Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Geertz, Clifford O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa / Clifford Geertz; tradução de Vera Meilo Joscelyne. 9. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2007. Título original: Local Knowledge. ISBN 978-85-326-1932-7 1. Etnologia - Discursos, ensaios e conferências I. Título. 97-1995 ín d ice s p ara catálo g o sistem ático: 1. A ntropologia interpretativa: Sociologia 2. Etnologia: S ociologia
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^ÊÍifford Geertz
O SABER LOCAL Novos ensaios em antropologia interpretativa Tradução d e Vera M ello Joscelyne
Òà EDITORA ▼ VOZES P etrópolis
Capítulo 4
O senso comum como um sistema cultural
I Logo n o início daquela coleção de jogos conceptuais e m etáforas inesperadas a que deu o no m e de Investigações Filosóficas, Wittgenstein com para a linguagem a um a cidade: Não se preocupem com o fato de que umas linguagens reduzidas que ele tinha acabado de inventar com propósitos didáticos consistem só em imperativos. Se, por esta razão, quiserem dizer que estão incompletas, perguntem-se se por acaso nossa língua é completa - se estava completa antes que o simbolismo da química e a notação do cálculo infinitesimal fossem a ela anexados; pois estes são, por assim dizer, os subúrbios de nossa língua, (E quantas casas ou ruas são necessárias para que uma cidade comece a ser uma cidade?) Nossa língua pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de pequenas ruas e praças, de casas velhas e novas, e de casas com extensões construídas em vários períodos; e tudo isso circundado por uma profusão de áreas modernas, com ruas regulares e retas e casas uniformes.1 Se expandirm os esta imagem para q u e abranja a cultura, poderíam os dizer que, tradicionalm ente, antropólogos sem pre consideraram a cidade com o seu território, e que pas searam p o r seus becos casualm ente construídos, ten tan d o elaborar algum tipo de m apa aproxim ado d a realidade; e que
1. L. Wittgenstein, PhilosophicalInvestigations, trad. de G.E.M. Anscombe, Nova Iorque, 1953, p. 8; alterei ligeiramente a tradução de Anscombe. [Investigações filosóficas. Petrópolis, Vozes, 1996.]
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só recentem ente com eçaram a se indagar com o foram cons truídos esses subúrbios que parecem estar se am ontoando cada vez mais perto , qual seu relacionam ento com a cidade velha (Será que cresceram a p artir dela? Sua criação a m odi ficou? Será que, no final, vão absorvê-la totalm ente?) e com o será a vida em lugares assim tão simétricos. A diferença entre os tipos de sociedades que norm alm ente constituem o ob jeto de estudo da antropologia, ou seja, as sociedades tradi cionais, e aquelas o n d e os antropólogos vivem, isto é, as sociedades m odernas, sem pre foi considerada um a questão de m aior ou m e n o r primitivismo. No entanto, essa diferença poderia ser expressa em term os do grau de desenvolvim ento dos sistemas esquem atizados e organizados de pensam ento e ação - física, contraponto, existencialismo, cristianismo, engenharia, jurisprudência, m arxism o - um elem ento tão p roem inente em nossa p ró p ria paisagem que não podem os sequer im aginar u m m u n d o o n d e eles, ou algo parecido com eles, não exista - sistem as esses q u e surgiram e se expandi ram ao re d o r d o em aranhado de práticas herdadas, crenças aceitas, juízos habituais, e em oções inatas, existentes ante riorm ente. Sabemos, é claro, que em Tikopia ou Tim buctu há pouca quím ica e m enos cálculo m atem ático; e que o bolchevismo, a perspectiva do p o n to de fuga, as doutrinas da união hipostática, ou dissertações sobre a problem ática mente-corpo não são exatam ente fenôm enos universais. Apesar disso, relutam os - e antropólogos são particularm ente relutantes - em extrair destes fatos a conclusão de que a ciência, a ideologia, a arte, a religião, ou a filosofia, ou p elo m enos os im pulsos a que elas servem, não são p ro p ried ad e com um de to d a a hum anidade. Desta relutância surgiu to d a u m a tradição de argum en tos cujo objetivo é provar que os povos “mais sim ples” realm ente têm um sentido do divino, um interesse imparcial no conhecim ento, u m a noção da form a legal, ou um a ap re ciação da beleza p o r si mesm a, ainda que essas qualidades
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não estejam engavetadas nos com partim entos culturais or ganizados e estanques que conhecem os tão bem. Assim, D urkheim descobriu formas elem entares de vida religiosa entre os aborígenes australianos; Boas, u m talento espontâneo para o desenho na costa do noroeste; LéviStrauss, um a ciência “concreta” no Amazonas; Griaule, um a ontologia simbólica em um a tribo da África Ocidental; e Gluckman, um ju s co m m u n e implícito em o u tra tribo da África Oriental. Não havia nada nos subúrbios que não existisse antes na cidade antiga. No entanto, em bora todas estas descobertas tenham tido um certo sucesso, pois, hoje em dia, ninguém acha que “prim itivos” - se é que existe alguém que ainda use este term o - são pragmatistas sim plórios que andam tateando em busca de conforto em meio a u m a névoa de superstições, elas não conseguiram fazer calar a p erg u n ta essencial: onde exatam ente está a diferença - p o rq u e m esm o os defensores mais acirrados da proposição que qualquer povo tem seu p róprio tipo de profundidade (e eu sou um desses) adm item que existe u m a diferença - entre as formas já trabalhadas da cultura acadêmica, e aquelas ainda toscas, da cultura colo quial? Parte de m eu argum ento neste ensaio é q u e to d a essa discussão foi mal estruturada, pois a questão não é se existe um a form a elem entar de ciência a ser descoberta nas Trobiand ou um a form a elem entar de direito en tre os drotses, ou se o totem ism o é “m esm o” um a religião, ou se o culto de cargos é “m esm o” um a ideologia (todas essas perguntas, a m eu ver, tornaram -se tão d ep en d en tes de definições, que se transform aram em assuntos de política intelectual ou de gosto retórico). Trata-se, sim, de saber até que p o n to , nesses vários lugares, os aspectos da cultura foram sistematizados, ou seja, até que p o n to eles têm subúrbios. E, para investir contra este problem a, em um a tentativa mais prom issora do que aquela q u e busca definições essencialistas para arte, ciência, religião, ou direito e depois tenta descobrir se existe 113
entre os bosquím anos algum a dessas coisas, quero voltar-me para um a dim ensão da cultura q u e não é norm alm ente considerada um de seus com partim entos organizados, com o acontece com estes setores mais conhecidos da alma. Refiro-me ao “senso com um ”. Há um nú m ero de razões pelas quais tratar o senso com um com o u m corpo organizado de pensam ento delibe rado, em vez de considerá-lo com o aquilo que qualquer pessoa que usa roupas e não está louco sabe, p o d e levar a algumas conclusões bastante úteis; en tre essas, talvez a mais im portante seja que um a das características inerentes ao pensam ento que resulta do senso com um é justam ente a de negar o que foi dito acima, afirm ando que suas opiniões foram resgatadas diretam ente da experiência e não um resultado de reflexões deliberadas sobre esta. O saber que a chuva m olha e que, portanto, devem os nos proteger dela em algum lugar coberto, ou que o fogo queima, e que, portanto, não devem os brincar com fogo (m antendo-nos, p o r en quan to, em nossa p ró p ria cultura) são expandidos até abranger um território gigantesco de coisas que são consideradas com o certas e inegáveis, u m catálogo de realidades básicas da natureza e tão perem ptórias que, sem dúvida, penetrarão em qualquer m ente desanuviada o bastante para absorvê-las. No entanto, é óbvio que isso não é verdade. Ninguém, ou pelo m enos ninguém cujo cérebro funcione bem, duvida que a chuva m olhe; mas p o d em existir pessoas que questio nem a proposição de q u e obrigatoriam ente devem os abri gar-nos dela, e que achem que enfrentar os elem entos é um a form a de fortalecer nosso caráter - algo assim com o se andar na chuva sem chapéu fosse sinônim o de santidade. E, muitas vezes, a atração que o brincar com o fogo exerce sobre certas pessoas é mais forte do q u e a certeza da d o r que virá. A religião baseia seus argum entos n a revelação, a ciência na m etodologia, a ideologia n a paixão moral; os argum entos do senso com um, porém , não se baseiam em coisa alguma, a não ser na vida com o um todo. O m u n d o é sua autoridade.
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A análise do senso com um , e não necessariam ente seu exercício, deve, portanto, iniciar-se p o r u m processo em que se reform ule esta distinção esquecida, en tre u m a m era apreensão da realidade feita casualm ente - ou seja lá o que for que m eram ente e casualm ente apreendem os - e um a sabedoria coloquial, com pés n o chão, que julga ou avalia esta realidade. Q uando dizem os que alguém d em onstrou ter bom senso, querem os expressar algo mais que o simples fato de que essa pessoa tem olhos e ouvidos; o que estam os afirm ando é que ela m anteve seus olhos e ouvidos bem abertos e utilizou am bos - o u p elo m enos ten to u utilizá-los - com critério, inteligência, discernim ento e reflexão prévia, e que esse alguém é capaz d e lidar com os problem as cotidianos, de um a form a cotidiana, e com algum a eficácia. Q uando, p o r outro lado, dizem os que a alguém lhe falta bom senso, não querem os dizer que este alguém é retardado, ou que não consegue en ten d er que a chuva m olha ou que o fogo queim a, mas sim que é o tipo de pessoa que consegue com plicar ainda mais os problem as cotidianos que a vida coloca a sua frente: sai de casa sem guarda-chuva em um dia nublado; na vida, sofreu u m a série de queim aduras que deveria ter sido sábio o bastante para evitar e não ter, ele próprio, atiçado as cham as que as causaram . O antônim o de um a pessoa que é capaz de captar as realidades básicas através da experiência é, com o sugeri, um deficiente. O antônim o de um a pessoa que é capaz de chegar a conclusões sensatas a partir dessas m esm as realidades é u m tolo. E esta últim a palavra tem m enos relação com o intelecto - em um a definição lim itada de intelecto - do que norm alm ente ima ginamos. Com o observou Saul Bellow, referindo-se a certas espécies de assessores governam entais e de escritores radi cais: “O m undo está cheio de idiotas com QIs altíssimos”. A dissolução analítica da prem issa tácita que dá ao bom senso sua autoridade - ou seja, aquela p ara a qual o bom senso representa nada mais q u e a p u ra realidade - não tem com o objetivo solapar esta autoridade, e sim, transferi-la. Se o bom senso é um a interpretação da realidade im ediata, um a 115
espécie de polim ento desta realidade, com o o mito, a p in tu ra, a epistemologia, ou outras coisas sem elhantes, então, como essas outras áreas, será tam bém construído historica m ente, e, portanto, sujeito a p ad rõ es de juízo historicam ente definidos. Pode ser questionado, discutido, afirmado, desen volvido, formalizado, observado, até ensinado, e p o d e tam bém variar dram aticam ente de u m a pessoa para outra. Em suma, é um sistem a cultural, em b o ra nem sem pre m uito integrado, que se baseia nos m esm os argum entos em que se baseiam outros sistemas culturais sem elhantes: aqueles que os possuem têm total convicção de seu valor e de sua validade. Neste caso, com o em tantos outros, as coisas têm o significado que lhes querem os dar. A im portância de tu d o isso p ara a filosofia é, obviamente, que o bom senso, ou o u tro conceito similar, tornou-se um a das categorias-chave, talvez até a categoria-chave, em um am plo nú m ero de sistemas filosóficos m odernos. Aliás, po dem os até afirmar que, desde a ép o ca de Platão e Sócrates, o bom senso já era u m a categoria im portante nesses sistemas (o n d e su a função e ra d e m o n stra r sua p ró p ria inadequabilidade). Tanto a tradição cartesiana com o a de Locke dependiam , de formas diferentes —d e formas culturalm ente diferentes - de doutrinas sobre o q u e era ou não auto-evidente, se não para m entes vernáculas, pelo m enos para m entes livres. Neste século, porém , o conceito de bom senso “que não foi ensin ad o ” (com o é às vezes denom inado) - isto é aquilo que o hom em com um p ensa quan d o livre das sofisticações vaidosas dos estudiosos - quase tornou-se o sujeito tem ático da filosofia, já que tantos outros conceitos filosóficos estão sendo absorvidos pela ciência e pela poesia. A ênfase que W ittgenstein, Austin e Ryle dão à linguagem com um ; o desenvolvim ento da cham ada fenom enologia do cotidiano p o r Husserl, Schutz, Merleau-Ponty; a glorificação das decisões pessoais, tom adas no cotidiano (“no m eio da vida”) do existencialism o eu ro p eu ; a utilização da solução de problem as através de com parações com a variedade de coisas que acontecem em u m jardim com o paradigm a da
razão no pragm atism o am ericano - tu d o isto reflete esta tendência a buscar as respostas para os m istérios mais p ro fundos da existência n a estru tu ra do pensam ento corriquei ro, pé-na-terra, trivial. A im agem de G.E. M oore, quando tentou dem onstrar a realidade do m undo externo levantan do um a das mãos e dizendo “isto é um objeto físico” e depois levantando a outra e dizendo “isto é o u tro objeto físico”, não deixa de ser, sem considerar detalhes doutrinários, aquela que m elhor resum e grande parte da filosofia ocidental re cente. Apesar de ter se to rn ad o foco de tanta e tão intensa atenção, o senso com um co ntinua a ser, no entanto, um fenôm eno q u e é presum ido, e não analisado. Husserl, e depois Schutz, trabalharam com as bases conceituais da experiência cotidiana, com a form a com o construím os o m undo que habitam os biograficam ente, mas sem adm itir a distinção entre esta e o q u e dr. Jo h n so n fez quan d o chutou um a p ed ra para refutar Berkeley, ou o que fazia Sherlock Holmes quand o p o n d ero u sobre um cachorro silencioso na noite. Ryle, pelo m enos, observou en p a ssa n t que não “exibimos bom senso ou falta de bom senso quando usam os um a faca e um garfo; (o fazemos) quan d o conseguim os lidar com um falso m endigo ou com u m problem a mecânico, sem ter as ferram entas adequadas.” Mas, o conceito de bom senso norm alm ente aceito é aquele que o vê com o o “tipo de coisa que qualquer pessoa com bom senso sabe”. Uma definição que, segundo suas próprias premissas, estaria coberta de bom senso. A antropologia nos p o d e ser útil aqui da m esm a forma que é útil em outras situações: ao fornecer exem plos extra ordinários, ajuda a situar exem plos mais próxim os em um contexto diferente. Se observarm os a opinião de pessoas que chegam a conclusões diferentes das nossas devido à vivência específica que tiveram, ou p o rq u e aprenderam lições dife rentes com as surras que levaram na escola da vida, logo nos darem os conta de que o senso com um é algo m uito mais
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problem ático e p rofundo do que parece quando o p o n to de observação é um café parisiense ou um a sala de professores em Oxford. Com o u m dos subúrbios mais antigos da cultura hum ana - não m uito regular, não m uito uniform e, mas ainda assim ultrapassando o labirinto de ruelas e pequenas praças em busca de u m a form a m enos casual de habitar - o senso com um m ostra m uito claram ente o im pulso que serve de base para a construção dos subúrbios: um desejo de to rn ar o m undo diferente.
II Com esta perspectiva e não com a que é norm alm ente usada (a natureza e a função da magia), considerem os aqui o conhecido trabalho de Evans-Pritchard sobre feitiçaria entre os azandes. Segundo o que o pró p rio Pritchard afir m ou explicitam ente, em bora tu d o indique que ninguém lhe deu m uita atenção, a parte que realm ente lhe interessa do senso com um é seu p apel com o p an o de fundo para o desenvolvim ento da feitiçaria. Uma deturpação dos concei tos azandianos de causalidade natural, ou seja, o que leva a quê, segundo a m era experiência de vida, sugere a existência de u m o utro tipo de causalidade - a que Pritchard cham a de m ístic a -q u e resum e o conceito azandiano de feitiçaria. Uma feitiçaria que é, aliás, bastante materialista, envolvendo, p o r exem plo, um a substância acinzentada que estaria localizada no ventre das pessoas. Tomemos com o exem plo u m m enino azandiano, que, segundo ele próprio, d eu “u m a topada nu m toco de árvore e ficou com o d ed o do pé infeccionado”. O m enino diz que foi feitiçaria. “Bobagem ”, diz Evans-Pritchard, utilizando o senso com um de sua p ró p ria tradição, “você não teve foi cuidado, tinha que olhar com mais atenção aonde pisa.” “Mas eu olhei aonde pisava”, diz o garoto, “e se eu não estivesse enfeitiçado, teria visto o toco. Além do mais, cortes nunca ficam abertos tanto tem po, p elo contrário, fecham 118
logo, pois os cortes são assim p o r natureza. Mas este infeccionou, então tem que ser feitiçaria.” Ou um oleiro de azande, com grande habilidade e expe riência, que, volta e meia, quan d o um dos potes que estava fazendo caía e quebrava, exclamava: “foi feitiço!” “Boba gem ”, diz Evans-Pritchard, que, com o to d o bom etnógrafo, parece que nunca aprende: “é claro que potes às vezes quebram quando estão sendo feitos; assim é a vida.” “Mas”, diz o oleiro, “eu escolhi o b arro bem escolhido, m e esforcei para retirar todas as p edrinhas e a sujeira, trabalhei devagar e com cuidado, e m e abstive de te r relações sexuais n a noite anterior. E ainda assim o p o te quebrou. Q ue mais p o d eria ser, senão feitiçaria?” Ou, um a o u tra ocasião, q u an d o o próprio Evans-Pritchard estava doente - ou, em suas p ró prias palavras, “sentia-se p o u co saudável” - e se indagou em voz alta, na presença de alguns azandianos, se a causa de seu mal-estar não teria sido as m uitas bananas que com era. E eles: “bobagem , banana não faz mal, deve ter sido feitiço.” Assim, se o co n teú d o das crenças azandianas sobre feiti çaria é o u não m ístico (e já sugeri que essas crenças me parecem místicas unicam ente p o rq u e não creio nelas), elas são utilizadas pelos azandianos de um a form a nada mística - e sim com o um a elaboração e um a defesa das afirmações reais da razão coloquial. Atrás de todas essas reflexões sobre dedos do p é infeccionados, potes que saíram errado, e acidez estomacal, se estende a teia de conceitos d o senso com um que os azandianos ap arentem ente consideram real m ente verdadeiros: que cortes p eq u en o s norm alm ente cu ram-se com rapidez; q u e pedras fazem com que o b arro cozido quebre com facilidade; que a abstenção sexual é um pré-requisito para que o trabalho do oleiro seja bem sucedi do; que andando p o r azande não é aconselhável so n h ar acordado, p o rq u e o lugar está repleto de tocos d e árvores. E é com o parte desta teia de prem issas do bom senso, e não graças a algum a form a de metafísica primitiva, que o concei to de feitiçaria ganha sentido e adquire sua força. Apesar de
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toda esta conversa de vôos n o tu rn o s com o vaga-lumes, a feitiçaria não celebra u m a ord em invisível, e sim confirm a um a o utra ordem , esta, extrem am ente visível. A voz da feitiçaria se eleva quan d o as expectativas co m uns falham, q u an d o o hom em com um de azande se con fronta com anom alias o u contradições. Pelo m enos neste sentido, ela é u m a espécie de variável testa-de-ferro no sistem a d e p en sam en to do senso com um. Sem transcender este sistema, ele o reforça, adicionando-lhe um a idéia que serve para q u alq u er ocasião, e que atua para reassegurar aos azandianos q ue a sua reserva de lugares com uns é confiável e adequada, m esm o q u an d o as aparências m om entanea m ente d em o n strem o contrário. Assim, se alguém contrai lepra, a causa é feitiçaria, a não ser que haja incesto na família, pois “to d o o m u n d o sabe” que o incesto causa lepra. O adultério, tam bém , traz infelicidade. Um hom em p o d e ser m orto na g u erra o u n a caça, com o resultado das infidelida des de sua esposa. Antes de p artir p ara a guerra o u p ara um a caçada, um hom em , se for sensato, p ed e a sua esposa que confesse o n om e d e seus am antes. Se ela diz, honestam ente, que não tem n e n h u m am ante e, m esm o assim, ele m orre, a causa de sua m o rte foi, então, algum feitiço - a não ser, é claro, que ele te n h a feito algum a o u tra coisa obviam ente errada. Da m esm a forma, ignorância, estupidez ou incom petência, definidos culturalm ente, são causas suficientes para o fracasso aos olhos dos azandianos. Se, ao exam inar o pote quebrado, o oleiro en co n tra m esm o um a p ed ra no barro, pára de resm u n g ar sobre feitiçaria e com eça a resm u n gar sobre sua p ró p ria negligência - em vez de culpar a feitiçaria p elo fato de que a p ed ra estava no barro. E quando um oleiro sem experiência q u eb ra um pote, a culpa será da falta de experiência d o oleiro, o que parece bastante razoá vel, e não de algum a perversão ontológica da realidade. Neste contexto p elo m enos, o grito de “feitiço!” funciona para os azande com o o grito de Insha Allah funciona para alguns m uçulm anos, ou o sinal da cruz para alguns cristãos:
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m enos com o u m a form a de questionar as crenças mais im portantes - religiosas, filosóficas, científicas e morais - a respeito de com o o m undo é construído o u sobre o que é a vida, e mais com o u m a form a de fechar os olhos e ignorar as dúvidas sobre estas crenças; lacrar a visão de m u n d o que resulta do bom senso - aquele “tu d o é o que é e nada mais”, como disse Josep h Butler - p ara protegê-la das dúvidas que são estimuladas pelas insuficiências óbvias desta visão. “Os azande”, escreveu Evans-Pritchard, “adm inistram suas atividades econôm icas segundo um conjunto de conhe cimentos, transm itidos de geração em geração, que abran gem tanto a construção e o artesanato, com o a agricultura e a caça. Possuem, portanto, u m p rofundo conhecim ento prático dos aspectos da natureza que se relacionam com seu bem-estar. É bem verdade que este saber é em pírico e incom pleto, e que não é transm itido através de qualquer ensino sistem ático e sim passado de um a geração a outra, de um a form a lenta e casual, durante a infância e nos prim eiros anos d a m aturidade. M esmo assim, este conheci m ento é suficiente p ara a execução de tarefas diárias e em preendim entos sazonais.” Já que é esta convicção que o hom em com um tem , de que tem o controle de tu d o , não só de assuntos econôm icos, q u e lhe dá qualquer possibilidade de agir, ela deve ser protegida a qualquer custo: n o caso dos azande, a feitiçaria é invocada p ara esconder fracassos; no nosso caso, buscam os respaldo em um a longa tradição de filosofia de botequim para com em orar sucessos. Já foi dito em várias ocasiões que em qualq u er sociedade a m anuten ção da fé religiosa é um a tarefa problem ática; e ’ se deixarmos de lado as teorias sobre a suposta espontaneidade dos instintos religiosos dos “prim itivos”, creio que esta afirma ção é verdadeira. É igualm ente verdadeiro, n o entanto, e m uito m enos com entado, o fato de que a m anutenção da fé na confiabilidade dos axiomas e argum entos do bom senso não é m enos problem ática. A artim anha usada pelo dr. Johnson para silenciar as dúvidas sobre o bo m senso - “e não se fala mais d o assunto!” - é, se pensarm os bem , quase 121
tão desesperada com o a que Tertuliano usava para frear suas dúvidas religiosas: “credo q u ia im possible". “Feitiçaria!” não é p io r que n en h u m a das outras duas. Os hom ens tam pam os orifícios nas barragens de suas crenças mais necessárias com o prim eiro tipo de barro que encontrem . Tudo isso se apresenta de um a form a mais dram ática se, em vez de lim itarm o-nos a observar um a única cultura em sua totalidade, observarm os várias culturas sim ultaneam en te, concentrando-nos em um único problem a. Um exem plo excelente deste tipo de abordagem encontra-se em um artigo d e R obert Edgerton, publicado em um n ú m ero antigo do A m erica n Anthropologist, sobre aquilo que hoje é cha m ado de intersexualidade, mas que é mais conhecido sob o nom e de herm afroditism o. Se há um a coisa que todos consideram ser p arte da m aneira com o o m undo está organizado é o fato de que os seres hum anos estão divididos em dois únicos sexos bioló gicos. É claro que tam bém se adm ite que algumas pessoas em q ualquer lugar do m undo - homossexuais, travestis, etc. - não se com portam de acordo com as expectativas do papel que lhes foi atribuído segundo seu sexo biológico e, de uns tem pos para cá, várias pessoas em nossa sociedade já chega ram até a sugerir que papéis que se diferenciam tanto não deveriam nem m esm o ser atribuídos a quem q u er que seja. Mas m esm o que uns prefiram gritar “vive la différence!” e o utros “à bas la différence!”, não existe m uita dúvida quanto à existência d e u m a diferença. A visão daquela m enininha da estória - q ue as pessoas nascem de dois tipos, sem enfeites ou com enfeites - pode te r sido um a visão lam entavelm ente não-liberada; mas parece bastante óbvio que sua observação foi anatom icam ente correta. Na verdade, porém , é possível que a m enina da estória não ten h a inspecionado um a am ostra significativa. O gêne ro, nos seres hum anos, não é sim plesm ente u m a variável dicotôm ica. N em sequer é u m a variável contínua, pois, se fosse, nossa vida am orosa seria ainda mais com plicada do 122
que já é. Um núm ero bastante extenso d e seres hum anos são claram ente intersexuais, e em algüns a intersexualidade chega a tal p o n to que eles apresentam os dois tipos de genitália externa, ou o crescim ento de seios ocorre em um indivíduo com genitália masculina, ou outras ocorrências sem elhantes. Isso cria certos problem as p ara a biologia, problem as sobre os quais vem-se o b ten d o algum progresso no m om ento. Cria tam bém alguns problem as p ara o bom senso, para a rede de concepções práticas e m orais que foi tecida ao red o r de um a das mais enraizadas das verdades aparentes: m asculinidade e feminilidade. Portanto, a in ter sexualidade é mais que um a surpresa empírica; ela é um desafio cultural. Um desafio que é enfrentado de várias m aneiras. Os rom anos, relata Edgerton, consideravam os infantes interse xuais com o seres am aldiçoados pelos p o d eres supernaturais, e os eliminavam. Os gregos, com o era seu costum e, tinham um a visão mais aberta e, em bora considerassem este tipo de pessoa peculiar, atribuíam sua existência a mais um a dessas coisas estranhas que acontecem e os deixava viver suas vidas sem estigmas exagerados - afinal de contas, Herm afrodito, o filho de H erm es e Afrodite, que se u n iu em um só corpo com um a ninfa, tinha estabelecido um p reced en te bastante im portante. O artigo de Edgerton, na verdade, gira em to rn o de um contraste fascinante en tre três respostas bastante variadas ao fenôm eno da intersexualidade - a norte-am ericana, a dos navajo e a dos p o kot (esta últim a, um a tribo d o Quênia) - que são exam inadas em term os das concepções que o bom senso desses povos contém , com respeito ao gênero dos seres hum anos e seu lugar mais geral na natureza. Com o ele sugere, pessoas diferentes reagem de formas diferentes ao se confrontarem com indivíduos cujos corpos são sexualm ente anôm alos, mas n en h u m a delas pode sim plesm ente ignorar a anom alia. Se o objetivo é m anter intactas as idéias herdadas sobre “o que é norm al e natural”, algo deve ser dito sobre as enorm es divergências
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que existem en tre as três formas de lidar com a intersexualidade. Os norte-am ericanos vêem a intersexualidade com um sentim ento que só p o d e ser classificado com o horror. Como diz Edgerton, as pessoas chegam a sentir náusea com a m era visão da genitália de um intersexual ou até ao ouvir falar sobre intersexualidade. “Como um enigm a m oral e legal”, Edgerton continua, “existem p o ucos iguais”. Um intersexual p o d e casar? O serviço militar é relevante? Q ue sexo será registrado n a certidão de nascim ento? É possível m u d ar o sexo d esta p esso a de u m a form a adequada? E psicolo gicam ente aconselhável, ou m esm o viável, que um a pessoa que foi criada com o u m a m enina, de rep en te se to rn e um m enino? C om o é q u e u m intersexual pode se com portar nos chuveiros da escola, ou em banhos públicos, ou no namoro? O bviam ente, o senso com um chegou ao limite de suas forças... A reação é encorajar o intersexual, norm alm ente com grande veem ência e às vezes com algo mais que isso, a adotar u m dos dois papéis, o m asculino o u o feminino. Por isso m uitos intersexuais “passam p o r norm ais” a vida inteira, um com portam ento que exige um sem n úm ero de estratagem as cuidadosam ente preparados. O utros buscam p o r si m esm os ou são forçados a se subm eterem a operações que “corri gem ” sua condição, p elo m enos cosm eticam ente, e se trans form am em h o m en s ou m ulheres “legítim os”. Fora de espetáculos circenses, só perm itim os u m a solução p ara o dilem a da intersexualidade, um a solução que o intersexual é forçado a adotar p ara acalmar a sensibilidade dos demais. “Todas as pessoas envolvidas”, escreve Edgerton, “de pais a m édicos, são induzidas a descobrir em qual dos dois sexos naturais o intersexual se encaixa de form a mais adequada, e a ajudar ao am bíguo, incôngruo e enervante it a transformarse em u m ele o u em u m a ela, que seja pelo m enos parcial m ente aceitável. Em suma, se os fatos não estão à altura de suas expectativas, m u d e os fatos, ou, se isto não é possível, pelo m enos disfarce-os.” 124
Até aqui o que fazem os selvagens. Voltando-nos para os navajo, entre os quais WW. Hill fez u m estudo sistemático do herm afroditism o, já em 1935, vem os q u e o q u ad ro é bastan te diferente. Para eles tam bém , a intersexualidade é anormal, é claro, mas, ao invés de provocar h o rro r e nojo, evoca adm iração e respeito. O intersexual é visto com o alguém que recebeu um a bênção divina e q u e passa esta bênção para outras pessoas. Não só são respeitados, são praticam ente adorados. “Eles sabem tu d o ”, diz u m dos inform antes de Hill, “podem fazer tanto o trabalho d e um hom em com o o de um a m ulher. Acho que q u an d o eles (os intersexuais) desaparecerem , será o fim dos navajo.” O utro inform ante declara: “Se não existissem intersexuais, a nação m udaria. Eles são responsáveis p o r to d a a riqueza da nação. Se não houvesse mais nenh u m deles, os cavalos, os carneiros e os navajo tam bém desapareceriam . Eles são líderes, assim com o o presidente Roosevelt”. Diz um terceiro inform ante: “Um (intersexual) na cabana navaja traz boa sorte e riquezas. É m uito im portante para a nação ter u m (intersexual) p o r p erto .” E assim p o r diante. O bom senso dos navajo, p ortanto, vê a anom alia da intersexualidade - pois, com o disse anteriorm ente, aos olhos dos navajo o intersexual n ão parece m enos anôm alo que aos nossos olhos, pois a intersexualidade não é um a anom alia m en o r entre eles - sob u m a luz bastante diferente daquela sob a qual nós a vem os. A interpretação da interse xualidade, não com o um h o rro r m as sim com o um a bênção, conduz a um a série de conceitos que, p ara nós, são tão estranhos com o o dizer que o adultério causa acidentes na caça, ou que o incesto causa lepra. Para os navajo, no entanto, estes conceitos são o tipo d e coisa que qualquer pessoa com “a cabeça no lugar” tem , obrigatoriam ente, que achar correto. Acreditam, p o r exem plo, que se os genitais de um animal intersexual (que tam bém são m uito valorizados) são esfregados na cauda das ovelhas e das cabras, e depois nas narinas dos carneiros e dos bodes, o rebanho cresce e produz mais leite. Ou que pessoas intersexuais devem ser 125
chefes de família e ter controle total sobre as propriedades familiares, pois assim essas propriedades tam bém aum enta rão. Muda-se um as poucas interpretações sobre uns poucos fatos curiosos, e muda-se, pelo m enos neste caso, toda um a forma de pensar. Não mais averigue-e-resolva, mas sim admire-e-respeite. Finalmente, a tribo do Leste Africano, os pokot, tem ainda um a terceira visão da intersexualidade. Como os norte-americanos, não valorizam os intersexuais; mas, com o os navajo, não se ofendem ou ficam horrorizados com sua existência. Consideram-os, de um a forma bastante casual, como meros erros. São como um pote quebrado, imagem aparentem ente muito popular na África. “Deus errou”, dizem eles, em vez de afirmar que “os deuses nos propiciaram um presente maravilhoso” ou que “estamos diante de um m onstro inclassificável”. Os pok o t acham que o intersexual é inútil - não pode reproduzir e assim aum entar a patrilinearidade com o um hom em norm al, nem p o d e te r u m d o te com o qualquer m ulher norm al. Nem sequer p o d e se entregar àquilo que os pokot consideram “a coisa q u e d á m aior prazer”, o sexo. Muitas vezes crianças intersexuais são m ortas, com a m esm a despreocupação com a qual se jogaria fora um p o te malfeito (microcefálicos, infantes sem m em bros, ou animais que nasçam com deform ações profundas tam bém são assassina dos); outras vezes, com um a atitude igualm ente despreocu pada, lhes perm item viver. As vidas que levam são bastante desgraçadas, mas n ão são párias - sim plesm ente são ignora dos ou solitários, e tratados com a indiferença com que se tratam objetos, principalm ente objetos malfeitos. Econom i cam ente falando, sua situação é m elhor que a de um pokot norm al, pois n ão sofrem as dem andas financeiras do p aren tesco que drenam as riquezas, nem têm as distrações da vida familiar que prejudicam o acúm ulo destas. Nessa linhagem segm entar aparentem ente típica, e em u m sistema onde conta a riqueza da noiva, os intersexuais não têm u m lugar específico. Q uem precisa deles?
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Um dos casos considerados p o r E dgerton confessa ser profundam ente infeliz. “Eu só durm o, com o e trabalho. Q ue mais posso fazer? D eus e rro u .” E um o u tro diz: “Deus me fez assim. Não há nada que eu possa fazer. Todos os outros podem viver com o um pokot. Eu não sou u m verdadeiro p okot.” Em um a sociedade o n d e o b o m senso estigmatiza, considerando até um hom em que ten h a órgãos norm ais mas não tenha filhos com o um a figura lastimável, e o n d e um a m ulher estéril não chega a ser considerada um a pessoa, a vida de um intersexual é a p ró p ria im agem da futilidade. Ele é “inútil” em um a sociedade que, considerando útil qualquer coisa que se relacione com gado, esposas e filhos, valoriza a “utilidade” ao extrem o. Em suma, a provisão de certos dados não significa que to d o o dem ais é m era conseqüência. O bom senso não é aquilo que um a m en te livre de artificialismo apreende es pontaneam ente; é aquilo que u m a m ente rep leta de p ressu posições - o sexo é u m a força que desorganiza, ou um dom q ue regenera, ou um prazer prático - conclui. Deus p o d e ter feito os intersexuais, mas o hom em fez o resto.
III Isso não é tudo, porém . O que o hom em fez foi um a estória autoritária. Com o o Rei Lear, o u o Novo Testamento, ou m ecânica quantum , o bo m senso é u m a form a de explicar os fatos da vida que afirma ter o p o d er de chegar ao âmago desses fatos. Na verdade, é algo assim com o u m adversário natural das estórias mais sofisticadas, q u an d o essas existem, e, quando não existem, das narrativas fantasm agóricas de sonhos e mitos. Com o u m a estru tu ra para o pensam ento, ou um a espécie de pensam ento, o bom senso é tão autori tário quanto qualquer outro: n en h u m a religião é mais dog mática, nenhum a ciência mais ambiciosa, n en h u m a filosofia mais abrangente. Os tons q u e apresentam são diferentes, e tam bém são distintos os argum entos com os quais se justifi cam, mas, com o essas outras áreas - ou com o a arte e a 127
ideologia - o bom senso tem a p reten são de ir além da ilusão para chegar à verdade, ou, com o costum am os dizer, chegar às coisas com o elas rea lm en te são. “Sem pre que um filósofo diz que algum a coisa é ‘realm ente real’”, para citar um a vez mais aquele m o d ern o e fam oso d efensor do bom senso, G.E. Moore, “você p o d e estar realm ente certo de que o que ele disse ser ‘realm ente real’ não é real, realm ente.” Q uando um Moore, um dr. Jo h n so n , u m oleiro azandiano, ou u m hermafrodita pok o t dizem que algum a coisa é real, fique certo de que eles estão falando sério. E o p io r é que sabem os m uito b em disso. É precisam ente nos “to n s” - n o tipo de som q u e suas observações expres sam, n a visão d o m u n d o q u e suas conclusões refletem - que as diferenças d o bo m senso devem ser procuradas. O con ceito pro p riam en te dito, com o u m a categoria fixa e etique tada, um dom ínio sem ântico fechado, não é, obviamente, universal; no entanto, assim com o a religião, a arte, e as dem ais disciplinas, é mais ou m enos parte desta nossa forma cotidiana de distinguir os g ên ero s da expressão cultural. E, com o vimos, seu co n teú d o real, assim com o o con teú d o da religião, da arte e das dem ais áreas, varia tão radicalm ente de um lugar ou p erío d o p ara o u tro s lugares ou períodos, que não nos deixa m uita esperança de descobrir um a u n i form idade em sua definição e con teú d o , u m a estória original que seja sem pre repetida. Só é possível caracterizar transculturalm ente o bom senso (ou q u alq u er um dos outros gêne ros sem elhantes) isolando o que p o d eria ser cham ado de seus elem entos estilísticos, as m arcas da atitude que lhe dá seu cunho específico. Com o a voz da devoção, a voz da sanidade soa de form a m uito sem elhante, seja o que for que diga; a coisa que o saber cotidiano tem em com um , onde q u er que se m anifeste, é o jeito irritante de saber cotidiano com que é dito. Como exatam ente form ular a especificidade destes ele m entos estilísticos, dessas marcas da atitude, dessas variações de tonalidade - ou q u alq u er o u tro nom e que lhes queiram os
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dar - é um tanto ou q uanto problem ático, pois não existe um vocabulário já elaborado com o qual expressá-lo. Neste caso, seria um m au com eço sim plesm ente inventar term os novos, pois o que desejam os é caracterizar o que é familiar e não descrever o desconhecido. A única solução, portanto, é expandir o significado de term os conhecidos com o faz um matemático quando diz que um a evidência é profunda, ou um crítico quan d o afirma que um a p in tu ra é casta, ou um conhecedor de vinhos quan d o se refere a u m B ordeaux com o agressivo. As palavras que eu pessoalm ente gostaria de usar desta m esm a forma, referindo-m e ao bom senso, e adicionando u m sufixo que transform e cada um a delas em um substantivo, são: natural, prático, leve, não-m etódico, acessível. Teríamos, assim, algo com o “naturalidade”, “prati cabilidade”, “leveza”, “não-m etodicidade” e “acessibilidade”. Essas seriam, então, as propriedades - um tanto ou quanto incom uns - que eu atribuiria ao bom senso em geral, em seu sentido de form a cultural p resente em qualquer sociedade. A prim eira destas quase-qualidades - naturalidade - é talvez a mais essencial. O bom senso apresenta tem as - isto é, alguns temas, e não outros - com o sendo o que são p o rq u e esta é a natureza das coisas. Dá a todos os tem as que seleciona e sublinha u m ar de “isto é óbvio”, u m jeito de “isto faz sentido”. São retratados com o inerentes àquela situação, com o aspectos intrínsecos à realidade, com o “é assim que as coisas funcionam ”. Isto acontece m esm o em se tratando de um a anom alia com o a intersexualidade. O que diferencia a atitude dos norte-am ericanos sobre intersexualidade das outras duas atitudes exam inadas não é o fato de que, para eles, pessoas com órgãos bissexuais pareçam tão mais pecu liares e sim, que sua peculiaridade lhes parece antinatural, um a contradição nos term os estabelecidos pela existência. Os navajo e os pokot, m esm o que de formas diferentes, vêem o intersexual com o um produto, ainda que po u co comum, do curso norm al das coisas - prodígios doados pelos deuses ou potes quebrados - enquanto que os norte-am ericanos, se é que seu p o n to de vista está sendo retratado de forma
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adequada, aparentem ente crêem que a feminilidade e a masculinidade esgotam as categorias naturais que podem ser atribuídas aos seres hum anos: qualquer coisa entre um e outro é a escuridão, é u m a ofensa à razão. No entanto, a naturalidade com o um a das características do tipo de estórias sobre a realidade a que dam os o nom e de bom senso, p o d e ser m elhor apreciada em exem plos m enos extraordinários. Entre os aborígines australianos, para escolher aleatoriam ente um exem plo entre m uitos, todo um con ju n to de elem entos da paisagem física - princi palm ente cangurus, casuares, larvas de mariposa, e outras coisas sem elhantes - são considerados produtos das ativida des de antepassados totêm icos d u ran te aquele tempo-forado-tem po qu e, em inglês, cham a-se “th e d ream ing [o sonhar]”. Com o observou N ancyM unn, na visão dos aborí gines, esta transform ação d e antepassados hum anos em elem entos d a natureza ocorre pelo m enos de três maneiras: através da m etam orfose p ropriam ente dita, quando o corpo de um antepassado se transform a em um objeto material; por im pressão, o u seja, quan d o o antepassado deixa a marca de seu corpo ou de algum o u tro instrum ento que usa; e p o r meio daquilo que ela cham a de externalização, quando o antepassado retira algum objeto de seu próprio corpo e se desfaz dele. Assim, um a colina rochosa ou até m esm o um a ped ra p o d em ser considerados u m antepassado cristalizado (“ele não m o rreu ”, dizem os inform antes, “apenas p arou de se m ovim entar e ‘tornou-se a nação’”); u m poço natural, ou até u m cam po inteiro, p odem ser a m arca deixada pelas nádegas de u m ancestral que, passeando p o r ali, sentou-se para descansar exatam ente naquele lugar; e vários outros tipos de objetos materiais - cruzes de barbante ou pedaços de m adeira de form a oval - foram desenhados p o r algum canguru ou cobra prim itivos com seus ventres respectivos e “deixados para trás” q u an d o esses continuaram seu cami nho. Sem aprofundar-nos nos detalhes de todas estas cren ças (que são p rofundam ente complexas), o m u n d o externo com que os aborígines se confrontam não é nem um a 130
realidade em branco, n em algum a espécie com plexa de objeto metafísico, mas sim o p ro d u to natural de eventos transnaturais. O que dem onstra este exem plo específico, aqui descrito tão elipticam ente, é que a naturalidade que, com o u m a p ropriedade m odal, caracteriza o bom senso, não depende, ou pelo m enos não d ep en d e necessariam ente, daquilo que cham aríam os de naturalism o filosófico - ou seja, a visão segundo a qual não existe nad a no céu ou na terra que não possa ser im aginado p ela m en te tem poral. Na verdade, para os aborígines, bem assim com o p ara os navajo, a naturalida de do m undo cotidiano é u m a expressão direta, um a resu l tante de um a parte d o ser a qual se atribui u m co n junto bastante diferente de quase-qualidades - “grandiosidade”, “seriedade”, “m istério”, “diversidade”. Aos olhos aborígines, o fato de que os fenôm enos naturais de seu m undo físico são o que restou das ações de cangurus invioláveis e cobras taum atúrgicas não to rn a esses fenôm enos m enos naturais. Assim, se um córrego q u alq u er surgiu p o rq u e Possum, p o r acaso, deslizou sua cauda exatam ente naquele pedaço de chão, esse córrego não se to rn a diferente dos outros tantos córregos. Pode ser, talvez, mais im portante do que córregos vistos com nossos olhos, o u pelo m enos diferente deles; mas de qualquer m aneira, nos dois casos, a água sem pre corre colina abaixo. Um argum ento bastante abrangente, aliás. O progresso da ciência m odern a afetou seriam ente - em bora talvez não tão seriam ente qu an to às vezes im aginam os - os conceitos do bom senso ocidental. Se é ou não verdade q u e o hom em com um se transform ou em um autêntico Copérnico (e de m inha parte, duvido m uito, pois para mim o sol ainda se levanta e brilha sobre a terra), p elo m enos foi induzido, e há m uito pouco tem po, a acreditar na versão de que as doenças são causadas p o r germ es. Até um simples program a de televisão dem onstra esta verdade. No entanto, com o tam bém fica claro em u m sim ples program a de televisão, o
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hom em com um não vê essa afirm ação com o parte de um a teoria científica articulada, e sim com o um p o u co de bom senso. Ele p o d e te r ultrapassado o estágio de “alim ente o resfriado p ara m atar a febre de fom e” mas só chegou até “escove os dentes duas vezes ao dia e visite o dentista duas vezes p o r an o ”. Podem os argum entar que o m esm o sucede com a arte - não havia nevoeiro em Londres até q u e W histler o pintou, e assim p o r diante. A naturalidade que os conceitos do bom senso dão a seja lá ao q u e for que eles dão natura lidade - b eb er água em córregos rápidos é m elhor que beber água em córregos lentos, ou não ficar no m eio de m ultidões quando existe u m a epidem ia de gripe - p o d e d ep en d e r de outros tipos bem diferentes de versões estranhas sobre o funcionam ento das coisas (tam bém , é claro, p o d e não ser bem assim: a afirmação de q u e “o hom em terá problem as quando as andorinhas levantam vôo” será tanto mais persuasiva quanto m aior for nossa experiência de vida, e o tem po que tivermos para descobrir com o ela é terrivelm ente verda deira) . A segunda característica, “praticabilidade”, p o d e ser mais facilmente observável a olho n u que as outras em m inha lista, porque, norm alm ente, q u an d o dizem os que u m indivíduo, um a ação, ou um p rojeto d em o n stram falta de b o m senso, o que querem os realm ente dizer é que não são práticos. O indivíduo, mais cedo ou mais tarde, vai ter que despertar para a realidade, a ação está cam inhando rapidam ente para o fracasso e o p ro jeto não vai funcionar. Mas, justam ente p o rq u e parece tão mais óbvia, essa quase-qualidade é mais suscetível de ser in terp retad a erroneam ente. Pois não se trata aqui de “praticabilidade” no sentido estritam ente prag mático de “utilidade”, mas sim, em u m sentido mais amplo, aquilo que, n a filosofia popular, seria cham ado de sagacida de. Q uando aconselham os alguém a “ser sensato”, nossa intenção não é tan to dizer que ele deve se to rn ar um utilitário, mas sim q u e ele deve ser mais “vivo”: mais p ru d e n te, mais equilibrado, não p e rd e r a bola de vista, não com prar gato p o r lebre, não chegar m uito p erto de cavalos lentos ou 132
de m ulheres rápidas, enfim, deixar que os m ortos enterrem os m ortos. Como parte da discussão mais am pla q u e m encionei anteriorm ente, sobre os inventários culturais de povos “mais sim ples”, existiu u m a espécie de debate sobre se “prim itivos” têm qualquer interesse em assuntos em píricos que não se relacionem , e não se relacionem de form a bastante direta, com seus objetivos materiais im ediatos. Esta é a visão - isto é, que eles não têm interesse - bastante aceita p o r Malinowski, e que Evans-Pritchard utiliza, em um a passagem que deliberadam ente omiti quando o citei acima, referindo-se aos azande. “Eles têm um profu n d o conhecim ento prático da parte da natureza que se relaciona com seu bem-estar. Q uanto ao restante, não tem para eles n en h u m interesse científico ou apelo sentim ental.” D iscordando desta afirma ção, outros antropólogos, dos quais Lévi-Strauss é, se não o prim eiro, pelo m enos o mais enfático, argum entaram que “prim itivos”, “selvagens”, ou seja lá qual for o nom e que lhes dêem, elaboram e até sistematizam conjuntos de conheci m entos em píricos que não parecem ter qualquer utilidade prática para eles. Algumas tribos das Filipinas conseguem distinguir mais de seiscentos tipos de plantas, a que atribuí ram nom es, a m aioria das quais não são nem utilizadas, nem utilizáveis, e algumas delas só são encontradas raram ente. Os índios am ericanos do no rd este dos Estados Unidos e do Canadá possuem um a taxonom ia elaborada de espécies de répteis que eles não com em nem vendem . Alguns índios do sudeste - os pueblanos - deram nom es a todas as espécies de árvores coníferas da região, sendo que a m aior parte delas são tão sem elhantes que m al se distinguem um a das outras, e nenhum a oferece qualquer lucro material aos índios. Os pigm eus do Sudeste Asiático são capazes de distinguir os tipos de folha das quais se n u trem mais de quinze espécies de m orcegos diferentes. Em oposição ao utilitarianism o primitivo da visão de Evans-Pritchard - aprenda tu d o aquilo cujo conhecim ento lhe traz algum lucro e deixe o restante para a feitiçaria - tem os a visão intelectual prim itiva de
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Lévi-Strauss - aprenda tu d o que sua m ente o induza jt, ap ren d er e classifique este conhecim ento em categorias. “É, possível que repliquem ”, escreveu Lévi-Strauss, “que uma ciência deste tipo (isto é classificação botânica, observações herpetológicas, etc.) p o d e não ter um resultado m uito prá tico. A resp o sta para isso é que seu objetivo principal não è prático. Ela atende às dem andas do intelecto mais que, ou em vez de, à satisfação de necessidades [materiais], É quase certo que hoje existe um consenso em torno do argum ento desenvolvido p o r Lévi-Strauss que discorda da visão d e Evans-Pritchard - os “primitivos” têm interesse em várias coisas q u e não são úteis nem para seus planos de vida, nem para seus estôm agos. Porém, isto não é tu d o o que se tem a dizer sobre o assunto. Pois esses povos não classificam aquelas plantas todas, nem distinguem tantas espécies de cobras ou categorizam um nú m ero enorm e de tipos de m orcegos, sim plesm ente p o rq u e sentem algum a paixão cog nitiva avassaladora que em ana das estruturas inatas localiza das no fu ndo de sua m ente. Em um meio am biente povoado de árvores coníferas, cobras ou m orcegos que com em folhas, é prático saber tu d o que se p o d e saber sobre árvores coní feras, cobras o u m orcegos que com em folhas, seja este conhecim ento m aterialm ente útil no sentido exato da pala vra ou não, pois a “praticabilidade” de que falamos consiste precisam ente neste tipo de conhecim ento. A “praticabilida d e ” do senso com um , e tam bém sua “naturalidade” são qualidades que o pró p rio bom senso outorga aos objetos e não que os objetos outorgam ao bom senso. Se, p ara nós, exam inar u m program a de corrida de cavalos p o d e parecer um a atividade prática e caçar borboletas não, não é porque o prim eiro é útil e o segundo não o é; a razão é que o prim eiro é visto com o resultado de um esforço, ainda que m ínim o, que deverá ser feito para que possam os saber exatam ente o que é quê; a segunda atividade, entretanto, por mais encantadora que seja, não exige m aior esforço.
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A terceira das quase-qualidades que o bom senso atribui à realidade, “leveza”, é, com o m odéstia em u m queijo, bastante difícil de form ular em term os mais explícitos. “Sim plicidade”, ou m esm o “literalidade” p o d em servir tão bem quanto “leveza”, ou até expressar m elhor a idéia, pois tratase aqui daquela vocação que o bom senso tem para ver e apresentar este ou aquele assunto com o se fossem exata mente o que parecem ser, n em mais nem m enos. A frase de Buder que citei acima - “tu d o é aquilo que é, e n en h u m a outra coisa” - expressa essa qualidade perfeitam ente. O m undo é aquilo que u m a pessoa bem desp erta e sem muitas complicações acha que é. Sobriedade, e não sutileza, realis mo, e não imaginação, são as chaves p ara a sabedoria; os fatos que realm ente im portam na vida estão espalhados pela superfície, e não escondidos dissim uladam ente em suas profundezas. Não é preciso, e mais, é u m erro fatal, negar a obviedade do óbvio, com o fazem com tan ta freqüência os poetas, intelectuais, padres e outros com plicadores do m u n do p o r profissão. Com o diz u m provérbio holandês, a ver dade é tão simples com o a água clara. Além disso, com o os filósofos exageradam ente sutis de Moore que tinham discussões profundas sobre a realidade, os antropólogos freqüentem ente constroem com plexidades conceituais que eles m esm os passam adiante com o se fos sem fatos culturais, pela sim ples razão de q u e não en ten d e ram q u e m uito d o q u e lhes tin h a sido d ito p o r seus inform antes, ainda que soasse estranho a seus ouvidos ed u cados, era literal. Alguns dos bens mais im portantes no m undo não estão escondidos sob um a m áscara de aparência enganosa, nem são coisas q u e deduzim os graças a sugestões discretas o u decifram os p o r m eio de sinais equívocos. Acredita-se que eles estejam bem ali, o n d e pedras, mãos, cana lhas e triângulos eróticos estão, invisíveis apenas para aqueles que são inteligentes. Leva-se algum tem po (ou pelo m enos eu levei algum tem po) para e n ten d er que, quando todos os m em bros da família de um m enino javanês me diziam que ele tinha caído de um a árvore e q uebrado a 135
perna, p o rq u e seu avô, já falecido, o tinha puxado, já que a família tinha esquecido de cu m p rir um a obrigação ritual que era devida a este avô, para eles, aquilo era o com eço, o m eio e o fim d o assunto; era exatam ente o que eles achavam que tinha acontecido, era tu d o que eles achavam q u e tinha acontecido, e ficaram perplexos com o fato de eu estar perplexo p o r eles não d em onstrarem a m enor perplexidade. E quando, em Java, depois de escutar um a estória longa e com plicada co n tad a p o r u m a cam ponesa velha e analfabeta - um tipo clássico se é q u e existem tipos clássicos - sobre o papel que a “cobra d o dia” d esem p en h a quando os javaneses q uerem saber se é o u não aconselhável viajar, dar u m a festa, ou contrair m atrim ônio (a estória era, na verdade, u m a série de relatos deliciosos sobre as tragédias que haviam ocorrido - carruagens q u e viraram, tum ores que apareceram , fortu nas q ue se dissolveram - q u an d o tinham ignorado a cobra) perg u n tei com o era essa cobra do dia, e o que ouvi foi: “Não seja bobo! a g ente não p o d e ver a terça-feira, pode?”, com e cei a p erceb er q u e até as coisas que são evidentes só são evidentes aos olhos dos que as estão vendo. A frase “O m undo se divide em fatos” p o d e ter lá seus defeitos como um slogan filosófico o u u m credo científico; mas é grafica m ente exato, com o um epítom e d a “leveza” - “sim plicidade”, “literalidade” - q u e o bom senso im prim e à experiência. Q uanto à “não-m etodicidade”, a outra qualidade a qual tam bém não dem os um nom e lá m uito adequado q u e os conceitos resultantes do bom senso atribuem ao m undo, esta serve sim ultaneam ente aos prazeres da inconsistência tão reais p ara tod o s os seres hum anos que não sejam exageradam ente acadêm icos (com o disse Emerson: “u m a consis tência descabida é o dem ônio das m entes p eq u en as”; ou, nas palavras de W hitman: “Eu me contradigo, portanto, eu me contradigo. C on ten h o as m ultidões”) - e àqueles outros prazeres sem elhantes, tam bém sentidos p o r todos os ho m ens a não ser os exageradam ente obsessivos, q u e têm origem na diversidade insubm issa da vida (“o m u n d o está repleto de um n ú m ero de coisas”; ‘A vida é um raio de coisas 136
um a atrás das o u tras”; “Se você acha que en ten d eu a situa ção, isso só prova que você está mal inform ado”). O saber do bom senso é, descarada e ostensivam ente, a d hoc. Vem na forma de epigram as, provérbios, obiter dieta, piadas, relatos, contes m orais - um a m istura de ditos gnôm icos - e não em doutrinas formais, teorias axiomáticas, ou dogmas arquitetônicos. Silone disse em algum lugar que os cam po neses do sul d a Itália passam a vida intercam biando provér bios com o se estes fossem presentes valiosos. As formas em que o bom senso se apresenta, em outras partes do m undo, varia: ditos espirituosos mais trabalhados, com o à la Wilde, versos didáticos à la Pope, o u fábulas com animais à La Fontaine; e entre os clássicos chineses, talvez fossem citações embalsamadas. Seja lá qual for a forma em que se apresen tem, não é sua consistência interna que os to rn a recom en dáveis, mas precisam ente o extrem o oposto: “A ntes que cases, vê o q ue fa z e s ” mas “D eus a ju d a a quem cedo m a d ru ga”-, “R em enda o p a n o , e d u ra u m ano, rem enda o u tra vez e dura u m m ês” mas “O q u e se leva dessa vida é o q u e se come e o que se bebe” e assim p o r diante. Aliás, é nesta maneira sentenciosa de falar - que, em certo sentido, é a forma paradigm ática da sabedoria popular - que a “não-metodicidade” do bom senso se destaca mais vividamente. Como exem plo, considere o seguinte feixe de provérbios Ba-Ila que extraí de Paul Radin (que, p o r sua vez, os extraiu de Smith and D ale): Cresça e então conhecerás as coisas do mundo. Irrite seus médicos e as doenças sairão rindo. A vaca pródiga jogou fora seu próprio rabo. E a hiena prudente que vive mais tempo. O deus que fala ganha a carne. Você pode se lavar, mas isso não quer dizer que você vai deixar de ser escravo. Quando a mulher de um chefe rouba, ela culpa os escravos. E mais fácil construir com uma bruxa do que com uma pessoa de língua falsa, pois este destrói a comunidade. É melhor ajudar um homem que está lutando do que u m . homem faminto, pois este não tem nenhuma gratidão.
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E assim p o r diante. É u m tipo d epot-pourri de conceitos discrepantes - que, com o os anteriores, não são necessa riam ente, nem m esm o norm alm ente, expressos como pro vérbios - que, em geral, não só caracterizam os sistemas do bom senso com o tam bém , e principalm ente, os tornam capazes de captar a enorm e variedade dos tipos de vida que; existem n o m undo. Aliás, os próprios Ba-Ila têm um provér-: bio que expressa justam ente isso: ‘A sabedoria sai de um« m orro de formigas”. A últim a quase-qualidade - últim a aqui, mas certamente não n a vida real - a “acessibilidade” surge com o um a conse qüência lógica das outras na m edida em que estas são reconhecidas. Acessibilidade é sim plesm ente a presunção, na verdade a insistência, de que qualquer pessoa, com suas faculdades razoavelmente intactas, pode captar as conclusões do bom senso, e, se estas forem apresentadas de uma m aneira suficientem ente verossímel, até m esm o adotá-las. É claro que há um a tendência a que se considere algumas pessoas - geralm ente os mais velhos, algumas vezes os sofredores, ocasionalm ente aqueles que são sim plesm ente grandiloqüentes - mais sábias que outras, naquele tipo de sabedoria do “já passei p o r tu d o isso”. Por o utro lado, diz-se das crianças, e, com bastante freqüência, das m ulheres, e ainda, d ep en d e n d o do tipo de sociedade, das várias espécies de m enos privilegiados, que são m enos sábias que as outras pessoas. A isso acrescenta-se a explicação de que “são cria turas em ocionais”. Apesar dessas atribuições, não se pode dizer que existam especialistas em bom senso reconhecidos com o tal. Todos acham que são peritos no assunto. Sendo com um , o bom senso está aberto para todos; é propriedade geral de, pelo m enos - com o diríamos - todos os cidadãos estáveis. Na verdade, seu tom é até antiespecialista, se não for antiintelectual; rejeitam os, e pelo que ten h o observado, outras pessoas tam bém rejeitam , qualquer reivindicação explícita de p o d eres especiais nesta área. Para este saber não 138
existe qualquer conhecim ento esotérico, nem técnicas esp e ciais e talentos específicos, e pouco ou n en h u m treinam ento especializado, a n ão ser aquilo que, de form a mais ou m enos redundante, cham am os de experiência, e, de form a mais ou menos misteriosa, de m aturidade. Para expressá-lo de o utra maneira, o bom senso rep resen ta o m u n d o com o u m m undo familiar, que tod o s p o d em e devem reconhecer; e onde todos são, ou deveriam ser, in d ependentes. Para viver na queles subúrbios que cham am os de física, o u islamismo, ou direito, ou música, ou socialismo, é preciso satisfazer algu mas exigências, e nem todas as casas estabelecem o m esm o tipo de im posição. Para viver nesse sem i-subúrbio que se chama bom senso, o n d e todas as casas são sa n s fa ç o n , precisam os unicam ente - com o se dizia em outras épocas estar em juízo perfeito e ter um a consciência prática, de acordo com a definição que as cidades de p en sam en to e linguagem específicos, de onde som os cidadãos, dêem a essas virtudes tão laudáveis.
IV Com o com eçam os este capítulo com u m a pictografia de ruas sem saída e avenidas, extraída de W ittgenstein, será bastante apropriado term inar com um a outra, que é ainda mais resum ida: “Vemos um a estrada reta a nossa frente, mas é claro que não podem os utilizá-la pois está p erm a n en te m ente fechada” . Se quiserm os dem onstrar, ou m esm o sugerir (que é tu d o o que m e foi possível fazer) que o bom senso é u m sistem a cultural, e que ele possui um a o rdem única, passível de ser descoberta em piricam ente e form ulada conceptualm ente, não o farem os através de um a sistem atização de seu co n teú do, pois este é profundam ente heterogêneo, não só nas várias sociedades, com o em um a m esm a sociedade - a sabedoria de um m orro de formigas. Também não será viável
2. Wittgenstein, Pbilosophical Investigations, p. 127.
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esboçar algum tipo de estru tu ra lógica que seria adotada pelo senso com um o n d e q u er que este se apresente, pois essa não existe. Nem seq u er poderem os elaborar um sum á rio de conclusões substantivas a q u e o senso com um sem pre nos faz chegar, pois neste caso tam pouco existe um padrão. O único pro ced im en to q u e nos resta, portanto, é o de tom arm os o desvio específico de evocar o som e os vários tons que são geralm ente reconhecidos com o pertencentes ao senso com um , aquela ruazinha paralela que nos leva a construir predicados m etafóricos - noções aproxim adas, com o a de “leveza” - p ara poderm os lem brar às pessoas aquilo que já sabem . M udando a imagem, o senso com um tem algo assim com o a síndrom e dos objetos invisíveis: estão tão obviam ente diante dos nossos olhos, que é impossível encontrá-los. Para nós, a ciência, a arte, a ideologia, o direito, a religião, a tecnologia, a m atem ática, e, hoje em dia, até a ética e a epistem ologia são tão freqüentem ente considerados gêne ros da expressão cultural, que isso nos leva a indagar (e a indagar, e a indagar) até que p o n to os povos as possuem e, se as possuem , qual é a form a que tom am , e, dada esta forma, com o p o d em ilum inar a versão que tem os desses gêneros. O m esm o não acontece com o senso com um. Este nos parece ser aquilo que resta q u an d o todos os tipos mais articulados de sistem as simbólicos esgotaram suas tarefas, ou aquilo que sobra da razão quando suas façanhas mais sofisticadas são postas de lado. Mas se isto não é verdade, e ser capaz de distinguir giz de queijo, ou um a tom ada elétrica de um focinho suíno, ou seu pró p rio ânus de seu cotovelo (a capacidade de ser “pé-na-terra” poderia ser o u tra quasequalidade atribuída ao senso com um ) tam bém forem consi derados talentos tão positivos, ainda que não tão grandiosos com o o ser capaz de apreciar m otetes, acom panhar um argum ento lógico, m an ter u m contrato formal, ou dem olir o capitalism o - todos estes d ep en d en tes de tradições de pensam ento e sensibilidade elaboradas - então a investi gação com parativa da “habilidade natural de evitarmos as 140
im posições de contradições grosseiras, inconsistências pal páveis, e óbvias falsificações” (segundo a definição de senso com um da “H istória Secreta d a U niversidade d e O xford”, publicada em 1726) deveria ser cultivada de um a form a mais deliberada. Para a antropologia, tal iniciativa p o d erá significar novas formas de exam inar problem as antigos, principalm ente os que se relacionam com a m aneira com o a cultura é articulada e fundida, e um a m udança (que aliás teve início há bastante tem po) que a distancie de explicações funcionalistas sobre os m ecanism os dos quais dependem as sociedades, e a aproxim e de m étodos que a auxiliem a interpretar as formas de vida existentes nos vários tipos de sociedade. Para a filosofia, no entanto, os efeitos podem ser mais sérios, pois possivelm ente afetarão um conceito semi-examinado que lhe é m uito caro. Aquilo que, para a antropologia, a mais m atreira das disciplinas, seria apenas a mais recente em um a longa série de m udanças de enfoque, para a filosofia, a disciplina que mais se assem elha a um porco-espinho, p o derá significar um abalo total.
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