Educação e Cidadania nº 14 (2012)
Editora UniRitter
Resenha O FIM DA INOCÊNCIA NO ATO DE CONSUMIR LEITE deleite : implicações éticas, ambientais e Resenha do livro de FELIPE, Sônia T. Galactolatria: mau deleite: nutricionais do consumo de leite bovino. São José: Ecoânima, 2012, 303 p.
Evely Vânia Libanori 51
Sônia T. Felipe é filósofa, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz. Foi professora e pesquisadora do Departamento de Filosofia da UFSC, onde trabalhou na graduação e pós -graduação, orientando trabalhos na área de Ética e Filosofia Política, Ética Animal e Ética Ambiental. É autora de Por uma questão de princípios (Boiteux, princípios (Boiteux, 2003), Ética 2003), Ética e experimentação e xperimentação animal (Edufsc, (Edufsc, 2007). Colaborou nas coletâneas Éticas e políticas ambientais ambientais (Lisboa, 2004), Instrumento animal (São Paulo, 2008), Visão abolicionista: abolicionista: ética e direitos animais (ANDA, 2010). É corroteirista de Vegana Vegana (Instituto (Instituto Nina Rosa, 2010) e assina a coluna Questão de Ética, da Ética, da Agência Nacional de Direitos Animais - ANDA. A filósofa mantém uma vasta produção de artigos relacionados à defesa animal e que podem ser lidos na Internet em páginas de defesa animal e também em revistas indexadas, nacionais e internacionais. O trabalho dela é mostrar que não é ético explorar animais; suas vidas deveriam ser tratadas com a mesma consideração moral com que tratamos as vidas humanas. A filósofa é, no Brasil, o maior nome ligado à Ética Animal. E questiona a nossa Ética, pergunta se há coerência moral em proteger as vidas humanas e permitir a exploração e a morte dos animais não humanos. Os textos da filósofa são, todos, o alerta e o protesto contra a cultura que mata, usa, tortura, disseca, explora os animais. O objetivo da autora tem sido este: promover o fim da inocência em relação à forma como os animais são criados e mortos. Galactolatria:: mau deleite é o resultado de uma pesquisa de dez anos e é o primeiro Galactolatria livro publicado no Brasil que aborda a literatura médica e científica internacionais sobre o consumo de leite de vaca. A indiferença dos produtores e dos consumidores em relação ao sofrimento das vacas e dos bezerros foi a motivação para a escritura do livro. Não se trata de um livro de nutrição, mas de investigação e reflexão sobre a ética de nos alimentarmos de leite, sobre a devastação ambiental do consumo de leite, e sobre os malefícios para a
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Universidade Estadual de Maringá
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saúde que o consumo traz. O livro tem 602 notas de rodapé que estão organizadas de forma que não quebram a cadência da leitura e orientam o leitor que quer se aprofundar mais nas questões levantadas. O índice remissivo tem mais de 500 verbetes e a consulta a eles é uma forma de entender a linguagem e organizar as ideias ligadas à libertação animal. Nos dez anos de pesquisa, a autora leu centenas de autores em inglês e baseou a pesquisa em dados científicos e em documentos de órgãos federais ligados à nutrição. O livro está organizado em cinco capítulos. O capítulo 1 , Galactoética – Sofrimento
animal e devastação ambiental , fala do sofrimento das vacas usadas para a extração de leite e dos filhotes delas, separados de suas mães assim que nascem porque o leite não é para eles, é para os humanos. Caso nasça uma fêmea, ela se tornará vaca leiteira. Caso nasça um macho, ele será confinado num ambiente escuro à base de uma dieta pobre em ferro para que desenvolva anemia e sua carne seja macia, a conhecida e cara “vitela”. As vacas desenvolvem mastite, dolorosa inflamação das glândulas mamárias em virtude do método mecânico de extração de leite, e laminite, doença vascular no interior da pata, o que causa muita dor. A laminite é decorrência do tipo de piso onde as vacas são criadas, que não tem a menor semelhança com o solo natural onde estariam, caso vivessem livres. As vacas vivem confinadas, comem um preparado artificial que as faz engordar no menor tempo possível, têm sucessivas crias para dar leite e assim até o fim das suas vidas, momento em que estarão tão fracas e exauridas que não servirão mais para dar leite e, então, serão abatidas para o aproveitamento de suas carnes. A passagem abaixo dá ideia do sofrimento das vacas e vitelos: Os bezerros não aproveitados pela indústria do leite, por serem machos, nem pela indústria de rações para animais de estimação, por não nascerem tão fracos ou deformados, e os que não nasceram tão fortes a ponto de interessar os produtores de gado de corte, são leiloados pela indústria da carne de vitelo, a partir do segundo dia do nascimento. O sofrimento da vaca, ao ser separada do recém-nascido, é algo que deve ser levado a sério por todo consumidor de leite e laticínios. Mas não o deve menos o sofrimento dos pequenos animais (p. 42)
No capítulo 2, Galactopoese – Do leite bom ao leite ruim há reflexões sobre os ingredientes não naturais do leite e dos laticínios, resultantes da interferência humana na dieta das vacas. A filósofa mostra pesquisas científicas com evidências de que o leite de vaca faz mal para a saúde dos bebês. O leite de uma espécie serve para os bebês daquela espécie. Quando termina a infância dos mamíferos, eles deixam de produzir a lactase, a enzima responsável por quebrar a lactose do leite e derivados. Os humanos deixam de
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produzir a lactase por volta dos quatro anos, o que significa que, agora, o organismo pode obter os nutrientes do leite materno no reino vegetal, ou seja, a natureza previu o desmame para todas as espécies de mamíferos, e o ser humano é a única espécie que não entendeu. Não há, no leite da vaca, nutrientes essenciais para a saúde humana que não possam ser encontrados em alimentos vegetais como tubérculos, raízes, nozes e folhas verdes. O leite apresenta grande presença de lactose, colesterol, gordura, proteína e cálcio que, quando consumidos além da conta, causam diversas doenças. E além desses ingredientes citados, outros fazem parte do leite: hormônios, pesticidas e pus. O capítulo 3, Galactogenia – Doenças e males associados ao consumo de leite
bovino, esclarece que a ingestão de leite é extremamente nociva para 85% dos indivíduos descendentes dos povos afro, árabe, judaico, para os nativos americanos e para 70% dos descendentes de caucasianos. Trata -se do percentual dos indivíduos que não produzem mais a lactase. E a ingestão de leite por um organismo que não produz lactase pode resultar em cólicas abdominais, gases, náusea, inchaço e diarreia. Portanto, “podemos imaginar quão danosa pode ser a política de forçar bebês e crianças a tomarem leite bovino em casa e na escola, sem levar em conta sua persistência, ou não, na produção de lactase” (p. 161) A alvura do leite indica pureza, saúde e quem se utiliza dele pensa estar ingerindo um alimento benéfico, mas não está, porque ele pode causar males diversos e graves como a anemia, a diabetes infantil, doenças cardíacas, cálculos renais, desnutrição, inflamações diversas, infertilidade nas mulheres, osteoporose, aterosclerose e muitos outros. A forma e o processo como a ingestão do leite acarretam as doenças são esclarecidos no livro. Os indivíduos que ainda produzem a lactase mesmo depois de adultos não serão beneficiados com a ingestão do leite simplesmente porque o leite não faz bem: “A proteína do leite de vaca é tão indigesta que chega a ficar parada no estômago humano por 60 minutos, sem que qualquer processo digestivo se inicie, como se o cérebro não conseguisse reconhecer a matéria alimentar, ou como se ele não se dispusesse a investir na digestão de algo tão maligno para a saúde humana” (p. 167). A autora atribui o consumo de leite à propaganda incentivada pelo governo de que o leite faz bem, quando as evidências indicam o contrário. No capítulo 4, Galactocracia – propaganda e enfrentamento , a autora explica os motivos que incentivam o consumo do leite. O leite é um negócio bastante rentável para os produtores. Nos Estados Unidos, para cada 50 litros de leite vendidos, o produtor paga 15 centavos para o Conselho de Propaganda de Laticínios. O valor investido, anualmente,
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é de mais de 200 milhões de dólares. Além disso, se o leite produzido não for consumido, o governo compra o excedente e, portanto, investir na propaganda sobre a necessidade do consumo é eficiente estratégia para evitar prejuízos e ter lucros: “o próprio governo acaba por ser o maior garoto- propaganda do consumo de leite e laticínios, pois tem nessa produção uma poderosa fonte de coleta de impostos” (p. 194). O lucro que o leite gera para governos e produtores está acima do interesse pela saúde da população. O cidadão desconhece os malefícios do leite, bem como desconhece o sofrimento animal que a produção de leite envolve. O texto é incisivo quando se refere ao costume de consumir leite e derivados: “Usando a metáfora de O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, podemos imaginar o consumo de laticínios como um costume seguido por todos, numa espécie de cegueira que nos atinge e contagia, levando -nos a passar por experiências dolorosas, até que sejam restabelecidas nossa autonomia mental e moral na questão da dieta” (p. 195). A autora cita autores que denunciam fraudes nas pesquisas sobre os benefícios do leite. Lembra que não há neutralidade científica quando se trata de negócios de grandes firmas e marcas de alimentos. Assim aconteceu com o cigarro por mais de 70 anos: enquanto cientistas provavam os malefícios do fumo, os laboratórios financiados pela indústria do tabaco afirmavam que o cigarro não trazia efeitos nocivos e não estava associado ao câncer. No capítulo 5, Galactoclastia - o fim da inocência , a autora reflete sobre a ética quanto à prática de se consumir leite. O sofrimento das vacas e dos filhotes e os malefícios do leite, abordados nos capítulos anteriores, implicam a iconoclastia do leite, ou seja, o mito de que o leite é necessário e puro, se desfaz. Os empresários da indústria leiteira, os políticos e a mídia definem a dieta das pessoas, dieta que não se preocupa com o tormento dos animais explorados e nem com a saúde do consumidor, mas com os lucros. Anúncios e propagandas sobre os alimentos fazem as pessoas acreditarem que esses alimentos fazem bem: Achamos que, se um novo alimento pode ser vendido, então ele não contém ingredientes venenosos. Enganamo-nos. Mas a maioria de nós descobre que viveu comendo o que, se fosse para o equilíbrio do metabolismo do próprio organismo, não deveria ter comido, quando recebe a confirmação de que está com câncer, diabetes, alergias, artrite, hipercolesterolemia, obesidade, esteatose, litíase renal ou biliar, aterosclerose, mal de Parkinson etc (p. 223)
Além dos males que o leite provoca para a saúde, trata -se de considerar a
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responsabilidade moral dos consumidores de leite com relação ao destino das vacas e dos bezerros. A autora lembra que é nosso dever tratar os animais não -humanos com a mesma consideração ética com que tratamos os seres humanos, pois, em primeiro lugar, somos todos animais. Animais não -humanos, assim como os humanos, são sencientes e autoconscientes, ou seja, sentem medo, dor, fome e têm percepção de si, do seu corpo, da sua família, têm capacidade para estabelecer relações de afeto. Não há desculpas morais que justifiquem a exploração dos animais quando se perde a inocência. A dieta abolicionista, ou seja, a dieta baseada em alimentos de origem vegetal é a forma de trazer benefícios para a saúde humana e a liberdade para os animais explorados pela nossa cultura especista, que considera os animais meros objetos para uso humano. O especismo é a lógica de que os animais só têm valor à medida que servem para os interesses humanos e a postura contrária, a abolicionista, entende que explorar e maltratar os corpos e as mentes de outros animais é tão moralmente condenável quanto maltratar humanos. Depois de Galactolatria, as pessoas que continuarem a explorar os animais não podem mais alegar inocência.
REFERÊNCIA Galactolatria: mau deleite: implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino. São José: Ecoânima, 2012.
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