia dum passado que não sabe qual seja a esperança de um futuro do qual nada sabe dizer. A primeira obra de Mareuse foi um ensaio intitulado "Contribuições para a compreensão de uma fenomenologia do materialismo histórico" (1928) o qual é, como o próprio, título indica, uma tentativa 338
de conciliação entre a fenomenologia husserliana e o marxismo. Esta tentativa responde à exigência a que obedeceram, entre o terceiro e o quarto decénios do nosso século, outros pensadores marxistas como Grarasci e Lukács-de subtrair o marxismo à interpretação engelsiana-positivista contida no "materialismo dialéctico", ou seja, na doutrina oficial dos países comunistas. Pela sua obscuridade e confusão de conceitos, aquela obra não abria grandes perspectivas. Porém, muitos anos volvidos (1964), voltando ao tema, Marcuse dá-nos um juízo muito mais concludente sobre a fenomenologia. Husserl afirmara justamente que a Razão tem uma validade superfáctica e supertemporal e que por ásso a realidade descoberta e definida pela Razão é racional na medida em que é contra o facto, que consiste num dado imediato. Reconhecera justamente "o feiticismo da universalidade e da racionalidade científicas, ao descobrir os fundamentos histórico-práticos específicos da ciência", ou seja, que a ciência não é mais do que uma simples estrutura tecnológica. Reconhecera enfim justamente que a ideia de Razão é a do telos do homem como tal, quer dizer, a realização da humanitas. Isto não significa porém que o humanismo se tenha rebaixado ao nível de uma mera ideologia nem sequer que, ao tomar-se uma ideologia, se tenha rebaixado. "Permanece o facto de que o humanismo é ainda hoje uma ideologia, um valor mais alto que pouco influi no carácter inumano da realidade. E permanece também a dúvida sobre se a filosofia será inteiramente inocente deste estado de coisas, sobre se ela própria 339 não será culpada por faltar ao seu dever de Theoria, de Razão, ou seja, de promover a realização da Humanitas" ("On Science and Phenomenology" em Boston Studies in the Philosophy of Science, New York, 1965, pp. 279-90). E na verdade as obras de Marcuse têm por objectivo fundamental a demonstração de como a filosofia terá falhado na sua tarefa de realizar, por intermédio da Razão, a humanitas de como esta tarefa deve hoje ser confiada à prática, em sentido marxista, ou seja, a forças políticosociais revolucionárias. As principais obras de Marcuse são as seguintes: A ontologia de Hegel e as bases de uma teoria da historicidade, 1932; Razão e revolução: Hegel e o nascimento da teoria social, 1941; Eros e civilização, 1955; O marxismo soviético, 1958; O homem unidimensional: estudos sobre a ideologia de uma sociedade industrial avançada, 1964; O fim da utopia, 1967; Ensaio sobre a libertação, 1969. Aquilo que na obra de Marcuse permanece constante é a crítica radical e a condenação sem a-pelo de Ioda a sociedade contemporânea, mesmo naqueles aspectos que considera como
contrapõe ao ser, a ideologia destinada a sustentar a realidade e a estimular as forças de renovação da sociedade; outras vezes, considera-a, pelo contrário, como compreensiva tanto do bem como do mal, do humano como do inumano, da sociedade ideal como da real. O mesmo acontece com o Instinto. PoT um lado o Instinto é, para Marcuse, a força primordial e criadora da vida que impele ao prazer e à alegria e que não deveria portanto tolerar repressão nem limites-, por outro, admite uma corta forma de repressão e até mesmo uma transformação biológica radical do próprio instinto. Desta hesitação quanto aos princípios deriva uma outra, sobre os conceitos básicos utilizados por Marcuse e, em primeiro lugar, sobre a liberdade. A liberdade é, por um lado, identificada com a necessidade da Razão e por outro com a escolha. Mareuse fala-nos, utilizando os conceitos do existencialismo contemporâneo, de possibilidade, de escolha, de projecto; por outro lado, -porém, admite um determinismo necessitante que a sociedade como um todo exerceria sobre os indivíduos, anulando as suas individualidade e humanidade e por conseguinte toda a sua capacidade de escolha e de planeamento autónomos. Razão e revolução, que é** sub5tanoialmente uma defesa da doutrina de Hegel contra a acusação de servir de fundamento às teorias absolutistas do Estado e sobretudo ao nazismo, acaba por reforçar esta acusação. Hegel "não é culpado de servilismo mas de traição no confronto das suas ideias filosóficas mais elevadas. A sua doutrina política admite a submissão da sociedade à natureza, da liberdade à 341 necessidade e da razão ao arbítrio" (Razão e revolução, trad. ital., p. 247). Nessa mesma obra a doutrina de Marx é interpretada no sentido de que "a abolição do proletariado implica a abolição do trabalho como tal" e que portanto "a ideia marxista de uma sociedade racional implica a existência de uma ordem na qual não já a universalidade do trabalho, mas antes a realização universal de todas as potencialidades dos indivíduos constitua o fundamento da organização social" (Ibidem, pp. 326-27). Vice-versa, em Eros e civilização, Mareuse sustenta que "a correlação freudiana repressão do instinto -trabalho socialmente útil -civilização pode, som se tornar absurda, ser transformada na correlação libertação do instinto- trabalho socialmente útil-civilização" (Eros e civilização, trad. ital., p. 125). Pareceria portanto que a libertação do homem não implicaria a abolição do trabalho. A "Grande Recusa" (designação inspirada no Manifesto do Surrealismo proclamado em 1924 por André Breton) consistiria no "protesto contra a repressão supérflua, na luta pela forma definitiva de liberdade-um viver sem angústia" (Ibidem, p. 121). E a obra inteira tem como objectivo a demonstração de que a "auto-sublimação da sexualidade" destrói o primado da função genital, transforma todo o corpo em órgão erótico e o trabalho em jogo, divertimento ou espectáculo. Com o advento do puro Eros, ficaria destruída "a ordem repressiva da sexualidade procriadora" (Ib., p. 137). Mas não ficaria também destruída a capacidade humana de reprodução? 342 Em O **lwnzem unidimensional, no qual reaparecem todos os motivos de crítica da sociedade tecnológica e da ciência, dispersos pelas anteriores obras de Marcuse e pelas de
Adorno, o homem unidimensional, ou seja, alienado na sociedade tecnológica, é aquele para o qual a razão se identifica com a realidade e que por isso não distingue já a separação existente entre o que é e o que deve ser, uma vez que para ele, não há, para além do sistema em que vive, outros modos possíveis de existência. Para o homem unidimensional, a Razão é incapaz de transcender a realidade em acto e de ,projectar novas formas de vida social e histórica. O resultado é "a progressiva servidão do homem por meio de um aparelho produtivo, que perpetua a luta pela existência e a generaliza numa iluta total e internacional que destrói as vidas dos que constroem ou utilizam esse aparelho" (One Dimensional Man, p. 144). Em face desta situação, a tarefa da filosofia consiste em restituir à Razão a sua liberdade de planeamento e em exercer uma função ideológica e portanto terapêutica por meio da elaboração de um "plano transcendente", ou seja, de um plano da existência humana no mundo em bases radicalmente diferentes das actuais. Este plano deveria, em primeiro lugar, estar de acordo com as possibilidades reais que se abrem a um determinado nível da cultura material e intelectual. Em segundo lugar, deveria revelar a mais alta racionalidade, num triplo sentido: ao oferecer a perspectiva de conservar e melhorar os resultados produtivos já obtidos pela civilização, ao definir a civilização actual nas 343 suas tendências básicas e nas suas estruturas, e finalmente, ao dar uma maior oportunidade à pacificação da existência por intermédio de **Áristi-tuições que ofereçam maiores oportunidades para um livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas (Ib., p. 220). Um tal plano deve, segundo Marcuse, utilizar as possibilidades reais, inerentes à civilização instrumental ou tecnólógica mas, ao mesmo tempo, deve transcendê-las mediante a força transformadora da Razão. "A Razão", acrescenta Marcuse, "pode desempenhar esta função apenas como racionalidade póstecnológica em que a técnica constitua ela própria o instrumental da pacificação, o órgão da "arte da vida". A função da Razão e a função da Arte serão então convergentes". (Ib., p. 238). Com tudo isto, a teoria crítica da sociedade permanece negativa pois não possui conceitos capazes de superar o abismo entre o presente e o futuro, não faz qualquer promessa nem mostra qualquer êxito; porém, deste modo, "pretende conservar--,e fiel àqueles que deram c dão a sua vida pela Grande Recusa" (Ib., p. 257). A conclusão da obra é pois negativa. Quais sejam as "possibilidades reais" que a sociedade actual apresenta de um futuro melhor, não no-lo diz Marcuse e, acima de tudo, não nos diz como tais possibilidades, inerentes à realidade em acto, fazendo parte dela e por ela substancialmente determinadas, poderão de algum modo transcendê-la, não nos diz igualmente como se poderão utilizar e desenvolver, negando ao mesmo tempo na sua totalidade o sistema ao qual são inerentes. 3 4; @,1 Nos ensaios posteriores, Marcuse acentuou o carácter político da sua filosofia, ao apontar nas
classes deserdadas a existência de forças capazes de promover a renovação da sociedade e o começo de realização no <,o plano transcendental". Continuou a insistir no carácter abstracto ou negativo da sua utopia. " As possibilidades da nova sociedade", escreveu recentemente, "são de tal maneira "abstractas" e por conseguinte tão longínquas e incongruentes, relativamente ao universo actual que desafiam toda e qualquer tentativa de identificação em termos deste mesmo universo" (Ensaio sobre a libertação, trad. ital., pp. 101-02). Como falar nelas, então? Marcuse admite porém que o "antigo não é pura e simplesmente ruim, pois produz bens nos quais as pessoas encontram real satisfação. Podem existir sociedades muito piores e aliás existem, hoje em dia. O sistema capitalista tem o direito de pretender que aqueles que se empenham em substituí-lo justifiquem a sua acção" (Ib.). Mas como poderão justificá-la se na-da sabem dizer sobre o que deveria substituí-lo? NOTA BIBLIOGRÁFICA § 861. H. WOODGER, Biology and Language, Cambridge, 1952; W. Ross ASHBY, An Introdution to Cybernetics, Londres, 1956; Logique, langage et théorie de Vinformation, Paris, 1957; L. BRILLOUIN, Vie, matière et observation, Paris, 1959; F. H. GEORGE, AUtOmati,on, Cyberneties and Society, Londres, 1959; A. MONTAGU, Human heredity, Gleveland e Nova Iorque, 345 1959; J. R. PIERCE, A teoria da informação, Milão, 1963; vários autores, Le concept d'information dans Ia science contemporaine (Cahiers de Royaumont), Paris, 1965; Biology and Personality, edited by I. T. Ramsey, Oxford, 1965; C. H. WADDINGTON New Patterus in Genetics and Developinent, Nova lorque, 1962; M. J. APTER, Cybernetics and Development, Pergamon Press, 1966; F. CRICK, Of Molecules and Men, University of WashingtGn Press, 1966; E. E. MORISON, Men, Machines and Modern Times, M. I. T. Press, 1966; J. VON NEUMANN, Theory of SeIf-Reproducing Automata, University of Illinois Press, 1966; R. RuYER, A génese das foi-mas vivas, trad. ital., Milão, 1966; N. WIENER A cibernética, trad. ital., Milão, 1953; Introdução à cibernética, trad. ital., Turim, 1953; Deus & Golem, S.A.R.L., Turim, 1967; Encyclopédie de Ia PIéiade: Logique, épistémologie, méthodologie (a cargo de G. Piaget), Paris, 1967; Linguisties and cominunication (fase. especial do "Internaptional Social Science Journal"), Unesco, 1967; M. A. ARBIB, A mente, as máquinas e a matemática, Turim, 1968; K. STFiNBUCH, O autómato e o homem, com bibl., Turim, 1968. § 862. L. BLOOMFIELD, Language, Nova Iorque, 1933; Social Structure: Studies Presented to A. R. Radeliffe-Brown (a cargo de M. Fortes), Oxford, 1949; A. R. RADCLIFF-BROWN, Structure and Funetion in Primitive Society, Glencoe, 111., 1952; M. J. APTER, Cybernetics and Developinent, Pergamon Press, 1966; G. A. MILLER, E. GALANTER, K. FI. PRIBRAM, Plans and lhe Structure of Behavior, Nova lorque, 1960; Language Thought and Culture, edited by P. Henle, University of Michigan Press, 1965; A. MARTINET, A consideração funcional da linguagem, Bolonha, 1965; Sens et usages du terme structure, a cargo de R. Ba,stide, 1962, trad. ital., Milão, 1965; N. CROMSKY, Aspects of the Theory of Syntax, M. I. T. Press, 1965, Cartesian Linguistics, Nova Iorque, 1966; R. JAICOBSON, Ensaios de linguística geral, a cargo de L. Heilmann, 346
Milão, 1966; 1. E. REZVIN, ModeIs of Language, trad. ing1. do russo, Londres, 1966; The Structural Study of Myth and Totemism, edited by E. Leach, Londres, 1967; R. H. ROBINS, A Short History of Linguistics, Londres, 1967; F. DE SAUSSURE, Curso de linguística geral, introd., trad. e coment. de Tullic, de Mauro (com bibl.), Bari, 1967; BENVENISTE, CHOMSKY, JAKOBSON, MARTI-NET, KURYLOWICZ, FONAGY, BACH, SAUMJAN, SCHAFF, LEROY, S0MMERFELT, PANDE, Os problemas actuais da linguística, Milão, 1968; J. PIAGET, O estruturalismo, Milão, 1968;Língua e linguagem, fase. especial da revista Ulisse, Setembro de 1968; F. REMOTTI, Modelos e estruturas na antropologia de Lévi-Strauss, em "Revista de filesofia", 1968, 4; E. SAPIR, A linguagem, trad. ital., Turim, 1969; G. SCHiwy, Der franzosische Stmkturalismus, Rowohlt, 1969 (selecção de textos com Introdução). Para uma crítica da rigidez metafísica da noção de estrutura: U. Eco, A estrutura ausente, Milão, 1968. § 863. T. DOBMANSKY, Genetics and the Origin of Specie8, 1937; Mankind Evolving, New Haven, 1962; J. HuXLEY, The Uniqueness of Man, Londres, 1943; Evolution in Action, Londres, 1953; TEILLARD DE CHARDIN, Oeuures, Paris, 1955 e segs., trad. ital., Milão, 1968 e segs.; E. MAYR, Animal Species in Evolution, Cambridge, Mass., 1963; DOIMTANSKY, A evolução da espécie humana, Turim, 1965; The Biology of Ultim-at Concern, Nova Iorque, 1967, trad. ital., Bari, 1969. § 864. BONHOEFFER, Gesammelt Schriften, 4 vols., Munique, 1958-61; Ethics, trad. ingl., Londres, 1955; Ética, trad. ital., Milão, 1969; Resisténcia e rendição, trad. ital., Milão, 1969. Sobre Bonhoef`fer: F- BETHGE, D. B., Theologe, Christ, Zeiigenosse, Munique, 1967; A. DUNIAS, Une tlèéologie de la réalité, D. B., Genebra 1968. J, ROBINSON, Deus não é assim, trad. ital. da Honest to God, Florença, 1965; T. J. J. ALTIZEiz e 347 W. HAMILTON, Radical Theology and the Death of God, Ncwva Iorque, 1966; T. J. J. ALTIZER, The Gospel of Christiam Atheism, Filadélfia, 1966; M. E. MARTY e G. PEERMAN, New Theology n. 1, Nova Iorque, 1964; n. 2, Nova Iorque, 1965; n. 3, Nova Iorque, 1966; n. 4, Nova Iorque, 1967; Deus morreu?, volume colectivo, Milão, 1967; R. ADOLFS, O túmulo de Deus, Milão, 1968. E. L. MASCALL, The Secularizalion of Christianity, An Analysis and a Critique, Nova Iorque, 1965; K. HAMILTON, God is Dead, The Anatomy of a Slogan, Grand Rapids, Mich., 1966; H. Cõx, A cidade seculm-, trad. ital., Florença, 1968. § 865. Notas sobre I-lorkheimer, Adorno e Marcuse, sobretudo no seu período de Francoforte, em G. E. Rusconi, A teoria crítica da sociedade, B-olonha, 1968, 111 parte. M. HORICHEIMER, Eclipse da razão, trad. ital., Turim, 1969. T. W. ADORNO, Mínima moralia, trad. ital., Milão, 1954; Filosofia da música moderna, trad. ital., Turim,
1959; M. HORKHEIMER-T. W. ADORNO, Dialéctica do iluminismo, trad. ital., Turim, 1966. H. MARCUSE, Eros e civilização, trad. ital., Turim, 1968; Razão e revolução, trad. ital., Bolonha, 1965, 1967; O homem unidimensional, trad. ital., Turim, 1967; O fim da utopia, trad. ital., Bari, 1968; Ensaio sobre a libertação, trad. ital., Turim, 1969. Sobre Mareuse: C. A. VIANO, Marcuse ou os remorsos do hegelianismo perdido, em "Revista de filosofia", LIX, n. 2, 1968, págs. 149-183; Colletti, Hegel e o marxismo, Bari, 1969. 348 íNDICE XIII- O NEO-EMPLR1SMO
... ...
7
§ 805. Características, do neo-empirismo 7 § 806. Escolas ncoempiristas ... ... 9 § 807. Schlick .. ... ... ... ... ... 12 § 808. Neurath ... ... ... 16 § 809. Wittgensteiii: linguagem e factos is § 810. Wittgenstem: as tautologias
.. ... ...
... 24 § 811. Wittgenstein: a pluralidade das
linguagens ... ... ... ... ... 30 § 812. Carnap: relações e experiências 36 § 813. Carnap: dado, protocolo, predicados o_bserváveis ... ... ... ... 42 § 814. Carnap: a sintaxe lógica ... ... 46 § 815. Reichenbach ... ... ... ... ... 53 § 816. Probabilidade e indução ... ... 56 § 817. O principio da refutabilidade: Papper ... ... ... ... ... ... 62 § 818. O princí.oio Propoisições analíticas e sintéticas 70
de verificabilidade
65 § 819.
349 § 820. A semântica ... ... ... ... ... 75 § 821. A filosofia analítica ... ... ... 78 § 822. O neo-empirisino ético ... ... 85 § 823. O neo-emoirismo estético ... ... 90 § 824. O neo-ipositivismo jurídico ... ... 92 NGta, bibliográfica ... ... ... ... XIV -A FENOMENOLOGIA
99 .. ... ... ... 105
§825. Características de fenomenologia
105 §826. Antecedentes da fenomenologia:
Bolzano, Brentano ... ... - ios §827. Husserl: Vida e obra ... ... ... 113 §828. A Epoiché ... ... ... ... ... 115 §829. A intencionalidade ... ... ... 119 §830. O Eu ... ... ... ... ... ... 123 §831. O mundo da vida ... ... ... ... 128 §832. A tarefa da filosofia ... ... ... 133 §833. A teoria dos objectos: Meinong 137 350 § 834. Hartmann: a antologia
... ... 143 § 835. Hartmann: a neceissidade do ser
148 § 836. Hartmann os estratos do ser ... e da pessoa
... ... ... ... ... 159 § 838. Scheler: a sociologia filosófica
Nota bibliográfica ... ... ... ... XV-0
154 § 837. Scheler: o mundo dos valores 169
175
EXISTENCIAJISMO
... ... ... ...
179
§ 839. Características do existencialismo cultural ... ... ... ... ... ... ... 181
179 § 840. O existencialismo como clima
§ 841. Existencialismo e fenomenologia kierkegaardiano:
185 § 842. O renascimento
Barth ... ... ... ... ... ... 188 § 843. Heidegger: ser, ser-aqui, existir Heidegger: o estar no mundo e a existência inautêntica
... ...
192 § 844.
198
351 §845. Heidegger: a existência autêntica e o viver para a morte ... ... 204 §846. Heidegger: o tempo e a história 209 §847- Heidegger: o ser ... ... ... ... 216 §848. Jaspers: existência e razão ... 223 §S49. Jaspers: existência e situação 228 §850. Jaspers: transcendência e fracasso 234 §851. Jaspers: lógica e comunicação 236 §852. Jaspers: fé e revelação ... ... 241 §853. Existencialismo e desmitificação.
...
BuItmann ... ... ... ... ... 245 §854. Sartre: u, emoção, imaginação 250 §855Sartre: o "em si" e o "por si" 253 §856. Sartre: a liberdade como destino 258 §857. Sartre: a razão dialéetica ... ... 262 §858. Merleau-Ponty ... ... ... ... 272 §859. Existencialismo, marxismo, hegelianismo ... ... ... ... ...... 279 Nota bibliográfica ... ... ... ... 287 352 XVI - A
MAIS RECENTE EVOLUÇÃO
... ... 293
§ 960. Tendências gerais ... ... ... ... 293 § 861. A teoria da informação ... ... 295 § 862. Estruturalismo ... ... ... ... 303 § 863. A nova biologia ... ... ... ... 316 § 864. A nova teologia ... ... ... ... 320 § 865. A utopia negativa ... ... ... ... 334 Nota bibli,3gráfica ... ... ... ... 345 353 Composto e impresso para a bMITORIAL PRESENÇA
na Tipografia Nunes Porto