Filosoa da educação Otto Leopoldo Winck Ivo José Triches Triches Cláudio Joaquim Rezende Wanderley Machado Luciano D. da Silva Natalina Triches
IESDE BRASIL S/A
2018
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO SINDICA TO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F524 Filosofia da educação / Otto Leopoldo Winck ... [et al.]. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018. 230 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliograa ISBN 978-85-387-6403-8 1. Educação - Filosoa. I. Winck, Oo Leopoldo. II. Título. CDD: 370.1 17-46724 CDU: 370.1
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Apresentação
“Tudo o que é sólido se desmancha no ar”, escreveu Karl Marx no Manifesto Comunista , referindo-se à vertiginosa velocidade das mudanças na sociedade de sua época. Hoje, mais de 150 anos depois, podemos afirmar que essa constatação continua atual. Vivemos, com efeito, sob o impacto de mudanças cada vez mais velozes, em um tempo em que valores e certezas outrora considerados sólidos liquefazem-se antes mesmo que outros lhes tenham substituído. Nesse sentido, a educação é uma caixa de ressonância dessas vertiginosas transformações. Ao mesmo tempo em que as instituições de ensino são o baluarte de algumas das mais antigas tradições, como a disciplina e a hierarquia, elas não deixam de ser profundamente afetadas pelas alterações do presente mais imediato. As rebeliões juvenis do ano de 1968, por exemplo, tiveram como palco privilegiado as universidades. Daí a importância e urgência de pensarmos constantemente a edu cação. E, para fazê-lo, nada melhor do que pedirmos auxílio à filosofia. É o que faremos ao longo desta obra. No capítulo inicial, intentaremos esclarecer o conceito de filosofia. Em seguida, do capítulo 2 ao 14, faremos uma viagem pela história da filosofia ocidental, desde os seus antecessores gregos até correntes recentíssimas, como o existencialismo e a Escola de Frankfurt. Assim, nessa viagem lançaremos um olhar especial sobre alguns dos principais pensadores desse longo período, e esse olhar será acompanhado de exercícios de fixação e reflexão. Ademais, cada capítulo será complementado com um ou mais textos extraídos dos próprios filósofos – isso porque acre ditamos que conhecer a história da filosofia é, sobretudo, frequentar a reflexão dos pensadores que fizeram essa história. Os capítulos 15 a 18, por seu lado, abordam sob vários aspectos as relações entre filosofia e educação, destacando algumas questões candentes dessa problemática. Já que a educação nunca ocorre sem um substrato filosófico, ainda que latente ou oculto, é importante trazer à tona esse diálogo incontornável. É da mútua fecundação entre essas duas discipli nas, muito próximas uma da outra, que poderá surgir uma compreensão
e uma prática de ensino e aprendizagem capazes não apenas de interpretar as velozes mudanças de nosso tempo como também de conduzi-las para a construção de uma sociedade mais humana. Aliás, o próprio Marx declarou, na XI tese sobre Feuerbach, que “até agora os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo”. Acrescentamos apenas que essa missão é também – e sobretudo – dos educadores.
Dessa maneira, só nos resta desejar que essa viagem pelos horizontes imbricados da filosofia e da educação possa produzir muitos frutos, tanto na teoria quanto na prática de nossa ação pedagógica. Boa leitura!
Sobre os autores
Otto Leopoldo Winck Doutor e Mestre em Estudos Literários pela UFPR. Especialista em Filosofia com ênfase em Ética e Bacharel em Teologia pela PUC-PR.
Ivo José Triches Mestre em Engenharia da Produção com ênfase em Mídias e Conhecimento pela UFSC. Especialista em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter e em Filosofia Política pela UFPR. Especialista em Pensamento Contemporâneo e Graduado em Filosofia pela PUC-PR.
Cláudio Joaquim Rezende Mestre em Filosofia Política pela UFG e Especialista em Filosofia Política pela UFPR. Graduado em Filosofia pela PUC-PR e em Direito pela Unibrasil.
Wanderley Machado Especialista em História do Brasil e graduado em História.
Luciano Donizeti da Silva Doutor em Filosofia pela UFSCAR, mestre e graduado em Filosofia pela UFPR.
Natalina Triches Especialista em Tecnologias Aplicadas à Educação e em Gestão Escolar. Graduada em Filosofia pela UFPR.
Sumário 1 Um convite à filosofia
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1.1 Por que filosofia?
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1.2 Definições
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1.3 Divisão de tarefas
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1.4 A atitude filosófica e o senso comum
14
1.5 Nem dogmatismo nem ceticismo
16
2 Sócrates e a filosofia moral ocidental
19
2.1 O gênio grego, o mito e as origens da filosofia
19
2.2 Os filósofos naturalistas e os sofistas
21
3 Platão e o nascimento da razão ocidental
29
3.1 Platão: atleta e poeta
29
3.2 As vigas do pensamento platônico
31
3.3 O legado de Platão
33
4 Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes
37
4.1 Filho de médico, mestre de príncipe
37
4.2 Os escritos de Aristóteles
38
4.3 Só o individual é real
39
4.4 A metafísica
40
4.5 O pai da lógica
42
4.6 A justa medida e o bem comum
43
5 De Aristóteles à Renascença
49
5.1 A filosofia na era helenística
49
5.2 Sob a égide da cruz
55
5.3 A Renascença e o divórcio entre razão e fé
63
6
Filosofia da educação
Sumário 6 Espinosa: uma filosofia da liberdade
67
6.1 A filosofia moderna: entre razão e experiência
67
6.2 Uma vida em diáspora
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6.3 Uma vida de filósofo
70
6.4 O panteísmo de Espinosa
72
6.5 O ser humano
73
6.6 A moral, o sábio e a eternidade
74
6.7 Igreja e Estado
75
7 O Iluminismo e o Século das Luzes
79
7.1 Há algo de novo debaixo do Sol
79
7.2 Da Inglaterra e da França as luzes brilham para o mundo
81
7.3 Luzes e revolução
82
7.4 A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam à técnica
83
7.5 Nomes que brilham
84
7.6 O legado iluminista
87
8 Immanuel Kant e o idealismo alemão
91
8.1 Na encruzilhada da razão
91
8.2 O filósofo de Königsberg
92
8.3 Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana
94
8.4 A razão no tribunal
95
8.5 O imperativo categórico
98
8.6 Kant e a educação
100
8.7 O idealismo alemão
101
9 A dialética idealista e materialista
105
9.1 Dialética: breve histórico
105
9.2 Hegel
107
9.3 O hegelianismo
108
9.4 Filósofo e agitador
110
9.5 O materialismo histórico
112
9.6 A práxis
114
Filosofia da educação
7
Sumário 10 Schopenhauer: o mundo como representação
119
10.1 Contra Hegel
119
10.2 Uma vida taciturna
121
10.3 O mundo como representação
122
10.4 Tudo é dor
123
10.5 O nirvana
124
10.6 Schopenhauer e a educação
125
11 O positivismo e o desenvolvimento da ciência
127
11.1 Um mestre e uma musa
127
11.2 História e evolução
129
11.3 A religião da humanidade
130
11.4 Quando filosofia vira samba
131
12 Nietzsche educador
135
12.1 Vates e filósofos
135
12.2 Uma vida perigosa
136
12.3 Saúde precária e livros vigorosos
138
12.4 Uma filosofia feita com o martelo
139
12.5 O “anticristo” e a luta contra o platonismo do povo
140
12.6 O super-homem e a nova moral
141
12.7 Nietzsche e a educação
142
12.8 Nietzsche está vivo
143
13 A Escola de Frankfurt
147
13.1 A herdeira do facho
148
13.2 Uma escola crítica
148
13.3 Os momentos da teoria crítica
150
13.4 Teoria crítica versus teoria tradicional
150
13.5 Razão instrumental e indústria cultural
151
13.6 Principais expoentes
153
13.7 Luzes, razão e educação
157
8
Filosofia da educação
Sumário 14 Pragmatismo e existencialismo
161
14.1 Era dos extremos: as duas faces da moeda
161
14.2 Pragmatismo: origens e paternidade
162
14.3 Existencialismo: “uma mística do inferno”
166
15 Filosofia e educação
179
15.1 Filosofia para quê?
179
15.2 Crise e filosofia
180
15.3 Filosofia e educação: isso dá certo?
182
15.4 Filosofar ou filosofar: eis a questão
183
16 Ética e educação
187
16.1 A refundação da ética
187
16.2 Ética e moral
188
16.3 A ética através dos tempos
189
16.4 A ética na educação
192
16.5 Reconstruindo a ética na escola: tarefas
193
17 Filosofia e formação humana na escola
197
17.1 No princípio
197
17.2 A educação como formação
198
17.3 A formação como humanização
200
17.4 A escola como espaço privilegiado da formação
202
18 Filosofia clínica e educação
205
18.1 Historicidade da filosofia clínica
206
18.2 Principais conceitos da filosofia clínica e sua aplicabilidade na educação
207
18.3 As contribuições da filosofia clínica no fazer pedagógico
208
18.4 Filosofia clínica e humanismo
208
Filosofia da educação
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Um convite à losoa
A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo.
(Maurice Merleau-Ponty) Não se pode aprender a filosofia; somente se pode aprender a filosofar.
(Immanuel Kant)
1.1 Por que filosofia? Entre as matérias escolares, a filosofia é vista não raro como a mais abstrata e a mais distante dos interesses humanos imediatos. Depois do declínio da teologia, na Idade Moderna, coube à filosofia, a antiga serva da teologia (conforme a máxima dos teólogos medievais), o lugar de rainha. No entanto, ela seria também destronada com o advento das ciências positivas – aquelas que exigem o recurso da experimentação –, de modo que hoje é comum se perguntar o porquê da filosofia – pergunta que não é feita quando o assunto é matemática, física ou biologia. Mesmo disciplinas pertencentes ao arco das ciências humanas – como pedagogia, psicologia e sociologia – encontram justificativas mais facilmente que a filosofia. Ora, estuda-se pedagogia para aprimorar o processo de ensino e aprendizagem, e a psicologia e a sociologia são necessárias para melhor compreender o funcionamento da mente humana e da sociedade. Mas e a filosofia, serve para quê? Em uma cultura em que se valoriza sobremaneira o que tem finalidade prática e utilidade imediata, o conhecimento filosófico parece fora de lugar, supérfluo e desnecessário. Filosofia da educação
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Um convite à filosofia
Todavia, é justamente aí que se revela sua imprescindibilidade. Em uma época e uma sociedade dominadas pela técnica, com os saberes (entre outros fatores, devido ao enorme cabedal de conhecimento e experiência acumulados) sendo extremamente especializados e, portanto, fragmentados, é indispensável um olhar que ofereça uma crítica e rigorosa visão de conjunto de todo esse horizonte. É imperioso – sob o risco de não sabermos nos localizar e, portanto, ficarmos privados de ação – um saber sobre esses saberes, um olhar sobre esses olhares, uma indagação sobre essas indagações, uma pergunta que nasce antes e não termina depois. Por que pensamos o que pensamos? Por que dizemos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos? Nossa reflexão tem por meta a educação e, portanto, vamos direcionar para ela nossos questionamentos. Por que tenho essas ideias acerca do processo educacional? Será que não há outra maneira de se compreender esse processo? Por que falo dessa maneira sobre ou com nossos educandos? Por que me comporto dessa maneira em relação a eles? A quem interessa esse método educacional? De que ponto de vista e de que lugar social ele foi pro duzido? Isso é filosofia. E, aplicando-a ao processo do aprendizado, é filosofia da educação.
1.2 Definições Mas, afinal, o que é filosofia? Como podemos defini-la? Existem provavelmente tantas definições quantas são as escolas ou correntes da filosofia. O significado etimológico do termo é amor à sabedoria: phylos = “amigo”, “amor” sophya = “sabedoria”
, já era usado o verbo filosofar e o nome filósofo. Porém, antes do substantivo filosofia Provavelmente Pitágoras (580-500 a.C.) foi o primeiro a autodenominar-se filósofo , embora se discuta se o título possuía então o mesmo sentido que ganharia depois com Platão (426-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Para esses dois nomes paradigmáticos do pensa mento ocidental, a filosofia é resultante da admiração e do estranhamento diante do espetá culo do mundo. Enquanto para Platão a filosofia é o saber que, em face das contradições da realidade, atinge a visão do verdadeiro – isto é, das ideias –, para Aristóteles a sua função é a investigação das causas e dos princípios das coisas. Para ele, na medida do possível, o filósofo possui, para além da particularidade de cada objeto, a totalidade do saber. Por isso, a filosofia é a ciência do ser enquanto ser e, em última instância, a ciência do princípio dos princípios, da causa última. Na Idade Média, a filosofia era uma aspiração à compreensão racional dos dados da fé. Na modernidade, ela foi ganhando cada vez mais autonomia. Para Francis Bacon (1561-1626), a filosofia é o conhecimento das coisas não pelos seus fenômenos transitórios, mas pelos seus
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Filosofia da educação
Um convite à filosofia
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princípios imutáveis. Para René Descartes (1596-1650), ela é o saber que averigua os princí pios de todas as ciências e, enquanto filosofia primeira (a metafísica), ocupa-se da elucidação das verdades últimas. John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776), cada um por sua vez, consideram-na, em geral, como crítica das ideias abstratas e reflexão sobre a experiência. Por outro lado, Immanuel Kant (1724-1804), depois de traçar os limites da razão, concebe a filosofia como um conhecimento racional por princípios. Na corrente conhecida como idealismo alemão , a filosofia é entendida ora como o sistema do saber absoluto, dedução do mundo a partir do eu, como em Fichte (1762-1814), ora como em Hegel (1770-1831), como a consideração pensante das coisas, identificando-se assim com o espírito absoluto , isto é, o espírito plenamente consciente e conhecedor de si. Para Schopenhauer (1788-1860), ela é a ciência do princípio de razão como fundamento de todos os outros saberes e como autorreflexão da vontade. No positivismo, a filosofia torna-se um compêndio geral dos resultados das ciências. Já para Edmund Husserl (1859-1938), ela é uma ciência rigorosa que conduz à fenomenologia1 como disciplina filosófica fundamental. Por outro lado, para Wittgenstein (1859-1938) e os positivistas lógicos, ela não é um saber com um conteúdo específico, mas um conjunto de atos; não um conhecimento, e sim uma atividade. Em contrapartida, para Henri Bergson (1859-1941), a filosofia tem por objeto a substância da intuição, e, ainda que se utilize da ciência como instrumento, aproxima-se mais da arte. Como se vê, as definições e compreensões do que seja filosofia têm sido tão elásticas quanto contraditórias. Eis a seguir uma tentativa contemporânea de definição da filosofia: A filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e concei tos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das for mas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é Sociologia nem Psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da Sociologia e da Psicologia. Não é política, mas a interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é História, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a filosofia sabe que está na História e que tem uma história. (CHAUI, 2000, p. 16)
Todavia, o importante em todas essas discussões é que, à medida que crescia a consciência do problema, erigia-se pouco a pouco uma verdadeira “filosofia da filosofia”, que tem a sua justificação no fato de a filosofia não ser nunca, por princípio, uma totalidade acabada, mas sempre uma totalidade possível . 1 Fenomenologia é o estudo dos fenômenos, ou melhor, o estudo de como o indivíduo percebe os fenômenos, isto é, tudo aquilo que é apreendido pelos sentidos ou pela consciência.
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Um convite à filosofia
1.3 Divisão de tarefas No entanto, desde cedo essa totalidade precisou de uma repartição de tarefas para poder abarcar os mais variados ângulos de seu múltiplo objeto. Ainda que a divisão da filo sofia em diferentes disciplinas não seja comum a todos os sistemas, como ocorre em Platão ou Santo Agostinho, ela é visível em muitos outros sistemas filosóficos. Foi em Aristóteles que apareceram pela primeira vez as divisões que seriam tão influentes no curso da filosofia ocidental. É a partir de seu sistema filosófico – espécie de enciclopédia do saber de seu tempo – que se constituíram como disciplinas a lógica, a ética, a estética (poética), a psicologia (doutrina da alma), a filosofia política e a filosofia da natureza, todas elas dominadas pela filosofia primeira (metafísica). Ao longo do tempo, a elas viriam se acrescentar, dominando sobretudo o ensino da filosofia até o século XIX, a gnoseologia, a epistemologia, a ontologia, a sociologia, além de um conjunto de matérias, como filosofia da religião, filosofia do Estado, filosofia do direito, filosofia da história, filosofia da linguagem etc., bem como a história da filosofia. Algumas delas se tornariam autônomas, como a psicologia e a sociologia. Por outro lado, há aqueles que julgam, por diversos motivos, que se deve excluir do corpus filosófico disciplinas como a lógica e a metafísica. É possível estudar a filosofia de uma maneira sincrônica, isto é, abordando-a por meio de todas essas disciplinas, sem uma preocupação específica com suas evoluções temporais e os problemas decorrentes de influências, filiações, ramificações e desdobramentos. Também é possível estudá-la de um ponto de vista diacrônico, baseado em uma visada histórica, verificando no tempo o surgimento de suas principais correntes e o desenvolvimento de suas disciplinas. Pode-se também usar uma abordagem que se sirva de am bas as possibilidades. Por exemplo, pode-se ao mesmo tempo estudar tanto a ética e suas exigências atuais (abordagem sincrônica) quanto a sua evolução na história (abordagem diacrônica). Em nosso trabalho, privilegiaremos um enfoque diacrônico, lançando um olhar sobre alguns dos principais filósofos e escolas filosóficas da história, mas sem desprezar, em alguns momentos, uma óptica sincrônica.
1.4 A atitude filosófica e o senso comum Em que consiste uma atitude filosófica? Quando, de fato, estamos envolvidos no proces so filosófico? O que há de fundamental na atitude filosófica é a sua capacidade de indagar: • O que a coisa é ? • Como a coisa é ? • Por que a coisa é assim?
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Um convite à filosofia
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Essas questões fazem parte da atitude de alguém que se coloca em uma postura filosófica diante do mundo. O filósofo é aquele que não aceita como dadas as respostas às questões com que ele se depara no mundo. De fato, a filosofia é um conhecimento instituinte na medida em que questiona o saber instituído , que é o saber já posto, já estabelecido, que goza de um certo consenso. De certa forma, é tudo aquilo que se tem por verdadeiro, por natural – em um determinado momento, em uma determinada sociedade. Resumindo, saber instituído é o senso comum. E, nesse processo de indagação acerca desse saber institucionalizado, o ser humano vai dando novos significados ao mundo e à sua própria existência. Quando nos referimos ao conceito de senso comum , nós o relacionamos ao conhecimento fragmentado da realidade. Platão definia esse tipo de conhecimento como doxa (“opinião”). Em outras palavras, emitimos parecer sobre tudo o que nos cerca e, no entanto, nessas opiniões nos falta uma visão da totalidade. Não conseguimos perceber que tudo se encontra inter-relacionado. Ou seja, para que possamos ter uma visão da totalidade de um fenômeno, torna-se necessário apreendê-lo na sua relação com os demais fenômenos. Embora Platão tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realidade, os dois principais são a doxa e a episteme. Um indivíduo que vive no âmbito da doxa é alguém que localiza sua existência apenas no senso comum. Por outro lado, pensar os problemas a partir da episteme (“ciência”) é pensá-los à luz da filosofia. Essa expressão designa a capacidade de olharmos para os fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão somente é sistemática se for rigorosa, radical e de conjunto. Para explicitar a importância desses conceitos dentro do processo do filosofar, valemo-nos de um comentário de Maria Lúcia de Arruda Aranha. Neste trecho, a filosofia da vida pode ser tomada como sinônimo de doxa, opinião, senso comum : A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix , radicis significa literalmente “raiz” e, no sentido derivado, “fundamento”, “base”. Portanto, a filosofia é radical enquanto explica os fundamentos do pensar e do agir. A filosofia é rigorosa porque, enquanto a filosofia de vida não leva suas conclusões até as últimas consequências, o filósofo especialista dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambiguidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem, o filósofo inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais. A filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto porque é globalizante, examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam “recortes” da realidade, a filosofia, além de po der examinar tudo (porque nada escapa ao seu interesse), também visa o todo, a totalidade. (ARANHA, 2002, p. 107)
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Um convite à filosofia
Outro aspecto a se salientar é que o conteúdo da reflexão filosófica, o tecido do seu pen sar, é a trama dos acontecimentos do cotidiano. É por isso que nesse processo de indagação estão presentes tanto os temas aparentemente mais distantes de nossa experiência imediata quanto os problemas com que nos deparamos todos os dias em nossa vida. Em suma, na atitude filosófica está compreendido o pressuposto de que não podemos aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores em geral, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais devemos aceitá-los sem antes havê-los submetido a uma crítica radical. É por essa razão que se justifica, mais uma vez, a importância da filosofia em nosso trabalho como educadores: ela impede a estagnação e ressignifica a experiência. Se educar não se reduz apenas à transmissão de conhecimentos, mas é também uma reflexão crítica sobre o que é conhecimento e o que é educação, a filosofia não será apenas mais um conteúdo do processo educacional, mas o seu próprio alvo.
1.5 Nem dogmatismo nem ceticismo Novamente torna-se relevante um olhar sobre a etimologia das palavras. Skeptikós significa “aquele que observa”, “que considera”. Desse modo, cético é aquele que observa e considera, tanto que conclui pela impossibilidade mesma do conhecimento. Por outro lado, dogmatikós denota “aquele que se funda em princípios”. Assim,dogmático é todo aquele que se apega aprioristicamente aos princípios de uma doutrina. Dogma , por sua vez, pode ser compreendido como um princípio fundamental e indiscu tível de uma determinada doutrina ou teoria, não necessariamente religiosa. Toda vez que verdades irrefutáveis são aventadas, sem que elas possam ser demonstradas racionalmente, na verdade são dogmas que estão sendo aludidos. As tradições religiosas não têm necessariamente problemas com dogmas, pois toda fé está fundada, em última instância, em uma origem suprarracional. Todavia, sempre que na ciência se acena para verdades indemonstráveis, muitas vezes tomadas de empréstimo do senso comum ou da religião, se está resvalando da episteme para a doxa. No fim das contas, tanto o cético quanto o dogmático acabam produzindo uma visão imobilista do mundo. O primeiro porque acha impossível chegar a algum conhecimento real das coisas. O segundo porque, antes de se debruçar sobre a realidade, já traz, de antemão, as suas “verdades”. A filosofia, ao contrário, move-se entre o ceticismo e o dogmatismo – estando, na verdade, mais próxima do primeiro. Enquanto o cético declara que é impossível saber, o
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Filosofia da educação
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dogmático diz que tem certeza que sabe. O filósofo, por sua vez, afirma que não sabe, mas quer saber – tendo consciência, entretanto, que todo saber é parcial e provisório. Com efeito, “a filosofia é a procura da verdade, não a sua posse” (ARANHA, 2002, p. 51).
Ampliando seus conhecimentos Ciência e losoa (DURANT, 2000, p. 26-27)
Ciência é descrição analítica; losoa é interpretação sintética. A ciência quer decompor o todo em partes, o organismo em órgãos, o obscuro em conhecido. Ela não procura conhecer os valores e as possibilidades ideais das coisas, nem o seu signicado total e nal; contenta-se em mostrar a sua realidade e sua operação atuais, reduz resolutamente o seu foco, concentrando-o na natureza e no processo das coisas como são. O cientista é tão imparcial quanto a natureza no poema de Turguêniev: está tão interessado na perna de uma pulga quanto nos paroxismos criativos de um gênio. Mas o lósofo não se contenta em descrever o fato; quer averiguar a relação do fato com a experiência em geral e, com isso, chegar ao seu signicado e ao seu valor; ele combina coisas numa síntese interpretativa; tenta montar, de maneira melhor do que antes, esse grande relógio que é o universo e que o cientista perquiridor desmontou analiticamente. A ciência nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na guerra; mas só a sabedoria – o desejo coordenado à luz de toda experiência – pode nos dizer quando curar e quando matar. Observar processos e construir meios é a ciência; criticar e coordenar ns é losoa; e porque hoje os nossos meios e instrumen tos se multiplicaram além de nossa interpretação e da nossa síntese de ideais e ns, nossa vida está cheia de som e fúria, não signicando coisa alguma. Porque um fato nada é, exceto em relação ao desejo; não é completo, exceto em relação a um propósito e a um todo. Ciência sem losoa, fatos sem perspectiva e avaliação não podem nos salvar da devastação e do desespero. A ciência nos dá o conhecimento, mas só a losoa nos dá a sabedoria.
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Atividades 1. Com base nos trechos de Marilena Chaui e Will Durant que constam no capítulo, estabeleça os pontos de convergência e divergência entre a ciência e a losoa.
2. Segundo as denições de losoa que os lósofos foram estabelecendo ao longo dos tempos, relacione as colunas. 1. Bergson
( ) Ciência rigorosa que conduz à fenomenologia.
2. Locke, Berkeley e Hume
( ) Tem por objeto a substância da intuição.
3. Fichte
( ) É um conjunto de atos desprovido de conteúdo específico.
4. Wittgenstein
( ) Crítica das ideias abstratas e reflexão da experiência.
5. Kant
( ) Ciência do princípio da razão como fundamento dos saberes.
6. Husserl
( ) Sistema do saber absoluto.
7. Schopenhauer
( ) Conhecimento racional por princípios.
3. A respeito das proposições de Platão sobre a doxa (“opinião”, “senso comum”) e a episteme (“ciência”), assinaleF (falso) ou V (verdadeiro) nos enunciados a seguir.
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(
) Pensar os problemas a partir da doxa é pensá-los à luz da losoa.
(
) O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade.
(
)
(
) Doxa é uma reexão rigorosa, radical e de conjunto.
(
) Episteme diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de maneira sistematizada.
) contrapõe-se o saber instituinte (doxa). Ao saber instituídoepisteme (
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Sócrates e a losoa moral ocidental
O mito é o nada que é tudo.
(Fernando Pessoa) Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor. Pergunta, não responde. Indaga, não ensina.
(Marilena Chaui)
2.1 O gênio grego, o mito e as origens da filosofia Tanto o termo quanto o conceito de filosofia têm a sua origem na Grécia antiga, mas isso não significa que outros povos não tenham desenvolvido formas particulares de pensamento crítico. De maneira especial, encontramos algumas dessas formas na Índia, na China e na Pérsia. Além disso, os gregos usufruíram de conhecimentos con quistados por povos mais antigos, como a astronomia dos caldeus e dos babilônicos e a agrimensura dos egípcios. No entanto, a forma de pensamento sistemático, racional e desvinculado da religião que ficou conhecida como filosofia nós devemos às peculiaridades do gênio grego. Filosofia da educação
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Sócrates e a filosofia moral ocidental
Como era esse gênio? Podemos resumir as suas características em alguns traços básicos: , isto é, a consciência do valor máximo do • Em primeiro lugar, o racionalismo conhecimento. • Mas esse conhecimento não é abstrato, e sim proveniente da experiência: é um conhecimento sensível . • Esse conhecimento sensível não se fecha sobre si mesmo, mas transcende o real em direção ao absoluto. • Sendo otimista, como consequência de seu racionalismo, o grego tenderá também ao pessimismo quando pressentir toda a irracionalidade do real. Contudo, todos esses traços se coadunam em um equilíbrio harmônico , como aprazia grandemente ao senso de proporções do espírito helênico1. E também outras causas colaboraram para o surgimento do pensamento filosófico: Nos séculos VII e VI a.C., a Grécia sofreu uma transformação socioeconômica considerável. De país predominantemente agrícola que era, passou a desenvol ver de forma sempre crescente a indústria artesanal e o comércio. Assim, tor nou-se necessário fundar centros de distribuição comercial, que surgiram ini cialmente nas colônias jônicas, particularmente em Mileto, e depois também em outros lugares. As cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarretando um forte crescimento demográfico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20)
Foi nas cidades ou pólis – que na Grécia eram sobretudo cidades-Estado – que se desenvolveu outra importante criação grega: a política. O desenvolvimento urbano com as suas instituições e o lugar privilegiado da península grega – entreposto estratégico entre Ocidente e Oriente, arena de encontro de muitas etnias e de diversas culturas, cujo contato e rivalidade ensejaram comparações, análises e reflexões – resultaram em um ambiente pro pício para o surgimento da filosofia. Entre os gregos, a arte e a filosofia são devidas, sobre ,2 que souberam exprimir em alto grau o gênio helênico. tudo, aos jônios Mas como se deu, a partir desse gênio, e de maneira especial entre os jônios, a gênese da filosofia grega, matriz de todo o pensamento ocidental? Primeiramente, os gregos, como todos os povos, explicavam os fenômenos do universo e as suas origens por meio do mito. A palavra mito vem do grego mythós e deriva de dois verbos, tendo os sentidos de “contar, narrar, falar alguma coisa a alguém” e “anunciar, nomear, designar”. Para os gregos, o mito era um discurso proferido para ouvintes que recebiam o relato como verdadeiro porque este está fundado na autoridade daquele que narra. Refere-se quase sempre a algo fabuloso que se supõe acontecido em um passado remoto, imemorial, impreciso. Os mitos podem reportar-se a grandes feitos heroicos, considerados frequentemente como o fundamento e o início de uma determinada comunidade ou do gênero humano como um todo. Podem também ter como objeto fenômenos naturais e, nesse caso, costumam 1 Helênico: que se refere à Grécia antiga, chamada Hélade, ou aos gregos antigos. 2 Os jônios eram habitantes da Jônia, conjunto de colônias da Grécia antiga nas ilhas e no litoral asiá tico do Mar Egeu.
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ser apresentados alegoricamente. Além disso, muitas vezes os mitos contêm a personifica ção de coisas ou de acontecimentos. Para os filósofos da Antiguidade, nem sempre o mito foi entendido como oposto à razão: alguns o admitiam como invólucro da verdade. Essa concepção foi adotada, por exemplo, por Platão, que considerava as narrações mitológicas como um modo de expressão de verdades que escapam ao raciocínio. Em todo caso, a explicação racional, objeto da filosofia, tem a sua origem no mito, desenvolvendo-se a partir dele, até sua plena autonomia. Se a explicação míti ca dos fenômenos do universo é encontrada em todos os povos e em todas as épocas, devemos aos gregos os primeiros e decisivos passos da explicação racional do mundo. São muitas as maneiras que os historiadores subdividiram a história da filosofia clás sica, que compreende um período de mais de um milênio. De um modo geral, podemos sintetizar essa época em quatro períodos: 1. Período naturalista – também chamado cosmológico3 ou pré-socrático , data do final do século VII ao final do século V a.C., quando a filosofia se ocupa fundamentalmente da origem do mundo e das causas das transformações na natureza. 2. Período humanista – também denominado antropológico4 ou socrático , ocorre do final do século V até todo o século IV a.C., quando o objeto principal da filosofia são as questões humanas, como a ética e a política. 3. Período sistemático – do final do século IV ao final do século III a.C., quando a filosofia tem por tarefa reunir e sistematizar todo o conhecimento anterior sobre o mundo e o ser humano. 4. Período helenístico – também conhecido como greco-romano ou religioso , surge do final do século III a.C. até o século VI d.C. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento cristão, a filosofia interessa-se principalmente pelas questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre a humanidade e Deus.
2.2 Os filósofos naturalistas e os sofistas O primeiro período da filosofia grega toma o nome de naturalista ou cosmológico porque a especulação dos filósofos volta-se para a natureza, o mundo exterior. Esse período surgiu e se desenvolveu fora da Grécia propriamente dita, nas florescentes colônias da Ásia Menor 5 e do sul da Itália, tendo o seu início nos fins do século VII e o seu término dois séculos depois.
2.2.1 A escola jônica A primeira expressão dessa fase – inaugurando por assim dizer o pensamento ocidental – é a chamada escola jônica , que floresceu em Mileto, na Ásia Menor, ao longo do século VI. 3 Em grego, cosmos significa “mundo” e por isso esse período recebeu o nome decosmológico. 4 Em grego, ântropos significa “homem” e por isso esse período recebeu o nome deantropológico. 5 Na Antiguidade, era conhecida como Ásia Menor a extremidade ocidental da Ásia, em linhas gerais correspondendo ao território do que conhecemos hoje como Turquia. Filosofia da educação
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Os jônios procuravam a substância última de todas as coisas em uma única matéria, animada por uma energia interior (daí hilozoísmo , “matéria animada”, ser o nome dessa doutrina). Seu primeiro representante é Tales de Mileto (624-546 a.C.), para quem a água era a substância primordial de todas as coisas. Para Anaximandro (610-547 a.C.), também de Mileto, o elemento primordial seria o apeiron (o indeterminado, sem fim e em constante movimento). Já para Anaxímenes (585-528 a.C.), também da mesma cidade, esse princípio era o ar. O expoente mais célebre dessa escola é Heráclito (aproximadamente 540-470 a.C.), de Éfeso, na Jônia. Para ele, o elemento primordial era o movimento, o eterno vir a ser: tudo está sujeito a um fluxo perpétuo, representado pelo fogo. O vir a ser é luta, conflito de opostos, antítese de vida e morte. Esse movimento só será reconduzido à estabilidade pela sabedoria universal, que determina o acordo entre as oposições. Por esse motivo, Heráclito é considerado o pai da dialética, a qual considera que a razão das coisas está na constante luta dos contrários. É de Heráclito a ideia de que o mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio, pois, ao tentar um segundo banho, o rio já terá mudado, já será outro devido ao contínuo fluxo das águas. E, como as coisas mudam constantemente, aquele homem já não será o mesmo da primeira vez.
2.2.2 Pitágoras e a escola itálica Pitágoras (571-497 a.C.), fundador da escola pitagórica ou itálica, nasceu em Samos, uma ilha do Mar Egeu, mas pontificou nas colônias do sul da Itália. Para ele, o princípio pri mordial da realidade é representado pelo número, ou seja, pelas relações matemáticas. Toda a multiplicidade do mundo e o vir a ser é explicado pelo pitagorismo por meio da luta dos opostos, da qual os números pares e os ímpares são paradigmáticos. Esse conflito é recondu zido ao equilíbrio pela harmonia matemática que rege o universo todo, tanto material quan to moral. Outros representantes dessa escola são Filolau de Crótona e Árquitas de Tarento.
2.2.3 Xenófanes e a escola eleata Essa escola empresta o seu nome da cidade de Eleia, no sul da Itália, e seu fundador é Xenófanes (cerca de 570-460 a.C.), nascido em Cólofon, na Ásia Menor. Mas o seu maior representante é Parmênides de Eleia (cerca de 530-460 a.C.), para quem o elemento original das coisas é o ser, uno, idêntico, imutável e eterno, representado como uma esfera suspensa no vácuo, sendo que o mundo sensível não passa de ilusão. Zenão (cerca de 495-430 a.C.), também de Eleia, discípulo de Parmênides, é famoso pe las controvérsias nas quais tentava demonstrar a inexistência do movimento.
2.2.4 A escola pluralista Empédocles (cerca de 492-493 a.C.), de Agrigento, Sicília, toma dos eleatas a doutrina da eternidade e da imutabilidade do ser, mas o divide em quatro elementos fundamentais – a terra, a água, o ar e o fogo –, explicando a multiplicidade e a mudança dos fenômenos
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mediante as várias recombinações desses elementos. Como Heráclito, acreditava na realidade do movimento. Pensava, entretanto, que o amor e o ódio são as duas forças primordiais que presidem a combinação dos quatro elementos. Já para Anaxágoras (cerca de 500-428 a.C.), a realidade é constituída de uma infinidade de minúsculas partículas, eternas e imutáveis, de natureza diversa, servindo para explicar a variedade das coisas. O noûs é a inteligência imanente que controla e seleciona essas partí culas, tirando-as do caos e ordenando-as conforme sua similaridade. Todavia, Demócrito (460-370 a.C.), natural de Abdera, na Trácia 6 , é o maior representante dessa corrente, também chamada atomística. Para ele, o ser de Parmênides é dividido em uma infinidade de corpúsculos simples e homogêneos, denominados átomos , os quais, suspensos no vazio, movem-se devido à variedade de tamanho e à consequente diversidade de gravidade de cada uma dessas partículas. Os átomos, o vazio e o movimento constitui riam a razão de tudo.
2.2.5 Os sostas e a arte da persuasão De 500 a 448 a.C., houve as chamadas Guerras Médicas , relatadas em Histórias , de Heródoto. As cidades jônicas, pertencentes à Grécia e situadas na Ásia Menor, revoltaram-se contra o Império Persa e foram apoiadas por algumas cidades do continente, por fim sendo lideradas por Atenas. Depois das vitórias dos gregos sobre os persas, assistimos ao triunfo de Atenas, que se torna o eixo social, político e cultural do universo grego. É o chamado século de Péricles7 , quando a democracia se encontra em seu auge. A democracia ateniense, que se tornaria fundamental para o desenvolvimento da filosofia, tem uma característica essen cial que a distingue da democracia moderna: é uma democracia direta, sem a mediação de representantes eleitos. Assim, para lograr que a sua opinião fosse acatada nas assembleias, o cidadão precisava ser dotado de talentos oratórios. Nisso entram os sofistas, mestres da eloquência, encarregados de ensinar aos jovens das famílias das classes mais abastadas a arte da persuasão. Professores encarregados de transmitir os princípios da retórica e da oratória, os sofis tas alegavam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam eivados de erros, além de não terem nenhuma utilidade para a vida da pólis. Portanto, com os sofistas há uma mudança de foco na pesquisa filosófica: a preocupação com a natureza, que esteve no centro das atenções dos pensadores anteriores, começa a refluir, dando lugar ao interesse pelo humano – daí também o nome de antropológica ou humanista dado a essa fase. “Com efeito, os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão da physis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne à vida do homem como membro de uma sociedade” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 73). 6 A Trácia é uma região do sudeste da Europa, englobando o que hoje é o nordeste da Grécia, o sul da Bulgária e a parte europeia da Turquia. 7 Péricles foi uma das principais lideranças políticas de Atenas. Sua época, o século V a.C., foi um pe ríodo de esplendor para Atenas, no qual conviveram grandes nomes, como Fídias, Sófocles, Policleto, Calícrates e Sócrates. Filosofia da educação
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Protágoras (cerca de 480-410 a.C.), um dos maiores nomes da sofística – assim como Górgias (484-375 a.C.) e Hípias (cerca de 435-343 a.C.) –, dizia que o homem é a medida de todas as coisas. Em relação ao período anterior, isso significava uma abertura para o subje tivismo: dizer que o homem é a medida de todas as coisas significa dizer “que as coisas são como lhe parecem; não, porém, como aparecem ao homem em geral, mas como aparecem ao homem hic et nunc [“aqui e agora”]: é verdadeiro – e é bem – o que aparece como tal a cada qual e a cada momento” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 109). Daí porque não é raro os sofistas serem acusados de relativistas e céticos – para os relativistas, tudo pode ser verdade, enquanto para os céticos não é possível alcançar a verdade. É nesse contexto que aparece Sócrates, como um meteoro, dividindo a filosofia grega em antes e depois dele.
2.2.6 O lho da parteira Nascido em Atenas (470 ou 469 a.C.), filho de um escultor e de uma parteira, desde cedo Sócrates se entregou à reflexão e ao ensino filosófico, não se deixando levar pelos cuidados da vida doméstica e da política. No entanto, ao contrário dos outros filósofos, não fundou uma escola, preferindo ensinar em lugares públicos, como nos ginásios, nas praças e nos mercados. Exerceu um enorme fascínio sobre os atenienses, especialmente os mais jovens, mas a sua ironia e atitude crítica foram-lhe aos poucos granjeando inimizades entre as par celas influentes da sociedade. Por fim, foi acusado de corromper a juventude e demonstrar impiedade diante dos deuses da cidade. Todavia, Sócrates não quis se defender. Condenado à pena capital, morreu aos 71 anos, em 399 a.C., ingerindo cicuta (um veneno extremamente letal, extraído da planta de mesmo nome), depois de ter recusado os projetos de fuga propostos por alguns de seus discípulos. Sua morte foi o coroamento de uma vida dedicada ao conhecimento e à virtude, já que ele se transformou no marco de alguém que preferiu morrer a negar suas convicções. Sócrates não escreveu nada: tudo o que se sabe de sua pessoa chegou por meio de seus discípulos, como Xenofonte e Platão – e não são poucos os debates da crítica para estabe lecer o que é confiável nessas fontes. O certo, porém, é que Sócrates se beneficia da virada antropológica efetuada pelos sofistas. Contudo, ao contrário destes, não se interessa pelo ser humano empírico (o ser humano individual, como é visto e apreendido pelos sentidos), mas pelo humano em geral, com propósitos morais. Como os sofistas, ele começa por criticar o senso comum, o saber instituído, a opinião, a doxa – mas não para aí, o que não seria mais do que um ceticismo: ele transcende o saber imediato em busca do saber autêntico, que seria racional e perene. Esse conhecimento esta ria dentro de cada um e, para encontrá-lo, Sócrates, um filho de parteira, serve-se de uma técnica por ele chamada de maiêutica , um método que consiste em “parir”, “dar à luz” ideias complexas a partir de perguntas simples, articuladas a partir de um determinado assunto. Assim ele explicava o seu método: A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulheres, porém homens, e de acompanhar as almas, não os
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corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande superioridade de minha arte consiste [...] na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera ou faculdade ou fruto legítimo e verdadeiro. (apud PENHA, 1994, p. 35)
Daí também a sua máxima: gnothi seauton , “conhece-te a ti mesmo”. O aludido preceito socrático pretende mais do que orientar o indivíduo ao simples conhecimento de si próprio. Seu alcance é maior: é um convite [...] ao aprofundamento da condição humana, do qual [...] nos desviamos quando levados pelo conhecimento enciclopédico sobre a natureza das coisas. (PENHA, 1994, p. 33)
Partindo desse pressuposto, Sócrates constrói uma ética racionalista, na qual a virtude passa a ter um papel fundamental. Mas em que consiste a virtude? Antes de tudo, ela se identifica com o conhecimento. Os gregos chamavam-na areté , “significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 88). Desse modo, ele nos diz que a causa do mal é a ignorância: se conhecêssemos o bem, não praticaríamos o mal. Por essa razão, o conhecimento de si mesmo é condição suficiente e necessária para a obtenção da areté . O autodomínio e a liberdade são as bases para se atingir a virtude. Para ele, o ser humano é o artífice da sua própria felicidade ou infelicidade. Mas, afinal, o que é o ser humano para Sócrates? “O homem é sua alma, enquanto é perfeitamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. E, por alma , Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 87). Por isso, a essência do ser humano, segundo Sócrates, é sua psyché . Nesse sentido, ele é considerado o fundador da filosofia moral do Ocidente. Outra ideia relevante no pensamento socrático é a noção de humildade. Sua máxima “só sei que nada sei” é ilustrativa disso. Quando era elogiado por seus discípulos, ele fazia tal afirmação. Para demonstrar que esse era um valor incorporado em sua prática cotidiana, Sócrates construía suas afirmações a partir da relação dialógica com seus interlocutores. Além disso, a dialética socrática é perpassada pela ironia. Em sua etimologia, o conceito de ironia significa “a arte de interrogar”. Quando Sócrates utilizava tal recurso, tinha por objetivo mostrar que, aquele com quem estava dialogando, na verdade estava ignorando o que julgava conhecer. Por meio desse processo, desejava tornar seu interlocutor cônscio da própria ignorância para que ele pudesse partir em busca da verdade. Finalmente, mais que suas palavras, sua postura como filósofo mostrou que a filosofia não é uma forma de conhecimento hermético, fechado, reservado somente a uma elite de iniciados: Sócrates interpelava os transeuntes com quem se deparava e discutia com eles os temas do cotidiano. Refletia, por exemplo, sobre a liberdade, o amor, a amizade, a verdade – questões que tocam a todos. Comentando a morte de Sócrates, Marilena Chaui afiança que [...] o maior erro dos juízes foi não terem ouvido o mais importante ensinamento de Sócrates, isto é, que todos os homens são iguais porque todos são capazes de
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Sócrates e a filosofia moral ocidental ciência, todos são dotados de uma alma racional na qual se encontra a verdade e todos são capazes de virtude. Razão, ciência, verdade e virtude são universais e todos os homens são, por natureza, capazes delas. (CHAUI, 2000, p. 155)
Mártir da filosofia e da fidelidade aos seus princípios, Sócrates permanece vivo até hoje não só em seu exemplo, mas sobretudo como base da construção do edifício da moral do Ocidente.
Ampliando seus conhecimentos
Sócrates e Polo (PLATÃO, 1986, p. 98-102)
SÓCRATES: – [...] Vê, pois, se estás disposto a ceder-me o turno da argumentação, respondendo às perguntas. Eu creio deveras que nós – eu, tu e toda gente – julgamos pior cometer a injustiça do que sofrê-la, e pior do que expiá-la não a expiar. POLO: – Mas, a meu ver, nem eu, nem ninguém mais, o admitimos. Quem, se não tu, a cometer uma injustiça, preferiria sofrê-la? SÓCRATES: – Eu? Sim, como tu e toda gente.
POLO: – Ora, ora! Nem eu, nem tu, nem ninguém mais. […] SÓCRATES: – E quando de duas coisas feias uma é mais feia, assim é por sobrelevar ou na dor, ou no dano. Ou não é forçosamente assim? POLO: – É, sim. SÓCRATES: – Adiante. Que dizíamos há pouco sobre praticar e sofrer injustiça? Não dizias que sofrê-la é pior, mas praticá-la é mais feio?
POLO: – Dizia. SÓCRATES: – Então, se praticá-la é mais feio do que sofrê-la, assim é por ser mais doloroso e sobrelevar em dor, ou dano, ou ambas as coisas. Não é isso também forçoso? POLO: – Como não?
SÓCRATES: – Ora, examinemos em primeiro lugar se praticar uma injustiça sobreleva em dor sofrê-la e se padecem mais os autores do que as vítimas.
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POLO: – Isso, Sócrates, absolutamente não. SÓCRATES: – Então, não é em dor que sobrelevas?
POLO: – Não, por certo. SÓCRATES: – Se na dor, não, não sobrelevaria portanto em ambos os motivos. POLO: – Não, é claro. SÓCRATES: – Resta, pois, a outra razão?
POLO: – Sim. SÓCRATES: – O dano?
POLO: – Naturalmente. SÓCRATES: – Ora, se praticar uma injustiça sobreleva em dano, será pior do que sofrê-la.
POLO: – Claro que sim. SÓCRATES: – É ou não é fato que anteriormente a maioria das pessoas e tu também concordáveis em que é mais feio ser o autor do que a vítima? POLO: – Sim. SÓCRATES: – E revelou-se agora pior. POLO: – Aparentemente. SÓCRATES: – Acaso, entre o mais e o menos danoso e feio, preferirias o primeiro? Não hesites em responder, Polo; não te fará dano algum. Ao contrário, cona-te bravamente à razão como a um médico e responde sim ou não à minha pergunta. POLO: – Bem, Sócrates, eu não preferiria. SÓCRATES: – Alguém no mundo o faria?
POLO: – Não creio, a pensar assim. SÓCRATES: – Portanto, eu dizia a verdade: nem eu, nem tu, nem qualquer outra pessoa preferiríamos cometer injustiça a sofrê-la, por ser mais danoso.
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Atividades 1. Segundo o princípio primordial que os lósofos naturalistas ou cosmológicos aven taram para a origem das coisas, relacione as colunas. a. Anaximandro de Mileto
( ) A água.
b. Demócrito
( ) O apeiron (o indeterminado, sem fim e em terno movimento).
c. Pitágoras
( ) O ar.
d. Tales de Mileto
( ) Terra, água, ar e fogo.
e. Empédocles
( ) O movimento, o vir a ser representado pelo fogo.
f. Anaxímenes de Mileto
( ) O número.
g. Heráclito
( ) O átomo.
2. Com base no conceito de maiêutica e no exemplo dele apresentado no Ampliando seus conhecimentos , crie um diálogo entre Sócrates e o interlocutor do lósofo. Com base no capítulo, Sócrates deve procurar extrair a verdade a partir do método socrático de pergunta e resposta. Já seu interlocutor deve se deixar conduzir até que do senso comum se chegue a ideias mais pertinentes e perspicazes.
A seguir existem alguns exemplos de temas que podem ser abordados nesses diálo gos socráticos:
• • •
A educação é o único caminho para o desenvolvimento de um país. A mulher só se realiza plenamente na maternidade. Artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua.
3. Leia abaixo o trecho de uma letra do compositor Chico Buarque. Bom conselho Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança (BUARQUE, 1972)
Agora responda: quais são os pontos de contato entre essa letra e o método socrático?
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3.1 Platão: atleta e poeta Ao contrário de Sócrates, que era filho de membros das classes populares, Platão era de ascendência aristocrática. Seu pai orgulhava-se de ter o rei Codros entre os seus antepassados e sua mãe de ter parentesco com Sólon1. Nascido em Atenas (428 ou 427 a.C.), seu nome original era Aristócles. Platão é apelido, derivado, segundo alguns, de seu porte atlético (ombros largos) ou, segundo outros, da largueza de seu estilo. Com sua origem, era natural que desde cedo Platão visse na carreira política o seu destino. Aos 20 anos, travou contato com Sócrates – 40 anos mais velho – e por oito anos usufruiu de seus ensinamentos e de sua amizade. A morte trágica do mestre imprimiu uma marca em todas as fases do pensamento de Platão. Ele passou a desprezar a democracia e as massas, ideando um modo de governo dirigido pelos mais sábios e capazes. 1 Sólon (640-560 a.C.) foi um estadista e poeta ateniense. Autor de um código de leis que introduziu grandes reformas nos primeiros 25 anos do século VI a.C., em Atenas. Essas leis enfraqueceram significativamente o poder da aristocracia, que se fundamentava nos privilégios de nascimento. Sólon substituiu as leis draconianas por um estatuto menos severo, que se tornaria a base para as leis clássicas surgidas posteriormente. Filosofia da educação
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A partir disso, fez várias viagens para instruir-se. Conheceu o Egito, o sul da Itália (onde estabeleceu relações com os pitagórigos), a Sicília (lugar em que não teve sucesso no intento de influenciar positivamente o rei, tendo sido vendido como escravo e resgatado mais tarde). De volta a Atenas, fundou nos jardins do parque dedicado ao herói Academos a sua célebre escola, destinada a desenvolver as ideias de Sócrates e a rebater as dos sofistas. A Academia, como ficou conhecida, adquiriu grande prestígio, e a ela recorreram homens de todos os cantos, sendo ali desenvolvidos os ideais de uma educação para a autonomia do indivíduo. O ideal da educação autônoma significa: • em primeiro lugar: ensinar o livre espírito de pesquisa, o compromisso do pensa mento apenas com a verdade; • em segundo lugar: estimular a autodeterminação ética e política. Em vez de transmitir doutrinas, a Academia tinha por premissa ensinar a pensar ou, como lemos no Mênon , que é um dos textos de Platão, “o dever de procurar o que não sa bemos”. Ao contrário de transmitir valores éticos e políticos, a Academia propunha ensinar a criá-los, isto é, a propô-los a partir da reflexão e da teoria. Ali estudaram, entre outros, o matemático Eudóxio e o jovem Aristóteles. Nela prevaleceu o espírito socrático: a discussão oral e o desenvolvimento do vigor intelectual do estudante, sendo menos importantes as exposições escritas (CHAUI, 2000, p. 175). Em 347 a.C., aos 80 anos, reconhecido e admirado, morre Platão, tendo sido velado por uma verdadeira multidão. De sua grandeza nos dá testemunho um dos maiores pensadores do século XX: “Poucos filósofos, se é que algum, alcançaram a sua amplitude e profundidade e nenhum o superou. Qualquer pessoa que se dedique à investigação filosófica será insensata se ignorá-lo” (RUSSELL, 2002, p. 107). Praticamente toda a produção de Platão chegou até nós, compreendendo 36 diálogos, 13 epístolas e uma coleção de definições, sendo esta provavelmente apócrifa – isto é, pode ser que tais definições sejam erroneamente atribuídas a Platão, não há certeza se a autoria realmente é dele. Seu interesse abarca as mais diversas áreas do conhecimento: ciências, matemática, retórica, arte, política etc. Suas obras mais importantes e conhecidas são: • Apologia de Sócrates , em que resgata os pensamentos do mestre; • O banquete , em que versa sobre o amor de uma forma dialética; , na qual analisa desde a política e a ética até questões metafísicas, como • A república a imortalidade da alma. No entanto, um problema sobre a real compreensão do pensamento platônico diz respeito às “doutrinas não escritas”. Antigas fontes revelam que, na Academia, Platão ministrou cursos cujo teor ele não quis deixar por escrito. Para ele, “O conhecimento dessas coisas não é de forma alguma transmissível como os outros conhecimentos” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20). Para muitos estudiosos, esse aspecto é decisivo para se ter uma visão de conjunto da filosofia platônica, e essa tradição oral pode ser de certa forma reconstituída pelos escritos dos discípulos de Platão. Além disso, é bom ter em mente que Platão, a despeito de ter expulsado
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de sua república os poetas, é um filósofo de inspiração poética. Por trás do sábio, é visível, em sua produção, a veia do artista, manifestada no recurso às metáforas, às fábulas e aos mitos. No tocante ainda à sua obra, deve-se destacar a influência de Sócrates. É verdade que em seus escritos percebem-se elementos de diversos filósofos pré-socráticos, como Parmênides e Heráclito, por exemplo. Contudo, nenhuma influência foi tão grande e decisiva quanto a de Sócrates, a ponto de nos livros de Platão, sobretudo nos diálogos socráticos, ser difícil dis tinguir aquilo que é do mestre e aquilo que é efetivamente do discípulo. Assim, é por meio dos textos de Platão que conhecemos as ideias de Sócrates, e é por meio de Sócrates, tornado seu porta-voz, que conhecemos as ideias de seu discípulo mais célebre.
3.2 As vigas do pensamento platônico Assim como em Sócrates, para Platão a filosofia tem um objetivo prático, moral: a in cumbência de resolver os grandes problemas da vida. Todavia, ao contrário de seu mestre, que restringia o âmbito da filosofia ao ser humano, Platão a estende a toda a realidade. Nas pegadas de Sócrates, Platão também distingue um conhecimento sensível (a opinião, a doxa) e um conhecimento intelectual (a ciência, a episteme). Mas, enquanto Sócrates fazia derivar o segundo do primeiro, para Platão o universal e imutável conhecimento intelectual não pode se originar do conhecimento sensível, particular e mutável. Nas palavras de João da Penha (1994, p. 36): As ideias estão separadas das coisas, o mundo inteligível está fora e acima do mundo sensível. A multiplicidade e instabilidade das coisas resultam de uma ilusão dos sentidos. A única realidade objetiva, perfeita, são as ideias, não pas sando aquilo que vemos de pálidas representações daquelas. As coisas são có pias imperfeitas e fugazes de arquétipos de modelos ideais. É no mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste, que habitam as ideias, essência de tudo o que existe e de suas perfeições.
Jostein Gaarder (1999, p. 100) apresenta um exemplo significativo dessa teoria de Platão: Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o “exemplar” isolado do cavalo, este sim “flui”, “passa”. Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira “forma do cavalo” é eterna e imutável.
Desse modo, os conceitos ou as ideias que temos em nossa mente são eternos e imutáveis, e, por isso, necessários2. São os arquétipos, isto é, formas ou modelos espirituais a partir dos quais todos os fenômenos são originados. A realidade, por sua vez, é mutável e imper feita, ou seja, contingente 3. O conhecimento por meio dos sentidos e o conhecimento por 2 Necessário , em filosofia, é tudo aquilo que não pode não ser; que não há outra forma de ser. É algo inelutável. 3 Contingente , em filosofia, é o contrário de necessário, ou seja, é aquilo que existe, mas poderia não existir. Filosofia da educação
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meio da razão trazem resultados completamente diferentes. Os dados dos sentidos apenas nos permitem apreender simulacros (cópias imperfeitas) das ideias, levando-nos a formular opiniões (não raro) contraditórias e superficiais sobre a realidade. No entanto, a experiência sensível que nos é dada pelos sentidos é fundamental para desencadear o processo de conhecimento. O conhecimento ocorre quando nos recordamos imperfeitamente dos arquétipos que a alma teria contemplado no mundo das ideias antes do nascimento corporal. A esse processo dá-se o nome de anamnesis (reminiscência). Trata-se, todavia, do nível mais baixo do conhecimento. O mundo das ideias, por sua vez, só pode ser intuído pela razão, o que implica uma ruptura radical com os dados dos sentidos aos quais estamos acostumados. O conhecimento, para Platão, passa ainda por três níveis fundamentais: • o conhecimento sensível , que é efetuado pelos sentidos no mundo dos fenômenos; • o conhecimento discursivo , que implica o conhecimento da matemática, a única ciência que possui uma natureza não corpórea; • o conhecimento intelectivo , ao qual só a filosofia é capaz de levar, por meio de um corte completo com a experiência sensorial. Por meio desses três níveis, a mente se eleva do múltiplo e sensível até o uno, universal e inteligível. Para Platão, ainda, o divino é representado pelo mundo das ideias, no ápice do qual se encontra a ideia do bem, seguida de três ideias que a caracterizam: • a beleza; • a proporção; • a verdade. Como a multiplicidade dos fenômenos é unificada pelas respectivas ideias, unas e imutáveis, do mesmo modo a multiplicidade das ideias encontra a sua unidade na ideia do bem, que é o ser sem o qual não se entende o vir a ser. E, embora ela apresente atributos divinos, a essa realidade suprema falta o poder criador, ou melhor, ordenador, de que é dotado o demiurgo, o qual, ainda que superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para ordenar o mundo, extraindo o cosmos do caos. Da mesma maneira que o demiurgo, mas subordinado a ele, as almas têm uma função mediadora entre as ideias e a matéria. Segundo Platão, existem três tipos de alma: • alma concupiscente , própria dos vegetais; • alma irascível , própria dos animais; • alma racional , exclusiva do ser humano. Entretanto, no ser humano os três tipos de alma encontram-se reunidos hierarquicamente. A alma racional, destinada ao conhecimento das ideias, localiza-se na cabeça e tem
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como virtude principal a sabedoria. A alma irascível, associada à vontade, situa-se no peito e tem por virtude cardeal a força. A alma concupiscente, por seu turno, tem por sede o ventre e como virtude capital a moderação. A alma racional controla as outras duas, e por meio das três virtudes obtém-se o pleno domínio do corpo e das paixões, alcançando-se assim a justiça e a felicidade. Nesse sentido, o corpo seria um obstáculo para a natureza racional do ser humano. A moral platônica, portanto, ancorada no dualismo corpo-alma, é uma moral ascética, de renúncia ao mundo. O objetivo da humanidade encontra-se além deste mundo, na contem plação do mundo das ideias. Quanto ao destino individual das almas depois da morte, segundo Platão, as almas dos filósofos e de todos que souberam se desprender do mundo sensível voltam para o mundo das ideias; as dos seres apegados à matéria vão para um lugar de danação; enquanto as outras se reencarnam em corpos mais ou menos nobres segundo o bem ou mal que tiverem praticado. Aliás, para Platão, cabe também aos filósofos o governo de sua república ideal e nela haveria basicamente três classes: • a dos filósofos , encarregados da direção do Estado; , responsáveis pela sua defesa; • a dos guerreiros • a dos produtores – agricultores e artesãos –, os quais, submetidos aos outros, seriam os responsáveis pela sua sustentação econômica. Compreendendo que os interesses privados, domésticos, não raro entram em choque com os interesses da coletividade, Platão não hesita em sacrificar os primeiros em proveito dos últimos. Todavia, se a natureza do Estado é sobretudo ética, o seu fim principal é pedagógico: antes de tudo, o Estado deve zelar pelo bem espiritual dos cidadãos, educando-os na virtude, e somente em um segundo momento ele deve se ocupar com o bem-estar desses cidadãos.
3.3 O legado de Platão Se Aristóteles, o mais famoso discípulo de Platão, seria o responsável por grande parte da construção do arcabouço científico do Ocidente, caberia ao mestre o estabelecimento de sua estrutura espiritual. Opondo o mundo das ideias ao mundo da matéria, Platão criaria as condições – que seriam reforçadas mais tarde pelo cristianismo – para que se produzisse durante muitos séculos uma repulsa profunda por tudo o que estivesse relacionado com a ordem material e sensível, como o corpo e a sexualidade, em proveito do mundo do espíri to, da mente, das ideias. Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na identidade ocidental, nós devemos a Platão. Não poucos pensadores – entre os quais Nietzsche – tentariam mais tarde desconstruir essa herança. Em todo caso, de certa forma Platão foi a pedra fundamental do edifício filosófico e espiritual do Ocidente. Não é tarefa de pouca monta livrarmo-nos de sua influência.
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Ampliando seus conhecimentos
Imaginemos uma caverna separada do mundo (CHAUI, 2000, p. 195)
Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada nem se locomover, forçados a olharem apenas para a parede do fundo e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carre gando nos ombros guras de homens, mulheres, animais, cujas sombras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna. No primeiro instante, ca totalmente cego pela luminosidade do sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco se habitua à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, nalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja car longe da caverna e somente voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que se habituar à luz. De volta à caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna.
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Atividades 1. Com base no texto de Marilena Chaui apresentado no Ampliando seus conhecimentos , qual é a mensagem deixada por esse mito? E, no seu entendimento, quais são as cavernas de hoje? O que a educação pode fazer para ajudar os educandos a liberta rem-se de suas cavernas?
2. Segundo as principais linhas do pensamento platônico, relacione as colunas a seguir. a. As coisas
( ) só pode ser intuído pela razão.
b. Os conceitos ou ideias
( ) é contingente.
c. A alma concupiscente
( ) é própria dos vegetais.
d. A república ideal
( ) são cópias imperfeitas de arquétipos de modelos ideais.
e. O mundo das ideias
( ) é governada pelos filósofos.
f. A realidade
( ) são necessários.
3. Quanto ao legado de Platão, assinale a única alternativa correta. a. É o responsável por grande parte da construção do arcabouço cientíco do Ocidente. b. Não poucos pensadores (entre os quais Niesche) tentariam mais tarde refor mular, a partir de novas bases, a herança de Platão. c. É o principal responsável pela repulsa concernente a tudo o que esteja relacionado com a ordem material e sensível. d. É incompatível com a dogmática cristã, que desde o princípio preferiu a losoa de Aristóteles. e. Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na identidade ocidental, nós devemos mais a Sócrates que a Platão.
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Aristóteles e a losoa como totalidade dos saberes
4.1 Filho de médico, mestre de príncipe Se elementos da filosofia platônica persistem nos substratos inconscientes do Ocidente, sobretudo em seus veios religioso e espiritual, o pensamento de Aristóteles (o mais famoso discípulo de Platão) foi praticamente hegemônico – e ainda é cedo para afirmar, como pretendem alguns, que tenhamos entrado em uma fase pós-aristotélica. Diferentemente de Sócrates e Platão, Aristóteles era estrangeiro em Atenas: sua família era de Estagira, colônia grega da Trácia, na fronteira com a Macedônia, onde ele nasceu em 384 ou 383 a.C. Por ter nascido na cidade de Estagira, por vezes ele é chamado de “o estagirita”. Seu pai foi médico na corte de Macedônia, servindo ao rei Amintas, que era pai de Felipe e avô de Alexandre. Graças a essa influência, o futuro filósofo beneficia-se desde cedo de uma atmosfera de pesquisa empírica, experimental, sem dúvida alguma decisiva para os vários tratados sobre questões biológicas que escreveria mais tarde. Aos 18 anos, já órfão, ele mudou-se para Atenas, ingressando na Academia platô nica, onde permaneceu por 20 anos convivendo com os maiores nomes do pensamento da época. Todavia, com a morte de Platão, Aristóteles se afastou da escola, já que a direção dela tendia para áreas que não eram inteiramente de seu interesse. Filosofia da educação
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Assim, nos 12 anos seguintes ele viajou pela Ásia Menor, vivendo e lecionando em várias cidades, em uma fase importantíssima de sua vida, até que, por volta de 343 a.C., Felipe da Macedônia o convocou para a corte, encarregando-lhe da educação de seu filho, Alexandre, o Grande. Pouco depois da ascensão de Alexandre ao trono, em 336, Aristóteles retornou a Atenas, onde fundou uma escola própria, o Liceu, assim denominado devido ao templo dedicado a Apolo Lício que ficava nas proximidades. Em virtude do seu hábito de lecionar caminhando, a escola recebeu o nome de Perípatos, que significa “passeio”, e os seus seguidores foram chamados de peripatéticos. “Foram esses os anos mais fecundos na produção de Aristóteles, o período que viu o acabamento e a grande sistematização dos tratados filosóficos e científicos que chegaram até nós” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 175). Com a morte de Alexandre, irrompeu em Atenas uma rebelião contra a dominação macedônica. Culpado por ter sido tutor do grande soberano, Aristóteles foi acusado de impiedade, assim como Sócrates. No entanto, sem a mesma vocação para o martírio, Aristóteles fugiu para Cálcis, onde havia uma propriedade sua, deixando a direção do Liceu com Teofrasto, um de seus discípulos. Com apenas poucos meses de exílio, veio a falecer em 322 a.C., aos 60 anos.
4.2 Os escritos de Aristóteles Os escritos de Aristóteles chegam às centenas – não faltando autores antigos que lhe atribuem a autoria de cerca de mil volumes. O certo é que os textos de Aristóteles se dividem basicamente em dois grandes grupos: , destinados ao grande público, compostos sobretudo em for1. Os escritos exotéricos ma de diálogos, à semelhança de Platão; , de aspecto mais didático, produzidos para os alunos e, em 2. Os escritos esotéricos alguns casos, pelos próprios alunos, como notas tomadas das aulas do mestre – a maior parte do que nos chegou pertence a esse grupo. No entanto, a primeira edição completa de suas obras só veio a lume pela metade do último século antes de Cristo, graças ao esforço de Andrônico de Rodes, seu décimo suces sor na direção do Liceu. A classificação tradicional do corpus aristotélico, como a que segue, tem por base essa edição: • Escritos lógicos – um conjunto de escritos sobre a lógica (que Aristóteles considerava um instrumento indispensável da ciência) e que recebeu mais tarde o título de Organon. • Escritos sobre a física – esse grupo abrange as obras de ciências naturais e a psicologia. • Escritos metafísicos – essa compilação, feita depois da morte do filósofo por meio de seus apontamentos, refere-se à metafísica, cujo nome foi dado devido ao lugar que ocupa na coleção de Andrônico, isto é, “depois da física”.
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Escritos morais e políticos – a Ética a Nicômac o, assim chamada porque é dedicada a Nicômaco, seu filho; a Ética a Eudemo , inconclusa, considerada hoje em dia uma , compêndio das duas preceversão mais antiga do livro anterior; a Grande Moral dentes, em especial da segunda; e a Política , também incompleta. • Escritos retóricos e poéticos – a Retórica e a Poética , que, no seu estado atual, é apenas uma parte do que Aristóteles escreveu. Quanto à abrangência e à grandeza do empreendimento aristotélico e o estilo em que suas obras foram redigidas, transcrevemos o bem-humorado comentário de Will Durant (2000, p. 75): Temos aqui, evidentemente, a Encyclopedia Britannica da Grécia: todos os pro blemas abaixo e ao redor do sol têm um lugar nela [...]. Aqui está uma síntese de conhecimento e teoria que nenhum homem tornaria a realizar até a época de Spencer, e mesmo então com uma magnificência que não chegava à metade dela; aqui, melhor do que a impulsiva e brutal vitória de Alexandre, estava uma conquista do mundo. Se a filosofia é a procura da unidade, Aristóteles merece o elevado título que 20 séculos lhe deram: Ille Philosophus – O filósofo. Naturalmente, a um espírito de tal pendor científico faltava a poesia. Não de vemos esperar de Aristóteles o brilhantismo literário que inunda as páginas do filósofo-dramaturgo Platão. Em vez de nos dar uma alta literatura, na qual a filosofia esteja corporificada (e obscurecida) em mitos e imagens, Aristóteles nos dá ciência, técnica, abstrata, concentrada [...]. Em vez de dar termos à literatura, como fez Platão, ele construiu a terminologia da ciência e da filosofia; pratica mente não podemos falar de qualquer ciência, hoje, sem empregar termos que ele inventou; eles jazem como fósseis no substrato de nossa linguagem: faculdade, média, máxima [...], categoria, energia, realidade, motivo, fim, princípio, forma – estas indispensáveis moedas do pensamento filosófico foram cunhadas em sua mente.
Com Aristóteles, assistimos à passagem de uma filosofia ainda tateante a uma filosofia madura, rigorosa, autônoma. Nele se concretiza, mais do que em qualquer outro antes dele, o domínio do logos sobre o mythos , da razão sobre a imaginação. Podemos afirmar ainda que com o filósofo de Estagira se manifesta, pelo menos em seus princípios epistemológicos, o que viria a ser a ciência ocidental.
4.3 Só o individual é real Para compreendermos a originalidade da contribuição do pensamento de Aristóteles, é preciso levar em conta dois fatores essenciais: a formação prática herdada de seu pai e a força da filosofia platônica. São duas tendências opostas que encontrarão nele uma síntese original, a formação prática funcionando como ponto de partida e pano de fundo para a superação da filosofia platônica. Assim, em Aristóteles a pesquisa empírica fornece o instru mental para a refutação da teoria platônica das ideias. Em outros termos, em Aristóteles é formulada uma filosofia realista em comparação ao pensamento idealista de Platão. Filosofia da educação
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O ponto de partida dessa nova filosofia consiste em conceber, ao contrário de Platão, que somente o individual é real: o que realmente existe é o indivíduo material concreto. Esse indivíduo concreto seria o constituinte último da realidade, a qual, mais do que uma mani festação imperfeita do mundo das ideias, é composta do conjunto de indivíduos materiais e concretos existentes. Além disso, para Aristóteles a experiência é a única fonte de conhecimento autêntico: contra Platão, ele postula que não existem ideias puras a serem investigadas ou procuradas por trás das aparências. A inteligência humana conta apenas com o que está acessível aos sentidos. Dessa forma, no intelecto não há nada que antes não tenha passado pelo concreto. Trata-se de interessar-se imediatamente pelas coisas, pois é a partir delas que se extraem as ideias. Aprofundando a análise, Aristóteles afirma que o indivíduo concreto – o único real e existente – é constituído de matéria e forma. “A matéria é o princípio da individuação e a forma a maneira como, em cada indivíduo, a matéria organiza-se” (MARCONDES, 2000, p. 72). Assim, cada indivíduo tem uma matéria específica, particular, e uma forma comum, partilhada com os indivíduos da mesma espécie. Matéria e forma são indissociáveis, pois a matéria existe apenas dentro de uma forma específica. A fim de compreendermos melhor, vejamos o exemplo da estátua: a matéria dela é o mármore ou o bronze, por exemplo, e a forma é a bela Afrodite ou o feio Sócrates. E só o individual é real. O universal, por sua vez, somente existe em nossa mente por meio da abstração. O caminho por meio do qual o intelecto chega ao conhecimento é a abstração – que é o processo segundo o qual a inteligência separa matéria e forma. O co nhecimento dá-se quando relacionamos os objetos que possuem a mesma forma e fazemos abstração de sua matéria, ignorando suas características particulares. Formulemos um exemplo de abstração: pelos sentidos, conheço um ser, identifico que ele é semelhante a outros da mesma espécie. Trata-se de um mamífero ruminante que chamamos de vaca. A ideia de vaca não existe em estado puro, não há um mundo das ideias onde exista uma vaca arquetípica, modelo para todas as vacas do universo. O que existe de fato é essa vaca particular, que posso ver com os meus olhos. Mas, por um processo de abstração, chego à ideia de vaca, comum a todas as vacas que eu possa conhecer. Em termos aristotélicos, posso afirmar que a ideia que tenho da vaca é a sua essência 1. É baseado nessa ideia que reconheço uma vaca concreta, mas a ideia não existe sem os seres individuais que eu percebo pelos sentidos.
4.4 A metafísica O interesse de Aristóteles pelo individual e pelo real não o impediu, porém, de investigar as realidades não diretamente apreensíveis pelos sentidos. Se ele é considerado o pai da lógica e da ciência, também é o pai da metafísica. Para essas realidades suprassensíveis, 1 A distinção entre essência e existência é uma das classificações da metafísica aristotélica. Existência indica o ser que está acima do nada. Pela essência , ele passa a participar de determinada espécie de ser. A essência é, portanto, nada mais que um modo do existir.
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Aristóteles desenvolveu o que ele chamou de filosofia primeira , a qual, com Andrômico, ganharia o nome com que se tornaria mundialmente conhecida: metafísica. Essa é a ciência que se ocupa com as realidades que estão para além das realidades físi cas (meta , em grego, significa “depois, além de”). O conceito de filosofia primeira é extremamente complexo em Aristóteles, não havendo uma definição única. Basicamente, o filósofo estabeleceu quatro definições. Assim, metafísica ou filosofia primeira é: 1. a ciência que indaga causas e princípios; 2. a ciência que indaga o ser enquanto ser; 3. a ciência que investiga a substância; 4. a ciência que investiga a substância suprassensível. Os conceitos de matéria e forma, ato e potência , substância e acidente possuem papel capital na metafísica aristotélica. Para ele, existem quatro causas implicadas na existência de algo: 1. Causa material – é aquilo de que, como material imanente, provém o ser de uma coisa, isto é, fornece alguma coisa para o ser. 2. Causa formal – é a forma ou modelo, isto é, a definição da essência. 3. Causa motora ou eficiente – é aquilo que se origina da mutação ou da quietação da coisa. Por exemplo, o conselheiro é a causa da ação, o pai é a causa do filho e, de modo geral, o autor é a causa da coisa realizada, o agente modificador é a causa da alteração. 4. Causa final – é aquilo para o que a coisa é feita, como a saúde é o fim dos exercícios físicos, de modo que à pergunta: “para que se faz ginástica?” geralmente se responde: “para alcançar ou conservar a saúde física”. Para exemplificar essas quatro causas, pode-se pensar em um vaso de argila. 1. A causa material é a argila, a matéria de que o vaso é feito. 2. A causa formal é a forma, o formato em que essa argila está disposta para se consti tuir em um recipiente ao qual damos o nome de vaso – e não, por exemplo, de tijolo. 3. A causa eficiente ou motora é o oleiro que trabalhou a argila, produzindo o vaso. 4. A causa final, o objetivo do vaso, o fim para o qual foi feito esse determinado objeto, é portar um arranjo de flores, servir de enfeite para um ambiente etc. Aristóteles distingue ainda os conceitos de essência e acidentes. A essência é aquilo que dá identidade a um ser e, na falta dela, esse ser não pode tor nar-se o que é, não sendo reconhecido como tal. Assim, um livro sem nenhum tipo de letras não pode ser considerado um livro, pois o fato de ter letras impressas é o que o permite ser identificado como livro , e não como caderno , por exemplo. O acidente, por sua vez, é algo que pode ou não ser inerente a um determinado ser, mas que, mesmo quando ausente, não o descaracteriza. Desse modo, o perfume de uma flor é um acidente, pois uma flor não deixará de ser flor por lhe faltar o perfume. A sua cor também é um acidente: por mais que uma flor tenha necessariamente alguma cor, ainda assim o fato de ser amarela ou vermelha não lhe faz ser o que ela é. Filosofia da educação
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Todas as coisas que existem, existem em potência e ato, ensina Aristóteles. Uma coisa em potência é uma coisa que tende a ser outra, tal como a semente, que é uma árvore em potência. Em outras palavras, potência é aquilo que ainda não é, mas que preexiste realmente como possibilidade de vir a ser. Segundo Aristóteles, “das coisas não existentes, algumas existem em potência, por não existirem em ato”. Uma coisa em ato é algo que já está realizado, o ser enquanto já é, como uma árvore é uma semente em ato. De algum modo, o ser em ato pressupõe determinação e perfeição. A principal determinação é a da existência: é a determinação na ordem do ente. A de terminação dá-se também na ordem da essência, enquanto esta apresenta essa ou aquela fisionomia. Ademais, todas as coisas, mesmo em ato, também são em potência, pois uma árvore – uma semente em ato – também é uma folha de papel ou uma cadeira em potência. A única coisa que é totalmente em ato é o ato puro , que Aristóteles identifica com o bem. Esse ato não é nada em potência, nem é a realização de potência alguma – desse con ceito, mais tarde São Tomás de Aquino derivaria a sua noção de Deus como ato puro. E há potências ativas e passivas. As potências passivas apenas recebem o ato. As ativas têm a condição de produzir o ato. O homem tem potências como as do conhecimento e as dos impulsos. Um ser em potência só pode tornar-se um ser em ato mediante algum movi mento. O movimento vai sempre da potência ao ato, da privação à posse. É por isso que o movimento pode ser definido como o ato de um ser em potência enquanto está em potência. Em suma, com esse quadro de conceitos, a metafísica aristotélica inaugura tanto a in vestigação da estrutura geral dos seres quanto as condições que fazem com que um determinado ser possa existir e ser conhecido pelo pensamento. Assim, postula que a realidade no seu todo é apreensível pelo intelecto, apresentando-se como conhecimento teorético ou teó rico dessa realidade sob todos os seus aspectos gerais ou universais. Além do mais, ela deve preceder as pesquisas que cada ciência particular realiza sobre um determinado tipo de ser.
4.5 O pai da lógica Aristóteles é o verdadeiro criador da lógica ocidental, o organon , que em grego quer dizer “instrumento”. Ora, tanto a ciência quanto a filosofia têm por objeto o universal e o necessário, não se podendo fazer ciência em torno do individual e do contingente. Assim como a ideia era o alvo da ciência platônica, a forma é o objeto da ciência aristotélica, a qual, estritamente falando, opera a partir da “ dedução do particular pelo universal, explicação do condicionado mediante a condição, porquanto o primeiro elemento depende do segundo” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 126). Assim, o objeto principal da lógica de Aristóteles é esse processo de derivação. Portanto, a lógica aristotélica é basicamente dedutiva e demonstrativa, e o seu processo característico é o silogismo. Eis como Marilena Chaui a explica: O objeto da lógica é a proposição, que exprime, através da linguagem, os juízos formulados pelo pensamento. A proposição é a atribuição de um predicado a um
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sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este exprime-se logicamente através da conexão de proposições; essa conexão chama-se silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição (as categorias), os tipos de proposições e de silogismos, e os princípios necessários a que toda pro posição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros [...]. (CHAUI, 2000, p. 183)
Qualquer proposição é composta dos seus termos ou categorias, que são palavras que designam algo: Sócrates , morte. Quando emitimos um juízo sobre algo, estamos fazendo uma combinação desses termos – por exemplo, “Sócrates é mortal”. Esse juízo, combinado com outros, forma um raciocínio. Quando o raciocínio é formulado de uma maneira lógica, chama -se silogismo. Retomando a frase “Sócrates é mortal”, é possível elaborar o seguinte silogismo: Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal.
Em outras palavras, silogismo é a argumentação lógica perfeita, constituída de três pro posições declarativas que se conectam de tal modo que a partir das duas primeiras (denominadas premissas) é possível deduzir uma conclusão. Duas características fundamentais se destacam na lógica aristotélica: o aspecto formal e o rigor dedutivo. Pelo aspecto formal se entende que três leis supremas condicionam o seu exercício e garantem a sua validade: 1. o princípio de identidade (dizer que o que é é, e o que não é não é); 2. o princípio de não contradição (é impossível que algo seja e não seja ao mesmo tempo); 3. o princípio do terceiro excluído (uma determinada coisa não pode ser afirmada e negada ao mesmo). Pelo rigor dedutivo se entende que, uma vez admitida a verdade de certas proposições (premissas), as consequências que daí resultam são necessariamente verdadeiras. Com esse rigoroso modelo de lógica formal, Aristóteles estabeleceu a metodologia que permearia toda a pesquisa científica e a investigação filosófica do Ocidente até praticamente a Idade Moderna.
4.6 A justa medida e o bem comum A ética e a política também estão entre as grandes contribuições de Aristóteles. Para falarmos da primeira, é preciso antes nos reportarmos à sua teoria da alma. De Platão ele empresta a divisão tripartite da alma, segundo a qual a alma se divide em alma concupiscente, alma irascível e alma racional. Se todos os seres vivos possuem a alma concupiscente Filosofia da educação
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(a vida vegetativa, já que todos têm um metabolismo) e a alma irascível é partilhada tanto pelos animais quanto pelo ser humano (a sensibilidade), somente o ser humano é detentor de uma alma racional. Ora, a ética só intervém nesse último nível, no nível racional. Sendo a razão o distintivo do ser humano, ele só pode realizar a sua verdadeira natureza vivendo racionalmente. E assim, mediante a virtude, que é uma atividade conforme a razão, ele alcança a felicidade. Com efeito, o fim do ser humano é a felicidade, que ele atinge por meio da virtude, a qual é necessária à razão. Por esse motivo, pode-se afirmar que a característica fundamental da ética aristotélica é o racionalismo. Além disso: As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas; mas implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 132)
Essa “ação com ciência” se manifesta precisamente na escolha do justo meio entre dois extremos, ou seja, entre duas paixões opostas, já que os impulsos e as paixões tendem ao excesso ou à carência. A razão deve impor a justa medida entre um e outro extremo. É justamente nesse meio-termo, nesse equilíbrio, que se encontra a virtude. “A coragem, por exemplo, é o meio caminho entre a temeridade e a vileza, ao passo que a liberalidade é o justo meio entre a prodigalidade e a avareza” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 205). Obviamente, a justa medida não é abstrata, nem é a mesma para todos e em todo o tempo, pois é concreta e variável conforme as paixões em jogo, o indivíduo e as circunstâncias. Além disso, se a virtude é uma atividade segundo a razão, ela também é um hábito se gundo a razão, um costume moral, uma disposição da vontade. Como o conhecimento, que exige esforço e disciplina, a virtude não é inata, mas adquirida mediante a prática, o exercício. Porém, uma vez adquirida, ela torna-se de fácil execução, quase automática, como uma segunda natureza. Daí a importância da educação. Daí, também, a importância do Estado, responsável pela educação dos cidadãos. Se o objetivo da ética aristotélica é a felicidade do indivíduo, a política aristotélica tem por meta a felicidade coletiva da pólis (a cidade-Estado grega) 2. Com esse fim, o filósofo investiga as formas de governo e as instituições capazes de assegurar uma vida feliz ao cidadão. Por isso mesmo, a política situa-se no âmbito da práxis, isto é, no âmbito das ciências que buscam o conhecimento como meio para a ação. Ora, assim como o bem comum é superior ao particular, o Estado é superior ao indiví duo. Unicamente no Estado se realiza a satisfação de todas as necessidades, pois o indivíduo não pode se realizar plenamente sem a coletividade. O Estado, que surge como consequência 2 Apesar de no tempo de Aristóteles a cidade-Estado grega estar em decadência e de se assistir ao surgimento de um império colossal (o império de Alexandre), Aristóteles não tem olhos para outra coisa a não ser para a cidade-Estado.
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da sociabilidade do ser humano, é responsável primeiramente por prover a satisfação das necessidades materiais, como a defesa e a segurança. Mas o seu alvo é espiritual: promover, mediante a ciência, a virtude – e, por conseguinte, a felicidade dos cidadãos. Assim, sua ta refa principal é a educação, por meio da qual são formados os futuros cidadãos, sobretudo por meio das artes, como a música e a poesia. Não obstante a importância do Estado, Aristóteles conserva os direitos individuais: o Estado é, antes de tudo, a síntese de indivíduos distintos. Desse modo, ao contrário da repú blica de Platão, Aristóteles salvaguarda a família e a propriedade particular. Todavia, como fazia o seu mestre, Aristóteles admite a divisão de castas, reconhecendo sobretudo duas: a dos homens livres (os cidadãos da pólis) e a dos escravos, que eram privados de qualquer direito político. Ademais, Quanto à forma exterior do Estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia , que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia , que é o governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a democracia , que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade. E cuja degeneração é a demagogia. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 134)
Embora Aristóteles prefira a forma de governo democrática, como a que se desenvol veu na Grécia – sobretudo em Atenas –, devido ao seu realismo ele tem consciência de que a forma de governo ideal deve adaptar-se à índole do povo e às circunstâncias históricas.
Ampliando seus conhecimentos
Cada Estado é uma comunidade estabelecida com alguma boa nalidade (ARISTÓTELES, 2000, p. 143-146)
A observação nos mostra que cada Estado é uma comunidade estabelecida com alguma boa nalidade, uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que acham bom. Mas, se todas as comunidades almejam o bem, o Estado ou comunidade política, que é a forma mais elevada de comunidade e engloba tudo o mais, objetiva o bem nas maiores proporções e excelência possíveis. É um erro supor que sejam as mesmas as relações entre um estadista e o Estado, entre um rei e seus súditos, entre um chefe de família e sua casa, entre senhores e escravos. Com efeito, elas diferem não apenas no tamanho, mas na espécie. Tamanho não é critério. Não podemos dizer que é um pequeno número de pessoas que dene a relação senhor-escravos;
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Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes que uma quantidade maior de indivíduos dene o relacionamento do chefe de família com os seus; que um monarca o é porque se relaciona com numerosas gentes ou, talvez, com uma comunidade política – como se não houvesse diferenças entre uma enorme família e um pequeno Estado.
[...] A família é a associação estabelecida por natureza para suprir as necessi dades diárias dos homens, e seus membros são chamados, por Charondas, companheiros do pão; já Epimênides, o Cretense, denomina-os companheiros de comer. Mas, quando várias famílias estão unidas em certo número de casas, e essa associação aspira a algo mais do que suprir as necessidades cotidianas, constitui-se a primeira sociedade, a aldeia. A forma mais natural de aldeia parece ser uma colônia de famílias com lhos e netos dos quais se diz que foram “criados com o mesmo leite”. Por causa dessa composição, seu governo era inevitavelmente monárquico; é por esse motivo que as cidades-Estado helênicas foram, originariamente, governadas por reis – porque foi assim antes de os helenos se reunirem em cidades, como acontece ainda hoje com algumas nações bárbaras. [...] Quando várias aldeias se unem numa única comunidade, grande o bastante para ser autossuciente (ou para estar perto disso), congura-se a cidade, ou Estado – que nasce para assegurar o viver e que, depois de formada, é capaz de assegurar o viver bem. Portanto, a cidade-Estado é uma forma natural de associação, assim como o eram as associações primitivas das quais ela se originou. A cidade-Estado é a associação resultante daquelas outras, e sua natureza é, por si, uma nalidade; porque chamamos natureza de um objeto o produto nal do processo de aperfeiçoamento desse objeto, seja ele homem, cavalo, família ou qualquer outra coisa que tenha existência. Ademais, o objetivo e a nalidade de uma coisa podem apenas ser o melhor, a perfeição; e a autossuciência é, a um só tempo, nalidade e perfeição.
Por conseguinte, é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político.
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Atividades 1. Com base no texto do Ampliando seus conhecimentos , responda às questões a seguir. a. Quais são as relações entre a família e o Estado? b. Qual é a origem do Estado? c. Qual é o sentido da armação de que o homem é um animal político?
2. Quanto à vida e ao pensamento de Aristóteles, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). (
) Para Aristóteles, o universal existe em nossa mente somente por meio da abstração.
(
) Aristóteles é o sucessor de Platão na direção de sua escola, a Academia, também chamada Liceu.
(
)
A metafísica ou losoa primeira pode ser denida como a ciência que indaga as causas e os princípios.
(
)
A cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na moral ocidental, é a principal herança da ética aristotélica.
(
)
Duas características fundamentais se destacam na lógica aristotélica: o aspecto formal e a indução.
3. Sobre a metafísica aristotélica, assinale a alternativa correta: a. Metafísica é a ciência que se ocupa com as realidades que estão aquém das rea lidades físicas. b. Para Aristóteles, existem quatro causas implicadas na existência de algo: a causa material, a causa formal, a causa motora e a causa eciente. c. Uma coisa em potência é uma coisa que tende a permanecer sempre em repouso até que uma força a desperte. d. O Estado é a resultante metafísica da reunião das comunidades. e. Todas as coisas, mesmo em ato, também são em potência.
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Creio para compreender, e compreendo para melhor crer.
(Santo Agostinho)
5.1 A filosofia na era helenística Ao contrário da Academia, fundada por Platão, a escola de Aristóteles, Liceu, conheceu rápida decadência, não exercendo grande influência no período posterior à sua morte, em 322 a.C. Aliás, por esse tempo também morreram Demóstenes1 (322 a.C.) e Alexandre (323 a.C.), marcando importante virada na roda da história: foi o fim do esplendor da era grega (da qual, na filosofia, o estagirita foi o maior expoente) e o começo de uma nova era, que recebe o nome de helenismo. Com o império de Alexandre, o pensamento, a língua e a cultura grega expandi ram-se para o Oriente, no rastro das conquistas militares, e em contrapartida receberam elementos orientais. Com a inesperada morte de Alexandre, com 33 anos incompletos, o novíssimo império – que ia dos Bálcãs à Índia – foi repartido entre os seus generais. Todavia, uma nova cultura – que não era mais a cultura grega clássica nem a cultura dos povos conquistados – já se encontrava em gestação. 1 Nascido em 384 a.C., Demóstenes foi um dos maiores oradores e políticos atenienses. Filosofia da educação
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A filosofia também não escapa incólume desse período de profundas mutações. As grandes sínteses e as especulações metafísicas da época anterior são deixadas de lado e a filosofia volta-se para questões práticas, tornando-se predominantemente pragmática. Significativa dessa ênfase é a frase do filósofo Epicuro: “É vão o discurso daquele filósofo que não cure algum mal do espírito humano”. Compreende-se assim que o pensamento helenístico se tenha concentrado sobretudo nos problemas morais, que se impunham a todos os homens. E, propondo os grandes problemas da vida e algumas soluções para eles, os filósofos dessa época criaram algo de verdadeiramente grandioso e excepcional, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo, propondo modelos de vida nos quais os homens continuaram a inspirar-se ainda durante outro meio milênio e que, ademais, se tornaram paradigmas espirituais, verdadeira “conquista para todo o sempre”. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 230)
Com a expansão da cultura grega, surgiram também novos centros de cultura, como as cidades helenísticas de Pérgamo, Rodes e sobretudo Alexandria, pois Alexandre, à medida que avançava, ia fundando novas cidades e povoando-as com colonos gregos. Ao mesmo tempo, a pólis, a cidade-Estado grega, perdia a sua autonomia, dissolvendo-se nos grandes e centralizados reinos helenísticos, não raro em constante e sangrenta disputa. O cidadão voltou a ser súdito, diminuindo o interesse pela coisa pública. Com isso, a ética desprendeu-se da política. No entanto, um sentimento de pertença universal foi aos poucos suplantando o antigo bairrismo grego: era o cosmopolitismo , que considerava o mundo inteiro uma cidade – consequência da primeira experiência de globalização ocorrida na história. Ciosos de sua supe rioridade, os gregos foram obrigados a rever preconceitos em relação a outros povos considerados bárbaros. O já citado Epicuro tinha os bárbaros como membros de sua família e ansiava tê-los entre os seus discípulos – atitude inadmissível para Aristóteles, por exemplo. Ao mesmo tempo, como consequência das numerosas guerras e das contínuas alte rações das fronteiras, uma sensação de insegurança impregnava os corações. Superstições e misticismos, oriundos do Oriente, invadiam as mentes e novos deuses foram admitidos no Olimpo e nos altares. Tudo isso até que um novo império (o romano) e um novo sistema religioso (o cristão), ambos com vocações universalistas, açambarcassem a herança de Alexandre e a dos gregos. Assim, um pulular de escolas, tendências e seitas disputaram as preferências dos perplexos e inquietos homens desse período. No campo da filosofia, que é o que nos interessa, o cinismo, o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo cumpriram esse papel.
5.1.1 Cinismo Talvez antes mesmo de Platão e Aristóteles, os sinais da crise do pensamento clássico já eram visíveis. Com efeito, o cinismo tem a sua origem com um discípulo de Sócrates, Antístenes de Atenas (cerca de 444-365 a.C.), que fundou a sua escola em um ginásio chamado Cinosargos, de onde derivou-se o nome de sua doutrina. Segundo o cinismo, o bem supremo consiste no desprezo das riquezas e das honras deste mundo. Sábio é aquele que
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não se deixa dominar pelas paixões, não se submete ao prazer e não foge da dor, levando uma vida com a simplicidade natural de que dão exemplo os animais. Apesar do sucesso de Antístenes, que conseguiu reunir um bom número de discípulos, a maioria dos atenienses achava que todos eles não passavam de um bando de presunçosos e hipócritas – daí o sen tido atual do termo cínico. Todavia, o maior representante da escola cínica foi um discípulo de Antístenes, Diógenes (413-323 a.C.), de Sínope, na Ásia Menor. Foi ele quem levou às últimas consequências os ensinamentos de seu mestre. Dele, que rompeu a imagem clássica do homem grego, circu lam muitas anedotas. Exemplificadas pela vida de Diógenes, que dormia em uma barrica e vivia como um “cão”, a autarquia (bastar-se a si mesmo) e a apatia (indiferença diante das vicissitudes da vida) eram os pontos de chegada do ideal cínico. O cinismo quase se constituiu em um movimento de massas na época helenística, com muitos dando as costas às convenções sociais para viverem uma vida mais simples e autên tica. O movimento hippie e outros movimentos contemporâneos de contestação, algumas atitudes dos profetas hebreus do Antigo Testamento e dos monges zen-budistas do Japão guardam afinidades com o cinismo. Na verdade, mais que uma corrente filosófica, o cinismo foi um estilo de vida, questionador do status quo helenístico, em uma época de crise e transi ção – quando o velho ainda não tinha morrido e o novo ainda não despontara.
5.1.2 Epicurismo Uma das doutrinas mais populares durante o helenismo e no Império Romano foi o epicurismo, movimento que toma o nome de seu fundador, Epicuro (341-270 a.C.), nascido em Atenas e criado em Samos. Em 306 a.C., ele instalou a sua famosa escola em Atenas, nos jardins de sua requintada residência. Conhecido como Jardim de Epicuro, esse local se tornou o centro de uma animada vida intelectual. Foi lá que Epicuro exerceu a sua influên cia, não somente pelo ensino direto, mas também por uma personalidade de refinamento e fidalguia, nunca deixando de auxiliar os discípulos e de tratar os escravos com civilidade. Epicuro dividia a filosofia em lógica, física e ética. Segundo a lógica, o critério de verdade é a evidência, que pertence à sensação, não po dendo ser refutada nem por outras sensações nem pela razão. As ideias gerais formam-se a partir do que foi percebido muitas vezes, e entre elas (que, ancoradas na sensação, são sempre verdadeiras) distingue-se a opinião, que pode ser verdadeira ou falsa. Todavia, a opinião é importante, pois permite, por meio das sensações, chegar ao conhecimento dos princípios, que são inacessíveis à percepção direta. Tais princípios são os átomos, que são objeto da física. Para Demócrito, a realidade é composta de átomos, vácuo e gravidade, e Epicuro acrescenta uma faculdade dos átomos: a de se desviarem da linha reta na queda pelo espaço, tornando possível a reunião desses átomos, assim originando as coisas.
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A lógica e a física são o pressuposto da ética epicurista, cujo objetivo último é a felicida de. Para Epicuro, a felicidade é o prazer – que para o corpo consiste em não sofrer e, para a alma, em não ser perturbada. Para que se atinja tal objetivo, Epicuro propõe-se a libertar os seres humanos do temor dos deuses e do medo da morte. Seres perfeitíssimos, os deuses não se misturam às imperfeições do mundo e não se ocu pam com as vicissitudes humanas. E também não há razão para temer a morte: ela nada mais é do que a dissolução do aglomerado de átomos que constitui o corpo e a alma. Portanto, a morte não existe enquanto o ser humano vive, e este não existe mais quando ela sobrevém. No entanto, a libertação do temor dos deuses e da morte não é suficiente para conduzir o ser humano à felicidade. Enquanto ser natural, o homem – como os animais – pauta a sua vida pela busca do prazer e a fuga da dor. Assim, o prazer é o princípio e o fim da vida hu mana, e o bem não pode ser concebido sem os prazeres. Mas a verdadeira sabedoria consiste em saber selecionar e dosar os prazeres. Fiel a sua filosofia materialista, Epicuro tem como pressuposto que todo prazer é basicamente um prazer corpóreo. Porém, ao contrário dos cirenaicos (corrente hedonista 2 fundada pelo supracitado Aristipo), Epicuro ensina que o prazer desejável não é aquele da pura satisfação imediata. Para ele, o prazer que deve nortear a conduta humana – o prazer com dimensão ética – é o prazer do repouso, constituído pela ataraxia (ausência de perturbações da mente) e pela aponia (ausência de dor). Ataraxia e aponia podem ser alcançadas na medida em que, por meio de autodomínio, o ser humano adquire a autarquia, isto é, a autossuficiência de quem tem em si a própria lei. Para tanto, ele deve renunciar aos prazeres que podem ocasionar sofrimento e aceitar a dor na medida em que ela é inevitável. Portanto, é preciso, como um primeiro passo para a felicidade, um cálculo utilitário dos prazeres e das dores possíveis. Epicuro – ele próprio um homem enfermo, achacado por terríveis males físicos, e tam bém um grego privado da liberdade política – teria demonstrado em sua vida a eficiência dessa técnica interior de equilíbrio e libertação, capaz de dotar o ser humano de condições objetivas para enfrentar com impassibilidade as mais adversas circunstâncias. O epicurismo gozaria de grande sucesso não só no ambiente helenístico como também no Império Romano, vindo a experimentar reavivamentos nos períodos da Renascença e do Iluminismo.
5.1.3 Estoicismo A doutrina de maior prestígio no Império Romano foi o estoicismo. Grandes estoicos fo ram os romanos Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.), Epicteto (50-130 d.C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.). Sua influência, inclusive, permearia a moral cristã e, de certa forma, prepararia-lhe o terreno. O fundador do estoicismo foi Zenão, nascido em Cítio, na ilha de Chipre (334-262 a.C.), e o nome de sua escola vem do lugar onde ele costumava ensinar: stoá , que significa “pórtico” em grego. Como não era cidadão ateniense, ele não podia possuir um imóvel, sendo 2 O hedonismo coloca o prazer como a finalidade suprema da existência.
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obrigado a ministrar suas aulas debaixo de um pórtico. Aos poucos, seus discípulos ficaram conhecidos como os “alunos do pórtico”, “alunos da stoá”, isto é, os estoicos. Assim como os epicuristas, os estoicos dividiam o conhecimento em lógica, física e moral. Segundo a lógica, o conhecimento deriva apenas dos sentidos, sendo a imagem a impressão produzida na alma pelos objetos exteriores. Por sua vez, o acúmulo de imagens per mite a formação das ideias universais, as quais – com Aristóteles e contra Platão – existem apenas no pensamento. Já para a física estoica a realidade seria o fruto de dois princípios básicos: um passivo (a matéria) e outro ativo (a razão). Sendo fogo, como queria Heráclito, a razão impregnaria a matéria, dando origem à terra, à água e ao ar. Tudo procede do fogo e ao fogo retornará um dia, inclusive a alma humana, que sobrevive ao corpo até a “última conflagração”, quando perderá a individualidade. Tudo está contido em tudo, desde as origens. A harmonia do mundo implica uma inteligência, pois do acaso não poderia resultar a ordem: Deus é a razão universal, origem e substância de todas as coisas. Segundo a ética estoica, a felicidade consiste em viver conforme a natureza. Para o ser humano, que é participante da razão universal, isso significa viver conforme a razão, já que a natureza humana é racional. Ademais, a felicidade passa a ser compreendida como libertação de toda perturbação, como autarquia e ataraxia. A paixão é vista sempre como má, pois é movimento que perturba a alma – seja ódio, seja amor. Assim, a atitude do sábio deve ser o aniquilamento da paixão, até atingir o estado de apatia, de indiferença altiva diante toda desordem do mundo. O ideal estoico não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 148)
Assim, indiferença e renúncia a todos os bens do mundo são o núcleo da virtude estoica. O sábio pratica essa virtude para não ser perturbado pela posse nem pela privação dos bens terrenos. Absorto em sua torre de marfim, nada pode alterá-lo. A ética estoica, como a epicurista, é democrática: todos os seres humanos, sejam escravos (como Epicteto) ou im peradores (como Marco Aurélio) são capazes da virtude e da perfeição, sendo igualmente aptos à realização do bem e à conquista da felicidade. O estoicismo também foi importante para a tendência do cosmopolitismo: o sábio es toico é cidadão do mundo, ao qual pertencem todos os indivíduos, independentemente de raça, nação ou condição social.
5.1.4 Ceticismo e ecletismo Se tanto o estoicismo como o epicurismo visam ao ideal da apatia – o primeiro mediante uma metafísica positiva e o segundo com uma metafísica negativa, que nega o todo absoluto –, o ceticismo, buscando o mesmo fim, abre mão de toda metafísica. Tendo o seu início com
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Pirro de Elis (365-275 a.C.) – que, como Sócrates, nada escreveu –, o ceticismo é, portanto, mais coerente e radical que as escolas anteriores. Acreditando que as sensações e os juízos são incapazes de apreender a verdade, tudo se torna igualmente indiferente. O sábio cético, por conseguinte, não terá opiniões, assim evitando a vã agitação do espírito. A suspensão do juízo, por sua vez, conduz à completa apatia, tanto teórica quanto prática, e à imperturbabilidade (ataraxia). Enquanto os dogmáticos pretendem ter descoberto a verdade, os céticos limitam-se a declarar que é impossível encontrá-la. E, se houvesse uma verdade, não haveria critérios que permitissem demonstrá-la. Por outro lado, ser cético significa também ser dialético, isto é, um pesquisador contumaz, reconhecendo que, se há alguma verdade, ela consiste na procura da verdade. Assim, para haver ciência, ou seja, investigação racional, é necessário um certo ceticismo de base, pois ninguém procura aquilo que julga que sabe. Apresentando-se como um sistema afim, porém aparentemente antagônico, temos o ecletismo: se nada é verdadeiro, tudo é igualmente válido. O surgimento de uma filosofia dessa natureza foi favorecido pela coexistência, nos períodos helenístico e romano, de várias corren tes filosóficas, com postulados muitas vezes opostos, como o platonismo (e o neoplatonismo), o aristotelismo, o cinismo, o epicurismo, o estoicismo, o ceticismo – isso para ficarmos apenas nos mais conhecidos. O pragmatismo eclético será enfim estimulado pelo contato do pensa mento grego com a cultura latina dominante, totalmente voltada para a prática e apresentan do sua principal contribuição mais no âmbito do direito que no da filosofia.
5.1.5 Neoplatonismo Antes do apagar das suas luzes, a filosofia pagã da Antiguidade ainda nos legaria uma reformulação original e vigorosa do pensamento de Platão (427-347 a.C.): o neoplatonismo. Surgido em Alexandria, no Egito, com Amônio Saca (175-240 d.C.), seu principal responsá vel é um aluno seu, Plotino (204-270 d.C.), natural de Licópolis, também no Egito. Não que as doutrinas de Platão tivessem sido esquecidas. Entre a morte do autor da República e o magistério de Amônio, não poucos pensadores serviram-se do instrumental platônico, sem falar que a Academia (a escola fundada por Platão) não deixara de funcionar, embora nem sempre se conservando fiel aos princípios filosóficos de seu fundador. No en tanto, com Amônio e sobretudo Plotino, o platonismo recobraria forças e versatilidade em uma nova síntese, destinada a servir de arcabouço para o pensamento cristão por cerca de um milênio. Repensando o platonismo na óptica do Império Romano, a filosofia de Plotino é um saber de salvação, destinado a suscitar no ser humano a recordação de sua origem divina, voltando-o para Deus, do qual é uma emanação. Imortal, a alma individual é, todavia, parte da alma universal, a qual, por seu turno, procede da inteligência, e da qual recebe as formas que imprime na matéria. Acima da Inteligência encontra-se o Uno, que se basta por si mesmo e é, portanto, o Absoluto. Causa
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geradora de tudo o que existe, o Uno, em emanações sucessivas, engendra a inteligência, a qual, por sua vez, engendra a alma, que, finalmente, produz o mundo sensível. Procedendo da unidade, todos os seres aspiram à unidade, que é a sua razão de ser. Assim como em Platão, o mundo das coisas é mera aparência do mundo das ideias. O obje tivo da moral é a libertação do corpo. A felicidade da alma encontra-se na contemplação (um tipo de meditação profunda que, eventualmente, pode ocasionar o êxtase), na qual se realiza a unidade do sujeito e do objeto, único meio para atingir o êxtase, pelo qual a alma funde-se com o Uno. A filosofia de Plotino é, com efeito, o grande arremate do pensamento grego. Com ela, uma era se encerra. Com ela, não só se anuncia como também se inaugura outra era, na qual a filosofia caminhará não mais independente como o foi na Antiguidade clássica, mas guiada pela fé.
5.2 Sob a égide da cruz Tirante o direito romano e a administração pública, a herança cultural do Império , de Virgílio (70-19 a.C.), é uma pálida sombra da Ilíada e da Romano não é original: a Eneida Odisseia , de Homero (séc. IX a.C.), escritas quase um milênio antes; e não há um único filósofo romano que chegue aos pés de um Platão ou um Aristóteles. Todavia, a importância de Roma foi a de ter sabido receber, conservar e transmitir à posteridade o portentoso legado dos gregos. Em 476, depois de muito assédio e também crises internas, esse fabuloso império caiu sob o assalto dos bárbaros. Se não fosse pela Igreja, cuja organização hierárquica foi decalcada em parte da estrutura do Império, esse legado correria o risco, pelo menos no Ocidente, de se perder completamente debaixo das sucessivas levas das tribos invasoras. No entanto, o cristianismo não apenas desempenharia a função de salvaguardar (nas bibliotecas dos mosteiros, à espera de tempos mais propícios) a cultura clássica herdada de Roma, servindo de mais um elo nessa corrente: essa religião de origem semita 3 (portanto oriental) não deixaria de acrescentar elementos novos e próprios à aventura do espírito ocidental. O cristianismo tem a sua origem, como o nome já diz, em Cristo. A palavra cristo é a tradução grega para o título de ungido (em hebraico, messias), aplicado por seus seguidores a um judeu morto na cruz, por volta do ano 30, na província da Palestina, no extremo leste do Império. Nesse sentido, o cristianismo é uma original reformulação do judaísmo, a primeira re ligião monoteísta de importância na história, cujos principais fundamentos se encontram na Bíblia. O monoteísmo judaico, acrescido da interpretação cristã (sobretudo de Paulo, um judeu de cultura helenística e cidadania romana, tão importante para o cristianismo como o próprio Cristo), traria para o Ocidente, com a religião, um rol de elementos que configurariam, junto
3 Pertencente ao grupo étnico e linguístico que abrange hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes. Filosofia da educação
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à herança clássica, a identidade da civilização ocidental. A partir daí, é impossível negar essa contribuição: pode-se contestá-la, pode-se tentar superá-la, mas não se pode negá-la. Vamos apresentar agora os principais elementos que seriam decisivos para o desenvolvimento da filosofia na Idade Média: • Monoteísmo – o pensamento grego havia chegado a conceber a unidade do divino, nunca a sua unicidade. A concepção judaico-cristã do Deus único enseja um novo conceito de transcendência: Deus é totalmente outro, que não se confunde com as suas criaturas. • Criação ex nihilo – os gregos jamais conseguiram uma resposta satisfatória para o problema da origem dos seres. A concepção bíblica da criação “do nada” daria uma solução para o antigo problema de como e por que o múltiplo deriva do Uno e o finito do infinito, além de conferir um valor positivo ao mundo, já que ele é criado diretamente por Deus, e não por um demiurgo ou um poder intermediário. • Mandamentos e pecado original – os gregos entenderam a lei moral como uma lei da natureza. A ideia de um Deus que outorga a lei é estranha à filosofia grega. Com o advento de uma lei revelada por uma divindade, a virtude torna-se obediência aos mandamentos de Deus. E a ideia de um pecado original também é importante para a compreensão da mudança de paradigma: o ser humano peca não apenas por ignorância da verdade, mas também por fraqueza da vontade. Assim, o antigo “intelectualismo” grego é subvertido pelo “voluntarismo” judaico-cristão. • Teleologia da história – a compreensão grega do tempo é a-histórica , como o demonstram as diversas teorias do “eterno retorno”. A concepção de história da Bíblia , ao contrário, é teleológica, pois tem um princípio, um desenvolvimento e um fim. Essa talvez tenha sido a principal herança judaico-cristã para o Ocidente. Os conceitos de progresso e evolução , tão importantes para o Ocidente durante os últimos séculos (ainda que questionados recentemente), não seriam possíveis sem essa nova compreensão de história. Entre outros, esses elementos configurariam um marco incontornável no pensa mento ocidental. Depois da difusão da mensagem bíblica, portanto, só seriam possíveis estas po sições: a) filosofar na fé, ou seja, crendo; b) filosofar procurando distinguir os âmbitos da “razão” e da“fé”; c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja, não crendo. Não seria mais possível filosofar fora da fé, no sentido de filosofar como se a mensagem bíblica nunca tenha feito o seu ingresso na história. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 205)
A primeira fase da filosofia da era cristã transcorreu no campo da primeira posição (filosofar na fé) e recebeu o nome de patrística. A segunda fase se deu na esfera da segunda posição (a distinção dos âmbitos da “razão” e da “fé”) e foi chamada de escolástica. Já a terceira posição (filosofar fora e contra a fé) teve seu início já no crepúsculo medieval, anunciando a filosofia da Idade Moderna.
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5.2.1 Patrística: a razão a serviço da fé Patrística é o nome dado ao período do pensamento cristão que se seguiu à redação do Novo Testamento (século I) e estendeu-se até o começo da escolástica, no século VIII. Consiste na elaboração doutrinal das verdades de fé do cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos “pagãos” e as heresias. Foi produzida pelos chamados padres4 da Igreja, um conjunto de escritores cristãos, não necessariamente padres ou sacerdotes (alguns foram inclusive leigos). O núcleo da mensagem cristã, o evangelho (isto é, o relato das palavras e das obras de Jesus), não era um discurso filosófico, mas antes um saber soteriológico (ou seja, que se refere à salvação do homem), que dispensava, quanto ao essencial, o recurso a qualquer filosofia. No entanto, quando o cristianismo começou a espraiar-se por terras de cultura helenística, logo foi alvo de ataques polêmicos, vendo-se obrigado a esclarecer os próprios pressupostos. Para tanto, ele se serviu da filosofia dominante, que na época era de matriz sobretudo (neo)platônica. Esse processo pode ser percebido na própria redação do Novo Testamento. Se os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas (os chamados evangelhos sinóticos) são relativamente simples, o evangelho de João e os escritos de Paulo se servem de categorias gregas. Portanto, os padres da Igreja nem sempre foram hostis à filosofia, compreendendo que a “sabedoria pagã” – a despeito de ser “pagã” – era obra da razão, que por sua vez era obra de Deus. Da tentativa de utilizar a filosofia a serviço da fé resulta a filosofia cristã, da qual a primeira manifestação é a patrística. No entanto, por um lado esse “filosofar na fé” enriqueceu o objeto da filosofia, com o aporte de novos conteúdos, e por outro foi eivado de problemas, entre os quais o maior se ria o atrelamento e a subordinação da filosofia à teologia. Doravante, por cerca de mil anos aquela seria serva desta, perdendo a sua autonomia e sua liberdade de pesquisa. Isso é um dado novo na história da filosofia. Na Grécia e em Roma, a filosofia era relativamente autônoma dos poderes religiosos – ainda que Sócrates tenha sido condenado por “impiedade”, ele o foi pelo poder político de Atenas, e não por um colégio de sacerdotes. Mais tarde, sobretudo após a cristianização do Império (com Constantino e Teodósio 5), tornou-se perigoso pensar diferentemente da ortodoxia definida pelos dirigentes da Igreja. Não foram poucas as fogueiras acesas para dissuadir os que teimavam em pensar de outra maneira. Além disso, é bom ter em mente que a patrística é contemporânea do último período do pensamento greco-romano, com o qual teve um fecundo contato. Como vimos, esse período deu grande ênfase à ética (como no estoicismo e no epicurismo), com um forte viés místico -religioso (da mesma forma que no neoplatonismo). É também contemporâneo do Império Romano, de quem testemunha o esplendor, a decadência, a queda e a substituição como cimento social em uma Europa traumatizada e fragmentada pela Igreja romana. 4 O termo padres tem aqui o sentido latino de “pais”. 5 Com o Edito de Milão (313), Constantino tornou o cristianismo religião lícita, acabando com dois séculos de sangrentas perseguições. Com o Edito de Tessalônica (380), Teodósio elevou o cristianismo à religião oficial do Império, colocando as demais religiões na ilegalidade. Filosofia da educação
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Devido à grandeza de Agostinho, costuma-se dividir a patrística em três períodos: antes de Agostinho, a época de Agostinho e depois de Agostinho.
5.2.1.1 Patrística pré-agostiniana Subdivide-se, por sua vez, em três fases: 1. A primeira fase abarca o século II, compreendendo os padres apostólicos, muito próximos temporalmente dos apóstolos; os padres apologetas e os padres controversistas. Os apologetas interessam-se pela defesa racional da fé cristã, ao passo que os apostólicos e os controversistas têm uma importância mais interna. Os maiores representantes desse primeiro momento foram Clemente de Roma (séc. I), Inácio de Antioquia (67-110), Justino (103-167) e Irineu (130-202). 2. A segunda fase abarca o século III, destacando-se a escola de Alexandria, no Egito, e os padres africanos, isto é, os padres latinos do norte da África. Foi o tempo em que o pensamento cristão ganhou corpo e visibilidade no mundo cultural. Enquanto os padres alexandrinos tiveram em boa estima o pensamento helênico, os padres africanos olharam-no com suspeita. Entre os primeiros ressaltam-se Clemente de Alexandria (150-215) e o grande Orígenes (185-253). Entre os africanos, o maior nome é Tertuliano (155/160-230). 3. Por fim, a última fase do primeiro período se dá no século IV, época áurea da patrís tica. Com as grandes heresias 6 do período, os padres viram-se obrigados a concen trar-se no elemento dogmático, deixando a filosofia propriamente dita em segundo plano. A divisão da patrística em oriental (grega) e ocidental (latina), já patente no século anterior com a polarização entre alexandrinos e latinos, foi acentuada, o que foi corroborado pela separação do Império Romano em oriental e ocidental. Os padres gregos eram mais voltados para questões especulativas, teológicas; os latinos dedicaram-se mais aos problemas morais, disciplinares, políticos. Entre os primeiros despontam Atanásio (296-373), Gregório Nazianzeno (335-394), Gregório de Nissa (330-390) e João Crisóstomo (349-407). Entre os últimos, distinguem-se Ambrósio (340-397) e Jerônimo (343-420).
5.2.1.2 Patrística agostiniana O segundo período da patrística é marcado pela figura luminar de Santo Agostinho, cujo pensamento reinou inconteste no Ocidente durante quase um milênio. Aurélio Agostinho nasceu em 354, em Tagasta, na Numídia, província romana do norte da África, filho de pai pagão e mãe cristã. Essa mãe era Santa Mônica, que seria muito importante na conversão do seu filho. Jovem inquieto, Agostinho entregou-se com afinco ao estudo de toda a ciência do seu tempo. Chegou a ser brilhante professor de retórica em Cartago, Roma e Milão. Aderiu ao maniqueísmo 7 nos seus dias de estudante, mas, embebido de 6 Heresias são doutrinas consideradas como falsas pela Igreja. 7 Dualismo religioso que, difundido nos séculos III e IV, afirmava haver um conflito entre o reino da luz e o reino das sombras, sendo que a matéria e a carne pertenciam à sombra.
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neoplatonismo, converteu-se ao cristianismo por meio da pregação de Santo Ambrósio, fazendo-se batizar em 387. De volta à África, estabeleceu com alguns amigos, em Tagasta, uma comunidade monástica. Em 391, foi ordenado sacerdote em Hipona, logo se tornando famoso por suas pre gações. Notabilizou-se sobretudo pelo combate ao maniqueísmo. Cinco anos depois, foi consagrado bispo dessa mesma diocese. Em 430, durante o cerco de Hipona pelos vândalos, veio a falecer o maior padre da Igreja ocidental. Santo Agostinho é autor de mais de 400 sermões, 270 cartas (muito assemelhadas a tratados doutrinais) e 150 livros. Destacam-se, entre estes, Confissões , em que narra a história de sua conversão, a primeira autobiografia da história; e Cidade de Deus , escrito depois do saque de Roma pelos godos, ocorrido em 410 – nesse livro, ele argumenta que a cidade dos homens pode ser derruída, mas o que conta é a cidade de Deus, que é fundada sobre alicerces eternos.
5.2.1.3 Patrística pós-agostiniana Depois de Agostinho, seu apogeu, a patrística decaiu juntamente com a cultura. A lenta agonia do Império do Ocidente sob as arremetidas das tribos germânicas, e mais tarde dos muçulmanos, fez a Europa mergulhar em um período de obscurantismo. Mas a decadência da patrística também teve motivos internos: a aplicação da filosofia à fé já não apresentava um desenvolvimento fecundo. No entanto, ainda resplandecem al guns pensadores nesse melancólico crepúsculo: Boécio (475/480-524), o “último dos roma nos” e Bento de Núrcia (480-543). Se com a cristianização do Império Romano a Igreja tornou-se romana, com a evangelização dos bárbaros ela se barbarizou: o esplendor do pensamento grego e da administração ro mana pereceram nas cinzas dos saques e das invasões. Até que a poeira assentasse decorreram alguns séculos (do século VII ao X), aos quais é realmente apropriada a designação com a qual erroneamente se tentou apodar toda a Idade Média (476-1453): “idade das trevas”.
5.2.2 Escolástica: harmonia e tensão entre fé e razão A insegurança decorrente das sucessivas invasões aprofundou um processo já iniciado no outono do Império Romano: a feudalização. A Europa se fragmentou em numerosos territórios mais ou menos autônomos, que por sua vez continuaram se pulverizando em numerosos condados, ducados e principados cada vez menores. Somente pelo século XII, com uma certa estabilização das correntes migratórias, estancou-se esse processo. Então começaram a surgir as línguas nacionais, as cidades se repovoaram e se consti tuiu uma nova classe (a burguesia) vivendo nos centros urbanos. Essa nova classe surgiu com as trocas mercantis, ao contrário da nobreza e do campesinato, que viviam da terra, com os nobres explorando a mão de obra servil dos camponeses. A Igreja não ficou imune a essas transformações: surgem as ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos), mais afinadas com as forças sociais e econômicas emergentes. Ao contrário dos mosteiros – comunidades sedentárias que vivem do cultivo da terra e se Filosofia da educação
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dedicam à oração e ao trabalho manual –, os frades mendicantes exercem o seu apostolado nas cidades, nas novas rotas do comércio, no magistério. Com efeito, desde o tempo de Carlos Magno (século VIII), ressurgiam as escolas, as quais podiam ser monacais (anexas a um mosteiro), episcopais (anexas a uma catedral) ou palatinas (anexas à corte). A partir do , que era, a princípio, uma corporação que século XIII, a escola configura-se em universidade congregava mestres e alunos. Logo, por meio de traduções – primeiramente do árabe e depois diretamente do grego –, a civilização medieval redescobriu a sua herança clássica. Assim, era natural que sob essas circunstâncias a ciência e a filosofia encontrassem um novo e vigoroso estímulo, e das cinzas feudais começassem a brilhar as novas luzes que pouco a pouco retiraram a sociedade de seu sono secular. A filosofia desse período recebe o nome de escolástica justamente por ter se originado nessas novas escolas. E, mais que uma retomada dos estudos anteriores, feitos no tempo da patrística, assistia-se a um verdadeiro e inovador despertar da filosofia. Se os padres servi ram-se da razão para dar razões à fé, os filósofos escolásticos tomaram razão e fé como dois campos autônomos e sua empreitada foi a de harmonizá-los. Embora convencional como todas as divisões, os historiadores tendem a demarcar quatro fases na escolástica.
5.2.2.1 A escolástica primitiva Sendo uma fase mais preparatória, estendeu-se do fim da patrística até o século IX e foi marcada por momentos de grande obscuridade cultural e antecipações luminosas, como no chamado Renascimento Carolíngio (séc. VIII). O maior representante desse período foi o mon ge irlandês João Escoto Eriúgena (morto em 877), que tenta conciliar o teísmo cristão com a teoria das emanações neoplatônicas.
5.2.2.2 Primeira escolástica A segunda fase, ou a primeira escolástica propriamente dita, vai do século IX ao século XII, e essa é a época das Cruzadas, um período de vigorosa centralização do poder ecle siástico e da primeira expansão das cidades medievais. Na filosofia, os chamados dialéticos proporcionaram um importante incremento, dividindo a cena com os denominados místicos. Os dialéticos, assim como os místicos, partem da fé; mas, enquanto os místicos hostilizam a razão, os dialéticos servem-se dela para penetrar os mistérios. Entre os maiores representantes da corrente mística encontramos Pedro Damião (1007-1072) e Bernardo de Claraval (1090-1153). Já entre os dialéticos, destacam-se Santo Anselmo de Aosta (1033-1109), o primeiro a tentar demonstrar racionalmente a existência de Deus, e Pedro Abelardo (1097-1142), famoso por sua aventura histórica de amor com Heloísa – o que lhe acarretou trágicas consequências – e um dos pioneiros na assimilação do pensamento de Aristóteles.
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5.2.2.3 Escolástica áurea Corresponde ao século XIII, apogeu da escolástica e do pensamento filosófico cristão, época dos altos e sofisticados voos especulativos e das grandes sínteses doutrinárias. Essa fase é marcada e preparada sobretudo pela redescoberta de Aristóteles no Ocidente. Ao contrário das ideias de Platão, o pensamento de Aristóteles caiu no esquecimento por quase 1.500 anos. O Liceu, a escola fundada por Aristóteles, não desfrutou da mesma glória que a Academia de Platão, nem o seu sistema gozou de um reavivamento semelhante ao neoplatonismo. No século XIII, a filosofia aristotélica foi recuperada graças aos árabes, cuja civilização vivia então um momento de esplendor, especialmente na Espanha moura (isto é, a Espanha sob domínio muçulmano). Pensadores árabes como Avicena (980-1037) e Averróis (11261198), aos quais se deve acrescentar o judeu Maimônides (1135-1204), foram buscar em Aristóteles as novas categorias que iriam revolucionar o pensamento e a ciência ocidentais. Por meio deles, o pensamento de Aristóteles experimentou uma reentrada – dessa vez triunfante – no Ocidente. Coube a Tomás de Aquino, seguindo as pegadas de seu mestre e confrade Alberto Magno (1207-1280), o empreendimento da reformulação em bases aristotélicas de todo o edifício da fé cristã. Descendente de nobre estirpe, Tomás de Aquino nasceu em Roccasseca, Nápoles, em 1225. Sua família queria que fosse monge beneditino, mas, contrariando a von tade familiar, ele entrou na ordem dos dominicanos. Estudou nas universidades de Colônia e Paris, sendo esta na qual recebeu seu grau acadêmico e mais tarde veio a lecionar por um longo tempo. Morreu aos 49 anos, em 1274, no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e Roma, quando se dirigia a Lião para participar de um concílio a pedido do papa. Na Summa Theologiae e na Summa Contra Gentiles , seus maiores livros, sistematizou o conhecimento teológico e filosófico de seu tempo, ancorado no postulado de que a teologia (fundada na fé) e a filosofia (baseada na razão) amalgamam-se em uma síntese definitiva, unidas em sua orientação comum rumo a Deus. Para ele, a filosofia não pode ser substituída pela teologia, já que as duas abarcam campos próprios, mas não há contradição entre elas: “Com base no sistema aristotélico, é conquistada finalmente a consciência do que é conhe cimento racional, ciência: um lógico procedimento de princípios evidentes para conclusões inteligíveis” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 250). Tornaram-se célebres as cinco vias de São Tomás para a demonstração racional da exis tência de Deus. Dessas cinco, precisamos reter, para a nossa discussão, as duas primeiras, segundo as quais Deus seria o motor primeiro (primeira via) e a causa incausada (segunda via). , o pensamento de Tomás de Aquino foi, a princípio, recebido com Chamado de tomismo reservas pelo seu aristotelismo, mas depois viria a ser a filosofia oficial da Igreja católica até o Concílio Vaticano II (1962-1965). Afirma-se, ademais, como o início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é compreendida como uma construção autônoma e crítica da razão humana.
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E o século da escolástica áurea ainda é palco de outras prestigiosas figuras: o italiano Boaventura (1221-1274) e o escocês Duns Scoto (1265-1308). Ao contrário do aristotelismo de São Tomás, esses dois franciscanos servem-se do agostianismo de extração platônica. Contra o concordismo tomista, Scoto propugna a clara separação entre os âmbitos da filosofia e da teologia, já que as duas têm metodologias e objetos distintos. No entanto, quem exerceria maior influência sobre o desenvolvimento ulterior da filo sofia e da ciência seria outro franciscano das ilhas britânicas: Roger Bacon (1210-1294), um aristotélico. Para ele, são três as fontes do saber: a autoridade, a razão e a experiência. A primeira nos dá a fé, mas não a ciência; a segunda, a ciência que não é eficaz sem a experiência. A ciência experimental, portanto, é que constitui a fonte mais sólida da certeza.
5.2.2.4 A escolástica tardia O século XIV caracteriza-se pela separação definitiva entre a filosofia e a teologia, a razão e a fé. O inglês Guilherme de Ockham (1285-1347), outro franciscano, é um dos nomes que brilham nessa fase. Para ele, só o saber sensível é verdadeiro, os conceitos só existem no pensamento e o universal não tem realidade. Com Ockham, foi dado mais um passo rumo ao empirismo radical e a ciência moderna. Além disso, ele defendeu a separação entre os poderes temporal e religioso, aliando-se ao imperador contra o papa. Não por acaso, teve ,8 o que já tinha ocorrido com o seu conterrâneo Roger sérios problemas com a Inquisição Bacon. O castelo filosófico medieval, que subordinava a razão à fé (com a patrística e os escolásticos agostinianos) ou que as harmonizava admiravelmente (com São Tomás de Aquino), estava prestes a ruir. Com Ockham, a escolástica encontra o seu epílogo: no século XIV, depois dele, não surgiriam mais personalidades nem grandes sistemas [...]. Diante do tomismo e do escotismo, que representavam a via antiqua , o ocamismo se impõe como a via moderna , enquanto é programaticamente crítico em relação à tradição escolástica. (REALI; ANTISERI, 2003, p. 663)
Mas a escolástica ainda conheceria um florescimento na Península Ibérica, nos séculos XVI e XVII, devido aos dominicanos e os jesuítas, orientando-se pela nova interpretação do tomismo que se fez na Itália. Os teólogos de Salamanca, na Espanha, juntamente com os jesuítas de Coimbra, em Portugal, defenderam uma síntese da escolástica tradicional com as novas tendências de pensamento da época. Mas então já estávamos no terreno dos epígonos9 e há muito a escolástica já tinha deixado de estar na vanguarda do pensamento ocidental. 8 Órgão da Igreja católica que tinha a finalidade de investigar e julgar possíveis hereges e feiticeiros, acusados de serem contra o catolicismo. Os condenados eram levados à fogueira para serem queimados até a morte. 9 Em geral considera-se que o epígono é um mero imitador de um artista realmente criativo ou de um grande pensador.
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5.3 A Renascença e o divórcio entre razão e fé É errôneo situar a Renascença – ou Renascimento – como uma etapa posterior à Idade Média. Na verdade, a Renascença começa nos últimos anos da Idade Média – sendo contem porânea da última escolástica – e se prolonga pelo começo da Idade Moderna (1453-1789). Embora não seja relevante do ponto de vista filosófico – o primeiro grande filósofo moderno é René Descartes (1596-1650) –, essa época prepara o horizonte histórico no qual irão despontar os representantes da modernidade. Assim, a partir do século XIV, o mundo medieval – que era teocêntrico, coletivista, mís tico – começa a se desintegrar por uma série de fatores. A unidade religiosa, característica da cristandade, foi rompida pelo grande cisma do Ocidente (1378-1417) 10 e um século depois pela Reforma Protestante (1517), que deu origem às igrejas nacionais na Europa setentrional. A Reforma tem como premissa a livre interpretação das Escrituras (a Bíblia) e o acesso direto do fiel a Deus, sem a itermediação das instâncias eclesiásticas –, o que contribui para o advento do individualismo moderno. No plano teológico e filosófico, a crise se manifestou no antagonismo entre a via antiqua (representada pelo tomismo e o agostianismo) e a via moderna (derivada de Guilherme de Ockham). Tendo sido mais uma revolução que uma reforma, essa via moderna constitui a negação radical de toda a filosofia anterior. Deus deixa de ser racional e a racionalidade, que seria um limite à onipotência divina, torna-se um atributo exclusivo do ser humano. Ora, se Deus não é racional, não pode ser apreendido pela razão humana. Desligando-se de um deus incognoscível, a razão volta-se para o que pode conhecer – a natureza e o próprio ser humano. Ao mesmo tempo, os novos descobrimentos científicos propiciaram as grandes navega ções. Descobriu-se que a Terra é redonda e, além disso, com Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642), que ela não é o centro do universo, e sim apenas um planeta em órbita em torno do Sol (isto é, descobriu-se o heliocentrismo). A invenção da imprensa de tipos móveis por Gutemberg (1456), por sua vez, barateou o custo do livro, ajudando a propagar os novos conhecimentos. Que seria da Reforma de Martinho Lutero (1483-1546) sem a possibilidade de uma divulgação mais rápida e de preços mais acessíveis de sua tradução da Bíblia? O fato de o império germânico (que encontrava a sua justificação na Igreja) ter se desintegrado e a emergência de uma nova classe social (a burguesia, que necessitava da ciência para conhecer e dominar o mundo) contribuíram para a decomposição das estruturas feudais e para a formação das novas nações, que mais tarde desenharam o mapa da Europa moderna.
10 Durante esse cisma, a Igreja católica chegou a ter três papas simultaneamente, cada um exigindo a obediência dos fiéis. Anteriormente, em 1054, já havia ocorrido o cisma da Igreja oriental, separando as Igrejas latina e ortodoxa.
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São duas as principais características da Renascença: o humanismo e o naturalismo. O humanismo se manifesta a partir da recuperação e do estudo de obras da Antiguidade clás sica, no florescimento das letras e das artes. Já o naturalismo tem manifestação no empenho de conhecer a natureza pela ciência e de viver segundo a natureza, o que leva a uma ética e a um direito natural. Os grandes artistas dessa época são Dante (1265-1321), Giotto (1266-1337), Petrarca (1304-1374), Boccaccio (1313-1375), Michelangelo (1475-1564) e Luís de Camões (1524-1580). Entre os cientistas, além dos já citados, encontramos Vesálio (1514-1564), que alargou os conhecimentos sobre anatomia, e Gilbert (1544-1603), que desenvolveu pesquisas sobre o magnetismo e a eletricidade. O genial Leonardo da Vinci (1452-1519), figura paradigmática dessa era de ouro, transita entre os dois campos – arte e ciência. Ao contrário do período anterior, o platonismo passou a ser revalorizado, junto deou tras escolas da filosofia helênica, como o estoicismo, o ceticismo e o epicurismo – sendo este bastante próximo do espírito mundano da Renascença. O próprio aristotelismo dessa época é desvestido de sua roupagem cristã tomista, dividindo-se em duas correntes: uma sendo naturalista e outra panteísta, com raízes em Averróis. Grandes nomes dessa época são: Nicolau de Cusa (1401-1464), que tentou a síntese do cristianismo e do neoplatonismo, resvalando no panteísmo; Maquiavel (1469-1527), autor do célebre O príncipe , para quem os interesses do Estado estão acima dos interesses do indivíduo e dos valores éticos e religiosos 11; Thomas Morus (1478-1535), cujo livro Utopia descreve uma sociedade ideal inspirada na República platônica; e Erasmo de Roterdã (1467-1536), autor do famoso Elogio da loucura , em que ataca a hipocrisia da sociedade e da Igreja. Mas talvez o autor mais característico desse período tenha sido Giordano Bruno (15481600). Para esse dominicano que abandonou o hábito e teve uma vida nômade e atribulada, o universo é infinito, Deus é a alma universal do mundo e todas as coisas materiais são manifestações desse princípio único. Mártir da liberdade de pensamento, morreu queimado na fogueira pela Inquisição. O filósofo holandês Baruch Espinosa foi vivamente influenciado por Giordano Bruno. E assim, com a Renascença, consuma-se o divórcio entre teologia e filosofia, razão e fé. A partir de então, cada uma delas irá seguir seu próprio caminho, raramente voltando a se encontrarem, como em Kierkegaard (1813-1855). A filosofia, por sua vez, tendo esgotado a herança platônica e aristotélica, buscará novas bases.
11 Lançado em 1532 (embora escrito 19 anos antes), O príncipe é o primeiro livro em mil anos a não trazer nenhuma citação bíblica ou referência a autores da Antiguidade. Junto à tradução alemã da Bíblia de Martinho Lutero, foi o grande best-seller do século XVI.
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Ampliando seus conhecimentos
Que é, pois, o tempo? (AGOSTINHO, 1977, p. 303-304)
Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos tra duzir por palavras, o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me zer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação que, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existia o tempo presente.
De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro –, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, como podemos armar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir?
Pode-se provar a existência de Deus (AQUINO, 2009)
[...] Por cinco vias pode-se provar a existência de Deus. A primeira e mais manifesta é a procedente do movimento; pois é certo e vericado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo. Ora, todo o movido por outro o é. Porque nada é movido senão enquanto potencial, relativamente àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma coisa da potência ao ato; assim, o cálido atual, como o fogo, torna a madeira cálido potencial, em cálido atual, e dessa maneira, a move e altera. Ora, não é possível uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de vista diversos; pois o cálido atual não pode simultaneamente ser cálido potencial, mas é frio em potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois
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De Aristóteles à Renascença tudo o que é movido há de sê-lo por outro. Se portanto, o motor também se move, é necessário seja movido por outro, e este, por outro. Ora, não se pode assim proceder até o innito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por consequência, outro qualquer; pois, os motores segundos não movem, senão movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos dão o nome de Deus.
Atividades 1. Identique o período da história da losoa a que pertencem os textos auxiliares de Santo Agostinho e Tomás de Aquino, dissertando sobre suas semelhanças e diferenças.
2. Quanto à losoa do período helenístico, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). (
)
Diógenes, “o cão”, que vivia em um barril, é o maior representante da losoa estoica, segundo a qual os homens deviam viver do modo mais natural possível.
(
)
A losoa do período helenístico volta-se para questões metafísicas, tornando-se predominantemente especulativa.
(
)
(
) A ataraxia (imperturbabilidade) era um dos principais ideais perseguidos pelas correntes losócas helenísticas.
(
) O imperador Marco Aurélio foi o maior epicurista romano.
Epicuristas e estoicos dividem a losoa em lógica, física e ética.
3. A seguir, existe uma série de características de correntes losócas. Quais delas perten cem à patrística (P), à escolástica (E) ou à losoa produzida durante a Renascença (R)?
a. Foi produzida pelos chamados padres da Igreja. ( ) b. Preparou o caminho para a losoa moderna. ( ) c. Seu conteúdo é cristão e sua estrutura losóca basicamente (neo)platônica. ( ) d. Subordinou a razão à fé. ( ) e. Recebeu um forte incremento da redescoberta dos escritos de Aristóteles. ( ) f. São Tomás de Aquino foi o seu mais luminoso nome. ( ) g. É a época que marca o divórcio entre razão e fé. ( ) h. Tentou harmonizar razão e fé. ( ) i. Foi dinamizada pelos grandes descobrimentos cientícos. ( )
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Espinosa: uma losoa da liberdade
O homem livre, que vive entre os ignorantes, procura, quanto lhe é possível, evitar os seus favores.
(Baruch Espinosa)
6.1 A filosofia moderna: entre razão e experiência O terreno já fora limpo pela filosofia renascentista, que separara para sempre os campos da razão e da fé, e assim os tempos estavam maduros para o surgimento de uma nova filosofia, não apenas mais uma releitura ou atualização das correntes da filosofia clássica. Ao contrário da religiosa e dogmática filosofia medieval, produzida por clérigos submetidos à autoridade da Igreja, a filosofia que se anunciava era profana, crítica, produzida por leigos que procuram pensar não conforme o critério da autoridade, mas de acordo com as exigências da razão e do conhecimento científico. Portanto, a tarefa que se impunha era repensar radicalmente os fundamentos do saber: se não podemos mais nos pautar nos argumentos de autoridade – seja esta a Igreja (para os católicos) ou a Bíblia (para os protestantes) –, em que devemos então nos apoiar para a construção do conhecimento?
Duas respostas foram aventadas, duas soluções aparentemente antagônicas: a razão e a experiência, que deram origem, cada qual, às duas principais correntes do pensamento moderno: o racionalismo, de matriz francesa, e o empirismo, de molde anglo-saxão. Seus pais são, respectivamente, René Descartes (1596-1649) e Francis Bacon (1561-1626). Filosofia da educação
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O primeiro – considerado o verdadeiro fundador da filosofia moderna – parte da dúvida metódica, que põe em cheque as supostas certezas tanto do conhecimento sensível quanto do conhecimento intelectual. Trata-se de encontrar uma certeza que resista à dúvida e permita a reconstrução do edifício do saber. Ao duvidar de tudo, Descartes constata que, duvidando, pensa, e pensando, existe. Cogito ergo sum (“penso, logo existo”) será, portanto, a pedra an gular da sua filosofia. Assim, ocorre um deslocamento radical na estrutura do pensamento ocidental, com o fundamento da certeza transferindo-se do objeto para o sujeito, do ser para a consciência, da realidade para a consciência. Do outro lado do canal da Mancha, na Inglaterra, uma revolução semelhante se processava, mas em outros moldes. Na esteira de Roger Bacon (1210-1294) e Guilherme de Ockham (1285-1347), Francis Bacon lançava as bases do empirismo moderno. Para ele, a descoberta de fatos verdadeiros não depende do raciocínio silogístico 1 , mas antes da observação e da experimentação reguladas pelo raciocínio indutivo, o qual se pauta por transpor em lingua gem matemática os fatos empíricos descritos. Somente assim é possível passar das sensações particulares para os axiomas gerais – por meio de axiomas intermediários. O conhecimento verdadeiro seria nada mais que o resultado da concordância e da variação dos fenômenos, os quais, caso devidamente observados, revelariam suas causas reais. O empirismo viria a ser extremamente fecundo no ambiente anglo-saxão. Seus principais nomes são John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776). Por outro lado, o cartesianismo – como também é chamado o racionalismo, derivado de Cartesius, nome latino de Descartes – iria nos legar, na França, Nicolas de Malebranche (1636-1715) e, na Holanda, o judeu Baruch Espinosa.
6.2 Uma vida em diáspora No Ocidente cristão, os judeus foram uma das etnias que mais sofreram perseguições sistemáticas. De certa forma, os judeus são e não são ocidentais – ao contrário dos muçulmanos, que, a despeito de sua próspera civilização moura na Espanha, são sempre excluídos para a categoria do Oriente. Os judeus são ocidentais porque desde a diáspora2 estão – ou pelo menos boa parte deles – no Ocidente. Sua herança e suas contribuições culturais são decisivas para a configuração da identidade ocidental – a religião do Ocidente (o cristianismo) tem sua origem em um humilde carpinteiro judeu do primeiro século. Mas também não são plenamente ocidentais, pois não são cristãos e sempre se recusaram a serem assimilados, tanto que permaneceram sempre como povo e nação distintos – mesmo não possuindo um território –, dispersos 1 Um silogismo é o termo com o qual Aristóteles designou a argumentação lógica perfeita, constituída de três proposições declarativas que se conectam de tal modo que, com bases nas duas primeiras, de nominadas premissas , é possível deduzir uma conclusão. 2 Diáspora vem do grego e significa “dispersão”, o deslocamento incentivado ou forçado de grandes massas populacionais originárias de uma zona determinada para várias áreas de acolhimento distin tas. É usada sobretudo para se referir à dispersão dos judeus no mundo antigo.
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entre os povos e as nações da Terra, aferrados aos seus costumes e práticas, o que desencadeou desde o preconceito mais comezinho até campanhas sistemáticas de extermínio, entre as quais o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial, sendo o mais trágico. A primeira diáspora iniciou em 586 a.C., quando o reino de Judá foi invadido por Nabucodonosor e sua população foi deportada para a Babilônia. Apesar da libertação em 539 a.C., apenas parte dos judeus retornou ao seu território – a maioria optou por permanecer na Babilônia e alguns migraram para vários países do Oriente. O segundo momento da diáspora aconteceu no ano 70 d.C., com a destruição de Jerusalém pelos romanos (em 135, aconteceria ainda outro cerco e destruição da cidade). Proibidos de viver na Palestina, os judeus espalharam-se pelo Império Romano. Quando da expansão do Islã, nos séculos VII-VIII, parte dos judeus do norte da África se estabeleceu também na Península Ibérica, desfrutando de significativa liberdade sob o domínio mouro. Como o nome sugere, os antepassados de Espinosa viviam em Espinosa de los Monteros, um pequeno vilarejo no norte da Espanha. Com a conquista de Granada, último bastião mouro, em 1492, os muçulmanos foram expulsos da península. Por sua vez, o decreto de Alhambra, do mesmo ano, proibiu aos judeus a residência no país – salvo sob a condição de se batizarem e aderirem ao catolicismo. Então uma grande leva de judeus emigrou para Portugal, que oferecia asilo aos desterrados. Lá se fixou a família Espinosa, ainda em 1492. Mas, em 1498, devido ao casamento do rei português com a princesa espanhola, a Coroa castelhana impôs a mesma condição a Portugal. Em consequência, a família Espinosa não viu outra alternativa a não ser a conversão. Na pequena cidade portuguesa de Vidigueira, nas proximidades de Beja, nasceu Miguel de Espinosa, pai do filósofo. A condição de cristãos-novos – ou marranos , como eram chamados3 – era extremamente perigosa em decorrência do zelo com que a Inquisição investigava a autenticidade de sua conversão. Por esse motivo, quando Miguel era ainda criança, os Espinosas se mudaram para Nantes, no noroeste da França, onde, devido a um edito de tolerância religiosa, vivia uma colônia marrana. Todavia, essa paz não duraria muito tempo: em 1615, todos os marranos foram expulsos da França. De lá, a família seguiu para a Holanda, onde os judeus gozavam de uma relativa liberdade religiosa. Talvez porque não fosse mais prudente permanecer católico em um país calvinista e em guerra contra a católica Espanha, Miguel retornou ao judaísmo de seus pais. Com o tempo, tornou-se um abastado comerciante. Em 24 de novembro de 1632, nasceu o filho que celebrizaria o nome da família: Baruch em hebraico, Benedictus em latim, conforme ele assinaria em seus livros.
3 Marrano , do árabe mharram = “proibido”, é uma designação injuriosa outrora dada aos judeus e mouros obrigados a se converterem. Em espanhol tem o sentido de “porco” (tanto o judaísmo como o islamismo proíbem o consumo de carne suína, pois o porco é considerado um animal impuro).
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6.3 Uma vida de filósofo Baruch era um jovem judeu de família abastada e em sua educação incluiu-se o estudo do hebraico, da Bíblia , do Talmude e dos filósofos medievais judeus. Ele se impressionou com Maimônides (1138-1204), que identificava Deus e o universo; com Levi ben Gerson (1288-1344), que ensinava a eternidade do mundo; e com Hasdai Cresças (1340-1412), para quem a totalidade da matéria correspondia ao corpo de Deus. É igualmente importante a formação que Espinosa recebeu de Francis van den Enden, um erudito egresso da Companhia de Jesus, com quem aprendeu as línguas clássicas e as ciências naturais e por quem foi introduzido na filosofia de Descartes. Sem dúvida Espinosa deve a Francis van den Enden o seu ótimo domínio do latim, língua em que escreveria pra ticamente toda a sua obra. Como matemático, Espinosa realizou cálculos sobre o arco-íris e ocupou-se do recém -descoberto cálculo de probabilidades. Além disso, como parte dos estudos de física, fabri cava lentes ópticas, sendo provável que tenha recebido muitas encomendas de seus amigos. Sua curiosidade e sua inquietude o fizeram absorver o que havia de mais novo e complexo na cultura científica e filosófica de seu tempo. Todavia, o jovem estudante não tardaria a levantar suspeitas quanto à ortodoxia de sua fé na comunidade judaica local. É verdade que seu ceticismo não era estranho aos jovens das famílias marranas reconvertidas ao judaísmo. Se entre os refugiados de Amsterdã não poucos desejavam reatar os laços com a religião de seus ancestrais, havia também aqueles que hesitavam, preferindo permanecer católicos. Outros ainda, ao retornarem ao judaísmo, já não encontravam a tradição sefardita4 da Península Ibérica. Um exemplo é o caso de Uriel da Costa, que, antes de voltar ao judaísmo, chegara a ordenar-se sacerdote católico. Depois de escrever um tratado atacando a existência de uma outra vida – o que de certa forma não era tão contrário ao judaísmo primitivo –, foi excomungado pela sinagoga, temerosa de desagradar ao Estado calvinista que a acolhia. Abalado, o rapaz suicidou-se com um tiro. Baruch Espinosa, que tinha oito anos na ocasião e assistira ao rito do herem 5 , mal sabia que uma sorte semelhante – a excomunhão – o aguardava. Com efeito, a leitura de alguns comentadores judaicos da Bíblia leva-o a duvidar, entre outras coisas, da unidade autoral do Pentateuco. Percebe também discrepâncias na cronologia bíblica. Em Maimônides, que tentara harmonizar as Escrituras e o aristotelismo, o jovem encontra sua maior inspiração humanista e antiortodoxa.
4 Sefarditas ou sefaraditas (do hebraico sefardi , plural sefardim) são os judeus originários da Península Ibérica, que eles chamavam de Sefarad. 5 Herem , derivado do hebraico haram , significa “arrancar fora”, “separar”, “amaldiçoar”, e indica que aquilo que foi amaldiçoado ou excluído, seja uma pessoa ou objeto, passa a ser proibido para uso ou contato. É traduzido como “anátema” ou “excomunhão”.
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Outro que exerceria grande influência sobre ele é o seu contemporâneo Juan de Prado, um médico que questionava, entre outras coisas, o Deus pessoal da Bíblia , substituindo-o por uma divindade panteísta que se manifestava nas leis naturais. Além disso, para o ceticismo de Espinosa foram relevantes as disputas teológicas que dividiam a comunidade de Amsterdã entre os humanistas e liberais sefarditas de um lado e os dogmáticos e intransigentes asquenazitas6 do outro. O espírito desse segundo grupo foi aos poucos dominando a comunidade, constrangendo os judeus ibéricos, que em geral eram prósperos comerciantes e viviam integrados à sociedade local. O certo é que o jovem Espinosa, em meio a tantos conflitos, partiu em busca de seu próprio caminho. Entretanto, algumas declarações suas – como a de que na Bíblia não havia nada que afirmasse a inexistência de um corpo físico de Deus – levaram a sinagoga a convocá-lo para prestar esclarecimentos. De maneira arrogante, ele declarou que já havia desejado romper com a congregação, mas ainda não o fizera para evitar um escândalo. A sinagoga não teve alternativa senão aplicar-lhe o herem em 27 de julho de 1656. Até Até que ponto chegou a rejeição a Espinosa em setores da comunidade é demonstrado por uma tentativa de assassinato de que ele foi vítima por essa época. A excomunhão acarretou ainda outras consequências. Baruch Espinosa foi obrigado a abandonar os negócios da família, uma empresa de importação e exportação herdada de seu pai, falecido dois anos antes, que ele dirigia junto com um irmão. Seus biógrafos acreditam que ele tenha se dedicado, então, à medicina, pois seus escritos testemunham profundos conhecimentos médicos e sua biblioteca continha as principais obras de medicina de seu tempo. Além disso, a herança paterna foi motivo de contenda entre ele e uma meia-irmã. Apesar de ter vencido a causa na justiça, Baruch deixou praticamente tudo para essa irmã. E assim se precipitou o definitivo afastamento entre ele e sua família.
6.3.1 Depois da ruptura Depois da ruptura com a sinagoga e com a família, Espinosa ligou-se a uma irmandade ecumênica cujos membros, muitos dos quais eruditos, eram oriundos das mais diversas confissões religiosas. Conhecidos como colegiantes , eles praticavam uma leitura não ortodoxa da Bíblia. Muitos deles viriam a se tornar não só amigos como benfeitores do filósofo, ajudando-o nas dificuldades e na publicação de suas obras. Precisando de tranquilidade para se dedicar ao estudo e à reflexão, Espinosa mudou-se para a pequena aldeia de Rijnsburg, nas imediações de Leyden, que era o centro dos colegiantes. Mais tarde, entre 1663 e 1670, viveu em Voorburg, outra pacata localidade, dessa vez nas proximidades da sede do Estado holandês, a cidade de Haia, onde aumentam seus contatos políticos, como com Johan de Witt. Em Voorburg Espinosa trabalhou no seu Tractatus theologico-politicus , que publicou em 1670. Seguindo a cautela então em voga, essa foi uma publicação anônima, sem o crédito da autoria. 6 Asquenazitas (do hebraico ashkenazi , , plural ashkenazim) são os judeus oriundos da Europa central e oriental, onde era forte a influência da cabala e de correntes místicas heterodoxas. Filosofia da educação
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Porém, o futuro político da Holanda estava em jogo. Guilherme III, príncipe de Orange, tratava de se apoderar do Estado. Isso seria o fim de uma república relativamente progres sista em uma Europa absolutista e Espinosa preocupava-se com essa situação; para ele, era imprescindível a participação do povo no Estado. Suas ideias, portanto, favoreciam os par tidários da república, então sob o governo de seu amigo Johan de Witt, e contrariavam as pretensões de Guilherme de Orange, que, por sua vez, contava com o apoio dos calvinistas mais ortodoxos. Em 1670, Espinosa mudou-se para Haia, indo morar em um bairro de intelectuais e artistas. Ao mesmo tempo, aumentavam os ataques dos calvinistas a sua obra. De Witt foi assassinado em uma revolta popular, após a invasão francesa, em 1672. Dois anos depois, a Assembleia dos Estados Gerais – agora sob o comando do príncipe de Orange, aliado da or todoxia calvinista – proibiu o Tractatus juntamente com outros livros considerados danosos à religião do Estado. A atmosfera era tensa. Mesmo assim, Espinosa recusou a cátedra de filosofia que lhe foi oferecida pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Todavia, a despeito das dificuldades – inclusive de saúde –, ele não deixou de escrever. Começou a redação de uma gramática hebraica e retomou o trabalho em sua Ética , obra que que não conseguiu publicar devido à pressão da Igreja calvinista. O que foi possível foi fazer circularem algumas cópias manuscritas entre os seus amigos. E, pela própria força de suas ideias, sua fama atravessava as fronteiras. Muitos o procuravam e entres eles estava Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), que viria a ser um dos mais proeminentes racionalistas da época. Daqueles que o conheceram e privaram de sua amizade, é unânime o testemunho de que se tratava de um homem agradável e de modos distintos. Trajava-se com elegância e dizia a respeito do estereótipo dos filósofos: “Uma aparência suja e descuidada não nos transforma em sábios”. Solteiro e sem herdeiros, Baruch Espinosa morreu subitamente em 21 de fevereiro de 1677, aos 44 anos. Seguindo suas instruções, seus amigos prepararam seus inéditos para publicação. A princípio desconhecida e atacada, a obra de Espinosa só viria a despertar real interesse depois de Kant (1724-1804), então e ntão ganhando grande popularidade entre os românticos – incluindo Goethe e Fichte – e proporcionando ao idealismo alemão o elemento metafísico monista.
6.4 O panteísmo de Espinosa A filosofia de Espinosa é uma espécie de resposta ao dualismo de Descartes, que separou matéria e mente como duas substâncias distintas. Lançada postumamente, em 1677, a Ethica ordine geométrico demonstrata ( Ética demonstrada geometricamente ) de Espinosa contém basicamente o seu sistema filosófico. Composta à imagem da matemática (como Descartes D escartes sugerira que deveria ser a verdadeira filosofia), cada uma das cinco partes que formam esse livro começa com uma série de definições e axiomas, dos quais deriva todo um corpo de provas, corolários e explicações.
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A primeira parte é dedicada a Deus. Após apresentar as definições e axiomas pertinentes, deduz 36 proposições sobre a natureza de Deus, das quais a mais importante é sem dúvida a de número 14: “Além de Deus, nenhuma ne nhuma substância pode ser dada ou concebida”. Consequentemente, tudo o que existe, sob qualquer forma, é parte de Deus. Essa proposição panteísta, segundo a qual Deus é idêntico ao universo, entra em choque com a concepção ortodoxa de que Deus é transcendente transcendent e e distinto da criação – daí uma das principais causas das desavenças de Espinosa com as autoridades religiosas. Porque não pode ser explicada por nenhuma outra coisa, essa substância – que é ao mesmo tempo Deus e a natureza toda – é a causa de si mesma, sendo imutável e eterna. Todavia, ela pode ser concebida sob um duplo aspecto: 1. como um processo ativo e vital, a que Espinosa dá o nome de natura naturans , a natureza criadora; 2. como o produto passivo desse processo, natura naturata , a natureza criada, que é precisamente o mundo todo e tudo o que ele contém. Entretanto, essa substância única pode apresentar diferenças – não nos seus atributos, mas naquilo que Espinosa denomina modos. Um modo, ou modificação, é uma propriedade mais restrita do universo, ou seja, é a maneira como determinado atributo aparece em um nível inferior. Se a substância é eterna e imutável, os modos são mutáveis e transitórios, além de individuais. De certa forma, é uma nova maneira – o que Espinosa não nega – de apresentar a antiga dicotomia essência/acidente, com a diferença de que aquela é identificada a Deus e este ao mundo. Ademais, de um modo ou de outro todas as coisas são animadas. Vida e mente, de um lado, ou matéria e corpo, de outro, são apenas fases – ou atributos, na nomenclatura espinosiana – da mesma substância divina. Sob esse ângulo, Deus – que é a realidade eterna por trás dos eventos do mundo – pode ser considerado como possuindo uma mente e um corpo. Nem um nem outro, isoladamente, pode ser tomado por Deus, mas os processos mentais e materiais que configuram a história do mundo, estes sim, são idênticos a Deus. Consequentemente, a vontade de Deus é a soma de todas as causas e todas as leis, e o intelecto divino é o conjunto de todas as mentes. Na metafísica de Espinosa, portanto, Deus não é distinto do mundo e não pode ter personalidade, vontade ou propósitos. Logo, Logo, o homem que ama a Deus não pode esperar ser amado por ele.
6.5 O ser humano A segunda parte da Ética é dedicada ao espírito humano, isto é, ao ser humano integral, corpo e alma. A substância, que é única, como vimos, tem uma infinidade de atributos. Desses atributos – que são aquilo que o intelecto pode perceber da substância – só conhecemos o pensamento e a extensão. Para Espinosa, o corpo humano é um modo , isto é, uma modificação do atributo extensão. Da mesma maneira, o espírito humano é um modo do atributo pensamento. No entanto, no ser humano não há senão uma única entidade, vista
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interiormente como alma e exteriormente como corpo. Não há como isolar os dois elemen tos desse amálgama inextricável. A cada estado ou mudança da alma corresponde um estado ou mudança do corpo, mas um não pode agir sobre o outro, porque não há “outro”. E o mundo inteiro é dessa forma, unificadamente duplo: onde quer que haja um processo material, externo, há outro interno, correlativo. E isso significa que o universo é um todo consciente – uma posição conhecida como pampsiquismo: da mesma forma que as emoções são consequências das mais leves al terações dos sistemas circulatório, respiratório e digestivo, as ideias são resultado de um processo orgânico complexo. Até Até mesmo as sutilezas da reflexão matemática repercutem no corpo e, por outro lado, não pode acontecer nada ao corpo que não seja percebido, consciente ou inconscientemente, pela mente. Depois de suprimir a distinção entre corpo e alma, Espinosa nega que existam faculdades como intelecto, vontade, imaginação ou memória: “[...] a mente não é uma agência que lida com ideias, mas as próprias ideias em seu processo de concatenação. Intelecto é meramente um termo abstrato e abreviado para indicar uma série de ideias; e vontade , um termo para uma série de ações ou volições” (DURANT, (DURANT, 2000, p. 178). A vontade é em primeiro lugar o pensamento de um conjunto de ações a ser praticado e, quando não há obstáculos, a ação em vista inevitavelmente se segue. A ilusão de uma determinada escolha brota da ignorância a respeito das causas precedentes. Assim, vontade e intelecto são uma coisa só, pois uma volição (ato de escolher ou decidir) é apenas uma ideia que, pela riqueza de associações – ou talvez pela ausência de ideias opostas, permaneceu na mente tempo suficiente para passar à ação. O que é frequentement frequentementee chamado de vontade deveria ser mais apropriadam apropriadamente ente chamado de desejo , que é um apetite ou instinto do qual temos consciência. consc iência. Por trás dos instin insti ntos está o esforço vago e constante de autopreservação. O prazer e a dor são o resultado da satisfação ou não de um instinto, e não são as causas de nossos desejos, mas seus resultados: “[...] nós não desejamos as coisas porque elas nos dão prazer; mas elas nos dão prazer porque as desejamos; e nós as desejamos porque temos que desejá-las” (DURANT, (DURANT, 2000, p. 179). Consequentemente, para Espinosa não existe livre-arbítrio, pois “as necessidades da sobrevivência sobreviv ência determinam o instinto, o instinto determina o desejo e o desejo determina o pensamento e a ação” (DURANT, 2000, p. 179).
6.6 A moral, o sábio e a eternidade Partindo do pressuposto de que a vontade de Deus e as leis da natureza são uma única e mesma realidade, segue-se daí que todos os acontecimentos são resultantes resultant es de leis invariáveis. Com efeito, o mundo espinosiano é um mundo de determinismo, não de vontade e liberdade. Para Baruch Espinosa, o bem é altamente subjetivo. O que é bom para determinada espécie (por exemplo, o leão) pode não ser para outra (a gazela). Da mesma forma, o que tomamos como mal pode não sê-lo com respeito à totalidade do universo, mas somente em
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relação à nossa própria natureza. Assim, do ponto de vista da substância divina, não faz sentido a distinção entre bem e mal, já que tal distinção só diz respeito às criaturas finitas. Daí o equívoco do modo tradicional de solucionar o problema da teodiceia , isto é, a tentativa de conciliar a experiência concreta da existência do mal com o postulado da bondade divina. Ora, Deus está além do bem e do mal. O bem e o mal estão relacionados, muitas vezes, a perspectivas humanas extremamente individuais (o que é bom para mim pode não ser para você), não tendo validade para um universo no qual os indivíduos são coisas ínfimas e efêmeras. Na última parte da Ética , Espinosa expõe o que seriam para ele os distintivos do sábio: liberto das paixões e da ignorância, o sábio é aquele que realiza simultaneamente a felici dade, a virtude e o conhecimento racional, vivendo já na eternidade – no sentido de que já atingiu o conhecimento do eterno. Todavia, como consequência lógica do sistema espinosiano, a imortalidade da alma individual está naturalmente excluída, de modo que essa imortalidade só poderá ser enten dida como a eternidade das ideias verdadeiras, que pertencem à substância divina. Desse modo, eternos serão somente os pensamentos dos sábios, ao passo que os pensamentos das pessoas vulgares estão votados ao aniquilamento total dentro do sistema racional da substância divina.
6.7 Igreja e Estado Espinosa abordou no Tractatus theologico-politicus , um dos poucos livros do autor pu blicados em vida, o problema político e religioso. Sua teoria política tem muito em comum com Thomas Hobbes (1588-1679), mas, enquanto este desenvolve o seu sistema de maneira empírica, o filósofo holandês, como um bom racionalista, deduz suas conclusões de sua teoria metafísica geral. Para ele, o Estado e a Igreja são meios irracionais para o advento da racionalidade. As obras praticadas – ou não – em vista das recompensas e dos castigos temporais e eternos, segundo as ameaças ou promessas dos clérigos e governantes, dependem do temor e da esperança – os quais, para o nosso filósofo, são paixões irracionais. No estado de natureza, isto é, antes da organização política, os seres humanos encon travam-se em guerra contínua uns contra os outros. Tendo em vista o bem comum, eles se uniram em uma espécie de pacto social pelo qual se comprometeram a abrir mão da violência e a auxiliarem-se mutuamente. Todavia, o pacto não é suficiente: é necessária a força para que ele se sustente, pois o direito sem a força não é eficaz. Assim, os membros do pacto confiaram a um poder central a força de que dispõem, encarregando-o de zelar pelos direitos e deveres de cada um. Só então o Estado é realmente constituído – dispondo de poder absoluto para alcançar os seus fins. Contudo, o Estado não é o fim supremo do ser humano: o seu papel é ajudar na consecução desse fim, que é o conhecimento de Deus e uma vida segundo a razão. Portanto, se o Estado se mantiver na violência, obstaculizando o desenvolvimento racional da sociedade, os cidadãos mais cedo ou mais tarde se rebelarão contra ele e o destruirão. Porém, das ruínas desse Estado surgirá outro, mais conforme à razão. Assim, do Estado natural emerge o Estado Filosofia da educação
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racional, o qual limitaria os poderes de seus cidadãos apenas na medida necessária à sua fina lidade, que não é a de dominá-los pelo medo, mas antes a de libertar de tal modo o indivíduo do medo que ele possa viver e agir com total segurança. A partir dessas premissas, é secundária a forma específica de governo – monárquica, aristocrática ou democrática –, ainda que Espinosa manifeste uma preferência por esta. E, segundo Espinosa, um outro grande instrumento irracional a serviço da racionalidade é a religião, espécie de sucedâneo popular da filosofia. Mesmo que o conteúdo da religião revelada seja racional, não o é a forma na qual ela vem embutida, que rebaixa o conhecimento filosófico de Deus em uma revelação mítica. Por outro lado, a ação racio nal – que deveria derivar do conhecimento de Deus – reduz-se à obediência mecânica aos mandamentos. De todo modo, em seus dogmas a religião representaria, de forma tangível e simbólica para a mentalidade do povo, as verdades racionais acerca de Deus e do ser humano. Consequentemente, o que é válido nos dogmas não é a sua fórmula externa, e sim o seu conteúdo moral, ou seja, “induzir à submissão a Deus e ao amor ao próximo, na unificação final de tudo e de todos em Deus” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 301). Assim, já estamos nos umbrais da religião racional e naturalista do Iluminismo e a léguas de distância do pensamento filosófico religioso da escolástica. Além disso, como descendente de judeus convertidos à força, e vivendo no primeiro país europeu a gozar de uma significativa liberdade religiosa, Espinosa advoga a total sepa ração entre Igreja e Estado.
Ampliando seus conhecimentos Denições (ESPINOSA, 1964, p. 117-118)
I. Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente. II. Diz-se que uma coisa é nita no seu gênero quando pode ser limi tada por outra da mesma natureza. Por exemplo: um corpo diz-se que é nito, porque sempre podemos conceber outro que lhe seja maior. Do mesmo modo, um pensamento é limitado por outro pensamento. Porém um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo. III. Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece de conceito de outra coisa do qual deva ser formado.
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IV. Por atributo entendo o que o intelecto percebe da substância, como constituindo a essência dela. V. Por modo entendo as afecções da substância, isto é, o que existe noutra coisa por meio da qual também é concebido. VI. Por Deus entendo o ente absolutamente innito, isto é, uma substância que consta de innitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e innita. Explicação: digo que é absolutamente innito, e não que é innito no seu gênero; porquanto ao que somente é innito no seu gênero podem negar-se-lhe innitos atributos, e, pelo contrário, ao que é absolutamente innito pertence à respectiva essência tudo o que exprime uma essência e não envolve qualquer negação.
VII. Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira. VIII. Por eternidade entendo a própria existência enquanto concebida como sequência necessária da mera denição de coisa eterna. Explicação: pois que tal existência se concebe, assim como a essência da coisa, como verdade eterna, daí resulta que não pode ser explicada pela duração ou pelo tempo, ainda que se conceba a duração sem começo nem m.
Atividades 1. Com base na leitura do texto complementar, de Baruch Espinosa, um dos representantes da losoa moderna, tente estabelecer os pontos de contato e diferença com a losoa do período anterior – mais precisamente a escolástica.
2. Segundo a liação dos pensadores às correntes da losoa moderna, assinale R se ele pertencer ao racionalismo e E se pertencer ao empirismo. (
) Nicolas de Malebranche
(
) David Hume
(
) John Locke
(
) Baruch Espinosa Filosofia da educação
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(
) René Descartes
(
) Francis Bacon
(
) George Berkeley
3. A respeito das proposições losócas de Espinosa sobre a doxa (opinião, senso comum) e a episteme (ciência), assinale se os enunciados abaixo são falsosF() ou verdadeiros (V).
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(
) Pensar os problemas a partir da doxa é pensá-los à luz da losoa.
(
) O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade.
(
)
(
) Doxa é uma reexão rigorosa, radical e de conjunto.
(
) Episteme diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de maneira sistematizada.
Ao saber instituídoepisteme ( ) contrapõe-se o saber instituinte ( doxa).
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O Iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser im putado a ele próprio. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro. Imputável a si próprio é esta menoridade se a causa dela não depende de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude!1 Tenha a coragem de servir-se da tua própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo.
(Immanuel Kant)
7.1 Há algo de novo debaixo do Sol As sociedades tradicionais são avessas às transformações da história e às revoluções. Os filhos seguem a profissão dos pais, que por sua vez seguiram a de seus pais e avós; as pessoas morrem nas mesmas aldeias em que nasceram e viveram. Não há inovações nos métodos de cultivo da terra e na produção artesanal dos poucos instrumentos de uso manual de que se servem. Durante muito tempo a humanidade foi assim. É verdade que guerras e epidemias perturbaram a paz bucólica dessas gerações. É verdade também que o preconceito e a superstição causaram não poucas vítimas entre aqueles que, eventualmente, procuraram seguir outros caminhos. Com efeito, os horizontes eram estreitos; as estradas, poucas e perigosas; as alternativas, mínimas, quando não nulas. Realmente, não havia nada de novo debaixo do Sol. 1
Citação de Horácio: “Tenha a coragem de saber”. Filosofia da educação
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Todavia, no século XVIII algumas revoluções sacudiram profundamente a sociedade ocidental, desencadeando mudanças como nunca antes se tinha visto, a despeito de o germe dessas mudanças já vir atuando sub-repticiamente nos últimos séculos: a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Depois delas, o mundo nunca mais seria o mesmo. Como causa dessas duas revoluções (de modo indireto na primeira e direto na segunda) está o Iluminismo. Também chamado de Ilustração ou Século das Luzes , o Iluminismo foi o movimento intelectual que caracterizou o pensamento europeu no período que decorre entre a Revolução Inglesa (1688) e a Revolução Francesa (1789). O nome deriva do seu objetivo de iluminar com a razão todas as áreas da ação humana. Aufklärung – clareamento, clarificação, iluminação – enlightment, ilustración , iluminismo e esclarecimento remetem a um mundo inteiramente “iluminado”, isto é, visível. Nada deve permanecer velado ou coberto. O conhecimento da natureza emancipa-se do mito, e o conhecimento da sociedade deve, também, fundar-se na razão. A razão esclarecida é uma razão emancipadora. (MATOS, 2006, p. 33)
Nesse sentido, são precursores do Iluminismo vários pensadores da Renascença que foram buscar inspiração para os seus anseios de renovação nos filósofos da Antiguidade clássica. Embora não tenha nada em comum com os movimentos pré-iluministas, a Reforma Protestante (1517) também contribuiu para eles ao abalar a autoridade da Igreja romana e favorecer o nascimento do individualismo moderno ao proclamar o livre exame das Escrituras e o acesso direto do fiel a Deus. O caldo de cultura dessas transformações foi a insegurança crítica do século XVII, impactado pelas guerras religiosas, pelas novas descobertas científi cas, pelas viagens ultramarinas e seus efeitos econômicos. A segurança e a estabilidade da Idade Média, representadas pelo geocentrismo 2 e o ,3 foram profundamente abaladas nesse período. Uma nova classe – que já desteocentrismo pontara ao final da Idade Média, não mais ancorada na propriedade da terra e nos laços de sangue, mas na livre-iniciativa, na acumulação do capital e no individualismo – dá os passos decisivos para a conquista do poder, não sem a vigorosa reação das antigas classes hegemônicas. Até certo ponto, o Iluminismo é a ideologia dessa classe, a burguesia, então empenhada não apenas em fazer negócios, mas também em fazer história. As fontes filosóficas do Iluminismo são o racionalismo inaugurado por René Descartes (1596-1649) e o empirismo inglês, especialmente de John Locke (1632-1704). Com o racio nalismo, o Iluminismo se vê munido de um método crítico rigoroso, eficientíssimo no seu projeto de demolir a tradição e instaurar uma época regida pelas luzes da razão. Já com o empirismo ele se equipa de uma série de procedimentos simples, experimentais, aptos a proporem a reconstrução da realidade a partir de seus dados imediatos. Assim municiado, o Iluminismo vê no conhecimento da natureza e no seu domínio real a tarefa fundamental do ser humano. Daí a necessidade de uma desconstrução radical do 2 Antigo sistema cosmológico que considerava que o centro do sistema planetário era a Terra, em torno da qual girariam todos os demais astros. 3 Doutrina segundo a qual Deus é o centro de tudo.
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passado histórico, marcado pela superstição e pela ignorância. Isso não significa a negação da história como um fato efetivo, mas a necessidade de considerá-la de um ponto de vista crítico: o passado não foi um estágio necessário da evolução da humanidade, mas um con junto de equívocos explicáveis pela insuficiência no uso da razão. Por esses motivos o Iluminismo ostenta um militante otimismo na capacidade humana de emancipação, de superação e de progresso. Fundado nessa ideia capital, ele persegue em todas as partes a realização desse ideal. Mais que um movimento estritamente filosófico – na filosofia, ele foi mais divulgador que original quando comparado com o período anterior –, o Iluminismo foi um movimento cultural que abrangeu não só o pensamento filosófico e científico, mas as artes em geral, a política e o comportamento dos nobres esclarecidos e dos burgueses ascendentes:
Por esta sua simplicidade, em relação aos seus intentos vulgarizadores, o Iluminismo se espalha pela sociedade, leva ao meio do mundo os pensamentos dos filósofos que os precederam. Penetra a cultura, a literatura, a poesia; ingressa nos salões, penetra nas cortes, galga os tronos dos príncipes reformadores, até determinar, afinal, o maior movimento social, econômico, político dos tempos modernos: a Revolução Francesa. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 337)
7.2 Da Inglaterra e da França as luzes brilham para o mundo Se foi na França que o Iluminismo atingiu a sua forma extrema e revolucionária, as suas origens imediatas podem ser encontradas nas ilhas britânicas, na Inglatera. Entre 1640 e 1688, a primeira revolução burguesa da história acabou com o absolutismo inglês, transferindo ao parlamento o poder efetivo e impondo ao rei uma monarquia constitucional. Ao mesmo tempo, os filósofos empiristas e as novas descobertas, como as de Newton (1642-1727), abalavam as convicções medievais, abrindo caminho para a ciência moderna. De passagem pela Inglaterra, o francês Voltaire impressionou-se com essa liberdade de pensamento e de expressão. Absorveu as novas ideias e, por meio do livro Cartas filosóficas ou Sobre os ingleses , de 1734, divulgou-as na França, onde o Iluminismo adquiriu os aspectos com os quais ficaria mundialmente conhecido: o culto à razão, a ojeriza à tradição, o antiautoritarismo e a idealização do homem primitivo, em estado de natureza. Com efeito, diante das mazelas daquele tempo – as sangrentas guerras entre católicos e protestantes, a Inquisição, o despotismo, as estratificações feudais –, os iluministas não raro voltaram os olhos para o homem primitivo, o qual, segundo eles, vivia em estado de natureza, em liberdade e harmonia, servindo-se de uma moral e de uma religião naturais, sem dogmas ou hierarquias. “O homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe”, disse Jean-Jacques Rousseau. Mas o Iluminismo não foi necessariamente antirreligioso: ele pretendia, antes, acomodar a religião às novas ideias, o que o levou a entrar em choque com as igrejas estabelecidas.
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Sua religião ideal era uma religião natural, como a dos deístas e livres-pensadores ingleses: sem dogmas, sem revelação divina, sem sacerdotes, sem mistérios, sobretudo sem crendices. Pois os iluministas se bateram principalmente contra a fé popular nos milagres e todo tipo de superstições. Se as leis da natureza são fixas, como dizia a física newtoniana, não pode haver milagres. De fato, o Deus iluminista é muitas vezes como o primeiro motor imóvel, o qual, uma vez criado o mundo, abstém-se de intervir nesse mundo. Mas, de certa forma, o Iluminismo deificará a razão – como a entronização da deusa razão durante a Revolução Francesa exemplificará admiravelmente.
7.3 Luzes e revolução O ponto culminante do Iluminismo francês e mundial (já que o movimento, atingindo as colônias americanas, deixava de ser apenas europeu) foi a publicação da Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (Enciclopédia ou Dicionário das ciências, das artes e dos ofícios ), a qual foi a primeira enciclopédia. Dirigida por D’Alembert (1717-1783) e Diderot (1713-1784), foi publicada entre os anos de 1751 e 1780, em 34 volumes, dedicando um espaço considerável à tecnologia – o que revela o empreendedorismo do espírito burguês que presidiu os trabalhos. Vários iluministas famosos, como Voltaire e Rousseau, colaboraram, sendo por isso chamados enciclopedistas , e assim suas ideias encontraram um poderoso meio de vulgarização e propagação. Além disso, muitos dos filósofos do movimento eram também talentosos literatos e, no limiar da sociedade de massas, suas peças e romances também se tornaram um importante veículo na divulgação das novas ideias. O jornal, então nascente, e os panfletos igualmente cumpriam essa função. Assim, aquilo que no começo do século era as ideias de um punhado de filósofos, cientistas, libertinos e livres-pensadores, perto de seu último quartel já havia se tornado dominante em círculos influentes da burguesia e da nobreza. Em muitos países, os monarcas absolutos (assessorados por conselheiros embebidos de Iluminismo) realizaram reformas inspiradas pelos novos princípios: tolerância religiosa, limitação ou abolição dos privilégios feudais, modernização do processo penal, eliminação da tortura, reformas administrativas, liberalização da economia. Entre esses dirigentes estão Frederico II, da Prússia (1740-1786), amigo de Voltaire; e a czarina Catarina, da Rússia (1762-1796), amiga de Diderot. Em Portugal, não está o monarca, mas o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal (1750-1777). O primeiro caso de implantação radical das ideias políticas do Iluminismo deu-se no outro lado do Atlântico: em 1776, com a Revolução Americana, nascia a primeira nação inspirada diretamente nos ideais iluministas. Na Declaração da Independência dos Estados Unidos, proclamava-se que “todos os homens são criados iguais” e dotados de “direitos inalienáveis”, entre os quais “o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade”. Além
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disso, a Constituição Americana de 1787 foi o primeiro documento político em que se con signavam os direitos individuais dos cidadãos. E a sua primeira emenda, de alguns anos depois, assegura a separação entre Igreja e Estado, garantindo a liberdade de culto, de expressão e de livre associação. Todavia, a monarquia francesa mostrou-se irredutível aos ideais iluministas, não res tando à burguesia alternativa senão, associando-se aos camponeses e aos trabalhadores ur banos, deflagrar o movimento revolucionário. Em 26 de agosto de 1789 foi aprovada, pela Assembleia Nacional Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo primeiro artigo declara peremptoriamente que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Os privilégios feudais foram abolidos; os bens eclesiásticos, confiscados; Igreja e Estado foram separados e em 1791 foi aprovada uma constituição que consagra os princí pios de Montesquieu sobre a separação dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). A Revolução Francesa tornou-se um marco de um novo ordenamento socioeconômico, tendo como classe dominante a burguesia, que desobstruiu o caminho para o desenvolvimento do capitalismo e consolidou os ideais liberais 4. Mais tarde, com as guerras napoleônicas (1804-1815), muitos dos princípios revolucio nários foram aplicados às outras nações. Mesmo com a restauração conservadora posterior à derrota de Napoleão, o novo regime burguês, muitas vezes associado à velha aristocracia, estabeleceu-se paulatinamente em toda a Europa. A independência das nações da América Latina, no começo do século XIX, foi outro fruto dos ideais iluministas. Finalmente, aquilo que começara nos gabinetes de estudo, nos salões e nos cafés, às vezes como a especulação diletante de alguns filósofos, convertera-se – no curso de um século e meio – em uma das maiores mudanças sociais, econômicas e culturais já ocorridas na história da humanidade. Com efeito, a razão tem efeitos revolucionários.
7.4 A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam à técnica Mas os efeitos revolucionários não ficaram restritos aos níveis político e jurídico. Outra revolução aconteceu simultaneamente, transformando profundamente as bases econômicas sobre as quais se assentava a sociedade. O milenar sustentáculo da produção, de matriz agroar tesanal, transferiu-se para outro ponto, predominantemente urbano-industrial, ao passo que o comércio – que já emergira das cinzas no final da Idade Média, levando em seus ombros um novo protagonista social, a burguesia – fazia circular com mais agilidade os bens produzidos. A Grã-Bretanha – o país do empirismo, do liberalismo econômico e de sua versão mais radical, o utilitarismo – foi o palco em que se processou essa revolução que, com justiça, recebeu o apodo de industrial. 4 O ano do início da Revolução Francesa (1789) é também considerado pelos historiadores como o marco inicial da Idade Contemporânea.
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Uma série de fatores contribuiu para isso: um inédito excedente de capital, o acesso a grandes reservas de recursos naturais – sobretudo nas colônias de seu império global – e o surgimento de novas técnicas produtivas. Com efeito, a ciência e a técnica conquistavam os instrumentos, capazes de multiplicar as forças produtivas em uma proporção nunca antes imaginada: De fato, basta lembrar que antes do advento da máquina a vapor usava-se a ener gia natural (força humana, das águas, dos ventos, dos animais) e, por mais que houvesse diferenças de técnicas adotadas pelos diversos povos através dos tempos, nunca houve alterações tão cruciais como as que decorreram da Revolução Industrial. (ARANHA, 2002, p. 180)
Em pouco tempo as antigas oficinas de artesãos deram lugar a fábricas providas com as máquinas recém-inventadas – as quais produziam um maior volume de bens, com menos dispêndio de tempo e, proporcionalmente, de mão de obra, e a um preço bem mais vantajoso, atendendo à crescente demanda do mercado nacional e internacional. A partir de 1830, as ferrovias e os navios a vapor permitiram a criação de uma rede de comunicação e transportes mais ampla e eficiente, interligando os centros industriais, as fontes de matéria-prima e os mercados consumidores. Com isso, agilizava-se o processo de formação de um gigantesco mercado mundial. Junto a um vertiginoso aumento da população ocorreu o êxodo rural, fazendo as cida des incharem com trabalhadores em busca de emprego nas novas fábricas. A partir da metade do século XIX, a Revolução Industrial espalhou-se por outros países, configurando aos poucos o mundo – com seus maravilhosos avanços técnicos e suas não menos chocantes contradições internas – como nós conhecemos hoje.
7.5 Nomes que brilham Ideologia da burguesia ascendente e progressista em luta contra o obscurantismo da monarquia absolutista e da aristocracia feudal, era natural que o Iluminismo acompanhasse a expansão daquela classe, manifestando-se primeiramente na Grã-Bretanha – o primeiro país em que ela efetivamente galgou o poder. Nesse sentido, filósofos empiristas como George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776) são os representantes máximos do Iluminismo britânico, enquanto economistas como Adam Smith (1723-1790, autor do clássico A riqueza das nações , publicado em 1776), James Mill (1773-1836) e David Ricardo (1792-1823) construíram o ideário do liberalismo clás sico, que até hoje, por meio de várias reformulações (que no entanto não tocam em seu núcleo básico – a livre-iniciativa e o Estado mínimo), constitui a ideologia da classe burguesa. Todavia, o nome que mais influência exerceu no Iluminismo francês foi o do já citado John Locke, que em sua obra mais importante, Ensaio acerca do entendimento humano (1690), formulou as bases do empirismo moderno. Além disso, em Epístola sobre a tolerância (1689)
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ele defendeu a tolerância religiosa e em Alguns pensamentos sobre a educação (1693) desenvolveu uma pedagogia empirista e liberal. Não há dúvida, porém, que o nome mais célebre do Iluminismo é o de Voltaire (16941778), pseudônimo de François-Marie Arouet, que pontificou soberano ao longo do Século das Luzes, chamado inclusive de “o século de Voltaire”. Escritor engajado, militante do Iluminismo, serviu-se de todos os meios ao seu alcance (teatro, romances, poemas, ensaios, correspondência ou panfletos) para divulgar suas ideias. Correspondeu-se com príncipes e reis, entre eles Catarina da Rússia e Frederico II, da Prússia, de quem foi conselheiro por dois anos, vivendo em Potsdam. Voltaire foi um ardente e destemido defensor da liberdade de culto, de pensamento e de expressão, sobre a primeira publicando o seu Tratado sobre a tolerância (1763). O romance Cândido ou o Otimismo, escrito em três dias, é, para muitos, a sua obra-prima, uma amostra de seu talento como escritor, marcado pela mordacidade e a ironia. Em uma época de confiante otimismo – e o Iluminismo foi extremamente otimista quanto aos poderes emancipadores da razão –, esse livro foi uma crítica áspera sobre a ingenuidade muitas vezes subjacente ao otimismo. Por duas vezes preso na temível Bastilha, exilado, caluniado, perseguido, ouvido, adorado, aclamado, idolatrado, Voltaire, em sua longa e aventurosa vida, simbolizou a li berdade pregada pelos iluministas e conquistada mais tarde pelos burgueses na Revolução Francesa. Quando a Revolução triunfou, os seus restos mortais foram transladados para o Panteão, sendo acompanhados por uma multidão de centenas de milhares de pessoas. Até Victor Hugo, no século seguinte, nenhum outro homem de letras seria tão célebre. Outro grande iluminista que bebeu suas ideias iniciais nos vizinhos do outro lado da Mancha foi o barão de Montesquieu (1689-1643), título nobiliárquico de Charles Louis de Secondat, outro insigne elaborador do liberalismo clássico. Em O espírito das leis (1748), sua obra mais importante, ele estuda as diversas formas de governo – o despotismo, a monarquia e a república – dando especial relevo à monarquia parlamentar inglesa. É nesse livro que o autor desenvolve a clássica teoria da separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a fim de salvaguardar as liberdades individuais. Suas ideias influenciaram os lí deres da Independência Americana e a primeira fase da Revolução Francesa. Outras obras importantes de Montesquieu são Cartas persas (1721, um relato imaginário no qual dois persas de passagem por Paris criticam os costumes e abusos da França absolutista) e o monumental Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência (1734). E se, a despeito de todas as suas críticas à Igreja, Voltaire admite uma religião natu ral, com sanções ultraterrenas, a corrente iluminista liderada por Claude Adriens Helvetius (1715-1771) aproxima-se do ateísmo. Seguidor de John Locke, ele considerava que toda a atividade intelectual se assenta sobre sensações. Helvetius foi precursor do utilitarismo, afirmando que o interesse próprio é o único motivo da ação humana. Mas caberia a Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780), um sacerdote católico, desenvolver com o Tratado das sensações (1754) a doutrina do sensualismo. No entanto, seria o franco-germânico Dietrich Holbach (1723-1789) quem se dedicaria a um materialismo ateu militante.
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Todos esses foram enciclopedistas, colaborando com Diderot e D’Alambert na redação da grande Enciclopédia. Todavia, todos, inclusive Voltaire, ficariam, com o passar do tempo, à sombra da figura singular, atormentada e genial de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), de origem suíça. Ao mesmo tempo, fruto do Século das Luzes e crítico feroz da tradição, de certa forma Rousseau representa a superação do Iluminismo, enveredando por um caminho de desconfiança da razão e retorno da emoção. A sociedade e a civilização – afirma ele – corrompem o ser humano, sendo preciso voltar à natureza, à liberdade e à fraternidade originais. Suas obras políticas fundamentais são o Discurso sobre a origem da desigualdade dos homens (1753) e o Contrato social (1762). Segundo ele, de um estado de natureza ideal surge – em virtude de um contrato social – o Estado como escravidão. Esse Estado tirânico deve ser substituído por um outro que tenha por base a liberdade e no qual a vontade geral dos cidadãos encontre a sua livre expressão. Em Emílio (1762), Rousseau imagina uma educação igualmente natural, em que o aluno não seja oprimido pelo professor, mas antes encontre espaço para o livre desenvolvimento de suas potencialidades. Rousseau é considerado precursor dos movimentos socialistas, sendo um dos primeiros a atacar a propriedade privada. Com ele, assistimos ao anúncio do ocaso da era das luzes e o prenúncio do romantismo, no qual não mais a razão, e sim o sentimento e às vezes o sonho é que darão as cartas. Mas aí já estamos no século XIX. Findo o Século da Luzes, seus efeitos continuaram a agir na humanidade. A independência das colônias da América Latina é consequência deles. A maçonaria, por um lado, que teve grande influência nessa independência, e os movimentos socialistas, por outro, são extensões dos ideais do Iluminismo a propagarem-se bem depois de sua época. Praticamente todos os iluministas foram maçons e estavam ligados à burguesia. Os movimentos socialistas, que se colocam do lado do proletariado – a classe que nasceu à sombra e sob o tacão da burguesiam – situam-se no outro lado do espectro político. Ambos são os descendentes, por assim dizer, dos girondinos e dos jacobinos da Revolução Francesa 5. Antes de encerrarmos esta seção com os luminares do Iluminismo, é bom mencionar os nomes de Christian Wolff (1679-1754) e Gotthold Lessing (1729-1781) como representantes do movimento na Alemanha. Nos demais países, não se destacaram filósofos de enver gadura e repercussão internacional. Países como Portugal e Espanha, devido ao peso da Contrarreforma e o medo da Inquisição, não chegaram a desenvolver o Iluminismo – no máximo, um sucedâneo muito tímido ou mitigado. 5 Durante a Revolução Francesa, os girondinos (nome derivado da região francesa da Gironda, de onde provinham seus principais representantes) eram um grupo político moderado, chefiado por Jacques-Pierre Brissot (1754-1793), constituído pela alta burguesia. Fazia oposição aos jacobinos (que receberam esse nome por se reunirem inicialmente no Convento de São Tiago, Jacobus em latim), que eram liderados por Robespierre (1758-1794) e defendiam mudanças mais radicais, apoiados pela baixa burguesia e pela plebe. Os girondinos sentavam-se à direita no recinto da Assembleia Nacional, enquanto os jacobinos sentavam-se à esquerda, e dessas posições surgiu a tradição de se identificar os termos direita e esquerda com conservadores e progressistas, respectivamente.
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7.6 O legado iluminista É difícil falar do legado iluminista em nossa sociedade, já que, ao se olhar em volta, tudo parece nos remeter a ele: a república, as constituições das nações, a democracia, a divisão dos poderes, os direitos civis, a tecnologia, o conceito de educação, os parâmetros curriculares, os ideais de justiça, igualdade e liberdade etc. Com efeito, a atual classe detentora do poder continua sendo a burguesia, que assumiu o poder em parte devido à militância iluminista. Mesmo o socialismo, que no século XX foi a ideologia de um bom número de países e chegou por um momento a ameaçar a hegemonia burguesa, tem a sua origem, como vimos, nos grupos mais à esquerda da Revolução Francesa – portanto, também faz parte do legado iluminista. É verdade que, depois de a burguesia ter assumido o poder e a razão ter sido implantada como princípio norteador da sociedade, as coisas não se revelaram assim tão mara vilhosas. Também é verdade que o século XX, com duas guerras mundiais e a experiência do totalitarismo (Stalin e Hitler fariam enrubescer os déspotas do século XVIII), retrocedeu muitas vezes à barbárie – e essa barbárie não significa uma volta ao estado de natureza, mas o recurso à razão mais sofisticada (a razão tecnológica) para os objetivos mais irracionais, como a limpeza étnica, realizada em larga escala e mais de uma vez no século que passou. De fato, percebemos que a razão nem sempre leva à emancipação, pois pode colocar-se a serviço dos maiores obscurantismos. Por outro lado, a sociedade atual, resultado das revoluções iluministas, não parece necessariamente um ambiente de liberdade e livre pesquisa como sonharam os filósofos do Século das Luzes – em muitas ocasiões, assemelha-se mais a uma grande feira em que tudo está à venda, inclusive as ideias. Diante disso, não poucos se apressaram a declarar o fracasso do projeto iluminista. Todavia, é de se perguntar se ele realmente fracassou ou se o “fracasso” que testemunhamos não é porque o seu ideário não foi plenamente aplicado ou foi abandonado em alguma parte do caminho.
Ampliando seus conhecimentos
Dois tipos de desigualdade (ROUSSEAU, 1978, p. 235-260)
Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é esta belecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens.
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O Iluminismo e o Século das Luzes Esta consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda, por fazerem-se obedecer por eles.
Não se pode perguntar qual a fonte da desigualdade natural, porque a resposta seria enunciada na simples denição da palavra. Pode-se, ainda menos, procurar a existência de qualquer ligação essencial entre essas duas desigualdades, pois, em outras palavras, seria perguntar se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem e se a força do corpo ou do espírito, a sabedoria e a virtude sempre se encontram, nos mesmos indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza: tal seria uma boa questão para discutir entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens razoáveis e livres, que procuram a verdade. De que se trata, pois, precisamente neste discurso? De assinalar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real.
[...] O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer que isto é meu e encontrou pessoas sucientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!”. Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então tives sem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram, pois essa ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que só poderiam ter nascido sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer-se muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração para gera ção, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza.
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Atividades 1. Segundo Olgária Matos, “ Aulärung – clareamento, claricação, iluminação – enlightment, ilustración, iluminismo e esclarecimento remetem a um mundo inteiramente ‘iluminado’”. Analise as razões e as implicações dessa metáfora de “ilumina ção” referente ao Iluminismo e depois registre suas conclusões.
2. Como podemos levar o ideal do Iluminismo ao nosso trabalho de educadores? 3. Assinale com V (verdadeiro) os itens que foram precursores do Iluminismo e com F (falso) aqueles que não foram – ou porque não o inuenciaram de modo direto ou porque são seus efeitos. (
) Descobertas ultramarinas.
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) Racionalismo.
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) Revolução Francesa.
(
)
(
) Escolástica.
(
)
(
) Revolução Inglesa.
Empirismo inglês. Máquina a vapor.
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Immanuel Kant e o idealismo alemão
Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.
(Immanuel Kant)
8.1 Na encruzilhada da razão Do encontro do empirismo inglês com o racionalismo francês nasceu, como síntese prática e divulgadora, o Iluminismo, o qual, por meio de duas revoluções (a Revolução Francesa e a Revolução Industrial), é a parteira da sociedade contemporânea. No entanto, vamos encontrar a síntese filosófica do racionalismo e do empirismo no criticismo , que está na origem do idealismo alemão e, por força deste, do pensamento contemporâneo.
Para compreender as curvas e voltas que o curso da filosofia descreveu até o alvorecer da Idade Contemporânea (iniciada em 1789) e vislumbrar os caminhos que suas correntes seguiriam desde então, é inelutável nos depararmos com Kant, o fundador do criticismo. Filosofia da educação
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Immanuel Kant e o idealismo alemão O pensamento moderno – após a Renascença – pode-se, assim, comparar a um grande X, representando Kant precisamente o centro: os dois braços anteriores representariam o empirismo e o racionalismo, que convergem para Kant; os dois braços posteriores representariam o idealismo e o positivismo, que dependem de Kant. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 359)
Mas o que é o criticismo? Em sentido geral, recebe esse nome a postura que advoga a investigação crítica dos fundamentos do conhecimento como condição preliminar para toda a filosofia. Em sentido estrito, é o nome dado à filosofia kantiana, que se propõe a uma investigação radical sobre as condições e possibilidades do conhecimento. Entre o dogmatismo e o ceticismo, o criticismo kantiano procura reformular o caminho em que é possível pensar a filosofia. Portanto, em diálogo tanto com o racionalismo (mais dogmáti co) quanto com o empirismo (mais cético), Kant ensaia uma nova resposta à velha pergunta que desde o fim da cosmovisão medieval atormentava os filósofos: qual é a fonte do conhecimento? Com efeito, no decorrer dos séculos XVII e XVIII foram duas as respostas aventadas. De um lado, com o racionalismo (que teve o seu início na França, com René Descartes – 1596-1650), alguns filósofos responderam que a razão é a única fonte de conhecimento válido. Do outro lado – inclusive do outro lado do Canal da Mancha, isto é, na Inglaterra –, situam-se os que, como os britânicos Roger Bacon (1561-1626), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), defenderam que o conhecimento autêntico procede da experiên cia sensível. Daí o nome de empirismo dado a essa corrente, pois a palavra empeiría , em grego, significa “experiência”. Ao embate entre empirismo e racionalismo deve-se acrescentar o prodigioso desenvolvimento que as ciências naturais experimentaram na época, notadamente com a nova física formulada por Isaac Newton. A propósito, o empirismo foi fundamental para o advento da revolução científica na medida em que estabeleceu as bases de experimentação e controle sobre as quais pode se alçar a ciência moderna. E se, como dissemos, o Iluminismo soube propagar os problemas e as respostas dessas duas correntes por toda a Europa sem lograr uma síntese satisfatória, seria com Kant que essa síntese seria forjada. E essa solução, a despeito dos hábitos pacatos de seu formulador, revolucionaria o pensamento ocidental.
8.2 O filósofo de Königsberg Immanuel Kant nasceu em Königsberg, uma pacata cidade da Prússia Oriental1 , no dia 22 de abril de 1724. Seu pai era um modesto artesão que trabalhava com couro, fabricava selas, e sua mãe, que era de origem propriamente alemã, não teve estudo, mas foi uma mulher admirada por seu caráter e pelos dotes de uma inteligência natural. A família Kant pertencia 1 Fundada no século XIII pelos Cavaleiros Teutônicos (ordem religiosa militar, como os Templários, que lutou nas Cruzadas), Königsberg já foi capital da Prússia, já pertenceu à Polônia e desde 1946 – agora com o nome de Kaliningrado – pertence à Rússia, como um enclave situado entre a Lituânia e a Polônia.
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ao ramo pietista da Igreja luterana, uma corrente que reagia ao dogmatismo oficial realçando a experiência pessoal da fé, uma vida simples e uma moral rigorosa. Immanuel foi o quarto de 11 filhos (contudo, o primeiro que sobreviveu) e estudou no Colégio Fredericiano, estabelecimento de espírito pietista onde permaneceu por oito anos e meio. Em 1740, aos 16 anos, ele se matriculou na universidade de sua cidade natal e por cinco anos permaneceu nessa instituição. Assistiu a cursos de teologia e conta-se que até pregou alguns sermões. Mas sentiu-se atraído pela matemática e pela física. Começou a ler os traba lhos de Newton auxiliado por um amigo que era um entusiasta da ciência desse físico inglês e também estudou com Christian Wolff, um sistematizador da filosofia racionalista. Todavia, aos 21 anos o jovem Kant perdeu o pai, sendo obrigado a suspender os estudos. Ele começou a trabalhar como professor particular, atividade em que foi bem-sucedido e que lhe permitiu conviver com o melhor da sociedade de seu tempo. Servindo a uma família na cidade próxima de Arnsdorf, foi esse o único período em que morou fora de Königsberg. Finalmente, em 1755, Kant pôde completar os estudos, obtendo o grau de doutor, assumindo depois, na mesma Universidade de Königsberg, a posição de livre-docente e lecionando por 15 anos. Ao contrário do estilo denso e pomposo de seus livros, suas aulas eram dinâmicas e alegres. Foram anos de muita leitura, nos quais não se suspeitava que por trás daquele profes sorzinho que mal passava de um metro e meio de altura escondia-se um gigante do pensamento. Com efeito, após um primeiro momento de interesse pelas ciências naturais, sobre tudo pela física newtoniana, Kant mergulhou na filosofia racionalista, principalmente a de Leibniz e Wolff. Todavia, após o contato com os empiristas ingleses – Locke e principalmente Hume –, ele foi despertado do sono dogmático , como chamou o racionalismo. Outro autor que então exerceu grande influência sobre Kant foi Rousseau, com sua radical desconfiança da razão. Como consequência, Kant passou por uma profunda crise, que resultou em uma suspeita em relação aos alcances da metafísica racionalista. Expressão dessa fase é o livro Sobre as formas e princípios do mundo sensível e inteligível (1770), em que a metafísica é comparada aos sonhos de Swedenborg (1688-1772), um místico sueco daquela época. No mesmo ano de 1770, entretanto, ele foi promovido à cátedra de lógica e metafísica da universidade (da qual só se aposentaria, por motivos de saúde, em 1796). Desse modo, encerra-se o período conhecido como pré-crítico no pensamento kantiano. O período crítico anuncia-se com a publicação da Crítica da razão pura (1781), obra na qual Kant vinha se dedicando já por dez anos e que marcou uma guinada decisiva não só no seu pensamento como no pensamento ocidental depois dele, por meio de uma explanação rigorosa dos alcances e os limites da razão. Outras grandes obras suas são: • Prolegômenos a toda metafísica futura que possa vir a ser considerada como ciência (1783), em que aborda o mesmo problema com vistas exclusivas à metafísica; • Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), que é seu primeiro trabalho sobre a moral; • Crítica da razão prática (1788), em que o problema moral é nova e amplamente abordado; Filosofia da educação
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Crítica do juízo (1790), em que se debruça, entre outras coisas, sobre a estética; e A religião nos limites da simples razão (1793), em que é exposto o cristianismo sob uma óptica racional, o que lhe acarretou uma proibição do governo prussiano de lecionar ou escrever sobre temas religiosos – sem vocação para Sócrates, Kant acatou o “silêncio obsequioso” até a morte do monarca e então fez publicar um resu mo dos seus pontos de vista religiosos. Immanuel Kant seguiu sempre uma disciplina rigorosa, tanto na vida quanto na sua investigação filosófica. Não casou, não teve filhos, nunca viajou além de sua Prússia natal – apesar de ter dado ótimas aulas de geografia. Sua vida transcorreu da maneira mais regular possível: Acordar, tomar café, escrever, fazer palestras, jantar, caminhar, diz Heine, tudo tinha a sua hora marcada. E quando Immanuel Kant, com o seu casaco cinza, bengala na mão, aparecia na porta de casa e se dirigia à pequena alameda de tílias que ainda é chamada de “O passeio do Filósofo”, os vizinhos sabiam que eram exatamente 15h30. (DURANT, 2000, p. 254)
Conta-se que somente duas vezes ele não saiu no seu tradicional passeio: quando recebeu os jornais com a notícia da queda da Bastilha (Kant acompanhou com interesse a Revolução Francesa, embora tenha se desapontado com os seus rumos) e quando leu o Emílio (só mesmo Rousseau para sacudir a rotina do austero professor). Mas Kant não era má companhia, não: “foi um brilhante conversador e a sua presença em reuniões sociais foi sempre acolhida com agrado” (RUSSELL, 2002, p. 341). Talvez seja graças à regularidade de seus costumes que tenha vivido muito, não obstante uma compleição frágil. No entanto, após um declínio gradual em que foi pouco a pouco perdendo as suas faculdades – o que foi muito doloroso tanto para ele quanto para seus amigos –, Immanuel Kant faleceu, octogenário, em Königsberg, a 12 de fevereiro de 1804. O empenho com o qual ocupou toda a sua vida pode ser resumido em sua famosa frase: “Não se pode aprender a filosofia; somente se pode aprender a filosofar”.
8.3 Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana Não obstante a vida regrada e provinciana, Kant viveu profundamente os dilemas e as angústias de seu tempo. Súdito de uma monarquia absoluta, ele almejava a liberdade da república. De formação pietista, estava ciente dos problemas decorrentes da não separação entre Igreja e Estado. Mas, sobretudo como filósofo, Kant vivenciou o embate entre racionalismo, empirismo e física newtoniana. E desse embate produziu uma nova e grandiosa filosofia: “Na confluência dessas três grandes correntes, situou-se Kant; e dessas três grandes correntes tirou os elementos fundamentais para poder estabelecer de um modo eficaz [...] o problema da teoria do conhecimento e, em seguida, o problema da metafísica” (MORENTE, 1967, p. 218). Portanto, o criticismo kantiano pode ser caracterizado como uma espécie de terceira via entre o dogmatismo dos racionalistas e o ceticismo dos empiristas, como se pode perceber no segundo prefácio à Crítica da razão pura :
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A crítica opõe-se [...] ao dogmatismo, quer dizer, à presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos (conhecimento filosófico) apoiado em princípios, como os que a razão desde há muito aplica, sem se infor mar como e com que direito os alcançou. O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade. Esta opo sição da crítica ao dogmatismo não favorece, pois, de modo algum, a superficialidade palavrosa que toma a despropósito o nome de popularidade, nem ainda menos o cepticismo que condena, sumariamente, toda a metafísica. A crítica é antes a necessária preparação para o estabelecimento de uma metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há de desenvolver-se de maneira ne cessariamente dogmática e estritamente sistemática, por conseguinte escolástica (e não popular). (KANT, 1985, p. 23-31)
Em outro momento, Kant define a filosofia como “a ciência da relação de todo conheci mento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana”. Nesse sentido, a filosofia deve responder a quatro questões: 1. O que posso saber? 2. O que devo fazer? 3. O que posso esperar? 4. O que é o ser humano? Essas questões são discutidas, respectivamente, pela metafísica, pela moral, pela reli gião e pela antropologia. A última pergunta é a mais importante e sintetiza as outras três. No entanto, nosso dever e nosso destino somente podem ser determinados depois de um profundo estudo das possibilidades do conhecimento humano, o que nos leva à primeira pergunta. E é por isso que a primeira e principal obra que contém o pensamento sistematizado de Kant é a Crítica da razão pura .
8.4 A razão no tribunal Para David Hume (a quem Kant atribui o mérito de tê-lo despertado do “sono dogmá tico”), não se pode alcançar um saber autêntico, já que todo o saber humano é apenas pro vável, sempre restrito aos limites da experiência: além dos dados palpáveis dos sentidos, a aventura pelos caminhos metafísicos jamais levaria a um conhecimento seguro, sequer plausível. Embora impactado pelo pensador inglês, Kant discorda desse posicionamento, pois para ele existe, sim, um saber fidedigno, que é a ciência matemática da natureza, isto é, a nova física de Newton. Além disso, não se pode negar que, se os resultados da metafísica são inverificáveis, eles pelo menos são o testemunho de um esforço investigativo do ser humano para transcender as balizas da experiência.
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De fato, se por um lado a atitude crítica pode negar a possibilidade de resolver certos problemas, por outro não pode deixar de enfrentar o desafio de explicar a gênese desses mesmos problemas. Assim, Kant institui o tribunal que, julgando as demandas da razão, garante suas pretensões legítimas enquanto afasta as ilegítimas. Esse tribunal é a Crítica da razão pura , ou seja, uma autocrítica geral da razão no que diz respeito a todos os conhecimentos a que se pode aspirar independentemente da experiência, um exame do conhecimento puramente racional, único meio de evitar a queda no dogmatismo especulativo. Cabe a essa crítica decidir, também, sobre a possibilidade ou a impossibilidade da metafísica, bem como, caso opte pela primeira, sobre suas fontes, sua extensão e seus limites. Com efeito, Kant, ao contrário dos empiristas, é partidário da postura de que é possível a aquisição de conhecimentos extrínsecos à experiência. Na verdade, todo o conhecimento universal e necessário, para ele, é independente da experiência, uma vez que ela não pode dar valor universal e necessário aos conhecimentos que dela derivam. No entanto, independente não significa precedente, anterior: todo o conhecimento começa com a experiência, mas pode não derivar totalmente dela. Pode, por exemplo, ser uma composição das impressões derivadas da experiência com aquilo que é acrescentado, a partir do estímulo inicial, pela nossa faculdade de conhecer. Aqui aparece uma distinção fundamental em Kant, que se dá entre a forma e a matéria do conhecimento. A matéria dos nossos conhecimentos é composta pelas próprias coisas, ao passo que a forma somos nós mesmos. É necessário distinguir no conhecimento uma maté ria, constituída pela ordem e a unidade que a nossa faculdade cognitiva dá a tal matéria. A matemática e a física pura contêm verdades universais e necessárias – portanto, indepen dentes da experiência. Elas contêm juízos sintéticos a priori: • sintéticos no sentido de que, nelas, o predicado acrescenta algo de novo ao sujeito; • a priori porque têm uma validade necessária que a experiência não pode dar. O primeiro problema com que se defronta uma crítica da razão pura é ver como são possíveis os juízos sintéticos a priori , ou seja, como é possível uma matemática e uma física pura. O desafio consiste em alcançar e realizar a possibilidade fundamentadora da ciência. Tal possibilidade jamais pode ser dada pela matéria do conhecimento, constituída pela va riedade sem ordem e sem forma das impressões sensíveis. Deve ser, pois, reconhecida na forma do conhecimento, isto é, nos elementos ou nas funções a priori que dão ordem e unidade a essas impressões. Assim, a crítica tem um duplo objetivo: descobrir os elementos formais do conhecimen to e determinar o uso possível dos elementos a priori. Mesmo se mantendo nos limites da experiência, a investigação da razão estará em condições de justificar a própria experiência na sua totalidade e, portanto, também os conhecimentos universais e necessários que se encontram no seu âmbito. Além disso, é forçoso determinar o uso possível dos elementos a priori do conhecimento, isto é, o método do próprio conhecimento. Como vimos, o conhecimento humano é uma composição ou síntese de dois elementos:
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1. um formal ou a priori; 2. o outro material ou empírico, que é o seu objeto. O resultado nascido desse conceito é o fenômeno. Ora, o entendimento humano não intui, mas pensa; não cria, mas unifica – e, portanto, deve ser-lhe dado, por outra fonte, o objeto do pensar, o múltiplo a unificar. Essa fonte é a sensibilidade. Mas a própria sensibilidade é basicamente passividade: aquilo que ela possui é recebido. Isso significa que o objeto do conhecimento não é a coisa em si, uma essência, uma substância, e sim aquilo que aparece, ou seja, o fenômeno. Nós percebemos o fenômeno pela experiência, mas o objeto somente é real por sua relação com o sujeito que conhece. Assim chegamos ao cerne da teoria de Kant, a chamada revolução copernicana : tal como Nicolau Copérnico, que demonstrou que a Terra girava em torno do Sol, Kant comprovou que os objetos dependem do sujeito cognoscente. Dessa maneira, em termos kantianos, não é o sujeito que se adapta aos objetos da realidade, mas a realidade que se modela a partir da percepção do sujeito. Respondendo aos empiristas, Kant mostrou que não é o sujeito que gira em torno do objeto, e sim o objeto que gira em torno do sujeito. Isso é possível porque apenas o sujeito do conhecimento é capaz de síntese, apenas ele tem a faculdade do entendimento. Em última instância, o conhecimento somente se torna possível porque existem as formas a priori da sensibilidade – que são, para Kant, o tempo e o espaço. Quanto ao espaço, se o conhecimento é relação (do sujeito com o objeto), não podemos conhecer as coisas “em si”, mas “para nós”. A geometria pura, quando aplicada, coincide totalmente com a experiência, porque o espaço é a forma a priori da sensibilidade externa. O mesmo se dá quanto ao tempo. Podemos concebê-lo sem acontecimentos, internos ou externos, mas não podemos conceber os acontecimentos fora do tempo. Objeto da intuição, o tempo não pode ser conceito. Forma vazia, intuição pura, o tempo torna possíveis, por exemplo, os juízos a priori na aritmética, cujas operações (soma, subtração etc.) ocorrem sucessivamente e, assim, o pressupõe. Logo, o tempo é também a forma a priori da sensibilidade, não apenas externa como também interna. Além disso, existem ainda os conceitos a priori do entendimento, que são as categorias , catalogadas em número de 12 (conforme o Quadro 1 a seguir). Esses conceitos puros do entendimento é que tornam possível qualquer experiência. Quadro 1 – Juízos e categorias.
Critério Quantidade
Qualidade
Juízos
Categorias
Universais
Unidades
Particulares
Pluralidade
Singulares
Totalidade
Afirmativos
Realidade
Negativos
Negação
Indefinidos
Limitação
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Immanuel Kant e o idealismo alemão Critério
Relação
Modalidade
Juízos
Categorias
Categóricos
Substância e acidente
Hipotéticos
Casualidade e dependência
Disjuntivos
Comunidade e interação
Problemáticos
Possibilidade e impossibilidade
Assertóricos
Existência e não existência
Apodíticos
Necessidade e contingência
Fonte: elaborado pelos autores.
Assim, temos os juízos analíticos e os juízos sintéticos: • analíticos são aqueles juízos de caráter lógico, em que o predicado está contido no sujeito, como em: “O triângulo é uma figura de três lados” – segundo Kant, esses juízos não ampliam nossos conhecimentos; • sintéticos são aqueles juízos cujo predicado acrescenta algo ao sujeito (como: “O calor dilata os corpos”), pois dependem da experiência; o espaço e o tempo são condições a priori de possibilidade da intuição empírica. , não há conhecimento de fato sem unir as forPortanto, segundo a Crítica da razão pura mas a priori com o conteúdoa posteriori. A experiência fornece a matéria e a forma é a priori. A experiência é a ocasião que une forma e matéria. O engano dos inatistas foi dizer que o conteúdo ou a matéria são inatos. Ora, não existem ideias inatas. O engano dos empiristas, por sua vez, foi supor que a estrutura da razão é adquirida pela experiência. Entretanto, sem a forma da sensibilidade e do entendimento, não há conhecimento verdadeiro.
8.5 O imperativo categórico Tendo limpado o terreno na área da razão pura, Kant voltou-se também para a razão prática. A razão é pura, isto é, teórica e especulativa, quando se refere aos princípios a priori do conhecimento e é prática quando se refere aos princípios a priori da ação. Assim, Kant estende o seu sistema à área da moral e da ética. Os principais escritos sobre esses temas aparecem na Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), na Crítica da razão prática (1788) e na Metafísica dos costumes (1797). E se para Kant a questão da moralidade e da liberdade não são objetos da razão pura, mas sim da razão prática, a ética é puramente racional e universal: não está restrita a pre ceitos de caráter pessoal ou subjetivos nem submetida a hábitos e práticas socioculturais. E, uma vez que os princípios morais resultam da razão prática e se aplicam a todos os indiví duos, independentemente das circunstâncias, a ética kantiana é de caráter prescritivo. O objetivo de Kant é, com base apenas na razão, estabelecer princípios universais e imutáveis para a moral. Coerentemente com o que foi definido na Crítica da razão pura , ele
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assinala que os princípios morais são a priori – vale dizer, não dependem da experiência para serem prescritos. Ademais, no ser humano a vontade não é capaz de determinar sempre a ação, porque é influenciada não apenas por si mesma, mas também pelas inclinações dos sentidos na medida em que eles influenciam o seu agir. Nesse caso, as ações que a lei moral prescreve como necessárias constituem uma obrigação, o que revela a existência de um imperativo que se expressa como um dever. Os imperativos podem ser: • hipotéticos – quando estão sujeitos a uma condição (“deves estudar para passar nos exames”); • categóricos – quando são incondicionais ou absolutos (“não matarás”). Além disso, os imperativos hipotéticos apontam uma ação boa como meio para algum fim – em outras palavras, são os conselhos e as regras da destreza. Assim, por exemplo, economizar é bom para se garantir uma velhice tranquila. Os imperativos categóricos, por seu turno, são as leis práticas, são aqueles que, ao con trário dos primeiros, estabelecem uma ação como boa em si mesma, ainda que não seja causa de nenhum resultado: não mentir é uma ação boa em si mesma, mesmo que nenhum mal venha decorrer do fato de mentir. Os imperativos hipotéticos são possíveis porque quem ordena um fim ordena também os meios necessários para se alcançar esse fim. Já os imperativos categóricos são possíveis na medida em que representam juízos a priori. Os imperativos hipotéticos não podem fundamentar a moral porque não são universais. Apenas os imperativos categóricos preenchem essa condição e por isso apenas eles, segundo Kant, podem ser imperativos da moral. A vontade é pura, sendo moral quando é regida pelos imperativos categóricos, e não pelos imperativos hipotéticos. O imperativo categórico independe da experiência para revelar o seu conteúdo, que é a universalidade de uma lei à qual a ação deve se conformar. Isso quer dizer que o princípio subjetivo pelo qual um indivíduo determina o seu agir deve ser idêntico ao princípio objeti vo que determinaria o agir de qualquer outro ser. Em Kant encontram-se várias formulações do imperativo categórico, que foram classificadas da seguinte maneira: 1. Fórmula da lei universal “Age apenas com base na máxima que tu possas desejar ao mesmo tempo que se torne uma lei universal.” 2. Fórmula da lei da natureza “Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua vontade, em uma lei universal da natureza.” 3. Fórmula do fim em si mesmo “Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio.”
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4. Fórmula da autonomia “Age de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas.” 5. Fórmula do reino dos fins “Age de tal maneira que tu sejas sempre através de suas máximas um membro legislador em um reino universal dos fins.” Fonte: GALUPPO, 2002, p. 97.
O imperativo categórico é o primeiro empreendimento sistemático (ainda que pese a sua austeridade de viés pietista) para se estabelecer uma moral autônoma, isto é, uma moral que se outorga à própria lei, fundada exclusivamente na razão e acessível a qualquer ser racional disposto e de boa vontade. A moral religiosa (contra a qual Kant apresenta a sua moral), ao contrário, é heterônoma ao determinar a vontade pelas consequências da ação – recompensas e castigos. A autonomia implica a liberdade. Se não fôssemos livres, não seríamos responsáveis e, consequentemente, não haveria moralidade. Ora, se a consciência moral é um dado, deve mos buscar nela própria as suas condições de possibilidade. Ainda segundo Kant, três são os postulados da razão prática: 1. a liberdade; 2. a imortalidade; 3. a existência de Deus. A unidade, ou a síntese entre o ser e o dever ser, realiza-se em Deus. Assim, Kant deduz a metafísica não da ciência, mas da ética, instituindo o primado da razão prática sobre a razão pura. Aliás, o próprio conhecimento está a serviço da lei moral. Para que serve o saber senão para aperfeiçoar-se? O progresso histórico, portanto, não pode consistir somente no desenvolvimento científico e técnico, mas também – e principalmente – no aperfeiçoamento moral do ser humano.
8.6 Kant e a educação As principais ideias de Kant sobre a educação estão em suas Aulas sobre pedagogia (17761777), nas quais resgata o ideal pedagógico grego, enriquecido com as teses que Rousseau desenvolveu em Emílio (1767). Para Kant, o ser humano é o único ser vivo que pode e deve ser educado. Como Rousseau, ele acredita na diferenciação das práticas pedagógicas de acordo com a idade do educando. Além disso, insiste na necessidade da disciplina no processo de instrução e de formação cultural, que constituem a via de acesso à autonomia e à integridade moral. Em linhas gerais, para Kant, o papel da educação na formação humana, e especialmente na formação do educador, é sintetizado pela ideia de que: O homem somente pode vir a ser homem através da educação. Ele não é outra coisa senão o produto de sua educação. E cabe mencionar que o homem somente pode ser educado por homens que, por sua vez, foram educados. Por isso, a
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ausência de disciplina e instrução em certas pessoas faz delas maus educadores de seus educandos. (FREITAG, 1993, p. 22)
Contemporâneo dos iluministas, Kant representa ao mesmo tempo sua síntese e sua superação. Se para os filósofos hedonistas da França do século XVIII a educação apresentava função emancipadora, para o austero professor prussiano a emancipação propiciada pela educação não é possível sem uma grande dose de disciplina e autodomínio.
8.7 O idealismo alemão Kant representa o ápice do pensamento moderno e ao mesmo tempo é a fonte das principais formas contemporâneas do pensar. Para ele convergem, filtradas pelo Iluminismo, o empirismo e o racionalismo, encontrando nele uma síntese brilhante. Dele procede o pensamento posterior, particularmente o idealismo clássico alemão, matriz de boa parte do pen samento atual. De um modo geral, idealismo diz respeito às correntes de pensamento que, de uma maneira ou outra, dão primazia às ideias , quer como componentes exclusivos da realidade, quer como o único modo pelo qual se pode conhecer ou experimentar o mundo. Platão (na Antiguidade) e o racionalismo (na Modernidade) são exemplos dessa postura. Tendo o seu início em Kant, o idealismo alemão posiciona-se nessa vertente ao postular, em linhas gerais, que o significado de um objeto depende do sujeito que o compreende – em outras palavras, todo o conhecimento é dependente dos termos ou formas ideais que caracterizam a subjetividade humana. Além de Kant, representantes do idealismo alemão são Fichte (1762-1814), Schelling (1775-1854), Hegel (1770-1831) e Schopenhauer (1788-1860), os quais aprofundam e problematizam o criticismo kantiano. Com Hegel, o idealismo encontra o seu auge autoafirmativo e otimista; com Schopenhauer, sua versão pessimista, instaurando-se sua crise. Em termos comparativos, o vigor filosófico dessa corrente só pode ser comparado à era socrática. Se a filosofia clássica é dividida em antes e depois de Sócrates (470-399 a.C.), a filosofia moderna e contemporânea pode ser dividida em antes e depois de Immanuel Kant.
Ampliando seus conhecimentos
Da distinção entre o conhecimento puro e o empírico (KANT, 2001)
Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte,
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Immanuel Kant e o idealismo alemão impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experiência? No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam por ela. Mas se é verdade que os conhecimentos derivam da experiência, alguns há, no entanto, que não têm essa origem exclusiva, pois poderemos admitir que o nosso conhecimento empírico seja um composto daquilo que recebemos das impressões e daquilo que a nossa faculdade cognoscitiva lhe adiciona (estimulada somente pelas impressões dos sentidos); aditamento que propriamente não distinguimos senão mediante uma longa prática que nos habilite a separar esses dois elementos.
Surge, desse modo, uma questão que não se pode resolver à primeira vista: será possível um conhecimento independente da experiência e das impressões dos sentidos? , e distintos dos empíricos, Tais conhecimentos são denominados a priori , isto é, da experiência. cuja origem é a posteriori Aquela expressão, no entanto, não abrange todo o signicado da ques tão proposta, porquanto há conhecimentos que derivam indiretamente da experiência, isto é, de uma regra geral obtida pela experiência, e que no entanto não podem ser tachados de conhecimentos a priori.
Assim, se alguém escava os alicerces de uma casa, a priori poderá esperar que ela desabe, sem precisar observar a experiência da sua queda, pois, pra ticamente, já sabe que todo corpo abandonado no ar sem sustentação cai ao impulso da gravidade. Assim, esse conhecimento é nitidamente empírico. Consideraremos, portanto, conhecimento a priori , todo aquele que seja adquirido independentemente de qualquer experiência. A ele se opõem os opostos aos empíricos, isto é, àqueles que só o são a posteriori , quer dizer, por meio da experiência.
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Atividades 1. Analise o trecho a seguir. Em sentido geral, recebe esse nome a postura que advoga a investigação crítica dos fundamentos do conhecimento como condição preliminar para toda a losoa. Em sentido estrito, é o nome dado à losoa kantiana, que propõe uma investigação ra dical sobre as condições e possibilidades do conhecimento.
Entre o dogmatismo e o ceticismo, o criticismo kantiano procura reformular o caminho em que é possível pensar a losoa. Portanto, em diálogo tanto com o racionalismo (mais dogmático) quanto com o empirismo (mais cético), Kant ensaia uma nova resposta à velha pergunta que desde o m da cosmovisão medieval atormentava os lósofos: qual é a fonte do conhecimento? Com base no texto acima, quais são os fundamentos do processo de ensino e aprendizagem no qual nos inserimos? O que seria uma postura dogmática na educação? E uma postura cética?
2. Assinale quais as inuências diretas de Immanuel Kant. (
) Revolução Industrial.
(
) Cabala.
(
) Racionalismo.
(
) Revolução Francesa.
(
)
(
) Escolástica.
(
) Iluminismo.
(
) Idealismo alemão.
Empirismo inglês.
3. Quais são os principais representantes do idealismo alemão? Assinale a alternativa correta. a. Kant, Hume, Christian Wolff e Leibniz. b. Kant, Leibniz, Schelling, Hegel e Nietzsche. c. Kant, Fichte, Schelling, Hegel e Schopenhauer. d. Kant, Christian Wolff, Leibniz, Goethe e Hume. e. Kant, Goethe, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche.
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A dialética idealista e materialista O homem tem de viver em dois mundos que se contradizem [...]. O Espírito afirma o seu sentido e a sua dignidade perante a anarquia e a brutalidade da natureza, à qual devolve a miséria e a violência que ela o faz representar. Mas essa divisão da vida e da consciência cria para a cultura moderna e para a sua compreensão a exigência de resolver uma tal contradição.
(Georg Hegel) Os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo.
(Karl Marx)
9.1 Dialética: breve histórico O termo dialética confunde-se com a própria história da filosofia e, assim como a filosofia, tem as suas raízes na Grécia antiga. Sua origem etimológica está em dois radicais gregos: • dia (δια), com o sentido de “dualidade”, “troca”; • léktikós (λε’κτκ’ξ), significando “apto à palavra”, “capaz de falar”, da mesma raiz delogos , “palavra”, “razão”. Nesse sentido, tem estreita relação com o vocábulo diálogo , sendo possível definir a dialética como a “arte do diálogo”: tal como no diálogo, na dialética também há duas razões ou posições entre as quais se estabelece, precisamente, um diálogo. Com o tempo, dialética passou a significar o processo de, no diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação precisa, capaz de distinguir claramente os termos envolvidos na discussão. Com efeito, boa parte da filosofia clássica era feita em praça pública, em debates e discussões acaloradas. Filosofia da educação
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Entretanto, o sentido mais radical da dialética – e, paradoxalmente, mais próximo do moderno – deve ser buscado em Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.). Para ele, tudo está em constante mudança e o conflito rege todas as coisas: a vida e a morte, o sono e a vigília, a juventude e a senilidade, são realidades que se transformam continuamente umas nas outras. Seu fragmento de número 91, em especial, tornou-se célebre: “Um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio”. Isso porque da segunda vez ele já não será o mesmo homem de antes e nem estará no mesmo rio, já que ambos estarão mudados. Todavia, para os gregos essa concepção era muito unilateral e eles preferiram a posição de um outro pensador da época: Parmênides (530-460 a.C.), para quem a essência do ser é imutável, de modo que o movimento é uma ilusão. Não por acaso, Aristóteles considerava Zenão de Eleia (495-430 a.C.), discípulo de Parmênides, o fundador da dialética. Zenão servia-se da dialética para tentar demonstrar que o movimento não existe. Ficou famosa a sua argumentação de que, se o tempo e o espaço são infinitamente divisíveis, Aquiles, a despeito de toda a sua velocidade, nunca venceria uma corrida com uma tartaruga. E outros atribuem o mérito da invenção da dialética a Sócrates (470-399 a.C.). É verdade que antes dele os sofistas já utilizavam a dialética, afirmando que tanto uma opinião quanto a sua contraditória podem ser válidas, dependendo da argumentação de seu defensor. Mas Sócrates serviu-se da dialética com um fim positivo e, no mesmo estilo dialógico dos sofistas, mostrou que é possível, a partir de duas opiniões contraditórias, chegar a uma opinião superior, mais próxima da verdade. A passagem da ignorância ao saber é feita pela ironia (interrogação) e culmina na maiêutica (parto), pela qual o conhecimento é “parido” e a verdade é trazida à luz. Em Platão, discípulo de Sócrates, encontramos duas formas de dialética. Em alguns diálogos (como Fédon e a República), a dialética é apresentada como um método de elevação do sensível ao inteligível. Em outros, especialmente nos últimos diálogos (como Parmênides e o Sofista), ele a apresenta como um método de dedução racional que permite discriminar as ideias. De toda forma, para Platão, a dialética nunca é uma mera disputa ou simplesmente um sistema formal de raciocínio. Aristóteles, por sua vez, prefere a demonstração à dialética – que para ele é uma forma não demonstrativa de conhecimento, uma aparência de filosofia, e não a filosofia pro priamente dita. Daí a razão pela qual tende a colocá-la no mesmo nível que a disputa e a probabilidade. E no helenismo o sentido positivo da dialética ressurge somente de modo ocasional – aqui com os estoicos, ali com os neoplatônicos. Já na Baixa Idade Média (séculos XII-XV) a dialética forma com a retórica e a gramática o trivium das artes liberais1. Como tal, era mais um método do que propriamente filosofia. Colocava-se, por exemplo, situações contraditórias e se tentava demonstrar pelo sim e o não (sic et non) aquela mais plausível. A tese era, pois, o resultado da apreciação dos argumentos prós e contras sobre determinado tema. 1 Essas três disciplinas do trivium compunham a primeira parte do ensino universitário e depois vinha o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), assim completando as sete artes, também conhecidas como artes liberais.
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No Renascimento, novamente se rejeitou a dialética, tomada como um mero conteúdo formal. Da mesma forma, a dialética recebeu um sentido pejorativo na filosofia moderna. Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo, considerava-a como a lógica da aparência. Daí por que a “dialética transcendental”, por ele desenvolvida, apresenta-se como a crítica desse gênero de aparências, que se origina da razão quando esta ultrapassa os seus limites. E, assim, chegamos a Hegel, o ponto culminante do idealismo alemão e ao mesmo tempo o seu desfecho. Ele resgatou a dignidade da dialética, tornando-a o principal instrumento de compreensão da dinâmica da história.
9.2 Hegel Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, Alemanha, a 27 de agosto de 1770, filho de um modesto funcionário público do departamento de finanças do Estado de Wurtemberg. Depois de estudar gramática e a cultura clássica, George Hegel ingressou no se minário de Tubingen. Permaneceu na instituição de 1788 a 1793, cursando filosofia e teologia, e ali foi colega do filósofo Schelling (1775-1854) e do poeta Hölderlin (1770-1843). Foi também ali que Hegel, estudante aplicado, começou a organizar, em ordem alfabética, um colossal fichário – que manteve atualizado ao longo de toda sua vida – acerca de tudo o que lia. Deixando o seminário, Hegel foi trabalhar como tutor particular em Berna, na Suíça. Em 1796, voltou para território alemão, instalando-se em Frankfurt, onde Hölderlin lhe arranjara uma tutoria. Porém, desiludido amorosamente, esse amigo entrou em depressão e veio a enlouquecer – o que deixou Hegel profundamente abalado. Para superar essa crise, o filósofo mergulhou com mais afinco no trabalho de engrossar o seu fichário. Com recursos herdados de seu pai, falecido em 1799, Hegel deixou Frankfurt dois anos depois e foi concorrer a uma cadeira de livre-docente na Universidade de Jena, onde Schelling, então com apenas 26 anos, lecionava. Porém, os maiores nomes de Jena, como Fichte (1762-1814) e os irmãos August (1767-1845) e Friedrich von Schlegel (1772-1829), já haviam saído de lá. Com o auxílio de Goethe, Hegel foi nomeado professor extraordinário, mas conseguiu receber algum rendimento significativo somente um ano depois, em 1806. Nesse mesmo ano, Hegel se entusiasmou quando Napoleão submeteu a Prússia2 , que ele considerava governada por uma burocracia corrupta. Em 1807, publicou seu célebre livro Fenomenologia do espírito , para bem poucos entendedores – escritas com uma terminologia inteiramente nova, suas obras são de difícil leitura. Para melhorar sua renda, Hegel tornou-se editor de um jornal (1807-1808) e em seguida diretor de um ginásio em Nurberg (1808-1816). Em 1811, casou-se com Marie von Tucher (que era 22 anos mais nova que ele), com quem teve dois filhos, sendo que já havia um filho natural que ele trouxe de Jena. E foi em Nurberg que ele publicou as duas partes de Ciência da lógica (1812 e 1816), cuja repercussão motivou o convite para lecionar em Heidelberg.
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Antigo Estado cuja capital era Berlim e que existiu no que hoje é a região norte da Alemanha. Filosofia da educação
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Já em Heidelberg, veio à luz a sua Enciclopédia das ciências filosóficas (1817), na verdade uma exposição de suas ideias. No ano de 1818, ele foi para a Universidade de Berlim assumir a cadeira vaga com a morte de Fichte. Em 1821 ele publicou sua Filosofia do Direito e em 1830 tornou-se reitor da universidade. Por essa altura, ele já era um ardoroso defensor do Estado prussiano, pois temia que as convulsões sociais daquele momento levassem o povo ao poder. Seus livros desse período são feitos principalmente a partir de anotações dos seus alunos. No verão de 1831, fugindo a um surto de cólera, Hegel refugiou-se nas redondezas da cidade. Porém, precisou retornar para o período acadêmico e assim contraiu a doença, vindo a falecer em 14 de novembro. Conforme sua vontade, foi enterrado ao lado de Fichte.
9.3 O hegelianismo Em linhas gerais, o pensamento de Hegel é tributário da filosofia grega, do racionalis mo cartesiano e do idealismo alemão – do qual ele é o ápice. De Heráclito, ele resgata a ideia de dialética , entendida como estrutura da realidade e do pensamento. De Aristóteles, ele toma três noções fundamentais: 1. a do universal, imanente e não transcendente ao individual; 2. a do movimento como passagem da potência para o ato; 3. a das relações entre a razão e a experiência, cuja necessidade interna deve ser revelada pelo pensamento. Do racionalismo, Hegel herdou a ideia da racionalidade do real, ou seja, a coincidência entre res cogitans (coisa pensante) e res extensa (coisa material), e de Espinosa, em particular, a intuição de que “qualquer afirmação é uma negação”. De Kant (ponto de partida de toda a moderna filosofia alemã), Hegel assumiu a ideia de uma lógica transcendental, a qual, remontando às origens do conhecimento, considera os conceitos a priori , em relação aos objetos, formula as regras do pensamento puro e vincula as categorias ao eu subjetivo. De Fichte, Hegel emprestou a noção de dialética como processo de afirmação, negação e negação da negação, na síntese. E, de Schelling, ficou com a ideia de identidade do sujeito e do objeto na consciência do absoluto. A filosofia de Hegel pode ser considerada uma filosofia do vir a ser, do movimento e das transformações – de certa forma, é o primeiro grande sistema filosófico que reflete a nova consciência histórica derivada da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, as duas revoluções que revelaram a inevitabilidade das mudanças e que a história é muito mais que uma sucessão de fatos. Para dar conta dessa nova compreensão, foi necessário abandonar a antiga lógica aristo télica, considerada demasiado estática, e estabelecer os princípios de uma nova lógica: a dialé tica, que afirma a perecibilidade de todas as coisas. Em outras palavras, toda morte gera um novo ser, o qual já traz em si o germe de sua destruição. Esse movimento é o processo histórico.
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Hegel também o chamou de contradição criadora , em oposição à contradição aristotélica, na qual não há movimento na medida em que o não ser é completamente oposto ao ser. Essa leitura permite também um novo entendimento da história, segundo o qual o presente não é um simples acumulado de fatos, mas um engendramento de acontecimentos movidos por um “motor” – que para Hegel é, justamente, a contradição. Em outras palavras, a história não é vista como algo que está enformado, formatado, preso em “repartições” que são o tempo, mas ela escoa, tornando o presente o resultado de um processo. Por outro lado, os vários estágios da história da humanidade não são mais vistos como con tingentes ou aleatórios, mas sim como necessários e progressivos, da mesma forma que a luta, a guerra e o conflito entre os grupos que representam esses estágios também são necessários. Para Hegel, o conceito de real recebe também um novo sentido: aquilo que se conhece apenas a partir da experiência, do imediato, é abstrato. Aquilo de que, ao contrário, é conhecida a gênese, a origem, o processo de constituição, é real. Isso se expressa no famoso axioma “O real é racional, o racional é real”. No entanto, vale lembrar que Hegel se mantém dentro dos limites do idealismo, e que para ele a história nada mais é que história da ideia. Como a de Fichte, a dialética hegeliana compõe-se de três etapas: tese, antítese e síntese – ou seja, afirmação, negação e negação da negação. Assim, o que está no início não é a na tureza (como pensavam os pré-socrá- ticos), mas sim a ideia pura, que constitui o princípio inteligível do mundo, a ordem do real: essa é a tese , e o seu conteúdo é estudado pela lógica. A natureza, porém, é a ideia alienada, a ideia fora de si, a forma “empírica” da ideia no espaço e no tempo, e para desenvolver-se ela cria algo oposto a si mesma – a antítese. O seu desenvolvimento dialético é tratado na filosofia da natureza. Da luta desses dois princípios antagônicos nasce a síntese , ou o espírito, que é a natureza que toma consciência de si, da sua imanente divindade. Esse é o objeto da filosofia do espírito. Nesse último nível ainda temos dois espíritos: um subjetivo, que se encerra na indivi dualidade humana (emoção, desejo, imaginação), e outro objetivo, que constitui a humanidade enquanto coletividade (moral, direito, política). Do embate desses dois espíritos tem-se o espírito absoluto – Deus –, a mais alta realização da ideia, em que se atinge o mais alto grau de autoconsciência. O espírito absoluto, por seu turno, desenvolve-se “em arte (expressão do absoluto na intuição estética), religião (expressão do absoluto na representação mítica), filosofia (ex pressão conceitual, lógica, plena do absoluto)” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 389). Todavia, houve vários sistemas filosóficos que representariam momentos necessários na história da filosofia até o advento da filosofia absoluta, que é o idealismo absoluto de Hegel.
9.3.1 Família e Estado Por outro lado, a família é a primeira realização do espírito objetivo, o qual, para resol ver as contradições entre os indivíduos, entre as várias famílias e os clãs, cria o Estado, que é a síntese mais perfeita desse espírito, já que harmoniza os interesses contraditórios dos indivíduos, o público e o privado. No final da vida, Hegel veria esse Estado materializado Filosofia da educação
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na Prússia. Assim, o Estado prussiano é a síntese do espírito objetivo e a filosofia hegeliana, a síntese absoluta de todo esse processo dialético. Como se pode ver, a modéstia não era uma das virtudes de Hegel. Não obstante os exageros desse sistema grandiloquente, Hegel tem o indiscutível mé rito de trazer para o cerne da reflexão filosófica o processo histórico. Mas aqui também está a sua fraqueza: uma certa simplificação a que ele submeteu a história para que ela coubesse dentro da sua estrutura triádica. Todavia, com a história incorporada à filosofia, a antiga lógica aristotélica mostrou-se incapaz de dar conta dos processos de compreensão da nova realidade e, assim, a dialética hegeliana vem justamente oferecer os instrumentos que faltavam. Eis como Padovani e Castagnola distinguem a lógica tradicional da dialética de Hegel: 1.º – A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto; 2.º – a lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato , enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal concreto , isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo; 3.º – a lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser; 4.º – a lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser, não o esgota inteiramente – como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio logos divino que no espírito humano adquire plena consciência de si mesmo. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 389)
Profundamente revolucionária, no entanto a dialética hegeliana permaneceu inofensi va nas mãos daquele pacato professor do Estado prussiano. Seria necessário que alguém a tirasse do mundo abstrato das ideias e a colocasse no mundo concreto da matéria para fazer detonar o seu potencial revolucionário. Esse alguém foi Karl Marx.
9.4 Filósofo e agitador Karl Heinrich Marx nasceu em Trier, sul da Alemanha, a 5 de maio de 1818. A mãe tinha origem na nobreza da Holanda e o pai era advogado. Eram judeus e precisaram converter-se ao cristianismo quando o pequeno Karl ainda estava com 6 anos, em função das restrições legais impostas aos membros da comunidade judaica no serviço público.
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Em 1835, com 17 anos, Marx ingressou na Universidade de Bonn, transferindo-se, já no ano seguinte, para a Universidade de Berlim, onde a influência de Hegel era bastante forte, mesmo após sua morte em 1811. Em Berlim, Marx participou ativamente do movimento dos jovens hegelianos, um grupo de intelectuais que pretendia levar adiante o pensamento de Hegel, em desacordo com os chamados hegelianos de direita, para quem o Estado prussiano era a culminância da história. Com a tese Sobre as diferenças da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro , Marx obteve o grau de doutorado, em Jena, em 1841. Impossibilitado de seguir a carreira acadêmica, já que as portas da universidade estavam fechadas para os hegelianos de esquerda, tornou-se redator de um jornal de tendência liberal publicado em Colônia. Essa atividade força-o a ocupar-se com problemas concretos de natureza política e econômica. No entanto, o gover no, incomodado com o teor desses artigos, fechou o jornal. Depois de um noivado de longos anos, Marx casou-se e emigrou para a França, onde editou, juntamente com seu amigo Arnold Ruge, os Anuários Franco-Germânicos. Em Paris, travou contato com o poeta alemão Heinrich Heine – também exilado – e com socialistas franceses, além de estreitar amizade com Friedrich Engels (1820-1895), com quem produziu diversas obras em comum. Filho de um industrial, Engels costumava socorrer Marx nas suas numerosas dificuldades financeiras. Mas a permanência de Marx na França foi breve: a pedido do governo prussiano ele foi expulso, estabelecendo-se provisoriamente em Bruxelas, na Bélgica, onde fundou o primeiro partido comunista do mundo. Após uma passagem por Londres, Inglaterra – ocasião em que redigiu O manifesto comunista , ou O manifesto do Partido Comunista , juntamente com Engels –, Marx retornou à França, mas logo assumiu a chefia do Novo Jornal Renano , em Colônia, primeiro jornal diário francamente socialista. Todavia, foi novamente expulso, agora de sua própria terra, e então viveu até seus últimos dias, com apenas breves interrupções, em Londres. Lá, Marx dedicou-se a vastos estudos econômicos e históricos e escreveu artigos para jornais, mas sua situação material continuou sempre muito precária. Em 1864, foi cofundador da Internacional Socialista 3 , desempenhando grande papel de direção. Em 1867, veio a lume o primeiro tomo da sua obra máxima, O Capital. Em 1883, porém, antes que a obra de três volumes estivesse completa, Marx morreu, aos 65 anos. Sua produção deve ser enquadrada dentro da chamada esquerda hegeliana. Isso porque, segundo ele, não é o espírito que determina o movimento da história, mas, antes, as relações econômicas de produção. É sobre essas relações que se erguem as superestruturas do pensamento, da cultura e da forma política. Por isso, considera-se sua obra uma inversão da teoria hegeliana. Sua obra principal é composta pelos livros: • A ideologia alemã (1845, com a coautoria de Engels); • Manifesto do Partido Comunista (1848, também com a coautoria de Engels); 3 A Internacional Socialista foi uma primeira tentativa de organização mundial dos trabalhadores com vistas à defesa de seus interesses, tendo como horizonte uma revolução socialista mundial. Filosofia da educação
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•
Contribuição à crítica da economia política (1859), cujo conteúdo é retomado em O capital (1867); • O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1869). Em Contribuição à crítica da economia política , Marx reconhece em Hegel o mérito de ter instituído o instrumental que serviria para explicar as contradições reais da história e da vida, mas acusa-o de ter colocado esse sistema de cabeça para baixo – daí a necessidade de invertê-lo, colocá-lo sobre seus pés.
9.5 O materialismo histórico O pensamento de Marx tem três fontes principais: a economia política inglesa do início do século XIX, o idealismo alemão e o materialismo filosófico francês do século XVIII. Nos economistas ingleses, ele buscou uma teoria social que se pretende científica. De David Ricardo (1772-1837), adotou a teoria do valor do trabalho, embora lhe imprimindo uma nova orientação. Para Ricardo – que parte do pressuposto da imutabilidade da ordem social existente –, a livre concorrência manteria os salários dos trabalhadores no nível de subsistência, assim controlando o seu número. Marx, por sua vez, parte do ponto de vista do trabalhador, distinguindo duas formas de trabalho: 1. trabalho-ação – a força de trabalho que é vendida pelo trabalhador e paga pelo empregador; 2. trabalho-resultado – o produto do trabalho realizado pelo trabalhador e vendido pelo empregador no mercado. Para Marx, essas duas formas de trabalho não apresentam o mesmo valor, já que entre elas existe, como diferença de valor, a mais-valia, isto é, o lucro do empregador. O valor do trabalho-ação, da força de trabalho, tem como medida o seu custo de produção, ou seja, o valor que foi necessário para produzir abrigo, alimentação, vestuário etc. para o trabalhador e seus dependentes, todos elementos indispensáveis ao prosseguimento de seu esforço produtivo. Digamos que a parcela de todos esses elementos consumida pelo trabalhador e seus dependentes durante um dia de trabalho equivale a quatro horas de tra balho. Assim, o trabalho-ação desse trabalhador vale um preço que lhe é pago pelo patrão sob a forma de salário. No entanto, a força vendida pelo operário ao patrão vai ser utilizada não durante quatro horas, mas, seis, oito, dez ou mais horas. A mais-valia é, assim, constituída pela diferença entre o preço pelo qual o empresário compra a força de trabalho (quatro horas) e o preço pelo qual ele vende o resultado no mercado (oito horas, por exemplo) 4. Do idealismo alemão, Marx bebeu sobretudo em Hegel. Depois da morte do grande filósofo, seus discípulos dividiram-se em dois grupos: os hegelianos de direita, para quem o espírito absoluto se manifestava no Estado prussiano daquele tempo, e os hegelianos de 4 No capitalismo moderno, com a redução da jornada de trabalho, o lucro empresarial seria sustentado por meio do que se denomina mais-valia relativa (em oposição à primeira forma, chamada mais-valia absoluta), que consiste em aumentar a produtividade do trabalho utilizando a racionalização e o aperfeiçoamento tecnológico.
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esquerda, que, brandindo o movimento histórico permanente, lançaram uma crítica vee mente à religião cristã. Entre esses jovens hegelianos destacava-se um que exerceria influência decisiva sobre o jovem Marx: Ludwig Feuerbach (1804-1872), que substitui o espírito hegeliano pelo ser humano, o panteísmo de seu mestre por um ateísmo humanista. A novidade do hegelianismo está, como vimos, em ter oposto a todas as filosofias ante riores a ideia de um devir constante, por meio do fluxo incessante dos fenômenos históricos, segundo a lei da dialética: Aqui a interpretação de Marx é profundamente hegeliana no método, embora a força propulsora seja concebida de modo diferente em ambos os casos. Para Hegel, o curso da história é uma gradual autorrealização do espírito que tende para o absoluto. Marx substitui o espírito pelos modos de produção, e o absoluto pela sociedade sem classes. Um determinado sistema de produção, no curso do tempo, desenvolverá tensões internas entre as várias classes sociais a ele vincula das. Estas contradições, como Marx as denomina, se resolvem numa síntese mais elevada. A forma que a luta dialética assume é a luta de classes. A batalha prossegue até que, com o socialismo, instaura-se uma sociedade sem classes. Uma vez alcançado esse objetivo, não há mais razão para lutar, e o processo dialético pode adormecer. (RUSSELL, 2002, p. 390)
Assim, a dialética idealista de Hegel é transformada no materialismo dialético , escopo da concepção filosófica de Marx. Não é mais a ideia que propulsiona a história, mas as relações materiais de produção . Com efeito, Marx vira de cabeça para baixo o modelo hegeliano. E aqui entra a terceira grande influência do marxismo: o materialismo, que Marx vai buscar nos enciclopedistas franceses, especialmente Diderot (1713-1784) e Holbach (17231789), e novamente em Feuerbach. Todavia, Marx não se satisfez com esse materialismo mecanicista que faz todas as obras do espírito (religião, arte, cultura) dependerem da matéria (as relações materiais de produção ). Aplicando seu materialismo dialético à história, ele criou o materialismo histórico , que é a teoria sociológica geral do marxismo, no qual a sociedade é comparada a um edifício em que as fundações (a infraestrutura) seriam representadas pelas forças econômicas, enquanto o edifício em si (a superestrutura) representa as ideias, os costumes, as instituições sociais etc. Se por um lado a infraestrutura determina a superestrutura, por outro lado ela sofre reflexos dessa superestrutura, dialeticamente. Com a mudança das formas de produção (a infraestrutura), também mudam as ideias e construções culturais do ser humano (a superestrutura). Ora, as relações fundamentais da sociedade são as relações de produção, que se efetivam na divisão social do trabalho; a maneira pela qual as forças produtivas se organizam determina as relações de produção. No entanto, o desenvolvimento da técnica leva a uma contradição com a antiga relação de produção e faz-se necessária uma nova organização (divisão do trabalho). Assim, nas sociedades primitivas os seres humanos organizavam-se mutuamente para enfrentar a natureza; os produtos eram de propriedade comum e não havia sentimento de posse. Mais tarde, com o começo da domesticação de animais e o incremento da agricultura,
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alteraram-se as relações de produção e, consequentemente, os modos de produção, aparecendo a propriedade familiar e as primeiras distinções de classe. Mais adiante, a produção foi aumentada além do necessário à subsistência, tornando-se prementes novas forças de trabalho; surgiu então a primeira forma de propriedade privada e a exploração do homem pelo homem e, consequentemente, a contradição entre senhores e escravos. Essa linha evolutiva – a partir da dialética de afirmação, negação e negação da negação (tese, antítese e síntese) – só chegaria ao fim na sociedade sem classes, no comunismo. Portanto, o materialismo marxista é dialético, ou seja, parte da constatação de que os fenômenos materiais são processos. Isso significa que o mundo não é uma realidade estática, e sim dinâmica – um complexo de processos – e, por isso, a abordagem da realidade pode ser feita apenas de maneira dialética. Nesse mesmo sentido, a superestrutura não é uma simples decorrência da matéria: é possível libertar-se do determinismo e libertar o ser humano por meio da ação revolucionária.
9.6 A práxis Aqui chegamos a outra novidade do pensamento de Marx: ele nunca foi um filósofo de gabinete, como seus conterrâneos Kant e Hegel. Se alguém quisesse acertar seu relógio pelo horário dos passeios do filósofo (como faziam os vizinhos de Kant), ficaria, sem dúvida, em apuros. Como vimos, por suas posições políticas Marx não conseguiu obter uma cátedra nas universidades alemãs e teve que ganhar a vida no exílio e em condições muito adversas. Além disso, participou ativamente da luta revolucionária de seu tempo, ajudando a cons cientizar e organizar os trabalhadores. Na 11ª das suas Teses sobre Feuerbach , ele declara: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneira diferente; a questão, porém, é trans formá-lo”. Isso significa que a prática é tão importante quanto a teoria – a qual não pode se desvincular da ação histórica e concreta do ser humano, unindo-se dialeticamente os níveis teórico e prático em uma coisa só, que é a práxis (termo que provém do grego e significa “ação”, “realização”). Para Marx, a queda do regime capitalista ocorreria não só por força de suas contradições internas, mas também pela ação – a práxis – revolucionária dos trabalhadores organizados. A essa derrubada do sistema sucederia uma fase transitória (a ditadura do proletariado), com a liquidação das antigas classes e a implantação de um regime coletivista, preparatório da fase definitiva (o comunismo integral), com a abolição completa do Estado. O mais Marx não diz: ele se recusa a elaborar uma utopia – o seu socialismo, fruto típico do século XIX, pretende-se rigorosamente científico. Marx morreu antes de ver os partidos socialistas que ele ajudara a fundar vencerem suas primeiras eleições. Trinta e quatro anos após a sua morte, o partido bolchevique, inspirado diretamente nas suas ideias, assumiu o poder na Rússia, depois de uma revolução. Ao longo do século XX, várias nações tornaram-se socialistas, chegando ao ponto de quase metade da população do globo viver sob regimes de inspiração marxista. Entre a queda do
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Muro de Berlim (1989) e a dissolução da União Soviética (1991), esses regimes caíram como castelos de cartas. Mas uma pergunta que se fez e se faz é sobre até que ponto Marx pode ser responsabilizado pelas diferentes “leituras” de sua obra (e os respectivos efeitos colaterais) ou se tais práticas não seriam resultado de visões distorcidas de suas ideias. Todavia, a discussão so bre o futuro do capitalismo continua e Marx não pode ser alijado desse debate, já que ele foi um dos melhores – senão o melhor – intépretes do regime fundado sobre o capital.
Ampliando seus conhecimentos
O verdadeiro é o todo (HEGEL, 1964, p. 233-234)
O verdadeiro é o todo. Mas o todo é tão-só a essência que não se com pleta senão por seu desenvolvimento. É preciso dizer do absoluto que é essencialmente resultado, que só no nal é o que em verdade é; e nisso consiste precisamente sua natureza, ser alguma coisa real, sujeito ou mesmicação. Por bastante contraditório que possa parecer conceber o absoluto essencialmente como resultado, basta uma pequena reexão para desvanecer esta aparência de contradição. O começo, o princípio, ou o absoluto, tal como se manifesta do início e imediatamente, é tão-só o geral. Do mesmo modo que eu digo “todos os animais”, não equivale esta expressão à Zoologia, assim também percebemos que as palavras divino , absoluto , eterno etc. não manifestam o que está contido nelas – e somente estas palavras são as que exprimem em verdade a intuição como alguma coisa imediata.
[...]
A história das lutas de classes (MARX; ENGELS, 2006, p. 84-87)
A história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de cor poração e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora aberta, ora dis farçada: uma guerra que sempre terminou ou por uma transformação
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A dialética idealista e materialista revolucionária de toda a sociedade, ou pela destruição das duas classes em luta.
Nas épocas históricas mais remotas encontramos, quase por toda parte, uma divisão completa da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de posições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cava leiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos; e, em cada uma dessas classes, gradações especiais. A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feu dal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das velhas. No entanto, a nossa época, a da burguesia, possuiu uma característica: simplicou os antagonismos de classes. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.
[...] A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revolucionário. [...] A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então consideradas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta e do sábio seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias.
Atividades 1. Quais são as peculiaridades, semelhanças e diferenças nos textos do Ampliando seus conhecimentos , entre Hegel e Marx?
2. Leia o texto a seguir. Para ele, tudo está em constante mudança e o conito rege todas as coisas: a vida e a morte, o sono e a vigília, a juventude e a senilidade, são realidades que se transfor mam continuamente umas nas outras. Seu fragmento de número 91, em especial, tornou-se célebre: “Um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio”. Isso porque
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A dialética idealista e materialista
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da segunda vez ele já não será o mesmo homem de antes e nem estará no mesmo rio, já que ambos estarão mudados. Esse texto refere-se a que lósofo da Antiguidade?
a. Sócrates. b. Zenão de Eleia. c. Heráclito de Éfeso. d. Platão. e. Tales de Mileto. f.
Aristóteles.
3. A respeito da compreensão de dialética, assinale H nas alternativas que se referem apenas a Hegel, M nas que se referem apenas a Marx e HM nas que se referem aos dois. (
)
A dialética compõe-se de três etapas: tese, antítese e síntese, ou seja, armação, negação e negação da negação.
(
)
O que está no início não é a natureza, mas sim a ideia pura, que constitui o princípio inteligível do mundo.
(
) Com a mudança das formas de produção (a infraestrutura), mudam também as ideias e construções culturais do ser humano (a superestrutura).
(
)
(
)
Essa linha evolutiva – a partir da dialética de armação, negação e negação da negação – só chegaria ao m na sociedade sem classes. O espírito absoluto desenvolve-se em arte, religião e losoa.
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A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real [...] Há 80 anos que o sinto. Quanto a isso, não posso fazer outra coisa senão me resignar, e dizer que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelo pesar.
(Arthur Schopenhauer)
10.1 Contra Hegel Iniciado com Immanuel Kant (1724-1804), o idealismo alemão chega ao seu auge com George Hegel (1770-1831) – em sua grandiosidade, estruturação e ousadia, a que se acresce sua quase ilegibilidade. De certa forma, esse foi o último dos grandes sistemas filosóficos do Ocidente. Determinando o horizonte intelectual de boa parte dos séculos XIX e XX, esteve na matriz do marxismo, do existencialismo e de algumas das correntes mais significativas do pensamento cristão contemporâneo. Com efeito, o pensamento de Hegel presta-se a mais de uma interpretação: por um lado, visa à reconciliação com a realidade, a qual procura interpretar racionalmente; por outro, a dialética, que é a alma do sistema, opõe-se a qualquer imobilidade e explica o movimento, o processo histórico, as rupturas. Filosofia da educação
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Schopenhauer: o mundo como representação
Assim, não é de se estranhar que pouco após a morte do grande filósofo prussiano começassem a surgir fissuras no edifício hegeliano. Entre os seus discípulos, logo houve uma divisão entre os chamados hegelianos de direita e os jovens hegelianos, mais tarde chamados hegelianos de esquerda. Para a direita, a ideia absoluta, que no sistema hegeliano perpassa toda a história do universo, precisa de um suporte, um sustentáculo, que deve ser um espírito real, transcendente e consciente. Assim, ela reduzia o hegelianismo ao espiritualismo, à afirmação do Deus pessoal e da imortalidade da alma, apontando a religião e o Estado como os únicos capazes de voltar a aglutinar uma sociedade civil ameaçada de dissolução. Para a esquerda, ao contrário, reinterpretando o sistema hegeliano no sentido do pan teísmo e do ateísmo, a ideia é uma abstração que só existe exteriorizada na natureza, que se basta a si mesma. Tratava-se, para eles, de erigir uma nova sociedade que definitivamente ultrapassasse aquela em que viviam. Desenharam-se, desse modo, aquilo que Moses Hess (1812-1874) chamou de o partido do movimento e o partido da permanência . Fiéis ao Estado e à religião do Estado, os hegelianos de direita monopolizaram as cadeiras das universidades. Hoje, mal são lembrados. Quem ainda sabe quem foram Jorge Gabler (1786-1853) e Karl Rosenkranz (1805-1879)? Já os hegelianos de esquerda tiveram não poucas dificuldades na vida acadêmica e na vida pessoal: perderam emprego, passaram fome, foram exilados – e entraram nas páginas da história. David Strauss (1808-1874) foi um dos pioneiros do método histórico-crítico de interpretação das Escrituras; Ludwig Feuerbach (1804-1872) foi o fundador do materialismo moderno; Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) dispensam apresentações. Mas, de toda forma, os hegelianos – de direita ou de esquerda – não rejeitaram o seu mestre. Conservando-o, imobilizando-o ou aprofundando-o, eles permaneceram, de uma maneira ou outra, ligados aos seus lineamentos. Marx, o mais célebre discípulo, mesmo criticando o idealismo do mestre, sempre se confessou devedor de sua filosofia. Os maiores ataques viriam de filósofos não hegelianos. Schelling (1775-1854) da última fase já havia criticado Hegel por pretender deduzir os fatos do mundo das ideias. Friedrich Herbart (1776-1841), considerado o fundador da psicologia científica, parte de Kant para se afastar do idealismo clássico, afirmando a fundamentabilidade da experiência e da realida de da coisa em si. Todavia, os ataques mais virulentos partiriam do atormentado Sören Kierkegaard (18131855) e do depressivo Arthur Schopenhauer. O primeiro, dinamarquês (todos os outros aqui citados são alemães), protagoniza “uma violenta explosão anti-hegeliana” (RUSSELL, 2002, p. 365). Para Hegel, o indivíduo nada mais é do que um momento, de uma totalidade que o abrange e o ultrapassa e na qual, simultaneamente, ele encontra a sua realização. Em Kierkegaard manifesta-se um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua es pecificidade existencial e do caráter insuperável de sua concretude. Não menos emocional seria a reação de Schopenhauer ao altissonante e otimista sistema hegeliano.
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10.2 Uma vida taciturna Nascido em 22 de fevereiro de 1788, filho de um próspero comerciante da cidade de Dantzig, na Prússia (atualmente Gdanski, na Polônia), Arthur Schopenhauer estava desti nado a seguir a profissão paterna. Aos 5 anos, por ocasião da anexação da cidade livre de Dantzig pela Prússia, sua família mudou-se para Hamburgo. Em 1797, os Schopenhauers moraram em Paris e em 1803 passaram seis meses em Londres. Viajaram por uma série de outros países, entre os quais a Áustria, a Suíça e a Holanda. Em vez de se interessar pelos negócios do pai, o adolescente Arthur preferia traçar considerações melancólicas sobre a condição humana. Fixando-se em Hamburgo, em 1805, a família obrigou-o a cursar uma escola comercial. Porém, a repentina morte do pai (prova velmente por suicídio) permitiu-lhe dedicar-se a uma carreira acadêmica, como era sua von tade. Assim, Schopenhauer começou os estudos humanísticos no Liceu de Weimar, em 1807. Ao mesmo tempo, sua mãe, possuidora de veleidades literárias, tornou-se anfitriã de um salão frequentado pelos grandes intelectuais da região e assim Arthur Schopenhauer travou contato com Goethe (1749-1832). No entanto, a relação entre mãe e filho não era fácil, eles se menosprezavam publica mente e Arthur chegou a dizer que ela ficaria famosa não por seus livros, mas por ser sua genitora (cruel vaticínio!). Aos 21 anos, Schopenhauer recebeu um pequeno legado que lhe permitiu empreender os estudos universitários e, a partir de então, mãe e filho começaram a se afastar gradualmente. Depois de uma passagem por Göttingen, onde teve contato com a filosofia de Kant, ele se mudou para Berlim (1811), assistindo, assim, aos cursos dos filósofos Schleiermacher (1768-1834) e Fichte (1762-1814). Mais tarde, Schopenhauer acusou Fichte de ter, deliberadamente, caricaturado a filosofia de Kant. Em 1813, Schopenhauer obteve o doutourado pela Universidade de Berlim, com a tese Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente. Depois de uma temporada na Itália (1818-1819), sua situação econômica não era das melhores. Começou então a lecionar como livre-docente na Universidade de Berlim, onde pontificava o grande Hegel. “Totalmente convencido da própria genialidade [...], marcou suas conferências para a mesma hora das de Hegel” (RUSSELL, 2002, p. 369). Resultado: somente quatro ouvintes e um ressentimento eterno para com Hegel. Para piorar a situação, em 1821 ele se envolveu em um acidente que lhe traria desagradáveis consequências. Nessa época, o filósofo morava em uma pensão e, em certa oca sião, impacientando-se com uma vizinha que viera lhe espionar os encontros com pretensas amantes, atirou-a escada abaixo. Acabou sendo processado e condenado a pagar-lhe, além de suas despesas médicas, uma pensão anual. Em 1833, depois de muitas viagens e outra fracassada tentativa de lecionar em Berlim, o filósofo resolveu fixar-se em Frankfurt, onde permaneceria até sua morte. Ali levou uma vida quase solitária, tendo por principal companhia o seu cão.
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Dedicando-se então exclusivamente à filosofia, Schopenhauer publicou diversos livros. Em 1818, com apenas 30 anos, ele já havia lançado o seu clássico O mundo como vontade e representação , que na época passou quase inteiramente despercebido. Em 1836, foi a vez de Sobre a vontade na natureza. Escreveu também dois ensaios sobre moral – Sobre a liberdade da vontade e O fundamento da moral , este último contendo verdadeiros insultos a Hegel e a Fichte. Posteriormente, em 1841, esses dois ensaios foram reunidos sob o título de Os dois problemas fundamentais da ética . O sucesso só começou a bafejar na vida do pensador misantropo com Parerga e Paralipomena , seu último livro, publicado em 1851, contendo pequenos ensaios sobre políti ca, moral, literatura, filosofia, estilo e metafísica. Em 1853, um artigo publicado na Inglaterra por John Oxenford, atacando a filosofia de Hegel com base em elementos de Schopenhauer, deu início à grande difusão da filosofia schopenhaueriana. Da França, filósofos e escritores vinham até Frankfurt para conhecê-lo. Na Alemanha, com o declínio da filosofia de Hegel, Schopenhauer viu-se subitamente galgado a ídolo das novas gerações. Assim, os últimos anos de sua vida lhe proporcionaram o reconhecimento que ele tanto ansiara. Artigos encomiásticos pululavam nos principais periódicos. A Universidade de Breslau dedicou cursos à sua obra e a Academia Real de Ciências de Berlim convidou-lhe para membro, em 1858 – honraria que ele, orgulhosamen te, recusou. Nos últimos anos, o arauto do pessimismo radical pôde gozar de uma insuspeitada alegria, dedicando-se inclusive à sua flauta. E foi a 21 de setembro de 1860, aos 72 anos, que faleceu o “cavaleiro solitário”, como ele seria chamado mais tarde por Friedrich Nietzsche (1844-1900), outro solitário.
10.3 O mundo como representação O ponto de partida do pensamento de Schopenhauer é a filosofia kantiana, que estabelecera uma distinção entre os fenômenos e a coisa em si, ou seja, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. Segundo Kant, a coisa em si não poderia ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. Dessas distinções, Schopenhauer concluiu que o mundo não seria mais do que representações, entendidas por ele, em um primeiro momento, como síntese entre o subjetivo e o objetivo, a realidade exterior e a consciência humana. Todavia, Schopenhauer se afastou do mestre que tanto admirava em um ponto capital e a partir daí traçou uma filosofia original: para Kant, a coisa em si é inacessível ao conhecimento humano, pois se encontra para além dos limites do próprio ato cognitivo, enquanto Schopenhauer pretende abordar a própria coisa em si, a qual seria, para ele, a vontade – origem metafísica de toda a realidade.
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Segundo Schopenhauer, mais do que simplesmente assegurar que ele é “um objeto entre outros”, a experiência interna do indivíduo também lhe garante que ele é um ser ativo, cujo comportamento manifesta diretamente sua vontade. Essa consciência interior, que cada um possui em si como vontade, seria primitiva e irredutível. Assim, a vontade revela-se ime diatamente a cada um como o em si. Ademais, a percepção que cada qual faz de si mesmo como vontade é distinta da percepção que cada um tem como corpo. Mas isso não significa que as ações corporais e as ações volitivas constituem duas séries de fatos, entendidas estas como causadoras daquelas: para Schopenhauer, o corpo humano é apenas objetivação da vontade, tal como aparece para a percepção externa. Em outras palavras, o que se quer e o que se faz são a mesma coisa, vistos, contudo, sob ópticas distintas. Nos seres humanos a vontade seria o princípio fundamental do universo e mais: ela é independente da representação e, portanto, não se submete às leis da razão. “Esta vontade é cega e irracional, porquanto as suas manifestações no mundo são irracionais, e tanto quanto mais se sobe na hierarquia dos seres até ao homem, no qual o mal e a dor do universo são compendiados e em demasia intensificados” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 396).
10.4 Tudo é dor A vontade, que é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana, é também a origem de todo o sofrimento. O sistema schopenhaueriano é, portanto, profundamente pessimista 1 , pois a vontade é concebida como algo sem nenhuma meta ou finalidade. Sendo um mal inerente à condição humana, ela gera, de modo necessário e iniludível, a dor. Por outro lado, aquilo que se chama de felicidade nada mais é que uma cessação temporária do sofrimento. Assim, para Schopenhauer, viver é sofrer. Mas, a despeito de todo esse pessimismo, Schopenhauer indica alguns caminhos para a supressão da dor. Em um primeiro instante, a via para a suspensão da dor encontra-se na contemplação artística. Na arte, a relação entre a vontade e a representação inverte-se, a inteligência passa a uma posição proeminente, de onde pode assistir à história de sua própria vontade. A atividade artística revelaria, desse modo, as ideias eternas por meio de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, a escultura, a pintura, a poesia lírica, a poesia trágica e, finalmente, pela música. Com efeito, essa é a primeira vez na história da filosofia em que a música ocupa o proscênio, o lugar de destaque no panteão das artes. Liberta de toda referência específica aos diversos objetos da vontade, a música seria capaz de exprimir a vontade em sua essência geral e indiferenciada, constituindo um instrumento apto para propor a libertação do ser humano. 1 Em filosofia, o termo pessimismo pode assumir três acepções, não necessariamente excludentes entre si: doutrina segundo a qual o mal sempre vence o bem, de modo que o não ser é melhor que o ser; doutrina segundo a qual a dor vence o prazer, ou segundo a qual somente a dor é real, o prazer sendo apenas a sua momentânea cessação; e doutrina segundo a qual a natureza é indiferente ao bem e ao mal moral, assim como à felicidade ou infelicidade dos seres. Filosofia da educação
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10.5 O nirvana Porém, a libertação proporcionada pela arte não é total e absoluta: a arte significa apenas um distanciamento relativamente passageiro, e não a supressão da vontade. Para que atinja a libertação completa, é necessário que o ser humano ascenda ao nível da conduta ética, a qual representa uma etapa superior no processo de superação do sofrimento. A ética de Schopenhauer não está, contudo, presa à noção de dever: ao contrário do que acontece em Kant, na moralidade defendida por Schopenhauer não há imperativos categóricos, os quais não passariam de formas de coerção. Assim, sua ética fundamenta-se, antes de tudo, na ideia de que a contemplação da verdade é o caminho de acesso ao bem. Para Schopenhauer, o egoísmo – que faz do ser humano o seu próprio inimigo – origi na-se da vontade que intenta afirmar o seu ímpeto individual, e a superação do egoísmo só é possível por meio do conhecimento da natureza única e universal da vontade. Somente assim o ser humano pode se tornar bom. O espírito de contenda contra os seus semelhantes é substituído pelo de simpatia e compaixão. Libertado pela etapa ética, o ser humano alcança o princípio que é a base de toda moral: “Não prejudiques pessoa alguma, sê bom para com todos”. Mas nem mesmo essa ética da compaixão possibilita ao ser humano atingir a felicidade plena. Para Schopenhauer, a mais completa forma de redenção somente pode ser encontrada na renúncia ascética ao mundo e a todas as suas solicitações, na anulação da vontade e no mergulho definitivo no nirvana2: “Graças a essa purificação ascética 3 o homem torna-se perfeitamente indiferente a tudo, e desapega-se de tudo que o cerca: está morto inteiramente à vida, ainda que esta possa continuar materialmente” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 397). Assim, há uma gradual eficácia nessas três vias de libertação da dor: a via estética, a via ética e a via ascética. Schopenhauer foi um leitor atento dos textos sagrados das religiões orientais, sobretudo do hinduísmo e do budismo, cujo conhecimento chegava ao Ocidente pelas viagens marítimas e pelo colonialismo europeu. Assim, se o Ocidente colonizava econômica e po liticamente o Oriente, este começava a “colonizar” espiritualmente o Ocidente capitalista e desencantado. Assim, a ascética filosofia schopenhaueriana nada mais era do que uma primeira leitura idealista da mística oriental, especialmente do budismo, para quem a realidade é dor e a origem do sofrimento é o desejo. Com Schopenhauer, o idealismo alemão (que foi iniciado por Kant e teve o seu apogeu filosófico e institucional com Hegel, que se tornou uma espécie de filósofo oficial do 2 Nirvana é um termo sânscrito que significa literalmente “extinção”. No budismo, o nirvana é a culminância da libertação, uma espécie de superação da ignorância e do apego aos sentidos, ao mesmo tempo em que é o fim do ciclo das reencarnações. 3 O ascetismo é uma moral filosófica ou religiosa baseada no desprezo do corpo e das sensações corporais e que busca alcançar, pelos sofrimentos físicos, o triunfo do espírito e da mente sobre os instintos e as paixões. Purificação ascética é justamente uma disciplina que busca esse triunfo do espírito sobre instintos e paixões.
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estado prussiano) torna-se profundamente crítico de si mesmo, tornando-se irracionalismo e pessimismo. É o ocaso, o solene pôr do sol dessa grande aventura do espírito que foi o idealismo – que muitas vezes foi a alma filosófica do romantismo –, já que no horizonte anunciavam-se novas correntes filosóficas, mais ligadas ao mundo e à ação, como o marxismo e o positivismo.
10.6 Schopenhauer e a educação Da concepção schopenhaueriana: “[...] do mundo e da vida, decorre uma pedagogia negativa e quietista, mas que exige muita força e proporciona libertação: uma pedagogia que ensina o desapego, o desprezo do mundo e da vida, porquanto não são o absoluto e porquanto estão cheios de mal” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 397). A uma primeira vista, parece que para o nosso fazer pedagógico de hoje não há muito o que reter de um sistema tão pessimista, ainda mais em uma sociedade que, pelo menos no mercado de trabalho, exige a todo custo o otimismo e uma atitude confiante diante da vida. No entanto, é justamente esse contraste que é interessante oferecer. Para que corremos tanto? O que é o sucesso? O que é felicidade? A vontade é sempre positiva? E a vontade de poder, de domínio? São reflexões a que não podemos nos furtar após o contato com a origi nalíssima filosofia de Schopenhauer.
Ampliando seus conhecimentos
A vontade (SCHOPENHAUER, 1964, p. 246-248)
Antes de tudo, é preciso recordar aquela consideração que coloquei no m do livro segundo, com vista à questão ali suscitada, do m da vontade. Ao invés de responder, z ver que a vontade, em todos os graus de sua manifestação, desde o mais baixo até o mais alto, carece de objetivo nal, pois sua essência é querer, sem que este querer tenha jamais um m, e que, portanto, não consegue uma satisfação denitiva e só os obstáculos podem detê-la, mas em si vai até o innito.
[...] À medida que o conhecimento se faz mais claro e a consciência se desen volve, a dor aumenta, chegando a culminar no homem. Quanto mais lucidez de conhecimento possui o homem e mais elevada é sua inteligência, mais violentas são suas dores. O gênio é o que mais padece.
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Atividades 1. Quanto à vida de Arthur Schopenhauer, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). (
) Desde pequeno, Schopenhauer estava destinado a seguir a carreira de comerciante.
(
)
A morte repentina da mãe impediu-o de se dedicar a uma carreira acadêmica, como era sua vontade.
(
)
Assim falou Zaratrusta , Em 1818, com apenas 30 anos, ele lançou o seu clássico que na época passou quase inteiramente despercebido.
(
) O sucesso só começou para Schopenhauer em 1851, com Parerga e Paralipomena , seu último livro publicado.
(
)
Para Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo, bem como da conduta humana, e, ao mesmo tempo, a origem de todo o sofrimento.
(
)
A única libertação total e absoluta da dor é aquela que é proporcionada pela arte.
2. Para Schopenhauer, nós temos acesso ao mundo? 3. Para Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo, bem como da conduta humana, e, ao mesmo tempo, também é a origem de todo o sofrimento. Para ele, há como fugir dessa realidade de dor? E se há, qual é o método e o caminho?
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O positivismo e o desenvolvimento da ciência
Todos os bons intelectos têm repetido, desde o tempo de Bacon, que não pode haver qualquer conhecimento real senão aquele baseado em fatos observáveis.
(Auguste Comte)
11.1 Um mestre e uma musa De certa forma, o positivismo é um novo rótulo para uma nova fase de desenvolvimento do empirismo, corrente filosófica inglesa dos séculos XVII e XVIII, para a qual o conhecimento se funda exclusivamente nos dados do mundo empírico. O nome surgiu em 1830, na escola do socialista utópico Saint-Simon (1760-1825), e ganhou fama com Auguste Comte, o pensador paradigmático do movimento. Deriva-se do latim positum , significando o que “está posto à nossa frente”, o que é observável, experimentável. Além do empirismo, o positivismo tem como suas fontes: o criticismo de Kant (1724-1804), que estabelecera barreiras às pretensões da metafísica; o enciclopedismo francês, com Diderot e D’Alambert, que procurava reunir e catalogar todo o conhecimento filosófico e científico de seu tempo; e o progresso das ciências experimentais daqueles, como a química de Lavoisier (1743-1793) e a biologia de Bichat (1771-1802), que revolucionavam a visão de mundo da época. Filosofia da educação
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O positivismo e o desenvolvimento da ciência
O positivismo subdividiu-se em várias correntes, não raro conflitantes, e cedo espalhou -se pelo mundo, granjeando um sucesso e uma penetração até então nunca experimentados por uma escola filosófica. E é forçoso que nos reportemos àquele que é considerado o seu fundador, pois até hoje o nome do positivismo, para o bem ou para o mal, está atrelado a ele. Isidore Auguste Marie François Xavier Comte, que se tornou conhecido como Auguste Comte, nasceu em Montpellier, no sul da França, em 19 de janeiro de 1798. Depois de realizar seus primeiros estudos em sua cidade natal, onde se destacou por uma memória prodigiosa, ingressou na Escola Politécnica, em Paris, como o primeiro colocado no concurso vestibular. Todavia, com o temporário fechamento dessa escola, em 1816, em consequência da onda conservadora do período pós-napoleônico, voltou a Montpellier para continuar seus estudos na faculdade de medicina local. No ano seguinte, de volta a Paris, Comte foi expulso da Escola Politécnica por ter encabeçado um protesto contra um professor. Passou então a sobreviver de pequenos expedientes, como aulas particulares e escrita de artigos para jornais. Ainda em 1817, tornou-se secretário do pensador Saint-Simon (1760-1825), o socialista utópico que o introduziu no mundo intelectual parisiense. Já mergulhado na elaboração da doutrina positivista, Comte publicou seu Plano de trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade em 1822. Dois anos depois, rompeu com Saint-Simon, já que as doutrinas de um e de outro se revelaram incompatíveis. Em 1825, casou-se com Caroline Massin e mais tarde foi por ela abandonado, com o que sofreu perturbações mentais, tendo sido internado em uma clínica. Em 1830, deu início à pu , que só viria a ser concluído 12 anos depois. blicação de seu célebre Curso de filosofia positiva Em 1832, retornou como professor à Escola Politécnica, dela se desligando definitivamente em 1844. Passou a ser ajudado por amigos e admiradores, entre eles John Stuart Mill (1806-1873). Ainda em 1844, divorciou-se da esposa que só lhe causara sofrimentos e transtornos e envolveu-se em um caso de amor platônico com Clotilde de Vaux, que perduraria até a morte desta, dois anos mais tarde. Verdadeira musa do filósofo, Clotilde viria a ser venerada como uma santa pelos discípulos mais ortodoxos do mestre. Em 1848, Auguste Comte criou a Sociedade Positivista, que granjearia um grande nú mero de discípulos. Nos anos seguintes, publicou os volumes do Sistema de política positivista no qual extraiu algumas das principais consequências de sua concepção de mundo não , teológica e não metafísica, propondo uma interpretação pura e plenamente humana para a sociedade e sugerindo soluções para os problemas sociais. No volume final dessa obra, apresentou as principais intuições de sua “religião da humanidade”, em que os sacerdotes seriam os cientistas. Em 1856, publicou o estudo Síntese subjetiva , que seria o primeiro de uma série a tratar de várias questões, mas veio a falecer em Paris, provavelmente de câncer, em 5 de setembro de 1857.
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11.2 História e evolução O projeto inicial de Comte era substituir a filosofia – com seus conceitos abstratos e muitas vezes desvinculados do mundo concreto – pela ciência, ou melhor, pelo sistema hie rárquico das ciências cujo objeto é a totalidade dos fenômenos empíricos. À filosofia caberia apenas uma sistematização das ciências, servindo-se para tanto do método positivo, isto é, o método científico extraído das ciências experimentais. Assim, não havia interesse pelas cau sas primeiras dos fenômenos, mas apenas pelas relações causais ou de similitude entre eles. Em Comte, a hierarquia das ciências corresponde à ordem de formação histórica delas, ao mesmo tempo que passa de um nível de maior abstração e menor complexidade a outro de maior complexidade e menor abstração, em uma linha que vai da matemática (a mais abstrata) até a sociologia 1 (a mais concreta), passando pela física, a química e a biologia. Com efeito, assim como em Hegel, a filosofia de Auguste Comte é enformada pela ideia de uma linha evolutiva da história, possivelmente absorvida de Giambattista Vico 2 , cuja obra ele conhecia. Para Vico, filósofo italiano que construiu a primeira filosofia da história, a história é regida por leis, sendo sujeita a um eterno ciclo de repetição de três fases: , em que prevalece a força física; 1. a fase mítica , de domínio da aristocracia; 2. a fase heroica 3. a fase humana , em que reina o direito. Assim, para Comte, a evolução social da humanidade estaria igualmente sujeita a leis naturais fixas, que independem de qualquer intervenção da vontade humana, partindo de um estado teológico inicial, passando por um estado metafísico intermediário e chegando a um estado positivo , termo feliz da evolução histórica. Segundo um filósofo contemporâneo, “neste aspecto, Vico foi mais realista e reconheceu que a sociedade pode retroceder, e efetivamente retrocede, de períodos de refinamento e civilização a eras de novo barbarismo” (RUSSELL, 2002, p. 396). Mas precisamos reconhecer que a época de Comte, a primeira metade do século XIX, era uma fase de exultante otimismo com os efeitos da técnica e da ciên cia (somente o século XX revelaria o outro lado, de carnificina e barbárie, produzido pela tecnologia em duas devastadoras guerras mundiais). Eis como Maria Lúcia Aranha expõe estes três estados de Augusto Comte: No Estado Teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investi gações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais, mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. 1 O termo sociologia foi criado por Comte. 2 Giambattista Vico (1688-1744), filósofo italiano que se opôs ao racionalismo de Descartes (1596-1650). Suas teorias da história estão expressas em seu principal livro, Princípios de uma nova ciência. Ignorado em sua época, Vico só passou a ser reconhecido no século XIX.
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O positivismo e o desenvolvimento da ciência No Estado Metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo e concebidos como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um, uma entidade correspondente. Enfim, no Estado Positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas; a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, resume-se de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir. (ARANHA, 2002, p. 180-181)
Cada um desses três estados, por sua vez, apresenta os seus graus de desenvolvimento, sempre dentro de uma tendência em direção a uma unificação maior. A fase teológica, por exemplo, subdivide-se em animismo, politeísmo e monoteísmo. Todos os sistemas teológicos têm por base o animismo, mesmo o panteísmo do idealismo alemão. Por meio da astrologia, passa-se do animismo ao politeísmo, a etapa principal do es tado teológico, que, por seu turno, reparte-se em três formas principais: o politeísmo egípcio ou teocrático grego ou espiritual, romano ou social. Por meio de uma revolução, comparável à Revolução Francesa, o monoteísmo afirma-se, concorrendo para tanto o pensamento gre go, a civilização romana e a teocracia hebraica. O monoteísmo tem a sua maior expressão no catolicismo medieval. À diferença de Hegel (1770-1831), o desenvolvimento de uma fase para outra não é concebido em termos dialéticos. À diferença de Marx (1818-1883), não é das contradições do estágio anterior que surgem suas condições de superação no estágio superior. Entretanto, a semelhança de Comte com esses dois filósofos está na concepção otimista da evolução da história – aliás, uma característica comum no século XIX. Além disso, Comte sustenta, ainda, que todas as ciências passam por uma evolução semelhante de três estágios. A única que já teria atingido plenamente o estado positivo é a matemática.
11.3 A religião da humanidade Com o advento das ciências positivas, já teríamos alcançado o último estágio, o estado positivo, que deveria abranger toda a civilização, incluindo a religião. Nos seus últimos anos, Comte argumentava que havia chegado a hora em que ele deixaria de ser o novo Aristóteles, que ele fora até então, para se transformar no novo São Paulo (e aqui percebemos que a
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modéstia não é virtude muito usual nos filósofos). Daí o seu empenho em instituir a assim chamada religião positiva , isto é, o culto do Grande Ser, que não é senão a humanidade – a quem se acresce o Grande Fetiche, o planeta Terra e o Grande Meio, o espaço sideral. Juntos, humanidade, Terra e espaço constituem a trindade positiva. Ademais, vários símbolos foram acrescentados: calendário próprio, altares, sacramentos, sacerdotes, pontífices, paramentos, liturgia. Descendo a minúcias, Comte distingue um culto privado e um público: O culto privado, por sua vez, é dividido em pessoal e doméstico. O primeiro dedicado particularmente à mulher, como sendo a mais apta a representar o Grande Ser; o segundo compreende nove sacramentos, com relação às fases mais importantes da vida. O culto público deveria ter um templo apropriado, oficia do por um sacerdócio organizado para isso, de conformidade com as solenidades estabelecidas pelo calendário positivista, onde os santos do cristianismo são substituídos pelos heróis do mundo. Tal religião teve, de fato, o seu centro em Paris, espalhando-se também alhures, especialmente na Inglaterra e na América, onde sobreviveu ao seu fundador. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 434)
Assim, paradoxalmente, o último estado, o positivo, que deveria marcar definitivamente a vitória da razão e da ciência sobre a religião e as superstições, de certa forma assinala o retorno da força de elementos religiosos – como um retorno do elemento reprimido, para nos servirmos dos conceitos de Freud.
11.4 Quando filosofia vira samba Naturalmente, nem todos os discípulos de Auguste Comte o seguiram nessa via de erigir novos ídolos em lugar dos velhos deuses. Se Pierre Lafitte (1828-1881) acompanhou de perto o mestre, na ala ortodoxa do positivismo, Emílio Littré, porém, na ala chamada dissidente , recusou a parte religiosa, considerando-a uma involução no pensamento comtiano. O historiador e filósofo Hipolite Taine (1828-1873) e o sociólogo Émile Durkheim (18581917) contam-se também entre os dissidentes. Durkheim, inclusive, e a escola francesa de sociologia, iniciada com ele, será de grande importância para o desenvolvimento dessa nova ciência fundada por Comte. Na Grã-Bretanha, o positivismo reencontrou-se com o empirismo antecedente, dando origem ao que se chama positivismo inglês, com nomes como John Stuart Mill (1806-1873) e Herbert Spencer (1820-1903). O primeiro é considerado o último economista do liberalismo clássico e também precursor de alguns aspectos do keynesianismo 3. O segundo criou um sistema organicista e evolucionista que, antecipando-se a algumas das teorias de Darwin (1809-1882), desenvolveu a tese de que toda a realidade, desde a material até a espiritual, evolui à semelhança dos organismos vivos. 3 Keynesianismo é a teoria econômica consolidada pelo economista inglês John Maynard Keynes nos anos 1930 e consiste na afirmação do Estado como agente indispensável de controle da economia, com objetivo de conduzir a um sistema de pleno emprego.
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Longe de ser um objeto de antiquário do século XIX, o positivismo deixou um longo legado em nossa época. Sem falar nas influências diretas em escolas como o pragmatismo, o Círculo de Viena, e em pensadores como Bertrand Russell e Karl Popper, boa parte do século XX (e por que não dizer do início do século XXI?), na sua exaltação acrítica da técnica e do progresso, esteve sob o seu signo. Se hoje, na maioria dos círculos sociais, um engenheiro é muito mais benquisto que um filósofo, não vamos creditar a culpa exclusivamente ao filósofo Augusto Comte, mas não há como negar que uma parcela dessa culpa é dele e de seu louvor às ciências positivas. O positivismo teve ampla aceitação no Brasil, nas escolas de Direito, nos círculos mili tares e sobre alguns dos principais líderes republicanos, entre os quais Benjamin Constant (1836-1891), fundador da Sociedade Positivista (1876). Aliás, o lema da bandeira nacional, ordem e progresso , é de inspiração comteana. Existe até a Igreja Positivista do Brasil, como resultado dos esforços de Miguel Lemos (1854-1917) e R. Teixeira Mendes (1855-1927). Tobias Barreto (1839-1889) e Silvio Romero (1859-1914) destacaram-se entre os intelectuais influenciados por essa escola. Uma das maneiras de mensurar, em nosso país, o grau da difusão de um determinado corpo de doutrina é observando se ele deixou marcas em nossa cultura popular. Raras correntes de filosofia tiveram esse mérito. Uma delas é o positivismo, cujo principal slogan inspirou o seguinte samba de Noel Rosa e Orestes Barbosa, cujo nome é justamente Positivismo: [...] O amor vem por princípio, a ordem por base O progresso é que deve vir por fim. Desprezaste esta lei de Augusto Comte E foste ser feliz longe de mim. [...]
Para concluir, podemos afirmar que o positivismo é a ideologia da burguesia quando ela deixa de ser uma classe revolucionária. No período que precede e acompanha a Revolução Francesa, a burguesia era uma classe ainda em busca de seu espaço, em luta sobretudo com a nobreza e o clero. Sua ideologia era o Iluminismo e seu discurso assumia não raro a arrogância e a intrepidez de quem se julga na vanguarda da história. Passado um século, a burguesia já estava assentada no poder das principais nações europeias. Todavia, à sua sombra nasceu uma nova classe: o proletariado, que já encampa o antigo discurso revolucionário dos burgueses. Desse modo, temerosa de perder os privi légios recém-conquistados, a burguesia operou uma sensível modulação em seu discurso e, em vez de liberdade e igualdade , passou a falar em ordem e progresso. Não é à toa que, em nosso país, foi nas fileiras do exército – organismo que tem a missão de manter a ordem instituída – que o positivismo mais encontrou guarida.
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Ampliando seus conhecimentos
A verdadeira natureza e o caráter próprio da losoa positiva (COMTE, 1964, p. 274-275)
[...] Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente em cada uma das suas investigações três métodos de losofar, cujo caráter é essencialmente diferente e, inclusive, radicalmente oposto; primeiro o método teológico, depois o método metafísico, e por m o método positivo. Daí três espécies de losoa, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: o primeiro é o ponto de partida necessário da inteligência humana; o terceiro, seu estado permanente e denitivo; o segundo está destinado unicamente a servir de transição. No estado teológico, o espírito humano, ao dirigir essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, das causas primeiras e nais de todos os efeitos que percebe, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, se representa os fenômenos como produzidos pela ação direta e continuada de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as aparentes anomalias do universo. No estado metafísico, que não é no fundo senão uma simples modica ção geral do primeiro, se substituem os agentes sobrenaturais por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personicadas) inerentes aos diversos seres do mundo e concebidas como capazes de engendrar por elas mesmas todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste então em consignar a cada um deles a entidade correspondente. Enm, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibi lidade de obter noções absolutas, renuncia à procura da origem e destino do universo e ao conhecimento das causas íntimas dos fenômenos, para aplicar-se unicamente à descoberta, mediante o emprego bem combinado do raciocínio e da observação de suas leis efetivas, isto é, suas relações invariáveis de sucessão e de semelhança. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, não é agora senão a união estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais que os progressos da ciência tendem cada vez mais a diminuir em número.
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Atividades 1. Segundo sua opinião, vivemos ainda sob a herança do positivismo ou já entramos em uma época pós-positivista?
2. Quanto às principais inuências do positivismo, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). (
)
(
)
(
) O criticismo de Immanuel Kant.
(
)
O progresso das ciências experimentais, como a química e a biologia.
(
)
O historicismo da escolástica tardia.
(
) O socialismo utópico de Saint-Simon.
(
)
A losoa da história de Giambaista Vico. O enciclopedismo francês, com Diderot e D’Alambert, que procurava reunir e catalogar todo o conhecimento losóco e cientíco de seu tempo.
O empirismo inglês.
3. Como vimos, o projeto inicial de Comte é substituir a losoa – com seus conceitos abstratos e muitas vezes desvinculados do mundo concreto – pela ciência, ou me lhor, pelo sistema hierárquico das ciências cujo objeto é a totalidade dos fenômenos empíricos. Ainda há espaço no projeto comtiano para a losoa?
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Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos. Como poderemos nós, os assassinos entre os assassinos, nos consolarmos? O que foi mais santo e poderoso de tudo que este mundo jamais possuiu sangrou até à morte sob nossas facas. Quem removerá este sangue de nós? Com que água nos purificaremos?
(Friedrich Nietzsche)
12.1 Vates e filósofos Toda época tem seus profetas. Por uma rara união de sensibilidade e inteligência igualmente raras (mais a primeira que a segunda, atributo de profetas e poetas), os profetas têm a peculiaridade de ler nas entranhas do tempo em que vivem os augú rios dos dias que não vivem, mas antecipam. Nietzsche foi um desses. Em uma breve e atormentada vida, ele antecipou muitas das discussões que só estariam maduras um século depois. Infelizmente, a maioria desses profetas “nasce” póstuma, como o próprio Nietzsche disse de si. Isto é, o reconhecimento, quando vem, acontece quando eles já estão mortos. Ou quase. Não foi diferente com Nietzsche: quando suas ideias começaram a encontrar interlocutores, sua mente ensaiava o salto definitivo para a loucura. Filosofia da educação
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O escritor Ezra Pound (1885-1972) disse que os poetas são as antenas da raça. Nesse , está mesclado o sentido de profeta e ambos se encontram na palavra vate, com termo, poeta que antigamente se denominavam tanto um quanto outro. O filósofo dificilmente é visto como um vate, pelo menos desde Descartes (1596-1650). Defensor da razão, o filósofo só pode antecipar o futuro como futurólogo, isto é, como alguém que, lendo nas entrelinhas da atualidade, propõe um prognóstico razoável do amanhã, com tendências, probabilidades estatísticas. O vate, ao contrário, é aquele que, com base na intuição, profetiza o porvir e, não raro, ao profetizar, antecipa esse porvir, instaura-o. Nietzsche foi um vate. Não que não tenha sido um filósofo. Como um bom alemão, teve uma sólida formação clássica e, quando foi preciso, soube escrever de maneira sistemática, como o costumam fazer, amiúde de modo aborrecido, os filósofos profissionais. Sim, mas Nietzsche não foi um vate apenas no conteúdo: também o foi na forma. E aqui se revela inteiramente o seu lado poeta. Servindo-se de aforismos, de fragmentos, de poemas, de diálogos, de monólogos, de imagens inusitadas, esse filósofo, mais que outros antes dele, escreveu como um poeta. “Escreve com sangue”, disse ele certa vez, “e descobrirás que sangue é alma”. Sua filosofia é a martelada final que desconjunta todos os belos e grandiosos edifícios filosóficos erigidos pelo idealismo alemão no século XIX. Sua filosofia revela, mais até que a de um outro alemão – Karl Marx (1818-1883) –, que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Se hoje já não há mais nada seguro no que se agarrar, o principal culpado é esse pensador apaixonado por música e poesia. Para compreendermos o século XX, e este século XXI, é inelutável que encaremos esse vate-filósofo que não temeu encarar seus demônios e soltá-los sobre o mundo.
12.2 Uma vida perigosa Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, na casa paroquial do vilarejo de Röcken, na Saxônia, então província do cada vez mais poderoso império da Prússia. Coincidentemente, era o dia do aniversário do imperador, Frederico Guilherme IV, o que fez com que a criança recebesse o nome do monarca. Seu pai, um pastor luterano filho de outro pastor, veio a falecer cinco anos depois, obrigando a família a mudar-se para Naumburgo. Nessa cidadezinha, o futuro crítico radical do cristianismo frequentou várias escolas, recebendo a alcunha de pastorzinho devido ao seu jeito recluso e tímido. Aos 14 anos, foi estudar em um internato na vizinha Pforta. Sua infância e adolescência foram cheias de devoção (ele lia a Bíblia até seus olhos se encherem de lágrimas), solidão, poesia e mortes: além da morte do pai, ele perdeu um irmãozinho logo em seguida e mais tarde a tia e a avó paterna. A enfermidade também foi sua companheira desde cedo – em 1856, sofreu a primeira crise de dor de cabeça, o que o acompanharia pela vida afora. Lia muito: Emerson (1803-1882), Byron (1788-1824), Schiller (1759-1805), Sterne (1713-1768), Humboldt (1769-1859), Goethe (1749-1832), Hölderlin (1770-1843), Novalis
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(1772-1804)1. Em 1860, caiu-lhe nas mãos A essência do cristianismo , de Ludwig Feuerbach (1804-1872), um hegeliano de esquerda que também influenciara Marx. Esse livro abriu as primeiras fissuras em sua até então fervorosa fé. Em Pforta, além disso, Nietzsche recebeu uma sólida formação humanista, adquiriu disciplina e fez algumas amizades importantes. Aos 19 anos, matriculou-se na Universidade de Bonn para estudar teologia e filologia, a fim de seguir a carreira religiosa de seus antepassados. Um pouco depois, porém, desapontando seus familiares, resolveu cursar apenas filologia. No ano seguinte, transferiu-se para a Universidade de Leipzig, para acompanhar os cursos do eminente helenista Ritschl. Esse também foi o ano do seu acachapante encontro com Schopenhauer (1788-1860) por meio de O mundo como vontade e representação : “Levou o livro para seus aposentos e leu avidamente palavra por palavra. ‘Parecia que Schopenhauer estava se dirigindo a mim pessoalmente. Senti seu entusiasmo e parecia vê-lo à minha frente’” (DURANT, 2000, p. 374). Foram anos felizes para o futuro filósofo, de muita bebida e cigarro – que depois ele abandonaria por achar que prejudicavam a mente. Também é dessa época a sua primeira e desastrada experiência em um bordel. Foi o período em que provavelmente contraiu sífilis, doença incurável na época e provavelmente causa ou complicador de seu estado de saúde cada vez mais precário e de sua demência final. Convocado para o serviço militar em 1867, sofreu uma fratura em uma queda de cavalo, sendo dispensado depois de uma longa e dolorosa convalescença. De volta a Leipzig, conheceu Richard Wagner (1813-1883). Nietzsche viu-se arrebatado pelo carisma desse grande compositor, que vivia com pompa e luxo, acompanhado de um séquito de admiradores. Wagner convidou-o a vê-lo mais vezes em sua casa em Triebschen, na Suíça. Dois meses depois, o jovem professor – que recebera o título de doutor sem precisar de tese ou exame em decorrência de seu brilhante desempenho acadêmico – foi nomeado para uma cadeira na Universidade de Basileia, também na Suíça, o que lhe deu condições de frequentar com assiduidade a casa do músico. Em 1870, foi deflagrada a Guerra Franco-Prussiana e Nietzsche obteve permissão das autoridades suíças para se alistar como enfermeiro. Contudo, a saúde voltou a perturbá-lo. Um pouco depois, em uma carta a um amigo, ele confessou: “Entre cada 14 dias e três semanas tenho que passar 36 horas seguidas na cama”. Na guerra, entretanto, descobriu que “a mais forte e elevada vontade de viver não se encontra na luta pela vida, mas na vontade de potência, numa vontade de guerra e dominação”. Todavia, Nietzsche não ficou empolgado pelos feitos militares do império alemão. Em 1872, ele publicou seu primeiro livro, A origem da tragédia, em que defende a tese de que a cultura grega antiga vivia a tensão entre dois princípios básicos e divergentes – o dionisíaco (ligado à exacerbação dos sentidos) e o apolíneo (ligado à razão e ao equilíbrio das formas). Apesar de o livro ter agradado a alguns, a crítica negativa de um eminente fi lólogo lançaria o seu autor em um gradativo ostracismo. Nos cursos que ministrou a seguir, a audiência foi cada vez menor. Por um lado, sua voz tornara-se fraca, quase inaudível para seus alunos, ao mesmo tempo que se sentia entediado com a filologia. 1
Com exceção do naturalista Humboldt, todos os demais são literatos, sobretudo ligados ao romantismo. Filosofia da educação
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Apesar disso, continuava a escrever. Entre 1873 e 1876, redigiu uma série de ensaios polêmicos, reunidos depois sob o título de Considerações extemporâneas, nos quais criticava vários aspectos da modernidade. Dois anos depois, reuniu suas anotações e lançou Humano, demasiado humano , obra em que adota o aforismo2 como meio de expressão, na busca por uma forma de dar vazão às suas inquietações filosóficas. Todavia, durante muito tempo a repercussão de seus livros seria irrisória, o que atormentaria grandemente alguém consciente de haver sido destinado à genialidade.
12.3 Saúde precária e livros vigorosos O ano de 1879 foi um dos piores para Nietzsche: com frequência, terríveis dores de ca beça impediam-no de ler e escrever. Ao longo do ano, ele teve 118 dias de crise grave, sendo que chegou a sofrer mais de 70 horas de dores ininterruptas. Devido a esse estado de saúde, em maio resolveu demitir-se da universidade. Uma pensão anual que lhe foi concedida permitiu que vivesse modestamente até o fim da vida. Abraçou então uma existência errante, sempre em busca do melhor clima para a sua saúde, não passando mais de seis meses na mesma localidade. Viveria assim em lugarejos da Suíça, da Alemanha, da Itália e da França. Em 1881, em uma cidadezinha da Suíça, durante um passeio pelas montanhas, teve a “revelação” do eterno retorno: tudo o que existe já existiu e tornará a existir outra vez. Apesar da tranquilidade que lhe permitiu se entregar às reflexões, ele não se acostumou facilmente à solidão. Tentou se casar, mas nenhuma mulher por quem se interessou lhe correspondeu. Sua saúde foi se deteriorando cada vez mais. Desapontado com a medicina, tomou as rédeas de seu tratamento, observando em seu organismo os efeitos das dietas que inventava. Com esse fito, ingeria toda espécie de drogas em busca de um alívio para suas lancinantes cefaleias, suas dores de cabeça: sais, soporíferos, ópio, haxixe. Ao mesmo tempo, a ideia de suicídio não lhe saía da cabeça. Mas nenhum tormento físico ou psíquico conseguiu impedir o seu trabalho: de 1883 a 1885, Nietzsche redigiu o seu célebre Assim falou Zaratustra , seguido de outros livros em velocidade impressionante, pois ele sabia que dispunha de pouco tempo. Sua obra é um formidável testemunho da força de vontade – ou vontade de potência, na linguagem niet zschiana – sobre as contrariedades, as incompreensões e a enfermidade mais atroz. Entre as obras desse período estão: • Para além do Bem e do mal (1886); • Para a genealogia da moral (1887); • O crepúsculo dos ídolos ou como Filosofar com o martelo (1888); • O anticristo (1888). Em 1889, veio o colapso final. Tomado por convulsões, o filósofo entrou em delírio. Mandou cartas alucinadas para os seus amigos, para a mulher de Wagner, e inclusive para o 2 Em um sentido mais geral, aforismo ou ditado é uma sentença de poucas palavras que explicita um princípio moral. Entre os filósofos, os aforismos são textos curtos e sucintos, em um estilo fragmentá rio e assistemático.
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rei da Itália, assinando ora Dionísio, ora “o Crucificado”. Ele, que sempre combatera a compai xão, é visto abraçado a um cavalo, protegendo-o dos açoites do cocheiro. A 10 de janeiro, foi internado na clínica psiquiátrica de Basileia, sendo logo transferido para a de Jena. No ano se guinte, deixou a clínica, ficando sob os cuidados de sua mãe. Com a morte desta, transferiu-se para Weimar, sob a guarda de sua irmã Elisabeth, casada com um antissemita – e assim seus manuscritos inéditos seriam manipulados para servir às ideias do antissemitismo. Boa parte do tempo Nietzsche permanecia em estado catatônico, quase reduzido a um vegetal. Não reconhecia seus familiares nem seus amigos. Uma vez, ao ver alguém folheando um livro, comentou: “Não escrevi eu também bons livros?”. A partir de 1894, porém, já não falava – apenas berrava sons ininteligíveis enquanto seu rosto ostentava uma aparência de grande serenidade. Pouco depois, só se locomovia em uma cadeira de rodas. Por fim, em 25 de agosto de 1900, morreu Friedrich Nietzsche. Nos seus últimos dez anos, sua obra começou a conquistar a aclamação pública que ele tanto ansiara. Sua fama se difundia mundialmente, de maneira como ele nunca pudera imaginar em seus sonhos mais megalomaníacos. Mas disso ele nunca soube.
12.4 Uma filosofia feita com o martelo A filosofia de Nietzsche é feita a marteladas, isto é, quebrando os ídolos e ícones do passado. Sobre o crepúsculo dos ídolos e a destruição das velhas verdades, ele constrói uma filosofia nova, não mais um sistema com pretensões de abranger o mundo, como o fizeram ou tentaram fazer os grandes filósofos do idealismo alemão, mas uma filosofia feita de lampejos capazes de iluminar as contradições e as fissuras do real. Por isso, para Nietzsche, não se trata mais de alcançar a verdade ou estabelecer as condições do conhecimento, mas sim saber interpretar e avaliar. A finalidade da interpretação é a tentativa da determinação do sentido de um fenômeno, e esse sentido será sempre parcial e fragmentário. A avaliação, por sua vez, tem por meta a determinação do lugar desse sentido no conjunto dos fenômenos. Para Nietzsche, o modelo do filósofo pode ser encontrado entre os pré-socráticos, os quais, segundo ele, não separavam pensamento e vida, que se alimentavam e retroalimentavam mutuamente. Mas o desenvolvimento da filosofia no Ocidente trouxe consigo o fim dessa relação harmônica e, em vez de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, à filosofia outorgou-se a missão de “julgar a vida”, opondo a ela valores pretensamente superiores. No lugar do filósofo crítico de todos os valores instituídos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico – do qual o primeiro representante, conforme Nietzsche, seria Sócrates. Ao estabelecer uma clara distinção entre dois mundos – um sensível e o outro inteligível –, Sócrates teria lançado a pedra fundamental da metafísica, fazendo da vida um objeto a ser avaliado e medido à luz de valores ideais, como a verdade, o bem e o belo. Assim, com Sócrates, inaugurava-se não somente a metafísica ocidental, mas também a época da razão autônoma e do homem teórico, em oposição à antiga tradição extática do período da tragédia. Para Nietzsche, a tragédia grega ostentaria como marca distintiva um conhecimento intuitivo da unidade de todas as coisas, constituindo-se como uma espécie de portal de acesso Filosofia da educação
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à essência do mundo. No entanto, para Sócrates, o teatro trágico não passava de expressão do irracional e do ilógico, representando o agradável, e não o útil, a ponto de pedir a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções “indignas de filósofos”. Portanto, para ele, a tragédia desviaria o ser humano da senda da verdade: “uma obra só é bela se obedecer à razão” . Com tal concepção, estabeleceu-se, segundo Nietzsche, um autêntico antagonismo en tre Sócrates e Dionísio, também chamado Baco, que é o deus do vinho e representa a força dos instintos e da espontaneidade de viver. Enquanto para todos os seres humanos produtivos o instinto é uma energia positiva e criadora (ao passo que a consciência é crítica e ne gativa), em Sócrates se inverteria essa relação: a consciência é criadora e o instinto é crítico. Assim, Sócrates, o “homem teórico”, foi o primeiro antagonista do homem trágico, dando início a uma mudança radical na compreensão do ser humano. Com ele, os seres humanos afastam-se cada vez mais desse conhecimento instintivo na medida em que abandonam o trágico – a mais profunda revelação da natureza da realidade, segundo Nietzsche. Uma vez perdida a ancestral sabedoria da tragédia, resta ao pai da moral ocidental somente uma faceta da vida do espírito: o lado lógico-racional. Dionísio é morto, e foram Sócrates e seus discípulos que o mataram. Por esse motivo, Nietzsche combate implacavelmente a metafísica, retirando-lhe todo e qualquer valor. Para ele, as ideias não são mais verdadeiras ou falsas – são apenas sinais. A única existência real é a aparência e o único juízo permitido é sua interpretação. Afinal, não existe essência e o ser humano está destinado à multiplicidade. Nietzsche, o demolidor das ideias aceitas, retrocede às origens da filosofia e da moral ocidentais – isto é, a Sócrates – para proceder a desconstrução do castelo metafísico do Ocidente.
12.5 O “anticristo” e a luta contra o platonismo do povo Todavia, o combate de Nietzsche não se restringe à herança socrático-platônica, mas estende-se também, e sobretudo, ao cristianismo. Segundo ele, o cristianismo, espécie de versão popular do platonismo, ao transferir a esperança de felicidade do mundo terrestre concreto para o mundo celeste, constituiria uma espécie de metafísica, a qual, à luz das ideias do “além”, julgaria o mundo real como provisório, inautêntico e aparente. Dessa for ma, o cristianismo é a forma mais acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo. Ancorado em dogmas e crenças que proporcionam à consciência fraca um escape da vida, da dor e da luta, ele erige em virtudes de características passivas e negativas, como a resignação, a renúncia e a submissão. Na verdade, são os escravos e os vencidos que inventaram o além para se consolarem das misérias da vida. Idealizaram falsos valores para compensar sua incapacidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes. Cunharam o mito da salvação da alma porque não usufruíam de seus corpos. Forjaram a ideia de pecado porque não podiam participar das alegrias mundanas e da plena satisfação dos instintos da vida.
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Imbuído dessas ideias, Nietzsche investe-se da tarefa de restaurar a vida em sua plenitude e transvalorar os valores falseados pelo cristianismo. Entre outras coisas, ele recupera um sentido esquecido da palavra “bom”. Em latim, bonus significa também “guerreiro”, significação esta que foi obliterada pelo cristianismo. Da mesma maneira, outros significados precisariam ser recuperados, constituindo-se uma espécie de genealogia da moral , que explicaria as origens e variações dos conceitos de bem e mal. Para Nietzsche, os complexos que estariam por trás da moral cristã são o ressentimento, o sentimento de culpa e o ideal ascético, que converteriam a vontade de potência original em vontade de nada, em niilismo. Desse jeito, a vida se transfor maria em fraqueza, a saúde em mutilação, o vigor em torpor. É a vitória do negativo sobre o positivo, da reação sobre a ação. Quando prevalece esse niilismo, alega Nietzsche, a vontade de potência deixa de ser criação e transforma-se em dominação. Assim, no cristianismo, Nietzsche detecta o triunfo da moral dos escravos e dos pusilânimes. Nessa moral tudo é invertido: os fracos são fortes, a vileza é nobreza. O resultado é a hipocrisia e o uso de máscaras nas relações sociais. Cabe ao sábio, ao escavar como um arqueólogo as camadas mais profundas das convenções da sociedade, denunciar a inversão dos valores e revelar que, na verdade, o bem é a vontade do mais forte, do mais capaz, do “guerreiro”. Em outras palavras, o bem é a vontade do porta-voz de um chamado a uma contínua superação dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida essa expressão no sentido de um ser humano que transpõe os limites do humano, é o além do homem. Nesse sentido, o voo da águia, a escalada da montanha e todas as imagens de ascensão encontra das em Assim falou Zaratustra representam a inversão da profundidade “cristã” e a descoberta de que ela não passa de um jogo de superfície. Além do mais, não existe um sentido original ou legítimo por trás das palavras, pois elas próprias, antes mesmo de serem signos, já são interpretações. O trabalho do filósofo, portanto, consiste no problema de descobrir o que é que há para ser interpretado, na medida em que tudo é interpretação, jogo, máscara.
12.6 O super-homem e a nova moral , o último livro de Nietzsche, Zaratustra e Dionísio são aproximados entre Em Ecce homo si, o primeiro sendo concebido como o triunfo da vontade de potência e o segundo – um deus artista, arteiro, totalmente irresponsável, amoral e ilógico – como signo do mundo como von tade. Por outro lado, a tragédia grega, concebida como inteiramente oposta à decadência que se seguiu a ela, situa-se na antinomia entre a vontade de potência, aberta ao futuro, e o eterno retorno, que faz do futuro uma repetição, ainda que esta não signifique uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo. De fato, o eterno retorno nietzschiano é essencialmente seletivo. Para Nietzsche, agora, o verdadeiro oposto de Dionísio não é mais Sócrates, mas o Crucificado. De um lado, temos a afirmação da mudança e da multiplicidade, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dionísio; de outro, a negação da vida e o desejo de vingança. Dessa forma, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em vez do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou inútil, o ser humano vislumbra no eterno Filosofia da educação
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retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância de nascimento e morte, júbilo e luto, o bem e o mal. O eterno retorno, assim, ofereceria uma saída para fora da mentira bimilenar do cristianismo, e a transvaloração dos valores traria consigo o super-homem que se situa além do próprio homem. É importante, porém, entender o que Nietzsche quis dizer exatamente com esse termo. Ora, para ele, o super-homem – o além do homem – não é um ser cuja vontade seja um mero desejo de domínio. Se a vontade de potência for entendida simplesmente como um desejo de domínio, faz-se dela algo dependente dos valores dominantes. Dessa forma, ignora-se sua verdadeira natureza, a qual é a energia que impulsiona todas as avaliações e cria os novos valores. Por esse motivo, a vontade de potência impele o super-homem para além do bem e do mal, libertando-o, ao mesmo tempo, dos produtos de uma cultura em decadência. Sua moral é, assim, oposta à moral do escravo e do rebanho, a qual, por seu turno, é a moral da compaixão, da doçura feminina e cristã. O forte é aquele que soube operar a transmutação dos valores, fazendo triunfar o afirmativo da vontade de potência. Desse modo, Zaratustra, o profeta do super-homem, é a afirmação pura, a afirmação que leva a negação ao seu último nível, tornando-a uma ação, uma instância a serviço do ato criador.
12.7 Nietzsche e a educação Na área da educação, Nietzsche, que foi por um tempo professor universitário, não deixou de lançar também suas setas venenosas. Ele foi especialmente crítico do sistema de ensino superior alemão. Ainda na esteira do hegelianismo – o primeiro grande sistema filosófico ancorado na ideia de história –, as universidades alemãs privilegiavam o ensino da história. Mas, para Nietzsche, o problema residia justamente aí, no conceito de cultura histórica que subjazia a esse ensino. Um estudo da história que não serve para engendrar vida e criar novos valores só é útil aos interessados em manter a ordem estabelecida. Ou seja: o ser humano só deve se utilizar da história quando ela estiver a serviço da vida. Ora, para Nietzsche, confundia-se cultura com cultura histórica. Por isso a tão exuberante erudição alemã tornara-se um falso saber, sobretudo por tolerar a contradição entre cultura e vida. A cultura, na opinião do filósofo, só pode se desenvolver a partir das necessidades autênticas da vida. Ao contrário, o excesso de informação histórica, a ruminação incessante do passado, a cultura da memória são forças que agem no sentido de separar cultura e vida. Quando a história atua a serviço do passado, torna-se na verdade “coveira do presente”, adverte Nietzsche. Não se trata, naturalmente, de abolir o ensino da história, mas de dosá-lo. Absorvida em proporções adequadas, a história não envenena a vida nem amarra o presente ao passado. O artista, por sua vez, não deixa que a massa de informações históricas o submerja, porque ele sabe que isso destruiria o seu poder criador. Embora o artista busque modelos e inspiração no passado, toda obra de criação é radicalmente nova. Todavia, o erudito serve-se da história para remover a força do presente. Na verdade, segundo Nietzsche, por trás da cultura histórica vigora uma concepção teológica, ainda que “camuflada”, herdada da
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Idade Média. O olhar para trás prediz de certa forma o fim da vida, o último ato da tragédia. Afinal, é bom conhecer o passado porque é tarde demais para se fazer alguma coisa – é esse, de certa forma, o pensamento dominante. Todo esse pessimismo lança uma sombra sobre a educação e a cultura. Mas não basta despojar o ensino alemão de seu culto à história, é necessário existir uma tarefa positiva, construtiva. Mas, se grande parte dos professores alemães se utiliza da história para transformar os alunos em indivíduos apenas capazes de ganhar dinheiro ou servir o Estado, onde encontrar educadores que possam colocar o ensino da história a serviço da vida? Para tanto, seria preciso começar do zero. Uma nova geração deveria ser formada, com novos hábitos e uma nova natureza. Ora, as pessoas agem mais por convenção do que por convicção. Para li bertar-se da moral do rebanho, é preciso que elas triunfem sobre si mesmas, sobre as noções de cultura que lhes foram inculcadas. Nessa renovação, para Nietzsche, é imprescindível a formação artística, não apenas as informações sobre a arte e a história da arte. Pois, efetivamente, em uma época em que vida e cultura andam dissociadas, a arte tem uma função primordial: afirmar a vida em sua totalidade.
12.8 Nietzsche está vivo Nietzsche morreu duas vezes. Uma em 1889, quando sua mente abandonou de vez o mundo da racionalidade e da lógica, e outra em 1900, quando o seu corpo sucumbiu diante do peso de décadas de atrozes sofrimentos físicos. Todavia, entre uma data e outra sua obra adquiriu vida própria e ele veio a se tornar um dos filósofos mais lidos e discutidos de todos os tempos. Sem fundar uma escola propriamente dita, como Marx, suas ideias e conceitos não se restringiram ao ambiente acadêmico nem aos especialistas. E o fato de ela ter sido escrita basicamente em forma de aforismos significa que ela também podia ser lida por um público mais amplo – ao contrário da maior parte da filosofia de seus conterrâneos, que sempre pareceram experimentar um estranho prazer em escrever de forma ilegível. Eis finalmente uma filosofia que se pode ler, cintilante, fulminante – mas não necessariamente clara. Como os oráculos, ela pode ser interpretada de diversas maneiras. E foi. Aliás, não poucas filosofias no mundo foram tão distorcidas quanto a de Nietzsche. Os an tissemitas, e depois os fascistas, começaram a pinçar pequenos trechos de sua obra e a lê-los fora do contexto. Por isso, sua filosofia foi durante muito tempo desacreditada. Hoje se conhece os bastidores dessa tentativa de manipulação: quem mergulhou no delírio absoluto foi o nazismo, não a filosofia de Nietzsche. Sua filosofia, malgrado sua aparência muitas vezes alucinatória, permanece estranha mente lúcida. Foi a primeira manifestação vigorosa de repúdio ao positivismo e à idolatria da razão e da técnica. Com efeito, a segunda metade do século XIX assinala a apoteose da crença na ciência. É o domínio de Apolo, o severo deus da racionalidade, da justa medida e da ordem. Contra um mundo todo racionalizado e controlado, Nietzsche prefere as forças obscuras de Dionísio. Contra a razão de Apolo, ele brande, antecipando Freud, as razões de Dionísio. Contra o império da ordem, as forças libertárias da arte. Filosofia da educação
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E quando, na década de 1980, começou-se a se articular o pensamento que recebeu o rótulo de pós-moderno, cuja matriz era justamente uma crítica aos fundamentos racionalis tas da modernidade, o principal inspirador que seus expoentes foram buscar foi Nietzsche. Ademais, boa parte dos pensadores do século XX são devedores de Nietzsche: Adorno (19031969), Heidegger (1889-1976), Sartre (1905-1980), Foucault (1926-1984), Lyotard (1924-1998), Derrida (1930-2004). E Nietzsche faz parte da tríade de nomes – os “mestres da suspeita”, no dizer de Paul Ricoeur – que forjaram o espírito do século XX: Marx, Freud e ele. Dos três, Nietzsche parece o mais habilitado para uma longa vida no século XXI.
Ampliando seus conhecimentos Apresentamos aqui uma seleção de frases e texto de Nietzsche.
Citações-chave (NIETZSCHE, 1997, p. 59-66)
• Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos. (Aurora , livro IV, 415) • As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras. (Humano, Demasiado Humano , vol. 1, seção 9, 483) • Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que real mente sabem. (Crepúsculo dos Deuses; Máximas e Setas, 2.1) O que nos torna heroicos? – Ir ao mesmo tempo para além da sua maior dor e da sua maior esperança. Em que tens fé? – Nisto: em que é necessário determinar de novo o peso de todas as coisas. O que diz a tua consciência? – Deves transformar-te no homem que és. Onde se encontra o teu maior perigo? – Na piedade. O que amas nos outros? – As minhas esperanças. A quem chamas mau? – Àquele que quer envergonhar sempre. Que encontras de mais humano? – Poupar a vergonha a alguém. Qual é a marca da liberdade realizada? – Não mais corar de si próprio. (A Gaia Ciência, livro III, 268-275)
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Atividades 1. Niesche foi um vate, isto é, um misto de profeta e poeta. Ele soube antecipar, de uma maneira mais intuitiva que sistemática, muito das discussões e dos problemas da atualidade. Cite outros nomes que apresentaram essas mesmas características (não é necessário apontar apenas lósofos, podem ser também escritores, poetas, letristas etc.).
2. Quanto ao pensamento de Niesche, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). (
)
Assim como Karl Marx, Niesche foi um dos mais conhecidos hegelianos de esquerda.
(
)
A losoa de Niesche foi primeiramente inuenciada pela de Schopenhauer.
(
) A “vontade” de Schopenhauer inverte de sinal, tornando-se positiva e transformando-se em “vontade de potência” em Niesche.
(
) A ataraxia (imperturbabilidade) é um dos principais ideais perseguidos por Niesche.
(
) Suas ideias influenciaram Adorno, Heidegger, Sartre, Foucault, Lyotard, Derrida, entre outros.
(
)
O ateísmo radical de Niesche está na base do materialismo positivista de Auguste Comte.
3. Para Niesche, o modelo do lósofo pode ser encontrado entre os pré-socráticos. Por quê?
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Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não para de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo que nós chamamos progresso.
(Walter Benjamin) Filosofia da educação
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13.1 A herdeira do facho Após a ruína da cosmovisão medieval, o pensamento ocidental vai encontrar na França do século XVII o principal expoente de sua refundação: René Descartes (1596-1649). Um pouco depois, a vanguarda do pensamento europeu migra para o norte e, ao longo da primeira metade do século XVIII, os empiristas ingleses dão a tônica. Todavia, na segunda metade do mesmo século, novamente a França, com o Iluminismo, é o centro do cenário. Mas já por essa época, ali pelo final do século XVIII, por todo o XIX e em boa parte do XX, a pole position da filosofia esteve com a Alemanha. Basta citar o nome de alguns filósofos para nos darmos conta dessa inconteste supremacia: Immanuel Kant (1724-1804), Georg Hegel (17701831), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Até a primeira metade do século XX essa supremacia não foi obscurecida nem mesmo pelas duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com duas fragorosas derrotas da Alemanha, nem pela barbárie nazista. Dois grandes grupos caracterizam esse período. O primeiro, mais eclético, gira em torno da fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938) e do existencialismo de Martin Heidegger (1889-1976). O segundo, que surgiu mais ou menos ao mesmo tempo, é representado por uma plêiade de pensadores oriundos da chamada Escola de Frankfurt, cuja poderosa influência continua vigente em nossos dias. Herdeira da melhor tradição marxista, à qual se somam outros influxos – como os de Nietzsche e Freud –, a Escola de Frankfurt é, com efeito, a última glória da filosofia alemã, irradiando o seu crivo analítico sobre áreas até então não plenamente exploradas, como a cultura de massas, o comportamento e a ideologia contemporâneos. Todavia, a Alemanha em que nasceu e se desenvolveu a Escola de Frankfurt não é o mesmo país que assistiu às carreiras de Marx ou Nietzsche. Unificada em 1871, sob a tutela da Prússia (vitoriosa na Guerra Franco-Prussiana), a Alemanha da primeira metade do sé culo XX é um país humilhado pela derrota na Primeira Guerra Mundial e traumatizado pela malograda revolução proletária de 1918. É também uma Alemanha que viu a ascensão e as consequências de um espectro muito mais tenebroso: o nacional-socialismo de Adolf Hitler, no qual estava embutido o projeto expansionista e de limpeza étnica do III Reich – o império alemão sob o governo nazista (1933-1945).
13.2 Uma escola crítica A inflação era gigantesca e tumultos sociais conflagravam a Alemanha quando, no dia 22 de junho de 1924, no auditório da Universidade de Frankfurt, foi fundada aquela que viria a ser conhecida como Escola de Frankfurt. Cogitara-se o nome de Instituto para o Marxismo, mas – seja pelo anticomunismo dominante nos meios acadêmicos alemães da época, seja pelo fato de seus colaboradores não adotarem a ortodoxia marxista – preferiu-se a denominação de Instituto de Pesquisa Social. Somente na década de 1950, e mesmo assim com reservas, a agremiação seria chamada de Escola de Frankfurt.
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A iniciativa foi de Félix Weil, um intelectual de apenas 25 anos que conseguiu convencer o pai, um abonado negociante judeu que fizera fortuna na Argentina, a financiar as atividades da instituição. Vinculado ao Ministério da Educação e Cultura da Prússia, o Instituto de Pesquisa Social funcionaria como uma espécie de anexo da Universidade de Frankfurt, mas tendo garantida a sua autonomia total. Além de um edifício próprio, o Instituto recebe ria uma dotação anual de 120 mil marcos dos fundos de Herman Weil, capitalista e pai do idealizador. Sem dúvida alguma, a inspiração para a abertura do Instituto de Pesquisa Social veio do Instituto Marx-Engels, de Moscou, fundado havia quatro anos na recém-criada União Soviética. O primeiro diretor do instituto frankfurtiano foi o economista austríaco Carl Grunberg. Entre 1931 e 1946, Max Horkheimer (1895-1973) assumiu a direção e, nesse período, desen volveu-se aquilo que ficou conhecido como teoria crítica , comumente associada à Escola de Frankfurt. O órgão do instituto, a sua publicação oficial, que era conhecida como Arquivos Grunberg , passou a se chamar Revista para a Pesquisa Social , e sua ênfase mudou da economia para a filosofia. Porém, a maioria dos números dessa revista reformulada teve sua edição no exílio devido à ascensão do nazismo, que obrigou seus membros – quase todos de ascen dência judaica e praticamente todos de esquerda – a uma diáspora, primeiramente na Suíça e na França e depois nos Estados Unidos. Aproximando Marx e Freud, e às vezes trazendo Heidegger, em um vasto empreendimento de interdisciplinaridade e síntese, praticamente não houve fenômeno social que não despertasse o interesse da Escola. Tudo foi abordado: filosofia, economia, sociologia, psicanálise, cultura de massas, ideologia, estética, literatura, cinema, música, os efeitos da tecno logia, as novas feições do capitalismo, o totalitarismo, o fascismo, a repressão sexual e assim por diante. No entanto, a despeito do pano de fundo marxista e neo-hegeliano de que se diziam herdeiros, contribuição mais duradoura dos pensadores da Escola de Frankfurt foram questionamentos de nítida influência heideggeriana feitos às esperanças de emancipação despertadas pelo Iluminismo e também a desconfiança em relação à racionalidade em geral. Testemunhas da devastação provocada pela tecnologia durante as duas grandes guerras e da barbárie totalitarista, os frankfurtianos foram os primeiros teóricos de esquerda a buscar no Iluminismo, ou na perversão do Iluminismo, a origem dos problemas contemporâneos. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com o retorno de alguns membros à Alemanha, a Escola voltou a funcionar em sua cidade de origem, já sob a direção de Theodor W. Adorno (1903-1969). Jürgen Habermas (antigo assistente de Adorno e ainda atuante) e Axel Honneth são os frankfurtianos de maior destaque atualmente. A amplitude da influência da Escola de Frankfurt continua sendo imensa. Uma série de domínios – da filosofia às ciências sociais, passando pela psicanálise e pelo direito, catego rias sintetizadas por Horkheimer, Adorno, Herbert Marcuse (1898-1979), Walter Benjamin (1892-1940) e Habermas – ainda são pertinentes e profícuos. Dificilmente outro empreendi mento intelectual do século XX tenha gozado de um prestígio tão duradouro. E, se levarmos em conta o aparecimento de uma nova geração de intelectuais frankfurtianos, como o já citado Axel Honneth, podemos esperar o desenrolar de novos capítulos dessa história.
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13.3 Os momentos da teoria crítica A construção teórica da Escola de Frankfurt pode ser didaticamente dividida em três períodos: 1. O primeiro deles é formado pelos escritos da década de 1930, nos quais, mais próximos do marxismo clássico, Adorno, Benjamim, Horkheimer e Marcuse procuraram responder à questão sobre em que condições seria possível uma teoria materia lista da sociedade. Trata-se, portanto, de um período marcado por preocupações acerca da teoria do conhecimento. Ensaios como Materialismo e metafísica (...), de Horkheimer, O conceito de história natural (...), de Adorno, Antologia de Hegel , tese de doutorado de Marcuse, e Alguns temas baudelairianos (...), de Benjamin, são obras que se destacaram nesse período. 2. Um segundo momento contém trabalhos da década de 1940 e sua característica fundamental é o gradual afastamento da teoria marxista da revolução, com o consecutivo desaparecimento do tema da luta de classes e a consequente substituição da crítica da economia política pela crítica da civilização técnica. Sob o impacto do nazismo e da Segunda Guerra, a teoria crítica procuraria a genealogia do fenôme no totalitário, não apenas na crise econômica, política e social, ou no “erro” tático ou estratégico das forças de esquerda alemãs, mas, de maneira original, em uma questão metafísica: é a própria noção de razão e de racionalidade a responsável pela produção do irracionalismo fascista. Essa razão funda-se na hostilidade ao prazer, na renúncia à felicidade, no “ascetismo do mundo interior”, no domínio e controle da natureza exterior e das paixões humanas. A natureza, assim reprimida, vinga-se na forma da destrutividade social. É desse período o clássico Dialética do esclarecimento (1947), de Horkheimer e Adorno. 3. A partir dos anos 1950, a teoria crítica rompe de vez com as esperanças revolu cionárias de seu primeiro momento, encaminhando-se para a análise da socie dade unidimensional, em Marcuse, e da sociedade administrada, em Adorno e Horkheimer. Esse período é marcado pela reflexão acerca do desaparecimento do sujeito revolucionário em sentido marxista: rompe-se a fé na unidade entre teoria e práxis – o pensamento do intelectual radical e a prática libertadora do proletariado. Este foi integrado primeiramente pelo nazismo, dissolvido no stalinismo e, posteriormente, na sociedade tecnológica unidimensional. Daí derivam as reflexões frankfurtianas a respeito das tendências do mundo homogêneo, uniforme, sem oposição, que suprime os indivíduos ao liquidar sua autonomia e a liberdade de sua ação histórica.
13.4 Teoria crítica
teoria tradicional
versus
O nome de teoria crítica para o pensamento produzido pela Escola de Frankfurt deriva de um célebre ensaio programático de Horkheimer, de 1937, intitulado Teoria tradicional e
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teoria crítica. Como o título sugere, nesse ensaio Horkheimer aponta a diferença fundamental de dois métodos gnoseológicos, dois métodos de conhecimento. O primeiro, a teoria tradicional, tem sua base no método cartesiano, o qual [...] organiza a experiência à base da formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual. [...] A gênese social dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma consideradas exteriores. (HORKHEIMER, 1968, p. 163)
A teoria crítica da sociedade, por sua vez, fundamenta-se na economia política e “tem como objeto os homens como produtores de todas as suas formas históricas de vida. [...] O que é dado não depende apenas da natureza, mas também do poder do homem sobre ele” (HORKHEIMER, 1968, p. 163). Nesse sentido, a teoria crítica apresenta, por meio da constante autocrítica da razão, um posicionamento crítico em relação à ciência e à cultura, oferecendo uma reorganização política da sociedade de modo a se obter a superação do que os frankfurtianos denomina ram crise da razão . Para eles, a razão, longe de solução automática, era parte do problema, como elemento de manutenção do status quo. Assim, era preciso uma reflexão sobre essa racionalidade. Dessa forma, eles efetuam uma severa crítica da fragmentação da ciência em uma série de setores na tentativa de explicação da sociedade. Ao contrário, ao propor a dialética como método, eles almejam uma investigação analítica dos fenômenos estudados, relacionando esses fenômenos com as forças sociais que os provocam. Assim, as ciências sociais – cujas pesquisas não vão além de uma mera coleta e classificação de dados – não estariam aptas a apreender a dinâmica do contexto social em todas as inter-relações.
13.5 Razão instrumental e indústria cultural Em meio às numerosas contribuições da Escola de Frankfurt, importa frisar duas: os conceitos de razão instrumental e indústria cultural. Entre outras coisas, os frankfurtianos denunciaram o que seria uma moderna fetichização da razão, mostrando que, conforme a ciência e a técnica passaram a ser decisivas na forma de condução da vida humana, elas também passaram a se constituir instrumentos de dominação. Assim, a razão torna-se instrumento de dominação da natureza, com um espírito e um objetivo não muito diferentes das antigas práticas mágicas. A razão instrumental que os frankfurtianos como Adorno e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exemplo, o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico: “a Natureza atormentada”. Atormentar a Natureza é fazê-la reagir a condições
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Em um segundo momento, a razão instrumental já não é mais utilizada somente para a conquista da natureza, mas também passa a estabelecer as formas de organização social. Segundo Horkheimer e Adorno, o impulso para a dominação nasce do medo da perda do próprio eu – medo que se revela em toda situação de ameaça do sujeito em face do desconhecido. Nesse sentido, o mito e a ciência têm origem comum: controlar as forças desco nhecidas da natureza, a multiplicidade incontrolada do sensível. Para isso, o mito tem um procedimento peculiar na medida em que o sacerdote da tribo mimetiza gestos de cólera ou apaziguamento com relação às potências naturais. Um diálogo comunicativo existia, ainda, entre a natureza e os homens, que se permitiam estar assustados por forças desconhecidas. Que fez a ciência moderna? Transformou a natureza em um “gigantesco juízo ana lítico”, obrigou-a a falar a linguagem do número, matematizando-a, formalizando-a. Em outras palavras, se o Iluminismo pretendeu desmistificar a natureza, desenfeitiçá-la pelo recurso da razão explicativa e dominadora dos fenômenos naturais, o resultado foi, segundo Adorno e Horkheimer, “uma triunfante desventura” (MATOS, 1995, p. 45-46). Embora irracional sob o ponto de vista dos valores humanos, toda forma de dominação (e, nos casos extremos, o totalitarismo) acaba sendo justificada pelos ideais da cientificidade. Por isso, à medida que a ciência se torna instrumental, deixa de ser utilizada como via de acesso ao conhecimento e se converte em instrumento de dominação de uma classe sobre outras. Outro conceito posto em circulação pelos frankfurtianos foi o de indústria cultural. A expressão foi cunhada por Adorno e Horkheimer na obra Dialética do esclarecimento (1947), em oposição ao que se concebia como cultura de massas , para se referir aos produtos culturais veiculados nos modernos meios de comunicação. Com efeito, para eles tais produtos não nascem espontaneamente do povo. Antes, são especialmente programados para o consumo das massas, dessa maneira se estabelecendo uma estreita relação entre produção e consumo, o que faz com que seus bens se assemelhem a qualquer outra mercadoria industrial. Por isso, para a indústria cultural é indiferente se esse produto é de conteúdo erudito ou popular, desde que, como em qualquer processo industrial, seja dirigido para o consumo massivo. Eis como Adorno sintetiza o conceito: Indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumido res. [...] Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos seguindo um plano, produtos adaptados ao consumo. [...] A indústria cultural abusa da consideração com relação às massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade destas, que ela toma como dada a priori e imutável. (ADORNO, 1986, p. 92)
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A apropriação da arte pela indústria cultural e sua consequente transformação em mercadoria aponta para um consumidor forjado no próprio sistema industrial. Servindo-se tanto da “arte superior” quanto da “arte inferior”, a indústria cultural retira-lhes o sentido ori ginal para tornar a primeira mais acessível, por meio de uma estandardização, e a segunda mais “limpa”, purificada de suas excessivas relações com as classes populares.
13.6 Principais expoentes 13.6.1 Walter Benjamin e a melancolia Walter Benjamin é a figura mais expressiva e enigmática da Escola de Frankfurt, tanto por sua obra – em que vibram as centelhas do gênio – quanto por sua vida, abreviada de maneira trágica. Filho de uma abastada família de comerciantes judeus, Benjamin nasceu em Berlim, em 1892. Desde a adolescência, manifestou simpatia pelas ideias socialistas, es crevendo artigos para o órgão de um movimento juvenil de esquerda, ao mesmo tempo em que também era influenciado pelas ideias de Nietzsche. Seu amigo Gerschom Scholem, que o conheceu em 1915 e de quem se tornou muito próximo – quer pelo gosto comum pela arte, quer pelo interesse pela religião judaica –, traçou um impressionante retrato espiritual de Walter Benjamin ao relatar que nessa época ficou impressionado com a profunda sensação de melancolia de que o amigo parecia estar permanentemente possuído. Em 1917, ao casar-se, Benjamin mudou-se para Berna, na Suíça, em cuja universidade apresentou uma dissertação intitulada O conceito de crítica de arte no romantismo alemão . Três anos depois, já de volta a Berlim, sobreviveu como crítico literário e tradutor, publicando em , do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867). 1921 uma tradução dos Quadros parisienses No ano seguinte, foi convidado a publicar As afinidades eletivas de Goethe , seu primeiro grande ensaio na revista Novas Contribuições Alemãs , convite feito pelo poeta e dramaturgo Hugo von Hofmannsthal (1874-1929), que dirigia esse periódico. Em 1928, Walter Benjamin viu truncadas suas esperanças de uma carreira acadêmica quando a Universidade de Frankfurt recusou sua tese As origens do drama barroco alemão por considerá-la pouco convencional. Então, Benjamin passou a se dedicar mais do que nunca à crítica em jornais e às traduções, escrevendo ainda numerosos ensaios. Foi nessa época que verteu para o alemão o clássico Em busca do tempo perdido , do francês Marcel Proust (18711922). Além disso, é desse período um grande projeto de filosofia da história, cujo título seria Paris, capital do século XIX, e que, no entanto, nunca completaria. A década de 1930 lhe trouxe não poucos infortúnios: a morte dos pais, a separação de sua esposa e a implementação do totalitarismo nazista. Sob o domínio de Hitler, porém, ainda conseguiu publicar alguns trabalhos menores, recorrendo a pseudônimos. Depois de uma estadia na Itália, em 1935 refugiou-se em Paris, onde os membros emigrados do Instituto de Pesquisa Social o acolheram, dando-lhe condições para produzir alguns de seus mais importantes trabalhos, como A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (1936).
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Em 1940, o ano da sua morte, escreveu o seu último texto, Teses sobre o conceito de história , considerado por alguns o texto mais revolucionário desde Marx. Com a invasão da França pelas tropas nazistas, em 1940, Walter Benjamin tentou fugir para a Espanha, com a intenção de embarcar para os Estados Unidos, onde já se encontra vam muitos companheiros do Instituto de Pesquisa Social. Todavia, em 27 de setembro, na fronteira franco-espanhola, foi preso pela polícia da cidade. Informado de que seria entregue à Gestapo (Polícia Secreta do Estado), ele – cujo cérebro era um vulcão e que seguidas vezes tinha crises depressivas – engoliu uma cápsula de cianureto que trazia consigo. Quando chegou a notícia de que podia seguir viagem, o veneno já tinha cumprido a sua função.
13.6.2 Herbert Marcuse e a rebelião juvenil Também de origem judaica, Herbert Marcuse nasceu em Berlim em 1898. Participou de um conselho de soldados durante a revolução de Berlim, em 1918, experiência que o marcaria profundamente. Estudou filosofia em Berlim e depois em Friburgo, onde também estudou literatura alemã contemporânea e economia política. Em 1922, defendeu a tese O Romance de arte alemão , inspirado por Hegel e pelo Georg Lukács (1885-1971) da fase pré-marxista. Casou-se em 1924 e no ano seguinte publicou seu primeiro trabalho, um levantamento bibliográfico sobre Friedrich von Schiller (1759-1805). Em 1927, obteve o doutorado em filosofia com uma tese sobre Hegel – essa tese, reformulada, seria publicada com o título de A ontologia de hegel e o fundamento de uma teoria da historicidade (1932) e lhe possibilitaria ser assistente de Heidegger, em Friburgo. Com a ascensão do nazismo, Marcuse migrou para a Suíça em 1933 e no ano seguinte foi para os Estados Unidos, começando então um período de profícuo trabalho com Adorno e Horkheimer, também exilados na América. Dessa época resultou uma grande quantidade de ensaios que constituem o germe das ideias que Marcuse desenvolveria mais tarde: o incontrolado incremento da tecnologia, o racionalismo dominante nas sociedades industriais e a consequente repressão às liberdades individuais, acompanhados do aniquilamento das potencialidades humanas. Em vez do proletariado tradicional, cooptado tanto pelo fascismo quanto pelo stalinismo, Marcuse vislumbra nos novos excluídos do sistema, nas minorias étnicas e nos outsiders1 a nova vanguarda revolucionária. Durante a conflagração mundial, Marcuse colaborou para o esforço de guerra trabalhando no Departamento de Estado americano. Em 1950, quando Adorno e Horkheimer retornaram à Alemanha, Marcuse preferiu permanecer nos Estados Unidos, lecionando ciência po lítica na Universidade Brandeis. São desse período dois dos seus mais representativos livros: , em que funde marxismo e pisicanálise para propor uma revolução 1. Eros e civilização tanto social quanto sexual; 2. Marxismo soviético , em que critica o marxismo oficial. 1 Outsiders (“aquele que está do lado de fora”) são indivíduos que não se inserem em qualquer gru po determinado, assim apresentando uma identidade marginal.
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Assim, seu nome começou a ser conhecido nos meios de esquerda e sua fama aumentou com a publicação de O homem unidimensional (1964), atacando violentamente as característi cas repressivas e irracionais do Estado pós-industrial moderno, o welfare state ou Estado do bem-estar social, por ele considerado warfare state , Estado beligerante. Em 1967, Marcuse passou uma temporada na Alemanha em um curso na Universidade Livre de Berlim e assim conheceu Rudi Dutschke, o famoso ícone estudantil alemão, que se tornou muito próximo do velho intelectual, fundamentando suas lutas sobre as ideias de Marcuse. Com essa ligação, rapidamente o nome do professor ganhou projeção internacional – a qual só se acentuaria com as revoltas do mês de maio de 1968, em Paris. Em junho de 1968, Marcuse retornou a Berlim, onde os estudantes se encontravam amotinados na Universidade Livre. Não foi um encontro tranquilo e Herbert Marcuse saiu do anfiteatro da universidade debaixo tanto de aplausos quanto de vaias. De volta aos Estados Unidos, Marcuse passou a lecionar na Universidade da Califórnia, sempre na cadeira de filosofia e ciência política. Líder da juventude revolucionária (embora esta muitas vezes o queria ainda mais radi cal), chegou a ser ameaçado de morte pela Ku Klux Klan 2 , que o chamou de “asqueroso cão comunista”. Mas a imagem de Marcuse que é veiculada na imprensa com mais frequência é a de um senhor tranquilo, com roupa informal, conversando amigavelmente com seus alunos. Morreu em 1979.
13.6.3 Horkheimer e a razão instrumental Max Horkheimer nasceu em Stuttgart, em 1895, filho de um rico industrial judeu. Por meio de seu amigo Friedrich Pollock (1894-1970), aproximou-se dos demais intelectuais junto aos quais fundaria, em 1924, o Instituto de Pesquisa Social. Em 1931, sucedendo Carl Grunberg, tornou-se diretor da instituição. Três anos depois, contudo, com a ascensão do nazismo, foi obrigado a buscar asilo, como os demais colegas. Transferiu-se então para os Estados Unidos, onde lecionou na Universidade de Columbia até o final da década de 1940, quando retornou a Frankfurt com o objetivo de reorganizar o Instituto. A maior parte dos escritos de Horkheimer encontra-se nas páginas da Revista de Pesquisa Social. Entre os mais importantes estão: • Inícios da filosofia burguesa da história (1930); • Um novo conceito de ideologia (1930); • Materialismo e metafísica (1930); • Materialismo e moral (1933); • O problema da verdade (1935); • Teoria tradicional e teoria crítica (1937).
2 Fundada no final do século XIX, nos Estados Unidos, a Ku Klux Klan é uma organização de extrema direita, racista, que prega a supremacia dos brancos e a segregação dos negros. Filosofia da educação
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Este último e antológico ensaio marca uma aproximação maior com o marxismo, já que Horkheimer, nem antes nem depois, manifestaria afinidade intensa com essa escola, ao contrário de seus companheiros do Instituto. Em 1955, veio a lume seu clássico Eclipse da razão , em que ele faz um severo diagnóstico do pensamento ocidental à luz da barbárie da Segunda Guerra. É quando aparece de manei ra articulada e clara, pela primeira vez, a crítica da razão instrumental. Horkheimer faleceu em Nuremberg, em 1973.
13.6.4 Adorno e a dialética negativa Filho de um próspero atacadista de vinhos (judeu convertido ao protestantismo) e de uma cantora lírica italiana, Theodor Wiesengrund-Adorno nasceu em 1903, em Frankfurt, onde realizou os seus primeiros estudos. Na adolescência, estudou música com uma meia-irmã por parte de mãe e com o compo sitor Bernhard Seklese. Aos 18 anos, ingressou na Universidade Johann Wolfgang Goethe, na sua cidade natal, cursando as disciplinas de filosofia, música, psicologia e sociologia. Aluno brilhante, concluiu rapidamente seus estudos, em 1924, com o trabalho A transcendência do objeto e do noemático na fenomenologia de Husserl. Nessa mesma época, travou conhecimento com Walter Benjamin e Max Horkheimer. Em 1932, escreveu o ensaio A Situação Social da Música , tema sobre o qual ainda se debruçaria muitas outras vezes. No ano seguinte, foi publicada sua tese sobre Kierkegaard. Com a ascensão dos nazistas ao poder, Adorno foi obrigado a refugiar-se na GrãBretanha, onde lecionou na Universidade de Oxford, permanecendo nela até 1937, quando se transferiu para os Estados Unidos. Além da Dialética do esclarecimento (1947), escrita em parceria com Horkheimer, foi tam bém nos Estados Unidos que Adorno realizou, em cooperação com um grupo de pesquisadores, um estudo considerado posteriormente como um modelo de sociologia empírica: A personalidade autoritária (1950). Na década de 1950, Adorno pôde retornar à sua terra natal e reorganizar o Instituto de Pesquisa Social junto com Horkheimer. Com a aposentadoria deste, Adorno tornou-se o seu novo diretor. Entre as obras desse período destacam-se: • Para a metacrítica da teoria do conhecimento : estudos sobre husserl e as antinomias fenomenológicas (1956); • a trilogia Ensaios de literatura (1958-1965); • Dialética negativa (1966); • Teoria estética (1968); • Três estudos sobre Hegel (1969). A filosofia de Adorno, uma das mais complexas do século XX, fundamenta-se na dialética, por meio da qual ele tenta desvelar as sombras do Iluminismo. A razão instrumental, segundo ele, bloqueou a emancipação do ser humano ao se colocar a serviço de
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uma civilização obcecada pela técnica. Segundo Adorno, como os filósofos não lograram transformar o mundo, cabe ainda tentar interpretá-lo. E foi o que fez esse severo professor alemão, servindo-se de uma erudição avassaladora e das armas de uma dialética negativa. Embora crítico do marxismo oficial, Adorno nunca se afastou de seu horizonte de irradia ção. Faleceu em 1969.
13.6.5 Habermas e a razão comunicativa Jürgen Habermas nasceu em Düsseldorf, na Alemanha, em 1929. Aos 25 anos, licenciou-se com O absoluto e a história , uma tese sobre Schelling (1775-1854). Entre 1956 e 1959, foi assistente de Adorno no Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt. Em 1961, publicou a famosa obra Entre a filosofia e a ciência: o Marxismo como crítica . Depois de ter lecionado filosofia e sociologia na Universidade de Frankfurt, transferiu-se para Nova Iorque, tornando-se professor da New York School for Social Research. Em 1972, transferiu-se para Starnberg, na Baviera, assumindo a direção do Instituto Max-Planck. Já em 1983 voltou a lecionar na Universidade de Frankfurt, onde se aposentou em 1994. Todavia, Habermas continua atuante, por meio de palestras, artigos na imprensa e um grupo de obras a que não deixa de acrescentar sempre novos títulos. Na esteira de seus antecessores da Escola de Frankfurt, o principal eixo de sua produção é a crítica ao tecnicismo e ao cientificismo – que, a seu ver, limitaram o campo de atuação da razão humana ao conhecimento objetivo e prático. Superando o pessimismo estrutural de seus mestres e introduzindo uma nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, em 1981 Habermas publicou aquela que é considerada a sua obra mais significativa, Teoria da ação comunicativa , em que concebe a razão e a ação comunicativas – uma comunicação livre, racional e crítica – como alternativa à razão instrumental oriunda do Iluminismo.
13.7 Luzes, razão e educação Além desses nomes apresentados como os principais expoentes, muitos outros intelectuais de relevância atuaram ou gravitaram em torno da Escola de Frankfurt, como o economista e sociólogo Friedrich Pollock (1894-1970), cofundador do Instituto, cujos trabalhos iniciais utilizaram o conceito de capitalismo de Estado para explicar o regime econômico da União Soviética; e o psicanalista Erich Fromm (1900-1980), um dos pioneiros do encontro entre marxismo e psicanálise, para ficarmos apenas em dois nomes. Atualmente, o Instituto de Pesquisa Social é dirigido por Axel Honneth, nascido em 1949, um ex-aluno de Habermas que tem chamado atenção para o vigor de suas ideias – o que demonstra que a luz que brilha no facho da Escola de Frankfurt, herdeira e continuadora do portentoso legado filosófico alemão, está longe de se apagar. Entre numerosas outras áreas, essa luz tem iluminado as discussões sobre educação, questionando o conceito de ensino-aprendizado herdado do Iluminismo e problematizando a civilização que se originou do Século das Luzes. O objetivo desse confronto entre a Escola Filosofia da educação
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de Frankfurt e a educação não é, evidentemente, apagar o que ainda resta de luz em nossa sociedade, mas sim combater as sombras dessa tradição, para que a luz da razão – não a razão instrumental, mas a comunicativa – possa resplandecer amplamente, redirecionando os caminhos de nossa civilização em nosso ameaçado planeta azul.
Ampliando seus conhecimentos
Na opinião dos sociólogos (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 113-114)
Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião objetiva fornecia, a dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço. Os decora tivos prédios administrativos e os centros de exposição industriais mal se distinguem nos países autoritários e nos demais países. [...] Mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiêni cos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a seu adversário, o poder abso luto do capital. Do mesmo modo que os moradores são enviados para os centros, como produtores e consumidores, em busca de trabalho e diversão, assim também as células habitacionais cristalizam-se em complexos densos e bem organizados. A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esque leto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se denem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos.
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Atividades 1. Assinale V (verdadeiro) com respeito aos representantes da Escola de Frankfurt ou F (falso) em relação aos nomes que não pertenceram à Escola: (
) Max Horkheimer.
(
) Theodor W. Adorno.
(
) Max Webber.
(
) Herbert Marcuse.
(
)
(
) Jacques Derrida.
(
) Jürgen Habermas.
(
) Walter Benjamin.
(
) Hermann Hesse.
(
) André Gorz.
Georg Lukács.
2. Quais são as principais inuências da Escola de Frankfurt? Quais são os pensadores e as correntes de pensamento que estão em sua base?
3. Qual é a relação da Escola de Frankfurt com a herança do Iluminismo?
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14.1 Era dos extremos: as duas faces da moeda O século XX foi pródigo em escolas filosóficas. Basta citar algumas para nos darmos conta de que esse breve século, como a ele se referiu Eric Hobsbawm1 , foi rico em correntes de pensamento: o intuicionismo de Henri Bergson (1849-1941), a fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), a teoria crítica da Escola de Frankfurt, a filosofia da mente, o estruturalismo e seus derivados: o pós-estruturalismo, o desconstrucionismo e seu último rebento, o pós-modernismo. Tudo isso para não falar de renasci mentos, remakes (refeituras, novas versões) ou prolongamentos de escolas surgidas anteriormente, como o neotomismo de Jacques Maritain (1882-1973), o neokantismo, o neo-hegelianismo, o positivismo lógico do Círculo de Viena e o marxismo, com sua multiplicidade de correntes e subcorrentes. Além disso, a psicanálise, oriunda da medicina – Freud (1879-1939) era médico –, fermentou a reflexão filosófica com novos dados e questionamentos. Para Hobsbawm, no livro Era dos extremos: o breve século XX , o século inicia-se efetivamente com o começo da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e se encerra com a queda do Muro de Berlim, em 1989. 1
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Todavia, há duas escolas que foram de grande importância no século passado. Uma de las, mais discreta, representa de certa forma o espírito que enformou boa parte do século XX e continua presidindo este novo século, cujas características ainda não demonstram nenhum corte significativo com relação ao século anterior: o pragmatismo. A outra foi a corrente mais popular do século XX e um dos raros casos da história moderna em que a filosofia extrapolou os limites dos debates acadêmicos e de especialistas, atingindo uma parcela significativa da população ocidental: o existencialismo. As duas faces do século XX se fazem representar nessas duas escolas: tanto o seu lado mais prático e objetivo quanto o lado subjetivo e romântico. Eficiência e autenticidade, mé todo e decisão, utilidade e náusea, progresso e revolução – ou seja, pragmatismo e existen cialismo – caracterizam paradigmaticamente esse século a que Hobsbawm chamou de “a era dos extremos”.
14.2 Pragmatismo: Pragmatismo: origens e paternidade Nietzsche disse: “Alguns “Alguns homens nascem póstumos”. Com efeito, e feito, não só na arte – cujo exemplo emblemático foi Vincent van Gogh (1853-1890), que em vida vendeu apenas uma tela –, mas na filosofia também temos um rol de filósofos de reconhecimento póstumo, póstumo, como Giambattista Vico (1668-1774) e, em parte, Espinosa (1632-1677), Schopenhauer (1788-1860) e Nietzsche (1844-1900). Este último, se atingiu a fama ainda em vida, já não dispunha de lucidez para gozá-la. Outro filósofo igualmente póstumo – originalíssimo e antecipador de tendências, só que, ao contrário de Nietzsche e Schopenhauer, nunca maldisse a sua sorte, apesar de ter vivido grande parte de sua vida na pobreza – foi o norte-americano Charles Peirce (18391914), considerado o criador do pragmatismo e da semiótica. Filho de Benjamin Peirce (1809-1880), na época um dos maiores matemáticos de Harvard, Charles Sanders Peirce estudou nessa mesma universidade, licenciando-se em ciências e doutorando-se em química. Além disso, era matemático, físico e astrônomo, tendo estudado também filologia, psicologia e história. De um certo modo, não há um ramo das ciências da época para o qual sua curiosidade não o tenha levado. Não satisfeito, Peirce do minava cerca de dez idiomas. Todavia, as áreas às quais dedicou a maior parte de suas energias são a lógica e a filo sofia. Nos moldes do positivismo, propôs aplicar a esta última os métodos de observação e experimentação característicos das ciências experimentais. Quanto à lógica, Peirce a conce bia dentro do campo de uma teoria geral dos signos, ou, como ele a denominou, semiótica. Do impressionante número de cerca de 80 mil manuscritos que produziu durante a vida, até agora foram publicadas aproximadamente 12 mil páginas. Em 1878, Peirce publicou Como tornar nossas ideias claras , artigo que é considerado o primeiro esboço de uma teoria pragmatista. William James (1842-1910) refere-se a esse texto como um marco, elaborando a partir do que dele infere a sua doutrina do pragmatismo. Peirce tentou repudiar o pragmatismo que James lhe atribuía, chamando a sua filosofia de
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pragmaticismo para acentuar a diferença. Portanto, o pragmatismo, como sistema e como método filosófico, embora tendo suas origens em Peirce, possui sua paternidade creditada a William James. Ao contrário de Peirce, William James, irmão do célebre romancista Henry James (18431916), teve uma longa e destacada carreira em Harvard, onde lecionou psicologia e filosofia. Seu livro Princípios de psicologia (1890) é, ainda hoje, uma referência obrigatória sobre o tema. Embora a reflexão filosófica não tenha sempre ocupado o centro de sua atenção, ele é tido como um dos maiores filósofos dos Estados Unidos e, sem dúvida alguma, o mais popular, talvez por ter sido o primeiro a expressar a energia e o vigor dessa grande e jovem nação emergente: “Comparado à filosofia de Peirce, o seu pensamento é bem menos profundo; mas, devido à sua personalidade e posição, James exerceu uma influência muito mais ampla sobre o pensamento filosófico, particularmente na América” (RUSSELL, 2002, p. 402). Suas principais contribuições para o pragmatismo se encontram nos livros: • Pragmatismo: um nome novo para velhas formas de pensar (1907); • O significado da verdade (1909); • Ensaios sobre o empirismo radical (1912), em que sustentou, entre outras coisas, que o significado das ideias só se encontra no plano de suas consequências, que todo juízo é válido segundo a eficácia com que se persegue seu fim e que a verdade é, antes de tudo, “verificação”. Conforme o título de seu livro de 1907, William James não considerava a perspectiva pragmatista como inteiramente nova. Portanto, existem antecedentes, alguns bastante remotos, como o sofista Protágoras (480-410 a.C.), para quem “o homem é a medida de todas as coisas” – um postulado fundamental do pragmatismo. De acordo com o referido artigo inaugural, Peirce já percebia, entre os antigos, analogias com o estoicismo e, entre os modernos, muito se insistiu na influência exercida de um lado por Kant e, de outro, do empirismo inglês de Locke (1632-1704), Berkeley (1685-1753), Hume (1711-1776) e Stuart Mill (1806-1873). Com efeito, se o empirismo e o pragmatismo são fenômenos anglo-saxônicos, o primeiro é britânico e o segundo, em uma evolução daquele, é estadunidense.
14.2.1 Pretensão e certeza Mas em que consiste o pragmatismo? Em primeiro lugar ele é um método. Como con sequência desse método, também é uma teoria da verdade. Manifesta uma posição extrema mente oposta ao racionalismo e uma perspectiva centrada no conceito de vontade. Para o racionalismo – que tem sua origem em René Descartes (1596-1649), do “penso, logo existo” –, o pensamento se antecipa à vontade e o mundo da verdade é absoluto e eterno. Conhecendo-o ou ignorando-o, nada altera sua essência. Ou seja, o racionalismo postula a preexistência do mundo, como verdade, ao pensamento – que somente reflete esse mundo. Para o pragmatismo, ao contrário, o que é prévio é a vontade. O conhecimento é conce bido como profundamente profundamente modificador modificador da realidade e, consequentemente, consequentemente, a construção construção da Filosofia da educação
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verdade deve corresponder à da realidade. Conhecimento e ação convertem-se, desse modo, em termos equivalentes. e quivalentes. Ademais, o pragmatismo rejeita o conceito de verdade tanto como correspondência quanto como coerência: para ele, uma afirmação será verdadeira apenas na medida em que conduza ao êxito. Verdadeiro e falso têm caráter prático e somente na prática encontram significado. prát átic ica a di , dist stin ingu guem em-s -see trê trêss Acerca do sentido com que se emprega o termo pr interpretações: 1. A primeira primeira sustenta sustenta que uma afirmação afirmação é verdadeira quando, e apenas quando, responde a uma utilidade prática , entendida essa palavra no sentido mais restrito. Em outros termos, será verdadeira a proposição que corresponda aos interesses materiais do indivíduo que a emite e no momento em que a emite. Nesse caso, verdadeiro é sinônimo de oportuno. Dois e dois poderão ou não ser se r quatro, dependendo dos interesses de quem o afirma. pretensãoo de verdade e verdade 2. A segunda interpretação principia por distinguir entre pretensã verificada. Assim, uma verdade inicialmente pretendida como tal é verificada quando seu conceito se ajusta à experiência sensorial. A proposição “o fogo queima” é ver dadeira na medida em que se comprove a experiência de ser queimado pelo fogo. 3. A terceira interpretação de prática é mais sutil: uma afirmação é verdadeira na medida em que cumpre as condições de: ◦ esta estarr de aco acordo rdo com a reali realidad dadee e com com os os objeto objetoss da exp experi eriênc ência; ia; ◦ esta estarr de acord acordoo com aque aquelas las verd verdade adess absolu absolutas tas e inque inquesti stioná onávei veis, s, como como “um “um mais um é dois” e “o azul é distinto do amarelo”; ◦ esta estarr de de acord acordoo com com o conj conjunto unto de ver verdad dades es já já veri verific ficada adas. s. Quando uma verdade resiste a essas condições, sua verificação estará cumprida e ela passa do estado de pretensão ao de certeza.
14.2.2 Ética, religião e educação pragmáticas Centrado na análise do significado da experiência, o pragmatismo não poderia deixar de atingir os setores da ética e da filosofia da religião. Na ética pragmatista, as noções de bem , dever e mérito não se revestem de sentido próprio, não são universais nem autoevidentes. Serão verdadeiras, contudo, na medida em que proporcionem uma direção fecunda para a vida e assegurem maior desenvolvimento da personalidade. Em outras palavras, na moral pragmatista, bem é aquilo que proporciona resultados concretos, como bem-estar, harmonia e o aprimoramento das potencialidades do indivíduo. O mesmo se dá na apreciação pragmatista da religião. No que concerne à existência de Deus, William James nunca aceitou a validade das provas convencionais, considerando-as liquidadas pela crítica kantiana. Admitiu como válido, porém, o recurso da análise da experiência religiosa e, especialmente, dos fenômenos de conversão. Na medida em que da conversão resulta uma indiscutível vantagem para o indivíduo, em termos de expansão
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vital, James considera válida a experiência. Religião “verdadeira”, portanto, é aquela, e toda aquela, que conduz a resultados positivos, sejam eles o aumento da sensação de bem-estar, a melhora da socialização do indivíduo, a superação de problemas psíquicos etc. Não é muito diferente quando se aplica a filosofia do pragmatismo à educação. Um bom projeto pedagógico é aquele que produz resultados – os quais, por sua vez, são definidos pelo indivíduo e/ou pela sociedade (poderão também ser definidos pela coletividade ou pelo Estado, em regimes planificados). Se eu quero aprender uma língua ou uma técnica, um bom método será aquele que, da maneira mais eficiente, irá me levar a esse objetivo – o domínio dessa língua ou dessa técnica. Em uma sociedade como a nossa, regida pelo mercado, os resultados serão definidos por esse mercado: um bom processo de ensino-aprendizado é aquele que leva os educandos a inserirem-se eficientemente no mercado de trabalho. Cabe questionar – sob o ponto de vista da utilidade da construção de uma nação ou do desenvolvimento das potencialidades humanas, ou ainda à luz da sobrevivência sobrevivência da espécie humana – se isso é suficiente. Eis como Will Durant avalia o pragmatismo jamesiano: [...] a maneira de pensar de James, senão a sua substância, era específica e inigua lavelmente americana. A volúpia americana pelo movimento e pela aquisição infla as velas de seu estilo e seu pensamento e lhes dá uma motilidade 2 esperançosa e quase aérea. [...] O novo teste da verdade era, evidentemente, antigo: e o filósofo honesto descrevia o pragmatismo modestamente como “um novo nome para velhas maneiras de pensar”. Se o novo teste significa que verdade é aquilo que foi testado pela experiência e pelo experimento, a resposta só pode ser: “É claro”. Se significa que a utilidade pessoal é um teste da verdade, a resposta não pode ser outra: “É claro que não”; utilidade pessoal é apenas utilidade pessoal; só a utilidade permanente universal constituiria a verdade. (DURANT, 2000, p. 469-470)
14.2.3 Depois de James Depois de James, o bastão da escola esteve nas mãos de: • George Herbert Mead (1863-1931), que procurou explicar a psicologia social por meio da evolução do eu; • John Dewey (1859-1952), que, preferindo o nome de instrumentalismo , desenvolveu desenvolveu as ideias de James no campo da educação, defendendo uma pedagogia fundada no ensino pela prática. De certa forma, o pragmatismo dominou o cenário norte-americano até por volta da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), eclipsando-se depois. Recentemente, experimentou um ressurgimento com Richard Rorty (1931-2007). 2 Motilidade: o mesmo que mobilidade. Filosofia da educação
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Fiel aos seus princípios “pragmáticos”, o pragmatismo manteve sempre uma suspeita em relação à filosofia – demasiado abstrata e especulativa – e concentrou-se em disciplinas cujas “utilidades práticas” se revelavam mais mensuráveis, como a educação e a psicologia. Se hoje, na filosofia, é pouco revisitado, o pragmatismo continua relevante nos estudos psicológicos e pedagógicos. E, se o sucesso de uma doutrina não se mede tanto pela frequência com que seu nome ou seus expoentes são citados, mas sim em que medida o seu espírito permeia a sociedade e as relações dos indivíduos, podemos afirmar, com toda certeza, que a corrente filosófica surgida de Peirce e James é vitoriosa: não há dúvida de que vivemos em uma sociedade pragmática.
14.3 Existencialismo: “uma mística do inferno” Poucas são as correntes filosóficas e os filósofos que em vida se tornaram populares para além da academia e dos especialistas. Sócrates (470-399 a.C.) e Voltaire (1694-1778) podem ser contados entre estes. Mas, se o primeiro não foi muito além de Atenas e das colônias sob sua influência, o segundo, sem dúvida, gozou de uma grande popularidade não só na França como também na Europa iluminista e na América colonial às vésperas das guerras de independência. É verdade que Karl Marx (1818-1883) e Auguste Comte (1798-1857), durante suas vidas, foram igualmente reverenciados e atraíram legiões de admiradores. Todavia, a influência , durante sua existência, nunca foi muito além de um círcudo autor do Manifesto Comunista lo de militantes profissionais e operários sindicalizados, ao passo que o séquito de fiéis do fundador do positivismo também nunca excedeu uma pequena e esotérica elite. Entretanto, a fama de nenhum deles se equipara à de Jean-Paul Sartre (com exceção talvez de Voltaire, mas este, como viveu em uma época anterior aos grandes meios de comunicação de massa e em um mundo menos globalizado, sai prejudicado na comparação). Amado e odiado, reverenciado e execrado, cultuado e anatematizado, Sartre se converteu, no pós-guerra europeu, em um ícone, quase um popstar de uma nova postura existencial. E o existencialismo que ele propugnava e representava se tornou moda não apenas entre os frequentadores dos cafés de Saint-Germain-de-Près, em Paris, mas em todos os bares esfumaçados frequentados por jovens intelectuais, seja no Greenwich Village (Nova Iorque) ou na Vila Madalena (São Paulo). Para se ter uma ideia do furor causado pelo existencialismo, basta apreciarmos o juízo negativo de alguns pensadores contemporâneos ao movimento: O filósofo francês Henri Léfèbre referiu-se às ideias do mais eminente filósofo existencialista, Jean-Paul Sartre, como uma “metafísica de merda”. Por sua vez, seu compatriota Jacques Maritain (1882-1973), católico, classificava a filosofia de Sartre de uma “mística do inferno”. No Brasil, o pensador Tristão de Athayde escrevia: “Sartre, sem dúvida, é detestável”. O escritor russo Ilya Ehrengurg (1891-1967) não fez por menos: confessou que inicialmente Sartre lhe inspirara
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piedade, para depois lhe despertar desprezo. Finalmente, o Papa Pio XII, na encíclica que dedicou às correntes filosóficas modernas, destacou o existencialis mo como uma das doutrinas que mais ameaçavam os fundamentos da fé cristã. (PENHA, 1994, p. 9-10)
Além de toda essa ácida reação em considerável parcela do meio especializado, o exis tencialismo é efetivamente uma das poucas escolas filosóficas que logrou extrapolar o gueto dos estudiosos e atingir o homem e a mulher da rua. Testemunho disso é uma famosa marcha carnavalesca de Braguinha e João de Barro, Chiquita Bacana , composta em 1949, cuja última estrofe diz: “existencialista (com toda razão)/só faz o que manda o seu coração”.
14.3.1 No princípio, a existência A ontologia tradicional, de Platão (427-347 a.C.) a São Tomás de Aquino (1225-1274), distingue, na estrutura do ser, dois princípios ou elementos constitutivos: a essência e a existência. A essência corresponde ao que Platão denomina ideia e Aristóteles (383-322 a.C.) forma. Cada ser é o que é na medida em que possui uma essência ou uma forma, isto é, um conjunto de características que o diferencia dos demais. Desse modo, a essência do ser humano é a humanidade; a do animal, a animalidade e assim por diante. A essência, por definição, é universal, não caracteriza somente um indivíduo, mas todos os indivíduos da espécie ou o gênero do qual ele faz parte. Todavia, o conhecimento da essência não esgota a realidade dos seres com os quais se tem contato pelos sentidos, já que a essência, em si, não implica necessariamente a existência. A ideia de humanidade não envolve a existência dos seres humanos em geral, nem daquele homem ou desta mulher em particular, da mesma forma que a ideia de gnomos não significa necessariamente a existência daqueles pequenos seres que vivem debaixo de cogumelos. A essência, portanto, é o ser potencial, o ser meramente possível. O que realiza a potência ou a possibilidade é a existência. Por outro lado, a diferença entre essência e existência corresponde à de conhecimento intelectual e conhecimento sensível. Este último apreende seres concretos, realmente exis tentes, ao passo que a inteligência intelectual permite apreender ideias de seres tanto reais quanto ideais. O fato de que eu posso conceber um duende ou um marciano não significa que eles realmente existam ou tenham que existir. Assim, ao contrário das filosofias essencialistas, o existencialismo parte do pressuposto de que a existência precede a essência, tanto em relação à realidade quanto em relação ao conhecimento. Em outras palavras, as ideias ou essências não existem anteriormente às coi sas, nem na mente de Deus nem na mente dos seres humanos. As ideias ou essências são as próprias coisas, quando consideradas em sua universalidade. Ora, não existindo uma essência anterior à existência, o ser humano pode construir livremente, a partir de suas escolhas, a sua própria existência. Ou, como dizia Sartre, o ser humano está condenado à liberdade.
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14.3.2 Kierkegaard: uma vida atormentada e solitária A despeito do juízo severo do Papa Pio XII em relação ao existencialismo, ele teve origem, modernamente, com um cristão – e um cristão singularmente fervoroso, ainda que nem um pouco submisso: o dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). Foi ele que cunhou a expres são existencialismo e pela primeira vez colocou o foco da reflexão sobre a existência humana. É verdade que houve antecessores ao longo da história da filosofia – como Sócrates, que deslocou o pensamento do mundo natural para o mundo humano e o problema moral, não se limitando a pensar, mas vivendo as consequências de seu pensamento; Santo Agostinho (354-430), que no seu livro Confissões inaugurou a interioridade e a subjetividade do eu; e Blaise Pascal (1623-1662), que, situando-se na mesma vertente, refletiu, antecipando Heidegger, sobre a autenticidade da vida diante da iminência da morte –, no entanto, geralmente Kierkegaard é apontado como o fundador da filosofia existencial. Se o existencialismo é uma filosofia surgida a partir da existência, da concretude da vida, Kierkegaard, com sua vida atormentada e solitária, é um exemplo perfeito desse modelo.
14.3.3 A existência de Kierkegaard Sören Aabye Kierkegaard nasceu em Copenhague, capital da Dinamarca, em 5 de maio de 1813. Foi o último dos sete filhos de um comerciante viúvo com a sua governanta. Só ele e um irmão, que se tornou bispo luterano, é que sobreviveram à infância. Além disso, Sören Kierkegaard sempre teve um relacionamento particularmente conflituoso com seu pai, que tentava lhe impor sua visão de mundo. Em 1830, ingressou na Universidade de Copenhague para estudar filosofia e teologia, ,3 mundana e boêmia. porém os estudos lhe aborreciam e ele levou uma vida de dândi Em 1837, com a morte do pai e o relacionamento com Regine Olsen, de quem se tornaria noivo três anos depois, sua vida experimentou uma significativa mudança. Seus textos se tornaram mais profundos e seu pensamento, mais religioso. Concluindo o curso de teologia em 1840, no ano seguinte ele apresentou sua tese de doutorado, Sobre o conceito de ironia. E então se deu a segunda grande mudança de sua vida: em vez de pastor e pai de família, Kierkegaard escolheu a solidão – para ele, a única maneira de viver com autenticidade sua fé. Contra todas as expectativas, rompeu o noivado e viajou para a Alemanha, onde teve aulas com Schelling (1775-1854). De volta a Copenhague, em 1843, publicou A alternativa , Temor e tremor e A repetição. Em 1844, Migalhas filosóficas e O conceito de angústia . Em 1845, As etapas no caminho da vida. Em 1846, o Post-scriptum a migalhas filosóficas . Na maior parte desses textos, Kierkegaard está tentando, cifradamente, explicar a Regine as razões da sua decisão.
3 Dândi (do inglês dandy) é o indivíduo que dá uma excessiva importância a sua aparência física, trajando-se de maneira refinada e até extravagante. De certa forma, o dandismo pode ser visto como um protesto e uma reação aos princípios da burguesia ascendente.
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Polêmico, ele não poupou críticas à Igreja oficial da Dinamarca por seu cristianismo de fachada. Ao mesmo tempo, Kierkegaard tornou-se motivo de chacota em um semanário satírico da capital. Em 1849, ele publicou Enfermidade mortal e, em 1850, Escola do cristianismo , em que analisa a deterioração geral do sentimento religioso. Em março de 1855, Regine Olsen, já casada, mudou-se de Copenhague acompanhando Fritz Schlegel, seu marido, nomeado governador das Índias Ocidentais dinamarquesas. Em 2 de outubro do mesmo ano, Kierkegaard sofreu um colapso na rua e foi levado para o hospital. Morreu um mês depois, em 11 de novembro, recusando os sacramentos. Seu enterro foi surpreendentemente concorrido. Um grupo protestou contra a hipocrisia da Igreja, que o reivindicava como seu membro ao sepultá-lo em campo santo. Seus poucos bens foram legados a Regine Olsen.
14.3.4 Verdade e vida Ainda que esteja presente nas grandes filosofias, a noção de existência só ganha des taque, assumindo a plenitude de sua significação, com Kierkegaard. Polemizando com Descartes, o filósofo dinamarquês afirmou: “Quanto mais penso, menos sou, e quanto me nos penso, mais sou”. Na perspectiva kierkegaardiana, a fórmula cartesiana deve ser invertida: não existo porque penso, mas penso porque existo. Todavia, pensar a existência não corresponderia a negá-la naquilo que ela tem de irre dutível? Kierkegaard, porém, não teme pensar o paradoxo, a contradição, pois o paradoxo, para ele, é a paixão do pensamento. Ainda mais do que paradoxo, Cristo é o escândalo absoluto, o Deus feito homem e morto na ignomínia de uma cruz. Combatendo os sistemas filosóficos em geral e o hegelianismo em particular, que tudo pretendem incluir e absorver em sua estrutura conceitual, e combatendo também a Igreja oficial, com seus “sacerdotes funcionários”, que desfiguram o cristianismo, Kierkegaard apela para o extraordinário, para aquilo que, recusando a submeter-se à ordem do rebanho, procura uma comunhão direta com Deus, uma relação absoluta com o absoluto. Em busca de um cristianismo autêntico e em defesa do valor imensurável do indivíduo, Kierkegaard enaltece a existência sobretudo no que ela tem de irrepetível e misteriosa, inas similável pelo pensamento. Existir, ensina ele, é escolher e apaixonar-se, vivendo na tensão entre a finitude da existência e a infinitude do transcendente divino. A verdade não é mais a objetividade, e sim a subjetividade. O problema agora não está mais em encontrar a verda de, e sim uma verdade pela qual se possa viver e morrer. A verdade só se torna verdadeira quando o ser humano dela se apropria, transformando-a em vida.
14.3.5 Os três estágios da existência Enquanto modos de ser da existência humana, Kierkegaard distingue três estágios: o estético, o ético e o religioso.
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No estágio estético, o indivíduo vive em permanente aventura e disponibilidade emocional, sob o domínio dos sentidos e dos sentimentos. Convencido de sua irrestrita liber dade, vive procurando extrair o máximo de cada instante, entregando-se a toda sorte de prazeres e sensações, visto que tudo é fugaz e passageiro. Três personagens representam esse estágio: 1. o judeu errante, nostálgico da pátria perdida e em busca de uma transcendência que sempre se afasta; 2. Fausto, o aventureiro do conhecimento, sempre insatisfeito em sua busca intelectual; 3. Don Juan, o aventureiro erótico, igualmente insatisfeito em sua ânsia de satisfação. Essa insatisfação do estágio estético leva ao desespero. Para Kierkegaard, porém, o de sespero não é algo negativo – aliás, a superioridade do ser humano sobre o animal está justa mente na sua capacidade de se desesperar. E é esse desespero que o fará atingir o estágio ético. No estágio ético, o indivíduo descobre que não pode ignorar as exigências do mundo exterior, com suas normas e convenções. Trata-se de aceitar uma tábua de valores, de distinguir o bem do mal. A vida não é um jogo e por isso cada um é responsável por seus próprios atos e escolhas. No entanto, esse estágio não logra proporcionar a existência pela qual anseia e que só é alcançável no último estágio – o religioso. O estágio religioso é o ponto culminante do desenvolvimento existencial, em que o indivíduo alcança uma relação íntima com o Criador. Em Temor e tremor , Kierkegaard analisa o salto necessário entre o estágio ético e o religioso por meio da conhecida passagem bíblica sobre o sacrifício de Isaac (Gênesis, 22); depois de, na velhice, dar um filho a Abraão, o único de sua mulher Sara, Deus exige desse patriarca o sacrifício desse filho: “Abraão tem de escolher entre as exigências racionais e éticas e a ordem divina, entre a transgressão e a obediência. Certo da onipotência de Deus, Abraão repudia a ética e a razão e escolhe a fé” (PENHA, 1994, p. 25). Assim como Nietzsche, Kierkegaard também foi um pensador “póstumo”, recebendo o verdadeiro reconhecimento só após a sua morte. No entanto, a repercussão fora das fronteiras dinamarquesas só ocorreu no século XX, primeiramente na Alemanha e depois – nas décadas de 1920 e 1930 – na França. Coube sobretudo a Heidegger, talvez o maior filósofo do século XX, tomar, aprofundar e imprimir novos rumos à filosofia da existência herdada do atormentado e solitário pensador dinamarquês.
14.3.6 Heidegger: o lósofo da Floresta Negra Martin Heidegger nasceu em 26 de setembro de 1889, em Messkirch, um vilarejo da Suábia, ao sul da Alemanha, nas proximidades da Floresta Negra. Filho de um modesto sacristão católico, foi com o auxílio de uma bolsa de estudos que conseguiu frequentar, em 1903, o liceu de Constança. Em 1909, ingressou no seminário jesuíta de Friburgo, onde se interessou pelos místi cos alemães e pelo filósofo escolástico João Duns Scoto (1266-1308). Em 1914, concluiu seu doutorado e dois anos depois habilitou-se para o magistério na Universidade de Friburgo.
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Em 1919, já rompido com o catolicismo, Heidegger tornou-se assistente de Edmund Husserl (1859-1938), o fundador da fenomenologia. Em 1923, assumiu uma das cátedras de filosofia da Universidade de Marburgo, onde seu nome começou a se projetar sobretudo pelas interpretações pessoais que dava a pensadores pré-socráticos como Heráclito (540-470 a.C.) e Parmênides (530-460 a.C.). Em 1927, publicou seu mais célebre trabalho, O ser e o tempo , marco inicial do existencialismo contemporâneo. No ano seguinte, substituiu Husserl na Universidade de Friburgo, sendo eleito reitor pelos professores em 1933, ano da ascensão de Hitler ao poder (um pouco antes, Heidegger havia se filiado ao Partido Nazista, desfiliando-se apenas com o fim da Segunda Guerra). Em seu discurso de posse, ele saudou o novo regime, expressando suas esperanças em uma “completa revolução da existência germânica”. É dessa mesma época o seu distanciamento em relação a Husserl, que era judeu (em uma nova edição de O ser e o tempo , em 1941, Heidegger retirou a dedicatória a Husserl). Todavia, desligou-se do cargo de reitor dez meses depois, permanecendo na instituição apenas como professor. Até o término do conflito mundial, ele viveu isolado em sua casa, nas montanhas da Floresta Negra. Com a derrota da Alemanha, Heidegger foi proibido de lecionar em universidades alemãs, situação que perdurou até o início da década de 1950. Nesse período, sobretudo com Sartre, o existencialismo ganhou o mundo, tornando-se, pelo menos até o começo dos anos 1960, a principal moda intelectual. A tortuosa e oblíqua terminologia heideggeriana, quase tão obscura quanto à de Hegel, inundou o universo acadêmico e, não raro, as conversas de botequim entre os intelectuais. Não obstante, Heidegger levou uma vida relativamente isolada até a morte, em Friburgo, no dia 26 de maio de 1976. Nunca se retratou do seu apoio ao nazismo. Provavelmente, o orgulho – resultante da consciência de ser o maior filósofo da Alemanha do século XX – impediu que ele reconhecesse o seu erro. Além de O ser e o tempo , entre as suas obras se destacam O que é metafísica (1929), Holderlin e a essência da poesia (1936), Sobre a essência da verdade (1943), O que significa pensar (1954), Identidade e diferença (1957) e Heráclito (1970).
14.3.7 Em busca do ser Segundo Heidegger, o sentido da pergunta pelo ser foi perdido e caiu no esquecimento. Refletindo sobre a pergunta, constata-se que o ser humano é o único que a faz: os animais não indagam pelo sentido de sua existência. A analítica da existência humana (assim Heidegger denominava sua filosofia) deverá ser, portanto, como que a introdução da teoria ou filosofia do ser. Ao descrever o existente que é o ser humano, Heidegger, conforme a tradição existencialista, observa que sua essência consiste em existir, e que o Dasein4 é a sua possibilidade de realização, isto é, a concretização possível da essência. 4 Mergulhar na filosofia de Heidegger é como adentrar uma densa floresta, em cujo solo mal chegam os raios do sol. Com efeito, esse filósofo é conhecido por seu hermetismo, por seu texto eivado de metáforas e neologismos. Uma anedota diz que ele só entendeu O ser e o tempo quando leu sua traduFilosofia da educação
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Por esse motivo, qualquer descrição do existente deve partir da realidade cotidiana – já que ser e estar no mundo é a determinação fundamental da existência. Com esse objetivo, Heidegger procederá a um exame do mundo , do ser , e do ser no mundo. O mundo não corresponde à soma dos objetos que o compõem, mas é uma totalidade, já implícita em cada objeto. O Dasein o apreende, primeiramente, de modo prático, como um “complexo de utensílios”, o qual, por seu turno, pressupõe o Dasein e os objetos que o constituem. A análise do ser em suscita, por sua vez, o problema do espaço, mostrando que o Dasein espacializa o mundo em vista de suas preocupações. Se o mundo está implícito no sujeito, existir significa existir com , ou coexistir. Na existência cotidiana, que Heidegger identifica com a existência inautêntica, o Dasein se confunde com “todo mundo”, dissolvendo sua originalidade e sua responsabilidade nesse anonimato. Lançado à sua revelia no mundo, o Dasein está sempre à mercê do medo e da angústia. Sempre incompleto, o Dasein é essencialmente projeto, consciência de suas potencia lidades e propósito de realizá-las no mundo. Tal projeto constitui-se, basicamente, em in terpretação, explicação e expressão: a interpretação determina a consciência do Dasein; a explicação, a estrutura das coisas; e a expressão, a linguagem. A linguagem, que revela a estrutura “dialogal” do Dasein , remete ao cotidiano, dominado pelo “falatório”, no qual simplesmente se repete o que todo mundo diz. Normalmente encoberta pela preocupação, a angústia revela a estrutura do Dasein como o ser que se pro jeta, o ser que está no mundo, o ser que é o estar aí . Mergulhado na inautenticidade, o ser humano é, no entanto, capaz de descobrir a verdade, isto é, a temporalidade essencial de sua existência ou, na terminologia heideggeriana, sua condição de ser para a morte. Ao revelar a temporalidade e a mortalidade do Dasein , a angústia abre espaço para a existência autêntica. Ora, projetando-se na direção do futuro, o Dasein temporaliza sua existência, simultaneamente revelando a historicidade e a transcen dência que lhe são inerentes. A meta em direção à qual o existente se transcende é o próprio mundo, enquanto unidade e totalidade. Projetando-se, o Dasein organiza e cria o mundo – não apenas produz objetos, mas sobretudo porque lhes confere significação. A transcendência, por seu lado, explica a liberdade como desligamento e negação das coisas, e a verdade como revelação ou descobrimento do ser. Ademais, a transcendência – ou melhor, a capacidade de transcender – é a própria liberdade, o fundamento último, o abismo além do qual não é possível retornar. Ao denunciar o esquecimento e a perda do ser, sustentando que a metafísica esgotou suas últimas possibilidades, e que o domínio do mundo e do ser humano pela ciência e pela ção em francês. Não obstante, ele afirmava, não sem malícia, que só era possível filosofar em grego e em alemão. Dasein (pronuncia-se dazáin) e outros termos por ele utilizados não têm uma conceituação simples e inequívoca. Todavia, uma definição para Dasein no Dicionário Houaiss é: “no existencialismo heideggeriano, o modo de existência específico do ser humano, que se define fundamentalmente pela angústia diante da morte e do vazio, pela liberdade na projeção do futuro e pelo poder de interrogar o Ser de todas as coisas”. E também foram propostas algumas traduções, meramente aproximativas: “ser aí”, “ser no mundo” e “existir” – esta última pelo filósofo espanhol Julián Marias (1914-2005).
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técnica é agora total, a filosofia da existência de Heidegger – a “analítica do ser” – empenha-se em pressentir uma nova era nas relações do ser humano com o ser. Lançando mão de um léxico originalíssimo, com o qual pretendia patentear a ruptura com a tradição ocidental, Heidegger foi – não obstante seu estilo oracular e obscuro –, principalmente por meio do clássico O ser e o tempo (1927), um dos maiores intérpretes da crise da humanidade contemporânea, desalojada de suas certezas ancestrais e dos novos ídolos (a ciência, a técnica) – com os quais intentara preencher os nichos vazios. No entanto, a popularização do existencialismo ainda teria que esperar outra conflagração mundial para que, transposta para o lado ocidental do Reno, na França, viesse a se tornar a maior moda filosófico-intelectual do último século.
14.3.8 Sartre: de bombeiro a incendiário Popularidade maior que a de Sartre não foi desfrutada por nenhum outro filósofo do século XX. Em parte porque não raro assumiu posições polêmicas (desconcertando tanto seus admiradores quanto seus detratores), em outra porque não recusou se servir dos meios a sua disposição (como a imprensa e a literatura) para divulgar suas ideias e suas lutas: Sartre foi ao mesmo tempo um jornalista brilhante e um romancista e dramaturgo não menos bem-sucedido. Jean-Paul Sartre nasceu em Paris, no dia 21 de junho de 1905, filho de Jean-Baptiste Sartre e Anne-Marie Schweitzer. Dois anos depois, com o falecimento do pai, ele e a mãe se mudaram para a casa dos avós maternos, em Meudon, nos arredores da capital. Leitor precoce e de grande imaginação, aos dez anos quis se tornar escritor, recebendo de presente algo que viria a se tornar seu instrumento de trabalho por toda a vida: uma máquina de escrever. Fez seus estudos secundários em Paris, no Liceu Henri IV, onde conheceu o futuro escritor Paul Nizan (1905-1940) e o futuro sociólogo Raymond Aron (1905- 1983). De 1922 a 1924, no curso preparatório do Liceu Louis-le-Grand, sentiu despertar o interesse pela filosofia, influenciado sobretudo pela obra de Henri Bergson, então em voga. Aos 19 anos, ingressou no curso de filosofia da Escola Normal Superior, onde não chegou a ser um aluno brilhante, mas era muito interessado. Foi nessa instituição que, em 1929, Sartre conheceu Simone de Beauvoir (1908- 1986), que viria a se tornar sua companheira por toda a vida. Os dois nunca formaram um casal tradicional, antes mantiveram um casamento “aberto”, alimentando simultaneamente outros relacionamentos, sobre os quais não mantinham segredo. Apesar de estrábico e de baixa estatura, Sartre sempre fez sucesso com as mulheres. Concluído o curso de filosofia, Sartre prestou o serviço militar em Tours, na função de meteorologista, sendo depois nomeado para uma cadeira de filosofia em uma escola secundária do Havre. O romance que escreveu nessa época, A lenda da verdade, foi recusado por todos os editores. Fascinado pela fenomenologia de Husserl, que lhe foi apresentada por Raymond Aron, Sartre obteve uma bolsa de estudos e permaneceu um ano em Berlim, onde tomou contato
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com a obra de Heidegger. De volta à França, em 1936, publicou A imaginação e A transcendência do ego , trabalhos marcados pela influência da fenomenologia. Em 1938, veio à luz o romance no qual vinha trabalhando há tempo, A náusea , e no ano seguinte uma coletânea de contos, O muro , e um ensaio, Esboço de uma teoria das emoções . Em 1940, lançou mais um ensaio, O imaginário , que, como o anterior, serve-se do método fenomenológico. Todavia, nesse meio-tempo foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial e Sartre, convocado a servir como meteorologista, caiu prisioneiro dos alemães em junho de 1940. Encerrado no campo de concentração de Trier, Alemanha, aproveitou o ócio para escrever. Libertado em abril do ano seguinte, aliou-se à Resistência – o grupo insurgente que com batia as forças de ocupação alemãs – e fundou com Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) o grupo Socialismo e Liberdade, produzindo panfletos clandestinos contra a ocupação alemã. E foi nessa época que conheceu Albert Camus, de quem se tornaria amigo até 1952, quando houve um rompimento entre eles. Em março de 1943, foi encenada As moscas , a primeira peça teatral de Sartre, na qual, de uma maneira cifrada, o autor incentivava a luta contra as forças de ocupação alemãs. No , o grande clássico do existencialismo, um volumomesmo ano, Sartre publicou O ser e o nada so estudo filosófico iniciado em 1939. Com a libertação da França e o término da guerra, Sartre fundou, novamente com Merleau-Ponty, a revista Os tempos modernos , na qual colaboraram Raymond Aron e Albert Camus, entre outros. Assim, começou o momento mais prolífico da carreira literária de Sartre, ao mesmo tempo em que ele era alçado à posição de ícone intelectual da juventude desiludida que ir rompia dos escombros da guerra. Diante das múltiplas incompreensões que o existencialis mo sofria, ele proferiu a palestra O existencialismo é um humanismo , em seguida transformada em livro, na qual apresenta o significado ético do movimento. Acreditando na força da literatura, lançou a trilogia Os caminhos da liberdade , composta pelos romances A idade da razão (1945), Sursis (1947) e Com a morte na alma (1949). Também escreveu numerosas peças.
14.3.9 Política Se antes da guerra Sartre era praticamente apolítico, depois dela se aproximou do Partido Comunista, filiando-se em 1952. Todavia, a intervenção soviética na Hungria, em 1956, levou-o a romper com a agremiação, o que fez por meio do artigo O fantasma de Stalin . No entanto, segundo suas palavras, não deixou de se considerar um “companheiro de estrada dos comunistas”. Certa vez, chegou a escrever em um de seus artigos que “todo anticomunista é um cão”. Em 1957, defendeu enfaticamente a independência da Argélia, ao contrário do franco -argelino Camus, que assumiu uma postura dúbia. Em artigos e conferências, Sartre denuncia a tortura praticada na Argélia pelo exército francês. Então, grupos de direita pediram sua prisão.
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Nos anos seguintes, Sartre continuou aliando teoria e práxis. Em 1960, publicou um extenso trabalho, a Crítica da razão dialética , precedido pelo ensaio Questão de método. Nesses textos, ele procurou unir o existencialismo ao marxismo, que para ele era a “filosofia insuperável de nosso tempo, quer dizer, nenhuma outra filosofia poderia ir além do marxismo, pois as circunstâncias que lhe deram origem ainda não foram superadas” (PENHA, 1994, p. 116). Entre numerosas viagens aos países do Terceiro Mundo, Jean-Paul Sartre foi a Cuba e encontrou-se com os líderes Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. Ele manifestou solidarie dade aos vietcongues em sua luta de guerrilhas contra a intervenção dos Estados Unidos. Em maio de 1968, como não podia deixar de ser, apoia a rebelião juvenil em Paris – ao contrário, por exemplo, de Raymond Aron, que ficou do lado do status quo. Confirmando suas inclinações polêmicas, em 1964 – no mesmo ano em que lançou o pungente As palavras , memórias de sua infância –, Sartre recusou o Prêmio Nobel de Literatura. Para quem pensava que sua carreira literária havia terminado, em 1971 ele surpreendeu seu público com O idiota da família , um extenso estudo (mais de mil páginas) sobre Flaubert. E seu engajamento também não arrefece: apesar da velhice e do avanço da cegueira, o filósofo mais famoso do mundo era visto nas esquinas de Paris, mesmo nas manhãs mais gélidas, vendendo exemplares do jornal A causa do povo , de extrema esquerda, ou então em cima de um tonel, discursando aos trabalhadores grevistas da Renault. Assim, sua militância ainda era capaz de acender o furor dos setores mais reacionários: em 1975, Sartre recebeu uma carta com ameaças de morte. Assim, ao contrário de boa parte dos intelectuais (que geralmente são incendiários na juventude e se convertem em complacentes bombeiros na velhice), com os anos Sartre foi ficando cada vez mais radical. Desse modo, não foi à toa que no dia 16 de abril de 1980, um dia depois do seu falecimento, a multidão de cerca de 50 mil pessoas que acompanhou o féretro de Jean-Paul Sartre pelas ruas era, em sua maioria, composta de jovens. No final do seu livro de memórias A cerimônia do adeus , Simone de Beauvoir afirma que “As cinzas de Sartre foram levadas ao cemitério de Montparnasse. Todos os dias mãos desconhecidas depositam em seu túmulo buquês de flores frescas.”
14.3.10 A vida como projeto secundário Sartre levou às últimas consequências o pressuposto de que a existência precede a es sência. Ora, quando se considera um objeto produzido pelo ser humano – um vaso de ce râmica, por exemplo –, percebe-se claramente que a ideia do vaso precede a sua fabricação. Quando se concebe um Deus criador, pensa-se analogamente no artesão que, antes da cria ção, concebeu previamente uma ideia de tudo aquilo que iria criar. Mas, se Deus não existe, argumenta Sartre, a essência do ser humano não pode preceder sua existência. Com efeito, há pelo menos um ser que existe antes de ser possível defini-lo por um conceito: o ser hu mano, que primeiramente existe e somente depois se define. Mera possibilidade de ser, o ser humano se define pelo que faz, pela série de seus atos.
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Definindo-se pelo que faz, o ser humano é, antes de tudo, um projeto que vive a si mesmo subjetivamente. Impelido a projetar sua vida, é responsável por aquilo que faz. Ao escolher, escolhe-se – e, escolhendo-se, escolhe consigo todos os seres humanos, na medida em que cria uma imagem do ser humano tal como julga que deva sê-lo. Escolhendo toda a humanidade no ato de se escolher, não pode evitar a angústia, o sentimento de sua total e profunda responsabilidade. Se Deus não existe, tudo é permitido, como dizia Dostoievski, e assim o ser humano está condenado a ser livre, extraindo de si mesmo os valores e as normas de sua conduta. O sentimento de abandono e solidão no mundo significa que o ser humano, irremissivelmente condenado à liberdade, escolhe, ele próprio, o seu ser. Ele não tem escolhas – a não ser a escolha. Assim, o ser humano não é nada mais que aquilo que se projeta ser, e esse é o primeiro princípio do existencialismo. O ser humano é um projeto que vive subjetivamente. Com isso, Sartre quer dizer que, quando nasce, o ser humano não é nada, não existem ideias inatas que possam conduzi-lo ao longo da vida. Em primeiro lugar, o indivíduo existe e só depois, a partir das suas escolhas e das consequências dessas escolhas, ele vai adquirindo uma “essên cia”. Portanto, a essência humana só aparece como decorrência dos atos humanos: são meus atos que constroem e definem quem eu sou. O desespero, continua Sartre, significa que o indivíduo conta apenas consigo mesmo ou com o conjunto de probabilidades que tornam possíveis os seus atos. Agir sem esperança é agir sem contar com os outros indivíduos, já que eles, além de estranhos, são igualmente livres e contam apenas com eles mesmos. Ademais, não há uma natureza humana, uma es sência ou substância comum a que se agarrar. Assim, o ponto de partida do existencialismo sartreno é a subjetividade que apreende a verdade absoluta da consciência na intuição de si mesma. Contudo, nessa subjetividade existencial o indivíduo não atinge apenas a si mesmo, mas também aos outros indivíduos, como condição de sua existência. O que se revela então é a intersubjetividade, na qual o indivíduo decide o que é e o que são os outros. Não há natureza, mas condição humana. Efetivamente, o ser humano é sempre “situado e datado”, de modo que o conteúdo de sua situação varie no tempo e no espaço. A liberdade não se exerce abstratamente, mas dentro de determinadas coordenadas espaço-temporais que podem ser assumidas ou rejeitadas pelo ser humano. Porque Deus não existe e também não existe natureza humana universal, o ser humano, jogado no mundo, a sós consigo, é compelido a elaborar seus próprios valores. A vida, a princípio, não tem sentido. Antes de ser vivida, a vida não é coisa alguma, não apresenta valor algum, é simplesmente um “em si”, como uma couve-flor ou um cachorro. Desse modo, é o ser humano que dá sentido à vida, projetando-a para além de si, e o valor que lhe é dado se confunde com esse sentido, isto é, com essa “direção”. Dessa forma, o “em si” se transforma no “para si”, a vida passa a ter um propósito, diferente das plantas ou dos animais, que fazem apenas o que está inscrito em seu DNA. Consequentemente, longe de um mero e radical individualismo, o existencialismo está assentado sobre a consciência de que a realização de uma existência humana autêntica
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consiste em projetar-se para fora e além de si, em transcender-se, orientando a sua subjetividade na direção daquilo que a ultrapassa, ou seja, o horizonte dos outros seres humanos. Sob essa óptica, o existencialismo é um humanismo e sua irredutível subjetividade não é contrária a projetos coletivos, como o do marxismo.
14.3.11 Outros existencialistas Além de Sartre e Heidegger, muitos outros filósofos no século XX se identificaram ou foram identificados com a filosofia da existência. Entre aqueles que, na esteira de Kierkegaard, trilharam o caminho do existencialismo cristão, podemos citar o espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), o alemão Karl Jaspers (1883-1969) e o francês Gabriel Marcel (1889-1973). Entre aqueles que, em uma linha ateísta, flertaram em maior ou menor medida com o marxismo, encontramos a companheira de Sartre, Simone de Beauvoir (1908-1986), autora do livro O segundo sexo (1949), deflagrador do feminismo contemporâneo; o franco-argelino Albert Camus (1913-1960), autor de O mito de sísifo (1942); e André Gorz (1923-2007). É bom frisar, no entanto, que nem todos esses autores aceitaram a etiqueta de existencialistas que neles foi afixada, mas de certa forma eles gravitaram em torno das premissas e dos problemas da filosofia da existência.
Ampliando seus conhecimentos
Humanismo (SARTRE, 1964, p. 507)
Mas há outro sentido do humanismo que signica, no fundo, isto: o homem está continuamente fora de si mesmo; é projetando-se e perdendo-se fora de si mesmo que faz existir o homem e, por outro lado, é visando ns transcendentais que pode existir; sendo o homem este próprio rebaixamento, está no âmago e no centro deste rebaixamento. Não há outro universo senão este universo humano, o universo da sub jetividade humana. Esta união de transcendência, como constitutiva do homem – não no sentido em que Deus é transcendente, mas no sentido de rebaixamento – e da subjetividade no sentido de que o homem não está fechado em si mesmo, mas presente sempre num universo humano, é o que chamamos humanismo existencialista. Humanismo porque recordamos ao homem que não há outro legislador senão ele mesmo, e que é no desamparo que decidirá de si mesmo; e porque mostramos que não é voltando para si mesmo, mas buscando fora de si um m que é tal ou qual libertação, tal ou qual realização particular que o homem se realizará precisamente enquanto humano.
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Pragmatismo e existencialismo
Atividades 1. Além das diferenças evidentes, existem pontos de contato entre as doutrinas do pragmatismo e do existencialismo? Quais são?
2. Relacione as colunas conforme a relação entre o lósofo e a teoria. a. Martin Heidegger b. Charles Sanders Peirce c. Jean-Paul Sartre d. Kierkegaard e. Willian James
( ) Enquanto modos de ser da existência humana, distingue os seguintes estágios: o estético, o ético e o religioso. ( ) No que concerne à existência de Deus, admitiu como válida a análise da experiência religiosa. ( ) Sempre incompleto, o Dasein é essencialmente projeto, consciência de suas potencialidades e propósito de realizá-las no mundo. ( ) Considera-se o seu artigo Como tornar nossas ideias claras a origem do pragmatismo. ( ) O existencialismo é um humanismo e sua irredutível subjetividade não é contrária a proje tos coletivos.
3. A respeito das seguintes proposições, assinale com P aquelas que dizem respeito ao pragmatismo e E as que dizem respeito ao existencialismo.
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(
)
É em primeiro lugar um método e, em consequência deste, uma teoria da verdade, manifestando uma posição extremamente oposta ao racionalismo e uma perspectiva centrada no conceito de vontade.
(
)
Parte do pressuposto de que a existência precede a essência, tanto em relação à realidade quanto ao conhecimento.
(
)
(
) Projetando-se na direção do futuro, o Dasein temporaliza sua existência, simultaneamente revelando a historicidade e a transcendência que lhe são inerentes.
(
)
(
)
O ser humano está condenado à liberdade.
Uma armação é verdadeira apenas na medida em que conduz ao êxito. Mera possibilidade de ser, o ser humano se dene pelo que faz, pela série de seus atos.
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Filosoa e educação
Os homens se humanizam trabalhando juntos para fazer do mundo, sempre mais, a mediação das consciências que se coexistenciam na liberdade.
(Ernani Maria Fiori)
15.1 Filosofia para quê? Em uma sociedade pragmática como a nossa – cujos interesses se concentram nos conhecimentos que podem produzir algum resultado imediato, sobretudo se mensurável em termos monetários –, a filosofia, não raro, afigura-se como absolutamente irrelevante. Nas faculdades, os cursos de filosofia estão entre os menos concorridos, não se veem empresas disputando profissionais da área e ela mal consta nos currículos das escolas. Não obstante tudo isso, ainda que de modo sub-reptício, a filosofia está por trás de tudo. Ela está tanto nas grandes decisões pessoais, conduzindo nossas escolhas e opções morais, quanto nas políticas das nações, no direito, nos projetos pedagógicos, nos edito riais dos jornais, nos conceitos de humano e de mundo. Conforme o filósofo Karl Jaspers: “[...] a filosofia é imprescindível ao homem. Está sempre presente e se manifesta nos provérbios tradicionais, em máximas filosóficas correntes, em condições dominantes, quais sejam, por exemplo, a linguagem e as crenças políticas” (JASPERS, 1977, p. 13). Filosofia da educação
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Filosofia e educação
15.2 Crise e filosofia As grandes crises da história sempre foram acompanhadas ou seguidas de uma rica produção filosófica: • a queda de Roma suscitou a grande síntese filosófica de Santo Agostinho; • o aparecimento da burguesia e o início do crescimento dos centros urbanos na Idade Média ocorreram a par do surgimento da filosofia escolástica; • a Reforma Protestante, as grandes descobertas ultramarinas e a economia mercantilista prepararam o caminho para as filosofias racionalistas e empiristas da Idade Moderna; • a sociedade capitalista anglo-saxônica do século XIX criou as condições para a filosofia pragmatista; • as duas guerras mundiais, no século XX, ensejaram no continente europeu o existencialismo. Com base nisso, é visível a relação entre crise e filosofia. Ora, muitas vezes as experiências de crise – tanto pessoais quanto civilizacionais – produzem aquilo que os gregos chamavam de thaumásia , isto é, pasmo, espanto, sentimento este que para eles estava na base da atitude filosófica. Para os gregos, a capacidade de espanto, de pasmo, era essencial para despertar no sujeito as condições para o surgimento da reflexão filosófica. Somente quem se espanta é capaz de refletir criticamente sobre o objeto que lhe causou espanto. Da mesma forma que as grandes mudanças ou convulsões sociais produzem crises nas sociedades e nas nações, as situações-limite em nossa vida – a experiência de perda por meio da morte de algum ente querido, a doença, as surpresas ocasionadas pelo acaso, a sensação de desamparo – provocam crises a nível pessoal. De certa forma, a crise desencadeada por essas situações-limite desnuda aos nossos próprios olhos nossa verdadeira condição de seres frágeis e desprotegidos. Essa revelação leva-nos a enxergar a realidade como um problema e, como tal, ela exige, de imediato, uma solução. Em outras palavras, a crise, convertida em problema, desperta a reflexão, isto é, o “ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, vasculhar numa busca constante de significado” (SAVIANI, 1980, p. 23). Segundo Demerval Saviani, quando essa reflexão se torna radical, rigorosa e global, nasce a filosofia. Assim, percebe-se que a filosofia é, em primeiro lugar, uma atitude e uma tarefa, das quais se originam, secundariamente, as filosofias : para haver a filosofia como sistema, como um corpo de doutrina, é necessário em primeiro lugar que haja filosofia como atitude. Por exemplo, antes de haver a filosofia hegeliana propriamente dita, Georg Wilhelm Friedrich Hegel soube problematizar as crises que, como todo ser humano, surgiram em seu caminho. Tendo como fonte primeira a crise, que suscita o espanto e o pasmo, a filosofia é uma tentativa de dar respostas aos problemas colocados por ela, isto é, uma tentativa de fundamentar a ação tendo por objetivo a transformação da realidade. Depois de Karl Marx, discípulo rebelde de Hegel, a filosofia deixou de ser inteiramente contemplativa e teórica e se tornou
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prática , não raro revolucionária, como ele escreveu na 11ª tese sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”
Nesse sentido, seria correto afirmar que a filosofia é algo ocasional, irrompendo na história somente uma vez ou outra, nos momentos de crise? Não, pois a história é vista cada vez mais como uma longa e contínua cadeia de crises em que, evidentemente, há momen tos cruciais, mais dramáticos e dolorosos, como as grandes conflagrações, as catástrofes, as revoluções etc. O escritor irlandês James Joyce (1882-1941) afirmou certa vez: “A histó ria é um pesadelo do qual eu quero acordar”. Acontece que não podemos acordar desse sonho/pesadelo. A história está aí, na rua, na esquina, em um avanço técnico, na banca de jornais, em uma nova moda, um novo adereço corporal. Por sua constante e inopinada novidade, a história está sempre a nos espantar, a nos pasmar, convidando-nos continuamente a uma atitude de reflexão e crítica. Consequentemente, a filosofia subjaz a tudo, já que ninguém consegue escapar ao mundo e à história, eternos produtores de crises. É verdade que essa filosofia nem sempre é consciente ou articulada, ou seja, radical, rigorosa e global, como os sistemas de pensamento produzidos pelos filósofos “profissionais”, mas ela está na base e na origem destes. Na verdade, essa afirmação ecoa o velho ar gumento de Aristóteles, conforme exposto por Bochenski (1973, p. 23): “Ou se deve filosofar, ou não se deve filosofar. Se não se deve filosofar, isto só em nome de uma filosofia. Portanto, mesmo que não se deva filosofar, deve-se filosofar”. Em outras palavras, precisamos da razão até para sermos irracionalistas: é necessário articular um discurso filosófico, um con junto de argumentos, para negar a razão e a filosofia. Não há como escapar à filosofia. É verdade que não é todo mundo que tem condições de produzir uma reflexão que atinja as raízes, com rigor metodológico, dispondo dos dados necessários a uma visão totalizante da realidade, principalmente se considerarmos que esses dados se avolumam e se tornam mais complexos à medida que se ampliam os domínios das ciências. Hoje em dia, com os modernos meios de comunicação, de maneira especial a web – a rede internacional de computadores –, houve um aumento vertiginoso do número de infor mações acessíveis. Mas informação não é conhecimento, e conhecimento não é sabedoria. O conhecimento se processa quando somos capazes de assimilar as informações ao nosso alcance, organizando-as, catalogando-as. Contudo, para que o conhecimento se converta em sabedoria, isto é, em filosofia, é necessário haver uma visão de fundo, perspectivas mais amplas e critérios mais rigorosos – e isso só a filosofia pode fornecer. Todavia, cada um a seu modo, todos tentam, consciente ou inconscientemente, com os recursos de que dispõem e os dados que têm à mão, dar uma resposta aos principais questionamentos que as crises da vida e da história fazem emergir no caminho. E há ainda um aspecto que é importante frisar: “As interrogações são mais importantes que as respostas e cada resposta se transforma em nova interrogação” (JASPERS, 1977, p. 14). Por mais que o filósofo tente dar conta da realidade, ela é por demais complexa e dinâmica, não se deixando apreender facilmente na trama dos conceitos. E nem sempre é possível levar em conta todos os dados disponíveis ou escolher as informações capazes de conduzir ao âmago dos problemas. Em todo caso, cada passo é importante para nos aproximarmos da Filosofia da educação
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resolução do problema, ainda que cada resposta nos leve a novas interrogações – pois estas conduzirão a novas respostas e assim sucessivamente.
15.3 Filosofia e educação: isso dá certo? O estudo da relação entre filosofia e educação depara-se, já de início, com o questiona mento da pertinência de tal confrontação. Afinal de contas, para que estudar uma disciplina tão abstrata e árida como a filosofia quando a educação é uma tarefa a princípio “prática”? No entanto, se pretendemos alcançar uma educação que não seja apenas mero espelho das práticas vigentes, mas antes instrumento de crítica e transformação da realidade, a filosofia é indispensável. Afinal, A fundamentação teórica é necessária para que seja superado o espontaneísmo, permitindo que a ação seja mais coerente e eficaz. Aliás, é bom lembrar que o con ceito de teoria não se separa do conceito de prática, que é o seu fundamento. Isso significa que a teoria não deve estar desligada da realidade, mas deve partir do contexto social, econômico e político de onde vai atuar. (ARANHA, 2002, p. 44)
Aliás, o espontaneísmo – isto é, a prática desconectada de um suporte teórico – é um dos males de boa parte de nosso processo de ensino-aprendizagem, pois quando abrimos mão de teorias estamos, na verdade, servindo-nos de outra teoria, em geral mais antiga, inadequada para o nosso tempo. Para que a ação educativa seja eficaz, é necessária uma teoria atual e sempre disposta a sofrer os influxos da prática. Efetivamente, a filosofia nos permite um maior distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam, desse modo problematizando a questão dos valores, pois [...] somente assim é possível definir os valores e os objetivos que orientam a ação, pois não se pode teorizar sobre a educação em si, o homem em si, o valor em si. A partir da análise do contexto vivido, o filósofo irá indagar a respeito de que homem se quer formar, quais são os valores emergentes que se contrapõem a outros valores já decadentes. Por isso, o filósofo também avalia os currículos, as técnicas e os métodos, a fim de indagar se são adequados ou não aos fins propostos. Por outro lado, esse acompanhamento reflexivo impede que se caia no tecnicismo, um risco que existe sempre que os meios são supervalorizados. (ARANHA, 2002, p. 44)
Enfim, como a filosofia é uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto acerca dos problemas, é inevitável que ela faça uma reflexão sobre o ato de educar. Por meio desse processo de reflexão busca-se fugir ao chamado espontaneísmo, possibilitando que nossa ação seja mais bem fundamentada, além de mais coerente e eficaz. Afinal, são tantas as questões que envolvem nossa docência que é impossível conferir sentido ao nosso ato de educar se não buscarmos o escopo do arsenal filosófico. Eis como um filósofo e educador contemporâneo apresenta algumas das questões pertinentes ao fazer pedagógico:
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O que é pedagogia? Qual é seu objeto? O que configura uma situação pedagó gica? São questionamentos sobre os quais os educadores estão longe de ter um consenso. Entretanto, para trilhar um caminho que leve a clarear a especificidade do ato pedagógico, pode-se partir da afirmação de que a pedagogia é a teoria e prática da educação e, portanto, seu objeto é a educabilidade do ser humano, ou melhor, o ser humano é um ser educado. Educar (em latim, educare) é conduzir de um estado ao outro, é modificar numa certa direção o que é suscetível de educação. O ato pedagógico pode, então, ser definido como uma atividade sistemática de interação entre seres sociais, tanto ao nível do intrapessoal, quanto ao nível da influência do meio, interação essa que se configura numa ação exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos, visando provocar neles mudanças tão eficazes que os torne elementos ativos desta própria ação exercida. Presume-se, aí, a interligação no ato pedagógico de três componentes: um agente (alguém, um grupo, um meio social etc.), uma mensagem transmitida (conteúdos, métodos, automatismos, habilidades etc.) e um educando (aluno, grupos de alunos, uma geração etc.). (LlBÂNEO, 1996, p. 97)
Com efeito, não existe educação fora do mundo. Educadores e educandos, instituições de ensino e políticas educacionais estão situados em precisas coordenadas sociotemporais. O processo de ensino-aprendizado sofre necessariamente os efeitos da sociedade e da época em que está inserido. Em função dos problemas existentes em seu entorno, aparecem os problemas educacionais, tanto mais complexos quanto mais incidem na educação todas as múltiplas variáveis que determinam uma dada situação. Consequentemente, a “filosofia na educação”, como disciplina entre disciplinas, converte-se em “filosofia da educação”, enquanto reflexão rigorosa, radical e de conjunto sobre os problemas que gravitam em torno da educação. A filosofia da educação tem por tarefa considerar tais problemas, não em si mesmos, mas nas suas relações com a realidade circundante.
15.4 Filosofar ou filosofar: eis a questão Duas consequências decorrem desse fato. A primeira delas é que todo educador deve filosofar. Ou, em outras palavras, todo educador necessariamente filosofa – ainda que não esteja cônscio desse fato. O problema é que nem sempre filosofa bem. Ou o educador produz um discurso filosófico próprio, crítico e articulado, ou ele apenas reproduz, não raro inconscientemente, o discurso dominante. Daí a necessidade de o educador tornar consciente o seu filosofar, aprimorando-o e tornando-o rigoroso, radical e global. A segunda consequência é que o educando também deve filosofar, ou seja, também ele, estimulado e municiado pelo educador, deve refletir sistematicamente, buscando as raízes dos problemas – seus e de seu tempo –, de modo a construir uma visão de mundo e adquirir criticamente princípios e valores que lhe norteiem a vida. Assim, os jovens, possuindo às vezes uma percepção não muito clara, mas particularmente aguda da crise, poderão receber
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o instrumental necessário para explicitá-la e analisá-la e, à luz dessa reflexão, agir sobre a realidade. Portanto, não há como fugir à filosofia, sobretudo no campo da educação.
Ampliando seus conhecimentos Dimensão losóca da pedagogia e dimensão pedagógica da losoa (BOAVIDA, 2010, p. 21-22)
Numa primeira aproximação, penso que a relação losoa-pedagogia se poderá formular de um modo muito simples: a losoa é vocacional mente pedagógica e a pedagogia, na medida em que pressupõe uma relação eu-outro e é problematizadora ou susceptível de ser problematizada, é losóca. Por outras palavras, há uma base pedagógica na losoa do mesmo modo que há uma vocação losóca na pedagogia. Assim, a losoa é pedagógica na medida em que é dialógica e analítica, em que produz e exige um discurso crítico que é simultaneamente desconstrutivo, construtivo e fundamentador de novas evidências. A este nível a sua preocupação de compreender, de integrar em contextos, de relacionar, de construir-se à medida que o discurso se constrói é identi cável com a vocação pedagógica, tanto em modelos mais clássicos como em vertentes modernas. Por seu turno, a pedagogia é losóca na medida em que denindo ns e meios, concebendo um homem e uma sociedade, reconhecendo modelos, hierarquizando valores, isto é, pressupondo uma cosmovisão, implica uma preocupação e uma função losócas. E, por outro lado, uma vez que projeta e aperfeiçoa, se organiza segundo padrões e se dinamiza de acordo com referências, é teológica e, por vezes, utópica. Em qualquer dos casos, portanto, losóca. Poderemos pois falar, como já se disse, numa espécie de interdependência constitutiva, ou numa oposição de espelhos em dupla e simultânea reexão de feixes luminosos, uma vez que o antes e o depois, do mesmo modo que o verso e o reverso, não têm sentido em si mesmos porque cada um se origina no outro e simultaneamente o origina. Só ganham real sentido na inter-relação.
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Atividades 1. Vimos neste capítulo que o educador, mesmo quando não pretende, está losofando. Realmente, o educador não raro reproduz em seu falar e em seu agir o senso comum. Para evitar que ele seja um mero reprodutor inconsciente de uma losoa, é neces sário que mediante um processo de reexão radical, rigorosa e global, passe a ser também um produtor (e um indutor, com relação aos seus educandos) de losoa. Exemplique alguns casos em que os professores estão na verdade reproduzindo conceitos e preconceitos da losoa dominante. E identique o que é preciso fazer para que, seja feita uma desconstrução crítica de tais conceitos.
2. Explique a seguinte armação de Karl Jaspers: “As interrogações são mais importan tes que as respostas e cada resposta se transforma em nova interrogação”.
3. Qual a diferença entre flosofa na educação e flosofa da educação?
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A verdadeira moral zomba da moral.
(Blaise Pascal)
16.1 A refundação da ética A ética tornou-se um dos temas candentes da atualidade em praticamente todos os setores da vida pública e privada. Talvez isso se dê porque estamos a assistir – pelo menos aparentemente – a uma verdadeira crise ética, sobretudo nas instituições. Ou então porque, na sociedade atual, concepções de ética diversificadas, não raro antagônicas, entram em choque. Já vai longe o tempo em que um só paradigma ético regia de modo praticamente consensual os valores da humanidade. No mundo ocidental, pelo menos desde o Renascimento, essa unidade foi quebrada. E hoje, em uma época que muitos denominam de pós-moderna , com uma radical fragmentação dos valores, inexiste um chão comum, uma base de apoio a partir da qual se possa começar um diálogo. Filosofia da educação
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Como consequência, encontramo-nos diante do desafio de estabelecer as novas con dições para uma refundação dos patamares éticos sobre os quais a humanidade possa se assentar. Daí a necessidade de buscar respostas sobre a crise da sociedade atual, sobretudo no ambiente da educação – o espaço por excelência de aprendizado e da vivência vivência coletiva. Sem dúvida, os valores que regem um grupo de esquimós na Groenlândia G roenlândia diferem dos valores de uma tribo africana. Assim, a hierarquia de valores, a concepção de bem e mal, de lícito e ilícito, de certo e errado, sofre alterações significativas de povo para povo, de classe para classe, de grupo para grupo, e até mesmo de indivíduo para indivíduo. Mas como pensar uma educação que possa dar uma base moral de formação comum em um mundo tão dividido, com éticas às vezes tão divergentes? Como a escola deve trabalhar a ética? O que pode se esperar dos professores?
16.2 Ética e moral , como como se esses esses termos termos fossem intercambiá intercambiáveis. veis. É comum certa confusão entre ética e moral Aliás, desde sua etimologia, ética e moral têm sentido semelhante, já que ambas as palavras estão ligadas aos hábitos, aos costumes. Ocorre, porém, que na filosofia há uma diferença fundamental entre esses conceitos: • A ética consiste na reflexão acerca dos valores. Ela faz a reflexão sobre os fundamentos da vida moral. A função de um filósofo que se dedica ao estudo da ética é discutir (refletir) se os valores morais de uma determinada época são éticos ou não. • Já por moral entendemos a prática dos valores, ou seja, o conjunto de regras ou normas de conduta próprias de uma dada sociedade, um grupo social ou um indivíduo. Conhecer como uma pessoa se comporta diante das coisas é conhecer a sua formação moral. Em nossa filosofia de vida a moral está presente. Um ator social destituído de qualquer padrão moral não existe: é o padrão moral que possibilita a sociabilidade das pessoas. No entanto, nossa moral pode ser ética ou não. Como saber? A máxima da qual devemos partir para saber se nossa ação é ética ou não é se ela produz a vida. Por isso, o pressuposto fundamental para sabermos se nossa moral é ética é considerarmos se esses valores, que fazem parte do fundamento moral, promovem a vida. Mas em que consiste um valor? Como nasce um valor em nós? Antes de qualquer coisa, é necessário constatar que em todas as ações do ser humano estão presentes os valores. O valor pode ser definido como a propriedade das coisas que são preferidas, julgadas superiores, desejáveis. Podemos considerar que um valor nasce a partir do instante que algo passa a ter alguma importância para o sujeito: o processo de significação do mundo é a gê nese do mundo dos valores e, assim, a não indiferença constitui essa variedade ontológica que contrapõe o valor ao ser. Essa não indiferença do homem diante do mundo é o ponto de partida para o nascimento dos valores.
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Como afirmamos, os valores surgem da significação das coisas. Por isso, podemos dizer que em cada valor existe certa dose de subjetividade. E o que isso significa? Subjetivo , em filosofia, é tudo aquilo que depende do ponto de vista do sujeito. Por exemplo, se digo “isso é uma caneta azul”, estou falando de um conhecimento objetivo. É apenas um juízo de realidade. Agora, se digo “essa caneta azul é importante porque a ganhei da minha namorada”, estou, então, falando de um conhecimento subjetivo. Diversas são as formas de valor. Podemos falar de valores econômicos, lógicos, estéticos, religiosos, morais, éticos etc. Portanto, para conhecermos os valores das pessoas, precisamos conhecer a subjetividade delas. A ciência que estuda os valores de uma determinada sociedade chama-se axiologia , e surgiu no final do século XIX.
16.3 A ética através dos tempos A palavra ética vem do grego hexis e significa “postura”, “atitude”. Assim, a ética pode ser definida como a disciplina filosófica que busca refletir sobre as posturas e atitudes dos seres humanos, isto é, os seus sistemas morais elaborados através dos tempos. Conjuntamente, a ética pode ser entendida como o estudo sistematizado dos valores que sustentam um comportamento moral. “Tradicionalmente, ela é entendida como um estudo ou uma reflexão, científica ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre os costumes ou sobre as ações humanas” (VALLS, (VALLS, 2005, p. 7). Todos os povos elaboraram mitos para justificar as condutas morais. Na cultura ocidental, por exemplo, é familiar a figura de Moisés ao receber, no monte Sinai, a tábua da lei, e o mito narrado por Platão no diálogo Protágoras , segundo o qual Zeus, para compensar as deficiências biológicas dos seres humanos, conferiu-lhes senso ético e capacidade de com preender e aplicar o direito e a justiça. O sacerdote, ao atribuir à moral uma origem divina, torna-se seu intérprete e guardião. O vínculo entre moralidade e religião consolidou-se de tal forma que muitos acreditam que não pode haver moral sem religião. Segundo esse ponto de vista, a ética se confunde com a teologia moral.
16.3.1 Antiguidade clássica Na Antiguidade clássica, a preocupação com o comportamento humano teve início com os sofistas, que deslocaram a investigação sobre a natureza para as primeiras questões relativas à vida social, como Protágoras (486-404 a.C.) o expressou na célebre máxima “o homem é a medida de todas as coisas”; ou seja, “todo conhecimento depende do que o indivíduo conhece, as qualidades do mundo variam com os indivíduos e no mesmo indivíduo” (LIMONGI, 1995, p. 12). Com efeito, coube a Protágoras o mérito de ter sido o primeiro a quebrar o vínculo entre moralidade e religião. Para ele, os fundamentos de um sistema ético
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dispensam o recurso aos deuses e a qualquer força metafísica estranha ao mundo apreendi do pelos sentidos. Discordando dos sofistas, mas permanecendo no marco do homem como medida de todas as coisas, Sócrates (470-399 a.C.) sustentava a existência de um saber universal e válido que decorre da essência humana: o homem é essencialmente razão e é na razão que deveriam ser fundamentadas as normas e os costumes. Assim, a ética socrática é chamada de racionalista , sendo que quem age mal faz isso por ignorância do que é o bem e do que é a essência humana. De toda forma, Sócrates – por muitos considerado o fundador da ética ocidental – defendeu uma moralidade autônoma, independente da religião e exclusivamente fundada na razão. Apoiado na teoria das ideias transcendentes e imutáveis, Platão (427-347 a.C.) deu con tinuidade à ética socrática: a verdadeira virtude provém do verdadeiro saber, mas o ver dadeiro saber é apenas o saber das ideias. Assim, em busca da natureza do bem moral, ele postula um princípio absoluto de conduta. Para ele, no mundo das ideias encontra-se a ideia de um bem superior, a partir do qual se deve estabelecer uma escala de valores com os bens menores. Dessa forma, a sabedoria não está necessariamente na posse do conhecimento científico, mas em uma vida virtuosa, com ordem, harmonia e equilíbrio. Para Aristóteles (384-322 a.C.), a causa final de todas as ações é a felicidade. Em sua ética, os fundamentos da moralidade não se deduzem de um princípio metafísico, mas da quilo que é mais peculiar ao ser humano: razão e atuação. Para ele, só seria feliz o homem cujas ações fossem pautadas pela virtude, a qual pode ser adquirida pela educação. Além disso, analisando a organização das cidades gregas, Aristóteles não isola os bens, consciente de que o ser humano necessita n ecessita de vários bens para alcançar a felicidade, tais como a força, a virtude, a riqueza, a beleza, a saúde e os prazeres sensíveis. Tanto para Platão quanto para Aristóteles a ética está vinculada à pólis, ou seja, à polí tica da cidade grega. Contudo, com a perda da autonomia das cidades-Estado, a partir do século III a.C., surgiram novas escolas filosóficas, como o estoicismo e o epicurismo, que buscavam a realização moral do indivíduo fora dos contornos da política, desenvolvendo uma ética baseada nos ideais da paz interior e do autocontrole. Assim, para a ética de Epicuro (341-270 a.C.), a felicidade encontra-se no prazer moderado, no equilíbrio racional entre as paixões e sua satisfação. A ética dos estoicos, por sua vez, viu na virtude o único bem da vida e pregou a necessidade de viver de acordo com ela, o que significa viver conforme a natureza, que se identifica com a razão.
16.3.2 Idade Média Mais tarde, com o estabelecimento da cristandade, amálgama da tradição judaico-cristã com o pensamento grego e a organização social romana, a ética retornou para o âmbito da religião. Tomás de Aquino (1225-1274), por exemplo, reelabora a ideia de felicidade da ética aristotélica colocando Deus como fonte dessa felicidade. A ética cristã medieval, centrando a perfeição na relação do fiel com Deus, imprime um prisma estritamente pessoal à moral. A
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determinação de costumes, a decisão sobre o bom e o mal, o justo e o injusto, passa a competir exclusivamente à Igreja, detentora do monopólio das normas da ação humana.
16.3.3 A partir do Rena Renascimento scimento Mais recentemente, a partir do Renascimento, o ser humano toma consciência de suas capacidades racionais para o desvendamento dos segredos da natureza e começa a empregá-las também no campo da moral, substituindo uma cultura dependente de Deus e da autoridade da Igreja por uma cultura antropocêntrica e secular. Trata-se agora do período moderno da nossa história, que traz um novo projeto de vida para as nossas sociedades. A modernidade é um período no qual se acredita que o aprimoramento do ser humano vem da razão e da liberdade do homem. Segundo Raimundo dos Santos (2001, p. 83), “Natureza, homem e Deus, antes naturalmente unidos, un idos, são agora realidades distintas e domínios cognitivos separados”. Immanuel Kant (1724-1804), em suas obras Fundamento da crítica dos costumes (1785) e Crítica da razão prática (1788), corroborando essa tendência, afirma que “o homem, capaz de conhecer, é ativo e está no centro tanto do processo cognitivo quanto do processo ético” (SANTOS, 2001, p. 82). Até o século XVIII, de certa forma todos os filósofos aceitavam que o objetivo da ética era ditar leis de conduta. Kant viu o problema sob novo ângulo e afirmou que a realidade do conhecimento prático (comportamento moral) está na ideia, na regra para a experiência, no “dever ser”. A vontade moral é vontade de fins enquanto fins, fins absolutos. O ideal ético é um imperativo categórico, ou seja, ordenação para um fim absoluto sem condição alguma. Em outras palavras, é na razão prática, isto é, na razão aplicada às ações práticas, que o indivíduo se torna capaz de estabelecer como deve agir, sobretudo indagando se o que ele admite como norma para sua conduta tem aplicação universal. A moralidade reside na máxima da ação e seu fundamento é a autonomia da vontade. Georg Hegel (1770-1831), por sua vez, distinguiu moralidade subjetiva de moralidade objetiva ou eticidade. A primeira, como consciência do dever, revela-se no plano da intenção. A segunda aparece nas normas, leis e costumes da sociedade e culmina no Estado.
16.3.4 A partir do nal do século XIX A partir do final do século XIX, bem como no decorrer do século XX, os filósofos passaram a se posicionar contra a ideia de uma moral fundada em uma razão universal e abstrata: tornou-se mais importante encontrar o ser humano concreto, que pratica a ação moral. É nesse sentido que se pode compreender o esforço de pensadores tão diferentes como Friedrich Nietzsche (1844-1900), Karl Marx (1818-1853), Sören Kierkegaard (1813-1855) e os filósofos existencialistas do século XX. O pensamento de Nietzsche se orienta no sentido de recuperar as forças inconscientes, vitais e instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, ele faz a crítica do pensamento socrático, que conduziu pioneiramente a reflexão moral em direção ao controle Filosofia da educação
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racional das paixões. Segundo Nietzsche, foi assim que nasceu o homem fraco e desconfiado de seus instintos, em um processo que culminou com o cristianismo e promoveu a “domesticação” do ser humano. A moral cristã seria a moral do “rebanho”, geradora de sentimentos de culpa e ressentimentos, fundada na aceitação do sofrimento e na renúncia, típicos da moral dos fracos. Por isso, Nietzsche defende a transmutação de todos os valores, superando a moral comum, para que os atos do ser humano superior não sejam pautados pela mediocridade das virtudes estabelecidas. Para tanto, é preciso recuperar o sentimento de potência, a alegria de viver, a capacidade de invenção.
16.3.5 Na atualidade Na atualidade, a ética retomou uma nova conformação política, tornando-se uma ex pressão da capacidade comunicativa do ser humano, sobretudo quando se volta para a discussão de uma agenda de valores comuns. O filósofo alemão Jürgen Habermas, herdeiro da tradição da Escola de Frankfurt, tem sido uma referência nesse debate. Para ele, a ética é fundamental para se construir espaços públicos democráticos, em que o diálogo racional se torna a base para a argumentação. Com a gestão colegiada da educação (segundo a qual, de uma maneira ou outra, todos participam do processo pedagógico – dos pais aos alunos, e é claro, passando pelos professores –, todos são ouvidos no planejamento da gestão escolar), isso se torna fundamental – caso contrário, os espaços coletivos de deliberação perdem sua referência moral e distanciam-se dos valores democráticos.
16.4 A ética na educação É possível afirmar que a ética ilumina a consciência humana, sustentando e dirigin do suas ações individual e socialmente. Os desejos e as necessidades, juntamente com os sentimentos, as aspirações e os pensamentos, compõem a singularidade da personalidade humana, mas é nas instituições que eles serão filtrados e suas realizações serão consideradas lícitas ou ilícitas. Embora singular, o ser humano não vive ilhado, sentindo necessidade de compartilhar sua existência com os demais indivíduos. Mas, por outro lado, a sociedade é uma arena em que, frequentemente, as vontades singulares entram em conflito, não raro com violência. Os valores éticos, as normas de conduta seriam assim uma forma de harmonizar os vários in teresses em jogo, arbitrando os embates, estabelecendo os princípios válidos para a atuação de cada indivíduo. Nesse processo, a educação desempenha papel importante na reelaboração moral do ser humano e de sua comunidade: toda ação educativa, consciente e reflexiva mantém com a sociedade em que se insere uma relação dialética de concordância e crítica, assimilação e superação. A proposta de uma efetiva educação moral, que proporcione aos educandos as condições para um real desenvolvimento moral, é um dos objetivos de praticamente todos os projetos político-pedagógicos. Para alcançá-lo é preciso, principalmente, que todas as
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áreas e disciplinas estejam articuladas. Nesse sentido, a ética pode oferecer uma mediação eficaz, uma espécie de liame entre todos os campos do ensino e do saber.
16.5 Reconstruindo a ética na escola: tarefas Mas como se insere a ética na escola? Em primeiro lugar, a ética encontra-se nas pró prias relações entre os agentes que constituem uma instituição de ensino: alunos, professores, funcionários e pais. Além disso, a reflexão sobre as diversas faces da conduta humana deve fazer parte dos objetivos maiores de uma escola comprometida com a formação para a cidadania – ou seja, a formação de cidadãos interessados no bem público, e não apenas indivíduos preocupados com as próprias carreiras. De fato, na escola pode se iniciar o pro cesso de reconstrução de valores e normas na medida em que ela se constitui em um espaço público de discussão e debate. Todavia, é preciso levantar uma questão prévia: pode-se chegar a um acordo a respeito da validade de normas que sejam aplicáveis por todos, ou seja, cujo cumprimento possa ser exigido de todos? Ora, a legitimação de uma norma ou lei não é feita por um sujeito supos tamente mais iluminado, mas por todos os agentes do processo, de forma livre e competente para interagir e comunicar-se. Cabe à escola propiciar um ambiente em que se aprenda na prática a participar dessa forma de interação moral. Isso porque, na atualidade, entende-se cada vez mais que não se legitimam normas ou leis a partir de princípios transcendentes ou de autoridade, mas pela ação comunicativa que se movimenta no interior da pragmática histórica. Sendo assim, “o processo de validação argumentativa, livre e competente fornece a base de aceitação universal da norma” (FREITAG, 1993, p. 245). Quando o debate é feito de forma democrática, respeitando todos que estão envolvidos e serão afetados pelas decisões, deve prevalecer o melhor argumento. Ora, a educação formal é sistemática e organizada, prevendo o cumprimento de objeti vos traçados por uma sociedade, com vistas a desenvolver nos educandos uma postura adequada à convivência social. Trazer a ética para o espaço escolar significa enfrentar o desafio de instalar no processo de ensino e aprendizagem, que se realiza em cada uma das áreas de conhecimento, uma constante atitude crítica de reconhecimento dos limites e possibilidades do sujeito e das circunstâncias, de problematização de ações e relações de valores e regras que norteiam esses limites. Todavia, é ilusório imaginar que a escola possa cumprir sua responsabilidade, no que tange à educação ética, encarregando apenas um professor de ética em alguma disciplina ou tema transversal: para que se obtenham frutos do trabalho com a ética, é prioridade da instituição que sua prática seja única, visando à coerência e à integridade como norma e constância, o que levará os discentes à conclusão de que se faz necessário um trabalho coe rente, comprometido. Ademais, é necessário abrir o leque da discussão para colaboradores externos, como sindicatos, partidos políticos, representantes dos três poderes, agremiações religiosas e meios de comunicação.
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Como a educação é um reflexo do cenário nacional, marcado por exclusão social, analfa betismo, repetências e evasão escolar, deve-se procurar constantemente uma abordagem pedagógica que sirva como mediadora entre a dimensão técnica (valorizada na educação tradicional) e a dimensão política (supervalorizada nas tendências filosófico-pedagógicas críticas). A ética vem então, veiculada junto à possibilidade de ser estabelecida uma ação pedagógica metodologicamente bem articulada com uma perspectiva crítica e transformadora, e passa, necessariamente, pela revisão de conceitos e valores morais como parte imprescindível da análise que cada indivíduo e cada organi zação deve desenvolver via postura reflexiva. (BLOTER, 2006, p. 143)
Para o perfeito êxito dessa postura, é preciso ter sempre em mente que o processo democrático de formação moral é um processo coletivo, em que a interação e o debate devem se pautar em normas que evitem a desqualificação dos interlocutores como sujeitos éticos, autônomos e conscientes das contribuições que têm a oferecer. Sem uma educação – e uma educação ancorada em princípios éticos – não se constrói um país, muito menos uma nação, pois, se um país é uma determinada área geográfica unida politicamente, uma nação é um país com consciência não só geográfica, mas sobre tudo cultural. Para uma eficiente refundação das bases morais e éticas, sobre as quais nossa sociedade possa se firmar, a escola torna-se um dos principais instrumentos na transmissão dos conteúdos fundamentais da vida em sociedade. É essencial que a escola, mais que edu cadora de ética, transforme-se em fomentadora de ética. Sem ética, rareia nossa capacidade de uma interação comunicativa e racional isenta de manipulação ou exclusão. Sem escola, limitam-se e quase se extinguem as chances de continuação de nossa civilização, pois ela é um espaço privilegiado para a transmissão da memória da espécie. Para além de mera disciplina ou tema transversal, hoje a ética na escola não é opcional: é um imperativo, uma exigência para a criação de uma sociedade democrática e justa. Diante dessa necessidade, poderíamos afirmar que, sem a prática formativa da ética, a escola perde sua razão de ser.
Ampliando seus conhecimentos Um retorno da losoa ética (RUSS, 1999, p. 5-10)
Tudo parece anunciar, hoje, um retorno da losoa ética: desenvolvi mento de novas correntes de pensamento, renascimento do debate ético e multiplicação das discussões. Assim, a reexão axiológica e moral bene cia-se de um favor inédito. Bioética, ética dos negócios, vontade de moralização da coisa pública ou da política, ética e dinheiro etc.: tudo se passa como se os anos atuais fossem os de renovação ética, os dos “anos da
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moral”, aparecendo o estandarte dos valores axiológicos como a referên cia última de nossas sociedades democráticas avançadas.
[...] A ética, reivindicada em toda a parte, ancora dicilmente suas normas e valores em um lugar que os funde e os justique. Ela parece mesmo, às vezes, não encontrável. [...] O fosso existente entre a exigência ética e o real trabalho fundador desemboca pois num paradoxo primeiro, numa separação entre a necessidade e a edicação requerida, o qual começa apenas a se esboçar, há cerca de 20 anos.
[...] Mas, dir-se-á, fala-se hoje de uma “ética dos negócios” ou de uma “ética da mídia”, éticas cuja signicação parece bem pouco teórica, éticas prá ticas, éticas, às vezes, próximas da deontologia. Na verdade, essas novas colorações semânticas – a ética confundindo-se então com um conjunto de regras – não nos poderiam fazer esquecer do sentido primeiro e fundamental da ética, como metamoral e doutrina fundadora enunciando os princípios. Se o uso contemporâneo é, às vezes, ambíguo, não repelimos o signicado original da ética. Os efeitos da moda não poderiam justicar o abandono de toda uma tradição losóca. Se a moral, com efeito, pode designar um impulso criador, ela se solidica em prescrições que a ética interroga, das quais suspeita e põe eventualmente à distância. [...]
Atividades 1. “A ética, reivindicada em toda a parte, ancora dicilmente suas normas e valores em um lugar que os funde e os justique”. O que esse trecho do Ampliando seus conhecimentos quer dizer?
2. Em um mundo que perdeu sua base de sustentação moral, como é possível elaborar um novo pacto ético, conforme a discussão realizada no capítulo?
3. Quanto à ética através dos tempos, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). (
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Coube a Protágoras o mérito de ter sido o primeiro a quebrar o vínculo entre moralidade e religião.
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Concordando com os sostas, Sócrates negava a existência de um saber universal e válido, decorrente da essência humana.
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) Analisando a organização das cidades gregas, Aristóteles isolou os bens, elegendo a virtude como o único bem digno de ser desejado.
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Tomás de Aquino reelaborou a ideia de felicidade da ética aristotélica colocando Deus como fonte dessa felicidade.
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A partir do nal do século XIX, bem como no decorrer do século XX, os lósofos passaram a se posicionar contra a moral kantiana, fundada em uma razão universal e abstrata.
Para Platão, que se apoiava na teoria das ideias transcendentes e imutáveis, a verdadeira virtude provém do verdadeiro saber, mas o verdadeiro saber é apenas o saber das ideias.
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17.1 No princípio Desde que existe filosofia e educação – e as duas nasceram praticamente juntas na Grécia –, elas andam intrinsecamente entrelaçadas. Entre outras coisas, a filosofia reflete sobre o que é o ser humano e como se dá sua formação, enquanto a escola, sendo o espaço em que se processa o cerne da educação formal, é a instituição encarregada dessa formação. Com efeito, Aristóteles foi o preceptor de Alexandre Magno e os sofistas foram os primeiros, no Ocidente, a cobrarem por suas aulas. Sócrates morreu em função de seu projeto de educar a nova geração, projeto este que foi entendido por seus juízes como corrupção da juventude. Desde então, boa parte dos filósofos tem se debruçado sobre os problemas concernentes à educação, de modo que podemos afirmar que todo filósofo é também educador e todo educador não deixa de ser filósofo. Todavia, filosofia e educação não são intercambiáveis. A educação, dentro de uma determinada sociedade, não é um fim em si mesma, mas antes um instrumento de manutenção (em uma perspectiva conservadora) ou de mudança social (em uma perspectiva transformadora). Cabe à filosofia elaborar os pressupostos e os valores norteadores que serão transmitidos por meio da ação educativa. Daí porque os vínculos que unem filosofia e educação são estreitos a ponto de às vezes as duas se confundirem. Filosofia da educação
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A seguir, faremos algumas reflexões sobre a relação entre filosofia e formação humana na escola. Para tanto, iremos nos basear em Kant (que entendia claramente a educação como formação) e a ele somaremos alguns aportes de Marx, que nos ensinou que todo produto da superestrutura (arte, religião, cultura etc., isto é, as produções imateriais do ser humano) está condicionado pelas coordenadas da infraestrutura (ou seja, suas relações materiais de produção, as bases econômicas de sua vida).
17.2 A educação como formação No âmbito da filosofia, frequentemente a educação é vista como formação. Immanuel Kant (1996, p. 11-15) já dizia: “O homem é a única criatura que precisa ser educada. [...] O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”. Sob esse ponto de vista, o ser humano necessita da educação, pois é ela que o constitui plenamente humano. Mais adiante, acrescenta: “É entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação e que é possível che gar a dar aquela forma que em verdade convém à humanidade” (KANT, 1996, p. 17). Mas que forma convém à humanidade? Haveria uma forma à qual se devem adaptar todos os seres humanos para o melhor desenvolvimento de suas potencialidades? Kant che ga a falar mesmo em germes: “Há muitos germes na humanidade e toca a nós desenvolver, em proporção adequada, as disposições naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer com que o homem atinja sua destinação” (1996, p. 18). Esses germes não são destinados ao mal, pois “no homem não há germes, senão para o bem” (KANT, 1996, p. 24). Cumpre à educação canalizá-los para o bem. Evidentemente, poderão ocorrer des vios, mas, se isso acontecer, esses desvios serão devidos mais à falta de uma educação adequada, a qual incluiria o cuidado, a disciplina e a formação. Quanto à formação, eis o que afirma o filósofo de Königsberg: “O homem tem necessi dade de cuidados e de formação. A formação compreende a disciplina e a instrução” (KANT, 1996, p. 14). Assim, para Kant, a formação tem dois momentos: 1. o momento negativo , em que se impõe a disciplina que impede os defeitos; 2. o momento positivo, quando entram em cena a instrução e o direcionamento. O direcionamento é a condução na prática daquilo que foi ensinado na instrução. Aqui surge a distinção entre o professor e o governante: o primeiro ministra a educação da escola; o segundo, a da vida. Assim, a formação humana constitui a humanidade, pois há germes de humanidade que necessitam de desenvolvimento: “A espécie humana é obrigada a extrair de si mesma pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualidades naturais que pertencem à humanidade” (KANT, 1996, p. 12). Mas qual é a humanidade que é o objeto dessa formação? Há uma em especial predefini da? Sim e não é a resposta de Kant. Ao mesmo tempo que já existe uma humanidade em germe, existem também fins humanos que devem ser construídos conforme as circunstâncias.
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E quais são esses fins? “Bons são aqueles fins que são aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um” (KANT, 1996, p. 27). Em contrapartida, não é simples essa tarefa de estabelecer os fins, mas esse é o dever da humanidade. Ao contrário dos animais, que realizam apenas o que está previsto em seus instintos, os seres humanos são obrigados “a tentar conseguir o seu fim; o que ele (o ser humano) não pode fazer sem antes ter dele um conceito” (KANT, 1996, p. 18). Por outro lado, para Karl Marx e Friedrich Engels, a formação humana é uma construção coletiva e histórica que se dá a partir de elementos naturais dados, mas se concretiza nas relações materiais de produção: “O pressuposto de toda a história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza” (1979, p. 27). Por sua vez, essa organização corporal condiciona aquilo que diferenciará os “homens dos animais, isto é, a produção dos seus meios de vida” (MARX; ENGELS, 1979, p. 27). A partir daí os pais do materialismo histórico delineiam os marcos da realização hu mana na história. Primeiramente, vem a produção dos meios que permitem a satisfação das necessidades de “comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais” (MARX; ENGELS, 1979, p. 39). A satisfação dessas necessidades básicas, por sua vez, conduz a novas necessidades, que são consequentemente mais ampliadas. Decorre daí o processo de pro dução coletiva, o qual adquiriu, historicamente, as mais diversificadas modalidades. Assim, os seres humanos vivem e tornam-se humanos no trabalho, isto é, nas relações materiais de produção, que implicam, por seu turno, nas relações sociais. É no conjunto de tais relações que se constata “que o homem tem consciência” e que ela “é desde o início um produto social” (MARX; ENGELS, 1979, p. 43). A conclusão é lógica: “Vê-se aqui que os indivíduos fazem-se uns aos outros , tanto física como espiritualmente, mas não se fazem a si mesmos” (MARX; ENGELS, 1979, p. 55), isto é, somos produtos de nossas relações interpessoais, de nossas redes sociais, de nossas condições de trabalho. O self-made-man , isto é, o “homem que se fez sozinho”, é uma ilusão, pois mesmo ele é resultado de seu meio. No caso, ele é fruto de uma ideologia individualista. Assim, para Marx e Engels a formação humana é solidária: ela se dá nas interações so ciais que incluem necessariamente as relações produtivas. Essas interações sociais inserem a transmissão, para as novas gerações, “de uma soma de forças de produção” e de uma “relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos” que, [...] embora sendo em parte modificada pela nova geração, prescreve a esta suas próprias condições de vida e lhe imprime um determinado desenvolvimento, um caráter especial. Mostra que, portanto, as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias. (MARX; ENGELS, 1979, p. 56)
Kant fala de uma humanidade constituída a partir dos “germes de humanidade” e, concomitantemente, construída nas “circunstâncias”. Marx e Engels apontam as circunstâncias como configuradoras da humanidade, mas circunstâncias criadas – elas mesmas – pelos próprios humanos.
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Também é importante constatar que, na tradição marxista, as circunstâncias – ou o con junto das relações de produção – podem ser benéficas ou maléficas para a constituição dos humanos. Daí ser necessário, igualmente, avaliar as circunstâncias, discutir os critérios para a definição do que é benéfico ou maléfico para a humanização do humano. Aqui a pergunta inicial se amplia: não apenas o que é formação humana, mas o que é formação humana boa – o que remete à questão antropológica básica sobre o que é o humano. Debruçar-se filoso ficamente sobre essa questão – o que é o ser humano e qual é o significado de sua existência – é uma das principais atribuições da filosofia da educação: [...] impõe-se à filosofia da educação a construção de uma imagem do homem como sujeito fundamental envolvido na educação. Trata-se de delinear o sentido mais concreto da existência humana com relação às suas coordenadas de educa bilidade. Como tal, a Filosofia da Educação constitui-se como uma antropologia filosófica, entendida como tentativa de construção de uma visão integrada do ser humano. (SEVERINO, 2004, p. 31)
17.3 A formação como humanização É com base nessas premissas que é possível falar em formação humana, isto é, o proces so de autoconscientização por meio do qual um indivíduo se torna pessoa humana. Essa to mada de consciência é o que constitui a dimensão subjetiva, a qual exige o desenvolvimento de uma série de sensibilidades sociais: a sensibilidade para os valores morais (consciência ética), a sensibilidade para os valores estéticos (consciência estética) e a sensibilidade para os valores políticos (consciência social): Não bastam a integridade física, biológica, o bom funcionamento orgânico, as forças instintivas para uma adequada condução da vida humana. Sem a vivência subjetiva continuamos como qualquer outro ser vivo puramente natural, regido por leis predeterminadas, vale dizer, sem possibilidades de escolhas, sem flexi bilidade no comportamento. (SEVERINO, 2002, p. 185)
Para Kant (1996), “quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem”. Para Edgar Morin, “o primeiro capital humano é a cultura. O ser humano, sem ela, seria um primata do mais baixo escalão” (2005, p. 35). Assim, no ser humano não há dissociação entre o biológico e o cultural, entre o individual e o social: Como não ver que o mais biológico – o nascimento, o sexo, a morte – é, ao mesmo tempo, o mais impregnado de símbolos e de cultura? Nascer, morrer, casar-se são também atos religiosos e cívicos. Nossas atividades biológicas mais elementares, comer, beber, dormir, defecar, acasalar-se estão estreitamente ligadas a normas, interdições, valores, símbolos, mitos, ritos, prescrições, tabus, ou seja, ao que há de mais estritamente cultural. Nossas atividades mais espirituais (re fletir, meditar) estão ligadas ao cérebro, e as mais estéticas (cantar, dançar) estão
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ligadas ao corpo. O cérebro, pelo qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos, são totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, culturais. (MORIN, 2005, p. 53)
Nessa relação dialógica, a natureza e a cultura são contrários que se antagonizam e se completam, constituindo desse modo o mundo humano, que é biológico e cultural ao mesmo tempo. É nessa complexa relação que é formado o ser humano. Mas o que vem a ser a formação? É processo do devir humano como devir humanizador, mediante o qual o indivíduo natural devém 1 um ser cultural, uma pessoa. Para nos darmos conta do sentido desta categoria, é bom lembrar que ela envolve um complexo conjunto de dimensões que o verbo formar tenta expressar: constituir, compor, ordenar, fundar, criar, instruir-se, colocar-se ao lado de, desenvolver-se, dar-se um ser. É interessante observar que seu sentido mais rico é aquele do verbo reflexivo, como que indicando que é uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito. Nesta linha, afasta-se de alguns de seus cognatos, por incompletude, como informar, reformar e repudia outros por total incompatibilidade, como conformar, deformar. Converge apenas com transformar. (SEVERINO, 2006, p. 2)
Aliás, Kant já havia afirmado, em Antropologia de um ponto de vista pragmático, que “para indicar a classe do ser humano no sistema da natureza viva e assim o caracterizar, nada mais nos resta a não ser afirmar que ele tem um caráter que ele mesmo cria para si enquanto é capaz de se aperfeiçoar segundo os fins que ele mesmo assume” (2006, p. 216). Todavia, Kant não deixou de colocar o problema da relação entre liberdade e disciplina no processo formativo: “Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, o cons trangimento é necessário! Mas, de que modo cultivar a liberdade?” (1996, p. 34). A liberdade, a autonomia, é a grande meta formativa do processo educacional para Kant, só que uma liberdade corretamente dirigida, que se forma não de maneira mecânica, mas no embate entre os mais diversos desejos e tendências e as exigências sociais. É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem esta condição não haverá nele senão algo mecânico; e o homem, terminada a sua educação, não saberá usar a sua liberdade. É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é ne cessário para tornar-se independente. (KANT, 1996, p. 34)
É nesse jogo entre princípio do prazer e o princípio da realidade, para citarmos Freud, entre liberdade e necessidade, individualidade e sociabilidade, espontaneidade e disciplina, que o indivíduo se forma e se torna realmente humano. Um ser humano criado na selva, longe de qualquer relação com outros indivíduos de sua espécie – o mito de Tarzan –, nada mais seria do que um primata com poucos pelos. 1
Do verbo devir (“vir a ser; tornar-se, transformar-se”): o indivíduo natural torna-se um ser cultural. Filosofia da educação
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17.4 A escola como espaço privilegiado da formação Já que o ser humano não nasce plenamente humano, mas se torna humano por meio de um prolongado processo formativo, a escola – que é por excelência a instituição de forma ção – torna-se fundamental nessa tarefa de humanização do humano. É verdade que existem outras instituições que com ela dividem essa responsabilidade formativa: as religiões e seus sistemas de crença e culto, a família e, recentemente, os modernos meios de comunicação de massa. Porém, a família – pelo menos a família nuclear como a conhecemos no Ocidente nos últimos séculos – está em crise. E, antes de prosseguir, vamos esclarecer o que é essa família nuclear: é a “célula” da família, formada por pai, mãe e filhos. O conceito de família nuclear opõe-se ao conceito de família extensa , isto é, aquela família que, além da “célula principal”, acolhe outros indivíduos, como avós, cunhados, agregados, empregados domésticos etc. Na verdade, o que talvez esteja em crise é a família nuclear, pois, com efeito, a família em si mesma é uma instituição elástica, que vai assumindo as mais variadas formas segundo mudam as condições sociais. E, da mesma maneira que a família nuclear parece estar em crise, as religiões e igrejas também não gozam do mesmo prestígio e autoridade que nas épocas pré-modernas. Os meios de comunicação de massa ainda são muito recentes para que se possa auferir sua capacidade de formação – e em uma sociedade voltada para o mercado, muitas vezes o que se percebe do efeito desses meios é negativo. Por tudo isso, cabe à escola, às instituições de ensino, a maior parte da responsabilidade pela transmissão da cultura, pela formação do homem. Com efeito, é nos cada vez mais longos períodos passados na escola que se dá – ou pode vir a dar-se – o processo de humanização do humano. A transmissão da cultura e dos valores que são considerados válidos por uma determinada sociedade se efetua, portanto, de modo privilegiado na escola. E é aí que entra em cena o papel fundamental da filosofia: Esta é uma tarefa impossível de se realizar na pura empiria do viver, desarma do. É preciso, então, um recurso que na sua culminação final, evidentemente, seja racional, com todas as limitações que este filtro tem, e que, afinal, é o único filtro que traduz o vivido e faz o feedback do pensar e do viver. Então, em outras palavras, é necessário filosofar para exercer a crítica cultural neste sentido pleno. (DI GIORGI, 1980, p. 77)
A formação humana é tematizada, por diversos motivos, pela filosofia e, em especial, pela filosofia da educação. No momento histórico em que vivemos, talvez seja este um dos maiores desafios para a educação: poder contar com o apoio reflexivo e crítico da filosofia.
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Ampliando seus conhecimentos
A busca do sentido da formação humana (SEVERINO, 2006)
Na cultura ocidental, a educação foi sempre vista como processo de formação humana. Essa formação signica a própria humanização do homem, que sempre foi concebido como um ente que não nasce pronto, que tem necessidade de cuidar de si mesmo como que buscando um estágio de maior huma nidade, uma condição de maior perfeição em seu modo de ser humano. [...] A educação e ducação não é apenas um processo institucional institucional e instrucional, seu lado visível, visív el, mas fundamentalmente um investimento formativo do humano , seja na particularidade da relação pedagógica pessoal, seja no âmbito da relação social coletiva. Por isso, a interação docente é considerada mediação universal e insubstituível dessa formação , tendo-se em vista a condição da educabilidade do homem. Trata-se, sem dúvida, de um objetivo que soa utópico e de difícil conse cução à vista da dura realidade histórica de nossa existência. No entanto, foi sempre um horizonte constantemente almejado e buscado. E ainda o continua sendo mesmo diante das condições atuais da civilização, por mais que estejam marcadas pelo poder de degradação no mundo técnico e produtivo do trabalho: de opressão na esfera da vida social; e de alienação no universo cultural. Essas condições manifestam-se, em que pesem as alegações em contrá rio de variados discursos, como profundamente adversas à formação, o que tem levado a um crescente descrédito quanto ao papel e à relevância da Educação, como processo intencional e sistemático. No entanto, essa situação degradada do momento histórico-social que atravessamos só faz aguçar o desao da formação humana, necessária pelas carências ônticas e pela contingência ontológica dos homens, mas possível pela educabili dade humana. Quando se fala, pois, em educação para além de qualquer processo de qua licação técnica, o que está em pauta é uma autêntica Bildung , uma paideia, formação de uma personalidade integral.
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Filosofia e formação humana na escola
Atividades 1. Segundo Kant, “o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”. Analise essas armações e registre os resultados.
2. Para Marx e Engels, “os indivíduos fazem-se uns aos outros , tanto física como espiri tualmente, mas não se fazem a si mesmos”. Em outras palavras, o ser humano não se constrói sozinho, mas é construído socialmente em suas relações sociais, sobretudo em suas relações produtivas, isto é, as relações de trabalho. Essas interações sociais incluem a transmissão, para as novas gerações, “de uma soma de forças de produção” e de uma “relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos” – e essa transmissão é feita pela educação. Quais são as consequências lógicas desses pressupostos na compreensão da formação humana na escola?
3. Neste capítulo trabalhamos com conceituações de Kant e de Marx e Engels. Iden tique suas origens assinalando com K quando provier do primeiro e M quando provier dos outros dois.
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(
) O homem é aquilo que a educação dele faz.
(
)
O pressuposto de toda a história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua relação com o resto da natureza.
(
)
Bons são aqueles ns que são aprovados aprovados necessariamente por todos e que que podem ser, ao mesmo tempo, os ns de cada um.
(
)
Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem.
(
, tanto física como ) Vê-se aqui que os indivíduos fazem-seuns aos outros espiritualmente, mas não se fazem a si mesmos .
(
) O homem tem necessidade de cuidados e formação. A formação compreende a disciplina e a instrução.
(
) As circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias.
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A filosofia clínica (FC) é frequentemente associada à área da saúde devido à pala vra clínica. Contudo, se partirmos de sua etimologia, ou seja, da origem da palavra, veremos que se trata de um grande equívoco. Isso porque ela vem do grego klinique , que se refere à capacidade humana de inclinar-se próximo ao outro para poder ouvi-lo. E nossos educandos, de modo geral, são carentes disso. Dessa forma, o objetivo central deste capítulo é que o educador, ao se apropriar dos conceitos aqui presentes, possa vivenciá-los durante seu fazer pedagógico e perce ber uma qualidade no que tange tange à aprendizagem de seus seus educandos. Filosofia da educação
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18.1 Historicidade da filosofia clínica Um dos aspectos mais interessantes da filosofia é sua preocupação com o rigor semântico dos conceitos. Isso significa que, no momento do diálogo entre dois ou mais atores sociais, é ne cessário, antes de tudo, a definição de conceitos. Isso é importante para que haja o entendimento de qualquer conceito, e além disso, essa é a condição primeira para que o diálogo seja autêntico. Nesse sentido, Newton Aquiles Von Zuben, na introdução para a versão brasileira da tu clássico da filosofia de autoria de Martin Buber (1878-1965), traz uma imporobra Eu e , tante reflexão acerca dessa implicação: A reflexão inicial de Eu e Tu apresenta a palavra como sendo dialógica. A categoria primordial da dialogicidade da palavra é o “entre”. Mais do que análise objetiva da estrutura lógica ou semântica da linguagem, o que faria da palavra um simples dado, Buber desenvolve uma verdadeira ontologia da palavra atri buindo a ela, como palavra falante, o sentido de portadora de ser. É através dela que o homem se introduz na existência. Não é o homem que conduz a palavra, mas é ela que o mantém no ser. Para Buber a palavra proferida é uma atitude efetiva, eficaz e atualizadora do ser do homem. Ela é um ato do homem através do qual ele se faz homem e se situa no mundo com os outros. A intenção de Buber é desvendar o sentido existencial da palavra que, pela sua potencialidade que o anima, é o princípio ontológico do homem como ser dia-logal e dia-pessoal. As palavras-princípio (“Grundworf ”) ”) são dois polos, entre duas consciências vivivivi das. (BUBER, 2001, p. 28)
Uma vez dito isso, é necessária a distinção entre história e historicidade. Por história entendemos o relato dos fatos ou acontecimentos de maneira objetiva, isto é, a simples descrição dos fenômenos com o máximo de objetividade objet ividade possível. Contudo, historicidade é algo bastante distinto. Na filosofia clínica, historicidade é a forma com que cada um significa os acontecimentos em sua caminhada existencial, desde a infância até o momento atual. A historicidade ocorre, por exemplo, quando contamos um pouco sobre acontecimentos que já vivemos. Certamente, ao fazermos esse relato, vamos ressaltar fatos que são mais significativos para nós. Assim, podemos dizer que na historicidade a subjetividade se faz presente de modo mais intenso, pois ela consiste no relato de experiências e xperiências significativas. Diante dessa perspectiva, traçamos o histórico da filosofia clínica, nascida em nosso país. Ela foi sistematizada pelo filósofo Lúcio Packter a partir da segunda metade da déca da de 1980 e teve sua primeira turma de formação em 1995, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A Associação Nacional de Filósofos Clínicos (ANFIC) 1 – fundada no ano de 2008, na cidade de Vitória, Espírito Santo – tem a premissa de organizar e regulamentar a atuação desses profissionais em nosso país. São filiados à ANFIC aproximadamente 20 centros de formação de filosofia clínica no Brasil. 1
Para saber mais, visite o site da ANFIC: . Acesso em: 3 jan. 2018.
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A FC é entendida por muitos como um método terapêutico, fundamentado na tradição filosófica ocidental. No entanto, entendemos que ela também se constitui em uma teoria filosófica, dada a densidade de seu escopo teórico. Em seu processo de sistematização, Packter encontrou pressupostos para a base teórico-epistemológica em diferentes correntes de pensamento na tradição filosófica ocidental. Entre as mais importantes destacamos a lógica formal, a analítica de linguagem, a fenomenologia, o empirismo, a estética e o existencialismo. O filósofo ocupou-se principalmente da fenomenologia, abordada por Edmund Husserl (1859-1938). Com base nas contribuições desse filósofo, a filosofia clínica estuda a estrutura do pensamento por meio da historicidade e do exame das categorias de seu partilhante. Com a clínica terapêutica, é possível entender como a singularidade de um partilhante se constitui. A teoria de Packter relaciona questões já apontadas por outros pensadores, especial mente aquelas que tangem ao indivíduo. Desse modo, podemos afirmar que a filosofia clí nica pertence ao humanismo, doutrina que coloca o homem e a condição humana como prioridade. Nos próximos anos, é muito provável que ouviremos muito sobre a FC, uma vez que ela pode contribuir (e bastante) na qualidade do processo ensino-aprendizagem.
18.2 Principais conceitos da filosofia clínica e sua aplicabilidade na educação A filosofia clínica é rica em neologismos, ou seja, é abundante no emprego de novas palavras. Somente por Packter foram sistematizadas mais de 70 expressões. No entanto, neste capítulo nos ocupamos apenas daquelas que são relevantes para o processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, um conceito precioso para a FC (e que pode ser utilizado no fazer pedagógico) é o de interseção. Na matemática, a interseção consiste na repetição de elementos comuns entre dois ou mais conjuntos. Já para nós, quando dizemos, por exemplo, que há uma boa interseção entre o professor e seus educandos, na verdade nos referimos à qualidade dessa relação. Nesse sentido, o conceito de interseção é fundamental para o processo ensino-aprendizagem, afinal, sem uma boa interseção entre o clínico e o partilhante, a terapia (e o processo de ensino-aprendizagem) ficará comprometida. Outro conceito importante é o de estrutura de pensamento (EP), definido como tudo o que há em nossa malha intelectiva. O que na psicologia se chama mundo psíquico , na filosofia clínica é chamado EP. No encontro do filósofo clínico com o partilhante, a melhora existencial ocorre quando há uma boa interseção entre eles. E uma interseção fraca ocorre geralmente quando, por exemplo, o professor não sabe agendar de maneira adequada. Agendar consiste em marcar algo na estrutura de pensamento do outro. Os agendamentos ocorrem pelos diversos dados de semiose, ou seja, pela fala do professor, pelo olhar, por gestos etc. Assim, podemos dizer que a qualidade da interseção depende de bons agendamentos. Verificamos esse tipo de situação em nosso cotidiano quando muitas vezes alguns professores dizem: “Você já reprovou no ano passado”, “Deste jeito vai reprovar de novo” ou
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“Esta turma não tem mais jeito”, “Vocês não querem aprender”. Isso não contribui para a construção de uma boa interseção no fazer pedagógico. Nesse sentido, antes de se dirigir aos educandos, é importante realizar uma reflexão do que será dito. Existe uma diferença considerável em dizer “seu filho precisará fazer aulas de apoio” e “seu filho precisa fazer reforço”, tratam-se de coisas distintas. A primeira frase indica que o educando necessita da ajuda de alguém para ter mais foco. Já a segunda, co mumente utilizada, traduz a ideia de que o estudante é fraco e que por isso precisa estudar tudo novamente. Dessa maneira, é necessário ter cuidado acerca do modo de dizer, explicar etc. e quais palavras serão utilizadas para um agendamento. Afinal, elas podem contribuir para que os educandos busquem se superar, mas também podem puxá-los para baixo, fato que pode levar à perda do interesse pelos estudos.
18.3 As contribuições da filosofia clínica no fazer pedagógico Na fenomenologia há um conceito muito importante para a FC, a epoché . Em grego, epoché significa “suspensão do juízo”, ou seja, não julgar. Na filosofia clínica, esse conceito é indispensável porque, diante do partilhante, cabe ao filósofo clínico “inclinar-se para ou vir”. A escuta é fundamental. Antes de qualquer agendamento, é necessário primeiramente saber como o outro “funciona”. Conhecer a historicidade do partilhante é imprescindível para realizar os agendamentos de maneira assertiva. Por isso, o professor, ao lecionar em um novo local ou realizar uma palestra, primeiro deve fazer uma boa escuta. É fundamental conhecer um pouco sobre a história do colégio, sua proposta pedagógica e missão. A construção de uma boa interseção entre o professor e seus educandos e também com os demais profissionais é fundamental para sua sustentabilidade como educador. A qualidade do ensino-aprendizagem é evidenciada com maior facilidade para os educadores que conseguem construir uma boa interseção com os educandos e seus familiares. Com isso, há sempre uma sinergia em curso, razão pela qual os resultados pedagógicos, de modo geral, são bons.
18.4 Filosofia clínica e humanismo Conforme mencionado, a filosofia clínica nasceu no Brasil na segunda metade do sé culo XX, idealizada por Packter. Da mesma forma que uma criança necessita de um tempo de gestação para nascer, assim ocorreu com essa corrente de pensamento. Foram anos de pesquisas e estudos para que essa nova metodologia pudesse surgir. Mas qual é nossa intenção ao destacar a importância de essa corrente filosófica ter nascido no Brasil? De modo geral, quando falamos de correntes filosóficas, logo nos reportamos
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ao pensamento europeu. Muitas vezes esquecemos que somos capazes de estabelecer novas formas de ver o mundo. Pensar que somos meros satélites do pensamento eurocêntrico é, de certo modo, “nos assemelharmos ao conceito de homem fraco de Espinosa (1632-1677)”. “É fundamental acreditarmos que também podemos deixar nossa contribuição para a humanidade, como fizeram os gregos quando nos deixaram o legado da filosofia”. Isso porque somos seres dotados da faculdade da razão como eles. No entanto, é ainda muito comum intelectuais brasileiros priorizarem o que vem da Europa ou dos Estados Unidos (TRICHES, 2017). Do mesmo modo, foi mencionado anteriormente que a FC fundamenta sua teoria em outras áreas da filosofia, como o logicismo formal, o empirismo, o historicismo etc. Assim, com base nesses pressupostos, e à luz dos mais de 70 neologismos criados por Packter, podemos seguramente afirmar que essa nova abordagem teórica é considerada filosofia propriamente dita. Por essa razão, até hoje não houve qualquer contestação por parte de outras correntes, no sentido de dizer que essa metodologia tem se apropriado de seu instrumental técnico-operativo. No entanto, voltamos ao tema central deste tópico: afinal, por que a FC é relacionada ao humanismo? O que significa ser humanista? Para ser humanista, é necessário gostar das pessoas e acreditar que nunca é tarde para se aperfeiçoar. A tese difundida como uma verdade científica de que “pau que nasce torto morre torto” é prontamente refutada. A FC também parte desse pressuposto. Packter destaca que a missão da FC consiste na construção de um mundo subjetivamente melhor, mais justo e desenvolvido, em que cada estrutura de pensamento em cada pessoa possa evoluir conforme suas disposições últimas. Sartre (1964) afirmou em sua obra O existencialismo é um humanismo que “o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo”. Podemos dizer que a FC contribui para isso. E, para ilustrar essa questão, podemos pensar, por exemplo, em uma pessoa que procura um filósofo clínico por estar vivendo um momento de grande dor existencial. Nesse caso, o que é o nada? É o ainda não , ou seja, outro endereço existencial de maior conforto para sua alma. Esse endereço pode “vir ao mundo” se o partilhante assim permitir. Nesse caso, o filósofo clínico terá ferramentas para possibilitar que seu partilhante mude tal endereço de dor e busque outro de maior conforto. Ao contribuir para melhorar o endereço existencial de um partilhante, o filósofo clí nico está escolhendo a humanidade. Isso porque, por meio da FC, é possível mostrar o caminho para que essa pessoa seja mais forte e viva mais próxima da ética. Por isso, a FC é um humanismo à medida que se propõe a cuidar e acompanhar o partilhante até que ele possa “andar com suas próprias pernas”. Essa premissa está presente no Código de Ética dos filósofos clínicos 2. Nesse sentido, percebemos que a FC é um paradigma que está permanecendo. O crité rio para saber se um novo paradigma permanecerá na história é conhecer seus pressupostos. 2 Para ler o Código de Ética na íntegra, acesse: . Acesso em: 3 jan. 2018. Filosofia da educação
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Se eles tiverem por finalidade o processo de humanização do homem, o número de atores sociais que aderem a ele é grande. E é grande o número de filósofos, pedagogos, sociólogos, historiadores, médicos, psicólogos, entre outros profissionais que buscam conhecer essa nova corrente da filosofia. Por fim, no que tange ao fazer pedagógico, o professor, ao lançar mão da metodologia da filosofia clínica, perceberá que a relação ensino-aprendizagem será facilitada. Isso por que, no processo da escuta seletiva, o professor conhecerá melhor a historicidade de seus alunos e fará os agendamentos adequados. Consequentemente, as interações com os edu candos melhorarão de maneira significativa, razão pela qual o conhecimento será resultado desse processo de construção compartilhada. Esse argumento vem ao encontro tanto da pedagogia histórico-crítica quanto do que se convencionou chamar de concepção construtivista da educação, presente em projetos políticos-pedagógicos de muitas escolas públicas e privadas. Dessa forma, certamente ainda ouviremos falar muito sobre as contribuições que essa corrente de pensamento pode dar à educação.
Ampliando seus conhecimentos
Pensamento educativo em Martin Buber (BERTOJA, 2017, p. 81-96)
Martin Buber foi um dos mais importantes pensadores do século XX. O seu legado, uma losoa centrada no homem e nas suas relações, tendo foco tanto na individualidade quanto na coletividade, é fruto de sua história, como se pode perceber nos vários escritos sobre sua biograa e na sua autobiograa. Pensador, lósofo, pedagogo, nascido na Áustria em uma família judaica, viveu entre os anos 1878 e 1965 e teve a vida marcada por eventos fortes e determinantes em sua constituição, como a separação de seus pais, a infância com os avós, o judaísmo, o hassidismo, a participação no movimento sionista. Segundo ele mesmo, um dos mais signicativos foi a separação de seus pais, quando tinha apenas três anos, fato que o levou a viver com seus avós. [...] Buber apresenta dois pares de palavras-princípio: Eu-Tu e Eu-Isso, mos trando que o Eu do homem é também duplo, sendo um Eu diferente em cada par das palavras-princípio. Ele arma que o ser, na sua totalidade, pode somente proferir a palavra-princípio Eu-Tu em um encontro que é caracterizado pela reciprocidade, pela profunda abertura ao envolvimento pessoal. Ao passo que o Eu da palavra princípio Eu-Isso se caracte riza pela impessoalidade na relação, transformando o Isso num objeto a
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ser manipulado. Buber arma: “O mundo como experiência diz respeito à palavra princípio Eu-Isso. A palavra princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação”. Continua explicando que o Isso pode também se referir a pessoas e não somente a coisas. Isto acontece quando numa relação entre homens não há o verdadeiro diálogo, o envolvimento de interlocutores ativos, numa relação de dialogicidade. Sobre essa questão, ele arma que “Dois homens que estão dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados um-para-o-outro; devem, portanto – e não importa com que medida de atividade ou mesmo consciência de atividade –, ter-se voltado um para o outro”.
[...] Trazer para o seio do processo educativo a proposta dialógica de Buber e a educação do pensamento de Packter certamente poderá fazer com que a escola se torne verdadeiramente um espaço da formação humana tão necessária nos dias atuais.
Atividades 1. Por que podemos considerar a losoa clínica um humanismo? 2. No que consiste a interseção? Qual é sua relação com o processo de ensino-aprendizagem?
3. Por que o neologismo agendar – sistematizado por Packter – é tão importante para o fazer pedagógico?
4. Como a losoa clínica pode contribuir com o processo ensino-aprendizagem?
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Respostas
1. Um convite à filosofia 1. A resposta deve apresentar uma reexão pessoal sobre o texto complementar e a citação de Mari lena Chaui. Tanto para Marilena Chaui quanto para Will Durant, a losoa difere da ciência pela visão de con junto: enquanto a ciência tem seu foco nas partes do todo, a losoa se interessa na relação dessa parte com as demais partes. Por isso, a primeira é analítica e a segunda é sintética. Não se confundindo com nenhuma das ciências em particular, mas ao mesmo tempo não deixando de lançar um olhar sobre todos os objetos dessas ciências, a losoa tem por meta remontar “esse grande relógio que é o universo”, cujas peças foram separadas e analisadas minuciosamente pelas ciências. Sem essa visão ampla proporcionada pela reexão losóca, é impossível vislumbrar um signicado para os fenômenos do mundo. No entanto, a losoa não pode ser dogmática, já que ela é consciente da contingência de suas proposições. Anal, ela “sabe que está na história” e que, portanto, suas posições estão de certa forma condicionadas pelas coordenadas históricas nas quais se insere.
2. 6, 1, 4, 2, 7, 3, 5. 3. F, V, F, F, V. Filosofia da educação
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Respostas
2. Sócrates e a filosofia moral ocidental 1. d, a, f, e, g, c, b. 2. Quanto ao primeiro exemplo, Sócrates pode recordar que a educação, por mais im portante que seja, não é a panaceia para todos os males, pois pode ocorrer que o mercado de um determinado país não tenha condições de absorver a demanda de todos os estudantes formados em uma dada situação, por exemplo. É bom lembrar, além disso, que o nazismo surgiu em um país com altos índices de educação e cultura – a Alemanha. Portanto, sozinha a educação não garante um justo desenvolvimento social e humano em todas as ocasiões. Ela deve vir conjugada com outros fatores. No segundo caso, a maiêutica é até mais fácil porque se cobra a realização da mulher na maternidade e não há uma cobrança (ou pelo menos ela não ocorre da mesma forma) de que o homem se realize na paternidade. A resposta é simples: jogando toda a responsabilidade da educação da prole para a mulher, o homem permanece livre para buscar a sua realização onde lhe aprouver. Portanto, a armação de que a mulher só se realiza plenamente na maternidade é de cunho machista, patriarcal (a sociedade erigida em torno da gura e da autoridade do pai) e androcêntrico (isto é, uma visão de mundo que toma o ser humano masculino como medida e regra – andros vem do grego e signica exatamente o ser masculino). A terceira armação, a de que artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua, é outra simplicação. Se muitas vezes o artista e até o cientista são um nefelibata (isto é, alguém que vive nas nuvens), isso é frequentemente uma atitude de protesto diante de uma sociedade mercantilista e tecnicista. Todavia, há não poucos artistas (e sobretudo cientistas) que fogem por completo desse estereótipo.
3. Um dos objetivos de Sócrates, por meio de seu método, era justamente fazer com que os seus interlocutores se libertassem do senso comum e chegassem às suas próprias conclusões a respeito dos processos da vida. A letra de Chico Buarque, por sua vez, é construída pela inversão de uma série de lugares-comuns. Esta é a função do lósofo, este é o objeto do método de Sócrates: desconstruir o saber instituído, as verdades baratas do senso comum, e apontar para um novo jeito de ver e pensar as coisas.
3. Platão e o nascimento da razão ocidental 1. Várias são as interpretações possíveis desse mito de Platão. A primeira delas é que esse homem que consegue sair da caverna é Sócrates. Com efeito, Sócrates, ao tentar mostrar aos seus concidadãos a possibilidade de um outro mundo, ou seja, de uma
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Respostas outra compreensão do mundo, baseada na razão, não foi compreendido, sendo condenado à morte por ingestão de cicuta. Os indivíduos que vivem como se estivessem acorrentados são aqueles que vivem presos ao mundo dos sentidos, isto é, tomam por verdade somente aquilo que seus sentidos apreendem diretamente. Por esse motivo estão também presos à doxa , à opinião, ao palpite. No entanto, existem aqueles que procuram a episteme , a ciência, ou seja, a verdade para além daquilo que é primariamente apreendido pelos sentidos.
Muitos programas de televisão certamente poderiam ser considerados como representação dessa caverna. A vida de muitos brasileiros, que circulam em condomínios
de luxo e em shopping centers , também está aprisionada pelas “cavernas” de seu ponto de vista, impedindo-os de ver a realidade como ela é à sua volta. Consumismo e individualismo de um lado, pobreza e ignorância de outro, são algumas das possíveis cavernas modernas, que nos mantêm presos à doxa , vivendo apenas no senso comum.
Esse mito também pode ser esclarecedor de nosso papel como educadores. Será que o que ensinamos para os nossos alunos está contribuindo para a sua autonomia e para que eles consigam sair do mundo das opiniões, do mundo da doxa? A educação deve ser libertadora de todos os condicionamentos sociais, os preconceitos, as superstições. Só assim ela pode nos impelir para fora de nossas cavernas.
2. e, f, c, a, d, b. 3. C.
4. Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes 1. a. A família é uma associação constituída para suprir as necessidades cotidianas dos seres humanos. Quando várias famílias se unem – e essa associação aspira a algo mais do que suprir as necessidades diárias –, constitui-se a primeira so ciedade, a aldeia. Por sua vez, quando várias aldeias se unem em uma única comunidade grande o bastante para ser autossuciente ou para chegar perto disso, congura-se a cidade, ou o Estado. Tanto a aldeia quanto o Estado visam ao bem do ser humano, como é próprio a todas as comunidades. Todavia, o Estado, que segundo Aristóteles é a forma mais elevada de comunidade, almeja o bem nas maiores proporções e excelência possíveis. Filosofia da educação
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Respostas b. O Estado se origina precisamente da associação de comunidades menores, a saber, da associação de aldeias, que por seu turno são resultantes da associação de famílias. c. O homem é um animal político porque lhe é natural a associação para obter o bem comum, isto é, a autossuciência da comunidade.
2. V, F, V, F, F. 3. E.
5. De Aristóteles à Renascença 1. O primeiro texto, de Santo Agostinho, pertence à patrística; o segundo, de São To más, à escolástica. Pelo rigor da argumentação, os dois podem ser catalogados como textos losócos, ou pelo menos com intenções losócas, isto é, com intenção de problematizar determinados assuntos a partir de uma argumentação racional mais ou menos rigorosa. Nesse sentido, o primeiro texto destoa um pouco, pois é extraído , que não é propriamente um tratado losóco, antes uma autobiograde Confssões a, mas a autobiograa de um homem instruído no saber losóco de seu tempo, e um homem de fé. É verdade que o excerto citado não fala diretamente de Deus ou de religião, mas o livro é a história da sua conversão. Nesse ponto, esse texto e o segundo mantêm entre si muitas anidades: são dois escritos de homens de fé. Todavia, o segundo, o texto de São Tomás, pretende provar a existência de Deus com base em argumentos racionais, o que é uma característica, dentro do espectro da losoa cristã produzida na Antiguidade e na Idade Média, da escolástica – a qual, em comparação à patrística, dava igual ênfase (ou procura va dar, sobretudo no caso de Tomás de Aquino) à fé e à razão. Outra diferença do segundo para o primeiro texto é que o segundo está permeado das categorias aristotélicas. De fato, é ao tempo da escolástica que as obras de Aristóteles são redescobertas no Ocidente. A patrística, por sua vez, é mais inuenciada pelo pensamento de Platão, embora no texto de Santo Agostinho essa inuência não seja tão visível. Em todo caso, Agostinho e Tomás de Aquino são representantes de dois momentos em que a losoa andou ligada à teologia. Com a patrística, era evidente uma subordi nação da primeira à segunda. Na escolástica, tentou-se uma harmonização entre os dois campos.
2. F, F, V, V, F. 3. Patrística (a, c, d); Escolástica (e, f, h); Renascença (b, g, i).
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Respostas
6. Espinosa: uma filosofia da liberdade 1. Espinosa se situa em um período de transição. A Idade Média já havia acabado e, no entanto, a religião – mais do que antes – era um assunto candente. Anal, a Idade Moderna, mais do que a “idade das trevas”, é a época das guerras religiosas. Se na Idade Média os cristãos faziam guerra contra os muçulmanos do outro lado das fronteiras e contra os judeus do lado de cá dessas fronteiras, na Idade Moderna os cristãos, além daqueles dois alvos, digladiaram-se violentamente entre si. Portanto, a questão da religião – e, consequentemente, a questão de Deus – é um dos temas da losoa dessa época, sobretudo em Espinosa, um judeu excomungado pelos rabinos, lho de judeus catolicizados, em um país protestante. Outra semelhança de Espinosa com o período anterior, em especial a escolástica, é a forma altamente racional, silogística, de expor a sua losoa, em muito aparentada com a Suma teológica , de Tomás de Aquino. Mas aqui cessam as semelhanças. Se na escolástica e em toda a losoa do período medieval a reexão teológica partia dos dados da fé, e tinha que se ater a eles sem contradizê-los, a metafísica espinosiana não é elaborada com base em nenhuma reli gião revelada (seja ela a cristã ou a judaica), mas tendo por base a razão pura. É uma religião racionalista e uma reexão racionalista sobre a religião. Aqui está a novidade da losoa moderna em relação à losoa anterior: a reexão losóca, mesmo quando aborda temas metafísico-religiosos, descola-se do argu mento da autoridade (seja esta a Bíblia ou a Igreja). A losoa e a razão se tornam plenamente autônomas e, a partir de então, Deus e a religião encontram cada vez menos espaço e simpatia no discurso losóco.
2. R, E, E, R, R, E, E. 3. F, V, F, F, V.
7. O Iluminismo e o Século das Luzes 1. Iluminar signica, como é óbvio, “trazer à luz”, “dissipar as trevas”. O movimento iluminista pretendia iluminar sua época, dissipar as trevas da sociedade. O luzeiro com o qual pretendiam fazer isso era a razão. Seus lósofos estavam convencidos de que a razão era sucientemente potente para iluminar as relações humanas e a conguração do Estado. Filosofia da educação
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Respostas Mas o que eram essas trevas que eles queriam dissipar? É bom lembrar que, com exceção da Inglaterra (e mais tarde dos Estados Unidos e da França), todas as nações estavam submetidas a regimes monárquicos absolutistas. O absolutismo é um regi me em que apenas uma pessoa – no caso, o rei – é detentora de todo o poder, isto é, o monarca é detentor do poder absoluto, sendo que o parlamento, o Poder Legislativo, não passa de um fantoche, o mesmo também quanto ao Poder Judiciário. Basta recordar uma ocasião em que o rei da França, ao se deparar com Voltaire em um parque, e lembrando que ele havia escrito um texto ferino sobre a monarquia, mandou prender o lósofo. Em um regime constitucional, um chefe de Estado, ainda que se sinta profundamente ofendido por alguém, não pode mandar prendê-lo: precisa entrar com uma ação na justiça contra o ofensor. Não era assim naquele tempo. Portanto, o Iluminismo queria jogar luz nas instituições políticas e sociais, acabar com os privilégios dos nobres e do clero. É bom lembrar também que naquele tempo não se estava muito longe da Idade Média. Com exceção de alguns círculos esclare cidos, podemos dizer que a maioria da população ainda vivia com a mesma mentalidade teocêntrica e geocêntrica da Idade Média.
Assim, era função dos iluministas e intelectuais em geral esclarecer e iluminar o povo com as luzes da razão e do entendimento. Este é, portanto, o sentido da metá fora “iluminação, esclarecimento, claricação”: espalhar a luz da razão e acabar com a ignorância e a superstição.
2. O educador é, ou deveria ser, um “iluminista”, isto é, alguém imbuído da missão de disseminar as luzes da razão e exterminar as trevas da ignorância. Com efeito, é o uso da razão que nos distingue dos animais. O processo de ensino-aprendizado requer esclarecimento, iluminação intelectual. Os educandos não devem apenas aprender a ler ou a somar. Mais importante do que distinguir uma oração coordenada ou saber usar o cálculo innitesimal é saber ler a realidade, para julgá-la à luz da razão e para agir sobre ela com o objetivo de transformá-la. Os ideais iluministas – que estão por trás dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa – ainda esperam ser inteiramente implantados.
3. V, V, F, V, F, F, V.
8. Immanuel Kant e o idealismo alemão 1. Toda instituição de ensino tem um projeto pedagógico no qual devem estar implícitos os fundamentos losócos de sua concepção de educação. Ademais, esse projeto pedagógico está inserido em uma dada sociedade e em um determinado momento
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Respostas histórico que tem os seus próprios pressupostos losócos e educacionais. A loso a nos deve levar a problematizar tais pressupostos. Por exemplo, vivemos em uma sociedade pragmática em que determinados conheci mentos são considerados mais necessários e úteis que outros. Ninguém duvida que exista uma hierarquia invisível nas escolas, nas quais matemática é mais importante que geograa, e química mais importante que educação artística. Educamos para quê? Para formar cidadãos ou simplesmente mão de obra qualicada? Além disso, é necessário estarmos sempre revendo as condições de possibilidade dos conhecimen tos que transmitimos. Anal, conhecemos as coisas ou suas representações? A isso associa-se a segunda parte da questão: um ensino dogmático nada mais é que uma mera transmissão de conhecimentos estáticos, fórmulas, nomenclaturas, nomes das capitanias hereditárias. Ou mesmo um ensino que não questiona as pretensas autoridades que estabelecem o que é conteúdo do conhecimento. Por outro lado, uma postura cética tornaria inviável qualquer possibilidade de aprendizado e conhecimento. Duvidar da possibilidade de conhecer é negar o conhecimento. Essa postura, felizmente, não é comum entre nossos educadores, aparecendo em um ou outro segmento da sociedade, enquanto o nosso problema é uma herança demasiado positivista do conceito de educação.
O caminho que Kant aponta é uma possibilidade de solução: entre dogmatismo e ceticismo, buscar um conhecimento interrogante, humilde, nunca orgulhoso de suas posses.
2. Racionalismo, empirismo inglês e Iluminismo. 3. C.
9. A dialética idealista e materialista 1. Em primeiro lugar, é preciso frisar uma diferença de gênero literário. O texto de Hegel é extraído de um tratado de losoa e o texto de Marx, de um manifesto. O primeiro tem como destinatário especialistas em losoa. O segundo, endereça-se a um público mais amplo, que compreende não iniciados no jargão losóco, sobretu do operários, os quais não possuem uma educação formal.
O primeiro pertence ao prólogo e tem por objetivo introduzir as linhas gerais que serão abordadas no escopo do estudo, é uma espécie de ouverture , grande abertura de um tema solene, o espírito absoluto. O segundo tem por meta a propaganda, isto é,
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Respostas propagar determinadas ideias, então inovadoras, servindo-se para tanto de recursos retóricos; nem por isso abre mão de um certo rigor, já que o rigor argumentativo é um dos principais elementos de dissuasão.
O primeiro serve-se até de certa obscuridade, já que para o seu público – o público leitor de losoa na Alemanha, e em especial o público leitor da losoa de Hegel – a obscuridade não deixa de ostentar os seus ares de profundidade. O segundo foge da obscuridade, já que é forçoso que seja claro e convincente. Fora isso, há a diferença entre os gêneros literários dos dois textos: é bom lembrar que Hegel tinha fama – justicada – de difícil, de quase impenetrável, e o excerto o comprova sobejamente. Marx, que em outras ocasiões produziu textos de grande densidade, é conhecido por seus dotes literários (e oratórios, nas assembleias operárias). Mas a grande diferença se dá em um outro nível. Hegel fala do “céu”, do espírito absoluto, conceito não facilmente apreensível, abstrato, quase etéreo. Marx fala da “terra”, de coisas concretas, classes sociais, luta, indústria, mercadorias. Em outras palavras, Hegel é idealista e Marx, materialista. Porém, há algo que os une: a dialética. Por trás dos dois textos percebe-se uma di nâmica – ainda que idealista em um e materialista no outro –, um movimento, um processo de vir a ser, de devir, de transformação: a dialética, ainda que uma seja uma espécie de dialética “do alto” e outra “de baixo”.
2. C. 3. HM, H, M, M, H.
10. Schopenhauer: o mundo como representação 1. V, F, F, V, V, F. 2. Partindo da distinção kantiana entre o fenômeno e a coisa em si, isto é, entre o que nos aparece e o que realmente existiria, Schopenhauer conclui que o mundo, para cada um, não é mais do que uma representação, ou seja, uma síntese entre o subjetivo e o objetivo, entre a realidade exterior e a mente humana. Logo, não temos acesso ao mundo como ele é, mas somente ao mundo como ele nos aparece. Todavia, para Schopenhauer, ao contrário de Kant, podemos abordar a coisa em si, a realidade por trás dos fenômenos, a qual seria a vontade, origem meta física de toda a realidade, que percebemos ativa em nosso ser, em nosso íntimo. Em
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Respostas outras palavras, o mundo é representação, ou melhor, o mundo é a representação que eu faço dele; mas o mundo também é vontade, e essa vontade eu a experimento concretamente em mim, e a experimentando eu experimento algo da essência real do mundo.
3. Em um primeiro momento, o caminho para suspender a dor passa pela arte, ou seja, pela contemplação de objetos de arte: pinturas, poemas, concertos etc. Aliás, para Schopenhauer, a música é a mais alta forma de arte e a mais apta para nos libertar da dor. A libertação proporcionada pela arte, porém, não é completa. A arte signica apenas uma libertação passageira e não a supressão da vontade. Por isso, em um segundo momento, para uma libertação integral é necessário que o ser humano suba ao nível de uma conduta ética que, visando ao bem, paute-se pela contemplação da verdade. Mas nem assim ainda se chega à felicidade plena. Para Schopenhauer, a mais elevada e perfeita redenção somente pode ser atingida pela anulação da vontade, por meio da qual se mergulha denitivamente no nirvana. É como diz aquela letra de Renato Russo, inspirada diretamente pelos escritos budistas: “Tudo é dor, e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor”. Para nos libertarmos do círculo vicioso da dor, precisamos fazer morrer em nós o desejo, a vontade, a qual nunca se satisfaz e, portanto, é fonte constante de frustração e dor.
11. O positivismo e o desenvolvimento da ciência 1. Por um lado, sob muitos aspectos, vivemos sob o peso da tradição positivista: as disciplinas “positivas”, experimentáveis, gozam de maior prestígio social do que, por exemplo, as disciplinas humanas. Com algumas exceções: às vezes um psicanalista, em determinados círculos, é mais benquisto do que um farmacêutico; mas isso pode ser explicado também pela raiz “positivista” da psicanálise, ao propor causas espe cícas para a explicação dos fenômenos da psique humana. Mas experimentemos imaginar a seguinte cena: em uma família de classe média, as duas lhas apresentam seus respectivos namorados aos pais; um é engenheiro elétrico e o outro é professor de losoa. Nem precisamos perguntar qual dos dois genros será recebido com maior satisfação. Por outro lado, há evidentes sintomas de uma fadiga da sociedade racionalista da qual o positivismo foi o maior – e paradoxal – emblema. Por todo lado irrompe uma série de práticas terapêuticas não necessariamente cientícas, e o misticismo, desde algum tempo, está em voga (se é que alguma vez deixou de o estar). São sinais de que há pelo menos um descontentamento com o cienticismo idolátrico de nosso tempo. Todavia, ainda é cedo para se armar que já estamos ou nos abeiramos de uma fase pós-positivista. Filosofia da educação
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Respostas Dissemos acima que o positivismo é o maior emblema desta época cienticista, mas frisamos que ele é um emblema paradoxal. Paradoxal porque ao mesmo tempo em que exaltava a ciência e o espírito cientíco, na última fase de seu fundador, assumiu claramente as feições de um culto, com ritos e símbolos de caráter religiosos. Será isso um sinal de fraqueza ou sintoma da diculdade do ser humano para se desfazer completamente de referenciais mítico-religiosos?
2. V, V, V, V, F, V, V. 3. Para Comte, o papel que ainda cabe à losoa é o de sistematização das ciências, servindo-se para tanto do método positivo, ou seja, o método cientíco extraído das ciências experimentais. Assim, a losoa se torna tributária das ciências experimentais. Em vez de estas se inspirarem naquela, é aquela que se inspira nestas. A ela sendo vedados os caminhos da especulação metafísica, resta à losoa o caminho mais modesto da classicação e da catalogação.
12. Nietzsche educador 1. Cabe vericar se os exemplos elencados são coerentes. Isto é, não basta que o indivíduo tenha dito palavras “poéticas”, “bonitas”, “tocantes”, mas em que sentido o que ele disse antecipava tendências futuras e problemáticas de épocas ainda na aurora.
2. F, V, V, F, V, F. 3. Porque, segundo Niesche, os lósofos anteriores a Sócrates não divorciavam pen samento e vida. Para eles, sua losoa era também um estilo de vida. Vivia-se conforme se pensava, e pensava-se conforme se vivia. Todavia, a partir de Sócrates, essa harmonia se quebrou. O lósofo se outorgou à missão de “julgar a vida”, opondo a ela valores pretensamente superiores. No lugar do lósofo crítico de todos os valo res, apareceu o lósofo metafísico, que avaliava o mundo real segundo sua confor midade com o mundo “ideal” – e essa avaliação quase invariavelmente era negativa.
13. A Escola de Frankfurt 1. V, V, F, V, F, F, V, V, F, F. 2. Em primeiro lugar, a Escola de Frankfurt é herdeira e continuadora da tradição marxista. Como a Escola teve o seu primeiro e decisivo momento na Alemanha e os seus representantes eram todos alemães, é natural que ela dialogasse com a tradição
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Respostas alemã, principalmente o idealismo alemão, no qual o ápice foi o sistema de Hegel. Outros lósofos e pensadores alemães também entrariam nesse diálogo, como Max Weber, Niesche e Heidegger. Além disso, a psicanálise de Sigmund Freud viria a se tornar um dos mais importantes interlocutores dos frankfurtianos.
3. A relação do pensamento frankfurtiano com o Iluminismo é, no mínimo, conituosa, para não dizer dialética. Por um lado, em um período de ascensão do obscurantis mo, por meio do fascismo e do stalinismo, os pensadores da teoria crítica vão buscar no Iluminismo as ferramentas da razão e do esclarecimento em seu combate pela sanidade da civilização ocidental. Por outro lado, eles questionam as consequências perversas do endeusamento da razão, do fetichismo da ciência, que não deixa de ser uma das consequências do pensamento iluminista em nossa sociedade.
14. Pragmatismo e existencialismo 1. Em oposição ao racionalismo cartesiano, tanto o pragmatismo como o existencialismo constroem seus pensamentos com base no real, no concreto, seja este a experiência (para o pragmatismo) ou a existência (para os existencialistas). Da mesma forma, ambos rejeitam a ideia de essência do ser humano: para os pragmatistas, o ser humano é o conjunto de suas práticas; e, para os existencialistas, o resultado de suas escolhas. Consequentemente, nem um nem outro acredita em uma verdade eterna e imutável.
2. d, e, a, b, c. 3. P, E, E, E, P, E.
15. Filosofia e educação 1. É muito comum, em sala de aula, os professores expressarem os seus pontos de vista sobre os mais variados assuntos. Todavia, não poucas vezes eles estão reproduzindo apenas o pensamento dominante. Por exemplo, quando se diz – para citar um dos ditados reproduzidos por Chico Buarque – que “quem espera sempre alcança”, o que se está fazendo é somente incentivando o conformismo. “Esperar o quê?” – é a pergunta que deve ser feita. Digamos que determinada pessoa esteja esperando, desejando um aumento de salário. Se ela não zer nada além de esperar, dicilmente vai obtê-lo. Se essa pessoa realmente deseja um aumento, deve, ao contrário do di tado, fazer algo mais do que simplesmente esperar: deve mostrar serviço, distribuir currículos e, às vezes, solicitar o tal aumento, ou mesmo aderir ou liderar uma greve. Filosofia da educação
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Respostas O mesmo vale para outros ditados ou bordões do senso comum, como “o trabalho dignica”. Será mesmo que todo trabalho dignica? E o trabalho escravo? Dessas reexões, que podem e devem ocorrer nas salas de aula, é que nasce a losoa.
2. Quando possuímos respostas – ou julgamos que as possuímos –, não raro paramos, imobilizamos a nós mesmos no ponto em que estamos. São as dúvidas, as interro gações, as perguntas que fazem com que o conhecimento e a losoa avancem, pois elas nos levam a investigar, a perquirir, a procurar, ou seja, elas nos levam a sair da posição em que nos encontramos – muitas vezes seguros de nossas “verdades” – para nos arriscarmos em busca de novas respostas. Quem está seguro e satisfeito de suas respostas é o dogmático, e com o dogmático não há possibilidade de losoa, sobretudo na área de educação.
3.
Filosofa na educação é, sobretudo, incluir a disciplina de losoa entre as demais dis -
ciplinas. É algo importante – apesar de que durante muito tempo a losoa foi ba nida dos currículos escolares no Brasil. Se é a matemática quem ensina a calcular e o português quem nos familiariza com a norma culta da língua que falamos, é a losoa quem nos ensina a pensar – e pensar é essencial tanto para o bem falar e escrever quanto para o raciocínio lógico exigido pela matemática.
Além disso, a flosofa na educação pode ser compreendida como a inclusão transversal de temas e debates losócos no rol de disciplinas do currículo escolar. Assim, junto com as operações matemáticas, pode-se falar da lógica; é possível abordar a ética em disciplinas como história e geograa. Já a flosofa da educação é quando se dá um passo a mais. Além de incluir a loso a entre e nas disciplinas, a losoa da educação exige que se analise criticamente todo o processo de ensino-aprendizado. É um recuo para que se dê um salto – um recuo: a losoa da educação pressupõe um distanciamento para que se possa ana lisar criticamente o processo no qual estamos inseridos; um salto: uma vez operado esse distanciamento, são tomadas atitudes para que o processo possa seguir adiante, aperfeiçoado, aprimorado, puricado.
16. Ética e educação 1. Ao mesmo tempo que, em nossa sociedade moderna, a ética passa a ser procurada em toda parte, a base comum que serviu de suporte à civilização ocidental, a tradição judaico-cristã e a cultura greco-romana – de onde a moral tirava suas normas – parece ter perdido sua antiga solidez. Em outras palavras, quanto mais se precisa de ética, menos se tem referências para encontrá-la.
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Respostas 2. Hoje, a ética e a moral não podem ser impostas unilateralmente, pois cada grupo, ou mesmo cada indivíduo, possui a sua própria tábua de valores. Assim, as normas básicas que devem permear uma sociedade devem ser denidas com base em uma ampla discussão, na qual é assegurado de antemão a cada interlocutor o seu direito de participação e intervenção. É esse diálogo, essa ampla circulação de ideias e essa ação comunicativa que devem assegurar e gestar as normas de conduta que servirão de balizas à sociedade.
3. V, F, V, F, V, V.
17. Filosofia e formação humana na escola 1. O ser humano é, atualmente, um ser mais de cultura do que de natureza. Solte uma criança recém-nascida na selva. Digamos que ela sobreviva cuidada por lobos ou gorilas. Ela não seria muito mais do que um lobo ou um gorila. O mito moderno do Tarzan é falso, pois o Tarzan do cinema e dos gibis é ainda bastante humano. Em outras palavras, somos o que somos pela cultura e pelos valores dessa cultura. E o principal veículo de transmissão dessa cultura e de seus valores é a educação. Não é à toa que, em uma sociedade cada vez mais complexa, somos obrigados a passar cada vez mais tempo nos bancos escolares, da pré-escola a pós-graduação. Daí a extrema importância da educação: é ela que nos faz “humanos”, que nos transmite os valores e as informações que transformam o primata que nós somos em um ser altamente complexo e subjetivo.
2. O ser humano é produto de seu meio, mas não do meio natural, e sim do meio social (que inclui, alterando-o, o natural) em que vive e no qual se processam suas relações produtivas. Assim, segundo Marx e Engels, toda emancipação cultural é ilusória se não forem alteradas as condições materiais de produção. Na sociedade capitalista, na qual os detentores do capital necessitam constantemente da reprodução das forças de produção (isto é, do treinamento técnico da mão de obra), a educação consistirá basicamente na formação técnica da mão de obra. Como essa sociedade está passando para uma fase pós-industrial, em que setores não industriais (serviços, cultura, lazer etc.) aumentam cada vez mais sua participação na produção de riquezas, tam bém se faz necessária uma formação “humana” na qual se incluam conhecimentos de vendas, marketing, educação etc. Ou seja, não só os cursos técnicos e tecnológicos, mas também cursos mais “complexos”, como pedagogia, psicologia etc. Se queremos uma sociedade mais humana, voltada para a satisfação de necessidades mais amplas, e não apenas procurando atender demandas mercadológicas, é
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Respostas preciso repensar radicalmente a educação. Mas isso é possível sem que a base eco nômica da sociedade – isto é, a exploração da força de trabalho pelo capital – permaneça inalterada?
3. K, M, K, K, M, K, M.
18. Filosofia clínica e educação 1. Por meio da FC, é possível mostrar um caminho para que as pessoas sejam mais fortes e vivam mais próximas da ética. Desse modo, a FC é um humanismo à medida que se propõe a cuidar e acompanhar o partilhante até que ele possa “andar com suas próprias pernas”.
2. A interseção na losoa clínica compreende o que há em comum entre duas ou mais estruturas de pensamento (EP). Nesse sentido, a qualidade do processo ensino-aprendizagem é diretamente associada à qualidade da interseção professor-educando.
3. Agendar consiste em marcar algo na estrutura de pensamento do outro. Os agendamentos ocorrem pelos diversos dados de semiose, ou seja, pela fala do professor, pelo olhar, por gestos etc. Assim, podemos dizer que a qualidade da interseção depende de bons agendamentos.
4. A losoa clínica pode contribuir para o ensino-aprendizagem à medida que o pro ssional da educação compreende que trata-se de um humanismo e que um bom agendamento pode melhorar o endereço existencial do educando. Isso porque, no processo da escuta seletiva, o professor conhecerá melhor a historicidade de seus alunos e fará os agendamentos adequados. Consequentemente, as interações com os educandos melhorarão de maneira signicativa, razão pela qual o conhecimento será resultado desse processo de construção compartilhada.
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