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Guimarães Rosa e o canto da desrazão
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Yudith Rosenbaum Psicóloga. Doutora em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo. Professora de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.
Resumo O presente artigo pretende discutir três contos de Guimarães Rosa, do livro Primeiras Estórias , em torno da temática da desrazão e suas diferenciações com a loucura. Parte-se de algumas considerações psicanalíticas sobre as relações entre arte e patologia, do ponto de vista da criação, para em seguida focalizar nos contos o modo como as personagens expressam um território não abarcável pela ciência positiva, a que Foucault denominou “Pensamento do Fora”. Entre a sanidade domesticada e a loucura, Rosa dá voz à desrazão em personagens de um sertão desconhecido.
PalavRa s chave Guimarães Rosa; Loucura; Desrazão.
abstRact
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This paper discusses three short stories from Guimarães Rosa’s book Primeiras Estórias, concerning the idea of unreason and its dierences in relation to madness. Starting from some psychoanalytical considerations about the links between art and pathology, from the point of view of the creative mind, the author observes that the characters in Rosa’s short stories are the expression of a psychological territory that positive science is unable to map, which was named “the thinking from outwards” by Foucault. Between a tamed mental sanity and madness, Rosa gives voice to the unreason of his characters in an unknown inward landscape.
KeywoRds Guimarães Rosa; Madness; Unreason.
As relações entre psicanálise e arte, mais especialmente a literatura, constituem uma interface das mais ricas para se pensar a dinâmica do sujeito, seus limites e possibilidades, seus extremos na dor e no êxtase. Apesar de Freud não ter simpatizado com a arte moderna, sabemos que as vanguardas artísticas e literárias do século XX foram fortemente inuenciadas pelas noções psicanalíticas, até porque no período entre guerras nascia um novo cânone estético que se rebelava contra as formas estabelecidas da racionalidade, pregando a libertação de fontes inconscientes (sobretudo o surrealismo, o expressionismo ou mesmo o dadaísmo). Mas, como arma Perrone-Moisés (2002), “é pelo fato de lidar sempre com metáforas que a literatura não precisou esperar a psicanálise para dizer o inconsciente e seu complexo funcionamento”. Justamente porque o discurso literário não é nem teórico nem explicativo, mas condensado e cifrado simbolicamente, é que se torna possível, segundo a ensaísta, atingir o inconsciente dos leitores na sua verdade indizível pela ciência. Dentro do território dos encontros do discurso literário com o psicanalítico, a desrazão surge como uma gura privilegiada. Há inúmeros autores que transitam pelos destroços da subjetividade, dando expressão artística tanto aos naufrágios psíquicos quanto às reparações e resgates possíveis. Pen-
semos, por exemplo, em Clarice Lispector e o seu mundo das feridas abertas, dos estados de limiar (que lembram os do “pré-psicótico”) que se abrem para suas personagens em momentos fugazes e banais do dia-a-dia, fazendo com que a alma diária se perca – como na personagem Ana, do conto “Amor”, despertada para a sua escuridão por um cego mascando chiclete no ponto do bonde. Em certa altura, lemos a frase: “O que o cego desencadeara caberia nos seus dias?” (LISPECTOR, 1991, p. 40), problematizando a dialética entre a vida da normalidade e a potência imprevista do inconsciente. Tudo isso, expresso numa linguagem visceral, desmascarando a face ideológica e envernizada do mundo cotidiano. Já pelo lado das superações da dor psíquica e física, cabe lembrar o poeta Manuel Bandeira e sua saudável elaboração das perdas melancólicas. A “vida que poderia ter sido e que não foi” 1 , no verso famoso do poeta, acabou por preencher uma obra inteira, sublimando-se no universo da fantasia poética. Trata-se, então, de uma poesia que fez do ócio e da desesperança uma fonte inesgotável de criatividade. No poema Gesso , por exemplo, Bandeira mostra a dinâmica dos processos de destruição e de reconstrução do sujeito em sua relação com objetos perdidos. Ao derrubar e despedaçar uma velha estatuazinha de gesso “muito branco, as linhas muito puras”, carcomida pelo tempo, o eu lírico se ajoewww.fatea.br/angulo
lha e recolhe os “tristes fragmentos”, recompondo “a gurinha que chorava”. Os últimos três versos são intraduzíveis: “Hoje este gessozinho comercial/ É tocante e vive, e me fez agora reetir/ que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu” 2. A operação humana (e humilde) restaura o ser destroçado pela força devastadora do tempo e imprime a marca da experiência viva ao que antes da “queda” (nos sentidos literal e simbólico) era imagem “pura” e preservada do embate com a realidade. Já em Guimarães Rosa, autor sobre o qual nos deteremos, as forças de desagregação do sujeito encontram modos inusitados de superação, saídas imprevisíveis. O estilo singular do autor se revela no modo como revitaliza a palavra, desautomatizando a linguagem viciada e anestesiada. O objetivo desse breve estudo será acompanhar, em três contos do livro Prr eór (Soroo, sua mã, sua lha , A ma d lá e a rr r r ), o espaço aberto por Rosa para habitantes diferentes, extraordinários e marginais, que nos ensinam a lidar com o enigma da desrazão em sua fronteira com a loucura. Para isso, pretendo servir-me do ensaio de Perrone-Moisés, já citado, que abre o caminho das questões que busco acompanhar aqui. Além dele, inspiro-me no texto Da louura à dsrazão , de Peter Pal Pelbart (1993), que discrimina esses termos do ponto-de-vista losóco e psicanalítico, iluminando uma possibilidade de leitura dos contos de Rosa. Mas antes de entrar nos textos escolhidos, gostaria de abordar inicialmente o campo do processo de criação artística e suas relações com a patologia, acreditando que esse pano de fundo dará suporte aos comentários analíticos da segunda parte. Não penso em teorizar sobre esse tema tão deslizante, tão pouco seguro para nos aventurarmos de forma cientíca ou investigativa. Quero, antes, trazer alguns exemplos de artistas diversos em épocas distintas, que parecem dizer algo em comum, transpirando uma mesma idéia. Em seguida, passaria aos textos rosianos e a forma como nos lança para as questões humanas fundamentais.
Quando aos 19 anos visitou Madrid, Picasso entrou numa depressão profunda que durou cerca de um ano. Essa depressão parece ter sido estimulada ao ver uma arte verdadeiramente grandiosa, que ele sentiu que não conseguiria igualar - particularmente a de Velasquez. Na velhice, ele pintou o magníco quadro Las Meninas , em que fragmentou, desmantelou e em seguida reconstruiu a seu próprio modo o quadro de Velasquez. É como se ele tivesse levado anos para reconstruir o que em sua mente quis fragmentar ou fragmentou dentro de si, em sua depressão dos 19 anos. Quando tentou essa reconstrução, ele produziu uma obra tão original e imortal quanto o próprio Velasquez.
A conclusão da autora é que “resolve-se a destruição na restauração da forma”, o que, de certo modo, coincide com o poema de Bandeira citado acima. Um outro exemplo sobre os criadores e suas obsessões vem de uma jovem pintora sueca, Ruth Kjär, que também sofria de depressões recorrentes, nas quais sentia seu interior ser penetrado por um espaço vazio. Narra ainda Segal (1993, p. 95): Certo dia, um quadro que ela tinha sob empréstimo foi tomado de volta pelo pintor e ela não pôde suportar o espaço vazio na parede. Diz seu biógrafo: Na parede havia um espaço vazio que, de algum modo inexplicável, parecia coincidir com o espaço vazio em seu interior [...] O espaço vazio arreganhava os dentes sobre ela de modo hediondo.
Ainda que a dor reduza o homem ao silêncio, um deus me deu o poder de exprimir aquilo que sofro. Goth
Segundo o biógrafo, a intolerância a essa lacuna irremovível impeliu-a a pintar, dando início a uma carreira de êxito como pintora. Essa visão, evidentemente kleiniana 3 , da obra como reparação de processos destrutivos inconscientes parece se confirmar, entre outras, na frase do poeta alemão Rilke : “A beleza é o princípio do terror que mal somos capazes de suportar”. Também Nietzsche corrobora essa noção quando afirma que a arte clássica (nada mais apolíneo e equilibrado) nos ensinou que não há superfícies verdadeiramente belas sem profundezas terríveis. Compõe, ainda, esse pequeno inventário, que evoca as fontes mais primitivas da arte, um comentário do escultor Rodin ( apud SEGAL, 1993, p. 100) em 1911:
Começo com uma história referente ao pintor cubista Pablo Picasso. Quem nos conta é Segal (1993, p. 100-101) no livro Soho, Fatasa Art :
Chamamos de feio o que é informe, insano, que sugere doença, sofrimento, destruição, o que é
a doR e a aRte
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contrário à regularidade – sinal de saúde [...] Chamamos também de feio o imoral, o vicioso, o criminoso e toda anormalidade que produz o mal – a alma do parricida, o traidor, o egoísta [...] Mas deixe que um grande artista consiga apropriar-se dessa feiúra. Imediatamente ele a transgura – com um toque de sua varinha mágica ele a transforma em beleza.
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Certamente, a magia nas mãos do artista é o trabalho da forma. Nem sempre, porém, o processo de transposição em símbolo dos fantasmas terríveis que atormentam a alma de um escritor o redime de sua patologia. Assim como temos Picasso e Kjär, capazes de transmutar suas obsessões em arte e por ela “livrar-se” de núcleos obsedantes, do outro lado, avistamos Van Gogh, Artaud, Strindberg, que não foram salvos pela obra realizada. O que dene um caminho ou outro talvez encerre um mistério insondável. Seja como for, o que se gura na obra está além do caráter meramente pessoal do drama do artista e suas possíveis patologias ganham uma simbolização universal. O quadro Guernica , para continuar com Picasso, supera não só a inserção histórica da guerra civil espanhola, que o determina diretamente, como também as possíveis fantasias arcaicas de destruição do seu autor biogracamente considerado. O quadro dá forma às fragmentações e aos horrores de todos nós. Aqui, diferentemente do que pensa Freud (1976a) no texto Escritores criativos e devaneios , de 1908, o modo construtivo da obra não representa mero prazer preliminar que nos distrai para a liberação pulsional. A forma da obra é a essência mesma dessa liberação, pois sem ela teríamos uma conssão, um diário, um manifesto, um tratado, um texto programático e não uma obra-de-arte.
as teRceiRas maRgens É sob esse prisma que eu gostaria de puxar o o dos contos de Guimarães Rosa e comentá-los brevemente. O título do primeiro conto que nos interessa, Soroo, sua mã, sua lha , gera de imediato um estranhamento do nome que carrega em si o oco, o buraco, a falta, a solidão de um homem só, que pede socorro, quase anagrama da palavra “Soroco”. Sua estória é sombria. Ele está levando a mãe e a lha, enlouquecidas, para embarcarem no trem rumo ao hospício de Barbacena. O vagão estava parado no “desvio de dentro”, o que já antecipa a trajetória desviante das mulheres. A exclusão social,
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marca do tratamento dado à loucura desde o século XVII, aparece em vários detalhes, como mostra Perrone-Moisés (2002): as duas mulheres iam “para longe, para sempre”; o vagão tem grades “feito as de cadeia, para os presos”, dando o caráter de prisão para o hospício. Como se não bastasse, o vagão está ao lado do curral de embarque dos bois, perto dos empilhados de lenha. A condição animal das doentes é clara. Na seqüência, diz o narrador: “O carro lembrava um canoão no seco, navio” (ROSA, 1968, p. 18). Na análise que faz desse conto, Perrone-Moisés (2002) mostra que “a comparação com o navio remete, em nossa cultura, à Nau dos loucos, tema recorrente das obras artísticas da Idade Média. O navio representa a exclusão, o distanciamento, a separação. Os que nele vão se tornam socialmente “ninguém”, e ninguém em particular quer responsabilizar-se pela extradição: “não sendo de ninguém” 4. A prosa poética de Rosa diz mais sobre o vagão/navio: “A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que na pontas se empinava”(ROSA, 1968, p. 18). O caráter não-linear da loucura, que “entorta” e não se ordena pelos parâmetros racionais, bem como o empinar de um cavalo, metáfora da força irracional, estão condensados nessa frase. A certa altura, diz o narrador: a lha –a moça – tinha pegado a cantar, levantan do os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitiçada de disparates, num aspecto de admiração (ROSA, 1968, p. 19).
O lugar da loucura aparece aqui entre o espanto e a santidade e se apresenta por um cantar único e incompreensível. O narrador se esforça por determinar o indeterminável na feliz expressão: “o nenhum”; a substantivação do pronome indenido poderia aludir, como sugere Perrone-Moisés, para a tópica psíquica do inconsciente, que está em todos os lugares e em lugar nenhum. Mais adiante lemos que a cara da moça era um “repouso estatelado”, como se a loucura fosse o congelamento de um espanto. O narrador explica que a lha “não queria dar-se em espetáculo, mas representava as outroras grandezas, impossíveis” (ROSA, 1968, p. 20). Não será a loucura justamente essa atualização de um passado imaginário, glórias antigas não vividas, lugar da idealização impossível que não se processou? A expressão condensada diz mais do que mil teorias e faz o texto ressoar múltiplas sigwww.fatea.br/angulo
nicações. Mas o movimento que me interessa des tacar aqui é o contágio desse canto enlouquecido. A mãe, com um “amor extremoso”, começa a cantar a mesma cantiga da lha: “Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar”. Depois de embarcá-las, Soroco começa a voltar para casa. Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar. Alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando (ROSA, 1968, p. 21).
Como sempre, as reviravoltas em Guimarães Rosa se dão num repente, de forma supreendente e inesperada (“quem ia fazer siso naquilo?”) (BOSI, 2008, p. 19-50). Soroco não está mais só. Ele guarda o canto da mãe e da lha e se sente forte. No seu ato desatinado, ele continua o que a linhagem feminina, materna e lial, deixou. É dele também esse excesso de espírito preenchendo o seu oco. Estar fora de sentido parece ser um momento de plenitude, o instante em que a arte acontece (aqui gurada na cantiga), situada entre a realidade imperativa e limitante, e o mundo imaginário impossível. Lembro aqui o texto de Freud O interesse da psicanálise , de 1913, em que ele arma que a arte forma um reino intermediário entre a realidade que faz barreira ao desejo e o mundo imaginário que o realiza. Nesse conto, como nos exemplos de artistas na primeira parte, a arte novamente se alimenta da loucura como fonte de criação, habitando a fronteira entre o real demandante e a fantasia escapista. Ou melhor: o que era, sim, loucura nas mulheres, transmuta-se em desrazão nos outros, viabilizando o contato e a comunicação coletiva (FREUD, 1976b, p. 222-223). É exatamente essa a diferença apontada por Pelbart (1993) que nos permite discriminar dois territórios psíquicos distintos; desrazão e loucura. Para a visão foucaultiana do autor, nossa cultura vem mudando a relação que mantém com aquilo que ela exclui. “O que está mudando, no fundo, é a relação do homem com sua alteridade”, diz Pelbart (1993, p. 93-94). A loucura, “enquanto fato social, objeto de exclusão, de internamento e de intervenção, já teria representado o encobrimento e o desvanecimento de uma forma de alteridade todavia mais extrema e irredutível: a Desrazão” (PELBART, 1993, p. 94). Relacionar-se com o exterior ao homem, com o que ângulo 115, out./dez., 2008, p. 150-158.
ele não é, deu-se num trânsito bem maior até a Idade Clássica. A partir dali, esse “Exterior“ (que, segundo o autor, poderia ser chamado de “Caos do Mundo, Aventura da linguagem, Estranheza da Natureza, Transcendência do Divino, Fúria da Morte, Sagrado dos Elementos, Bestialidade do Humano etc”) cou aprisionado num “personagem social recluso” (PELBART, 1993, p. 94-95). Pelbart (1993, p. 95) arma, ainda, que a “modernidade, tornando tudo familiar, aprendeu a domesticar o Estranho, seja sob o modo de tutela clínica, da dominação técnica ou da oposição antitética”. O Pensamento do Fora , termo que o autor remete a Maurice Blanchot (que cunhou a expressão “o Fora”) e a Foucault (que o desdobrou em “O Pensamento do Fora”) estaria, no mundo contemporâneo, na experiência do acaso e do desconhecido que a arte consagra, e se diferenciaria do que chamamos de loucura. Sobre essa “assustadora vizinhança”, Pelbart (1993, p. 96) arma: O Pensamento do Fora é aquele que se expõe às forças do Fora, mas que mantém com ele uma relação de vaivém, de troca, de trânsito, de aventura. É o pensamento que não burocratiza o Acaso com cálculos de probabilidade, que faz da Ruína uma linha de fuga micropolítica, que transforma a Força em intensidade e que não recorta o Desconhecido com o bisturi da racionalidade explicativa.
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Pensando nesse tênue limite entre enlouquecimento e desrazão, voltemos ao conto. Da lha para a mãe e desta para Soroco, a corrente da loucura, transmitida pelo canto, percorre os laços familiares e se transmuta em um “Canto do Fora” (aproveitando a expressão de Foucault). Quem imaginava que a comunidade estaria livre do mal ao exorcizá-lo para fora da cidade se surpreende ao ouvir a cantiga. Herança que se renova nos que cam. E como se não bastasse, é o povo, a gente da cidade, que adere ao canto coletivo: E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se zesse: todos, de uma vez, de dó do Soroco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Soroco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação (ROSA, 1968, p. 21).
Esse canto do povoado dá o que pensar. O “desvio de dentro”, na verdade, é de todos. A des-
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razão, que se fez loucura nas mulheres5 , pertence a cada um de nós e o conto, com seu canto, nos permite perceber isso. Também é verdade que a música das mulheres reaviva as nossas “grandezas impossíveis” de outrora, que pertencem à nossa memória, individual e coletiva. Antes, elas eram, na boca miúda do povo, “transtornadas pobrezinhas”. Agora, arma-se uma enorme procissão, que ritualiza e organiza o desatino na forma de um canto coletivo, para “não sair mais da memória”. No lugar do esquecimento, o canto abre espaço para as vozes fora de sentido. Como quer Freud, o inconsciente encontra na arte uma forma de expressão que o resguarda da loucura. O nal do conto é pungente, porque a “gente” a que se refere o narrador parece também incluir a nós, leitores que passam a cantar também ao lado de Soroco: “A gente estava levando agora o Soroco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga” (ROSA, 1968, p.21). Após a segregação social das doidas na “nau dos loucos”, os sãos que caram se unem e entoam o mesmo canto, abrindo espaço dentro da cultura para a desrazão e seu saber. Guimarães Rosa consegue, na verdade, despatologizar o patológico, quando admite sua expressão coletiva e convoca a todos para uma leitura amorosa do desviante. No momento em que o sertão se moderniza (décadas de 50/60, quando os contos de Primeiras Estórias são escritos), não há mais espaço para o patológico humanizado, incorporado à comunidade, como o sagrado nos tempos arcaicos. Barbacena é o destino da clausura dessas mulheres, mas o povoado provinciano, isolado e distante, ainda acolhe o canto e se irmana em torno de Soroco, o órfão sem herdeiros. O elo partido pela ida das mulheres se re-liga numa nova família, unida justamente no estranho canto da desrazão.
cá e lá Passo, agora, ao conto A ma d lá , que também revela um ser à margem do rio corrente, diferente do convencional. A menina do título morava “atrás da serra do Mim, quase no meio de um bre jo de água limpa, lugar chamdo o Temor-de-Deus” (ROSA, 1968, p. 22). Seu apelido é “Nhinhinha”, miúda, cabeçudota e com olhos enormes. “Ninguém entende muita coisa que ela fala” por conta do “esquisito do juízo ou enfeitado do sentido”. De novo, estamos às voltas com seres insólitos, originais, dotados de traços extraordinários ou pouco usuais. Rosa tem predileção por personagens anormais, de-
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mentes, cegos, aleijões, crianças (LIMA, 1983). Parece que todos eles acenam para realidades invisíveis aos demais, como o guia cego de Ana, do conto ar mencionado no início. O efeito nos leitores é de perplexidade, confronto com o que desconhecemos, com regiões distantes de uma racionalidade confortável, ainda que sufocante e restrita. Aqui, a protagonista conhece lugares que ninguém alcança. Aos quatro anos, ela “não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios” (ROSA, 1968, p. 22). Esse ser de silêncios fazia referências a “estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava: ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida” (ROSA, 1968, p. 22). Nhinhinha era “suasibilíssima, inábil como uma or”. Suas frases incompreendidas, porém, parecem carregadas de signicação: “Tudo nascendo”, “A gente não vê quando o vento se acaba...”, “O Passarinho desapareceu de cantar”. “Eu quero ir para lá”. Já não estaria, Nhinhinha, neste lá que de cá não atentamos? Que outro lugar seria esse, a partir do qual ela emite suas palavras, que não o inconsciente que nos constituiu como sujeitos quando dele nos afastamos pelo recalque? Se for assim, Nhinhinha seria uma espécie de pré-sujeito, aquém e além da aculturação. Diferentemente da loucura da mãe e da lha de Soroco, aqui a personagem se aproxima da desrazão como se lhe pertencesse por natureza e não por refúgio ou escape. Figurando esse “lugar nenhum” que nos ha bita, Nhinhinha é pura contemplação, não visa a qualquer objetivo utilitário. Ela consome o feijão, o angu, a abóbora com “artística lentidão”. Quando lhe perguntavam o que está fazendo, ela respondia “alongada, sorrida, moduladamente: Eu... to-u...faa-zendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo o seu tanto tolinha?” (ROSA, 1968, p. 23). Com a graça da linguagem, Rosa nos apresenta um ser que está no aqui e no agora do seu presente, o que o gerúndio conrma (o verbo “fazendo” no modo intransitivo). Ela representa uma totalidade que ainda não foi rompida pela civilização. É uma espécie de unidade perdida para onde queremos voltar. Ela parece habitar o “Pensamento do Fora”, mencionado acima, vivendo a gratuidade do instante, de onde nascem a contemplação e a arte. Ela é vida pura, não maculada, não contaminada pela nalidade dos atos. Nhinhinha não se “importava com os acontecimentos”, Seu estado é www.fatea.br/angulo
atemporal. O contraste com nosso saber funcional e interessado é evidente. Ela nos ensina uma entrega à vida que só o desapego possibilita. Sua palavra, de tão intensamente colada às coisas que evoca, passa a realizar desejos como a magia de um “abre-te Sésamo”. Essa palavra mágica, como não poderia deixar de ser, é também a palavra poética, “palavra-coisa”, no dizer de Sartre, palavra que não se submete ao referente externo, palavra autônoma, que aponta para si mesma, para sua origem. Os desejos de Nhinhinha, contudo, são simples: uma pamonhinha de goiaba, um sapo... Tanto que seus pais queriam que ela desejasse a chuva para o povoado seco. “Mas, não pode, ué...”, dizia ela. “Deixa, deixa”, falava. O desejo verdadeiro vem de um lugar que não é o da demanda, diria Lacan. “Mas daí a duas manhãs quis: queria o arco-íris. Choveu” (ROSA, 1968, p. 25). De repente, Nhinhinha adoeceu e morreu. Em meio a comoção dos pais, precisavam encomendar o caixão. Tiantônia criou coragem e disse que Nhinhinha tinha antes falado despropositado desatino: “que queria um caixãozinho cor-de-roa, com enfeites verdes brilhantes”. Ela previra a própria morte. Ou a desejara? Mistérios rosianos. O que importa é que ela se foi sem que houvesse tempo de ser encerrada na personagem social do louco por algum doutor da cidade.
o enigma do Pai Por fim, faço um breve comentário do conto a rr r r que, em certo sentido, é preparado pelo conto anterior, trazendo tam bém um outro ser de silêncio. Como diz Galvão (1978, p. 37-41), “Às vezes, Guimarães Rosa escreve como quem está em estado de graç a; ‘A Terceira Margem do Rio’ é um desses casos”. O conto começa com o narrador/protagonista dizendo: “Nosso Pai era homem cumpridor, ordei ro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação” (ROSA, 1968, p. 32). De novo, a razão sensata busca compreender o que lhe escapa. Como pode um ser da ordem, positivo e cumpridor, deslocar-se das margens conhecidas e permanecer no meio do fluxo do rio, na sua terceira margem, nesse lugar que não é, já que um rio tem duas margens, não três? O plural da primeira pessoa – “nosso pai”- universaliza a personagem, iniciando o texto em tom de oração religiosa, um Pai-nosso que coletiviza a experiência inominável do pai. Sua decisão de ângulo 115, out./dez., 2008, p. 150-158.
se lançar numa canoa eternamente, sem nenhum motivo decifrável, encerra um enigma insolúvel para os que ficam na margem do lado de cá: “A estranheza dessa verdade deu para estarrece r de todo a gente” (ROSA, 1968, p. 33). Pensou-se em doideira, promessa, lepra. Mas o pai permanece entre a loucura e a sanidade, como a emitir seus sinais e convocar a todos para que escutem seus próprios chamados, como ele atendeu ao seu. Nenhum discurso do mundo instituído, nem padre, nem soldado, nem jornalista, consegue demover o pai de seu rito sacrificial. Ele se entrega ao desamparo, à fome a ao frio, reeditando no sertão mineiro o destino sagrado de outros incompreendidos, Buda, Jesus... O pai se liberta de sua dimensão carnal, buscando uma unidade anterior à queda, anterior à divisão da qual a palavra é testemunha. Ancorado em um espaço indefinido e inconcebível para a razão positiva, esse pai habita uma negatividade radical, a julgar pela quantidade de negativas do texto: ”Nosso pai não dizia nada”, “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte”6. Ele se faz presente nessa ausência e sua palavra se torna mais potente na mudez. Rosa parece crer numa comunicação que prescinde do código compartilhado, pois esse não alcança mais as verdades da alma. Há um voto de silêncio misterioso, que deixa o filho preso, fixado a esse pai inacessível. O conto desenha dois tipos de imobilidade: a do pai, sabedoria estável no devir móvel e sempre cambiante das águas, outro forte símbolo do inconsciente; a do filho, paralisado na culpa neurótica: “De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo (ROSA, 1968, p. 36).” Os demais da família se mudaram, enquanto o narrador envelheceu atrelado ao destino do pai: “Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida”(ROSA, 1968, p. 35). Como interpretar o final do conto? O filho apela ao pai para que volte e deixe que ele tome o seu lugar na canoa; mas ao ver o pai enfim retornando, ele foge de pavor. Sua pergunta, “Sou homem, depois desse falimento?”, talvez devesse ser feita como afirmação: “Sou homem [só] depois desse falimento”7. Aqui a castração desse cordão umbilical com o pai é que permite que o filho so breviva, que assuma a sua própria identidade, diferente da do pai, e se torne sujeito de sua história: narrador do próprio conto. O maior sacrifício é não ir para o rio no lugar do pai. A hora e a vez de cada um são insubstituíveis: “Mas, então, ao
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menos, que, no artigo da morte, peguem em mim e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio (ROSA, 1968, p. 37)”. O que nos ca desses textos, entre tantas outras possibilidades de entendimento, é um convite para encontrarmos nessas personagens o que também nos constitui. Elas não têm nome. São todo mundo. O papel do estranho, do inusitado, do inominável, perdido no sertão mineiro, pobre e isolado, é remeter-nos à nossa condição humana, sempre precária e surpreendente. Esses Outros da obra de Rosa ha bitam as terceiras margens de nós mesmos. Estão aí para fazer-nos ouvir, através das crianças, dos seres alógicos, das criaturas rústicas, algo que se encontra distante das nossas palavras sensatas. Para Foucault, só nas obras literárias é possível ouvir plenamente a voz da desrazão. De fato, pela literatura podemos nos aproximar de forma menos defensiva desse território tão temido no cotidiano, justamente por aludir ao que está “atrás da Serra do Mim”. Para Pelbart (1993, p. 98), “é sempre por um triz que um desarrazoado ca louco ou que um delirante vira um pensador do fora, [...] como se fosse preciso quase enlouquecer para pensar arriscadamente”. Pelo caminho proposto aqui, a obra de Rosa traz o canto da desrazão como espaço de um pensamento sem fronteiras, temido e desejado por todos nós. “O Sr sabe o que é o silêncio? É a gente mesmo, demais.”
Riobaldo, em Grande sertão: veredas
notas 1
O verso integra o poema “Pneumotórax”, do livro Libertinagem , de 1930.
2
O poema pertence ao livro O Ritmo Dissoluto (1924).
3
Melanie Klein, em seu texto “Situações de ansiedade infantil reetidas numa obra de arte e no impulso criador”, de 1929, estabelece uma relação entre o impulso criador e a necessidade de reparação do objeto interno destruído. O ensaio de Klein encontrase em cotrbuçõs à Psaáls , p.283-295.
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A ensaísta chama atenção, também, para a inclusão do narrador nesse “a gente olhava”, marcando bem a tentativa de diferenciar os sãos dos loucos,
separação sempre temerosa e tênue. Daí a atitude defensiva dos curiosos de “falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas”. Rosa ,mostra-nos o temor dos sãos de se identificar com os loucos (PERRONEMOISÉS, 2002, p. 212). 6
Segundo Pelbart (1993, p. 97), na loucura “o sujeito ficaria exposto sem proteção alguma à violência desse Fora, e sem condições de estabelecer com ele um vaivém ou uma relação”.
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Esse aspecto foi em detalhes por Tânia Rivera, no ensaio “A terceira margem do rio: O pai e o gozo”, p. 81-91.
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Agradeço a Noemi Jaffé por essa idéia de reverter a pergunta em afirmação, além de outras idéias que pude compartilhar sobre o autor em curso desenvolvido pela professora na Nau Estudos da linguagem , em 1999.
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