Sf:RGIO MILLIET
E CASCALHO Quando foi ·lançada
a terceira
edição deste romance de Herberto Sales, cuidadosamente revista, o crí tico SÉRGio MiLLIET escreveu a se guinte nota entusiástica: "f: de 1944 a primeira edição de Cascalho. Chamando, então, aten ção do público para a bela estréia do escritor baiano, observei, a par das quaiidades excepcionais do ro mancista, certos defeitos decorren tes de sua inexperiência.
A
obra
carecia, em particular, de unidade.
O documento precioso
e as anota
ções realistas da primeira parte di luíam-se na expressão algo. dema gógica da segunda.
A
crítica social
esmagava a realidade humana dos personagens. Na segunda edição do livro, mos trou Herberto Sales que não so mente reestudara as falhas do· ro mance como ainda o escrevera por assim dizer de n�vo, procedendo a profundas
alteraÇões
composição.
Ao
de
estilo
e
mesmo tempo em
que torcia o pescoço
à grandiloqüên
cia, fazia de seus heróis homens de carne e osso. Quanto
à
filosofia so
cial da obra, surgia ela então me nos do comentário; sempre perigoso pela sedução moralizante, que da ação dos protagonistas. Não mais hesitei, a partir desse momento, em classificar
Cascalho
de
primeiro
grande romance �a região diamantí fera. Vinha ele completar o quadro realista do colonialismo econômico brasileiro e, tal qual os romances da cana e do cacau, os da seca e do
cangaço, de José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachei de Queiroz, confirmava, acentuando -as, as co res
negras
dos
demais
painéis. "
[ . .] .
"Há em Cascalho, além do valor literário, uma importante contribuição ao estudo do vocabulário e da sintaxe de toda uma região brasi leira. Do ponto de vista do estilo e da
Hngua será talvez, esse, o
melhor e mais sedutor aspecto do romance. Acontece ainda que, ao contrário do que fizeram numero sos escritores regionalistas, não se trata, no caso, de uma anotação eru dita e morta e sim de uma pene tração viva e aguda, de uma co munhão real do autor com o meio descrito. Seus garimpeiros falam e agem sem esforço dentro do desen volvimento normal do tema. Não se sente a presença de um observador, de caderninho em mão a registrar palavras exóticas ou metáforas cu riosas para, com a matéria""prima colhida, contar histórias falsas, arti ficiais em sua trama e na psicologia dos protagonistas. Não, essa gente do garimpo é mesmo de garimpo. Ela está cinematografada na sua existência cotidiana e o autor com partilha suas ocupações, seus an seios, suas dores e alegrias. A tris teza e a miséria da situação econô mica e social da zona diamantífera ressaltam violentamente, sem que, para as entendermos, se necessite as sinalar-lhes a autenticidade com in terpretações
à margem.
Grande romance, em verdade,
e
merecedor do êxito que vem al cançando. "
CASCALHO - agora em 6. a edição é o grande romance da região diaman tífera. Nessa
obra-prima de
nossas
letras,
HERBERTO SALES narra, com verdade humana e grandeza artística, os dra mas do garimpo.
O crítico paulista SÉRGIO MILUET, além de destacar a importância desse livro no quadro da ficção nacional, ressalta que Cascalho "é uma impor tante contribuição ao estudo do voca bulário e da sintaxe de toda uma re gião brasileira" .
• • Mais uma edição de categoria da EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
CASCALHO
COLEÇÃO VERA CRUZ (Literatura Brasileira) volume 182
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato
Nacionai
dos Editores de Livros, GB)
Sales, Herberto, 1917S164c
Cascalho: romance. 1975.
6. ed.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
291p. 21cm (Vera Cruz, v. 182) 1.
Romance brasileiro.
I. Título.
II.
Série. CDD- 869.93
74-0411
CDU - 869.0(81)-31
H E RB E RTO
SAL E S
(Da Academia Brasileira de Letras)
CASCALHO romance
sexta edição, revista
civilização brasileira
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�,
Exemplar N.0
Desenho de capa: DOUNÊ
Planejamento gráfico: DIAGRAM
Direitos desta edição reservados à EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Rua da Lapa, 120 - 12.0 andar RIO DE JANEIRO, GB.
1 975 ------
Impresso
no
Brasil
Printed i!l 1/mú/
A meus Pais - em cujo sobradão de vinte janelas, em Andaraí, nas Lavras, foi escrito este roman ce, que também é dedicado ao meu fraternal amigo
Marques Rebelo.
A Antônio Accioly Netto,
Afrânio Coutinho e
Geraldo de Freitas.
CASCALHO
PRIMEIRA
PARTE
I
O
o cÉu ESCURO, com a armação que houve de uma hora para outra, as águas caíram de uma vez nas cabeceiras distan tes. E inundando talhados, catas e grunas, carregaram pela noite adentro os paióis de cascalho. No povoado da Passagem, à mar gem do Rio Paraguaçu agora de monte a monte, rajadas de vento cortavam de alto a baixo as ruas ermas, quando os garimpeiros, em lúgubre vozerio, irromperam pela praça alagada com enxur radas descendo para o areão. Vinham encharcados de chuva, transportando como destroços suas bateias, seus carumbés, suas enxadas, seus frincheiros, suas alavancas, seus ralos, suas brocas - suas ferramentas de trabalho, no ombro e na cabeça. Na frente deles caminhava o velho Justino, empunhando a candeia de azeite que o vento ameaçava apagar. Foi quando de novo desabou a chuva. Mesmo assim pararam defronte da casa do chefe - justa mente ao tempo em que a porta da casa se abria e a figura do Cel. Germano recortava-se contra a claridade indecisa do can deeiro-placa. Como o ruído da chuva fosse ensurdecedor, o velho Justino teve de gritar : - As águas tomaram o serviço todo! Depois passou a explicar ao patrão que os garimpeiros esta vam trazendo um companheiro que morrera afogado - "o Rai mundo, aquele frente" - na correnteza de uma cabeça-d'água. - Foi uma coisa à-toa. Só se o senhor visse. Eu acho até que foi um ataque que ele teve, assim que nem o finado Flávio, que morreu nas Piabas. O coronel recebeu a notícia com a maior naturalidade : é que, à força de ali se repetirem, os acidentes acabavam por tirar à morte qualquer sentido de surpresa. O mesmo não se deu, entretanto, ao atentar no sombrio quadro constituído pela garim peirada esbatida à luz bruxuleante das candeias; ao fazê-lo, teve um estremecimento. Porque sentiu de repente, em face daquela
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massa de trabalhadores destroçados, a evidência de seu próprio iruortúnio. Fez então um movimento brusco e ordenou sumaria mente ao velho Justino : - Despache estes homens agora mesmo. Depois voltou as costas. E bateu a porta com força. Elimi nava assim a presença exacerbadora daquela multidão arruinada.
11 Fazia cerca de quatro meses que o Cel. Germano viera para a Passagem. O Paraguaçu corre ali no fundo de um vale de margens escarpadas, onde as moitas de alcaçuz emergem das de pressões cheias de detritos aluviais, fundindo os emburrados no verde predominante de sua folhagem. Logo depois, correndo sem pre por entre as rochas nuas que atulham o leito áspero, vai pre cipitar-se numa queda, escachoando no lombo de grande lajedos cor-de-rosa, para alcançar, por fim, o amplo areão onde se es praia, a caminho da mata, banhando o casario branco do povoado. :É a serra de maior tradição de riqueza das Lavras. Quanto ao rio propriamente dito, embora já muito trabalhado na grupiara das margens e em todos os serviços de leito por volta daquele ano, continuava a desfrutar a mesma fama do tempo do Cel. Joca de Carvalho, seu primeiro explorador. Os garimpeiros afir mavam : - O Paraguaçu ainda tem serviço para cem anos. Sua atual produção diamantífera, no entanto, estava longe de ser aquela que caracterizara os anos das primeiras descobertas. Em outros tempos, não só pela abundância de diamantes, como também pela facilidade de exploração dos garimpos, adquirira todo o vale o prestígio de uma espécie de Terra Prometida. Na época do Cel. Germano, porém, já não ocorriam casos de garim peiros que encontravam diamantes agarrados às raízes dos pés de canela-d'ema, ao arrancá-los para acender fogo em suas tocas. Todavia, para não falar no Poço da Donana e de outros poços ricos que desafiavam, pela sua profundidade, os rudimentares processos de mineração ali empregados, restavam pródigos ajogos como o do Cabelo da Roda, onde eram encontrados os diamantes matemáticos do cascalho balinha. - Quem encontrar uma mancha de cascalho balinha no
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Paraguaçu - diziam os garimpeiros - pode comprar fiado.
É para se pegar até no encher do carumbé!
A suprema ambição se concentrava naquele cascalho privi legiado. E a exploração dos garimpos se processava numa luta de lances repetidos, as esperanças dos homens criando um código e elaborando um calendário. Durante o período das chuvas, que se prolongava, com intervalos variáveis, de princípios de novem bro a fins de março, os garimpeiros eram obrigados a suspender todos os cateamentos. Vinha a cheia de Santa Luzia, batiam em retirada para os cascalhões, serviços que eram trabalhados com o aproveitamento das águas nos regos e nas corridas . •
Era muito dispendiosa a garimpagem no Paraguaçu : só em bananas de dinamite para os broqueamentos se gastavam somas vultosas. E era um tal de apontar brocas todo dia que não havia dinheiro que chegasse. Os resultados, porém, eram compensado res. No ano anterior, por exemplo, o coronel fizera uma apuração de mais de cem contos - e o garimpeiro Filó Finança, que anda va infusado, bamburrara na primeira semana, gastando 800$000 com uma mulher-dama boazinha mesmo que viera de Tamburi. Sem dúvida, era o Paraguaçu, para todos os efeitos, o melhor garimpo das Lavras. De março a junho, as chuvas rareavam; contudo, as neblinas eram comuns nessa quadra, tornando temerária qualquer tenta tiva de cateamento. Por isso mesmo, a experiência instituíra aquela praxe : - Só depois da fogueira . . . Era quando o Cel. Germano, vindo da fazenda São Pedro, se instalava na Passagem. Ordinariamente, os serviços começa vam pela construção dos cortes de terra preta com faxinas de fedegoso. Distribuídos em sociedades capitaneadas pelos frentes, entregavam-se os garimpeiros à secagem de água que os dividia entre o enchedor e o tombador, entrando na fase onde o cascalho era socado e por fim amontoado, para ser em seguida ralado e depois lavado. Esses trabalhos, que se prolongavam durante qua tro ou seis semanas, eram logo recomeçados nas novas catas que se abriam, quase todas quebradas a dinamite, numa operação que o marrão batido a braço arrematava. Vinha então a fase final da apuração - com todos os serviços resumidos antes de no vembro, quando tinha início o período regular das chuvas. En-
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tretanto, ocorriam muitas vezes cheias temporãs - o que tornava aquela garimpagem não só a mais dispendiosa, mas também a mais arriscada das Lavras.
111 Cel. Germano atacara o serviço com vontade; viera disposto a fazer muito mais do que no ano anterior. Chegara à Passagem em fins de junho, e já os primeiros garimpeiros apareciam. Como de costume, instalou-se na casa que pertencera à velha Chiquinha - uma casa térrea, de calçada alta, que ficava bem na entrada da praça. Nenzinha, sua amásia, viera com ele, e D. Santa, sua esposa, ficara na São Pedro - fazenda onde ele residia, e que distava poucas léguas dali. Conforme acontecia todos os anos, o barracão fora entregue a Zé de Peixoto - negro de tutano, que os garimpeiros respeitavam, e nquanto o velho Justino, ja bas tante experimentado no serviço, ficara incumbido de gerir a garimpagem. Era o coronel um homem forte e de hábitos rústicos. Tinha os seus cinqüenta e cinco anos, trabalhara muito na mocidade, mas estava bem conservado. Todos os anos, ao chegar à Passa gem, era logo procurado pelos garimpeiros, que para ali se diri giam numa verdadeira romaria; atendia-os na sala, aparando as unhas com um canivete, o velho Justino sentado ao lado. Os garimpeiros iam entrando e ele começava a fazer perguntas : - Então, Seu Neco Rompedor, como vão os garimpos lá no Andaraí? - Com esse tempo, coronel, está tudo parado - respondia o garimpeiro. - A salvação é que existe o Paraguaçu. Senão a gente tinha de quebrar a cabeça com aquelas restingas dos Co queiros, faiscar no Viriato, ou lavar cisco debaixo da ponte, como Manezim Cangula. O coronel puxava a fumaça do cigarro : - E a gruna de Teotônio? O garimpeiro sorria, sem jeito: - Qual, coronel, Seu Teotônio não deixa ninguém traba lhar na gruna dele não. Esses donos de grunas só têm serviço pra eles mesmos. O senhor não vê Seu Aurino? Seu Teotônio é a mesma coisa. Sabendo que seu garimpo era o único a comportar na seca um número ilimitado de garimpeiros, o Cel. Germano sorria inti-
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mamente. Ah, o seu Paraguaçu! . . . Léguas e léguas de serra que lhe pertenciam por documentos passados em cartório, selados e garantidos por lei, e que estavam guardados dentro daquele ca nudo de folha-de-flandres, que era como o seu cetro de rei dos diamantes. Como era comum, no início da garimpagem, ter momentos de bom humor, que bem traduziam seu estado de otimismo, concordava : - É . O Paraguaçu é mesmo a mãe d e vocês todos. Não vai faltar serviço pra ninguém. Entretanto, ao ver avolumar-se o número de garimpeiros que lhe pediam trabalho, garimpeiros que se reuniam defronte da casa, espalhados pela calçada, debruçados nas janelas, com primindo-se num grande ajuntamento de gente necessitada, ele ia restringindo aos poucos as colocações de meias-praças, ao cons tituir as sociedades. Naquele ano, quando Saiu lhe apareceu, foi logo dizendo ao garimpeiro : - Você vai ganhar dois mil e quinhentos por dia, Saiu. Sei que você é bom de serviço. - Quer dizer que eu entro como alugado? - respondeu o garimpeiro. - Oxente! Como é que você queria entrar? Como meia-praça? Já não tem mais lugar pra meia-praça. - Eu tenho oito filhos, coronel - alegou Saiu. - E o que é que eu tenho com isso? - retrucou ele, voltaQdo à sua aspereza habitual : sentia necessidade dela. - Quem fez seus filhos? eu ou você? O garimpeiro era preto. Ficou branco. - Pois é - continuou o coronel. - Você querendo, entra como alugado. Está achando a diária baixa? Não está tão baixa não. Tem gente que vai ganhar mil e quinhentos. Em todo caso, se você não quiser, é só voltar pra Andaraí. Uma coisa, porém, lhe garanto: você não vai encontrar lá colocação melhor. Quer ficar? Saiu lembrou-se da advertência da mulher : "Se arrume por lá de qualquer maneira, porque senão seus filhos vão pedir esmola". - Quer? - insistiu o dono do garimpo. Com o chapéu debaixo do braço, sem ter honestamente outra alternativa, o garimpeiro respondeu: - Está certo, coronel. Pode mandar assentar meu nome.
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O velho Justino molhou a ponta do lápis na língua e lan çou o nome do trabalhador no caderno. •
No tempo das primeiras descobertas, aqueles garimpos não conheciam dono. O povo trabalhava à vontade, nos cateamentos e nos serviços de mergulho, mas logo veio o Cel. Joca de Car valho com os seus Títulos de Terras e Minas, com os seus regis tros de lotes reconhecidos pelo Governo, e estabeleceu domínio particular sobre o vale. Transferido o direito de propriedade ao Cel. Germano, certo garimpeiro tentara um dia - contavam trabalhar no Paraguaçu. Viera de fora, já dera muita cabeçada, estava ficando velho, precisava cuidar do futuro. "Com uns quatro contos eu estou satisfeito" - pensava. Subiu a serra numa terça-feira, atraído pela fama dos garimpos da Passagem, e não tardou a dar cálculo numa grupiara. Arregaçou as calças, muito tranqüilo, e começou a trabalhar. Foi quando chegou o gerente com uma espingarda nas costas. Estava inspecionando a serra e disse : - Você não pode trabalhar aqui não. - Por quê? - Porque não. - De quem são estas terras? - Do chefe. - E as margens do rio? - Do chefe. - E o rio? - Do chefe. O homem olhou. O Paraguaçu descrevia lá embaixo uma curva ampla. - O rio também? - indagou. - Sim. O rio e o leito do rio - respondeu o gerente. Você, aqui, sem ordem do chefe, nem pra beber água. •
Em virtude da própria concorrência de braços, era possível ao coronel organizar suas sociedades em grupos de quatro ga rimpeiros, sendo que a metade desses lugares era reservada aos simples alugados ou diaristas. Somente a outra metade - a so ciedade propriamente dita - era constituída de meias-praças, isto é, de garimpeiros que partilhavam, uma vez abatido o
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quinto, de 50% da venda preferencial dos diamantes. Por outro lado, fugindo à praxe dos demais serviços, só muito raramente eram ali admitidas sociedades fornecidas por estranhos : era o caso das de Quelezinho e das de Dr. Marcolino, que exploravam ocasionais faisqueiras. Mas, de modo geral, o coronel não se interessava pela mera cobrança do quinto, que lhe dava direito a 20% sobre o produto extraído por qualquer sociedade em seus terrenos; preferia garimpar só, ressalvando o seu duplo direito de dono de serra e de fornecedor.
IV Cel. Germano passou a tranca nas janelas e deitou-s e na rede para fumar. Já não se lembrava do garimpeiro Raimundo. Entretanto, não se esquecia da cara do velho Justino ao dar-lhe notícia da cheia. "As águas tomaram o serviço todo!" Como que continuava a ouvir sua voz (a cara magra e aflita com pin gos de chuva escorrendo), lembrava-se de cada palavra dele: "As águas tomaram o serviço todo!" Lá fora, a chuva caía tor rencialmente, e a cada trovão ele sentia estremecer seu fundo supersticioso. Oh, a chuva! .. . Desabara de uma vez, como um castigo. Era preciso queimar palha benta, rezar para Santa Bár bara. Por que viera ela surpreender a garimpagem justamente na sua fase mais importante? Deus do Céu! Só podia ser mesmo maldição . . . Aquela maldição das cheias inesperadas que pesava sobre o seu garimpo. Exemplos de outras mais anti gas, ocorridas no tempo do Cel. Joca de Carvalho, vinham fortalecer suas crendices : o rio era, de fato, o único "dono" daquelas paragens. Havia como que um poder sobrenatural, uma força oculta pairando em tudo aquilo. Lembrava-se, agora, do que lhe tinham contado na infância: "O Paraguaçu era en cantado ... " E sentiu-se diluído numa espessa e acabrunhadora calma fatalista. (O toco de cigarro se desprendeu da mão imóvel e tombou sobre os tijolos. À luz do candeeiro que alumiava a sala, era a de um morto sua boca entre-aberta.) Foi adorme cendo lentamente e sem querer. •
- Se não fosse esta chuva, dentro de duas semanas eu acabava de limpar minha cata - disse um dos garimpeiros.
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Eram quatro, e estavam conversando sob a cobertura de zinco que havia no oitão do barracão. O outro contou : - Eu tinha começado a descer a minha ontem. Eu e meus sócios. - Comigo foi pior - atalhou um mulato baixo. - Eu já estava amontoando. Mas, por mais que eu apertasse o cedro, de dia e de noite, dobrando o trabalho, não me livrei da chuva. O resultado foi que eu fiquei sem resumir meu serviço . . . Um que era novato mostrou-se espantado. - Como é isso? - disse. - Se a chuva veio sem ninguém esperar, como é que você estava apertando o cedro pra se livrar dela? - A chuva foi fora de época - garantiu o primeiro. Mas o mulato baixo explicou : - Vocês são curaus no Paraguaçu. A semana passada eu estava sentado na beira da lapa, quando vi uma nuvem amarela subindo no céu, bem na direção da cata. Fiquei olhando, olhan do, e nisto eu vi um martim-pescador descendo rio abaixo can tando. Depois ele voltou, sentou num pé de gameleira e con· tinuou a cantar. Deixe lá que eu estou olhando. Pois bem. Quando eu menos esperei, ele tornou a voar e subiu o rio toda a vida, cantando sempre. O mais velho dos quatro garimpeiros, que já era um ho mem de barbas brancas, interrompeu a conversa. - Então você viu o martim-pescador e não avisou a nin guém? - disse, num tom de reprovação. - Eu avisei a todos os companheiros que estavam na toca de Deraldo de Seu Lélis - justificou-se o outro. - Mas eles não acreditaram. - São uns curaus mesmo! - resmungou o velho. E soltando uma longa baforada, sentenciou : - Quando o martim-pescador sobe o rio, é pra abrir a boca do tanque. - Você não pode se queixar de nada, velho Pedro disse o outro. - Você estava trabalhando de alugado, e sua diária você ganha em qualquer garimpo. Nós, sim, é que tive mos prejuízo, porque ficamos sem resumir nossas catas. Um trovão acompanhou a voz do homem. A chuva caía com força sobre a cobertura de zinco, e o velho não respondeu uma palavra. Lembrava-se, agora, da primeira vez que traba lhara de meia-praça no Paraguaçu. Era ainda um rapaz . . .
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Viera de Palmeiras fazia quinze dias apenas, e embora fosse lavrista, tendo nascido e se criado naquela cidade, não tinha até então cateado em leito de rio. "Será que vem enchente pra nos tomar a cata?" - perguntara ao sócio, que era fornecido por uma sobrinha do Cel. J oca de Carvalho. "Pode vir e não vir" - respondera-lhe o outro. Ele não se sentia bastante expe riente para trabalhar num veio geral como era o Paraguaçu, só conhecia serviços de barranco e de grupiara, de sorte que ficou sobressaltado. "Já me disseram que só vai haver cheia em n ovembro" - observara. "Mas, de qualquer maneira, tenho receio de uma enchente temporã." Então um companheiro de toca lhe respondera: "Você está bancando o curau?" - E ex plicara: "É só assuntar quando o martim-pescador sobe o rio, rapaz. Primeiro ele desce pra ir buscar a companheira, depois volta e vai abrir a boca do tanque. Quando desce de novo, já é com a cheia encostada. Fica então cantando nas gameleiras : 'Este ano não tira mais! Não tira mais cascalho! Este ano não tira mais!' Portanto, fique prevenido : quando ele subir o rio pela segunda vez - é avexar o pau dia e noite, porque a en chente é certeira". No dia seguinte, ele ainda dissera ao com panheiro: "Não sei não, meu sócio. Mas como que tem uma coisa que me diz que vem cheia pra enrascar nossa cata". E o sócio lhe respondera: "Vire sua boca pra maré vazante, Pedro. Eu estou assuntando o martim-pescador e não tenho visto nada". Duas semanas depois, quando começaram a lavar, o rio encheu de uma hora para outra e inundou todo o vale. Ele não vira nenhum martim-pescador - reconhecia; mas um companheiro lhe garantira ter visto. Essa lenda, na qual muitos garimpeiros não acreditavam, tinha, assim, para ele, a expressão de uma advertência permanente: depois de haver fracassado no seu pri meiro cateamento no Paraguaçu, quando em toda a frente se pegava diamante, passara dez anos infusado. Puxou então outra fumaça do cigarro. E ouvindo a chuva que escachoava na co bertura de zinco, engrossando as enxurradas, não mais se lem brou da sua primeira garimpagem ali, mas sim dos seus tempos de rapazinho em Palmeiras, quando pedia chuva para fazer correr barranco. •
Depois de lavar os pratos, a velha Atanásia escorou a porta dos fundos e levou o urinol para o quarto do patrão. Fazia isso
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precisamente há quinze anos. Pam, pam, pam, pam, era a go teira martelando a lata grande no corredor. •
Apesar da chuva, havia algum movimento na rua, com os garimpeiros tomando cachaça para rebater o frio. A casa do velho João Vítor estava tinindo de gente; ele a tinha cedido para a sentinela de Raimundo, por não possuir o garimpeiro parentes nem aderentes no povoado. Do cadáver estendido na marquesa, lívido e inchado, ainda escorria água. Em várias partes do corpo - um fardo úmido - havia sinais das cordas com que ele fora amarrado ao varão de maria-mole, para facilitar o transporte. Entre garrafas vazias servindo de castiçais, tinham colocado uma imagem de N. S. Bom Jesus da Lapa. Na sala espalhava-se o cheiro nauseante das velas de sebo. Foi quando um garimpeiro de Lençóis disse a outro : - Até a cachaça está entranhada deste fedor nojento. Baixo, franzino, trôpego, o velho João Vítor envelhecera ali na Passagem, e em outros tempos fora garimpeiro bambur rista. Agora, já sem forças para trabalhar, cuidava da capela e cobrava imposto dos bruaqueiros. O Professor Valadão, em Andaraí, costumava gabar-lhe a letra ainda certa e bem talhada : "O velho João Vítor escreve a pincel!" Entretanto, ninguém melhor do que ele sabia que aquele serviço de cobrança dos bruaqueiros não ia durar muito : sua catarata aumentava cada vez mais, alastrando-se pelos olhos como uma clara de ovo, e já não era com facilidade que enchia um comprovante. Descon fiava que ia acabar como esmoler, no povoado onde vivia desde menino. De qualquer maneira, porém, não se descuidava : com prara uns óculos na loja de Zé Antunes e espremia sumo de hor telã graúda diariamente nos olhos. •
Por volta das dez horas, a chuva cessou, embora conti nuasse a relampejar. O negro Zé de Peixoto fechou o barracão, meteu-se na capa colonial e dirigiu-se para a casa do velho João Vítor. Estava visivelmente embriagado, e logo que ali chegou lhe deram uma cadeira para sentar-se. Todos os homens fala vam sobre a garimpagem malograda. - Eu já tenho visto toda espécie de cheia temporã no Paraguaçu - disse um deles.
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- Como esta de hoje eu há muito tempo não vejo - opi nou outro. - Porque trovejou e choveu nas cabeceiras e aqui ao mesmo tempo. - A pior é a de tromba-d'água - disse o garimpeiro Qui rino. - Ninguém vê chuva, não cai uma gota d'água, e quando a gente menos espera, de uma hora para outra, o rio enche e enrasca o serviço todo. - É quando chove só nas cabeceiras - aparteou um velho. - Mas quer dizer que, quando tem tromba-d'água, o rio enche sem chuva? - indagou um curau que viera do sertão. Não cai nem neblina? Zé de Peixoto interveio: - Que neblina! Nem neblina nem lebréia! E cuspindo grosso: A enchente vem é com o sol quente, tinindo, de tirar lasca. Eu sei dizer que com isso eu fiquei foi sem minha fer ramenta - queixou-se outro garimpeiro. - Eu estava na porta do rancho fazendo um cigarro, quando ouvi o sócio gritar : "O rio está enchendo!" e já vi foi a ferramenta descendo rio abaixo. Até meu chapéu foi embora. - Meu sócio também cortou um doze - declarou outro. - E eu, que estava com o sentido no bambúrrio pra ir ver minha mãe em Mato Grosso, vou ver agora eu sei o que é. - Fé em Deus, rapaz - procurou animá-lo um compa nheiro. - Daqui pra cima quem governa é um só - e olhou para o alto. - Quem encosta em Deus não geme nem sente dor disse o velho João Vítor. Outro garimpeiro lembrou então que se fizesse uma fogueira - "Vamos aproveitar agora que estiou". A idéia foi acolhida com entusiasmo, e trouxeram lenha imediatamente. Num abrir e fechar de olhos a fogueira estava acesa - uma fogueira grande que clareou a praça. Todos queriam "quentar fogo" a um só tempo; e a garrafa de cachaça foi passando de mão em mão, os homens bebendo pelo gargalo. Saindo do interior da casa, Filó Finança tirou o chapéu e cumprimentou Agenor Cabeça-Seca: - Boa noite, urubu. Agenor, preto troncudo, respondeu sem se voltar : - Se eu fosse urubu, era seu irmão. Arregalando os olhos num jeito muito seu, o indicador em riste, Filó replicou ao pé da letra :
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- Se você fosse meu irmão, você era um homem! Foi uma gargalhada geral. Até Zé de Peixoto achou graça. E aprovou : Boa resposta! Esse Finança é um filho da mãe . •
Uma lufada de vento entrou pelas janelas e as velas se apagaram. - É capaz da chuva voltar - disse um garimpeiro do lado de fora. Zé de Peixoto tomou da garrafa de cachaça e escancarou a boca para a dose cavalar. - Não vá Seu Zé fazer uma das dele - observou o velho João Vítor, dirigindo-se a um outro homem que estava sem beber. Foi quando houve um trovão tão forte que todos os garim peiros de repente s e calaram. Alguns pensaram que tivesse caído uma faísca - outros se lembraram da tempestade que desabara em Andaraí no dia em que retiraram Nossa Senhora da Piedade do altar. Por um instante, só se ouviu mesmo o rio roncando dentro da noite, chegando água.
v Era meia-noite quando o Cel. Germano despertou sobres saltado. Abalara-o terrível pesadelo, na visão tumultuária das águas que subiam. Diamantes boiavam como estrelas, descendo rio abaixo. E o velho Justino gritava em meio das catas revol vidas : "As águas tomaram o serviço todo!" Rouco, desesperado, o grito ecoava fundamente no bojo da noite. Era preciso evitar aquela derrocada, não podia permitir que o rio lhe arrebatasse assim tantos diamantes. Agora um deles vinha passando bem perto - estendeu a mão para pegá-lo. Tinha, calculadamente, uns dois quilos. Nesse momento, porém, um trovão estrondou. Ergueu-se, bem no meio do rio, uma tromba-d'água da altura de um sobrado, e, à luz de um relâmpago, apareceu um gigante desgrenhado, o corpo coberto de espumas. Foi quando uma voz de mulher se fez ouvir. O coronel volveu o rosto: de preto, ace nando do areão, D. Hilda gritava: "Volte, meu filho! Volte! É o Paraguaçu!" Quis retroceder - mas viu que o gigante avançava, rilhando os dentes. "Volte, meu filho, volte! Deixe
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estes diamantes! Todos são dele! Não ponha a mão em nenhum! Volte! " De repente, uma pancada de chuva caiu de rijo sobre a terra. Sentindo-se ensopado, procurou, aflito, o velho J ustino; e viu que este desaparecera. Agora estava só, irremediavelmente só. Não! D. Hilda gritava ainda, acenava do areão : "Volte, meu filho, volte!" Teve medo. Olhou em torno : as águas conti nuavam a subir, os diamantes boiavam. Avidamente, estendeu a mão para um deles; quando o sentiu sob os dedos trêmulos, puxou-o de uma vez. O diamante, porém, opôs insólita resis tência. Surpreendido, passou a mão por baixo, e encontrou raí zes. "Volte, meu filho! Volte! É o Paraguaçu!" Olhou : o gigante continuava a avançar, ao som de trepidantes trovões. Apresen tava-se como uma massa escura, descomunal, ofegante. A cla ridade de um novo relâmpago, divisou-o por inteiro : era um monstro iracundo que vinha cuspindo espumas. Puxou de novo o diamante, com toda a força : mas uma cabeça-d'água submer giu-o. Quando voltou à tona, estava no meio do rio, debatendo -se na correnteza. Embora continuasse a ver o vulto de D. Hilda no areão, já não ouvia sua voz. "Volte, meu filho, volte! " - lembrava-se do seu apelo. "Volte, é o Paraguaçu!" Então aquele gigante era o Paraguaçu, aquele monstro era o "dono" do vale - o "dono" daqueles diamantes que boiavam, daqueles diamantes enraizados? Sim - e sentia agora a respiração "dele" .. . Era aquele vento, aquele vento frio . . . Tentou então nadar com as últimas forças que lhe restavam; eis, porém, que uma possante garra lhe reteve os movimentos. Era a mão "dele"! Despertou inundado de suor. Sobressaltado, ergueu-se da rede e passou o lenço na testa. O querosene estava se extin guindo, o candeeiro era uma brasa na escuridão da sala. Cha mou por Nenzinha, por Atanásia, m as não obteve resposta. Só aí foi que notou que havia grande gritaria na praça. Pensou no finado Raimundo e na sentinela. Tateando, apanhou o candeeiro já apagado, e chamou mais forte : - Atanásia! Dessa vez a empregada respondeu. Levantou-se da esteira, ainda tonta de sono, enrolou-se no xale - e deu com os olhos nele, que já ia entrando na sala, o fósforo aceso numa das mãos e o candeeiro na outra. O vento zunia nas frestas das portas, e o vozerio era confuso lá fora. Contudo, o coronel ouviu alguém gritar: - O rio já está no muro do quintal de Seu Heron! Atanásia trouxe a garrafa de querosene. O coronel acendeu
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o candeeiro e dirigiu-se em seguida para a sala de visitas. Passou, antes, pelo quarto de Nenzinha, que acordara com a gritaria dos garimpeiros, e disse-lhe em voz baixa : - Acenda uma vela para minha mãe. A mulher olhou-o com espanto e viu-o afastar-se apressa damente, com o candeeiro na mão . •
Quando o coronel abriu a porta, como numa grande onda de fogo, os garimpeiros atravessavam a praça correndo, empu nhando as candeias de gruna. O azeite ardia nos fachos fume gantes, arrancando às trevas uma multidão curiosa e ululante. Todos queriam ver o rio chegando água. Então ele teve, ainda sob influência do sonho, uma súbita visão da procissão de foga réus. Lembrou-se da quaresma. E, instintivamente, murmurou consigo próprio : "Deus lhe dê o céu, minha mãe" . •
Alguns garimpeiros se aproximaram : - Nunca vi cheia como esta. - Desta vez a Passagem se acaba! - Eu acho até que já está entrando água nos quintais. Agora já todas as casas estavam abertas, os fifós acesos nas salas. Havia na rua uma fervilhação de dia de festa. Os mo radores corriam para as portas, e reuniam-se aos vizinhos nas calçadas, comentando a cheia. As mulheres, agasalhadas nos xa les, ralhavam com os filhos para não saírem. Estes, não podendo ver de perto o rio, onde desde cedo se tornavam nadadores de mão-cheia, ficavam nas janelas espiando os garimpeiros. Algum dia fariam a mesma coisa, atravessariam a praça com uma can deia de azeite na mão, para ver as cabeças-d'água de noite. - Seu pai foi olhar? - perguntou um deles ao compa nheiro. - Foi - respondeu o outro. - Disse qu e vinha descendo um jegue morto. •
De pé, na porta, Cel. Germano parecia considerar a agita ção dos habitantes do povoado. Não podia divisar o rio, mas
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ouvia sua ronqueira de fim de mundo, seu rumor de elemento em fúria. Garimpeiros acercaram-se dele, de candeia na mão; e, em meio à fumarada das tochas, ele distinguia alguns rostos familiares. O velho J ustino foi chegando, de chapéu em cima dos olhos, o pala molhado, e contou-lhe que uma casa desabara na Rua do Tabuão. Foi quando o velho João Vítor, que se dirigira apressadamente para a capela, começou a tocar o sino. Houve então um estremecimento entre os homens. É que o repentino badalar, despertando em todos eles um vago receio de morte, lhes trouxe à lembrança o afogamento de Raimundo : gemendo dentro da noite, o rio parecia pedir mais vidas . •
O coronel vestiu o capote, pôs o chapéu e desceu para ver de perto a enchente. Muitos garimpeiros o acompanharam, alu miando o caminho com as candeias. Soprava um vento frio, úmido, e algumas delas se apagaram. Nesse momento, um ga rimpeiro acendeu um pedaço de candombá, a resina pegou fogo e foi aquela claridade grande contra a qual o vento não podia. Ao chegarem perto da casa de Seu Heron, o rumor do rio não deixava mais que se ouvisse nada. O coronel parou, e alguns garimpeiros avançaram, erguendo as candeias acima da cabeça. Pôde ele então constatar que o rio estava muito mais cheio do que pensara. As águas desciam de arrancada, cobrindo inteira mente o areão e invadindo as cercas marginais, já quase dentro do povoado. De pé, cercado pelos garimpeiros, a face apreen siva recortando-se à luz das candeias, o coronel contemplava o espetáculo da cheia. Estava no alto de uma pedra, as mãos nos bolsos do capote, o chapéu desabado. Em volta, na escuridão reinante, os garimpeiros como que se prostravam diante daque las duas forças que se defrontavam na noite: as águas rouque jantes e o patrão majestático. De repente, uma rajada de vento trouxe novos pingos de chuva. Candeias se apagaram, e houve então, entre os garim peiros, um movimento no sentido de retrocederem. Cel. Ger mano, entretanto, continuava de pé, indiferente aos pingos de chuva que caíam. O vento dobrava-lhe a aba do chapéu. Tinha os olhos fixos na superfície líquida que se estendia na sua frente, enquanto voltava a pairar, sobre seus pensamentos, a sombra da mãe morta. Via as espumas descerem rio abaixo, muito bran cas e espessas, e teve, de súbito, a impressão de que elas iam se
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cristalizando e adquirindo reverberações de diamantes colossais. Sentiu o corpo gelar . . . As águas rugiam, mergulhando pela noite adentro num acometimento fantástico, e tudo trepidava à passagem delas. Via-as na afirmação de sua força poderosa, retomando de assalto os terrenos que ele e os seus garimpeiros tinham conquistado. Sim, era o Paraguaçu crescendo dentro da noite! Apertou o capote d e encontro ao peito, as mãos trêmulas. Os garimpeiros continuavam perplexos, estranhando todos eles a atitude do chefe. Ao engrossarem, porém, os pingos de chuva, o coronel desceu da pedra, puxou a gola do capote até as ore lhas, e, com decisão, voltou as costas para o rio. Em silêncio, os garimpeiros acompanharam-no. O rumor das águas era cada vez maior.
VI O coronel já ia entrando em casa, quando se ouviu um tiro no outro lado da praça. Ao estampido, os homens correram, e estabeleceu-se o pânico. Portas e janelas foram fechadas com estrondo, a praça escureceu de repente. Muitos garimpeiros pro curavam proteger-se junto à calçada da casa do chefe, apagando as candeias. Logo em seguida, outro tiro. O coronel não podia compreender o que se passava. O velho Justino levou a mão à fogo-central, e alguns garimpeiros pensaram logo num provável rolo na sentinela de Raimundo. Ao estrondar, porém, o terceiro tiro, a voz de Zé de Peixoto foi ouvida. A arma estava sendo disparada na porta do barracão. - Quem é esse doido? - gritou o chefe, que não reco nhecera de pronto a voz do jagunço. Em resposta, ouviu-se outro tiro. E não tardou, e todos viram sair de dentro das trevas , alumiado pela luz das poucas candeias acesas, o negro Zé de Peixoto. Vinha jogando cabrio las, com uma repetição na mão, e gritava como um louco : - Cadê um homem de coragem? Eu hoje estou com von tade de fazer um fecha! O velho Justino sacou rapidamente a fogo-central, pondo -se em guarda. - Entregue a arma, Peixoto! - advertiu-o com um grito. Os garimpeiros recuaram. Que é que você quer, Justino? - respondeu o jagunço.
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- Vá escovar urubu na praia. Eu hoj e não estou respeitando nem meu padrinho! Cel. Germano sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Zé de Peixoto tratava-o por "meu padrinho". Vendo-se desrespeitado por um jagunço, coisa que pela primeira vez lhe acontecia, per deu as estribeiras. Afastou aos empurrões os garimpeiros que o cercavam - e avançou num ímpeto de coragem para o negro. Vindos da sentinela, começavam a chegar outros garim peiros. - Que é isso, minha gente? - perguntavam, na correria em que vinham. Antes de chegar perto de U de Peixoto, o coronel já foi gritando, cheio de cólera : - Aprenda a respeitar homem, seu filho da mãe! E cerrando os punhos no ar : - Você faz-se de besta? Quem está falando sou eu, está ouvindo? Sou eu, cabuleté descarado! Ante aquela presença que se anunciava terrível, o negro cambaleou, atordoado. - Me dê a arma, vamos! Me dê a arma! O jagunço desabou aos pés do chefe : não esperava que ele estivesse tão perto e ouvisse a provocação. - Passe por essa, "meu padrim" . . . Pass e por essa . . . - suplicou em voz baixa. Empurrando-o contra uma poça de lama, o coronel arreba tou a arma de suas mãos. Os garimpeiros assistiam à cena em silêncio, entreolhando-se à luz das candeias. Era estranho que, de sessenta e tantos homens, só um tivesse coragem de enfren tar o negro! Viram o chefe afastar-se, e de novo subir a cal çada da casa, fazendo crescer o respeito que sempre desfrutara entre eles. Foi quando o velho Justino, conservando a pistola na mão, acercou-se do jagunço, qu e permanecia no mesmo lugar : estava como que wnzo. - Vá curtir sua cachaça lá adiante, U - disse-lhe. E agradeça a Deus mais este dia de vida. •
Quando o coronel acabou de fechar a porta, desabou uma chuva grossa. Os garimpeiros debandaram aos gritos. Na sala, encontrou N enzinha enrolada no xale, muito aflita; ao ouvir os
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tiros, ficara sobressaltada, sem atinar com o que estava acon tecendo. - Vá rezar a Magnificat - ordenou-lhe o coronel. E queime palha benta. Esta chuva está parecendo um castigo - e encostou a repetição de Zé de Peixoto junto ao armário. •
Defronte do nicho ardiam duas velas; Nenzinha acabara de rezar a Magnificat. Agora a chuva tinha de passar, aquela oração era forte. Levantou-se, o xale cobrindo-lhe os ombros, e levou a palha benta à chama de uma das velas. A mão tremia -lhe, a palha começou a estalar ao contato do fogo. Foi quando o coronel entrou no quarto. Ela pressentiu-o, mas não se voltou; ele fechou a porta devagar. A chuva cantava no telhado, a palha benta crepitava à chama da vela. Ele pousou então a mão no ombro dela. Ela estremeceu. No nicho, o dourado das imagens reluzia. - Basta, minha filha . . . - disse ele, fechando o livro de rezas. Ela protestou fracamente; - Não, hoje não . . . Mas el e já a abraçava com força.
VII Amanheceu estiado. O rio baixara mais, descobrindo um grande pedaço do areão, e alguns emburrados estavam à vista, com os ovões característicos do Paraguaçu. Nenzinha acordara abatida, e desde cedo tratou de arrumar as malas; o coronel lhe dissera que viajariam logo depois do almoço. Agora ele estava na sala, acertando contas com os garimpeiros, auxiliado, como d e costume, pelo velho Justino. - Joaquim! - chamou. - Vamos ver sua nota. O garimpeiro atravessou o grande grupo formado na porta da casa, tirou o chapéu e apresentou-se. O velho Justino, que recolhera, logo depois da apuração, o diamante que o meia-praça pegara na tarde anterior, entregara-o pouco antes ao chefe. - Você teve sorte, Joaquim - disse este. - Infelizmente, nem todos tiveram tempo de lavar, o que agravou meu prejuízo.
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- Assim mesmo eu só pude lavar vinte carumbés - res pondeu o garimpeiro.- Saí da cata um instante, deixei a bateia na lavadeira, e quando eu vi foi meu sócio grintando : "Corre, rapaz, que a bateia vai descendo rio abaixo!" Era o rio que já estava chegando água. - O pior é que seu diamante não dá pra você comprar outra bateia. - Quanto deu de peso? O coronel, que já pesara o diamante, tinha-o agora entre os dedos. - Deu um quilate - informou, diminuindo dois. E de preciando a pedra, para fazer maior lucro, acrescentou : - Mas é um diamante muito ponteado. Só vale 350$000. - Será que o senhor não pode chegar mais uma coizinha, coronel? - insinuou timidamente o garimpeiro. - Meu preço é um só. - Então o senhor pode fazer a conta. O coronel guardou o diamante no picuá, que em seguida tampou, franziu as sobrancelhas e fez a conta. Depois respondeu: - Abatendo os 20% do quinto, da minha parte como dono da serra, ficam duzentos e oitenta mil-reis. Dos duzentos e oitenta, abatendo a metade, da minha parte como fornecedor, ficam cento e quarenta. Seu sócio está aí? - Está, sim senhor. - Alcidão! - apressou-se o velho Justino em chamar. Imediatamente entrou outro garimpeiro na sala. - Pois bem - disse o chefe. - Cada um tem direito a
70$000.
Mas, logo em seguida, abrindo o caderno de papel pardo do barracão, correu o dedo ao longo da página cheia de números alinhados em parcelas, e acrescentou : - Sua conta no barracão é 160$000, Joaquim. Quer dizer que, abatendo os setenta de sua parte no diamante, você fica me devendo noventa. O garimpeiro coçou a cabeça: - Virgem, coronel! Minha conta no barracão é tudo isso?! - Se não for mais - respondeu o chefe. - É capaz daquele cabuleté do Zé de Peixoto ter deixado de tomar nota de alguma coisa. Joaquim abanou a cabeça. Todos os meias-praças eram contratados à base de 1 0$000 por semana. Entretanto, no Para guaçu, essa importância não era fornecida em dinheiro, mas sim
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em vale assinado pelo coronel, e destinado ao barracão do garim po por ele especialmente montado para este fim : o de fornecer, em gêneros alimentícios, a cada garimpeiro, a importância cor respondente à sua remuneração semanal. Na qualidade de bom frente de serviço, fora aberto a Joaquim um crédito suplementar de resto de saco, para atender a pequenos excessos do saco normal; estes excessos é que importavam em 160$000. O garim peiro não imaginava que sua conta extraordinária chegasse a tanto; surpreendido, considerou intimamente : "Perdi minha ba teia, e ainda por cima vou sair daqui na imbira". - E como há de ser, coronel? . . . - disse, com hesitação. - Como há de ser? - retrucou, meio agastado, o chefe. - Você encheu a barriga, matou sua fome, me deve 90$000, tem que pagar esse dinheiro. - Pagar como, patrão? . . . O coronel se pôs nervoso, e, como acontecia em semelhan tes ocasiões, começou a cuspir e a intercalar na conversa o seu conhecido cacoete: - f:h, pagar como? :Bh, você não tem ferramenta não, êh, êh! Veja qual é a ferramenta que você tem. Eu não posso perder meu dinheiro não. Matei sua fome, êh? quero os meus 90$000, êh? Diante das manifestações de irritação do chefe, todos os garimpeiros se entreolharam, num comentário mudo, enquanto Joaquim pedia ao sócio o que lhe restava da ferramenta. Sem tardar, foram trazidos à presença do coronel um ralo, uma cunha de marreta, um marrão, duas brocas, um sacador de broca, e um alavanca de trinta quilos. - f:h, pode deixar tudo aí, êh, êh! - foi dizendo o coro nel. - Quando você arranjar os noventa mil-reis, pode vir buscar sua ferramenta. - Coronel . . . - balbuciou o garimpeiro - eu já estou saindo daqui limpo e areado. Se eu não levar minha ferramenta, vou sofrer mais do que sovaco de aleijado. Pelo bem da finada D. Hilda, coronel, dispense minha ferramenta! - Eu não posso perder 90$000 com ninguém - respon deu o Cel. Germano, tornando-se subitament e calmo. D. Hilda era o nome de sua mãe. - Tenha paciência, coronel - insistiu o garimpeirro. Se eu não levar minha ferramenta, vou comer da banda podre. Arranje os 90$000 primeiro. Eu tenho quatro filhos, coronel.
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- Guarde a ferramenta no depósito, Justino - ordenou o chefe, reacendendo o cigarro. - Pela homa de D. Nenzinha, patrão - insistiu o ga rimpeiro. O coronel fitou demoradamente o trabalhador. Depois ris cou a conta no caderno, passando o lápis com força, e disse, com o cigarro na boca: - Deixe o ralo pra ele, Justino. - Eu agradeço muito ao senhor, coronel - respondeu o garimpeiro. - Deus lhe ajude. Mas, como o que vai ficar de minha ferramenta vale, pelo menos, 120$000, será que o senhor não podia me dar o resto em dinheiro? Eu não queria chegar em Andaraí de mão abanando . . . - Seu caso já está resolvido - disse o chefe. - Quando você arranjar os 90$000, venha buscar o resto de sua ferra menta. Agora vá tocando, que eu tenho de despachar os outros. Era uma ordem sumária. O garimpeiro apanhou o ralo, pediu licença e retirou-se da sala. Os companheiros ficaram olhando para ele. - Agora vamos ver você, Alcidão - foi dizendo o coro nel ao sócio de Joaquim. - Você deve 195$000 ao barracão. Abatendo os setenta de sua parte no diamante, seu débito fica reduzido a cento e vinte e cinco. Tem ferramenta pra garantir esse dinheiro? - Não senhor . . . - Não tem? - Não senhor. . . Eu estava trabalhando com a do meu sócio. De ferramenta minha, eu só tenho mesmo um farracho . . . - Faça bom proveito dele - atalhou o chefe, de mau humor. - Eu não sei como vou lhe pagar, patrão - disse o garimpeiro em voz baixa. - Você vai pagar com serviço - respondeu o coronel. Você e outros que não têm ferramenta pra garantir os débitos. - Aqui mesmo ou em Andaraí? O coronel fez uma anotação no caderno e respondeu: - Na fazenda. Nesse momento, de volta do depósito, ond e reunira a ferra menta de Joaquim à de outros garimpeiros em condições idên ticas, o velho Justino entrou na sala. O chefe já estava dizendo a Alcidão: - E agora pode ir saindo. Seu caso já está resolvido.
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Voltando-s e para Justino, acrescentou: - Tem algum alugado devendo ao barracão? - Não senhor - respondeu o gerente. - Todas as diárias estavam em dia. Cel. Germano considerou intimamente que a atuação de Zé de Peixoto, à frente do barracão, sempre fora louvável; mas isto em nada atenuou a indignação que lhe causara a arruaça da véspera, quando o negro, embriagado, o desrespeitara. Sucessivamente, foram chamados os demais garimpeiros. Atendido o último deles, e já com a sala vazia, o coronel fechou o caderno, e retirou um pedaço de fumo do bolso do casaco. Enquanto o cortava, para a palha previamente sovada, fez um rápido balanço do cateamento : ganhara apenas trinta contos, o que representava, em relação às possibilidades do serviço, e aos resultados do ano anterior, um verdadeiro fracasso. "Agora estou abastecido de ferramentas para muito tempo" - pensou, ao calcular o número delas no depósito. Ao enrolar o cigarro, disse ao velho Justino : - Contas feitas, malas arrumadas. Vamos viajar depois do meio-dia. •
O enterro de Raimundo fora cedo. Em meio daquele cheiro de vela de sebo que havia na casa do velho João Vítor, seus sócios discutiram rapidamente como ele seria enterrado. - Ele não pode ir amarrado no mesmo varão de maria-mole em que veio da serra, como um porco - disse um dos sócios. - Bem, eu não tenho dinheiro pra mandar fazer o caixão dele - alegou outro. - Quem devia fazer isso era Seu Aurino, qu e ganhou dez contos nas costas dele, vocês não se lembram? - Naquele diamante que ele pegou no Viriato? - Sim. - É o mesmo que Seu Teotônio está usando hoje no alfinete de gravata - disse outro. - Passe a garrafa de cachaça - pediu um outro garim peiro. - Vou tomar um pedaç o pra apontar o dia. O dia ia, de fato, clareando, e o cadáver tinha um tom vagamente arroxeado. - A gente tem de levar ele é na esteira mesmo - disse outro garimpeiro. - Esteira é uma coisa que sempre se arranja, qualquer dono de venda pode arranjar uma esteira de toucinho.
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Filó Finança ia chegando: - 'dia, gente. - 'dia. - Se lembrem que aqui na Passagem ainda tem um caixão-da-misericórdia - disse -, que é uma espécie de mulher -dama; serve a todo mundo. O velho João Vítor está aí? - Não. Saiu - respondeu um garimpeiro. - Pois quando ele chegar - continuou Filó - é falar com ele pra ir buscar o caixão na capela. Assim que voltou, o velho João Vítor foi buscar o caixão: havia dois ratos dentro. Abriu-o, matou os ratos, e vasculhou-o ali mesmo defronte da casa. Mal tinham colocado nele o cadá ver, chegou outro garimpeiro com um recado do Cel. Germano: - 'dia. - 'dia - responderam, omitindo sempre a primeira palavra da saudação. - O chefe mandou dizer pra mandar a ferramenta do finado. Ele morreu devendo ao barracão. A sepultura foi aberta no barranco, entre mamoneiras e pés de fedegoso.
VIII Quando o coronel viu o cachorro-mestre entrar na sala, voltou-se logo para a porta : João Vaqueiro, que era esperado naquela manhã, vindo da fazenda São Pedro, ia entrando tam bém. O chefe mandou que ele se sentasse e pediu-lhe notícias da fazenda. - Tudo lá vai bem - respondeu o vaqueiro, que era um cabra retinto e dobrado. - Não há novidade não senhor. - Consertou a cerca da manga? - Consertei sim senhor. - E como vai o gado? - O gado vai bem. Aquela vaca azeitona, que tem uma mancha branca na apá, é que está com uma bicheira danada. O senhor precisa até comprar uma lata de creolina pra ela. - Fale com Justino. - E arranjar um pouco de mercúrio também. - Mercúrio eu tenho lá. Está dentro do armário. Agora vá preparar os animais, porque nós vamos viajar depois do almoço.
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João Vaqueiro pediu licença e retirou-se. Na rua, os garim peiros correram para ele. O capataz da São Pedro, dada a fama de valente de que desfrutava, gozava de muita simpatia entre os outros homens, sendo seu convívio motivo de honra. Alguns ga rimpeiros faziam questão de pagar-lhe uma cachaça, o que ele de bom grado aceitava, como grande bebedor que era. Finalmente, quando se dirigia para o barracão, veio a saber, por Filá Fi nança, da arruaça que o negro Zé de Peixoto fizera. Ouviu tudo muito espantado, e, em vez de se dirigir para o barracão, tomou outro rumo, e foi buscar os animais na manga . •
Abanando a cauda, a língua para o lado de fora, o cachorro ia andando na frente; João Vaqueiro vinha atrás, em silêncio, intrigado com a história de Zé de Peixoto. Nunca tinham sido bons amigos . . . Haviam lutado juntos nos barulhos do Coxó, mas sempre lhe votara grande antipatia. Não porque tivesse medo dele ; não. Não tinha medo dele. Era homem para enfren tar dois Zé de Peixoto. O cabra tinha mesmo mais farromba do que outra coisa. Palavr a grosso, com aquela ronqueira toda, mas ronqueira não queria dizer nada, porque porco também roncava. As razões que o levavam a odiá-lo eram de natureza diferente, nada tinham a ver com medo. Não diria que fosse inveja, porque não invejava ninguém; mas o negro, com aquela história de "meu padrinho", estava querendo passar a perna nos outros, e já falava até em ser subdelegado. E o coronel? O que é que o coronel estava fazendo? O coronel parecia que estava rezado . . Ah, ele é que nunca se enganara: sabia que o negro não prestava, que ainda ia acabar fazendo uma sujeira. Nunca falara porque talvez não fosse compreendido, haviam de pen sar que ele falava era por despeito, ou por mágoa de alguma rixa antiga. Por isso mesmo, deixara o tempo correr, convencido d e que um dia lhe dariam razão. Caminhando sempre, saltou um pequeno córrego, com o cabresto na mão, e foi andando rente ao muro da manga. Abriu a cancela, logo que ali chegou, mas, antes de entrar, volveu o rosto na direção do povoado. Que estaria fazendo, àquela hora, dentro do barracão, o negro Zé de Peixoto? Que estaria pensando, que rumo iria tomar, agora que a garimpagem estav a terminada e não mais contava com a proteção do chefe? De repente, pensou no finado Raimundo, cuja morte Filó Finança lhe contara. Por que, em vez dele, não .
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morrera Zé de Peixoto? Debaixo do chão, enterrado com sete palmos bem contados, queria ver se ele ainda tinha farromba de valente. Foi quando se lembrou que discutira com Zé de Peixoto certa vez. Fora logo depois dos barulhos do Coxó. Bem que podia tê-lo matado naquela ocasião; bem que podia. Agora, o Sol estava alto. Olhou mais uma vez para as quatro portas do barracão, cuspiu para o lado, e entrou na manga como se não estivesse pensando em nada.
IX Os garimpeiros que tinham de ir para Andaraí aguardavam que as águas do rio baixassem, sem o que não poderiam atra vessar para a Vitória. Nem era bom pensar em vau, e não havia braço humano que pudesse governar, com o rio tão cheio, o ajoujo das travessias normais. Para matar o tempo, com os cobertores dobrados na boca das capangas, conversavam: - Aqui no Paraguaçu - disse Filó Finança - alugado sofre mais do que sapatinha de mulher-dama em cabaré. - Isso é verdade - concordou o bruaqueiro Miguel. Como eu estava dizendo, primeiro me botaram no enchedor. Quando eu enchi duzentos barris, não agüentei mais. Já estava com o espinhaço me doendo. - Correão-de-ferro não é pilhéria - aparteou Agenor Cabeça-Seca. E o alugado voltou a falar: - Nisso me mandaram pro mourão. Mas aí também eu arrencguei. Então eu fui pro tombador, que é mais manso, e pude agüentar fixe até beber a água da cata toda. Quando entrou a noite, Joaquim troux e um feixe de canela-d'ema e acendeu o fogo no pião da cata, que a agüinha já estava por nada. Mas deixe lá que eu sofri foi como boi ladrão. Em outro grupo, com a sua grande masca de fumo no canto da boca, Benedito Lasqueado contava: - Nosso serviço estava nesse pé. Fizemos um corte de caixão, e socamos terra preta até ficar que nem cimento. Recua mos a água toda, que devia ter uns três batidos, depois esqua drejamos a cata, desmontamos, e metemos a broca no embur rado. Demos uns seis ou oito tiros. Depois retiramos os estilha ças de pedras, e ferimos o cascalho para conhecer a qualidade.
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- A informação era bosta-de-barata? - perguntou Joa quim Boca-de-Virgem. - Qual é bosta-de-barata, seu! - Estou perguntando é porque bosta-de-barata é informação de arrozinho - explicou o garimpeiro. - E arrozinho aqui no Paraguaçu, você bem sabe, não dá nem a poder de reza. - Quem encontrar cascalho arrozinho no Paraguaçu pode dizer "Até logo!", porque senão vai morrer de fome - aparteou outro homem. Benedito Lasqueado retomou a conversa : - Você logo não está vendo, Boca-de-Virgem! A infor mação que eu encontrei foi cocá, feijão azul-oleoso, bugalhau pequeno e redondo, foi favinha, rapaz! Feri foi cascalho balinha legítimo, cor-de-rosa-queimado, de polmo cor de ouro. Você logo não está vendo, Boca-de-Virgem! - repetiu, com ar gabola. - Então você entrou foi no come-calado , hem, seu mano? - aparteou um garimpeiro doca, que era sobrinho de Bertulino Mentira-Fresca, de Lençóis. - Você bem sabe que esse negócio de come-calado já aca bou - disse Benedito. - O que é que eu podia fazer com o gerente em cima de mim com cada olho deste tamanho? Conversavam de preferência sobre garimpagens passadas, recordando antigos bambúrrios, como que para iludirem a si pró prios, em face do malogro dos cateamentos daquele ano. Um velho alto, que estava pitando, e até então se conservara em silêncio, lembrando-se de uma pedra grossa que pegara na moci dade, disse como que a esmo: - Nem sempre bosta-de-barata é informação de cascalho pobre. Aqui no Paraguaçu, é; mas na Mãe do Povo, por exem plo, é informação de cascalho rico. Já em outro grupo, formado debaixo do pé de tamarindo, era Saiu que conversava. - Eu estav a trabalhando de meia-praça - disse. - Foi um ano em que eu vi, de uma vez, seis olhos-de-arara. Quando chegou a hora de fazer o corte, eu fiz o meu foi de caixão, com pedras assentadas no sistema de tição, em cima de camadas de capim-pubo. - Assoou o nariz com as pontas dos dedos e continuou: - O rio podia estar com uns cinco batidos. O pior é que a terra preta ficava longe, numas grupiaras, a quatro qui lômetros de distância, e o jeito foi eu carregar ela no lombo pra encher o caixão, que devia ter mais ou menos um metro de altura.
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Foi quando ouviram alguém erguer a voz em outro grupo: era Filó Finança, que pusera ao ombro sua espingarda de caçar mocó, e, tendo tomado uma resolução súbita, dizia aos seus companheiros : - Bem, gente. Nós não podemos ficar aqui o tempo todo conversando. Daqui a pouco o coronel vai embora, e nós pre cisamos tratar da vida, pois saco vazio não se põe em pé. Nós já fomos despachados, o que é que nós estamos esperando? Vamos tentar atravessar por cima da serra, porque o rio não esvazia agora. Quem não quiser, pode ficar. _ Eu é que já vou tocando. Do outro lado, na Vitória, o ajoujo estava amarrado por meio de correntes, e não seria posto tão cedo no serviço; trepi dava sobre uma esteira de espumas, e os garimpeiros foram aos poucos se movimentando. Não tardou, e todo um grande grupo subia a serra, rumando para a cidade.
X Assim que os trouxe da manga, João Vaqueiro foi tratando de arrear os animais, enquanto o chefe, que já estava de botas e chapéu, pronto para partir, ia enchendo o tambor do revólver, do qual nunca se apartava. Defronte da casa, com os animais já pronto s e amarrados no mourão, estabeleceu-se logo aquele movimento de viagem. Trazida uma cadeira, para facilitar o acesso ao cilhão, Nenzinha nele se instalou, tendo o coronel, antes de montar, colocado o pé da amásia na caçamba, seguran do-o por debaixo da bata. Este rápido contato com o corpo da mulher lembrou-lhe certo momento da noite anterior, quando a tivera, por fim, entre os braços. Ao mesmo tempo, João Va queiro fez subir para um cavalo velho a negra Atanásia, arro chou o burro de carga, e também montou. Por último, montou Justino - e a cavalgada partiu na tarde fresca, atravessando as poças de lama da praça. - Até a volta! - disse o velho Justino, com o fuzil des cansado no cabeçote. Alguns garimpeiros, que estavam reunidos na praça, ace naram com os chapéus.
Mal o coronel avançou uns trinta metros, Zé de Peixoto saiu ao seu encontro. O chefe, que desde a véspera não o via, 39
parou o cavalo. O cachorro começou a latir, e João Vaqueiro esporeou seu animal para perto. O negro tirou o chapéu: - Meu padrinho . . . Não repare aquilo de ontem . . . A enchente me botou doido . . . Sem dar nenhuma resposta, o coronel torceu as rédeas, fechou o cavalo nas esporas, e desceu a rua num galope. Seus companheiros de viagem seguiram atrás. Entre os garimpeiros, alguém murmurou: - O negro está perdido mesmo. Logo depois, os cavaleiros desapareciam na boca da mata. •
Na encruzilhada o grupo subdividiu-se. Nenzinha, Ataná sia e Justino seguiram para a Santa Luzia; o coronel e João Vaqueiro tomaram a estrada da São Pedro. Durante algum tem po, viajaram em silêncio. Mas logo o chefe disse : - ó João. - Senhor. - Quando ele aparecer lá na fazenda, você pode fazer o serviço . . . O rosto impassível de João Vaqueiro como que se ilumi nou. Esperara sempre por aquela ordem . . . Chegou mais para cima a mala que conduzia no cabeçote, com os valores do pa trão, e não disse mais nada. Para o coronel, a decisão que acabara de tomar tinha muita importância: era preciso fazer respeitar-se. XI
Dois dias depois, Zé de Peixoto viajou para Andaraí. Liqui dou os negócios com o velho Justino, tendo retirado um saldo de 850$000. Com esse dinheiro - pensava - iria mosquitar na cidade, abrindo uma biboca para despachar meias-praças. A Passagem é que não lhe servia mais; terminara a garimpagem, o chefe aborrecera-se com ele, o melhor mesmo era procurar outro rumo. •
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Era bem conhecida a sua história. Nascera ali mesmo na Passagem, tendo ficado órfão muito cedo. Da mãe pouco ouvira falar, e dela não guardava nenhuma lembrança; do pai, sim: sabia que fora um negro valente - o mais valente e afamado jagunço do Cel. Joca de Carvalho. Logo que ficou órfão, passou a viver em companhia da velha Sebastiana, sua tia paterna, que o criaria. A velha era ranzinza, gostava de beber, e castigava-o pela menor coisa que ele fizesse. Cresceu, assim, num ambiente hostil, aprendendo desde cedo a odiar. Durante o dia, o negri nho ajudava a tia na quitanda, que era bastante concorrida e ficava na Rua do Tabuão. Nas horas raras de folga, ia apren dendo as primeiras letras numa velha e ensebada carta de ABC, que ele detestava como a um inimigo. Quando os garimpeiros estavam na serra, a quitanda tinha pouco movimento. Mas a velha Sebastiana não o deixava descansar, tendo sempre qual quer coisa para ele fazer. Mandava-o lavar garrafas, varrer a casa e o quintal, arrumar as prateleiras, quando não o punha para estudar, sentado ao lado do balcão, enquanto ela ia costurando. Preso na quitanda por pequenos afazeres, ele não podia parti cipar das brincadeiras dos outros meninos que andavam livre mente pelas ruas, o que o contrariava bastante. Aos sábados, porém, a triste existência que ele levava, na condição de criança prisioneira, não lhe parecia tão amarga. É que nesses dias, com os garimpeiros que desciam das serras, a quitanda vivia suas horas de intenso movimento. Os garimpeiros iam chegando, sen tavam-se no balcão e nos tamboretes, e começavam a beber e a falar de coisas que lhe revelavam um mundo desconhecido. O negrinho ficava num canto, encolhido, os olhos arregalados, es cutando tudo sem perder uma palavra. Enquanto a velha Sebas tiana vendia sua cachacinha com raízes de catinga-de-porco, de losna e erva-cidreira, ele ia acompanhando, com o maior inte resse, os casos que os homens contavam. Ordinariamente, eram histórias de crimes, de jagunços a quem ele passava a votar a mais ardente admiração, no desejo de que eles entrassem um dia pela quitanda e matassem a tia que não o deixava brincar. Certa noite, depois de terem os garimpeiros falado de um cabra va lente que urinara no chapéu de Seu Aurino, o maior comprador de diamantes de Xiquexique, um homem voltou-se para ele e lhe disse que o tal cabra tinha sido seu pai. - Era seu pai, Zezinho. Um macho inteirado, de quatro quimbas. Ele ficara entusiasmado com a história daquele homem destemido. Ah, se aquele pai ainda fosse vivo, aquele pai ma41
chão que urinava no chapéu dos capangueiros, ele talvez não estivesse na companhia da velha Sebastiana, viveria em liber dade, teria uma criação de homem! A partir dessa noite, passou a interessar-se mais ainda pela conversa dos garimpeiros, que sabiam histórias de negros valen tes como ele queria ser. •
A velha Sebastiana batia-lhe muito. A palmatória já andava em cima do balcão. Pela coisa mais simples - os bolos canta vam até as mãos do negrinho incharem. Ele apanhava e não derramava uma lágrima. Pegava a carta de ABC, ia para um canto, e ficava ruminando o ódio que crescia. Na casa, porém, havia uma pessoa que lhe tornava a existência menos penosa: sua prima Florinda, filha da velha Sebastiana. Era uma mulata fornida de carnes, que fazia vida em várias localidades das Lavras, o que não a impedia de demorar-se, às vezes, uma ou duas semanas na Passagem. Nessas ocasiões, valia-se o pequeno Zé d a proteção da prima, que tudo fazia por ele. - Deixe Zé brincar, minha mãe. Isto também é demais! - dizia Florinda. Sebastiana, que vivia na dependência da filha, não se sentia com forças para desatender ao pedido. Contudo advertia: - Você bota este menino a perder . . . Graças à intervenção d a prima foi que o negro pôde par ticipar das brincadeiras dos seus companheiros de povoado correr pelo areão, tomar banho no Poço da Donana, andar pelos caminhos dos garimpos comendo mandioquinha e vendo dar tiros de broca, ao mesmo tempo em que se iniciava, com preco cidade, nos mistérios do sexo. Não tardou, e já andava ele atrás dos outros meninos, chamando-os como se eles fossem meninas a quem ele quisesse amar, exatamente como faziam os homens que iam para a quitanda procurar Florinda. Ele andava com aquilo fervilhando na cabeça . . . Nas noites de sábado, punha-se à espreita no corredor, e ouvia os gemidos vindos do quarto d e sua protetora. Depois, o s homens saíam se abotoando, suados, e Florinda ia para a cozinha lavar-se numa bacia de pé. Ele andava impressionado, e queria fazer a mesma coisa com os outros meninos. Resultado: um dia se deu aquela história que todo mundo conhece nas Lavras. O negrinho tinha ido caçar lagartixas com o filho de Maria Antônia, e, quando os dois chegaram nos fundos da chácara, ele chamou o companheiro 42
para trás de umas pedras, mostrando-lhe determinada parte de seu corpo. - Deixe de descaração - respondeu o menino. Mas ele continuou a insistir. Então o outro, que levava consigo uma espingarda de cano de chapéu-de-sol, ergueu a arma, fez pontaria e disse : - Se você continuar com descaração comigo, eu lhe dou um tiro. Está pensando que eu sou xibungo? O pequeno Zé respondeu que ele atirava "mas era com a bunda". - Pois então abra a boca pra você ver se eu não atiro dentro dela - disse o outro. Embora soubesse que a espingarda tinha uma boa carga de chumbo, o negrinho escancarou a boca : - Atire, fêmea! O destemor do companheiro chocou o menino. Com a es pingarda na mão, não sabia o que fazer. - Viu que você não atira, seu xibungo? - zombou o pe queno Zé. - Agora passe a espingarda pra você ver como é que homem faz. De boa-fé, o menino passou a arma, pensando que o negro estivesse brincando e que também não a disparasse. O outro, mal a teve entre as mãos, gritou : - Abra a boca! O menino sorriu. E escancarou a boca como o compa nheiro fizera. Mas, logo depois, soltava um berro, e corria para casa com as gengivas sangrando. O tiro espatifara-lhe quase todos os dentes. •
Era o primeiro crime que ele cometia. Quando chegou em casa, a velha Sebastiana meteu-lhe a palmatória, e bateu, bateu, bateu tanto que foi preciso Florinda botar as mãos dele em água de sal. A mãe do menino veio tomar satisfação, quis apresentar queixa ao subdelegado, mas houve, a tempo, interferência de amigos de Florinda, e a queixa não foi dada. No primeiro sábado depois do acontecimento, os fregueses da quitanda brin caram com ele : - Muito bem! Você saiu ao pai. - Filho d e peixe, peixinho é. - Quem havia de dizer que você era tão valente? Quem herda, não furta. 43
Ele ouvia os elogios com um sorriso, satisfeito da fama que ia criando. Entretanto, se por um lado ganhava a simpatia dos homens, perdia, por outro, a dos seus raros companheiros. A própria tia passou a temê-lo, e já não lhe batia tanto como dantes. Dizia a todo mundo que o sobrinho tinha o diabo no couro, que era uma peste em quem ninguém podia confiar. Florinda é que continuou a mesma, dispensando-lhe sempre ca rinhos, que ele recebia como agrados de fêmea. Num sábado, cedendo a desejo já antigo, acabou bebendo com os homens na quitanda, às escondidas da tia. Os garimpei ros lhe diziam que "um macho inteirado precisava comer água". E ele, que tinha a presunção de o ser, não hesitou diante dos tragos que lhe ofereciam. Tomou uns três ou quatro, tornando-se alegre e falante. Nessa noite, estava na quitanda o célebre j a gunço Chicão, que viera trazer umas cargas da fazenda São Pedro. Achou muita graça na história do tiro, e disse que ele precisava procurar era uma mulher. Nada de fazer descaração com os outros meninos, porque aquilo, além de ser uma por caria, podia trazer novos aborrecimentos. O negrinho ficou ca lado. Como já fosse tarde, os homens começaram a retirar-se; mas Chicão ainda lhe bateu no ombro, pilheriando : - Macho que bebe e vomita, não é macho. Só quero ver se você vai vomitar. Ele protestou: Que nada! Eu não estou bêbedo não! •
Uma hora depois, Florinda acordava sobressaltada. Vendo o primo em sua cama, inteiramente nu, exibindO-se, compreendeu logo que fora ele quem lhe abrira as pernas. - Me dá, Florinda, me dá . . . - suplicava o negro. Eu sei de tudo . . . Eu também quero . . . A mulata saltou da cama como estava, em camisa, e meteu se pelo corredor. - Deixe estar, burra! - ameaçava ele. - Você me paga! No dia seguinte, Florinda partia para nunca mais voltar. •
Florinda viajou e os anos correram. Certa manhã, a velha Sebastiana não abriu a quitanda; encontraram-na morta, com o 44
pescoço golpeado a facão. Zé de Peixoto entrara bastante bêbedo na véspera, e matara-a durante o sono. No baú de folha-de-flan dres encontrou as magras economias da tia, e com elas desapa receu. Era no tempo dos barulhos do Coxó. Os jagunços, muitos anos depois, cantariam ainda : Nos barulho do Cox6 Briga até as lagartixa - Os calango de combléia E elas de manulicha . . .
O negro meteu-se na jagunçada, fez prodígios no Coxó. Não perdia um tiro, cada tiro - uma queda. Começou a contar os homens que derrubava, mas depois perdeu a conta. Quando regressou, famoso e respeitado, teve como prêmio a proteção do chefe. Este o mandou de volta para a Passagem, estava satis feito com ele. Os garimpeiros contavam : - O Cel. Germano era amigo do Cel. Felisberto. Mandou duzentos homens pra o Coxó. Cel. Felisberto ganhou a luta, e o prestígio do Cel. Germano cresceu. Tudo isso porque ele soube escolher seus jagunços, seus cabras do pau-furado. Se não tivesse ido gente como Zé de Peixoto, Cel. Felisberto teria perdido a luta. E o Cel. Germano estava frito nas unhas do Cel. Helio doro, que foi, em vida, o maior inimigo do Cel. Felisberto. Regressando à Passagem, Zé de Peixoto vendeu a casa da velha Sebastiana e, no primeiro cateamento que houve depois da luta, o coronel confiou-lhe o barracão. Precisava de um homem como ele para aquele serviço - de um homem que os garimpeiros respeitassem. Disse-lhe: - Você vai tomar conta do barracão. - Senhor sim, "meu padrinho" - respondeu ele. E nunca mais tratou o chefe de outra maneira. •
Sentado no oitão da capela, o velho João Vítor cochilava debaixo do pé de tamarindo, quando Zé de Peixoto chegou. Com sua voz grossa, foi dizendo que "já era hora". O velho apertou -lhe a mão : - Vai deixar a Passagem mesmo, Seu Zé? - Vou passar uma temporada fora daqui - respondeu o negro. - Diz que no Andaraí está saindo muito diamante . . . E apanhando o saco onde levava suas coisas, puxou o cha péu para cima dos olhos, e foi caminhando na direção do rio. 45
- Deus lhe acompanhe - disse ainda o velho João Vítor. Sem nada mais responder, o jagunço continuou a descer a rua no seu andar gingado, o saco nas costas e a ponta da faca - uma grande lambedeira - aparecendo por baixo do paletó. Eram duas horas da tarde. Na praça, o vento levantava uma nuvem de poeira amarela, cobrindo a fachada das casas. Com os seus sessenta e poucos anos de povoado, tinha o velho João Vítor pela Passagem - pelas coisas e pessoas da Passagem o afeto das longas convivências. Ficou olhando para o negro, e o negro foi ficando pequeno na sua imaginação. Conhecia-o desde menino, vira-o brincar no areão e nas ruas com os com panheiros - um molecote de calças curtas, nu da cintura para cima. Lembrava-se também da velha Sebastiana, do dia em que ela viera se queixar do sobrinho. Parecia que tinha sido ontem. Mas, na verdade, já fazia tanto tempo . . . Uma grande paz envolvia o povoado. Dois garimpeiros conversavam no passeio da venda de Heron. Defronte da casa do coronel, os sobrinhos de Justino brincavam com bois de fruta-pão. O velho João Vítor continuava a olhar para o jagun ço, que ia desaparecendo na distância. De repente, lembrou-se da arruaça com o chefe : "Negro doido", pensou. Depois apal pou os bolsos, procurando a caixa de fósforos. Foi quando ouviu o ruído dos chocalhos das tropas que vinham de Xiquexique. Talvez fosse Eleutério com o seu carregamento de cachaça, ou Nezinho de Seu Pilotas trazendo carne-seca de Jussiape. O ruído dos chocalhos crescia na tarde calma, e o velho sentiu então uma estranha saudade do negro. Não sabia bem por que era. Mas sentiu.
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SEGUNDA PARTE
I
Q UANDO
Zé de Peixoto chegou a Andaraí, já toda a ci dade sabia do seu incidente com o Cel. Germano. A notícia se !difundira com rapidez, e cada qual que a transmitia acrescen tava, por conta própria, novos detalhes. Algumas pessoas diziam que os tiros tinham sido disparados nos pés do chefe, outras que uma bala passara raspando por uma de suas orelhas, indo alo jar-se na porta da cozinha. Enquanto isso, muitos adiantavam que o negro não usara uma repetição mas sim um parabelum - arma com que atirava muito bem. Um homem chegou a dizer na porta do botequim de Leó : - Os tiros foram disparados de tão perto, que o capote do coronel ficou sapecado de pólvora. Entretanto, ainda que repercutisse como a maior prova de coragem que um homem podia dar, e despertasse, mesmo, um vago entusiasmo ou admiração, a notícia foi recebida pelo povo com sobressalto. D. Elza, cunhada do chefe, logo que soube do ocorrido ficou aflita, e pensou em telegrafar imediatamente ao marido, que se encontrava na Capital. Ciente disso, Dr. Marcolino pro curou dissuadi-la da idéia, explicando-lhe que "a história não passara de uma arruaça sem importância, não sendo necessário Quelezinho precipitar seu regresso por causa dela". - Acabei agora mesmo de ter notícias da São Pedro disse, lançando mão de um último argumento. - Germano vai passando bem, não houve nada. Na farmácia de Carvalhal, na loja de Benigno Carregosa, no bilhar de Ziu, nas bibocas do Rapa-Tição e da Santa Bár bara, nas casas das mulheres-damas e nos caminhos da serra, nos grupos reunidos debaixo da jaqueira e nos passeios das casas comerciais, na porta da igreja e debaixo das pontes, nos banhos da Boca d a Gruna e nos churrascos de Pereirinha, à meia -noite, no Remanso - comentou-se largamente o episódio da Passagem : 49
bala.
- O negro é raçado mesmo. - Se o coronel não tem o santo forte, estava torado na
- Mas também ele só atirou porque estava de porre convinham alguns. - De porre ou não, só sei dizer é que ele tem cabelo na venta - contestavam outros. Enquanto outros consideravam : - Chega a parecer mentira que ele tenha emendado os bigodes com o chefe! E assim foi o negro feito herói pela cidade que o temia, pela cidade que conhecia a história dos seus crimes, e acabava de ficar sabendo até quanto podia ir sua audácia de cabra des temido que nascera para o cangaço. Mas um velho garimpeiro, conversando no Córrego do Padre, mostrou-se pessimista. Disse: - Desta vez, ele pode encomendar a mortalha. 11
Zé de Peixoto chegou por volta das três horas da tarde, ficando hospedado em casa de Joana Magra, sua velha conhe cida. À noite, o delegado Esquivei foi procurá-lo por ordem do Dr. Marcolino. Encontrou-o sentado na soleira da porta, em mangas de camisa, palitando os dentes. V árias pessoas já o ti nham ido ver, mas nesse momento não havia ninguém com ele, a não ser Joana Magra, que cantarolava na cozinha. Acabavam de dar sete horas. Como era noite de lua, os meninos corriam picula no Ribimba, escondidos na mata de camboatá e velame da estrada dos Bichinhos, ou atrás das pe dras. Chegava até ali a gritaria deles. - Joana! - chamou o negro. - Traga a luz. A mulher trouxe o candeeiro-placa. - Boa .noite - disse. E colocou o candeeiro em cima da mesa, com um grampo de cabelo pendurado no tubo de dez linhas. O delegado Esquivei sentou-se. Depois de pigarrear e olhar de banda para o jagunço, que se instalara numa marquesa, ao lado da janela, começou a falar. - Nós soubemos aqui de uma questão que você teve com o chefe - foi dizendo. 50
- É mentira desses cachorros! - atalhou-o brutalmente Zé de Peixoto, sacudindo as mãos. - Eu não tive nada com meu padrinho não. Foi besteira. Cachaçada. Ele nem se impor tou . . . O mais foi conversa do povo. O delegado via as grandes mãos do negro recortadas na parede em amplas sombras móveis. Coçou o queixo e pros seguiu : . - Sim . . . Eu sei que tudo não passou de uma questão sem importância. Por isso mesmo, foi como amigo que eu vim procurar você . . . - E o que é que o senhor quer de mim? - respondeu o negro, olhando-o com desconfiança. O delegado, ainda que muito velhaco, estava longe de po der dominar os seus nervos. O medo que tinha do jagunço, sendo muito grande, traía-o na voz e na conversa reticenciosa. Nem mesmo a autoridade de que se achava revestido impedia-o de sentir aquele medo enorme. - Você sabe que eu sempre gostei de você, José . . . disse. - Sempre fui seu amigo . . . - Sei disso - concordou o negro, pondo o pé em cima da marquesa. - E se eu vim aqui . . . - continuou o delegado foi . . . - Foi o quê? - interrompeu-o Zé de Peixoto. - Foi apenas para lhe transmitir um recado de Dr. Marcolino . . . - Que recado? - indagou o negro, sempre desconfiado. O delegado Esquivei experimentava agora um leve tre mor em todo o corpo. Nem parecia o homem frio que man dara matar um dia, por causa de uma simples questão de ga rimpo, o meia-praça Tarcisso, que deixou viúva com oito fi lhos pequenos. Zé de Peixoto, que era sabedor do caso, lem brava-se do diamante do meia-praça assassinado - embora não soubesse que o brilhante que o delegado trazia em um dos dedos, e que estava reluzindo à luz do candeeiro, fosse a mes ma pedra. - O recado . . . - foi dizendo Esquivei - é para lhe pe dir . . . Você sabe . . . O recado é dele . . É para lhe pedir que não perturbe a ordem. Zé de Peixoto deu uma palmada no joelho : - Eu vim foi tratar de minha vida, Seu Esquivei. Vim foi negociar. Não estou caçando briga com ninguém não. .
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- Sei disso - respondeu o delegado. - Mas você sa be . . . Eu estou apenas transmitindo um recado de Dr. Marco lino. Como autoridade, sei perfeitamente que você não vai criar nenhum caso. - Pode estar tranqüilo. - Estou tranqüilo, José. Já lhe disse - frisou o outro. - E se vim falar com você, foi apenas porque Dr. Marcolino me pediu. Ele não quer nenhuma perturbação da ordem . . . Ora, Seu Esquivei! Eu não sou nenhum arruaceiro não. Sei disso . . . Mas foi por causa da questão da Passagem . . . Qual é questão da Passagem, Seu Esquivei! Pode ficar sossegado que eu vou falar pessoalmente com Dr. Marcolino. Eu vim foi tratar de minha vida, Seu Esquivei! O delegado não esperou por mais nada. Notando que ha via um tom de enfado nas palavras do jagunço, apanhou o cha péu e despediu-se imediatamente. Na ponta da rua, quatro ho mens estavam à sua espera - três inspetores e um soldado à paisana, que ele ali deixara para qualquer eventualidade. Na companhia deles, recobrou sua energia de autoridade policial. Limpou o suor do rosto e contou-lhes: - Passei-lhe uma repreensão em regra. Fui franco : falei com ele pra pisar macio, porque Dr. Marcolino não estava dis posto a tolerar nada. Disse a ele: "Você já sabe, Zé. Escreveu não leu, o pau comeu. Lhe meto na cadeia". Queria que vocês vissem. O negro pediu até pelo amor de minha mãe para eu não fazer nada com ele. •
Zé de Peixoto veio sentar-se na porta da rua e perdeu-se em divagações sobre o que ia ser sua vida ali na cidade - na cidade que ele via do outro lado do rio e que dava oito povoados da Passagem. Quando Joana Magra o chamou para dormir, ele teve este comentário que a velha meretriz não compreendeu : - Mas esse delegado Esquivei é uma besta! 111
Dr. Marcolino era a "segunda pessoa do chefe" e exercia sobre este a maior influência. No dia seguinte, muito cedo ainda, 52
Zé de Peixoto foi procurá-lo. Acreditava que um entendimento pessoal com o intendente resolvesse sua situação ali na cidade, pondo-o ao abrigo de uma possível perseguição de Quelezinho. Como sabia que o médico era madrugador, foi engolindo o café e saindo. Acendeu o cigarro já na porta da rua. - Até logo, Joana - disse. A mulher respondeu da cozinha : - Até logo, meu filho. A rua começava a despertar. A lenha ardia nas trempes, enfumaçando a cobertura de palha das moradas humildes. Era aquele movimento de sempre, de gente acordando para pegar firme no trabalho, cada qual tratando de sua ocupação. Algu mas mulheres lavavam coadores na porta dos ranchos, enquanto outras preparavam o churrasco de carne-seca que os seus ho mens levariam para a serra. Enchia o ar um cheiro de torresmo chiando nas panelas, e o garimpeiro Meloro, com a cara estre munhada, veio sentar-se no lajedo para gatear um ralo. A velha Vitória passou com uma lata de água na cabeça, de volta do rio, e deu bom dia a uma moça que estava com uma chocolateira na mão. Metido nos seus chinelos de trança, o punhal por dentro da camisa, Zé de Peixoto ia cruzando com aquela gente que se entregava à faina cotidiana, cumprimentando os conhecidos. Mui tos, ao responderem, acrescentavam um respeitoso "Como vai o senhor, Seu Zé?", mas ninguém se atrevia, nem de leve, a fazer qualquer comentário à passagem do negro. Era uma manhã luminosa, de sol brilhante. Numa ampla sucessão de planos, o casaria da cidade branquejava abaixo da mata rala do barranco e, mais além, a serra apresentava os re levos de um muramento colossal. Grupos de garimpeiros atraves savam o areão com bateias de borco na cabeça. Enquanto cami nhava, Zé de Peixoto ouvia com atenção a conversa deles : - Quando o cascalho chegou no apanhador, nós limpa mos de mão, de farracho e frincheiro. E fomos dobrando e me xendo sempre, catando os bugalhaus maiores pra jogar fora, até que chegamos no último fervedouro. Estava feita a primeira ca beceira. - Aí então foi só meter nas bateias . . . - Foi. O da frente disse : - Tem dois dias que eu estou batendo com água no boli nete. Hoj e eu quero ver se apanho outra cabeceira. - E você, já quebrou sua cata? - perguntou, ao compa nheiro, um negro que estava de calção. 53
- Estamos quebrando - respondeu o outro. - O pior é que o patrão nos arranjou uns bruaqueiros que só fazem atrasar o serviço. A gente tem de explicar tudo. Eles não entendem pa tavina de cascalhão. - Quantas canoas tem a corrida de vocês? - Três. - A nossa tem cinco. São cinco canoas e cinco fervedouros separados por cinco traves de pedras retadas. É uma corrida de pipoco. - Pois a minha não tem canoa nenhuma - disse outro. - É corrida larga. Eu e meus sócios só tivemos o trabalho de fazer a chumbação, colocando pedras soltas pra o cascalho re ferver. Ontem mesmo nós cortamos areão o dia todo, até ficar o escoado. Enquanto isso, o negro ia andando sempre, entrevendo, nes ses pedaços de conversa, a próxima garimpagem e o provável bambúrrio, a vida que diante dele se abria ali na cidade - a vida das sempre renovadas aventuras do país dos garimpos. Agora já os garimpeiros s e tinham distanciado, e dentro em pou co passariam por baixo da ponte, tomando o caminho da serra. Um novo dia de trabalho ia começar para eles - cheio de espe ranças e cogitações comuns. Foi quando o negro viu uma mu lher chegar à porta do rancho e gritar para o filho : - Zequinha, tome estes quinhentos reis e vá na casa de Armando Bodeiro comprar meio litro de leite de cabra pra seu irmão. IV
O sobrado de Dr. Marcolino ficava ao pé do morro, dei tando fundos para o pasto do árabe Mansur, proprietário da Pensão Grande Líbano. Era um casarão rodeado de janelas, com telhado de cumeeira e entrada lateral. O médico tinha consultório no andar térreo - um pequeno cômodo atulhado de revistas velhas, de mesas, de armários cheios de vidros de remédio, tudo na maior desordem, e cheirando a álcool. As pontas dos dedos habitualmente manchadas de iodo, Dr. Marcolino usava óculos e fumava desbragadamente, o que o fazia tossir de minuto em minuto. Segundo ele próprio declarava, viera para Andaraí a conselho de amigos; entretanto, ninguém sabia ao certo dos seus antecedentes. Mas como o povo tem sempre o que falar, dizia-se 54
que ele era filho de um padre que morava em Cachoeira. Depois do seu nascimento, o vigário fora mudado de freguesia, deixan do-o em companhia da mãe, a quem ele abandonara logo que se formou. - Quando menino, comprou muito gás para mulher-dama - contavam. Muita gente, porém, não dava crédito a tais conversas. Por outro lado, havia quem insinuasse ser ele casado e ter prole nu merosa; mas que a mulher o deixara por já não poder suportar suas bebedeiras, levando consigo todos os filhos. De qualquer forma, em dez anos de vida em Andaraí, ele jamais se referiu ao seu passado; nem nunca deu direito a que se lhe fizessem perguntas a respeito. Chegara um dia às Lavras, atraído pela fama dos seus garimpos ricos - e, afinal, quase todos chegavam nas mesmas condições : com um passado que ninguém conhecia. A influência que Dr. Marcolino exercia junto ao Cel. Ger mano fora resultado de meras circunstâncias políticas. O profes sor Valadão, que viera muito tempo depois dele, costumava dizer ao seu compadre Carregosa : - O que o Marcolino teve foi oportunidade. E com mal disfarçada inveja acrescentava : - Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Efetivamente, o ambiente que o médico encontrara fora o mais propício possível. À frente de duzentos homens armados, o coronel acabava de alijar a tiros seus adversários eleitorais, assumindo a chefia do município com amplas garantias do go verno, cuja política, em relação ao interior, era baseada na lei do mais forte. No entanto, em meio a tanta energia e audácia, faltava ao novo chefe qualquer dose de instrução, de modo que ele se viu na contingência de solicitar os serviços de um secretá rio hábil. Na cidade, as pessoas que se achavam à altura de de sempenhar esse cargo pertenciam às hostes decaídas, não mere cendo, portanto, a menor confiança de sua parte. O caso é que o Cel. Germano tinha de responder ao primeiro telegrama do governador - um longo telegrama de felicitações - e não ati nava como fazê-lo. De repente, lembrando-se do médico, que muito atiladamente já lhe tinha ido prestar solidariedade, man dou chamá-lo. Dr. Marcolino não regateou os seus serviços. Guardando o estetoscópio no bolso do paletó, redigiu, no pró prio bloco de receitas, a resposta ao telegrama governamental. Duas horas depois estava nomeado secretário da Intendência. Daí por diante, insinuando-se gradativamente na amizade do novo chefe político, logo formou, somando sua astúcia à ca55
pacidade de ação do outro, o organismo mandante do municí pio. E em Andaraí podia acontecer tudo - menos uma coisa : pisar um médico para fazer concorrência ao Dr. Marcolino da Silva Prata. - Ele entrou com o pé direito - diziam. •
Quando Zé de Peixoto dobrou a esquina, Dr. Marcolino estava debruçado na j anela do consultório. De paletó de pijama, e tendo acabado de tomar café, fumava um grande charuto. De fronte do sobrado, no areão coalhado de cacimbas, com suas rodilhas e cuias de lata de queijo, algumas mulheres apanhavam água. Antônio do Fumo ia passando com o seu jumento carre gado de lenha. - Bom dia, doutor - foi dizendo Zé de Peixoto. O médico enfiou as mãos nos bolsos do paletó de pijama, e, conservando o charuto no canto da boca, mandou que o j a gunço yntrasse. - Sente aí - disse em seguida. Zé de Peixoto sentou-se e pôs o chapéu sobre os joelhos. Esquivei procurou você ontem? - perguntou Dr. Marcolino. Procurou, senhor sim. Disse que foi o senhor que tinha mandado. - Sim - respondeu o médico, tossindo convulsivamente. - Fui eu que mandei. - O senhor pode ficar tranqüilo, Dr. Marcolino - disse o negro, com ar calmo. - Deus me livre de perturbar a ordem. Eu vim pra Andaraí foi tratar de minha vida. Dr. Marcolino foi até a janela, escarrou com estrondo na calçada, e depois sentou-se. Aspirando demoradamente a fuma ça do charuto, procurou dar outro rumo à conversa. - Acho que você cometeu uma asneira muito grande, José - opinou, num tom paternal. - Em todo o caso, o que passou, passou. Já sabe onde vai trabalhar? - Vou garimpar na serra de Seu Teotônio. Já falou com ele? - Ainda não. Vou falar depois que sair daqui. - Teotônio tem frentes de serviço muito ricas - considerou o médico. - Aquela fazenda-fina mesmo que eu vendi ao senhor o ano passado foi de lá - relembrou o negro. 56
Ao ouvir estas palavras, Dr. Marcolino olhou instintivamen te para o anel que trazia no dedo: a fazenda-fina fora transfor mada no chuveiro de pequeninos brilhantes de primeira água em meio dos quais reluzia a esmeralda simbólica. Sorriu com ironia, soprou para o alto a fumaça do charuto, e perguntou: - Você vai ter algum sócio no fornecimento? - Não senhor. Eu vou fornecer sozinho. Por quê? - respondeu Zé de Peixoto : era como se tivesse marcado mentalmen te um golpe. O senhor quer algum meia-praça? - Não, não - disse o médico, comprimindo a ponta do charuto entre os dentes. - Eu compro diamantes, mas não for neço garimpeiros. E como se estivesse proferindo uma verdade: - De maneira alguma eu participaria de uma sociedade com quem quer que fosse. É contra o meu feitio. O jagunço alisou com a mão a fita do chapéu. - Eu falei . . . eu falei por falar, doutor - disse, um tanto encabulado. - Aliás, o senhor não precisa ser meu sócio. - Como? - Quero dizer . . . o senhor não precisa ser meu sócio, porque quem vai ver meu diamante é o senhor. E sempre de olhos baixos, o negro esperou pelo efeito de suas palavras. - Eu lhe agradeço a preferência - disse o médico. Mas eu não posso comprar seus diamantes. Teotônio é meu amigo, e como dono da serra quem deve ter a preferência é ele. Essa preferência, aliás, não é nenhum favor; é um direito adqui rido por lei - concluiu, soprando a fumaça contra a brasa do charuto. - Não, doutor, não senhor . . . Meu diamante é livre. Seu Teotônio apenas me cobra o quinto. - Pois é um grande favor que ele lhe faz. - Reconheço . . . Mas como meu diamante é livre, espero que o senhor não recuse a preferência que eu estou lhe dando. O médico levou novamente o charuto à boca e, esboçando um sorriso, disse: - Vá trabalhar, José. Vá trabalhar primeiro. É muito cedo para conversarmos sobre isso. - Quer dizer que eu posso trabalhar? - retrucou Zé de Peixoto com vivacidade, erguendo pela primeira vez os olhos. O médico fitou-o de modo enigmático : Claro . . . Por que não? Será que Seu Quelezinho não vai me perseguir, doutor? -
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- Perseguir? - e Dr. Marcolino sorriu novamente. Não. Quelezinho não vai perseguir você. O negro guardou um minuto de silêncio. Depois disse: Quer dizer que posso contar com o senhor, doutor? Procure contar com o chefe. Com meu padrinho? Sim. Com o Cel. Germano. E tendo dito isso, Dr. Marcolino levantou-se. Zé de Peixo to sabia que o médico costumava cobrar muito caro sua pro teção. Por isso mesmo, embora já lhe houvesse assegurado a preferência dos diamantes que viesse a pegar, ainda disse : - Eu não valho nada, patrão. Mas o senhor pode contar comigo pra o que der e vier. Estou pronto pra fazer o que o senhor mandar . . . - Vá, José, vá trabalhar - limitou-se a repetir o médico, dando uma palmada nas costas do jagunço. Agora sabia que po dia manohrar com ele - com aquele h omem a quem na reali dade também temia, como todos ali na cidade. - Vá, vá tra balhar o seu garimpo - disse, a título de despedida. O negro pôs o chapéu na cabeça e saiu. •
Assim que se viu sozinho no consultório, Dr. Marcolino tomou da garrafa de cachaça que estava em cima de um dos armários, e encheu pela metade um grosso copo de vidro. De pois de ter bebido de um trago o conteúdo, fez uma careta me donha, cuspiu por duas ou três vezes, e cortou nos dentes a ponta de um novo charuto. Agora vinham chegando os primei... ros clientes do dia. Tossindo ruidosamente, o médico gritou para a empregada : - Sinhá Laura! Ferva a seringa! v
Depois da praça vinha a pracinha - àquela hora com Antônio de Zé Benício descarregando adobes trazidos da olaria para a construção da segunda casa de platibanda da cidade, com grupos de homens indo para a Rua do Curral, com um menino vendendo verduras na porta da pensão, com mulheres-damas con58
versando na esquina do Beco da Padaria, e com o sol batendo na placa do escritório do Presidente do Conselho : TEOTÔNIO TEIXEIRA Compra diamantes e carbonatos
Camisa d e seda finíssima, roupa de linho H. J. muito bem engomada, de meias c chinelos chagrin acolchoados, chapéu chi le de copa alta, Seu Teotônio acabava de resolver um caso ocor rido em sua serra. Por trás da mesa - um grande cofre. Muito dinheiro e a patente de major da Guarda Nacional. Mas as mãos - aquelas mãos cheias de anéis do atual patrão - conservavam ainda as asperezas das do antigo garimpeiro bafejado pela sorte. Fazia pouco tempo. Todos se lembravam : era um simples meia -praça que andava virando montoeira na Bacia dos N agôs. - Vendeu o carbonato por vinte contos - explicavam e nunca mais viu a cara da indigência. Outros comentavam : - É analfabeto. Não sabe fazer um "o" com o fundo de um copo. Só foi escolhido pra presidente do Conselho porque é rico. A sorte é mesmo cega . . . Na porta da quitanda de Sinhá Cutu (onde o velho Xixiu tomava a sua cachaça com catuaba ) , quatro garimpeiros con versavam sobre o caso resolvido por Seu Teotônio : - Ele já tem feito isso várias vezes. - Mas como foi mesmo o negócio? - Vítor Hugo estava trabalhando de meia-praça. - Qual é Vítor Hugo? - Vítor Hugo músico. Tocador de clarineta. Aquele que tem um filho doido que come barata. Mas ele era meia-praça de Seu Teotônio mesmo? - Era. Era meia-praça dele. Pois bem. Vítor Hugo chegou, subiu a enxada no duro, roçou, desmontou, tirou cascalho du rante três semanas . Quando lavou os primeiros carumbés, pegou uma de doze grãos. Tinha dado numa frente de serviço muito rica. Aí então Seu Teotônio criou usura. - Suspendeu ele . . . - Pois é. Mandou ele reunir a ferramenta e escorraçou ele da serra feito cachorro. - Isto foi hoje . . . - Foi. Agora mandou dois alugados, contratados a 3$000 59
por dia, lavarem o resto do cascalho. E botou o gerente pra vigiar. - Quer dizer que Vítor Hugo não vai ver bóia . . . - Vítor Hugo? Vítor Hugo está fora do rol. Perdeu o tempo e o trabalho. Só fez preparar a cama pra os outros. Por muito favor, ainda teve parte na de doze grãos. O bocado não é pra quem faz. É pra quem merece . •
Ao apresentar-se ao Major Teotônio para lhe falar sobre a garimpagem, Zé de Peixoto notou que ele hesitava em lhe dar permissão para tal coisa, receando desagradar ao coronel. Por isso mesmo, não perdeu tempo em explicações quanto ao episó dio supostamente comprometedor da Passagem. Foi direto : - Já me entendi com Dr. Marcolino. E ouviu imediatamente esta resposta : Então pode ir trabalhar. VI
Naquele mesmo dia Zé de Peixoto conseguiu alugar casa. Das três que encontrou desocupadas, preferiu a que o inspetor Boreta lhe pôs à disposição. Era uma casa pequena que ficava na Rua da Jaqueira, defronte do rio. Embora deteriorada, ofe recia a vantagem d o ponto - muito bom pra diamantes. O pró prio negro foi quem fez o asseio. Passou grande parte do dia na limpeza, pondo em ordem as prateleiras e arrumando os caixões que deveriam receber, na próxima feira, as mercadorias respec tivas. Por enquanto, ficaria dormindo e fazendo refeições em casa de Joana Magra, cujo xodó lhe trazia a vantagem concreta de nada gastar com ela. - Não venha muito tarde não, meu filho - pediu a mu lher depois do jantar. A casa de negócio era perto. O negro abriu uma banda da porta, acendeu o candeeiro, e sentou-se no balcão para "ver se aparecia um mosquitinho". Foram ter com ele alguns conhe cidos, que moravam na mesma rua. Curiosos, e no desejo de entabularem conversação, perguntavam: - Então, Seu Zé, vai botar venda? Ele tinha uma única resposta: 60
- É um barracãozinho de merda, pra despachar meia-praça. Por volta das nove, já não havia ninguém, e Peba apare ceu. Era um mulato de cara gorda, banguela, apontado como autor de duas mortes bárbaras em Piranhas. - Você demorou como diabo, Peba - disse-lhe o negro. - Só agora é que pude vir. - Que é que estava fazendo? - Fui no Ribimba acertar um sócio pra gente. - Quem é ele? - É um chegante. O jagunço coçou demoradamente o pé. - Não vá me trazer nenhum curau - observou. - Não. Ele é novato aqui mas é muito bom de serviço explicou o outro. - Salu já garimpou com ele e me disse. A luz do candeeiro alumiava frouxamente o cômodo exí guo. Zé de Peixoto palitava os dentes com um pau de fósforo. Peba debruçou-se no balcão. - Você acha que está garantido mesmo? - perguntou. - Homem . . . Eu só acredito em Deus - respondeu o negro. - Mas parece que eu posso contar com Dr. Marcolino. Ele é quem vai comprar nosso diamante. - ótimo. E Seu Quelezinho? - Dr. Marcolino me garantiu por ele. Peba tranqüilizou-se. - E Seu Teotônio? - perguntou ainda. - Me disse que eu podia escolher a frente de serviço que quisesse. Um rato passou correndo e entrou debaixo de um caixão. Os dois homens voltaram-se com o ruído. Depois Peba retomou o fio da conversa : - Bem. Com Seu Teotônio eu sabia que a coisa era fácil. Mas a gente precisa ter cuidado com ele. Aquele camarada ensi na treita a jumento. Zé de Peixoto sorriu com ar de mofa : - Com Seu Teotônio eu faço é como meu pai fez com Seu Aurino. Mijo no chapéu dele. Peba deu uma formidável gargalhada. - Quer tomar um pedaço? - perguntou o negro. É da boa? - É de Eleutério. - Então bota. Nisso, o pequeno Néu, filho de Guilhermino marceneiro, -
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entrou de repente na venda. E perguntou a Zé de Peixoto, baten do o níquel no balcão : - Tem cominho? - Não. - E pimenta-do-reino? - Não tem não, menino. Só segunda-feira. Não me aporrinhe a paciência não! O menino saiu correndo e o negro foi apanhar na prate leira o litro de cachaça. Encheu dois copos. Peba cuspiu e des pejou a cachaça na goela - o copo suspenso a um palmo aci ma da boca. Estalou a língua: - Restilo. O outro bebeu pelo mesmo processo. A cachaça desceu pela garganta como por um funil. - É pra rebater o frio - disse. - Vamos dar uma volta? - convidou Peba. O jagunço apagou o candeeiro e trancou a porta da venda. Já na rua, àquela hora sem movimento, com o punhal e o pa rabelum na cintura, perguntou : - Como vai o femeaço, Peba? O outro homem pilheriou : - Olhe Joana Magra, rapaz . . . - Que nada! - rebateu Zé de Peixoto. - Joana é bananeira que já deu cacho. E os dois desceram a ladeira com destino ao cabaré de Fe lícia. Do outro lado do rio - a cidade era um coradouro imen so, com a lua estendendo lençóis nos oitões caiados. VII
A Rua do Ribimba era continuação da do Rapa-Tição. Antigamente a cidade acabava naquela casa grande da ladeira. Mas depois foram chegando homens que procuravam trabalho, homens pobres que vinham atraídos pelas notícias dos garimpos ricos, e o Ribimba nasceu e foi crescendo, com os seus casebres trepando pelo barranco como um rebanho de cabras. De tão grande, já constituía agora quase um bairro. Foi adquirindo no vos n omes nos seus vários desdobramentos, um beco aqui, uma ruazinha ali, mas sempre com os seus ranchos, que eram como casinholas de cachorros, de três cômodos no máximo, onde vi viam garimpeiros com as suas mulheres, que eram fatalmente 62
lavadeiras, e com os seus filhos, que eram fatalmente futuros garimpeiros. O bairro ia crescendo e invadindo a mata em torno. Os casebres multiplicavam-se nas armações d e camboatá, com coberturas de palhas de pindoba, e entravam pela estrada dos Bichinhos ou desciam pelo areão que margeava o rio, num agru pamento de presépio. Os homens chegavam, roçavam um pedaço do terreno, levantavam as paredes feitas a sopapo com o barro do próprio terreno, cobria-as de palha e, se mais tarde bambur ravam, davam uma mão de tabatinga na fachada da nova mo rada. As mulheres se incumbiam do resto. Cercavam os quintais pequeninos, plantavam as suas coisas, as suas bananeiras, os seus pés de urucu, os seus mamoeiros, as suas mangueiras, e enfia vam cascas de ovos nas varas das cercas, por causa do mau-olha do das vizinhas. Em geral, costumavam elas ter as suas quatro ou cinco cabeças de galinha, o que lhes dava algum rendimento. Mas na casa de Salu a coisa ia de mal a pior. - Trate de arranjar milho, Salu - dizia a mulher do ga rimpeiro. - Senão estas galinhas não botam. Mas o pobre homem, que mal podia fazer o seu modesto saco, não trazia o milho. Ou bem dava comida aos filhos, ou bem comprava milho para as galinhas. A mulher foi perdendo a paciência. Em vão apalpava todos os d ias as galinhas. - Isto parece castigo - resmungava. - Como de coisa que o diabo deste galo não é galo. Freqüentemente, apareciam no Ribimba as empregadas dos capangueiros. Perguntavam de rancho em rancho : - Tem ovos? Olhando para o cesto onde costumava guardá-los, agora va zio, a mulher de Salu respondia: - Tem não. Depois ficava pensando nos bons tempos em que tivera ovos para vender. Não era nada não. Eram dois ou três mil-reis, que sempre serviam para alguma coisa. Quantas vezes, por exemplo, comprara leite de cabra para os meninos com dinheiro de ovos! Certa feita, perdeu a calma e disse à mocinh a que os procurava : - Olhe, minha filha, não tem ovos não. Você acha que galinha que come obra pode botar? Faz mais de três meses que as galinhas daqui de casa não comem outra coisa. Já andam fa rejando os meus meninos. Se está duvidando, vá lá no quintal pra você ver. A mulher de Salu lavava roupa e tinha a freguesia da casa de Seu Teotônio. Mas como a roupa da casa de Seu Teotônio era muita, ela se viu obrigada a deixar as demais freguesias; das 63
quatro que tinha, ficou apenas com duas. Arranjava, assim, os seus 15$000 por mês. Aos sábados, quando ia entregar a roupa na casa do capangueiro, ouvia sempre a mesma pergunta: - Tem ovos? Respondia que não. E ficava pensando no quintal de Seu Teotônio, com as suas quarenta e tantas cabeças de galinha, o seu grande poleiro e o seu milho que nunca faltava. - Mas a senhora - falava com a mulher de Seu Teotônio - com tanta galinha em casa e ainda compra ovos fora? - É pra o São João - explicava D. Sinésia. - Junte todos que puder. Com o seu forno insaciável de bolos e biscoitos, a mulher de Seu Teotônio fora sempre freguesa sua. E agora o diabo das galinhas não botavam! - A senhora quer me comprar uma galinha? - Traga pra eu ver. Se for nova, de carne branca e estiver gorda, eu compro. Assim mesmo conforme o preço. Vendeu a primeira galinha para comprar milho para as outras. Mas Salu, que nessa altura estava sem fornecimento, teve de lançar mão do dinheiro. Vendeu então, consecutivamente, a segunda, a terceira e a quarta galinha; só não vendeu o galo por que o galo morreu de gogo. O galo que a fizera exclamar certo dia : - Se o diabo desse galo fosse como Salu, minhas galinhas botavam toda hora! Foi quando o quintal ficou vazio. O pequeno quintal com pés de erva-cidreira, onde Salu enterrara os umbigos dos seus oito filhos. •
Entretanto, se o Ribimba crescia e estirava suas ruas de casas de palha por onde antigamente era mato fechado, um lado do barranco continuava despovoado. Era aquele lado de cima, onde ficava o chalé de Seu Durães com o seu oitão caindo o reboco, com as suas paredes rajadas de goteiras, com os seus morcegos, com a sua varanda coberta de ervas daninhas. Ali no bairro ninguém queria saber de contato com o chalé. Aquele chão era amaldiçoado - Seu Durães, com a sua usura, com o seu orgulho e com a sua ruindade, desgraçara aquele pedaço do barranco. As mulheres se benziam quando passavam para a lenha : - Tesconjuro! 64
E nas noites de sexta-feira não faltava quem visse a tal lu zinha apagando e acendendo perto do alpendre. Explicavam : É a alma de Seu Durães fazendo penitência. Mas, apesar da fama de lugar mal-assombrado, o que con corria para que o povo não levantasse suas casas ou seus ran chos nas proximidades, os meninos do Ribimba costumavam ir durante o dia ao casarão solitário que dominava o barranco. Engolido o caneco de jacuba, rumavam para o chalé em grupos de seis ou oito, inteiramente nus, porque as calças eles só ves tiam quando tinham de ir à praça comprar alguma coisa. Che gando ao chalé, começava a caçada. Cada qual queria matar uma lagartixa maior. Escondiam-se nas moitas de velame ao lado da varanda, e o bodoque ia passando de mão em mão. - Epa! a minha tem quase dois palmos ! - dizia um de les, medindo com a mão de unhas sujas a lagartixa ensangUen tada. - Cortei o rabo de uma. Olhe como está bulindo! O arco d o bodoque tornava a retesar-se. A pelota zunia. - Acertei na cabeça! - Esbagacei a barriga daquela! Depois era a picula. Empurravam a porta do oitão, que rangia nas velhas bisagras enferrujadas, e entravam no chalé. Metiam-se pelos cômodos ermos e escuros, cobertos d e grandes teias de aranha, exalando um desagradável cheiro de mofo e urina, e avisavam : - Está na hora! E logo era aquela correria desenfreada pelo soalho de tá buas apodrecidas, todos procurando fugir a um só tempo. Mas como jacuba não dava sangue, não tardava e a fome sobrevinha; iam para a chácara, que ficava ali mesmo nos fundos do chalé, completar a refeição. Se as mangueiras estivessem carregadas atiravam-se às mangas verdes ou simplesmente inchadas, não dando tempo a que elas amadurecessem. Acontecia, porém, encontrarem alguma jaca madura e então era uma verdadeira festa. Depois já o Sol tombava. Os pássaros-pretos voltavam ao seus ninhos, e os garimpeiros aos seus ranchos. Atendendo ao chamado das mães, que os esperavam nas portas, de volta do rio com as suas trouxas de roupa, todos eles desciam. Às vezes algum homem dizia : - Esses meninos andam trocando no chalé. Exceto esses filhos famintos de garimpeiros, ninguém mais ia ao local amaldiçoado. E quando a noite descia e o chalé desa-
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parecia nas trevas, nem mesmo eles. Porque lá estaria, fazendo penitência, a alma penada de Seu Durães. VIII
Fazia mais d e seis meses que o retirante Silvério tinha che gado. Viera do alto sertão, tendo sido obrigado a abandonar, por causa da seca, a roça que ali possuía. Na sua terra, ouvira mui tas vezes falar das Lavras, dos seus garimpos fabulosos, dos seus diamantes que eram encontrados até na moda das galinhas. Se duzido por essas notícias, encheu-se de es!)Qranças, e, seguindo o exemplo de outros sertanejos, também se decidira a tentar for tuna em Andaraí. Por precaução, deixara a mulher e os filhos no sertão, prometendo voltar logo que fizesse dinheiro. - Deus lhe acompanhe - dissera-lhe a mulher no dia da viagem. E o retirante juntou-se à leva. Deixava para trás o sertão sem chuva - o b arro vermelho rachando de seco, a água dos tanques virando lama, os campos cobertos de ossadas das cria ções. •
Alto, magro, o rosto marcado de bexiga, o retirante Silvério chegara ali num dia de feira. Como acontecia em geral com os bruaqueiros, começou a trabalhar de alugado; assim, desde os seus primeiros dias nas Lavras, grande foi o desapontamento que teve. - Isto não é vida que se leve - queixou-se, de certa feita, aos companheiros. - Eu pensei qu e esse negócio de garimpo fosse mais positivo. Que era só a gente chegar, cavar um bu raco e encontrar diamante. Filó Finança sorriu : - No começo das Lavras era assim. E passou a explicar : - Era de um jeito que quase ninguém usava picuá. Os diamantes eram carregados em trouxas. Chega a parecer men tira, mas é a pura verdade. O finado Joaquim Martiniano, por exemplo, quando fazia uma apuração, trazia os diamantes entrou xados em dois lenços enormes. De repente, desconfiando que suas palavras não estavam me66
recendo crédito entre alguns ouvintes, lançou mão desta ressalva : - Pelo menos é o que dizem os antigos. - É isso mesmo - confirmou um garimpeiro de barbas brancas, que havia pouco se juntara ao grupo. - Eu mesmo sou testemunha. Vi muito diamante entrouxado em lenço e tra zido da serra em tigela. Eu era rapazinho, mas ainda me lembro. Conversavam na porta do rancho que Silvério alugara em mão de Sinhá do Ouro, a 5$000 por mês - "Uma pechincha!" - tinham-lhe dito. O vento agitava os pés de murici, espalhando um forte cheiro de mato. Uma nuvem de poeira vermelha cobria o cruzeiro fincado no alto do barranco. Filó retomou a conversa. - Mas também tem uma coisa - disse. - Nesse tempo, é bom que você saiba, não havia meias-praças. Os donos de serra trabalhavam era com escravos. O finado Cornélio, por exemplo, nos garimpos dele, só tinha negros cativos. O resultado é que, quando a escravatura terminou, o diamante também qua se se acaba. Deu no mesmo - arrematou com derrotismo. Salu gemeu : - É que os pobres já nasceram pra sofrer. Dirigindo-se sempre a Silvério, Filó Finança logo voltou a falar : - Hoje em dia, se você for procurar diamantes no meio da rua, ou em moela de galinha, onde a gente também encon trava eles antigamente, você m orre doido mas não acha um. Co meça por isto : nós não temos galinhas . . . E quando temos, você bem sabe o que é que a gente encontra na moela delas. Não puderam deixar de rir com tal repente. Mas o garim peiro continuou a falar : - No tempo em que diamante era encontrado em moela de galinha - disse - as galinhas que ciscavam na beira do rio eram as galinhas dos capangueiros, dos donos de escravos. Reconheço que as nossas hoj e ciscam no mesmo lugar; mas na beira do rio o diamante já não é tão fácil assim. De que adianta? - e encolheu os ombros. Em meio à miséria em que vivia no sertão, Silvério fora seduzido por aquela maravilhosa visão de um Andaraí com ga rimpos enriquecendo os homens da noite para o dia, com serras escancarando veios e grunas como cofres - com a fortuna se oferecendo a todos num mundo de oportunidades espantosas. Tangido pela ambição do ganho fácil, pela ilusão de fazer di nheiro depressa, entrevira, na viagem afoita, um futuro próspe ro e feliz. Entretanto, desde os seus primeiros contatos com a terra que buscara, experimentara a mais completa sensação de 67
logro. Andaraí lhe parecera em tudo igual à sua terra, um mu nicípio a mais com ricos e pobres como outro qualquer, com homens bafejados pela sorte e com outros dependendo inteira mente deles na luta pela vida, vida dura e difícil como em toda parte. - Eu me enganei com as Lavras - disse. Julgava-se um homem bastante prático. - Eu pensei que a gente já cavava o chão sabendo que ia encontrar diamante na certa. - Assim nem no Céu - aparteou um garimpeiro. - Pois eu acho que não tem vantagem nenhuma esse negócio de procurar dentro do chão aquilo que a gente não guar dou - acrescentou Silvério. Sem possuir a índole aventureira dos mineradores de dia mantes, não podia ele compreender aquela nova vida que se lhe deparara, ou dela participar sem constrangimento. Ele procurara uma solução imediatista para o seu caso, e encontrara uma rea lidade dividida entre um passado lendário e irrecuperável, e um futuro incerto, que o acaso providencial transfigurava. Foi quando Filó lhe disse, mudando de tom : - Vocês do sertão são assim mesmo. Estão sempre dizen do que não vêem vantagens no garimpo. - Acendeu o cigarro no binga, cuspiu e continuou. Todos o escutavam com atenção : - Mas eu conheço essa conversa de sobra. No sertão, vocês vivem agarrados no cabo da enxada de sol a sol, sofrendo mais do que sovaco de aleijado, e nunca que botam os olhos numa capa-de-cangalha. Vivem guardando tostão feito esmoler, sem ir pra d iante, e quando chegam aqui estão contando história. É verdade que o garimpo não é grande coisa. Mas aqui, pelo menos, é onde o pobre pode ver uma nota de quinhentos depressa. - Filó tem razão - aparteou com alvoroço um garim peiro de Lençóis. - Garimpo, apesar de tudo, é muito melhor do que roça. Nem tem termo de comparação, Silvério. Você quer ver uma coisa? O diamante hoje não é difícil? Não é escasso? Não pagamos 20 % de quinto? Não estamos sujeitos a ser suspen sos do serviço a qualquer momento? - E tendo feito tantas interrogações, ele mesmo não soube responder de pronto. Li mitou-se a repetir, depois de breve silêncio : - Pois fique sa bendo : garimpo é muito melhor do que roça. - No garimpo - disse outro garimpeiro - é onde o pobre está mesmo sujeito a ficar rico de uma hora pra outra. - Não vê o caso de Seu Teotônio? - lembrou outro. - Pois é - conveio o primeiro. - Aqui, de qualquer forma, o dinheiro corre frouxo. No sertão ele é amarrado. 68
Silvério estava sentindo-se cada vez mais deslocado no grupo. - :É como eu já disse - voltou a falar Filó Finança. No garimpo, apesar de todos os inconvenientes, o pobre está arriscado a pegar em dinheiro depressa. E depois de aspirar demoradamente a fumaça do cigarro, saboreando o bom fumo de três cordas, esboçou um sorriso e concluiu, dirigindo-se a Silvério : - Já na roça, vocês pegam eu sei em que é . . . Alguns garimpeiros compreenderam logo o duplo sentido da frase e começaram a rir. Mas Filó, não se satisfazendo com o efeito da pilhéria, recorreu a uma expressão de gíria : - Lá vocês pegam é em joaquim-madrugada . . . Então não houve ninguém que não risse. Foi uma garga lhada geral. •
Silvério agora estava só dentro do rancho. Os outros ga rimpeiros tinham descido para a cidade, foram dar um giro pe las vendas. Fazia cerca de seis meses - considerava - vinha trabalhando de alugado em vários serviços, indo daqui prali, dali pracolá, rolando sem ser pipa. Sua crescente ambição de dinheiro, entretanto, representara uma garantia para o rápido aprendizado que fizera. Tornou-se, assim, mais por habilidade adquirida do que por aptidão natural, um perfeito conhecedor do trabalho de mineração. Como alugado, não tivera nenhum di reito sobre os muitos diamantes que ajudara a pegar : limitou-se a receber a diária minguada, de acordo com aquela prática que tanto o desorientara a princípio. Mas já agora, admitia, a situa ção era outra : com o convite de Peba para abrirem o serviço de Zé de Peixoto, surgira-lhe, afinal, a oportunidade de traba lhar de meia-praça. :É verdade que não faltou quem o advertisse: - Não se fie muito não. Peba só lhe chamou porque nin guém quer trabalhar com Zé de Peixoto. Ele está jurado. Mas Silvério se mostrara indiferente. Obcecado pela idéia do bambúrrio, conveio que não podia perder tempo com a esco lha deste ou daquele sócio - precisava de dinheiro e o tempo urgia. Em meio, porém, ao otimismo dos planos que faziam par te da sua nova condição de trabalho, uma terrível dúvida o assaltava. Não lhe tinham dito que dinheiro de garimpo era amal diçoado como dinheiro de jogo? Sim, ponderava : ali estava o 69
exemplo de Seu Dudu - garimpeiro que fizera quinze contos de uma só vez, que nadara em dinheiro, e que agora, para poder agüentar-se, vivia vendendo cuscuz a mulher-dama. E Zeferino? Zeferinão das Piranhas? - Eta, bamburrista velho de guerra! - tinham-lhe con tado. O bicho vive agora esmolambado, levando burro de via j ante pra manga, mas já espancou muito H. J. na diária! - É o garimpo - sentenciara na ocasião, de modo lacô nico, outro garimpeiro. Mas Silvério tinha os seus projetos. E agarrando-se neles, acreditava-se bastante forte e sensato não só para repelir qual quer impulso de esbanjamento - mas principalmente para reagir contra a falada sedução do garimpo. Ele saberia aproveitar a oportunidade, e isso lhe parecia muito importante. - De garimpo eu só quero saber até o dia em que eu fizer dinheiro - dissera. - Pegando que seja num cobrezinho, volto e m cima do rasto pro sertão. Dentro do seu rancho, ele pensava nesse momento em certas conversas que entretivera com os companheiros na Pedra do Conselho, e como que voltava a escutar a advertência de Filó : "É sempre assim. Todos chegam com projetos de ganhar dinhei ro e ir embora depois. Mas dinheiro de garimpo tem dois vv. Do mesmo modo que vem pra mão da gente, volta para ele". Ah, mas com ele seria diferente - não ia esperar por bambúrrio duas vezes. De repente, porém, embora lutass e para pôr em ordem suas idéias, estas de novo se embaralharam. Era como se dez pessoas estivessem falando a um só tempo dentro dele. "Cinco contos de reis." Tudo volta pra o garimpo. "Cinco con tos de reis." Garimpeiro não fica rico. "Cinco contos de reis." É como dinheiro de jogo : "Cinco contos de reis." Não há bam búrrio que chegue. "Cinco contos de . . . " A gente sempre está querendo mais. "Cinco contos . . . " E o tempo vai passando. "Cinco . . . " Não! Levantou-se. Sim, com cinco contos de reis poderia muito bem comprar o seu pedaço de terra para cultivar. Foi então até a janela. Lá embaixo, na pinguela, os homens pas savam para a cidade. Viu o velho Cinco-Horas acendendo o lampião do Beco da Lama, trepado na escada. Estava escure cendo. Foi quando escutou uma voz: "Não adianta fazer cál culo. Garimpo só dá dinheiro pra castigar a gente. Volta tudo pra ele". Quem lhe tinha dito aquilo? E, com mais usura ainda, começou a pensar no garimpo que ia abrir com Peba e Zé de Peixoto. -
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IX
Sinhá do Ouro sabia coisas e loisas. Por ser muito presta tiva, era de todos estimada no Ribimba. Quando qualquer mu lher caía doente no bairro, ela logo aparecia com os seus chás, com as suas mezinhas, com as suas beberagens de adjuntos de horta, e era pá, casco. Para mulher parida que não podia com prar Água Inglesa na farmácia, ela tinha aquela velha fórmula tão bem conhecida de Salu : noz-moscada, quitoco, salsa, poejo, losna miúda, arruda e cebola branca - tudo pisado e posto de infusão numa garrafa de cachaça. Na verdade, a mulher de Salu ficava logo bêbeda com duas doses; mas tomava a garrafa até acabar. Assim, ia a velha Do Ouro medicando as famílias do Ribimba - os garimpeiros com as suas mulheres e seus filhos - enquanto os capangueiros e os negociantes, os homens endi nheirados da cidade, ingeriam as poções de Carvalhal aviadas mediante receitas de Dr. Marcolino. Um dia, por exemplo, Tindô encontrou-se com Filó Finança e Juvenal Bosta-Voa. - Sabem de uma coisa? - foi dizendo, um tanto encabu lado. - O meu menino mais velho, aquele de doze anos, que já me ajuda no garimpo, apareceu com uma gonorréia desgra çada. Bosta-Voa felicitou-o : - O quê, senhor! Parabéns. O menino é macho mesmo. Tindô sorriu, envaidecido : - É. Em todo o caso . . . antes assim do que ficar como o menino de Camandaroba : fazendo papel de mulher no meio dos outros. - Tornou a sorrir e acrescentou : - Mas eu pre ciso arranjar um remédio pra ele. Acho que vou dar um cozi mento de velame. Filó observou : - Que nada! Entregue o menino a Sinhá do Ouro, que você vai ver. Dito e feito. Tindô foi procurar mais do que depressa a velha Do Ouro. Tinha ela acabado de rezar naquele momento. Tindô foi chegando e contando : - Sinhá do Ouro, eu estou até com vergonha. Mas o dia bo deste menino pegou uma doença de rua e eu quero que a senhora trate dele. A boa mulher não regateou os seus serviços. Disse ao me nino : 71
- Olhe, meu filho, você pegue uma lagartixa, dê a sua mãe pra torrar, com tripas e tudo, e depois moa bem moída, até virar pó. Depois bote o pó num quarto de cachaça, mexa bem mexido e beba. Tindô voltou-se para o filho : - Está ouvindo? Dê o recado a sua mãe direito. Quando eu vier de tarde trago a cachaça. Foi tiro e queda. E a hemorróida de João Boi? Aquela hemorróida desgra çada que não deixava o pobre do João Boi trabalhar? Um belo dia ele correu pelo Ribimba, com as calças na mão, e foi esbar rar na porta de Sinhá do Ouro : - Me acuda, Sinhá do Ouro, senão eu morro! A velha aconselhou : - Mande buscar xiquexique na serra, faça um chá da raiz e um picado do miolo. Depois de tomar o chá e comer o picado, tome um banho de assento com água bem quente, mis turada com cachaça canforada. Depois você vai me dizer. Pois não foi que João Boi ficou bom? Eram, assim, muito grandes os conhecimentos terapêuticos de Sinhá do Ouro; e não ficavam atrás os seus conhecimentos históricos. Conhecia a vida das Lavras como ninguém - e com o seu rosto encarquilhado, a sua bata, o seu xale, os seus casos, era ela, ainda, a maior atração das reuniões no Ribimba. •
Como acontecia todos os sábados, o rancho de Sinhá do Ouro lá estava com o seu cheiro de igreja - com os seus regis tros pendurados nas paredes, com o seu fogareiro de barro quei mando incenso, com a sua vela de $400 alumiando o pequenino nicho de Santa Rita, em cujo louvor se rezava aquela ladainha que começava assim : Viva Santa Rita, Que é Santa mulher, No céu e na terra, Ela faz o que quer!
Sinhá do Ouro acabou de rezar o Ofício e veio sentar-se à porta do rancho. O luar estava uma beleza. De sorte que os moradores do bairro apagaram os fifós, fecharam as portas d e suas casas e s e reuniram para conversar. Acendendo a baga d e palha que trazia atrás d a orelha. Sinhá do Ouro ficou pensando 72
na toalha que mandara fazer para Santa Rita. Foi quando a mulher de Salu apareceu, suja, esguedelhada, na porta do seu casebre, e gritou: - Tião, ô Tião! Ninguém respondeu. A velha Vitória passou por ela, de cachimbo na boca. - Como vai, Sinhá Vitória? Depois tornou a gritar : - Tião, ô Tião?! A velha Vitória foi seguindo, e logo depois se sentava na porta do rancho de Sinhá do Ouro. Os meninos estavam brin cando debaixo do pé de canjoão : Boca de forno, FORNO! Tirai um bolo! BOLO! Tudo o que eu mandar fazer? FAREMOS TODOS!
Tião, ô Tião! A lua cheia marinhava pelo céu azul, avivando, na fachada deteriorada de alguns casebres, os vestígios da tabatinga parca. As bananeiras tinham como um ar encolhido. E os mamoeiros esboçavam, aqui e ali, silhuetas tronchas. Nu em pêlo, o menino correu pelos fundos do quintal : - Senhora, mãe. - Onde você estava, seu diabo, que eu quase morro de gritar? - perguntou a mulher de Salu. - Estava obrando, mãe. - Deixe eu cheirar sua boca. O menino escancarou a boca cheia de cacos de dentes; e a mulher cheirou. Depois disse : - Ah, pensei que você tivesse descoberto alguma jaca por aí. Você já sabe, seu moleque. No dia que você comer jaca escondido da gente, você cai no pau. Lhe meto o relho, seu sem-vergonha. O menino tremia. Onde estão os outros? - indagou a mulher. - Estão brincando de boca-de-forno debaixo do canjoão. - Está certo. Agora vá vestir suas calças, vamos, vá logo! que é pra você ir comprar $500 de carne pra eu fazer o chur rasco de seu pai. 73
O menino vestiu as calças num abrir e fechar de olhos, e desceu o barranco correndo. Depois a mulher foi caminhando, com a barriga lá em cima, no oitavo mês de gravidez, para o rancho de Sinhá do Ouro. - Boa noite, comadre. - Vá se sentando. A velha Vitória cachimbava. - Este fumo é bom? - perguntou a mulher de Salu. - Não é mau não. - Então me dá uma masca aí. A velha Vitória meteu a mão no bolso da saia e dele retirou o pedaço de fumo. - É do Fundão - disse, c passou-o à outra mulher. - Deus lhe pague. A mulher de Salu, que ainda não comera naquele dia, tra tou logo de ir mascando o pedaço de fumo com os dentes que lhe restavam. Um gosto acre lhe encheu a boca, e ela cuspiu grosso, cor de café. Dali podia ouvir a gritaria dos meninos : FAREMOS TODOS!
e também os sons de uma harmônica que estava sendo tocada a umas três ou quatro casas abaixo. Era Joaquim Boca-de-Vir gem, o amásio d e Rita Pandeiro, executando a sua mazurca pre dileta. X
Uma hora depois chegou Neco Rompedor - "Boa noite, Sinhá do Ouro" - e também se sentou. Depois veio Juvenal Bosta-Voa, sobrinho do finado Ursulino. Um pouco adiante, um homem estava parado junto da cerca : era Filó Finança esperan do pela negra Vitalina. Esta acabou de urinar, enxugou-se na saia, e deu de testa com ele. - Como é, Vita, pode ser hoje? O jasmineiro cheirava por cima da cerca. A mulher tirou o cachimbo da boca: - Não sei. Acho que não. Zé de Peixoto ficou de ir lá em casa às 8 horas. Filó sorriu e entrou com o jogo velho: - Joana Magra lhe mete o cacete . . . 74
Vitalina botou as mãos nas cadeiras. Seus dentes brilha vam à luz da lua. - Ela que caia nesta! - respondeu com arrogância. Você quer que eu lhe diga uma coisa? Por causa de Zé d e Pei xoto eu não me incomodo de me estraçalhar com qualquer uma. E não é por causa do dinheiro dele não. f: porque eu gosto dele. Aquilo é que é um macho! Filó achou graça: - Está certo, Vita. E pilheriou : - Você quer ouvir um conselho? Arranje um retrato dele e pendure no pescoço. - Depois endireitou o chapéu, mais suado que um baixeiro, e acrescentou : - Olhe, eu estou na casa de ·sinhá do Ouro. Se der certo, é só me chamar. - Vá procurar o que fazer, Filó! Mas o homem insistiu : - Me diga uma coisa, quantas vezes ele já esteve com você? - Uma só . . . por quê? - Agora é fora de pilhéria, Vita. Vou lhe dar um conselho. Você quer que ele fique doidozinho por você? - Hum - grunhiu a negra, um tanto desconfiada. Como é? Aind a que fosse por zombaria, Filó pensara em instruí-la no feitiço que um curandeiro ensinara a Alaíde para prender o finado Bitu. Ela devia coar café com o seu mijo e dar ao amante para beber. Compreendendo, entretanto, que não era nada agra dável meter-se em encrencas com Zé de Peixoto, dissimulou: - Ora, Vita! Você por si já é mulher pra botar qualquer homem doido . . . A negra envaideceu-se : - Ainda bem que você sabe disso. Filó pensou : "Ah, sujeita besta! Você só presta mesmo pra gente descarregar o corpo". Mas disse coisa diferente : - Pois é. Se der certo, já sabe. Eu estou na casa de Sinhá do Ouro. •
Já era bem grande o grupo formado à porta da velha Sinhá do Ouro. Joaquim Boca-de-Virgem fora o último a chegar. Com ele viera Rita Pandeiro no seu vestido de toquim, o cabelo pen teado com baba de babosa, o corpo cheirando a sabão de coco. 75
Também Silvério se achava presente, remoendo aquela idéia dos cinco contos. - Mas deixe lá que a vida está é dura - disse o amásio de Rita. - Você não tem razão de se queixar - aparteou Neco Rompedor. - Você não pegou a semana passada? - Ora! - retrucou o outro. - Peguei um mosquito que vendi por 50$000, cativo o quinto. Quem é seu patrão? - Seu Manezim da Intendência. - Conheço demais aquele rato . . . - Falando sério, a verdade é que a vida está é dura mesmo - ponderou Juvenal Bosta-Voa. Sinhá do Ouro abanou a cabeça ironicamente : - Vocês ainda não viram nada - disse. - Vida dura foi em 99. Vocês não são capazes de avaliar. Vi muito pai de família ganhando $400 por dia. Nesse tempo - prosseguiu garimpeiro e cachorro eram a mesma coisa. Diamante foi ven dido até a dois tostões o grão. Basta eu dizer isto : vi muita menina virgem, de dezesseis anos, trocada por um quarto de rapadura. Era uma miséria horrível. Filó não pôde fugir a este raciocínio : "Veja como são as coisas! Em 99, o camarada que tivesse um quarto de rapadura estava com uma virgem no papo. Hoje, eu com os meus 3$000, com os meus três centenários, ando atrás da negra Vitalina pare cendo que estou pedindo esmola". Mas comentou em outros termos : - Andaraí é assim mesmo. Nunca passou disso. É uma terra rica de gente pobre. - Você disse agora a coisa mais certa do mundo - co mentou Saiu. - Outra crise braba foi a que desgraçou Seu Durães disse a velha Do Ouro. - Embora tenha sido menor do que a de 99. - Mas todo o mundo não diz que o que desgraçou esse homem foi o orgulho dele? - observou Boca-de-Virgem. - Sim - conveio a velha. - Ele era, de fato, muito orgulhoso. - E começou a contar : - Era um homem que não dava importância a ninguém. Quando construiu o chalé cá em cima, longe da cidade, num tempo em que não havia ainda o Ribimba, já foi pra evitar que o povo procurasse ele. O homem era, nessa época, o maior capangueiro das Lavras. 76
- É verdade que ele lavava as mãos com álcool depois que comprava qualquer diamante? - perguntou Neco. - É - prosseguiu a velha. - Aliás, nesse particular, eu posso garantir porque vi. Vocês sabem, eu nunca fiz segredo de minha vida, que me botaram este apelido por causa dos anéis de ouro que eu trouxe do Rio de Contas. Pois bem. Por ocasião da crise, quando eu vi a coisa endurecer pra meu lado, tratei logo de vender eles. E o comprador que eu achei foi justamente Seu Durães. - Vá ver que ele comprou seus anéis por dez-reis-de-mel-coado - disse Filó. - Isso mesmo - continuou a velha a falar. - Depois de comprar os anéis, ele pegou a garrafa de álcool e, mais do que depressa, lavou as mãos. Seu Durães era cheio dessas boba gens. Tinha medo de moléstias contagiosas. - Mas vá contando - pediu Silvério, subitamente inte ressado pelo caso. - Pois é isso - retomou Sinhá do Ouro a história. Quando um garimpeiro batia palmas no alpendre do chalé, a mulher dele vinha logo dizendo pra que o homem entrasse mas que não escarrasse no chão, e que limpasse os pés no capacho da porta. - Mas ainda tinha gente que ia lá? - surpreendeu-s e Filó Finança. - Já vi que garimpeiro é sem-vergonha mesmo. - Que jeito? - respondeu Sinhá do Ouro. - O homem era o maior capangueiro das Lavras e pagava os melhores pre ços. - Depois confessou : - Até hoje eu não sei como foi que aquele dinheiro pôde acabar tão depressa. - É a vida . . . - ajuntou Salu. E Silvério de novo se lembrou do aviso de Filó, d e que dinheiro de garimpo tinha dois vv. Mas já a velha Do Ouro retornava ao caso : - Só sei dizer é que os negócios dele foram dando pra trás, depois veio a baixa, e, quando menos se esperou, o homem estava desgraçado . . . - Eu nunca vi uma coisa daquela - comentou a velha Vitória, entre duas cachimbadas. - O homem ficou sem crédito no comércio, os vales dele eram rejeitados, e até fome a família passou. Nunca vi ninguém se arrasar tão depressa. É verdade que ele não entregou logo os pontos. Alugou um escritório na Rua dos Negros, vivia dando psiu em garimpeiro feito mulher -dama, mas de nada adiantou. E concluiu : 77
- Foi uma coisa horrível de verdade. - Mais horrível foi quando encontraram ele duro no quarto, com o copo de veneno caído de junto, e o paletó de alpaca sujo de vômito - disse Sinhá do Ouro. - A família botou a boca no mundo. - Eu ainda conheci uma filha dele fazendo vida na Rua das Barricas - declarou Zé do Fumo. - Era Elvirinha - explicou a velha Do Ouro. - A que tocava piano. As outras também se perderam, mas foram pra Feira de Santana com D. Almira - esclareceu. - Não quise ram se passar pra garimpeiro. Esse detalhe fez com que Filó Finança voltasse a pensar mais insistentemente em Vitalina. A conversa, entretanto, teve de ser interrompida, porque uma mulher veio chamar Sinhá do Ouro para rezar o filho de espinhela caída. Então ele não espe rou por mais nad a : saiu de fino e foi procurar a negra. A negra Vita que, na sua imaginação, se confundia agora com as filhas brancas de Seu Durães. •
"O chalé é mal-assombrado - por isso ninguém quer morar nele" - ia pensando Silvério a caminho do rancho, logo depois de desfeita a reunião. Também ele não compreendia, embora só de ouvir falar, que um homem tão rico se arruinasse daquele jeito. Como não devia ser o chalé nos dias de riqueza de Seu Durães - como não devia ser?! Agora era um casarão abandonado, que o Cel. Germano comprara com o único fim de demolir, para aproveitar o material numa outra construção. "Con tra a sorte só mesmo a morte! ! - dizia Silvério consigo próprio. E com a história do capangueiro na cabeça, voltou-lhe, de re pente, dissimulado na necessidade de ganhar dinheiro, o obsti nado sentimento de cobiça na meia-praça. Pensou em Peba e Zé de Peixoto, no serviço que juntos iam abrir. E, num impulso em que se mesclavam, com igual intensidade, o medo de fracas sar e o desejo de ser só, lembrou-se da família que deixara no sertão. Era a primeira vez que isso acontecia naquela noite . •
Agora estava defronte do rancho. Viu luz na casa da negra Vitalina, e compreendeu que devia haver alguém com ela, por causa dos risos de deboch e que ouvia. Um homem ia descend o 78
o barranco resmungando, de mão no bolso e passo apressado. Pelo andar, reconheceu Filó Finança. Destrancou a porta e en trou. Do outro lado do rio, na sua mudez noturna, a serra ad quiria uma sombria majestade. Contemplou-a demoradamente, como se estivesse sondando o seu próprio futuro. XI O lampião da esquina do sobrado de Dr. Marcolino derra mava uma claridade tênue, que mal chegava para alumiar um pedaço do passeio e a porta de entrada. De dentro da noite, o vulto veio vindo lentamente, colado ao muro e depois à parede. O médico estava lendo na rede, quando ouviu as duas pancadas vibradas na porta da rua. "Deve ser algum cliente" - pensou. Levantando-se, tomou do candeeiro e encaminhou-se para a es cada. Ao abrir a porta, a luz caiu em cheio sobre um homem de chapéu de couro, com um fuzil Máuser na mão. - Entre - foi dizendo, ao reconhecer João Vaqueiro. •
Ao entrarem na sala, Dr. Marcolino foi direto à gaveta da mesa, de onde retirou um charuto, acendendo-o em seguida. - Que é que veio fazer, João? - perguntou, depois de sentar-se. O outro homem, com o chapéu de couro pendurado no cano do fuzil, que conservava entre os joelhos, respondeu em voz baixa : - Vim matar Zé de Peixoto. O médico pôs-se de pé imediatamente : - Matar Zé d e Peixoto? João Vaqueiro confirmou o que dissera, com um movi mento da cabeça. E em tom firme acrescentou : - Foi a ordem que o coronel me deu. Dr. Marcolino levou a mão fechada à boca e tossiu demoradamente. Depois coçou a cabeça. - É o diabo - disse. - Isto não pode ser agora. O capataz da São Pedro limitou-se a repetir : - Foi a ordem que o coronel me deu. - Não discuto isso - conveio o médico, ainda de pé. Mas você vai voltar. 79
João Vaqueiro torcia entre os dedos a barbeia do chapéu de couro. - Eu só sei dizer ao senhor é que recebi a ordem - res pondeu. - Não há de ser nada - explicou o médico. - Você vai voltar com uma carta minha. Depois soltou uma baforada do charuto e disse : - Agora vá na cozinha e fale com Sinhá Laura para lhe dar café. Eu escrevo a carta num instante. •
Molhou a pena no tinteiro e escreveu : Meu caro Germano : - O João Vaqueiro esteve aqui. Estou de pleno acordo quanto à necessidade de se eliminar o Peixoto. Entretanto - parou de escrever, pensou um pouco e procurou fundamentar a argumen tação não creio que o momento seja oportuno. Ele ainda está muito cabreiro, e desentocá-lo de casa não será fácil. A não ser que se tenha de fazer um verdadeiro tiroteio na cidade. Quer saber a minha opinião? Acho que só se deve - tornou a parar de escrever, mastigou a ponta do charuto, e pensou : "Bem. Ele vai começar o serviço esta semana. Por conseguinte, só dentro de quinze dias estará lavando o cascalho. Quem sabe se ele não vai me vender uma pedra grossa? Afinal de contas, no garimpo a gente joga mesmo é com a sorte". E voltou a escrever mandar eliminá-lo dentro de quinze ou vinte dias. Eu cuidarei disso, e me comunicarei com você na ocasião. Sei que o prezado amigo quer dar uma lição nesse negro atrevido, e não é por outra coisa que compreendo e respeito sua cólera. Ele está mes mo criando muita asa. Mas a minha opinião é esta : devemos aguardar mais alguns dias. - Depois releu o que escrevera, e já ia dando a carta por terminada, quando se lembrou de acres centar : - No momento propício, caso o João não possa vir, não se preocupe: tenho gente para tratar do caso à altura. Re ceba um apertado abraço do seu amigo Marcolino. - Depois meteu a carta num envelope timbrado da Intendência, e so brescritou-a. -
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- Entregue a carta - disse a João Vaqueiro na porta da rua - e esteja tranqüilo. Dê muitas lembranças a Germano, e fale com ele para me mandar uns requeijões. 80
XII
A loja de Benigno Carregosa (A Barateira) já estava aberta: às segundas-feiras ele a abria mais cedo do que nos outros dias. O comércio, de resto, não tinha propriamente horário para abrir, e muito menos para fechar. É verdade que a Intendência con vencionara um sinal de apito para o fechamento, mas os nego ciantes agüentavam firme no balcão até a meia-noite - a ban dinha de porta aberta àquele tipo não raro de freguês : o garim peiro que lesava o quinto e preferia fazer suas compras sem dar na vista. Além da trabalheira do balcão, tinha Carregosa sob sua responsabilidade a agência do correio, que funcionava ali mes mo na loja. A princípio, não a quis aceitar nem à mão de Deus Padre; mas Dr. Marcolino tanto insistiu, tanto falou que acabou por convencê-lo : - "Lembre-se que só temos correio uma vez por semana" - argumentara. - "A bem dizer não há traba lho". Entretanto, como a tarefa postal ocorria às segundas, e não era possível agüentar aquela cacetada dos registrados em dias de feira, ele teve de se valer do auxílio de sua filha Ameli nha - moça de memória muito gabada, por ter interpretado um papel difícil pra burro no drama religioso O sangue que ora. •
Outras lojas e vendas se abriam e os bruaqueiros começa vam a arrumar as cargas para a feira. Com o lápis enfiado atrás da orelha, o fiscal Juventino Joga-Bunda andava pela praça feito barata tonta - o Orçamento Municipal no bolso e o talão de cobrança de impostos com segunda via em carbono na mão. Os retalhistas armavam as suas barracas com toldos de algodãozi nho e balanças com pesos retificados na última aferição, o cole tor Barroso estava vigilante para não entrar nenhum carregado de cachaça sem selos, e de repente foi aquele movimento danado de carregadores transportando sacos de feijão, arroz, café, fari nha, açúcar e milho, numa atmosfera impregnada de suor de gente e de animais. - Eta, calorão brabo! Deixe lá que a carne frescal dos Campos d e São João ia quebrar muito com semelhante sol, e por isso tinham que subir o preço no retalho, do mesmo modo que o toucinho, toucinhão 81
de palmo, agora perdendo peso nos fardos que engorduravam o calçamento. E é vem gente, é vem gente que até parece um mar humano, garimpeiros das Casas-Grandes, da Boca da Gruna, do lmbé, da Boa Noite, do Rapa-Tição, da Santa Bárbara, da Jaqueira, do Ribimba, dos Sete Pecados, das Barricas, do Buxo, do Sossego, do Bugalhau, de tudo quanto é rua, com sacos na mão para fazer o saco. Uma mulher-dama tresnoitada entrou na padaria para com prar bolachas. Agenor Cabeça-Seca, que estava perto, tomou deboche : - Mas Tutu, até quando você quer crescer a traseira? A mulher respondeu com boca de nojo : - Olhe com os olhos e coma com a testa - e saiu rebo lando as volumosas nádegas, a meia libra de bolachas papudas na mão. Por outro lado, a molecoreba cercava os tabuleiros na Pra cinha, gastando os níqueis dos eventuais mandados no doce de rapadura com gergelim, nas brevidades de Tia Joana, nos quei mados enrolados em papel de seda e com um gostinho bom mesmo de gengibre, nos beijus de coco e nos bolos de milho, de arroz e de aipim. O estafeta Xavier era espirituoso. Chegou perto de um dos tabuleiros e pediu: - Me dá $500 destas duas sílabas imorais. S eu Dudu conhecia a pilhéria. Meteu a faca no cuscuz e embrulhou-o num pedaço de folha de bananeira . •
O sobrado do árabe Mansur faiscava ao sol. Havia moças nas janelas espiando a feira, o movimento que ia na praça uma verdadeira diversão para elas. Os patizeiros chegavam com os seus balaios de bananas, vinham os quitandeiros atalhá-los, os roceiros do Santo Antônio abriam as suas bruacas de melan cias e abóboras, e o zunzum ia crescendo e se espalhando por toda parte. Na porta da farmácia, com uma seringa de vidro na mão, Dr. Marcolino atendia a um cliente. Dentro da farmácia, o boticário Carvalhal despachava os seus purgantes de sulfato de sódio, os seus retalhos de permanganato, de mercúrio, de iodofórmio e pó de joanes - a freguesia escornada no balcão. Comerciantes propunham negócios nas esquinas, Seu Teotônio e outros capangueiros já estavam com os escritórios abertos, e Firmino Balanceiro, a cara gorda e vermelha reluzindo ao sol, 82
anotava as pesadas de carne na caderneta que tinha sobre os joelhos. Os bruaqueiros discutiam preços em volta dele, enquan to o fiscal Juventino, cercando as novas tropas que chegavam, ordenava a retirada dos animais assim que estes eram descar regados : - Pro curral do Conselho, vamos! Seu Teotônio estava à porta do escritório. Um rapazinho, que era garimpeiro, aproximou-se dele : - Bom dia, meu padrinho. - Bom dia. - Será que o senhor pode me dar 2$000? - Cadê a bênção? - Bênção . . . - Deus lhe dê juízo. Foi quando chegou o fiscal Juventino e a conversa mudou d e rumo. - Bom dia. - 'dia. - O curral já está cheio. Era uma notícia que muito agradava a Seu Teotônio. O curral fora idéia dele. Aliás, o curral sempre existira - muito antes de Seu Teotônio ser presidente do Conselho. Mas foi ele quem fez replantar de capim o quintalão que ficava nos fundos do prédio d a Intendência (onde funcionava o Conselho Muni cipal ) e, sobretudo, quem obrigou os bruaqueiros a nele prende rem os seus animais, pagando um mil-reis por dia e dois por noite. Os bruaqueiros, que até então pagavam muito menos pelo aluguel de outros pastos, como os de D. Nonô, de Seu Dião e Seu Carneiro, estranharam a nova lei municipal. Mas logo se conformaram, e Seu Teotônio, que, com isso, arranjara uma renda semanal de uns 200$000, foi bastante elogiado por Dr. Marcolino e Benigno Carregosa, como sendo "um bicho danado para negócios". •
À praça regurgitante d e gente chegavam agora as mulheres -damas com os seus vestidos berrantes - e ela veio com elas um cheiro doce de loção nacional, de brilhantina abundante e de pó-de-arroz Lady, muitas delas de mãos dadas e com sombri nhas de seda vermelha da última moda. - É vem o gado! - bradou Ziu à porta do bilhar, en quanto passava giz na cabeça do taco. 83
O mulherio se espalhou pela praça e foi especulando os preços das verduras - das batatinhas, dos inharnes, dos maxi xes, dos chuchus, dos quiabos, das abóboras-d'água e dos pal mitos, que Zé Lavagem e outros verdureiros retalhavam nos passeios das casas comerciais ou ao longo dos lotes já vendidos. No passeio de João Febrônio, os peixeiros do Rio Santo Antônio· expunham à venda os seus carnbões de traíras, curirna tás, pirás, curnbás, piranhas, e Joana Magra foi chegando com a carapinha acamada a doses cavalares de brilhantina, urna bolsa de crochê na mão : A corno está vendendo as traíras? - A 3 $000 o mercado - respondeu Antoninho do Peixe. - Vá roubar no inferno! Peba e Silvério se aproximaram. - Zé de Peixoto está na venda? - perguntou Peba. A mulher respondeu : - Foi pra lá agora mesmo. - Então vamos fazer o saco, Silvério - disse Peba. E os dois deixaram Joana Magra discutindo o preço do mercado de peixe. Ao passarem pela porta da loja de Benigno Carregosa, Zefa Me-Pula se fretou com Peba, pondo as mãos nas cadeiras largas : - Hoj e eu quero cincão, meu bem. De noite eu lhe dou, debaixo da ponte. •
Mangas de camisa arregaçadas, chapéu em cima dos olhos, Zé de Peixoto despachava os fregueses. Peba foi entrando na venda com Silvério : - 'dia, gente. Zé de Peixoto atirou na balança um pedaço de carne com tanta força, que a balança desceu de urna vez, acusando, em virtude desse velho truque, um quilo d e 800 gramas. - Boa pesada! - chaleirou Peba. E depois do freguês ser despachado: - Agora vamos nós, Zé. O negro apanhou um caderno de papel pardo, molhou a ponta do lápis na língua, e fez esta observação: - Vocês vão cedo pra ver se esta semana a gente começa a desmontar. Eu acho bom até vocês dormirem na serra. Peba respondeu que iam dormir no rancho de Filó Finança 84
- "Já acertei tudo". Então Zé de Peixoto começou a anotar a despesa. Mas avisou de saída : - Meia-praça meu só come 1 0$000. Sua letra não chegava a ser letra - o negro mordia o beiço, fazendo força ao traçar os seus garranchos. Mas, por fim, assentou tudo. A conta era esta : 1 1 1 1
qlo di carne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . qlo di toicím . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . lt di feijão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . lt di arrais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 lt di farinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 /2 qlo di café . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 raspadura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . fumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . mortalha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . tempero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . gais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2$000 3$500 1 $000 1 $000 1 $000 $400 2$000 $200 $ 1 00 $800 1 $000
Depois somou. Tinha mais habilidade para somar do que para escrever. - Treze mil e oitocentos - disse. - Passou da conta. Veja o que quer tirar, porque eu não fio resto de saco nem à minha mãe, se ela fosse viva. Pode deixar que eu lhe pago, Zé - respondeu o meia-praça. Eu só falo uma coisa uma vez, Peba. Então está certo - concordou o outro. E tendo consultado as suas necessidades mais prementes, acrescentou: - Tire o arroz, o feijão . . . deixe ver . . . Pode dizer. . . . o tempero . . . e deite só meia rapadura. Completou? Completou. Então pode ir despachando. Depois foi a vez de Silvério. Enquanto amarrava o saco com o seu de-comer de uma semana, o sertanejo não pôde dei xar de considerar a vantagem de estar só. Se a família estivesse em sua companhia, esperando por ele no Ribimba, e não no sertão distante, teria de fazer como Benedito Bispo e outros garimpeiros : subir a serra como um esmoler, com um pedaço de rapadura e um punhado de farinha, para que a mulher e os filhos não morressem de fome. Sem saber mesmo por que, lem brava-se particularmente de Benedito Bispo, de quem se dizia 85
que andava com o estômago pregado nas costas. "Já comeu, Benedito?" - perguntavam os companheiros. - "Que nada, rapaz!" - respondia ele. - "Só fiz distrair a barriga." Agora, porém, por força mesmo do contraste, Silvério se lembrava era do garimpeiro Leobinão, que passara cinco anos sem comer man teiga. Um dia, contavam, tendo bamburrado na Massa de Sinhá Adriana, chegou à venda de Lolota e fez um filipão deste tama nho, um saco reforçado para quatro homens, e mandou embru lhar dois quilos de manteiga. Depois, pensaram até que ele tinha ficado doido, chegou ao rancho e tome manteiga nas pernas, nos pés, nos braços - até ficar lustrando. - Em que é que está pensando, rapaz? - perguntou Peba de repente. Silvério estava tão alheio que quase toma um choque. - Em nada . . . - respondeu. E pondo o saco nas costas : 'bora? - Vamos. - Vocês devem dar um jeito de subir a serra hoje mesmo - disse Zé de Peixoto. - Porque assim vocês já amanhecem no serviço. •
Agora, então, é que a feira estava mesmo fervilhando d e gente - e eles se meteram no meio do povaréu. Em torno da barraca de Seu Frederico Macacão havia uma verdadeira multi dão : o preto velho não tinha mãos a medir, corria de um lado para outro do pequeno balcão, a freguesia dobrando as doses da jinjibirra que ele fabricava durante a semana. Abra mais outra, Frederico. - Abra outra! - Abra uma garrafa aqui pra esta mulher não me aporrinhar mais! O preto velho suava na lufa-lufa. - Não me apalpa não, gente! - protestou Maria Boca-da-Gruna. - Vá apalpar a bunda da mãe! - . . . doca - acrescentou Filó, recolhendo calmamente a mão. E rimou ao pé da letra : - Cavalo "véi" que te broca . . . Foi uma gargalhada geral. - Filó, Filó - chamou Peba. - De hoje que nós estamos atrás de você! - Atrás de mim? 86
- Sim . . . - Eu é que ando atrás de vocês . . . Deixe de pilhéria. Mas que é que há? Como é o negócio do rancho? O rancho está certo, rapaz. A gente não já combinou? O rancho cabe todo mundo. Foi quando rebentou uma gritaria dos pecados no bilhar de Ziu. A porta se encheu de gente. Os inspetores se movimenta ram, correram para lá com a mão no cabo do revólver - não ficou ninguém nas janelas dos sobrados. E já ia começando a debandada das mulheres-damas, quando, por toda parte, foi repe tido o estribilho apaziguador : "Né nada não, gente. Né nada não". Peba, Silvério e Filó se aproximaram do bilhar. Comentava-se nas imediações : - É Pedro Almofadinha dando porre. - Já está bêbedo. - Bamburrou de novo? - Bamburrou. Não está vendo não? Dentro do bilhar a gritaria continuava. Ziu, muito embria gado, a camisa entreaberta, agarrava Dr. Marcolino pelo braço: - Agora você vai beber comigo à saúde de Helena. O médico emborcou o cálice de cachaça com vermute uma talagada de mestre. E Ziu concluiu : - Aquilo é que é uma fêmea, Seu Marcolino. É uma ba baca de juízo ! Trepado sobre uma mesa, no auge do porre, Pedro Almofadinha gritava para o povo : - Pode comer água, minha gente! E o litro de conhaque ia passando de mão em mão. À porta da farmácia, o nariz no ar, Carvalhal farejava a possível novidade. Mas nada de novo havia : o que estava acon tecendo era um caso muito comum, muito natural nas Lavras era simplesmente um porre de garimpeiro bamburrado. Só eu é que não pego - queixou-se Saiu. - Você não pegou a semana passada não? - perguntou Filó. - Eu não. - Pois fique sossegado que você vai pegar na que entra. - Que entra em você. Você é besta!? E a garimpeirada reunida gozou a pilhéria com uma boa gargalhada. 87
XIII
No dia seguinte, muito cedo ainda, Silvério acordou e veio sentar-se à porta do rancho, enquanto Peba acendia o fogo com canela-d'ema para o café. Estavam na serra de Seu Teotônio, onde iam dar início à garimpagem, e como tinham vindo na véspera, antes de Filó e seus sócios, eram, até àquela hora, os únicos no rancho. Este era bem construído, e o fora com o aproveitamento de parte de uma grande e arejada lapa, com duas bocas de frente, havendo no interior três compartimentos dividas por paredes de palha de pindoba, todos com camas de varas de camboatá, por eles chamadas de "sessenta ripas". A vegetação baixa acumulava um verde denso na paisagem colorida e áspera, com emburrados ele mondubi e rochas talhadas a pique, de cujas arestas pendiam os cachos amarelos das babatimãs. Pelos peraus, alastravam-se em touças os imbezeiros - as bananas-bravas encartuchadas nas moitas e o fibroso cordoame dos cipós se estendendo como ten táculos. Um cheiro agreste, desprendendo-se das folhas aromáti cas dos dom-bernardos, das parasitas e dos xumbarés, embalsa mava o ar. E a samambaia negro-nu, emergindo de velhos veios recobertos de musgo, fundia-se em farfalhante esteira d e arbustos com a três-folhas, o canapu, a neve, com o chapéu-de-frade e a sempre-viva-da-serra, guarnecendo o flanco acidentado dos rebai xas. Em vários pontos rebentavam mananciais de água fresca, mi nações de locas e grunas - um rumor saudável de regos e tan ques se enchendo na manhã de céu limpo. - Vem fazer o churrasco, Silvério - disse Peba, de dentro do rancho. - A água já está fervendo pra o moca. - Mas deixe lá que aquele Pedro Almofadinha é um cama rada de sorte - disse o outro, a esmo. - Pedro Almofadinha? Que diabo é um!? Você está aí na porta é pensando nele? - reclamou Peba. - Você já viu um homem pensar em outro? Homem pensa é em mulher, rapaz. - Estou pensando é na sorte que ele tem pra o garimpo explicou Silvério. - Qual é sorte coisa nenhuma! - contestou o outro. Pedro Almofadinha é um sujeito cheio de mania, metido a rico. Só vai em Andaraí quando bamburra. E esclareceu: - Como o povo só vê ele nessas ocaswes, sempre muito lorde e engravatado, espancando dinheiro com mulher-dama, fica pensando que ele tem mais sorte do que os outros. 88
- Bem . . . - conveio Silvério. - Eu, pelo menos, sempre ouvi falar que ele era mais do que aberto pra o garimpo. - Mas não é tanto assim - diss e Peba. - O mais é con versa do povo. Conheço Pedro Almofadinha há muitos anos, e estou cansado de ver ele em cima d a serra comendo mandioqui nha, descalqueado, sem pegar. E passou a contar que Pedro Almofadinha, para dar idéia de independência, ostentando aquela fama de garimpeiro endi nheirado entre as mulheres-damas, nunca tinha patrão, trabalhan do sempre por conta própria, mesmo quando curtia fome. - O negócio é que pouca gente entra na vida dele - con tinuou. - E quando ele não aparece em Andaraí, por estar infu sado em cima da serra, ninguém quer saber disso não. Pensa é que ele está viajando. Pra encurtar conversa: conheci um garim peiro que trabalhou com ele no Capa-Bode, e que me disse que ele só ia em Andaraí quando fazia de um conto de reis pra cima. - Um conto d e reis? - Sim. Enquanto estivesse pegando mosquito, arranjando esse negócio de oitenta, cem mil-reis no garimpo, ele continuava socado na serra, mandando o sócio fazer o saco. - E quem vendia os mosquitos? - O sócio. Vendia e comprava tudo de de-comer, a fim de se agüentarem mais tempo no garimpo, até bamburrarem. Você não vê Pedro Almofadinha espancando aquela lordeza toda, bo tando pra fora aquela rouparia de casimira que ele guarda na casa da tia dele, na Santa Bárbara? - perguntou. - Em cima da serra você não conhece ele. Vive que nem um bicho, trabalhando dia e noite, sem respeitar domingo nem dia santo, só pra fazer figura em Andaraí. Mania besta, mania de ser rico - comentou. - Mas de que adianta isso? De que adianta ele passar uma se mana com Helena, com Clconice, ou com qualquer outra mulher de prateleira-de-cima, se depois ele vai ficar dois ou três meses tocando gloriosa em cima da serra? De que adianta? Se ele não agüenta a tese, para que essa besteira de querer passar pelo que não é? Filó é que tem razão - observou. - Bem ele disse que Pedro Almofadinha devia procurar sua baixa posição e se colocar. O que impelia Silvério a pensar em Pedro Almofadinha es tava longe de ser o interesse pitoresco da vida que levava aquele garimpeiro reconhecidamente bamburrista, esbanjador de dinhei ro nos cabarés de Andaraí. Em seu íntimo, o que havia era uma vaga inveja da sorte atribuída ao outro, uma surda usura pelo dinheiro alheio malbaratado, uma incontida ambição que o arrastava a raciocínios de ordem exclusivista - acreditando-se 89
necessitado de dinheiro mais do que ninguém. Ocultando, porém, seus sentimentos egoístas, que ele às vezes procurava justificar perante a própria consciência, invocando sua condição de serta nejo retirante, comentou: - Mas deixe lá que ele deu um porre de capangueiro . . . - Que porre coisa nenhuma! - contestou Peba, agastado. - Aqui\o é lá porre?! Porre você vai ver é quando eu pegar. E resumiu seu ideal : - Vou fazer correr cerveja naquela bosta feito água . •
Depois do café, pondo ao ombro os instrumentos de traba lho necessários à primeira fase do serviço (uma alavanca grande, outra pequena, duas enxadas, uma sonda tomada de empréstimo e os indispensáveis carumbés ) , dirigiram-se para o local indicado por Zé de Peixoto. Saltavam canais, escalavam lajedos, contorna vam grandes rochas onde as cascas d e pedra eram coscorões par dacentos de limo velho, atravessavam pequenos córregos, trans punham regos de cascalhões, andavam por dentro de fervedouros ou de canoas de corridas, percorrendo com o maior desemba raço e segurança o caminho áspero e cheio de obstáculos, afeitos que eram àquelas jornadas na serra. Vestindo calções de algodão zinho muito justos nas pernas, os dorsos nus queimados de sol, palmilhavam os dois, em silêncio, o solo arenoso ou recoberto de bugalhaus, os pés calejados e insensíveis já ao contato das pedras quentes, dos seixos pontiagudos e rolados de antigas grupiaras, de lavagens velhas trazidas pelas enxurradas, de cortes de areia refer vidos e de esmeris rebaixados - e que eram lascas de pedras ou informações disseminadas de garimpos anteriormente trabalhados, dos chabus ao grosso restolho do mocororô osso-de-cavalo. - Pelo que eu vejo - disse Silvério afinal - o lugar que Seu Zé de Peixoto falou com a gente fica muito longe do rancho. - Você é dos tais que gostam de trabalhar no cheiro do torresmo? - respondeu Peba, andando sempre. - Está que nem Curuba, que fica puxando lavagem no Rio Baiano e restin gando em fundo de quintal? Deixe isso pra ele. - Eu não ando atrás de trabalho no cheiro do torresmo não - protestou o outro. - Só estou falando é porque eu não conheço esta serra e não sei do lugar que Seu Zé de Peixoto disse. Eu não refugo de serviço não. À medida que iam avançando por cima da serra alta, que, a distância, tinha a aparência majestática de um mundo inexplo90
rado, encontravam a cada passo os rastros da conquista centená ria, lenta e difícil da terra rica - sinais da presença obstinada do homem, do seu trabalho, do seu tenaz esforço e da sua luta pela posse das minas, desde as primitivas explorações até as mais recentes. Ao longo dos emburrados, onde as escoras de âmago de quina-de-vara, os esbirros de gameleira, sapucaia e pau-terrra, era atravancamentos de velhos serviços cngrunados, erguiam-se, como ossuários da serra trabalhada, as montoeiras pardas de an tigos mocororôs encartuchados - detritos acumulados do solo revolvido e golpeado nos canalões, nos talhados, nas grunas, nos rebaixas, em toda espécie de serviço a seco ou com água, desde as grupiaras às grandes bocas descidas com pontaletes de cocão. - Isto aqui está muito trabalhado, Peba - observou Sil vério. À passagem deles, fugiam precipitadamente grandes batixós, sobre os lajedos ou por entre as moitas de grão-de-galo. - :É o que você pensa - respondeu o outro. - Parece que está mas não está. Ainda tem muito serviço . . . - Pode ser. Mas eu estou vendo tudo é esbagaçado. Em todo lugar eu vejo sinal de broca. - Você é um curau mesmo - disse Peba. - Não entende nada de garimpo. Então você acha que se tudo isso estivesse tra balhado eu vinha meter minha enxada aqui? Você me acha com cara de besta? E passou a explicar: - Na verdade, existe muito serviço trabalhado, mas é como se não existisse. Os antigos não sabiam garimpar. Metiam o cas calho bruto nas bateias, não ralavam nem rebaixavam ele, de ma neira que perdiam muito diamante. Não está vendo estas mon toeiras? Chegue o ralo nelas pra você ver! :É diamante na certa. - Será que os antigos eram tão bestas? - Ninguém é besta porque quer. Subiam agora uma pequena rampa, ao lado da qual crescia o capim-cacheado, de pendões cor de palha, cujas hastes os ga rimpeiros infusados vendiam na cidade, depois de preparadas para flechas de foguetes, por ocasião das novenas e das festas de N. S. da Glória e do Divino. - Mas aqui ainda tem muito serviço virgem - continuou Peba. - Tem muito serviço inteiro, de cálculo. Você vai ver as grupiaras que Zé de Peixoto falou. Estas já não estavam longe, e pouco depois chegavam os dois a uma pequena elevação da serra, recoberta de moitas de pau-de-mocó e capim-açu, em terreno de boa configuração dia91
mantífera. Depois de terem posto a ferramenta no chão, enquanto Silvério fazia um cigarro, Peba tomou da sonda e enterrou-a com força no solo, abalando-a de um lado para outro, entre as mãos possantes. O Sol já estava bem alto. Os sabiás cantavam por toda parte, esvoaçando nos pés de bico-doce. - Vem ver o que eu lhe dizia - diss e Peba de repente, com incontido ar de vitória. Com o cigarro no canto da boca, Silvério aproximou-se e alvoroçadamcnte tomou a sonda entre as mãos, abalando-a por sua vez. Fincada no solo, a verga de aço provocava, nas entra nhas da terra, um ruído semelhante ao que provocaria se tivesse sido enterrada num saco de milho. - Sabe o que é isto? - perguntou Pcba. Silvério continuava a abalar a sonda : - É . . . Tem cascalho mesmo. Pcba não podia ocultar a expressão de triunfo. - Não está vendo que eu não ia me enganar? - disse. - O que está chocalhando aí embaixo é cascalho bosta-de-cabra legítimo, rapaz! É bosta-de-cabra de serra alta. •
Durante o resto do dia, só interromperam mesmo o traba lho para comer o churrasco por eles levado em duas pequenas latas de manteiga, no que não demoraram muito. Logo depois voltavam às enxadas - roçando o serviço esquadrejado e dando início ao trabalho de alavancas e carumbé, Peba fofando a terra e Silvério carregando-a. Quando o Sol começou a entrar, e as sombras se estenderam sobre os lírios e os gravatás, o desmonte já ia bem adiantado; então, de novo reuniram a ferramenta e voltaram ao rancho. Peba disse : - Amanhã, se Deus quiser, a gente já está em cima do cascalho. XIV
Encontraram Filó Finança comendo mucujê na porta do rancho. Anoitecia. No horizonte barrado de vermelho, a serra apresentava como que os contornos de uma fortificação em cha mas, os píncaros criando a ilusão de monumentais ameias com buridas. Agenor Cabeça-Seca, sócio de Filó e Neco Rompedor, 92
aspirou demoradamente a fumaça do cigarro, entre o chiado da palha úmida de cuspo. - Então, como foram vocês? - perguntou, depois de tra gar o fumo forte. - Mais ou menos - respondeu Peba. - Demos num serviço inteiro, ali pra os lados d a estrada do Folga-Semana. Ali perto d aquele lugar onde Seu Betinho trabalhou com Caroba. - É serviço de cálculo - observou Filó, cuspindo longe os caroços do mucujê. - Lá pra cima, pelo menos, a serra já foi muito rica. E limpando os dentes com a língua, fez um dos seus tro cadilhos : - Era pra se folgar a semana mesmo. - Mas que cascalho foi? - voltou a falar Agenor Cabeça-Seca. - Bosta-de-cabra ou cabeça-de-formiga? - Bosta-de-cabra - disse Peba, encaminhando-se para o interior do rancho. E pondo as enxadas e a sonda no chão : - Isto é, eu acho que é bosta-de-cabra. Agenor ia jogar o cigarro fora, mas, reparando que a ponta ainda estava grande, voltou a fumar, segurando-a entre as extre midades do polegar e do indicador - de unhas grossas, estro piadas, sujas. Depois de mais duas tragadas, atirou-a fora, afi nal, estendendo-se de fio comprido no lajedo, a barriga para cima e as mãos cruzadas sob a cabeça. Tendo reunido sua fer ramenta à de Peba, Silvério saiu do rancho e, pedindo empres tado o facão de Filó, foi cortar candeia-de-bolota e murici para acender o fogo. Nas proximidades, em ranchos de pedra e em tocas, ou simplesmente em lapas, outros garimpeiros cozinhavam o seu arroz-de-cacimba em panelas de barro do Carrapato e do Brejo de Luís de Brito, dividindo entre si o trabalho com o mes mo espírito de cooperação da garimpagem que os reunia em sociedade - um cortando negro-nu para espantar borrachudo, outro apanhando água, outro lavando os carumbés onde carre gavam o cascalho e também comiam. Saindo para apanhar água, Peba gritou para Silvério: - Ei, sócio! Não vá trazer pataquinha não, que nossa panela é de barro! - Pataquinha é lenha pra caldeirão de ferro! - aparteou Filó Finança. - Está servindo agora é pra Licurgo Boa-Bunda, que bamburrou a semana passada. - Foi mesmo, rapaz? Ele bamburrou? - disse com sur presa Agenor Cabeça-Seca, volvendo o rosto na direção de Filó. 93
- Foi - confirmou este. - Eu vi ele segunda-feira su bindo no cupim de um requeijão de dois quilos, na venda de Belo Corujão. Foi quando se ouviu um tiro. Ecoou demoradamente na serra, quebrando o silêncio da noite que caía - com os grilos cantando, e os tico-ticos e os cocurutos se recolhendo aos ninhos construídos nas rochas e nos galhos das gameleiras, e com o vento agitando as moitas de capim-pubo defronte das lapas. - Que é isso?! - gritou Filó Finança, levantando-se com a capanga na mão. - Vocês estão matando gente ou é bicho? Olhe a gente aqui! - Não demorou muito, e um homem assomou por trás de um grande mandacaru que havia por cima de uma toca, ereto nas sombras como um espantalho. - Pode derreter o toucinho e preparar os temperos, que o churrasco de amanhã está seguro. O homem era Neco Rompedor, e tendo dito isto encami nhou-se para o rancho, exibindo a caça por ele abatida - um grande mocó de dois palmos, com a cabeça ensangüentada. - Toma, sócio - dirigia-se agora a Agenor. - Vá tratar ele que é pra nós churrasquearmos amanhã - e estendeu o mocó na direção do companheiro. - Mas rapaz, você tem é pontaria! - disse Filó. Como é que você conseguiu atirar neste bicho agora no lusco -fusco? - Atirei quando ele pulou de uma pedra pra outra respondeu Neco, apoiando a espingarda contra a parede do rancho. E limpando as mãos no calção de valença : - Eu estava atrás de uma pedra, quando ouvi ele piar; aí eu preparei a espingada. Nisto uma mutuca ferroou ele na orelha, ele saltou e eu passei fogo bem na cabeça dele. Assim mesmo o bicho ainda correu, só se vocês vissem, e foi morrer dentro de um canal que ficava adiante. - Você teve sorte - comentou Agenor Cabeça-Seca, que se levantara para levar o mocó para dentro do rancho. - Eu, que trabalho aqui há muito tempo, nunca pude matar um bicho destes. Mocó é o trem mais velhaco que eu já vi. Filó não perdia oportunidade para zombar do companheiro : - Sorte quem tem é você, Agenor. - Eu? - Sim - insistiu Filó. 94
E fazendo um jogo de palavras, numa de suas pilhérias que até hoje são repetidas nas Lavras : - Sim, quem tem sorte é você, que pegou uma lasca com dois grãos no Vai-Quem-Quer. Necou soltou uma gargalhada e Agenor guardou um silên cio mais significativo do que um nome feio. •
A noite caíra de todo, e a serra desaparecera nas sombras - rochas e árvores que se fundiam na escuridão. De acordo com o hábito existente entre os garimpeiros, da bóia tomada em comum, cada sociedade se reuniu diante do seu carumbé, Neco, Agenor e Filó diante de um, Peba e Silvério diante de outro todos comendo de mão. Agora tinham acabado de comer. - Faz um moca aí pra gente - pediu Neco a Agenor, que era o cuca da sociedade. Por medida de economia, a exemplo de inúmeros garim peiros, Peba e Silvério não tomavam café de noite, substituin do-o por chá de campim-da-lapa. Diante da chocolateira tis nada, que se equilibrava sobre a trempe de pedras, Agenor Ca beça-Seca perguntou: - Quer café, Filó? - Café de língua e beiço meu boi não puxa. - Já vi que você gosta de me aporrinhar. - Ora, vá tomar no toba! Tire um pedaço daquela carne de dois pelos dos Campos de São João, e meta no espeto pra mim. - Está com fome de cachorro? - Meta a carne no espeto, rapaz! Que eu preciso criar sustança pra dar vergonha àquela negra Vitalina. E tendo dito isto, enquanto os companheiros sorriam, Filó levantou-se e foi para a porta do rancho. Nas tocas adjacentes, os fifós eram pontos luminosos na noite. Grande era o silêncio, apenas cortado pelo rumorejar dos córregos ou pelo piar de um ou outro caburé. Das juçaras, cuja raiz os garimpeiros usa vam contra mordeduras de cobras, desprendia-se um cheiro agreste, que chegava até as narinas de Filó. Foi quando se ouviu um grito, vindo de uma das tocas próximas : - Ei, bruaqueiro! Filó respondeu : - É você, Braço Grosso? 95
- Sou eu mesmo, Finança velho! Os dois homens não se enxergavam na escuridão, e só suas vozes lhes permitiam identificar-se. - Você trouxe o baralho? - Qual é baralho, seu! Não quero saber de bisca estes dias não. - Está com sono? - Não. Estou é cansado, porque puxei muito cascalho hoje. Mas chega pra diante. - Vou já. - E chame os outros também - disse Filó. Mas logo acrescentou: - Sua mãe está aí? - Vá aporrinhar outro, Finança! Traz ela, que meu pai está aqui. ·
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Ali na serra, onde só muito raramente tinham uma cachaça para beber e uma mulher com quem se deitar, coisas que não dispensavam quando estavam na cidade, eles se reuniam à noite para conversar um pouco, embora dormissem habitualmente cedo - os corpos moídos de trabalho e o espinhaço doendo de estarem durante tanto tempo vergados sobre as enxadas ou as bateias, na faina diária. - Tarcisso não quis vir não? - perguntava Filó Finança a Braço Grosso, momento depois, ao chegar este com os seus companheiros. - Não pôde vir não. Diz que está de barriga inchada. - Dê um chá de carqucjo a ele - disse Neco Rompedor. Com Braço Grosso viera Alípio. Era o gerente de Seu Teotônio. - Passei de tarde no serviço de vocês - disse a Peba mas vocês tinham ido embora. Está um serviço bonito . . . Peba acabara de acender o cigarro de palha no binga que retirara da capanga. Respondeu : - f: serviço pra se pegar diamante. - Mas isto aqui já está muito trabalhado - observou Silvério, que no fundo não se conformava com o atual estado da serra. - Você queria que os garimpos ficassem esperando por você? - resmungou o gerente Alípio. - Ninguém tem culpa de você ter nascido depois dos antigos, que encontraram tudo isso virgem. 96
- Mas aqui ainda tem serviço pra muitos anos - disse Braço Grosso. - Os netos dos netos de Seu Teotônio ainda vão cobrar quinto aqui. - Não vê a Mãe do Povo? - voltou Alípio a falar. A Mãe do Povo, como o nome mesmo está dizendo, já agüen tou com o povo de Andaraí durante muito tempo. É verdade que ela hoje já não é o garimpo rico de antigamente, onde o garimpeiro que abrisse um serviço podia comprar fiado. Mas, assim mesmo, vá perguntar a Mestre Paulo, que é agora o dono dela, se ele já viu a cara da indigência? - Bem lembrado - aprovou Neco. - É isso mesmo. Ou assim ou assado, a Mãe do Povo ainda dá pra o Mestre Paulo bancar tese, ter as suas duas ou três mulheres-damas, e ainda por cima sustentar a filarmônica. - Aí é que vocês se enganam - comentou Filó. - As Lavras estão mesmo perto de acabar. - No tempo de meu pai já diziam isso - aparteou Age nor Cabeça-Seca. Desta vez Filó poupou o companheiro a qualquer pilhéria. - Talvez ainda vá chegar pra nós vermos - disse. Estas serras velhas já estão perto do fim . . . Com todo lugar de mineração acontece isto. Não vê Lençóis? Lá, ainda que pareça mentira, sobrado de capangueiro já está chegando pra mulher-dama alugar. E as serras? Em muito garimpo que era rico antigamente, e de onde saiu diamante pra e ste mundão todo, garimpeiro só está indo hoje pra buscar batata-da-serra pra matar a fome. - Não, isso é verdade - concordou Neco. - Dizem que Lençóis está feio mesmo. - É o fim de todo lugar de mineração - insistiu Filó. - Em Lençóis, sujeito que era capangueiro vive hoje quebrando as unhas em montoeira velha, caçando fornecimento sem achar, matando a fome com xiquexique e leite de mucujê, e o diamante correndo dele às léguas . . . - De qualquer garimpeiro infusado o diamante corre disse Agenor. - Não fale besteira - respondeu Filó. - Eu já disse e todo o mundo sabe que o diamante em Lençóis está acabando, da mesma forma que vai acabar aqui. É o fim de todo lugar de mineração - repetiu. Silvério levantou-se. Aquela conversa o incomodava : as palavras de Filó Finança como que eram uma ameaça para o seu serviço, para o seu futuro. Pretextando a necessidade de 97
"ir no mato", saiu e foi sentar-se do lado de fora, onde estaria livre de ouvir daquelas coisas desagradáveis, que eram prenún cio de dias de miséria. Dali, só ouvia o rumor do vento nas moi tas de malva lava-prato e de cabeluda, vento fresco e bom, aragem da noite que espalhava o cheiro ácido dos pedrestes e dos pinhões leitosos, cheiro forte, de mato, de seiva, e da terra úmida da serra. Só algum tempo depois, quando Braço Grosso e ós companheiros s e preparavam para sair, é que ouviu Alí pio dizer : - Pois você me guarde o fígado do mocó. Quero fazer um remédio com ele pra minha mulher, que anda com uma gata-cega danada. Desde o dia que ela queimou jeriza lá no rancho ficou assim. XV
Apagaram finalmente o fifó e se deitaram. A fumaça do angiquinho, queimado em defumador para afugentar as asas -caídas que não deixavam ninguém dormir, já se tinha desfeito completamente, e agora começava a fazer frio dentro do ran cho. Nem todos os garimpeiros tinham esteiras - "colchões de arasto", como diziam - para cobrir o lastro de varas das ca mas, nem cobertores, com exceção de Agenor e Neco, que pos suíam uns pequenos, quadrados, que mal lhes chegavam até o peito - uns cobertores muito ordinários, de madapolão, a que chamavam "desaperta-puta". Com a cabeça apoiada sobre a pedra coberta de capi!mpubo, que lhe servia de travesseiro, o corpo encolhido, as mãos entre as pernas, Filó se lembrava da negra Vitalina. O rancho era grande, fora feito por Sebastião de Totora, garimpeiro bamburrista, que o dividira em três com partimentos - porque tanto ele como os seus dois sócios tinham mulheres, cada casal ocupando na época um dos cômodos. Agora, ao contrário de outros tempos, e sendo já completamente inútil aquela divisão em compartimentos, o rancho estava cheio de homens sem mulheres, de homens solitários, que ali se reu niam como prisioneiros, e por isso a lembrança da negra Vita lina se tornava mais forte, povoando a noite vazia do garim peiro Filó Finança. - Filó - chamou Neco na escuridão. - ô Filó! Deixe eu dormir, rapaz. 98
- Você sabe quem eu vi outro dia? É porque eu estou me lembrando agora. - Quem foi? - Otacílio Preto. Ele está tirando cascalho de caldeirão casco-de-burro e de bidogue, você sabia? Vai pegar muito dia mante. Aliás, ele sempre teve muita sorte pra serviço de caldei rão e bacia. Você se lembra daquelas bocetas que ele desco briu na Passagem? - Eu tenho lá tempo de me lembrar das bocetas de Ota cílio Preto, Neco! Vá dormir. Eu estou pensando agora é nas outras bocetas de verdade . . . E Filó voltou-se para a parede, enquanto Neco ria da úl tima pilhéria que ele fazia naquela noite. •
Silvério tentava conciliar o sono, mas não conseguia, e seu cérebro se tornava espantosamente lúcido, fazendo com que ele meditasse cada palavra de Filó. Teria perdido seu tempo em procurar ganhar dinheiro nas Lavras? As notícias dos garimpos de Lençóis, outrora muito ricos, e agora transformados em er mos, tinham para ele o sentido de uma alarmante advertência, obrigando-o a associar ao seu possível fracasso o de tantos ou tros mineradores de diamantes que viviam infusados, dando sem pre para trás, se desgraçando irremediavelmente, embora insis tindo em novos serviços. Sim, tinha isso o garimpo, viciava os garimpeiros, que não mais aprendiam a fazer outra coisa a não ser garimpar, a lidar com cascalho para o resto d a vida, sempre de arribada para outros lugares, mas também sempre prontos a voltar à primeira notícia de uma nova descoberta, como aquele João Coroa, em cuja cabeça grisalha o carumbé fizera uma espécie de tonsura, e que vivia de um município para outro com o saco nas costas, farejando influência. Ao mesmo tempo, para consolar a si próprio, Silvério evocava episódios ainda recentes ocorridos em Andaraí, e que lembravam os inacreditáveis casos das primeiras descobertas, quando as pedras preciosas eram encontradas em toda parte. Realmente, o caso de Judite Branca não era antigo, não pertencia a nenhum passado lendário, era bem d e outro dia, e ele se lembrava da notícia que circulara uma tarde na cidade : "As Lavras são sempre as Lavras! Judite Branca foi obrar ontem no fundo da casa e encontrou um dia mante que vendeu por 1 : 000$000!". Na verdade, isso não acon tecia sempre - admitia - nem todo dia era dia santo . . . 99
"Todos nós fazemos diariamente o que Judite Branca foi fazer naquele dia" - dissera-lhe Filó - "mas nem por isso encontra mos diamante". E concluíra : "Por muito favor, encontramos o nosso bugalhau para nos limpar". Foi quando ouviu a respira ção de Peba - Peba roncando forte, dormindo na outra cama. Concentrou então todo o seu pensamento no serviço que estava al;>rindo, na sondagem do cascalho que ia tirar, e de novo se encheu de esperanças, apelando para a ajuda de Deus. XVI
Na manhã seguinte, lavaram a cara no poço, tomaram café e saíram para o trabalho, Peba se lembrando do tempo em que garimpava de lancheio no Guela. - Ali foi que cu vi diamante batendo chifre - dizia. Trabalharam o dia todo, e começaram a tirar o cascalho e a amontoar, ele enchendo e Silvério carregando. À noite, de volta ao rancho, de novo se reuniram aos companheiros. Filó estava contando como tinha aprendido a ler, coisa rara entre os garimpeiros, e de saída foi dizendo que agradecia tudo à mãe dele. - Ela era lavadeira - prosseguiu. - Arranjava os seus 40$000 por mês com as freguesias que tinha. Mas o que é que ela podia fazer com esse dinheiro? Meu pai, antes de ir para Palmeiras, havia feito um rancho para nós no Tomba-Surrão. - Em Lençóis? - perguntou Neco. - Sim - confirmou Filó. E continuou : - Todos o s dias minha mãe dava graças a Deus pelo rancho que meu pai tinha deixado pra gente. Mas meu pai não dava notícias. E minha mãe se vexava, se apertava toda. O que é que ela podia fazer com 40$000 por mês? Na verdade ela ,não pagava aluguel de rancho - o rancho era dela. Mas nós precisávamos comer e vestir, e quarenta mil-reis não davam para tudo isso. Nem sei mesmo como minha mãe não se amigou . . . - Você não tem vergonha mesmo não, Filó - disse Age nor. - Em tudo você mete uma esculhambação no meio. - Não é esculhambação não. Eu estou falando é sério. Nem sei mesmo como ela não se amigou, pois uma amigação podia remediar as dificuldades dela. Isso prova, aliás, que ela 100
era uma mulher de peso e medida, diferente da mãe de muita gente que eu conheço . . . Todos compreenderam a indireta de Filó, mas como esta vam interessados na história, "que Filó era mesmo um mestre pra contar casos", divertindo-os bastante na serra, reclamaram para que ele continuasse. Foi o que ele fez: - O resultado é que nós curtíamos uma fome de cachorro. Eu não tinha roupa nenhuma, andava nu em pêlo, não tenho vergonha de dizer. Tanto que minha mãe ia pra fonte e eu ficava no rancho sem poder sair. Depois as vizinhas deram pra reclamar : "Arranje uma calças pra esse menino, Sinhá Augusta. Ele já está muito grande pra andar nu no meio da gente. Nin guém mais pode chegar na janela . . . " Minha mãe respondia sempre : "Arranjem vocês, que estão incomodadas. Se não podem arranjar, já sabem, não olhem". Mas a verdade é que eu fui me encabulando com aquilo. Não podia agora levar o tempo todo me tapando com a mão. Pra dizer a vocês, até mesmo de minha mãe eu já sentia vergonha. Quando ela me chamava - "Vem comer, Filó!" - eu respondia : "Pode deixar meu prato aí, que eu como depois". Ela certamente compreendia tudo; mas de que adiantava? Uma noite, porém, ela voltou pra casa com um embrulho, e me disse: "Olhe aqui, foi D. Ricarda que me deu. Fui levar a roupa dela e ela me perguntou por você. Não tive outro jeito . . . Deixei a vergonha de parte e contei por que era que você não saía. Então ela me disse: "Ora, Sinhá Augusta! Por que a senhora não me disse antes? Meu marido tem umas roupas velhas que não veste mais, e eu vou arranjar uma delas pra senhora dar a seu filho". E tendo dito isso, minha mãe me entregou o embrulho. Pois bem. Se eu contar, vocês não acredi tam. Quando eu abri o embrulho, sabem o qu e encontrei dentro dele? Um fraque velho e uma calça de brim branco rasgada na bunda. Fui logo dizendo à minha mãe : "Este fraque eu não visto. Os meninos me matam de arrelia". Ela procurou dar um jeito : "A gente pode cortar esse rabo, meu filho . . . " - "Não" - respondi. - "Essa porcaria eu não visto". Minha mãe, que Deus lhe dê o Céu, foi sempre muito boa pra mim, e combinou logo: "Está bem, meu filho. Posso aproveitar ele pra fazer um cobertor pra você". Aí eu concordei: "Um cobertor, vá lá. Mas pra vestir essa esculhambação eu não visto. Prefiro ficar nu o resto d a vida". Mas as calças eu vi logo que podia vestir. Minha mãe tomou uma máquina de mão emprestada, recortou elas, remendou o traseiro, que estava furado, e no dia seguinte eu j á podia chegar n a porta da rua sem que a s vizinhas reclamassem 101
mais. O que envergonhava elas não estava mais dando na vista. Então minha mãe me disse : "Bem, meu filho, eu podia mandar você pra o garimpo, mas acontece que eu não quero que você tenha a mesma sorte de seu pai, que ficou amarrado a vida in teira no cabo da enxada, e acabou sumindo no mundo porque não podia mais nos sustentar. Você vai é pra escola, pra apren der a ler e ser gente". E me entregou a carta de ABC que D. Ricarda tinha dado a ela com a roupa. - Mas de que adiantou? - comentou Agenor Cabeça-Seca. - Hoje você está aqui como eu e os outros, não está? - Eu estou aqui porque meu destino foi este - respondeu Filó. - Mas meus quatro anos de escola sempre estão ser vindo pra alguma coisa. Pelo menos pra eu não ser roubado nas contas de capangueiro e de dono de venda, como você e os outros. Como você, principalmente, que os negociantes enga nam fazendo conta em voz alta, pra dar a impressão de que não estão furtando, e quando acabam, sem você dar por nada, rou baram 14$000 numa conta de vinte e cinco. XVII
- É sempre bom cobrir de mato - disse Peba a Silvério no dia seguinte, ao chegar diante dos paióis. E retirando os galhos de mato que os cobriam : - Tem-se dado o caso de lagartixa engolir o diamante que às vezes acontece ficar à flor do cascalho. - Antigamente devia ser assim - respondeu Silvério. - Não senhor, não era só antigamente não - insistiu Peba. - Ainda hoje acontece isso. Em qualquer cascalho um diamante pode ficar à flor, e essa é uma das razões da gente cobrir de mato os paióis. Quem sabe o que pode acontecer com a gente? - Bem . . . - conveio Silvério. - Mesmo porque nin guém está livre de um olho ruim. Há muita gente azarenta, que com um simples rabo de olho pode atrasar o serviço dos outros. - Não vê Seu Deraldo? - Pois é. O olho desgraçado de azarento ! - Diz que urubu cagou na cumeeira da casa dele - lembrou Peba. Como as forquilhas já estivessem cortadas, armaram em seguida a granjeira, espécie de tripé em cujo centro penduraram 102
o ralo grand e para rebaixar o cascalho, fazendo o esmeril a seco. Enquanto movimentava o ralo, em meio à poeira que se desprendia do cascalho, Peba continuou a conversar : - Mas você ouviu o que Neco contou? - De Adolfo? - respondeu Silvério, que transportava cascalho do paiol para a granjeira, o carumbé apoiado na rodi lha que lhe protegia a cabeça. - Sim - confirmou o outro. - De Adolfo com Cazuza Borrela. - Fiquei besta - disse Silvério. - Eu já tenho visto se vender quarto de serviço até salvar. Mas meia-praça, não. - Quarto de serviço eu mesmo já vendi - confessou Peba. - É uma coisa que pode acontecer a qualquer garim peiro que esteja trabalhando só, sem fornecimento. Chega a hora do aperto, a gente não tem pra onde apelar, e o jeito é fazer mesmo uma transação destas. - Mas Adolfo vendeu foi a meia-praça - insistiu Silvé rio. - Meia-praça até salvar. E depois de uma pausa : - Diz Neco que ele s ó fez isso por causa da mulher, que estava em cima da cama pra ter menino. - Foi. - Se tivesse patrão estava livre disso. - Bem . . . - disse Peba. - Na verdade, ninguém mandou a mulher de Adolfo ter menino. Ela pariu porque quis. Mas, de qualquer maneira, Seu Cazuza tirou uma correia nas costas do pobre. - Por quanto ele vendeu? - Por 20$000. - Aí é que Filó diz que ele devia ter furtado - disse Silvério - pra dar vergonha a Seu Cazuza. - Furtar como? - contestou Peba. - Seu Cazuza é besta? Cazuza ensina treita a jegue. Quando chegou a hora de Adolfo lavar, ele estava rente em cima, bateu pra serra e foi ver a apuração. - E quando deu a pedra? - Deu dez contos. - Quer dizer que Seu Cazuza entrou em cinco . . . - Foi - confirmou Peba. - O contrato era esse acrescentou. - Adolfo não podia torcer. Quem mandou ele vender a parte dele por 20$000? Silvério encheu de novo o carumbé. 103
- Cinco contos . . . - murmurou. - Por 20$000 até eu comprava essa parte. - Deixe de besteira - respondeu Peba. - O rio só corre pra o mar . . . Se você tivesse comprado a meia-praça, vamos fazer de conta, sou capaz de apostar como o garimpo não dava nada. Não dava nem mosquito de grão. E concluiu : - Você não sabe que o ovo de pobre é goro? - Mas era até salvar - insistiu Silvério. - Eu tinha direito na outra parte até o dia em que ele pegasse. Nem que ele levasse dois anos trabalhando. - Quando ele pegasse - respondeu o outro homem ele lhe calçava com uma boa banana. Com Seu Cazuza é que ele não ia fazer isso, porque Seu Cazuza é rico e conta com as autoridades. Ele ficava com medo, como ficou. Já agora Silvério enchia de novo o carurnbé, puxando o cascalho com a enxada até ficar de coculo. Antes que dissesse alguma coisa, o companheiro acrescentou, parando de ral ar : - Só na ponta de um punhal é que um pobre pode ter medo de outro. XVIII
Era a terceira semana de serviço, e o resto do cascalho foi ralado, ficando pronto o esmeril para a lavagem. Este, sim, era que sistematicamente os garimpeiros cobriam de mato, pois o cascalho já então se encontrava liberto de grande parte da areia, tornando-se mais possível algum diamante ficar na superfície do paiol. Desta vez foi Silvério que tomou a iniciativa. A tarde caía lentamente, e um cheiro d e flor-de-rapé se espalhava no ar. O sócio lhe falava agora de Adolfo, como dias atrás : - Matou os cinco contos inteirinhos no cabaré de Felícia. - Eu, com esse dinheiro, estava a estas horas longe disse Silvério. - Já vi que você tem mania de ficar rico no garimpo respondeu Peba. - Mas deixe que eu lhe diga : garimpo só pro tege garimpeiro matador de dinheiro. - Eu só lhe digo isto - voltou a falar Silvério. - No dia que eu fizer cinco contos no garimpo, apanho meu caminho sem deixar rastro. No dia que você fizer cinco contos no garimpo - disse 104
Peba, pondo a ferramenta no ombro - você vai querer fazer dez. O saco da necessidade nunca enche . . . Ao chegarem ao rancho, o gerente Alípio, que conversava com Filó, transmitiu-lhes o recado de Zé de Peixoto. - Vocês vão lavar amanhã, não vão? - perguntou. - Se Deus quiser - respondeu Peba. - Zé de Peixoto mandou dizer que vem ver a lavagem. Como era hábito entre os fornecedores tal precaução, os dois garimpeiros não estranharam o recado, antes se alegraram com a anunciada visita do patrão, que assim poderia avaliar, pessoalmente, o trabalho por eles feito. Ao entrarem no rancho, deixando de novo a sós Filó e Alípio, este comentou : - Minha impressão é que Zé de Peixoto, apesar de estar protegido por Dr. Marcolino, continua com a vida em perigo. Filó banhava em silêncio o talho que dera no pé. Para isso, fizera um cozimento com alguns pés de cura-facada. Alípio concluiu: - Qualquer dia destes acabam matando ele . . . •
A nova noite decorreu como as demais. Depois de come rem, conversaram; depois de conversarem, foram dormir. Entre tanto, ao ir para a cama, Peba voltou a pensar em Silvério, e por isso o sono não vinha. Ultimamente, à medida que se apro ximava o dia da lavagem do cascalho, fora assaltado por des confianças do sócio, embora não soubesse realmente por que motivo. Na segunda-feira passada, chegara mesmo a ter vontade de falar com Zé de Peixoto, de se abrir, de contar as descon fianças que tinha; mas nada disse. Deixou que as coisas conti nuassem a correr, ficando, porém, de olho no companheiro. Agora, com o cascalho ralado e o esmeril amontoado, suas sus peitas cresciam e tomavam vulto, seus nervos se rendendo intei ramente àquela martirizante sensação de dúvida. Embora não se esforçasse para isso, nada lhe devolvia a tranqüilidade dos primeiro dias de serviço, quando, em companhia do sócio, come çara a abrir o garimpo e o diamante era mera possibilidade no cascalho recém-sondado. Mas depois, à proporção que o retira vam das entranhas da serra, e principalmente quando o ralavam, quando aquela terra impura era aos poucos transformada em esmeril, libertando-se da borra grossa sob suas mãos, a insegu rança dominou-o inteiramente. A colaboração do sócio, aceita e mesmo procurada a princípio, passou a tomar a forma de uma 105
concorrência aflitiva; e o que a Silvério assistia por direito ine rente à sua própria condição de meia-praça, começou a pare cer-lhe uma usurpação. Voltou-se na cama. Esse sentimento egoísta, que o mer gulhava em surdo inconformismo, gerava as desconfianças que ele não podia reprimir, e que, no seu íntimo, eram estimuladas pela lembrança de certos roubos ocorridos em outros garimpos. Silvério estaria dormindo? Por não ouvir sua respiração, seu ronco peculiar, atribuiu-lh e a secreta intenção de sair na calada da noite, quando já ninguém estivesse acordado no rancho, para ir roubar alguns sacos de cascalho ralado. O garimpeiro Estêvão não fizera isso? Lembrava-se perfeitamente do caso : acontecera na Mãe do Povo. Estêvão trabalhava de alugado. Na véspera da lavagem do cascalho, tendo sido despachado pela sociedade, pois era diarista e nenhum direito tinha sobre os diamantes que fossem encontrados, apanhara as suas coisas e se despedira dos companheiros. Entretanto, em vez de descer para a cidade, es condera-se numa toca e, à meia-noite, dirigindo-se ao paiol de esmeril, furtara dele uma boa quantidade, dois ou três sacos, ocultando-os dentro de uma gruna. Por coincidência, os diaman tes se encontravam exatamente na porção de cascalho roubada, de sorte que os meias-praças, terminada a apuração, procuraram o fornecedor para dar notícia do mau resultado do garimpo. Três dias depois, sabia-se na cidade que Estêvão fora visto em Palmeiras espancando dinheiro no cabaré Fecha-Nunca, dando porre a mulher-dama e arriscando a alma na ronda. Como ele na véspera era um simples alugado, não foi difícil chegar-se à conclusão de que se tratava de um furto, tanto mais que apa receu um homem para dizer que o vira lavando cascalho atrás de uma moita de candeia-de-bolota, ali mesmo na Mãe do Povo, mas que não ligara porque aquilo era uma coisa muito natural na serra, embora Estêvão estivesse usando um carumbé e não a bateia de praxe. É verdade que o caso de Silvério era diferente do de Estêvão - convinha Peba - pois Estêvão era alugado, enquanto o outro era meia-praça e tinha a sua parte garantida nos diamantes do serviço. Mas aquele patizeiro chamado Aure lino também não era meia-praça? No entanto, furtara dois sacos do esmeril da sociedade em que trabalhava, ainda que não tivesse tido a sorte de Estêvão, pois a falta do cascalho foi no tada por um dos sócios, que o apertou até que ele afrouxou os nervos e mostrou o lugar onde escondera o esmeril. Essa nova lembrança, reforçando as desconfianças que nutria em relação ao companheiro, despertou em Peba o irracional desejo de que ele 106
cometesse realmente o roubo, para desmascará-lo no momento oportuno, e puni-lo como se devia punir um ladrão. Foi quando ouviu uma voz: - Peba. Devolvido de repente à realidade, chegou a supor que esti vesse sonhando. Ouvia agora um ronco uníssono, forte, vindo do compartimento vizinho, onde dormiam Filó e Agenor; do outro, onde dormia Neco, chegava até ele como que o resfole gar de um animal. A voz veio de novo da escuridão : - Peba. Era a voz de Silvério. - Já está dormindo, Peba? - Não - foi o que pôde responder no primeiro momento. Mas logo em seguida acrescentou, levando a mão ao cabo do punhal : - Por quê? - Por nada. Agora a voz era acompanhada de um movimento. O outro homem se levantava e, na escuridão, encaminhava-s e para a porta do rancho. - Aonde é que vai? - disse Peba, soerguendo-se na cama de varas, os olhos tentando em vão acompanhar os passos de Silvério. - Vou lá fora. A porta de tábua de caixão se abriu e o ar fresco da noite penetrou no rancho. Sem saber mesmo como, Peba já se encon trava de pé. Com o punhal na cintura, avançou para a porta e, ao transpô-la, escancarou-se diante dele um lindo céu estrelado. - Silvério! - chamou em voz alta. - Silvério! Estou aqui. - Aqui onde? - Estou aqui, soc1o. Aqui atrás desta pedra. O outro teve um movimento instintivo de defesa. Não chegava a ver o companheiro. - Fazendo o quê? - perguntou automaticamente. - Vim no mato, rapaz. Peba concentrou os olhos na pedra por trás da qual se achava o outro. Sentia vontade de fumar, mas não encontrava calma suficiente para fazer um cigarro, tanto mais que deixara o binga, o fumo e a palha na capanga, lá dentro do rancho, aonde não queria retornar agora. Não tardou, porém, e Silvério ergueu-se. Enquanto suspendia as calças, um pensamento atra vessou-lhe a mente: "Por que estava Peba acordado até aquela hora?" E sem que pudesse evitar, o mesmo pensamento se diri107
giu para o paiol de esmeril, iluminando na sua lembrança a figura de um homem desconhecido : Estêvão. - Você viu alguma cobra no rancho? - perguntou Peba, sem saber mesmo por quê. - Cobra? - espantou-se Silvério, caminhando já na dire ção do outro. - Sim. Você viu alguma cobra no rancho, que não pode dormir? - Estou sem sono - limitou-se a responder o outro. Agora se defrontavam, e no olhar de ambos havia uma chama de desconfiança e curiosidade. O rumor do córrego era fraco na noite. - Vamos lavar amanhã - disse Peba. - Você já se lembrou disso? Eu? Sim. Claro que me lembrei. Apanhe minha capanga lá dentro - pediu Peba, depois de um instante de silêncio. O outro trouxe a capanga, juntamente com a sua, e senta ram-se para fumar. À luz da Lua, eles se viam de modo um tanto difuso. A cara de Peba parecia mais gorda a Silvério, e foi este que retomou a conversa : - S e eu bamburrar, com fé e m Deus, amanhã mesmo eu pego o caminho de casa. - Você já me disse isto mais de dez vezes - respondeu Peba. Mas logo acrescentou : - Você tem mesmo muita von tade de bamburrar? - Eu? Ora, sócio, quem é que não gosta de dinheiro? - Me dá seu fósforo, que meu binga está com a pedra muito estragada - pediu Peba. E em seguida : - Já vi que por dinheiro você é capaz de tudo . . . - Eu trabalho garimpo é pra pegar diamante - respondeu Silvério, passando o fósforo. - E quero ver se Deus me ajuda a pegar desta vez. - Está com fé em nosso esmeril? - disse Peba, acenden do o cigarro. - Por que é que você está perguntando? - Por nada . . . - respondeu Peba, devolvendo o fósforo. Deu uma tragada e disse: - Por causa daquele esmeril eu era capaz de matar um . . . - e novamente aspirou a fumaça do cigarro. 108
Silvério apertou o seu entre os dentes, acendeu-o e disse: Será que ele está correndo risco? Ele quem? Nosso esmeril. Você acha que alguém pode roubar o paiol? Peba soprou a fumaça contra a brasa do cigarro, e respon deu, depois de cuspir: Não conheço homem pra furtar o esmeril que eu faço. - Eu não sou de briga . . . - disse Silvério. - Como é? - Estou dizendo que eu não sou de briga - repetiu o outro. - Mas por causa daquele esmeril, que nós fizemos com o suor do nosso rosto, eu acho que também era capaz de ma tar um. - Não era não - contestou Peba. - Você tem a natu reza fraca . . . Silvério guardou um silêncio feito de cautela. À proporção que conversava com o sócio, a quem eram atribuídos aqueles dois misteriosos crimes ocorridos nas Piranhas, em cumprimento de possíveis ordens do Cel. Germano, sentia nas suas palavras a velada e depois ostensiva intenção de atirar indiretas. Possuído de súbita sensação de medo, desviou a conversa : Você não acha melhor a gente ir dormir, sócio? Pode ir - respondeu Peba. - Eu vou já . •
- Silvério . . . - era Peba quem chamava agora, voltando-se lentamente na cama. O outro respondeu na escuridão : - Está me chamando? - Pensei que você já estivesse dormindo - disse o outro. Que horas são? - indagou Silvério. - Deve ser mais de meia-noite - calculou Peba. - Vá dormir. A respiração dos demais companheiros crescia na noite, todos eles mergulhados no mais profundo sono. Durante cerca de meia hora, os dois sócios estiveram em silêncio, os olhos escancarados para o teto invisível. Mas não tardou, e Peba cha mou novamente : - Silvério . . . No primeiro momento, o sertanejo preferiu não responder, para não levar adiante aquela conversa forçada; entretanto, logo 109
depois se decidiu a fazê-lo, por lembrar-se da necessidade de demonstrar que continuava acordado. Não chegou, porém, a articular a resposta; o movimento que vinha da outra cama indi cava que o sócio se levantava, e tendo a nítida impressão de vê-lo de pé, com o punhal na cintura, foi dominado pelo terror. - Silvério . . . Ouvia de novo a voz do outro, como que mais de perto. Mas nem por isso pôde responder, sentindo que, independente mente de sua vontade, lhe faltava ânimo para isso. As mãos contraídas nas varas laterais da cama, em febril expectativa, a voz estrangulada na garganta, percebeu que o outro se dirigia para a porta do rancho, abrindo-a em seguida. Sua impotência, porém, era cada vez maior que sua ansiedade, e o medo lhe comunicava uma sensação de arrependimento. Não devia ter aceito o convite de Peba para trabalharem juntos. Não fora suficientemente advertido da inconveniência de associar-se a tipos suspeitos, indesejáveis - a sujeitos de maus antecedentes como era ele? Antes tivesse continuado a trabalhar de alugado . . . chegou a convir. Mas, ao acudir-lhe tal raciocínio, que o devolvia às incertezas dos seus primeiros dias nas Lavras, o coração ba teu-lhe mais forte, e Silvério ergueu-se de repente, como impe lido por estranha força. Era agora um meia-praça, tinha direito no cascalho que ajudara a tirar, e a tentação de fazer dinheiro voltou-lhe num ímpeto, sobrepondo-se ao medo e ao próprio instinto de conservação. Tinha os olhos fixos na porta, adivi nhando-a mais que a enxergando, e deu um passo na sua di reção. Fê-lo, porém, de modo vacilante. Ao dar o segundo, che gou a empregar esforço, a presença de Peba lá fora criando, entre ele e a porta, um verdadeiro obstáculo. Foi quando um ronco mais forte, vindo do compartimento vizinho, lhe chamou a atenção : "Deve ser Filó" - pensou. E imediatamente uma idéia lhe ocorreu, supreendendo-o pela sua simplicidade : sim, por que não gritar? Não se lembrara ainda desse expediente, mas podia pô-lo agora mesmo em execução; reencontrando nesse pensamento uma súbita tranqüilidade, pôde avançar com segu rança para a porta. Que podia lhe fazer Peba? A um simples grito seu, realmente, os companheiros acordariam, e nesse caso não estaria só - seriam quatro homens contra um! Assim raciocinando, deu passos cada vez mais firmes em direção à porta, que se abria não só para a noite erma - mas como que para o seu próprio destino. Estacou diante de Peba, que agora ia entrando. 110
- Você ficou com o meu fósforo? - foi tudo o que lhe ocorreu perguntar. O outro respondeu : - Não. E acrescentou : - Pensei que você já estivesse dormindo, rapaz. - Acordei com vontade de fumar. - Vai lá fora ainda? - Não. Eu só queria lhe perguntar se você tinha ficado com o meu fósforo. - Não fiquei não. - Você foi no mato também? - Não. Fui verter água - respondeu Peba. - Por quê? - Por nada . . . - Bem - disse Peba. - Se você não vai lá fora, então eu vou fechar a porta. - Pode fechar. Mal se deitaram, porém, Silvério disse: - Você já viu como o dia está custando de amanhecer? Peba não respondeu logo. - Amanhece já - disse por fim. Silvério já não se preocupava com a ida do companheiro lá fora - tudo ficara explicado na conversa que tinham tido na porta. O esmeril, entretanto, não lhe saía do pensamento: entre via-o amontoado ao pé da cata, e imaginava-o muito rico em diamantes. Lembrando-se, porém, que a "ganância quando era muita atrasava o serviço", admitiu que uma pedra de três contos já servia bem. Mas que claridade era aquela? Ergueu a cabeça, e viu que era a luz do dia entrando pelas frestas da porta. Ins tintivamente, voltou-se na direção da outra cama: Peba fitava-o com os olhos mortos de sono. XIX
- Acorda, Neco, que os coquis já estão cantando - era a voz de Filó que vinha do outro compartimento. Transformou-se então o ambiente do rancho. Tomaram café, cada qual pegou sua ferramenta, Agenor Cabeça-Seca de almocafo no ombro, e Silvério e Peba desceram em silêncio para o garim po. Com o Sol, que acabava de despontar, experimentavam uma grata sensação de alívio, e, ante a proximidade da lavagem do 111
cascalho, chegavam mesmo a se mostrar bem dispostos, embora tivessem passado a noite em claro. - Nossa Senhora do Parto lhe dê boa hora, Peba! gritou Filó, antes de tomar a estrada oposta, que se abria sobre um grande lajedo áspero em toda a superfície, exceto na trilha a bem dizer lixada por pés humanos. - Eles vão com pressa - observou Neco. - Ei, Silvério! - tornou a gritar Filó. - Tem inchacolhão nesta estrada! Passe por fora! •
- Agora vamos amarrar a lavadeira - disse Peba a Sil vério, quando chegaram ao garimpo. Passaram, de início, um corte de pedra e capim nas bor das de uma pequena depressão do terreno, aprofundando-a em seguida com o auxílio das enxadas, removendo sempre para a frente a areia, a fim de reforçar a resistência do corte. Ao mes mo tempo, interrompendo por instantes o trabalho de escavação, Silvério desviava para o local, através de um pequeno rego aberto a golpes de enxada, a água do córrego que passava perto. Não tardou, e a lavadeira foi se enchendo, a água subindo com alguma rapidez, e alcançando, por fim, os joelhos dos dois ho mens, que agora voltavam a remover conjuntamente a areia. Como j á tivessem obtido a quantidade suficiente para a lavagem d o cascalho, Silvério de novo obstruiu, sempre a golpes de en xada, o rego para canalização da água por ele aberto. Estava pronta a lavadeira, que tinha a profundidade e as dimensões de um pequeno poço. - Agora eu vou pitar um cigarro - disse Peba ao sair da lavadeira, descansando a enxada no chão. - Daqui pra o meio-dia vai ter tempo bastante pra gente lavar. - Posso descobrir o paiol? - perguntou Silvério. - Já que você está com tanta pressa, pode. - Não estou com pressa não - esclareceu o outro. Mas isso não o impediu de se dirigir imediatamente ao paiol de esmeril, que ficava ao lado, retirando os galhos de mato que o cobriam. Depois de fumar, Peba mudou a posição do punhal na cintura, colocando-o de modo que não lhe dificultasse a curva tura do tronco sobre a bateia. - Apanha o desbrutador ali - pediu em seguida. Tinham trazido toda a ferramenta necessária à última fase 112
do serviço, e Silvério passou-lhe o desbrutador, também cha mado pequenito, ralo pequeno e grosso por meio do qual se reti ravam as pedras maiores, no rebaixo inicial do esmeril. - Vai trazendo - disse ainda Peba, entrando de novo na lavadeira, para a qual levara consigo a bateia por ele cogno minada "Moreninha". Deixando-a a boiar sobre a água repre sada, tomou do ralão que ficara em cima de uma pedra e, reco lhendo no desbrutador o primeiro carumbé de esmeril que Sil vério lhe trazia, começou a rebaixá-lo. Foi quando se ouviu um assobio perto. Obedecendo ao mesmo impulso de curiosidade, ele e Silvério se voltaram na mesma direção. Era Zé de Peixoto que ia chegando com o cha péu quebrado em cima dos olhos, as calças arregaçadas e o guarda-sol na mão. Peba foi o primeiro a saudá-lo : - Bom dia, patrão. - Vocês madrugaram! - respondeu o negro, em vago tom de reprovação. - Quando eu cheguei no rancho não vi mais nem rasto de vocês. E procurando esclarecer : - Vocês já lavaram algum corte? - Que nada! - disse Peba. E Silvério acrescentou : - Acabamos de meter no pequenito o primeiro carumbé. Zé de Peixoto mostrou-se tranqüilizado : - Ah, bem . . . Então está certo. - Nós não íamos lavar sem o senhor chegar - disse Silvério, indo ao encontro do pensamento de Zé de Peixoto, no qual ele surpreendera uma atitude de desconfiança. Peba olhou-o com surdo despeito. - Alípio me deu o recado dizendo que você vinha, Zé ajuntou, procurando tomar uma posição de iniciativa no caso. - Eu só estava esperando você chegar pra continuar o trabalho. Zé de Peixoto sentou-se num pedra que ficava por cima da lavadeira e, tirando o paletó, colocou debaixo dele a pequena lata de churrasco que trouxera. Enquanto arregaçava as mangas da camisa, Silvério lançou um olhar furtivo ao parabelum que ele trazia n a citura. - Pode tocar o serviço pra frente - disse Zé de Peixoto em seguida. E, acendendo um cigarro, constatou que o lugar em que se achava sentado era o melhor possível para exercer a vigi lância que julgava indispensável ao trabalho dos dois garimpei ros. Sem fazer qualquer comentário ao andamento do serviço propriamente dito, começou a acompanhar com os olhos os mo113
vimentos dos meias-praças, observando-lhes os menores gestos. Em dado momento, porém, para quebrar o silêncio que se fazia constrangedor, disse como que a esmo : - Sabe quem morreu, Peba? Tindô. Sem interromper o trabalho, dobrando e remontando sem pre o esmeril para fazer o corte, que era de dez carumbés, o outro respondeu de cabeça curvada sobre o ralo: - Matado? - Não. No garimpo. O emburrado pegou ele pelos peitos que foi a conta. - Que dia foi isso? - Ontem. Eu topei com a marquesa no caminho. Me disseram que foi preciso cortar o emburrado a cunha e marreta pra tirar ele debaixo. Silvério serviu novo carumbé. E Peba indagou: - Foi ele só? - Que morreu, foi - respondeu Zé de Peixoto. - Os outros, que eram dois, contando com o gerente, se salvaram. - Ele era meia-praça de quem? - Ele era meia-praça de caldeirão - disse Zé de Peixoto, atirando o toco de cigarro fora. - Trabalhava na sociedade pelo de-comer. O fornecedor da ração era o gerente. - Pegaram? - perguntou Silvério, que agora enchia novo carumbé de esmeril. - Tinham pegado um diamante naquele instante mesmo - disse Zé de Peixoto. - Me disseram até que é uma pedra boa. - Pelo menos, vai servir pra fazer o enterro dele - observou Peba, cuspindo dentro da bateia. conveio Zé de Peixoto, sem retirar os olhos do - É esmeril que era rebaixado. - Mas, pelo que me disseram, ainda sobram uns 1 00$000, livres do quinto, que vão dar pra viúva dele. -
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Agora era o ralo fino para tirar a areia, Silvério dobrando sua bateia na do sócio, completando o corte e fazendo pedras. O silêncio recaíra. E como ele voltara a desconfiança de Peba em relação ao companheiro. Ouvia o atrito das pedras sob suas mãos, tinha os olhos atentos na sua bateia, c estava prevenido contra ele. Na lavagem do cascalho, sobretudo, é que precisava ter cuidado. Não havia o exemplo de Cm·oba? Lembrava-se do episódio como se tivesse sido ontem, Caroba trabalhando com 114
Manelão nas Piabas, sem o sócio desconfiar dele a princ1p10. Enquanto lavavam, Caroba aproveitou e subtraiu uma pedra de dez grãos, escondendo-a no cano da espingarda; sua intenção era retirá-la dali somente quando chegasse à cidade, venden do-a às escondidas, para ir embora depois. Manelão, porém, era muito calmo. Tendo visto o sócio ocultar o diamante, pois já o vinha observando com desconfiança, nada disse. Fingindo igno rar o roubo, deixou passar uma meia hora e, entrando de repente na toca, tomou da espingarda e fez que ia alvejar uma caça qual quer. Foi o bastante. Caroba correu ao seu encontro, pedindo -lhe para não disparar a arma: se ele desse o tiro, adeus, dia mante! O que Manelão queria, ficou esclarecido, era que o outro se acusasse com as suas próprias palavras. E não chegou, realmente, a erguer a arma, e Caroba já contava tudo, embora dizendo que o tinha feito por pilhéria. Agora Peba conjeturava : se Caroba, que era tido como sério, fizera uma daquelas, que diria de Silvério? - Lava direito, Peba! - disse Zé de Peixoto. Como que caindo em si, Peba meteu água na bateia para desengomar o cascalho, libertando-o do resto da terra. Silvério, ao contrário, tirava água da sua, com movimentos lentos, ba leando em seguida, para fazer descer ao pião o diamante que porventura houvesse. Ao fazer as segundas pedras, que o cas calho era grosso, tinha os olhos de tal maneira cravados na ba teia que, refletindo, como estava, nos projetos do futuro com que lhe acenava o bambúrrio, parecia tentar nela entrever o seu próprio destino. Olhando-o de banda, Peba julgou ser uma ma nifestação de esperteza o ar concentrado do companheiro, e, sem que pudesse evitar, associou-o de repente a todos aqueles patizeiros que eram mestres em roubos de diamantes, sobretudo quando trabalhavam de alugados, escondendo pedras na areia do corte, na costura dos calções ou nas dobras dos cintos, e até mesmo na glande do pênis, quando estes eram do tipo bico-de -candeeiro. Sim, era preciso estar vigilante, não o deixar à von tade, estar atento e observá-lo. O Sol já ia alto. Zé de Peixoto, ainda que em nada sentisse esmorecidas as suas esperanças, não podia deixar de experimen tar uma certa decepção por não ter sido encontrado, até o mo mento, nenhum carbonato grosso, embora faltassem fazer as ter ceiras pedras. - Pra dizer que esta porcaria não dá nada? - disse. A expectativa era tensa, e, à medida que o paiol baixava, crescia a ansiedade no coração dos três homens, o tempo se 115
escoando quase que totalmente em silêncio. De repente, porém, ao fazer de novo pedras, puxando-as para as bordas da bateia, Silvério a reteve e, tomando uma delas entre os dedos, os olhos iluminados por uma chama de esperança, procurou examiná-la. Peba avançou para ele, transfigurado, o rosto coberto de suor. - Deixe eu ver - disse Zé de Peixoto, estendendo a mão. - É um carbonato - adiantou Peba. •
Todos três estavam agora curvados sobre a pedra que Zé de Peixoto tinha na mão. Dizer da ansiedade, do alvoroço e do atordoamento deles, é impossível. Ante a sugestão do bam búrrio, a primeira pessoa em que Silvério pensou foi em Pedro Almofadinha, antes mesmo de se lembrar da família que deixa ra no sertão. Como não era esbanjador, saberia aproveitar o dinheiro da melhor maneira possível, fazendo-o render na la voura. Entretanto, admitia que talvez continuasse no garimpo durante mais algum tempo, caso a sua parte atingisse uma soma inferior a cinco contos. Por sua vez, Peba entreviu o por re prometido, e imaginou-se cercado de mulheres no cabaré de Felícia, escolhendo a dedo as mais caras, as que eram freqüen tadas por capangueiros. Por um instante, chegou mesmo a expe rimentar um vago arrependimento de ter julgado mal o sócio. Enquanto isso, Zé de Peixoto virava e revirava a pedra na pal ma da mão, examinando-a. Por fim disse: - É uma ferragem besta. Silvério espantou-se : - Ferragem? - Sim - confirmou Zé de Peixoto. - Tem grã de carbonato, mas é ferragem. E acrescentou: - Pode jogar fora. Tendo dito isto, passou a pedra com força no lajedo, e a fragilidade dela veio confirmar o que disse: esboroou-se sob os seus dedos. - É . . . - murmurou Peba, acabrunhado. - De car bonato mesmo só tem a grã. E tão grande como o alvoroço inicial foi o desapontamen to dos três homens. •
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Retornaram à lavadeira e de novo meteram água nas ba teias, boleando para tirar o xerém. Possuído de incômoda sen sação de logro, Peba voltou a pensar com mais raiva em Sil vério. Sertanejo de uma figa! Da raiva, não tardou a renascer a desconfiança e, de repente, já estava admitindo a possibili dade de tudo aquilo ter sido tão-somente um truque. Desvian do a atenção sua c de Zé de Peixoto para o falso carbonato, Silvério talvez se tivesse aproveitado disso para ocultar algum diamante. Não havia garimpeiros que escondiam pedras na bo ca, debaixo da língua, para as furtar dos sócios? Tal recurso teria sido fácil a Silvério, um simples gesto seria o suficiente, tanto mais que a ferragem o deixara por momentos fora de vi gilância. Agora ele cortava a areia lentamente, boleando sem pre, e Peba passou a observá-lo com mais atenção. De cima da pedra, os braços atirados molcmente sobre os joelhos, Zé de Peixoto, por sua vez, observava Peba. Notou que ele estava inquieto, dando mostras de desconfiança do ser tanejo. Quem era, afinal, Silvério? Pouco sabia a respeito dele, apenas que era um camarada bom de serviço, mas isto não representava em absoluto uma garantia de honestidade. Se Peba suspeitava dele, como podia constatar, tinha motivos para assim proceder, e por isso o negro começou a partilhar da mesma desconfiança : não se podia acreditar em ninguém. O silêncio se prolongava. Fazia quase meia hora que os três homens não articulavam uma só palavra, as atenções inteiramente concen tradas na lavagem do cascalho. De repente, Silvério levou a mão à altura da boca, para coçar o bigode, e os outros dois homens estiveram a pique de avançar para ele e revistá-lo ali mesmo. Entretanto, a naturalidade do gesto os fez hesitar, e Zé de Peixoto e Peba cruzaram pela primeira vez os olhares. Vol tando a bolear a bateia, este último não pôde, porém, repelir de todo a hipótese formulada de início. Teria Silvério, naquele momento, escondido algum diamante na boca? Sem dar pela reação dos companheiros, o sertanejo imo bilizou a bateia e, saindo da lavadeira, acocorou-se ao lado dela, de costas, a fim de fazer o terreiro para os cortes rebai xados. Enquanto ele limpava o pedaço de terra escolhido, ni velando-o com a palma das mãos, Peba não se conteve e, sal tando ao seu pescoço, derrubou-o sobre o terreiro e gritou: - Ladrão! Cuspa o diamante fora! Com a cara enterrada no chão, as mãos do sócio aper tando-lhe por detrás a garganta, Silvério mal pôde responder : 117
- Você está me matando! - Vire a cara dele pra cima, Pcba - disse Zé de Peixoto, saltando da pedra com o parabelum na mão. - Vamos! Bote o diamante pra fora! - gritava Peba, enquanto obrigava o sócio a volver o rosto em sua direção, des locando-lhe a cabeça com violência. Com a garganta livre por um momento, Silvério protestou : - Qual é o diamante? Você está doido? - O diamante que você escondeu na boca - disse Peba, lançando novamente as mãos ao pescoço do sertanejo. - Espere, Peba! - disse Zé de Peixoto. - Me largue, me largue! Eu não escondi diamante nenhum! - gritava Silvério, com os olhos esbugalhados. Foi quando Peba, ofegante, o suor descendo-lhe em bicas pelo rosto, soltou-o de uma vez. Com as costas e o peito su j os de terra, o calção encharcado de água, Silvério tentou le vantar-se. - Cadê o diamante? - perguntou-lhe Zé de Peixoto. - Eu não tenho diamante nenhum! - Ele deve ter engolido - observou Peba, depois de lançar os olhos sobre o terreiro revolvido durante a luta. - Se engoliu - disse Zé de Peixoto - pior pra ele. - Eu não engoli nada! - protestou Silvério, levantando-se. - Não roubei diamante nenhum! Olhe aqui - e escan carou a boca, cuspindo repetidas vezes na palma das mãos. Zé de Peixoto mantinha o parabelum apontado contra ele. - Você tem azeite aí, Peba? - perguntou. - Tenho aqui uma meia garrafa. - Traga - e Zé de Peixoto avançou um passo na direção do sertanejo : tinha os olhos como se fossem saltar. - Não me mate, Seu Zé de Peixoto! - gritou Silvério, procurando recuar. - Se você recuar um passo eu lhe meto uma bala na testa - disse o negro. E para Peba: - Traga logo o azeite. - Eu entrego a Deus . . . - murmurou Silvério com voz trêmula. - Não meta o nome de Deus aqui - disse Zé de Pei xoto. - Deixe Deus em paz. O Sol estava a pino. Peba trouxe a meia garrafa de azeite, 118
retirou o sabugo de milho que a arrolhava e, ao fazê-lo, Sil vério gritou : - Vocês vão me dar purga? Eu não engoli diamante ne nhum, gente! - Vá tratando de tomar logo seu azeite - disse Zé de Peixoto. - E deixe de conversa. Silvério caiu de joelhos : - Pelo amor de Deus, patrão! - Deixe Deus de banda, rapaz! - respondeu o negro Zé de Peixoto. E Peba avançou com a garrafa na mão. - Quer beber por bem ou por mal? - perguntou. Num instintivo movimento de defesa, Silvério ergueu-se e olhou para os lados, como se sondasse a possibilidade de fugir. Mas logo Peba correu para ele e, num golpe repentino, colheu -lhe o pescoço num tronco dado com o braço esquerdo. - Não precisa isso - disse Zé de Peixoto. - Ele não vai fugir. E contraiu a mão no cabo do parabelum, o dedo dobrado sobre o gatilho. - Beba! - gritou Peba, tentando introduzir o gargalo da garrafa na boca do outro, que se debatia para livrar o pesco ço do golpe. Foi quando Zé de Peixoto, avançando mais um passo, correu o cano do parabelum de alto a baixo na barriga de Sil vério, detendo-o precisamente em cima do umbigo. Dominado pelo medo de morrer, um frio estranho percorrendo-lhe a espi nha, o sertanejo rendeu-se inteiramente. E engulhando a prin cípio, os dentes apertados contra o gargalo, cabeceando no ar, e fazendo um esforço que lhe parecia impossível, ingeriu, por fim, todo o conteúdo da garrafa . •
Meia hora depois, com as mãos na barriga, corria para trás de uma pedra. •
Peba trouxe um carumbé : - Apanhe esta porcaria. Entregue a profundo acabrunhamento, sentindo na boca o sabor amargo do azeite de mamona, Silvério recolheu os excre119
mentos misturados com terra. Já passava do meio-dia, e uma enorme paz descia sobre a serra. - Vamos! - disse Peba. - Agora vá lavar. •
O carumbé boleou nas águas do córrego, que as da lava deira não podiam ficar sujas e empestadas daquela porcaria. Peba tapou o nariz. Silvério tinha o estômago embrulado, doía -lhe a cabeça. Moscas voavam sobre suas mãos . •
- Viu que eu não roubei nada? - disse Silvério, depois de lavar as fezes. Zé de Peixoto observava-o a distância. - De quem é o carumbé? - perguntou, enquanto enro lava um cigarro com o auxílio da faca de oito polegadas que retirara da cintura. - É dele mesmo - disse Peba. - Então já sabe - disse Zé de Peixoto. - Apanhe seu carumbé e vá embora. - Eu não roubei nada - insistiu Silvério fracamente. - Vá embora, rapaz! - repetiu o negro com enfado. - Eu não gosto de dizer uma coisa duas vezes. E quando Silvério deu os primeiros passos na direção da estrada, onde não tardaria a desaparecer, a caminho da cidade, ele ainda gritou : - Ei! Silvério voltou-se. - Lembre-se que você está me devendo quatro semanas de fornecimento! •
Se a gente pegar - perguntou Peba ao entrar de novo na lavadeira - a gente dá a parte dele? Zé de Peixoto soprou a fumaça do cigarro : - Parte dele? Parte dele uma banana! Tomando os ralos de apuração, duas pequenas bacias per furadas, Peba reencetou, sozinho, o trabalho interrompido, ra lando de início com o ralo grosso em cima do ralo fino, e de pois rebaixando a areia da ralinha. Quando chegou a vez de 120
passar as pedras enxutas na bateia ao sol, onde eram pegados diamantes de três grãos para cima, e também a areia do ralo fino, onde ficavam os de dois grãos para baixo, Zé de Peixoto se incumbiu disso. E só comeram o churrasco depois de Peba escrever o polmo com água, operação que consistia em apurar o resíduo final do cascalho. - Boa tarde, gente - era o gerente Alípio que ia chegando. - Foram bem de apuração? - Está fiscalizando, hem? - respondeu Zé de Peixoto. E acrescentou: - O que nós pegamos pode ficar pra você, você · quer? Alípio sorriu. Mas logo disse : - Isto não quer dizer nada. O serviço está com uma frente muito bonita e vocês ainda podem pegar daqui pra diante. Zé de Peixoto vestiu o casaco : - 'bora, Peba. XX
De dentro do rancho, Silvério viu quando as luzes das lojas se acenderam. Já estava escurecendo, e a cidade lá embai xo ia aos poucos mergulhando nas sombras. O episódio da ser ra, que tão brutal desfecho viera trazer às suas relações com Peba e Zé de Peixoto, produzira em seu espírito uma sensação de aniquilamento total. Violentado no mais fundo de seu ser, considerava não só impossível mas inútil qualquer reação, tão chocante e definitiva se lhe apresentava a realidade. Seu deses pero momentâneo, tendo cedido lugar à perplexidade, se trans formara num acabrunhamento demasiado forte para que ele experimentasse qualquer impulso de vingança. Pelo contrário, tudo aquilo que de absurdo e revoltante se lhe afigurara no incidente, chegou a lhe parecer, em dado momento, de uma assombrosa naturalidade. Agora, porém, com a noite que caía, a idéia do retorno dos garimpeiros à cidade lhe devolvia o mes mo sentimento de apreensão. Sim, era sábado, e àquela hora as ruas deviam estar movimentadas, os escritórios dos capanguei ros com gente entrando e saindo, cada qual querendo saber o que o seu meia-praça fizera durante a semana, se tinha pegado ou não. E Peba? PEBA TERIA PEGADO? Fazendo a si próprio essa pergunta, ocorreu-lhe a lembrança de ir à procura do ge121
rente Alípio, que naquele momento devia estar em casa jantando, e com ele obter alguma informação a respeito. Foi esse o seu primeiro pensamento. Mas, ao sair do ran cho, o velho chapéu de massa desabado sobre os olhos e a ca misa de valença em tiras , uma gargalhada de mulher chegou-lhe casualmente aos ouvidos, como uma zombaria, e com ela a re pentina e nítida consciência do seu aviltamento. Era Rita Pan deiro, reconheceu logo, e pela primeira vez se apercebeu do ridículo que o cobria, experimentando súbita vergonha em pas sar ali defronte, de se encontrar com ela e com Boca-de-Virgem. Adiante ficava a casa de Sinhá do Ouro e, como era dia de Ofí cio, um cheiro doce de incenso se espalhava no ar. Dentro em pouco, lembrou-se, a reunião estaria formada, e possivelmente o assunto da conversa seria a purga que lhe fora dada, todos os moradores do Ribimba comentando-lhe a fraqueza. Por um mo mento, tão humilhante lh e pareceu sua situação no bairro, que se sentiu impelido a voltar ao rancho, reunir suas coisas e ir embora de uma vez; essa idéia, entretanto, só lhe ocorreu para o convencer da impossibilidade de pô-la em prática antes de ter feito dinheiro no garimpo. Ao mesmo tempo em que se identi ficava com essa obsessão comum a todos os forasteiros, procurava justificá-la com a necessidade de só voltar ao convívio da famí lia em condições de ampará-la por meio da compra de um terreno de lavoura - projeto que, sem o seu tão ambicionado êxito no garimpo, lhe parecia de impossível realização. Assim, pensou de novo em Peba, na necessidade de indagar a respeito do resultado final da apuração, embora só muito remotamente admitisse a pos sibilidade de reinvidicar seus direitos de sócio. Lançou um olhar aos casebres envoltos nas sombras. A Lua não ia tardar a sair. O momento, portanto, era o mais opor tuno para atravessar a rua, sendo difícil alguém o reconhecer na escuridão. Deu os primeiros passos. De repente, porém, eis que a luz de um fifó veio coar-se através de uma janela, depois através de outra e mais outra - e ele instintivamente parou; cada uma delas se lhe afigurava um obstáculo à sua passagem. No primeiro momento, pensou em dar uma volta pelo lado de cima do barran co, tomando a estrada do chalé; logo desistiu, entretanto. Che gando-lhe aos ouvidos rumores de vozes, de envolta com latidos de cães, sons de harmônica e gargalhadas de homens e mulheres, compreendeu a inutilidade de esquivar-se, passando pelos fundos das casas : o movimento do sábado, com a noite po·voada de ga rimpeiros e raparigas, com gente bebendo no balcão das vendas e a rufiagem solta nas ruas, já atingira aquela parte da cidade. Se122
ria visto de qualquer maneira, de nada adiantava cortar caminho pela mata do chalé, pois sem atravessar a Jaqueira, o Rapa-Tição ou a Santa Bárbara, locais por onde a cabroôira se espalhava, não poderia alcançar a casa de Alípio. Teve um momento de in decisão. A hipótese, formulada em seguida, de sua história ainda não ser conhecida àquela hora, trouxe-lhe um pouco de alento; estaria livre, por enquanto, de perguntas, ao abrigo da curiosi dade e dos comentários alheios. Logo depois, porém, voltou a entregar-se a grande desânimo; mas se decidiu, por fim, a des cer para a cidade. •
Hoje não. Por quê? Porque não. Ele está amigado com você? Não. Mas ficou de vir cá em casa hoje. Era um homem assediando a negra Vitalina no canto da cerca. Silvério passou por eles, ouviu casualmente o que diziam, e compreendeu que se referiam a Zé de Peixoto. Seria que o garimpo dera mesmo alguma coisa? Era duro admitir que o negro gastasse com mulheres à custa de seu trabalho, do seu suor. Apressou o passo. À medida que andava, cruzando com uma ou outra pessoa, e depois com grupos d e garimpeiros, já não o tranqüilizava a indiferença dos transeuntes, que o olha vam como se nada houvesse acontecido. Um novo sentimento então o empolgou. Teve ímpeto de contar a todos a violência de que fora vítima, de proclamar bem alto sua situação de pai de família desamparado, experimentando uma súbita necessidade de despertar compaixão. ERA UM POBRE HOMEM CARREGADO DE FILHOS. Esta lembrança inundou-o de uma espécie de sombria ternura, ocorrendo-lhe como benéfica descoberta para o seu espí rito. Foi quando, em meio à depressiva consciência de sua der rota, ele se deixou como que envolver no seu próprio destino, comovido consigo mesmo. •
Depois de dar algumas voltas e descer a ladeira da J a queira, chegou, afinal, diante da pinguela. Do outro lado, as luzes da cidade brilhavam. A Lua estava começando a nascer. 123
XXI
A casa para a qual ele se dirigia ficava na Rua do Sapo, onde não tardou a chegar. O gerente Alípio veio recebê-lo com o candeeiro na mão. Ele entrou e expôs em todos os seus deta lhes o ocorrido. O dono da casa, em mangas de camisa, ouviu a história em silêncio, indo da curiosidade ao espanto, e do espanto à revolta. - Como é que se manda um pai de família lavar bosta! - exclamou. Mas Silvério insistiu em outro ponto : - O senhor tem certeza mesmo que eles não pegaram? - Não já lhe disse? - respondeu Alípio. - Pode ser que ainda peguem daqui pra diante. Mas a apuração de hoje não deu nada. Posso lhe garantir. - E a ferragem? - perguntou Silvério. - O senhor acha que tenha sido ferragem mesmo? - Você não me disse que ela esfarelou quando ele passou ela no lajedo? - Foi. Esfarelou. Alípio encolheu os ombros: - Então era ferragem mesmo. Se fosse carbonato, não esfarelava : cortava quantos lajedos aparecessem. Um choro de criança recém-nascida veio do interior da casa. - E o que é que você pensa fazer? - continuou Alípio. - Eu mesmo não sei - disse Silvério. - Eu estava pensando em dar queixa ao Cel. Germano. O choro de criança tornou-se mais forte, agudo, doloroso, e ouvia-se uma voz de mulher acalentando. Alípio levantou-se e foi até a porta do corredor : - Que é que esse menino tem? - Eu acho que ele está com alguma dor - responderam de dentro da casa. - Então arranje um remédio pra ele - disse Alípio. E voltando-se para Silvério: - Você tem coragem de matar ele? O sertanejo teve um sobressalto; para ocultar sua fraque za, limitou-se a responder : - Eu tenho quatro filhos pra criar, Seu Alípio. Não vou sujar minhas mãos com o sangue daquele negro. Alípio tirou um cigarro do bolso da calça: 124
- Bem, quer dizer que você não está disposto a matar ele, não é? - Eu já disse ao senhor que eu tenho quatro filhos pra criar, Seu Alípio. - Então não adianta você dar queixa ao coronel. - Por quê? Alípio acendeu o cigarro no candeeiro e sentou-se de novo na cadeira. - Não adianta porque o coronel tem a sua maneira de fazer justiça - disse. Cuspiu de lado e continuou : - Você não conhece José Alves? - Aquele branco, que tem uma verruga na orelha? - Isso mesmo - confirmou Alípio. - Pois bem. O caso de José Alves pode servir de exemplo. A semana passada, ti raram uma filha dele de casa, e ele foi se queixar ao coronel na São Pedro. Sabe o que o coronel disse a ele? "Você não tem arma não?" José Alves respondeu que não tinha. Então o co ronel disse : "Pois tome esta repetição, mas me devolva, ouviu? e dê um tiro na cara de quem descabaçou sua filha". - E ele deu? - perguntou Silvério, transtornado. Alípio quebrou a cinza do cigarro com a ponta do dedo e respondeu: - Deu o quê! Dois dias depois ele voltou c tornou a entregar a repetição ao coronel. - E o que é que o senhor acha que eu devo fazer? indagou Silvério, para mudar de assunto. - Veja se esse menino cala a boca! - disse Alípio em voz alta, dirigindo-se a quem acalentava a criança no outro cômodo. E para Silvério : - Já que você não está disposto a matar ele, não deve procurar o Cel. Germano. O melhor mesmo é você falar com o delegado. Com Seu Esquivei? - Sim. - O senhor acha que ele toma alguma providência? Alípio deu de ombros : - Homem, eu é que não posso tomar nenhuma. Por muito favor, por se tratar de um caso destes, o mais que eu posso fazer é falar com Seu Teotônio, que é o dono da serra. - Será que eu não encontro justiça em Andaraí, Seu Alípio? - perguntou Silvério, com alguma hesitação. - Atrás de justiça todo mundo anda - respondeu o 125
outro. - De qualquer maneira, porém, é bom você falar com o delegado. E depois de soprar lentamente a fumaça do cigarro : - Uma coisa a seu favor, pelo menos, você vai ter. Silvério ergueu os olhos para ele, como se não compreendesse bem as suas palavras. - Eu não sei se você sabe - continuou o outro. - Seu Quelezinho chegou hoje de tarde, e com a vinda dele a situa ção pode mudar. - O senhor acha? A criança continuava a chorar, e Alípio de novo se levantou e foi até a porta do corredor : - Mas o que é que esse menino tem? A voz de mulher respondeu : - Eu acho que é dor de ouvido. - Pois é - disse Alípio, dirigindo-se novamente a Silvério. - Com a chegada de Seu Quelezinho, a sorte do negro é capaz de virar. E vestindo o paletó: Seu Quelezinho nunca foi com a cara dele. - O senhor vai sair? - perguntou Silvério, levantan do-se. - Vou. Eu tenho que ir no escritório de Seu Teotônio agora. - Quer dizer que o senhor fala com ele . . . - Falo - atalhou o gerente. - É a única coisa que eu posso fazer por você. Mas não deixe d e procurar Seu Esquivei. É bom arriscar. - A valença - disse Silvério, já na porta da rua, mostrando-se tranqüilizado - é que eles não pegaram. Era, afinal, um ponto de vista. Alípio respondeu com aspereza : - Ora essa! Mas de qualquer maneira você está escu lhambado. Fizeram com você o que não se faz com cachorro sem dono. Saíram, e o choro da criança acompanhou-os até dobra rem a esquina. XXII
De vez em quando aparecia na cidade um daqueles ho� menzarrões louros que andavam sem chapéu, de sapatos de126
borracha e cachimbo na boca, ali se demorando de duas a três semanas. Eram os representantes das firmas estrangeiras importadoras de diamantes e carbonatos. Havia, então, a par de maior movimento do comércio, com compras de partidas feitas diretamente aos capangueiros, um consumo sensivelmente, maior de conhaque. Os gringos eram olhados com curiosidade sempre nova. Não só por sua língua arrevesada e seus hábitos despachados, como também por sua indumentária esportiva, que a todos parecia assentar muito mal em homens de tão largas pos ses. Eram, ao mesmo tempo, olhados com um misto de respei to e assombro : por trás deles ficava uma coisa vaga e remota chamada Europa, com as suas lapidações, sem as quais não ha veria o necessário escoamento da produção diamantífera do município, e de onde era dirigido o comércio mundial de pedras preciosas. O Major Quelezinho Jardim, irmão do Cel. Germa no, nem sempre esperava, porém, pela vinda de tais represen tantes a Andaraí. Centralizando ambos, como proprietários das maiores áreas de serras e dos garimpos mais ricos, quase todo o mercado local, suas transações eram ordinariamente feitas na Capital do Estado; delas ficava incumbido Quelezinho, que mais habilidade revelava nas negociações com os exportadores ali estabelecidos ou com os compradores estrangeiros vindos espe cialmente do Rio para se encontrarem com ele. Nestas suas pe riódicas viagens, era também ele que tratava dos interesses po líticos do Município, mantendo contato com as altas autoridades governamentais, na qualidade de preposto de seu irmão. Da quela vez, ao contrário do que normalmente acontecia, Quele zinho demorara-se mais de um mês na Capital; partira poucos dias antes de ter o Cel. Germano abandonado a garimpagem do Paraguaçu, e só agora regressara, decorridas cinco semanas . •
Quando o telegrafista Nascimento entregou a Dr. Mar colina o telegrama comunicando o regresso de Quelezinho houve um rebuliço no "palacete", que assim era chamada sua residência de platibanda na Rua do Curral, casa de homem que se dava ares de civilizado, iluminada a carbureto e com um conforto fora do comum, que embasbacava todo mundo. As empregadas tiveram trabalho dobrado, e foi um tal de assar bo los e matar galinhas que até parecia que ia chegar o Bispo da Diocese. À noite, o banquete estava preparado e a vitrola to cando o repertório de dobrados da Casa Édison. 127
Quelezinho chegou na sua besta melada de dois contos de reis, um lenço de seda atado ao pescoço, de luvas, chapéu-chile e paletó de alpaca, as calças de linho branco entaladas num só lido par de botas de couro de bezerro. Acompanhavam-no dois guarda-costas armados até os dentes. Quando a cavalhada entrou na Rua dos Negros, a madrinha com um cabeção de prata, e dois animais adestros, as janelas se encheram de gente como se fosse dia de procissão. •
Mal acabou de jantar, tendo presenteado a mulher com um lote de linho belga, e os filhos com as últimas novidades em matéria de brinquedos mecânicos, ouviu uma tosse seca no corredor : era Dr. Marcolino que ia chegando para a visita de praxe. Abraçaram-se demoradamente, e o médico já se dis punha a aceitar a cadeira que D. Elza lhe oferecia, quando Quelezinho lhe disse : - Vamos para o escritório. Lá está mais fresco. Os dois transpuseram um pequeno pátio interno e deram entrada no escritório - uma sala mobiliada com quatro cadei ras e um birô meticulosamente arrumado, com picuás, crivos, lentes e balanças granatárias em cima. Mal entraram, Quele zinho cruzou os braços formidavelmente diante do médico, e foi perguntando : - Mas como é que vocês permitem um moleque da mar ca de Zé de Peixoto desrespeitar Germano, Seu Marcolino? - Eu lhe conto - respondeu o médico, sem perder a calma. Depois, passou o lenço na testa, puxou as calças e sen tou-se, enquanto o outro se repoltreava na cadeira giratória do birô. De início, referiu-se ao incidente da Passagem, nar rando-o de modo discreto; ao relatar a vinda de João Vaqueiro, com ordem, por ele sustada até melhor oportunidade, de ma tar o jagunço, Quelezinho espantou-se. - Mas Seu Marcolino, será possível! - bradou. - Aque le negro devia ter tomado bala na mesma hora! O outro homem ajeitou lentamente os óculos, passou a mão pelos cabelos ralos, tossiu e respondeu : - A ocasião não era oportuna - e deu uma leve pal mada no joelho. D e pé diante dele, Quelezinho fez tilintar nervosamente o molho de chaves. 128
- Não me diga isso, Seu Marcolino! - exclamou. Aquele negro é um cabra lambanceiro, que já devia ter toma do bala há muito tempo! - Mas compreenda, Quelezinho - atalhou o médico, co çando a nuca. - A cidade estava indo em paz . . . Além disso, com uma autoridade nova, que a gente, de certo modo, precisa impressionar bem . . . - Qual é a autoridade? - O Promotor . . . Quelezinho respondeu tão alto que fez o médico precipi tar-se para a porta e fechá-la, a fim de que ninguém o ouvisse na sala de visitas : - Qual Promotor, qual cachorro de Promotor coisa ne nhuma! Afinal de contas, Seu Marcolino, quem é que manda nesta joça? O médico de novo se sentou, acendeu vagarosamente um charuto, e já ia dizer qualquer coisa para acalmar o amigo, quando bateram de leve na porta que dava para a rua. Quele zinho deu volta à chave - era o delegado. - Sente aí - disse-lhe, tornando a fechar a porta. Muito agitado, atropeladamente, Esquivei quis contar tudo de uma vez: - Eu não dizia . . . Eu não dizia . . . E comunicou que Zé de Peixoto fizera "mais uma das de le". Mancomunado com Peba, espancara um garimpeiro e lhe dera uma purga de azeite, por infundadas suspeitas de roubo, obrigando-o a lavar os excrementos. Foi um ótimo pretexto para Quelezinho: - Vou mandar matar aquele cachorro agora mesmo! bradou. E encaminhou-se para a porta. Dr. Marcolino tomou-lhe a frente: - Calma, homem! Calma! E, fazendo-o sentar-se, também se sentou, e perguntou ao delegado: Quem é o garimpeiro? Um tal Silvério - respondeu o outro. Não me interessa saber quem seja ou quem deixe de interrompeu-os Quelezinho. - Eu nada tenho a ver ser! com o garimpeiro. O que interessa é que aquele negro é um moleque muito atrevido, que está precisando de uma lição! Dr. Marcolino soprou a fumaça do charuto : - Calma, Seu Quelezinho! Calma! 129
E voltando-se instintivamente para o delegado : - Será que eles pegaram algum diamante? - Não senhor. O serviço não deu nada. - Tem certeza? - perguntou automaticamente o médico. - Tenho, sim senhor. Quelezinho interrompeu-os ainda uma vez: - Não interessa saber se ele pegou ou deixou de pegar, Marcolino. O importante é que aquele cachorro desrespeitou Germano, e precisa ser punido. Estava sinceramente convencido disso. O médico tossiu demoradamente. - É . . . - foi dizendo em seguida, mostrando-se tran qüilizado. - Quer dizer que você quer mandar matá-lo hoje mesmo? - Claro - respondeu Quelezinho. - Ele já devia estar morto. O médico levantou-se, deu uma volta em torno do birô, as mãos para trás, e disse enquanto andava: - Está bem. O delegado trancara-se numa atitude reservada. - Mas é bom preparar a coisa com jeito - concluiu o médico. E, parando junto ao cofre, meteu uma das mãos no bolso do casaco e, com o charuto em riste, passou a explicar: - O negro está morando na Jaqueira, em casa da Joana Magra. Bem. Hoje ele pode sair, ou não sair. Ora, atacá-lo em casa será uma loucura. Ele reage . . . é o diabo! Aquela rua pega fogo. É um tiroteio doido. E pode até se dar o caso de acabar o justo pagando pelo pecador . . . - Bem - conveio Quelezinho. - Há de se encontrar um meio de fazer com que ele saia. - O senhor desculpe eu entrar na conversa . . . - disse o delegado. - Mas eu acho que na passagem do Beco da Lama é o melhor lugar. Dr. Marcolino puxou a cadeira e sentou-se. - De fato - disse. - O Beco da Lama é ótimo. Mais animado, o delegado sugeriu : - Então, é só Seu Quelezinho mandar chamar ele . . . - Chamar ele coisa nenhuma! - interrompeu-o o irmão do chefe. - Ora essa! Eu mando chamá-lo, ele desconfia, não vem, foge . . . Que chamar coisa nenhuma! Isso não dá resul tado, Esquivei. 130
O delegado encolheu-se na cadeira. Mas o médico respon deu por ele. - Não é difícil se encontrar um meio de fazê-lo vir à ma - admitiu. - Estive pensando num bom recurso. E passou a explicar : - Podemos mandar vender um diamante a ele como isca. Ele está sem dinheiro, e forçosamente terá que sair para re vender a pedra e pagar ao garimpeiro. Quelezinho aprovou o plano com um movimento da ca beça. - Boa idéia - disse. - Mas nós precisamos dar muita usura. - Claro! - disse o médico. - O garimpeiro que for incumbido d o serviço deve levar uma pedra de uns seis contos e pedir por ela a metade do preço. Ele não resistirá. O delegado Esquivei ergueu-se vivamente : - Compreendi agora . . . útima idéia! Ele vem morrer em cima! E mais animado ainda : - Não se preocupem com o resto. Tenho um homem de inteira confiança para fazer o serviço. É um garimpeiro de Lençóis, chamado Fulgêncio, muito pouco conhecido aqui. - Melhor ainda - observou Dr. Marcolino. E acometido de um acesso de tosse, levantou-se para cuspir na escarradeira. - Diabo! - exclamou, depois d e passar as costas da mão na boca. Quelezinho sentou-se à mesa e desdobrou um pequeno pacote de diamantes. Recolhendo com a pinça um lambreu de oito quilates, disse : - Creio que este serve - e passou-o ao delegado, que o guardou rapidamente num grosso picuá. - Mas tenha cuidado! Não vá perder meu diamante! Esquivei tranqüilizou-o : - Eu me responsabilizo. E, antes de sair, já na porta da rua, com o chapéu na mão, voltou-se para dizer: - A coisa vai sair melhor do que o senhor pensa. Pode deixar comigo, que antes das nove horas o negro já é defunto. De novo a sós, Dr. Marcolino quebrou a cinza do charuto e disse a Quelezinho: Então? Vê como as coisas são bem resolvidas com calma? 131
E sorriu de modo significativo. - Venha tomar um conhaque - respondeu Quelezinho, abotoando o casaco. - É bom pra rebater essa tosse. - Vamos - disse o médico. E logo depois, atirando uma baforada para o ar : - Bem. O caso do negro está {resolvido. Esqtt!ivel se incumbe do resto. Agora, mudando de assunto, viu o que o Paraguaçu fez este ano com Germano? Quelezinho acendeu o cigarro. - Não há de ser nada - respondeu. - Ele ganhou bas tante nos diamantes que eu levei pra vender. - Quando você vai a São Pedro? Amanhã ou depois. - Então você vai dar a ele duas notícias muito boas. - Qual é a outra? - perguntou Quelezinho, distraído. Dr. Marcolino sorriu: - Às nove h oras o Esquivei vai nos dizer . . . Foi quando se ouviu a voz de D. Elza, que vinha ao encon tro deles : - Vamos, Quelezinho, que a sala está cheia de visitas. O Juiz acabou de chegar neste momento. Você trouxe a enco menda dele? o par de sapatos? XXIII O Rio Baiano, só muito raramente cheio, dividia a cidade em duas, e sobre o seu leito empedrado tinham construído a pinguela que estabelecia comunicação entre o comércio e o bair ro pobre onde estava residindo o negro Zé de Peixoto, com pas sagem forçada pelo Beco da Lama, local deserto e mal ilumi nado. Formado por dois grandes quintais murados que faziam esquina, pelo lado de cima, com a praça e a Rua do Sapo, e cujos fundos davam para o areão, quase ninguém se detinha ali. Só mesmo algum garimpeiro que estacionava para urinar, ou para assediar alguma mulher-dama desgarrada em noite me nos rendosa, ou os cães vagabundos que iam fossar as porcarias acumuladas no canto dos muros - cascas de frutas e montes de lixo. - O senhor não podia escolher um lugar melhor - dis se o inspetor Miguel Tapera ao delegado Esquivei, depois de ouvir as primeiras instruções sobre a tocaia. 132
Os dois estavam a sós na Delegacia, que funcionava em uma das dependências da Casa da Câmara, e Esquivei, colocan do uma caixa de balas no bolso, acrescentou: - Agora você vá procurar os outros. Devem estar jogan do na Rua do Bucho. Alguns estavam, realmente, e faziam as suas paradas na ronda disputada com um velho baralho ensebado; mas aban donaram a mesa de jogo ao receberem o chamado do delegado. Eram Adalberto Boca Torta, Correntão e Zeferino 22, jagun ços que o auxiliavam nas diligências policiais. Acompanhados de Miguel Tapera, passaram p�la venda de Boreta, onde fo ram encontrar os companheiros Rato Branco, Alfredo Tiborna e Manuel Cinco-Horas. No pequeno cômodo enfumaçado, com um fifó em cima do balcão .e rolos de esteiras atrás da porta, entraram ao mesmo tempo duas mulheres-damas para beber. - Tomem a cachaça de vocês e caiam fora - ordenou Miguel Tapera. E depois que elas saíram, voltou-se para o dono da venda: Quer um conselho, Boreta? - Qual é? - Se você tem que ir hoje na praça, só vá depois das 9 horas. Vai haver algum serviço? - perguntou o outro, co locando a garrafa na prateleira. - Não sei - respondeu Miguel Tapera. - Mas espere aí. Pode deixar a garrafa no balcão, que nós também vamos beber. E enchendo o copo : - Não adianta dizer se vai haver ou não algum serviço. Estou só lhe dando um conselho. Todos beberam, crescendo a mão nas doses, e se dirigi ram apressadamente para a Casa da Câmara, passando pela Rua do Remanso. Ao descerem o Beco da Chocolateira, dis tanciaram-se uns dos outros ( para não chamar a atenção) e l\1iguel Tapera ainda teve tempo de entrar no cabaré de Dona, àquela hora iniciando o seu movimento, e com um sinal arre banhar mais dois companheiros. - Nós estamos policiando o cabaré - observou Otacílio de Marianinha, que era um deles. Miguel Tapera explicou : - Cabaré não interessa. É ordem do delegado, rapaz. E fazendo uma pausa: 133
vez.
- Deixem eu ir na frente. Depois vocês vão. Um de cada •
- Compreendeu bem? - perguntou o delegado, depois de explicar tudo detalhadamente. E entregando, por fim, o picuá com o diamante de Que lezinho : - Veja lá, hem? Faça a coisa bem feita, como eu lhe disse, porque senão quem vai roer a corda é você. Aquele ne gro ensina treita a jegue preto de barriga branca. Cuidado com ele! - O senhor não acha que eu devia ir armado? - lem brou o garimpeiro Fulgêncio, guardando o picuá no bolso do paletó. - Qual é armado, senhor! - respondeu Esquivei. Você está doido? - E se ele quiser me matar? - observou o homem. - Só se você não fizer a coisa como eu lhe disse - tornou o delegado. - Se você seguir minhas instruções direito, que você não é nenhum menino, não vai acontecer nada. Seu papel é de um garimpeiro pacato, e pra granjear a confiança do negro você tem que ir desarmado. O outro não se conformou logo : - Mas . . . eu podia dar um jeito e levar a arma bem escondida - insistiu. Esquivei levou a mão à cabeça : - Faça o que eu estou dizendo e deixe d e conversa! Aque le negro tira leite em veado na carreira. A gente não deve fa cilitar com ele. Vá, vá logo! Você indo armado pode botar a coisa a perder. Mal Fulgêncio saiu, chegou à Delegacia o primeiro dos ja gunços recrutados, e depois os outros, cada um de sua vez. Quando todos se acharam reunidos, Esquivei levantou-se e envolveu-os num olhar onde havia grande excitação. - Você disse alguma coisa a eles, Miguel? - perguntou. - Eu só fiz d ar o recado que o senhor mandou - respondeu com discrição o inspetor. - Bem - continuou o delegado. - Nós vamos ter uma empreitada dura hoje. Depois eu falo o que é. E acendendo o cigarro : - Em primeiro lugar, vamos tratar das munições. 134
Todos usavam armas curtas, e, abrindo uma das gavetas ida mesa, o delegado entregou a cada um dos jagunços uma caixa de balas, de acordo com os respectivos calibres. Depois, retirou do armário um litro d e conhaque, aberto momentos antes, e, como só houvesse um copo, que era o seu, voltou-se para Miguel Tapera : - V á apanhar aquele copo de alumínio que está em cima da boca do pote, lá no corredor. E quando o inspetor trouxe o copo : - Agora vamos beber. Enquanto o copo passava de mão em mão entre os jagun ços, o delegado encheu o dele por duas vezes, e, assumindo um ar de triunfo, disse ao colocar o chapéu na cabeça : - J á acabaram d e beber? Bein. A tocaia vai ser dura. E olhando fixamente os homens : - Nós vamos matar Zé de Peixoto . . . Adalberto Boca-Torta pôs o litro vazio em cima da mesa : É por causa d a purga no garimpeiro? Esquivei foi sumário : - São ordens de Seu Quelezinho. - Bem - disse o outro homem, depois de tomar o resto do conhaque. - Então eu prefiro levar um fuzil. - Eu também - disse Otacílio de Marianinha. - Eu atiro melhor de fuzil que de revólver. - Apanhe o fuzil que está lá dentro do quarto, Miguel - ordenou o delegado. - E traga também aquela comblain que está atrás da porta. - Será que dá tempo de eu passar lá em casa pra apa nhar minha repetição? - perguntou Manuel Cinco-Horas. O delegado refletiu rapidamente. - Dá - disse. - Então, você vai fazer o seguinte: saia logo agora, vá na frente, e nos espere debaixo da amendoeira do Beco da Lama. - É lá? - É, senhor! - Então é no caminho de minha casa. - Por isso mesmo foi que eu disse que dá tempo esclareceu o delegado. - Mas é dentro do quintal, ouviu? Atrás do muro. Manuel Cinco-Horas saiu quase correndo, e já Miguel Ta pera retornava com as armas pedidas, para as quais Esquivei providenciou imediatamente munição. Otacílio de Marianinha preferiu a comblain, e enquanto a carregava, ali mesmo na De-
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legacia, observou que "com três tiros daqueles não ficava nem o chapéu de Zé de Peixoto". Estando todos prontos, o delegado apagou o candeeiro e o grupo saiu pelos fundos da Casa da Câmara. A Lua já nascera fazia muito tempo. Um a um, con venientemente distanciados, os homens desapareceram atrás das pedras. Em sua casa, Quelezinho consultou pela terceira vez o relógio. Dr. Marcolino tamborilava com os dedos sobre a mesa. XXIV
Fulgêncio foi chegando como quem não queria nada. Zé de Peixoto estava sentado no balcão, conversando com Peba. Até o momento só comprara dois mosquitos. Contrariado com o mau resultado do garimpo, queixara-se ao sócio do pouco movimento do sábado - alegando que "aqueles dois xibius não davam nem pra salvar a despesa". Ao ver Fulgêncio, suspen deu a conversa, e, olhando-o de alto a baixo, com curiosidade, perguntou-lhe: - Tem algum diamantinho aí pra gente, rapaz? O outro respondeu negativamente, deixando, porém, trans parecer o contrário; seguia à risca as instruções de Esquivei, fazendo-se passar por um garimpeiro velhaco, vindo de fora, interessado em vender sua mercadoria às escondidas. Até certo ponto, o medo o favorecia, tornando mais natural sua dissimu lação e mais convincente seu papel. O negro estava habituado ao j ogo. - Deixe ver a pedra, rapaz - pediu em voz baixa. E saltando o balcão : - Venha cá dentro. Fulgêncio seguiu-o. Entraram no outro cômodo, ao qual o negro chamava de "reservado". Era uma pequena sala di vidida por um tabique de paraíba, com uma mesa forrada de papel de jomal, tendo em cima um litro de cachaça e uma ba lança de pesar diamantes. Zé de Peixoto pôs sobre ela o can deeirO-placa, cujo pavio suspendeu, e sentou-se no tamborete. - Quer molhar a garganta? - perguntou. - · Se o senhor me der, eu aceito - respondeu Fulgêncio. O negro tomou do litro de cachaça e serviu uma dose de mestre, que o garimpeiro virou de uma vez, sentindo um be néfico efeito sobre os nervos. 136
- Deixe eu ver o diamante - disse Zé de Peixoto em seguida. Fulgêncio entregou-lhe o picuá, e imediatamente viu uma grande mão aberta ao lado do candeeiro, de dedos grossos e extraordinariamente compridos, em cuja palma larga e calosa era examinado, desprendendo cintilações, o diamante lambreu. Lembrou-se do caso do negro com Xininho Inspetor. Tinham -lhe contado em Lençóis. Aquela mão enorme, que agora se achava sob suas vistas, prendera o pulso do policiador como uma tenaz, enquanto a outra retirava o zé-tranqüilino da bai nha. Ao ver o punhal no ar, ameaçador, Xininho fez finca-pé, esperneou, deu solavancos da má hora, mas a mão que o se gurava era uma garra possante. Vendo que ia morrer mesmo, Xininho arrancou de uma vez, saiu desembestado pelo mato adentro, e só muito adiante foi que viu o estrago que tinha no braço esfolado: largara a pele do pulso na mão do negro, que não a abrira apesar de tudo. Agora ele a levava à altura dos olhos, para melhor exami nar o diamante. Fulgêncio sentiu um leve tremor em todo o corpo. - Posso tomar outra cachaça, Seu Zé? - perguntou. O jagunço respondeu com indiferença, pesando a pedra: - Olhe o litro aí. Fulgêncio teve de empregar grande esforço para não dei xar a garrafa trepidar nas bordas do copo, em conseqüência da sua tremedeira. Tomou uma dose dobrada, e os seus olhos tor naram-se injetados. Sobreveio-lhe, depois, uma sensação de re vigoramento, como se em suas veias corresse sangue novo e abundante. Enquanto isso, por mera questão de rotina e, so bretudo, para ganhar tempo, Zé de Peixoto voltara a examinar a pedra. Viera em boa hora, ia salvar a despesa com ela, mas não sabia como arranjar dinheiro para comprá-la. No primeiro momento, ao verificar-lhe a boa qualidade, pensara em mandar Peba revendê-la na praça, retendo o garimpeiro consigo. Essa idéia, entretanto, foi logo posta à margem, em virtude de se tratar de um negócio maior, à frente do qual devia estar ele próprio. "Ê pedra pra se ganhar alguns contos de reis" - pen sou. Mas disse ao garimpeiro : - A pedra não é boa. Ê muito ponteada. Foi quando lhe ocorreu outra idéia. Apreensivo com a che gada de Quelezinho, a venda do diamante a Dr. Marcolino lhe pareceu uma solução magnífica. Não tendo o garimpo produzi do nenhum resultado, venderia a pedra ao médico, deixando-lhe 137
margem para bom lucro, o que iria compensar satisfatoriamente o malogro da apuração. Era preciso mantê-lo interessado na sua proteção, e compreendia que isto só seria possível por meio das vantagens do negócio em comum. - Quanto você quer pela pedra? - perguntou. - Três contos - respondeu Fulgêncio, depois de um momento. Tinha a testa coberta de suor e começava a arrepender -se de não ter vindo armado. O negro olhou-o com ar de riso : - Você é daqui? - Não senhor. - De onde é? - De Lençóis. - Bem estou vendo - continuou o negro. E mentindo : - Esta pedra não tem boa formação. É um chapéu-de-frade. Como é que você quer três contos por ela? Ela vale, quando muito, um conto e quinhentos. - Só posso vender por três contos - respondeu Fulgên cio. E de tal maneira amarrou no preço, obedecendo as instru ções recebidas, que o negro deixou de insistir. Sabia que o diamante valia o dobro, e se teimara na oferta inicial fora so bretudo por não dispor no momento da importância necessária. Para comprá-la pelo preço pedido, teria de ir à praça naquela mesma noite, a fim de revendê-la para pagar ao garimpeiro. - Tome mais uma cachaça - disse. Fulgêncio tomou outra dose, numa obediência instintiva ao convite. O negro bebeu com ele. Depois voltou à carga: - Quer dizer que você não b aixa nem um tostão? - Eu só posso vender por três contos de reis - respondeu o garimpeiro. Zé de Peixoto coçou a cabeça : - Está certo. E depois de uma pausa: - Você quer receber o dinheiro agora ou quer levar uma parte e vir buscar o resto amanhã? Fulgêncio procurou justificar sua exigência. - Eu estou pedindo pra receber todo agora - disse não é por nada não. É porque eu tenho que voltar hoje mesmo pra Lençóis. Deixei o sócio esperando por mim, e quero apro veitar a Lua pra viajar. De madrugada, se Deus quiser, eu estou batendo na porta dele. Se não fosse isso . . . - Está certo - atalhou-o Zé de Peixoto. 138
E levantando-se : - Fique me esperando aqui, que eu vou na praça rece ber o dinheiro de uma dívida . . . Volto já. Fulgêncio sentiu um alívio. Vendo o negro dirigir-se para o cômodo da frente, alto, os ombros largos, os braços musculo sos, não mais teve medo dele, embora lhe visse na cintura o parabelum com que atirava tão bem, porque o que ele enxer gava agora não era mais o negro Zé de Peixoto - e sim um defunto caído de borco nas areias do Beco da Lama. - Me espere aqui, Peba - disse o jagunço depois de vestir o paletó. - Eu vou na praç a e volto já. Pôs o chapéu e saiu apressadamente. Peba voltou-se para Fulgêncio : - A pedra é grossa? - Não. É um mosquito. - Você vai sair? - disse ainda Peba, ao ver Fulgêncio dirigir-se para a porta. E tirando o cigarro da boca: - Zé não falou pra você esperar por ele aqui? O outro parou, desconfiado; o coração batia-lhe com força. - Não vou sair não - respondeu. E arranjando uma desculpa: - Vou só verter água e volto já. Quando se viu fora da venda, desembestou pelo barranco acima que só foi tomar fôlego quando chegou na estrada dos Bichinhos. •
Ao encaminhar-se para a pinguela, Zé de Peixoto já não se lembrava de Peba nem de Silvério, nem do corpo amigo de Joana Magra, que o esperava para o amor. Tinha o pensamen to inteiramente voltado para a pedra que levava no picuá, e pouca importância estava ligando para o mau resultado no ga rimpo. O diamante era de primeira qualidade, podia dar, no mínimo, seis contos de reis na praça, e ele fazia os seus cál culos mentalmente. Revendendo-o ao médico por quatro con tos, reduziria o seu lucro, era verdade, mas proporcionando ao seu protetor uma vantagem de dois contos, sairia ganhando indi retamente. Por um momento, considerou que essa vantagem era demasiado grande, e que Dr. Marcolino bem que podia ficar satisfeito com a metade. Entretanto, como o sabia interesseiro, e não queria sacrificar sua ligação com ele, sobretudo agora 139
que Quelezinho regressara, procurou reprimir a inoportuna idéia. Prevaleceu a primeira intenção, que lhe pareceu extremamente generosa, e mais uma vez regozijou-se com a compra da pedra. Sentia-se tranqüilo, senhor de si, e já imaginava o efeito que o diamante iria causar no ânimo do médico, ao mesmo tempo em que pensava nas palavras que lhe diria ao chegar ao sobra do. De início, falaria sobre o garimpo, observando-lhe que era de muito futuro, apesar de nada h aver produzido na apuração daquela semana. Em seguida, depois de alegar o mau movi mento do sábado, diria que tudo não estava perdido, e reti rando o picuá do bolso, quando ele menos esperasse, mostraria a "pechincha". O expediente afigurou-se-lhe particularmente bem imaginado, causando-lhe uma verdadeira sensação de des coberta. Além disso - convinha - o conto de reis que lhe tocaria, segundo os seus cálculos, dava para salvar as despesas da garimpagem, sobrando ainda alguma coisa. Eram dois inte resses acomodados, graças àquela pedra que caíra como que do céu no sábado de negócios fracos, e ele sorriu intimamente, sa tisfeito com sua própria astúcia. Ao levar a mão ao bolso para apanhar a carteira de cigarros, seus dedos tocaram no picuá, e ele lembrou-se de outro detalhe a pôr em destaque. Era preciso, durante a conversa que iria manter com o médico, deixar bem claro que não ignorava o valor exato da pedra, a fim de valo rizar mais ainda a margem de lucro oferecida. Com isso, teria ela a significação que desejava, que era a de manifestar des prendimento quando se tratasse de negócios com o seu prote tor, e testemunhar-lhe gratidão. Acendeu o cigarro, e no rosto perpassou-lhe, de leve, um sorriso, que denunciava sua expecta tiva confiante, sua esperança e fé íntima no plano que ia pôr em execução. Sob a pinguda desciam as águas do rio. Chega vam, aos seus ouvidos, rumores distantes e confusos. A Lua subia no céu azul, de nuvens esparsas, e o capinzal ondulava ao vento. Na noite calma, as casas eram pontos luminosos dis persos. Deu os primeiros passos no areão : a amendoeira derra mava uma sombra longa e negra no beco deserto. XXV
A voz cochichou no alto da amendoeira : - É vem ele agora. Três dos jagunços achavam-se instalados nos galhos da árvore, como se estivessem numa espera-
outros, inclusive Adalberto Boca-Torta, Manuel Cinco-Horas e Otacílio de Marianinha, que usavam armas compridas, tinham ficado embaixo, entrincheirados no muro. Através dos ramos que pendiam sobre este, ocultando-lhes as cabeças atrás das fo lhas, viram o negro entrar no beco. O delegado, que já começa va a estranhar a demora , receando um possível contratempo na execução das ordens que dera a Fulgêncio, aproximou-se do muro ao ser avisado. Tinha uma expressão tensa, e, ao divisar de longe Zé de Peixoto, encontrou dificuldade em manter-se calmo. Recuou instintivamente, dominado pela visão do negro andando pesadamente sobre a areia, como que maior e mais corpulento à luz da lua. Levou a mão ao cabo do revólver, procurando recobrar a certeza de sua segurança, mas esta só lhe pareceu convincente quando se lembrou de que estava acompanhado de nove homens armados. Com o cano da repe tição apoiado contra o muro, Manuel Cinco-Horas lhe disse em voz baixa : - Ele parou . . . Está conversando com uma mulher que passou ainda agorinha por aqui. Sem se atrever a olhar de novo, colado ao tronco da amen doeira e com a respiração opressa, o delegado Esquivei teve um momento de irritação. - Que mulher? - perguntou. O jagunço respondeu : - É uma mulher-dama . . . Conheço ela de vista. O outro homem guardou um momento de silêncio. Depois disse : - Estão conversando ainda? - Estão. Agora ele está dando um cigarro a ela. Embora tivesse bebido bastante, o delegado se mostrava deprimido, ao contrário do que comumente acontecia. Aos pou cos, porém, veio do fundo de seu ser uma espécie de contração, e a garganta tornou-se-lhe seca e o rosto desfigurado. Teve uma súbita vontade de fumar; mas, na impossibilidade de fazê-lo, sob pena de denunciar sua presença no local, quebrou nos den tes um pau de fósforo em pequeninos pedaços, dando sinais ma nifestos de inquietação. Seu rosto se cobrira de uma agressivi dade muda e, no seu coração, se alternavam o ódio contra a mulher desconhecida e o desespero de ver retardada a tocaia. Não pôde mais conter-se : - Em último caso, atirem nos dois. Com um movime.nto da língua, o jagunço mudou a masca de fumo de um lado para outro da boca. Ficara combinado 141
que o primeiro tiro seria dele, valendo como sinal para a des carga imediata dos outros. - É aJ.Tiscado - respondeu. - Ele está muito longe e eu posso errar a pontaria. Involuntariamente, o delegado lançou as vistas para o mu ro, como se procurasse avaliar-lhe a resistência. Errar a ponta ria? Deixando transparecer nos olhos, de relance, o efeito pro vocado pela observação do jagunço, logo achou absurda a re pentina idéia que teve, de que Zé de Peixoto pudesse escapar, pois além de Manuel Cinco-Horas haveria oito homens a atirar contra ele. Quanto à hipótese de uma reação, não teria nenhu ma importância, uma vez que suas balas não iriam atravessar o muro que o protegia, embora já tivesse verificado que este não era tão alto como desejava. Contudo, disse ao jagunço Manuel Cinco-Horas : - Procure dar um tiro mortal. - Vou atirar nas virilhas dele - respondeu o outro. E logo em seguida baixou mais a voz. - Pronto, a mulher seguiu para a pinguela. É vem ele. E baixando ainda mais a voz, como se sentisse uma compressão na garganta: - É vem ele! O delegado deixou cair a caixa d e fósforos no chão. Cur vando-se para apanhá-la, manteve-se durante um instante nes sa posição, e, quando de novo se ergueu, levantando a cabeça na direção da árvore, ouviu os passos do negro do outro lado do muro - passos lentos e compassados na areia. No alto da amendoeira, um dos homens teve ainda a pre caução de olhar para os lados da praça, a ver se vinha alguém em sentido contrário. Não vinha, mal chegava até ali o rumor noturno das ruas, uma ou outra gargalhada de mulher, vozes confusas de homens, sons de realejo e os latidos de um cão e no beco deserto os passos que se aproximavam. O ar estava parado. Tão grande era o silêncio que reinava entre os jagun ços, que eles como que ouviam bater os próprios corações e latejar os pulsos que empunhavam as armas. Estas se acha vam firmemente assestadas na direção do negro, cujo vulto se destacava à luz da lua. Frio, preciso, calmo, o primeiro jagun ço atirou. Seguiu-se uma descarga tremenda contra o homem mortalmente ferido. O grito que ele soltou, porém, ao sentir-se colhido de surpresa, foi o de um animal enfurecido. Reunindo todas as suas forças, tentou sacar o parabelum para se defender. Foi quando uma nova descarga estrondou. Em seguida - mais 142
outra. Viram-no então contrair a mão sobre as virilhas, ajoe lhar-se, torcer o corpo, e, afinal, cair de borco nas areias do beco. Outra descarga então estrondou : a das portas e janelas fechadas com estrépito, em meio à confusão dos gritos e corre rias. O tiroteio inesperado, violentando a paz da noite, fez a cidade estremecer como uma só pessoa. Houve primeiro um instintivo movimento de defesa coletiva : todos se refugiaram nas casas mais próximas, levando de roldão o que encontravam pela frente. Pôr-se a salvo era tudo - e nessa ânsia cega pouca importância tinha que os homens pisassem crianças, que moças desmaiassem e mulheres chamassem pelos maridos ausentes, por cuja sorte temiam. Ninguém tinha ouvidos a não ser para os tiros, e comprimindo-se nos corredores, nos quartos e salas, e até nos fundos de cozinha das residências postas em tumulto, e nas casas comerciais invadidas no corre-corre desordenado, a população foi dominada pela incerteza pânica do que estava acontecendo. Na calçada do bilhar de Ziu - contou-se depois - uma velha escorregou ao tentar abrigar-se antes que fechas sem a porta, e toda uma multidão passou sobre ela em tropel. O sobressalto foi geral ao rumor dos tiros. E, por um momen to, a cidade emudeceu e suas luzes se apagaram. Mais quatro tiros ainda foram ouvidos depois da última descarga : saltando o muro em companhia dos jagunços, num assomo de irracional ferocidade, o delegado Esquivei alvejou seguidamente a cabeça inerte do negro. O resto foi rápido. Re vistou-lhe sofregamente os bolsos à procura do picuá e, encon trando-o, trouxe-o de envolta com algumas cédulas amarfanha das, fugindo em seguida. Quem estivesse no Ribirnba, poderia ver um grupo de homens correndo desabaladamente pelo areão, até desaparecer nos fundos da Casa da Câmara : a luz da lua era demasiado clara para que eles não fossem notados . •
Um homem que saía para procurar o chinelo perdido na correria, outro que voltava para casa a fim de tranqüilizar a família, uma mulher que só agora se lembrava de ter quebrado a garrafa de querosene ao fugir pelas calçadas cheias de altos e baixos d a Rua do Curral, e que de novo se encontrava com a companheira desgarrada no meio da confusão, indo esbarrar, não sabia como, no quarto de outra com quem até não se dava bem - a cidade foi aos poucos voltando à normalidade. Por143
tas e janelas se abriram, novamente as casas se iluminaram e as ruas se ·encheram de gente, e, de modo geral, os homens se dirigiram, em primeiro lugar, para a venda ou botequim mais próximo, garantindo, depois de beberem a segunda cachaça, não terem saído do lugar, que tiro não era coisa de fazer nin guém correr. As mães de famílias, vendo os seus reunidos, afi nal, sob o mesmo teto, acendiam velas defronte dos nichos aber tos, cumprindo as promessas feitas na hora da aflição. Ao mes mo tempo, um movimento de natural curiosidade levava os mais afoitos ao Beco da Lama, de onde tinham vindo os tiros afirmavam - e não tardou que a notícia se espalhasse por toda a cidade: - Mataram Zé de Peixoto. Um homem explicou muito agitado : - E u fui o primeiro a chegar . . . Encontrei um cachorro de porta de açougue lambendo o sangue dele. Coisa horrível. Quando risquei o fósforo, o negro estava com os miolos do lado de fora e as virilhas varadas d e bala. Muitos não quiseram ver, outros chegaram atrasados, quan do o cadáver já tinha sido transportado para a casa de Joana Magra, mas os comentários foram gerais, todos se ocupando, nas suas conversas, da figura do negro. Sua crônica foi evoca da, seus feitos no Coxó lembrados, e também suas arruaças, e não mais se falou de outra coisa naquela noite, em todos os grupos e em todas as casas. Morto na emboscada, e agora esten dido na marquesa de Joana Magra, um grande lençol cobrindo-lhe o corpo varado de tiros, a garirnpeirada reunida na sentinela, o negro estava presente na lembrança de todos os habitantes e nos gritos d a amásia inconsolável. A notícia chegou ao Ribim ba e foi recebida por Silvério com sobressalto. Mais tarde, quan do a população se recolheu para dormir, e só havia movimento na sentinela, a presença enorme de Zé de Peixoto encheu os quartos escuros e as ruas desertas. Todos os pensamentos esta vam voltados para ele. A cidade foi sua naquela noite.
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TERCEIRA PARTE
I
F AZIA APENAS três meses que o Promotor Oscar do Soure estava na cidade, onde fora recebido com frieza hostil. Era aque la sua primeira investidura, tendo vindo preencher uma vaga já por muitos rejeitada. Esta se dera por morte do seu anteces sor, em conseqüência de um ataque de uremia, embora se mur murasse o contrário nos corredores do Tribunal, em Salvador. Acreditava-se qu e o outro Promotor morrera de "traumatismo moral", abandonado ao seu destino de autoridade desprestigia da pelos poderes políticos da comarca, sem garantias de qual quer espécie no exercício de suas funções. Ao Dr. Oscar tinham dito: - Ele não teve forças, naturalmente, nem ninguém teria, para suportar tamanha humilhação. Foi coisa de meter vergo nha a cachorro. Afirmara isto um antigo professor do Dr. Oscar, homem de modos um tanto rudes, que acrescentara, enquanto folheava um jornal: - O próprio réu apareceu-lhe um dia em casa, de gar rucha na cintura, e exigiu, em nome do coronel, seu protetor, que ele lhe entregasse o processo. Ê como eu já lhe disse : você vai para uma terra de bandidos. Se alimenta sonhos com rela ção à carreira que abraçou, trate de pô-los de lado. Tenho bas tante experiência para lhe dizer isto. E num tom desdenhoso: - O sertão está transformado num covil de bandidos. A Justiça não vale nada. Outros, porém, a quem ele falara dessas amargas observa ções, manifestaram-se de maneira diversa. - Não se deixe influenciar pelas palavras de um advo gado fracassado, que nada mais espera da vida - disseram-lhe. - Aceite o cargo, pois o essencial é você iniciar sua carreira, e quando se trata disso não interessa saber como nem por onde. 147
Foi o que ele fez, em nome do senso prático e do desejo de logo começar a trabalhar, embora alimentando a idéia de uma permuta imediata. Animado por esse caráter provisório que emprestava à sua decisão, arrumou a mala e marcou o dia da viagem, entregando-se com indiferentismo à sua aventura nas Lavras. Nenhum entusiasmo sentia pela nomeação em si mes ma. De qualquer modo, porém, recusou-se a entrar em contato com Quelezinho, então em Salvador, conforme o tinha acon selhado um colega. Achou de bom aviso pôr-se em guarda, evi tando favores de políticos da comarca, e com isso os decorren tes compromissos de ordem particular, estranhos às suas ativi dades profissionais. Estas podiam ser perturbadas por aqueles, e ainda que sua estada fosse por pouco tempo, coisa de emer gência, de acordo com o que pensava, colocava acima de tudo sua independência. Com tais propósitos, a que não faltava um vago sentimento de neutralidade, chegara num sábado a Anda raí, hospedando-se na pensão do árabe Mansur. Entretanto, mal apeara, depois da longa viagem a cavalo, já o Dr. Canuto Ru fino, Juiz de Direito da comarca, vinha apresentar-se e cum primentá-lo, levando-o em seguida para casa, sob o pretexto de que a pensão era uma verdadeira espelunca, onde "o colega seria devorado pelos percevejos" . •
Foi hóspede do Juiz durante uma semana, transferindo-se depois para a mesma casa onde morara o antigo Promotor um velho sobrado que h avia na praça, com a cozinha atravessa da no beco que dava para o Apertado-da-Hora, local de freqüên cia suspeita. Não estranhara a vida monótona, o paradeiro d a pequena cidade, com jumentos soltos n o meio das ruas e um ou outro sujeito de pé nas esquinas, porque nascera no interior e no interior passara grande parte da existência, conhecendo bem aquela pasmaceira. Entretanto, o ambiente político não o animava a ficar, e por isso irritou-se quando o procurador lhe escreveu aconselhando a fazê-lo. A carta dizia: "Não tenha pressa em sair daí. Meta-se no comércio de diamantes, que tem enriquecido muita gente, segundo se propala, e depois a per muta será fácil". Nos seu planos, ainda na Capital, talvez por agir com alguma precipitação, Dr. Oscar não pensara nesse importante detalhe. Como proponente da permuta, e levando em consideração a má fama da comarca lavrista, teria de ofe recer uma boa compensação em dinheiro, sem o que não con148
seguiria interessar nenhum colega de outra promotoria. E ago ra vinha o procurador aconselhá-lo a entrar no comércio de diamantes, como única solução para o caso: sendo minguados seus vencimentos, só em atividades extraprofissionais poderia arranjar o dinheiro a ser dado de vantagem para realização do seu intento! Sentiu-se contrariado a princípio, ante a perspecti va de ter de se demorar por tempo indeterminado em Andaraí, e da contrariedade passou ao acabrunhamento, quando conside rou a natureza comercial de que se revestia a proposta de troca de comaroa. Restava, naturalmente, outro meio que tornaria viável sua mudança, mas este lhe era tão inacessível quanto o primeiro, pois não dispunha de elementos na política com que pudesse forçar uma transferência por promoção. Na vida soli tária que levava em Andaraí, em companhia de uma velha que o Dr. Canuto lhe metera em casa como empregada, foi aos pou cos dominado pelo desânimo. Em cartas dirigidas à família, lon gas cartas com que enchia as horas de ócio, mostrava-se por vezes pessimista, considerando inútil o tempo gasto com os estu dos. Respondiam-lhe com palavras de estímulo, observando-lhe que todo início de carreira era difícil, e que ele devia ter pa ciência para esperar os dias melhores que haveriam de vir. Nada disso, porém, o confortava, pois seu estado d e espírito era agra vado pelo indiferentismo com que o tratavam na cidade, indi ferentismo que lhe parecia calculado e chegava a tomar o aspec to de uma manifestação de repúdio. Por outro lado, só muito raramente saía, uma ou duas vezes por semana, para ir à casa do Juiz, visitas que não eram retribuídas, porque o Dr. Canuto "tinha horror a subir escadas". - O coração já não agüenta, seu colega - justificava-se. Como não havia quase trabalho, a não ser um ou outro processo sem importância que o oficial de justiça vinha trazer -lhe para despacho, passava os dias lendo jornais, ali recebidos com grande atraso, folheando velhas revistas forenses, mas na da conseguia prender-lhe a atenção. Às vezes, chegava à janela, e vendo passar Quelezinho, de chapéu-chile enterrado na cabeça, só ocasionalmente cumprimentando-o, no que era imitado pelos demais elementos de destaque na política municipal, um senti mento de impotente revolta se apoderava dele. Sentia-se ferido no seu amor-próprio, diminuído aos seus próprios olhos, rebe lando-se contra a situação de inferioridade e desprestígio a que se achava reduzido, e que em certos momentos lhe parecia irre mediável. À noite, com a galhofa que havia no bilhar de Ziu, onde os boêmios se reuniam para beber e jogar até altas horas, 149
cada gargalhada deles lhe chegava aos ouvidos como uma zom baria, e só muito tarde conseguia conciliar o sono. Vez por outra, porém, estando com melhor disposição, debruçava-se na janela para fumar. E os sons de algum violão em serenata pelas ruas, enchendo o silêncio das madrugadas, faziam com que as circunstâncias e os acontecimentos de sua vida se tornassem co mo que vagos e imprecisos, e uma espécie de secreto entorpeci mento o dominasse. +
Andaraí, Dr. Oscar, é a terra dos diamantes, mas tam bém pode ser chamada de terra das lombrigas. Tenho feito as minhas observações. É lombriga por toda parte. Na farmácia, sem exagero, avio uma média de dez vermífugos diários. Todo mundo tem lombrigas na cidade. Acho que é da água - disse ra-lhe Carvalhal, o farmacêutico, alto, magro, de costeletas, uma das poucas pessoas que o visitaram, num domingo à noite, enquanto o povo passava para ver o 3 .0 e o 4.0 episódios do fil me em série Nas garras dos leões, anunciado como tendo "por rada como corno". Só aparecera uma única vez, porém, com o que Dr. Oscar se sentira aliviado, porque a palestra d o far macêutico lhe causara verdadeiramente náuseas. Também fora vê-lo o Dr. Marcolino, em visita rápida, cumprimentando-o em nome do Cel. Germano, do que ele duvidou, parecendo-lhe ter surpreendido, na atitude aparentemente cortês do médico, um simples impulso de curiosidade por sua vinda. Assim, desde que se instalara no sobrado, tornou-se completo o seu isolamento. Quando tinha necessidade de conversar com alguém, impelido por um natural desejo de comunicação, o recurso era mesmo ir sentar-se estupidamente na cozinha, ao lado do fogão, e dar dois dedos de prosa oca com a velha Ifigênia : - era este o nome da empregada. Nessas ocasiões, chegava a sentir falta dos dias passados em casa do Juiz, embora ali tivesse sido obrigado a ouvir o colega discorrer enfadonhamente sobre sua criação de canários, à hora do almoço e do jantar, falando-lhe dos trinados do Clemenceau e dos estalos do Napoleão, ah, seu colega! ca narinho-da-terra que estava de muda, mas que qualquer dia da queles ia abrir o bico que era uma beleza! Não tardou, porém, e um homem amarelo, de óculos, sem dentes, sempre com a barba por fazer e vestindo uma horrenda roupa cáqui, passou a freqüentar regularmente o sobrado, fa zendo-lhe companhia. Era o escrivão Pimentel, que lhe parece150
ra intragável no primeiro momento, para, no fim de algum tem po, olhá-lo com indulgente simpatia. Por seu intermédio, e atra vés dos números de A Evolução, hebdomadário editado na ci dade, que o escrivão lhe trazia invariavelmente aos domingos, passou a inteirar-se do que ocorria no município, ficando a par da existência de "um tal Valadão, que devia parecer-se com as coisas que escrevia"; de "um vago coletor Barroso, a quem A Evolução chamava de "aquânime exator"; de "um tal D. Costa, poeta e comprador de diamantes"; enfim - de todas as figuras d e importância da sociedade local, por ele englobadas num único indivíduo e numa mesma onda d e surda e irreme diável antipatia. •
O Pimentel é uma boa alma? Nada disso, Seu Oscar. Ele não passa de um pobre d esgraçado - repetiu o telegrafista Nascimento, na sua quarta visita, com aquele ar desabusado que tanto escandalizara o Promotor ao conhecê-lo. Era o seu mais recente contato com pessoa de Andaraí, em circunstâncias de mera rotina social, mas entre os dois já se estabelecera tão fraternal camaradagem, que a ambos parecia se darem desde muito tempo. Tudo correra, entretanto, por conta de urna identidade de atitude em relação ao meio em que viviam. A essa conclusão chegou Dr. Oscar depois da pri meira visita do telegrafista, quando o ouviu chamar de "pau -d'água reles" a Dr. Marcolino. Estranhando que semelhante co mentário partisse daquele sujeito que lhe aparecera no sobrado de bengala, de roupa mescla e colete branco, com um maciço aspecto de conferencista, procurou indagar, levado por natural curiosidade, a respeito de sua vida. - Quem sabe da vida de Nascimento? - dissera-lhe o escrivão Pimentel. - Ele vive metido em casa com a mulher e os filhos, passando, às vezes, um ano inteiro sem sair, tanto que eu fiquei espantado, doutor, confesso, quando o senhor me disse que ele tinha estado aqui. Nascimento é meio esqui sito. Era uma informação vaga, mas bastou ao Promotor para compreender que se tratava de um homem que repudiava aque le meio, e que o procurara com o evidente intuito de desabafar. Isto foi confirmado posteriormente, ao ouvir dele estas palavras: Até que enfim, Seu Oscar, depois de seis anos, encon151
trei alguém com quem pudesse conversar neste calcanhar-de -judas! O calcanhar-de-judas era Andaraí, de cujo povo ele se isolara num retraimento gerado em calada revolta, ao ponto de, por vezes, atirar os telegramas da janela do sobrado, aos desti natários que os iam aparar embaixo, a fim de impedir que mui tos deles lhe subissem as escadas da casa. Mas embora se desse com todos, um traço comum o tinha aproximado inicialmente do Promotor, que não se dava com quase ninguém: a fria indi ferença com que eram olhados os dois, individualmente, na ci dade. Em desabafos recíprocos, as visitas entre eles se amiuda ram, o Promotor indo com freqüência ao telégrafo e ele à casa do Promotor, de tal maneira que o Juiz chegou a queixar-se de que "o colega andava sumido", enquanto os comentários no bilhar de Ziu eram de outra natureza. - Estão amigados - diziam. O que levou o coletor Barroso a duvidar da masculinidade do Dr. Oscar, que ainda não procurara mulher desde que ali chegara, segundo tinha apurado, e que "dos dois era quem devia estar dando". •
Nascimento segurou o exemplar de A Evolução com a pon ta dos dedos : - Você também lê este lixo? Foi o Pimentel que me trouxe hoje - respondeu Dr. Oscar. Em todo o caso, vale a pena ler o que escreve o diretor desta droga - continuou o telegrafista, depois d e acender o charuto. - Não é com facilidade que a gente encontra uma cavalgadura como o Valadão. Se ele ficar de quatro pés, nasce rabo. O Promotor sorriu. Já se habituara com o tom arrasador da palestra do amigo, não mais estranhando suas expressões de incontido desdém. Nas conversas que entretinham, e que ver savam ordinariamente sobre pessoas de Andaraí, o coletor Bar roso era por ele incisivamente tachado de "rato". A seu ver, o Juiz de Direito não passava de "um poltrão". Do capangueiro Teotônio, não vacilava em dizer que se tratava de "um crápula de pai e mãe". Definia o Carvalhal como sendo "um escro talhão", enquanto o tabelião Romualdo, em cuja rotunda figu ra o Promotor ainda não pusera os olhos, recebia a sumária 152
classificação de "pederasta". Por aí afora, chegava ao árabe Mansur, a quem o telegrafista chamava impulsivamente de "gringo porco e ladrão" : - Roubou noventa contos de um hóspede, Seu Oscar. Um patife! E contara que o hóspede se chamava Ostrowsky, um judeu russo que viera comprar diamantes em Andaraí, e cuja valise, onde estava guardada a referida importância, desaparecera mis teriosamente do quarto de tabique da Pensão Grande Líbano. Necessitado de dinheiro como estava, o Promotor olhara-o com ar de pasmo quando o ouviu mencionar tão vultosa soma, e, sob pressão de íntima e repentina ansiedade, indagara acerca das providências tomadas por ocasião do roubo, ocorrido dois anos antes. - O judeu quase fica doido - continuara Nascimento. - Incomodou até o Chefe de Polícia. Como se tratava de um verdadeiro escândalo, as autoridades forjaram um inquérito pa ra salvar as aparências, tendo por finalidade inocentar Mansur, que é elemento da política do Cel. Germano. O roubo foi atribuído a um pobre-diabo que trabalhava na pensão, e em quem a Polícia desceu a borracha sem pena, com o fim de obter uma confissão. O resultado é que o judeu perdeu o dinheiro, porque o inquérito deu em droga, e tudo ficou como se nada houvesse acontecido. Um ladrão, Seu Oscar! Conheço essa cam bada há seis anos. Sei dos podres dessa gente toda. O gringo é um ladrão! - Mas ele ficou com o dinheiro todo? - fora a última pergunta do Promotor. O telegrafista enxugou o suor da testa e respondeu : - Há muitas versões. Dizem que ele rachou a bolada com Quelezinho. E num assomo de cólera: - É assim que essa gente fica rica, Seu Oscar. Rouban do! É debaixo de roubos de toda espécie que Andaraí cria esta fama de lugar bom pra se ganhar dinheiro. 11
O Promotor continuava sem idéias claras a respeito fosse do que fosse. O mesmo sentimento de consciente e acabrunha dora inutilidade assaltava-o com freqüência, embora o conví153
vio de Nascimento lhe tivesse despertado um certo ânimo para encarar com altivez a situação. Por vezes, mostrava-se inclina do a aceitá-la, como uma salutar experiência para a sua car reira, mas, não raro, sentía ímpeto de impor sua autoridade sob qualquer forma ao povo de Andaraí, de tal maneira se conta giava dos assomos de revolta do amigo. Estavam agora mais uma vez juntos, conversando na ampla sala do sobrado, enquan to as sombras da noite envolviam lentamente a cidade, fazendo desaparecer, ao longe, os negros e pesados contornos da serra. Ifigênia veio acender o candeeiro. - Nascimento janta comigo - disse-lhe em voz baixa Dr. Oscar. E voltando-se novamente para a visita : - Pois é, Seu Nascimento. Eu não sei, afinal, o que fazer. Recebi hoje outra carta do meu procurador, em que ele me co munica a proposta de um colega que está interessado na per muta, mas que pede dez contos de volta. Os ratos começavam a mover-se precipitadamente no for ro de pano da sala, contra o qual se projetava a luz do candeei ro. O telegrafista, já habituado ao ruído, acendeu com lentidão o charuto e perguntou : - Você vai aceitar? - Não posso - alegou o Promotor. - Onde é que eu vou arranjar dez contos? Só se fosse em algum trabalho de advocacia . . . - Então já sabe que você não arranja - disse Nasci mento. - Aqui não há ninguém a quem você defender e muito menos o que você advogar. Que poderia você fazer em matéria de feitos cíveis? O coronel é quem resolve tudo. A razão está sempre com ele. E depois de se levantar para cuspir : - A advocacia é um luxo dos centros civilizados. O co ronel já está defendido por natureza. Dr. Oscar esboçou um sorriso. - Você às vezes me sai um reacionário de quatro costa dos - observou. - Eu? - Sim . . . Sei que você diz a verdade quando afirma que aqui não há campo para a advocacia, mal, aliás, generalizado em todo o sertão, onde predomina a mentalidade patronal. Con cordo que aqui um advogado nada tem a fazer, em virtude de quase todas as serras e garimpos pertencerem ao coronel, e de todas as questões serem resolvidas na base das precárias rela154
ções existentes entre o trabalhador e o proprietário. Concordo com tudo isso. Mas daí a você dizer que a advocacia é um luxo dos centros civilizados, francamente, Seu Nascimento, me parece um absurdo. - Pois a mim não parece. - Não é possível! - protestou Dr. Oscar. - Será que você não reconhece, apesar de tudo, os benefícios que adviriam da defesa dos interesses desses garimpeiros que vivem escraviza dos aos donos de serras? O telegrafista mastigou a ponta do charuto. - Você não me compreende, Oscar . . . - disse. Sentou-se e acrescentou : - Eu sou contra os ricos, mas isso não quer dizer que eu tome o partido dos pobres. Para mim uns e outros são iguais. Que é um homem rico senão um homem pobre com dinheiro? O Promotor coçou a cabeça. - Ora, Nascimento! - exclamou. - Não sei . . . Você me sai com cada uma que eu fico arrasado. - É o que eu estou lhe dizendo - insistiu o telegrafista. À luz do candeeiro, sua fisionomia apresentava uma tran qüilidade que evidentemente contrastava com o ímpeto de suas palavras. De repente, contraindo a mão sobre a mesa, disse, num tom ao qual não se podia negar sinceridade: - Seu Oscar, eu não acredito no gênero humano. Está compreendendo? Já não sei separar os homens dos canalhas. Mas foi interrompido por lfigênia, que entrava na sala para avisar que o jantar estava na mesa. Dr. Oscar bateu ama velmente no ombro do outro : - Você hoje está num grande dia, Seu Nascimento disse, com uma bonomia que implicava aprovação. - Mas dei xemos o gênero humano em paz, que está à nossa espera, lá dentro, o magro pirão de um pobre Promotor . •
- Voltando ao caso da permuta - disse Dr. Oscar, enquanto se servia de um pedaço de lombo, que era sábado, dia da disputada carne fresca nos dois únicos açougues da ci dade, com cachorros rosnando na porta e mulheres-damas asse diando garimpeiros por causa de meia-libra de fígado - nun ca me passou pela cabeça entrar no comércio de diamantes. Mas, que diabo! será que não há nenhum colega que tenha idéia de fazer o contrário? 155
- Que tenha idéia de entrar no comércio d e diamantes? indagou Nascimento, erguendo o garfo cheio. - Sim. Isto naturalmente tornaria viável a permuta. Nascimento descansou o garfo no prato. - Você precisa ser mais sensato, Oscar - disse, levan do a mão à cabeça. - Apesar da fama de Andaraí ser a de um lugar onde se fica rico da noite para o dia, o que faz com que muita gente venha esbarrar aqui, naturalmente que há quem compreenda o exagero dessa fama. - Você se refere à má tradição do lugar? - Não - continuou o telegrafista. - Não me refiro propriamente a isso. E cruzando os braços sobre a mesa: - Quem é que vai se aventurar a chegar aqui de mão abanando e entrar no comércio de diamantes para fazer con· corrência aos donos dos garimpos onde eles são extraídos? - O campo é vasto . . . - insinuou fracamente o Pro motor. - É o que você pensa - contestou Nascimento, reto mando o garfo. - O campo é vasto para os pobres desgraça dos que vêm para cá pegar no pesado. Deixe que eu lhe diga, Oscar. Tudo lhe parece fácil, desculpe a franqueza, porque você encara a situação através do seu interesse em trocar de comarca. Só por isso. E mastigou ruidosamente a sua garfada. Não é bem isso. - Acho que sim. - Não é - protestou o Promotor. O telegrafista encolheu os ombros. - Veja o meu caso - continuou, já em outro tom. Estou aqui há seis anos. Tenho comprado o meu diamantinho de vez em quando, que eu não sou peixe-podre, mas o que é que eu tenho ganho com isso? Sou porventura rico? Não passo de um empregado do Governo. Vivo nas Lavras, mas é como se não vivesse. Seus diamantes nunca me puseram para a frente. Agora eu lhe pergunto : será que você pensa que algum colega seu vá precisar de seis anos para compreender esta coisa tão simples? - Qual? - Que os diamantes das Lavras n ão andam rolando pelo chão para qualquer sujeito chegar c encher os bolsos com eles, mas que são, isto sim, extraídos em terrenos de propriedade de dois ou três sujeitos a quem eles necessariamente pertencem? 156
Que os diamantes das Lavras, em resumo, têm donos, e que esses donos os defendem com unhas e dentes? Entre duas garfadas, o Promotor procurou argumentar : - E os terrenos devolutas? os terrenos do Governo? do Estado? - Não passam de mera retórica dos delegados de terras e minas - respondeu calmamente Nascimento, cortando um pedaço de carne. - Terrenos devolutas significam terrenos po bres, imprestáveis, que não produzem diamantes nem a poder de reza. Fique certo disso - continuou. - Quando o terreno é rico, aparece logo um dono, que para isso é que existem os cartórios. Dr. Oscar sorriu com algum embaraço. Mas Nascimento não lhe deu tempo para responder, acrescentando, à maneira de conclusão : - Só com muito dinheiro poderá alguém enfrentar o co mércio de diamantes com possibilidade de êxito. E esse alguém, é lógico, não vai ser um pobre promotor que recebe dez contos de volta por uma permuta, e que nada entende da engrenagem desses capangueiros que andam por aí. O Promotor deu mostras de impaciência. - Então quer dizer que eu não sairei daqui, a não ser que abandone a carreira? - disse precipitadamente. Nascimento abanou a cabeça. - Nada disso - respondeu. - Continue a viver como está vivendo, isolado dessa gente toda, que sua remoção não tardará a vir. É questão de dar tempo ao tempo. - Bem . . . Reconheço que eles não têm interesse na per manência de uma autoridade que não transij a com eles - con veio o Promotor. - Não é bem isso - observou o telegrafista. - Não é uma simples questão de transigir, de ser tolerant;:: ou indiferen te, que pouca importância eles estão ligando a quem quer que seja. Trata-se de coisa muito pior. E explicou: - Eles só se interessam pela permanência das autorida des que compactuem com as bandalheiras por eles cometidas. Depois encheu o garfo e disse : - Em suma, eles não pre cisam de autoridades, mas sim de cúmplices. Está percebendo? - Quer dizer que você acha que, sob esse aspecto, eu seja indesejável? - Claro - continuou o telegrafista. - Você é mais do ·-
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que indesejável para eles. Sou capaz de apostar como o Que lezinho já está tratando de sua remoção. E inclinando-se mais sobre a mesa: - Fique tranqüilo, como eu j á lhe disse, que você não vai se demorar aqui. Não precisa pensar em permuta. O Promotor cruzou os talheres. Pelas janelas abertas entra va o ar fresco da noite. Mariposas voavam em torno da luz do candeeiro. - E como eles não afastaram você? - perguntou, depois de um curto silêncio. Nascimento deu de ombros. - Ora, Seu Oscar! - exclamou. - Eu sou um mero pas sador de telegramas. E esboçou um sorriso amargo, no qual o outro supôs entre ver um certo desalento. Foi quando uma forte descarga de tiros como que estron dou dentro do sobrado. Em seguida, outra. Depois, o escrivão Pimentel, subindo atropeladamente as escadas, vinha transmi tir-lhe a notícia do assassinato de Zé de Peixoto. 111
Dr. Oscar abriu com enfado o novo número de A Evolução que o escrivão Pimentel deixara ficar com ele momentos antes. Nenhuma nota sobre o crime. Na primeira página, porém, o Professor Valadão noticiava a manifestação feita a Quelezinho no dia de seu aniversário, transcorrido no domingo seguinte à morte de Zé de Peixoto. Referia-se, particularmente, ao discur so pronunciado na ocasião pelo farmacêutico Carvalhal "intérprete dos mais altos sentimentos da sociedade andariense naquela data por todos os motivos grata". "Os mais belos atributos de inteligência do Dr. Otávio Carvalhal não estão, por certo, na sua habilidade na arte de manipular, e menos ainda na dosagem do seu excelente ver mífugo (remédio de efeito comprovado ) , porque vamos encon trá-los, palpitantes de vida, na sua florida retórica de orador. É justamente nesse setor que eles se mostram na sua potencia lidade máxima, auriflamados de graça e encantos." Sem se deter mais tempo no artigo, o Promotor foi encon trar na página 9Cguinte o sempre repetido anúncio da Pensão Grande Líbano (rigorosamente familiar ) , diante do qual não 158
pôde evitar que lhe ocorresse à lembrança o roubo dos noventa contos. Ao lado - notou imediatamente - vinha uma peque na nota assinada com duas modestas iniciais : OS VERMES INTESTINAIS E OS MEIOS DE COMBATtt-WS ti um problema de máxima importân cia na vida Iavrista, o asseio de todas as casas, com as suas paredes rebocadas e caiadas, quintais ou pátios limpos, por mais simples que sejam, evitando destarte um foco de insalubridade. Deve-se também, pela salvação da vida e para evitar as conseqüências desagradá veis dos vermes, em benefício da saúde, contra a opilação e mesmo em prol da salubridade pública, ter-se o cuidado em não fazer dejeções em lugares inapropria dos, principalmente perto das casas; e se o fizer, deverá cobri-Ias com terra, a fim de que os óvulos dos vermes não possam se transform ar em micróbios, livrando assim os entes inocentes de um ar infecto e de um viver triste e insuportável.
o.
c.
"Era a besta do Carvalhal!" Atirando para um canto o exemplar de A Evolução, Dr. Oscar levantou-se e, durante algum tempo, andou em volta d a sala, torcendo as mãos com impa ciência. Ao ser nomeado Promotor de Andaraí, as informações que colhera sobre a cidade - um centro de garimpagem lhe tinham dado a visão de um lugar transformado em turbu lento reduto de aventureiros. Estava longe de ser uma das pa catas localidades do interior que ele conhecia, habitadas por gente que lhe parecera ordeira e laboriosa, arraigada com dig nidade ao meio, e por onde desejava iniciar sua carreira e mes mo residir, levando uma vida modesta e respeitável, que em nada se lhe afigurava medíocre, e da qual era capaz de se orgu lhar. Ao travar relações com Nascimento, este lhe dissera não haver nenhum exagero em tais informações, pois Andaraí era, de fato, uma cidade que apresentava todas as características dos lugares de mineração. "Com as notícias dos garimpos ri cos" - esclarecera - "toda a espécie de gente vem tentar a sor te aqui, e cada forasteiro que chega, sem nada trazer de seu, é mais ganancioso do que o outro." Conversavam pela primei ra vez, e ele fizera sentir ao futuro amigo que lhe tinham cha mado a atenção especialmente para aquele ponto : a afluência, em massa, de gente que não prestava, de gente à-toa, sem pou so nem destino certo, numa instabilidade que resultava em per159
manente agitação, tornando impossível a manutenção da ordem. Nascimento, porém, cujo raciocínio trazia sempre a marca de uma lógica muito pessoal, observara que não se tratava propria mente de uma simples questão de "vir gente que não prestava". - Gente que não presta existe em toda parte - dissera - em maior ou menor proporção. O que acontece com Andaraí é coisa muito pior : é que essa gente que não presta vive aqui exclusivamente em função da ânsia de enriquecer por qual quer forma, e, o que é pior ainda, às vezes enriquece. Bnquanto andava em volta da sala, Dr. Oscar reconstituía mentalmente a palestra que entretivera meses antes com o tele grafista; ao mesmo tempo, rememorava certos episódios ocorri dos anteriormente em Andaraí, e dos quais tivera notícia por seu intermédio. Eram histórias de crimes, de violências cometi das na luta pela posse dos diamantes, a ambição tornando os homens cegos e insaciável a sua sede de ganho; em suma, eram histórias que vinham confirmar as más referências que ele sem pre ouvira a respeito das Lavras, e que tinham formado, em seu espírito, a imagem de um mundo tumultuoso e bárbaro. - Qualquer sujeito que arranja uns 600$000 no garimpo - contara-lhe o escrivão Pimentel - a primeira coisa que faz é comprar uma arma e andar dia e noite apatrochado com ela. É um perigo viver no meio dessa gente. E Nascimento : - O resultado é que a necessidade que cada um tem de se defender, e de andar prevenido contra os demais, acaba trans formando todo mundo em bandido. O Promtor continuava a andar em volta da sala. "Terra d e bandidos !" - era o que se dizia das Lavras em toda parte. "Terra de jagunços!" Sabia que o comércio de armas era franco, e que nas casas de negócios da cidade - inclusive nas bibocas de ponta de rua - havia-as em grande quantidade, expostas ostensivamente nas prateleiras, tentando a freguesia numerosa, composta de desordeiros, de cabras ruins que nunca tinham sido nada na vida e que, de repente, metiam uns cobres no bolso, encangavam com qualquer mulher-dama diante de uma garrafa de cachaça - e pronto! tudo servia de pretexto para que se desbragassem com o primeiro que aparecesse. Lembrava-se do caso do jagunço Jovino Gago - tinham-lhe contado - que, depois de comprar uma automática na Santa Bárbara, colocara uma bala na agulha e, para ver se a arma era de tão bom rom pimento como lhe dissera o dono da venda, alvejara na cabeça 160
um trabalhador que ia passando na rua, e a quem ele via pela primeira vez, matando-o como se mata um cachorro. Também lhe ocorriam à lembrança os casos de Piranhas, lugarejo de ran chos de palha a poucas léguas dali, onde se espremiam mais de mil garimpeiros nos burburinhos noturnos das ruas do Cu do Jegue e do Rasga-Ceroula - com diamante saindo a rodo nos cateamentos e cerveja correndo feito água no cabaré de Leó e de onde vinham cargas de defuntos para Andaraí, em cima de cangalhas de animais, como mercadoria para as feiras, por que naquela balbúrdia os inspetores não podiam mesmo conter ninguém, e por isso tinham carta branca do delegado para matar sempre que houvesse necessidade. Por tudo isso, Dr. Oscar tinha vivido em permanente ex pectativa desde que ali chegara. Durante os últimos três meses, entretanto, nenhuma perturbação da ordem se registrara na ci dade, em toda a comarca havia, por coincidência, uma tão grande tranqüilidade, que o assassínio de Zé de Peixoto, ocor rido em circunstâncias imprevistas, representara para ele, em certo sentido, uma espécie de terrível novidade. Ao ter conhe cimento do fato em seus pormenores - e Pimentel também lhe falara sobre a purga dada ao garimpeiro - experimentara um verdadeiro abalo, como se só então percebesse estar vivendo realmente naquela região que sempre imaginara infestada de malfeitores. Com aquele crime perpetrado no meio da rua, a dois passos de sua casa, e vendo correr os dias sem que a Po lícia se manifestasse, voltara-lhe a consciência nítida e deses perada de sua própria inutilidade. Que fazer? Em certos mo mentos, o ódio que alimentava contra o ambiente em que vivia era tão cego, assumia uma forma tão extrema e aguda, que o assassinato em si mesmo não chegava a revoltá-lo como um ato de força, mas simplesmente como uma afronta à sua autoridade. Ao ler naquela noite o semanário A Evolução, em cujas pági nas via refletida, de maneira muito clara, a vida da sociedade local nos dias que se seguiram ao crime, tudo lhe parecera tão odiosamente dissimulado e cínico, tão petulante no seu indife rentismo calculado, que cada palavra lida repercutira em seu espírito como uma provocação. Ao lembrar-se, porém, d a ad vertência que ouvira, tempos atrás, de que "a Justiça nas Lavras era um mero instrumento subalterno da prepotência política", teve como que a grata sensação de quem faz uma descoberta. Por um instante, seu isolamento lhe deu uma tão viva sensação de independência, que ele foi acometido de um estranho e sel vagem ímpeto de cumprimento do dever, por meio do qual pu161
desse impor sua autoridade "a toda aquela canalha que o hos tilizava". Parou de andar. Já não ouvia o rumor dos ratos correndo no forro da sala. Então, cedendo a um impulso incon trolável, vestiu rapidamente o casaco, apanhou o chapéu e baixou a luz do candeeiro, deixando os poucos móveis da sala imersos em semi-obscuridade. - Vou sair, Ifigênia - disse, ao chegar à escada. Levo comigo a chave da porta da rua . •
Ia em direção à casa do Juiz. Ao transpor a ponte que ligava a Rua da Ilha à praça, viu duas pessoas conversando sob a luz lampião. Só reconheceu Dr. Marcolino, a quem cumpri mentou secamente. O outro homem era o dentista de Mucujê, que ali chegara na véspera a chamado de alguns clientes alar mados com os trabalhos do prático Melquidim - "mestre em colocar pivôs com pinos de chuleadeira". IV
Entre os poços de água podre do areão e as mangueiras de um grande e sombrio quintal murado - erguia-se a casa do Juiz. Ficava perto, ali mesmo na Rua da Ilha, e era ampla, rodeada de janelas, embora com dois propalados inconvenien tes : as cheias do Rio Gafanhoto e as muriçocas. Como era noite, o Promotor, ao bater à porta, não ouviu o trinar dos canários que eram o orgulho do Dr. Canuto Rufino. Ao lado, na ponte construída sobre o areão, onde outrora os descobri dores das Lavras tinha garimpado, um homem chamado Vi cente tocava realejo. Em volta - o seu público de sempre : alguns rapazes do comércio e uma mulher-dama chupando me lancia. Na noite calma, com os lampiões boiando na escuridão, o dono da casa deu volta à chave : - Oh! É o Oscar. Entre, seu colega. O Promotor tirou o chapéu. Estava diante de um homem baixo, gordo, de óculos, com o paletó de pijama abotoado até o pescoço. Ao apertar-lhe a mão, sentiu-a mais úmida do que de costume : o Juiz tinha-a molhada de suor, como se a hou vesse retirado de dentro d'água. Vamos entrando - disse ainda o dono da casa. 162
E de novo fechou a porta, explicando que era por causa dos sapos. •
A sala : quatro cadeiras de palhinha de cada lado do sofá com um travesseiro em cima, um candeeiro-placa pendurado na parede, e, sobre uma mesa em grande desordem - alguns autos entre jornais velhos e feixes de talas para fazer gaiolas. Entraram. - Você anda sumido, Seu Oscar - foi dizendo em tom de cordialidade o Juiz, depois de sentar-se pesadamente no sofá. E recostando-se contra o travesseiro : - Ontem até eu estive perguntando ao Pimentel por você. - Não tenho saído - limitou-se a responder o Promotor. Em seguida, embora estivesse visivelmente agitado, disse sem pressa e sem excitação, quase meditando: A minha visita de hoje não é bem uma visita, Dr. Canuto. - Já é a despedida? - respondeu vagamente o Juiz, coçando o ouvido com a ponta do dedo. - Conseguiu sempre a permuta? - Não - e o Promotor esboçou um sorriso forçado. Quero falar com o senhor é sobre o crime do Beco da Lama. Afinal de contas, já se passaram quinze dias, e até hoje o dele gado não abriu inquérito. Nem sequer fez o corpo de delito. E como se não sentisse bastante forte a convicção que tinha da necessidade de uma reação, acrescentou, como se pro curasse demonstrá-la : - Isto me parece uma afronta à Justiça. O Juiz não respondeu logo. No primeiro momento, piscan do os olhos por trás dos óculos que haviam escorregado para a ponta do nariz, deixou transparecer que o sentido das pala vras que acabara de ouvir não tinha penetrado no seu espírito. Finalmente, retirando do bolso do paletó de pijama um grande lenço de riscos amarelos, disse ao desdobrá-lo : - Você diz isso é porque não conheceu o Zé de Peixoto. A resposta foi tão simples e calma, que o outro homem ficou meio embaraçado. Pareceu-lhe tão absurda e incompreen sível, que não quis acreditar nela. - Quer dizer que o senhor acha natural o terem matado? - disse, por fim. Dr. Canuto assoou-se com estrondo no lenço e de novo o guardou no bolso. -
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- Você não conhece as Lavras - continuou, como se não tivesse ouvido a pergunta. - Precisa ir se acostumando com essas coisas . . . As palavras e a voz do Juiz vieram, então, de tal maneira carregadas de uma espécie de sombria resignação, que impedi ram o Promotor de formular um protesto imediato. O rosto apático, as bochechas moles, os olhos empapuçados, o ar de abandono do Dr. Canuto, ali derreado no sofá, de pernas aber tas - tudo lhe trouxe, de repente, uma tão profunda impressão de aniquilamento, que ele levou algum tempo em silêncio, até que pudesse recobrar ânimo. - Que fatos dessa ordem ocorram em Piranhas - disse - ainda se compreende. Trata-se de um garimpo metido lá nas brenhas. Mas aqui, em plena cidade, em plena rua, Dr. Canuto, é verdadeiramente absurdo e revoltante. Como autoridades, não podemos cruzar os braços diante do que aconteceu e está acon tecendo. Somos, afinal de contas, defensores da sociedade e exe cutores da lei - arrematou com certa ênfase, como que se esforçando por ser sincero. O Juiz abanou lentamente a cabeça : - Na sua idade, colega, todos pensam assim. Eu também Ja pensei . . . Mas depois tudo passa com os anos. Dentro de algum tempo, deixe que eu lhe diga, você vai compreender que nós não valemos nada. - De novo retirou o lenço do bolso, desta vez para enxugar a palma das mãos suadas, e prosseguiu : - Se há mal em tudo isso, esse mal já vem de cima. Na própria Capital a gente vê o que acontece. A Polícia faz o que quer e entende e fica por isso mesmo. De que adianta um pobre Juiz ou um pobre Promotor se meter a reformador do mundo? Nós não valemos nada, Seu Dr. Oscar. Os políticos é que mandam e desmandam em tudo. - Dobrou o lenço, limpando com ele a saliva que se acumulara nos cantos da boca, e novamente o colocou no bolso. - O que é que eu lhe tenho dito sempre? Desista dessa idéia de permuta, porque nós não valemos nada em lugar nenhum, seja nas Lavras ou fora das Lavras. Um homem vale o que tem no bolso. Como nós não temos nada, não valemos nada. Vale aqui quem compra diamante, quem tem dinheiro, quem tem força na política. O Promotor levantou-se. Tinha hábito de fazê-lo enquanto conversava, andando de um lado para outro. As j anelas que davam para a rua, o Juiz as trazia sempre fechadas, mas, pelas do oitão, abertas sobre o quintal, entrava a aragem da noite, trazendo um cheiro ativo de mato, de lama e estrume. Uma rã 164
coaxava na trepadeira, e a luz do candeeiro incidia diretamente no rosto lustroso de Dr. Canuto. Torcendo as mãos, a fisio nomia agitada, Dr. Oscar deu alguns passos na sala, não reve lando nos gestos outro sentimento que não o de inquietação, como se lutasse intimamente para repelir uma idéia má; ou sim plesmente para não aceitar a possível verdade encerrada nas observações que acabara de ouvir. - Vamos deixar de divagações, Dr. Canuto . . . - disse depois de um momento. - O que eu quero frisar é que esse crime não pode ficar impune. - O de Zé de Peixoto? - Sim. A resposta do Juiz foi clara: - Zé de Peixoto teve o fim que merecia. O Promotor tornou-se pálido. Chamando a si violenta mente toda a sua energia, lançou mão do último argumento que tinha para induzir o Juiz a participar de seus sentimentos mais secretos. - Dr. Canuto . . . - disse. - Eu não queria avançar tanto . . . - Mas se eu disser ao senhor que foi o próprio delegado que esteve à frente da tocaia? Que o crime foi per petrado por ordem de Seu Quelezinho, que nenhuma importân cia nos dá? E acrescentou, um tanto arrebatadamente: - Por ordem de um homem que não passa de um ex plorador de garimpeiros? O Juiz levou as mãos à cabeça : - Seu Dr. Oscar, por favor! O senhor quer aproveitar-se da morte de um criminoso para insurgir-se contra uma pessoa de quem o senhor, por isto ou por aquilo, não gosta? Por favor, Seu Dr. Oscar! O Promotor sentiu o chão fugir-lhe dos pés. - Não se trata de ódio . . . Ele mandou matar um homem! - exclamou. - Você conheceu o Zé de Peixoto? - Não. - Pois bem. Era um bandido . . . Não viu o que ele fez com o garimpeiro? Um sujeito perigoso . . . Um bandido . . . Um mau elemento . . . Se a Polícia não o mata, ele acabava liquidando os inspetores com delegado e tudo. E Dr. Canuto deu uma palmada na coxa, num súbito movimento de entusiasmo, como se tal justificativa o tivesse satisfeito inteiramente. 165
- Então o senhor admite que foi a Polícia? - perguntou com vivacidade o Promotor. O Juiz voltou à sua imperturbabilidade : - Admito. - Dr. Canuto . . . - Admito, já lhe disse. É lamentável, mas infelizmente a Polícia tem que agir assim, porque a Justiça nada pode fazer para reprimir os arruaceiros que põem em sobressalto Andaraí. Com essa gente, na verdade, é necessário usar-se de violência, sob pena de não se poder mais viver aqui. Para refrear o ban ditismo, a Polícia tem que fazer ess0 expurgo . . . Eliminar os elementos nocivos. A bem da economia, da tranqüilidade e do próprio desenvolvimento da região - concluiu, imprimindo um tom convicto às suas últimas palavras. - O banditismo é da Polícia - emendou o Promotor. - É uma questão de ponto de vista - disse o Juiz. Você é muito inexperiente e impulsivo . . . Pode parecer um paradoxo, mas a Polícia tem que agir assim e nada nos resta fazer contra ela. - Dr. Canuto! - exclamou agitadamente o Promotor. - Infelizmente a verdade é esta. - Isto é uma capitulação! - insistiu o Promotor. - Nós não valemos nada - limitou-se a responder o Juiz. Dr. Oscar continuava a torcer as mãos. - E para que fomos nomeados, então? - tentou argu mentar. - Para que estudamos e nos formamos? O que faze mos aqui, afinal? Será que o senhor vai limitar-se a ser Juiz de Andaraí apenas para fazer casamentos? Será . . . - A culpa não é nossa - interrompeu-o Dr. Canuto. É da vida . . Nós precisamos viver. Na Faculdade não nos lem bramos disso. O Promotor sentou-se como que ao peso de um fardo. As palavras do velho Juiz, penetradas de descrença e sombrio pes simismo, e proferidas naquele casarão erguido entre montes de lixo e poços de água podre, enquanto lá fora os sapos cantavam debaixo da ponte, compunham no seu espírito todo um quadro simbólico. Sob essa impressão, num ímpeto de defesa íntima, esforçava-se por manter bem viva a imagem daquela natureza humana elevada que concebera para si próprio quando ainda acadêmico, e que se lhe afigurava como a encarnação mesma da carreira que abraçara. Nesse momento, porém, estremecendo toda a casa, uma voz humana estrondou num esganiçado toque de corneta : 166
- Tá-tá-tá-tá-rá! Tá-rá-tá-tá-tá! Dr. Oscar fez um movimento para arrancar da cadeira : o estranho toque provocou-lhe um choque tão grande, que ele não chegou a formular a menor idéia a respeito, não sabendo a que o atribuir. Antes, porém, que pudess e pensar em alguma coisa, mal refeito do espanto, eis que ouve um grito estridente : - Eu vou ser coroada! Eu vou ser coroaaaaada! O Juiz ergueu-se do sofá. Estava pálido, desfigurado, e no seu olhar havia como que a s ombra d e uma fatalidade. Entre tanto, sua voz foi natural quando disse : - É a Rute, seu colega . . . Está de novo acometida do mal . . . Mas não se espante. Olhe que quem tem filhos . . . E encaminhou-se apressadamente para o corredor, arrastan do os chinelos. O Promotor ficou imobilizado na cadeira. Era a filha do Juiz num dos seus comentados acessos, a que ele assistia pela primeira vez. A gritaria continuava : - Eu vou ser coroAAAda! Tá-tá-tá-rá-rá! Eu vou ser co roaaAAAADA! De pé, à porta do corredor, Dr. Canuto gritava ao mesmo tempo : - Biluzinha, dê-lhe uma dose da poção de bromureto! Havia em tudo aquilo uma tão grande dor íntima, que o Promotor se apressou em deixar a casa. - Dr. Canuto . . . - disse, apanhando o chapéu. - Não quero incomodá-lo . . . O Juiz apenas pôde repetir : - Olhe que quem tem filhos . . . E estendeu-lhe a mão trêmula, acompanhando-o em se guida até a porta. À luz do candeeiro, sua expressão era con trafeita e tensa, como se ele ocultasse uma coisa que ninguém seria capaz de entender. •
Já não havia ninguém na ponte. À luz do lampião, um jumento veio vindo, lento, os cascos fazendo um compassado rumor sobre as tábuas, e parou para comer as cascas de melan cia ali deixadas pelos rapazes e pela mulher. Na Rua da llha, porém, várias pessoas chegavam às janelas, atraídas pelos gritos que partiam de dentro da casa do Juiz. O Promotor caminhava apressadamente. Ao passar defronte da porta do alfaiate Bar167
bosa, onde se reuniam alguns curiosos que tinham abandonado o jogo de cartas no interior da sala iluminada por um grande candeeiro, ouviu estes comentários em voz alta: - O acesso de hoje está mais forte do que o do mês passado. O Juiz devia ter casado essa moça desde cedo. - Será espírito mesmo? - Qual é espírito! Tudo isso é falta de homem. Não pôde ouvir o resto, porque já se distanciara um bom pedaço, galgando o passeio em direção à outra ponte. Ia apreen sivo, e tudo o que no Juiz lhe tinha parecido insensibilidade surda e animal, fazia-o estremecer agora como dolorosa sujeição imposta pela vida a um homem naturalmente bom e digno. Foi quando ouviu outro prolongado grito da moça. Apoderou-se dele, então, como se em seu espírito houvesse alguma coisa pronta a produzi-lo em tal momento - um sentimento de deses pero que o obrigava a reconhecer-se como quem renega uma fé. Já não pensava em Zé de Peixoto. Descrente, arrasado, sem a arrogante segurança com que a deixara uma hora antes - entrou em casa terrivelmente incerto do valor de sua própria vontade. v
Passaram-se assim muitos dias sobre a morte de Zé de Pei xoto. Peba desapareceu na mesma noite do crime, levando con sigo as poucas coisas do negro - a balança de pesar diaman tes, o guarda-sol e um velho punhal encontrado na gaveta da mesa, tendo deixado a venda com as portas escancaradas. Em vão a Polícia o procurou, e ninguém mais soube notícias dele, presumindo todos que ele tivesse abandonado a cidade logo de pois da giranda, naturalmente receoso de ter o mesmo fim do companheiro. - Quem é que não some numa hora destas? - disseram alguns sujeitos prudentes. - Quem quiser que se ponha no lugar dele. Durante os primeiros dias, muito se falou ainda sobre o passado do jagunço, constituindo seus crimes e arruaças o assun to do momento. Relembrou-se o trágico fim que a velha Sebas tiana tivera em suas mãos, o tiro que ele dera, em criança, na boca de outro menino ; comentou-se tudo o que se relacionava com a sua vida de jagunço, dos feitos no Coxó aos rolos de Piranhas, quando ele, de punhal na mão, fechara por duas vezes 168
o cabaré de Leó, fazendo correr até o negro João, que era paralítico das pernas. Com ele morto, suas façanhas adquiriram tamanho vulto que mais parecia tratar-se de um herói ou de um personagem lendário do que de um simples negro malvado que ainda outro dia andava pelas ruas de Andaraí. É verdade que um negro malvado d e pontaria privilegiada, cabra bom no tiro, o que fizera com que o próprio delegado, ao colocar na cintura, pel a primeira vez, o parabelum que lhe pertencera, e do qual avidamente se apossara, se sentisse como que sob o efeito de uma força sobrenatural. Era uma arma famosa, que, tendo sido a defesa do negro em tantos momentos de perigo, se ligava agora, mais do que nunca, depois dele morto, à sua vida, confundindo-se com a sua figura na imaginação do povo. Ziu chegou a oferecer um conto e quinhentos por ela, cedendo à sugestão de arrojo e intrepidez que dela parecia emanar. O delegado, porém, fez questão de conservá-la, como se ela, im pregnando-se de toda uma história cheia de crimes, trouxesse em si a secreta herança de um poder destruidor, e não apenas o prolongamento do terror que infundira a presença do seu pri meiro dono. Na opinião do coletor Barroso - contou-se depois na cidade - uma arma como aquela daria coragem até ao escri vão Pimentel, de quem se dizia não ser capaz de brigar "nem com um facho de fogo na bunda". Falando do negro e do seu parabelum - o povo comentou, enfim, todas as proezas do ja gunço Zé de Peixoto, dos seus mais duros e sangrentos arranca -rabos às simples lambanças de ponta de rua, em que ele muitas vezes se metera por mera gauchada. Sobre o seu assassinato no Beco da Lama, porém, quase nada se disse : quem é que ia arriscar-se a falar da traiçoeira giranda e dos misteriosos homens que dela haviam participado? Sabia-se que a morte do negro não fora motivada pela violência praticada contra o garimpeiro Silvério, mas tão-somente porque ele desrespeitara, em uma noite de bebedeira, o chefe supremo do Município de Andaraí. Os tiros do Beco da Lama tinham sido como que uma resposta aos da célebre noite da Passagem - e por isso mesmo os homens preferiram fazer silêncio sobre eles. As conversas se limitaram ao passado do jagunço. Aos poucos, porém, de tão repetidos, os seus casos foram perdendo interesse, e cederam lugar às novi dades que iam surgindo - uma mulher-dama que tinha que brado uma garrafa de cerveja na cabeça de outra, um garim peiro que havia bamburrado, uma farra no cabaré de Dona com algum arruaceiro querendo rasgar a harmônica a punhal, um sereno de baile, e, por último, os preparativos para a festa 169
de N. S. da Glória, que, a julgar pelo entusiasmo dos mordo mos, ia ser de arromba naquele ano! Dentro em pouco, o negro estava completamente esquecido, seu assassinato era apenas um assassinato a mais ocorrido na cidade, um cabra que morria matado como tantos outros, um homem cuja vida chegara ao seu natural fim - e pronto. Com uma chuva recente, tinham desaparecido os últimos vestígios de sangue nas areias do beco, e era como se nada de anormal houvesse acontecido ali em qual quer tempo. A presença do negro já não se fazia sentir no local do crime, em meio a sugestões de pavor, e de novo o beco se povoou de vozes noturnas, as mulheres-damas se juntando com os garimpeiros no canto dos muros como cães, e os gemidos de amor enchendo as madrugadas. - Você ainda sente falta dele? Vitalina não respondeu. Apagou a luz e caiu nos braços de Filó Finança com o mesmo ímpeto com que se entregava ao negro. Lá embaixo, na cidade iluminada, com o povo pas sando para a novena, a vida continuava. •
Quase todo dia chegava gente. A fama das Lavras conti nuava a correr mundo. Os viajantes, que por ali transitavam com as suas malas de amostras, iam gabando a praça adiante, muito boa para negócio, com grandes feiras, o povo sem saber onde botar dinheiro, diziam, e as notícias dos garimpos eram levadas a toda parte. Como vontade de enriquecer nunca faltou a ninguém, e necessidade era o que havia de sobra, homens e homens abandonavam suas terras distantes, reunindo apenas o indispensável para a viagem, e em verdadeira romaria se diri giam para Andaraí. Arranchavam nas pontas de rua, e se espa lhavam pela cidade à procura de trabalho, dispostos a aceitar qualquer coisa para começar, crentes de que também teriam a sua oportunidade, e enquanto esta não surgia, que nenhum deles era pior do que os outros, se compraziam com a ilusão de que tudo era uma simples questão de dar tempo ao tempo. Se não eram logo bafej ados pela sorte, o movimento do comércio era de qualquer forma animador, com o negociante José Bichara fazendo pedidos de duzentas caixas de cerveja, que da primeira vez se chegou até a pensar que tivesse havido engano na fatura, com os cabarés cheios de gente dia e noite, com tropas entrando com grandes carregamentos de mercadorias e a caixeirada suando no balcão sem respeitar domingo nem feriado, porque volta e 170
meia estava um garimpeiro bamburrando e procurando em que gastar o dinheiro, de tal sorte que tudo isso compunha aos olhos deles a imagem de um mundo que atordoava pela exuberância, atraindo-os como uma voragem. Iam ficando, as pontas de rua cresciam, novos ranchos se juntavam aos d a Rua do Lajedo e aos da Cidade de Palha, metida entre os morros da Boca da Gruna, onde iam vivendo como podiam, com os seus cachorros e os seus filhos, cada vez mais sem forças sobre si mesmos, inteiramente rendidos à expectativa da fortuna. Outros vinham apenas para negociar, para explorar a praça, sobretudo quando corria a notícia de uma nova descoberta, e ficavam hospedados na Pensão Grande Líbano, não se demorando mais de um mês, sob pretexto de que iam "fazer novo estoque". Entre estes, con tavam-se joalheiros que vinham vender relógios e obras de ouro, ou mascates com malas de bugigangas às costas, a quem o povo generalizava o apodo de "gringo ladrão", esperando que eles voltassem, iam ver! com aquelas obras de ouro que mareavam e aqueles cortes de seda que não agüentavam duas lavagens! Mas não voltavam, vinham outros, crescia o número de foras teiros, e tudo era esquecido, como a morte de Zé de Peixoto, naquela fervilhação de aventureiros que andavam à cata de dia mantes, com gente entrando e saindo - formigueiro humano dos garimpos. Certa vez, essa instabilidade do agrupamento la vrista servira de motivo para Valadão fazer espírito. - Famílias arraigadas ao meio - disse a um visitante o senhor não encontra . . . salvo três ou quatro exceções. O resto é o que se sabe : uma mescla adventícia composta de forasteiros, de gente nômade, que vem dos mais longínquos rincões do País . . . Conheço aqui mesmo um sujeito que o se nhor não é capaz de avaliar de onde ele seja. O visitante perguntou : - Do Rio Grande do Sul? - Não. De Santa Catarina? Não. Do Amazonas? Não. Do Acre? - insistiu o homem, querendo esmagar o professor com esse fim-de-mundo nacional. - Não. - De onde, então? - Da Síria, homem ! E explicou que se tratava do "árabe Mansur". 171
VI
Embora não houvesse experimentado nenhum impulso de reação, a não ser no sentido de reivindicar, junto ao gerente Alípio e a Seu Teotônio, e até mesmo junto ao delegado, sob a forma de queixa pela violência sofrida, a sua parte nos dia mantes que, segundo desconfiara, os companheiros haviam pe gado na sua ausência, depois de lhe darem a purga - tinha Silvério, com o correr dos dias, idéias cada vez mais vagas a respeito do que se passara entre ele, Zé de Peixoto e Peba. De qualquer maneira, se intenção de desforra não teve - ne nhum resultado auferindo os antigos sócios, um deles morrendo na giranda do Beco da Lama e o outro fugido - o simples fato de haver sobrevivido a tudo o que acontecera, desde o incidente no garimpo até o desfecho da tocaia, tomava no seu espírito o caráter de uma vingança definitiva. De novo pronto para trabalhar, a vida se lhe mostrava cheia de novas possibili dades, os acontecimentos ainda recentes sendo por ele relegados ao plano impessoal do destino, e nada mais tendo que ver com os seus interesses ou com os seus sentimentos. Naquela noite, conforme prometera, Filó Finança foi procurá-lo no Ribimba. Deixou a chocolateira no fogo, com a água fervendo para fazer o café, e veio abrir a porta com o fifó na mão : - Entre, Filó. Entrou. Estava com a barba crescida e trazia o chapéu que brado em cima dos olhos. - Você já recebeu o fornecimento? - perguntou Silvério. - Já. Em dinheiro? - Não. Por quê? - Estou perguntando por perguntar . . . Como não havia, no pequeno cômodo enfumaçado, com uma esteira velha enrolada no canto e uma ceroula de valença pendurada na parede, nenhum caixão para sentar-se, Filó puxou as calças para cima e - "Eta, que o reumatismo quer me pe gar!" - ficou de cócoras junto à porta, empurrando o chapéu para trás. - Tome Bálsamo Filantrópico - disse Silvério. - Bálsamo Filantrópico só serve pra reumatismo em verso de cantador de coco - respondeu o outro. - O meu eu cos tumo curar é com sebo de rim de carneiro. - Depois puxou a 172
fumaça do cigarro c acrescentou : - Você recebeu o seu em dinheiro? - O meu? -- Sim. O seu fornecimento. - Não - respondeu Silvério, pondo o fifó no chão e sentando-se diante dele. - Recebi um vale pra o barracão. Filó cuspiu por entre os dentes. - Foi também o que eu recebi - disse. - Você bem sabe que Seu Teotônio é como qualquer outro dono de serra : fornecimento em dinheiro com ele só no dia de São Nunca de tarde. Você acha que eles têm barracão é pra enfeite? E concluiu, com o cigarro no canto da boca: - A cor do dinheiro a gente só vê quando pega o diamante. - Mas os preços do barracão estão muito alterados . . . - É a praxe dos fornecedores. - Eu sei . . . Mas com as vantagens que eles já levam continuou Silvério - os preços bem que podiam ser os mesmos da praça. - Eles estão no papel deles - respondeu calmamente Filó. - A verdade é que cada um, podendo, puxa a brasa pra sua sardinha. É da vida! - Você não acha que seja um roubo? - O barracão? - Sim. Você não acha que eles estão roubando? - Nunca fizeram outra coisa - conveio Filó. - Mas que jeito a gente pode dar? Todo comércio é isto. De qualquer maneira - prosseguiu - o risco que corre o pau corre o ma chado. Quantas vezes um fornecedor bota um meia-praça no ga rimpo e, no fim de contas, o dinheiro dele fica enterrado lá? O fornecedor se arrisca muito. E naturalmente que ele tem de se armar de todas essas vantagens que a gente sabe, prendendo o dinheiro, a começar pelo fornecimento em gêneros. Fez uma pausa e mudou de assunto : - O que a gente precisa é meter a marreta pra dentro pra arranjar cobre pra festa de N. S. da Glória. - E Cabeça-Seca? - Cabeça-Seca foi embora pra Xiquexique. - Ele vendeu sempre a bateia? - Vendeu. Andou com ela na cabeça pra cima e pra baixo, mas acabou vendendo. A bateia era muito boa. Mas bastou ele falar em vender pra não achar quem desse mais de 20$000 por ela. - Foi Seu Carvalhal quem comprou? 173
- Que Carvalhal! - disse Filó. - Seu Carvalhal quis trocar ela foi por dois vidros de depurativo, dizendo que Cabe ça-Seca estava muito sifilítico e que precisava limpar o sangue. Seu Carvalhal é gente! Cabeça-Seca estava, na verdade, com aquele bubão que apanhou com Francina, que eu bem que dei conselho a ele pra não andar com ela, mas o problema dele agora era matar a fome. - Ele anda num azar danado - disse Silvério. - É - concordou Filó. - Aliás, ele foi mais pra Xiqucxique pra procurar um curador, um tal Abelardo, pra fechar o corpo. Ele desconfia que tudo seja mandinga. - Você quer café, sócio? - perguntou de repente Silvé rio, levantando-se. Em meio à fumaça que se desprendia do fifó, seu peito desnudo tinha uma cor mais baça. - Não enjeito não - respondeu o outro, atirando para o lado o toco de cigarro. Antes de transpor a porta do outro cômodo, Silvério ainda se voltou para perguntar : - Foi por isso que você não quis ele n a sociedade? - Quem, Cabeça-Seca? - Sim. - Foi - disse Filó. - Como frente do serviço, eu não ia me arriscar a trabalhar com um companheiro infusado como ele. Eu gosto muito de Cabeça-Seca, mas com o azar que ele anda a gente não ia ver nem mosquito de polmo. Silvério entrou no outro cômodo. Enquanto fazia o café - a lenha crepitando na trempre e a água escorrendo - con tinuou a conversar com Filó em voz alta : - Quer dizer que a sociedade ficou sendo formada por nós três . . . - Foi. Pm: mim, Neco e você. Sendo que nós dois somos meias-praças de Seu Teotônio, e Neco, da mulher dele. - Dá no mesmo. - É. Fica tudo em casa. É só pra constar. - E Neco, você viu ele? - Recebeu o vale junto comigo. Deixei ele no barracão fazendo a despesa da semana. Por quê? - Por nada. - Você sabe de uma coisa? - disse Filó. - Alípio deu informações muito boas de você a Seu Teotônio. Disse que você era muito bom de serviço. 174
Silvério não respondeu logo. Filó ouvia a água escorrendo dentro da lata, no outro cômodo, de onde, por fim, veio a voz: - Ele me falou. Aliás, eu acho que foi por isso que Seu Teotônio me contratou. - Nós três vamos dar certo - disse Filó. Foi até a j anela. Um cheiro ácido de mato se espalhava na noite, outras vozes não eram ouvidas no Ribimba a não ser a dos meninos brincando em volta do pé de canjoão, e lá em� baixo, d o outro lado do rio, as luzes da praça brilhavam. Silvério veio com as duas latas de café na mão. - Já tem doce - avisou. Filó tomou um gole. Depois, e nquanto agitava, de leve, a vasilha, para esfriar mais um pouco o café, disse : - Sabe de uma coisa, sócio? Eu estive conversando com Alípio, e ele é da mesma opinião minha. Acha que nós não devemos procurar outro serviço. - Quer dizer que vocês acham que é melhor a gente rom per pra frente? - É. O serviço de cálculo é esse. Nós devemos continuar o rompimento feito por você e Peba, no tempo do finado Zé de Peixoto, até cairmos no veio da piçarra-mestra. E tomou em seguida três grandes goles do café. Como Sil vério guardasse silêncio, Filó continuou, depois de lhe entregar a lata já vazia: - Você não acha? - Eu não queria mais mexer naquele serviço . . . - respondeu o outro. - Por quê? - Por nada . . . - Deixe de abusão, rapaz - disse Filó. - O negro tomou o dele bem destrocado, e se por acaso ele tinha alma, ela já está do inferno pra dentro umas trezentas léguas. No primeiro momento, Silvério se mostrou hesitante, como se procurasse outras razões que lhe servissem para uma nova justificação. Mas tudo foi muito rápido, porque logo sorriu, e, despedindo-se do companheiro, que já estava de saída, disse que concordava com tudo - e marcou encontro para o dia seguinte, debaixo da gameleira, às sete horas, mas que ele não deixasse de levar a enxadeta e a bucha, a fim de subirem juntos a serra. - Avise a Neco. 175
VII
Por dor, saudade, falta, desespero de amante que perde o homem amado, por tudo isso ou simplesmente por medo de se ver envolvida em alguma perseguição como mulher que s e jun tara ao negro justamente quando ele caíra no desagrado do chefe - Joana Magra não quis continuar a viver em Andaraí. Passado o sétimo dia, vendeu as suas coisas e as poucas que Zé de Peixoto deixara, apurou com elas o dinheiro que pôde, arrumou o seu fardo e abandonou a cidade sem destino certo, embora, de qualquer modo, disposta a ir para um lugar bem distante. Antes de fazê-lo, porém, que sempre gozara de bom crédito no comércio, foi a A Barateira pagar as despesas do en terro, pois na ocasião, entregue inteiramente à sua dor, as vizi nhas procurando em vão consolá-la, não ia mesmo ter cabeça para nada - mal podendo murmurar que "tomassem o que fosse preciso na loja de Seu Benigno". Pagas as despesas, que orçaram em duzentos e tantos mil-reis, com seda preta, galões, madrasto, duas grandes capelas e fornecimento de material ao marceneiro Guilhermino para preparo do caixão, mais uma vez lamentou ter sido o negro enterrado naquele buraco aberto à última hora no chão do Cemitério Velho, por lhe haver negado a Intendência Municipal um dos carneiros do Cemitério da Pie dade, e por fim saiu, coberta de luto como uma verdadeira viúva, despedindo-se do negociante Carregosa, a quem - con fessou, enquanto enxugava uma lágrima no canto do olho ficava eternamente agradecida . •
Terça-feira, sol quente, modorra na praça dos negociantes que conversavam no balcão em mangas de camisa enquanto os garimpeiros trabalhavam na serra. Ramerrão das partidas de bilhar, do gamão à porta da farmácia, do jogo de damas servin do para matar o tempo nas horas de pouco movimento comer cial. Leitura de jornais velhos, galinhas ciscando nos passeios das vendas , homens derreados em espreguiçadeiras - sonolen tos capangueiros na expectativa dos sábados, dia da lavagem do cascalho e do regresso dos garimpeiros. Urubus sobrevoavam os telhados, os quintais com bananeiras, em direção aos morros povoados de batixós rola-bosta : o monturo os atraía. "Ei, jegue! Ei, jegue !" - era o oleiro tangendo os jumentos que se espa176
lhavam na praça como num curral, comend o papel e cascas d e frutas. Guardando na gaveta o dinheiro recebido de Joana Ma gra, o negociante Carregosa voltou a conferir a fatura de louças e ferragens que tinha sobre a mesa, quando sua esposa entrou na loja, muito aflita - para lhe dizer que "a Amelinha estava vomitando". O negociante se desprendeu da mesa com a fatura na mão, o rosto escorrendo suor, e já de pé, à porta da sobre loja, de cujo interior emanava o cheiro ativo do carbureto remo vido, gritou : - Antunes, depressa, vá chamar Dr. Marcolino. O empregado saiu correndo e se dirigiu cada vez mais rá· pido para o provável lugar onde devia encontrar-se o médico : o bar. •
- Mas o que é? o que é que está sentindo, minha filha? - era Carregosa que perguntava, já dentro da sala, dirigindo-se à Amelinha. Muito pálida, os olhos semicerrados, a moça nada respon dia. Como D. Marocas achava que tinha sido o sarapatel do meio-dia, Carregosa saiu como uma bala e foi buscar na loja um pouco de bicarbonato. Ao voltar, porém, deu de cara com Antunes, que vinha triunfalmente avisar a chegada do médico. O negociante voou para o corredor e, logo depois, entrava de novo na sala, acompanhado de Dr. Marcolino. D. Marocas quis contar tudo de uma vez: - Boa tarde, doutor. É a Amelinha, coitada. Vomitou . . . Não sei. Acho que foi a comida que fez mal. Com esse calor . . . O médico tinha os olhos injetados. Ao tossir, deixou a sala impregnada do seu bafo de aguardente. Lançando os olhos em volta da sala, como que à procura de alguma coisa que não encontrava, d irigiu-se finalmente à janela, escarrando no pátio : não havia escarradeira. Voltou em seguida, limpando a boca no lenço, e aproximou-se da cadeira onde estava sentada a moça. Calcou-lhe de leve o fígado, tomou-lhe o pulso, fez-lhe duas ou três perguntas evasivamente respondidas, e, por fim, examinou -lhe os olhos : dava muita importância a este detalhe. Depois, nada mais tendo para fazer, bateu no ombro de Carregosa e disse : - Fique tranqüilo. Não é nada não . . . Na parede, um velho relógio marcava três horas da tarde. Havia na casa uma grande paz doméstica. Com boca de nojo, 177
a moça olhava desconsoladamente para o guarda-louça que ficava defronte. D. Marocas inclinou-se : - Quer tomar uma xícara de café, minha filha? Já mandei fazer. E voltando-se para o médico : - Então o senhor acha que não é nada? - Bobagem, bobagem . . . - limitou-se a responder Dr. Marcolino, as feições intumescidas, o cabelo crescido e a barba por fazer. Em seguida, ao mesmo tempo que a empregada entrava com o bule de café na mão, disse em voz baixa ao dono da casa : - Vamos lá na sala, Carregosa. Saíram para a sala de visitas. Ali chegando, o médico perguntou enquanto acendia o charuto : - A Amelinha tem algum namoro? Carregosa olhou-o com espanto : - Que eu saiba, não . . . E antes que pudesse acrescentar qualquer coisa, o médico completou, atirando pela janela o pau de fósforo : - Trate d e casá-la, Carregosa. E o mais depressa possível. O negociante empalideceu. A primeira coisa em que pensou foi na filha do Juiz: seria que a Amelinha estava no mesmo caminho da Rute? "Não!", exclamou para si próprio, ao lem brar-se dos comentários torpes que se faziam na cidade a res peito da doença da outra moça: "Aquilo é falta de homem !" Sentiu a cabeça zonza, mas já o médico prosseguia : - Pois é. Trate de casar a pequena. E depois de uma pausa, apanhando o chapéu, disse com o charuto na boca : - Ela está grávida. Carregosa deu um pulo : Grávida? - É o que eu estou lhe dizendo - confirmou Dr. Mar colina. E dando um puxão nas calças, o hálito de aguardente cada vez mais acentuado, pediu licença e retirou-se. O negociante deixou-se cair no sofá, completamente arrasado. E ali ficou du rante algum tempo, até que não mais ouviu a tosse seca do médico do lado de fora, nem o rumor dos seus passos lentos na calçada. Foi quando D. Marocas entrou na sala, enxugando as mãos, para saber "o que tinha dito o Dr. Marcolino". Para seu
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espanto, viu o marido erguer-se, lívido, e pedir-lhe o casaco e o chapéu. No primeiro momento, pensou que ele ia sair para mandar aviar alguma receita. Ao transpor a porta, porém, ele explicou, enfiando atabalhoadamente o paletó : - Vou procurar o compadre Valadão. VIII
Casarão assobradado, de sólida construção e numerosas ja nelas, o Paço Municipal ficava defronte do Beco da Chocola teira, em zona de freqüência suspeita : havia dois cabarés e várias casas de meretrizes nas imediações. Na frente funcionava o Foro, em ampla sala mobiliada, que também servia para as reuniões do Conselho Municipal, para as festas escolares, para as mani festações aos políticos, e para os bailes de carnaval a dez mil -reis a entrada. No fundo - um pasto para animais : o Curral do Conselho. De um lado, a cadeia e o quartel, cujo destaca mento se resumia na pessoa de um único policial: o cabo Ana nias, bom jogador de bilhar, ali casualmente encontrado. Do outro, em volta d e grande pátio lajeado, meia dúzia de cubículos. Moravam neles alguns inspetores, o carcereiro, e algumas famí lias de ratos. No interior do prédio, um escuro corredor dava passagem para uma outra sala - a maior de todas - cujas janelas se abriam sobre um chiqueiro de porcos. Nessa sala funcionava A Evolução. Havia no corredor um urinol de mais de meio metro de altura, que servia concomitantem�nte ao pessoal da Intendência e aos serventuários da Justiça, motivo pelo qual o Valadão conservava sempre fechada a porta da redação. Com os dedos no nariz, Carregosa atravessou o corredor e empurrou precipitadamente a referid a porta: em mangas de camisa, redi gindo a matéria da primeira página, o diretor de A Evolução ergueu os olhos do papel para ver quem era o importuno. Ao fazê-lo, sua fisionomia se transformou : - Oh, é o compadre! Carregosa sentou-se sem tirar o chapéu : - Quero lhe falar com urgência. Valadão olhou de esguelha para o secretário Costa, que na banca ao lado consultava o dicionário. - Vê lá a letra do terno - disse. Depois de cumprimentar discretamente o negociante, o se cretário respondeu : 179
- Eu acho que está boa . . . Mas fala muito em "vinde" - e passou o manuscrito a Valadão. Este lançou os olhos ao papel : Vinde, vinde, vinde, vinde ver e apreciar O Terno das Borboletas que saiu a passear . . .
Não está má - opinou. - Entrega-a na casa das Albu querques e dá-lhes lembranças, que eu mando. Mas é bom ir agora mesmo. O secretário Costa vestiu o paletó, retificou o laço da gra vata-borboleta e saiu imediatamente. Valadão pousou a caneta ao lado do tinteiro, pigarreou e disse : - Que ventos o trazem, seu compadre? O negociante não sabia por onde começar : - É o bêbedo, é o Marcolino, o indecente . . . O diretor de A Evolução mexeu-se na cadeira, sem com preender, enquanto o outro prosseguia: - A Amelinha andou vomitando, coitada . . . Depois do almoço . . . A Marocas acha até que foi o sarapatel . . . Valadão passou a mão pela testa com vaga impaciência : - Mas afinal de contas, o que é que houve? Foi quando Carregosa despejou de um jato: O Marcolino disse que a Amelinha está grávida. - Como? - Grávida - repetiu desconsoladamente o negociante. Valadão deu um murro na mesa: É uma infâmia! Nesse momento, porém, uma voz veio do fundo da sala, por trás da caixa de tipos : - Faltam oito linhas na terceira coluna da segunda página. Valadão suspirou ruidosamente. - Um momento, seu compadre - disse. Depois abriu o dicionário, molhou a pena e escreveu , riscou, tornou a escrever e a riscar, e, por fim, respondeu : - Toma, Morais. Bate tudo em caixa alta com uns asteriscos em cima e embaixo, que é pra dar - e entregou o manuscrito ao tipógrafo solícito, que de novo se afastou, enquanto lia : "Variedade - Teresa é nome de origem grega. Deriva de therao, caçar. Assim, Teresa quer dizer caçadora". Carregosa ergueu-se afobadamente : - Quero que você me aconselhe, seu compadre! Valadão limitou-se a responder : -
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- Vamos ao Carvalhal. Ele tem a sua prática . . . Vamos até lá arranjar um remédio. E os dois saíram em seguida - o diretor aconselhando ao compadre para não facilitar com aqueles maribondos que esta vam fazendo casa ali no beiral. •
Na placidez da farmácia - moscas zumbiam - Carvalhal cochilava sobre o Chernoviz. Ao ouvir o ruído da portinhola do balcão, levantou-se e, vendo Valadão em companhia de Carre gosa, disse, à guisa de saudação : - la mandar a nota agora mesmo. - Qual é a nota? - indagou distraidamente o diretor do hebdomadário. - A outra nota para A Evolução. O diretor esboçou um gesto vago : - Deixemos a nota para depois. Quero lhe falar é sobre outra coisa. Sentou-se, assoou-se, e em tom discreto expôs o motivo de sua visita, aludindo aos "vômitos da menina do compadre Carre gosa", e assumindo o ar grave que a situação exigia. Carvalhal hesitou : - Qual foi o diagnóstico do Marcolino? - Ele não chegou a diagnosticar . . . - respondeu evasivamente Valadão, enquanto Carregosa se mantinha em atitude res-;;:rvada, deixando que o compadre conduzisse a conversa. - Por quê? - Bem . . . - explicou Carvalhal. - Não era nada mau que se lhe desse uma poçãozinha de citrato de sódio. Mas . . . cu acho que não me fica bem receitar clientes d o Marcolino. Eu só indico remédios aos garimpeiros que me procuram no b alcão da farmácia. Um ou outro freguês avulso . . . Valadão limpou a garganta : - Vamos, Seu Carvalhal. Você tem a sua prática . . . Quero que você me arranje um remédio contra vômitos - disse, fazendo-se de desentendido. E acrescentou, em tom de lisonja : - Quanto à nota, pode mandar amanhã, que é para sair na primeira página. - Vou mandar . . . Aliás, só falta retocar umas coisi nhas . . . - Pois é - atalhou o outro. 181
E incisivamente : - Vamos lá ver esse citrato! O farmacêutico deixou-se vencer sem mais dificuldades. De bagueta em punho, manipulou a sua clássica poção veiculada em magnésia fluida, no que não demorou mais de cinco minutos. - Não precisa rótulo - disse Valadão. E Carregosa : - Bote na conta. Carvalhal embrulhou rapidamente o frasco, explicou o modo de usar, muito fácil, e os dois compadres deixaram em seguida a farmácia. Ao galgarem o passeio da loj a, passou por eles o coletor Barroso, a quem A Evolução chamava de "bravo soJ dado do fisco" - com um galo de briga debaixo do braço. Ao vê-lo, Valadão ocultou o vidro de remédio dentro do casaco, para logo depois entrar - vitoriosamente - na casa da afilhada.
Antes de o negociante ministrar à filha a primeira dose da poção, o diretor de A Evolução chamou-o a um canto e os dois conversaram em voz baixa durante algum tempo - Valadão ges ticulando muito, o pai da moça sacudindo a cabeça, ora afirmati vamente, ora desconsoladamente. Pressentindo-os, D. Marocas entrou na sala para dizer ao marido que depois de ele ter saído "a Ame linha vomitara ainda uma vez". - E o que disse afinal Dr. Marcolino? - perguntou, en quanto apertava a mão do compadre. Carregosa resmungou uma resposta qualquer, destampou o vidro de remédio e, com o rosto coberto de suor, pediu "uma colher das de sopa". D. Marocas correu ao armário. Aproveitando a oportunidade, Valadão soprou aos ouvidos do compadre : Sê hábil . . . Veio a colher, e o homem se dirigiu para o sótão, onde a moça se encontrava nesse momento. Enquanto o ouvia subir a escada, Valadão se pôs a andar em volta d a mesa, as mãos para trás, apreensivo com o resultado que poderia advir da entrevista de Carregosa com a filha. Com muito tato, ele induzira o com padre a indagar da moça "se, de fato, havia alguma coisa", pois " um pai era sempre um pai, um verdadeiro guia, um confidente e um protetor". Se houvesse, que diabo ! que ela confessasse tudo, ele não ia se aborrecer, o que queria era "evitar o escândalo", coisa "que não lhe ficava bem". No fundo, Valadão sentia-se indignado ao admitir que aquela criança de outro dia, qu(': por -
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mais de uma vez "lhe molhara a calça do fraque", estivesse agora "vomitando de forma abominável, em conseqüência de uma gra videz pecaminosa". Volta e meia, lançava os olhos para o topo da escada, a ver se o compadre já vinha. Carregosa, porém, pare cia não querer mais voltar! Valadão consultou o relógio, tomado de um vago ódio daquela demora, e já ia atirar-se a uma cadeira - quando ouviu um rumor de passos. Amparando-se ao corri mão da escada como a uma muleta, Carregosa descia lentamente os degraus. Teve ímpeto de correr para ele, a fim de "saber tudo". Mas se conteve e, de pé, rígido, as sobrancelhas arqueadas, espe rou ali mesmo - enquanto D. Marocas, na cozinha, preparava o chá da doente. Já embaixo, Carregosa deixou cair sobre a mesa o vidro da poção, e disse resignadamente, com um suspiro que parecia um gemido : - É o Costa . . . . Valadão deu um pulo : - Canalha! O negociante tinha os olhos úmidos. - Há de casar amanhã mesmo - continuou Valadão, com todo o sangue no rosto. - Só não mando matá-lo para não tornar mais infeliz a minha pobre afilhada. E saiu como um louco para a redação. +
Nessa mesma tarde, para surpresa sua, Morais recebeu or dem para interromper a composição do hebdomadário e, até uma hora da madrugada, trabalhou na confecção de quinhentas cartas, de acordo com a norma que lhe dera Valadão, enquanto o secretário de A Evolução, meio encabulado, se entendia com Dr. Canuto acerca dos papéis de casamento : Benigno Carre gosa e D. Marocas da Silva Carregosa têm o prazer de convidar V. Ex.a e Exm.a. Família para assistirem ao casamento de sua filha Amelinha com o Sr. Durval Costa (D. Costa na imprensa) , rapaz inteligente e conceituado comprador de diamantes, a reali zar-se no próximo dia 28 do corrente em a sua residência. Do outro lado vinha o convite do noivo: Durval Costa (D. Costa na imprensa ) tem a subida honra de convidar V. Ex.a e Exm.a Família para assistirem ao ato civil do seu casamento com a gentil Senhorinha Amelinha da Silva Carregosa, dileta e virtuosa filha do conceituado negociante e agente-postal local Benigno Carregosa e de sua distinta consorte D. Marocas da Silva Carre-
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gosa. O ato realizar-se-á em a residência dos pais da nubente, às vinte horas do próximo dia 28 do andante. •
- O Costa bancou o oficial de verruma - comentou o coletor Barroso, enquanto descascava uma laranja. O bar estava cheio. Ziu passou giz na cabeça do taco e disse : - Já vi que de donzela em Andaraí só vai ficar mesmo o tabelião Romualdo. Uma gargalhada estrondou na praça, à qual chegavam agora os primeiros garimpeiros naquela tarde de sábado. Atendendo -se ao fato de alguns deles serem músicos, o casamento fora adia do para aquele dia, porque a filarmônica fez questão de tocar no baile. IX
Embora recebesse convite para o casamento - o tipógrafo Morais levou-lhe um pessoalmente - Dr. Oscar não se dispôs a abalar o pé do sobrado. Na expectativa do correio, que ali chegava aos sábados, passou grand e parte do dia consumido em ansiedade - da sala para a cozinha, da cozinha para a sala correndo à janela ao menor sinal de aproximação de animais. Ao fazê-lo, porém, verificava tratar-se ora de algum carregador de adobes ou de lenha, com os seus vagarosos jumentos, ora de algum tropeiro que se antecipava à feira, e não dos tão espera dos burros que transportavam as malas postais de ltaetê a An daraí. Com isso, exasperava-se cada vez mais, deixando-se do minar pelo irracional desejo de apresentar uma queixa por escrito à Repartição Geral dos Correios, entrevendo uma censura de escachar em cima de Carregosa, a quem ele intimamente res ponsabilizava por todo aquele atraso, envolvendo na sua surda indignação o próprio casamento de Amelinha - tão inoportuno para um dia d e correspondência! Tendo-se transformado em ver dadeira obsessão, desde o assassínio de Zé de Peixoto, a idéia que sempre tivera de não permanecer em Andaraí, a espera do correio lhe era agora martirizante, tornando-o mais aflito do que nunca por notícias do seu procurador. Como uma possibilidade de libertação, ansiava pela vinda da carta que lhe anunciaria a 184
permuta de comarca, redimindo-o da constrangedora situação funcional em que se encontrava. Afinal, em dado momento, vol tando da janela, gritou para o interior da casa: - Ifigênia, vá buscar a correspondência ! Tinham entrado na praça, tocados por um homem a pé, os animais que em dois dias transportavam o correio através das doze léguas que separavam da cidade a estação ferroviária . •
Não veio carta nenhuma. Agarrando-se a uma última espe rança - abriu precipitadamente o pacote de jornais que a em pregada lhe entregou. O procurador os remetia com regulari dade, e ao tê-los sobre a mesa desarrumada, buscou avidamente entre eles os números do Diário Oficial. Folheando-os sem perda de tempo, para atropeladamente ir ler no corpo 6 dos Atos do Secretário do Interior e Justiça a parte que lhe interessava empalideceu. Ao contrário do que admitira no primeiro mo mento, mal refeito da decepção que lhe causara a ausência de carta do procurador na correspondência recebida, nenhuma linha dizia respeito à outra possibilidade de mudança - à sua remo ção que, conforme dizia Nascimento, haveria de se dar a qual quer hora, por "conveniências políticas c administrativas do município". Por um instante, apoderou-se dele uma tão insofis mável convicção da fatalidade que o esmagava, e tão sombria e impossível de alterar lhe pareceu a situação a que o atirara o destino, que se deixou vergar ao peso de repentina e silenciosa resignação. A vida se lhe afigurou de súbito destituída de espe rança, e a calma que ia lá fora na cidade lhe despertou uma tão nítida consciência de que o tempo avançava e tinha fim, que ele se convenceu da inutilidade d e fazer qualquer coisa que valesse a pena. As palavras de Nascimento perderam todo o sentido para ele, abateu-se de repente todo o seu inconformismo, e a sua própria dignidade lhe p areceu vã. Tudo isso, porém, foi obra de um minuto. Ao lançar os olhos para a mesa, em meio aos outros jornais - um chamou-lhe de pronto a atenção. Entre títulos e manchetes sensacionalistas - um artigo vinha assina lado a lápis vermelho por seu procurador, no evidente intuito de interessá-lo na leitura. A medida que foi tomando conheci mento do texto, a princípio por mera curiosidade, seu pensa mento se desenvolveu ágil e impetuoso, despertando-lhe um fervor e paixão tão intensamente inesperados, que ele próprio se espantava com a transformação operada em seu espírito. 185
- Seu Carregosa disse que é pra mandar o recibo do re gistrado - repetiu a empregada, de pé à porta da sala. Mas ele continuava a ler. Era um violento artigo contra os donos de serra, os compradores de diamantes em geral, suma riamente tachados de "frios exploradores do trabalho alheio". Intitulado "Desgraçados entre Milhões", e escrito por alguém que parecia conhecer de perto a vida lavrista, o artigo fixava em tópicos inflamados todo o drama dos garimpeiros. Ele ia lendo: "É de espantar que, fazendo da "riqueza fácil" um meio de vida, porque efetivamente podem ficar ricos de uma hora para outra, vivam esses homens numa penúria sem remédio, trazendo sempre vazias as mãos que se enchem de tesouros estupendos. Evidentemente, não se pode chamar de outra coisa a não ser de rica uma terra em cujo solo - áspero chão percorrido por pés descalços - a riqueza se apresenta, ou melhor se oferece, sob a forma já requintada do esplendor. Mas, se a enxada rústica do trabalhador ali revolve pedradas, e o pária mais obscuro possa ter de repente, nos diamantes que lhe enchem o côncavo das mãos pedintes, todas as galas de um fausto, a ambição de maiores pro ventos também cobra, como no jogo, os juros amargos dos reve ses. Por outro lado, os sucessos imprevistos dos bambúrrios geram, por sua própria condição, o delírio das façanhas perdu lárias, já que a dissipação, encontrando estímulo nas privações de toda espécie, substitui, no espírito dos homens, a ânsia de possuir por um sentimento correspondente em intensidade: a febre de gastar". Por aí afora, comentando a natureza imprevi dente do garimpeiro, o articulista subordinava o lamentável es tado de coisas ao que ele chamava de "usurpação patronal", res ponsabilizando os compradores de diamantes pelo sombrio qua dro traçado no artigo. Ao Promotor, vivendo em Andaraí desde vários meses, tudo aquilo era sobejamente conhecido - a pres s ão exercida pelos donos de serras sobre os garimpeiros, a exis tência incerta que estes levavam sob a "tirania extorsiva dos capangueiros", e assim toda a "melancólica realidade" - ia lendo - daquele "clima marcado de cobiça e aventura, de desenfrea da ganância e cega dissipação, onde a fortuna casual só fazia acentuar as aflições da miséria permanente". Da leitura do ar tigo, porém, lhe vinha como que a noção exata de uma desco berta, e de tal maneira seu pensamento se identificava com a índole das frases alvoroçadamente lidas, que, embora elas não trouxessem às dúvidas que lhe atribulavam o espírito nenhuma esperança imediata, transmitiam-lhe, entretanto, uma convicta e estranha sensação de triunfo. Sem ligar para nada, nem mesmo 186
para o recibo postal que tinha sobre a mesa e que devia assinar, dobrou o jornal, apanhou o chapéu - e correu ao telégrafo . •
- É de arrasar, Seu Nascimento - foi anunciando o Pro motor, mal chegou ao telégrafo, com expressão ingenuamente interessada e feliz. Em pijama, a barba por fazer, o telegrafista mastigou a ponta do charuto e lançou os olhos ao jornal. - Conheço muito as arengas jornalísticas deste moço disse em seguida, com sincera e desolada indiferença. Dr. Oscar espantou-se. - Não é possível . . . - foi tudo que pôde responder. O outro leu a esmo: - "Tirania extorsiva dos capangueiros . . . " - e encolheu os ombros. Depois dobrou o jornal e acrescentou : - É a mes ma conversa fiada de sempre. O Promotor pôde apenas repetir: - Não é possível . . . - É o que eu estou dizendo - respondeu o outro com simplicidade. - Mas você não acha que isto arrasa? - Conversa - insistiu Nascimento. E acendendo a ponta do charuto: - Sabe por que esse sujeito escreve estas coisas contra os compradores de diamantes? Dr. Oscar não conseguiu articular de pronto uma única pa lavra. Ali no sofá, onde se sentara num movimento instintivo, independente de sua mais legítima vontade, era naquele mo mento uma pobre figura insignificante e desiludida. - Este sujeito é de Palmeiras - continuou o telegrafista. - Vá ver até que isto é alguma matéria paga. O Promotor esboçou uma fraca reação : - Não, não é . . . - mas logo tornou a calar-se, como que duvidando da autenticidade do seu protesto. De qualquer maneira, porém, a enfática explicação que deu a seguir - "Este jornal é um órgão de combate" - lhe pareceu satisfatória. Não conhecia o autor do artigo, em verdade, mas defendendo-o era como se defendesse a si mesmo, pois as palavras que o outro escrevera - bem o sentia - continham tudo o que ele próprio pensava das Lavras. Acabou, entretanto, deixando escapar esta pergunta : - Você o conhece? 187
Nascimento respondeu taxativamente : - É um ladrão vulgar. Em face de tal rompante, o Promotor, embora desapontado, não pôde deixar de rir. O outro, julgando entrever no sorriso do amigo uma manifestação de incredulidade, completou : - Pode escrever com letras de ouro. Trata-se de um ladrão vulgar. Não estou brincando não. E esclareceu : - Ele foi rábula em Palmeiras, antes de se meter no comércio de diamantes. Dr. Oscar surpreendeu-se : - Ah! . . . Ele advogou? - Furtou - emendou incisivamente o telegrafista. Para lhe dizer a verdade, até rato era capaz de ter vergonha dos arrolamentos que ele fez. O Promotor mostrou-se curioso : - E de que vive ele agora? Mastigando a ponta do charuto, Nascimento disse em tom de desprezo : - Vive de expedientes . . . - Mas . . . e estes artigos? - insistiu o Promotor, tomando o jornal entre as mãos. O telegrafista limitou-se a responder : - Satanás pregando quaresma . . . E esboçou um gesto de enfado, enquanto o velho relógio de parede dava horas. Cobrando ânimo, Dr. Oscar continuava a defender no texto alheio as idéias que eram dele próprio. - Mas . . . que diabo! - disse - Será que você não admite o mérito combativo deste artigo? Isto que está aqui - e batia com a mão no jornal - é a verdade sobre as Lavras. - Satanás pregando quaresma - repetiu o telegrafista. - Não vá atrás de conversa d e jornal. E dirigindo-se para a mesa de trabalho, pois ia entrar o horário de expedição, acrescentou : - Invariavelmente, estes artigos aparecem quando a lapi dação que ele possui na Capital está sem estoque de diamantes. Tudo o que você leu aí é chantagem. O que ele quer é tapa-boca. E já com o dedo no manipulador : - O cabra é manhoso. É capaz de mamar em onça. - No caso, esta particularidade me parece secundária observou o Promotor, dobrando lentamente o jornal. - Qual? 188
- A de ele ser proprietário de lapidação e comprador de diamantes. - Por quê? - Bem . . . De qualquer maneira, o que ele escreve representa uma reação, um protesto. Nascimento não respondeu logo. Enquanto tentava comu nicar-se com a estação receptora de Cachoeira, ia passando a vista pelos telegramas taxados . Finalmente disse : - Por que ele não escreve contra os judeus da Holanda e da Inglaterra? Contra o truste mundial de diamantes? Em resu mo, os capangueiros que ele combate, embora sendo um deles, ainda que fracassado, e os donos de serras que ele arrasa, são todos tão desgraçados quanto os mais desgraçados garimpeiros. Vivem todos escravizados aos gringos. O Promotor ensaiou um protesto : O truste é outro assunto . . . - É o que você pensa. - Não senhor. Afinal de contas, qualquer outro setor da economia do país é controlado por banqueiros estrangeiros. E generalizou em seguida, um tanto enfaticamente : - O Brasil, para todos os efeitos, continua a ser uma colônia, esta é que é a verdade. O telegrafista respondeu sem erguer os olhos : - Não entendo de economia internacional. - Não precisa entender . . . Os fatos saltam aos olhos de qualquer um - argumentou fracamente o Promotor. - Não me interessa. Só sei dizer é que o truste mundial de diamantes é que desgraça as Lavras - prosseguiu o tele grafista. E erguendo os olhos, por fim, do manipulador : - Se alguém quer defender as Lavras, o que me parece uma bobagem, tem que começar forçosamente por atacar os trustistas de Londres e os lapidários de Amsterdam. Eles é que são os responsáveis diretos pela instabilidade econômica das La vras. São forjadores das baixas, os donos do mercado, os esti puladores dos preços. Lá é que é o centro de toda a bandalheira - na Europa. Dr. Oscar, para quem a discussão não tinha legitimamente maior interesse, acabou convindo: - Você, em princípio, tem razão . . . Mas . . . isso é tarefa que compete exclusivamente ao Governo. - O Governo não vale nada - interrompeu-o N ascimen to. - O Governo sabe mais do que ninguém que os diamantes 189
das Lavras são os melhores que existem, como também não ignora que esta região é a única que produz carbonatos no mundo. Entretanto, cruza os braços e deixa os gringos agirem à vontade, abrirem seus escritórios e açambarcarem tudo. De lá da Europa eles manobram com o mercado inteiro aqui dentro. O ruído seco e ininterrupto do manipulador enchia a sala. O Promotor levantou-se com o jornal na mão. Sem esconder o seu desapontamento, e já completamente desfeito o alvoroço que o trouxera até ali, abotoou o casaco e disse : - Bem . . . Estou atrapalhando seu trabalho com esta con versa. Vou para casa. E antes que o amigo, curvado sobre os telegramas, respon desse qualquer coisa, acrescentou em tom de pilhéria : - Você hoj e está u m nacionalista feroz . . . Lembre-se des tes pobres homens que são explorados pelos capangueiros e donos de serras . . . O telegrafista respondeu distraidamente : Que homens? - Os garimpeiros . . . - Ora, não confunda alhos com bugalhos! - e Nascimento deu de ombros. - Não vá atrás de conversa de jornal. Quando alguém escreve contra qualquer coisa, como é o caso deste sujeito, é porque tem alguma cavação em vista ou está des peitado. A verdade é que, se não existissem os ricos, tachados de "nababos privilegiados" aí neste artigo, simplesmente porque eles e suas mulheres se enfeitam de diamantes dos pés à cabeça, a situação dos garimpeiros era muito pior, posso lhe garantir. O menos que acontecia era não haver garimpos . . . Ou você acha que eles iam comer os diamantes que pegassem? E esboçando um sorriso, enquanto apertava com a mão es querda a do Promotor, concluiu : - Arranje uns vinte quilates de diamantes para a lapidação deste cabra, que você vai ver ele parar com estes artigos bestas. Garanto que nunca mais ele chama os garimpeiros de "operários da vaidade alheia". •
Cinco horas da tarde. Os caixeiros passavam com o seu pedaço de sabão-massa para o banho no rio, a maioria sem levar toalha, que a praxe era deixar a água enxugar no corpo, en quanto conversavam de cócoras no lajedo. Mulheres-damas com pravam quartos de querosene em meias-garrafas, e os meninos 190
se espalhavam pelas esquinas fazendo o seu comércio de pedras de anel compradas com cédulas de loteria, imitando em tudo os pais, que eram garimpeiros ou capangueiros. O Promotor atra vessou a praça - "Foi cagada!" - gritou um torcedor no bilhar de Ziu, não se conformando com uma carambola - e logo de pois entrou em casa. Durante o jantar, lutou o tempo inteiro contra uma convincente e acabrunhadora impressão: era um fraco, não valia nada. Deitou-se cedo, e por um instante lhe pareceu ridículo o fato de ter associado sua situação a uma coisa tão vaga e remota como era o truste mundial de diaman tes, com sede na Europa. Enquanto rolava na cama, compra zia-se com a ilusão de que o próximo correio lhe traria boas -novas - a notícia da permuta ou da remoção de comarca. Quando já readquiria alguma confiança em si, entrevendo a possibilidade de uma licença para tratar pessoalmente do assun to, e admirava-se de não ter pensado em tal coisa antes, eis que estronda dentro da noite o dobrado 2 de Julho, com va riações de bombardino, executado pela filarmônica no casamen to de Amelinha, com o sereno repleto. Devolvido à esmagadora realidade - Dr. Oscar afundou a cabeça no travesseiro, como que sob a sensação de uma vaia. X
Outro sábado veio depois do casamento de Amelinha. Era pouco mais de quatro horas da tarde, e os caminhos das serras se encheram de garimpeiros que regressavam à cidade. A sua passagem - de pés descalços, ferramenta ao ombro e conver sando em voz alta - as lagartixas corriam assustadas por entre as moitas de imbé. Alguns desciam em marcha acelerada, como que incapazes de resistir ao impulso da própria velocidade que vinham deslocando, embalados pelo arranco inicial da caminha da que empreendiam de ladeira abaixo. Desforravam o tempo gasto na ascensão, que era lenta e cansativa através da estrada íngreme, quando semanalmente deixavam a cidade. Andavam em passo regular, e enquanto andavam comentavam o trabalho que tinham feito durante os últimos dias (havendo sempre alguém para s e queixar do cascalho, que só dava no bagajudo ) , trocavam impressões sobre alguma mulher do cabaré d e Fe lícia, falavam d a negra Bataclã, boa fêmea, mas também uma colher-de-pau de primeira, em cuja casa haviam comido uma 191
moqueca de surubim no sábado anterior, depois de uma farra que acabara de madrugada. Não raro passavam por eles pati zeiros - vindos dos charcos distantes - com balaios d e ba nanas na cabeça e a cara lavada de suor. Ao lado d a estrada, o garimpeiro Carbonato tomava banho debaixo de uma ca choeira. - Ei, negro desmarcado! - gritou alguém. O meia-praça continuou a ensaboar-se, enquanto o seu companheiro esfregava o calcanhar com um bugalhau, cantaro lando em voz alta : Seu Pitá mandou me chamar Pra fazer uma combinação, Pra dar um rebaixo No canal do Laborão . . .
Os que iam passando convers avam : - Você tem tido notícias de Piranhas? - Tenho. Eu estou até com vontade de ir pra lá. Você está doido . . . Doido? Você não soube não? De quê? Do caso de Carolo? - Não. - Carolo resumiu uma cata a semana passada, e foi tão grande a quantidade de diamante que saiu no serviço, que ele botou as mãos pra o céu e disse : "Deus, se é pra castigo, basta!" De novo veio a voz do companheiro de Carbonato : Aprume a broca Bem direitinho, Deixe o cantinho Do Guilherme broquear. Seu Guilherme vai de gatinho E Zé Fiapo vai detonar . . .
Ao mesmo tempo que prosseguia a conversa dos garimpeiros : - É colhuda - disse um deles. - O caso de Carolo? - Sim. Pra mim é colhuda. - Não é não. Mas mentira ou não - muitos deles preferiam ficar em Andaraí a ir para Piranhas. Porque se de lá vinha a notícia do 192
comentado bambúrrio de Carolo, vinha também a da febre de vazante, que estava dando até nas galinhas - com garimpeiros cmpalamados se agüentando em pé a poder de chá de jurubeba com raiz de fedegoso. O companheiro de Carbonato continuava a cantarolar: Acabando a dinamite, Subimos pra gmpiara, Comendo farinha seca E dormindo em cama de
rara . . .
- De Piranhas cu quero estar livre c aliviado - tornou um dos homens. - Seu Patrício só dá garantia a oficial-de -caveira . . . - O delegado? - Sim. A semana passada mesmo um jagunço dele subiu a faca na barriga de um garimpeiro por causa de uma conta de 10$000. - Isso foi em Piranhas mesmo? - Foi. Na beira de uma cerca na Rua do Itaperuçu. Diz que o pobre que tomou as facadas ficou estendido no chão, ge mendo, pedindo água, até que foi indo e o povo deu fé. Mas quando o povo chegou lá ele já havia entregado a alma ao Criador. Agora já não ouviam a voz do companheiro de Carbona to. Caminhavam sobre pedras soltas, raladas das montoeiras dos antigos, e a estrada se tornava mais acidentada e perigosa, for mando íngremes degraus aparentemente intransponíveis, nos lanços dos lajedos broqueados. Em certos trechos, era o cami nho um simples trilho bordejando os canalões revolvidos até a piçarra, o que os obrigava a andar lentamente, não raro se equilibrando nas pinguelas de cocão lançadas sobre os peraus, em cujas profundezas apodreciam os pontaletes de velhos ser viços de talhado. Às vezes, a estrada se mostrava tão cheia de obstáculos, que a outros viandantes menos experimentados ha veria de parecer estarem transviados da rota verdadeira, ao de frontarem-se ora com fundos canais, por eles transpostos aos saltos, ora com os despenhadeiros e precipícios escavados pelas enxurradas, ao longo dos quais desciam, sem nunca se apartarem da ferramenta que conduziam no ombro ou na cabeça, baixan do o corpo como se fossem ficar de cócoras e apoiando-se intei ramente nos pés mal firmados nos ressaltas d as rochas. Em virtude, porém, na dificuldade de locomoção através do trecho 193
que agora atravessavam, iam guardando distância uns dos ou tros, e andavam em fila, muito atentos ao caminho, embora sem interromperem a conversa iniciada. Entretanto, se os que vinham na dianteira continuavam a falar sobre Piranhas, outro já era o assunto de que se ocupavam os que se tinham atra sado : O coronel dá muita asa a Seu Patrício. Nós descemos uma boca de três estados. Viver nas Piranhas é pior do que ser escravo. O di nheiro lá corre frouxo, é verdade, mas volta e meia um garim peiro está indo para o tronco. Vocês estão perdendo tempo. Estão dando murro em faca de ponta. - Só mesmo nas Piranhas, pra se ver nos dias de hoje uma calamidade destas : um tronco no meio da rua, com os presos peados como porcos. - Você é que pensa. Aquilo ali dá diamante. É um ser viço de futuro. - Já vi um garimpeiro atarraxado lá, com o peador esfo lado, e o povo em redor olhando, parecendo feira, só porque o desgraçado tinha roubado vinte mil-reis de quinto. Piranhas não é terra de gente. - Só se for. Conheço aquele lavrado. Futuro passou por ali e disse "Até logo". - Dizem que no começo era pior: os presos não eram re tirados do tronco pra coisa nenhuma. Eu imagino. Com eles comendo e obrando no mesmo lugar, de bruços, é que devia ser mesmo um chiqueiro. - No dia de lavar o cascalho você vai ver a dor de espi nhaço bater. Caminhando por entre moitas de azedinha, entraram em seguida num trecho arenoso da estrada, com um pequeno cór rego deslizando sobre pedras recobertas de limo, cujas margens eram orladas de musgos encharcados. Sobre as lajes onde fir mavam os pés descalços, enquanto andavam se punham de so breaviso, pois, em semelhantes locais, aproveitando-se da som bra e da umidade, não raro se ocultavam cobras sob os tufos de capim - a coral, e sobretudo a não menos venenosa cabe ça-de-patrona. Era necessário surpreendê-las, e isto feito esma gá-las a pedradas ou a golpes de alavanca ou enxada, antes que elas desferissem o bote. Não tardou, porém, e logo tiveram de atravessar novo trecho escarpado. Foi quando um deles gritou, diminuindo os passos : 194
- Cuidado, sócio! Se você escorregar neste perau, antes de chegar lá embaixo você já virou farofa! •
- Olha a canga! O grito veio de um poço onde alguns garimpeiros toma vam banho. Com a tarde em declínio, emanava das rochas co mo que um cálido bafo que se desfazia no ar, e o vento mal agitava as folhas secas dos arbustos tombadas no fundo dos canais. Às vezes, uma gargalhada, um dito malicioso, uma pi lhéria eram ouvidos ao longo da estrada, por onde desciam agora outros garimpeiros. Conversavam : Conheceu a finada Maria Boca-da-Gruna? - Ela morreu?! - Morreu. - Paz à sua alma. Boa fêmea. - Morreu de parto. Com o filho atravessado, assim eu soube. Não houve reza nem parteira que desse jeito. Quem era o pai? - Diz que era Zé Neto. - Eu tive uma cachorra que morreu assim. Já fora da água, os outros garimpeiros se enxugavam com as próprias mãos, e também não tardariam a descer para o co· mércio. Só o bambúrrio fazia com que eles em geral precipitas sem a volta, ansiosos por transformar em dinheiro os diaman tes extraídos; em caso contrário, pegando pouca coisa ou sendo completamente negativo o resultado do trabalho, ou ainda quan do este se achasse apenas em andamento, demoravam-se ordi nariamente em caminho, não raro estacionando em algum lu gar de boa sombra, para beberem água ou fumar. Chegavam a casa quase sempre à tardinha, e, já tendo tomado o seu ba nho de cachoeira ou de poço, trocavam a roupa de serviço e iam então apresentar-se aos patrões, espalhando-se depois pe las ruas d a cidade. Passavam por baixo d a ponte do Sossego com a ferramenta ao ombro, de pés descalços, os velhos cha péus desabados - a roupa de trabalho muito gasta reduzindo -os, por vezes, a uma seminudez disfarçada nas sombras da noi te que se avizinhava, enquanto atravessavam o areão. Vindos dos mais variados pontos de que viessem - todos conservavam os mesmos hábitos. Entre eles, porém, havia uma exceção : Pe dro Almofadinha, o conhecido garimpeiro bamburrista, agora trabalhando para os lados do João Pereira. Ao chegar aos em195
burradas do Viriato, já às portas da cidade, vestia a roupa de casimira trazid a em um pequeno fardo, calçava os sapatos no
- Eu estava lá na noite do rolo - disse um deles. Quando Alfredo Tiborna deu os tiros, Martiniano arrancou pe l a janela do fundo que só foi tomar fôlego quando estava a 196
três léguas de distância. O finado Arquimedes , que não tinha nada com o peixe, foi quem pagou o pato. - Dizem que Alfredo Tiborna até hoje tem vergonha do que aconteceu. - Ê isso mesmo. Eu soube até que depois ele foi pedir desculpas à viúva do finado Arquimedes, explicando que os ti ros eram pra Martiniano. E conversando sempre, continuaram a descer a serra. De repente, porém, diminuíram os passos. Tinham chegado diante de uma enorme pedra, por trás da qual latia um cachorro.
XI
Era a Pedra do Conselho - nom e que lhe fora dado em alusão às sessões do Conselho Municipal : à sua sombra se reu niam habitualmente os garimpeiros para conversar, enquanto descansavam da longa caminhada de volta. O cachorro que la tia era o de Joaquim Boca-de-Virgem, já ali desde algum tem po em companhia de Filó Finança, Silvério e Neco Rompedor. Encravada na serra - rocha escalvada avultando em meio à vegetação baixa das samambaias e dos gravatás - era a Pedra do Conselho como que a ante-sala da cidade. Dali eles viam, lá embaixo, o casaria branco agrupado como um rebanho no fundo do vale, as torres da igreja, os muros d e pedra seca, e, em outro plano, os ranchos do Ribimba, como que atirados a esmo sobre o barranco, com vagas formas se movimentando em volta deles : mulheres, crianças e porcos. Mais acima, batido de sol, o chalé de Seu Durães era uma mancha parda recortada contra o verde da mata, que se desdobrava para além, até onde a vista alcançava, com as velhas mangueiras do quintal como que o retendo pelos galhos no alto da rampa íngreme. Dentro de uma nuvem de pó - um homem chiqueirava cabras. Embai xo, as ruas davam para os rios empoçados, com as cercas e os muros se estendendo ao longo dos areões, e a paisagem era então toda ela um amontoado d e pedras, de onde emergiam te lhados e moitas de bananeiras. - Cheguem pra diante - disse Filó, interrompendo a conversa. - Puxem as cadeiras e sentem no chão. Os outros, tão logo chegaram, espalharam-se em volta, sentando-se ao lado da ferramenta, que punham no chão, so bre alguma pedra ou ponta de lajedo. Um deles, dirigindo-se 197
para um pequeno córrego que deslizava um pouco abaixo, cur vou-se sobre a água e, sofregamente, bebeu uma grande quan tidad e nas mãos em concha. Trazia muita sede, e quando de novo se juntou ao grupo, sendo recebido com latidos do ca chorro de Joaquim Boca-de-Virgem, já Filó retomara a con versa. Dizia : - Carbonato como o que saiu no Brejo da Lama, em Lençóis, nunca mais ninguém pega nas Lavras. - O de libra e meia, que Seu Sérgio Bezerra comprou? - perguntou um dos garimpeiros que haviam chegado. - Sim. Seu Sérgio Bezerra, de sociedade com Antônio Xavier, porque nenhum deles tinha o dinheiro completo. - Quanto era? - indagou Silvério, com o toco de cigarro preso entre os dedos. - Cem contos. O outro pôde apenas murmurar : - Pilhéria . . . - Gatos e cachorros sabem disso - prosseguiu Filó. Só de quinto a sociedade pagou vinte pacotes. As duas somas, enumeradas de maneira tão imprevista, provocaram em Silvério o espanto de uma revelação: parece ram-lhe, no primeiro momento, demasiado vultosas para alguém se fazer dono delas, o que lhe trouxe uma estranha sensação de revolta. - O quinto é um roubo . . . - protestou instintivamente. - É roubo, mas é a lei - disse calmamente Neco Rompedor. - Agora eu lhe pergunto : Qual é o garimpeiro que vai cair na asneira de não se conformar com a lei? As escrituras garantem o chão dos donos de serra, e ninguém pode tirar esse direito que o Governo dá a eles. - Mas o carbonato valia mais - continuou Filó. - Os garimpeiros deitaram bainha. - É o destino da gente - aparteou Joaquim Boca-de-Virgem. - Nós sempre deitamos bainha. Só quem sabe do preço verdadeiro de diamante e carbonato são os capangueiros. - Nem eles - voltou a falar Filó. - Os gringos é que sabem. Esse carbonato mesmo foi vendido depois por cento e oitenta contos. - Aos gringos? - interrompeu-o Silvério. - Sim - continuou o outro. - Os gringos sabiam que ele valia quatrocentos. Quatrocentos contos? - Sim. 198
- Como é que você sabe disso? - Todo mundo sabe. Os gringos têm o comerciO de diamantes e carbonatos nas mãos. Eles é que sabem dos preços verdadeiros. - E quando as Lavras se acabarem? - Pior pra nós. - Mal dos sabidos se não fossem os tolos - sentenciou um velho, entre duas baforadas. - Boa tarde - disse alguém que ia passando. Todos olharam : era o garimpeiro Adolfo, que voltava à cidade, com as calças arregaçadas e os instrumentos de traba lho transportados em feixe sobre o ombro. Ninguém deixava a ferramenta na serra, com receio de ser roubado, pois sempre havia alguém capaz de fazer mão leve nas coisas dos outros. - Boa tarde - responderam. A amiga de Adolfo, magra, uma tábua, ia na frente dele com uma trouxa na cabeça. Conservando na boca o cachimbo apagado, falava por entre os cacos de dentes. Finas eram as suas pernas e estreitos os seus quadris, de homem eram as suas passadas largas, nenhum atrativo havia no seu corpo gasto, mas sua presença na estrada, o vestido de chita vermelha muito jus to nas nádegas murchas, trouxe aos garimpeiros uma sugestão de prazer : era uma mulher. Joaquim Boca-de-Virgem lembrou-se de Rita Pandeiro, de cujo amor se privava durante os dias de trabalho na serra. A contragosto, nunca a trazia para o garim po, por causa das freguesias de roupa lavada e engomada com as quais ela arranjava sempre algum dinheiro : ajudava-o nas despesas. - Aqui na serra - comentou Filó - uma negra de ca nela fouveira como essa de Adolfo bem que já serve. Houve risos entre os demais garimpeiros. A mulher ia ago ra desaparecendo na estrada, com a sua pequena trouxa feita com um cobertor dorme-bem : carregava na cabeça o seu pró prio leito. - De qualquer maneira - conveio Neco - ele passa melhor do que a gente. Tem a sua costela certa toda noite, o seu pé-
que os gringos iam comprar diamantes pra guardar? Eles vão vendendo sempre - vivem disso. - Mas se não fosse a gente . . . - O que é que tinha? Silvério vacilou : - . . . a gente . . . você . . . eu . . . Quer dizer . . . se não fosse a gente . . . que pega no pesado . . . que escavaca o chão pra ir tirar os diamantes e os carbonatos lá de dentro . . . - Sim. O que é que tinha? - insistiu Filó. - Nós é que não passamos disto : vivemos sempre com uma mão atrás e outra adiante. Nunca temos nada . . . - O bocado não é pra quem faz - disse um dos garimpeiros que tinha chegado por último. E acrescentou : - Pobre na festa, pau na testa. - Deus já fez o mundo assim - opinou Joaquim Boca-de-Virgem. - Ninguém pode consertar o que Deus fez. Cada qual já nasce com o seu destino traçado. - E se chorar é pior - observou outro garimpeiro. - E se torcer - ajuntou outro - o buraco é maior. Desde o começo do mundo que existem ricos e pobres. É da vida. Em todo lugar é assim. A trouxa da mulher de Adolfo reaparecera numa dobra da estrada, já bem distante. E Boca-de-Virgem completou : - Se não fossem os pobres, os ricos não existiam. Mas também, se os ricos não existissem, de que é que os pobres iam viver? - O sócio tem cegueira de ficar rico - explicou Filó com ironia. Silvério protestou fracamente : - Eu não tenho cegueira de nada . . . Depois, num ímpeto, pensou em argumentar com a impre vidência dos companheiros, os quais, na sua opinião, não se podiam queixar da sorte : todos eles já haviam pegado em bom dinheiro e jogado fora. Mas continuou calado, admitindo que o seu caso pessoal era diferente : tinha planos e ambições. Ia voltar para o sertão e comprar o seu pedaço de terra! •
De novo a conversa recaiu sobre carbonatos grossos. Re lembraram a história de um de três mil grãos, saído nas Piçar ras1 e com o qual Seu Isaías ganhara sessenta contos, fazendo 200
a sua independência de uma vez. Depois falaram no de Antônio Félix, pegado em Xiquexique, e até no de João Gancho falaram - tendo Filó considerado que se tratava de um carbonato extra, que fora vendido por quarenta contos no "tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça". Na evocação desses antigos bambúrrios, testemunhados por companheiros mais velhos, nos quais faziam questão de acreditar, iam encontrando eles novas forças para as suas esperanças e novos argumentos para os seus fracassos : precisavam contar sempre com o acaso. Por fim, fa laram no carbonato de Seu Felício, com vinte e duas oitavas, encontrado pelo meia-praça Zé Cândido do Garapa, e vendido a Seu Pitá. - Foi um bambúrrio muito mal empregado - comen tou Filó. - Pra que é que Zé Cândido quer dinheiro? Não bebe . . . não trepa . . . - Será que ele é bicho-de-blusa mesmo? - duvidou Joa quim Boca-de-Virgem. - Se a gente fosse botar gongolo em xibungo - disse Filó, confirmando a seu modo a acusação - ele e o tabelião Romualdo não deixavam mais ninguém dormir em Andaraí. E cuspiu de lado. Alguns garimpeiros riram da extravagante idéia. Boca-de -Virgem de novo se lembrou de Zé Cândido - da sua figura austera, do seu bigode, do seu chapéu-chile, da sua imponência quando conduzia o turíbulo na procissão do Divino, de roupa preta e colarinho duro, e de quando ele passava para a serra, de capanga no ombro e calças arregaçadas, o punhal zé-tran qüilino na cintura, parecendo mais um cangaceiro. Era inacre ditável! - Ele não pode ver homem . . . - esclareceu Neco. Silvério, porém, tinha a atenção voltada para outro assunto. - Mas será que essa pedra que nós pegamos - disse é carbonato mesmo? Joaquim Boca-de-Virgem, qu e a examinara logo que ali chegou, a pedido dos companheiros, repetiu : - Pra mim é. A grã é de carbonato. Filó mostrava-se incrédulo : - Pra mim é uma ferragem. E retirando mais uma vez a pedra da capanga, de novo a fez rolar entre as pontas dos dedos, olhando-a sem interesse. Era pouco maior do que um caroço de umbu, porosa, opaca, e, embora de cor negra mais acentuada - estava convicto de ser uma ferragem que nada diferia das outras que já vira.
- Nem sei mesmo por que eu trouxe ela - acrescentou. - Foi bom ter trazido - disse Neco. - É uma informação bonita, e Seu Teotônio vai gostar de ver. É sempre uma prova de que o garimpo é rico. - Ouçam o que eu estou dizendo - voltou a insistir Bo ca-de-Virgem. - Vocês estão com um carbonato seguro. Um garimpeiro recém-chegado de Palmeiras entrou na conversa. - Carbonato é um trem misterioso . . . - disse. - Até os capangueiros estão sujeitos a se enganar com ele. Parece até que tem encanto . . . - Não viu o caso de Agulhão? - lembrou outro. - Qual foi o caso? - perguntou Silvério, sem desviar os olhos da pedra que Filó conservava entre os dedos. - Agulhão encontrou um dia um ferrajão - foi con tando o outro - e levou de presente pra Seu Bacelar. Seu Bacelar achou a pedra muito bonita, e deu um mil-reis a ele pra comprar charuto. Fez uma pausa, como se procurasse recordar algum deta lhe importante, e continuou : - A pedra ficou mais de um mês em cima da mesa de Seu Bacelar, servindo de peso de papel. Quando foi um dia, Seu César de Mucujê entrou lá e disse: "Mas compadre, como é que você tem coragem de deixar à-toa um carbonato deste tamanho?" Seu Bacelar quase cai pra trás. - E era carbonato mesmo? - interrompeu-o precipita damente Silvério, ao mesmo tempo que Filó de novo recolhia a pedra à capanga : Neco acompanhou-lhe o movimento com os olhos. O garimpeiro que contava o caso (era um homem doca, que trazia a baga de cigarro entalada atrás da orelha ) respon deu em tom irônico : - Era um carbonatinho que foi vendido por quatrocentos contos. Silvério ainda perguntou : - Agulhão ganhou alguma coisa depois? O garimpeiro respondeu : - Ganhou fogo na bunda. O caso era bastante conhecido - mas só agora Filó se lembrava dele. Havia no seu rosto barbado um ar de apreensão mal disfarçado. Quando se dirigiu a Joaquim Boca-de-Virgem - ele próprio notou - o fez de modo pouco espontâneo : pen202
sava mais na pedra do que no companheiro que a identificara como sendo um carbonato. - Pode ficar descansado, sócio . . . - disse. - Se seu palpite for certo, nós vamos lhe pagar umas alvíssaras gordas. Mas Silvério continuou : - Você está falando a verdade mesmo? - dirigia-se ao outro garimpeiro. Este confirmou veemente, no que foi secundado por vá rios dos seus companheiros ali reunidos. Neco lançou os olhos à capanga de Filó : era como se a própria pedra de Agulhão estivesse guardada ali dentro. - Quer dizer que se não fosse Seu César - prosseguiu Silvério - Seu Bacelar não ia saber nunca . . . - Não . . . E Seu Bacelar era um homem que tinha nas cido com os dentes em cima de carbonato. Conhecia carbonato mais do que ninguém, vendia carbonato todo dia pra indústria dos gringos, e até ele se enganou. É por estas e outras que o povo diz que carbonato tem encanto . . . Filó já readquirira o mais completo domínio sobre a sua emoção : a perspectiva do bambúrrio tomara demasiado vulto em seu espírito para que ele não acreditasse na revelação do companheiro. - Seu César ganhou de alvíssaras uma vitrola - disse, em tom de troça, aos sócios. - Mas com a gente Joaquim vai lucrar mais : vai ganhar e arreganhar . . . A pilhéria, arrematando de maneira tão imprevista a conversa, provocou risos, enquanto Boca-de-Virgem replicava : - Eu só faço ganhar. Sua mãe é que arreganha . . . Mas Filó era ligeiro na resposta: - A minha, não; a sua, que arreganhou pra meu pai . . . Houve, então, uma gargalhada geral na Pedra do Conselho. •
Não demoraram muito ali : grandes sombras se estendiam pelos caminhos que conduziam à cidade, a luz do Sol incidia fracamente sobre a mancha branca e alongada d o areão dis tante, pairava no ar um cheiro ácido de mato - era o fim da tarde que se aproximava, com a serra de contornos densos encurralando o horizonte. Começaram a descer. Filó ia na fren te. Se muitos deles apressavam o passo, outros andavam vaga rosamente, cheios da paz e da calma que os cercavam: a natu reza selvagem como que se transfigurava no silêncio, os arbus203
tos se inclinavam ao fraco sopro da aragem, já nenhum pássaro cantava, o hálito da noite próxima envolvia-os em cálida atmos fera de segurança e conforto : estavam regressando. Do outro lado - o chalé solitário achatava-se contra a barra sangüínea do céu. Onde terminava a mata - estava o dia se extinguindo. A conversa os prendera na Pedra do Conselho mais tempo que de costume, e agora viam Filá andar na frente, com a capanga onde guardara a ferragem, a caminho do escritório de Seu Teo tônio. Silvério o seguia de perto. Habituado a ouvir histórias de bambúrrios desde que chegara a Andaraí, um como bem -estar inquieto erguia-se dentro dele agora : talvez tivesse che gado o momento de não se arrepender de ter vindo do sertão. Com o pensamento na pedra que o sócio encontrara, o seu ros to esquálido e barbado revelava uma ansiedade irreprimível. Outro não era o pensamento de Neco: seria realmente um car bonato? Em dado momento, sentiu que era uma espécie de covardia preocupar-se com AQUILO. Se Boca-de-Virgem, ve lho amigo seu e de Filá, não a identificasse ali na Pedra do Conselho, não era possível que eles deixassem a pedra cair em poder de Seu Teotônio como sendo uma simples ferragem : ha veriam de descobrir, à última hora, que tinham bamburrado. De repente, uma imprevista esperança d e felicidade o dominou : poderia gabar-se mais tarde, no cabaré de Felícia, de ter feito dinheiro no garimpo aquela semana. Os outros garimpeiros ca minhavam atrás dos três sócios. Também pensavam na pedra que Filá carregava na capanga. A ambição deles, porém, tinha algo de dignidade : uma certa virtude na intenção de explorarem os companheiros na cidade, tirando proveito do dinheiro que não lhes tocava. Iam beber à custa de alguém - e esta idéia era o bastante para não se considerarem sem sorte naquele sá bado em que nada haviam pegado : pegariam em outro. Quan do menos esperaram - as primeiras casas apareceram. Em algumas delas já havia luz. Mulheres voltavam do banho no rio, outras passavam com latas de água na cabeça - muitas delas com latas novas, que também lhes serviam de espelho para pen tearem os cabelos ali mesmo no rio. Em torno das cacimbas outras conversavam. De um rancho saiu uma negra areando os dentes com uma pont a de charuto : ficou a observá-los, enquan to uma velha tangia as galinhas que se tinham metido atrás de uma moita de mato. O cachorro de Joaquim Boca-de-Virgem latiu. As sombras da noite envolviam aos poucos as ruas movi mentadas - a cidade se abria como um golfo onde os lampiões eram claridades empoçadas. Um sapo cantou num bueiro. Na 204
orla da mata do Ribimba havia uma forma vaga - o chalé de Seu Durães, entre casebres e fifós acesos. Enchia o ar uma con fusão de rumores conhecidos. E eles entraram na cidade com aquela segurança de quem reconhece estar em sua própria casa. XII
Mal trocaram a roupa de serviço e guardaram em casa a ferramenta - nem pensaram no churrasco do jantar - logo depois de novo se encontraram, pois estavam morando perto um do outro, todos trê's ali mesmo no Ribimba - àquela hora com os filhos de Salu comendo as mandioquinhas que o pai trazia da serra no carumbé, com a negra Vitalina se penteando diante do caco de espelho, o vestido de chita passado a ferro em cima da cama, enquanto algumas velhas se dirigiam com os seus xales para o Ofício rezado em casa de Sinhá do Ouro, sendo que esta, ao contrário de Rita Pandeiro, já sentia ir bem longe o tempo em que tomava banho com sabonete de benjoim para esperar pelo seu homem. Os três sócios caminhavam apres sadamente. Ao chegarem, porém, ao topo da ladeira, alguém chamou por Filó. Voltaram-se : de dentro da noite - onde os fifós eram chamas vacilantes - veio andando um homem nu da cintura para cima. - Vocês bamburraram? - perguntou. Foi Neco quem respondeu : - Ah, é você! Que é que há, Saiu? - Eu soube do carbonato . . . - Nós não sabemos de nada ainda - disse Filó. Agora é que nós vamos ao escritório de Seu Teotônio. O outro homem pareceu hesitar : compreendeu que os co nhecidos tinham pressa. Por fim - depois de um curto silên cio constrangedor - disse : - Eu não lavei esta semana. Estou sem dinheiro. Vocês podem me arranjar dois mil-reis? - Mais logo - respondeu Filó. - Depois que a gente vender a pedra. - É porque minha mulher está grávida . . . está de- de sejo - continuou Salu. E acrescentou, como se isto tivesse importância : - Se eu não comprar as bolachas-d'água , ela pode per der o menino. 205
- Mais logo - repetiu Filó. - Agora nós também não temos dinheiro. Silvério sugeriu instintivamente, dirigindo-se a Salu : - Pra mim, você devia pedir a seu patrão, já que se trata de um caso destes. Sua mulher não pode ficar esperando . . . De um rancho próximo saiu um menino corr·endo rua acima. - Me acode, gente, que minha mãe quer me bater! foi gritando. Uma mulher assomou à porta com um fifó na mão. Na impossibilidade de seguir o filho, observou por um instante os quatro homens que conversavam, e de novo o seu vulto des grenhado desapareceu no rancho. Salu continuou, como se não tivesse ouvido nada: - Meu patrão não dá. Esta semana eu deixei de traba lhar dois dias, estive doente, com uma dor aqui do lado, nem sei mesmo como foi que apareceu, e ele não vai me dar dinhei ro. Vocês sabem como são essas coisas . . . Se ele me der hoje, no dia do saco ele vai querer descontar. - Mais logo eu lhe dou - frisou Filó. - Não vou dei xar um companheiro se apertar por causa de dois mil-reis e sentiu-se satisfeito com suas próprias palavras. - Pode ficar descansado, que, pelo menos desta vez, sua mulher não perde o filho não. Um voz resmungava agora dentro do rancho de onde cor rera o menino : - Moleque sem-vergonha! Comeu a rapadura toda. Quan do ele voltar vai ver. Salu foi caminhando lentamente para o rancho: não tive ra coragem de confessar aos companheiros que o patrão o des pachara naquele sábado em virtude de ele não haver pegado diamante. Ao volver o rosto na direção da ladeira - já os três sócios eram formas vagas dentro da noite. Do outro lado do rio as luzes das lojas abertas brilhavam. XIII
Ali estava a praça : algumas lojas iluminadas a acetileno, outras com bojudos candeeiros pendentes do teto e os caixei ros sem jantar até aquela hora, a freguesia no balcão, entre caixas de sapatos e peças de brim desdobradas ao metro solí206
cito e atento das vendas de oportunidade. Movimento hebdoma dário dos sábados, de torvelinhante e mulherenga rotina noturna, com garimpeiros regressando à cidade, onde entravam - pri meiro - nos escritórios dos patrões para entregar os diaman tes, e depois nas casas de negócio de relativos estoques empra teleirados, nas ditas lojas, ou nas vendas com garrafas de ca chaça como que boiando empalhadas no denso fumaceira dos cigarros pitados em confusos e gargalhantes ajuntamentos, ou nos cabarés embandeirolados - para gastar o dinheiro da par tilha contabilizada da meia-praça. Mulheres-
- Eu também tive um caso pra resolver - conveio Alí pio em seguida. - Desci da serra mais cedo. Não podia mesmo me encontrar com vocês lá. Em torno do tabuleiro de Seu Dudu - a luz da loja de Benigno Carregosa incidia sobre ele - mulheres-damas con versavam em voz alta. Um homem veio acender o cigarro na baga que outro trazia no canto da boca. Andou olhando os bci jus enrolados com coco ralado - especialidade de Seu Dudu - e pilheriou : - De quem é essa obra? Uma negra repimpada no vestido de estamparia larga soltou uma gargalhada : a palavra obra fazia-a rir sempre. Filó perguntou a Alípio : - Que é que houve? O gerente explicou : - Tomás, aquele que trabalhava de mergulho, não sabe? bateu o quinto. Ladrão sem-vergonha! Negro cnrolista desca rado. Atirou fora o toco de cigarro (tinha agora um ar de triunfante dignidade ) e acrescentou : - Eu vim desenrascar o caso. Seu Teotônio me mandou. - Ele roubou? - Quem? Tomás? - quis saber Alípio. Fora Silvério quem perguntara : o roubo de quinto lhe pa recera sempre uma audácia ele que não se sentia capaz. O gerente continuou : - Pegou uma pedra de dez grãos c vendeu sem Seu Teo tônio saber. Silvério não dava pelo povo que passava para a igrej a : moças ele braços dados, moleques conduzindo cadeiras na cabe ça como em noites de circo e ele cinema, velhas devotas se apressando para pegar um bom lugar perto do altar-mor, e, em meio do grupo numeroso e vário, o mestre Fonseca com o bom bardino no ombro : os mordomos tinham caprichado para a últim a noite ser de arromba. Foguetes estouravam ao longe. Indiferente a tudo isso - Silvério pediu detalhes : tinha a aten ção inteiramente voltada para a história que Alípio contava. - Ele trabalhava sozinho? - perguntou. - Trabalhava - esclareceu o gerente da serra. - Quando há sócio sempre há alguém pra contar. Interrompeu-se por um momento, para responder ao boa -noite do garimpeiro Justiniano, executante de requinta na cha208
ranga do Divino Espírito Santo, e vindo da Passagem especial mente para tocar no leilão, e completou : - Tomás já trabalhava sozinho de mamparra. - E como foi que descobriram? - perguntou Neco instintivamente. Silvério estava atento : era justamente a pergunta que ia fazer. O gerente sorriu : - Força de dinheiro . . . - disse. - Seu Teotôni o sou be que ele tinha comprado um corte de H. J. na loja de Seu Benigno. E adotando uma atitude agressiva : - Mas o cabuleté negou : disse que tinha comprado o brim fiado. Foi quando eu cheguei - continuou. - Já Seu Teotônio tinha conversado com Seu Benigno. Mas mesmo assim o moleque continuou a negar. Nunca vi uma boca tão dura! O desgraçado fez dois rastros com um pé só pra me embrulhar. Eu, porém, fui logo às vias de fato, que eu conheço bem com quem lido. Peguei ele no estreito e disse : "Desembucha, meu filho. Senão eu lhe meto uma bala. Faço de sua barriga uma pe neira". Eu só falei pra amedrontar - observou. - Não ia gastar bala com ele. Sabia que ele não agüentava um aperto. E foi dito e feito : na voz do tiro, ele afrouxou os nervos e con tou tudo. Filó ouvia o caso com indiferença. De repente, porém, um detalhe assumiu para ele verdadeira importância : quis saber quem comprara o diamante. - Seu Mansur - esclareceu Alípio. - Foi aquele grin go ladrão! Não podendo conformar-se com o fato de ter sido ludi briado na fiscalização dos garimpos, sentia-se mais prejudicado que o próprio Major Teotônio, dono da serra onde o garimpei ro trabalhava. E no mesmo tom de indignação: - O patrão foi que deixou de receber o quinto, e ainda por cima perdeu o diamante. Seu Mansur não devolveu. Outros foguetes estouraram ao longe : a novena começara. O movimento da praça aumentava sempre. Os mosquitadores, de pé nas esquinas, abordavam os garimpeiros que passavam : - Me mostre uma coisinha aí, velho. Alguns garimpeiros explicavam a seu modo o fracasso da lavagem do cascalho : 209
- Esta semana eu não vi nem a cor. E iam passando : adiante, as mulheres-damas menos fa vorecidas os esperavam para lhes pedir "um centenário pro café". Em toda a praça, enfim, havia um assédio mútuo de gente interessada em dinheiro : o diamante era a mercadoria circulante e o dinheiro dependia exclusivamente da boa ou má sorte dos garimpeiros. Os mosquitadores insistiam : - Eu tenho bom preço - dizia um. Outro chegava ao ponto de apalpar os bolsos dos garim peiros transeuntes : procurava o providencial picuá trazido da serra, no intuito de disputá-lo aos capangueiros. Em meio à competição comercial - os garimpeiros eram objeto das cogi tações gerais : sustentavam a cidade. Alguns, ao se verem asse diados à porta vigilante dos escritórios, explicavam que só po diam vender suas pedras aos patrões : tinham compromissos na tm·ais com os fornecedores. Obstinadamente, porém, todos os compradores se mantinham como a prostituta que recebe um homem, logo o esquece e se prepara para começar novamente: há sempre possibilidade de surgir outro. E com isso a praça fervilhava de gente - as lojas escancaradas como ancoradou ros efêmeros. - Seu Teotônio ainda apelou pra Dr. Marcolino - conti nuou Alípio. - Mas Dr. Marcolino disse que Seu Mansur não tinha culpa nenhuma, que garimpeiro ladrão não traz letreiro na testa, que Seu Mansur tinha comprado a pedra de boa-fé, e mais isto, e mais aquilo, bambambã, caixa-de-fósforos, que nin guém pode adivinhar se um diamante foi roubado ou não, e que o melhor mesmo era dar o caso como encerrado e meter o garimpeiro na cadeia. Assoou o nariz com as pontas dos dedos e continuou: - Pra mim, o verdadeiro ladrão é aquele que se pega com o furto na mão. Depois limpou as pontas dos dedos nas calças, encolheu os ombros c arrematou em voz baixa : - Mas Seu Teotônio preferiu seguir o conselho de Dr. Marcolino . . . E o gerente voltou a altear a voz : - Comeu oito dias de cadeia o safado do Tomás. Cabra enrolista! Pensa que a serra dos outros é cu-de-mãe-chica! Já tinha gasto o dinheiro todo, mas mesmo assim eu ainda pude salvar alguma coisa do prejuízo do patrão. 210
Em seguida, como se isso lhe parecesse um feito memo rável, concluiu de modo arrogante : - Fui na tenda de Oquitiano e arranquei de lá o unifor me de H. J. •
- Pois está certo. Seu litro de conhaque fica pago no botequim de Leó. É só você chegar lá e pedir. E dizendo isto, Filó e os companheiros se despediram do gerente Alípio, que se dirigiu logo depois para a Rua do Sapo: a mulher estava à sua espera para tomar café - explicou, co mo se isso pudesse ter alguma importância para os garimpeiros. Estes tomaram imediatamente o destino deles : o escritó rio de Seu Teotônio. De todos os lados as ruas movimentadas vinham dar na praça : homens passavam conversando em voz alta - uns, trazendo garrafas na mão para comprar, nunca se sabia ao certo, se querosene ou cachaça, outros, logo estacionando em torno dos tabuleiros ou à porta de algumas casas de negó cio, e outros, ainda, se reunindo a mulheres alegres e excitadas nos grupos que demandavam o Beco da Lama. Tudo se pro cessava como num ritual conhecido : gente para baixo e para cima, cachorros rondando a calçada do açougue, de onde ia saindo agora o velho Torquato com a sua gamela d e fato, e sempre gente e mais gente - dos ocasionais caixeiros-viajantes se exibindo na elegância ambulante dos jaquetões de linho bran co, aos grupos familiares esparramados em cadeiras trazidas para os passeios das respectivas casas : moças e senhoras que não tinham ido à igreja e se distraíam. E a garimpeirada solta! Alguém noticiava um bambúrrio : - Eu vi ele dando 20$000 a quem trocasse uma nota de quinhentos. O povo juntou pra ver. Enquanto isso, o sino continuava a bater ao longe, cha mando os fiéis para a última noite da novena: corria a notícia de que ia haver bênção. Ao mesmo tempo, para os lados do Beco da Quitanda e adjacências, já uma ou outra harmônica gemia nas salas multitudinárias dos cabarés: os pares dança vam sob bandeirolas. - Por Seu Mansur é que Seu Teotônio não sabia nunca - disse Filó. Os três passavam agora entre jumentos que comiam cas cas de frutas na praça. A esses animais também pertenciam as ruas da cidade, por onde andavam à noite à procura de even211
tuais rações, e, não raro, as mães de família eram obrigadas a sair das janelas iluminadas - por trás das quais se via o habitual Coração de Jesus entronizado - ao ouvirem o menor relincho deles : a todo instante era possível manifestar-se, entre coices, a liberdade garanhonesca. - Quem compra diamante roubado nunca fala - con tinuou Filó. - Tem medo de perder a freguesia. - Tomás teve raça - admitiu Silvério. Sua consciência voltara a trabalhar de modo mecânico : nunca lhe fora dado distinguir com exatidão os atos de que ele próprio era capaz. Pra bater um quinto é preciso ter coragem - acrescentou. O dono da serra acaba sempre descobrindo. Filó encolheu os ombros. - Precisa ter mais jeito do que coragem - disse. - Pe gando de dois diamantes pra cima é mais fácil : é mostrar o maior ao dono da serra, e vender o outro escondido . . . Embora a teoria não se ajustasse ao caso deles - Neco sorriu : era sempre uma perspectiva de se enganar o patrão. Filó, porém, não chegou a desenvolver sua argumentação : esta vam agora os três diante da porta do escritório de Seu Teotô nio, pegado à farmácia, onde o empirismo da freguesia noturna estropiava os nomes dos remédios - do sujlato de solda ao pedamaganato das lavagens uretrais. XIV
Era o conhecido escritório : a primeira coisa que se via era o cofre. Em cima de uma mesa - como peças de uma engrenagem desmontada - encontravam-se pinças, lentes, pi cuás, conchas de alumínio e duas ou três balanças ao lado de um litro de conhaque: estava um pouco acima do meio. Uma das balanças - armada no interior de um pequeno armário envidraçado - servia para calcular a densidade dos carbonatos. Deve-se esclarecer que tudo isso se achava resguardado por um tabique. Finalmente, um candeeiro de sólido e reluzente bo cal - e por trás dele uma cara que lembrava uma bola de pa pel amassado. Era a cara de Seu Teotônio. Primeiro veio a voz de Filó - "Boa-noite, patrão . . . Com licença . . . " - e os três se acharam em seguida na sala. Olhan do-os do outro lado do candeeiro, o capangueiro se mantinha em expectativa. Por força do hábito, perguntou logo depois: 212
- Vocês pegaram alguma coisa? E continuou a olhá-los : eram seus garimpeiros. A esse ra ciocínio, o capangueiro experimentou a reconfortante sensação de propriedade que a presença dos meias-praças lhe transmitia : eram homens que traziam em si o ímpeto transfigurador do sortilégio das serras. Notou que Filó tinha uma expressão de ansiedade. E acrescentou incisivamente : - Alípio me disse que vocês iam lavar hoje. - Nós lavamos . . . - respondeu Filó. Lembrando-se, então, que não tirara o chapéu ao entrar na sala, fê-lo imedia tamente, no que foi seguido pelos companheiros : os três fica ram embaraçados por um momento. Logo, porém, Filó escla receu : - Pegamos um carbonato . . . E meteu a mão no bolso. - Feche a porta - ordenou Seu Teotônio em voz baixa. Havia nele, agora, algo semelhante à forçada dignidade de um conspirador que sabe de antemão o que vai acontecer. Com o chapéu debaixo do braço, um tanto atabalhoada mente, Silvério apressou-se em fechar a porta do tabique. De pois de o fazer, sentiu que o ambiente estava impregnado de uma intimidade que lhe pareceu grata : ia participar de um enten dimento privado com o patrão. Filá passou a Seu Teotônio a usada caixa de fósforos onde o carbonato fora introduzido com dificuldade : não havia ca bido no seu picuá de imbé - mesmo no mais grosso. Mas como se se tratasse de um verdadeiro picuá - sacudiu a caixa -de-fósforos antes de a entregar ao patrão. Era esse um hábito comum entre os homens que em qualquer circunstância ven diam diamantes. Faziam chocalhar as pedras dentro do picuá, como se lhes fosse absolutamente necessário demonstrar que não estavam mentindo: - as pedras se encontravam ali. E ainda como se fosse um picuá, Seu Teotônio devolveu a caixa-de-fós foros aberta : era uma maneira de desejar que outro carbonato nela ocupasse futuramente o lugar daquele que tinha agora sob seus olhos. Esvaziar um picuá e devolvê-lo arrolhado ao ven dedor era sempre um mau sinal! Seu Teotônio tinha uma expressão vincada, por trás do candeeiro. Só por meio de um esforço que a si próprio pareceu muito grande pôde disfarçar a comoção que o assaltou ao ve rificar o tamanho da pedra. Quanto aos garimpeiros, agitou-se -lhes de repente no espírito, como se eles fôssem uma só pessoa, um envergonhado e avassalador sentimento de dúvida: Joaquim 213
Boca-de-Virgem podia ter-se enganado . . . A atmosfera da sala tornou-se então insuportável, como se eles se achassem injusta mente condenados a permanecer ali. Lá fora, na praça, havia vozes confusas de homens e de mulheres, e o estourar dos fo guetes ao longe era uma sugestão de incrédula liberdade notur na : o leilão não tardaria a começar! Neco procurou em vão calcular as horas. Era realmente inútil pensar em outra coisa : seus olhos acompanhavam ansiosamente os movimentos de Seu Teotônio. Viu quando ele abriu a gaveta para apanhar outra lente, recolhendo ao mesmo tempo um grosso picuá de osso com anéis de ouro. A pedra estava agora entre os seus dedos, e, com a calma concentrada de um cirurgião que vai proceder a uma intervenção delicada, os movimentos de Seu Teotônio tor naram-se mais lentos e minuciosos : trouxe a pedra à altura dos olhos, fechando um deles e colocando a lente contra o outro, e repetidas vezes a distanciou desta para logo voltar a aproxi má-la, procurando examinar a pedra sob todos os ângulos e em todos os detalhes. Em dado momento, experimentou uma estra nha sensação de júbilo infantil ao vê-la crescer através da lente de aumento. Por fim, desprezando esta, colocou a pedra a favor do candeeiro, fazendo incidir a luz com intensidade sobre a sua superfície opaca e porosa, enquanto a examinava a olho nu. - Querem molhar a garganta? - foi a primeira coisa que disse. Em seguida, antes que algum dos meias-praças respondes se, colocou a pedra com lentidão sobre a cartolina branca que revestia o lastro da mesa : era um ponto escuro e volumoso co mo um sujo de mosca ampliado. Com os olhos fixos nele, os garimpeiros não chegaram a avaliar o sentido do convite que acabava de lhes fazer o patrão: talvez não tivessem ouvido bem. Seu Teotônio tamborilou com os dedos sobre a mesa. Ti nha a atitude pretensiosamente calma de quem vai rasgar um tumor com um médico: no primeiro momento se está sempre pronto para protestar. - O carbonato é muito ruim - disse em tom convicto. Embora não se falassem, os três meias-praças podiam enten der em sua essência o pensamento um do outro. À declaração do patrão, entreolharam-se. Sentiram-se, em seguida, tocados de uma espécie de tranqüilizadora emoção: tratava-se de um fato. Nessa altura, só uma coisa lhes interessava verdadeiramen te : TRATAVA-SE DE UM FATO. Joaquim Boca-de-Virgem não se enganara - era realmente um CARBONATO. Uma onda de terno regozijo dominou Silvério : chegara o tão ambicionado dia do 214
bambúrrio - e por um triz tudo estaria irremediavelmente perdido! - Muito ruim - repetiu Seu Teotônio. Desde o primei ro momento, notara que se tratava de um carbonato excelente. Mas era sincero à sua maneira: vivia do comércio de pedras preciosas e tinha uma família numerosa a sustentar. - Querem molhar a garganta? - tornou a perguntar. Dessa vez os garimpeiros se convenceram de que também o convite era um fato. Não chegaram, porém, a articular qual quer resposta, porque Seu Teotônio levantou-se imediatamente, e, indo apanhar um copo no outro cômodo, não tardou a vol tar para dizer: - Tome um trago, Filó. E servindo em seguida o conhaque: - Vocês têm que beber no mesmo copo. Não tenho outro aqui. O que não o impediu, ao servir-se tamMm da bebida, de fazê-lo num pequeno cálice de cristal que retirou de dentro da gaveta. Os três garimpeiros sentiram-se lisonjeados. Enquanto Filó bebia, Seu Teotônio procurou verificar a densidade do carbo nato. - Agora bote para os outros - ordenou, mecanicamen te, sem erguer a cabeça. E ao ouvir, por duas vezes, o ruído do gargalo contra o copo, embora absorvido no manejo da balança especializada, compreendeu que Neco e Silvério se revezavam no conhaque. Já então, porém, concluíra a pesagem do carbonato - rápido como sempre, graças à sua longa prática, sendo capaz de re petir a operação de olhos vendados. Ao fechar a balança, sem fitar os meias-praças, perguntou : - Ainda tem cascalho para tirar? Era uma indagação formal : o gerente punha-o a par de tudo e o garimpeiro devia estar apenas preparado para enfren tar a situação. Filó lembrou-se do caso de Vítor Hugo. Era sempre perigoso para um meia-praça dar numa frente de servi ço muita rica : equivalia a uma pessoa fazer o seu próprio tes tamento. Pondo o copo na mesa, Filó experimentou uma espécie de sombrio alívio. - Não senhor - disse. - O resto está todo comido. Não tem mais cascalho não. Seu Teotônio pousou de leve o carbonato ao lado do can deeiro. Era sempre difícil para ele lembrar-se que sua vida já 215
fora diferente. Sua expenencia de antigo meia-praça, porém, lhe dava uma impertubável segurança no trato com garimpei ros : nunca eram suficientemente astutos em relação aos patrões. - Tomem outro conhaque - disse, empurrando o copo na direção dos garimpeiros. Estava calmo : mas de modo que parecia achar-se na obrigação de estar assim. Tinha, agora, cer teza absoluta de que se tratava de um carbonato extra: dera 330 de densidade. Tomou lentamente um gole de conhaque, retirou da gaveta o maço de cigarros, e disse : - O carbonato não deu densidade. É sinal de que ele é todo fofo por dentro. E sentiu-se satisfeito com a sua própria explicação. Filó não se surpreendeu : as pedras sempre tinham defei tos para os patrões. De qualquer forma, não pôde esconder seu desapontamento. - Fofo? - perguntou, como se isso valesse a pena. Seu Teotônio repetiu : - Fofo. É um carbonato muito ruim . . . Além disso, tem uma jaça enorme aqui do lado. Só com a lente se pode ver . . . Mas tomem o conhaque. Filó lançou um olhar ao carbonato, como se tivesse a inten ção de verificar os defeitos que acabavam de lhe ser atribuídos. Seu Teotônio, porém, tomando do litro de conhaque, insistiu : - Vamos. O conhaque está aqui é pra se beber. Evidentemente procurava embriagar os garimpeiros. Filó de novo se serviu, e depois a Neco e a Silvério : nunca se sentiam capazes de recusar a um convite para beber. Enquanto isso, o capangueiro curvou-se sobre a mesa e, com um lápis em cuja extremidade oposta fora introduzida uma borracha, ra biscou num pequeno bloco alguns números, passou um traço por baixo, somou, depois multiplicou, e em seguida dividiu, até obter o resultado desejado. Ele próprio ignorava o valor exato do carbonato. Orientava-se de acordo com a tabela de preços dos compradores estrangeiros - e só de uma coisa estava abso lutamente certo: cumpria-lhe defender a sua parte do melhor modo possível. Embora estivesse sujeito às emoções dos lucros mais vultosos - e era o que acontecia nesse momento - a compra de pedras preciosas já se tomara para el e um ato me cânico. Realmente, sentia em tudo aquilo o impulso de uma espécie de fatalidade: era algo semelhante ao hábito que man tém o cão à porta do dono. Os preços d a tabela em vigor, con firmados por telegrama recente dos gringos, agitavam-se-lhe no espírito de envolta com as formas cabalísticas das classificações : industriais FF . . . lapidáveis FF . . . 2 grãos . . . 1 K . . . 5 216
grãos . . . 3 grãos . . . fundos . . . carbonatos FF . . . Era como
uma mensagem cifrada, a cuja interpretação juntava ele os cál culos das partidas à base das regulações de praxe. Conferiu a conta que acabara de fazer, verificando, então, que o carbonato valia quarenta contos : ele próprio se surpreendeu com o resul tado acusado pela operação aritmética. Pousou o lápis na mesa e, depois d e dobrar em silêncio o papel, disse : - Bebam outro conhaque. Em seguida, como se achasse necessário tomar a iniciativa para dar exemplo, sorveu o resto da bebida que havia no seu cálice. Aos garimpeiros, cujo copo de que se vinham servindo já estava vazio, só restou esvaziarem a garrafa. - Quanto vocês acham que a pedra vale? - perguntou o capangueiro, depois de beber e de enxugar a boca na manga da camisa. Silvério acabava exatamente de colocar sobre a mesa o copo onde escorrera o litro : a nova dose o deixara meio zon zo, sensação que ele imediatamente atribuiu ao fato de haver bebido do pé-de-garrafa. Esforçando-se para vencer a repen tina tonteira, trocou um olhar com Neco ao ouvir a pergunta. Este, por sua vez, volveu os olhos na direção de Filó : era um acordo tácito para que respondesse, por todos, o companheiro mais experiente. Sucedia, porém, que também Filó não fazia a menor idéia de quanto pudesse valer o carbonato. Como tinha, entretanto, mais expediente que os outros, tratou de provocar o preço de oferta, para então encaminhar, baseado neste, a ven da da pedra. Segundo acreditava, era indispensável saber quan to ela aproximadamente valia: não queria correr o risco de pe dir menos e sair logrado. - Pra o senhor, quanto ela vale? - respondeu, dirigindo-se ao capangueiro. Este encolheu os ombros: - Pra mim ela vale quando muito uns dez contos . . . Filó teve um momento de regozijo : pensara em pedir oito. - Será que o senhor não pode dar quinze? - disse. Seu Teotônio sorriu com ar de surpresa. - Quinze? - ecoou. - Você está sonhando, Filó! - O senhor não acha que ela vale isso? - continuou o garimpeiro, com hesitação. - Eu? Você está sonhando! Carbonato baixou muito este mes . . . Tive telegrama dos gringos . . . Pra valer quinze contos - e o capangueiro falava agora com persuasão - só se fosse 217
um extra. Já vi que vocês não estão querendo vender o car bonato. Embora a cabeça lhe parecesse menos pesada, Silvério não conseguia compreender qual a parte que lhe ia tocar na venda da pedra : isto fazia-o acreditar-se mais embriagado do que real mente estava. De qualquer forma, tinha um ponto de vista bá sico : precisava de cinco contos para comprar o seu pedaço de terra. Por sua vez, conjeturava Neco se Filó estaria verdadeira mente seguro de que a pedra valia quinze contos : na sua opinião, era capaz de valer mais. Dominado por um sentimento de íntima desconfiança, lembrou então, em voz baixa, ao capangueiro : - Será que o senhor não acha bom a gente correr a praça? Seu Teotônio protestou com impaciência : - Correr a praça? Você se esquece de que trabalha em minha serra? - Ao proferir as últimas palavras, sentiu a neces sidade imperiosa de repeti-las; elas tornavam mais convicto o seu tom desabrido. - Em minha serra? - continuou. - Então você acha que eu vou consentir que diamante ou carbonato saído em minha serra vá parar nas mãos de outro comprador? Filó interferiu : não compreendia como Neco tinha feito uma pergunta tão estúpida. - Veja se o senhor pode dar mais alguma coisa - disse. Mas o capangueiro prosseguiu: - É por estas e outras que eu estou suspendendo muitos garimpeiros que trabalham em minha serra. Nem todos sabem cumprir com a sua obrigação. - Eu falei por falar . . . - explicou Neco. - Pois andou muito mal - observou Seu Teotônio. Além d e dono da serra, eu sou o único fornecedor da sociedade, pois a outra meia-praça é de minha mulher : sou o patrão. Tenho a preferência sobre o carbonato, e esta preferência só Deus me tira. - Sei disso . . . - murmurou ainda Neco. Seu Teotônio acendeu bruscamente o cigarrro. Logo em seguida, porém, mudou de tom : compreendeu que não era inte ressante criar um caso com garimpeiros que se incluíam entre os mais trabalhadores de sua serra. Demais a mais, havia um detalhe que lhe parecia fundamental : ao contrário de Vítor Hugo, o serviço deles estava concluído, e lavado todo o cascalho. Podiam, portanto, ser-lhe muito úteis para o futuro, no novo garimpo que pretendia abrir. 218
- Bem . . . - disse. - V ou dar mais dois contos e está acabada a história. Comprador nenhum ia oferecer mais do que isso. Filó insistiu : - O senhor não pode dar os quinze? - Doze contos e nem mais um tostão - respondeu sumariamente o capangueiro. Depois olhou para o litro de conhaque, como se quisesse certificar-se de que a bebida efetivamente acabara. Interpretando o silêncio dos garimpeiros como um natural assentimento, apa nhou o lápis e, em voz pausada e alta, começou a fazer a conta : era uma maneira de causar boa impressão aos meias-praças. Estes, por mais uma vez, trocaram olhares entre si: não podiam confiar em ninguém. Seu Teotônio, a quem não era estranho esse sentimento de dúvida, passou a fazer a conta mais lenta mente ainda: sabia que Filó o observava. - São dois contos e quatrocentos de quinto - disse, e foi anotando sempre, embora já tivesse feito a conta mental mente. - Ficam, portanto, nove contos e seiscentos líquidos. Abatendo a minha parte, sobram quatro contos e oitocentos pra dividir por vocês três. Está certo? Filó confirmou com um movimento da cabeça. - Quer dizer que toca a cada um de vocês um conto e seiscentos. Está certo? - tornou a perguntar Seu Teotônio, como se isso realmente lhe interessasse. Dessa vez Filó demorou um pouco em responder : costu mava enganar-se com a casa de dividir desde o tempo em que decorava a tabuada na escola. - Está - disse afinal. Seu Teotônio colocou o lápis ao lado da balança e guardou em seguida o carbonato na gaveta : decidira examiná-lo ainda uma vez - mais tarde. Depois tudo se passou com a desejável rapidez. Levantou-se e, de cigarro na boca, caminhou até o cofre e abriu-o, voltando logo após com três pequenos maços de dinheiro : tivera o cuidado de escolher as cédulas mais novas, capeando-as com uma de quinhentos das grandes. Os garimpei ros sentiram um estremecimento de emoção ao guardar o dinheiro no bolso : era como se lhe tivessem feito um favor. - Pois é - disse ainda Seu Teotônio. - Segunda-feira vocês me procurem. Tenho outra frente de serviço pra vocês trabalharem. Vamos pegar muito diamante. - Ao ver que os garimpeiros s e preparavam para deixar o escritório, acrescentou, 219
com a mão na chave da porta : - Não vão gastar o dinheiro à-toa. Vocês devem agradecer a sorte que Deus lhes deu. Sentia-se na obrigação de dizer isso, como quem se deixa vencer pela atração do cumprimento do dever.
Neco e Silvério só tinham agora verdadeiramente uma preocupação : - A conta estava certa mesmo? Filó tranqüilizou-os : - Estava. Também era tudo que sinceramente lhe interessava : não imaginava que o resultado podia ter sido diferente. Andaram até a esquina. Foguetes continuavam a estourar ao longe, na praça da igreja. Garimpeiros passavam para o lei lão : era a grande atração da noite . •
Pois é isso - disse Silvério. - Eu vou até em casa e depois me encontro com vocês. - Nós estamos no leilão. Está certo. - Ei! - diss e ainda Filó, vendo que Silvério já se afas tava. - Diga a Boca-de-Virgem que no botequim de Leó tem um litro de conhaque pago pra ele. Das alvíssaras. - Veja se vem com ele - acrescentou Neco, antes que Silvério desaparecesse no meio do povo : havia bastante gente se movimentando na direção do Beco da Lama. Alguém comentou num grupo : - Que nada! Aquilo é uma negra aguada, fubuca. Não vale um centenário. É do tipo "come, onça". Já andei com ela uma vez pra nunca mais. É mesmo que uma tábua. Em meio aos rumores da noite - as gargalhadas das mu lheres se confundiam com os sons dispersos da tocata da novena. Filó experimentou, de súbito, uma alegria animal. Bateu no bolso onde guardara o dinheiro e disse : - Isto aqui é a chave de destrancar dificuldade. Vamos embora, sócio! E os dois subiram a rua c entraram na primeira venda para beber. 220
XV
Silvério andava por entre os ranchos do Ribimba, subindo a rua : acabara de transmitir o recado a Joaquim Boca-de-Vir gem, tendo com ele combinado encontrarem-se mais tarde no botequim de Leó. - Você pode ir descendo, que Filó e Neco já devem estar por lá. Ou lá ou no leilão. Eu também desço já - dissera. Agora estava certo de haver mentido : não tinha o menor interesse em comparecer ao encontro. No primeiro momento, suas palavras lhe pareceram tocadas da mais inequívoca since ridade. Afinal de contas, prometia uma coisa que não exigia dele nenhum sacrifício : ir até a casa e voltar. À medida, porém, que se dissipava o efeito da bebida, começou a adquirir a certeza de que não mais se reuniria aos companheiros naquela noite. Ao dar o recado a Joaquim Boca-de-Virgem, que tão ávido se mostrou ante a perspectiva de ir beber à custa de alguém, reve lando, ao mesmo tempo, grande curiosidade em saber por quanto haviam vendido a pedra, foi que ele teve a consciência d a pre caução excessiva que o impedia de se decidir pelo encontro mar cado com os companheiros : não se conformava com a idéia de gastar o dinheiro do carbonato. Com a m ão no bolso, os dedos firmemente contraídos sobre as cédulas novas, andava cada vez mais depressa. Os ranchos erguiam-se dentro da noite como pri sões. Por trás das janelas, os vultos esquálidos dos moradores se movimentavam à luz dos fifós : eram criaturas que ainda viviam. Um cão ladrou ao lado de uma cerca - no trecho mais escuro da rua. Foi quando se ouviu uma voz de mulher : - Silvério . . . Ele voltou-se. Viu apenas diante de si a brasa de um ca chimbo. Porcos grunhiam nas imediações. A voz insistiu mais perto : - Vem cá . . . Tranqüilizou-se ao reconhecer Vitalina sob a latada de jasmim. - Vou lá em casa e volto já . . . - disse instintivamente. E, pela primeira vez, apercebeu que nada tinha realmente que fazer em casa : dissera a mesma coisa aos companheiros como mero pretexto para fugir ao encontro. No mesmo instante, a presença de Vitalina lhe inspirou uma justificativa que a seu ver parecia bastante convincente : era uma maneira de explicar sua ausência aos companheiros no dia seguinte. Amoleceu a voz: 221
- Vou lá em casa tomar um café . . . Vitalina aproximou-se. O ar, imóvel, estava impregnado do cheiro doce do jasmim. Lá embaixo, do outro lado do rio, a iluminação a acetileno punha em destaque a fachada da igreja e a silhueta negra de um coqueiro solitário : os rumores da ci dade chegavam até ali amortecidos pela distância. Com Vitalina - veio subitamente um hálito de fumo misturado com um odor de corpo lavado com sabão de coco e, sob os seus passos, as folhas de velame estalavam no chão. Silvério foi sacudido por um frêmito d e prazer animal : suas narinas se dilataram ao sentir cada vez mais perto a mulher que andava por dentro da noite. - Vamos lá em casa, que eu faço o café para você disse ela. Estavam os dois nos fundos d e um rancho, cuja parede da cozinha tinha pouco mais de um metro e meio de altura. No silêncio que se seguiu ao convite da mulher, ouviram ambos a conversa que chegava até eles através da cerca de um quintal, de onde emergia a folhagem de um pé de saborosa: - A cobra-preta mamava nela toda noite. Descia do te lhado, subia na cama e começava a mamar. Ela não via nada : estava dormindo. Sentia a chuchada no peito, mas pensava que era o menino que estivesse mamando. - E o menino não chorava? - Não. A cobra botava o rabo na boca dele e ele ficava pensando que era o bico do peito. - Você acredita nisso? - Não sei. Só sei dizer é que o menino foi definhando, definhando, até ficar que nem um cipó. Acabou morrendo de fome: a cobra secava o peito da mãe do pobrezinho toda noite. Vitalina voltou a falar : - Que nojeira! E cuspiu. - O quê? - perguntou Silvério. - Você não ouviu a conversa não? Eu desde menina que ouço contar isso, mas não acredito. Pra mim é abusão do povo. E encostando-se no garimpeiro: - Vamos tomar o café lá em casa. Um foguete estourou ao longe - depois outro, um terceiro, e, por fim, uns seis ou oito de uma vez: era a girândola que subia na porta da igreja. Silvério lembrou-se de Neco e Filó: deviam estar no leilão ou no cabaré de Leó - gastando o di nheiro. Com ele não ia acontecer a mesma coisa - e isso lhe parecia muito importante. Sentia-se seguro com o dinheiro no 222
bolso, como quem tem a certeza de uma felicidade futura : faria rendê-lo, e não via razões para o seu plano não se realizar. Deixou-se conduzir por Vitalina e os dois entraram na casa . •
Na sala - Silvério tropeçou numa lata. - Cuidado, meu bem - disse Vitalina, fechando a porta a chave. - Espere aí, que eu vou buscar o candeeiro lá dentro. E encaminhou-se, sem nenhum embaraço, para o outro cômodo: sabia do lugar exato onde se achava cada objeto na sala - o tamborete, a mesa com duas ou três garrafas em cima, o baú, a lata em que carregava água - não precisava de luz para se movimentar no seu pequeno mundo. A vista de Silvério começava a habituar-se com a escuridão : a primeira coisa que lobrigou foi uma forma achatada contra a parede. Era uma viola. Pôde constatar isso quando Vitalina voltou com o fifó na mão - o busto, encalombado nos seios grandes, avultando por trás da fumaça que se desprendia da puxada de algodão. Sil vério passou ao outro cômodo e a mulher mandou que ele se sentasse. - Vou botar a água pra ferver - disse ela. É só um instante. E transpôs a porta da cozinha, em cujo interior havia rés tias de cebola e alho dependuradas. Atiçou o fogo, encheu a chocolateira, e em seguida tomou de uma garrafa que estava por trás de alguns utensílios de barro, no armário arranjado com tábuas de caixão e forrado com capas coloridas de almanaques : três meninos urinavam contra o Sol numa delas. Bebeu o resto da cachaça e depois tornou a arrolhar a garrafa, limpando a boca com o dorso da mão. Lançou um rápido olhar ao cachimbo apagado que deixara ficar ao lado da trempe, e resolveu esva ziá-lo : o resíduo do fumo começava a exalar um desagradável cheiro de sarro. Lembrou-se, então, com um estranho acento de afeto, que nunca procurara Silvério antes. Era difícil crer que ele estava ali a dois passos, e dentro em pouco iria ter com ele : tudo fora tão fácil . . . A certeza da informação que tivera a respeito do carbonato encontrado pela sociedade - Rita Pan deiro lhe contara - dava-lhe ao rosto um ar de pretensiosa ale gria. Era como se recordasse uma lição : um garimpeiro sempre acaba por fazer dinheiro no garimpo. Fosse que espécie de ho mem fosse - trabalhavam todos eles com esse objetivo e tinham com maior ou menor freqüência a sua oportunidade. A luz do -
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fifó enfumaçava a cozinha. Vitalina via a sua própria sombra na parede. Inclinou-se sobre a trempe, para soprar o fogo, enquanto admitia que fora mesmo uma felicidade ter encontrado Silvério: era absolutamente necessário se arranjar com um dos três sócios. Cuspiu sobre a lenha amontoada ao lado do fogão, e começou a cantarolar alguma coisa que tinha aprendido havia muito tempo - não sabia onde nem com quem. Com as mãos nas cadeiras, o rosto cheio do calor das labaredas, parecia-lhe que nada exis tia no mundo a não ser o homem que a esperava no outro cômodo. Talvez por efeito da cachaça, uma onda de súbita e insidiosa melancolia a invadiu. Estava recomeçando sempre, e, no íntimo, sentia bem viva a convicção de que tudo terminaria um dia: chegaria um momento em que outro homem não mais iria surgir à sua porta. Dominou-a, então, um extravasamento de ternura em relação a Silvério, que agora se lhe afigurava como uma espécie de espírito protetor. Todo o seu passado, que se movera em torno da necessidade de viver fosse de que ma neira fosse, rendia-se à inesperada mas convicta idéia de se unir ao homem casual do bambúrrio : já se sentia cansada de per guntar a si própria quanto lhe iriam dar depois. Lembrou-se de Rita Pandeiro e, num assomo de carinho não isento de amar gura, desejou ter igualmente uma vida menos incerta em compa nhia do garimpeiro : - Por que não? Pela primeira vez, de modo que lhe pareceu absolutamente sincero, compadecia-se do absurdo que Zé de Peixoto praticara meses atrás contra Silvério. - Já está pra ferver, meu bem - disse. A água na chocolateira era a única coisa que lhe indicava a presença do tempo. Silvério respondeu, em voz baixa, que estava certo. Intima mente, o aviso lhe soara de modo falso e convencional : era um simples convidado, não tendo ela a obrigação de atendê-lo com tamanha solicitude. Na semi-obscuridade do cômodo em que se encontrava, guardou o toco de faca com que acabara de cortar o fumo, desfiou este lentamente e, em seguida, enrolou-o na mortalha até o cigarrro tomar forma. Depois passou a língua na beira do papel para colar. Havia na casa um silêncio vazio e impessoal. De repente, porém, os porcos grunhiram do lado de fora, e ele se abandonou a uma sensação de acabrunhamento que rápida e inevitavelmente o invadiu. Lembrou-se da família que deixara ficar no sertão com as suas minguadas criações : "Que tolice", pensou, "ter vindo para as Lavras atrás de di nheiro!" Com o cigarro por acender entre os dedos, tinha um ar de desolação e de insignificância ridícula. E conjecturava: 224
Que decisão podia em verdade tomar com aquele conto e tanto que trazia no bolso? Sabia, agora, que no fim só uma coisa lhe restava fazer - gastá-lo. Era um raciocínio que se lhe afigurava arrasadoramente exato, causando-lhe a impressão de uma con denação inapelável. Naquele momento, parecia-lhe que teria sido bem mais fácil comprar o seu pedaço de terra com a própria pro dução da roça, sem precisar afastar-se da família : um pouco mais de ânimo era o bastante. Subitamente, todas as esperanças o abandonaram, levando-o a admitir que, sem dúvida, estava fazendo falta aos seus. Sentia o mesmo desânimo de outrora a envolvê-lo, como se ele tivesse voltado de novo aos dias que se seguiram ao incidente com Zé de Peixoto. Foi quando Vitalina assomou à porta da cozinha. - Tire o chapéu, meu filho . . . - disse. - Fique à von tade. Você está em sua casa . . . Tire o casaco também. E recostou-se no portal, numa atitude de abandono. Silvério olhava fixamente os grandes pés descalços. Ao er guer os olhos na direção da mulher, notou que ela trazia um pequeno ramo d e jasmins espetado no cabelo áspero. Pôde ape nas responder : - Eu tiro daqui a pouco . . . E logo se arrependeu, pois decididamente já não tinha von tade de fazê--l o. Acendeu então o cigarro. - Você está com muita pressa? - continuou a mulher, no mesmo tom envolvente. E pôs o pé no batente d a porta. Com esse movimento, sua anca assumiu um grande relevo no vestido justo, e seu joelho esquerdo apareceu violentamente sob a saia: era um detalhe pro vocante, que não passou despercebido a Silvério. Ao notá-lo, voltou-lhe uma súbita rigidez de vida, que lhe indicava com veemência o que devia fazer : entre um homem e uma mulher não havia necessidade de mais explicações. Num misto de inde cisão e impaciência, e já que se encontrava ali, sentiu que devia arrastá-la para a cama e acabar logo com aquilo. Era, porém, espantosa a facilidade com que deliberava as coisas para logo decidir o contrário. - Não . . . - murmurou. - Eu não estou com pressa . . . E, conservando-se sentado à espera do café, como se lhe fosse impossível tomar outra atitude com resultado, viu Vitalina de novo desaparecer na cozinha, de onde vinha agora o ruído da água fervendo na chocolateira. Novamente só, Silvério não tardou a entregar-se ao desâ nimo, como se isso já se tivesse convertido num hábito. Sentia 225
em volta de si uma atmosfera expectante, da qual não podia participar : era como um estranho ali. A lembrança de 'U de Peixoto, associada ao sofrimento físico por que passara quando Peba lhe imputara o roubo do diamante no garimpo, tornou-se -lhe subitamente incômoda: era como se tudo tivesse acontecido na véspera. Do que ele sobretudo se lembrava era de que 'U de Peixoto também já se sentara ali - talvez exatamente no mesmo lugar em que se achava - à espera de Vitalina : ela em muitas noites devia igualmente ter coado café para ele. Deses perado, compreendeu não ser possível tolerar essa lembrança por mais tempo. Dava-lhe uma confusa sensação de asco e res sentimento - não podia pensar com calma no que quer que fosse que se relacionasse com aquele passado. Seu incidente no serviço apareceu-lhe então como algo positivamente ridículo, deprimente. À idéia de que Vitalina sempre estivera a par de tudo - de sua conhecida humilhação e das circunstâncias em que o episódio ocorrera - encheu-o de repentina vergonha: era difícil não se envergonhar daquilo que lhe podiam atirar ao rosto a qualquer momento. De súbito, lançando os olhos para a cama armada no outro lado do cômodo, com um cobertor dorme-bem dobrado sobre um par de travesseiros de capim um sentimento de amarga ternura obrigou-o a lembrar-se, com melancolia, de um fato que se lhe apresentava como uma espé cie de injustiça : desde que chegara a Andaraí só estivera com mulheres debaixo das pontes, nos fundos dos quintais e atrás das pedras - os dois se entregando ao relento como animais. Por um momento, sentiu-se estranhamente feliz ante a sugestão de paz de uma vida que ele próprio não desfrutara . . . Teve vontade de beber : havia verdadeiramente um motivo para isso. Imóvel, continuou a perscrutar a semi-obscuridade. Uma camisa de mulher estava atirada aos pés da cama - o que o levou a mover-se com inquietação no banco onde se achava sentado, olhando rápida e furtivamente para a cozinha. Suas idéias de novo se embaralharam e, no seu rosto, o desalentado esforço de alegria de há pouco foi substituído por um ar de triunfo irra cional: deitar-se com a mulher que pertencera a Zé de Peixoto se lhe afigurou uma forma inesperada de vingança . . . Estreme ceu de emoção : parecia estar convencido d e que semelhante coisa lhe faria um grande bem. Entretanto, ao lançar de novo a vista para a cama, uma intranqüilidade muito sua conhecida impeliu-o a pensar de outro modo: por que a mulher nunca se interessara antes por sua pessoa? Ao fazer essa ponderação, deixou-se dominar por um avassalante sentimento de dúvida, 226
logo j ulgar-se como que atraiçoado em sua boa-fé : via com m a is nitidez os travesseiros arrumados com o cobertor por cima c tudo aquilo lhe dava agora a impressão de algo previa mente calculado, pronto para funcionar como uma armadilha. I mediatamente, seu raciocínio se reduziu a termos práticos : ia gastar dinheiro. Imaginando a possibilidade de ser explorado, sentiu em volta de si um ambiente contrafeito de falsa e ocasio nal intimidade, o que lhe despertou um súbito rancor em relação ;'t mulher : ela também soub era do carbonato e queria apenas o seu dinheiro. Sim : tudo agora lh e parecia bastante claro como uma ameaça iminente : de nada adiantara ter evitado a compa nhia dos sócios estróinas. - Dois . . . dois e duzentos . . . dois e setecentos . . . contava a mulher na cozinha, recolhendo na palma da mão os níqueis que guardava dentro de uma lata de manteiga Garça de meia libra : era o seu mealheiro. Depois tampou a lata e alteou a voz para ser ouvida pelo homem : - Você vai me es perar um instantinho enquanto eu vou comprar açúcar. Não sabia que tinha acabado. Ainda não colocara a lata no lugar - pensava sinceramente em ser agradável - quando Silvério respondeu : - Deixe, que eu vou comprar. A mulher avançou instintivamente para a porta da cozinha. - Não . . . - disse, conservando na mão os níqueis, mas sem os mostrar. - Fique aqui me esperando . . . Não se in comode . . . E olhou-o, entre duvidosa e complacente. Por um momento, Silvério permaneceu em silêncio, como que meditando nas palavras que proferira : "Deixe que eu vou comprar". Depois compreendeu que bastava abrir a porta da rua para se ver livre da armadilha: o pretexto tentava-o como uma espécie de recompensa. - Não . . . - insistiu, tímida mas convincentemente. - Eu vou comprar. Vá botando as xícaras na mesa, que eu já volto. A expressão de dúvida desaparecera-lhe do rosto, cedendo lugar a uma espécie de sorriso inofensivo por trás do qual ele podia raciocinar melhor : era como se estivesse escondido. Sua resposta, em verdade, foi articulada de modo tão espontâneo, que a mulher concordou, com um vago sentimento de gratidão. Viu-o desaparecer na semi-escuridão do corredor e, em seguida, ouviu-o destrancar a porta da casa - os passos rápidos desapa recendo lá fora. Conhecia bem os homens, mas nem por isso a para · -
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esperança a abandonou completamente : ainda era capaz de acre ditar em alguém. XVI
Ao ver-se do lado de fora da casa, Silvério ainda hesitou mas acabou por tomar justamente a direção oposta à que o levaria até a venda onde pudesse comprar o açúcar : seus passos obedeciam a uma surda e inapelável deliberação. Por um ins tante, imaginou que não havia verdadeiramente motivo para des confiar do intuito que a mulher tinha de explorá-lo. Ao mesmo tempo, a incontrolável necessidade de se pôr em defesa voltava a dominá-lo completamente : naquela terra - sentia-o em plena consciência - quem quisesse fazer-se tinha de ser astuto. Lem brou-se, então, que a companhia da mulher se lhe afigurara de início um simples expediente para melhor justificar sua ausência perante os companheiros. Mas a verdade é que, ao lado daquela como destes, havia sempre o risco de gastar o dinheiro - e a respeito disso não alimentava dúvidas : conhecia bem as pessoas. Olhou em torno : estava só! Continuando a andar, pensou com simplicidade que não podia mesmo confiar em ninguém. Era uma idéia que lhe parecia cheia de responsabilidade e interesse : só confiava em si próprio. Quando menos esperou, achou-se diante da porta do seu rancho - e foi como se houvesse feito uma descoberta; na ansiedade em que se encontrava, não se sentia capaz de se identificar nem mesmo com as coisas a que estava habituado. De repente, encheu-o um sentimento de espe rança renascida, que facilmente se confundia com o de surpresa melancólica. Parou desajeitadamente no batente da porta : já não ouvia os grunhidos dos porcos. Num impulso, porém, logo a abriu e a transpôs, trancando-se cautelosamente por dentro. Ao acender o fifó, a luz como que veio repor nos seus lugares as pequenas coisas que possuía : o carumbé, a esteira, duas latas vazias e a roupa de serviço. Entretanto, era como se nenhum desses objetos lhe pertencesse: tudo estava mergulhado numa atmosfera vaga e impessoal. Retirou o dinheiro do bolso e con tou-o. Fê-lo com dificuldade - as notas novas estalando entre os dedos calejados no trabalho - não conseguindo saber quanto possuía, afinal. Aproximou-se mais da luz e, olhando fixamente as cédulas desdobradas, tentou contá-las ainda uma vez. Debalde, porém; sabendo de memória que sua parte atingira um conto 228
tanto, não lograva, contudo, precisar a fração. Nesse momen sentiu um estranho peso na alma : imaginara sempre arranjar (·inco contos no primeiro bambúrrio. Essa soma voltou-lhe à kmbrança com uma obsessão de idéia fixa, despertando-lhe im potente cólera contra Seu Teotônio. Uma coisa tornava-se evi dente ao seu raciocínio : a cobrança do quinto pelos donos de serra era um roubo. Nunca pensara nisso : era um roubo. Cega, dura, mecanicamente - concluiu : o quinto era uma exploração contra os garimpeiros. De repente, como se se visse obrigado a esclarecer seus atos perante si próprio, tentou lembrar-se por que motivo tal quantia lhe parecera necessária desde o início. Considerando esse detalhe, experimentou um pouco de domínio sobre si mesmo : desejara com tanta ânsia o dinheiro que, em bora o resultado da garimpagem não correspondesse aos seus cálculos, ainda lhe restava alento para sentir-se feliz. Concen trava-se agora nesta conclusão muito simples: podia ser pior. Num movimento instintivo, guardou o dinheiro no bolso, sob a impressão de que sua vida ia tomar de qualquer forma um novo rumo. Com essa convicção, voltou-lhe à mente a lembrança da família, e com ela a do sertão e a da roça, onde alguma coisa devia ter acontecido : não restava dúvida que ele estava fazendo falta. Momentaneamente, surpreendeu em seu íntimo um senti mento de triste e insatisfeito fervor, enquanto permanecia diante do fifó enegrecido de fumaça. Mas logo deu alguns passos no cômodo mal iluminado e destrancou a porta. Ao mesmo tempo, estampou-se-lhe no rosto uma febril expressão de cansaço e ex citamento, como se tivess e necessidade absoluta de dizer qual quer coisa; no íntimo, agitava-o a enervante incerteza a respeito do próprio objetivo que tinha em vista. Muitas eram as estrelas no céu. Ao longe, por trás da linha maciça e escura da vegeta ção, a cidade adormecida estava mergulhada nas sombras. Dos lampiões esparsos coava-se uma claridade amarela, que mais aumentava a impressão de imutabilidade : a serra agigantava-se dentro da noite como denso mundo opressivo e inanimado. De repente, porém, um rumor de vozes e sons de música distantes chegou até os seus ouvidos atentos. "Ainda estão no leilão", pensou, e com decisão voltou imediatamente ao interior do ran cho. Logo depois, apagava-se a luz do fifó e ele reaparecia à porta com um pequeno fardo dentro do carumbé: a realidade se lhe apresentava agora como algo que começara e prosseguia sem cessar. Ao dar os primeiros passos, lobrigou por entre os matos uma débil réstia de luz no fim da rua: era a casa de Saiu. Com um tímido sentimento de responsabilidade, lembrou-se dos dois c
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mil-reis que ele pedira a Filó naquela noite : não podia compre ender como só agora se lembrava disso. Tinha, porém, a res peito, uma idéia muito particular : no dia seguinte Filó haveria de estar na mesma situação precária, sem vintém, sujeito a pedir a qualquer pessoa os dois mil-reis que esquecera de dar a Saiu. Era esse o fim de todo garimpeiro : nenhum deles sabia aproveitar-se do dinheiro ganho com tanto trabalho e sacrifício. Tal raciocínio fê-lo levar instintivamente a mão ao bolso : com ele ia ser diferente - era uma precaução que lhe parecia muito importante. Vagueava dentro dele um sentimento contraditório de felicidade e amargura: olhou ainda uma vez na direção da casa de Vitalina, como se isso lhe fosse absolutamente necessá rio, e em seguida relanceou os olhos pela cidade adormecida. Estava convencido de não poder explicar a pessoa alguma o que havia decidido a respeito de si próprio - e todos os seus pensamentos, inquietos e hesitantes entre a realidade dos fatos e as simples conjeturas, revelavam uma estreita e consoladora analogia com as suas recordações : era preciso regressar imedia tamente ao sertão - dissessem dele o que quisessem depois! Uma secreta e excitante certeza o invadiu nesse momento : con cebia, pela primeira vez, um modo de vida capaz de não depen der unicamente da generosidade do acaso. Sim : o dinheiro que trazia consigo dava de qualquer forma para começar a fazer alguma coisa em favor da família. Após um novo e rápido olhar em volta, como que tomando uma decisão suprema, os passos cada vez mais firmes, desapareceu na estrada que o trouxera um dia até ali. Ao reaparecer adiante, no lato da ladeira ondulada de murundus, voltou-se lentamente na direção da cidade que aban donava : as casas eram manchas vagas e escuras sob a luz das estrelas. Teve então um estremecimento. À idéia de que estava realmente se afastando dos garimpos, em busca dos quais viera, sentiu, d e súbito, que lhe faltavam forças para aceitar a própria decisão que tomara : era como uma espécie de arrependimento impossível. A cega obstinação do seu espírito, que não se podia libertar da visão de um ideal concebido num momento de afli tiva esperança, obrigou-o a reconhecer que, verdadeiramente, nada podia fazer com aquele dinheiro: necessitava, no mínimo, d e cinco contos para comprar o seu pedaço de terra. Era de balde tentar iludir-se. Contra essa convicção inesperada, nem mesmo a idéia de a família estar em dificuldades tinha mais poder e influência. Sem nenhuma vacilação, num assomo de completa e dedicada confiança, chegou à conclusão muito sim ples de que a mulher e os filhos saberiam esperar : era em bene230
fício deles, e isso era o bastante. Enxugando o suor do rosto com o dorso d a mão, cuspiu em seguida : o gosto do conhaque, tomado no escritório de Seu Teotônio, como que lhe empastava a língua - sabia a ferrugem. Desenvolvia-se nele, com extraor dinária rapidez, uma ávida intuição da realidade. Resolutamente, impelido por fortes pancadas no coração, abandonou a estrada que tomara inicialmente, enveredando por um atalho juncado de pitombeiras. No dia seguinte haveria de estar atravessando as serras do município de Palmeiras - calculou. E foi andando sempre. Os galhos de mato se agitavam de leve à sua passagem, como à de um animal esquivo. "Lá está saindo muito diamante e ninguém sabe que eu bamburrei" - pensou com calma e se gurança. Sob o mesmo impulso, prometia a si próprio convicta mente : "Hei de economizar o meu dinheiro" - e isso lhe pare cia muito fácil, desde que fosse em outro lugar onde ninguém o conhecesse : o conto e tanto que trazia no bolso já era um bom começo. Momentos depois, com os galhos que se imobili zavam, voltava a reinar silêncio no local - e do homem em fuga desapareciam todos os vestígios. Ficou pairando, nas som bras, o cheiro ácido das pitombas amadurecidas. Lá embaixo, do outro lado do rio, os rumores vagos e distantes da cidade eram os únicos sinais de vida na noite estrelada. XVII
- Silvério está demorando muito - disse Neco. Filó conveio: - É. Pelo tempo, ele já devia ter vindo se encontrar com a gente. - Onde você acha que ele está a essa hora? - Não sei. Deve estar zanzando por aí . . . - É capaz de estar se escondendo pra não gastar o dinheiro - insinuou Neco. Essa suposição fazia-o tomar a ausência do companheiro como uma espécie de fuga a um cumprimento do dever. Filó deu de ombros. - Não adianta - disse. - Se ele não aparecer hoje, a farra de amanhã vai ser por conta dele. Pode ficar descansado . . . Foi quando em meio da algazarra o homem da harmônica entrou firme na introdução da peça saltitante - eta, trem gos231
toso! e a voz do barbeiro Vital - gordo e de chapéu de palha - encheu a sala: Sinha Mariquinha, meu bem-querer, Suspenda essa saia, que eu quero ver . . .
Filó chalaceou: - A rima é outra! E cantarolou o segundo verso, introduzindo a obscenidade que rimava. Houve algumas risadas entre as mulheres que estavam de bruçadas no balcão. Passava-se a cena no botequim de Leó cômodo atravancado de mesas e tamboretes e com um tabique perfurado a bala em alguns lugares: eram marcas de tiros bem capazes de impressionar um freqüentador novato. Contra o te lliado - bandeirolas de papel de seda se cruzavam, formando um dossel recortado a tesoura. Ao lado da porta, um candeeiro fumegava; e o sortimento de bebidas abarrotava as prateleiras. " FIADO só AMANHÃ" - estava escrito numa tabuleta branca. Um corredor mal iluminado, varando a casa de fora a fora, esta belecia ligação entre a Rua dos Negros e o Beco da Quitanda, com uma venda funcionando no cômodo contíguo ao botequim. Havia em ambos uma fervilhação de feira, e o vozerio se con fundia através da porta de comunicação. O homem da harmô hica batia com o pé para marcar o compasso, e uma poeira tênue e parda começou a desprender-se com o arrastar dos chi nelos de trança no cimento gasto da sala. Os pares dançavam enganchados - as mulheres de pernas abertas cavalgando fir memente a coxa direita dos homens : parecia uma luta. Dança va-se em silêncio e de chapéu - todos tinham uma cara mais ou menos agressiva. Filó tirou a negra Tua para aproveitar a metade da música. Ficando só no balcão, Neco se dirigiu de repente ao dono do botequim. - Veja quanto é que eu devo - disse em voz alta. Agora eu vou pra o leilão. O negociante ( usava chapéu de couro) fez a conta rapida mente num pedaço de papel. Ia dizendo, enquanto escrevia : - Teve o quilo de requeijão que você mandou dar àquela mulher . . . teve mais vinte garrafas de Si-Si . . . teve mais dez de cachaça, que você mandou dar ao povo . . . teve também o quilo de bolacha Marieta que aquela mulher lhe pediu . . . Quer dizer que são . . . cinco, noves fora dez, com vinte, trinta e cinco, com trinta, setenta e cinco, com quatro, oitenta e dois . . . Oiten232
ta e dois - repetiu, verificando que, na realidade, eram cin qüenta e nove: a escola sempre lhe servira para alguma coisa. Neco puxou do bolso uma nota de cem : - Tire aí. Sentia-se convictamente feliz a seu modo : era muito impor tante para um garimpeiro estar em condições de gastar. O negociante amassou o papel da conta e devolveu o troco com um sorriso. Teve o cuidado de escolher uma nota nova estalando. E fez questão de não cobrar o charuto que o garim peiro lhe pediu em seguida : era um obséquio que lhe parecia muito natural. - Você vai gostar . . . - disse. - :E: o melhor charuto que eu tenho aqui . . . E passou a atender a outro freguês : não podia perder tempo. Numa escala lenta e grave - a harmônica parou de tocar logo depois. Então Neco gritou: - Vamos pra o leilão, Filó! Já paguei tudo. Havia em suas palavras como que uma manifestação de triunfo: era como se estivesse levando a efeito uma vingança. Os dois tomaram a porta que dava para o Beco da Quitanda e a harmônica voltou a tocar em seguida - o cheiro de suor se misturando, na sala, ao bafo de cachaça dos homens . •
Ainda andaram bebendo em algumas bibocas do Beco da Quitanda, mas finalmente se dirigiram para a Praça do Rosário. Antigamente, a novena de N. S. da Glória era rezada na própria igreja da santa, padroeira da cidade, mesmo depois de terem ruído algumas de suas paredes : havia sempre esperança de reconstruírem-na proximamente. Mas um dia . . . Contava-se : "Apareceu na cidade uma rapariga chamada Lindaura, que es tava morando na Rua do Bucho, em casa de Joana Pela-Pau. Era uma negrinha nova, lisa, com os peitinhos duros, uma fêmea de primeira" - assim a descreviam. "A notícia correu entre os garimpeiros: havia petisco fresco, uma menina, quase. Lindaura amou então debaixo das pontes, gemeu d e prazer nos braços de homens diversos nas noites de sábado, quando os garimpeiros regressavam da serra. Um dia, porém, a negrinha deu para andar de pernas abertas e, como a notícia d e sua chegada, a de sua doença circulou rapidamente entre os homens. Outros males foram aparecendo, e dentro em pouco ela ficava completamente esquecida - os antigos freqüentadores correndo dela às léguas. 233
Em vão procurou curandeiros, tomou garrafadas e tudo o que lhe ensinavam as companheiras mais experientes - mamão sere nado, banho de pó de cedro e cachaça com óleo de copaíba. Quando menos esperou , não pôde mais levantar-se da esteira onde dormia, na loca que lhe servia de morada, perto da casa de Maria Caga-na-Telha. Estava entrevada, as pernas endureci das, sem movimento, inúteis. Teve de ir para a rua pedir esmo las, e arrastava-se pelas calçadas como um trapo, os homens tapando o nariz quando ela passava. Numa noite de temporal, como a loca ficasse distante, ela se viu obrigada a procurar abrigo nas ruínas da igreja, onde já dormiam outros mendigos - flagelados vindos do sertão: eles também vinham para as Lavras com esperança de ganhar dinheiro. Foi dar ali também o bêbedo Cara-Olho, para quem Lindaura ainda era uma mu lher, e que nessa mesma noite a disputou a um dos mendigos. Pela madrugada, numa cena de ciúme, amassou-lhe a cabeça com uma pedra, desaparecendo em seguida" : era o que também se contava. Foi quando as autoridades convieram, uma vez con sultado o Bispo da Diocese, que nenhuma cerimônia religiosa podia mais ser celebrada na igreja depois do derramamento de sangue da mulher: o dinheiro das subscrições foi destinado a melhoramentos da outra igreja, a do Rosário, para onde se tras ladou, em procissão, a imagem da padroeira. Desde então a novena da santa foi rezada em outro local, sem perder, contudo, o prestígio de outrora: os mordomos não tinham mãos a medir, e o leilão era de arromba, como sempre. Vinha o padre do mu nicípio vizinho, e com ele chegavam artistas ambulantes, mu lheres da vida, joalheiros, mascates e jogadores profissionais. Havia um assunto de interesse geral para os visitantes : a anor malidade de gastos da população . •
Afronta faço, mais não acho, mais achara, mais tomara, vou entregar pelos viiiiiinte mil-reis! - Vinte e cinco ! - gritou alguém no meio do povo. O leiloeiro Chico Pia confirmou: - Vinte e cinco! E deu uma volta em torno da mesa, de onde emergia um bojudo candeeiro em meio dos mimos oferecidos pelos mordo mos : formas de bolo, carneiros de doce de leite, compoteiras com o nome do ofertante embaixo, perus, galinhas e quartos de porco assado, bandejas de mangas e pencas amarradas de laran234
jas de umbigo, gaiolas de voador e fritadas cobertas de papel de seda recortado - tudo isso constituindo o vasto e variado leilão da última noite da novena de N. S. da Glória, funcionando na Praça do Rosário, com uma compacta massa humana em volta. Como as famílias se retiravam cedo, a zeladora Pacífica fechara as portas da igreja logo depois do "Louvado seja" entoado sob truculenta carga de foguetes -, o que concorria para que o povo se sentisse mais à vontade. Chico Pia continuou : - Vinte e cinco mil-reis me dão por um lindo mimo que deram de presente à nossa Mãe N. S. da Glória, e por mais não achar vou entregar por . . . - Cinqüenta mil-reis - interrompeu-o uma voz. Todos se voltaram para ver quem havia gritado. Fora Filó Finança, que acabava de chegar ao leilão em companhia de Neco Rompedor. No mesmo instante, a orquestra atacou uma marcha valentemente solada a bombardino e executada com sucesso nos leilões de todas as festas religiosas e nos espetáculos de circo quando o palhaço entrava em cena. - Aí, mestre Elpídio! Esquenta a coisa! - gritou Neco. Então o bombardino regougou mais forte. Chico Pia, ao mesmo tempo, ecoava: - Cinqüeeenta mil-reis! E ameaçava : - Afronta faço, mais não acho, mais achara, mais tomara, vou entregar pelos cinqüenta mil-reis! O mimo era um sabonete de dez tostões com um laço de fita azul em volta. Alguém comentou : - Esse sujeito está doido! Como é que se dá cinqüenta mil-reis por uma porqueira dessa? Para Filó, porém, só uma coisa importava realmente : fazer figura. Lembrava-s e que Seu Tarcilo embasbacara a cidade in teira arrematando um cravo por oitocentos mil-reis no leilão da festa do Divino : aquilo é que era um macho! Não havia nin guém que cobrisse um lance dele - era verdadeiramente uma questão de honra. Chico Pia abria caminho no meio do povo. - Cu licença . . . cu licença . . . - e a pilhéria provocava gargalhadas. - Vou entregar! - anunciava ele. Em vestidos de seda e cheirando a água-de-colônia, as mu lheres-damas cercaram Filó : tratava-se de um homem disposto a gastar dinheiro! Até Helena, a de grossas coxas provocantes, 235
que andara com Seu Quelezinho e recebera, no dia seguinte, um conto de reis dentro de um envelope levado pessoalmente pelo escrivão do cível, como se fosse um ofício para o Juiz - até ela veio roçar-se no garimpeiro. - Dê o sabonete a esta mulher - disse Filó a Chico Pia, mandando pagar o mimo numa nota de duzentos: parecia-lhe absolutamente necessário demonstrar que podia gastar mais do que tinha a pagar. Do outro lado da mesa, por trás de um pequeno baú de folha com o nome da Irmandade desenhado na tampa, o ma rido da zeladora Pacífica fez o troco, fechou o baú e agradeceu em nome de N. S. da Glória. - Sapeca um samba! - gritou um homem para o mestre Elpídio. Mas o bombardino continuou impávido na marcha, que tinha um formidável contracanto de trombone. - Arremata aquela galinha assada pra gente fazer uma farra, meu bem! - pediu outra mulher. Filó zombou : - Qual! Você já amarrou o facão . . . E arrastou Helena pelo meio do povo : ela é que lhe inte ressava verdadeiramente. Neco agarrou-se com outra, e os dois pares se destacaram da multidão. A voz de Chico Pia de novo se fez ouvir - e o leilão continuou com o mestre Elpídio abri lhantando a tocata da última noite da tradicional novena.
Dentro da madrugada os dois h omens andavam em silên cio. O leilão terminara à meia-noite. Casas fechadas, um latido de cão ao longe, sinais de vômitos nas esquinas - a cidade tinha um vago tom encolhido sob as bandeirolas que enfeita vam as ruas. - Mas rapaz, gastei o dinheiro todo - disse Neco, afinal. Filó respondeu : - Vamos tomar uma cachaça pra apontar o dia. Eu ainda tenho uns dois mil-reis no bolso. Depois a gente vai buscar Silvério no Ribimba : o porre de hoje vai ser por conta dele. - Parou de repente e acrescentou. - Mas que rabo de juízo tem aquela Helena! - Eu gastei foi meu dinheiro todo - insistiu Neco. Precisamos descobrir uma frente de serviço rica. 236
Não estava assim tão bêbedo para deixar de reconhecer a necessidade disso. XVIII
Quando o dia clareou - a "Aurora Musical Andariense" sapecou o dobrado na entrada do Beco da Chocolateira e, per correndo a cidade de ponta a ponta, deu início ao programa da festa, com a Alvorada retumbando nos trombones matinais : ca ras estremunhadas apareciam às janelas para ver a banda des filar fardada! Na esquina da Pensão Familiar Grande Líbano, do árabe Mansur, um homem de roupa nova soletrava interes sado o referido P R O G RA M A Às 5 horas ALVORADA
Pela Filarmônica "Aurora Musical Andaraiense", sob a regência do maestro E. Fonseca. Às 7 horas
1 .a Missa
E ofício em louvor de N. S. da Glória - Confissões e Comunhão geral. Às 9 horas
2.a Missa
Com sermão ao Evangelho pelo Padre Santana e com a presença de todas as autoridades. Às 1 4 horas Batizados Às 16 horas Procissão Solene
Com todas as irmandades devidamente uniformizadas, foguetes, hinos e depois bênção do SS. Sacramento. Todos à Procissão da Padroeira! ! !
N a tarde ensolarada do domingo a procissão d e N . S . da Glória vem vindo. Dobra a Rua do Curral. As janelas estão cheias de moças, porque das janelas é de onde elas podem obser237
var melhor os vestidos novos das amiguinhas para no dia seguin te pedir o molde emprestado. Os foguetes estouram, enchendo o ar de fumaça. À frente da Irmandade de Coração de Jesus, o tabelião Romualdo se arrasta ao peso do vasto estandarte da padroeira. A "Aurora Musical Andaraiense" executa em pia níssimo o novo dobrado ensaiado durante a semana. Nas noites de passeata ela não toca assim : mestre Elpídio brande a batuta e os trombones estalam como clarins carnavalescos. Mas na procissão tem de ser diferente : se a banda fizer como nas pas seatas, ninguém poderá ouvir a ladainha que as moças estão cantando : No Céu, no Céu, com minha mãe estarei . . .
Agora a procissão já vem na praça. Chico Pia está rouco de tanto gritar leilão, mas assim mesmo ainda agüenta firme na segunda voz do coro. Um menino de opa bate a campa atrás dele. À porta do bilhar de Ziu, os freqüentadores reparam tudo e encontram assunto para uma semana de falação da vida alheia : cochicham em mangas de camisa e de taco na mão. Ziu não se acha no grupo, porque ele é da Comissão Organiza dora da Festa e naturalmente que só podia estar mesmo ao lado do coletor Barroso, junto ao andor da Santa homenageada. A ladainha enche as irmãs de esperança convicta: Com minha mãe estarei, Na Santa Glória um dia . . .
Da esquina do Beco da Lama surge um grupo que se incorpora à procissão : são mulheres de garimpeiros que desce ram do Ribimba, e entre elas se vê Sinhá do Ouro. Do outro lado do andor de N. S. da Glória, Quelezinho desfila engomado no H. J., entre Dr. Marcolino e Valadão. O negociante Carre gosa faz-se acompanhar da família. Na procissão do ano pas sado, Amelinha ainda era moça solteira, c por isso pegou no andor de Santo Antônio com as Albuquerques, as que organi zaram o comentado "Terno das Borboletas". Sua voz se desta ca entoada e confiante : No Céu, no Céu, com minha mãe estarei . . .
A procissão entra a seguir na Rua da Ilha. O povo se com prime, porque a rua não é a praça! Aproveitando o aperto, os meninos uniformizados da Escola Ruy Barbosa futucam as tra238
seiras expostas dos colegas. A rua é estreita, o que obriga a "Aurora Musical Andaraiense" a sair de forma e a proteger os instrumentos dos empurrões. Mestre Elpídio sua. O foguetório rompe perto da ponte, e há então um zunzum de gente irritada sacudindo lenços acima da cabeça. A procissão se espreme. O povo se comprime como sardinha em lata. Já pisaram até no pé de uma velha que vinha descalça cumprindo uma promessa. Está perigando! É capaz de virar frege, como aconteceu na quela vez que deram um beliscão na bunda da amásia de um inspetor. A propósito, o delegado vem ao lado de seis ou oito policiadores com armas curtas mal disfarçadas - reparando, para ver se pega com a boca na botij a algum sujeito que quei ra abusar, tirar proveito da ocasião. Muitas pessoas preferiram ficar na ponte e esperar a procissão na volta a se exporem ao risco de amassar a roupa nova no meio do povaréu. Entre elas, Valadão, que comenta com Quelezinho ser "uma imprudência meterem-se os andores por aquela estreita via pública". Mas, a despeito de tudo, a procissão anda - enchendo a rua como um rio. Quem quiser que fique na ponte, que fuja do aperto da Rua da llha! Na cauda, há risadas entre empurrões e pisadelas - o cheiro de suor do povo se misturando ao da pólvora dos foguetes e ao do incenso abundante. Ali pode-se apalpar à von tade, porque as mulheres-damas são pra isso mesmo. No Céu, no Céu, com minha mãe estarei . . .
O canto das moças se confunde com o alarido dos meni nos da Escola Ruy Barbosa e com o vozerio que vem da cauda. Surgem pragas de todos os lados : Que anarquia! - Tá cego, diabo! - O meu é o de baixo! Ao Padre Santana - de breviário na mão - já doem os calos. O homem do turíbulo foi obrigado a apagar as brasas, porque senão ia sair gente queimada, na certa! Mestre Elpídio levanta o braço e a "Aurora Musical Andaraiense" enfia-se num silêncio rancoroso : a música estava tão bonita! Era aquele do brado desconhecido que a filarmônica estreava. Mas quem é que pode tocar no meio de tanto empurrão? Uma onda sobe e o delegado segura um sujeito pela gravata : - Se respeite! Se respeite! Ninguém reparou. O que o povo quer é sair da rua o mais depressa possível. Nunca se viu uma procissão de N. S. da Gló239
ria tão concorrida! Nem mesmo quando a igreja da Santa ainda estava de pé - admitem os mais velhos. Os andores oscilam de leve, como barcos sobre o rio de cabeças, que vai enchendo sempre. Agora a voz das moças é desencontrada na ladainha: Glória . . . com minha . .
.
no Céu . . .
Mas, de súbito - a procissão estaca, como se fosse uma só pessoa. As moças interrompem a ladainha, os meninos da escola se calam como quando Valadão bate com a régua na mesa pedindo silêncio (senão vai rachar a cabeça do primeiro ) , os homens olham espantados - e um murmúrio de curiosidade corre de lá da cauda e vem morrendo até chegar ao estandarte empunhado pelo tabelião Romualdo. Trepada n a janela do só tão, com o risco de se esborrachar nas pedras da calçada tinha aparecido a filha do Juiz com um urinol enfiado na ca beça. - Eu vou ser coroaaaaAAAAAADA! - gritava para o povo. - Eu vou ser coroaaaAAADA! Não se sabe bem explicar como começou. Foi uma coisa contagiante. A procissão explodiu numa gargalhada que não havia ninguém capaz de deter : era como se tivesse arrebentado um dique. Por fim, alguém retirou a moça bruscamente da janela e, em meio aos seus desatinados gritos, ouviu-se a voz do Juiz dentro da casa: - Vejam o bromureto! E num tom de angústia ofendida: - Está em cima do armário! •
Já era quase noite quando a proc1ssao retornou à igreja. Por sugestão de Dr. Marcolino, a "Aurora Musical Andaraien se" atacou uma marcha de puxar cordão que até fazia o povo esquecer que tinha acontecido mesmo alguma coisa. Mestre Elpídio vibrava, porque parecia exatamente uma passeata, com tantos candeeiros nas janelas. XIX
Dr. Oscar, que Ja estava de roupa trocada para visitar o Juiz à noite, de novo se pôs em pijama assim que a procissão 240
dobrou a esquina. O acesso da moça, por ele presenciado da janela do sobrado, deixara-o sob uma contraditória impressão de consternação e embaraço. A circunstância de que, para jus tificar o prazer de se ter livrado da visita protocolar ao Juiz, que naquele dia fazia anos, era preciso invocar a desgraça que se abatera sobre a sua filha naquela tarde, parecia-lhe tão de sumanamente verdadeira, que ele preferiu não pensar mais nela. Voltou à mesa de trabalho, com o candeeiro na mão, e, enquan to esperava pelo jantar, concluiu a carta que, no dia seguinte, devia remeter ao seu procurador. Assim foi que, aludindo de início à sua "inabalável decisão de sair de Andar aí", para o que insistia na "necessidade de se conseguir a permuta de co marca fosse de que maneira fosse!", referiu-se aos jornais rece bidos pelo último correio - tachando de "incompleto" o arti go que lera sobre as Lavras. "Você precisa ver como funciona essa máquina de rapinagem e trapaça que é o comércio de pe dras preciosas!" - escreveu. E foi explicando : "Ao contrário dos pequenos fornecedores, cujo objetivo imediato é a compra preferencial do diamante extraído, os mosquitadores têm ação mais ampla, que não se limita às garimpagens levadas a efeito com a manutenção de meias-praças, de vez que se amplia nas atividades comerciais do ramo. Independentemente do forne cimento, que é um sistema de ordem geral, auxiliam eles indi ferentemente os garimpeiros que eventualmente trabalhem por conta própria, abrindo-lhes crédito nas suas pequenas casas de negócio, mantidas para tal fim, e obtendo, por esse meio, a preferência sobre os diamantes que venham a ser encontrados. Sabe-se que, salvo quando é, ao mesmo tempo, proprietário de terrenos diamantíferos, o capangueiro só muito raramente auxi lia um garimpeiro que se ache em dificuldade por estar traba lhando sem fornecimento. Tira então o mosquitador o máximo partido dessa situação. É comum, nos dias de feira, verem-se seus pequenos estabelecimentos comerciais cheios de garimpei ros - meias-praças ou não de seus proprietários - e, em to dos eles, a mesma aparência de prodigalidade e fartura. Aos sá bados, o mosquitador vai atalhar os garimpeiros nas pontas de rua, quando não se põe de atalaia à porta das vendas e dos escri tórios improvisados, tudo fazendo para evitar que aqueles che guem até a praça e entrem nos escritórios dos capangueiros. Na sua função intermediária, os mosquitadores exigem do garim peiro uma recompensa, que consiste na compra do diamante por ele trazido, em troca da ajuda que lhe deram um dia para com pletar o saco - a fim de matar-lhe a fome. Enquanto isso, o 241
capangueiro procura eliminar a seu modo essa concorrência, transformando em seu agente o mosquitador que revele maior capacidade de produção. Isto lhe permite explorar, indireta� mente, sem se expor ao risco de empreender garimpagens de resultados imprevisíveis, o núcleo de garimpeiros que cada mos quitador, transformado em agente, passa a representar. Ora, o agente recebe do capangueiro, com o capital fornecido para a compra de diamantes e carbonatos, uma tabela de preços de acordo com a qual deve operar. Aceita a proposta, na ilusão de aumentar o volume de seus negócios, o mosquitador assume o compromisso de vender, com exclusividade, ao capangueiro de quem se tornou agente, tudo o que produzir durante a se mana - comprado aos seus meias-praças, ou não. O "emprés timo" é feito com a usura de uma sociedade a tantos por cen to nos lucros. Mas, que lucros? Comprando pela tabela forne cida, o agente só faz escravizar-se aos preços estabelecidos pelo capangueiro, sujeitando-se, ainda por cima, ao arbítrio do só cio capitalista nos ajustes de contas. Por exemplo: o agente compra uma pedra por 500$000. Para ele, a pedra vale essa quantia. No ajuste de contas, porém, depois de submetê>-la ao mais rigoroso exame, o capangueiro acaba achando que ela não vale mais de 300$000, e, para prová-lo, apela para o seu pa� lavreado técnico de conhecedor do assunto. Então aconselha ao agente, a essa altura prejudicado, a ter mais cuidado da pró xima vez, etc., etc., e outras tapeações! Ele lhe compra as pe dras pela tabela, é claro, mas dependendo da sua classificação final, porque não é justo que ele "perca" dinheiro por causa da inabilidade de um auxiliar . . . A única vantagem dos mesquita dores reside na transação direta com os garimpeiros, que lhes proporciona lucros capazes de fazer face aos prejuízos forçados pela classificação final do capangueiro. O garimpeiro, em re sumo, é quem paga o pato! Se encontra, num momento difícil, um amigo no mosquitador que se tornou agente, esse amigo, que só faz aproveitar-se de sua miséria e de sua fome, auxilia-o unicamente com o fim de transformar esse auxílio numa tran sação comercial, impondo-lhe, à margem da tabela do capan gueiro, seus preços individuais : o garimpeiro nada sabe de pre ços nem de tabelas . . . Por outro lado, há entre os capangueiros os privilegiados, que mantêm negócios diretamente com as fir mas estrangeiras monopolistas. Com eles se reproduz, embora em outras proporções e com outras variantes, o mesmo caso dos mosquitadores transformados em agentes. Por esse motivo, orientados pela tabela especial que lhes é fornecida pela firma 242
L:strangeira com que negociam, também forçam, à margem de l a , seus preços individuais, e até mesmo desastrosas baixas no mercado". A este trecho, Dr. Oscar juntou o seguinte : "E você, m eu caro amigo, ainda me aconselha a entrar no comércio de d iamantes! Repito: trata-se de uma máquina de rapinagem e trapaça, a serviço de uma malta de aproveitadores que vivem passando para trás uns aos outros, roubalheira organizada, da qual esse vil politiqueiro Quelezinho é bem um símbolo". A carta, que se alongara bastante, terminava com algumas melancólicas alusões ao "erro de ter aceito aquela Promotoria", às quais se seguiam lembranças e abraços para os conhecidos. Nesse momento, a cozinheira Ifigênia entrou na sala para avisar que o jantar estava na mesa. Devolvido de súbito à realidade ambiente, Dr. Oscar experimentou a sensação de quem desperta de um sonho, de tal modo a carta o absorvera. Era como se se visse detido em uma fuga decisiva para o seu destino. A primeira coisa de que se lembrou - e de maneira terrivelmente nítida foi da filha do Juiz aos berros na janela. Dobrou lentamente as laudas manuscritas, metendo-as em seguida num envelope já so brescrito, e disse à empregada : - Amanhã cedo m e leve isto a o correio. XX
Carregosa estava abrindo as malas do correio. Ia atirando atropeladamente para cima da mesa os pacotes de jornais, os registrados e as cartas simples, que se esparramavam naquela confusão de papel, selos e barbantes, que ele já nem era ca paz de saber onde tinha deixado as guias e o carimbo! Ao lon go do balcão - comprimiam-se os empregados do comércio em mangas de camisa, com os lugares da frente ocupados por Ziu, Canelinha, Carvalhal e pelo coletor Barroso: fumava-se e conversava-se em voz alta. Muitos dos que ali se encontravam não tinham cartas a receber de quem quer que fosse - mas iam : precisavam matar o tempo, e o correio era, afinal de contas, um divertimento. Em outros tempos, Amelinha ajudava o pai na distribuição d a correspondência; mas agora estava casada, grávida, e já não vinha à loj a. Por isso mesmo, Carregosa acei tara de bom grado o auxílio que lhe prestava o compadre Va ladão - reunindo e colecionando as cartas para facilitar a lei tura dos destinatários. Quando Ifigênia chegou, já estava sendo 243
distribuída a correspondência. Ficou à porta, com a carta do Promotor na mão, esperando que se evacuasse convenientemen te A Barateira. Do outro lado da praça, alguns jumentos co miam cascas de bananas na porta da venda de Belo Corujão, e, ao sol de rachar, passavam garimpeiros retardatários para a serra. Carregosa começou : - Cazuza Pinto! - Não veio - informou uma voz. - Alguém por ele? - Ele está de resguardo . . . - atalhou Canelinha. Houve algumas risadas. Ziu perguntou : - Quem emprenhou ele? Carregosa já estava habituado a ouvir tais pilhérias du rante a distribuição do correio. No tempo em que Amelinha o ajudava, o ambiente era outro - todos respeitavam a moça. Mas agora a liberdade voltava a reinar. Apanhou outra carta: - Osiano Miranda! - Pronto! E o caixeiro solícito estendeu a mão. Veio mais outra carta: - Pinto Pereira & Cia.! - Pode jogar! - respondeu o empregado da firma. Carregosa atirou a carta, que passou raspando pela cara do coletor Barroso. - Olhe essa pontaria, Seu Carregosa! - exclamou o outro. Dr. Marcolino, que se encontrava sentado no balcão, com as pernas para o lado de dentro, abriu o número da Revista Médica que acabara de receber. Já não tendo em que auxiliar o compadre Carregosa, Valadão desdobrou um jornal e va gueou os olhos pelas manchetes, soltando grunhidos que va liam por comentários. - Vitória Ramos - continuou Carregosa. - Pode jogar! - respondeu Ziu, que raramente ouvia alguém chamá-lo a não ser pelo apelido. Garanto que é duplicata atrasada . . . - gracejou o coletor. Quando eu ando com sua mãe, pago adiantado - re plicou Ziu, já com a carta na mão. Foi uma gargalhada geral. Dr. Marcolino tossia e ria ao m esmo tempo. Valadão fechou a cara sobre o jornal, desdobra do no entrelinhado "Noticiário do Interior" : não suportava "o brutalhão do Ziu!" Carregosa apanhou outra carta. Por um mo244
mcnto, todos aguardaram o nome do destinatário. Mas o lojista, nada dizer, atirou a carta para dentro da gaveta. - Não vale! - protestou Canelinha. Ziu insistiu : - De quem é? Carregosa respondeu em voz baixa : - É do Costa . . . - Então é de casa mesmo - conveio Canelinha. Do lado de fora, Ifigênia estava para perder a paciência: ainda tinha de preparar o almoço e nada da loja s e esvaziar! Tomando uma resolução súbita - meteu os ombros na caixei rada e foi varando até o balcão. Canelinha não perdeu a opor tunidade. - Quando você tiver um filho com o Promotor - disse - eu quero ser o padrinho . . . Dessa vez, até o próprio Valadão sorriu. Mas a velha, empunhando a carta como um troféu, sem dar atenção às gar galhadas que a pilhéria provocara, dirigiu-se diretamente a Carregosa : - O Promotor disse que é para registrar. E u estou com pressa. O agente-postal sentou-se à mesa, abriu lentamente o ta lão de registro, acertou o papel-carbono e tomou do lápis-cópia para lançar as anotações. Ao começar a fazê-lo, Dr. Marcolino saltou do balcão com o charuto na boca, a Revista Médica de baixo do braço - e, aproximando-se da mesa, leu o seguinte endereço: Urgente. Ilm.0 Sr. Bento Marinho - Rua Portugal, 22 - 2.0 andar - Bahia (Capital) . Depois voltou ao balcão, recostando-se contra as prateleiras com peças de madastro arru madas, e ficou mastigando a ponta do charuto, enquanto fo lheava a revista sem nenhum interesse. Finalmente, Carregosa levantou-se e entregou o certificado de registro e o troco à mu lher, que saiu debaixo de empurrões até pôr os pés na rua com um "Arre!" de alívio. Foi feita em seguida a distribuição dos registrados, e a loja não tardou a esvaziar-se, com os caixeiros atravessando a praça carregados de pacotes e Ziu indo tomar com os amigos um trago no bilhar. - A distribuição está encerrada - anunciou Carregosa. Mas sempre havia alguém agarrado à última esperança de uma carta possivelmente esquecida em cima da mesa desarru mada. - Não tem mais nada - tornou Carregosa. Veio o protesto inútil : ';l' l l l
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- Que diabo! Não escrevo mais nunca a ninguém! Logo depois, ficava na loja sem nenhum movimento além de Carregosa e dos empregados que se encontravam na outra extremidade do balcão - apenas Dr. Marcolino. Este esperava exatamente por isso. - ó Carregosa! - disse. - Deixe-me ver a carta do Promotor. O agente do correio olhou-o espantado. - A carta do Promotor, homem! A carta do Promotor! - insistiu o médico, descendo do balcão. E dirigindo-se para a mesa : - Não está entendendo? A carta do Promotor! Em vão Carregosa apelou para o que lhe restava de digni dade profissional : não valia a pena resistir à insólita ordem. Entregou a carta ao médico, sem articular uma palavra - e deixou-se cair na cadeira ao pressentir que ele ia rasgar o enve loje com o bisturi que trazia na mão. Seguiu-se um silêncio constrangedor, interrompido apenas pelo rumor das laudas que iam sendo viradas com estouvamento, depois do que Carregosa ouviu este resmungo : - "Que cachorro! " Quando ergueu as vistas, já Dr. Marcolino tinha saltado o balcão e desaparecido. XXI
Quelezinho veio receber Dr. Marcolino com um lado do rosto ensaboado e o pincel de barba na mão. D. Elza ainda observou : - Lave ao menos o rosto, meu filho. Mas Dr. Marcolino explicou : - É coisa de urgência, D. Elza. De muita urgência. No escritório, mal entraram, Quelezinho perguntou : É sobre o caso de Piranhas? O médico não atinou no primeiro momento. - Qual é o caso? - respondeu, introduzindo a mão no bolso para retirar a carta. - O caso de Patrício . . . Do homem que ele manpou ma tar . . . Dr. Marcolino mastigou o charuto com impaciência : Qual caso de Piranhas coisa nenhuma, Seu Quelezinho! -
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Trata-se de coisa muito pior. E puxando a carta : - Leia isto. À medida que Quelezinho lia a carta, seu rosto se cobria de uma palidez aterradora. O médico, andando em volta da sala, era quem falava agora sobre o caso de Piranhas : - Cara de homem não é pandeiro . . . Patrício fez muito bem em mandar dar uma lição naquele moleque atrevido . . . E soprou para o alto a fumaça do charuto. - Bandido! - exclamou Quelezinho, amarfanhando a carta: todo o seu sangue subira nesse momento para o rosto. - Esse bandido precisa de uma correção! - bradou. - Me tendo-se com o que não é d a conta! Dr. Marcolino sentou-se. - Que é que você pretende fazer? - perguntou, depois de cuspir alguns fragmentos do charuto mastigado. - O que eu pretendo fazer? - disse Quelezinho. - Te legrafar para o Secretário do Interior hoj e mesmo. Vou trans ferir esse patife de comarca dentro de 48 horas. - Não sem esculhambá-lo antes - interrompeu-o Dr. Marcolino, tossindo convulsivamente. Tornou a puxar a fuma ça do charuto, e acrescentou com firmeza : - Já que ele nos quis esculhambar, que fique esculhambado ele! - Mas como você conseguiu essa carta? - inquiriu Quelezinho, num relance. O médico sorriu. - Eu lhe conto - disse. E contou tudo rapidamente. Tinha um ar de triunfo mal contido ao sugerir a idéia que lhe ocorrera momentos antes : - Vamos fazer o mineiro-pau em cima dele. - útimo! - concordou Quelezinho, com a carta amassada na mão. - útima idéia! Esse cachorro precisa mesmo de uma lição ! E deu um murro na mesa. Dr. Marcolino sacudiu gravemente a cabeça : É um patife! - Pois arranje o mineiro-pau para hoj e mesmo - continuou Quelezinho. - Converse com Esquivei. Ele pode arran jar uns trinta homens com facilidade. Foi quando se ouviu a voz de uma criança na outra sala. - Eu quero meu leite é frio, mamãe. Dr. Marcolino ergueu-se precipitadamente. Bem - disse. - Não quero lhe tomar mais tempo. -
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E apanhando o chapéu: - Vá acabar de fazer sua barba, que já está passando da hora do almoço. - Não quer ficar para o feijão? - Não. Bom apetite. Vou procurar o Valadão para escrever os versos. XXII A sala de redação de A Evolução estava mergulhada nu ma bocejante paz, com o mormaço das duas horas da tarde abra sando o capinzal dos fundos. Em mangas de camisa, Valadão releu o papel que tinha na mão. Depois lançou os olhos para a porta, como que protestando contra o retardamento do se cretário Costa. Consultou o relógio de bolso - um volumoso cronômetro banhado a ouro - e coçou a cabeça nervosamente. Precisava ler a crônica a alguém, para "sentir o efeito" - e o D. Costa até aquela hora! Depois que se casara, era aquilo que se via : plantara-se em casa do sogro, sem querer botar a cabeça de fora, relaxara o horário, às vezes mandava as "So ciais" de casa mesmo - uma calamidade! Soltando um suspiro, Valadão passou os olhos pelo papel com muitas emendas, por que "escrevera em português castigado", e não se conteve mais. Ergueu-se, correu à janela, e gritou para o pátio: - 6 Morais! Vem cá! Mal se repoltreou de novo na cadeira, eis que, magro, su jo, de avental e barrete na cabeça - o tipógrafo Morais entrou na sala, arrastando os pés. - Escuta, Morais - foi dizendo Valadão. - Quero ou vir a tua opinião . . . :E; sobre a procissão, isto é, sobre D. Elza. Está um brinco! Vai fazer sucesso! O tipógrafo piscou os olhos, sem compreender. - Vá escutando - continuou o diretor de A Evolução. E depois de repuxar as mangas da camisa, ergueu as tiras de papel numa das mãos, enquanto gesticulava com a outra. - "No debrum social que este ano viveu e engalanou os arredores da nossa linda estância" - foi lendo - "esteve, na procissão de N. S. da Glória, dando-lhe um décor todo excep cional, a madame Elza Jardim, fidelíssima esposa do nosso pre zado confrade Cel. Clemente Jardim - na intimidade, Quelezi nho - na sua altíssima d istinção." 248
De repente, parou - olhando por cima dos óculos para o tipógrafo Morais : este limpava as mãos vagamente no aven tal. Valadão deu um repelão no papel : - Vê lá, homem! Ouve com atenção! E prosseguiu : - "Os que tiveram a fortuna de se aproximar e merecer a simpatia da ilustre dama, sentiram todos os primores de fi dalguia que lhe marchetam o coração, trabalhado que vem, de longe, pelas alcandoradas virtudes em que sempre se plasmou o altivo, bravo e cavalheiresco povo lavrista." Virou rapidamente a lauda e continuou : - "Aumentando-lhe o fascínio, ao derredor, na graça alí gera duma libélula, de grande asas da cor do sonho, da cor da esperança, que freme no azul dos horizontes" . . . Morais vibrou : - Formidável! Valadão sorriu discretamente e , limpando a goela com um pigarro, já ia retomar com animação a leitura - quando a porta da sala se abriu com arremesso, e Dr. Marcolino entrou abotoando a braguilha. - Quero que me escreva uns versos que esculhambem, Seu Valadão! - foi bradando. E arrastando em seguida uma cadeira, sentou-se com estrondo. O diretor de A Evolução dobrou as tiras de papel e soltou um suspiro mais significativo do que um nome feio. Dr. Marco lino atirou o chapéu para cima da mesa. - Quero uns versos que esculhambem - continuou. E, de um jato, enquanto Morais se retirava, contou a his tória da carta e falou da resolução, que tomara com Quelezi nho, de "fazer o cachorro do Promotor entrar no mineiro-pau". - Vamos esculhambá-lo - acrescentou. Valadão enxugou o suor do rosto. Ainda não se refizera completamente da surda contrariedade que lhe causara o ino portuno visitante. Justamente quando falava na "cor que freme no azul dos horizontes", precisamente quando ia entrar "na parte mais eloqüente da crônica", que "até já tinha comovido a besta do Morais" - eis que lhe entra pela sala, "abotoando torpe mente a braguilha, o Sr. Dr. Marcolino, para pedir uns versos que esculhambem ! " Só depois de grande esforço foi possível re signar-se. E já o médico voltava à carga : - Vamos lá, homem, escreva! Não precisa pensar não. 249
É coisa para esculhambar. Você, que tem jeito para poesia, pode escrever isso num instante. Vamos lá! - Calma, Marcolino . . . Não vale a pena fazer-se nada de afogadilho. Vou pensar um pouco, e, mais tarde, levar-te-ei os versos. Podes ficar tranqüilo. Dr. Marcolino encolheu os ombros : - Está certo. Basta uma estrofe . . . uma quadra . . . co mo é mesmo? Você é que sabe. Contanto que seja uma coisa que esculhambe. E agarrando vivamente o chapéu, encaminhou-se para o corredor com o charuto apagado na boca, deixando a porta escancarada atrás de si. Um fedor insuportável de urina entrou então pela sala da redação como uma zombaria canalha. Valadão deu um murr o na mesa e gritou para o pátio : - Morais ! Veja se me asseia esse urinol! XXIII
- Quantos homens conseguiu arranjar? - perguntou Dr. Marcolino. O delegado Esquivei informou com solicitude : - Trinta e dois. O outro mostrou-se satisfeito. - É o bastante - disse. - E quem vai tocar o trom bone? - José Alves - respondeu o delegado. Estavam conversando os dois no consultório médico, eram cinco horas da tarde, e tinham acabado de tomar mais uma cerveja. Viera uma dúzia do bar, e for a posta para esfriar na areia molhada que a empregada amontoara ao lado da porta. O chão estava juncado de pontas de cigarro, tampas de garrafas e pedaços de algodão molhado em iodo. - Está tudo combinado - continuou Esquivei. - Já arranjei o tocador de bombo, o Estêvão, da filarmônica, e a caixa e os pratos eu vou mandar buscar na hora. Foi quando bateram palmas à porta da rua. - Deve ser o Valadão com os versos - disse Dr. Mar colina, saindo precipitadamente da sala. Voltou logo depois, com um envelope na mão. Enquanto o abria, acrescentou : 250
- O V aladão não pôde vir. Mas o essencial é que os versos vieram. E desdobrou apressadamente o papel retirado do envelope. Leu à meia-voz: Você diz que sabe ler! Mineiro, pau! Mineiro, pau! Eu sei mais do que você! Mineiro, pau! Mineiro, pau! Eu escrevo Soure com "S"! Mineiro, pau! Mineiro, pau! Você escreve Soure com "C"! Mineiro, pau! Mineiro, pau!
Atirando o papel com raiva em cima da mesa, o médico bradou : - Faça o favor de me ler isto, Seu Esquivei! E veja que grandissíssima besta é o Valadão! Peço uns versos que esculham bem, e lá vem ele com essa história de escrever Soure com "S" e com C Isso é charada? De repente, como que atravessado por uma idéia, indagou com curiosidade : - E ele escreve mesmo Sow·e com "C"? O delegado encolheu os ombros : - Para falar com franqueza, eu não sei. E, mal lançou os olhos para o papel desdobrado em sua frente, já Dr. Marcolino retomava o envelope, com súbito inte resse : notara que ainda havia qualquer coisa dentro dele. Era esta carta: "
A
".
EVOLUÇÃO
ÓRGÃO INDEPENDENTE E N OTICIOSO ANDARAt -:- BAHIA Meu caro Dr. Marco!ino: Envio-te os versos, e não sei se eles estão como tu querias. Fi-los à maneira satírica do nosso grande Gregório de Matos. Não ficaram como bem desejava eu, mas isso por causa da melodia, que é um tanto irregular. Não sei se o Promotor escreve Soure com ''C". Mas o essencial é que os versos verru mem, corroam, como os do excelso bardo baiano, Gregório de Matos, que, ao que parece, molhava a pena em soda cáustica. Sem outro assunto que se me depare, Cordialmente,
VALADÃO
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- Grandissíssima besta! - exclamou Dr. Marcolino, amassando a carta. - Que burralhão! Esquivei tocou-lhe no braço : - Já lhe disse, doutor . . . O Canelinha é que serve para essas coisas. O médico mordeu a ponta do charuto e sentou-se. - Mas que vastíssimo burro! - rosnou ainda. E bateu o pau de fósforo com tanta força na lixa, que a cabeça saltou longe. Ao riscar outro, ordenou por entre os den tes ao delegado : - Pois vá ver o Canelinha. Mas não se esqueça : quero uns versos que esculhambem. E acendeu , afinal, o charuto. XXIV O delegado Esquivei foi direto ao bilhar. - Que diabo! O Canelinha não está por aqui não? disse, entre decepcionado e enraivecido. O empregado, que varria a sala deserta (os freqüentadores tinham ido tomar banho no rio ) , respondeu em tom tranqüi lizador : - Está bebendo lá dentro. E apontou para o reservado : era um cômodo que ficava nos fundos, dividido por um tabique pintado de amarelo e com uma folhinha pendurada bem à vista. O delegado empurrou a porta com arremesso. - Preciso falar com você com urgência - foi dizendo. Canelinha mostrou-se surpreendido por trás da garrafa de cachaça. - Alguma novidade? - perguntou, com ar apreensivo. Esquivei arrastou uma cadeira e sentou-se. - Traga um copo! - gritou para o empregado. E enquanto o copo vinha: - Deixe o empregado trazer o copo, que eu lhe conto. Veio finalmente o copo. Serviu-se de uma boa dose, e disse ao empregado : - Feche a porta. Não quero que ninguém entre aqui. E contou tudo a Canelinha. "Tinh a que ser o mais depres sa possível, porque os homens ainda iam ensaiar. A coisa estou raria à meia-noite. Pouca gente sabia - ia ser uma surpresa. 252
Valadão fizera uma letra, mas não prestara : Dr. Marcolino que ria era uma esculhambação grossa!" E repetiu : - O negócio é pra esculhambar! - Mas, afinal de contas, o que é que o Promotor fez? perguntou Canelinha interessado. - Depois eu lhe conto - respondeu o delegado. - Va mos ver os versos primeiro. E emborcou o copo. Canelinha renovou a dose. Por um momento, só se ouviu o ruído da cachaça sendo despejada. Finalmente ele disse: - Os versos são para esculhambar mesmo? - É, homem! - exclamou o delegado, limpando a boca na manga do paletó. - Tem que ser uma coisa pra esculham bar de verdade! Canelinha tamborilou com os dedos sobre a mesa e, enquanto se concentrava, começou a assobiar baixinho a co nhecida música. De repente parou : era como se necessitasse de um estímulo. - Que esculhambe, não é? - perguntou de novo. - É, homem! - exclamou, mais uma vez, o delegado. - Que diabo! Faça uma esculhambação grossa! E tornou a servir-se da cachaça. - O nome dele não é Oscar do Soure? - perguntou ainda Canelinha. O delegado Esquivei balançou a cabeça afirmativamente. - Não vá me deixar em dificuldade - observou em se guida. - Eu garanti por você. Só quero ver! Preciso de uma letra que esculhambe de verdade. Canelinha ainda pensou um instante; por fim, disse, empur rando vivamente o chapéu para a nuca : - Então, ouça - e cantou em voz baixa, batendo com o fundo do copo para marcar o compasso : Seu Dr. Oscar do Soure! Mineiro, pau! Mineiro, pau! Burro assim nunca se viu! Mineiro, pau! Mineiro, pau! Promotor filho da puta! Mineiro, pau! Mineiro, pau! Vá pra puta que o pariu! Mineiro, pau! Mineiro, pau!
Segurando Canelinha pelo braço - o delegado empurrou-o contra o espaldar da cadeira, num assomo de entusiasmo e inti midade arrebatada. 253
- Você é um sujeito desgraçado de inteligente, Seu Ca nelinha! - exclamou. Mas logo se mostrou preocupado: - Vamos escrever isto antes que você esqueça - acres centou, metendo a mão no bolso à procura do lápis e de um pedaço de papel. A letra foi escrita imediatamente, depois do que os dois beberam à saúde um do outro, e já o delegado ia retirar-se, quando Canelinha lembrou : - Será que eu não posso entrar no coro? - Claro que pode - respondeu o delegado. - Quanto mais gente, melhor. Apareça na Intendência às onze e meia. Mas não diga nada a ninguém, vê lá! E deixou desabaladamente o reservado. XXV
Naquela noite, tendo ido visitar o Promotor, o telegrafista Nascimento demorou-se em casa dele até mais tarde, que "a prosa estava boa, fazendo-o perder por completo a noção do tempo", sem falar nas mãos de bisca que os dois jogaram com o interesse redobrado de decidir um velho empate : as horas tinham voado. Ao sair, de charuto aceso e bengala embaixo do braço, era quase meia-noite, trancou a porta pelo lado de fora, e depois meteu a chave por uma greta que havia sobre o ba tente. O Promotor, que não descera, assomou à janela do so brado. - Até amanhã - despediu-se Nascimento ainda uma vez. E apressadamente rumou para casa, tomando a calçada da rua deserta e já àquela hora com os lampiões se extinguindo : a luz turva incidia debilmente sobre as vidraças, e as residências fechadas tinham na escuridão um vago tom desolad o : eram como coisas que estivessem desaparecendo para sempre. Sob a ponte, o fraco rumor das águas escassas deslizando por entre as pedras, e nos quintais o estalido seco das folhas - nada mais perturbava a calma da noite erma além do eco dos seus passos. Ao entrar na praça, lobrigou o vulto de um cachorro curvado sobre qualquer coisa atirada à porta do bilhar de Ziu: eram alguns restos de comida - espinhas de peixe misturadas com cascas de frutas. Sem que pudesse evitar, ergueu a bengala e enxotou-o impulsivamente para longe, tomado de uma pre254
caução que lhe parecia muito mais importante do que a fome do animal : tinha medo de cachorros desde o tempo da escola. Conservando a bengala erguida, esperou pelo latido de protesto do cão - mas o que ouviu foi um rumor estranho, que veio crescendo dentro da noite, como um clamor. A princípio, não pôde distinguir nada, a não ser um surdo e ritmado bater d e bombo. Julgou que se tratasse de algum ensaio da filarmônica, hipótese que lhe pareceu ainda mais pro vável quando ao toque do bombo se seguiu um rasgado som de trombone. Entretanto, a retumbante gritaria que ouviu logo de pois trouxe-lhe a certeza de que algo de anormal estava real mente se passando. Cheio de súbita apreensão, coseu-se à pa rede do bilhar como um animal ameaçado : nunca se sabe ao certo o que vai acontecer. No mesmo instante, a massa coral se fez ouvir como uma tempestade que vinha pondo o mundo abaixo: Seu Dr. Oscar do Soure! Mineiro, paul Mineiro, paul Burro assim nunca se viu! :Mineiro, pau! Mineiro, pau!
O telegrafista fez um movimento à retaguarda com tama nha rapidez que, ao chegar a tumultuária cantoria ao Promotor filho da puta! Mineiro, pau! Mineiro, paul
já ele se encontrava diante do sobrado de onde saíra mo mentos antes e, esmurrando violentamente a porta, gritava para o amigo : - Oscar ! Oscar! Abra aqui depressa! E mal o Promotor surgiu à janela - já o coro distante atacava: Vá pra puta que o pariu! Mineiro, pau! Mineiro, pau!
Abra aqui depressa! - repetia Nascimento com a ben gala na mão : em outras circunstâncias, ter-se-ia espantado com a rapidez com que o Promotor desapareceu da janela e abriu a porta. - O que é, o que foi? - começou a perguntar este, com agitação : tinha as feições desfiguradas e parecia tremer à luz do candeeiro. 255
O telegrafista trancou a porta antes de responder.
- Você precisa sair imediatamente da cidade - disse afinal. E ante o olhar pasmado do outro : - Não temos tempo a perder. Vamos! Vamos depressa! e agarrando o Promotor pelo braço, subiu com ele precipi tadamente a escada. - É o mineiro-pau - foi explicando. Mas logo se tornou desnecessário acrescentar a frase seguinte "É contra você". Já perto, o trombone fez uma variação, a caixa foi repi cada, os pratos batidos com mais força - e o coro de novo entrou em cheio : Seu Dr. Oscar do Soure! Mineiro, pau! Mineiro, pau! Burro assim nunca se viu! Mineiro, pau! Mineiro, pau!
O Promotor sentiu um baque no coração : era a primeira vez que percebia o seu nome em meio daquele rumor todo e ouvindo-o ecoar dentro da noite de maneira tão surpreenden te, entre o bater ritmado do bombo e o estridente contracanto do trombone, ficou de tal sorte chocado que, aos seus sentidos, se tornou menos evidente o risco que corria do que a idéia de que tudo aquilo não estava acontecendo. O mais impressionan te, sem dúvida, era que o tumulto assumia, na meticulosa exe cução do plano previamente elaborado, como que o caráter de uma espécie de comemoração : os versos eram cantados com sincero e contagiante entusiasmo. Quando o trombone estron dou na Rua do Curral e os homens recrutados por Esquivei passaram cantando a retumbante marcha ao compasso do bom bo - muitas pessoas assomaram às janelas de candeeiro na mão. Era como uma passeata triunfal. Promotor filho da puta! Mineiro, pau! Mineiro, pau!
- Covardes! - exclamou de repente Dr. Oscar. E olhou desalentadamente em volta da sala: toda a sua vida se resumia em meia dúzia de objetos espalhados ali compreendeu isso num relance. Mas Nascimento atalhou-o : - Temos que sair pelos fundos . . . Depois eu lhe explico o que deve fazer . . . 256
E lançou-se com precipitação para o quarto, de onde vol tou com o chapéu e o casaco do amigo. Fez um gesto indicativo e acrescentou: - Vamos. Bote o casaco assim mesmo por cima do pa letó de pijama. Não há mais tempo para você vestir a camisa. Vamos logo! Vá pra puta que o pariu! Mineiro, pau! Mineiro, pau!
Nascimento agitou as mãos, nervoso. - Vamos logo! - repetiu em voz baixa. E como se se lembrasse de um argumento decisivo, no qual não era possível deixar de pensar : - Vamos logo, antes que cerquem a casa. Nesse momento, o Promotor se apercebeu de uma coisa muito importante : a necessidade que tinha de salvar a vida fosse de que maneira fosse. Então tudo se passou com rapidez: os dois correram em direção à cozinha, desceram a escada do quintal, abriram o portão e, protegidos pela escuridão, avança ram pelo beco que ia dar no morro do Apertado-da-Hora. Dali, entraram pelos fundos no quintal do telégrafo, escalando o mu ro, e furtivamente deslizaram para trás de uma moita, onde permaneceram em silêncio durante algum tempo. De novo a cantoria se distanciou. - Devem ter ido para o Sossego - disse afinal Nasci mento. - Estão percorrendo as ruas . . . Como o bairro do Sossego ficava no outro extremo da ci dade - recobrou, a essa idéia, uma espécie de constrangida tranqüilidade : parecia-lhe, agora, que não tinha sido tão difí cil fugirem. Enxugou o suor do rosto e acrescentou: - Não é para matar você . . . A finalidade do mineiro-pau é somente achincalhar. Ante a iminência do perigo que, de qualquer forma, ha via, afigurou-se ao Promotor terrivelmente injusto que, nas cir cunstâncias em que se achava - agachado atrás de uma moita - voltasse a dominá-lo a mesma sensação de inutilidade que nele já se tornara um hábito : não valia a pena irritar-se com o achincalhe de que era alvo. O telegrafista tomou a iniciativa. - Vamos - disse, pondo-se de pé. E os dois correram desabaladamente para a escada do quintal, debaixo da qual ficava a porta do quarto do empregado - sólida, atravancada e muda dentro da noite, como uma su257
gestão de irrecusável segurança: diante dela, e passada uma parte do perigo, o Promotor subitamente compreendeu que, apesar de tudo, sua vida podia voltar a ser recomeçada e vivida. - Você está se expondo muito por minha causa . . . disse. Enquanto batia na porta, sentindo atrás de si o amigo ofegante, Nascimento respondeu: - Não se incomode . . . Minha remoção está por dias . . . E com toda a firmeza que lhe restava : - Pense em você e deixe o resto por minha conta. No mesmo momento em que a marcha voltava a ser ouvida : Vá pra puta que o pariu!
a porta abriu-se, afinal, e o empregado apareceu com um fifó na mão. - Como você dorme! - protestou sombriamente Nasci mento. E tropeçou numa lata velha. Novamente os homens atravessavam a praça - o bombo marcando o compasso e o trombone orientando o coro : Burro assim nunca se viu! Mineiro, paul Mineiro, pau!
Por um instante, o rumor dos passos avolumou-se, mas logo se distanciou na rua: era como uma cavalhada que passas se. Lançando um rápido olhar para o Promotor, Nascimento dava a impressão de que lhe queria dizer alguma coisa em par ticular. Era provável que ainda não se sentisse bastante segu ro : parecia acreditar que pudesse acontecer mais alguma coisa ali. Por fim, explicou : - Você vai com o meu empregado até o Floris . . . É per to. De lá, você segue hoje mesmo para Itaetê. Pode ir tran qüilo . . O homem que aluga animais no Fioris é de inteira confiança. Ele deixará você amanhã no trem . .
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Quando a madrugada raiou, já o Promotor se encontrava a caminho do Floris. A paisagem matinal, com a serra se desco.. brindo à luz nascente, estava impregnada de uma espécie de felicidade que o convidava a tomar parte nela: os arbustos sil258
vestres floresciam, pássaros cantavam, havia, no rumor sau dável dos córregos, como que uma sugestão de paz jovial. Para trás, ficava a cidade adormecida, de onde ele trazia lembran ças confusas, e a sensação honesta de que a vida se prolongava além da estrada áspera.
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QUARTA PARTE
I
A FAZENDA São Pedro era ali : a três léguas da cidade, com a mata se estendendo até onde a vista alcançava. Dali não se via a serra: ninguém era capaz de imaginar que houvesse garimpos tão perto. A região montanhosa ficava além do ho rizonte, e a zona da mata, de características inteiramente diver sas, era como se pertencesse a outro município: nenhum vestí gio havia da paisagem áspera da terra dos diamantes. A aberta, cortada por cercas de três varões em várias direções, apresen tava sinais de atividades agrícolas : roças de mandioca, planta ções de milho, e outras pequenas áreas que já estavam sendo preparadas para o mesmo fim. Tudo indicava uma condição de vida diferente da do garimpo; prolongavam-se até ali, entretan to, os domínios do Cel. Germano. Sua casa, avarandada e bai xa, erguia-se no centro do descampado, com meia dúzia de ran chos de palha em volta, moradas dos trabalhadores, entre jiraus, troncos de árvores cortados e montes de cinzas sobre o solo restos da queimada dos pastos. Eram três horas da tarde, e flutuava no ar um cheiro de estrume e terra revolvida d e fres cos. Sentado na varanda, o Cel. Germano viu quando Dr. Mar colina desapareceu ao longe, a cavalo, levantando uma nuvem de poeira do outro lado da cancela. Depois da fuga do Promo tor, à qual se seguiu a já esperada remoção de Nascimento, era aquela a segunda vez que o médico vinha à fazenda nos últimos trinta dias. Entre os assuntos que o trouxeram à pre sença do chefe, o mais importante havia sido o telegrama envia do da Capital por Quelezinho : "Suspenda imediatamente com pra carbonatos pt Seguirei amanhã pt", que ele se apressara em entregar pessoalmente, com a urgência que o caso requeria. Desde que regressara da Passagem, o coronel dedicara-se de corpo e alma aos trabalhos da fazenda, não tendo ido a Anda raí uma única vez: a chuva servira muito para as pastagens e 263
o gado estava gozando bom preço. No correr daquele mês, po rém, em vista da súbita valorização do carbonato, ele desviara todas as suas atividades para a compra desse produto, embora continuando afastado da cidade. Diariamente, chegavam a São Pedro capangueiros e mosquitadores de Andaraí, interessados em colocar sua mercadoria convenientemente : sabiam que ele esta va pagando os melhores preços da praça. Às vezes, vinham até mesmo simples garimpeiros que tinham o seu carbonatinho de sembaraçado, e, não raro, um ou outro que se aproveitava da situação para lesar o quinto e o fornecedor; não lhes faltava a intuição de que, ainda que o roubo fosse descoberto, os pa trões nada podiam fazer contra eles no momento : haviam ne gociado às escondidas - mas com o chefe. Nas últimas três semanas, estava assim a São Pedro vivendo dias de grande mo vimento, com boa parte da produção de carbonatos do municí pio se escoando através das transações intensificadas do coro nel. Agora já não eram as costumeiras visitas de gente que vinha solicitar favores, tecer intrigas ou apresentar queixas pedir providências contra algum sujeito que havia deflorado uma moça e não queria casar, contra um vizinho que derrubara a cerca de outro, ou contra alguém que cometera desmandos na serra, desviando água dos regos ou quebrando corridas de re vólver na mão: essas questões eram sempre mais comuns. Mas agora - não: mudara o ambiente da São Pedro, e o chefe só era procurado por gente ativamente interessada em tratar de negócios. Até parecia que alguma coisa de novo ia começar: era como se a cidade passasse a viver na dependência daquelas tão insolitamente incrementadas transações - embora lá se encontrasse Quelezinho com toda a força de sua atuação de só cio e irmão do coronel. De qualquer forma, o movimento aumentara, sobretudo depois que ele viajara para a Capital, le vando a primeira partida. O chefe ficara sozinho, entregue à expectativa de negócios cada vez melhores. E agora vinha aque le telegrama! Sentado ali na varanda, o coronel o releu mais uma vez: tudo começava a se desfazer - exatamente como num sonho interrompido. Seco, direto, na sua objetividade de sentença irrecorrível, o aviso de Quelezinho era prenúncio de uma desgraça de conseqüências imprevisíveis : a baixa! "Sus penda imediatamente compra carbonatos". Lembrou-se, então, com um sentimento de amarga ironia, dos telegramas que vinha recebendo desde o início da alta - e tinham sido muitos até cinco ou seis dias atrás : os exportadores estrangeiros se empenhando com insistência na compra do mesmo produto! Até 264
momentos antes, atribuíra a si próprio uma situação privilegia da no mercado, mas, afinal, nada mais era que uma vítima comum daquele estado de coisas, que não sabia explicar direi to. Naquele instante, o comércio de diamantes se lhe afigurava um mundo feito de traição, de astúcia e fraude, dentro do qual sua ambição era como que algo ligeiramente cômico. Contem plava, na sua frente, a estrada sinuosa que margeava as tarefas de pasto, e, mais ao longe, a grande área que se conservava inculta : era preciso acabar de preparar as suas terras - conveio de re pente. Ainda uma vez, porém, se via obrigado a pôr de lado esse antigo plano : os diamantes de novo impediam o desejado desenvolvimento da fazenda. Pensou com melancólica convic ção: confiara demasiado na alta, empregando em carbonatos todos os lucros da fazenda nos últimos meses. Com a transação, esperava ganhar o suficiente para se pôr em condições de fa zer face às despesas do próximo cateamento na Passagem, sem prejuízo do andamento dos trabalhos na São Pedro : era neces sário aproveitar a mesma época da garimpagem para levar a efeito, simultaneamente, a derrubada de matas. Só assim pode ria realizar a queima a tempo de alcançar as chuvas do ano se guinte. Até aquele dia embalara-o de tal forma a esperança de empreender, dentro de breves meses, uma cateação isenta de qualquer acontecimento imprevisto, que se tornava difícil acre ditar na notícia que recebera : não compreendia que pudesse ha ver outra coisa, além das águas, capaz de alterar os seus planos de garimpagem no Paraguaçu. Mas ali estava o telegrama de Quelezinho! Com a suspensão da compra de carbonatos, todos os seus planos ficavam sob a ameaça iminente da baixa, e agora nada o movia à segurança de horas atrás : sentia-se esmagado por uma fatalidade hostilmente obstinada. De repente, ter acre ditado na realização desses mesmos planos lhe pareceu uma espécie de traição a si próprio. Passara a vida "a tirar do ga rimpo para meter na fazenda e a tirar da fazenda para meter no garimpo", recomeçando sempre, e agora, que iria fazer? Tal vez foss e demasiado tarde para se decidir por um ou por outra. Durante toda a sua existência, tentado por resultados mais ime diatos, nunca soubera resistir à atração do diamante : tudo seria realizado a seu tempo, e por isso ia pondo à margem muitos dos projetos relacionados com a São Pedro, tendo a atenção incessantemente desviada para um novo cateamento. Sentado ali na varanda, tudo isso lhe vinha agora à mente sob a ação de um confuso sentimento de apelo, cólera e logro. A idéia de que sua vida podia ter sido muito diferente encheu-o de uma 265
surda mágoa contra o destino: parecia-lhe horrivelmente injus to que um simples telegrama pudesse arruinar todo um passado dedicado ao trabalho. Ao mesmo tempo, imaginava que nunca era tarde para uma pessoa começar a fazer qualquer coisa e isso lhe trouxe uma espécie de felicidade sombria: ainda ti nha o suficiente para se agüentar até à morte. Nesse momento, ouviu um rumor de passos atrás de si. Voltou-se : era D. Santa, que, cheirando a fumaça de lenha, vinha dizer-lhe que o jan tar estava na mesa. Admirou-se da rapidez com que o tempo passara, mantendo-o preso na varanda como um animal amar rado a um mourão: jantava às cinco e meia, e só então notou que o Sol começava a desaparecer por trás da mata. Viu a mu lher de novo se afastar, em silêncio, como uma sombra submis sa. Era alta, tinha os quadris estreitos, e de costas como estava agora, sem mostrar os seios volumosos, só os cabelos soltos alte ravam a insólita imagem que ela sugeria : a de um homem ves tido de saia. Observava-a de soslaio, como a um inimigo: nun ca sentira prazer com o que quer que fosse que dissesse res peito àquele casamento. Vendo a esposa, era como se tivesse regressado a uma prisão; especialmente naquele momento, uma sensação de isolamento o impelia a reconhecer o horror de uma vida em comum feita de constrangimento, má-vontade e vergo nha. Casado havia doze anos - e esperando em vão pela gra videz da mulher : em cada nove meses era como se a felicidade lhe morresse de novo. Embora a amante o tivesse tornado pai - sentia em relação ao filho uma espécie de remorso : vê-lo crescer e levar uma vida aviltante na outra fazenda - como filho de uma prostituta. Súbito, teve a impressão de que se entra nhava cada vez mais rápido em si mesmo, como num atoleiro. A memória era qual uma mão que tivesse aberto uma porta : viu uma mulher de luto em Andaraí, com uma balança de pe sar diamantes no bolso da bata, dando ordens a dois garimpei ros, de pé, na calçada da casa; era sua mãe, e ele tinha dez anos : estava brincando com um carneiro que o pai lhe dera de presente, pouco antes de morrer. Subitamente, porém, tudo se lhe apagou na memória, como se a porta se fechasse diante dele; quando ela de novo se abriu, um homem saiu de dentro do quarto abotoando-se, e sua mãe apareceu muito pálida em se guida. - "Não mandei você ficar no quintal?" - disse-lhe. Nesse instante, o aboio de João Vaqueiro foi ouvido perto do curral : como de costume, estava prendendo as vacas de leite e os bezerros. Devolvido à realidade ambiente, o coronel olhou desalentadamente em volta: o céu escurecia, e as árvores 266
erguiam-se no horizonte como uma muralha de sombra. Mo vendo-se pesadamente e em silêncio, ele encaminhou-se então para o interior da casa. 11
No dia seguinte - chegava Quelezinho à São Pedro. De ltaetê, ponto terminal da estrada de ferro, partira às quatro horas da madrugada, a fim de alcançar a fazenda a tempo de seguir na mesma tarde para Andaraí : era a primeira vez que fazia isso. Ordinariamente, ia direto à cidade, realizando a viagem em seu trajeto regular. Agora, porém, tinha bastante motivo para não retardar seu encontro com o irmão, e não seriam algu mas léguas a mais que o iriam impedir de realizar o roteiro tra çado: estava chegando nesse momento à fazenda, cavalgando a sua besta de dois contos, muito bem arreada, e acompanhado de dois camaradas. Apesar de tudo, ostentava um ar de sólida imponência ao cruzar o descampado com a sua turbulenta ca valhada. Vinham ainda o burro de carga e um animal adestro, e, em meio da poeira que se elevava da estrada, ouvia-se o ála cre tilintar dos gongolos : a prataria lavrada das caçambas bri lhava ao sol. Imediatamente, os cães começaram a ladrar, des pertando a atenção do coronel, que assomou em seguida à ja nela. Vendo qu e se tratava do irmão, apressou-se em ir rece bê-lo no alpendre, ao mesmo tempo que ralhava com os cães, tentando apaziguá-los. Mal apeou, Quelezinho foi perguntando pelo telegrama : era um detalhe que lhe parecia muito impor tante. - Recebi ontem pelo Marcolino - respondeu o outro. - Esse telégrafo é uma lástima! - exclamou Quelezinho, enxugando o suor que lhe cobria o rosto. E voltando-se para os camaradas : - Amarrem os animais aí no mourão. Dentro de meia hora vamos continuar a viagem. - Você já almoçou? - perguntou o coronel. - Já. Almocei na Encruzilhada. - Então vou mandar fazer um café pra você tomar. - O café eu aceito. O coronel gritou para o interior da casa: - Isabel! O Isabel! 267
E logo um rosto escuro e enrugado espreitou do corredor, para, com igual rapidez, desaparecer ao ouvir a ordem do pa trão: - Fale com D. Santa para providenciar um café para Quelezinho. Este já ia entrando em casa e, enquanto se desembaraçava do chicote e do chapéu, foi dizendo: - A situação é gravíssima . . . Carbonato está completamente sem preço . . . O coronel, que vinha atrás, pareceu não entender : - Sem preço? - Sim. Os gringos não querem saber de carbonato por preço nenhum. Pelo menos por enquanto. - Seu telegrama deu a entender que se tratava de uma baixa . . . - disse o coronel. Parecia passar-lhe pela mente que essa hipótese era pre ferível; demais a mais, era insuportável ter-se enganado a res peito da gravidade de um fato que já se preparara para aceitar. Agora, tudo se lhe apresentava muito pior. Mas, no fim de con tas, dava no mesmo : era uma nova prova que o esgotava. - Bem . . . a baixa é uma decorrência dessa situação . . . - respondeu Quelezinho, andando ruidosamente em volta da sala, de botas e com as esporas de prata se arrastando no chão : seu caminhar resoluto tinha qualquer coisa de marcial. - Quan do os gringos voltarem a operar, hão de querer comprar carbo nato por dez reis de mel coado. Depois parou e disse : - Você suspendeu todas as compras? O coronel sentara-se numa velha cadeira de braços : havia nele como que a dignidade de uma convicção. - Imediatamente - disse. - E mandei cortar todos os agentes. O Marcolino ficou encarregado de fazer isso - e escar rou no chão. Pela janela entravam moscas zumbindo. - Mas seu telegrama veio tarde - acrescentou. - Estou com cento e tantos contos enterrados numa partida. Quelezinho coçou a cabeça nervosamente. Vinha do cur ral um cheiro ativo de estrume, e ouvia-se ao longe o gado mu gindo na aberta - triste e escasso; tudo dava a desconfortável impressão de um mundo irremediavelmente destruído : ali pas sara ele a infância - via através da porta, como num velho quadro, as ruínas da antiga casa da fazenda. Agora era diferen te: esse pensamento surpreendia-o e desalentava-o ao mesmo tempo. 268
- Temos que sair desta dificuldade como pudermos - disse. - Esses judeus são muito safados . . . - resmungou Quelezinho. - Uns patifes! Telegrafam, mandam tabelas, a gente atende às encomendas, e no fim de contas eles roem a corda. Não há mais homens de palavra! E teve um sorriso de sarcasmo: de nada servia imaginar que ele não seria capaz de tão infamante procedimento caso a situação se invertesse. Quelezinho encolheu os ombros. - São coisas do comércio . . . - disse. E no mesmo tom de maligna naturalidade : - Eles não estão menos arrasados do que nós. Em seguida, notando que os olhos do irmão se detinham sobre ele, acrescentou: - Tudo aconteceu por causa do cachorro do Mansur. - Mansur? - Sim. A bandalheira que ele praticou foi que acarretou essa desgraça que nós estamos vendo. Um chantagista! E passou a contar : - Como você deve se lembrar, quando os gringos, antes da alta do carbonato, mostraram interesse pela compra de dia mantes industriais, a bala começou a ser valorizada. Nessa oca sião, ao contrário dos demais compradores, Mansur se manteve indiferente à procura do produto. Só comprava mercadoria ruim, refugo, o que ninguém queria. - Calou-se por um momento: parecia que estava a recordar qualquer coisa que aprendera. Depois sentou-se - entre o rumor agressivo das rosetas das esporas - e continuou: - Muita gente dizia até que ele anda va fraco da bola, e que ia acabar como tinha chegado em Anda raí: batendo metro e vendendo brilhantina a mulher-dama. O coronel sacudiu a cabeça. - Ele não tinha capital para concorrer com os outros . . . - disse. - Foi o que todo o mundo pensou - tornou Quelezinho. - Principalmente depois que ele fechou a pensão. Mas na verdade ele já estava preparando a chantagem. - Como é que você soube disso? - Tirando as minhas conclusões. Logo que o caso estourou, eu comecei a ligar uma coisa à outra, e por fim compreen di tudo. Ele fechou a pensão para poder trabalhar na falsifica ção das balas. O coronel moveu-se com excessiva rapidez na cadeira: era como se pressentisse, com terrível ansiedade, uma nova ameaça. 269
- Falsificação? - bradou. Quelezinho confirmou com um movimento da cabeça, enquanto acendia o cigarro, e logo em seguida continuou: - Foi por isso que ninguém viu a cara dele durante mais de um mês. Ficou enfurnado dentro de casa como um rato beneficiando o refugo que ele tinha comprado. Transformou, não sei por que processo, os diamantes em balas, e pintou os carbonatos, que iria vender depois como extras : na realidade eram torras. Fez uma pausa e exclamou : - Foi a maior bandalheira que eu já vi até hoje! Lá fora - um cavalo relinchou no silêncio. E sob o sol, em direção do alpendre, vinha andando um trabalhador com um cacho de bananas nas costas. Grandes nuvens brancas des lizavam no céu. Quebrando o pau de fósforo entre os dedos, Quelezinho não esperou qu e o irmão fizesse qualquer comen tário : era como se lhe voltasse automaticamente uma sensação de dor. Disse: - Com essa bandalheira ele desacreditou o comércio das Lavras, prejudicando todos nós. A bala, que é o nosso melhor diamante industrial, não está valendo nada. E o carbonato igual mente : os gringos não querem nem ouvir falar - tiveram um prejuízo enorme. O ladrão abarrotou a praça de mercadoria falsificada. E nós que agüentemos as conseqüências da baixa! Contraiu a mão em seguida, como se desejasse fazê-lo sobre a garganta do árabe Mansur. No primeiro momento, o coronel pôde apenas perguntar : - E por onde ele anda? - Ele azulou no mundo - respondeu Quelezinho. Ganhou o bastante para se estabelecer no lugar que bem qui ser. Ao que consta, viajou para a Europa, levando um grande contrabando de brilhantes. Não sei . . . - acrescentou. E repetiu: - O que é certo é que ele azulou no mundo. O coronel ergueu-se de uma vez. - Você e Marcolino são uns bananas! - exclamou. Na impossibilidade de descarregar sua repentina cólera contra Mansur, procurava outro alvo para ela. O irmão olhou-o com espanto. E ele continuou a gritar, como se tivesse certeza de que isso era absolutamente necessário : - Uns bananas, eh! uns bananas! Se eu estivesse lá, juro pela alma de minha mãe que não teria acontecido isso! 270
E gesticulando sempre : - Confio em vocês, penso que as coisas estão correndo bem em Andaraí, e no fim de contas aparece uma encrenca dessa ordem, eh! Que é que vocês fazem em Andaraí, hem, hem? Por que não mandaram passar fogo naquele ladrão, eh? Quelezinho interrompeu-o timidamente : - Eu não podia adivinhar . . . - Devia ter adivinhado! - retrucou o coronel. E no mesmo tom torrencial: - Já vi que não posso passar uma semana sem ir a Anda raí. Vocês lá e nada são a mesma coisa! Aquele cachorro nun ca me inspirou confiança, eh! nunca! Ladrão! Filho da puta! e batia com o pé. - Mascate de merda! Foi quando D. Santa entrou na sala. Ao vê-la, Quelezinho apressou-se em cumprimentá-la, num misto de íntima ansie dade e alívio - como o que se deve sentir ao notar que a espe rança, afinal, não morreu: a presença de D. Santa na sala lhe daria tempo para coordenar as idéias. C ontendo-se, mas sem perder o ar autoritário e impacien te que assumira, o coronel então lhe disse: - Vá tomar seu café. Eu espero você aqui. •
Momentos depois, enquanto retirava as xícaras da mesa, D. Santa voltou a ouvir a voz do marido e a do cunhado, que de novo conversavam na sala. O coronel se mostrava mais cal mo - seu tom era incisivo e direto: - Deixe os carbonatos comigo. - Estão aqui na valise. - Apanhe. Vou fazer nova classificação. - A partida está discriminada . . . - Não faz mal. Quero ver a regulação. O preço do diamante lapidável é o mesmo? - É. Os gringos falaram até em me fornecer capital para intensificar a compra . . . - Gente minha não negocia com dinheiro de gringo. Dei xe isso pra Teotônio. Ele já está acostumado a viver preso ao bolso desses judeus. Comigo a coisa é diferente. Meu negócio é livre. Veio novamente a voz d e Quelezinho: - Essa situação não vai durar muito . . . Já houve outras baixas . . . 271
Coronel : - Me espere em Andaraí. Não me fale de baixa agora. Ataque o serviço d e gruna e vamos aguardar os acontecimentos. Quelezinho : - O diamante lapidável pode compensar tudo . . . Coronel: - Não me fale nada agora. Preciso de calma para pensar no que vou fazer. Vá para Andaraí e me espere lá. Calou-se por um momento. Depois chamou : - Santa! Quelezinho quer se despedir. A mulher encaminhou-se para a sala e, decorridos alguns instantes, Quelezinho deixava a fazenda - os animais cortan do a trote largo o descampado. Logo depois, a poeira se des fazia no ar, e a estacaria solitária voltava a aparecer. 111
Prepare-se para irmos amanhã a Andaraí - disse o coronel a João Vaqueiro no dia seguinte, junto ao mourão que se erguia diante do alpendre, e ao qual o capataz amarrara o animal que ele pedira na véspera, depois de o ter arreado e dado ração. Ao montar, acrescentou com voz pausada, como se não quisesse deixar nenhuma dúvida a respeito : - Vou agora para a Santa Luzia. Esteja lá amanhã às seis horas. Leve um cavalo encilhado para D. Nenzinha. Qual deles? - O alazão crina de flecha. - O senhor quer que eu leve algum pra o menino? - Não. O menino fica na fazenda com a avó. - E pra Atanásia? - Para Atanásia eu arranjo lá mesmo. E inclinando-se na sela, o coronel puxou para trás o col dre do revólver e acrescentou: - De lá nós seguiremos para Andaraí. O animal escarvava o chão com impaciência. E o coronel ainda disse : - Tem que vir hoje aqui um positivo de Marcolino . . . - É o que vem trazer o sal? - atalhou João Vaqueiro. - É. Fale com ele para voltar imediatamente e avisar a Quelezinho que eu devo chegar em Andaraí depois do meio-dia. 272
Quero que ele mande preparar a casa da Pracinha - botar água, lenha e comprar mantimentos. Virou a cabeça do animal na direção da estrada e acrescentou: - Não vá esquecer de nada. - Não esqueço não senhor. Voltou-se rapidamente para o lado, a ver se D. Santa esta va no alpendre, e, nada divisando além da rede armada no oitão, despediu-se do capataz e fez galopar o animal. H ouve um breve tumultuar de perus e galinhas correndo, e um cão latiu no meio da poeira. Era só meia légua que o separava da amante e do filho, com os quais se avistava semanalmente na outra fazenda, durante as temporadas que passava na São Pedro. IV
João Vaqueiro revolvia-se na cama sem poder dormir. Lá fora, o rumor do vento nas árvores era sempre o mesmo, dando a impressão de que a noite se tornava interminavelmente lon ga. Tentava em vão calcular as horas, mas nada havia que indi casse a passagem do tempo. Na escuridão, esperava pelo can tar do galo anunciando a madrugada, quando devia levantar-se para pegar os animais que tinha de levar à fazenda Santa Lu zia: esforçava-se por concentrar o pensamento na ordem que recebera do coronel. Entretanto, o piar dos caburés, preenchen do os intervalos do silêncio, era um obstinado sinal de perma nência: a noite continuava. Com os olhos abertos, em meio das trevas que o cercavam qual um muro, começou a esquecer que o dia teria de vir, afinal. Era pouco provável que isso acon tecesse tão cedo - não sabia ao certo quanto tempo ia durar até o amanhecer. Nesse caso, não valia a pena preocupar-se com a ordem que o coronel lhe dera, a esta idéia veio-lhe acom panhada de uma dolorosa sensação de isolamento : era como se alguém houvesse determinado que, a partir daquele momen to, ele tinha de ser a única pessoa a ficar acordada na fazen da. De repente, surpreendeu-se a pensar em D. Santa, e o pen samento já não era uma cois a que havia dentro dele - mas algo exterior, rígido, a que podia agarrar-se. Tudo começara sem razão aparente, numa mistura de angústia, esperança e re morso; era como uma voz que, ao mesmo tempo, o incitava a prosseguir e dizia-lhe que tomara um caminho errado. O vento 273
da noite, quente e brando, atravessava as frestas da porta de caixão e provocava estalidos nas palhas do teto; no silêncio e no abandono da escuridão, os sentidos se lhe confundiam : assal tava-o uma espécie de sede torturante, e ele tinha as pernas inteiriças sob uma sólida sensação de enraizamento. Suava, e, num instante, seu pensamento voltou-se para o coronel, a quem servia com dedicação desde os barulhos do Coxó - mas logo se lembrou de D. Santa na beira do rio. Ter acontecido aquilo depois de tantos anos que viviam na fazenda lhe parecia tão assombrosamente singular, que era impossível encontrar uma explicação. Tudo se precipitara naquela tarde distante. Viu quando ela atravessou o descampado com a toalha no ombro, em direção ao rio. Um impulso diabólico fê-lo atirar o animal a galope por dentro da mata, como se fosse atalhar uma rês, até que, depois de ter d ado uma grande volta, ouviu um rumor de água nas proximidades. Apeou, amarrou o cavalo de campo a uma árvore e, esgueirando-se por trás de um velho rancho em ruínas, onde morara o finado Chicão, atingiu a ribanceira que ia dar no rio. No íntimo, a inquietação que sentira momentos antes começava a desaparecer, substituída por uma honesta von tade de sair-se bem : era como nas vezes em que ia matar algu ma pessoa. Tudo acontecia de acordo com o que previra: o local do banho ficava ali mesmo. O rio, ao esvaziar-se, forma va um remanso no meio da vegetação, sobre o qual um espi nheiro avançava a galharia baixa. Uma grande pedra, isolando o areão, erguia-se do outro lado como uma muralha: era uma enseada agreste e solitária, cujas águas se engolfavam nas som bras da mata. Deitou-se no chão e, arrastando-se como uma cobra, investiu por entre os arbustos, na direção do espinheiro. Em vista do tempo que já gastara ao dar a volta, ainda que a cavalo, imaginava que D. Santa já estava ali. Arrastava-se de maneira tão sutil que, à sua passagem, não se ouvia o mais leve ruído: os arbustos iam ficando acamados como se simplesmente murchassem. O gibão, protegendo-lhe o corpo, tornava fácil esse rastejante contato com o solo. Ao passar ao lado de um mu rundu, uma lagartixa fugiu precipitadamente por entre os ma tos, o que o fez parar de repente : só retirou a mão do revólver depois que descobriu a verdadeira causa do ruído que escuta ra. Mas tudo foi muito rápido. Logo depois voltava a avançar na direção do espinheiro, e pareceu-lhe ter decorrido toda uma existência ao alcançá-lo : sentia o coração pesado como um far do que tivesse trazido até ali. Lembrava-se perfeitamente de tudo. Era como se estivesse a repetir uma lição que sabia de 274
cor . . . Os pássaros cantando na ramagem do espinheiro, e, de baixo dele, e nsaboando o grande corpo nu - D. Santa, de ca belos soltos, os volumosos seios pendendo como frutos, o ven tre se afunilando num emaranhado negro . . . Não se esquecia de nada. Esperou até que ela de novo se vestisse e desapareces se. Então, erguendo-se de uma vez, correu até onde deixara o cavalo amarrado e, montando, disparou pela mata adentro co mo se quisesse fugir ao desejo que o assaltara. Inútil, porém, pois o desejo montava com ele, erguia o pé com ele ao andar, dormia com ele, ligara-se a ele como um novo órgão : era uma desgraça e uma devoção. A cama rangia agora com mais for ça. Inexplicavelmente, D. Santa não retornara mais ao banho. A princípio, ele atribuíra esse fato à cheia do rio, quando, no dia seguinte, o Paraguaçu inundou os garimpos da Passagem. Entretanto, a vazante viera e ela não voltara . . . Talvez fosse o coronel que, por qualquer motivo, tivesse resolvido proibi-la de continuar a ir ao rio. Mas, daquela tarde em diante, ele podia olhar para D. Santa em qualquer momento que só a via era no banho - as longas coxas branquejantes de espuma. Por vezes, arrependia-se de não haver tomado a iniciativa de ir espiá-la desde muito antes. Não compreendia . . . Fora algo que ele alcançara sem esperar - uma espécie de graça. De repente, apareceram vestígios de tabatinga na parede, e, lá fora, um mo vimento qualquer veio quebrar o silêncio : um berro, um latido, um canto de ave, um bater de asas, um escarvar de chão - a madrugada eram esses primeiros rumores que ele ouvia. Não decorreram cinco minutos, e já s e encontrava à porta da casa com os cabrestos na mão. Guardara o seu desejo como um objeto inanimado. Agora ia pegar os animais, dando início ao cumprimento das ordens do coronel. Depois do meio-dia esta riam em Andaraí. v
Uma surpresa aguardava o Cel. Germano na tarde de sua chegada a Andaraí: Quelezinho recebera momentos antes um telegrama do Governador do Estado convidando-o a ir à Capi tal com urgência, a fim de tratarem de assunto relacionado com a formação de um batalhão patriótico no município. Dr. Mar colina, que viera cumprimentar o chefe, informou, com o cha ruto na boca, que, segundo soubera na véspera, o intendente de Lençóis também já fora chamado. 275
- O Governo Federal vai fornecer dinheiro para isso acrescentou, enquanto João Vaqueiro, em silêncio, atravessava a sala com um cilhão nas costas para ir guardá-lo no quarto dos fundos : já transportara para ali todos os acessórios das montarias - baixeiros, mantas e rédeas. O coronel balançou a rede em que estava deitado : - Nós não podemos fazer despesa nenhuma. - Não vai haver nenhuma despesa para o município assegurou Dr. Marcolino do outro lado da sala. - O problema é do Governo Federal. E quebrando a cinza do charuto : - Trata-se de reprimir a revolução que teve origem no Sul, e isso só cabe, é claro, ao Governo Federal. Tenho acom panhado pelo jornais. - A revolução está tomando proporções alarmantes disse Quelezinho, que, em vista de sua recente viagem à Capi tal, se achava mais credenciado para opinar : era, pelo menos, o que desejava tornar evidente. Na verdade, inteiramente absorvido pelos negócios de dia mantes, pouco se interessara por qualquer outro assunto na sua viagem. Mas agora era diferente : com o telegrama que trazia no bolso, a revolução assumira um aspecto, ainda que vago, de transação - e isso era muito importante. O coronel não atinava bem com a situação. À idéia de governo, ele se habituara a associar uma outra - a da solda desca. - E a Polícia? - perguntou. - Os batalhões patrióticos são para reforçar a Polícia explicou Dr. Marcolino. - O Governo precisa de mais ho mens, e nada como escolhê-los entre os lavristas : os lavristas têm fama de valentes. Temos de contribuir! E teve um acesso de tosse. Como estivessem chegando as primeiras visitas, a conver sa foi interrompida e Quelezinho saiu imediatamente a fim de providenciar a viagem para o dia seguinte - já que não havia outro meio de fazê-la antes. VI
Durante os dias em que Quelezinho esteve ausente de Andaraí, Cel. Germano intensificou a exploração da gruna do 276
Pega-Peito, retomando, assim, um antigo serviço muitas vezes abandonado em virtude da dificuldade de se encontrarem ga rimpeiros que estivessem dispostos a trabalhar nele: embora muito rico, era um serviço temido pelos inúmeros perigos que oferecia. Mas, com a falta de fornecimento ocasionada pela bai xa, os garimpeiros tiveram de mudar de idéia. Para gerir o serviço, o coronel fez vir da Passagem o velho Justino, seu auxi liar de inteira confiança, substituindo-o por Boreta na fiscali zação da serra do Paraguaçu. Na cidade, suas atividades se li mitavam à especulação de diamantes lapidáveis, mantendo sus pensa a compra de carbonatos, no que era acompanhado por Seu Teotônio, o maior comprador depois dele e de Quelezinho. Em companhia de Dr. Marcolino, ia muitas vezes sentar-se à porta da farmácia em solícitas cadeiras transportadas pelo bo ticário Carvalhal - e lá vinham as mãos de bisca para matar o tempo, com pedidos de copos de água na casa vizinha. Lá comparecia, com jornais atrasados debaixo do braço, o Prof. Valadão, e a conversa recaía fatalmente na baixa e na revo lução. Simultaneamente, havia queixas de maus negócios e espe ranças curiosas em torno da volta de Quelezinho : tudo era expectativa. Indignando-os a princípio, a bandalheira de Man sur preocupava-os agora por uma razão muito mais simples : quanto teria ele ganho em toda aquela patifaria? E chamavam -lhe rancorosamente de "gringo ladrão" - achando um desaforo estarem eles sem dinheiro enquanto o antigo dono da Pensão Grande Líbano ( "rigorosamente familiar" ) , onde ocorrera tem pos antes o roubo dos noventa contos, tão condescendentemen te encoberto pelas autoridades, "vivia nadando em ouro"! No bilhar, outro grupo não menos numeroso se reunia diariamente, embora as partidas se tornassem raras em vista da falta de di nheiro: só podia pegar no taco quem pagasse o tempo adiantado ou quem tivesse crédito na praça - o que não era muito co mum naqueles dias. Ali, como em toda parte, matar o tempo era o grande problema. Era como se alguém houvesse deter minado que não iria acontecer mais nada - um novo crime . . . um acesso d a filha do Juiz . . . um bambúrrio . . . um deflora mento . . . um caso qualquer que servisse de comentário enquan to se assistia a uma partida de bilhar ou se tomasse um aperiti vo à custa de alguém. O assunto tinha de ser mesmo a baixa e a revolução. - Mas pra que diabo estão fazendo essa revolução? perguntou Canelinha. 277
- Pra derrubar o Governo - explicou o coletor Barro so, enquanto descascava uma laranja. Lera a notícia num jor nal que o Carregosa lhe emprestara ("Mas me devolva, pelo amor de Deus, não vá fazer como o almanaque! " ) , jornal que ele desconfiava ser da oposição. Canelinha não compreendia : - Derrubar o Governo pra quê? - Só você indo perguntar a eles . . . - aparteou Ziu. E passou giz na cabeça do taco. - A eles quem? - Aos revoltosos. E o próprio Ziu deu uma gargalhada. - Querem derrubar o Governo pra botarem outro no lugar - continuou o coletor Barroso. Canelinha encolheu os ombros : - Então vai dar no mesmo. O delegado opinou judiciosamente : - Eu acompanho o Governo - e isso lhe parecia o bastante. Mas um dia a notícia circulou na cidade : - Quelezinho chega amanhã! E todos foram acordes em admitir a possibilidade de a situação do comércio melhorar e de se pôr fim à revolução com a remessa do batalhão patriótico do município - para o que V aladão evocou o exemplo histórico da guerra de Canudos, citando casos de heróis locais que ainda estavam vivos mas que infelizmente se tinham mudado. VII
Quelezinho mal teve tempo de lavar o rosto e tomar uma xícara de café - e já o Cel. Germano vinha ao seu encontro, ansioso pelo resultado das conversações em torno da formação do batalhão patriótico. Erguendo-se da mesa, Quelezinho con duziu-o a outra sala, trancando-se a sós com ele. - Quando Deus tarda vem em caminho - disse. E acendeu um grande charuto. - Sente-se - continuou. - Trago notícias muito boas. E, sem perda de tempo, abriu sobre a mesa a pequena valise, como se exibisse um troféu. Ao retirar um jornal que 278
vinha dobrado por cima, apareceram vários montículos de cé dulas novas cuidadosamente dispostos um ao lado do outro, co mo peças de um brinquedo de armar. - Que dinheiro é esse? - perguntou o coronel incredu lamente. Quelezinho sorriu : - Recebi cento e setenta contos para a organização do batalhão. E mordendo a ponta do charuto : - Estamos salvos! No primeiro momento, o coronel não compreendeu bem o que o irmão queria dizer com isso. Ainda estava sob a influên cia do assombro que a abertura da valise lhe causara: era difí cil acreditar que se tratava de um fato. A luz do Sol, coando-se através dos vidros coloridos das venezianas, dava à sala uma atmosfera de nave de igreja - luz de vitrais incidindo sobre a imagem de Coração de Jesus encaixilhada em dourado por cima do cofre : tudo isso fazia parecer que um milagre se tinha verdadeiramente operado. Desembaraçando-se do revólver que trazia na cintura, Que lezinho continuou : - Esse dinheiro veio em boa hora. Empregando-o em diamantes lapidáveis, dentro de pouco estaremos reabilitados. Não será necessário vendermos os carbonatos com prejuízo . . . O coronel pôde finalmente responder : - Você passou recibo? Era um detalhe que o tornava subitamente apreensivo: - É claro que tinha de passar - disse Quelezinho. Mas isso não tem importância. - Não tem como? Você assinou um documento - frisou o coronel. Afinal de contas, o milagre não era tão extraordinário co mo parecera no primeiro instante. Quelezinh.o fez um gesto de impaciência. - Não digo que não sou responsável por esse dinheiro admitiu. - Mas o importante é que dele depende a nossa sal vação. Precisamos de capital para fazer face à situação do co mércio. E em tom de advertência: - Carbonato continua sem preço . . . - Você vai acabar arranjando encrenca pra nós - observou o coronel. 279
- Não vai haver encrenca nenhuma - insistiu Quelezinho. - Vamos ganhar em diamantes lapidáveis o suficiente para repor o dinheiro dentro de pouco tempo. Lembre-se que estamos com todo o capital empatado em carbonatos . . . - e aspirou demo radamente a fumaça do charuto. Depois continuou : - Meu plano é o seguinte . . . Com trinta contos, organizaremos a pri meira remessa de homens. Não é preciso se gastar mais do que isso. O resto, nós empregaremos em diamantes. Retirado o nos so lucro, cuidaremos então de outra remessa de gente. Ninguém vai duvidar de que novo dinheiro foi fornecido para esse fim . . . - E se tivermos prejuízo? - Prejuízo em quê? - Nos diamantes. Quelezinho abanou a cabeça. - De forma alguma teremos preJmzo - disse. - Com a baixa de carbonatos, todos os compradores estão com os ca pitais empatados, como você sabe - a começar por nós. Com esse dinheiro, poderemos açambarcar facilmente a produção de diamantes lapidáveis, impondo os preços que quisermos. O coronel parecia meditar. Para ele, ganhar dinheiro era algo que já se tornara não só inevitável e difícil de alterar co mo um hábito - mas uma espécie de necessidade insaciável. Contudo, mostrava-se apreensivo com o plano do irmão, embo ra achando-o bem imaginado. E haverá tempo? - perguntou. - Tempo para quê? - respondeu Quelezinho. - Para realizarmos esse negócio sem atrasar a remessa de homens? - disse o coronel. E manifestando honestamente seu receio : - Eu não quero complicações com o Governo . . . Quelezinho esboçou um gesto vago : - Deixe isso por minha conta. Vai haver tempo pra tudo. Além do mais, a situação do carbonato tem que se normali zar . . . Nesse momento, D. Elza avisou do outro lado da porta : - Quelezinho, Dr. Marcolino está aqui. A valise foi fechada, a porta aberta - e o médico entrou tossindo. Depois dos cumprimentos, sua primeira observação foi esta : - O Teotônio está arrasado! E sentou-se. - O que é que houve? - indagou Quelezinho. 280
- Me disse o Ziu que ele mandou vender os brilhantes da mulher em Palmeiras - contou o médico. - Tem duzen tos e tantos contos de carbonatos mas é como se não tivesse nada. Dr. Marcolino andara provavelmente bebendo: havia nele qualquer coisa de desalentado esforço e maldade. - Coisas das Lavras! - concluiu sombriamente. Seguiu-se um breve silêncio, depois do qual o Cel. Ger mano disse : - Vamos tratar d e providenciar imediatamente a primei ra remessa de homens, Seu Marcolino. O Quelezinho trouxe trinta contos do Governo para isso. E coçando a barba crescida, olhou compreensivamente o irmão. Infelizmente, não valia a pena desejar que as coisas se passassem de outra maneira. VIII
- O Quelezinho trouxe trinta contos para a formação do batalhão patriótico - contou Ziu à porta do bilhar. - Me disse o Marcolino. - E dá? - perguntou o coletor Barroso, como se isso lhe dissesse respeito : adquirira na cobrança de impostos o há bito de calcular tudo - seu e dos outros. - Disse que depois vem mais - explicou Ziu. Carregosa, que viera comprar um quilo de bolachas na pa daria, reunira-se ao grupo: tinha um ar insignificante entre os gastos suspensórios de elástico. - O compadre Valadão me disse que eles vão começar o recrutamento amanhã, sábado - disse. Canelinha indagou do lugar em que se encontrava - de cócoras no passeio : - Que é isso de recrutamento? É pra se ir a pulso? Isso tinha muita importância para ele. - O batalhão é de voluntários - explicou Carvalhal. E continuando a fazer a ponta do pau de fósforo para pali tar os dentes : - Só vai quem quiser . . . Não é pra se pegar gente a dente de cachorro não. - Vai começar de amanhã em diante - insistiu Carre281
gosa. O compadre Valadão me disse. Com essa baixa, não vai faltar quem queira ir. - Eu só vou se me arranjarem uma patente de capitão disse Canelinha. Ziu chalaceou: - Você vai é de cabo pra baixo, com um capitão por cima. E ele próprio sorriu da pilhéria. - Seja como for - argumentou o coletor Barroso esse batalhão vai servir muito para os garimpeiros. É sempre um meio de se arranjar uns cobres, e eles estão realmente neces sitando disso. Afinal de contas, é melhor ir trocar tiro por conta do Governo do que ficar pedindo esmola aqui. E a baixa? - Diz que a baixa continua. Nas pontas de rua, os habitantes não confiavam muito no restabelecimento imediato dos antigos preços de carbonato, mas sem embargo o aguardavam a qualquer momento, com tímida e secreta esperança. Com o prolongamento da baixa, viviam de acordo com as normas que ela criara, sem darem tento do que pudesse estar acontecendo de anormal fora da cidade. As notí cias da revolução, veiculadas pelos jornais trazidos por Quele zinho, eram comentadas com interesse nos balcões das lojas e nos escritórios, especialmente à porta da farmácia e no bilhar de Ziu, onde se reuniam curiosos em torno de Carvalhal e do coletor Barroso, que as liam em voz alta. Mais importante do que os próprios jornais, entretanto, era o fato de terem eles chegado com quinze dias de antecedência do correio : isso cau sava verdadeiramente admiração. Mas no Ribimba, e em outras ruas pobres, essas notícias bem pouco significavam junto ao grave acontecimento que era a continuação da baixa - isto é, a escassez d e fornecimento de garimpeiros e o atraso de paga mento das lavadeiras, o que reduzia o problema a termos mui tos práticos : estava começando a haver fome em várias casas e era preciso evitá-la. De qualquer forma, porém, não faltava quem se aproveitasse com vantagem da situação - porque a vida, afinal, fossem quais fossem as circunstâncias, sempre tinha o seu lado bom: o velho Vital emprestava dinheiro sob penhor de camas e colchões, e a mulata Caga-na-Telha voltara a ser fre qüentada como nos tempos da mocidade, em virtude da deban dada das mulheres-damas que ainda se prezavam de poder ga nhar mais do que o que se pagava agora. -
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IX
- O delegado já está tomando nota dos nomes - contou Neco Rompedor no sábado de manhã, ao ser chamado pelos conhecidos que se achavam reunidos no oitão da casa onde mo rara a negra Vitalina, no alto do Ribimba. Estavam todos muito interessados em saber se o Governo ia fornecer fardas - como aos soldados. - Acho que vai - disse Neco. Ele próprio não se interessara pelo caso. - E os fuzis? - Os fuzis o pessoal vai receber na Bahia - declarou o inspetor Rato Branco. E acrescentou: - Os fuzis e as balas - como se esse detalhe lhe pare cesse indispensável. Sua condição de policiador tornava a infor mação muito exata. Outro homem indagou : - E você não vai não? - Não - respondeu Neco. - O coronel disse que precisa de mim no garimpo. De mim, de Filó e dos outros que estão trabalhando na gruna. - E como vai o serviço? - O serviço vai bem - disse Neco. - Vou voltar agorinha mesmo pra lá. Só vim aqui buscar este azeite. E ergueu a lata lambuzada, como se lhe tivessem exigido uma prova do que acabava de dizer. - Eu estava doido pra ir - esclareceu Rato Branco, a quem o revólver que trazia na cintura dava um ar de agressivi dade inconfessada. - Mas o coronel também me disse que pre cisa de mim aqui. A cidade não pode ficar sem policiamento. O garimpeiro Curuba, que era o novo inquilino da casa onde morara a negra Vitalina, perguntou: - E quem vai, então? Olhou para o canto da cerca, tranqüilizando-se ao ver que a mulher já agarrara o pinto que fugira do quintal : decidira afi nal comê-lo, antes que alguém o furtasse. - Não falta gente pra ir - respondeu Rato Branco. Com a dificuldade de fornecimento que está havendo, é melhor ganhar do Governo do que trabalhar de alugado aqui. Quem é que pode viver com mil e quinhentos por dia? 283
- Salu me disse que vai - contou um homem. Outro observou : - E se ele morrer, quem vai tomar conta dos filhos dele? - Isso de morrer é bobagem - continuou Rato Branco. - Ele não tem de morrer um dia? Muito pior é ele morrer de fome. Era uma verdade que ninguém contestava. - Salu é caipora - disse Neco. - Nem pra trabalhar de alugado ele arranja serviço. - Ele estava vivendo de passar buzo - esclareceu outro. - Ia pra serra, fazia de conta que estava trabalhando, e de tarde ele aparecia na praça com uma pedra pra vender, como se tivesse pegado ela no garimpo. Depois descobriram : o que ele vendia era refugo de partida, a mando de Seu Teotônio. Daí por diante ninguém mais acreditou nele. Neco tinha muito que fazer para continuar ali. Pôs a lata de azeite no ombro, despediu-se dos outros homens e tomou apressadamente o caminho do garimpo. Do outro lado do rio, a cidade era como qualquer coisa que tivesse sido deixada ao sol e ao esquecimento. X
- Encha as candeias - foi dizendo o velho Justino assim que Neco chegou ao garimpo. - Vamos começar a trabalhar imediatamente. Os garimpeiros que estavam em volta tinham um ar de expectativa. Mais adiante, do outro lado do córrego onde se tomava banho, vários alugados removiam o cascalho da boca da gruna. Os enxadeiros enterravam o carumbé no paiol, e com dois golpes de enxada o enchiam. Erguiam-no à altura do peito, deixando cair o cabo da enxada sobre a coxa esquerda, e entre gavam-no em seguida aos carumbezeiros. Estes não tinham tem po nem para cuspir: mal iam chegando com o carumbé vazio, já encontravam outro cheio à sua espera. A distância, nem pare ciam seres humanos : eram como formigas se movimentando sob um comando invisível - mas matemático. Ouvia-se o ruído das enxadas arrastando o cascalho, e uma vez ou outra algum carumbezeiro reclamando : Não bota o meu de coculo não. 284
À guisa de rodilha, enchiam o chapéu de folhas de malva e de outros arbustos; sem essa precaução, havia sempre a pro babilidade de um homem ficar com a cabeça marcada por uma coroa, como um padre. - O senhor mandou mudar o cascalho de lugar? - per guntou Neco, depois de observar o trabalho dos alugados. Notara que o paiol ia ficar muito distante da lavadeira, embora imaginasse que o velho Justino devia ter razões para tomar tal medida. E tinha-as. - Mandei mudar porque hoje de manhã eu ouvi um tro vão que vinha daquele lado - disse, e apontou na direção de uma grande rocha de contornos negros, sobre a qual o céu pare cia inclinar-se. - É bem capaz de chover - acrescentou - e o cascalho não pode ficar perto do córrego. Estava seguro de que tinha feito algo muito importante. Neco principiara a encher as candeias. Conversavam à porta do rancho que o velho Justino aproveitara para instalar o barra cão - três ou quatro caixotes, alguns sacos, uma balança e o caderno de notas. Outros ranchos erguiam-se nas proximidades, como se estivessem em ruínas : nada mais eram do que pedras amontoadas sob uma cobertura de palha, onde um homem nem sempre podia ficar de pé. Por toda parte, tudo era invariavel mente a mesma coisa - serra e céu. - O coronel perguntou pelo serviço? - continuou o velho Justino. Acocorara-se diante da lata de azeite, com o facão pen dendo sobre o lajedo, e enrolava cuidadosamente um cigarro. Ao seu lado, sem entender o que se passava, um grande cachorro tinha a cabeça apoiada contra as patas: mosquitos voavam-lhe em volta do focinho. - Perguntou se a gente já tinha tirado muito cascalho respondeu Neco, enchendo outra candeia. De repente, com a conclusão do trabalho dos alugados, o silêncio tornou-se mais profundo; mas logo uma rajada de vento frio e úmido agitou as moitas de mato. Justino volveu o rosto na direção do córrego : Joaquim Boca-de-Virgem e os alugados vinham caminhando no meio da ventania, que soprava de todos os lados - uivando como uma coisa viva que andasse pela serra. Por trás deles, bem acima do córrego, aparecia o novo paiol, e Justino levantou-se como se recebesse um aviso. - Vamos fazer pernoite pra acabar de tirar o cascalho antes que a chuva caia - disse. E vendo que Neco já tinha enchido a última candeia : 285
- Pode deixar o azeite, que eu guardo no barracão. Agora vocês comam qualquer coisa, se preparem, que dentro de meia hora, com fé em Deus, eu quero estar em cima do serviço. E com o cigarro por acender, encaminhou-se para o interior do barracão : o hábito da responsabilidade era nele uma espécie de cega e fiel obstinação. Não tardou a escurecer. Os pássaros empoleiraram-se nos galhos das gameleiras, acendeu-se o fogo nos ranchos, e a serra mergulhou nas sombras como um mundo que fosse gradualmente desaparecendo. XI
Neco estava transmitindo a Filó as notícias que circulavam na cidade a respeito da organização do batalhão patriótico, in clusive a deliberação do coronel de conservá-los no garimpo, quando o velho Justino começou a bater a enxada lá fora: era como uma chamada de sino para a missa. Um cão latia furiosa mente, estranhando o rumor metálico que se elevava dentro da noite - sinal que só os homens compreendiam : o trabalho ia ter início. Os dois garimpeiros como que só esperavam por isso: era uma espécie de evidência que conservava neles o sentimento de que não tinham realmente nascido para fazer outra coisa. Colocando as carapuças na cabeça, e dentro delas a caixa-de -fósforos, o fumo e a palha de cigarro, apanharam a ferramenta e as candeias e saíram imediatamente. Dos outros ranchos saíam ao mesmo tempo os demais garimpeiros, todos com a indumen tária usada nos trabalhos de gruna : a camisa e o calção de va lença eram talhados de maneira que protegessem as articulações dos cotovelos e dos joelhos - ambas as peças muito justas nas extremidades. O vento continuava a soprar, e o velho Justino, agasalhado numa surrada capa colonial, seguiu à frente com uma candeia na mão. Outros homens tinham acendido fachos de ca nela-d'ema. Atrás de Justino, formando uma longa fila, os gru neiros também conduziam suas candeias : era um cortejo mais ou menos fúnebre - uma espécie de caminhada de morte, an gústia e silêncio. Não tiveram que andar muito. Ali estava a gruna, um rombo dentro da noite, como se fosse a própria serra escancarando a boca num grito impossível. •
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Começaram a entrar na gruna. Um bafo de umidade retida os envolve. Filá vai na frente, seguido de perto por Joaquim Boca-de-Virgem e Neco. Seguram a candeia com uma das mãos, e com a outra amparam o corpo para não rolarem pelo lajedo. Agora já é preciso curvarem a cabeça, porque a gruna se torna cada vez mais baixa. Filá é o rompedor. Sua candeia alumia o caminho difícil. Dela se des prende uma fumaça densa, o cheiro do azeite se misturando ao do limo que cobre as pedras. O ar se faz mais pesado, como que palpável. Entre o teto e o chão há apenas uma fenda, como se o caminho tivesse terminado ali. Mas é necessário avançar mais - e Filá avança, agachando-se, a princípio, para logo se estirar de comprido sobre a laje. Se aparecer de súbito uma cobra, uma cabeça-de-patrona ou uma jaracuçu, cuja picada "quando não mata, aleija", ele fará o que todo gruneiro tem obrigação de fazer - de saber fazer. Procurará encandear os olhos da cobra com a luz da candeia, até poder pegá-Ia pela cabeça com mão firme, esmagando-a contra a pedra. Não há outra saída. Atrás dele, também de rastos, vêm os demais com panheiros, com o rosto a um palmo de distância da planta dos pés uns dos outros, formando a fieira por meio da qual se farão chegar os sacos de cascalho à boca da gruna. Os sacos são de algodãozinho, e de pequenas dimensões, porque de outro modo não seria possível movimentarem-se com eles ali. No serviço de gruna, o garimpeiro é obrigado a abolir o carumbé comumente usado para o transporte de cascalho. Filá sabe que, se não pode recuar, em virtude de estarem atrás dele os outros, havendo ape nas o espaço necessário à passagem do saco, também não lhe é possível avançar com rapidez: seu peito e suas costas se roçam nas pedras. Vai empurrando a trouxa de sacos e os frincheiros, e calcula já ter avançado uns trinta metros pela gruna adentro. É noite, mas ainda que fosse dia a escuridão da gruna seria a mesma: é qualquer coisa sempre igual, como a eternidade. Lá [ora, o velho Justino deve estar aguardando com ansiedade a chegada dos sacos. Ignora o que se passa dentro da gruna, quan do muito imagina que os garimpeiros possivelmente estão perto do cascalho - isso lhe interessa bastante. Dos gruneiros só terá notícias quando os sacos começarem a chegar lá fora, como cartas. De repente, um bafo mais acentuado de umidade entra pelas narinas de Filá. Ele se arrasta mais um pouco, e, final mente, consegue ficar de cócoras. Nesta posição, movimenta-se com dificuldade durante alguns minutos, esgueirando-se através de uma passagem cheia de obstáculos, até que, por fim, se ergue.
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Chegou ao salão - espécie de coração da gruna, vão úmido e tresandando a lodo, em cujo interior há um montículo de casca lho recolhido das frinchas. Filó começa a encher o primeiro saco, quando a cabeça de Joaquim emerge do fundo do lapeiro que dá acesso ao local onde se realiza a extração do cascalho. Pela primeira vez se falam. - Está vendo que frio danado? - disse Filó. Encontram-se como que encurralados no âmago da gruna - seres insignificantes ao lado das grandes rochas úmidas e es curas, sobre as quais vêem projetadas suas próprias sombras. Joaquim põe a candeia no chão: - Frio é o menos. O pior é que carbonato continua sem preço. E acrescenta : - Neco me disse. Se a gente pegar algum - e suspendeu o saco que o outro enchera - o velho Justino me disse que vai guardar até o preço subir. Não estou gostando nada disso. - Na minha opinião - observou Filó - se a gente pegar algum, Deus nos livre e guarde, a gente deve vender por qual quer preço. Em último caso, até trocar por comida. E começando a encher outro saco: - O coronel, se quiser, que espere a alta : nós não pode mos esperar coisa nenhuma. De novo o silêncio recai. Agora só se ouve o ruído do frio cheiro tirando cascalho: é como algo que estivesse arranhando o interior de uma sepultura. A terra escura e úmida vai sendo reunida com o auxílio da mão, c, por fim, é colocada dentro do outro saco. Em alguma parte, há um ruído incessante de água pingando. O novo saco é passado a Joaquim, que se encaminha para a boca do lapeiro e o entrega a Neco. Filó continua a esgravatar as frinchas. Já está quase no fim, mas o velho Justino quer que a piçarra fique totalmente limpa, pois onde há qual quer restinho de cascalho há a probabilidade de se achar o dia mante - não se deve facilitar. Vai-se mais um saco, e volta-se a ouvir o ruído do frincheiro - insistente e enervante arranhar. Joaquim pensa que, se a gruna fosse mais espaçosa, não era pre ciso tanto trabalho : lavariam o cascalho ali mesmo. De repente, o bafo de umidade se torna mais acentuado, ao mesmo tempo que os dois homens escutam o rumor de qualquer coisa que co meça a correr. Entreolham-se espantados, e Filó compreende num relance : foi a chuva que desabou lá fora. Tão rápido como o seu pensamento, o fio da minação desliza por entre as pedras 288
e, à luz das candeias, torna-se uma realidade a presença amea çadora da água. - Corre, Joaquim! - grita Filó : sabe que, nesse mo mento, isso é tudo que tem verdadeiramente para fazer. O outro parece vacilar - não era essa a espécie de morte que imaginara ter. O rumor da água continua a crescer dentro da gruna - fio de água transformando-se em enxurrada. Filó grita de novo : - Corre, diabo! E com íntima impaciência: - Corre, que é vem água! Os sacos e os frincheiros são abandonados, e os dois ho mens se metem pelo lapeiro adentro - Filó com a candeia na mão e Joaquim na frente, repetindo o grito de alarma. As águas, correndo atrás deles, arrastam consigo o resto do cascalho. Atra vés da fumaça da candeia, Filó enxerga os pés do companheiro. Joaquim pensa em Rita Pandeiro, e imagina que não mais se encontrará com ela. Ela vai saber de sua morte pela boca dos outros. Joaquim vê a morte diante dos olhos, e lembra-se de outros garimpeiros que, indo à procura de cascalho dentro das grunas, de lá foram retirados como postas de carne. Nunca mais verá Rita. Vai morrer, Sinhá do Ouro encomendará a alma dele no velório. A última vez que esteve com Rita foi na semana passada; procura reconstituir o que ela lhe disse antes de sair para o rio, com a gamela de pratos na cabeça. Tudo agora vai terminar, porque a água continua a avolumar-se; mas, de certo modo, sente-se contente por se ter desviado de um bico de pedra - não chegara realmente a acreditar que pudesse passar por ali. Neco vai na frente. A enxurrada se arremete no seu encalço. Para espanto seu, até agora não encontrou nenhum dos compa nheiros que formavam a fieira para a passagem do saco : era como s e alguém houvesse determinado que, a partir daquele ins tante, só ele, J oaquirn e Filó deviam ficar dentro da gruna. Sente-se apanhado irrevogavelmente na armadilha : ia morrer como um bicho - sem vela nem sentinela - e esse pormenor lhe causava uma espécie de decepção. Por mal dos pecados, sua candeia apagara-se; mais pelo instinto que por outra coisa, avan çava através da escuridão do lapeiro. Evidentemente, os outros gruneiros tinham fugido com muita rapidez ao ser dado o alar ma, pois, do contrário, também estariam lutando ali para não morrer : isso lhe parecia de certo modo injusto. Enterra os pés na areia, para dar impulso ao corpo. Tem vontade de gritar, mas não o faz, por considerar essa idéia totalmente inútil: no bojo 289
da gruna outra coisa não s e ouve que não seja o rumor da água. Nesse momento, Filó sente que algo mole flutua ao seu lado, e imagina logo que só pode ser um dos sacos que abandonou na fuga. O mesmo saco, encharcado de areia e água, já esteve antes colado ao seu calcanhar, mas ele atirou-o para longe com um arremesso da perna: dava-lhe a desagradável impressão de uma cataplasma. Vai avançando sempre, com a candeia na mão - mas, de súbito, nota que Joaquim se acha imobilizado à sua frente, atravancando o caminho. Num relance, compreende que o companheiro está enganchado. Naturalmente, a areia trazida pela enxurrada obstruiu a passagem. Se Neco conseguiu atraves sar, era devido ao fato de ser mais magro do que Joaquim. Este sente sob o peito o atrito da areia, e nas costas a pressão do teto da gruna. A muito custo, consegue manter o nariz fora da água, lutando para não morrer asfixiado; é debalde, porém, o esforço que faz para se libertar da terrível prisão: não pode avançar nem recuar. Imediatamente, Filó lança mão do único recurso para o caso: leva ao calcanhar do companheiro a chama da candeia fumegante - e o pé deste se contrai, tisnado, en quanto se espalha na gruna um cheiro de carne queimada. Uma dor extremamente aguda percorre o corpo de Joaquim. Ele deixa escapar um grito, e em vão se debate entre as pedras, como um rato na ratoeira. Já esperava que o outro lhe aplicasse o conhe cido expediente. Por esse motivo, Filó insiste, e queima repeti damente o mesmo calcanhar, uma, duas, três vezes. Por fim, soltando um berro, Joaquim dá um arranco e consegue livrar-se: traz a frente e as costas da camisa em trapos. Sem perda de tempo, Filó se estira todo e precipita-se no rumo do compa nheiro. Sabe que, se lhe acontecer o mesmo, estará irremediavel m ente perdido - é o último dos três, não há ninguém para o socorrer como ele fez a Joaquim. A essa idéia, lembra-se de que é mais magro, e isso lhe parece uma vantagem extraordinária. V ai rastejando apressadamente, mantendo a candeia tanto quan to possível acima da água. Mas logo uma sensação de cãibra se lhe apodera do braço e , antes que ele possa mudar a candeia para a outra mão, a enxurrada se avoluma e ele é obrigado a abandoná-la, a fim de manter o corpo soerguido. Conseguiu transpor o lugar do enganchamento, mas agora se encontra no escuro, tendo a candeia desaparecido para sempre na enxurrada. Filó já não acredita na possibilidade de salvamento. Deixa-se arrastar pela água, e por ela unicamente se orienta. No meio da escuridão, como poderá localizar o esbirro que sustenta o em burrado? O emburrado terá desabado? A saída estará obstruída? 290
Que tolice ter acreditado que era bastante forte para vencer todos os obstáculos! Tenta em vão erguer-se, e a água já o im pede de respirar. O rumor cresce aos seus ouvidos - a água batendo de encontro ao teto, saltando como uma coisa viva, aco metendo por dentro da escuridão. Talvez que, no fim de contas, ele nada mais fosse do que um estorvo à passagem da água. Que horas poderiam ser? Oito . . . dez . . . Talvez oito . . . De repente, pareceu-lhe que nada tinha já que ver com o que pudesse ocor rer ali. Houve então um baque, um estrebuchamento, e a água, por fim, encheu totalmente a gruna. •
Era de manhã, e a luz de um novo dia se derramava sobre a serra, quando retiraram o corpo de dentro da areia. Coloca ram-no em uma rede e levaram-no para a cidade. Mais uma vez, o velho Justino ia à procura do coronel para lhe dar notícias do garimpo : morrera apenas um homem. Acima do córrego, guarnecido por um corte de pedras secas, elevava-se contra a claridade do céu um monte de terra escura. Era o paiol de cascalho.
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P OSFÃCIO SÉRGIO MILLIET
É de 1 944 a primeira edição de Cascalho. Chamando, então, atenção do público para a bela estréia do escritor baiano, ob servei, a par das qualidades excepcionais do romancista, certos defeitos decorrentes de sua inexperiência. A obra carecia, em particular, de unidade. O documento precioso e as anotações realistas da primeira parte diluíam-se na expressão algo dema gógica da segunda. A crítica social esmagava a realidade humana dos personagens. Na segunda edição do livro, mostrou Herberto Sales que não somente reestudara as falhas do romance como ainda o es crevera por assim dizer de novo, procedendo a profundas altera ções de estilo e composição. A o mesmo tempo em que torcia o pescoço à grandiloqüência, fazia de seus heróis homens de carne e osso. Quanto à filosofia social da obra, surgia ela então menos do comentário, sempre perigoso pela sedução moralizante, que da ação dos protagonistas. Não mais hesitei, a partir desse mo mento, em classificar Cascalho de primeiro grande romance da região diamantífera. Vinha ele completar o quadro realista do colonialismo econômico brasileiro e, tal qual os romances da cana e do cacau, os da seca e do cangaço, de José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachei de Queiroz, confirmava, acentuando-as, as cores negras dos demais painéis. Embora se possa considerar definitiva a segunda edição de Cascalho, surge a atual cuidadosamente revista e enriquecida com ilustrações de Darei. Terá assim esse livro altamente significativo, esse afresco social de muita força expressiva e indiscutível auten ticidade, a apresentação que estava a exigir. Há em Cascalho, além do valor literário, uma importante contribuição ao estudo do vocabulário e da sintaxe de toda uma região brasileira. Do ponto de vista do estilo e da língua será talvez, esse, o melhor e mais sedutor aspecto do romance. Acon tece ainda que, ao contrário do que fizeram numerosos escrito-
res regionalistas, não se trata, no caso, de uma anotação erudita e morta, e sim de uma penetração viva e aguda, de uma comu nhão real do autor com o meio descrito. Seus garimpeiros falam e agem sem esforço dentro do desenvolvimento normal do tema. Não se sente a presença de um observador, de caderninho em mão a registrar palavras exóticas ou metáforas curiosas para, com a matéria-prima colhida, contar histórias falsas, artificiais em sua trama e na psicologia dos protagonistas. Não, essa gente do garimpo é mesmo de garimpo. Ela está cinematografada na sua existência cotidiana e o autor compartilha suas ocupações, seus anseios, suas dores e alegrias. A tristeza e a miséria da situação econômica e social da zona diamantífera ressaltam vio lentamente, sem que, para as entendermos, se necessite assina lar-lhes a autenticidade com interpretações à margem. Grande romance, em verdade, e merecedor do êxito que vem alcançando. 1 956
OBRAS DE HERBERTO SALES ROMANCE CASCALHO. Edições O Cruzeiro , Rio de Janeiro, 1 944; 2.a edição, refun dida, Edições O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 9 5 1 ; 3.a edição, revista, Edições O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 956; 4.a edição, Edições O Cru· zeiro, Rio de Janeiro, 1966; 5.a edição, Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1 967; 6.a edição, revista, Civilização Brasileira, Rio de Ja neiro, 1975. ALÉM DOS MARIMBUS. Edições 0 Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 96 1 ; 2.a edi ção, Edições O Cruzeiro, Rio de Janeiro , 1 9 6 1 ; 3.a edição, Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1 965; 4.a edição, revista, Civilização Bra sileira, Rio de Janeiro, 1975. Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, 1961, e Prêmio Paula Brito, da Biblioteca Muni cipal do Rio de Janeiro, 1 9 6 1 . DADOS BIOGRÁFICOS D O FINADO MARCELINO. Edições 0 Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1965; 2.a edição, revista, Civilização Brasileira, Rio de Ja neiro, 1974. CONTO HISTÓRIAS ORDINÁRIAS. Edições 0 Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 966; 2.a edi ção, revista, em Transcontos, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1974. Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, do Pen Clube do Brasil, 1966. O LOBISOMEM E OUTROS CONTOS FOLCLÓRICOS. Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1 970; 2.a edição, revista, 1 97 1 ; 3.a edição, revista, Civiliza ção Brasileira, Rio de Janeiro, 1975. UMA TELHA DE MENOS, Editorial Tormes, Rio de Janeiro, 1 970; 2.a edi ção, revista, em Transcontos, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1974 . TRANSCONTOS. Reunindo Hist6rias ordinárias e Civilização Brasileira, 1974.
Uma telha de menos,
LITERATURA INFANTIL O SOBRADINHO DOS PARDAIS. Edições Melhoramentos, São Paulo, 1969; 2.a edição, revista, Edições Melhoramentos, São Paulo, 1974. Prêmio Christiana Malburg (Belo Horizonte ) , 1969. Diploma of Merit/Hans Christian Andersen Award 1970. A FEITICEIRA DA SALINA. Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1973. O CASAMENTO DA RAPOSA COM A GALINHA. Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1 975. A VAQUINHA SABIDA. Editora do Brasil, São Paulo, 1 975.
O HOMENZINHO DOS PATOS. Editora do Brasil, São Paulo, 1975.
OUTROS TRABALHOS BAIXO RELEVO. Notas de leitura. 1954. Esg.
Edições O Cruzeiro, Rio de Janeiro,
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GARIMPO. Texto para o Calendário Pirelli d e 1970. Prêmio Ampulheta de Prata, da Biblioteca Municipal de São Paulo, 1970.
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IMPRIMIU TELS.:
67-7905
São Paulo
e
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6!-3585 Brasil