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ISBN 978-85-02-19020-7
Bucci, Maria Paula Dallari Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públi púb licas cas / Maria M aria Paula Dallari Dallari Bucci. Bucci. – São Paulo : Saraiva, 2013. Bibliografia. 1. Administração pública 2. Administração pública - Bras Brasil il 3. 3. Planejamento Planejamento governamental gov ernamental 4. Políticas Políticas públi púb licas cas 5. Teoria jurídica I. Título. 12-15656 CDD-351
Índice Índice para catálo catá logo go sistemático: 1. Políticas públicas : Teoria jurídica : Administração pública 351
Diretor editorial Luiz Roberto Curia Gerente de produçã produçãoo e ditoria ditoriall Lígia Alves Editora Thaís de Camargo Rodrigues Produtora editorial Clarissa Boraschi Maria Preparação Preparação de originais Ana Cristina Garcia / Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan / Daniel Pavani Naveira Arte e diagram diagramação ação Cristina Aparecida Agudo de Freitas / Edson Colobone Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati / Sandra Garcia Cortés Serviços e ditoria ditoriais is Maria Cecília Coutinho Martins / Vinicius Asevedo Vieira Capa Mayara Enohata Produção gráfica Marli Rampim Produçã Produçãoo e letrônica Ro Comunicação
Data de de fechamento fe chamento da da edição: 29-5 -201 -20133
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A meu pai, Dalmo de Abreu Dallari, homenagem e agradecimento, nos seus 80 anos.
“A rigor, só se pode falar de desenvolvimento quando o homem dedica o seu potencial criativo à descoberta de si mesmo, enriquecendo o seu universo de valores. O desenvolvimento só é real quando a acumulação material leva à criação de valores adotados por importantes segmentos da comunidade.” Celso Furtado, VI Conferência François Perroux, Collège de France, Paris, 1994
“[...] estamos entrando em um tempo histórico, em que está se tornando gigante o papel dos uristas. Os juristas, ou seja, aqueles que conhecem o direito, os proprietários de um saber técnico recioso e indispensável, podem ser mercadores que exploram vergonhosamente o seu saber e o colocam à disposição de remuneradores potentados econômicos, se transformando de proprietários de um saber a servos de um poder. [...] Hoje, sem desprezar a vantagem encontrada pela inteligente exegese de um texto respeitável, existe a necessidade de um intelectual tecnicamente preparado, mas também munido com sensibilidade histórica, que não se satisfaça em procurar normas confeccionadas do alto e, preguiçosamente, se coloque à sombra do seu abrigo; é necessário que este mesmo intelectual preparado se sinta envolvido no processo de produção do direito, não por arrogância ou presunção, mas simplesmente porque é a ele que compete ler os sinais do tempo, acompanhar flexivelmente o movimento e a mutação rapidíssimos, constatar o que a evolução gerou, enunciar os princípios reguladores [...]” Paolo Grossi
AGRADECIMENTOS Este livro tem origem na tese que apresentei em concurso de Livre-Docência em Direito do Estado, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em março de 2012. A arguição da Comissão Julgadora, composta pelos Professores Enrique Ricardo Lewandowsky (presidente), Virgílio Afonso da Silva, Maria Garcia, Clémerson Merlin Clève e Fernando Papaterra Limongi, com alto nível e aprovação final, pode ser entendida como expressão de reconhecimento institucional da pertinência da abordagem e suas potencialidades analíticas. Meu ingresso na carreira docente da USP, após aprovação em concurso público, em janeiro de 2013, por unanimidade das indicações da banca, presidida novamente pelo Professor Lewandowsky e integrada pelos Professores Alexandre de Moraes, Maristela Basso, Elza Cunha Boiteux e Claudio Bueno de Godoy, reforça esse entendimento. Começo agradecendo a cada um desses eminentes professores. O texto que se apresenta é o desenvolvimento da versão original, mas consolida, na verdade, uma trajetória de pesquisa e profissional orientada desde o início pela combinação do trabalho acadêmico com a experiência da vida pública e suas formas jurídicas concretizadas. Nesse percurso, o espaço profissional tem sido um grande laboratório das reflexões produzidas no contexto universitário, ambos alimentando-se reciprocamente. Graduei-me às vésperas da promulgação da Constituição de 1988, com grande interesse no direito concretamente aplicado, que depois vim a compreender como o problema da (in)efetividade jurídica, tema que até hoje perturba e desafia. No momento da constituinte, a ebulição política do país era grande e a tônica estava na remoção das velhas estruturas do autoritarismo, mais do que na construção das novas. Nos anos que se seguiram, assistimos a um lento, embora contínuo e persistente, esforço de reorganização urídica da sociedade e do Estado brasileiros, que alcançou e ainda alcança o direito público em suas várias ramificações – Constitucional, Administrativo, Econômico, Ambiental, Urbanístico etc. O objeto que elegi como tema de pesquisa, as relações entre o direito e as políticas públicas – apresentado pelo Professor Fábio Konder Comparato na disciplina Direito do Desenvolvimento, no doutorado, em 1996 –, vêm se disseminando cada vez mais, por meio dos programas de ação governamental, fórmulas de articulação de iniciativas de governos, compostas de medidas políticas, econômicas e de gestão pública, organizadas sobre uma base jurídica, que disciplina os impulsos inovadores do poder público e o entrelaçamento destes com as estruturas e funções permanentes do Estado. Tendo partido da crítica das limitações do Direito Administrativo em face da realidade social e política brasileira ( Direito Administrativo e Políticas Públicas, Saraiva, 2002) – disciplina cuja prática tradicionalmente se encerrava no direito positivo estrito, desconectado dos fatores que distanciavam o conjunto normativo das práticas estatais e sociais mais comuns –, percebi a necessidade de alargar o ângulo de visão, para examinar o fenômeno do Estado de maneira mais abrangente, considerando as variáveis próprias da dinâmica política. O desenvolvimento da abordagem que relaciona direito e políticas públicas fez-se em grande medida na atividade docente, com a oferta de disciplinas, em formatos e para públicos distintos. No Mestrado em Direito da Universidade Católica de Santos (UniSantos), ofereci pela primeira vez a disciplina Direito e Políticas Públicas, em 2002, ocasião em que coordenei seminário de pesquisa objetivando uma conceituação mais precisa das políticas públicas como objeto de análise jurídica, que permitisse a
compreensão estruturada de seus processos de formação e implementação, o que resultou na obra coletiva Políticas Públicas: Reflexões sobre o Conceito Jurídico (Saraiva, 2006). Um acordo que se estabeleceu então referia-se à rejeição ao propósito de fechar a nova área em um “direito das políticas públicas” (conforme alguns sugeriam), assumindo-se o caráter interdisciplinar da noção como premissa de uma abordagem cujo sentido é contribuir para maior articulação e integração de visões da ação governamental, conformada pelo direito – “As políticas públicas não são, portanto, categoria definida e instituída pelo direito, mas arranjos complexos, típicos da atividade político-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico”. Em 2007 e 2008, ofereci a disciplina Direito e Políticas Públicas, no formato de oficina, no curso de graduação na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, experiência que confirmo na prática didática aquilo que a atividade de pesquisa indicava, isto é, a necessidade de estruturação de um método, sem o qual não seria possível a construção do instrumental teórico e prático daquela abordagem e, em consequência, a evolução dessa nova forma de conhecimento do fenômeno governamental. O problema metodológico, dei-me conta posteriormente, também foi estruturante da Teoria do Estado para a compreensão das relações entre a política e o direito, centrada no Estado e no governo. Passei a buscar fundamentos que pudessem apoiar o método, investigando possíveis conexões entre os principais campos de pertinência temática das políticas públicas, Direito, Ciência Política e Administração Pública, tais como as categorias instituição e processo, com tradição em todos eles. A necessidade de fixar algumas premissas ficou evidente e passei a adotar as seguintes: i) a decisão governamental como problema central da análise jurídica de políticas públicas; ii) o enfoque analítico privilegiando a ação racional, estratégica e em escala ampla; e iii) foco primordial no aspecto jurídicoinstitucional, com olhar prospectivo, isto é, nas formas e nos procedimentos necessários para traduzir os fatores políticos, produzindo ação governamental democrática e a longo prazo, isto é, jurídica e socialmente sustentada. A pesquisa voltou-se, então, ao governo como instituição jurídica, investigando as condições necessárias para a institucionalização das políticas públicas, com a incorporação da processualidade urídica ao funcionamento do Estado, num contexto democrático, o que identifico, neste livro, como fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. Agradeço aos vários amigos e colegas que dividiram preocupações e debates ao longo desse percurso acadêmico; entre eles, Diogo Coutinho, de quem tomei emprestado a noção de “tecnologia jurídica”, João Paulo Bachur, Ana Maria Nusdeo, Carlos Alberto de Salles, Mario Schapiro, Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, Gilberto Bercovici, Alessandro Octaviani, Ronaldo Porto Macedo Jr., Ana Cristina Braga Martes, Ada Pellegrini Grinover, José Reinaldo Lima Lopes, Floriano de Azevedo Marques Neto, Ingo Sarlet, Daniel Sarmento, Fernando Herren Fernandes Aguillar, Claudio Braga, Maria Garcia, Clarice Seixas Duarte, José Francisco Siqueira Neto, Oscar Vilhena Vieira, Luís Fernando Massonetto, Luiz Gustavo Bambini de Assis, Carlos Guilherme Mota, Carlos Frederico Ramos de Jesus, além dos amigos de Brasília, Roberto Freitas, Marcelo Varella e tantos outros. A trajetória profissional na Administração Pública – e dentro desta, de maneira especial, a experiência no governo federal – ofereceu o campo de prática que transformou definitivamente a reflexão sobre as políticas públicas e suas injunções jurídicas. O período em que servi a Administração Pública Federal, desde 2003 e pelos oito anos seguintes, foi muito marcante tanto como vivência profissional, como para a compreensão das particularidades das relações entre a política e o direito no Brasil. As
lições aprendidas no contato com as dificuldades administrativas, as idiossincrasias da atuação parlamentar, as demandas de Prefeitos Municipais e grupos da sociedade civil, enfim, o vasto leque de componentes que cercam o governo federal (ora de maneira institucional e formalizada, ora em práticas e circuitos sedimentados pelo costume) indicaram que o amadurecimento da democracia depende do diálogo do direito com os vários níveis da política – desde as macrodireções, até os detalhes que as concretizam, fazendo também o caminho inverso, isto é, os microprocedimentos influindo fortemente sobre os rumos reais da política. Na colaboração docente com a ENAP (Escola Nacional de Administração Pública, autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, em Brasília, que oferece cursos de formação e de especialização aos quadros do governo federal) e com Escolas do Ministério Público e da Advocacia Pública, federais e estaduais, nessa época, tomei contato com outras visões sobre a área pública, que abasteceram minhas elucubrações teóricas, constatando a distância que existe entre a cultura jurídica formal e as demandas do funcionamento do Estado, especialmente aquelas voltadas a elevar o patamar de civilidade, pela provisão de direitos sociais. As dificuldades de comunicação dos profissionais do direito com os gestores públicos são recíprocas; assim como nós não conseguimos explicar o sentido de algumas limitações legais, também estes têm problemas em se fazer entender pela área jurídica, o que pode explicar o quanto ainda há por fazer para a plena aderência de princípios jurídicos – que na formação em direito consideram-se triviais, posto que hauridos nas aspirações da sociedade – aos usos da Administração Pública. No CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica, autarquia ligada ao Ministério da Justiça com atribuição sobre a concorrência econômica), tive um campo de demonstração de minhas observações iniciais em relação à fragilidade das estruturas administrativas públicas no Brasil do início do século XXI. A despeito de ser um órgão de funções “judicantes administrativas”, que apreciava atos de concentração de empresas com faturamento superior a R$ 400 milhões anuais (“tribunal de grandes causas”, segundo um ex-Conselheiro), o CADE não tinha então quadro próprio de servidores. À frente da Procuradoria-Geral (2003-2005), dediquei-me a reorientar os trabalhos do órgão jurídico, no sentido de garantir a execução das decisões do Conselho, inclusive judicialmente. Do ponto de vista teóricourídico, a experiência acentuou a relevância da processualidade das decisões estatais; tanto era importante o processo judicial de execução das decisões judiciais, como o processo administrativo estrito que levava à prolação destas. Na verdade, o sucesso das medidas judiciais de defesa das decisões do Conselho, especialmente no caso da tutela de urgência, que era sistematicamente requerida pelas empresas afetadas, dependia muito da correção e clareza do processo administrativo. A capacidade de explicar e fazer compreender cada uma dessas etapas pelos magistrados e membros do Ministério Público envolvidos influía muito sobre as decisões judiciais. Esse aprendizado restou como mais uma lição acerca da condição atual do Estado brasileiro, que reclama um regramento claro e compreensível como base das decisões que repercutem sobre a esfera de direitos de pessoas e empresas. Mais do que imposição da legalidade, essa “lealdade regulatória” é imprescindível para a legitimidade das decisões estatais, fundamental para a estruturação do Estado em bases democráticas. No Ministério da Educação (MEC), onde ingressei a convite do então Ministro Fernando Haddad, inicialmente como Consultora Jurídica (2005-2008) e depois como Secretária de Educação Superior (SESU, 2009-2010), vivi experiência de gestão profundamente inovadora, que combinava a centralidade de uma base jurídica renovada com uma postura muito ativa do Poder Público, radicalizando racionalidade e transparência. Essas condições definiam novos termos para um diálogo político, voltado à construção de consensos sobre uma plataforma de princípios claramente orientada ao interesse público. A reestruturação da base jurídico-institucional da educação brasileira efetuada nesse período, que
enfrentou temas fundamentais, com uma nova pactuação de deveres, responsabilidades e direitos, deverá permanecer por muitos anos. Participei da configuração, elaboração e execução de diversas políticas públicas educacionais, assessorando na concepção de normas e decisões. Na condição de Secretária da SESU, pude atuar para o fortalecimento das universidades federais e do princípio constitucional da autonomia universitária, tema que me era familiar em virtude de minha atividade na Procuradoria da Universidade de São Paulo, em que atuara desde 1992, a convite da Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Mas o trabalho que desenvolvi com mais profundidade nesse período foi a elaboração e implementação do que veio a ser conhecido como “marco regulatório da educação superior”, isto é, o esforço para a superação da debilidade do controle estatal, responsável, em parte, pela baixa qualidade da educação superior no país. Tratou-se da regulamentação da Lei do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), Lei n. 10.861, de 2004, por meio do Decreto n. 5.773, de 2006, e da Portaria Normativa MEC n. 40, de 2007, visando realizar a exigência de qualidade de instituições de educação superior, especialmente privadas, que ampliaram acentuadamente suas atividades no país desde os anos 1990. Os textos básicos dessas duas últimas normas foram redigidos por mim, ao longo de vários meses, em sucessivas rodadas, que buscavam obter e expressar o maior gra possível de consenso e articulação entre os vários participantes do processo, para combinar o aspecto substantivo das decisões com o aprimoramento da técnica jurídica que lhes conferiria sentido e densidade social. Algumas inovações jurídicas foram responsáveis pelo sucesso de decisões de maior exigência de qualidade em face das instituições, destacando-se a medida cautelar administrativa, cujo objeto era a suspensão do vestibular, nas situações mais críticas, ou a redução temporária de vagas, nas de média gravidade, concomitantemente à celebração de medidas de ajuste, com prazo máximo de um ano. Também é exemplo dessa abordagem a utilização de disposições transitórias – expressão do direito intertemporal – como forma de reduzir as situações de desconformidade com a regra, induzindo a adequação às vias legais oferecidas, o que desestimulava o combate ao regramento em si, que era de praxe no setor, a cada sinalização de maior rigor feita pelo Poder Público. As decisões judiciais passaram a reconhecer reiteradamente a legalidade dos procedimentos adotados pelo MEC, o que atesta a reversão do quadro de precariedade regulatória do período anterior, caracterizado por iniciativas espasmódicas de fiscalização pelo MEC, sistematicamente anuladas pela Justiça, em vista dos mais variados defeitos jurídicos. Esse resultado – que era pré-condição para uma política séria de ampliação de oferta e democratização do acesso à educação superior, também levada a cabo no período –, só foi possível dada a participação decisiva, em colegiados decisórios e comissões técnicas, de nomes relevantes no cenário jurídico nacional, tais como Celso Fernandes Campilongo, Ana Paula de Barcellos, José Garcez Ghirardi, Cláudio Pereira de Souza Neto, Ademar Pereira, Sandro Alex de Souza Simões, Eid Badr, entre outros, além de personalidades de outras áreas, como o Professor Adib Jatene, que conduziu uma comissão de notáveis na supervisão dos cursos de medicina, luta de uma vida pela elevação da qualidade do pessoal em saúde no Brasil. Na estruturação do marco regulatório da educação superior, optou-se por organizar a atividade estatal de forma inteiramente eletrônica, sem papel, aproveitando o entusiasmo que havia no Ministério pelas tecnologias de informação e comunicação, patrocinadas em grande medida pelo Secretário Executivo José Henrique Paim Fernandes e sua equipe. O processo de trabalho das secretarias e órgãos do MEC em matéria de regulação foi inteiramente reformulado, em consonância com a nova base jurídica, projetandose sobre as funções conexas, como a avaliação, os programas de bolsas e financiamento estudantil e a coleta de dados para o censo da educação superior, o que mereceu premiação do Ministério do Planejamento. O acompanhamento das instituições e dos cursos passaria a se orientar por uma lógica
sistêmica, baseada na solicitação objetiva e econômica de informações e na redução de rotinas ao essencial, de tal maneira que o Poder Público pudesse analisar com critério os dados apresentados, extraindo decisões consistentes, tanto do ponto de vista processual, como substantivamente, isto é, sem perder de vista o objetivo último de melhoria da educação superior, em benefício dos estudantes e da sociedade. As tecnologias de informatização e comunicação não são apenas ferramentas a serviço de maior celeridade administrativa. Muito mais do que isso, podem ser instrumentos para um salto evolutivo que proporcione a passagem de segmentos atrasados e pouco transparentes do Estado para uma cultura de racionalidade e organização das informações do governo à disposição dos cidadãos, verdadeiramente inserida na vida democrática. A implantação do governo da informação, mais do que uma adaptação técnica, deve ser vista como uma oportunidade que se abre de repactuação política, o que se combina, no Brasil, com a demanda por uma nova tecnologia jurídica governamental, baseada nas políticas públicas e na ampliação da escala de atuação que elas significam. Pelo que representou, em minha trajetória pessoal, a oportunidade de participar daquela experiência no MEC, registro um agradecimento especial a Fernando Haddad e também a Ana Estela Haddad, cuja amizade, compartilhada nos almoços nos domingos de Brasília e em tanto trabalho que fizemos pela educação e pela saúde, ficou guardada. Agradeço também a Jeanne Liliane Marlene Michel, Maria do Patrocínio Tenório Nunes, José Rubens Rebellato, André Lázaro, Carlos Eduardo Bielschowsky, Jorge Guimarães, Paulo Wollinger, Paula Branco de Mello, Carolina Gabbas Stucchi, Nair Rubia Nascimento Baptista, Mauro César Santiago Chaves, Simone Horta Andrade, Thiago Leitão, Adriana Weska, Marcos Aurélio Brito, Valéria Grilanda, Rogério Guimarães, Samuel Feliciano, Edson Cáceres, Murilo Camargo, Marta Abramo, Reynaldo Fernandes, Heloísa Tomellin Coelho, Renata Dantas, Maria Neusa Lima Pereira, Cleunice Matos Rehem, Celso Ribeiro de Araújo e Cléucio Santos Nunes. E ainda Helena Kerr do Amaral, Glauco Arbix, Elizabeth Farina, Roberto Pffeifer, Fernando de Oliveira Marques, Thompson Andrade, Cleveland Prates, Ricardo Cueva, Luiz Carlos Delorme Prado, Gilvandro Coelho de Araújo, Karla Margarida Santos e Adriana Pereira de Mendonça. As pessoas aqui citadas, assim como muitas outras, involuntariamente omitidas, partilharam me caminho em algum ponto que levou à realização deste trabalho. A todas manifesto a gratidão por se apoio e amizade, ressalvando que a nenhuma delas cabe, evidentemente, responsabilidade por qualquer equívoco ou incorreção que o texto possa conter. Por fim, mas não menos importante, é o papel de minha família, que acompanha, de perto ou a distância, esse percurso, “compondo uma demonstração de cumplicidade e de afeto efetivamente marcantes”, conforme anotou o Prof. Clèmerson Merlin Clève. Agradeço a minha irmandade, Pedro, Martha Maria, Bruno, Mônica e Renata e Maria Beatriz e também a Sueli, Luciana, Paulo, Eduardo Suplicy, Cristiana Gaal, Vera Bohomoletz Henriques e meus tios queridos Adilson Dallari e Ariadna Bohomoletz Gaal. E ao Eugênio, com quem casei e recasei e assim confirmei parceiro de vida, e a nossos filhos, Mário e Martha, que cresceram no meio das teses e dos trabalhos de sua mãe, e hoje universitários podem compreender o significado vital dessa escolha. O resultado de todo o meu trabalho certamente não seria o mesmo sem a inspiração animadora e constante de meu pai, Dalmo de Abreu Dallari. A elaboração do livro e a preparação para os concursos me deram oportunidade de ler e reler vários de seus trabalhos e perceber quanto o meu caminho procuro se espelhar no seu. Ao refazer parte de seu percurso intelectual, descobri algumas afinidades além
daquelas mais óbvias, como o vigor na defesa da justiça e paz, que o fizeram mais conhecido. O espírito público verdadeiro e o equilíbrio na apresentação do problema da organização do Estado, sempre em conjunto com os temas da liberdade e da igualdade, fazem de sua obra ainda hoje uma introdução indispensável a quem queira compreender as relações entre política e direito. Este livro não poderia ser dedicado a mais ninguém. São Paulo, 29 de março de 2013.
SUMÁRIO Agradecimentos Introdução I – Governo, desenvolvimento e políticas públicas II – Políticas públicas: “tecnologia jurídica governamental” para a democracia III – O governo nos vários planos de aproximação: macro, micro e mesoinstitucional
1.
PLANO MACROINSTITUCIONAL: GOVERNO. POLÍTICA ( POLITY ) X POLÍTICAS PÚBLICAS (POLICIES) 1.1 Governo como motor da política e sua progressiva juridificação. Paradoxo governo e Estado: mudança e permanência no exercício do poder político 1.2 As noções de governo, Estado e Administração Pública a) Estado b) Administração Pública c) Governo 1.3 O governo no contexto da separação de poderes 1.4 Sistemas de governo: presidencialismo e parlamentarismo Presidencialismo: governo como Poder Executivo Parlamentarismo: o gabinete no regime de colaboração entre poderes 1.5 Formas de governo: a democracia contemporânea como discurso único e seus múltiplos sentidos a) Governo e política: o poder de todos no núcleo conceitual da democracia política b) Governo e economia: capital, trabalho e meio ambiente na democracia econômica e social c) Governo e direito: constitucionalismo, judicialização e a “democracia dos direitos” d) Governo e administração: “governança” democrática 1.6 A policy analisis e a abordagem interdisciplinar do fenômeno do governo
2.
PLANO MICROINSTITUCIONAL: AÇÃO GOVERNAMENTAL COMO NÚCLEO DE SENTIDO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. A CATEGORIA PROCESSO E A PERSPECTIVA SUBJETIVA DO GOVERNO. 2.1 Ação governamental processualmente estruturada
a) Sentidos jurídicos dos termos processo e procedimento. Processo como relação jurídica. Subjetivação b) Processualidade em sentido amplo. O processo visto pela sociologia do direito A valorização do processo e a teoria da argumentação jurídica c) Formação do direito e democracia processual. d) Contraditório em sentido amplo. Multiplicidade de interesses e formas jurídicas de mediação. e) O tempo como variável do processo de decisão 2.2 Os vários processos, juridicamente disciplinados, que concretizam a ação governamental a) Processo administrativo e seus contextos institucionais A relação jurídica administrativa. Decisão e distribuição dos ônus decisórios. b) Processo legislativo e iniciativa governamental. c) Processos de alocação de meios para a ação governamental. Arenas e temporalidades Processo orçamentário. Elaboração e execução do orçamento. A dificuldade de gastar o recurso público. Emendas parlamentares, limites e contingenciamento Desconexão dos processos legislativo e orçamentário. O problema do crescimento inercial das despesas continuadas obrigatórias e a despolitização involuntária do orçamento Planejamento: indução à ação coordenada de longo prazo d) Processo judicial: “processualização” dos parâmetros de controle das políticas públicas e as condições para os “diálogos institucionais” e) Processo político-eleitoral e influências recíprocas sobre o processo governamental
3. PLANO
MESOINSTITUCIONAL: ARRANJOS INSTITUCIONAIS COMO ORGANIZAÇÃO SISTEMÁTICA DA POLÍTICA PÚBLICA. A CATEGORIA INSTITUIÇÃO E A PERSPECTIVA OBJETIVA DO GOVERNO 3.1 Instituições e institucionalismo jurídico a) O ordenamento jurídico de Santi Romano: objetivação e organização b) Hauriou: ideia-diretriz e poder organizado c) A contribuição das teorias institucionalistas à compreensão jurídica das políticas públicas. 3.2 Formação jurídica dos arranjos institucionais, na lógica de um “regime de efeitos”. a) Arranjos e modelos institucionais. b) Formação do direito na base da política pública c) Organização. Articulação e caráter sistemático d) Ideia-diretriz e unidade da ação e) Regime de efeitos. Efetividade e sustentabilidade
f) Objetivação. A constituição da autoridade pública como entrelaçamento do político e jurídico A inefetividade jurídica reiterada e o problema da “desconfirmação” da autoridade. Mecanismos jurídicos de restabelecimento da autoridade num contexto de descumprimento: ônus sancionatório e medidas de ajustamento Regime de transição como efeito particular. Aplicação do direito intertemporal. Regime de responsabilidade projetada no tempo g) Alocação de meios públicos e posições subjetivas na base jurídica do arranjo institucional
4. À GUISA DE CONCLUSÃO. DIRETRIZES PARA UM MÉTODO JURÍDICO DE ANÁLISE E CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. 4.1 Método como recorte epistemológico: ordenação dos caminhos de conhecimento e intervenção 4.2 Método como técnica. Repertórios estruturados de estudos de casos a) Modelos analíticos e experiências. Dedução e indução b) “Famílias” ou casotecas. Método comparativo: isolamento e correlação de variáveis jurídicas c) Representação do conhecimento: categorias e referências. Desenvolvimento colaborativo: a questão da escala.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO I – GOVERNO, DESENVOLVIMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Pode-se marcar os anos 1990 como o período em que a temática das políticas públicas ganha presença no universo do direito no Brasil, aspirando à quitação da dívida social, pela realização dos direitos sociais, com o tratamento ambicioso e generoso que lhes conferia a Constituição Federal de 1988. Não bastava a democracia política, do voto, que só viria a ser plenamente reconquistada nas eleições presidenciais de 1989, dado o insucesso do movimento pelas eleições diretas, em 1984. O país reclamava que ela fosse completada pela democracia econômica e social. Logo após a redemocratização, quando o movimento social dominava a cena política, havia certa indistinção sobre os papéis específicos de seus próprios agentes e do governo em relação ao que seria necessário para realizar o plano contido na Constituição de 1988. A história recente explicava, em parte, esse obscurecimento, pois, recém-saídos do período autoritário, não considerávamos o governo entre as categorias mentais disponíveis para organizar a ação capaz de realizar a democracia. A perda de legitimidade do período autoritário cobrava um preço também no campo epistemológico. O governo eram “os outros”. No entanto, restava o desafio de elevar o patamar civilizatório da sociedade brasileira e com ele as questões econômicas, administrativas, e também jurídicas, necessárias para a tarefa de generalizar a provisão dos direitos sociais. Certamente não seria possível nos anos 1990, como não é hoje, compreender e enfrentar as injunções necessárias para oferecer educação pública ou saúde universais e de qualidade para milhões de brasileiros, sem considerar, de forma articulada, as variáveis jurídicas, da organização política, da configuração social em cada lugar, com sua história própria, a existência o inexistência do corpo de funcionários públicos para realizar os serviços implícitos naquela política, o as alternativas de delegação a particulares, sob regulação do Poder Público, enfim, a multiplicidade de elementos associados à expressão política pública. Esses desafios governamentais, aliás, impunham uma nova visão não apenas às demandas sociais, mas a todas as formas e arranjos necessários para a produção e o desenvolvimento da economia, com a participação de saberes e ações de múltiplas ordens. No processo de reconstrução do Estado brasileiro, com a consolidação da democracia, que se segue a duas décadas de vigência da Constituição de 1988, e a estabilização econômica, que restituiu ao país a possibilidade de planejamento, há uma demanda por instituições (que vai muito além de “regras do jogo que tornem previsíveis os comportamentos num ambiente de negócios”, defendidas pelo neoinstitucionalismo econômico). Não basta a existência de regras claras, autoridades confiáveis, Poder Judiciário efetivamente atuante. A organização da vida democrática depende, entre outras coisas, do financiamento da infraestrutura e de todos os dispêndios necessários para as “tarefas civilizatórias” e, além dessas, da dinamização da atividade produtiva e criadora como um objetivo em si. O desenvolvimentismo do período inicial da Comissão de Economia para a América Latina (CEPAL), na década de 1950, representou um alento para a América Latina, na condução de uma reflexão autônoma sobre os caminhos possíveis para a saída da condição de subdesenvolvimento. Naquele momento, havia um desafio claramente posto no horizonte, o problema da industrialização, muito dificultado em vista da falta de acumulação primitiva de capital nacional ou investimentos estrangeiros suficientes para a arrancada inicial da instalação do parque fabril. Isso acabou por ocorrer no Brasil nos anos 1970,
durante os governos militares, legatários da formação de um pensamento nacional voltado à ação nas duas décadas anteriores, posto em prática nas experiências planejadoras do fim dos anos 1950 e da década de 60. O desenvolvimentismo trouxe ao cenário público instrumentos de transformação institucional e econômica, experimentados sob a luz da teoria keynesiana, como o planejamento e as empresas estatais. Com isso, criava condições para superar as limitações da base social do subdesenvolvimento e apontava a possibilidade de uma inserção autônoma do Brasil na economia mundial, superando a sua condição de economia periférica1. O que há de novo, com a centralidade do direito relegitimada pela Constituição democrática, é a compreensão de que os instrumentos para a transformação das estruturas se ampliaram muito. Com isso, os países em desenvolvimento têm à disposição modos particulares de articulação da economia e da sociedade com o direito, seja pela atividade planejadora, seja pelos mecanismos de participação do Estado, fomento e incentivo, que se refinaram e se tornaram mais complexos e diversificados. O problema não é apenas saber qual o papel do Estado num país já não tão periférico como no passado, mas apontar os modos de sua atuação para a realização bem-sucedida dos objetivos democraticamente escolhidos. O mundo vive um momento de mudança de antigos paradigmas. Com a ascensão econômica, no cenário mundial, dos chamados BRICS2, que passam a exercer influência sobre a economia e a política mundiais, começa a fazer sentido refletir em termos de um novo desenvolvimentismo. Cresce a participação relativa dos Estados emergentes na economia mundial, com destaque para a China3, que pela primeira vez oferece um contrapeso real ao poder econômico dos Estados Unidos. Diferentemente do que ocorria no passado, esse impulso tem correspondido a uma evolução da relação entre as nações, com um peso político não desprezível dos emergentes nos foros internacionais. Os países emergentes tornam-se, pelo menos em parte, destino do capital. Mesmo ainda distantes de um protagonismo pleno, no plano político internacional, é possível um novo equilíbrio de forças, que, por sua vez, reforça tendências internas favoráveis à modernização e ao desenvolvimento. Essa mudança indica a renovação de um papel ativo para o Estado, em termos distintos do que propalava a corrente dominante no final do século XX. Além disso, não resta dúvida de que a própria situação econômica mundial, decorrente, em grande medida, de movimentos de capitais incontidos por barreiras regulatórias, impele o pêndulo de volta para um papel mais ativo tanto dos Estados nacionais como das organizações internacionais oficiais. Se num cenário de demanda por capital o papel planejador e organizador do Estado era central, no cenário de disponibilidade de capital, também o é. A estruturação institucional do país, no âmbito estrito do Estado, assim como no campo das atividades empresariais e sociais privadas, pode ser o elemento que faz a diferença entre a evolução, com ganho social e inclusão, e a estagnação. Isso demonstra a atualidade da reflexão desenvolvimentista, especialmente quanto à compreensão de que a reprodução das condições que impedem o desenvolvimento não é inevitável e pode ser enfrentada com um movimento próprio, de crescimento combinado com a modificação das estruturas que produzem os desequilíbrios sociais e econômicos4. A atuação dos Estados e governos das nações emergentes é relevante no percurso que leva ao desenvolvimento. Como advertia Stuart Mill: “As funções peculiares ao governo não são fixas, mas diversas em diferentes estados da sociedade – muito mais extensas em estado atrasado do que em um desenvolvido” 5. A ascensão de um Estado emergente ao patamar de Estado desenvolvido, vivendo plenamente a democracia, reclama uma cultura política e social fortemente entrelaçada com práticas urídicas efetivas e progressivamente institucionalizadas.
Embora a geografia no “novo desenvolvimento” abranja novos atores estatais, os padrões jurídicoinstitucionais dos aspirantes ao pleno desenvolvimento, sob condições democráticas, têm como inspiração a tradição formada nos países centrais desenvolvidos. Nas democracias jovens, ou naquelas que aspiram a essa condição, a primeira providência é implantar as regras básicas do Estado de direito e as condições essenciais da igualdade eleitoral, para que a disputa de eleições corretas e não fraudulentas, sem manipulação da comunicação, seja capaz de superar governos autoritários e a dominação de oligarquias. O regime de legalidade no exercício do poder, nesse quadro, como naqueles que o precederam na formação do Estado moderno, é indispensável à implantação completa da democracia. Nesse contexto, o papel da política segue paralelo ao do direito. Trata-se de conter a força autoritária de pequenos grupos e dividir o exercício do poder com o conjunto da sociedade. As estruturas da desigualdade podem ser, se não modificadas, bastante perturbadas na sua inércia conservadora, mediante processos jurídico-institucionais bem articulados. O Brasil é um país com abundância de recursos minerais, terra aproveitável para agricultura, recursos hídricos, sem histórico de conflitos étnicos ou religiosos, ou fatores desse gênero de desagregação social, com exceção da desigualdade social e econômica, enraizada na longa e persistente história da escravidão e sua obra, na expressão de Joaquim Nabuco. A condição de atraso e pobreza não pode ser tomada como uma condenação, mas encarada como problema que pode ser superado, na perspectiva da ação dos governos e da sociedade, no limiar de um período de crescimento e desenvolvimento que permite acreditar na sustentabilidade das conquistas sociais e dos avanços institucionais. O desafio é não repetir trajetórias do passado, em que esse movimento se fez em detrimento do meio ambiente e da igualdade social, deixando para trás enormes contingentes de pessoas, que por si ou seus sucessores não usufruíram dos benefícios do enriquecimento das nações. Embora o nível de riqueza no mundo seja inédito, nunca foram tão acentuadas as desigualdades e as privações, para um grande contingente da população mundial6. O cenário social do novo desenvolvimento é animado pela grande renovação social e cultural associada à mudança no papel das mulheres, desdobramento da revolução sexual dos anos 1960. O aumento da escolaridade e da participação do gênero em todos os escalões do mundo do trabalho e suas consequências demográficas, com a redução global da taxa de fecundidade, coincide com a maior presença da liderança feminina em movimentos da sociedade e da cultura e a ascensão das mulheres ao poder, de modo lento, mas persistente, em vários lugares do mundo. Começam a ocorrer alterações de estruturas simbólicas, como a representação da família, admitindo-se que ela figure como responsável pelo grupo familiar em algumas políticas sociais, segundo modelo adotado por organizações internacionais, com base em evidências empíricas de eficácia do gasto. Essas alterações tendem a repercutir sobre o funcionamento do Estado e do governo, entre outros aspectos, reclamando maior eficiência das políticas sociais. A presença das mulheres em papéis oficiais de chefia tenderá a produzir ambientes e relações mais marcados pela cultura do diálogo que da beligerância. É pouco provável que este século siga legitimando os valores da superioridade bélica, representados por monumentos a campanhas militares, que ainda enfeitam alguns destinos turísticos visitados na Europa, como o Arco do Triunfo, em Paris, entre outros. Outro ponto de profunda mudança social, a atingir também o fenômeno da política institucionalizada, é a “revolução da informação e da comunicação”, que se instala com o uso, em grande escala, de computadores pessoais e o advento da internet, a partir da década de 1990, cuja disseminação em massa, intensificada com a expansão das comunicações por telefonia celular e outros meios, marca o alvorecer do século XXI. Acelera-se o tempo das relações sociais. Como não poderia deixar de ser, essa tecnologia afeta atual e potencialmente a vida dos governos,
especialmente no que toca à informação, extraordinário instrumento de controle do poder, verdadeira arma de poder social. Para o funcionamento do Estado, nos países em desenvolvimento, a massificação das tecnologias da informação e comunicação (TIC) deve ser vista como oportunidade para uma rápida transição a um novo paradigma. Partindo de uma situação de grande irracionalidade, corrupção e cultura de desorganização, a possibilidade de saltos qualitativos, com a adoção de algumas medidas estratégicas, é maior, se comparada à possibilidade de evolução das democracias maduras nesse sentido7. Exatamente porque se trata de Estados ainda carentes de uma cultura burocrática estabelecida, no sentido weberiano, regida por impessoalidade e eficiência, a informatização em grande escala permite atingir um novo patamar de comunicação, racionalidade e economia de meios, num intervalo de tempo muito mais curto que o despendido pelos países desenvolvidos, que o fizeram ao longo de décadas. Não é o caso, evidentemente, de traduzir para a linguagem e os métodos das TIC os procedimentos existentes, os quais resultam, em sua maioria, da colagem de medidas fragmentadas e irracionais, geradas pela premência e improviso e cristalizadas ao longo do tempo. Trata-se, ao contrário, da oportunidade de repensar estruturas e modos de atuação, segundo uma nova racionalidade democrática, inteiramente permeada pelas ideias de transparência, uso inteligente dos recursos e alcance social, que podem ser concebidas e implementadas de um passo8. Além disso, a velocidade com que vêm evoluindo as TIC, com o dinamismo dessas formas sociais, alimenta com um salutar sentido de urgência e inovação a vida política de um país que modifica muito morosa e gradualmente seu panorama institucional, pano de fundo de exclusão social e conformismo. II – POLÍTICAS PÚBLICAS: “TECNOLOGIA JURÍDICA GOVERNAMENTAL” PARA A
DEMOCRACIA A demanda pelo Estado, nos países em desenvolvimento, é mais específica, reclamando um governo coeso e em condições de articular a ação requerida para a modificação das estruturas que reproduzem o atraso e a desigualdade. Sobre o governo recaem as funções de organizar a alocação dos meios públicos, dirigir e executar a Administração Pública e, mais importante, coordenar e planejar a ação coletiva, em diversos níveis e abrangências. A diferença do papel do governo, no contexto do desenvolvimento, reside exatamente na condição de planejamento e execução coordenada da ação; planejar estrategicamente, num prazo longo o suficiente para realizar os objetivos, mas para um horizonte temporal breve, na medida necessária a que não se perca a credibilidade no processo. A despeito dos inquestionáveis avanços institucionais das últimas décadas no Brasil, no período que se segue à redemocratização, com eleições regulares, governos progressivamente mais responsivos e o controle judicial cada vez mais atuante, a evolução ao desenvolvimento hoje é resultado muito mais da libertação de forças econômicas e sociais latentes do que de ações coordenadas ou planejadas. A despeito da inspiração no modelo da constituição dirigente portuguesa, de 19769, a prática governamental não corresponde exatamente a essa concepção. Os textos normativos que disciplinam o governo revelam muito pouco da precariedade institucional do quadro real de ação do Poder Público brasileiro. Os modos de exercício do poder se transformaram, em nome da proteção aos direitos e aos valores da cidadania, da democracia e da sustentabilidade ambiental, o que passou a reclamar a integração das dimensões política e jurídica no interior do aparelho de Estado, combinando as esferas da Administração Pública e do governo; a política imbricada com a técnica, a gestão pública institucionalizada e regrada pelo direito. A face política do governo vai se revestindo cada vez mais de uma tecitura jurídica. Essa “juridificação” do poder obriga a rever o sentido da divisão interna do Estado entre uma esfera profissional burocrática, a Administração Pública, e a “camada política”, cujas linhas principais
tradicionalmente não se inscrevem no âmbito da disciplina jurídica. A tônica não é o controle do poder (ainda que isso seja importante, de forma renovada), mas examinar, a partir de categorias jurídicas fundamentais, como se forma e se exerce o poder político. Também não estão em questão a necessidade de aprimoramento da gestão pública, a profissionalização da burocracia e o aperfeiçoamento dos mecanismos de impessoalidade, nem a urgência do ajustamento da representação parlamentar, eliminando-se as distorções eleitorais existentes. Esses são consensos estabelecidos. Considerando o momento particular da história brasileira, trata-se do fortalecimento da democracia e da valorização do Estado, com a “redescoberta” da gestão, fortemente permeada pela comunicação social. Isso abre oportunidade para se examinar, com lente de aumento, os modos pelos quais se relacionam as dimensões política, de um lado, e técnica, ou, mais precisamente jurídico-institucional, de outro, e as práticas que combinam de maneira virtuosa as duas dimensões. Numa sociedade em desenvolvimento, a inovação governamental depende não apenas de inovações, propriamente ditas, mas, em grande medida, da conjugação dessas com melhorias incrementais, cujos resultados criem condições de legitimação social e, com isso, permanência e realimentação positiva do processo. A agenda do desenvolvimento se abre para o entendimento de como se formulam e executam políticas públicas, por meio de diferentes arranjos, seja para o atendimento de direitos, diretamente, seja para a organização das formas econômicas e sociais que se relacionam com esse resultado, a partir de iniciativas dirigidas e coordenadas pelo Poder Público. A melhoria e modernização dos serviços públicos e da infraestrutura, os incentivos à produção e à inovação, bem como as políticas de inclusão social e todas as iniciativas de longo prazo, dependem não apenas da compreensão dos papéis do Estado e do governo, mas também do domínio técnico dos seus mecanismos de funcionamento, tanto no nível das relações políticas tradicionais como nas implicações dessas com a execução das decisões e dos dispêndios governamentais. O interesse é compreender, de maneira mais acurada, o funcionamento do governo enquanto disparador e condutor de processos de transformação, com o emprego dos meios próprios do Estado o postos à sua disposição, ou seja, os modos pelos quais se dá a conversão do impulso político em ação governamental, exposta à participação e ao contraditório social e à incidência das normas e controles de maneira geral. Não se trata apenas da visão política do fenômeno do governo juridicizado. Trata-se da perspectiva reversa, da visão a partir do interior do Estado, adotando-se a posição daquele que ocupa a “máquina” do governo, para examinar como opera sua instrumentalização jurídica no sentido da realização da democracia, em suas componentes políticas, mas especialmente sociais e econômicas. Partindo do pressuposto de que a política atua por meio de expressões jurídico-institucionais, cujo domínio representa uma forma particular de poder, o funcionamento do governo e a formação dos arranjos institucionais, configurando políticas públicas, constituem uma agenda específica de pesquisa e ação. Seu objeto principal deve estar centrado na formação do direito, na base dos programas de ação governamental, num ambiente democrático (o que já foi chamado, em outro tempo e com um sentido mais limitado, de “política jurídica”). O objetivo é compreender o fenômeno governamental por dentro do direito, com base nas categorias próprias desse campo, com um instrumental analítico que auxilie a identificação e sistematização de condições, regras e instituições jurídicas necessárias a um Estado em desenvolvimento para formular e executar políticas públicas, criando canais e processos de organização de forças da sociedade. Trata-se de uma construção epistemológica a serviço de uma “tecnologia jurídica governamental” para a democracia no desenvolvimento. Essa “tecnologia jurídica”, na feliz expressão de Diogo Coutinho10, seria voltada a criar e replicar padrões jurídicos de organização da ação governamental, incorporando
mecanismos institucionalizados para o exercício do contraditório, sem os quais a tecnologia corre o risco de degenerar em tecnocracia. Para isso são necessários bons modelos jurídicos, que não dispensem o aspecto da legitimidade das decisões e dos processos que levam à produção destas. A sistematização teórica da abordagem das políticas públicas deve contribuir para a criação de fórmulas de organização e estruturação do Poder Público capazes de melhorar a sua intervenção – tornando-a mais efetiva, racional e compreensível – e acelerar o processo de modernização, de redução da desigualdade e de inclusão social. Busca-se apontar pressupostos teóricos que subsidiem uridicamente tanto a análise como a formulação de políticas públicas, considerando a ação governamental em escala ampla. III – O GOVERNO NOS VÁRIOS PLANOS DE APROXIMAÇÃO: MACRO, MICRO E
MESOINSTITUCIONAL Um trabalho sistemático sobre a dimensão jurídica das políticas públicas requer, como ponto de partida, desfazer o enovelamento de noções emaranhadas, para compreender o papel específico do governo. O fio condutor da reflexão é a relação entre a política como força originária, que se exterioriza no governo, e sua forma institucionalizada pelo direito, que se reconhece no Estado, com suas estruturas e funcionalidades. Procura-se compreender de que modo as formas jurídicas da ação governamental influem, catalisando os anseios e forças da sociedade em direção ao desenvolvimento. Em outras palavras, investiga-se de que modo a técnica jurídica pode contribuir para gerar ou mover poder na sociedade. A partir das duas perguntas – o que é o governo e como se relacionam, no governo, a política e o direito –, propôs-se, neste trabalho, examinar o fenômeno governamental, enquanto manifestação uridicamente disciplinada, em três planos de aproximação: macro, meso e microinstitucional. O plano macroinstitucional compreende o governo propriamente. No extremo oposto, plano microinstitucional, considera-se a ação governamental como unidade atomizada de atuação do governo. Na posição intermediária, o plano mesoinstitucional, analisam-se os arranjos institucionais, ação governamental agregada em unidades maiores. Enquanto o plano macroinstitucional tem por objeto a politics, os planos meso e microinstitucionais focam as policies, distinguindo-se entre eles apenas a chave de análise adotada. Cada plano é objeto de um capítulo, do primeiro ao terceiro11. O ponto de vista adotado se assenta no interior do Estado, mais precisamente do governo, baseado na figura da política pública como tipo ideal, em sua dimensão jurídica, em diferentes modos de apreensão, traduzidos nos termos política pública, ação governamental e arranjo institucional. Política pública, conforme definido em trabalho anterior, é programa de ação governamental12. Seu núcleo de sentido reside na ação governamental, isto é, o movimento que se dá à máquina pública, conjugando competências, objetivos e meios estatais, a partir do impulso do governo. A apresentação exterior da política pública se materializa num arranjo institucional, conjunto de iniciativas e medidas articulado por suportes e formas jurídicos diversos. No primeiro capítulo, examina-se o plano macroinstitucional, a tensão entre a política e as políticas públicas. Procura-se clarear a função do governo e os mecanismos de seu funcionamento, entendido como corpo no interior do Estado que dá impulso à política. As políticas públicas consistem em quadros de ação governamental, arranjos institucionais que expressam o Estado em movimento. Isso se coloca em contraste, do ponto de vista analítico, com as estruturas estatais que apenas repetem rotinas, produzindo atos concretos. Em seguida, busca-se compreender como se dão, no âmbito do governo, as relações entre
a política e as instituições ou, mais cruamente, entre a política e o direito. Está em curso, pelo menos desde o século XVII, quando se convencionou estabelecer o surgimento do Estado moderno, um fenômeno de juridificação da política, pelo qual a noção de governo passa a ser elemento crescentemente disciplinado e legitimado pelo direito. Considerando a vasta gama de relações possíveis entre esses dois polos, política e direito, é fato que há uma distinção qualitativa se tomarmos política “dura”, isto é, a política no sentido clássico, que compreende a chegada ao poder e os modos de seu exercício, ou a política “soft”, isto é, a atuação do poder sem o uso direto e imediato da força, mas pela predominância dos mecanismos de exercício de influência. Esses mecanismos e engrenagens estabelecem uma infiltração mais pervasiva e “fina” da política nas estruturas mais prontamente reconhecíveis pelo olhar jurídico. Há uma diferença das estruturas próprias do governo, do Estado e da Administração Pública. A partir dessa diferenciação, analisa-se o processo histórico de estruturação e institucionalização do Estado, no qual a figura do governo vai progressivamente assumindo contornos jurídicos mais definidos e a esfera da política passa a conviver com a disciplina jurídica, que a conforma e contém. Esse processo passa pela separação de poderes, desde o século XVII, na Inglaterra, e XVIII, na França e EUA, pela estruturação da burocracia e pela ampliação do sufrágio, nos séculos XIX e XX, e pela criação de um nexo formal com o direito, que estrutura e consolida definitivamente o Estado como “ordem jurídica soberana”. A evolução das formas e regimes de governo permite concluir que, embora a contemporaneidade tenha consagrado a democracia como forma dominante, o processo de racionalização do poder continua em curso, tanto no âmbito externo, na relação do Estado com os organismos internacionais, como no aspecto interno, ditado por demandas renovadas da democracia, instrumentalizadas por novas ferramentas de interação social, como as proporcionadas pelas tecnologias de informação e comunicação. Há uma interpenetração cada vez mais regrada e previsível, nas democracias maduras, entre a política e a gestão, mediada pelo direito. No segundo capítulo, passa-se a trabalhar no plano microinstitucional, na perspectiva da ação governamental. Retoma-se o conceito de política pública como programa de ação governamental, e analisa-se seu núcleo de sentido, a ação governamental, como a unidade em torno da qual se movem os agentes públicos e privados, visando obter a decisão e sua execução. A processualidade, em sentido amplo, é aplicada aos vários processos jurídicos que materializam as políticas públicas. Após a revisão das categorias procedimento, processo, contraditório e a incidência do tempo, cada um dos processos estruturantes de atuação do Poder Público é examinado, à luz do conceito de relação jurídica processual. A organização interna da atividade administrativa (processo administrativo), a defesa judicial das demandas por realização e implementação de políticas públicas (processo judicial), a participação do governo na elaboração das leis, em particular pelo exercício da iniciativa e edição de medidas provisórias (processo legislativo), e a alocação de meios para as políticas públicas (processos orçamentário e de planejamento) são dispostos num painel de análise processual, com o sentido de expor como se dão algumas das conexões entre a política e o direito, cujas tensões movem a formação e implementação das políticas públicas. O ponto de encontro institucionalizado dessas tensões ocorre no processo eleitoral, cujas influências recíprocas sobre a atividade governamental são apontadas no fecho do capítulo. No terceiro capítulo, cuida-se do plano mesoinstitucional e os arranjos institucionais. A categoria das instituições, transdisciplinar por natureza, proporciona pontos de conexão entre o direito e as demais ciências sociais, úteis para a compreensão dos mecanismos de atuação do governo. A teoria institucional
do direito, especialmente a produzida na fase inicial de construção do direito público, por Santi Romano e Hauriou, com forte tônica organizadora, tem muito a dizer ao direito num momento de renovação social e política, quando são especialmente importantes os processos de criação das normas e arranjos institucionais. Em Santi Romano, tem-se a construção conceitual da ideia de instituição apoiada no papel estruturante do direito – que define a identidade entre ordenamento jurídico e instituição –, além do propósito de organização e da noção de objetivação. Essa última é o elo em que se opera a conversão dos impulsos pessoais da política em atividades despersonalizadas, que assim passam a adquirir condição de permanência. Em Hauriou, a objetivação se combina com a identificação do papel das subjetividades, que são responsáveis pela produção das inovações institucionais, compensando a tendência à inércia característica da ordem jurídica estabelecida. A proposição da ideia-diretriz sumaria a possibilidade de identidade de direções, na sociedade, disseminada em função da percepção comum de um problema e das alternativas de sua superação. No contexto das políticas públicas, essa elaboração teórica é aplicada à noção de arranjos institucionais. O termo institucionalizar, correlato ao adjetivo institucional que qualifica os arranjos das medidas governamentais, significa estruturar e organizar, de maneira despersonalizada, pelo Poder Público, não apenas os seus próprios órgãos e serviços, mas também a atividade privada, quando conexa com programas de ação governamental. O arranjo institucional é a expressão formalizada da política pública, com uma dimensão sistemática. Considerando que uma das maiores fragilidades do direito brasileiro é o baixo grau de efetividade das normas jurídicas, isto é, a grande quantidade de leis que “não pegam”, revelando a debilidade do direito para a ordenação social e do próprio governo, propõe-se trabalhar, conscientemente, sobre um “regime de efeitos”, que deve orientar principalmente os criadores da norma, mas também seus aplicadores, no sentido da sucessão encadeada de atos e consequências que seja capaz de levar ao resultado buscado. Para esse regime de efeitos, o ideal é que o arranjo institucional preveja não apenas os meios suficientes à escala e ao escopo do programa, mas também a articulação da cadeia de responsabilidades dos agentes públicos com autoridade sobre a política pública. Isso é o que pode definir a sua sustentabilidade urídico-política, pelo tempo necessário para a produção dos resultados sociais propostos. A apropriação desses elementos como categorias analíticas é o que viabiliza uma atividade consciente e tecnicamente apurada de modelagem institucional das políticas públicas, também conhecida como “desenho ou engenharia institucional” ( policy design). A composição de arranjos institucionais passa a ser trabalhada com base em variáveis jurídicas, originais ou replicadas de outros arranjos, devidamente identificadas e correlacionadas com as consequências esperadas. Essa abordagem valoriza, como nenhuma outra, a atividade de criação do direito, tanto no aspecto do processo como na dimensão normativa estrita. Não apenas os ritos de elaboração das leis, mas também as categorias utilizadas no seu texto, as soluções para problemas complexos no campo da execução das normas, como a aplicação do direito intertemporal, por exemplo, ganham o necessário relevo quando se consideram os fundamentos trazidos pela teoria jurídica das instituições. O mesmo se pode dizer da atividade de planejamento, a partir do direito, que demanda a definição de formas de organização e regras ajustadas aos objetivos programados. Sem perder a visão das referências políticas, há tarefas específicas para o planejamento no campo jurídico-normativo, problemas particulares a demandar soluções criativas, relativos à proposição das normas, institutos, categorias e regimes jurídicos. Em resumo, são diversos os planos sobre os quais se pode ver a realidade do Estado e a organização governamental, distinguindo-se a direção política de suas respectivas estruturas. Tem-se, no plano macroinstitucional, as decisões políticas fundamentais, a “grande política”, bem como os rumos do planejamento de longo prazo. No plano mesoinstitucional, da “média política”, os arranjos institucionais,
que desenham a ação governamental racionalizada, agregando e compondo os elementos disponíveis, em uma direção determinada, tornada previsível, com base em regras e institucionalização jurídica, que define as situações a serem experimentadas em operações futuras, resultando na reiteração da ação. Finalmente, a ação governamental nas suas menores unidades, a chamada “pequena política”, no desenrolar dos processos jurídicos que levam à formação e desenvolvimento das políticas públicas; a decisão e as iniciativas legislativas pertinentes, além das decisões judiciais, nas hipóteses de conflito. Essa dimensão é aquela em que sobressai o papel dos indivíduos. Tomando-se o componente sistemático de cada política pública, que provê ligação e coesão aos atos que a compõem, impedindo que se trate apenas de um aglomerado de atos, podem-se adotar vários focos analíticos: no plano microinstitucional, o elemento processo, que permite visualizar as várias fases de produção e implementação da ação governamental (cap. 2); e no plano mesoinstitucional, dos arranjos institucionais, a noção de instituição (cap. 3). O quarto capítulo procura apontar fundamentos para um método de trabalho e análise de políticas públicas, ainda em construção, baseado numa visão dúplice do fenômeno jurídico, tanto realidade empiricamente perceptível como norma, dever-ser que atua sobre a sociedade e modifica as relações sociais. A linha metodológica sugerida conjuga a proposição de modelos teóricos e sua verificação empírica, isto é, a observação direta das políticas públicas, em estudos de caso. A compreensão e o domínio complementar das duas abordagens, dedutiva e indutiva, tanto no aspecto da análise como no do fazer governamental, dariam corpo à “tecnologia jurídico-institucional” acima descrita. Os modelos de análise previamente delineados seriam baseados em categorias previamente definidas, tais como a ação governamental processualmente estruturada (processos jurídicos) ou os arranjos institucionais (instituições). Esses modelos analíticos condicionariam a observação dos elementos concretos das políticas públicas, em estudos de caso ou séries de estudos de casos estruturadas. Visto pela ótica das divisões tradicionais do direito, o argumento é composto a partir de uma visão de direito público, com base em conceitos estruturantes da teoria geral do Estado, da teoria geral do Direito e da teoria geral do processo. Procura-se apontar possíveis correspondências com as disciplinas afins, que facilitem o diálogo e a compreensão recíproca. Embora as noções jurídicas fundamentais sejam conformadas pela legislação, optou-se, quando possível, por tratá-las conceitualmente, de forma mais abstrata, referindo-se à normatização pertinente em caráter ilustrativo ou como contextualização, em notas de rodapé, para privilegiar o desenvolvimento do argumento no texto. As referências à bibliografia estrangeira foram feitas quase sempre em português. Não se tratando de edição brasileira da obra ou ausente menção expressa à tradução, a responsabilidade pela citação em português é da autora.
1 Francisco de Oliveira. Viagem ao olho do furacão. Celso Furtado e o desafio do pensamento autoritário brasileiro . In: Novos Estudos CEBRAP, n. 48, jul. 1997, p. 3-19, p. 17-18. 2 O acrônimo BRICS refere-se aos Estados emergentes, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. 3 A experiência da China, com o seu vertiginoso crescimento, considerada sua escala, velocidade e os efeitos sobre bilhões de pessoas, desperta evidente interesse em investigar a direção e os percalços do processo e em especial qual o papel do Estado. É fato que se trata de um processo de libertação de forças produtivas, por meio do estímulo individual, num primeiro momento, na década de 1980, à agricultura, em
que uma pequena liberalização resultou em avanços expressivos de produtividade, além de subprodutos, como a criação de pequenos negócios, melhoria da qualidade da produção e drenagem dos campos. Mas há o problema do autoritarismo político, em que a centralização das decisões no partido, de um lado, não emite informações confiáveis sobre os pormenores das experiências e, de outro, não permite conhecer os seus aspectos críticos. Joshua Cooper Ramo. The Beijing Consensus. London: The Foreign Policy Center, 2004. 4 Ricardo Bielschowsky. Pensamento Econômico Brasileiro. O Ciclo Ideológico do Desenvolvimentismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. 5 John Stuart Mill. O Governo Representativo. 3. ed. São Paulo: Ibrasa, 1995, p. 16. 6 Amartya Sen. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 7 Neste livro, a expressão “democracias maduras” será utilizada para designar o que Chevalier chama de “Estados pós-modernos”. Nos demais, entre os quais se inclui o Brasil, ainda está em curso o esforço pela implantação plena do Estado de direito, o que faz de seus governos, quando democráticos, ainda não completamente “maduros”, considerando a interessante sistematização de Jacques Chevallier ( O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 21); “[...] os Estados contemporâneos deveriam, para alguns, ser classificados em três grupos: os Estados ‘pré-modernos’ (tais como o Afeganistão, a Somália, a Libéria e, mais generalizadamente, a maioria dos Estados africanos), muito frágeis e fracos para apresentar todos os atributos de Estados autênticos; os Estados ‘modernos’ (Índia, China, Brasil...), vinculados à noção tradicional de Estado como detentor do monopólio da força; os Estados ‘pós-modernos’, nos quais a soberania tende a dar lugar a uma nova lógica de interdependência e de cooperação, apagando a separação entre assuntos interiores e exteriores”. A Europa, para o autor, seria o “paraíso pós-moderno”, já que o poderio americano se ocupa da segurança e resta a ela privilegiar o direito, a negociação e a cooperação internacional. 8 “No momento em que os mais avançados recursos técnicos para captação e transmissão de opiniões, como terminais de computadores, forem utilizados para fins políticos será possível a participação direta do povo, mesmo nos grandes Estados. Mas para isso será necessário superar as resistências dos políticos profissionais, que preferem manter o povo dependente de representantes.” Dalmo Dallari. Elementos de Teoria Geral d o Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 153. 9 Art. 185, com a redação dada pela LC n. 1/82, que suprimiu o primitivo n. 2: “O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública”. Art. 191 (com redação da LC n. 1/82): “Do programa do Governo constarão as principais orientações políticas e medidas a adotar ou a propor nos diversos domínios da atividade governamental”. Arts. 192 e 195 (fixa prazo e condições para a apreciação do programa do Governo pela Assembleia Nacional): “Os membros do Governo estão vinculados ao programa do Governo e às deliberações tomadas em Conselho de Ministros”. O Governo tem, ainda, competência para a direção da atividade administrativa do Estado, além da elaboração de planos e execução do orçamento, entre outras (art. 202). 10 Diogo Coutinho. O Direito nas Políticas Públicas. In: Política Pública como Campo Disciplinar (Eduardo Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria – eds.). São Paulo: UNESP (no prelo). A tecnologia, junto com a ciência, segundo Albert Calsamiglia seria um dos três estilos da dogmática jurídica, entre a ciência pura e a técnica, de finalidade prática. Apud Celso Campilongo. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 143. A tecnologia jurídica é expressão da concepção do direito como “ciência social aplicada”. 11 A distinção dos planos de análise é utilizada em outras áreas, como a economia e a história, por exemplo, para destacar os movimentos e decisões estruturais daqueles mais ligados diretamente à atuação dos indivíduos. A chamada micro-história, baseada nas narrativas domésticas e em histórias do cotidiano, reduz a escala de observação e realça ações humanas particulares, permitindo acompanhar atores e eventos que passam despercebidos na grande observação. Essa micro-observação dá vida e profundidade aos cenários dos fatos históricos estudados tradicionalmente. Já no caso da economia, a segmentação entre as abordagens macro e microeconômicas, em que pese estar associada a distintas visões políticas, também aplica diferentes escalas de observação ao seu objeto, o que permite visualizar problemas e aspectos distintos. 12 “Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados.” Maria Paula Dallari Bucci (org.). O conceito de política pública em direito. In: Políticas Públicas. Reflexões sobre o Conceito Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39.
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PLANO MACROINSTITUCIONAL: GOVERNO. POLÍTICA (POLITY ) X POLÍTICAS PÚBLICAS (POLICIES)
1.1 Governo como motor da política e sua progressiva juridificação. Paradoxo governo e Estado: mudança e permanência no exercício do poder político
O governo é o nicho da política no Estado; as decisões políticas são essencialmente manifestações de poder. Mas a política de maior alcance, compatível com a complexificação das possibilidades e dos meios obtidos com o desenvolvimento do capitalismo, depende da conformação do poder em estruturas despersonalizadas, organizadas segundo regras e procedimentos jurídicos. E com isso, progressivamente, a política vai deixando de ser exclusivamente política, para ser, ao mesmo tempo e cada vez mais, também direito, organizado em instituições. O governo é o motor do aparelho de Estado. Com a modernidade, aprofunda-se uma relação paradoxal entre os dois termos, decorrente do fato de que as iniciativas políticas e sociais mais evoluídas, conduzidas pelos governos, dependem de uma estruturação do poder estatal igualmente complexa. Esta requer institucionalização, formalização em regras jurídicas, necessária a conferir-lhe estabilidade, previsibilidade, permanência no tempo, assentada sobre um ambiente de articulação e composição de interesses que inspire segurança de posições. E a maior institucionalização, na medida em que disciplina uridicamente, enrijece o espaço de atuação propriamente política dos governos. Eis o paradoxo: quanto mais poderoso o governo na democracia, mais regrado e, portanto, mais dependente do direito para a legitimação política. Se, como afirma a literatura institucionalista, as instituições condicionam a política, a atenção deveria voltar-se à conformação jurídica destas, a fim de que atuem fielmente como canais de expressão e realização das aspirações sociais. Por outro lado, os conflitos são inerentes à sociedade, e são as tensões e os movimentos vitais da política que dão impulso, na democracia, à ação estatal. Sem eles, as instituições estatais são engrenagens que apenas repetem rituais, já que a passagem do tempo e a sucessão natural dos personagens da história esvaziam gradualmente a energia e a justificação original de se sentido. Esse é o dilema da permanência institucional. E se é verdade que as decisões políticas são, de fato, manifestações de poder, é igualmente verdade que essas decisões, por sua vez, influenciam e determinam a conformação jurídico-institucional do exercício do poder. Mais do que isso, a dimensão jurídico-institucional, isto é, as estruturas de exercício do poder se transformam em campo de disputa, no qual o poder real procura valer-se das formas institucionalizadas para manter e ampliar posições de dominação13. Ao mesmo tempo, em tensão com esse movimento, há um esforço de limitação do poder, demonstrado pela história do liberalismo, que convive, por sua vez, com a procura de formas legítimas para o seu exercício, no sentido do interesse comum. O processo histórico não é casual, e a demanda de institucionalização observa as tensões próprias de
cada período e as rupturas que se seguem. As concepções e os regramentos de cada estágio passam a ser o ponto de partida da fase ulterior14. Na formação do Estado moderno, distinguem-se dois períodos mais evidentes: o da construção do Estado, sob o absolutismo, num primeiro momento, e o da construção da liberdade como ideia política15, contraponto necessário à atuação do governo e fundamento da concepção democrática que irá desenvolver-se num terceiro momento, já sob a perspectiva dos movimentos sociais de emancipação dos trabalhadores. Os passos estruturantes desse processo histórico de institucionalização são conhecidos, cabendo apenas destacar alguns deles, visando analisar de forma mais estrita a noção de governo e se papel específico num Estado emergente como o Brasil do século XXI. Se o Estado moderno é um fenômeno do século XVII, o governo, como núcleo de ação estatal diferenciado, é uma construção posterior. Esse processo de formalização, na verdade, é contínuo e segue ainda hoje, agora em face dos desafios da democracia e da inclusão social. Outras tensões surgem, em que os polos de poder não se encontram necessária ou exclusivamente no interior do Estado. É interessante, ainda, ter em mente as duas perspectivas distintas que se desenvolvem no processo de racionalização do poder, ex parti principis ou ex parti populi, para usar a conhecida dicotomia de Bobbio16. A primeira delas, “da parte do príncipe”, está centrada na ideia de organização e olha a sociedade a partir do Estado, tal como ocorre, entre outros, nas obras de Maquiavel e Hobbes. Na direção oposta, “da parte do povo”, há a perspectiva da sociedade civil, de que é exemplo, entre outras, a obra de Locke, em que a referência à política institucionalizada se faz mais pela tônica da contenção do poder, a fim de que não se perturbe a esfera privada da liberdade. O processo de racionalização do poder e juridificação das estruturas do Estado leva à diferenciação das noções de Estado e governo. A explicitação e definição de cada termo é acompanhada da criação de fundamentos filosóficos, num primeiro momento, e regras e estruturas jurídicas, num segundo, que indicam o que chamamos de processo de “institucionalização”17. Essas regras e estruturas dizem respeito a duas espécies principais de condicionamentos à atividade política. De um lado, a presença do povo, num primeiro momento, para o controle do poder, e posteriormente, como titular da soberania, e de outro, a conformação a regras jurídicas, para a organização do poder. A distinção dos dois movimentos é apenas esquemática, evidentemente, para efeito de visualização, uma vez que na realidade da história os dois processos sempre estiveram entrelaçados. 1.2 As noções de governo, Estado e Administração Pública
As expressões Estado, governo e Administração Pública não são sinônimas, mas suas distinções nem sempre são percebidas, numa visão sistemática. O que se chama Estado muitas vezes é assimilado como sinônimo, sem maior rigor, aos termos governo ou Administração Pública.
a) Estado O Estado é uma construção social da era moderna, formação tipicamente europeia, histórica e geograficamente situada, caracterizada pela “progressiva centralização do poder segundo uma instância sempre mais ampla”18, que “abarca completamente as relações políticas, o princípio da territorialidade da obrigação política e a progressiva impessoalidade do comando político, através da evolução do conceito de officium [...]”19. O sistema policêntrico e complexo dos senhores feudais dá lugar ao Estado territorial concentrado e unitário, por meio da racionalização do poder, o “Estado territorial institucional”. Trata-se de um tipo de organização política relativamente recente (século XVII), que corresponde à maior complexidade social relacionada à divisão do trabalho, culminando no
desenvolvimento do capitalismo. A definição de Estado, após um longo percurso histórico – que passa pela consolidação das noções de soberania, com a agregação dos elementos povo e território, pela sua personificação jurídica e, finalmente, pelo reconhecimento da correlação necessária entre Estado e direito20 –, pode-se considerar estabilizada, com a seguinte proposição sintética: “Estado é a ordem jurídica soberana, que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”21. O Estado moderno teve seu marco inicial fixado com a celebração da chamada paz da Westfália, que se consubstancia nos Tratados de Münster e Osnabrück, em 164822. Esses tratados põem fim à guerra dos trinta anos, conflito de proporções europeias, que se inicia como um embate religioso entre a Alemanha e a Boêmia e passa posteriormente a envolver Dinamarca, Noruega, Suécia, França e Espanha. Depois de muita destruição, epidemias e fome, as partes decidem pelo armistício, a que se segue uma conferência de paz que após vários anos culmina na formalização dos tratados nas duas cidades alemãs. O resultado mais significativo da celebração dos tratados é a redução da influência política da Igreja nos assuntos políticos europeus e o início de um novo período nas relações internacionais, mais aberto às negociações e ao respeito pelos interesses de cada país, estabelecendo-se concretamente a ideia de soberania, como respeito jurídico às fronteiras, no interior das quais prevaleceria o poder real23. O conceito político de soberania já integrava o acervo cultural daquele período, a partir da obra de Jean Bodin, Seis Livros da República, de 1576, teoria que ratificava a ideia do fundamento divino do poder real, ligada ao absolutismo. No século seguinte, Hobbes, em Leviatã24, desenvolverá a ideia de soberania, fundada não mais no poder religioso, mas na razão e no contrato social. E no século XVIII, Rousseau, em Do Contrato Social, associa a soberania à vontade geral, extraindo daí os atributos de inalienabilidade e indivisibilidade25, formulação inscrita quase literalmente na primeira Constituição da França que se segue à Revolução Francesa, a de 179126, de onde passa a ser reproduzida, irradiando sentido para um acervo conceitual comum da civilização ocidental. A noção de Estado se firma com referência a outras ordens estatais, isto é, relativamente ao plano internacional, num processo que, ao longo do tempo, busca substituir a justificação do Estado, da guerra e disputas territoriais, pela paz e convivência das nações. Três séculos se passarão até que o paradigma da guerra ceda lugar a uma perspectiva concreta de “sociedade civil mundial”. As atrocidades da Segunda Guerra Mundial e o quase meio século de guerra fria que se seguiu, com ameaça nuclear mundial, as escaladas bélicas americanas no Oriente Médio e outros conflitos evidenciaram não apenas a irracionalidade, mas também a insustentabilidade desse paradigma. Em síntese, o Estado passa de um fenômeno sem forma definida a ente soberano, política e juridicamente, no contexto da relação com outros Estados27. Na verdade, a teorização do Estado moderno, ainda indiferenciada da noção de governo, está em curso desde o Renascimento. O Príncipe, de Maquiavel, escrito nos albores da economia mercantil que antecede o capitalismo, fornece as bases de uma nova ideologia política, apoiada na secularização do Estado. É considerado o primeiro manual político da era moderna, com orientações sobre o exercício do poder que inspiraram mentalidades políticas dos mais diversos matizes, em vista do caráter singular da obra com referência ao ponto de vista do Estado (ex parti principis)28. Tematizando a estabilidade política, Maquiavel aponta a necessidade de centralização e organização para a manutenção do poder e obtenção da ordem, orientando as relações internas do governo, entre o príncipe e seus conselheiros e ministros, no sentido do delicado equilíbrio entre poder, sabedoria e confiança29. A ordem, qualificada como “boa”, por reflexo de “boas leis e boa educação”, é pensada em termos de permanência, como um embrião daquilo a que estamos chamando de institucionalização: “A salvação de uma república ou dum
reino, portanto, não está em ter um príncipe que governe com prudência enquanto vive, mas em ter um que ordene tudo de tal modo que, morto embora, tudo se mantenha”30. A concepção maquiaveliana do poder antecipa, de certa forma, o tema do monopólio do uso da força, que viria a ser sintetizado por Max Weber31, na recomendação da estruturação de um exército regular, em lugar das tropas de mercenários, como era costume, ou na necessidade de se armar o poder, no âmbito interno, visto que “o estar desarmado te obriga a ser submisso”. A relação entre força e direito é expressamente estabelecida32. A atualidade da leitura de Maquiavel, bem como de outros clássicos da filosofia política, reside, entre outras coisas, na riqueza de suas observações sobre a natureza dos homens e das ações próprias da política, quando ainda não estavam definidas as categorias abstratas que medeiam nossa percepção em relação à crueza das disputas pela conquista ou pela manutenção do poder, qualquer que seja o seu nível.
b) Administração Pública Administração Pública é o conjunto das atividades diretamente destinadas à execução concreta das tarefas ou incumbências consideradas de interesse público ou comum, numa coletividade ou numa organização estatal33. Pode-se fixar o surgimento da Administração Pública, no sentido moderno, como corpo estruturado, quando Napoleão cria a seção do Contencioso Administrativo no Conselho de Estado francês34, com funções consultivas e jurisdicionais, entre as quais “redigir os projetos de lei e regulamentos da Administração Pública e resolver as dificuldades que surjam em matéria administrativa”35. Com ele fixam-se as bases para o desenvolvimento do direito administrativo francês, que servirá de modelo para vários países da Europa36, com exceção da Inglaterra. A iniciativa napoleônica representa a organização geral dos poderes públicos, com preeminência do Estado sobre as coletividades secundárias, como as comunas e organizações profissionais, acompanhada da centralização política no âmbito territorial37. Outro evento de referência, apontado por Max Weber pelo sentido de profissionalização do serviço público, é a edição do Pendleton Act ou Civil Service Reform Act (Lei da Reforma do Serviço Público), de 1883, nos EUA, que estabeleceu o sistema de mérito e baniu a política que se convencionou chamar de spoils system (sistema de despojos), segundo a qual os cargos públicos eram preenchidos por pessoas indicadas pelo partido vencedor. Como tantos episódios dramáticos na história americana, essa lei foi aprovada, depois de várias tentativas, após o assassinato do presidente James Garfield, por um homem que tivera recusada sua nomeação. O Pendleton Act instituiu a proteção contra a remoção política e passou a exigir exames de admissão abertos para os funcionários, inicialmente restritos a uma pequena quantidade de postos, e posteriormente ampliados para a maioria das funções públicas38. A lei proibi contribuições obrigatórias de campanha, bem como cobrança de valores sobre os pretendentes aos cargos, estimados em 50 a 75% do custeio dos partidos, tendo sido contestada em diversas ocasiões, até 1896, quando a maioria dos cargos públicos federais passou ao regime do serviço público39. Com a teoria sociológica, Weber definiu as características que comporiam o paradigma do Estado burocrático, condição para a consolidação do Estado moderno. O desenvolvimento da função pública, organizada segundo o princípio da divisão do trabalho, exigia a distinção clara entre a direção política, com responsabilidade pessoal pelo governo, e o corpo administrativo de execução – funcionários profissionais, trabalhadores intelectuais especializados e qualificados –, que não responde pelo governo, organização semelhante à que se aplicaria à empresa privada40. O delineamento do que seja mais precisamente a Administração Pública, foco de incidência do direito administrativo, é tema cercado de controvérsias, que toma como ponto de partida a separação de poderes41 e, a partir dela, a função de administrar, como característica do Poder Executivo. A busca de
um critério unitário para definir a função administrativa variou muito – segundo as teorias da ação singular e concreta, ação organizada, ação de conformação social, gestão dos serviços públicos (França, primeira metade do século XX), ou ainda com base em formas jurídicas peculiares (ato de autoridade, ato-condição e ato subjetivo, ou atuação executória) –, resultando na prática infrutífera, visto que se reconhece que as funções e atividades a realizar, bem como as técnicas apropriadas, são estabelecidas historicamente, de acordo com as circunstâncias. Correntemente, o mais comum é adotar a fórmula negativa, caracterizando a função de administrar por aquilo que a distingue das funções de legislar ou de ulgar42. Alternativamente, utilizam-se definições correlacionadas de Administração Pública e governo, na verdade atualizando e especificando a dualidade weberiana entre administração profissional e executora, sem responsabilidade política, de um lado, e direção política, com responsabilidade, de outro. No Brasil, essa concepção foi fortemente disseminada pela obra doutrinária e legislativa de Hely Lopes Meirelles, de cuja pena emergiu o Decreto-Lei n. 200, de 1967, ainda hoje a norma de organização da Administração Pública brasileira43. “Governo e Administração Pública são termos que andam juntos e muitas vezes confundidos, embora expressem conceitos diversos nos vários aspectos em que se apresentam. Governo – em sentido formal, é o conjunto de Poderes e órgãos constitucionais; em sentido material, é o complexo de funções estatais básicas; em sentido operacional, é a condução política dos negócios públicos. Na verdade, o Governo ora se identifica com os Poderes e órgãos supremos do Estado, ora se apresenta nas funções originárias desses Poderes e órgãos como manifestação da soberania. A constante, porém, do Governo, é a sua expressão política de comando, de iniciativa, de fixação de objetivos do Estado e de manutenção da ordem jurídica vigente. O Governo atua mediante atos de soberania ou, pelo menos, de autonomia política na condução dos negócios públicos. Administração Pública – em sentido formal, é o conjunto de órgãos instituídos para consecução dos objetivos do Governo; em sentido material, é o conjunto das funções necessárias aos serviços públicos em geral; em acepção operacional, é o desempenho perene e sistemático, legal e técnico, dos serviços próprios do Estado ou por ele assumidos em benefício da coletividade. Numa visão global, a Administração é, pois, todo o aparelhamento do Estado preordenado à realização de seus serviços, visando à satisfação das necessidades coletivas. A Administração não pratica atos de governo; pratica, tão somente, atos de execução, com maior ou menor autonomia funcional, segundo a competência do órgão e de seus agentes. São os chamados atos administrativos [...]” 44.
Com o movimento da “administração gerencial”, que se desenvolve a partir dos anos 1990, essa segmentação passa a ser relativizada, pois, pelo menos em teoria, o corpo profissional da Administração Pública deve passar a responder pela produção de resultados, definidos segundo sua importância social e, nessa medida, também política.
c) Governo Governo, na ciência política, é termo que se refere ao “conjunto de pessoas que exercem o poder político e que determinam a orientação política de uma determinada sociedade [...], e constitui um aspecto do Estado”45. Em formas pré-estatais de organização política como na cidade-Estado e no império feudal, existe apenas o governo: “[...] a partir de uma determinada fase de desenvolvimento, em toda a sociedade se pode individualizar uma forma de governo, entendido este como uma forma de poder relativamente autônomo em relação aos vários grupos sociais, com a função específica de realizar a integração política da sociedade e a sua defesa no confronto com os grupos externos”46. A caracterização jurídica da Administração Pública, como se viu, em geral exclui uma parte da atividade dos órgãos superiores de tipo político. Há funções que não são reconhecidas como administrativas, tais como aquelas com caráter internacional e outras derivadas diretamente da Constituição, a exemplo da convocação de eleições ou referendo, e das moções de censura, próprias do regime parlamentar47. Os titulares dessas funções seriam portadores de dupla habilitação: dirigentes de
órgãos administrativos, sujeitos ao direito administrativo, e portadores de poder político, subordinados ao direito constitucional. A distinção histórica dos chamados “atos de governo”, constante da Constituição francesa da 3ª República, de 1875, que os diferenciava dos atos de administração, permite compreender os limites da abordagem jurídica do fenômeno político. Enquanto os atos de administração consistiam em atos de execução das leis, os de governo correspondiam à atividade política, dispensada de habilitação legal expressa. Entre os atos de governo estavam a negociação de tratados internacionais, as relações do Presidente com as Câmaras, tais como a convocação, a dissolução, a iniciativa legislativa; o direito de graça, além da decretação do estado de sítio e as determinações em matéria de polícia sanitária48. A diferença de caráter entre os dois tipos de atos, para alguns, como Hauriou, residiria na dualidade weberiana: “O governo tem por função assegurar a centralização política, enquanto a administração tem por função executar os serviços públicos”49. Esse critério é contestado por Carré de Malberg, que adota o elemento normativo como fonte de identificação dos atos de governo, considerando que eles decorreriam de delegação direta da Constituição, sem depender da mediação do Legislativo50. O critério normativo posteriormente é retomado e sistematizado por Kelsen, para quem as leis, emanadas do Poder Legislativo, compreendem apenas uma dentre as várias espécies de normas jurídicas, não havendo razão, desse ponto de vista, para sustentar a primazia do aspecto político. “[...] não há três, mas duas funções básicas do Estado: a criação e a aplicação do Direito, e essas funções são supra e infraordenadas. Além disso, não é possível definir fronteiras separando essas funções entre si, já que a distinção entre criação e aplicação do Direito – subjacente ao dualismo de Poder Legislativo e Executivo (no sentido mais amplo) – tem apenas um caráter relativo, a maioria dos atos do Estado sendo, ao mesmo tempo, atos criadores e aplicadores do Direito. É impossível atribuir a criação de Direito a um órgão e a sua aplicação (execução) a outro, de modo tão exclusivo que nenhum órgão venha a cumprir simultaneamente as duas funções. É dificilmente possível e, de qualquer modo indesejável, até mesmo que se reserve a legislação – que é apenas um determinado tipo de criação de Direito – a um ‘corpo separado de funcionários públicos’ e se excluam todos os outros órgãos dessa função” 51.
Outras teorias se seguiram, mantendo a dualidade do critério normativo, entre produção primária do direito, de fonte legislativa, e produção complementar, de fonte administrativa52. Sobre os atos de governo e sua sindicabilidade judicial, não é o caso de aprofundar esse debate, ainda que se saiba que tal categoria, mesmo não tendo sido adotada no direito positivo de outros países, disseminou-se por meio da doutrina e permaneceu por algum tempo como sinônimo de ato imune a controle jurisdicional53. A discussão técnico-jurídica dessa questão se encontra hoje em grande medida superada, com a consagração do dever de legalidade, em seu escopo procedimental, e no dever de motivação, que se impõe à generalidade dos atos praticados no exercício do Poder Público. O controle udicial hoje é amplamente aceito, observados esses limites54. Mas a discussão conceitual sobre o ato de governo ilustra a dificuldade de saber, com os avanços nas formas jurídicas de conformação e controle da atividade política, quais os espaços e formas políticas específicos e reservados à atuação do poder e como atua o governo no uso desses espaços, no contexto da democracia. O pressuposto dessas questões é que o governo não apenas extrai força política do corpo do Estado. Ao contrário, ao ser capaz de articular as demandas sociais e responder aos anseios por desenvolvimento econômico, bem-estar e outras aspirações do grupo social, o governo pode ser uma fonte de renovação do poder estatal. Em outras palavras, o governo será capaz de produzir poder social, desde que tenha êxito em canalizar demandas da sociedade e alcançar formas de organização que, a partir da identificação de pontos de consenso entre os interesses em disputa, logrem evoluir para iniciativas concretas mais complexas de solução dos problemas em pauta. Em complemento, espera-se do governo
capacidade de identificar pontos de dissenso, estruturando o processo de mediação do diálogo social, por meio do qual se ajustem expectativas e se componham as diferentes alternativas, reduzindo-se em parte as frustrações em relação às demandas não atendidas55. Na história das ideias políticas, o conjunto de contornos de sentido negativo em relação ao governo, quanto aos seus limites e aquilo que não deve caracterizar a sua atividade, é muito evidente. Mas são escassas as indicações da conformação jurídica do governo, quando legitimado pelo voto popular, a dirigir o país e as instituições públicas, no interesse da sociedade. Para compreender as razões dessa escassez e os caminhos para superá-la, convém examinar com maior amplitude os temas das formas e regimes de governo, por meio dos quais a teoria do Estado tem tratado sistematicamente a questão do governo. Quanto aos últimos, o interesse reside na diferenciação da figura do gabinete, que permite examinar a estrutura organizacional do governo em destaque, inclusive no direito positivo. Trata-se de uma perspectiva estrutural, correspondente à distribuição das funções políticas entre determinados corpos ou órgãos (a separação de poderes, em sentido estrito), e uma dimensão que se poderia chamar de funcional, relativa ao funcionamento dos poderes, os quais, conforme as condições dessa divisão, atuam como “freios e contrapesos”. No que respeita às formas de governo, a evolução histórica realiza uma alteração substancial do foco do poder, que culmina na consagração da democracia como configuração institucional básica, generalizadamente aceita, ainda que os arranjos nos quais ela se expressa comportem diversas adjetivações. Mas até que se chegasse a esse ponto, foi percorrido longo caminho (que passou pela assimilação de mecanismos antes associados a outras formas, vistas como antagônicas, tais como a monarquia), e firmaram-se, como dois lados da mesma moeda, a supremacia do Parlamento, como órgão de representação do povo (conceito que também evoluiu, com grande ampliação), e a ideia da limitação do poder ou, mais exatamente, de controle do poder pelo poder. 1.3 O governo no contexto da separação de poderes
No século XVIII, Montesquieu refletiu exatamente sobre o papel do direito na política, sintetizado no título de sua obra principal, Do Espírito das Leis56, que teve grande repercussão à sua época, entre governantes e intelectuais, inspirando a inserção da separação de poderes como princípio no constitucionalismo que se lhe sucedeu57. A separação de poderes descrita por Montesquieu não é exatamente a que se vulgarizou, descrevendo com mais ênfase e clareza o controle do poder pelo poder ou o confronto institucionalizado entre liberdade e poder: “todo homem que possui poder é levado a abusar dele; vai até encontrar limites”58. Com o diagnóstico, a solução: “é preciso que o poder contenha o poder”59. A separação de poderes e a atribuição respectiva de atribuições são um desenvolvimento da ideia de liberdade política. “Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o Poder Legislativo, o Poder Executivo das coisas que dependem dos direitos das gentes, e o Poder Executivo das que dependem do direito civil”60. O primeiro elabora as leis e as corrige ou revoga, o segundo faz a paz ou a guerra e o terceiro pune os crimes e julga as pendências entre particulares61. “Quando se reúne na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistratura, o Poder Legislativo e o Poder Executivo, não existe liberdade; porque pode-se temer que o próprio monarca, ou o próprio senado, faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não existe liberdade, se o poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o juiz seria legislador. Se estivesse unida ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo de principais, ou de nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de
fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as pendências entre os particulares” 62.
Nessa sistematização, o governo não corresponde, como modernamente, ao Poder Executivo. O governo, para Montesquieu, é o conjunto das funções exercidas pelos distintos corpos do poder, de forma balanceada, enquanto o Poder Executivo designa, numa acepção, a atribuição de estabelecer relações com outros Estados, e, na outra, a função de julgar. O principal era a função do Legislativo, dado ser o foro de representação do povo, com a atribuição de fazer as leis que limitariam o poder absoluto63. No que tange às tarefas de governo, aquilo que comumente se atribui ao Poder Executivo, a descrição é muito sucinta: “O Poder Executivo deve permanecer nas mãos de um monarca, porque esta parte do governo, que quase sempre tem necessidade de uma ação momentânea, é mais bem administrada por um do que por muitos”64. É prevista a atividade arrecadatória do Executivo (sob o consentimento necessário do povo, visto que se trata “do ponto mais importante da legislação”65) e também a sua participação no processo de edição das leis, pela faculdade de vetar, o que evidentemente relativiza o princípio fundamental de que “somente o povo faça as leis”66. A despeito disso, curiosamente, não é o Poder Executivo que é associado ao poder absoluto, pois o despotismo também pode estar nos outros Poderes, em particular no Legislativo. “Se o Poder Executivo não tivesse o direito de refrear as ações do corpo legislativo, este seria despótico; pois, ao atribuir-se todo o poder que possa imaginar, aniquilaria todos os outros poderes. Mas não é preciso que o corpo legislativo tenha reciprocamente a faculdade de paralisar o Poder Executivo porque, tendo a execução limites por sua natureza, é inútil limitá-la, considerando-se também que o Poder Executivo se exerce sobre coisas momentâneas [...]” 67.
Em resumo, são tênues os contornos sobre a figura específica do governo, o que se explica em vista de a tônica residir na posição do Poder Legislativo, cuja supremacia ainda estava em processo de estabelecer-se. O problema, para Montesquieu, estava menos no funcionamento do Estado que nas relações das classes e grupos em movimento pelo poder naquele momento, cujo equilíbrio de posições, para um governo estável, só poderia ser alcançado pela moderação das instituições68. Trata-se de “um problema político, de correlação de forças”69, mais do que um problema jurídico-administrativo, de organização de funções. Esse aspecto fica evidente no cotejo com A Política, de Aristóteles, que inspirou Montesquieu, na qual não se cogita de “governo misto” e a descrição dos três poderes é mais próxima do que conhecemos hoje, a despeito do fato de que a expressão governo designa (como é recorrente, já vimos) o conjunto do funcionamento dos poderes. “Em todo governo, existem três poderes essenciais, cada um dos quais o legislador prudente deve acomodar de maneira mais conveniente. [...] O primeiro destes três poderes é o que delibera sobre os negócios do Estado./ O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos, isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de satisfazê-las./ O terceiro abrange os cargos de jurisdição” 70.
O poder deliberativo é exercido pela Assembleia e, além de fazer as leis, cabe-lhe decidir sobre a paz, a guerra e as alianças. A “ordem judiciária”, por sua vez, definida como “terceiro órgão da Constituição e do governo”, compõe-se dos juízes, organizados em várias espécies de tribunais71. A função executiva, em Aristóteles, é descrita de forma mais abrangente e com mais minúcia do que o faz Montesquieu (talvez em razão da confiança de que não seria o povo a desempenhar tais tarefas). “[...] todos os ofícios ou ministérios necessários têm por objeto quer as honras devidas ao Ser supremo, quer o serviço militar, quer a administração das finanças, vale dizer, a receita ou a despesa das rendas públicas, quer o abastecimento dos mercados ou a polícia das cidades, dos portos e dos campos, além da administração da justiça, o tabelionato dos contratos, a execução das sentenças, a guarda das
prisões, a auditoria e o exame de contas, a reforma dos abusos e das prevaricações, enfim, as deliberações sobre os negócios de Estado” 72.
No fundo, para Aristóteles, as diferentes composições dos poderes do Estado configuram diferentes ordens, isto é, formas de organização73. Esse argumento será retomado posteriormente na história para reforçar a identidade entre Estado e ordem jurídica. A obra de Locke, que antecede em mais de cinquenta anos a de Montesquieu, apresenta a separação de poderes de forma que não difere substancialmente daquela que veio a ser mais difundida, dividindo-os em Legislativo, Executivo e Federativo, com a preponderância do Legislativo, apontando o que viria a acontecer na França no século seguinte: “O Poder Legislativo é o poder supremo em toda comunidade civil”74. Os Poderes Legislativo e Executivo deveriam ser exercidos por pessoas distintas, principalmente para evitar que os legisladores pudessem isentar-se da obediência das leis por eles aprovadas, ou que pudessem adequar a lei à sua vontade e com isso contrariar o interesse da comunidade75. A sujeição do legislador e do governante à lei, cumpre lembrar, é uma das pedras fundamentais do Estado de direito. Os Poderes Federativo e Executivo são duas faces da mesma moeda, o primeiro, voltado às relações exteriores e o segundo, às relações internas do Estado. Sobre esses, de acordo com Locke, não se deveria falar em separação de poderes, visto que se trata do uso da força da comunidade civil. O poder federativo “tem a competência para fazer a guerra e a paz, ligas e alianças e todas as transações com todas as pessoas que estão fora da comunidade civil”, isto é, as nações estrangeiras, para a “administração e a segurança do interesse do público externo”. Esse poder orienta-se pela prudência do governante, em função de seus projetos e interesses de firmar relações internacionais, sendo minimamente conformado pela lei76. Já o Poder Executivo compreende a execução das leis internas da sociedade, pelo “tempo que permanecerem em vigor”77. Ao lado das funções clássicas, o Poder Executivo detém o exercício da prerrogativa, que resguarda uma esfera de poder discricionário. “Quando os Poderes Legislativo e Executivo se encontram em mãos distintas [...] o bem da sociedade exige que várias coisas fiquem a cargo do discernimento daquele que detém o Poder Executivo. Como os legisladores são incapazes de prever e prover leis para tudo o que pode ser útil à comunidade, o executor das leis, possuindo o poder em suas mãos, tem [...] o direito de utilizá-lo para o bem da sociedade em casos em que a lei civil nada prescreve, até que o Legislativo possa convenientemente se reunir para preencher esta lacuna. [...] Mais que isso, convém às vezes que as próprias leis se retraiam diante do Poder Executivo; [...] convém [...] que os governantes tenham o poder de atenuar a severidade da lei e perdoar alguns contraventores [...] 78.
A rigor, trata-se de espaço de atuação incondicionado pela lei, que a tradição da ciência política sempre admitiu como necessário aos governantes, como se viu nas referências de Aristóteles e Montesquieu, que podem ser tidas como representativas do entendimento dominante. Essa compreensão está na raiz da concepção dos atos de governo, em que a relação com outros Estados justificaria uma certa amplitude de ação ao governante, a qual, por sua vez, repercute sobre o âmbito interno, fundamentando o exercício de prerrogativas igualmente incondicionadas ou condicionadas em menor grau. Das experiências históricas e suas elaborações teóricas, resulta que a separação de poderes não é um princípio absoluto, havendo diversos arranjos e modos de distribuição em que as funções típicas de cada poder se interpenetram segundo maneiras peculiares. Como concepção, a separação de poderes é relativizada por alguns que a consideram não propriamente um princípio de organização política, mas distribuição de funções entre os corpos do poder, a exemplo de Loewenstein, que propõe a tripartição
entre determinação da decisão, execução da decisão e controle político79. O que permanece como princípio estruturante é a ideia do controle do poder pelo poder80. O surgimento do Parlamento e a sua consolidação como foro da representação política, hoje completamente assimilados à noção de democracia, foram obras da experiência histórica, fundamentação filosófica e construção conceitual e normativa de séculos. Formulada por inspiração liberal, fundada na proteção da liberdade e na contenção do poder, a separação de poderes é ligada ao problema da limitação do poder despótico de um monarca absoluto e no funcionamento do Parlamento como locus de representação do povo, cuja expressão maior era a edição das leis. Mais tarde, cuida-se da organização e do exercício do poder, e então a ideia de separação de poderes sofre adaptações, no sentido da maior eficiência do Estado81. Enfim, o sentido concreto de cada arranjo, o peso de cada função e o grau de interpenetração delas, bem como a efetividade dos freios e contrapesos, são dados pela disciplina constitucional e legal que conforma a estrutura e as atribuições de cada poder, e a aplicação que se faz dessas, que conferem significado singular aos elementos e ao conjunto, em função da história política de cada país, em cada período. De qualquer modo, o papel de direção política do governo vem associado, crescentemente, à definição jurídica de suas atribuições. “Com efeito, a acentuação da importância do seu acervo de competências administrativas82 para a realização dos fins do Estado, que se juntaram àquelas que manteve relativamente à política externa, à defesa e à segurança, conferiram ao governo um papel de impulsão do conjunto da atividade estadual”83. Dentre essas competências, destaca-se o Poder Legislativo, seja por meio do exercício da iniciativa, da delegação, da reserva ou da urgência, de maneira muito mais ampla que a concepção original da separação de poderes. O governo encontra-se num plano político específico, que não se confunde com o Estado – entidade ampla, que abrange a representação política, a função judicial, o estado de defesa, o regime financeiro, além das relações com outros Estados – nem com a Administração Pública. A margem de atuação do governo define-se de forma variável, ora mais sintética, quando o arranjo político se mostra funcional, ora mais detalhada, quando as circunstâncias históricas exigem a positivação de uma forma particular, a fim de destacar, das atribuições rotineiras, funções especiais de direção, planejamento e condução daquela sociedade política. 1.4 Sistemas de governo: presidencialismo e parlamentarismo
A especificidade da noção de governo aparece com mais nitidez no plano de cada ordem jurídica positiva, com contornos próprios, como corpo destacado no interior do Estado, a partir de atribuições específicas que o distinguem também da Administração Pública, que lhe incumbe dirigir. Consagrada a ideia do controle do poder pelo poder, a distribuição de funções se organiza com características distintas nos regimes de governo típicos, o presidencialismo, afeito à noção de separação no seu sentido tradicional, e o parlamentarismo, baseado na colaboração entre as funções. Presidencialismo: governo como Poder Executivo
O modelo de governo do presidencialismo, assim como o parlamentarista, foi formado com base na experiência histórica, no caso, a que se segue à Revolução americana, registrada n’O Federalista84. Essa experiência é particularmente interessante para o estudo do governo, tendo em vista o desafio, enfrentado em diversas fases da vida institucional dos Estados Unidos, de fazer atuar um governo central, superando a descentralização histórica, para o enfrentamento de crises ou momentos de ruptura no país, como
ocorreu posteriormente na Guerra Civil e na depressão de 192985. A iniciativa de elaboração da Constituição norte-americana de 1787, vista pelos Antifederalistas como destinada apenas a “corrigir” os problemas dos Artigos da Confederação, de 1781, aprovados após a Independência americana, de 1776, visava superar a ausência de governo central no país. Os relatos da época dão conta de que após a guerra da independência, a reação ao despotismo britânico era de tal intensidade que em alguns dos estados a vida política beirava a anarquia. Com a exigência de aprovação de todas as decisões pelos Legislativos locais, não se tinha, sequer neste nível, a configuração de um governo ou Poder Executivo. No nível central (força de expressão, visto que, rigorosamente, não havia nenhuma estrutura governativa centralizada86) tudo se resumia a um Congresso Continental unicameral – em que cada estado tinha um voto, independente do número de delegados fixado pelo Legislativo estadual –, figurando como único elemento de integração o seu presidente. Não havia autorização dos estados o do povo para arrecadação de qualquer espécie de tributo, mesmo para suportar as despesas da guerra com a Inglaterra, que se prolongou até 1783. Portanto, o problema que inspira o movimento que fico conhecido como “Federalista” (originalmente apelidado de “nacionalista”) era tipicamente de organização do governo87. E a resposta, como se sabe, foi de cunho institucional-normativo, expressa na Constituição escrita mais sintética e mais longeva da história. A demanda por coordenação central era tão evidente que vários pontos implicados na nova organização foram aprovados sem maior controvérsia, tanto pela Convenção como no período de ratificação, como foi o caso dos poderes para criação de tributos, regulação do comércio e manutenção do exército88. “No curso daquele verão em Filadélfia os cinquenta e cinco delegados produziram um documento incrivelmente enxuto com sete artigos. O primeiro artigo estabelecia um Legislativo nacional bicameral e descrevia os seus poderes. O segundo estabelecia um Executivo nacional, um Presidente cujo mandato e poderes eram descritos. O terceiro estabelecia um Judiciário nacional investido em uma Corte Suprema. O quarto descrevia as futuras relações entre os estados. O quinto definia o processo segundo o qual futuras emendas poderiam ser acrescentadas à Constituição, e o sexto lidava com a assunção da dívida dos estados contraída antes da Constituição e a supremacia da Constituição. O sétimo e último artigo descrevia em uma frase o processo pelo qual a Constituição deveria ser ratificada. A Constituição, como apontado acima, incorporava duas realizações dramáticas: o triunfo do centro sobre a periferia e o triunfo do princípio dos freios e contrapesos sobre o princípio da supremacia do Legislativo” 89.
O presidencialismo norte-americano consistiu numa inovação político-institucional importante, considerada, no seu advento, uma fórmula híbrida, que preservava o traço centralizador da monarquia, despindo-a do caráter hereditário e do fundamento de direito divino, mas que seria justificada exatamente em razão da necessidade de organização de um governo central, que reunisse as forças dos treze estados na nova unidade política. Nos artigos que compõem o Federalista, essa preocupação fica evidente desde o início, com a inversão de perspectiva em relação ao problema do controle do poder. A tirania era um perigo a ser evitado. Mas o risco maior era a tirania da maioria, que já tinha dado mostras de sua ameaça durante os anos de vigência dos Artigos da Confederação. A tônica, portanto, não era fortalecer o poder do povo, no Parlamento, contra um governante que detivesse em suas mãos vários poderes, mas constituir um governo que efetivamente pudesse dirigir os desígnios comuns dos estados. “Ao constituir-se um governo – integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens –, a grande dificuldade está em que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo”90. O cumprimento das leis era também um problema a ser enfrentado, em vista do histórico dos Artigos da Confederação, em que a inobservância dessas era mais um fator de erosão da autoridade central:
“Governar implica o poder de baixar as leis. É essencial à ideia de uma lei que ela seja respaldada por uma sanção ou, em outras palavras, uma penalidade ou punição pela desobediência [sem o quê] serão, na realidade, nada mais do que conselhos ou recomendações. Essa penalidade, qualquer que seja, somente pode ser aplicada de duas maneiras: [...] pela coerção da magistratura ou pela coerção das armas”91. A “coerção da magistratura” inspirará a inauguração do sistema do controle de constitucionalidade, na decisão do caso Marbury vs. Madison, de 1803, quando se afirma a preponderância do Judiciário sobre o Legislativo, na guarda da integridade da Constituição. O interesse histórico do caso é evidente, mais ainda por explicar minuciosa e didaticamente o modo e a justificativa da atuação do controle de constitucionalidade, que consistia, àquela altura, numa inovação político-institucional de grande importância, como freio judicial ao Poder Legislativo, composição complexa e original do funcionamento dos poderes92. Mas o mais relevante talvez não seja a ideia dos freios e contrapesos enquanto mecanismo institucional de contenção recíproca entre poderes regidos pela lei. Essa ideia certamente está presente no regramento das relações entre os poderes ou seus segmentos, como ocorre entre as duas casas legislativas, a Câmara dos Representantes e o Senado, e também nas diversas regras definindo competências combinadas para nomeações ou julgamento de impeachment , que revelam a orientação de que “uma mistura parcial de poderes seria admissível”93. A questão central são os interesses em oposição, presentes na sociedade, cujas forças se contrabalançam, uma “política de jogar com interesses opostos e rivais”94. Esses conflitos entre os interesses tinham geralmente raiz econômica (“a fonte mais comum e duradoura das facções tem sido a distribuição variada e desigual da propriedade”95, reafirmando Rousseau). Sobre essa primeira divisão, várias outras se assentam: entre proprietários e não proprietários, credores e devedores, proprietários de terras, industriais, comerciantes e capitalistas se dividem em interesses distintos96. Os freios e contrapesos foram concebidos para conter os excessos da representação, de modo que o poder das facções do povo representadas pudesse ser compensado pelo movimento ativo de outras facções do próprio povo. A função do governo seria compor os interesses em conflito: “a harmonização desses diferentes interesses em choque constitui a principal tarefa da legislação moderna e envolve o espírito do partido e facção nas atividades necessárias e cotidianas do governo”97. A discussão da Constituição aponta duas formas de exercício do poder, que irão dividir as opiniões, marcando a origem dos partidos. Os republicanos, cuja opinião prevalece nos textos de O Federalista, defendem a república representativa, cujo propósito é mitigar os males da democracia, estabelecendo filtros aos desejos populares. Com a formação de um novo e grande Estado (e não de várias pequenas confederações, como advogavam os Antifederalistas) e a redução do número de representantes, essa forma de mediação teria o efeito de diluir as facções. O governo republicano, assim concebido, conciliaria o princípio da eleição, abrandando restrições tradicionais em governos congêneres, de modo a ampliar o sufrágio, reduzindo as exclusões dos pobres, iletrados e humildes, mas em compensação se orientaria para a aplicação da representação mediadora, escolhendo-se “como dirigentes as pessoas mais capacitadas para discernir e mais eficientes para assegurar o bem-estar da sociedade”98. A definição constitucional dos poderes presidenciais é limitada na descrição, resumindo-se à chefia das forças armadas e à execução das leis, mas ampla no sentido da autoridade, com os poderes necessários99. No retrospecto histórico, o governo, nessa experiência presidencialista, conquanto tenuemente delineado do ponto de vista jurídico formal, detém poderes suficientes para a direção central do país. A Constituição logrou obter uma combinação original entre organização e controle também no aspecto comunicacional, ao prever que a cada início de ano o presidente se dirija ao Congresso para
anunciar seus planos e prioridades políticas, e fixar as diretrizes do trabalho para o período100. Com isso, consagra-se um sentido político da prestação de contas, que suaviza o aspecto monárquico da presidência. A modernidade não apenas do texto, mas também da prática constitucional americana, expressa na atuação da Suprema Corte, conferem-lhe um força não igualada em outras experiências nacionais, também no sentido de que lograram superar momentos de ruptura institucional com a sobrevivência do texto original praticamente inalterado101. No que respeita à estruturação do governo, o modelo americano serve de referência aos demais Estados presidencialistas, em que a institucionalização da figura do governo tende a ser menor e residual, considerando-se atribuição do Poder Executivo a direção da Administração Pública e todas as funções não exclusivas do Legislativo ou Judiciário. Parlamentarismo: o gabinete no regime de colaboração entre poderes
O parlamentarismo típico, de matriz inglesa, é caracterizado pelo princípio da colaboração entre poderes Legislativo e Executivo. Diferentemente do regime presidencialista, que concentra na figura do Presidente da República as funções de chefia de Estado e de governo, no parlamentarismo essas funções são cometidas a pessoas distintas. O chefe de Estado tem como atribuição característica as relações com Estados estrangeiros e o chefe de governo, os assuntos de índole interna. A chefia de Estado recai sobre o rei ou rainha, nas monarquias, e sobre o presidente, nas repúblicas parlamentaristas. A chefia de governo é exercida pelo primeiro-ministro, eleito pelo Parlamento, mas nomeado pelo chefe de Estado. Assim como no presidencialismo, no regime parlamentar os poderes Legislativo e Executivo são independentes e iguais, do ponto de vista jurídico. O que caracteriza o princípio da colaboração é o fato de que o gabinete, isto é, o governo, em sentido estrito, incumbe-se das tarefas executivas, apoiando-se no Parlamento. Por isso diz-se que o gabinete é o elemento de união dos dois poderes102. Onde há bipartidarismo, o parlamentarismo é dito “de gabinete”, e este atua por delegação da maioria no Parlamento; onde há pluripartidarismo, o parlamentarismo é dito “de assembleia”, e a delegação ao gabinete é do Parlamento no conjunto103. Essa configuração política se organiza com base em dois mecanismos jurídicos que compõem as relações recíprocas de controle entre os dois poderes104. O Poder Legislativo tem iniciativa sobre a responsabilidade ministerial. Por esse mecanismo, o Parlamento pode provocar uma moção de desconfiança em face do gabinete, se entender que este perdeu as bases de sustentação política, em vista de medida ou programa em desconformidade com o entendimento da maioria. O efeito da desconfiança é a necessidade de formação de novo governo, por deliberação do Parlamento. O novo governo terá, então, legitimidade renovada para o enfrentamento dos temas que provocaram a queda de seu antecessor105. De outra parte, o Executivo tem em mãos o poder de dissolução do Parlamento. Se entender que está sustentado pela opinião popular e que o Parlamento, resistente, não tem na sua posição legitimidade, pode o gabinete provocar a dissolução do Parlamento, com a convocação de novas eleições, quando então o povo se pronunciará, nas urnas, conferindo sustentação a uma ou outra das posições. O Parlamento, fundamento do poder político do governo, pode pronunciar o voto de desconfiança e assim derrubá-lo, e, reciprocamente, o governo pode pedir uma moção de confiança e, não a obtendo, provocar a dissolução do Parlamento, sempre com a mediação do chefe de Estado e observadas as condições de quorum e prazo fixadas na Constituição. Evidentemente, as regras específicas do sistema partidário fazem diferença, não apenas em relação à legitimidade política, como também no tocante à estabilidade (ou seu contrário). Uma das críticas ao parlamentarismo é o fato de ser um regime que privilegia os partidos, em detrimento do povo,
individualmente considerado. Apesar disso, é um regime afeito à moderação, mais apto ao equilíbrio de poder, na medida em que combina os mecanismos eleitorais de participação do povo com uma forma mediada de governo106. “As questões que o presidencialismo só conhece como crises do poder não seriam respondidas apenas pelas maiorias parlamentares, muitas vezes em combate com a opinião pública, em dissídio com a vontade popular”107. 1.5 Formas de governo: a democracia contemporânea como discurso único e seus múltiplos sentidos
As formas de governo aparecem já na Política108, de Aristóteles, que as classifica em monarquia, aristocracia e república, a cada uma correspondendo uma forma degenerada e uma virtude. A monarquia é o governo de um só, visando ao interesse comum, e pode degenerar em tirania, quando voltada à utilidade do monarca. A aristocracia é o governo de poucos, “escolhidos entre os mais honestos”, em vista do maior bem do Estado e de seus membros, podendo desvirtuar-se em oligarquia, quando prevalece a utilidade dos ricos. Finalmente, a república é aquela “em que a multidão governa para a utilidade pública”, podendo degenerar em democracia, quando voltada à utilidade dos pobres109. Não há formas melhores ou piores, mas apenas aquelas que convêm ou não a cada povo110. O melhor governo está no meio-termo, e a república podia realizar esse ideal, quando a oligarquia e a democracia combinadas fizessem equilibrar os aspectos negativos de cada uma111. Nas formas boas de governo, a lei tem um papel preponderante. “Mas para que um Estado seja bem organizado politicamente não basta que tenha boas leis, se não cuidar de sua execução. A submissão às leis existentes é a primeira parte de uma boa ordem; a segunda é o valor intrínseco das leis a que se está submetido”112. A diferença que marca a república e a democracia reside exatamente no fato de a primeira ser o governo de leis. “[...] onde as leis não têm força não pode haver república, já que este regime não é senão uma maneira de ser do Estado em que as leis regulam todas as coisas em geral e os magistrados decidem sobre os casos particulares”113. No século XVIII, Montesquieu retoma a temática de Aristóteles, tanto em relação à classificação das formas de governo como ao papel das leis e das instituições políticas. Em O Espírito das Leis114, partindo da lei como categoria integradora dos princípios e máximas que orientavam a vida política de então (“a lei é a relação necessária que deriva da natureza das coisas”), numa visão secularizada da política, desvinculada da religião, Montesquieu examina o papel e o sentido da lei em cada uma das formas de governo, classificadas em república, monarquia e despotismo. No governo republicano, a soberania é do povo; em maioria, na forma democrática, ou em minoria, na aristocracia. A monarquia é o governo de um só, que age de acordo com as leis, diferentemente do despotismo, em que o governante segue apenas sua vontade e seus caprichos. Cada tipo de governo tem uma “mola propulsora”; na república é a virtude, a qual, na democracia, reside na igualdade e na aristocracia, na moderação. E isso auxiliava a compreender as razões da decadência da monarquia, em meio a conflitos reiterados, e a perspectiva de ascensão popular115, como ocorrera na Inglaterra, que tão vivo interesse tinha para Montesquieu, pessoalmente empenhado em conhecer o seu sistema político. Compreendendo a lei não como emanação divina, mas como decisão política, que resulta de relações políticas, era possível explicar o funcionamento das instâncias políticas, observando a forma como o poder se distribui na sociedade, entre os diferentes grupos e classes da população116. Da antiguidade de Aristóteles para a modernidade de Montesquieu há, evidentemente, uma diferença substancial, que consiste na ampliação do conceito de povo. Enquanto o primeiro é absolutamente
restrito, reservada a política aos homens livres, com exclusão dos escravos e todos aqueles que “não são abastados o suficiente para ficar sem fazer nada”117, no pensamento do século XVIII, o sufrágio era mais amplo, embora vinculado a rendimentos mínimos, exclusão das mulheres e outras limitações comuns à época118. É verdade que a direção política, na concepção de Montesquieu, não deve ser exercida pelo povo, na acepção contemporânea. O Poder Legislativo deve ser exercido por pessoas “capazes de discutir os negócios públicos”119, o que se duvidava que o povo soubesse fazer: “o povo, que tem muita capacidade para se dar conta da gestão dos outros, não a tem bastante para gerir a si próprio”120. A despeito da convicção aristocrática, Montesquieu localiza na igualdade (ideia que mais tarde Rousseau exaltará) a virtude de estabilização da sociedade, orientado por uma máxima de “frugalidade geral”121, em que o ideal seria evitar os extremos de riqueza ou de pobreza, para o que se justificaria a atuação moderadora do Estado, que “abre caminho às despesas públicas”122. Já se estabelecera, portanto, no final do século XVIII, no acervo das ideias que inspiravam os movimentos na sociedade, a igualdade como valor político, ao lado da liberdade. A obra de Roussea acrescenta, como elemento chave a esse acervo, a noção de legitimidade123, que será posteriormente desenvolvida por Weber na conhecida tipologia das formas de legitimação carismática, tradicional e racional-legal, já no cenário das jovens democracias do início do século XX124. A expressão institucionalizada desses valores é o fio que conduz às tensões que levam às democracias modernas.
a) Governo e política: o poder de todos no núcleo conceitual da democracia política A ideia essencial da democracia costuma ser epitomizada na proclamação solene de Lincoln no Gettysburg Adress, em 1863: “governo do povo, pelo povo e para o povo”. O povo como sujeito e não objeto do governo democrático, daí se extraem suas ideias-força: soberania popular, igualdade e autogoverno125. A democracia implica o esmaecimento da separação entre governantes e governados; os governados são, em princípio, os governantes. Além disso, implica considerar a relação entre Estado e sociedade civil; se a condução do Estado se faz a partir da sociedade civil, como expressão do autogoverno vislumbrado por Tocqueville em sua visão da Democracia na América126, ou se, ao contrário, nas sociedades menos desenvolvidas haveria um papel emancipadador a ser realizado pela direção do Estado. O pressuposto da democracia é a igualdade política. Em termos institucionais, seu mecanismo mais característico é o voto, que define os modos de transmissão do poder dos eleitores aos representantes, e seus temas clássicos são a escolha dos governantes e dos representantes do povo, o sufrágio, sua extensão e limites e as regras dos sistemas eleitorais e partidários, além da liberdade de expressão para a formação da opinião pública. Esses temas, assentados sobre as questões do poder, da coerção, da liberdade, da igualdade, da justiça e dos direitos, constituem o núcleo duro da conjugação entre o político e o jurídico. O instituto da representação política, que passa a ser utilizado de forma ampla na Constituição americana de 1787, marca o início de uma experiência de governo inteiramente nova na história dos Estados. Mas à época do seu advento, defendido como forma de possibilitar a organização do governo nas novas bases territoriais dos Estados Unidos que então se formavam, não se falava em democracia, mas em república, instituto que com ela não se confunde. “Semanticamente falando, res publica expressa a ideia de uma coisa que pertence a todos, ou de questões que concernem a todos – uma ideia substancialmente distante daquela que indica um poder pertencente ao povo. Demokratía presta-se (como em Aristóteles) a ser
interpretada como o poder de uma parte (em oposição a outra), ao passo que res publica não; e embora o primeiro termo se refira a um sujeito determinado (o povo), o segundo sugere o interesse geral e o bem comum. Além disso, historicamente falando, os dois conceitos distanciaram-se a tal ponto que o significado de ‘república’ tornou-se a própria antítese de democracia” 127.
A democracia representativa tornou-se sinônimo de governo democrático para a era contemporânea, uma vez que só a representação seria capaz de conferir a escala necessária para os governos da modernidade, o que alterou inteiramente a carga semântica negativa que esteve associada a grande parte dos experimentos democráticos da antiguidade128. A democracia constitui hoje o substrato da noção de governo na civilização ocidental. Com o refinamento das regras políticas e das regras sobre regras, o sufrágio veio progressivamente se ampliando, consagrou-se a supremacia do Parlamento e da lei, o funcionamento do Poder Judiciário e os mecanismos de controle do poder pelo poder. O Estado democrático de direito passou a constituir padrão institucional reconhecido amplamente e referência para as sociedades políticas que ainda não lograram atingi-lo. A gama de formas de governo, na prática, vê-se reduzida a um tipo dominante, a democracia, ladeada por esparsas formas distintas, uma vez que desde os anos 1940 nenhuma doutrina se apresenta como antidemocrática129. A democracia ou é praticada de modo efetivo ou é invocada retoricamente. Mais do que um arcabouço conceitual rígido, a democracia é, no dizer de Sartori, o “produto final político da civilização ocidental”, que se assenta sobre termos, conceitos, significados, interpretações, que resistem enquanto portadores, rememorações de experiências, que foram filtrando, através da história, o que não servia. Se por um lado as democracias são frágeis130 e “propensas ao fracasso”, por outro lado, o “perigo oposto” e os “resultados inversos” são sempre visíveis, a reforçar a percepção da inexistência de alternativa passível de legitimação política.
b) Governo e economia: capital, trabalho e meio ambiente na democracia econômica e social No século XIX, ao mesmo tempo que as lutas pela ampliação do sufrágio e implantação do regime democrático levavam essas questões ao centro das ideias políticas, estava em curso a mais formidável transformação social da história, com os frutos da revolução industrial e a formação do movimento socialista. A consolidação dos Estados nacionais, nesse período, resultou da interpenetração das dimensões jurídica e política com questões próprias da atividade econômica. A marca do século XX foi a explicitação do poder econômico – em movimentos de ação e reação com as resistências de inspiração socialista – ao mesmo tempo como parceiro e concorrente do Estado. O Estado, segundo a formulação de Max Weber, detém não apenas o monopólio do exercício legítimo da violência, mas também os meios de gestão postos à disposição pela sociedade131, os recursos financeiros, oriundos da arrecadação tributária e do crédito público, e as estruturas permanentes de atuação, os organismos e a burocracia públicos. Além disso, passou a deter poderes sobre comportamentos privados, diretamente ou por meio de incentivos e mecanismos de indução. À medida que a sociedade se tornava mais complexa, também o Estado necessitou ampliar e diversificar seus modos de atuação. Essa evolução, no sentido de abranger um leque mais amplo de responsabilidades e combinando modos de atuação diversos, como a participação na vida econômica ou a sua regulação, gerou novos problemas e desafios para o direito. O Estado moderno se forma em paralelo com a organização da economia capitalista. Num primeiro momento, o Estado é necessário no âmbito da economia nacional e se associa às empresas. “Todo capitalismo é, em certo grau, de Estado”, como afirmou Celso Furtado, visto “que a economia capitalista não poderia operar sem um certo grau de centralização das decisões, ou seja, sem uma estrutura superior
de poder”132. Posteriormente, o Estado e as organizações internacionais que com ele se relacionam têm papel coadjuvante na expansão do capital além das fronteiras. Não se ignoram limitações dos Estados e, por conseguinte, dos governos, dadas por uma dinâmica geopolítica e geoeconômica que condiciona fortemente a macrodireção do seu funcionamento. A pujança da economia capitalista demonstra que o Estado é relativamente limitado diante dos processos de reprodução do capital, que não enxergam fronteiras geográficas ou morais. Contudo, não se pode limitar o papel da ciência jurídica à descrição desse outro Leviathan, não mais o Estado, mas o capital, em sua inexorável produção e autorreprodução, desde a economia, com repercussão sobre o conjunto das condições sociais. Apesar disso, uma das fontes para a leitura crítica da economia e inspiração das teorias do desenvolvimento, o marxismo, tem poucas respostas a dar sobre os caminhos a empreender pelo Estado, no cenário da democracia. Se a teoria marxista é extraordinária ao desvelar criticamente os fatores que determinam o funcionamento real do Estado – com a dinâmica do capital, que transcende a órbita econômica e se impõe como força de organização da sociedade, pelos mecanismos recursivos de reprodução do capitalismo –, é, por outro lado, muito limitada quanto à compreensão da dinâmica interna do Estado e do governo133. A ideia de “evanescimento” do Estado deixa em aberto como será ocupado seu lugar na dinâmica social. Vagamente, imagina-se um cenário de sociedade autorregulada – muito pouco crível, no entanto. Quanto à organização da ação, a teoria marxista deixou seus seguidores em amargo abandono. Órfãos da revolução, que a história do século XX mostrou, por meio de dramáticas experiências, tratar-se de uma quimera. As trágicas experiências autoritárias do século XX, à direita e igualmente à esquerda, instaladas nas estruturas dos Estados opressores, não foram capazes de evitar a exacerbação da tirania e o gozo de privilégios, em nome do “interesse do povo”; a “revolução” para os detentores do poder. Com isso, os herdeiros da tradição marxista rejeitam envergonhadamente as alternativas de ação que seriam tachadas de “reformistas”134. A insidiosa adjetivação paralisa a formulação de caminhos de atuação por dentro das instituições sociais existentes. O Estado, reduzido pela tradição marxista à condição de “comitê executivo da burguesia”135, inútil como locus de ação136. A crítica do mundo real levando à negação. Nem revolução nem reforma.136 Forma-se, então, uma tradição, ao mesmo tempo cética em relação às possibilidades do Estado não condicionadas pelos interesses das classes dominantes, mas dependente desse mesmo Estado como instrumento necessário para a “transição” a um outro tempo e modo econômico e social. Essa ambiguidade dificulta a compreensão e a elaboração mais refinadas do papel e dos meios de ação do Estado137. Giovanni Sartori e, no Brasil, Dalmo Dallari recusam a adjetivação da democracia como política o social, diante do risco de legitimação de uma concepção economicista de democracia, que se colocasse como alternativa ao núcleo essencial do conceito, que é e deve ser antes de tudo político. A enunciação dessas formas de democracia enfraqueceria a referência central e obrigatória ao problema do poder, o acesso a ele e suas formas de exercício, cerne da questão democrática. Em sentido contrário, o triunfo da visão exclusivamente política implicaria a desistência de um projeto fraterno de integração humana, que congrega as facetas política, jurídica e econômica dos modos de organização do Estado, da economia e da sociedade138. É verdade que a democracia se diversificou e, matizada em relação ao problema da igualdade econômica trazido pelos movimentos de trabalhadores do século XIX e pela teoria marxista, corresponde a múltiplos tipos, a depender da combinação específica dos vários elementos que a caracterizam. As
democracias contemporâneas se adjetivaram, a partir de aspirações acrescidas, como democracia social (mesmo a enfrentar a contradição entre a garantia da liberdade e o dever de prestações pelo Estado)139, e uma dimensão processual nova, como democracia participativa ou democracia deliberativa. A constitucionalização da economia e do planejamento tem um significado específico para as “democracias tardias”. O estabelecimento da democracia em um Estado emergente é um fator a mais a exigir e inspirar a criatividade jurídico-institucional para a diversificação das abordagens estatais. Os direitos sociais constitucionalizados são uma faceta própria da demanda pelo desenvolvimento. Não se trata apenas de realizar as prestações sociais, mas também de estimular e organizar a atividade econômica, em escala nacional, de onde provêm os recursos para o provimento das prestações. Por isso é que a Constituição brasileira não é – nem poderia ser – mais definida em relação aos modos de cumprimento dos direitos, embora isso, evidentemente, não lhes reduza a exigibilidade. O limite que parece colocar-se para o avanço do capitalismo será o esgotamento ambiental. A percepção desse processo será cada vez mais visível enquanto se mantiver o consumo acelerado dos recursos da terra, que aumenta continuamente, chegando a várias vezes a capacidade do planeta, o que só é possível porque ele se distribui de maneira desigual, apresentando excesso no mundo ocidental desenvolvido – paradigma reivindicado por alguns países em desenvolvimento – e carência nos outros, como os países africanos, por exemplo, que jamais retirarão suas cotas nesse “fundo ambiental” do planeta. Por essa razão, definindo-se o desenvolvimento, do ponto de vista das pessoas, como questão de liberdade140, resta enfrentar as estruturas econômicas, sociais e políticas que historicamente se associam à produção e reprodução da desigualdade, da pobreza e do subdesenvolvimento. Ainda que no sentido capitalista (alternativa que restou, no final do século XX), as organizações estatais buscarão também limitar o poder destrutivo do capital.
c) Governo e direito: constitucionalismo, judicialização e a “democracia dos direitos” A explicação de Sartori para a ressignificação do conceito de democracia na modernidade tem um componente processual e outro material. No aspecto processual, a democracia é, em suma, o “governo pela discussão”141. À medida que a ideia de governo da maioria cedeu lugar à necessária salvaguarda das minorias, consagram-se o dissenso e a diversidade. Isso se desdobra na necessidade de estabelecer os termos e a forma da discussão, o que Dahl chama de “metarregra” da democracia, ou a capacidade dos cidadãos de exercer o controle do planejamento das decisões do governo, ou decidir sobre o que o governo vai decidir (o que, na linguagem das políticas públicas, designa-se por “controle da agenda governamental”)142. De outro lado, sob o aspecto substantivo, a democracia é “inerentemente um sistema de direitos”143. E que tem um indiscutível aspecto ético, de índole igualitária e libertária. Esse lastro ético é o que pode evitar os riscos inerentes a esse tipo de governo na sociedade de massas, conforme experiências trágicas á o demonstraram. Max Weber, sumariando o entendimento de muitos, entendia o constitucionalismo como o fator que definitivamente consolidou e unificou o Estado, “o que permitiu sentir, de maneira definitiva e urgente, uma orientação formalmente unificada do conjunto da política, inclusive a política interna, sob a égide de um só homem de Estado”144. Seguindo essa linha, o constitucionalismo do século XX reforçou ainda mais esse sentido de unidade, agora ancorado na legitimação proporcionada pela “democracia dos direitos”. A disseminação das formas de controle concentrado de constitucionalidade, marca do constitucionalismo do pós-guerra, que desencadeou uma ampliação sem precedentes da função judicial, com a criação e funcionamento dos tribunais e Conselhos Constitucionais, assim como as Cortes de
Direitos Humanos, alteraram o papel da Constituição, que assumiu definitivamente o sentido de norma urídica, não mais mero pacto político, o que repercute sobre a aplicação do direito quando se desce verticalmente pela hierarquia normativa. À medida que se amplia o alcance da Constituição, também se juridificam, crescentemente, as esferas de atuação política não disciplinada direta ou exclusivamente por ela. O paradigma jurídico do pósguerra, centrado nas Constituições garantistas, com sua “força normativa” assegurada pela multiplicação dos instrumentos de controle judicial, modifica o papel jurídico específico dos governos. Consagraramse os direitos e também as garantias, o que faz deles bens exigíveis. Isso tudo constitui limitação da política. E impõe custo político aos governos que cogitem diminuir a fruição de qualquer desses direitos. Com isso, categorias como a dos atos de governo perdem o sentido original, de imunidade ao controle urídico ou insindicabilidade judicial, para serem permeadas pelo direito, sob determinadas condições. Não apenas se supera a ideia de imunidade dos atos de governo a controle judicial, mas também se amplia significativamente o fenômeno da judicialização da política. Isso se reflete na maior incidência de controles judiciais sobre a atividade política e também no deslocamento de decisões difíceis do Poder Legislativo para o Judiciário. O fenômeno da alternância do foco decisório entre Parlamento e Corte Suprema, aliás, não é peculiar do Brasil145. O governo, jurisdicizado, com os limites das regras eleitorais, a disciplina dos partidos políticos e do orçamento e outros temas, modifica profundamente os modos de exercício do poder, passando a ser demandado em temas que no passado estavam no campo da moral política, tais como os direitos sociais. O poder político passa a corresponder a formas não apenas institucionalizadas, isto é, disciplinadas uridicamente, mas é obrigado a observar limites que as Constituições em geral “elevaram”, isto é, retiraram do alcance do Poder Legislativo, com sentido de “imunização” ao poder das “maiorias parlamentares ocasionais”, conforme a justificação apresentada para a proteção especial dos direitos fundamentais. A política, em certa medida, se “esteriliza”, à proporção que a legitimidade passa por processos jurisdicizados. O exercício da jurisdição constitucional em sua plenitude, nesse sentido, pode ameaçar a dimensão política dos direitos. “[...] é impressionante a pouca preocupação existente em face do direito gerado pela jurisprudência, pois este implica um abandono duplo do desejo do povo, por um lado pela alteração do desejo do Legislativo e, por outro, pela criação de direito por aqueles que não são politicamente responsáveis para isso”146. Mas é forçoso reconhecer que há diferenças de ênfase e legitimação para esse controle, conforme se trate de democracias em que o Poder Legislativo funciona plenamente, ou aquelas em que há déficits evidentes de representação, como é o caso brasileiro.
d) Governo e administração: “governança” democrática A grande polarização entre os temas associados à política mais conservadora, a proteção da propriedade privada e a liberdade contratual, de um lado, e às conquistas do Estado social, proteção contra o desemprego, garantias básicas de saúde, educação e assistência, de outro, foi reciprocamente neutralizada por conquistas institucionalizadas num e noutro sentidos, variando nas formas e na combinação dos seus vários componentes. Qualquer disputa em relação a esses temas deve necessariamente descer ao plano da execução, ou seja, ao plano microinstitucional da ação governamental 147. Nos países que já deram conta da implantação das estruturas fundamentais da democracia, eleições regradas, partidos regulares, controle em relação às regras eleitorais etc., o papel da chamada “grande
política” desce ao plano dos mecanismos de funcionamento efetivo e operacional do Estado e do governo, uma vez que os embates se dão cada vez mais nesse nível. A questão não é reduzir o papel da política, mas relocalizar o seu exercício, do plano macro-institucional, espaço típico do Estado, para o plano microinstitucional, cuja unidade são as ações governamentais. A ação governamental passa a ser vista como um objeto epistemológico específico. Amplia-se o sentido da velha blague sobre a política dos Estados Unidos, de que não há nada mais parecido com um republicano do que um democrata148. Nas democracias maduras da Europa, esse fenômeno aparece na mornidão eleitoral, com baixo comparecimento de eleitores e debates que não comovem o conjunto da sociedade. As questões fundamentais a respeito da vida e do cotidiano dos cidadãos estão razoavelmente asseguradas pelo padrão social-institucional vigente149 e, salvo em circunstâncias excepcionais, estão pouco ameaçadas pelas guinadas da política, as quais, quando ocorrem, em regra tocam apenas marginalmente o patamar de fruição do “mínimo existencial”. Isso a despeito de o paradigma da centralidade do Estado vir sendo posto em questão há quase duas décadas pela realidade da União Europeia, que demanda a revisão das bases e os papéis do Estado nacional, diante dos organismos da estrutura confederativa europeia150. Além disso, há problemas de ordem social. O fator demográfico é um deles, visto que as sociedades avançam na média etária, sem reposição pelas novas gerações, o que acirra o dilema da imigração, ao mesmo tempo necessidade econômica para a provisão de força de trabalho e sinal de exaustão de um modelo econômico e social envelhecido. A margem de discricionariedade política também se reduz diante de compromissos e padrões internacionais oficialmente chancelados de atendimento a certos direitos e mesmo quanto à forma de cumprimento de certos deveres pelo Estado, de que são exemplos os padrões internacionais da Organização Mundial da Saúde, as normas bancárias do acordo de Basileia e assim por diante. Também essa circunstância é abrigada pelas Constituições contemporâneas, que consagram o respeito aos compromissos internacionais assumidos pelo país, cuja adoção é um gesto de exercício de soberania151. Há quem veja a crise do Estado de maneira sombria, entendendo que “essa onda geral de retração que atinge todas as variantes estatais elimina não apenas o protetorado estabelecido pelo Estado sobre a vida social ao longo do século XX; [...] renunciando a essas pretensões hegemônicas sobre a vida social, é um pouco de sua própria alma que o Estado abandona, são seus próprios alicerces que ficam comprometidos. Esse comprometimento é tão nítido que o principal motor de evolução se situa doravante fora do Estado”152. Nesse contexto desenha-se a noção de governança global, que também perturba o domínio tradicional da política, significando a gestão dos assuntos coletivos, com múltiplos centros decisórios, sem estrutura definida de governo central com supremacia e soberano, “conjunto de organizações gerais e setoriais e acordos” não orientado por hierarquia, mas por regras, procedimentos, traços funcionais e comportamentos, que prevalecem sobre as estruturas153. O “direito público não estatal”, que se forma como escopo de controlar as forças da globalização, enquanto dinâmica de atuação não de Estados, mas de grandes multinacionais e seus problemas, são distintos daquilo que caracteriza o cerne da problemática estatal: “a supremacia do Executivo, as relações centro-periferia e a representatividade”. Essa “governança”, que se vai definindo depois da formação das primeiras instituições europeias, tem outra gama de preocupações, precipuamente relacionadas “à decisão conjunta, à colaboração e à rule o law”. Seus problemas mais prementes são de estrutura organizacional, coordenação, coerência decisória154. Sua justificação não são princípios religiosos ou morais, como outrora, mas “valores econômicos e materiais (sanitários, meteorológicos, alimentares etc.)”155. A despeito disso, o modo de
intervenção do Estado sobre a economia também se altera, passando a ser fragmentado, dividido entre autoridades independentes, que, na condição de reguladores, dialogam com o setor regulado, num ritual que “imita e completa a democracia política”156. Simultaneamente a esse processo, há uma migração das tensões – não apenas políticas, no sentido clássico, mas também administrativas, representativas e participativas, a um só tempo – para o interior do aparelho do governo, e o lugar das decisões, que era competência da política, desloca-se para a administração157. 1.6 A policy analisis e a abordagem interdisciplinar do fenômeno do governo
A multiplicidade de abordagens do fenômeno do governo é um dos traços que caracteriza a policy analisis, na raiz da concepção das políticas públicas, com origem na ciência política americana, a partir dos anos 1950. No período do pós-guerra, ainda ao influxo dos programas sociais e de estímulo às empresas dos anos 1930 e 40, ganham relevo os processos de decisão sobre os programas de apoio públicos. A guerra fria também cria novas questões, demandando entendimento sobre o fenômeno do soft ower, isto é, a força contida, explicitada em formas de indução de comportamentos e não pelo emprego da coerção, atributo clássico do poder, no sentido tradicional. Isso determina uma divisão de caminhos na ciência política e, a partir daí, uma concepção dual de olitics e policies. A primeira está centrada nas questões clássicas do poder e suas formas institucionais158. A segunda concepção, a partir de influências da teoria de sistemas e da psicologia, dá origem à policy science, e depois à policy analysis, que desenvolvem abordagens originais para os novos problemas governamentais, considerando as diversas variáveis que conformavam os processos de poder ou exerciam influência sobre ele159. A análise de políticas públicas é fruto dessa nova forma de compreender e estudar a ação coletiva e a ação governamental. Esse movimento é liderado, entre outros, por David Easton, que, embora psicólogo de formação, foi presidente da Associação Americana de Ciência Política (APSA). Seu objetivo era estabelecer a ciência política como campo do conhecimento, com estatuto científico renovado em relação às matrizes da filosofia política anterior à guerra. A visão tradicional, de cunho prescritivo, filosofia moral assentada sobre a história das ideias, deveria dar lugar ao que Easton classificou de “era científica da ciência política”, baseada no empirismo, com a aplicação plena do método científico, que se prestasse a fornecer explicações demonstráveis sobre os fenômenos da política160. O ponto de partida dessa teoria empiricamente orientada era a investigação do comportamento político, com fundamento na corrente behaviorista (comportamentalista) da psicologia americana. Passase a analisar o sistema político como um sistema de comportamentos, sua estrutura e processo, considerando o ambiente, outros sistemas, demandas, petições, autoridades etc.161. Com isso, buscava-se captar a realidade organizativa, social, política e institucional da política, com um modelo formal de decisões, interações, inputs e outputs, influências de ambientes, informação e configuração do flow o olicy, com o propósito de buscar uma visão totalizadora, com base no plano ou no sistema162. E talvez aí resida a distinção mais importante introduzida pela policy analysis. Enquanto a teoria política clássica isola o aspecto do poder como tema central, procurando compreender a sua forma específica de funcionamento, para as novas abordagens, o poder seria apenas uma dentre as diversas variáveis a explicar o fenômeno da ação governamental. Nesse sentido, poder-se-ia citar Talcott Parsons, sociólogo e fundador do funcionalismo estruturalista, que subverte o tratamento clássico dado ao poder ao caracterizá-lo como meio a serviço da autoridade, assim como o dinheiro é um meio a serviço da
economia. O poder, da mesma forma que a influência, seria apenas um meio; “meio simbólico generalizado, que circula de forma semelhante ao dinheiro, e cuja posse e uso permitem que as responsabilidades de um cargo com autoridade numa coletividade sejam cumpridas”163. Em outras palavras, uma “instrumentalidade básica para o desempenho efetivo da autoridade”164. Esse é o motivo da reserva dos adeptos da teoria política clássica, como Giovanni Sartori, entre outros, em relação à nova abordagem165. A policy é definida como “uma trama de decisões e ações que alocam valores”166. O processo decisório ou decision making coloca-se no centro dos estudos sobre administração e decisão, com interesse não apenas na tomada de decisão em si, mas também nas iniciativas políticas diante dos problemas concretos, alternativas, avaliações e resultados167. A análise política se desloca para o estudo dos problemas relativos não apenas ao poder, mas também à economia, cultura e sociedade, em estudos comparados. O conjunto de técnicas que se desenvolveu em seguida, para captar o fenômeno em sua complexidade, foi considerado o “elo perdido” da ciência política, o nível intermediário das relações governamentais, em que o poder político é mais bem definido “por seus atos que por suas estruturas e funções”168. Uma amostra do diálogo interdisciplinar subjacente ao novo método proposto ocorreu num seminário realizado pela APSA (American Political Science Association) em 1963, em Nova York, com a presença, entre outros, de autores como Herbert Simon, James Buchanan, James March e Talcott Parsons, cujas obras seriam posteriormente as referências das teorias da escolha pública ( public choice), do institucionalismo organizacional e do funcionalismo169. A área jurídica é a última participante de um debate intenso na ciência política. Na França, esse diálogo começa a estabelecer-se, provocado pelo interesse em compreender não apenas os efeitos e usos das normas jurídicas nas políticas públicas, mas também fenômenos novos, tais como a emanação de normas jurídicas de organismos privados ou não estatais no sentido tradicional, a sugerir a multiplicação de fontes do direito, a proliferação regulamentar, o que valorizaria a inspiração jurídica de tradição inglesa, em confronto com a tradição estatista do direito170. O duplo fenômeno da jurisdicização e udicialização progressivas das relações sociais, por meio dos quais tanto a vida social passa a ser crescentemente mais regrada pelo direito como, simultaneamente, os conflitos passam a ser com mais frequência submetidos à decisão judicial, reforça essa multiplicidade de polos jurídicos171. Soma-se a isso o interesse numa visão mais acurada sobre a ação governamental, que contemple os esquemas sequenciais de elaboração e implementação de políticas públicas, aplicação processual e procedimental da política e da gestão pública, que renova e aprofunda a concepção de democracia, vista “como um regime não somente político, mas social onde o acesso de todos a um direito que se torno pluralista se faz possível”172. Essa abordagem, permeada de uma racionalidade substancial de tipo econômico, perturba antigas tradições estabelecidas e provoca interrogações no direito e na ciência política acerca das transformações na ordem jurídica e no Estado173, as quais estão no fundo do diálogo interdisciplinar sobre as políticas públicas como objeto epistemológico. Nesse sentido, a descrição do surgimento da olicy analisis e suas questões estruturantes auxiliam a compreender o crescimento em importância, no Brasil, da abordagem das políticas públicas neste momento. Lá, naquela ocasião, valorizavam-se de modo especial a teoria organizacional e o processo de decisão, como núcleo do processo político, temas de que carece de reflexão e elaboração, na fase atual, o movimento de reestruturação do Estado brasileiro.
13 Max Weber. Econo 13 Max Weber. Economi miaa e Soc Sociedad iedadee . Brasília: Ed. UnB, 1999, v. 2, p. 197. 14 Numa perspectiva epistemológica inteiramente distinta, a teoria de sistemas descreve o fenômeno de forma similar, demonstrando que a 14 redução de complexidade proporcionada pela assimilação de uma variação seria imediatamente seguida por uma outra instabilidade e nova complexidade. Celso Campilongo. Interp Campilongo. Interpretação retação do Direit Direitoo , cit. 15 P 15 Paulo aulo Bonavid Bonavides. es. Teoria do Estado. Estado. 4. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 195. 16 Norberto 16 Norberto Bobbio. A democracia e o poder invisível. In: O Futuro da Dem Democracia ocracia.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968, p. 87-106. 17 No 17 No capítulo 3 serão examinadas as noções jurídicas de instituição instituição e e institucionalização institucionalização.. 18 Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Dicioná 18 Dicionário rio de Política. Política. Brasília: Ed. UnB, 1991, v. 1, p. 425-431 e 553. Evidentemente o recurso ao dicionário presta-se apenas ao cotejo das definições, observado o nível de aprofundamento próprio de uma obra cujo propósito é exatamente sistematizar o conhecimento em determinado plano. 19 P 19 Pierangel ierangeloo Schiera. Verbete “Estado Moderno”. In: In: Dicioná Dicionário rio de d e Política (Bobbi Política (Bobbio, o, Matteucci e Pa Pasqui squino no – orgs.), cit., p. 426. 20 “É 20 “É usual caracterizar-se o Estado como uma organização política. Com isso, porém, apenas se exprime que o Estado é uma ordem de coação. Com efeito, o elemento ‘político’ específico desta organização consiste na coação exercida de indivíduo a indivíduo e regulada por essa ordem, nos atos de coação que essa ordem estatui. São-no precisamente aqueles atos de coação que a ordem jurídica liga aos pressupostos por ela definidos. Como organização política, o Estado é uma ordem jurídica.” Hans Kelsen. Teoria Geral do Direito e do Estado.. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 316-317. Estado 21 Dalmo 21 Dalmo Dallari. Elementos Dallari. Elementos,, cit., p. 118. 22 Roberto 22 Roberto Romano. Paz da Westfália (1648). In: História da Paz Paz (Demétrio (Demétrio Magnoli – org.). São Paulo: Contexto, 2008, p. 70-91. Enrique Ricardo Lewandowski Lewa ndowski.. Globalização, Regionalização e Soberania. São Soberania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. 23 Romano, Paz da Westfália..., in: História da Paz 23 Paz,, cit. Pedro Dallari desenvolve interessante raciocínio demonstrando que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, firmado antes mesmo da “descoberta” e reconhecimento oficial do território brasileiro, em 1500, obtém um acatamento significativo no que tange ao respeito às fronteiras convencionadas entre Espanha e Portugal, o que faz dele um antecedente importante dos Tratados de Westfália. Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari. Aspectos jurídicos da formação e da gestão do território nacional: o caso brasileiro. In: Relaçõe In: Relaçõess Internacion Intern acionais. ais. Múltiplas M últiplas Dimensões. Dimensões. São São Paulo: Aduaneiras, 2004, p. 13. 24 Thomas 24 Thomas Hobbes. Leviatã Hobbes. Leviatã ou São Paulo: Nova Cultural, 1997 [obra de 1651]. o u Matéria, Ma téria, Forma Fo rma e Poder Pod er de um Estado Eclesiástico Civil. Civil. São 25 Jean-Jacques 25 Jean-Jacques Rousseau. Do Rousseau. Do Contrato Co ntrato Soc Social. ial. Tradução Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1997. p. 85-89. 26 “Titre III – Des pouvoirs publics. Article premier – La Souveraineté est une, indivisible, inaliénable et imprescritible. Elle appartient à la 26 Nation; aucune section du peuple, ni aucun individu, ne peut s’en attribuer l’exercise”. 27 Também 27 Também na visão do direito administrativo há uma distinção nítida entre a posição interna e externa do Estado. “A personalidade do Estado em seu conjunto só é admissível no seio da comunidade dos Estados (o Estado enquanto sujeito de direito internacional em sua relação com outros Estados). Do ponto de vista do ordenamento interno não aparece, por outro lado, essa personalidade um tanto mística do Estado, senão a personalidade propriamente jurídica de um de seus elementos: A Administração Pública.” Eduardo García de Enterría y Tomás Ramon Fernández. Curso de d e Derecho Adm Administrati inistrativo vo.. 7. ed. Madrid: Civitas, 1995, v. I, p. 28. 28 Carlos 28 Carlos Estevam Martins. Apresentação. In: O Príncipe. Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 5-23. 29 Maquiavel. 29 Maquiavel. O Príncipe. Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 29-143 [obra de 1513], especialmente cap. XXII. Embora, evidentemente, sem adotar a dualidade Estado/governo aqui examinada, O Príncipe ilustra Príncipe ilustra como o segundo é menos abstrato e mais presente na realidade dos cidadãos ao afirmar que “os homens são muito mais sujeitos às coisas presentes do que às passadas e, quando encontram o bem naquelas, alegram-se e nada mais procuram; antes tomarão a defesa do príncipe se este não falhar nas outras coisas às suas promessas” (p. 129). 30 Maquiavel. 30 Maquiavel. Discurs Discursos os sobre so bre a Primeira Década Déca da de Tito Lívio. Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 52. 31 O Estado moderno é um “agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou (com êxito) monopolizar, nos 31 limites de um território, a violência física legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos dos dirigentes os meios materiais de gestão”. A caracterização weberiana de Estado, portanto, reside não apenas na consagrada expressão do monopólio da violência legítima, mas também na centralização dos meios de gestão. Max Weber, Econo Economi miaa , cit., p. 62. 32 “Não 32 “Não podem existir boas leis onde não há armas boas, e onde há boas armas convém que existam boas leis” (Maquiavel, Discurs Discursos os,, cit., p. 77 e 87 e cap. XII, em geral). A justiça também é vista pelo ângulo político-funcional, considerando que ela pouparia o príncipe de decisões desgastantes. Dalmo Dallari, Elem Elemento entoss, cit., p. 217. Ver também Maria Tereza Sadek. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. In: Os Clássicos da Polít (Francisco Weffort – org.). 5. ed. São Paulo: Ática, 1995, v. 1, p. 11-24. Política ica (Francisco 33 Giorgio 33 Giorgio Pastori. Verbete “Administração Pública”. In: Dicioná Dicionário rio de d e Política, Política , cit., p. 10. 34 Eduardo 34 Eduardo García de Enterría. Democracia Democracia,, Juece Juecess y Control de la Administraci Administracióón. n. 4. ed. Madrid: Civitas, 1998. O ano de criação do contencioso administrativo é 1806.
35 Art. 52 da Constituição do ano VIII. Guy Braibant e Bernard Stirn. Le Droit Admi 35 Art. Ad ministratif nistratif Franç Français. ais. 4. 4. ed. Paris: Presses des Sciences Po/Dalloz, 1997, p. 29. 36 O modelo da jurisdição contenciosa administrativa foi adotado na Itália, em Portugal, na Espanha e na Grécia. García de Enterría, 36 Democracia , cit., p. 37. A despeito disso, no caso da França, as razões para a formação da jurisdição administrativa são particulares e repousam sobre a desconfiança em relação à magistratura, que por lei de 1790 interdita a atuação dos juízes sobre as operações dos corpos administrativos. Braibant e Stirn, ob. cit., p. 28. 37 Braibant 37 Braibant e Stirn, Le Stirn, Le Droit , cit., p. 27. 38 Keneth 38 Keneth Warren. Administrative Warren. Administrative Law in the Political Politica l System. 3. System. 3. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 1996, p. 173-174. 39 Disponível 39 Disponível em:
. Acesso em: 29-7-2011. 40 Max 40 Max Weber. A política como vocação. In: Ciência e Política. Duas Vocações. São Vocações. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 69 e s. Os funcionários são animados por um sentimento de “honra corporativa” e “integridade”, cabendo aos chefes políticos uma honra de outro tipo. 41 A 41 A separação de poderes será examinada mais à frente, item 1.3. 42 García 42 García de Enterría e Fernández, Curso Curso,, cit., p. 26-27. 43 Ver 43 Ver item 2.2.a, infra infra.. 44 Hely 44 Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. Brasileiro. 21. 21. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo e outros São Paulo: Malheiros, 1996, p. 60. “Comparativamente, podemos dizer que governo é atividade política e discricionária; administração é atividade neutra, normalmente vinculada à lei ou à norma técnica. Governo é conduta independente; administração é conduta hierarquizada. O Governo comanda com responsabilidade constitucional e política, mas sem responsabilidade funcional pela execução; a Administração executa sem responsabilidade constitucional ou política, mas com responsabilidade técnica e legal pela execução. A Administração é o instrumental de que dispõe o Estado para pôr em prática as opções políticas do Governo. Isto não quer dizer que a Administração não tenha poder de decisão. Tem. Mas o tem somente na área de suas atribuições e nos limites legais de sua competência executiva, só podendo opinar e decidir sobre assuntos jurídicos, técnicos, financeiros ou de conveniência e oportunidade administrativas, sem qualquer faculdade de opção política sobre a matéria” (p. 61). 45 Lucio 45 Lucio Levi. Verbete “Governo”. In: Dicioná Dicionário rio de d e Política, Política , cit., p. 553. 46 Idem, 46 Idem, ibidem. 47 García 47 García de Enterría e Fernández. Curso Curso,, cit., p. 32-33. 48 Carré 48 Carré de Malberg. Teoría General Genera l del Estado. México: Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 2001, p. 480 e s. [obra de 1922]. 49 Apud 49 Apud Carré de Malberg, ob. cit., p. 484. 50 Carré de Malberg, ob. cit., p. 483-484. Mas o sentido dessa “delegação constitucional”, é preciso lembrar, seria inteiramente distinto da 50 noção atual, em vista da ausência de mecanismo de controle de constitucionalidade, que na França só veio a ser criado com a instalação do Conselho Constitucional, pela Constituição de 1958. Mesmo a criação do Conselho Constitucional não estabeleceu mecanismo tipicamente urisdicional de controle de constitucionalidade, visto que suas atribuições são predominantemente consultivas. Louis Favoreu e Loïc Philip. Les Grands Décisions du Conseil Constitutionnel. Paris: Constitutionnel. Paris: Dalloz, 2001, p. XIV. 51 Kelsen. 51 Kelsen. Teoria Geral do Direito e do Estado , cit., p. 386. Kelsen subverte a perspectiva tradicional da separação de poderes, referindose aos parlamentares como “corpo de funcionários públicos”! 52 Renato 52 Renato Alessi, apud Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Pietro. Direito Administrativo Administrativo.. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 55-56. 53 García 53 García de Enterría, Democracia Enterría, Democracia , cit. O autor redige um prólogo especial para a 4ª edição do livro, para rebater o teor de uma obra então recém-publicada que retomava, na Espanha redemocratizada, a linha dos atos de governo como detentores de legitimação política suficiente para afastar qualquer espécie de controle jurídico. No Brasil, cabe registrar a previsão da figura dos atos de governo nas Constituições de 1934 (art. 68) e 1937 (art. 94), como imunes ao controle judicial, mas essa orientação não permaneceu nos textos e na prática constitucional que se seguiram. Di Pietro, Direito Pietro, Direito Administrativo Administrativo,, cit. 54 A 54 A rejeição à apreciação judicial dos atos políticos é vista como forma de autocontenção do Poder Judiciário, a qual, como tendência geral, é aplicada de maneira mais restrita que no passado. José Elaeres Marques Teixeira. A Doutrina Dou trina das Questõ Questões es Políticas Po líticas no Sup Suprem remoo Tribunal Tribuna l Federal.l. Porto Federa Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 2005. 55 Ver 55 Ver item 2.1.c, abaixo. 56 Montesquieu. 56 Montesquieu. Do Do Espírito Esp írito das da s Leis. São Leis. São Paulo: Nova Cultural, 1997 [obra de 1748]. 57 A combinação da separação de poderes com a enunciação de direitos, como se sabe, foi consagrada na Declaração dos Direitos do 57 Homem e do Cidadão, França, 1789, cujo art. 16 dispôs: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes determin determinada ada não nã o tem Constituição”. Constituição”. 58 Montesquieu. 58 Montesquieu. Do Do espírito e spírito das d as leis, leis , cit., p. 201. 59 Para os cidadãos, cuida-se da relação institucionalizada entre a liberdade e a lei, segundo a máxima: “Uma constituição pode ser tal que 59 ninguém será obrigado a fazer as coisas a que a lei não o obrigue nem a não fazer as coisas que a lei lhe permite”. Montesquieu, ob. cit., p. 200. 60 Essa tipologia se baseia nas três grandes divisões do direito da época: o direito político, que trata da relação dos governantes com os 60 governados, o direito das gentes, que trata da relação entre as nações, e o direito civil, que trata da relação entre os indivíduos. Há uma homologia entre os dois planos em que se organiza a sociedade, o dos indivíduos e o das coletividades de indivíduos, as sociedades ou nações. Montesquieu, ob. cit., p. 201.
61 Montesquieu, ob. cit., p. 201. 61 Montesquieu, 62 Montesquieu, 62 Montesquieu, ob. cit., p. 202. 63 “O 63 “O corpo representante também não deve ser escolhido para tomar uma resolução ativa, coisa que não executaria bem; mas, sim, para fazer leis, ou para ver se as que fez estão sendo bem executadas, coisa que pode realizar muito bem e que ninguém pode fazer melhor do que ele”. Montesquieu, ob. cit., p. 205. 64 Montesquieu, 64 Montesquieu, ob. cit., p. 206. 65 Montesquieu, 65 Montesquieu, ob. cit., p. 209. 66 Montesquieu, ob. cit., p. 131. Essa relativização é considerada em outras passagens, como quando se alude a ocasiões “em que é 66 necessário que o senado possa tomar decisões; muitas vezes é conveniente experimentar-se uma lei antes de estabelecê-la” (idem, ibidem). 67 Montesquieu, ob. cit., p. 207. Sobre a harmonia entre os poderes: “Eis, assim, a constituição fundamental do governo de que falamos. O 67 corpo legislativo sendo composto de duas partes, uma paralisará a outra por sua mútua faculdade de impedir. Todas as duas serão paralisadas pelo Poder Executivo, que o será, por sua vez, pelo Poder Legislativo. Estes três poderes deveriam formar uma pausa ou uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, eles serão obrigados a caminhar, serão forçados a caminhar de acordo” (p. 209). 68 Conforme muitos já observaram, o registro de Montesquieu da “Constituição da Inglaterra” não corresponde exatamente ao seu 68 funcionamento efetivo. Entre outros pontos, o fato é que não se fala em Estado naquele país, mas em Coroa (ou Rei ou Rainha), termo que engloba toda a organização administrativa, e Parlamento. “Ambos os sujeitos estão simplesmente em relação, como estão as partes de um contrato, nexo no qual cada um mantém íntegra sua individualidade; concretamente, Rei e povo são reciprocally trustees for each other.” other. ” Os tribunais, por sua vez, também não são órgãos da Coroa ou do Estado, mas são expressões do “direito da terra”, the law of the land; land ; o common law não law não é considerado estatal, ainda que os juízes atuem nominalmente em nome da Coroa. A constituição inglesa seria uma ideia simples de unificação estrutural dos poderes, que Montesquieu teria transposto como uma técnica de proteção da liberdade. Essa, por sua vez, expõe-se a um rebaixamento que a faz “presa fácil da concepção transpersonalista do Estado, que reduz os poderes a simples órgãos de um ente superior”. García de Enterría e Fernández, Curso Curso,, cit., p. 29-30. 69 J. 69 J. A. Guilhon Albuquerque, Montesquieu: sociedade e poder. In: Os Clássicos da Política (Francisco Política (Francisco Weffort – org.). 5. ed. São Paulo: Ática, 1995, v. I, cit., p. 120. 70 Aristóteles. 70 Aristóteles. A A Política. Política. São Paulo: Martins Fontes, 2002, Livro III, cap. X, p. 127. 71 São enunciados tribunais para as seguintes funções: apresentação de contas e exame da conduta dos magistrados, malversações 71 financeiras, crimes de Estado ou atentados contra a Constituição, multas contra as pessoas, públicas ou privadas, contratos entre particulares, assassínios ou tribunal criminal, negócios dos estrangeiros e “pequenas causas”. Aristóteles, ob. cit., Livro III, cap. X, p. 142. 72 Aristóteles, 72 Aristóteles, ob. cit., Livro III, cap. X, p. 136. As referências à administração da justiça no Executivo e não no Judiciário justificam-se em razão da conveniência, segundo Aristóteles, de separar “os cargos que expõem ao ódio”, como ocorria na execução das sentenças condenatórias condenatóri as e nas vendas ju judi diciárias. ciárias. 73 “[...] 73 “[...] há várias espécies de Estados, tão diferentes entre si quanto o são suas partes integrantes. Com efeito, sua Constituição não é senão a ordem dos poderes ou magistraturas que nelas se distribuem a todos, ou então segundo a espécie e igualdade comum quer entre pobres, quer entre os ricos, quer entre ambos. Portanto, deve haver tantas formas de governo quantas ordens estabelecidas segundo estas superioridades, em qualquer gênero que for e segundo estas diferenças entre as partes integrantes”. Aristóteles, ob. cit., p. 108. 74 Locke. 74 Locke. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Civil . Petrópolis: Vozes, 1994, p. 163. 75 Locke, ob. cit., p. 170. Desnecessário apontar a atualidade dessa observação, em vista da questão dos conflitos de interesses, cuja 75 incidência é deletéria em qualquer dimensão do Poder Público. 76 Locke, 76 Locke, ob. cit., p. 170. 77 “Mas como as leis que são feitas num instante e um tempo muito breve permanecem em vigor de maneira permanente e durável e é 77 indispensável que se assegure sua execução sem descontinuidade, ou pelo menos que ela esteja pronta para ser executada, é necessário que haja um poder que tenha uma existência contínua e que garanta a execução das leis à medida que são feitas e durante o tempo em que permanecerem permanecer em em vigor.” vigor.” Locke, ob. cit., p. 170 170.. 78 Locke, ob. cit., p. 181. A questão da prerrogativa foi examinada no contexto do direito administrativo, a propósito das “prerrogativas 78 exorbitantes do direito comum”, em meu Direito meu Direito Administrativo Administrativo e Políticas Públicas Públicas,, cap. 4, item 3 (São Paulo: Saraiva, 2002). 79 Karl 79 Karl Loewenstein. Teoria de la Constitución. Constitución . Barcelona: Ariel Derecho, 1986, p. 137. 80 Kelsen concorda que a importância histórica do princípio da separação de poderes está mais na defesa em face dos perigos da 80 concentração de poder do que em favor da separação, propriamente. Nesse sentido, a aplicação literal do princípio da separação de poderes seria contrári c ontráriaa à democracia, de mocracia, na medida medida em que impediria impediria que o povo, por por seus s eus represe representantes, ntantes, exi e xigi gisse sse a responsabil responsabilid idade ade dos demais poderes perante o Poder Legislativo. “[...] a democracia exige que ao órgão legislativo seja dado controle sobre os órgãos administrativo e judiciário. Se a separação da função legislativa das funções aplicadoras de Direito, ou um controle do órgão legislativo pelos órgãos aplicadores de Direito, e, sobretudo, se o controle das funções legislativa e administrativa pelos tribunais está previsto pela constituição de uma democracia, isso só pode ser explicado por motivos históricos, não justificados como elementos especificamente democráticos.” Kelsen. Teoria geral do Direito e do Estado Estado,, cit., p. 403-404. Curiosa capitulação do normativismo diante da história... que, é bom lembrar, havia sido expurgada do método kelseniano. 81 Dalmo 81 Dalmo de Abreu Dallari. Elem Dallari. Elementos entos,, cit. cit.,, p. 215. 82 Vistas 82 Vistas agora não como um conjunto de meras atividades executivas da lei, mas como um poder autônomo, como uma “forma de realização dos fins do Estado através de um novo degrau de concretização do direito”. Jaime Valle. A Participa Participação ção do Gover Governo no no Exercício da
Função Legislativa. Coimbra: Coimbra Ed., 2004, p. 10. 83 Idem, ibidem. 84 James Madison, Alexander Hamilton e John Jay. The Federalist Papers. London: Penguin Books, s.d. [obra de 1788]. 85 Bruce Ackerman. Nós, o Povo Soberano. Fundamentos do Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006; Aloisio Teixeira. Estados Unidos: a “curta marcha” para a hegemonia. In: Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações (José Luiz Fiori – org.) Petrópolis: Vozes, 1999, p. 155-190. 86 Essa desconfiança em relação à centralização permaneceu por longo tempo e as agências nacionais só vieram a ser criadas de forma ampla com o New Deal, na década de 1930. 87 Isaac Kramnick. Introdução. In: The Federalist Papers. (James Madison, Alexander Hamilton e John Jay) England: Penguin Books, 1987, p. 11-82. 88 Kramnick, ob. cit., p. 33. 89 Kramnick, ob. cit., p. 38. 90 A tradução citada foi extraída de O Federalista. In: Os Clássicos da Política (Francisco Weffort — org.). 5. ed. São Paulo: Ática, 1995, v. 1, art. LI, p. 273. 91 O Federalista, art. XV, cit., p. 270. Complementa-se a prescrição de Locke, de que aquele que fizesse a lei deveria sujeitar-se a ela. 92 “It is emphatically the province and duty of the judicial department to say what the law is. Those who apply the rule to particular cases, must of necessity expound and interpret that rule. If two laws conflict with each other, the courts must decide on the operation of each./ So if a law be in opposition to the constitution [...] the court must determine which of these conflicting rules governs the case. This is of the very essence of judicial duty./ If, then, the courts are to regard the constitution, and the constitution is superior to any ordinary act of the legislature, the constitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they both apply. [...] The judicial power of the United States is extended to all cases arising under the constitution.” Saul K. Padover. The Living U.S. Constitution. 3. ed. USA: Meridian, 1995, p. 50-51. 93 The Federalist Papers, art. XLVII, cit., p. 305. 94 “[...] alterando-se a estrutura interna do governo, de modo que as diferentes partes constituintes possam, através de suas mútuas relações, ser os meios de conservar cada uma em seu devido lugar.” O Federalista, art. LI, cit., p. 272-273. 95 O Federalista, art. X, cit., p. 264. 96 Idem, ibidem. 97 Idem, ibidem. 98 O Federalista, cit., n. 57, p. 279. 99 Bernard Schwartz. American Constitutional Law. UK: Cambridge University Press, 1955, p. 84. 100 O discurso sobre o Estado da União, ainda hoje realizado, por imposição constitucional, é tradição política que permanece e se renova. 101 Ackerman. Nós, o Povo Soberano, cit. O autor reflete sobre a resiliência da Constituição, que permaneceu inalterada, salvo emendas sobre temas específicos, mesmo depois de conflitos políticos graves, como a guerra civil e o New Deal, graças à combinação da atuação interpretativa da Suprema Corte com a força política e o enraizamento social do texto. 102 Paulo Bonavides. Teoria do Estado, cit., p. 184-185. 103 Dalmo Dallari. Elementos, cit., p. 236-237. 104 Bonavides. Teoria do Estado, cit. 105 Dalmo Dallari registra interessante nota história a respeito de como se consolidou o mecanismo da demissão do gabinete no parlamentarismo inglês, no fim do século XVIII, de maneira que faz lembrar o Brasil do século XXI em sua luta pelo expurgo da corrupção como elemento resistente da cultura política: “Ainda mais um passo seria dado, quando o Parlamento, sentindo-se forte, começou a pressionar os ministros a se demitirem, quando discordavam de sua política. De início foi utilizado o impeachment (instituto de direito penal) para afastar os ministros indesejáveis. Fazia-se a acusação perante a Câmara dos Comuns, alegando-se a prática de um delito. Reconhecida a culpa, declarava-se o impeachment , com a consequência de perda do ministério e imposição de uma pena. Aos poucos os ministros perceberam ser mais conveniente deixar o cargo logo que se manifestasse o descontentamento do Parlamento em relação à política que estivessem adotando. Nasceu, assim, a responsabilidade política, com a obrigatoriedade de demissão do Gabinete sempre que receber um voto de desconfiança. Elementos, cit., p. 233-234. 106 Karl Doehring. Teoria do Estado. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2008. O autor vê no regime características da “aristocracia dos deputados” (p. 154). 107 Bonavides. Teoria do Estado, cit., p. 186. 108 Aristóteles. A Política, cit. Aristóteles aplica distintamente os termos governo e Estado, observando diferenças de permanência e funções, de forma aproximada à noção de institucionalização utilizada neste trabalho. Afirma que “o Estado é o sujeito constante da política e do governo” e, por sua vez, “o governo é o exercício do poder supremo do Estado” (p. 41 e 105, respectivamente). 109 Aristóteles, ob. cit., p. 106. Embora se tenha disseminado a noção de que a forma degenerada da república é a demagogia, lê-se na tradução de Roberto Leal Ferreira, com base na versão francesa de Marcel Prélot, a seguinte afirmação: “Estas três formas podem degenerar: a monarquia em tirania; a aristocracia em oligarquia; a república em democracia. A tirania não é, de fato, senão a monarquia voltada para a utilidade do monarca; a oligarquia, para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres. Nenhuma das três se ocupa do interesse público” ( A Política, Livro III). Loewenstein refere os termos politeia e oclocracia, Teoria, cit., p. 43. Conforme
advertem os estudos especializados, pode haver divergências nas traduções e discrepâncias de sentido, tendo em vista que muitos dos textos de Aristóteles se baseiam em anotações de alunos. 110 Aristóteles, ob. cit., p. 145. 111 Ao tratar das qualidades peculiares a cada forma de governo, Aristóteles associa à aristocracia, a virtude, à oligarquia, a riqueza e à democracia, a liberdade. Ob. cit., p. 113. 112 Aristóteles, ob. cit., p. 114. 113 Aristóteles, ob. cit. p. 126. “Se, no entanto, pretendermos que a democracia seja uma das formas de governo, então não se deverá nem mesmo dar este nome a esse caos em que tudo é governado pelos decretos do dia, não sendo então nem universal nem perpétua nenhuma medida.” 114 Montesquieu. Do Espírito das Leis, cit. 115 J. A. Guilhon Albuquerque. Montesquieu: sociedade e poder, in Os Clássicos da Política, cit., v. I, p. 111-120. 116 Albuquerque, ob. cit., p. 115-116. 117 Aristóteles. A Política, cit., p. 122. 118 Montesquieu. Do Espírito das Leis, cit., Livro Segundo, cap. II. 119 Montesquieu, ob. cit., p. 176. 120 Montesquieu, ob. cit., p. 129. 121 Montesquieu, ob. cit., p. 146. A perspicácia de Montesquieu se faz presente de modo notável em comentário sobre o poder econômico: “Ainda que, na democracia, a igualdade real seja a alma do Estado, ela é, no entanto, muito difícil de ser estabelecida, a ponto de que uma extrema exatidão a esse respeito nem sempre seja conveniente. Basta que se estabeleça um censo que reduza ou fixe as diferenças num determinado ponto; depois disso cabe a leis particulares igualar, por assim dizer, as desigualdades, por meio de tributos impostos aos ricos e a isenção atribuída aos pobres. Apenas riquezas medíocres podem oferecer ou suportar essas espécies de compensação: pois, para as fortunas imoderadas, tudo o que se não lhes atribua de poder e honra eles encaram como ofensa” (p. 148). 122 Montesquieu, ob. cit. 123 “Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz nenhum direito, só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima existente entre os homens.” Rousseau. Do Contrato Social, cit., p. 61. 124 Max Weber. A política como vocação, in Ciência e Política, cit. 125 Giovanni Sartori. A Teoria da Democracia Revisitada. O Debate Contemporâneo. São Paulo: Ática, 1994, v. 1. 126 Alexis de Tocqueville. Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 127 Giovanni Sartori. A Teoria da Democracia Revisitada. As Questões Clássicas. São Paulo: Ática, 1994, v. 2, p. 46. Em O Federalista, n. 10, a designação democracia refere-se ao regime da antiguidade, que convencionamos chamar de democracia direta. Madison, o redator desse artigo, distingue “uma democracia pura, que é uma sociedade consistindo num número pequeno de cidadãos, que se reúnem e administram o governo pessoalmente” e uma “república, que é um governo em que há um sistema de representação”. 128 “O termo democracia praticamente saiu de uso e perdeu completamente qualquer conotação elogiosa” por mais de dois mil anos. Sartori, ob. cit. 129 Sartori, ob. cit. 130 Uma dessas fragilidades reside na noção de povo, mesmo nas democracias maduras, como ocorre no caso do debate sobre o voto dos imigrantes nos países europeus, questão que retoma o estatuto dos “metecos” na antiga democracia grega, excluídos de participação na pólis. Esse quadro começa a se alterar, lentamente, com a previsão dos direitos da cidadania europeia, entre os quais votar e ser votado, nas eleições locais e europeias, dos nacionais dos Estados-membros da União Europeia, quando residentes em outro Estado-membro (Tratado de Maastrich). Vital Moreira. A democracia incompleta. In: Nós Europeus. Alfragide: Dom Quixote, 2009, p. 105-107. 131 Max Weber. A política como vocação, in Ciência e Política, cit., p. 59. 132 Celso Furtado. Aventuras de um economista brasileiro. In: Obra Autobiográfica. São Paulo: Paz e Terra, 1997, t. II, p. 21. 133 “Como o trabalho mais urgente e socialmente mais necessário, nos países subdesenvolvidos, era de natureza crítica, o pensamento marxista apresentava elevada eficácia, o que contribuía para a sua rápida penetração nas fases em que se acelerava o processo de mudança social. Mas, não oferecendo soluções construtivas, fora de dogmáticas, limitava extremamente a perspectiva do esforço intelectual criador.” Celso Furtado. Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 12. 134 Karl Marx. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 135 Francisco de Oliveira. Viagem ao olho do furacão..., in Novos Estudos CEBRAP, cit., p. 3-19. 136 Isso sem falar nas experiências revolucionárias, cuja teoria jurídica, partindo da premissa do domínio de classe operado pelo Estado, legitimava esse mesmo domínio, agora sob a classe dos trabalhadores. A teoria soviética de Radomir Lukic afirma que “o direito, enquanto ordenamento do monopólio da força, encontra seu caráter específico no fato de que ele cumpre sua função social de proteger expressamente o interesse da classe dominante por meio da manutenção coativa de um certo modo de produção” (apud Bobbio. L’analisi funzionale del diritto: tendenze e problemi, in: Dalla Struttura alla Funzione. Milano: Edizioni di Comunità, 1977, p. 92). 137 Oliveira. Viagem..., in Novos Estudos CEBRAP, cit. 138 Jacques Chevallier. O Estado Pós-Moderno, cit., p. 39. “Modelo político: depois da queda dos modelos alternativos que invocavam diferentes concepções de democracia, o modelo democrático liberal tornou-se hegemônico e foi colocado sob o selo da universalidade; modelo urídico: o Estado de direito é de agora em diante erigido em verdadeiro modelo padrão internacional a que todo Estado deve respeitar.” A
essas duas dimensões se somaria, para o autor, uma econômica, assentada sobre os mecanismos de mercado. 139 O Estado contemporâneo traria, de novo, em relação ao Estado moderno a difícil coexistência das formas do Estado de direito com os conteúdos do Estado social, passando a “oscilar entre a liberdade e a participação”: “enquanto os direitos fundamentais representam a garantia do status quo, os direitos sociais, pelo contrário, são a priori imprevisíveis, mas hão de ser sempre atendidos onde emerjam do contexto social. Daí que a integração entre Estado de direito e Estado social não possa dar-se a nível constitucional, mas só a nível legislativo e administrativo”. Gustavo Gozzi. Estado contemporâneo. Verbeto do Dicionário de Política. Bobbio, Matteucci e Pasquino, orgs., ob. cit., p. 401. 140 Amartya Sen. Desenvolvimento como Liberdade, cit. 141 Sartori. A Teoria, cit., v. 2, p. 48-49. 142 Robert Dahl. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. UnB, 2001, p. 107. 143 Dahl, ob. cit., p. 62. 144 Max Weber. A política como vocação, in Ciência e Política, cit., p. 71. 145 Embora entre nós haja alguns casos emblemáticos, a exemplo da discussão sobre o marco regulatório do saneamento e competências nas regiões metropolitanas, ficha limpa, decisões definitivas em matéria de ética ou decoro parlamentar, entre outras. Nesse sentido, ver Fernando Facury Scaff. Constitucionalizando Direitos. 15 Anos da Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 146 “Isso se torna sobretudo significante, quando o Tribunal Constitucional indica sua prerrogativa de tal forma que, apesar de estar comprometido em observar a Constituição, também pode determinar e aplicar direito positivo, estando, assim, acima da Constituição.” Karl Doehringer. Teoria do Estado, cit., p. 257-258. 147 Veja-se a disputa em torno do sistema de saúde nos Estados Unidos, dividindo republicanos e democratas, e que trata, inequivocamente, de um problema de democracia social, o acesso à saúde por uma grande fração da população norte-americana, hoje excluída do sistema de assistência privada. Não há como travar esse debate sem envolver a discussão técnica sobre o financiamento da saúde, apresentando dados orçamentários, de cobertura epidemiológica e diversas informações que transcendem a esfera da política no sentido clássico. 148 Em termos, como exemplifica a questão do sistema de saúde, referida, em que a disputa se trava sobre um pano de fundo político e ideológico que permite distinguir precisamente posições conservadoras republicadas de uma visão socializante democrata. 149 Essas condições remetem, mais uma vez, à previsão de Montesquieu relativa à “frugalidade geral”, que estaria associada ao amor à república e à igualdade, na democracia, e que abriria caminho às despesas públicas. “O bom senso e a felicidade dos particulares consiste em grande medida na mediocridade de seus talentos e de suas fortunas. Uma república, em que as leis tenham formado muitas pessoas medíocres, se composta por pessoas sábias, governar-se-á sabiamente; composta de pessoas felizes, ela será muito feliz.” Montesquieu. Do Espírito das Leis, cit., p. 87. 150 Sabino Cassese. A Crise do Estado. Campinas: Saberes Ed., 2010; A. J. Avelãs Nunes. A Constituição Europeia. A Constitucionalização do Neoliberalismo. Coimbra: Coimbra Ed., 2006. 151 Nesse sentido, a noção clássica de soberania sofre profundas perturbações, o que é visto por alguns como mais uma entre as muitas crises do Estado. Cassese. A Crise do Estado, cit., p. 13. 152 Jacques Chevallier. O Estado Pós-Moderno, cit., p. 31. Houve outras influências, alimentando novas abordagens do fenômeno governamental, tais como as provenientes das teorias da administração, com ênfase das teorias da Administração Pública focadas na organização, na direção (management ) e nos sistemas. Nos anos 1990, há uma nova inflexão, desta vez para os métodos empresariais de administração, pelo ângulo da eficiência empresarial, especialmente dos procedimentos e organização burocráticos. David Osborne e Ted Gaebler. Reinventing Government. How the Entrepreneurial Spirit is Transforming the Public Sector. New York: A Plume Book, 1992. O livro, a partir da influência declarada de Peter Drucker, conhecido guru da administração empresarial, organiza-se em dez princípios sobre o que deve ser o governo, sobressaindo a tônica da “eficiência empresarial”, que foi a marca da década do “Estado mínimo”: “catalítico (dirigir em vez de remar); apropriado pela comunidade [ community owned] (empoderar em vez de servir); competitivo (injetar competição na prestação de serviços); orientado a missão [mission-oriented ] (transformar organizações guiadas por regras); orientado a resultados (financiar outcomes, não inputs); guiado pelo consumidor (atender às necessidades do consumidor, não da burocracia); empresarial (ganhar em vez de gastar); antecipatório (prevenção em vez de cura); descentralizado (de hierarquia a participação) e orientação ao mercado. 153 Cassese. A Crise do Estado, cit., p. 24-29. 154 Rainer Nickel. Participatory governance and european administrative law: new legal benchmarks for the new european public order. In: Law and Democracy in the Post-National Union. Oslo: Arena Reports, 2006. 155 Cassese. A Crise do Estado, cit. 156 Cassese, ob. cit., p. 51. “Portanto, a unidade do governo da economia foi substituída por uma fragmentação dos corpos públicos que intervêm, afetando a economia. A ação de cima para baixo é integrada por mecanismos e procedimentos que evidenciam os interesses, organizam seu ‘jogo’ e obrigam os poderes públicos a evidenciar as razões das escolhas. Ao lado do Estado organizador do processo econômico coloca-se o Estado relojoeiro, que controla se os diferentes organismos marcam o tempo, atuando segundo mecanismos predeterminados.” 157 Cassese, ob. cit., p. 29 e 51. 158 Alfredo Gallego Anabitarte. Karl Lowenstein in memoriam. Apresentação à edição espanhola de Teoría de la Constitución (Karl Loewenstein). Barcelona: Ariel Derecho, 1986, p. 1-15. 159 A paternidade dessa última expressão é atribuída a Charles Lindblom. Didier Renard. L’analyse des politiques aux prises avec le droit, brèves remarques sur un débat. In: L’Analyse des Politiques Publiques aux Prises avec le Droit (Didier Renard, Jacques Cailosse e Denys
de Béchillon – coords.). Paris: LGDJ, 2000, p. 9-26, p. 14. 160 David Easton. Estratégias alternativas na pesquisa teórica. In: Modalidades de Análise Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. 161 Easton, ob. cit., p. 24. 162 Gallego Anabitarte, Apresentação, in Teoría, cit. 163 Talcott Parsons. O aspecto político da estrutura e do processo social. In: David Easton. Modalidades de Análise Política. São Paulo: Zahar, 1970, p. 95-147. 164 Parsons, ob. cit., p. 105. O autor trata do tema em dois artigos, de 1963. On the concept of political power. In: Proceedings of the American Philosophical Society, v. 107, n. 3 (jun., 1963), p. 232-262, e On the concept of influence. In: The Public Opinion Quarterly, v. 27, n. 1 (spring 1963), p. 37-62. 165 Em artigo de 1980, com o sugestivo título de O sistema político sitiado pelo Estado, David Easton sumaria a tensão entre as visões da politics e das policies: “Central para o desenvolvimento da análise de sistemas como abordagem teórica é um comprometimento sério com o estudo da política como um sistema de comportamento e instituições. É essa ideia que vem sendo contestada hoje pelo ressurgimento de um antigo conceito, o de Estado. Dada a recente difusão dessa noção por todas as ciências sociais nos Estados Unidos – ela teve uma vida contínua em outras partes do mundo – nós podemos bem nos perguntar se as próximas décadas vão testemunhar um retorno permanente a essa antiga abordagem teórica. O Estado, um conceito que muitos de nós pensamos que tinha sido limpado fora um quarto de século atrás, agora levanta do túmulo para nos assombrar uma vez mais”. David Easton. The political system besieged by the State . Political Theory, v. 9 (Aug. 1981), p. 303-325, espec. p. 303. Disponível em: . Acesso em: 2-7-2012. 166 Gallego Anabitarte. Apresentação, in Teoría, cit. 167 Nesse sentido, algumas obras de referência são Mancur Olson. The Logic of Collective Action. Public Goods and the Theory o Groups. Boston: Harvard University Press, 1971; Herbert Simon. Modelo comportamental de decisão racional; Charles Lindblom. Muddling through 1: a ciência da decisão incremental e Muddling through 2: a ubiquidade da decisão incremental; Amitai Etzioni, Reexame da técnica mista de decisão, traduções brasileiras editadas em Políticas Públicas e Desenvolvimento. Bases Epistemológicas e Modelos de Análise (Francisco G. Heidemann e José Francisco Salm – orgs.). 2. ed. Brasília: Ed. UnB, 2010. 168 Patrice Duran. Genèse de l’analyse des politiques publiques. Dicionnaire des Politiques Publiques (Laurie Boussaquet, Sophie Jacquot e Pauline Ravinet – coords.). Paris: Les Presses de Sciences Po, 2004, p. 232-241. 169 David Easton. Modalidades de Análise Política, cit. 170 Didier Renard. L’analyse…, in L’Analyse des Politiques Publiques, cit., p. 10. 171 Didier Renard, ob. cit., p. 10. 172 Didier Renard, ob. cit., p. 10. 173 Didier Renard, ob. cit., p. 20.
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PLANO MICROINSTITUCIONAL: AÇÃO GOVERNAMENTAL COMO NÚCLEO DE SENTIDO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. A CATEGORIA PROCESSO E A PERSPECTIVA SUBJETIVA DO GOVERNO
2.1 Ação governamental processualmente estruturada
Políticas públicas definem-se como programas de ação governamental, em cuja formação há um elemento processual estruturante: “política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados [...]”174. A expressão processo empregada nessa proposição está mais ligada ao viés da ciência política que ao direito. Refere-se ela à sucessão de etapas da “vida institucional” de uma política pública, desde a inserção do problema na agenda política até a implementação da decisão, passando pela formulação de alternativas e a tomada da decisão, em si175. O processo é o fator de unidade, “fio condutor” a orientar a identificação e compreensão de determinada política pública, permitindo reduzir a complexidade inerente ao aspecto heterogêneo e por vezes caótico que as policies em geral apresentam. A noção de processo, considerada como “história institucional da decisão”, desenvolvimento e sucessão de etapas no tempo, revela-se uma perspectiva bastante apropriada e interessante para compreender especialmente como se dá a formação do direito. A ação governamental, como núcleo semântico da política pública, o “programa de ação governamental”, ganha profundidade, quando sua racionalidade desvela as conexões de sentido com os atos que a antecedem, assim como com os que a sucedem. Além disso, o processo é uma categoria propícia ao “aprendizado institucional”, isto é, às replicações e emulações que são utilizadas quando se trata de enfrentar problemas análogos aos já tratados por alguma política pública. A compreensão dos modos de produção dos arranjos institucionais, resultados de processos e feixes de processos conduzidos pelo governo, pode ser útil para o trabalho prospectivo, a partir de tipos ideais. Os processos jurídicos referidos neste capítulo compreendem o desenrolar da ação governamental conforme de fato ocorre, no plano jurídico-institucional, até que se vejam os seus resultados. Os processos são instrumentos de atuação concreta do gestor público. Nesse sentido consubstanciam referenciais importantes para uma análise objetiva, não apenas pelo estudioso do direito, mas também por aqueles que pretendem apreender o processo político-institucional na sua real complexidade. Trata-se de abordagem institucional do processo governamental, baseada em pressuposto da tradição institucionalista da ciência política, segundo a qual as decisões e preferências são influenciadas o distorcidas por regras e procedimentos. Uma vez que os processos contribuem para moldar as decisões, cabe trazê-los a lume de modo racional, compreendendo as formas pelas quais os próprios processos e seus pressupostos de formação tornam-se objeto de decisão, conscientemente informada de suas
injunções políticas176. Além disso, o modelo processual do ciclo de formação da política pública é amplamente utilizado na atividade aplicada, diante da facilidade de operação do modelo e seu alto poder explicativo do funcionamento das escolhas governamentais, tal como descrito por John Kingdon: “Embora em drástica super simplificação, a formação da política pública pode ser considerada um conjunto de processos, incluindo pelo menos (1) o estabelecimento da agenda; (2) a especificação das alternativas com base nas quais a escolha será feira; (3) uma escolha revestida de autoridade (authoritative choice) entre as alternativas definidas, seja numa votação legislativa ou na decisão presidencial, e (4) a implementação da decisão” 177.
O que se propõe neste tópico é a investigação do processo como categoria ao mesmo tempo estruturante do pensamento jurídico e referencial para a consideração dos aspectos políticos presentes no desenrolar das fases de formação e execução das decisões governamentais.
a) Sentidos jurídicos dos termos processo e procedimento. Processo como relação jurídica. Subjetivação O processo cuja estruturação e desenvolvimento é mais especificamente jurídico, o processo judicial, contém a matriz cognitiva, com seus elementos teóricos e noções explicativas, para compreensão dos demais processos institucionais que resultam nas políticas públicas. Alguns esclarecimentos preliminares são necessários, visando estabelecer, mais à frente, correspondências entre os conceitos estruturantes do processo, segundo a teoria geral do processo, com sentido preciso e mais restrito, e o processo em sentido amplo, abrangendo os componentes políticos da ação governamental. Processo, em direito, de acordo com a teoria geral do processo, é o “instrumento por meio do qual a urisdição opera”, visando “eliminar conflitos e fazer justiça mediante a atuação da vontade concreta da lei”178. No sentido político, o Poder Judiciário é o fator de estabilização da ordem estatal baseada na lei, uma vez que é a ele que compete a decisão última sobre os conflitos, com caráter vinculante e cogente. No sentido normativo, a atuação da jurisdição confere completude ao ordenamento, pois se trata do poder com atribuição para “dizer o direito”, interpretando as normas, aplicando-as e integrando eventuais lacunas. Processo, portanto, segundo abordagem consagrada na teoria e na prática jurídicas, é precipuamente um fenômeno jurisdicional. A diferenciação entre os conceitos de procedimento e processo, não isenta de controvérsias, situa-se nesse contexto. A visão mais tradicional considera o processo como finalidade, a razão de ser da jurisdição, e o procedimento, como mero instrumento formal dessa finalidade. “Etimologicamente, processo significa ‘marcha avante’, ‘caminhada’ (do latim procedere = seguir adiante). Por isso, durante muito tempo foi ele confundido com a simples sucessão de atos processuais (procedimento) [...]. O procedimento é, neste quadro, apenas o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo; é a manifestação extrínseca deste, a sua realidade fenomenológica perceptível. A noção de processo é essencialmente teleológica, porque ele se caracteriza por sua finalidade de exercício do poder (no caso, jurisdicional). A noção de procedimento é puramente formal, não passando da coordenação de atos que se sucedem. Conclui-se, portanto, que o procedimento (aspecto formal do processo) é o meio pelo qual a lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo 179.
Na teoria geral do processo mais recente, o aspecto formal do procedimento tem sido reexaminado, considerando os modos pelos quais ele condiciona o exercício dos direitos das partes na função urisdicional. O sentido finalístico do processo deve incidir também sobre o procedimento: “o processo é o procedimento que, adequado à tutela dos direitos, confere legitimidade democrática ao exercício do poder jurisdicional”180. Ou, segundo a formulação sintética de Fazallari, “processo é o procedimento em contraditório”181
Mas o cerne do processo como construção jurídica, teórica e prática, repousa sobre a noção de relação jurídica processual. A teoria do processo como relação jurídica é de tal importância que sua apresentação, com a publicação da obra de Bülow, em 1868 (Teoria dos Pressupostos Processuais e das Exceções Dilatórias), é considerada o momento de “emancipação” teórica do direito processual, superando definitivamente a concepção do processo como contrato, típica de uma época em que “o Estado incipiente não tinha ainda conquistado suficiente autoridade sobre os indivíduos para se impor a eles (o judex era cidadão privado)”182. “O grande mérito de Bülow foi a sistematização [...] da relação urídica processual, ordenadora da conduta dos sujeitos do processo em suas ligações recíprocas”183, como: “[...] força que motiva e justifica a prática dos atos do procedimento, interligando os sujeitos processuais. O processo, então, pode ser encarado pelo aspecto dos atos que lhe dão corpo e das relações entre eles, e igualmente pelo aspecto das relações entre os seus sujeitos”184.
Essa teoria consagra a autonomização do conceito de ação – com o reconhecimento do direito material e do direito de ação como duas dimensões específicas185 – de que participam o autor, como possuidor do direito, o réu, que resiste à pretensão do autor, e o Estado. “A relação jurídica processual se distingue da de direito material por três aspectos: a) pelos seus sujeitos (autor, réu e Estado-juiz); b) pelo seu objeto (a prestação jurisdicional); c) pelos seus pressupostos (os pressupostos processuais)”. Na controvérsia entre Bülow e Goldschmidt, que não é o caso de aqui aprofundar, esse último entendeu que a noção de relação jurídica não corresponde à descrição mais correta da natureza da disputa jurídica, para o que a noção de situação jurídica seria mais precisa. Segundo essa teoria, “quando o direito assume uma condição dinâmica (o que se dá através do processo), opera-se nele uma mutação estrutural: aquilo que numa visão estática era um direito subjetivo, agora se degrada em meras ossibilidades (de praticar atos para que o direito seja reconhecido), expectativas (de obter esse reconhecimento), perspectivas (de uma sentença desfavorável) e ônus (encargo de praticar certos atos, cedendo a imperativos ou impulsos do próprio interesse, para evitar a sentença desfavorável)”186. Os críticos consideram que o feixe de situações jurídicas consubstancia exatamente a relação jurídica processual. “[...]é inegável o acerto de Bülow ao dizer que o processo não se reduz a mero procedimento, mero regulamento das formas e ordem dos atos do juiz e das partes, ou mera sucessão de atos. [...] É inegável que o Estado e as partes estão, no processo, interligados por uma série muito grande e significativa de liames jurídicos, sendo titulares de situações jurídicas em virtude das quais se exige de cada um deles a prática de certos atos do procedimento ou lhes permite o ordenamento jurídico essa prática; a relação jurídica é exatamente o nexo que liga dois ou mais sujeitos, atribuindo-lhes poderes, direitos, faculdades, e os correspondentes deveres, obrigações, sujeições, ônus. Através da relação jurídica, o direito regula não só os conflitos de interesses entre as pessoas, mas também a cooperação que estas devem desenvolver em benefício de determinado objetivo comum” 187.
Alguns processualistas criticam o apego que consideram excessivo, a construções teóricas formuladas no passado, e entre elas a relação processual, que limitaria a disciplina ao âmbito do processo judicial, descuidando de um alcance mais amplo188, que a rigor deveria ser aplicado às decisões do Poder Público de maneira geral. Contudo, no que tange às novas abordagens e aos processos não jurisdicionais, em que as conexões entre os diversos interesses não se consolidaram sob a forma jurídica, o que se faz necessário é exatamente um esquema explicativo estruturado sobre conceitos fundamentais, que possa ser utilizado para a compreensão desses, embora distintas suas formas e objetivos. Cumpre investigar mais detidamente as possibilidades de aplicação dos conceitos fundamentais da teoria geral do processo, em especial a noção de relação jurídica processual, ao chamado “processo em
sentido amplo”. Trata-se de perquirir as formas pelas quais a relação processual, agora também em sentido amplo, atribui a cada um dos sujeitos que dela participa posições ou situações jurídicas ativas e passivas, para o que a proposição de Carnelutti poderia servir de guia. “Relação jurídica é a relação social regulada pelo direito [...] [que se aclara] desde que a consideremos como um conflito de interesses e se considere o efeito de sua regulamentação como atribuição aos interessados respectivamente de um poder e um dever. Os três pares – obrigação-faculdade, direito subjetivo-sujeição, potestas-sujeição – constituem a espécie do genus relação jurídica. Ora, o que a distinção entre estática e dinâmica e consequentemente entre situação e fato jurídico tem de mais valioso é fornecer-nos a chave de convertibilidade de qualquer desses pares entre si, porque é na sua conversão contínua, por meio do fato jurídico, que se resolve o movimento do direito” 189.
Em termos esquemáticos, se aplicada ao universo das políticas públicas, essa chave permitiria identificar posições ou situações jurídicas “fortes”, a faculdade, o direito subjetivo e a potestas, e “fracas”, a obrigação e a sujeição. E deveria permitir a visualização da convertibilidade dos pares entre si, isto é, quando o detentor de uma posição fraca, uma sujeição, passa a dispor de uma posição forte, um direito subjetivo, ou a prerrogativa de exigir, inclusive judicialmente, de outrem, o cumprimento de obrigações e deveres que satisfaçam o direito do postulante.
b) Processualidade em sentido amplo A processualidade em sentido amplo resulta da visão de que a sociedade é inerentemente conflitiva e de que o aparelho estatal é o campo onde pelo menos parte do conflito social se resolve. As decisões estatais implicam escolhas e, portanto, a existência de interesses contemplados e outros preteridos. Nesse contexto ampliado, o processo seria a institucionalização de formas de mediação dos diversos conflitos dispersos, não mais restritos à esfera do Poder Judiciário. A visão ampliada sobre o processo decorre de dois movimentos principais. Um desses movimentos, oriundo das ciências sociais, com referência à obra de Luhmann, entre outros, passa a tematizar o processo como alternativa nas relações sociais. Outro movimento se desenvolve no âmbito próprio do direito positivo, com a edição de legislações de processo administrativo em diversos países, que passam a conferir à atividade administrativa a disciplina peculiar do processo, alargando o âmbito da teoria desenvolvida sob o conceito de ato administrativo190. O processo visto pela sociologia do direito
A abordagem do procedimento ou processo pela sociologia, especialmente na obra de Niklas Luhmann, Legitimação pelo Procedimento191, examina o processo em dualidade com a categoria do conflito, como alternativa a esse, atribuindo-lhe caráter funcional, em relação às expectativas dos vários grupos e indivíduos. O modelo de sociedade apoiado no processo, com esse significado, está mais apto a “[...] substituir o antigo modelo europeu duma ordem hierárquica de fontes e matérias jurídicas. Parece deixar entrever mais sinceridade para o estabelecimento de normas, maior elasticidade e adaptabilidade do direito e um potencial mais elevado para transformações estruturais da sociedade. Tal como a categoria do contrato para o âmbito da ‘sociedade’, assim a categoria do procedimento para o âmbito do ‘estado’ parece apresentar aquela fórmula mágica que combina a mais alta medida de segurança e liberdade [...]” 192.
Luhmann destaca “o processo social de reestruturação comunicativa de expectativas”193. O procedimento define os papéis sociais que desenvolverão a interação regrada. Com isso, estabelecem-se formas de cooperação. O sentido social do procedimento é diluir o conflito no tempo, de maneira que as rupturas se tornem cada vez menos prováveis194. “Esse, o significado da legitimação pelo procedimento. A inversão é clara: a legitimidade não se dá após o processo de tomada da decisão,
como um critério substantivo aplicável a posteriori, mas é uma condição socialmente construída no transcorrer da própria decisão. Os conflitos sociais não podem ser simplesmente contornados pelo binômio consenso/coação, que supõe a presença de um diante da falta do outro. Há sempre consenso e coação em toda decisão tomada por um procedimento. Diante da escolha entre conflito e cooperação, o procedimento distende a polarização consenso/coação e com isso converte o conflito em uma espécie de cooperação. Só é possível entrar em conflito participando de sua solução, cooperando com a decisão final. Com isso, a função do procedimento não é produzir consenso ou evitar desilusões. Ao contrário: ‘Sua função não repousa no impedimento de decepções, mas sim em trazer decepções inevitáveis à forma final de um ressentimento privado difusamente difundido, que não pode se transformar em instituição. [...] a função do procedimento é consequentemente a especificação do descontentamento e a fragmentação e absorção de protestos. [...] Então uma rebelião contra a decisão quase não tem sentido e, em todo caso, já não tem mais qualquer chance. [...] De uma maneira geral, não se há de compreender a função social de um mecanismo de solução de conflitos como o desencadeamento de processos psíquicos de aceitação, mas antes como imunização do sistema social contra esses processos’; ‘Procedimentos não servem apenas para a produção de decisões, mas também e igualmente para a absorção de protestos” 195.
A diferença entre procedimento e protesto, por esse prisma de análise, reside na inserção funcional de cada um. O conflito absorvido pela estrutura da sociedade e suas instituições, ou “funcionalizado”, apresenta-se na forma de procedimento; o conflito não funcionalizado expressa-se como protesto. Tratase de um esquema propício a entender as continuidades da ação, uma vez que localiza no contraditório a expressão do tratamento institucionalizado dos conflitos sociais, de modo a esvaziar o potencial de ruptura de que cada um é portador. A valorização do processo e a teoria da argumentação jurídica
Outra contribuição importante para a valorização do processo em sentido amplo foi aportada pela teoria da argumentação, no período de reconstrução do direito na Europa que sucede a Segunda Guerra Mundial. A “nova retórica” ou teoria da argumentação teve grande desenvolvimento a partir da obra de Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência196, que “redescobriu” a aplicação da dialética aristotélica ao direito, jogando luz sobre os processos argumentativos necessários à construção do sentido de disposições normativas. No Brasil, a valorização da atividade de interpretação, que cresceu muito com a edição da Constituição de 1988, criou grande interesse pela teoria da argumentação, o que também contribuiu para o desenvolvimento da noção de processo em sentido amplo. A “textura aberta” que orienta a concepção do texto magno, inspirada nas experiências alemã e portuguesa, com realce aos princípios, tendeu a reforçar o fenômeno, como já ocorria com as fontes inspiradoras, nas quais o epíteto “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”197 sintetiza a nova amplitude concedida às atividades de interpretação e concretização dos sentidos da Constituição. Amplia-se o escopo dos “debates constitucionais” e com eles a valorização da argumentação e da processualidade do direito. Com apoio na tópica de Aristóteles, Viehweg sustenta que o pensamento jurídico não se organiza em demonstrações científicas, de caráter apodítico, mas se compõe de argumentações retóricas, de caráter dialético (no sentido aristotélico). A “jurisprudência”, que se opõe à “jurisciência”, não é exata nem pode ser descoberta a partir de silogismos puramente racionais. É preciso lançar mão do pensamento problemático, que leva em conta acervos de experiências, a invenção, a intuição, a cultura198, procurando extrair delas regularidades e diretrizes para a compreensão do fenômeno jurídico. “A tópica é uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica”199. “A tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do direito são abertas, delimitadas sem maior rigor lógico, assumindo significações em função dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras
‘fórmulas de procura’ de solução de conflito” 200.
Três pontos da obra de Viehweg – que surgiu num momento de turbulência e reconstrução do pensamento jurídico – são particularmente elucidativos para o trabalho acadêmico com políticas públicas, perspectiva de interesse que também se caracteriza pela renovação do objeto e dos métodos na ciência jurídica201. O primeiro ponto é a abordagem por problemas, isto é, a ideia de que é possível organizar, em algum nível, o conhecimento que se obtém na vivência do direito, a praxis, extremamente diversa e complexa, para, a partir dela, extrair conhecimentos capazes de orientar novas práticas, diante de problemas da mesma espécie. “O modo de pensar sistemático procede do todo. A concepção é nele o principal e permanece sempre como o dominante. Não é preciso buscar um ponto de vista. O ponto de vista está adotado desde o princípio e a partir dele se selecionam os problemas”202. O segundo ponto de interesse reside no lugar central conferido à dialética, no sentido aristotélico, lógica que organiza o conhecimento a partir da contraposição regrada de argumentos203, o “discurso fundamentante”, que confere a racionalidade possível ao pensamento problemático. Dessa noção deriva a grande importância dada ao processo. E o terceiro ponto de interesse é a técnica por meio da qual isso se dá, com base na identificação dos topoi, tópicos ou lugares comuns da argumentação jurídica, que justamente sedimentam a experiência reconhecida como válida, legitimando seu uso como ponto de partida para raciocínios futuros. O segundo e o terceiro pontos reforçam a processualidade em sentido amplo e serão examinados mais detidamente a seguir. A ideia de “ônus argumentativo” tem sido utilizada entre nós no campo do direito constitucional, conotando o critério para decidir demandas com base na “densidade de legitimação”, que depende dos termos do debate. Uma vez que não há solução objetiva e univocamente definida ou definível para determinado problema, a questão se desloca para a procura da “melhor solução”, com base num processo com a participação de várias falas, em posição e contraposição, de modo que o controle provoque a fundamentação adequada de cada uma das posições. Considerando a impossibilidade de aferição lógica e unívoca das proposições tópicas, a instância de controle dessas é a discussão, o debate em que ocorre a contraposição de argumentos à premissa apresentada e aos pontos que a sustentam. A contraposição de visões não se esgota no conteúdo das opiniões, mas depende das condições em que se dá a comunicação, nos termos de uma teoria do discurso fundamentante, concepção linguística voltada à compreensão da argumentação a partir da situação discursiva204. A “situação” influi sobre a aplicação do direito e é mais um aspecto que diferencia a abordagem própria da praxis jurídica daquela típica do raciocínio dedutivo e abstrato, que ignora o contexto comunicacional (“não situacional”). A discussão é mediada por regras, no caso, regras urídicas; trata-se de uma “condução rigorosamente regulada do diálogo”205. Torna-se muito relevante, em razão disso, configurar as condições do debate.Nesse sentido, é importante o estabelecimento com o interlocutor de “pelo menos um círculo balizado pelo entendimento comum”206. A partir de premissas aceitas por esse círculo como razoáveis, são elas submetidas a opiniões opostas, instaurando-se entre elas um diálogo, que possibilita o seu confronto, no sentido crítico. A função do topos e dos catálogos de topoi é auxiliar na definição das premissas, “orientar e organizar o raciocínio, ainda que sem um caráter lógico rigoroso”207, por meio da fixação de pontos que parecem àquele círculo dignos de uma reflexão mais profunda, com base em um entendimento reconhecido. “Topoi ou lugares comuns são fórmulas de procura que orientam a argumentação. Não são dados ou fenômenos, mas construções ou
operações estruturantes, perceptíveis no decurso da discussão. [...] A presença de topoi, no discurso, dão à estrutura uma flexibilidade e abertura característica, pois sua função é antes ajudar a construir um quadro problemático, mais do que resolver problemas” 208.
“A tópica mostra como se acham as premissas; a lógica recebe-as e as elabora”209. A técnica da discussão ou disputa começa com a arte de perguntar; fixadas as premissas, a ordenação e a colocação das perguntas é precisamente a tarefa peculiar do dialético210. As proposições que conduzem ao raciocínio dialético podem ser selecionadas de diversos modos. A diferença entre o método dedutivo, tradicional, e a tópica está nas condições de fixação de premissas. No método dedutivo, a premissa, ou primum verum, é demonstrável ou fundamentável logicamente, e dela podem ser deduzidas outras proposições. Reversamente, das últimas se pode, por redução, atingir as premissas anteriores, até a proposição nuclear. Na tópica isso não é possível; não havendo ponto de partida seguro, admite-se como premissa o que é mais aceito, com base na experiência reconhecida211. A função da demonstração, que sustenta a premissa no sistema dedutivo, na abordagem tópica é preenchida pela legitimação do raciocínio. Enquanto o cartesianismo privilegia a dedução e a demonstração em cadeias dedutivas, a tópica atua por indução, partindo do senso comum aceito como verdadeiro em determinado círculo. A utilidade da tópica está em tornar possível a apreensão não apenas dos problemas, mas também dos elementos de experiência que o cercam, viabilizando que esse acervo sirva de base para a criação de um corpus a ser trabalhado com o raciocínio apodítico. Embora haja uma discussão sobre a eventual “superioridade” do método dedutivo, que seria mais “rigoroso”, o fato é que nem sempre é possível partir de premissas exatas. Às vezes, é necessário um “trânsito do modo de pensar tópico para o sistemático dedutivo”, em que o primeiro “aplana” o caminho para o segundo212. Na verdade, cada modo de pensar tem sua especificidade213, há uma complementaridade entre o método indutivo, problemático, e dedutivo, sistemático, que se vislumbra conveniente para a análise urídica e proposição de modelos de políticas públicas. O pensamento por problemas em algumas circunstâncias é o único ponto de partida possível para a apreensão de certos fenômenos, uma vez que admite a variedade, complexidade e multiplicidade de formas e expressões, como ocorre com as políticas públicas, sem circunscrever artificialmente o objeto. O método tópico, nesses casos, seria mais fiel à realidade que o método axiológico-dedutivo, cujas premissas seriam artificialmente reduzidas a noções operáveis, mas empobrecidas em relação à realidade. O ideal, portanto, seria a conexão dos dois métodos, permitindo que a apreensão do problema se fizesse a partir da premissa aceita e sua solução se desse nos termos do sistema – o conhecimento controlado dos problemas, organizados de forma sistemática214. A objeção à tópica estaria em ceder espaço à argumentação, conferindo aparência de racionalidade à reprodução de máximas de experiência, de caráter “não científico”. O alerta não é sem sentido, uma vez que o pensamento jurídico excessivamente ancorado na prática ainda padece dos males do subjetivismo da “doutrina”, com seus juízos “criptonormativos”215, emitidos com base em opiniões práticas, sem mediação objetiva ou racional, os quais passam a atuar como fonte de direito e a orientar a aplicação das normas vigentes216. Entretanto, o cuidado em relação ao “controle do discurso fundamentante”217, isto é, à não aceitação de juízos desvinculados de um processo de discussão, parece salvaguarda suficiente para que não se descartem os benefícios da aplicação do raciocínio tópico218. Viehweg refuta a condenação de Kant à doutrina dos topoi, afirmando a importância da tópica em circunstâncias em que não é possível estabelecer um sistema dedutivo. A formação das normas seria uma dessas circunstâncias, em que ganharia novo sentido o emprego da processualidade subjacente à tópica, desde que mantido o tratamento
racional do direito. Ao mudar de perspectiva, da tradicional, baseada no direito posto (de lege lata), cuja tônica está na aplicação, predominantemente retrospectiva, do conjunto normativo vigente, para um outro enfoque, baseado na criação, prospectiva, do direito (de lege ferenda), outras ordens de desafios se apresentam e o pensamento problemático, com a visão argumentativa, pode ser especialmente adequado. Friedrich Müller, ao tratar do problema da concretização das normas constitucionais, destacou a complementaridade e a interpenetração dos métodos tópico e sistemático-dedutivo. “À tópica cabe a tarefa de suavizar os sistemas que aparentam ser logicamente fechados da ciência jurídica, e de interpretar os conceitos normativos que necessitam ser axiologicamente preenchidos, aquela que consiste em servir de expediente em caso de ausência de regulamentação legal suficiente e notadamente para o preenchimento de lacunas e enfim a tarefa de fornecer pontos de vista quando a lei reenvia à equidade ou às representações ou escalas de valores sociais [...]. Os tópicos devem enfim poder assumir de lege ferenda funções de política constitucional” 219.
c) Formação do direito e democracia processual A ampliação e o aprofundamento social da noção de democracia justificam a primazia ao processo de formação do direito. A separação entre a política, que se ocupava da formação das leis, e o direito, que respondia pela sua aplicação, esmaece-se de tal maneira que direito e política são componentes igualmente importantes nos diversos momentos de delineamento, criação e execução da legislação. Com isso, o olhar do jurista se amplia, indo além da abertura estreita dada pela perspectiva epistemológica praticamente exclusiva do direito posto, legislado, ou na sua versão aplicada pelos tribunais. É compreensível que a orientação da jurisprudence nos países da common law seja essa, tendo em vista que a formação do direito é fruto, em grande medida, da jurisprudência (ainda que venha perdendo espaço para o statute law, em várias matérias). Mas nos países da tradição romanista esse constitui um viés cujo resultado é o desconhecimento e a compreensão muito limitada dos processos de formação do direito, seja no Poder Legislativo, seja no Executivo, em número e influência muito superiores ao que ocorre no âmbito do Poder Judiciário. O crescimento da importância da processualidade do direito, a adoção da processualidade ampla, também pode ser explicado pela inviabilidade de uma visão puramente “substancialista” das normas urídicas. A expansão das normas econômicas e das situações de desigualação concreta, típicas do direito de cunho social do século XX, levou à relativização da concepção liberal, cedendo lugar a um trabalho de criação jurídica com base numa perspectiva material. Entretanto, as experiências históricas que levaram ao extremo esse tipo de visão, as do socialismo “nacional” e do socialismo “corporativista”, isto é, o nazismo e o fascismo, assim como outros regimes totalitários neles inspirados, levaram à necessidade de adoção de mecanismos jurídicos de controle mais afeitos à democracia. E a processualidade responde por esse tipo de demanda. O controle das formas e dos processos parece ser o caminho para o diálogo que diz respeito aos conteúdos e às decisões de fundo. A abordagem processual da realidade política inspira uma crítica que deve ser considerada, dada a desvinculação dessa abordagem com os resultados da ação, com o risco da desconsideração dos valores em questão. A processualidade pode, consciente ou inconscientemente, reforçar uma visão excessivamente liberal, uma vez que os modos de atuar e os meios ganham primazia na organização da ação. Um esquema procedimental, em tese, admite qualquer conteúdo da ação e daí o temor de acentuação do viés autoritário ou tecnocrático, se o argumento processual sobrepujar a justificação das ações governamentais, “obscurecendo questões de sua forma moral”220. O procedimento privilegiaria o aspecto formal do debate, isto é, “quem fala, quando fala, como fala”, correndo o risco de deixar em segundo plano “o que se fala”, o aspecto material ou substancial do diálogo.
Não obstante, diante da necessária relativização das possibilidades de construção “material” do direito, baseado em normas cujo conteúdo social seria suficiente como legitimação e endereço político, o processo se afigura como o meio de controle democrático disponível em relação aos passos de formação da decisão do Poder Público, considerando o emprego de meios públicos e todas as injunções que afetam conjuntos de pessoas. Não se trata da procedimentalização geral das relações sociais, mas da identificação de formas em que o direito se apresenta, com maior ou menor intensidade, para a explicitação e processamento do dissenso social, mediado pelo Estado. O processo judicial é o modelo cognitivo por se tratar da matriz jurídico-processual por excelência. É o campo em que o direito cuidou com mais profundidade da criação de regras que não apenas habilitassem à produção de uma decisão estatal221, mas também da execução dessa mesma decisão, com todos os seus incidentes. A judicialização crescente das relações sociais, fenômeno presente não apenas no Brasil, mas generalizado no mundo, a que já se aludiu222, é outro elemento a embasar a utilização dessa matriz cognitiva. Não se trata de modelo artificialmente escolhido, apenas pela familiaridade do processo udicial. Ao contrário, a busca e utilização cada vez mais ampliadas do sistema judicial para a solução de conflitos sociais significam que a crescente juridificação das relações sociais, cujo marco são as Constituições do pós-guerra, passa pela adoção do Poder Judiciário e do modelo judicial como foro e modo preferenciais para dirimir disputas na sociedade. No contexto da democracia deliberativa – em que deságuam os movimentos aqui descritos, de teorização do processo como forma de solução de conflitos sociais e de positivação de normas sobre controle e participação social na atuação governamental – o procedimento como mecanismo de fortalecimento do processo decisório se fortalece. “Procedimentos, participação e desenho institucional são atuais soluções comuns que têm sido defendidas para uma variedade de problemas regulatórios percebidos: dos ‘grandes temas’ das falências dos modelos tradicionais de regulação, e de como a regulação deveria responder ao supranacionalismo ou à ‘sociedade do risco’ e aos mais prosaicos assuntos de meio ambiente, telecomunicações, corporações e direito falimentar. A proposta dominante é desenvolver procedimentos e estruturas institucionais capazes de fortalecer a deliberação e permitir a participação. Associada a isso, está a demanda por regulação, para substituir estratégias de comando por estratégias de indução, e por reguladores que deixem de ser formuladores de regras para se tornarem supervisores” 223.
Nesse modelo de política, o fortalecimento da cidadania é assegurado por um “processo inclusivo de formação da opinião e da vontade políticas, em que cidadãos livres e iguais se entendem acerca de que fins e normas correspondem ao interesse comum de todos”224. Vislumbra-se um “consenso alcançado argumentativamente”225, mediante procedimentos democráticos institucionalizados, o que importa na ampliação do sentido jurídico original do processo, antes restrito ao âmbito judicial, demandada por uma mudança das formas de atuação do Estado. A ideia alargada de democracia se traduz em alternativas institucionalizadas de representação e participação, por meio de “novas formas organizadas de representação da ‘opinião’ e da emergência de modos de expressão dos interesses sociais, que desbordam da lógica representativa tradicional”226. As políticas públicas não constituem objeto apto ao tratamento de “verdadeiro” ou “falso” – e nesse sentido elas consistem em “problemas”, permeados por elementos de valor ou conveniência, considerada um somatório de interesses. Os arranjos institucionais são mais facilmente apreensíveis pela lógica dos adjetivos (funcional, efetivo, legitimado democraticamente, eficiente socialmente, econômico etc.) que de substantivos. E assim como a arquitetura institucional da política, o juízo de valor que serve de ustificação e medida também compõe o processo dialético, no sentido aristotélico, de construção da política pública.
Uma política pública qualquer pode revelar-se inovadora, do ponto de vista de seu desenho institucional, por exemplo, ao adotar uma forma organizacional ainda não experimentada naquele sistema urídico. Isso não garante, todavia, que a política seja eficiente, no balanço entre custos e benefícios, o que atenda às necessidades mais prementes, analisadas as prioridades, o escopo dos beneficiários ou a sua escala. Todos esses pontos, como é evidente, comportam apreciação subjetiva; a quem compete julgar se o custo é excessivo ou os beneficiários são indevidos ou a ação é acanhada? Tratando-se de processos cuja natureza é eminentemente política, num cenário democrático competirá ao povo ou aos seus representantes realizar essa apreciação. E ela será em princípio movediça, em função do viés que orientar as premissas do diálogo e as perguntas que se seguirem. O debate começa exatamente com a definição dos pontos controvertidos – como, aliás, também ocorre com o processo judicial de conhecimento227. Esse é o lugar e o papel da teoria da argumentação. Controlar e qualificar as premissas do debate, pois não é verdadeiro que o processo democrático torne inteiramente livre para o exercício ideológico o campo do debate. À medida que a democracia avança e adquire densidade política, no sentido de expressar com fidelidade o arranjo de forças sociais e os movimentos pela ampliação das possibilidades de emancipação das pessoas, diminui a amplitude com que as questões sociais podem ser colocadas. O problema dos meios passa a incidir de maneira permanente, assim como a questão da sustentabilidade das políticas no tempo. As variáveis da ação se apresentam como perguntas, aparentemente triviais, que a autoridade, o gestor público, o movimento social, os parlamentares, enfim, aqueles que detêm alguma espécie de iniciativa sobre a ação governamental, se fazem. Essas perguntas orientam a procura dos topoi, pontos de partida aceitos para o desenrolar das fases ulteriores do debate. As perguntas mais recorrentes ou estruturantes da ação governamental podem ser organizadas num esquema passível de reiteração. Qual o escopo da ação governamental? Quem serão seus beneficiários? Qual a escala? Quais os seus custos? E se considerados os beneficiários unitariamente, qual o custo? Em outras palavras, qual a medida da eficiência da ação governamental? Em que tempo se desenrolará a ação governamental? E sobre o processo decisório, quais os seus partícipes? Os beneficiários estão suficientemente informados dos benefícios? E dos ônus? Quais as alternativas? Há outros modelos? Como superaram esse problema países que passaram por esse estágio de desenvolvimento no passado? Como fizeram outros países/estados/municípios que enfrentaram o mesmo problema? A questão deixa de ser um problema absoluto de criação das políticas e passa a ser um tema argumentativo, ligado ao desafio de demonstrar a consistência ou legitimidade, seja política, seja técnica, de cada posição no decorrer do debate. E esse desafio se impõe a todos os que participam do processo governamental, seja no papel “oficial” de partícipe, seja na condição de “controlador externo”, de acordo com um processo estruturado, com base em premissas comuns e regras aceitas para a identificação dos consensos e enfrentamento dos dissensos.
d) Contraditório em sentido amplo. Multiplicidade de interesses e formas jurídicas de mediação Considerar o processo em sentido amplo torna recomendável examinar mais de perto o problema do contraditório. Contraditório é a noção jurídica que sintetiza a contraposição de interesses mediada pelo direito, da qual resulta a decisão, ideia-síntese do conflito regrado e institucionalmente processado. No sentido da lógica clássica, a noção de contraditório está ligada à ideia de dialética, à expressão dos contrários e à contraposição regrada de opiniões. Não se trata de elegê-lo como princípio “mais importante” do processo, mas sim de compreender que
é na formação e no exercício do contraditório que se dá o confronto entre os contrários, em que a tensão entre os polos opostos, que é essencial na política, desafia as condições jurídicas de ordenação e processamento do conflito. Por essa razão, é na instauração e no desenvolvimento do contraditório que se pode entender o processamento das tensões sociais no desenrolar da ação governamental. Poder-se-ia falar num contraditório em sentido político, que, em algumas circunstâncias, desenvolveria formas jurídicas de disciplina e processamento. O desafio para o direito é conseguir circunscrever o conflito social e apresentar pressupostos de desenvolvimento da controvérsia, sob regras urídicas, que tornem possível uma evolução, do ponto de vista institucional, do processo decisório e da decisão. Essa evolução diz respeito à minimização de frustrações e especialmente à aceitação das regras do jogo, isto é, daquele foro e daquela disciplina para a submissão, no futuro, de disputas de índole semelhante. No sentido do processo jurisdicional, há uma evolução da importância do princípio do contraditório, que corresponde à concepção do processo ampliada para além do processo judicial. Num primeiro momento, o contraditório era considerado um dentre vários princípios do processo, ao lado da imparcialidade do juiz, da igualdade e outros de natureza instrumental228. Posteriormente, passa a ser considerado princípio central e a corolário do princípio democrático no processo, ainda no sentido urisdicional, consagrador da participação. “[...] o procedimento não deve se abrir apenas às necessidades do direito material, mas também acudir aos demais direitos fundamentaisprocessuais, especialmente aos direitos fundamentais de defesa e ao contraditório – expressão jurídico-procedimental derivada do direito político à participação no exercício do poder” 229. “É lógico que o contraditório, no processo civil contemporâneo, tem significado completamente diverso daquele que lhe era atribuído à época do direito liberal. [...] A legitimidade do processo se liga a uma possibilidade real, e não meramente formal de participação. [...] Na verdade, o legislador e o juiz estão obrigados a estabelecer as discriminações necessárias para garantir e preservar a participação igualitária das partes, seja considerando as dificuldades econômicas que obstaculizam a participação, seja atentando para as particularidades do direito material e do caso litigioso. Para expressar a noção de participação em igualdade de condições, parte da doutrina, sobretudo italiana, fala em participação em paridade de armas” 230.
A evolução teleológica corresponde a uma evolução formal da conformação jurídica dos instrumentos que garantem a plenitude da manifestação da parte no processo. “Consagrado por todos os direitos ocidentais, o princípio do contraditório, ao qual já faziam referência Aristóteles e Sêneca, é ligado à própria noção de justiça que é uma obra de confrontação. É tão primordial [...] e é considerado um princípio geral de direito. Esse princípio quer que nenhuma parte possa ser julgada sem ter sido ouvida ou citada e implica que cada uma das partes em causa tenha condições de discutir e de contradizer as pretensões, os meios, os argumentos e os elementos de prova que lhe são opostos. Ele se impõe às partes, mas também ao juiz que deve em todas as circunstâncias fazer que se observe e observar ele mesmo o princípio de contradição. O juiz não pode, assim, estabelecer de ofício meios, mesmo de direito puro, sem convidar previamente as partes a apresentar suas observações. Implica que o adversário seja sempre informado da existência de todo procedimento dirigido contra ele, que prazos para comparecer sejam-lhe outorgados, que todos os meios invocados e todos os elementos de prova produzidos sejam objeto de comunicações recíprocas entre as partes para que cada uma delas tenha condições de organizar sua defesa” 231.
Portanto, mesmo no âmbito do processo jurisdicional há uma ampliação de sentido do contraditório, expressa na constituição de meios, devidamente disciplinados, segundo uma diretriz aplicável às formas, que orienta as rotinas relativas às audiências, aos documentos e a todos os pormenores que concretizam a atuação de cada uma das partes e do juiz no processo. Na acepção ampla do processo, consideradas as decisões relativas à alocação de recursos orçamentários, formulação de projetos de lei pelo governo e outras iniciativas, os panos de fundo da atuação governamental são o da multiplicidade de atores e o da diversidade de interesses. O desafio
sociológico-funcional de coesão é pertinente, em primeiro lugar, ao próprio aparelho de Estado, especialmente no contexto do processo de transição para o desenvolvimento. É preciso considerar que o Estado não é monolítico e que os desafios de convergência se impõem tanto à burocracia como ao corpo político diretivo do governo. Quanto menos institucionalizada uma democracia, menos regrada é a convivência entre os interesses distintos e maior o nível de disputa entre eles. A processualidade representa a ordenação jurídica das relações do Estado com a sociedade, orientada para a aplicação do contraditório, de modo que as decisões relevantes sejam sempre mediadas pelo diálogo social, com algum grau de formalização. O exercício do contraditório demanda formas específicas de coordenação, articulação, mediação ou arbitramento dos interesses em conflito, a fim não apenas de obter uma decisão, “resultado útil” do processo, mas minimizar os efeitos da frustração dos portadores dos interesses não contemplados. Esses mecanismos são definidos, em regra, pelo direito. Nesse sentido, o estudo da noção de interesses – interesse coletivo, interesse público, grupos de interesses – bem como a identificação da burocracia como grupo organizado, portador de interesses específicos, pela ciência política, permitiu compreender parte da dinâmica interna do processo. Interesses polarizados são aqueles em que há explicitação dos termos do contraditório, compreensível do ponto de vista exterior aos contendores. A etimologia da palavra interesse, do latim, quod inter est , “aquilo que está entre”, remete ao sentido de relação. Fora do âmbito do Estado, a convergência de interesses é geralmente pequena, salvo em momentos muito excepcionais da vida de um país, como ocorre, por exemplo, nas situações de recuperação pósautoritária ou pós-guerra, em que o esforço de reconstrução proporciona um grau maior de coesão na sociedade. Fora dessas circunstâncias e a depender da área e da política, o que existe é a fragmentação de grupos e interesses, por exemplo, os prestadores de serviços concedidos ou empresários e detentores dos meios de produção, os consumidores, os beneficiários de políticas sociais. Assim como na ciência política, em parte por influência de trabalhos nesse campo na segunda metade do século XX232, no direito também, pela sua evolução teórica própria, que vinha desenvolvendo essa categoria desde o movimento da chamada “jurisprudência dos interesses” na Alemanha do século XIX233, a categoria interesse passa a ser utilizada como figura legal, a suportar a ampliação da tutela jurídica e udicial de valores sociais234. Numa “pragmática jurídica das políticas públicas”235, o desafio seria definir, nos diversos processos de que o Estado participa, regras de apresentação de postulações e interesses, de um lado, e as respostas correspondentes de outro, no sentido da rejeição ou acolhimento parcial da postulação. Os padrões de regras devem referir-se à articulação, isto é, formas de composição parcial ou integral de interesses e procedimentos, ou ao arbitramento, em sentido político, em que uma terceira autoridade ou ente decide em favor de uma ou outra posição236. Outra alternativa possível é o adiamento da decisão, abrindo-se nova rodada de diálogo, até a decisão, com a definição dos contornos da política. Devem-se considerar os vários centros de competência, seja no mesmo plano jurídico-territorial ou em planos distintos, bem como polos de poder urídico estranhos à esfera governamental e, além disso, os mecanismos de participação dos cidadãos nas decisões administrativas como medidas de interesse geral ou em casos concretos. A estruturação do contraditório, como núcleo de sentido do processo, por meio do procedimento, assegura que a autoridade pública atue com base na legitimação democrática. Essa estruturação passa pela fixação, como primeiro exercício da autoridade, dos termos de processamento do conflito. Cumpre compreender quais os interesses em disputa, quem são seus portadores e como se organizam. A partir daí deve ser feita a tradução desse agregado para o procedimento jurídico, definindo-se quem são as partes
no processo. Um segundo aspecto é a definição do objeto do processo, que também requer a tradução dos componentes políticos nos contornos jurídicos da decisão que se espera ao final do processo. Finalmente, deverão ser explicitados os pressupostos do processo, isto é, as condições em que se deve dar o exercício do contraditório, de tal forma que a decisão final resulte válida, quanto ao esgotamento das possibilidades dialógicas proporcionadas pelo modelo. Exemplo disso é a fixação (até certo ponto arbitrária) do número de “rodadas” de prova e contraprova, e do prazo, como condição para se obter da decisão. A noção de participação deve ser entendida “com um grão de sal”. Considerando que há uma assimetria de informação e de posições dos vários interesses envolvidos, muitas vezes o desafio institucional reside em definir procedimentos que tornem o processo de decisão permeável aos interesses sociais dispersos, não necessariamente por meio da participação direta. As formas representativas podem eventualmente ser mais fiéis à presença da multiplicidade de interesses no cenário decisório do que a participação direta, que, do ponto de vista prático, na sociedade em geral, é seletiva, em virtude da assimetria de meios de participação (recursos para deslocamento, presença em reuniões, contratação de especialistas para elaborar aspectos técnicos dos processos e assim por diante). É possível conceber procedimentos estatais de compensação das assimetrias – é o caso, por exemplo, de apoio à participação de entidades de defesa do consumidor em agências reguladoras –, mas isso não significa que eles devam, necessariamente, ser generalizados. Além disso, a participação deve ser compreendida em dois sentidos de direção, do ambiente circundante para o Estado e do Estado para o ambiente. A criação de procedimentos de consultas e audiências públicas, nas quais se colhem proposições, postulações, e críticas a medidas governamentais em construção está em franco desenvolvimento, com a ampliação e qualificação crescentes dessas formas de procedimentos participativos. A criação de condições de participação nas questões públicas deve dar-se sob a forma de informação. A informação organizada é a base para a prestação de contas das autoridades ou gestores públicos à sociedade, a chamada responsividade ou accountability. A informação é, por certo, mais abrangente que a responsividade, alcançando, quando se pensa em transparência pública, dados e elementos que não necessariamente se inserem num diálogo estruturado. Trata-se de informações que “não foram objeto de perguntas”, mas que, ainda assim, em função de um princípio geral, não devem permanecer sob reserva, mas estar disponíveis para conhecimento do público, habilitando-se para diálogos em potência e não apenas em ato. A passagem do dissenso social para alguma forma de contraditório juridicamente disciplinada requer o estabelecimento da representação do conflito em termos de seus parâmetros processuais, as partes, o objeto e os pressupostos, isto é, do quadro de ação, definido com base no direito, no qual se desenvolverá o processamento da tensão social. Em primeiro lugar, é preciso definir os legitimados no processo, aqueles que poderão expressar os termos do conflito. Em segundo lugar, distribuir os ônus de demonstrar as razões de sua posição e definir de que forma isso será feito, para um dos lados e, reciprocamente, para o lado oposto. Finalmente, a fixação da competência decisória, se direta do Estado ou por alguma forma de delegação deste. Os pressupostos do exercício do contraditório definirão em que condições e limites ele é admissível. Algumas circunstâncias permitem refutá-lo de início, como é o caso das decisões baseadas em critérios de mérito e não puramente argumentativas. Não obstante, até mesmo esse parâmetro poderá ser fixado de maneira a ser exposto a contraditório, isto é, ao crivo da crítica, que definirá se o mérito é o critério mais apropriado para aquela decisão ou não.
Trata-se de pactuar, socialmente, a escolha de temas para a agenda governamental, primeiro passo do ciclo de formação de uma política pública, fixando-se, em seguida, as condições em que se dará o debate público para a sua formação e implementação, definindo-se também os interlocutores desse debate. Colocando-se como objeção o fato de que as relações sociais são de certa maneira “viciadas” e as condições de diálogo regrado são limitadas de início, lograr o estabelecimento do contraditório real, para além da reprodução irracional dessas condicionantes, é o primeiro desafio.
e) O tempo como variável do processo de decisão A definição de processo e processualidade traz imanente a dimensão temporal. Embora não se trate de aspecto cuja apreciação seja consagrada pelo direito ou pela processualidade em sentido amplo, cuidase de um componente importante das estratégias decisórias, cabendo considerá-lo em destaque na análise dos processos governamentais. A relevância do elemento tempo como insumo dos processos decisórios é quase comparável à dos elementos econômicos ou institucionais. O sentido comum do termo processo está geralmente associado à evolução da ação ao longo do tempo. “1. ação continuada, realização contínua e prolongada de alguma atividade; seguimento, curso, decurso; 2. sequência contínua de fatos ou operações que apresentam certa unidade ou que se reproduzem com certa regularidade; andamento, desenvolvimento, marcha; 3. modo de fazer alguma coisa; método, maneira, procedimento [...]”237. Processo é o desenrolar da ação por meio de uma sucessão encadeada de atos, cuja produção tem por fim a decisão. Mas, assim como em relação aos atores que movem as engrenagens das políticas públicas, quanto ao tempo há vários focos a considerar. Existe o tempo interno ao processo, isto é, o fluxo de prazo que decorre na passagem de um elo da cadeia de atos para o seguinte. Mas o tempo, nesse sentido (como, aliás, na vida), não significa o transcurso de dias ou semanas, mas as mudanças de estado associadas à ocorrência de determinados fatos. Os cortes temporais na história são fixados em virtude de eventos de especial relevância para uma determinada comunidade. O tempo, em políticas públicas, é fator de diferimento da ação, sempre em balanço com fatores correlacionados. Ilustrando, uma ação pode ter alto custo, se proposta num prazo curto, mas custo aceitável, se estipulado o dobro do prazo. Exemplo disso são as políticas previdenciárias, que devido ao longo tempo de percepção de seus efeitos raramente exibem todo o seu custo no momento de apresentação. Outro impacto do tempo é o que relaciona o tempo político com o funcionamento das instituições. O calendário eleitoral, em qualquer país, mas especialmente nas democracias menos maduras, tem grande influência sobre a definição de políticas e o ciclo de formação dessas. O tempo político-governamental em geral é mais exíguo que o tempo necessário para o desenvolvimento da ação em bases institucionais de caráter permanente238. O impulso governamental de inovação dificilmente se concilia com os tempos necessários para a estabilização de procedimentos formalizados. Além disso, o tempo é uma variável que pode ser manipulada na distribuição do ônus decisório. Essa dinâmica permite minimizar os custos de decisão pelo efeito do retardamento ou, de outro lado, obter uma transformação significativa a partir de iniciativas de pequena envergadura239. Uma dimensão essencial nas políticas públicas, que é a da coordenação, tanto de comportamentos como de expectativas, também se apresenta em relação ao tempo. Como esquema cognitivo, as políticas públicas, idealmente consideradas, devem permitir a compreensão dos mecanismos de coordenação da ação governamental no tempo, isto é, o entendimento de como cada elo da cadeia de atos que integra o processo pode levar ao seguinte, considerado o feixe de reações dos diversos elementos envolvidos. A
coordenação da ação no tempo passa a ser uma dimensão conscientemente trabalhada, que levará, por exemplo, a superar as descontinuidades involuntárias das políticas, que sacrificam recursos e frustram expectativas, e o amadurecimento de ações que necessitam de tempo para gerar frutos. 2.2 Os vários processos, juridicamente disciplinados, que concretizam a ação governamental
A criação de uma técnica profícua de implicação mútua entre políticas públicas e processos depende de sistematização dos mecanismos jurídicos relevantes de participação e de exercício do contraditório em sentido amplo, nas atividades estatais estruturantes, que tradicionalmente não são abordadas sob a ótica processual. A proposta é aplicar a noção de relação processual como esquema analítico aos diversos processos conduzidos pelo Poder Público que levam à formação das políticas públicas. Propõese um “painel de análise jurídica processual”, com a consideração de vários “processos estatais” pertinentes240; o processo administrativo, porque é a matriz de organização do processo decisório no âmbito da Administração Pública, corpo executivo do governo; o processo legislativo, dado o interesse no exercício da iniciativa governamental sobre a elaboração das leis, e o processo judicial, porque o Poder Judiciário é o foro último de decisão sobre conflitos relacionados à implementação dos direitos objeto das políticas públicas. Analisam-se também os processos de alocação de meios para as políticas públicas, destacadamente o processo orçamentário e suas correlações com o processo de planejamento, que orienta comportamentos futuros do Poder Público e dos agentes privados. Todos esses processos têm em comum resultarem numa decisão estatal, embora sigam cada qual suas próprias normas. Trata-se de linhas de atuação relativamente definidas e autônomas, de acordo com sua conformação jurídica. O processo eleitoral, nesse contexto, tem um sentido peculiar, porque, embora organizado pelo corpo estatal da jurisdição eleitoral, estrutura-se para colher a mais importante decisão do povo, a eleição de seus representantes e dos dirigentes políticos do país e das unidades federativas. O impacto do processo eleitoral sobre a composição e o ritmo de implementação das políticas públicas, diretamente afetado pelo calendário e pelas regras eleitorais, faz pertinente abordá-lo neste painel. O objetivo não é discorrer extensamente sobre cada tipo de processo, mas de modo sumário, apontar o encadeamento de atos que realça o aspecto processual de cada um, no sentido jurídico, localizando como se dá o contraditório e se organizam os pressupostos da relação processual aplicada. Importa explorar os pontos de conexão com outros processos juridicamente disciplinados, realçando o papel do governo e os demais atores em cada um deles. A concepção do processo em sentido amplo aplicada a esse contexto é relevante para o seguinte: a) trabalhar atividades tradicionais pela ótica do processo, isto é, segundo o encadeamento sucessivo de atos numa ordem determinada e com o crivo do contraditório, considerado o ambiente circundante de dissenso ou disputa de interesses; b) aplicar o esquema cognitivo do processo e do procedimento udiciais, para compreender os demais processos, dos quais resulta alguma espécie de decisão governamental, aproveitando as noções que informam e fundamentam a obtenção e aplicação da decisão de tipo jurisdicional, em especial a de relação jurídica, consideradas as partes, os pressupostos e o objeto do processo; c) identificar, de maneira particular, as diversas posições ou situações, a partir da noção de relação jurídica, com destaque para o papel do Estado, e, em contraposição, para a compreensão dos papéis dos demais sujeitos envolvidos; d) considerando que nos processos governamentais não está, em geral, suficientemente caracterizada a dinâmica jurídico-processual, vislumbrar as possibilidades de aperfeiçoamento procedimental, no sentido da abertura das decisões a formas de acompanhamento e participação da sociedade.
A análise que se passa a fazer procura identificar em cada passo do processo jurídico – formal e institucionalizado – injunções ou aspectos de interesse político, nem sempre visíveis ou formalizados. A proposta é explicitar e sistematizar os elementos e peculiaridades jurídicas dos diversos processos, de modo a melhorar a compreensão da interação com outras áreas, como a política, a economia e a gestão pública, entre outras, indicando aspectos explicativos de possíveis disfuncionalidades jurídicas o extrajurídicas daquele processo. A valoração subjacente a essa apreciação, no sentido do potencial democrático e inclusivo de determinada política ou outros aspectos axiológicos, será considerada, quando pertinente. Evidentemente, todos esses tópicos (como de resto qualquer disposição normativa) são permeados por razões e fundamentos de ordem político-institucional. Não obstante, alguns deles consistem nos “nós” principais de entrelaçamento entre a política e o direito, e por essa razão serão analisados mais detidamente. Na descrição e análise jurídica dos processos, a legislação e a jurisprudência pertinentes serão referidas apenas quando indispensável para ilustrar a materialidade das políticas. Deve-se considerar que se trata dos referenciais objetivos, acessíveis e disponíveis à apreciação de pesquisadores de diversas formações. O costume, embora seja objeto de restrições quanto à sua aceitação como fonte do direito público – devido a uma leitura excessivamente estrita do princípio da legalidade241 –, compõe a “cultura de fundo” em que as normas incidem. Não obstante, em geral está associado ao plano da política, como “cultura política”, e não reconhecido como elemento que integra o plano do direito. O ponto de vista que inspira a abordagem é o do Poder Público, prospectivo, isto é, voltado ao desenho de como deve ser ordenado o processo governamental, num cenário de institucionalização ideal, considerando a ação governamental como motor de inovação institucional. De um lado, a análise teórica, que permita compreender a ação do governo, a partir de um modelo de articulação de diversos vetores presentes, em especial o jurídico, o político e o econômico, embora se pudessem citar os aspectos histórico, geográfico etc. De outro lado, e complementarmente, a categoria deve fazer sentido na perspectiva do gestor público, que formula a política pública, a partir da ação governamental institucionalizada. Considerando que os processos são instrumentos, por excelência, de atuação do governo sobre a máquina burocrática, o domínio técnico de suas injunções confere vantagem a quem o detém. O exercício do contraditório hábil a produzir efeitos, seja desconstituindo a decisão, seja modificando-a, mesmo quando decorra de ajustes políticos externos, dá-se formalmente no âmbito do processo, mediante provocação oficial e formalização da parte interessada. Convém ao processo político, portanto, ter sob visão o alcance do processo e a condição de apreciar os arranjos institucionais em formação o execução, sob o prisma de sua funcionalidade institucional, isto é, aptidão à produção dos efeitos enunciados. Enfatiza-se a perspectiva deôntica, do dever-ser, mais que o ser da atuação do Estado e do governo, visão prospectiva, com referência a um tipo ideal. A noção de ação governamental que interessa explorar é aquela capaz de orientar as condutas no interior do Estado e fora dele, no sentido de produzir um quadro de ação sustentável no tempo, hábil, portanto, a realizar de fato (e não apenas no plano da retórica, no sentido vulgar) os resultados enunciados na política, buscando a qualidade e clareza da composição do arranjo institucional, com repercussão sobre as dimensões ética e técnica. Trata-se do reverso dos propalados “choques de gestão”, considerando o aspecto da sustentabilidade políticourídica de determinada linha de ação. Assim, “soluços políticos”, “voos de galinha” e iniciativas sem condição de continuidade não se enquadram na noção de ação governamental aqui proposta, até porque em geral podem ser descritas e compreendidas nos marcos da teoria política e do direito público já
estabelecidos.
a) Processo administrativo e seus contextos institucionais A noção de processo em direito administrativo tradicionalmente ocorria no contexto da aplicação de sanções aos funcionários públicos, submetidos ao regime jurídico típico da função pública, no âmbito do processo administrativo disciplinar. Esse escopo se amplia com a adoção de uma legislação sobre processo administrativo, no mesmo sentido do que ocorreu em diversos países242. As diretrizes e regras gerais estabelecidas para o chamado processo administrativo aplicam-se à generalidade dos processos regidos pelo direito público, inclusive aqueles no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário estranhos a suas funções típicas. O processo administrativo passa a fornecer referências para a atuação pública, de maneira geral. Os modos e condições da atuação administrativa deixam de ser tematizados apenas pela política, passando a ser objeto de disciplina jurídica, segundo padrões, formas e linguagens, de ação e de controle, próprios do direito. Isso não significa a “colonização” da política ou do governo pelo direito, mas o reconhecimento de que as democracias maduras assumem um grau de institucionalização que reduz ainda mais os espaços intraestatais livres de regulação jurídica. Vistas por alguns como legislação específica sobre o aspecto procedimental da administração (o processo administrativo seria um capítulo, ao lado dos atos e dos contratos administrativos), as legislações processuais, editadas ao influxo de novos papéis para o Estado, contêm diretrizes gerais e princípios orientadores da atividade administrativa globalmente considerada. Não se trata de mais uma particularidade, mas, ao contrário, de disciplina geral de organização da Administração Pública. Assim como no Brasil, as legislações de processo administrativo de caráter geral foram tardias, posteriores à disciplina de processos específicos de compras governamentais, de orçamento e da função pública (servidores e funcionários públicos). Os objetivos de uma legislação de processo administrativo podem ser sintetizados nos seguintes: a) disciplinar o funcionamento da Administração Pública, visando à racionalidade e reduzindo o eliminando a burocratização; b) atuar na formação da vontade da Administração Pública, para decisões ustas, legais, úteis e oportunas; c) informação dos interessados e participação nas decisões; d) transparência das decisões e respeito aos direitos243. O direito brasileiro está afinado com essa tendência de ampliação do sentido do processo administrativo, cujo núcleo é sumariado nos seguintes elementos: a) expressão de um “vir a ser” do fenômeno administrativo; caráter dinâmico, típico de situações em evolução; b) sucessão de atos no tempo; encadeamento em que a legitimação para a produção do ato subsequente é definida pelo direito, em termos de deveres e ônus; c) caráter juridicamente necessário e obrigatório do encadeamento de atos; d) instrumentalidade do processo em relação ao ato ou decisão; e) vinculação teleológica dos atos da série ao ato ou decisão final, observando-se as garantias e condições jurídicas para a produção dos atos intermediários; f) ato ou decisão final como resultante da cooperação de várias pessoas; g) conexão dos sujeitos ao esquema processual por direitos, deveres, ônus, poderes e faculdades, ou seja, um conjunto de posições jurídicas ativas e passivas de cada um244. Nesse sentido, baseia-se na formulação de Fazzallari, á referida, do processo como procedimento em contraditório. A assunção dessas premissas, tanto teóricas quanto político-institucionais, resultou na adoção de uma legislação federal geral de processo administrativo245, cuja estrutura contempla os temas dos princípios gerais e seus critérios de aplicação, conceito de interessados, o dever de motivar, as audiências e consultas públicas, entre outros246. Os balanços sobre os efeitos da lei em geral reconhecem o seu sentido
racionalizador, benéfico e modernizador da Administração Pública brasileira247. É verdade que a norma estruturadora da Administração Pública brasileira segue sendo o Decreto-Lei n. 200, de 1967, já referido, legislação de inspiração weberiana, que aparta os níveis de direção política e execução, baseada em teorias administrativas clássicas, como a de Fayol, que classifica as funções administrativas em planejamento, organização, execução, coordenação e controle248, noções consolidadas em diversas experiências governamentais pelo mundo. Portanto, no caso brasileiro, considerando a reforma administrativa pela qual o país está a esperar249, é pouco razoável supor a construção de um marco jurídico inteiramente novo. O mais plausível será uma nova sistematização de regras e conceitos existentes (ainda que talvez não inteiramente incorporados às práticas correntes), enfrentando questões fundamentais do direito público, principalmente os dilemas da inefetividade crônica e da falta de sustentabilidade jurídica das iniciativas governamentais, que se reflete na também reiterada descontinuidade de políticas e programas. Essa consideração é importante, em vista de um senso comum no meio jurídico brasileiro, segundo o qual o problema da aplicação do direito na área pública não estaria propriamente “no direito”, mas “nos políticos”, que desconheceriam as regras ou, conhecendo-as, as ignorariam ou afrontariam, em nome de objetivos menores. Em que pese o substrato de verdade dessa afirmativa, o fato é que o problema jurídico da Administração Pública, em alguns níveis e casos, define-se melhor como um problema jurídico-institucional, isto é, aquele em que as instituições, na relação dinâmica entre a política e o direito, conformam-se reciprocamente. Em outras palavras, a redefinição dessa dinâmica depende também do direito, não podendo ser solucionada exclusivamente com a mudança de comportamento político por um ato de vontade; é preciso que a cadeia de incentivos para os comportamentos de desconsideração das normas seja modificada. Em qualquer cenário de reforma administrativa que venha a se desenhar deve-se ampliar a coerência entre competências, fluxos e procedimentos de instrução e decisão, para que o tema do controle seja tratado com equilíbrio, sem que a tônica da supervisão sobre o ilícito produza excessos que inibam a prática das atividades finalistas. A ótica do controle deve evoluir, não apenas sob o aspecto da titularidade, isto é, controle administrativo, judicial ou social, mas principalmente pelo prisma do tempo – prévio, concomitante ou posterior –, implementando-se a “processualização” do controle, de maneira que este perdure, com inteligência, ao longo do tempo, passando a integrar a cultura administrativa democrática. Ao privilegiar a ação governamental como centro da análise da dimensão microinstitucional do governo, deve ganhar relevo a figura da autoridade250 ou gestor público. Isso evitará incidir num equívoco comum de análises políticas que conferem excessivo peso às estruturas organizacionais do governo, o que tem ocorrido com frequência também nos debates sobre direito público. Em democracias pouco maduras, como a brasileira, as formas de organização (autarquias, agências, organizações sociais etc.) não dizem muito sobre a funcionalidade das políticas a elas incumbidas. Com frequência, o processo de formação e transformação dos órgãos na Administração Pública é apenas reativo, refletindo necessidades de acomodação política, em prejuízo da racionalidade decisória. Mas há políticas bem e malsucedidas sob determinada forma organizacional, assim como há formas que podem suportar bem as políticas, sob determinadas circunstâncias, e mal, sob condições diversas. Evidentemente, há implicações jurídicas e políticas relevantes em relação às formas organizacionais e sua adequada submissão ao regime jurídico da impessoalidade e todo o conjunto de disposições que se aplicam à Administração Pública. Entretanto, a mitificação das formas organizacionais se expõe quando essas formas ficam incompletas (e isso faz parte da tradição administrativa brasileira), não passando de retórica o discurso da inovação institucional. O verdadeiro diferencial das formas organizacionais
depende do elemento humano, tanto na Administração Pública quanto no governo. O silêncio sobre o se lugar no funcionamento institucional geralmente indica uma forma organizacional vazia ou sem capacidade real de atuação. A perspectiva da ação governamental focada na história institucional que culmina na decisão acentua o papel das pessoas, agentes públicos que se incumbem das tarefas governamentais, e suas contrapartes no âmbito externo à esfera de governo. As estruturas organizacionais, assim como os arranjos institucionais, são apenas as formas exteriores à ação governamental, nas quais ou com base nas quais ela ocorre. Na Administração Pública brasileira ainda não está plenamente estabelecido o domínio da disciplina processual; para inúmeros gestores públicos e servidores a existência de uma legislação geral de processo administrativo é desconhecida. Também não está suficiente e generalizadamente implantada a prática de organização racional dos processos. Não é incomum a confusão de atividades de instrução, decisão e recurso, o que dificulta, especialmente no caso das decisões denegatórias, distinguir motivos ou identificar precisamente vícios do processo decisório a sanar. As medidas jurídicas aqui referidas não dispensam a adoção de políticas conhecidas de aprimoramento do serviço público, por meio da profissionalização da força de trabalho, valorização do desempenho e outras formas de racionalização da gestão pública. Para o desenvolvimento das políticas públicas, são fundamentais os mecanismos de coordenação, que ainda funcionam entre nós de maneira isolada, sem caráter sistemático, como ocorre no caso da arbitragem de conflitos entre entes públicos por ente ou órgão governamental definido na legislação251 o dos foros de participação comum, extra ou “para”governamentais, consultivos ou deliberativos. Esses foros têm caráter jurídico peculiar, visto tratar-se de associações civis, como é o caso de alguns conselhos de secretários estaduais, a exemplo do Conselho de Secretários Estaduais de Educação (Consed), que tem papel ativo na articulação de políticas educacionais (como o Fundeb)252, e o Conselho de Secretários Estaduais de Administração (Consad), que, entre outros temas, debate o processo de compras governamentais, tendo apresentado anteprojeto de alteração da Lei de Licitações. As iniciativas de coordenação têm destaque em alguns ordenamentos, como é o caso da legislação italiana de processo administrativo, de 1990, alterada em 2005, que visa criar um novo regime de transparência, com ampliação do acesso aos documentos administrativos, novas relações entre direito público e direito privado (instrumentos negociais e instrumentos baseados na autoridade, disciplina geral dos acordos com a administração), novas regras sobre instrução e participação, além de outros temas atinentes a questões especificamente jurídicas, tais como a invalidade do ato administrativo e a executoriedade do provimento administrativo253. Importante aspecto dessa legislação, que praticamente não mereceu comentários entre nós, foi a consagração do direito comum como direito ordinário da Administração Pública, superando a construção de um direito administrativo especial por princípio, derrogatório do direito comum254. Merece destaque a nova figura de coordenação intragovernamental, a “reunião de serviços” (conferenza di servizi)255, cujo objetivo é a simplificação da área administrativa, disciplinando o dissenso na Administração Pública, por meio da reunião de serviços públicos em sentido estrito, de acordos entre administrações públicas e de atividade consultiva, e com isso conferindo previsibilidade à arbitragem de decisões256. Esse mecanismo visa à composição de pluralidade de interesses públicos envolvidos em procedimentos complexos (ex. tutela ambiental, paisagístico-territorial, de saúde pública etc.), por meio da reunião transversal de procedimentos conexos, visando proporcionar celeridade e concentração decisória. Trata-se de instrumento facultativo, de caráter instrutório ou decisório, neste último caso visando decisões “poliestruturadas”. Tem cabimento nas situações em que o ato depende da
manifestação de outros órgãos da Administração Pública e não a obtém, expressamente, por dissenso, o tacitamente, por omissão, no silêncio por mais de trinta dias. Do ponto de vista procedimental e processual, os aspectos mais relevantes da conferência de serviços decorrem de ser um “modo para tornar colegial como norma o agir administrativo e, portanto, compensar o policentrismo organizacional com a unidade da decisão”257. Nesse sentido, o critério de decisão por unanimidade – alternativo aos critérios de decisão por maioria – ou as “posições prevalentes”258, embora mais difícil de executar, é mais adequado à concepção de um espaço de negociações, no qual a decisão resulte de concessões recíprocas259. A relação jurídica administrativa. Decisão e distribuição dos ônus decisórios
A questão relevante para as políticas públicas em relação ao processo administrativo reside em saber como se dá, no que respeita aos problemas específicos, o exercício do contraditório e em que termos, com base em quais pressupostos. A aplicação do modelo cognitivo do processo judicial ao processo administrativo, nesse sentido, permanece válida, se considerarmos que o funcionamento regrado da urisdição já venceu, naquele âmbito, as questões que se colocam como problemas novos para o âmbito administrativo. O que há de novo é um certo “alargamento de objeto”, uma vez que no contexto judicial as relações são, por definição, jurídicas. No contexto do processo administrativo, há relações políticas ou, mais amplamente “governamentais”, que precisam ser “traduzidas” para a linguagem e os conceitos do direito, para depois serem processadas segundo procedimentos juridicamente definidos. Do ponto de vista teórico, há uma inflexão importante na superação da perspectiva do ato, isoladamente, para a consideração de conjuntos de atos ou ações encadeadas, sob a noção de relação urídica administrativa260. O processo decisório tem particularidades, segundo as diferentes funções desempenhadas pelo Poder Público, de acordo com instrumento precipuamente aplicado, se a “coerção pedagógica” ou outros meios, distinguindo-se usualmente as seguintes funções: a) ordenadora, que deriva do clássico poder de polícia, com uso da autoridade pública; b) prestacional, que implica a prestação de serviço público, direta pelo Poder Público, ou delegada a particulares mediante ato administrativo (autorização), ou contrato (concessão ou permissão); c) de fomento (intervenção por indução), que implica estímulo oficial, geralmente financeiro, na forma de recebimento direto de recursos ou renúncia fiscal; d) de regulação (intervenção por direção) ou; e) de intervenção por participação direta (empresa pública ou outras formas de participação empresarial). A organização administrativa tem como fim último e fundamento a decisão. Em função dela, estabelecem-se (ou deveriam estabelecer-se) as competências, de várias naturezas, tanto decisórias, propriamente, como instrutórias e assessórias, de maneira geral. Na decisão esperada repousa o nexo de sentido da ação governamental. A distribuição dos ônus do processo, tanto relativos à instrução como à decisão propriamente, processuais e materiais, deve orientar-se nesse sentido. A afinidade e o ajustamento, tanto político como técnico, da competência formalmente fixada com a capacidade daquele cargo ou órgão de proferir e executar a decisão, acompanhando seus efeitos ao longo do tempo, repercutirão sobre a sua sustentabilidade. Considerando a importância do processo para a formação da vontade do Poder Público, nele deve exercitar-se também um balanço dos riscos subjacentes à decisão, combinado com formas de participação adequadas. A avaliação do risco como categoria no processo decisório é pertinente, tendo em vista que o cenário decisório é caracterizado pela incerteza; as variáveis não são simples o inteiramente controláveis pelo gestor público, o que é bem ilustrado pelas questões ambientais, de saúde
coletiva, urbanísticas e outras, em que a noção de “risco” de certa maneira atualiza as circunstâncias nas quais a figura figura do “peri “perigo” go” fun fundam dament entava ava o exercício exercí cio do poder de polícia. polí cia. “Ambos exigem tomar decisões em situação de incerteza, mas enquanto os prognósticos relativos ao perigo podem se apoiar em experiências conhecidas de cadeias causais lineares, o conceito de risco faz referência a situações nas quais não se pode calcular a probabilidade de que se produza uma variante conhecida (incerteza em sentido amplo), ou naquelas em que nem sequer é predizível o curso dos acontecimentos ou suas consequências (incerteza em sentido estrito). [...] ‘O conceito de risco se converte desse modo em uma variável pluridimensional, na qual confluem a magnitude do perigo previsto, um fator de insegurança que está em função do grau de conhecimento sobre o cálculo do perigo e os possíveis custos de um prognóstico equivocado’” 261.
A despeito do cenário em mutação, o andamento do processo deve ser linear, sem marchas e contramarchas, de modo que os atos intermediários possam convergir para a decisão a ser produzida, seja mediante etapas sucessivas de instrução e decisão (procedimento, em sentido jurídico estrito), seja pela atuação de um “plexo instrutório-decisório” resultante do funcionamento de focos de competência diversos (ato complexo). A Administração Pública deve construir e gerir o processo, de modo consciente, conscient e, a respei respeito to das inf i nform ormações ações a serem se rem demandadas demandadas de quem com ela interag interage, e, de form formaa a não ser congestionada com dados ou elementos que não terá condições de utilizar. O processo deve auxiliar a Administração, Adm inistração, e não o inverso. i nverso. Na fase de instrução decisória dá-se a chamada “formação da vontade” da Administração Pública, vontade objetiva, não mera volição. Devem restar claros os motivos da decisão, sua justificativa técnica, se for o caso, e seu vínculo ou subsunção com a regra de competência. Nesse aspecto reside o núcleo substantivo da decisão, o cerne, o conteúdo da ação governamental, e também o que pode justificar que se atinja eventualmente a esfera de direitos dos cidadãos. Todas as decisões governamentais contêm um fundam fu ndament ento, o, confessável ou inconfessável, inconfessável, de int i nteress eressee público ou privado, explícito ou não. não. Os problemas de instrução e do contraditório reaparecem na fase de recurso, embora de maneira mais restrita. No processo judicial, cuja ordenação inspira, em regra, o processo administrativo, o escopo de apreciação do recurso é por definição mais limitado que o escopo da decisão originária, uma vez que não se admitem produção de provas nem alegações novas, salvo poucas exceções. O sentido técnico dessa limitação está ligado ao objetivo de reexame, inerente ao recurso; o objeto deste não é o direito postulado pela parte, mas a validade e a correção da decisão recorrida. Essa é a razão por que a competência recursal é exercida por autoridade distinta da que proferiu a decisão recorrida, em regra, instância colegiada. Contudo, numa cultura administrativa pouco institucionalizada, uma das brechas por onde se infiltram interesses menores usualmente associados à “política” é essa. A autoridade superior, cuja investidura tem maior vinculação ao âmbito da política, geralmente está mais exposta aos critérios políticos, os quais podem colocar-se em tensão com os elementos de racionalidade técnica adotados originalmente, na decisão da instância inferior. Portanto, a incidência de mecanismos de transparência deve ser ainda mais presente. A organização do trabalho governamental segundo regras de transparência e impessoalidade é uma garantia democrática, na medida em que traga à luz e viabilize a aplicação do contraditório. O exercício do contraditório, como hábito político e não apenas jurídico, gera legitimidade processual, a qual, por sua vez, repercute sobre a legitimidade substantiva do governante. Isso ocorre desde a organização da pauta governamental, o que requer do governo a percepção dos temas relevantes para a comunidade, o daqueles que, ainda sem ter sido percebidos como tais, poderão modelar seu futuro ou influir positivamente sobre ele. As consultas e audiências públicas são exemplos em que o contraditório pode ocorrer, de maneira oficial e explicitam explici tament entee regrada, re grada, mesm mesmoo que sem caráter obrigatório obr igatório ou vinculante. vinculante. Ainda Ainda assim, as sim, a prática prá tica
demonstra que esses mecanismos modificam o processo decisório, mas exigem requisitos específicos para se reverterem r everterem concretament concretamentee em decisões melhores. Com as novas formas, surgem surgem novos novos riscos r iscos,, tais como as composições ocasionais, ou com protagonismo desbalanceado dos representantes de setores diretamente relacionados àquela política, que podem produzir cenários decisórios artificiais e decisões igualmente distantes daquilo que se poderia esperar do processo administrativo racional, transparente e democrático. É o que torna enganosa e superficial a visão do processo como algo exclusivamente formal. O processo estruturado é um fator de racionalização da ação governamental, na medida em que cria condições para a produção e explicitação das razões substantivas da decisão, no sentido do interesse público. A formulação da política, com a eleição das prioridades, a indicação dos recursos, a definição do foco de beneficiários, bem como o seu horizonte temporal, são prerrogativas precípuas do governo, cuja legitimidade se funda no processo eleitoral. Há situações em que a legitimação geral do governo, conferida pelas eleições, embute um consenso capaz de fundamentar medidas adotadas unilateralmente, seja em razão do tempo, seja da eficácia de tais medidas. Essa legitimação pode ser confirmada o renovada em oportunidades diversas, pela interação com a sociedade, o que ocorre, por exemplo, por meio da im i mprensa, quando quando o governante governante ou gestor gestor público públic o presta pres ta contas contas de suas decisões. decis ões. É verdade que aumenta o risco de sobrecarregar-se a administração com os ônus da legitimação, própriaa da política, própri pol ítica, para o qual advertia Luh uhm mann ann.. “[...] quando os próprios processos políticos não conseguem suficiente apoio para a administração de forma que esta necessita desempenhar por si mesma funções políticas e organizar, em cada caso, um público cooperante. Com isso se renuncia às vantagens da diferenciação funcional de política e administração. Em resumo: a administração burocrática, que está equipada com os meios financeiros necessários e conforme às competências e é sempre independente do consenso dos interessados, deveria ser mais eficaz [...]. Aquela complexidade maior e liberdade de decisão na administração perder-se-ia, se se quisesse retirar à administração a corresponsabilidade política pela adoção das suas decisões através do público. Na medida em que a política desempenha essa função, a administração pode ser aliviada da própria conservação política com o consenso” 262.
Cumpre ressalvar que a observação consta do texto escrito em 1969, antes, portanto, da edição da Lei federal de Processo Administrativo da Alemanha, de 1976263, e do movimento de transparência e modernização das administrações públicas e dos serviços públicos que ocorreram nos países europeus, especialmente nos anos 1980 e 90, de onde se tornaram referência para reformas similares pelo mundo. Luhmann admitia a abertura da Administração à função legitimadora nas hipóteses “do debate oral das leis, do direito de audiência e da lei de fundamentação de decisões administrativas”, o que veio a ser generalizado nas legislações de processo administrativo. Há um movimento no sentido da responsabilização administrativa, que se expressa nas diretrizes de accountability264, eficácia, gestão por resultados e similares, representando uma perturbação na segmentação weberiana estrita entre direção e execução das políticas públicas. Quem executa passa também a ser demandado tanto pelos resultados como pelas medidas intermediárias que conduzem a eles ou não. Essa “responsabilização político-administrativa” evidentemente não se confunde com o aparelhamento da máquina pública com base em critérios político-partidários, que representa o velho paradigma patrimonialista da gestão pessoal dos meios públicos, a politização no sentido vulgar, que as democraci dem ocracias as maduras maduras superaram há há cerca cer ca de um século, mas que persiste persi ste nos sistem sis temas as mais atrasados. a trasados. Por fim, a transparência administrativa será o grande fator de renovação da Administração Pública brasileira, inspirando muito mais do que a mera apresentação das informações solicitadas ao público. Numa era de intensificação das comunicações e de tecnificação da gestão pública, os indicadores
estatísticos de gestão de políticas públicas são muito propícios à comunicação com os eleitores. A apuração da situação concreta de determinada prestação de serviço ou atendimento a direito, em função de indicadores estatísticos, isolados ou combinados com informações econômicas sobre custo total, com base nas quais se possa calcular custos unitários, de preferência comparáveis em séries históricas, é fator importante de racionalização administrativa, mas também de legitimação e amadurecimento democrático. O manuseio da informação pode ser um considerável instrumento de criação cri ação de poder na dinâmica dinâmica governam overnament ental. al. Entretanto, a informação quantificada também se presta à manipulação política, podendo produzir uma cortina de fumaça sobre fatores mais relevantes da ação governamental. É o caso de informações sobre o custo ou o alcance de determinadas políticas, apresentadas em números, que podem amparar todo tipo de discurso retórico se não se dispõe de instrumental para a crítica qualitativa dos indicadores. Quando se fala em custo, por exemplo, ou em resultados de gestão, faz toda a diferença o universo em que se circunscrevem os dados, o número de beneficiários, a série histórica dos dados, enfim, elementos corriqueiros para aqueles que lidam com informações estatísticas cotidianamente, mas que aos olhos de profissionais menos afeitos a essa técnica, como é o caso dos da área jurídica, nem sempre se evidenciam. Isso ocorre também com a imprensa. Muitas vezes temidos ou odiados pelos governantes, em razão do grande poder específico que exercem em tempos de valorização da comunicação, os órgãos de mídia também podem ser presa da retórica dos números. A redução de recursos para investigações jornalísticas de maior envergadura, as limitações de formação dos repórteres e jornalistas e o próprio imediatismo dos diários, que hoje têm concorrência de veículos eletrônicos, cuja temporalidade é o minuto e o segundo, podem fragilizar a capacidade técnica necessária para vocalizar a crítica social mais evoluída. O domínio mais preciso do alcance e custo relativo de cada política pública, embasado na compreensão dos indicadores quantitativos e qualitativos, dá, sem dúvida, novo sentido de responsabilidade à gestão pública. O debate público sobre esse tipo de informação reforça a utilidade da noção de relação processual administrativa, na medida em que dá importância ao aspecto qualitativo da discussão, isto é, quais os seus pressupostos, quem se pretendia beneficiar, em que tempo, a que custo etc., e, com base neles reavaliar a adequação dos processos de formação e implementação das políticas públicas.
b) Processo legislativo e iniciativa governamental O processo legislativo se refere à função de fazer leis, em sentido estrito, tendo sido a grande conquista do liberalismo político atribuir essa função ao Parlamento, garantindo desse modo a soberania do povo. O procedimento é o regramento, a disciplina do processo legislativo: “O procedimento legislativo é parte do processo de formação das leis. Este constitui os princípios abstratos, estáticos, de que o procedimento é o fator concreto e dinâmico para atingir o fim a que se propõe: a formação da 2655. lei”26 O exercício exercíci o do poder pelo govern governoo sem o assent ass entimen imento to da represe r epresent ntação ação do povo no Parlam Parl ament entoo tende a ser visto como excessivo e antidemocrático, reconhecido como realidade fática, mas censurado em sua fundam fu ndament entação ação teórico-pol teóri co-política. ítica. O governo, governo, nessas circun ci rcunstân stâncias cias,, anular anularia ia os poderes repre represent sentativos. ativos. É preciso reconhecer, todavia, que as modernas democracias têm como característica que a legitimação política pelo voto não é exclusiva do Parlamento, mas alcança o chefe do governo, também legitimado legitim ado elei eleitoralmen toralmente. te. Uma das marcas dos governos contemporâneos é exatamente sua intensa participação no processo
legislativo266, e a iniciativa governamental é de tal ordem generalizada que José Afonso da Silva qualifica-a de “princípio universal” no direito constitucional contemporâneo, como ilustram diversos países europeus, a exemplo da Itália, Finlândia, França e Portugal, entre outros267. Os EUA, que consubstanciariam exceção, por não contemplar a iniciativa governamental de forma explícita no texto da Constituição, contornam essa limitação com a apresentação dos projetos de interesse do governo por parlamentar do partido governamental268. As razões para a “preeminência” da iniciativa governamental poderiam ser sintetizadas nos seguintes pontos: a) política – ao governo incumbe a condução política do país, o que implica a outorga dos meios para que a direção política seja exercida; b) administrativa – o chefe do governo é também o chefe da Administração Pública e necessita unidade de direção dos dois corpos para obter os resultados da política; c) financeira – o chefe do governo detém a iniciativa sobre o uso dos meios públicos; d) econômica – nas medidas que consubstanciam intervenção estatal sobre a economia, competindo ao Executivo a iniciativa das inovações, a sua coordenação e a respectiva regulamentação269. Esta última razão seria de cunho “histórico-institucional” do processo legislativo, considerando que “o estender-se da intervenção estatal no campo econômico é conexo com o desenvolvimento paralelo da ‘administração pela lei’. Essa requer que a iniciativa da legislação seja assumida necessariamente pelo governo, como órgão que, superintendendo os vários setores da Administração Pública, é o único apto a cumprir a formulação política e a redação técnica dos projetos de lei, cujos fins são intimamente conexos com a iniciativa administrativa”270. No caso brasileiro, um outro ponto a destacar é a reserva constitucional de iniciativa ao Poder Executivo para a propositura de leis de que decorra impacto orçamentário, por uma razão lógica, que é a reserva de iniciativa ao governo para a confecção da proposta orçamentária271. A participação do governo no processo legislativo tem grande importância para as políticas públicas. Existe um sentido político, que não pode ser desconsiderado, no alargamento da amplitude governamental no processo de elaboração de normas. “A razão por que se atribui ao Chefe do Executivo o poder de iniciativa decorre do fato de a ele caber a missão de aplicar uma política determinada em favor das necessidades do país; mais bem informados do que ninguém dessas necessidades e dada a complexidade cada vez maior dos problemas a resolver, estão os órgãos do Executivo tecnicamente mais bem aparelhados que os parlamentares para preparar os projetos de leis; demais, sendo o chefe também da administração geral do país e possuindo meios para aquilatar as necessidades públicas, só o Executivo poderá desenvolver uma política legislativa capaz de dotar a nação de uma legislação adequada, servindo-se da iniciativa legislativa” 272.
Seu critério limitativo, em princípio, é o respeito à titularidade do detentor típico da função273, mas é fato que a direção política tem conexão estreita com a distribuição das funções normativas no corpo do Estado274. E o Legislativo, com frequência, não tem interesse no exercício de iniciativas ou participação mais ativa na formulação ou nas decisões de políticas públicas que possam acarretar ônus eleitorais, na hipótese de insucesso ou sucesso apenas parcial de sua implementação275. Nos regimes parlamentaristas, é ainda menos controvertida a iniciativa governamental, considerando que o governo é eleito para executar programa aprovado pelo Parlamento. A atividade legislativa do governo nesse caso, não só pelo exercício da iniciativa, mas também em virtude da habilitação conferida pelo Legislativo, consubstancia um fenômeno de expansão da atividade governativa. Esse alargamento decorre da definição constitucional das atribuições do governo, que se ampliam tanto em relação à função administrativa como sobre a função política, não mais reservada ao chefe de Estado276. “A Constituição exigia mais do Estado, e só o Governo parecia possuir condições para corresponder, de forma eficaz e em tempo útil, às
exigências constitucionais, pelo que queria e necessitava de mais meios de intervenção. O Governo almejava o Poder Legislativo. [...] Assim, a pressão induzida pelo aumento e complexização das tarefas a cargo do Estado, acompanhada por alterações na estrutura e funções desempenhadas pelo Parlamento, praticamente forçou a abertura, ao Governo, do exercício direto e autônomo da função legislativa, ainda que prevendo a necessidade de autorização parlamentar para esse efeito, ou a ocorrência de situações excepcionais de crise e urgência, ou ainda reservas mais ou menos extensas de matérias imunes à atividade legislativa governamental. Alguns ordenamentos admitem hoje, claramente, o exercício autônomo, pelo Governo, de competência legislativa; outros, pretendendo resguardarse formalmente através de cláusulas que apenas permitem o exercício excepcional dessa competência, acabam por assistir a uma interpretação muito alargada e flexível dos pressupostos da atuação legislativa governamental, quando não ao seu abuso e manipulação; outros ainda, pragmaticamente, mudam a designação das leis para regulamentos, através da restrição do âmbito das primeiras a um pequeno núcleo de matérias, ficando o resto aberto à competência regulamentar” 277.
O instituto das medidas provisórias, cuja lógica se harmoniza com o regime parlamentarista, é uma inovação jurídica com forte repercussão política. A medida provisória é inspirada no mecanismo do decreto-lei da Constituição italiana de 1947, a qual, por sua vez, orientou-se por mecanismos similares adotados em outras experiências constitucionais europeias, algumas consolidadas há longo tempo, como a Áustria e a Dinamarca, e outras mais recentes, como Grécia, Portugal e Espanha278. Os países que não admitem o instituto dos “provimentos provisórios com força de lei” nem por isso deixam de criar formas de legitimação da função normativa do Poder Executivo, seja pela legislação delegada, seja pela ampliação do poder regulamentar do governo279. Do ponto de vista constitucional formal, são requisitos para as medidas provisórias a relevância e a urgência280, a qual é ínsita ao instituto do governo, que vive o paradoxo da necessidade de inovação com institucionalização281. O prazo dos governos, por princípio, é exíguo, em vista do desejo da colheita dos resultados previstos nas medidas sob o seu patrocínio ou iniciativa. O que não justifica, evidentemente, suprimir a competência própria da representação política, no Parlamento. A principal perturbação conceitual da medida provisória em relação ao processo legislativo clássico não reside tanto na iniciativa governamental, mas sim no regime de vigência imediata, que confere ao Executivo um poder qualitativamente distinto da mera iniciativa, posto que baseado na configuração de situações de fato, com a inversão do ônus político, que passa a ter de ser exercido pela oposição, caso haja interesse no desfazimento da medida provisória e eventualmente na reversão de seus efeitos, ainda mais tormentosa. Os principais fatores a inspirar a ampliação do “poder legislativo” do governo no parlamentarismo rigorosamente não são distintos de movimentos análogos nos regimes presidencialistas, entre eles o tempo e a crescente tecnicidade das normas282. O crescimento das normas técnicas em volume e em importância é um fenômeno à parte, embora muito característico das pressões pela despolitização da gênese do direito, que passa a depender muito, especialmente no campo da regulação econômica, de normas técnicas. Assim, se discrepava da teoria política o exercício da função legislativa pelo governo, isso ocorre de maneira ainda mais acentuada na transferência da função normativa para corpos privados ou pelo menos não exclusivamente públicos, em que se definem os contornos e condições do exercício de direitos283. A dimensão técnica do processo legislativo realça um outro aspecto, que é o da técnica normativa em si, independentemente do aspecto da distribuição do poder normativo entre os corpos estatais. Na União Europeia, a partir da primeira década do século XXI, com a apresentação do Relatório Mandelkern e do Better Regulation Action Plan, passa-se a valorizar a técnica legislativa, a chamada “legística”284. A evolução das funções do Estado, com a valorização dos papéis de articulação e coordenação, em lugar dos modos de atuação unilaterais que vigoravam nas fases iniciais do direito público, corresponde a um padrão normativo típico, caracterizado pela utilização frequente de normas permissivas. Para
implementar mecanismos de indução, o governo se vale tanto de sanções premiais como de “certificações de status” atribuídas por órgãos públicos, as quais, por sua vez, atuam como requisitos para o gozo de benefícios públicos. Nesse sentido, ganha relevância a condição de órgãos e instâncias governamentais de expedir tais declarações e disciplinar os efeitos premiais subsequentes, o que requer refinamento e precisão não apenas do desenho institucional, mas também das regras que calibram os requisitos, benefícios, bem como os efeitos de cumprimento e descumprimento das normas285. A emulação de padrões, bastante utilizada na prática, merece estudo e trabalho sistemático, no campo da técnica normativa empregada pelo governo para a formação e execução das políticas públicas286.
c) Processos de alocação de meios para a ação governamental. Arenas e temporalidades A alocação de meios para as políticas públicas abrange possibilidades amplas e diversas, além dos recursos orçamentários. Os meios públicos disponíveis para a implementação de uma política pública podem compreender também créditos fiscais, empréstimos públicos, cessão de uso de áreas ou bens públicos e recursos humanos e materiais. Todas essas possibilidades, evidentemente, sujeitas aos princípios e regramentos do direito público. O processo decisório envolvendo a alocação de meios sob o monopólio do Poder Público assume relevância, ainda mais em face da crescente “economização” das relações sociais e políticas, a despeito do escamoteamento que a visão mais liberal faz dessa questão, quando sugere a possibilidade de diminuição do papel do Estado nas políticas públicas. O problema jurídico desse tópico não diz respeito apenas à disciplina das disputas por uma fração dos recursos públicos, mas deve considerar também, no sentido inverso, a influência que tais decisões exercem sobre o contexto político e jurídico mais amplo. Estudo clássico de Theodore Lowi287 analisa os vários padrões de distribuição de meios para a execução de programas governamentais, cada um deles associado a um tipo ou estágio de amadurecimento das relações políticas, de maneira elucidativa para a incidência do conceito de relação processual aplicada, tal como proposto neste capítulo. Lowi refere-se aos diferentes processos políticos como “arenas de poder”, classificadas em distributiva, regulatória e redistributiva, cada uma ilustrada por um estudo de caso que demonstra as dificuldades e os diferentes graus de politização na institucionalização dos processos de alocação de meios públicos para as políticas. O processo “distributivo” é aquele em que as políticas beneficiam grupos ou indivíduos de maneira isolada, na forma de clientelismo ou “patronagem”. Os “recursos são dispensados de forma atomizada a unidades isoladas, sem obediência a qualquer critério mais geral e universalista”288. Não há confronto direto entre favorecidos e não favorecidos, uma vez que esses últimos não são identificados como grupo e eventualmente podem vir a ser acomodados por outras decisões de cunho individual no futuro289. “Como não existe base real para se definir quem deve ou não ser beneficiado (favorecido) [...], o Congresso procura apoio político ‘oferecendo alguma projeção (tolerância, favorecimento) a todos os interesses com força suficiente para oferecer grande resistência’. [...] Quando uma dotação de um bilhão de dólares pode ser desagregada para atender a inúmeros itens de pequeno custo, cada um desses itens podendo ser considerado independentemente dos outros, é inevitável a multiplicidade de interesses e de possibilidades de acesso e, consequentemente, a redução do conflito”290. A arena preferencial para esse tipo de decisão, segundo o estudo, são as comissões do Congresso. No processo de tipo “regulatório”, as decisões são de âmbito setorial e pautam-se por algum grau de generalidade e abstração. Nesse caso atuam os grupos de pressão; do conflito entre os vários interesses nascem as coalizões entre grupos. Isso ocorre nas disputas entre grupos empresariais privados por condições oferecidas pelo Estado (era o caso da disputa entre as tecelagens da nova Inglaterra e as
ferrovias do leste). A política tarifária, que até os anos 1930 era clientelista (“distributiva”), após esse período deixa de sê-lo, tornando-se um meio de regulação da economia interna, com finalidades ligadas à política externa dos EUA, então potência mundial emergente. A arena regulatória primordial, nesse sentido, é o Congresso, onde se dá o conflito mais aberto, público, e, portanto, mais politizado291. Finalmente, o processo de tipo “redistributivo” caracteriza-se pelas clivagens sociais mais significativas, definidas como conflitos entre “fornecedores e demandadores de serviços”, como no exemplo da disputa pela criação do seguro social nos EUA em 1934, em que o debate mais complexo foi feito no Comitê de Seguridade Econômica, no interior do Poder Executivo, entendendo Lowi que o Congresso não teria condições de atuar em questões redistributivas, que exigem um processo complexo de balanceamento de interesses conflitantes numa escala mais ampla292. O uso das várias formas de alocação de meios como mecanismos de cooptação e indução é, talvez, o recurso clássico e imediato de exercício de influência política em processos institucionalizados. E não é por outra razão que a racionalização do poder passa pelo esforço de disciplinar a alocação de meios, apresentando de maneira transparente não apenas as decisões alocativas, mas também os processos e as condições subjacentes a essas escolhas, o que demonstra a pertinência da noção de relação jurídica nesse contexto. Processo orçamentário. Elaboração e execução do orçamento. A dificuldade de gastar o recurso úblico
Não é propósito deste tópico expor em minúcia o processo orçamentário, para o que existe bibliografia especializada293. Há uma especificidade das formas de elaboração e aprovação da lei orçamentária e um certo insulamento dos estudos orçamentários em relação a matérias conexas, mesmo em campos transdisciplinares, em que a realização dos direitos e o seu financiamento são inseparáveis, tais como a saúde pública, a previdência, a educação etc. Trata-se, portanto, de tentar superar a barreira, para compreender as influências e conexões dos processos de formulação e execução de políticas públicas, de um lado, e orçamentário, de outro, para o que são especialmente ilustrativos os tópicos da execução orçamentária e das emendas ao orçamento. A elaboração da proposta de orçamento anual do governo tem início em cada unidade orçamentária e vai sendo agregada, nos níveis hierárquicos superiores, até ser composta no Ministério e finalmente consolidada pela área responsável pelo orçamento no governo294. Essa fase de elaboração toma aproximadamente meio ano, até o envio ao Poder Legislativo, no qual decorre pouco menos que esse prazo até a aprovação final da lei orçamentária anual, que segue à sanção presidencial, como todas as demais leis. A execução orçamentária é especialmente importante entre nós, dado o caráter autorizativo do orçamento. O orçamento efetivamente executado é bastante distinto do orçamento autorizado, correspondendo a uma parcela deste. Dadas as injunções que se apresentam na fase de execução, no entanto, a alteração desse caráter e a adoção do orçamento impositivo, na linha de diversas propostas em curso no Congresso Nacional, por si só, dificilmente alteraria o estado de coisas. É extremamente trabalhoso gastar legalmente o dinheiro público, do que resulta difícil a execução orçamentária. Os passos previstos na legislação para efetivamente executar a despesa (empenho, liquidação e pagamento) pressupõem a existência de projetos razoavelmente estruturados – no caso de obras, que representam parcela considerável do investimento público, projeto básico e projeto executivo – passíveis de embasar a licitação, contratação e execução da obra. E a qualidade do processo de licitação e contratação, conduzido pelo Poder Público, mas executado pela iniciativa privada, influi
sobre a capacidade de sua sustentação diante de questionamentos, seja de eventuais licitantes vencidos, seja dos órgãos de controle ou do Poder Judiciário. A racionalidade das regras de contratação pública evidentemente também influi sobre a celeridade e a economia proporcionadas aos contratos, a chamada “qualidade do gasto público”. É notória, nesse sentido, a economia proporcionada aos cofres públicos, em tempo e recursos financeiros, com o advento de modalidades mais ágeis e simplificadas de contratação, como é o caso do pregão. Curiosamente, a sua mais importante inovação, a inversão das fases de habilitação e propostas, com a apreciação do preço antecedendo a comprovação dos requisitos de capacidade para contratar com o Poder Público, que poderia ser aplicável também a outros contratos além daqueles relacionados diretamente a “bens e serviços comuns” (os contratos de obras, pelo menos no que se refere a obras mais simples, passíveis de padronização, que poderiam ser qualificadas como “comuns”), tem obstado o andamento de projeto de alteração da Lei de Licitações, a Lei n. 8.666, de 1993, no Congresso Nacional. Há uma irracionalidade no padrão de certas contratações, que, embora tenha evoluído muito nos últimos anos, ainda tem longo percurso a traçar. Não apenas as obras são prejudicadas por essas dificuldades. A contratação de serviços de tecnologia da informação no país, a qual deveria ser feita em grande escala, por todo o território nacional, abrangendo desde grandes órgãos repassadores a pequenos centros de execução, sofre com imensas dificuldades, pois não há consenso no nível central de execução, o Ministério do Planejamento, sobre a possibilidade de considerar esses “bens e serviços comuns” passíveis de contratação por meio de pregão. Também não há consenso com os órgãos de controle sobre a métrica de remuneração de tais contratos, daí decorrendo não só a dificuldade de elaborá-los, mas também a vulnerabilidade dos agentes públicos e das próprias contratações diante da possibilidade de anulação dos contratos e penalização dos responsáveis. E o resultado final é a lentidão na implantação de rotinas e padrões informatizados e passíveis de acompanhamento pelo público, via internet, o que contribuiria para a agilidade e transparência do gasto. Emendas parlamentares, limites e contingenciamento
A mecânica oficial dos limites de empenho e pagamento está prevista na legislação de responsabilidade fiscal295. Para tanto, a cada início de ano, edita-se um decreto de programação orçamentária e financeira, mais conhecido como “decreto de contingenciamento”, cujo objetivo é estabelecer um cronograma de compromissos (empenhos) e liberação (pagamento) dos recursos financeiros para o governo federal. Simultaneamente, publica-se portaria interministerial detalhando os valores autorizados para movimentação e empenho e para pagamentos no decorrer do exercício296. Em tese, o contingenciamento não é linear, atingindo diferentemente os vários órgãos, ações e programas, com base em indicadores referentes à capacidade institucional e ao histórico de execução orçamentária. Os critérios de contingenciamento, contudo, são, além de arbitrários, pouco transparentes, tanto na relação com o público como com os órgãos afetados pelos limites. Os interessados diretos na elaboração e execução do orçamento não participam da sua definição. Assim, a despeito de se tratar de processos repetidos anualmente, resta pouco aprendizado institucional, de modo que a cada ano se renovam as tensões em torno dos limites. Além disso, a cultura inflacionária que vigorou até os anos 1990, agravada pela tônica conservadora que orientou a implantação da desejável responsabilidade fiscal, a partir do final da década e dos anos 2000, consagraram um padrão de execução orçamentária muito pouco racional. Uma das características mais marcantes desse padrão é o desbalanceamento entre a forte contenção orçamentária exercida nos nove ou dez primeiros meses do exercício fiscal e a liberação desordenada de montante próximo ao daquele período nos dois ou três meses finais do ano. A reiteração desse padrão de execução –
conhecido por todos os agentes envolvidos no processo – dá lugar a diversos expedientes para contornar as dificuldades de execução em prazo curto, um dos quais é o repasse a terceiras entidades, tais como fundações de apoio de instituições públicas de educação, associações de amigos de museus e congêneres, por “convênios”, cuja finalidade é apenas “proteger” o recurso do retorno aos cofres públicos ao final do exercício, por inexecução. O problema das emendas orçamentárias, de autoria individual dos parlamentares ou das bancadas, agrava-se muito em face desse padrão de execução, pois o parlamentar deve negociar no Congresso Nacional a aprovação da emenda e, depois, numa “segunda rodada”, voltar a negociar, agora no âmbito do Executivo, a liberação da emenda de interesse de sua base eleitoral para execução, o que, afinal, conferir-lhe-á efetividade e visibilidade aos olhos do público. O poder de barganha de ambas as partes se trava, em grande medida, na fase de execução do orçamento, com atenção às emendas. A emenda parlamentar é considerada o instrumento de que o Congresso Nacional dispõe para participar da elaboração do orçamento anual. Na verdade, antes dela, debate-se a lei de diretrizes orçamentárias, instrumento criado pela Constituição de 1988 para que o Congresso tivesse a oportunidade de atuar na definição das grandes linhas e critérios de alocação dos recursos orçamentários. Entretanto, a vinculação imediata do parlamentar com sua base, devido às características do processo eleitoral, não se dá em virtude dos debates de maior amplitude, mas depende muito dessa atribuição orçamentária pulverizada nas emendas297, que dá ensejo à participação do parlamentar em inaugurações de obras em ocasiões que auxiliam a fixação de seu nome pelo eleitorado. “Apesar de estarem previstas na legislação, as emendas parlamentares constituem um assunto polêmico entre os analistas. Há quem defenda que tais emendas representam uma ação política, paroquial e eleitoreira. Para outros, elas são a oportunidade que os pequenos municípios têm de receber benfeitorias da União, como hospitais, presídios, postos de saúde, quadras esportivas e outras obras do gênero. Não é de hoje que, para o governo federal, as emendas parlamentares significam úteis ocasiões de negociar com os congressistas o apoio em futuros projetos. Como o Orçamento da União é autorizativo, e não impositivo, os governos costumam liberar as emendas dos parlamentares fiéis e desconsiderar, ou atender com menor afinco, as demandas dos parlamentares que lhe fazem oposição. [...] Muitas vezes, determinados políticos solicitam ao ministério liberação de verba para os estados e localidades que representam, deixando os mais necessitados de fora da lista dos beneficiados. Resultado: ganham os municípios com maior força política dentro do Congresso” 298.
Em resumo, o artificialismo que cerca o processo orçamentário, cujos problemas mais agudos não estão apenas na fase de elaboração, mas relacionam-se fortemente a padrões irracionais de execução, está na base de problemas jurídicos das políticas públicas. A despeito disso, o direito financeiro ainda é relativamente pobre em estudos sobre esse tema, o que reflete a fragmentação da disciplina orçamentária no país. Desconexão dos processos legislativo e orçamentário. O problema do crescimento inercial das despesas continuadas obrigatórias e a despolitização involuntária do orçamento
Outro ponto que merece destaque é a desconexão entre o processo legislativo orçamentário e o processo legislativo ordinário, por meio do qual são instituídas despesas de caráter continuado não previstas na lei orçamentária. “O cerne da questão [...] situa-se na formulação de políticas públicas pelo Estado por meio da edição de legislação permanente, que cria para ele obrigação continuada de realização de despesas, as quais não se submetem à revisão anual pelo processo legislativo orçamentário, por terem sua origem e foro no processo legislativo ordinário. Nesse processo legislativo misturam-se diplomas legais exclusivamente normativos, sem caráter financeiro, com atos legislativos de natureza essencialmente financeira, como a criação de cargos ou funções públicas ou a concessão de benefícios previdenciários ou assistenciais” 299.
Essa desconexão se apresenta de maneira severa na criação de despesas obrigatórias de caráter
continuado, as quais, nos termos da legislação de responsabilidade fiscal, devem ser inscritas obrigatoriamente nos orçamentos, em vista de seu caráter rígido e praticamente perpétuo300. O descompasso entre a criação de despesas obrigatórias e o necessário suporte orçamentário pode ser agravado com expedientes de “proteção de receitas”, utilizados para escapar dos mecanismos ordinários de limitação e contingenciamento301. Isso ocorre, por exemplo, quando se lança mão da figura da renúncia de receita, cuja transparência é muito menor que a disciplina própria das despesas obrigatórias continuadas302. Dado o elevado comprometimento do orçamento com as despesas obrigatórias, na verdade a margem de discricionariedade para a criação de despesas novas é bastante reduzida e a competição imensa. Portanto, o “carimbo” de um dispêndio como despesa obrigatória continuada “protege”, do ponto de vista financeiro, o recurso, ao mesmo tempo que o blinda, politicamente, da reivindicação de setores concorrentes, dispensando a demonstração da relevância daquela ação303. Isso, paradoxalmente, resulta de uma “politização seletiva” do orçamento, que o subtrai da política real, em que as prioridades são apresentadas a debate e escolha. Uma circunstância importante nesse ponto é o reflexo sobre a composição de quadros técnicos para a formulação e execução de políticas públicas, uma vez que os recursos humanos, que ensejam despesas incompressíveis, diante da irredutibilidade de vencimentos e da permanência da despesa no tempo, até o momento da aposentadoria do servidor, são também elementos essenciais para a estruturação necessária ao funcionamento dos programas governamentais. A resposta ao problema das despesas permanentes não pode dar-se de modo simplista, como mera questão de opção política de tipo estatista ou na linha oposta, pelo Estado mínimo. O equacionamento do problema depende, tanto no plano da gestão pública como no da política – que a ela se vincula, nessa matéria –, de uma forma de organização ou coordenação de demandas e meios. Planejamento: indução à ação coordenada de longo prazo
O tema do planejamento é aquele em que, por excelência, se dá a relação entre a economia e a política, no plano institucional. Rigorosamente, o planejamento, sem adjetivos, é uma das expressões da política no plano macroinstitucional. Contudo, por uma razão sistemática, considerando que o planejamento, na prática, perdeu em parte seu papel macroestruturante, pelas razões que se verá, optou-se por tratar do tema neste tópico, em conjunto com as questões processuais relacionadas às decisões contingentes sobre a alocação de meios. Historicamente, o planejamento é tido como clivagem política que separa, de um lado, os liberais, contrários a qualquer forma de direção política sobre a economia – em razão dos riscos de deformidades e privilégio na escolha dos setores e agentes beneficiados por recursos públicos –, e, de outro, aqueles favoráveis às formas de dirigismo econômico e social que integram o instrumental do planejamento. Dentre os últimos, haveria matizes mais tendentes a uma versão autoritária ou democrática do processo de planejamento304. A formulação do planejamento como forma de direção da economia data dos anos 1920, com a experiência russa da Nova Economia Planificada (NEP), reconhecidamente malograda, seja do ponto de vista de seus objetivos imediatos, uma vez que coincidiu com o agravamento da fome e da desorganização do processo produtivo, seja como modelo institucional definidor de papéis do Estado e dos setores produtivos. A economia planificada, com metas de produção para os agentes econômicos, tornou-se o símbolo do sistema soviético e seus satélites. Essa carga simbólica, contudo, não faz jus ao significado que na prática o planejamento teve na
segunda metade do século XX. As experiências mais amplas e estruturadas, do ponto de vista institucional, são as que se seguem à Segunda Guerra Mundial, conduzindo o processo de reconstrução dos países cujas estruturas produtivas haviam sido destruídas, tendo como referências mais notórias o Japão e a França305. No caso do Japão, é pela via do planejamento conduzido pelo Ministério da Indústria, MITI, que se define um modelo de conglomeração de empresas não mais na forma usual antes da guerra, mas formando um conjunto dinâmico, em torno de um banco. A França, sob a direção de Jean Monnet, instituiu uma sistemática de planejamento cuja fórmula se mantém até hoje. Ambas as experiências expressam a característica do planejamento de transcender os limites do Estado. Mais que um documento de orientação do Estado, o planejamento é a expressão de um pacto que envolve as forças econômicas e o setor produtivo, na medida em que define um caminho de evolução, na forma de ação concertada. Antes disso, os anos 1930 consagraram forte participação do Estado na economia dos Estados Unidos, como resposta do governo Franklin Roosevelt à crise de 1929, a qual a obra contemporânea de Keynes explica e fundamenta. Sem que se tratasse de planificação econômica, em sentido estrito, desenvolveu-se uma forma nova de intervenção do Estado sobre a economia, que à época provocou a renovação da indústria, a qual pôde preparar-se para o esforço de guerra que se avizinhava. A despeito dessa experiência crucial, no símbolo e motor da economia capitalista do século XX, do ponto de vista político-econômico, restou uma carga simbólico-ideológica da intervenção do Estado associada ao planejamento, por oposição à orientação liberal da economia. Nos exemplos citados, tanto os Estados Unidos, no contexto da crise de 29, como a França e o Japão, no panorama do esforço de reconstrução do pós-guerra, viviam circunstâncias políticas e econômicas muito propícias ao planejamento ou às formas de intervenção estatal na economia. Trata-se de fases em que o ponto de partida está economicamente deprimido e o movimento é de crescimento. Diante disso, as resistências de setores instalados são muito diminuídas. Há um mecanismo de legitimação política peculiar, difícil de repetir em circunstâncias normais da vida política e econômica de um país. A escola estruturalista da CEPAL, nos anos 1950, sob a liderança de Raul Prebisch e com o trabalho de Celso Furtado, confere uma noção própria ao sentido do planejamento no contexto dos países subdesenvolvidos e considera a ação estatal planejada como único mecanismo capaz de, com o uso da força política do Estado, quebrar as estruturas que produziam e reproduziam o atraso econômico e social. O subdesenvolvimento não seria uma etapa de transição para o desenvolvimento, mas um mecanismo de causação circular e cumulativa típico das economias periféricas do capitalismo. Sob influência dessa linha de pensamento, o Brasil viveu experiências de planejamento central importantes entre os anos 1950-70, com o Plano de Metas, do governo Juscelino Kubitschek, cuja gestação foi iniciada no BNDE por Celso Furtado, anos antes. Houve o Plano Salte e o II PND, mas, depois dos anos 1980, o planejamento como abordagem da economia entra em franco declínio. Essas experiências estiveram ligadas ao processo de industrialização brasileiro, que dependia da criação de uma série de condições, especialmente de infraestrutura, por exemplo, no campo da energia, da siderurgia, dos transportes, todas intensivas em capital, sem as quais não seria possível deslanchar a criação de um parque industrial brasileiro306. O pensamento desenvolvimentista, preocupado com a industrialização como sinônimo de inserção da economia brasileira na ordem capitalista mundial, não considerava a questão social como inerente ao desenvolvimento. Esta última reclama formas de intervenção estatal específicas, não se ajustando aos instrumentos de desenvolvimento industrial, como bancos de fomento ou de impulso regional. “Na verdade, os grandes bancos, as grandes corporações de fomento servem para financiar o grande capital, a reestruturação industrial,
para apoiar a indústria pesada. Na hora em que se pede para apoiar a ‘miséria’, normalmente ocorre o fracasso. A miséria é outro assunto. O problema social é na verdade a discussão dos grandes reformistas do norte europeu, porque enquanto os economistas do centro da Europa estavam discutindo a grande indústria pesada obsoleta, a estatização das ferrovias, o aço etc., os do norte estavam discutindo: vamos fazer reformas sociais, vamos fazer pleno emprego, vamos fazer welfarestate. As três vertentes do debate do após-guerra são as seguintes: no caso americano, reprivatização da grande indústria moderna feita pelo Estado americano na guerra; na Europa, reconstrução versus pleno emprego e Estado interventor industrializante versus welfarestate. As grandes vertentes são o Estado do bem-estar social e o Estado desenvolvimentista, industrialista, interventor. Obviamente pode-se perguntar: qual foi o modelo adotado na América Latina, no Brasil em particular? O do Estado desenvolvimentista interventor. O negócio agora parece ser o welfarestate, o social é a meta. Mas já estamos com cinquenta anos de atraso 307.”
Embora constitucionalmente a distinção políticas sociais/políticas de desenvolvimento (como industrialização e infraestrutura econômica) não tenha grande relevância, uma vez que ambas são diretrizes impositivas, os direitos sociais, de realização progressiva, são problemáticos para o pensamento jurídico tradicional, mas as iniciativas econômicas promotoras de desenvolvimento não são menos complexas, considerando que se trata de medidas de longa maturação, que transcendem a duração de um governo, cuja institucionalização, combinando meios públicos e iniciativa privada, também depende de construções jurídicas consistentes e sustentáveis, social, política e juridicamente. Entre os poucos autores que trataram do tema do planejamento pelo ângulo do direito, no Brasil, Eros Roberto Grau expõe como noções distintas o planejamento do desenvolvimento nacional e o planejamento da ação estatal. Este, de alcance mais amplo, seria o modo de instrumentalizar a Constituição dirigente: “Isso importa que o Direito já não seja mais apenas a representação da ordem estabelecida, a defesa do presente, mas também a formulação de uma ordem futura, a antecipação do porvir. É o planejamento que confere consistência racional à atuação do Estado (previsão de comportamentos, formulação de objetivos, disposição de meios), instrumentando o desenvolvimento de políticas públicas, no horizonte do longo prazo, voltadas à condução da sociedade a um determinado destino” 308.
Tem-se de certa maneira como superada a concepção relacionada às experiências históricas da economia socialista, em que a economia planificada corresponde à “centralização econômica, que importa a substituição do mercado, como mecanismo de coordenação do processo econômico pelo plano309. Admitido o regime de mercado, retoma-se o planejamento como “técnica de ação racional”, ainda que com os propósitos de coordenação do constitucionalismo dirigente. Na sistemática constitucional de 1988, estabelece-se uma correlação entre o processo orçamentário, de prazo imediato, e o processo de planejamento, de horizonte temporal mais largo e definições mais abrangentes no que diz respeito aos atores do processo. O chamado processo orçamentário implica a elaboração de três leis, todas de iniciativa do Poder Executivo, o plano plurianual (PPA), de periodicidade quadrienal, a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e a lei orçamentária (LOA), ambas anuais. Entretanto, na prática, o processo de planejamento se viu reduzido aos instrumentos orçamentários, em especial o PPA310. Com o prolongamento do processo inflacionário por quase três décadas, o país perdeu a condição essencial para a realização do planejamento, em qualquer dimensão da vida nacional. A conjuntura inflacionária gerou hábitos de comportamento reativos e de defesa imediata em face das ameaças da inflação que afetaram a organização produtiva e econômica. O país passou, nos anos 1970 a 1990, a ter dificuldades para produzir projeções críveis sobre a expansão ou evolução de qualquer setor econômico ou social. A estabilização econômica alcançada nos anos 2000 explica, em parte, a retomada do planejamento atada ao processo orçamentário.
Diferentemente do que ocorre na França, o planejamento no Brasil perde até mesmo sua localização institucional, tendo deixado de ser competência de uma Secretaria ligada à Presidência da República, para se tornar subtema de uma Secretaria do Ministério do Planejamento311, cujo escopo central e imediato é conformar os valores de investimento às constrições orçamentárias da legislação de responsabilidade fiscal. A retomada do tema do planejamento ainda se dá de forma incipiente; essa é uma das mais evidentes “letras mortas” da Constituição de 1988. Diante das dificuldades da implantação de um processo centralizado de planejamento, em face da debilidade e descoordenação dos instrumentos de ação do Estado brasileiro, a formulação e implementação das políticas públicas se explica como forma de ação que viabiliza o planejamento como atividade de baixa institucionalidade, referida a setores específicos, dependente da capacidade de articulação do Estado localizada e em períodos determinados. As políticas públicas resultam de ação coordenada pelo Estado, mas de forma limitada, o que, paradoxalmente, viabiliza algum grau de planejamento, ainda que de forma particularizada sobre cada programa ou conjunto de programas de ação.
d) Processo judicial: “processualização” dos parâmetros de controle das políticas públicas e as condições para os “diálogos institucionais” Não é propósito deste tópico discorrer sobre o tema do controle judicial de políticas públicas de maneira ampla, o que já foi feito em trabalhos anteriores312, mas examinar o aspecto processual específico subjacente ao problema. A própria existência da chamada “judicialização da política” é um fator que por si demonstra a processualidade das políticas públicas, na medida em que maior número de conflitos sociais passa a ser submetido à lógica processual, submetido ao Poder Judiciário, uma vez que o modelo jurídico da Constituição favorece a admissão do conflito, e não sua rejeição. O processo judicial vem-se modernizando e atualizando, não apenas no Brasil, de modo a buscar corresponder ao anseio social. São exemplos disso os processos coletivos, a abertura ao tratamento dos interesses difusos e coletivos, a adoção das tecnologias de informação e comunicação, e uma série de inovações processuais e procedimentais que decorrem da litigiosidade de massa, isto é, a ampliação das formas de acesso à ustiça e, ligado a isso, o aumento da importância social dessas formas de solução de controvérsias, em busca de maior amplitude e eficácia. A questão, conforme o amadurecimento do debate sobre o que o tema indica – e trata-se de tema sobre o qual se tem desenvolvido muito a bibliografia jurídica em políticas públicas –, não é se pode ou não haver controle judicial313, mas qual o seu conteúdo e quais os limites da decisão judicial. “A grande inovação que [as políticas públicas] trazem é imputar consequências, dentro de determinados parâmetros – ainda não estabilizados e definidos de maneira sistemática (e aí está o problema) – para a inércia o incúria dos governos em implementar as políticas públicas ou medidas necessárias para a efetivação dos direitos”314. A apreciação judicial hoje é permeada por um sentido material, que caracteriza a inflexão da justiça brasileira a partir dos anos 1990, com a redução de formalismos vazios, em favor da justiça efetiva. Longas querelas processuais que marcavam as lides judiciais do passado não mais prosperam hoje. Os marcos dessa evolução são basicamente legislativos. Em 1985, edita-se a Lei da Ação Civil Pública, Lei n. 7.347, que inaugura entre nós o paradigma das ações coletivas. Embora o objetivo da lei fosse a disciplina da ação de responsabilidade por danos, a grande força dessa norma é extraída da institucionalização da figura da medida cautelar para prevenção dos danos, prevista no art. 4º, cujo
objeto são obrigações de fazer ou não fazer, isoladamente ou combinadas com penas pecuniárias por descumprimento de determinação judicial. O universo de bens tutelados pela lei – originalmente meio ambiente, consumidor, bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico – amplia-se com a edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei n. 8.078, de 1990, que estende as hipótese de cabimento da ação civil pública aos casos de infração da ordem econômica e da economia popular, além da tutela da ordem urbanística ou “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. A noção de interesse difuso ou coletivo constitui uma das mais importantes inovações do CDC, que também previu os interesses individuais homogêneos e permitiu superar definitivamente a concepção restritiva da legitimação processual contida no art. 6º do Código de Processo Civil (CPC), viabilizando a adoção das ações coletivas em grande escala. O CDC forneceu a referência normativa, posteriormente aplicada, por emulação, a outras leis, entre elas a Lei de Processo Administrativo, que possibilitou a procedimentalização jurídica, no âmbito administrativo, da tutela de interesses relevantes do ponto de vista social. No campo judicial mais estrito, a inovação processual que alterou substancialmente a relação da política com a justiça foi a ampliação da tutela de urgência. Embora o direito tradicional previsse a figura da liminar já na legislação do mandado de segurança, de 1951, para a proteção de “direito líquido e certo”, juntamente com a medida cautelar do CPC (art. 888), para “evitar o perecimento de direito”, desde meados da década de 1980, o emprego desse tipo de tutela judicial veio crescendo em quantidade e tipos de casos, de maneira visível. Isso por força da cautelar prevista na Lei da Ação Civil Pública, já referida, e também da nova configuração do Ministério Público na Constituição de 1988. Posteriormente, em 1994, nova disposição legal reforça o escopo dos provimentos de urgência, ao tratar da antecipação de tutela: “O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação”315. A atuação jurisdicional é ainda mais fortalecida com a criação, em 2002, da tutela de evidência: “A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso”316. A recuperação desse percurso histórico é interessante para desfazer um senso comum que se crio sobre o hipotético “ativismo judicial”. Se existe um controle judicial mais presente (e incômodo, em certa medida, para os gestores públicos) sobre a atuação governamental, não se trata de exercício de voluntarismo por integrantes da magistratura, mas de um movimento consistente, formalizado pelo Poder Legislativo, cujo sentido claro é evitar a procrastinação das decisões sobre os conflitos, sustentando a decidibilidade judicial mais célere e eficaz. Esse sentido acompanha movimento análogo em diversos países, que fizeram do Judiciário o foro natural onde deságua boa parte dos conflitos da sociedade, o que requer, evidentemente, que o Judiciário tenha condições de prover respostas em prazo considerado razoável pelos destinatários do serviço jurisdicional. Ainda a justificar a atuação da magistratura no controle da ação governamental, é preciso lembrar que se ativismo há, isso ocorre mais por contraposição a um estado de “passividade judicial” que vigia até a edição da Constituição. O que houve foi a descoberta do “poder dos juízes”317. Mais importante, essa nova abordagem foi amparada por um arcabouço legal que veio sendo aprovado pelo Legislativo em sucessivas oportunidades. A ação civil pública é o instrumento por excelência da tutela de interesses coletivos inatendidos. Entretanto, após uma primeira fase de grande utilização dessa figura, que coincidia com o novo papel do Ministério Público, caracterizando-se pela judicialização em ampla escala de ações para defesa de direitos, em especial direitos sociais, com certa euforia por parte dos movimentos pró-direitos, novos
desafios, político-institucionais e jurídicos, se apresentam. Do ponto de vista político, há crescente rejeição à atuação considerada excessiva ou personalista de alguns membros do Ministério Público que adotam iniciativas típicas de agentes investidos de legitimação política, requisito que o parquet não detém. Argumenta-se que essas iniciativas visam preencher “vazios” deixados pela autoridade política e administrativa. Mas o fato é que as vitórias udiciais têm sido relativamente modestas, em comparação com a expectativa criada. Esse problema decorre, em parte, da estruturação do Ministério Público. Em virtude da “captura política” que havia no passado, a Constituição de 1988 optou por um modelo de autonomia e independência funcional praticamente absoluta, por emulação direta das condições dos juízes. Não há hierarquia em relação a chefias, o que previne, até certo ponto, a manipulação política do direito de ação e intervenção ampliados com os novos instrumentos. Contudo, isso gerou um “vácuo de coordenação” no âmbito interno do Ministério Público, com a pulverização de ações ancoradas muitas vezes exclusivamente na visão pessoal do autor-promotor, nem sempre relevantes ao que seria de esperar em termos de controle de políticas públicas. De outro lado, as queixas provenientes dos integrantes do polo passivo das demandas, autoridades públicas municipais, estaduais e federais em sua maioria, devem também ser vistas sob a perspectiva do problem probl emaa de coordenação ou de falta de meios, o que reclam recla ma compreensão institucional. institucional. Um componente relevante é o temporal. A disseminação do uso das figuras de tutela de urgência nos processos altera de maneira relevante o exercício do contraditório. A decisão de maior impacto é a proferida em caráter liminar, em relação à qual as partes dedicam grandes esforços, aí compreendida a decisão dos recursos nas sucessivas instâncias. A fase de produção de provas, na qual o contraditório ocorre em sua plenitude, tem seu sentido reduzido ante uma decisão proferida com antecedência e cujos efeitos já se fizeram sentir por algum tempo. O problema aqui, pode-se dizer, reside na coordenação na dimensão temporal. O alargamento das formas e do uso da tutela de urgência, com a amplitude que vem sendo concedida pelo Judiciário, inspira uma nova cultura processual, que valoriza as provas pré-constituídas e a persuasão sobre a questão de fundo da lide. Cumpre ao autor da ação, quando invoca a inércia do Poder Público, a execução parcial ou incompleta da política ou a ausência da destinação de recursos, demonstrar que a expectativa é legítima, no quadro de funcionamento dos poderes da República. Em defesa, cabe ao agente governamental demonstrar a existência de plano, a adoção o encaminhamento das medidas pertinentes e a reserva dos recursos. O Poder Público não deve “se esconder” atrás do processo ou conduzi-lo burocraticamente. Ao contrário, deve conduzi-lo como um diálogo, materialmente informado, sobre a questão de fundo posta na ação. E a decisão judicial há de ser baseada na confrontação do dever existente com a real competência do agente agen te público para par a a im i mplemen plementação tação da política. pol ítica. Esse é o sentido político-institucional do controle judicial de políticas públicas num cenário democrático. Não se trata de conceber o Poder Judiciário como mera arena de conflitos, mas respeitar que a exigência judicial de direitos seja uma alternativa possível. Diante dela, cabe à autoridade prestar contas, informar como está sendo planejado o enfrentamento da questão, quais os meios imediatamente disponíveis, quais os resultados a serem obtidos ao longo do tempo. Só desse modo se terá o verdadeiro escrutínio da conduta conduta do Poder Público, Públic o, sem parti sem parti pris pris,, seja de um lado, seja de outro. Curiosamente, pode-se dizer que o problema que a judicialização das políticas públicas hoje enfrenta decorre da falta de procedimento e não de excesso deste. Há um process processoo de aprendiz apr endizagem agem institu institucional cional a ser prom promovido ovido pelas pe las partes envolvidas, envolvi das, em especial especia l o
Ministério Público, detentor, por substituição, de parcela do “contraditório social”, com base na compreensão sistemática do sentido e alcance das ações e medidas intentadas. É preciso compor um acervo de casos, a partir de uma metodologia controlada, e identificar as variáveis que devem ser modificadas. Por meio desse trabalho, poderá ser refinada a procedimentalização das medidas relacionadas às ações judiciais que tratam de políticas públicas, especialmente as concernentes à fase preparatória do inquérito civil, que ainda deixa vários pontos em aberto, pendentes de definição caso a caso. Sem perder a flexibilidade que convém à formulação de soluções negociadas, que culminam na celebração de termos de ajustamento de conduta, algumas indicações poderiam servir de guias de orientação. Entre elas, a preferência pela abordagem indutiva, que, aliás, já é característica desse tipo de ajuste, a fixação de parâmetros de prazo e, sempre que possível, a definição de um quadro ideal de ação fixado não por um indivíduo, mas, coletivamente, por membros do Ministério Público em conjunto, em 3188. Complementarmente, é preciso que uma visão estratégica instâncias de coordenação ou articulação31 projete o efeito do conjunto de ações no tempo319. Mas é preciso também traçar uma linha divisória entre o que caracteriza a suficiência do cumprimento e, por oposição, o estado de desídia ou omissão que dispara o processo de responsabilização por descumprimento. A concretização de direitos é remetida pela Constituição à altura de jurídicos hierarquicamente inferiores, deixando margem a que a efetivação se faça de maneira gradativa, condicionada à existência e disponibilidade de meios, seguindo a concepção dos direitos “de realização progressiva”, referida no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. A questão é definir os modos de efetivação, o tempo e o alcance da norma, no que diz respeito aos seus beneficiários. Há um atrelamento ou “empacotamento” dos temas tradicionalmente integrantes do domínio exclusivo da política por regras e procedimentos jurídicos e também por considerações econômicas e fiscais. Ilustrativas desse dilema são as ações que postulam direito a vagas em creches, matéria apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, que deferiu a postulação dos autores em favor do atendimento ao pleito pela criação de creches pela municipalidade. O argumento da decisão judicial repousa sobre o caráter obrigatório da disposição constitucional. Mas, em que pese seu caráter mandatório, a decisão concreta, naquilo que tange ao interesse das crianças e de seus pais, é remetida novamente à primeira instância, dependendo da execução da decisão e seus incidentes – nem poderia ser de outra forma. E os incidentes da execução, a despeito dos mecanismos processuais coercitivos – até mesmo a sanção penal por descumprimento de determinação judicial –, estarão condicionados à elaboração do projeto de lei orçamentária pelo Poder Executivo, aprovação da lei orçamentária pelo Poder Legislativo, devolução da matéria ao Executivo para execução do orçamento, empenho de recursos, abertura de licitação, realização do processo licitatório, superação da fase de possível contestação judicial do processo licitatório por interessados potenciais ou atuais, início da obra e assim por diante. Há um longo percurso intraestatal da ação até que o resultado esperado – no caso, a frequência à creche pelas crianças – veja a luz.. Os percalços luz per calços e insucessos na ação administrativa, involu i nvolunt ntário árioss ou provocados, são incon i ncontáveis. táveis. O caminho que se vislumbra, portanto, é a “processualização” das iniciativas objeto dos processos udiciais, isto é, a criação de mecanismos formais ou informais de mediação, por meio de “diálogos institucionais” institu cionais” qu quee perm per mitam o estabelecim estabeleci ment entoo das etapas e meios necessári necessários os para par a a implem implement entação ação dos direitos e das políticas públicas. Poder-se-ia cogitar da adoção das chamadas soluções alternativas de controvérsias no setor público, seguindo linha presente, seja no âmbito do processo civil, com a adoção da mediação e da conciliação, seja do processo penal, com as penas alternativas. Isso requer técnicas de negociação e de mediação, e seu devido planejamento, o que implica estratégias de tempo, de poder e de informação. A questão
remete ao problema remete pr oblema dos pressupostos pres supostos da mediaçã mediaçãoo ou da negociaçã negociação, o, compreendendo-se compreendendo-se nessa expressão expressã o as partes admitidas à mesa de negociação, o objeto e seus limites, a decisão esperada e as válvulas para a hipótese de insucesso da negociação, sejam temporais, sejam de conteúdo, de tal forma que, se isso ocorrer, não se valorize a frustração do processo, mas o resultado obtido, no limite possível, como etapa inicial de um proces processo so con c ontinu tinuado. ado.
e ) Pr Proce ocesso sso polí olítico-e tico-eleitoral leitoral e in influ fluêê nci ncias as recíp recíprocas rocas sobre sobre o proce processo sso gove govern rnam amee ntal Não é possível compreender as relações entre a base política de um governo e o sucesso de iniciativas que dependem de sua configuração técnico-jurídica sem estabelecer algumas relações com o processo eleitoral. O propósito de tratar de tema tão complexo e extenso neste tópico limita-se a ordenar algumas ideias relativas aos efeitos reflexos do processo eleitoral sobre a formulação e implementação dos programas de ação governamental. O tema é, por si só, jurídico e político. Não obstante, trata-se de tema que ilustra a linha de desenvolvimento deste capítulo, na medida em que se busca aplicar aos diversos processos o esquema cognitivo da relação jurídica processual, com base no exercício do contraditório – adotando as figuras das partes, objeto e pressupostos do processo – comoo uma com uma perspectiva pers pectiva estrut es truturada urada para com compreender preender as ten tensões sões en e ntre os int i nteres eresses ses presentes pr esentes nas nas decisões deci sões governamentais sobre políticas públicas. O processo eleitoral é distinto dos processos até aqui analisados, porque nele o contraditório e as tensões sociais não visam obter a decisão governamental. Ao contrário, trata-se de tensões sociais minuciosamente procedimentalizadas pelo direito, de modo que se expresse a decisão popular, fonte de legitimidade dos atos governamentais que se lhe sucederão. O contraditório político se dá principalmente entre a “situação” e a “oposição”, embora o processo eleitoral possa moldar a composição de blocos e forças de apoio. A função da legislação eleitoral é disciplinar e detalhar a organização do processo, por meio do procedimento, de modo que as eleições se realizem como “pequenas rupturas institucionalizadas” da relação de poder expressa na política vigente, possibilitando reacomodar, de forma periódica e programada, as bases de sustentação do Poder Público, não apenas considerando os agrupamentos e partidos, mas levando em conta as ideias-força que os mobilizam e em torno das quais se organizam. Entretanto, num sistema eleitoral em que o programa não tem vinculatividade, as eleições pouco contribuem para a racionalidade do processo governamental. Nos regimes parlamentaristas, o governo está atado ao programa apresentado por ocasião das eleições, o que não ocorre no presidencialismo, em 3200. vista da ausência de mecanismos de responsabilidade política32 Essas rupturas mostram que a criação do poder não se dá exclusivamente a partir da “base política instalada”, mas pode ser produzida a partir de resultados da gestão governamental. O governo deixa de ser apenas foro de “consumo” de poder político, com o usufruto das benesses por ele conferidas, e passa a ser, potencialmente, locus locus de “produção” de poder, com a modificação de estruturas e a geração de bem-estar que não existiriam sem a ação governamental. No regime presidencialista, em que o mandato governamental tem prazo certo de duração, é um lugar comum da política adotar as medidas de maior impacto no início do mandato, geralmente no primeiro ano, quando a legitimação recente e fresca é capaz de suportar as decepções que a “vida real política”, isto é, as constrições econômicas, sociais e institucionais à ação, impõem às expectativas de eleitores. Essa dinâmica se explica porque a partir daí o processo governamental passa a ter a possibilidade de ser fonte da própria legitimação. Isso idealmente ocorre num sentido de racionalização, próprio das democracias maduras, em que os resultados dos programas de ação produzem justiça social, inclusão o indicam a criação de condições para isso, por meio de modernização institucional, reformas produtivas,
melhoria do sistema de financiamento de políticas estruturais e assim por diante. O aumento de legitimidade resulta, nesse caso, da ação governamental, que passa a se retroalimentar, criando condições não apenas para a sustentação daquela ação, mas também para o seu desdobramento em outras ações, conexas ou não. Isso é o que explica a demanda por uma gestão técnica, sem ser tecnocrática. Esse processo, é verdade, pode apresentar-se também em sua versão degenerada, no que se refere à alimentação recíproca dos processos político e de gestão governamental. Nos estágios mais primitivos da política, em que o poder se divide mais com base em fatores de cunho “antropológico”, do recorte entre grupos, os instrumentos do governo consistem no “butim” a ser apropriado pelo grupo vencedor das eleições. Estas, por sua vez, devem produzir a legitimação desse comportamento apontando os líderes que serão capazes de dividir satisfatoriamente os “despojos”321. Mas o processo governamental pode apresentar-se numa versão intermediária, nem inteiramente ideal nem completamente corrompida. Dadas a limitações do governo, sendo inevitáveis frustrações, o saldo político ao final do mandato corresponde às ações executadas com base em opções, orientadas pelo juízo político como mais interessantes, ou menos desgastantes, ou mais viáveis, no campo da gestão. Uma das dimensões novas no processo eleitoral brasileiro, que ironicamente veio a ser reforçada com o instituto da reeleição para cargos do Poder Executivo, foi a valorização da gestão, no sentido acima apontado, que tende a renovar os mandatos dos chefes de Executivos vistos como gestores competentes. Evidentemente outros fatores pesam, como é o caso da proximidade do político em relação ao governo federal e a fontes repassadoras de verbas públicas. Também não se pode minimizar o papel das circunstâncias econômicas, que em condições de crescimento da atividade e do emprego em geral militam em favor da permanência da situação.
174 Maria Paula Dallari Bucci. Direito Administrativo e Políticas Públicas, cit. – grifei. 175 John W. Kingdon. Agendas, Alternatives and Public Policies. 2. ed. New York: Harper Collins College Publishers, 1995, p. 2-3. 176 Ellen Imergut. O núcleo teórico do novo institucionalismo. In: Políticas Públicas. Coletânea (Enrique Saravia e Elisabete Ferrarezi – orgs.). Brasília: ENAP, 2006, v. 1, p. 155-195; espec. p. 162. Esse tema será referido no item 3.1, abaixo. 177 John Kingdon. Agendas, cit., p. 2-3. 178 Antonio Carlos de Araújo Cintra; Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco. Teoria Geral do Processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 49. 179 Cintra, Grinover e Dinamarco, ob. cit., p. 235. 180 Luiz Guilherme Marinoni. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, v. 1, p. 404. 181 Apud Cintra, Grinover e Dinamarco, Teoria, cit. 182 Cintra, Grinover e Dinamarco, ob. cit., p. 236. 183 Idem, p. 238. 184 Idem, p. 235. 185 Idem, ibidem. Ação é o “direito ao provimento jurisdicional, qualquer que seja a natureza deste – favorável ou desfavorável, justo ou injusto – e portanto direito de natureza abstrata. É, ainda, um direito autônomo (que independe da existência do direito subjetivo material) e instrumental, porque sua finalidade é dar solução a uma pretensão de direito material. Nesse sentido, é conexo a uma situação jurídica concreta” (p. 215). 186 Cintra, Grinover e Dinamarco, ob. cit., p. 238-239. 187 Cintra, Grinover e Dinamarco, ob. cit., p. 239-240. 188 Carlos Alberto de Salles. A Arbitragem em Contratos Administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 2011. 189 Francesco Carnelutti. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Lejus, 1999, p. 295. 190 Ver item 3.2.a, adiante.
191 Niklas Luhmann. Legitimação pelo Procedimento. Brasília: Ed. UNB, 1980. Considerando a diferenciação entre as noções de processo e procedimento, acima, entendo que a tradução mais fiel do termo no título seria processo e não procedimento. O sentido amplo da expressão se refere sempre a processo, uma vez que contempla não apenas as formas do encadeamento dos atos, mas principalmente o aspecto da participação. Veja-se, a respeito, o alerta do autor, contido no início do cap. III da obra: “Aqui existe um erro óbvio a ser evitado: um procedimento não pode ser considerado como uma sequência fixa de ações determinadas. Uma tal opinião conceberia o procedimento como um ritual em que uma única ação estaria certa em cada caso e as ações estariam de tal forma encadeadas que, excluindo a possibilidade de escolha, uma dependeria da outra. Essas ritualizações têm uma função específica. Fixam a ação estereotipada e criam assim segurança, independentemente das consequências fáticas que são depois atribuídas a outras forças, que não a ação” (p. 37). O termo processo será utilizado preferencialmente quando o sentido não se limitar à ação ritualizada, considerando que a diferença é relevante, conforme se expõe adiante. 192 Niklas Luhmann, ob. cit., p. 7. 193 “O procedimento é juridicamente regulado desde que se entenda por ‘regulação jurídica’ um regramento em sentido muito lato, que não tem uma densidade normativa uniforme em todos os sistemas sociais: [...] que [...] disponibiliza papéis sociais que podem ser mobilizados para tomar uma decisão. O procedimento é assim a história institucional de uma decisão.” João Paulo Bachur. Às Portas do Labirinto. Para uma Recepção Crítica da Teoria Social de Niklas Luhmann. São Paulo: Azougue Editorial, 2010, p. 244. 194 Em outros termos, Maquiavel já antecipara essa visão, ao afirmar a “necessidade das acusações para conservar a liberdade numa república”, sustentando a conveniência dessas, entre outras razões, porque “se permite o desafogo daqueles humores que de algum modo cresçam nas cidades contra qualquer cidadão: e, quando tais humores não têm como desafogar-se por modos ordinários, recorre-se a modos extraordinários, que levam toda a república à ruína. Por isso, nada há que torne mais estável e firme uma república do que ordená-la de tal modo que a alteração dos humores que a agitam encontre via de desafogo ordenada pelas leis”. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, cit., p. 33. Newton Bignotto. Introdução. In: Discursos sobre a Primeira Décad a de Tito Lívio, cit., p. XIX-XLI. 195 Bachur. Às Portas do Labirinto, cit., p. 247-248. A referência é a Luhmann, Legitimação pelo Procedimento , cit. 196 Theodor Viehweg. Tópica e Jurisprudência. Brasília: Ministério da Justiça/Ed. UNB, 1979 [obra de 1953]. Tradução e prefácio de Tércio Sampaio Ferraz Jr. 197 Peter Häberle. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 2002. 198 Viehweg. Tópica, cit., p. 9, Prefácio à 2. ed. 199 Viehweg, ob. cit., p. 17. 200 Tércio Sampaio Ferraz. Teoria da Norma Jurídica. 3. ed. São Paulo: Forense, 1999, p. 3. 201 Esse aspecto será referido no capítulo 4, abaixo. 202 Nicolai Hartmann. Diesseits von Idealismus und Realismus, apud Viehweg, Tópica, cit., p. 35. 203 Aristóteles. Organon. 2. ed. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2010, Tópicos, livro I, I, p. 347. 204 Ferraz Jr. Teoria, cit. 205 Viehweg. Tópica, cit., p. 105. 206 Viehweg, ob. cit., p. 44. 207 Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 150. 208 Ferraz Jr. Teoria, cit., p. 23. “Esta organização, contudo, é sempre limitada, não surgindo nem na forma rigorosa de deduções lógicas, nem como sistemas unitários, abarcantes, como grandes hierarquias conceituais que alcancem toda a realidade em questão. O raciocínio tópico, que se vale dos repertórios de topoi, vale, portanto, em certos limites e toda vez que se tenta dar-lhes alcance maior percebemos, de imediato, que ele se vê envolvido em contradições lógicas.” Tércio Sampaio Ferraz Jr. Prefácio à Tópica e Jurisprudência. Brasília: Ministério da Justiça/Ed.UNB, 1979, p. 4-5. São exemplos de topoi: direito subjetivo, fins sociais, bem comum, imparcialidade do juiz, boa-fé e presunção de inocência, interesse, interesse público, boa-fé, autonomia da vontade, soberania, direitos individuais, legalidade, legitimidade. Para o que interessa às políticas públicas, outro topos é o da vontade da maioria, “a maioria decide”, contraposto ao topos do mais sábio, que enfatiza a técnica e o mérito. 209 Viehweg. Tópica, cit., p. 40. 210 Viehweg, ob. cit., p. 27. 211 “Pode-se eleger ou as opiniões de todos ou as da maioria ou as dos sábios (de todos estes, de sua maioria ou dos mais famosos entre eles) ou opiniões contrárias àquelas que parecem ser geralmente sustentadas e ainda opiniões que se harmonizam com as artes.” Idem, ibidem. 212 “A tópica pressupõe que um sistema semelhante não existe. A sua permanente vinculação ao problema tem de manter a redução e a dedução em limites modestos. Não obstante, quando se logra estabelecer um sistema dedutivo, a que toda ciência, do ponto de vista lógico, deve aspirar, a tópica tem de ser abandonada. [...] Numa situação ideal, a dedução torna totalmente desnecessária a invenção. O sistema assume a direção.” Viehweg, ob. cit., p. 43. 213 “Não se nota, no pensamento aristotélico, qualquer sugestão de hierarquia entre essas duas maneiras de raciocínio: elas não se excluem mutuamente, não se sobrepõem, não substituem uma à outra.” Fabio Ulhoa Coelho. Prefácio. In: Tratado da Argumentação. A Nova Retórica. Ed. bras. (Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca). São Paulo: Martins Fontes, 1999. 214 “Para nosso fim, pode chamar-se problema — esta definição basta — toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a sério e para a
qual há que buscar uma resposta como solução. [...] o problema, através de uma reformulação adequada, é trazido para dentro de um conjunto de deduções, previamente dado, mais ou menos explícito e mais ou menos abrangente, a partir do qual se infere uma resposta. Se a este conjunto de deduções chamamos sistema, então podemos dizer, de um modo mais breve, que, para encontrar uma solução, problema se ordena dentro de um sistema.” Viehweg. Tópica, cit., p. 34. 215 Ferraz Jr. Teoria, cit. 216 Esse tema foi abordado em meu Direito Administrativo e Políticas Públicas, item 3.4.a.2. 217 Discurso fundamentante é o discurso racional, o que não exige que ele fundamente tudo, mas que esteja aberto à exigência de fundamentação, isto é, esteja sujeito à regra do dever de prova. Ferraz Jr. Teoria, cit., p. 17-18. 218 Miguel Reale comenta essa restrição: “Se há bem poucos anos alguém se referisse à arte ou técnica da argumentação, como um dos requisitos essenciais à formação do jurista, suscitaria sorrisos irônicos e até mordazes, tão forte e generalizado se tornara o propósito positivista de uma Ciência do Direito isenta de riqueza verbal, apenas adstrita à fria lógica das formas ou fórmulas jurídicas. Perdera-se, em suma, o valor da Retórica, confundida errônea e impiedosamente com o ‘verbalismo’ dos discursos vazios./ De uns tempos para cá, todavia, a Teoria da Argumentação volta a merecer atenção dos filósofos e juristas, reatando-se, desse modo, uma antiga e alta tradição [...]./Diga-se de passagem que esse renovado interesse pela Teoria da Argumentação coincide com a revisão dos antigos estudos de Teoria da Legislação, a qual, tendo florescido no século XVIII, nos escritos de um Filangeri ou de um Bentham, volta hoje ao cenário das pesquisas sistemáticas sob as denominações de ‘Política do Direito’ ou ‘Política Legislativa’, tão essenciais a um Estado que, dia a dia, alarga sua interferência em todos os planos da vida humana. A boa técnica de legislar será uma garantia contra abusos que as leis mal redigidas sempre propiciam”. Miguel Reale. Lições Preliminares de Direito. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 88-89. 219 Friedrich Müller. Discours de la Méthode Juridique. Paris: PUF, 1996, p. 129. 220 Julia Black. Procedimentalizando a regulação – parte I . In: Regulação Econômica e Democracia (Paulo Todescan Lessa Mattos, Mariana Mota Prado, Jean Paul Cabral Veiga da Rocha, Diogo Coutinho, Rafael Oliva – orgs.). São Paulo: Singular, 2006, p. 141-166. 221 Os casos em que a legislação admite a “delegação” desta a terceira entidade, como é o caso da arbitragem, não configurariam uma “alternativa privatizante” à jurisdição, mas, ao contrário, o exercício privado complementar à atuação direta da jurisdição, que a reforça como modelo, sob o reconhecimento e a definição de limites estatais de suas decisões. Não se trata de um retorno à concepção contratual do processo, mas do desenvolvimento desse sob condições fixadas pelo Estado. Salles, A Arbitragem, cit. 222 Ver item 1.5.b, acima. 223 Julia Black. Procedimentalizando..., in Regulação, cit., p. 141-142. 224 “A opinião pública convertida em poder comunicativo por procedimentos democráticos não pode reinar ela própria, mas apenas dirigir o uso do poder administrativo em certas direções.” Jurgen Habermas. Três modelos normativos de democracia. Revista Lua Nova, n. 36, 1995, p. 39-54. 225 Idem, ibidem. 226 Jacques Chevallier. O Estado Pós-Moderno, cit., p. 223-224. 227 O Código de Processo Civil brasileiro adota essa orientação, no chamado “despacho saneador”, conforme o art. 331, § 2º: Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário. 228 Cintra, Grinover e Dinamarco. Teoria, cit. A Constituição Federal enuncia de maneira limitada o contraditório, associado ao direito de defesa e aos litigantes e acusados. Art. 5º, LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 229 Marinoni. Teoria, cit., p. 404. 230 Marinoni, ob. cit., p. 409-410. 231 Jean Louis Bergel. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 445. 232 Como A Lógica da Ação Coletiva, de Mancur Olson, que examina o papel dos grupos de interesses nos processos políticos, entre outros. 233 Campilongo, Interpretação do Direito, cit., p. 147-151, e Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. 234 São exemplos disso, na legislação brasileira, a explicitação dos interesses no Código de Defesa do Consumidor (art. 81) e na Lei do Processo Administrativo, Lei n. 9.784, de 1999 (art. 9º). 235 Parafraseando, ainda que sem o sentido linguístico preciso, a “pragmática da comunicação normativa” de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Teoria, cit.). 236 A sistematização da relação entre os interesses seria uma via a explorar, no campo da pesquisa, podendo-se cogitar, a partir da estruturação de Carnelutti (Teoria Geral, cit., p. 92), do agrupamento dos interesses em pares: a) segundo a complementaridade – interesses em solidariedade (conceito funcional, agregação) ou em conflito (desagregação); b) segundo a utilidade – finais ou instrumentais; c) segundo a satisfação temporal – mediatos ou imediatos; d) segundo a titularidade – comuns/coletivos ou singulares/individuais. 237 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 238 O tempo político influi sobre o modo de ver certas políticas como “de Estado” ou “de governo”, cf. item 3.2.a, abaixo. 239 Charles Lindblom. Muddling through 1: a ciência da decisão incremental. E Muddling through 2: a ubiquidade da decisão incremental. In: Políticas Públicas e Desenvolvimento, cit., p. 161-180 e 181-202, respectivamente. O incrementalismo de Lindblom trabalhou a variável tempo, no sentido de admitir o progresso inerente ao processo político, minimizando os ônus decisórios, com base na melhoria espontânea dos
processos a partir de alguns impulsos governamentais. 240 Maria Paula Dallari Bucci. Direito Administrativo e Políticas Públicas, cit. – grifei. 241 Esse tema foi abordado em meu Direito Administrativo e Políticas Públicas, cit., cap. 4, item 3. 242 No Brasil, com a edição da Lei n. 9.784, de 1999, a Lei do Processo Administrativo. EUA, Administrative Procedure Act , 1946; Portugal, Código do Procedimento Administrativo, Decreto-Lei n. 442, de 1991; Espanha, Lei do Regime Jurídico das Administrações Públicas e do Procedimento Administrativo Comum, Lei n. 30, de 1992; o direito administrativo europeu, formulações do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, TJCE, entre outras. 243 Diogo Freitas do Amaral e outros. Código de Procedimento Administrativo Anotado. Coimbra: Almedina, 2005. 244 Odete Medauar. Direito Administrativo Moderno. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, s. d., p. 192 e s. A autora foi uma das pioneiras a tratar da processualidade administrativa no Brasil, muito antes das iniciativas de positivação da matéria. 245 A Lei federal n. 9.784, de 1999, contemporânea à adoção de leis de processo administrativo em vários Estados, sem prejuízo da existência de normas específicas, cujo caráter processual poderia ser apontado, como é o caso das modalidades de licitações, procedimentos regrados de compras governamentais, sujeitos ao contraditório dos concorrentes e do público em geral, nos termos da legislação própria. 246 A lei do processo administrativo do Estado de São Paulo, Lei n. 10.177, de 1998, especificou o que chamou de “procedimentos em espécie”, arrolando seis tipos de procedimentos, conforme a decisão objetivada: i) de outorga; ii) de invalidação; iii) sancionatório; iv) de reparação de danos; v) para obtenção de certidão; vi) para obtenção de informações pessoais. 247 Carlos Ari Sundfeld. O processo administrativo e seu sentido profundo no Brasil; Maria Sylvia Zanella Di Pietro. A lei de processo administrativo: sua ideia matriz e âmbito de aplicação, ambos em Processo Administrativo. Temas Polêmicos da Lei n. 9.784/99 (Irene Patrícia Nohara e Marco Antonio Praxedes de Moraes Filho – orgs.). São Paulo: Atlas, 2011. 248 Maria Coeli Simões Pires. Esgotamento do modelo de desenvolvimento excludente no Brasil e ressemantização das atividades de planejamento e articulação governamentais à luz do paradigma democrático. In: Nova Organização Administrativa Brasileira. Estudos sobre a Proposta da Comissão de Especialistas Constituída pelo Governo Federal para Reforma da Organização Administrativa Brasileira (Paulo Modesto – coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2009. 249 Cabe destacar o esforço de sistematização da organização da administração pública, em iniciativa de redefinição de seu parâmetro geral no Anteprojeto de lei de organização administrativa elaborado por Comissão de Juristas, conforme texto, relato e análise em Paulo Modesto (coord.). Nova Organização Administrativa Brasileira. Estudos sobre a Proposta da Comissão de Especialistas Constituída pelo Governo Federal para Reforma da Organização Administrativa Brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2009. 250 Ver item 3.3.f, abaixo. 251 AGU, MP 2180-35/01. “Art. 11. Estabelecida controvérsia de natureza jurídica entre entidades da Administração Federal indireta, ou entre tais entes e a União, os Ministros de Estado competentes solicitarão, de imediato, ao Presidente da República, a audiência da AdvocaciaGeral da União. Parágrafo único. Incumbirá ao Advogado-Geral da União adotar todas as providências necessárias a que se deslinde a controvérsia em sede administrativa.” 252 Essa questão foi examinada mais detidamente em trabalho escrito por mim em parceria com Marisa Alves Vilarino. A ordenação federativa da educação brasileira e seu impacto sobre a formação e controle das políticas públicas educacionais. In: Justiça pela Qualidade na Educação (Todos Pela Educação e ABMP – orgs.). São Paulo: Saraiva, 2013. 253 Carmelo Giurdanella. Guida alla Riforma del Procedimento Amministrativo. La Novela alla L. 241/1990 Introdotta dalla L. 11 Febbraio 2005, n. 15. Napoli: Edizioni Giuridiche Simone, 2005. 254 Art. 1-bis da Lei n. 241, de 1990, introduzido pela Lei n. 15, de 2005: “La pubblica amministrazione, nell’adozione di atti di natura non autoritativa, agisce secondo le norme di diritto privato salvo che la legge disponga diversamente”. Conforme apêndice legislativo em Giurdanella, Guida alla Riforma, cit., p. 133. 255 Cassese. A Crise do Estado, cit., p. 92-97. 256 Arts. 14 a 16 da lei italiana. 257 Cassese. A Crise do Estado, cit., p. 96. 258 Giurdanella. Guida alla Riforma, cit. 259 Cassese. A Crise do Estado, cit. O autor é crítico sobre o modo de aplicação do instituto da conferência de serviços às grandes obras, em particular as ferroviárias, objeto de seu comentário, em que o processo decisório foi bastante tumultuado em razão de alterações sucessivas nas regras da própria conferência. 260 Luís S. Cabral de Moncada. A Relação Jurídica Administrativa. Para um Novo Paradigma de Compreensão da Actividade, da Organização e do Contencioso Administrativos. Coimbra: Coimbra Ed., 2009. 261 Eberhard Schmidt-Assmann. La Teoría General del Derecho Administrativo como Sistema. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 177. 262 Luhmann, Legitimação, cit., p. 169. 263 Hartmut Maurer. Droit Administratif Allemand. Paris: LGDJ, 1994. 264 A noção de accountability nada mais faz senão renovar uma diretriz tão antiga quanto o Estado de direito, que fora expressa na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, arts. 13 a 15, mas especialmente na parte final do art. 14. Menos conhecidos que o famoso art. 16, que dispunha que uma sociedade que não assegurasse a garantia dos direitos e não determinasse a separação de poderes não teria uma constituição (o que é bastante curioso, se considerarmos que a Declaração tinha alcance nacional, sem nenhuma investidura supranacional dos constituintes de então), esses dispositivos completam os contornos de um Estado em que a titularidade da soberania passa
do rei à Nação, para passar, em seguida, ao povo. “Art. 13. Para a manutenção da força pública e para as despesas da administração é indispensável uma contribuição comum; ela deve ser repartida igualmente entre todos os cidadãos, à razão de suas faculdades. Art. 14. Os cidadãos têm o direito de constatar, por eles mesmos ou por seus representantes, a necessidade da contribuição pública, de consentir com ela livremente, de seguir seu emprego e de determinar sua base, proporcionalidade, arrecadação e duração. Art. 15. A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração”. 265 José Afonso da Silva. Processo Constitucional de Formação das Leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 260. 266 Clèmerson Merlin Clève. Atividade Legislativa do Poder Executivo . 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 267 Afonso da Silva, Processo constitucional, cit., p. 139. 268 Idem. 269 Idem. 270 Afonso da Silva, ob. cit., p. 144. 271 Art. 61, § 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: I – fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas; II – disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI; f ) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva. (Redação do art. 61, § 1º, com as alterações das Emendas Constitucionais n. 18, de 1998, e 32, de 2001.) 272 José Afonso da Silva, ob. cit. Ver também Fernando Limongi e Argelina Figueiredo. Processo orçamentário e comportamento legislativo: emendas individuais, apoio ao Executivo e programas de governo. Dados. Revista de Ciências Sociais, v. 48, out./dez. 2005, p. 737-776, e Luiz Gustavo Bambini de Assis, Processo Legislativo e Orçamento Público. Função de Controle do Parlamento. São Paulo: Saraiva, 2012. 273 Joel de Menezes Niebuhr. O Novo Regime Constitucional da Medida Provisória. São Paulo: Dialética, 2001. 274 Pitruzzella, La Legge di Conversione del Decreto Legg e. Padova: CEDAM, 1989, cit., p. 5. 275 Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999, p. 155-156. A gama de indagações que orienta a extensa e aprofundada pesquisa empírica dos autores demonstra a superficialidade da recusa apriorística à interpenetração no exercício das funções políticas executiva e legislativa. “Na consolidação de uma ordem democrática, qual o equilíbrio ótimo entre as funções básicas – legislativa e executiva – de governo? Na organização do sistema decisório nacional, como garantir eficiência governamental e ao mesmo tempo atender à diversidade de interesses representados no Congresso Nacional? Como formar maiorias numa instituição onde cada um de seus membros tem mandatos que lhes garantem direitos iguais? Qual o equilíbrio ótimo entre a formação de maiorias e a garantia dos direitos de uma minoria?” (p. 8). O balanço entre os poderes, conforme demonstram os autores, é algo que depende da combinação específica de regras que definem o controle sobre a agenda legislativa, que na Constituição de 1988 teriam favorecido amplamente a iniciativa do Poder Executivo sobre o Legislativo. 276 Jaime Valle. A Participação do Governo, cit., p. 10-11. 277 Idem, ibidem. 278 Giovanni Pitruzzella. La Legge, cit. Na Áustria, desde a Constituição de 1920, art. 18, com as modificações introduzidas em 1929; na Dinamarca, desde 1953. 279 Pitruzzella, ob. cit. 280 Art. 62 da Constituição Federal, com as limitações introduzidas pela Emenda Constitucional 32, de 2001. 281 Ver item 1.1, supra. 282 “Essa evolução foi potenciada ou, pelo menos, facilitada pelas dificuldades experimentadas pelo Parlamento na sua afirmação perante o Governo no novo contexto social e político, em particular no que respeita ao exercício da função legislativa, que não se compadece com uma estrutura procedimental morosa e conflitual, e pouco adequada ao tratamento de questões eivadas de um alto grau de complexidade e tecnicidade.” Pitruzzella, ob. cit. 283 Olivier Borraz. Les normes: instruments dépolitisés de l’action publique. In: Gouverner par les Instruments (Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès – orgs.). Paris: Presses de Sciences Po, 2004, p. 123-162. 284 Carlos Blanco de Morais. Manual de Legística. Critérios Científicos e Técnicos para Legislar Melhor. Lisboa: Verbo, 2007. 285 Há inúmeros exemplos de aplicação dessa técnica normativa, podendo-se referir, entre eles, um dos mecanismos de repasse de recursos na área da saúde, que o condiciona a aprovação pelo Conselho de Saúde competente. Nesse caso, embora à primeira vista pareça que o Conselho fortalece a política, o sentido inverso é muito forte, isto é, a política favorece o Conselho. Outro exemplo é a utilização de indicadores de avaliação para a concessão de determinadas linhas de financiamento a municipalidades. 286 Ver item 3.2. a e b, supra. 287 Theodore J. Lowi. Distribution, regulation, redistribution: the funcions of government. In: Public Politicies and their Politicies (Ripley R. – org.). Tradução de André Villalobos. New York: Norton & Co., 1966. 288 Lowi, ob. cit.
289 A descrição é ilustrada por um estudo de caso sobre a política tarifária nos EUA nos anos 1920 e como as decisões a ela relacionadas foram se deslocando de um cunho absolutamente individualista até os anos 1930, quando passaram a ser tratadas como tema de interesse do país. Outros exemplos desse tipo de processo são programas de desenvolvimento de regiões rurais, melhoramentos hidroportuários, algumas práticas de isenção de impostos. 290 Lowi, ob. cit., p. 4. 291 Lowi, ob. cit., passim. 292 Lowi, ob. cit., p. 17: “Aplica-se aqui o que foi dito por William H. Riker sobre o processo de orçamentação: ‘[...] num sistema de governo em que as decisões orçamentárias sejam da alçada do Legislativo, cabendo às lideranças partidárias proceder a consolidações financeiras a partir de disputas e entendimentos em nível do próprio Legislativo, não há condições adequadas para a elaboração e implementação do orçamento governamental. Num sistema fiscal complexo, julgamentos legislativos até certo ponto casuais não podem conduzir, nem mesmo grosso modo, a uma correspondência adequada entre a receita e o gasto público. É essa a razão pela qual se introduziu o processo de elaboração da proposta orçamentária como prerrogativa do Executivo, com o que se transfere o controle financeiro para o responsável pela elaboração do orçamento [...]’”. 293 A bibliografia existente é escassa, diga-se, naquilo que importa para as políticas públicas. O orçamento é, na realidade, prática para entendidos, dado que a legislação de regência, a Lei n. 4.320, de 1964, está reconhecidamente defasada em relação às práticas de execução orçamentária, e seus “vazios normativos” são preenchidos pelo Manual Técnico do Orçamento, editado anualmente pelo governo federal, e outras normas técnicas do mesmo gênero. Além dele há disposições sobre o trabalho das comissões especializadas no Congresso Nacional, a Comissão de Tributação e Finanças da Câmara Federal e a Comissão Mista de Orçamento. Há estudos especializados de consultores legislativos e assessores profissionalmente ligados à área, como é o caso, entre outros, de Eber Zoehler Santa Helena. Competência Parlamentar para Geração e Controle de Despesas Obrigatórias de Caráter Continuado e de Gastos Tributários. Brasília: Câmara dos Deputados, 2009, e Edilberto Carlos Pontes Lima. Algumas Observações sobre o Orçamento Impositivo no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, Revista do IPEA, n. 26, 2003, p. 5-15. 294 Atualmente a Secretaria de Orçamento e Finanças (SOF) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG). 295 Lei Complementar n. 101, de 2001 (LRF), art. 9º. 296 Manual Técnico do Orçamento. Secretaria de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Disponível em: . Acesso em: 13-4-2011. 297 Fernando Limongi e Argelina Figueiredo ressalvam que com as alterações no processamento da lei orçamentária introduzidas no Brasil depois da Comissão Parlamentar de Inquérito dos “Anões do Orçamento”, nos anos 1990, o processo passou a ficar mais concentrado nas lideranças partidárias, retirando expressão das emendas individuais. 298 A Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização, formada por onze senadores e trinta e um deputados federais, emite parecer sobre os projetos orçamentários e respectivas emendas. As emendas, quanto à forma de apresentação, classificam-se em: a) individuais – com limite de número de emendas, no máximo vinte e cinco, por parlamentar, e de valor, que era de R$ 6 milhões de reais, em 2006, passando a R$ 12,5 milhões, em 2010, e R$ 13 milhões, em 2011; b) coletivas; c) de Comissão, em correlação com as áreas e as subáreas temáticas que lhes são afetas; d) de bancada estadual (Resolução n. 1/2006-CN). Cleonir Bassani. Emendas Parlamentares: uma Análise à luz dos Princípios Constitucionais. Disponível em: . Acesso em: 13-4-2011. 299 Eber Zoehler Santa Helena. Competência Parlamentar, cit., p. 23. 300 Lei Complementar n. 101, de 2000, art. 17. 301 Santa Helena, Competência Parlamentar, cit., p. 23. 302 Lei Complementar n. 101, de 2000, art. 14. 303 Santa Helena, Competência Parlamentar, cit., p. 28. 304 Francisco de Oliveira, Viagem ao olho do furacão..., in Novos Estudos CEBRAP, cit., p. 14. 305 Maria da Conceição Tavares. O planejamento em economias mistas . Registro de apresentação no Seminário Estado e Planejamento: os Sonhos e a Realidade, comemorativo dos vinte anos do Centro de Treinamento para o Desenvolvimento Econômico (CENDEC). Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA), Secretaria de Planejamento da Presidência da República (SEPLAN), projeto Gerenciamento do Setor Público, Banco Mundial, 1986, p. 23-52. 306 Sonia Draibe. Rumos e Metamorfoses. Um Estudo sobre a Constituição do Estado e as Alternativas da Industrialização no Brasil. 1930-1960. São Paulo: Paz e Terra, 1985. 307 Maria da Conceição Tavares, O planejamento..., in Seminário, cit., p. 39. 308 Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. Interpretação e Crítica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 318-319. “Um dos desafios para a implementação desse planejamento da ação estatal é discutir o como reorganizar as funções públicas do Estado, mas também e prioritariamente o que organizar.” 309 Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 282-283. 310 Gilberto Bercovici. O planejamento e a Constituição de 1988. In : Constituição Econômica e Desenvolvimento. Uma Leitura a Partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 69-86. 311 A Secretaria de Planejamento e Investimento. Como referência comparativa, interessante saber que em outros países, como a Índia, por exemplo, a coordenação dos processos de elaboração e execução do planejamento cabe ao titular da coordenação política, o Primeiro Ministro.
312 Dallari Bucci, O conceito de política pública em direito, cit., item 4.2, p. 31-36, e Controle judicial de políticas públicas: possibilidades e limites, in Políticas Púb licas, cit. 313 Isso é certo, em virtude da Constituição Federal, art. 5º, XXXV – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, embora se possa discutir o objeto do controle, se a política pública ou os atos que a compõem. No segundo caso, trata-se apenas da ampliação da perspectiva de fundo da cognição judicial, para o processamento da lide de acordo com os conceitos jurídicos estabelecidos. 314 Dallari Bucci, Controle judicial de políticas públicas..., in Políticas Púb licas, cit., p. 701. 315 Art. 273 do CPC, com a redação dada pela Lei n. 8.952, de 13-12-1994. 316 § 6º do art. 273 do CPC, acrescentado pela Lei n. 10.444, de 7-5-2002. 317 Dalmo Dallari. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. 318 Geisa de Assis Rodrigues. Ação Civil Pública e Termo de Ajustamento de Conduta: Teoria e Prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. A autora refere e insere como Anexo II da obra documento contendo as “Conclusões da Comissão da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente sobre Compromisso de Ajustamento de Conduta”. 319 Luis Roberto Proença. Inquérito Civil. Atuação Investigativa do Ministério Público a Serviço da Ampliação do Acesso à Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 149 e s. O autor refere iniciativa de articulação estratégica do Ministério Público do Estado de São Paulo na área ambiental, por meio do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça do Meio Ambiente, “no sentido de formular uma política institucional abrangente para a área ambiental, antecipando-se às demandas pontuais, com a criação de grupos de trabalho temáticos (de preservação da Mata Atlântica, dos recursos hídricos, de controle de poluição, de áreas mineradas etc.), os quais vêm procurando desenvolver linhas de ação unitária no Estado, a partir da análise do contexto fático de cada um dos temas escolhidos”. 320 Ver item 1.4, supra. 321 Cabe lembrar o spoils system norte-americano do século XIX, cf. item supra. A esse respeito, escrevia Weber, no início do século XX: “As lutas partidárias não são, portanto, apenas lutas para consecução de metas objetivas, mas são, a par disso, e sobretudo, rivalidades para controlar a distribuição de empregos. [...] Os partidos se irritam muito mais com arranhões ao direito de distribuição de empregos do que com desvios de programas”. A política como vocação, in Ciência e Política, cit., p. 69. Cf. item 1.2.b, supra.
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PLANO MESOINSTITUCIONAL: ARRANJOS INSTITUCIONAIS COMO ORGANIZAÇÃO SISTEMÁTICA DA POLÍTICA PÚBLICA. A CATEGORIA INSTITUIÇÃO E A PERSPECTIVA OBJETIVA DO GOVERNO
3.1 Instituições e institucionalismo jurídico
Neste trabalho, a noção de instituição é utilizada em duas acepções. A primeira delas, como perspectiva de aproximação para visão dos três planos de análise do fenômeno governamental: macro, micro e mesoinstitucional. O governo corresponde ao plano macroinstitucional. A ação governamental, menor unidade da atividade programada do governo, núcleo de sentido das políticas públicas, ao plano microinstitucional. E entre estes, no plano mesoinstitucional, os arranjos institucionais, políticas públicas na sua forma exterior, conjunto de elementos, iniciativas e normas que compõem o programa de ação governamental devidamente estruturado. A segunda acepção, mais estrita, designa exatamente a expressão exterior da política pública: o arranjo institucional. A institucionalidade exibe o aspecto sistemático das políticas públicas, o nexo de unidade dos vários elementos que compõem o programa de ação governamental. A iniciativa de organizar a ação consubstancia a sua dimensão objetiva, despersonalizada, e ao mesmo tempo define papéis a cada um dos envolvidos na ação, constituindo posições subjetivas jurídicas, isto é, direitos e deveres estabilizados por força de normas e estruturas jurídicas. A institucionalização também sintetiza o paradoxo entre mudança e permanência, característico do governo, uma vez que é, simultaneamente, movimento de transformação, combinado com a intenção de dar a ela caráter permanente, consolidado em estruturas e na organização jurídica estatal. A categoria instituição presta-se à conexão entre vários campos do conhecimento que se ocupam das políticas públicas. As instituições são objetos reconhecidos tanto pela ciência política como pela economia e pela sociologia e, a partir delas, também pela ciência da gestão pública, o que lhes confere relevo para a composição de totalidades articuladas, aglutinações de elementos que no conjunto adquirem um sentido social específico. Várias teorias utilizam-se dessa figura para o diálogo interdisciplinar, entre elas o neoinstitucionalismo histórico (ciência política, história e sociologia), o neoinstitucionalismo organizacional (gestão pública, a sociologia das organizações e ciência política) e a escolha pública (ciência política e economia). Entretanto, o trabalho com instituições passa por dificuldades que, em certo sentido, o aproxima dos percalços na análise de políticas públicas; a abrangência de cada uma das noções é muito vasta e suas aplicações, excessivamente heterogêneas, além de ambas carecerem de uma metodologia estruturada322. Dentre as várias acepções do termo instituição, é muito difundida na ciência política a proposição de Douglas North, que as definiu, sinteticamente, como “regras do jogo”323, referindo-se às regras eleitorais,
estrutura dos partidos políticos, relações entre os vários ramos do governo, sindicatos e outros elementos que se consideram conformadores do processo político. A relevância das instituições, segundo essa visão, está em permitir a compreensão das decisões coletivas não como mera soma de interesses individuais, mas como resultado de uma forma de integração desses324. Os processos de decisão coletiva, tomados como sinônimos das instituições, “não são neutros, mas produzem desvios sobre as preferências individuais singelamente consideradas”325. Outro aspecto apontado pelas teorias institucionalistas é o traço de persistência presente nas instituições, a reprodução de práticas com base em regras sociais, aí compreendidas as organizações formais, os costumes informais e os processos que estruturam as condutas326. As instituições seriam fórmulas sociais de “estabilização espontânea”, o que acentua a aptidão historicista do institucionalismo, voltado à captura dos fatores históricos, inclusive jurídicos, que determinam a organização e a permanência desses arranjos, conferindo-lhes estabilidade. No campo jurídico voltado à ação, esse cabedal analítico é útil, na medida em que permite replicar estratégias, na composição de novas instituições. A compreensão das relações entre os vários institucionalismos é sem dúvida uma via interessante para o estudo das políticas públicas como objetos multidisciplinares por excelência327. Mas optou-se aqui por não explorar esse aspecto. A ideia de instituição como “regra do jogo” é excessivamente simplista para o direito, em que ela tem forte enraizamento, como são exemplos, no âmbito privado, o contrato, a propriedade, os direitos sucessórios e o testamento, o casamento, a personalidade, as obrigações de reparação, entre outras. As instituições jurídicas são arranjos reconhecidos em geral, independentemente de formas diversas no direito positivo; definem-se como sistemas de regras, embora nem todo sistema de regras corresponda a uma instituição. São realidade social perceptível, assim como outras instituições sociais, que com elas não se confundem, tais como as universidades, escolas, hospitais, cortes e Parlamentos, cabendo às primeiras identidade jurídica, enquanto as últimas apresentam identidade organizacional 328. Neste trabalho o propósito é desenvolver a compreensão especificamente jurídica das políticas públicas, e neste capítulo, em particular, identificar, a partir da teoria geral do direito, conceitos pertinentes para a compreensão de como as escolhas políticas se traduzem nas formas e processos urídicos que moldam a política pública. As teorias institucionais do direito, especialmente as de Santi Romano e Maurice Hauriou, foram formuladas no momento de formação do direito público, na Itália e na França, respectivamente, os países que forneceram as matrizes de organização administrativa baseada no direito administrativo e nessa medida proveem um arcabouço conceitual interessante para a compreensão urídica das políticas públicas.
a) O ordenamento jurídico de Santi Romano: objetivação e organização Santi Romano foi um dos fundadores do direito público italiano, discípulo de Vittorio Emanuele Orlando. Foi professor de diversas universidades na Itália, autor de obras de referência em direito constitucional, administrativo, internacional e, na condição de jurista de grande reputação, ocupou o cargo de presidente do Conselho de Estado italiano no período fascista (1928-44)329. A teoria institucionalista sobre “o conceito de ordenamento jurídico” é reconhecida como uma de suas grandes obras, no campo da teoria geral do direito. A proposição principal de L’Ordinamento Giuridico330 é a ideia de objetivação por meio do ordenamento jurídico. Pela objetivação, agregam-se e se superam os interesses individuais num plano superior, um conjunto ou complexo de normas que têm unidade e sentido como ordenamento.
A outra ideia-chave, que complementa a primeira e que dá à teoria sua marca para o direito público, é a de organização. O ordenamento jurídico é sinônimo de organização e esse é o elemento que confere unidade ao sistema ou organismo e faz com que o todo seja mais que a soma das partes331. “[...] o direito, antes de ser norma, antes de dizer respeito a uma simples relação ou uma série de relações sociais, é organização, estrutura, posição dessa mesma sociedade na qual se desenvolve e que ela constitui como unidade, como ente em si”332. As instituições são entes ou corpos sociais, com as seguintes características: a) existência objetiva e concreta, devendo sua individualidade, ainda que imaterial, ser exterior e visível; b) natureza social e não puramente individual; c) “fechamento”, individualidade própria; d) firmeza e permanência, cuja identidade não se perde com a mudança de seus elementos333. O ponto de partida de Santi Romano é a recusa à ideia de que o direito seja redutível à norma. O direito de um país, a Itália ou a França, por exemplo, não é apenas a coleção de normas editadas em cada um deles. “[...] o direito de que falamos é alguma coisa de mais vivo, de mais animado: é, em primeiro lugar, a complexa e variada organização do Estado italiano ou francês; os numerosos mecanismos ou engrenagens, a ligação de autoridade e força, que produzem, modificam, aplicam, garantem as normas jurídicas, mas não se identificam com essas. Em outros termos, o ordenamento jurídico, em sentido amplo, é uma entidade que se move em parte segundo as normas, mas principalmente, move, quase como peças num tabuleiro, as próprias normas, que assim representam antes o objeto e também o meio da sua atividade, e não um elemento da sua estrutura” 334.
O direito não se reduz às normas, mas compreende também a entidade que põe a norma; essa é a tese fundamental. O poder de estabelecer a norma “é o próprio direito e a norma não é senão a sua voz, o melhor, uma de suas vozes, um dos modos pelos quais opera e atinge os seus fins”335. O ordenamento urídico, por conseguinte, também não se circunscreve às normas, mas ainda que as contenha, parte sempre de um momento anterior, lógica e materialmente. “Cada ordenamento jurídico é uma instituição e vice-versa, cada instituição é um ordenamento jurídico”336. A instituição é expressão da objetividade do direito, um de seus aspectos formais distintivos, que consagra a despersonalização do poder. Exprimindo a “consciência social objetiva”, estabelece a regra, transcendendo o indivíduo, e se constitui numa esfera de unificação de interesses individuais, quando as relações entre os indivíduos enfrentam divergências e restrições. “O processo de objetivação, que dá origem ao fenômeno jurídico, não se inicia com a emanação de uma regra, mas em um momento anterior: as normas não são senão uma manifestação, uma de suas várias manifestações, um meio com que se faz valer o poder daquele eu social de que se fala” 337.
A objetivação do direito é a propriedade que faz com que o ente criado seja distinto das pessoas que o criaram. O novo ente perdura no tempo, para além das pessoas que o instituíram. As relações jurídicas por ele estabelecidas não se confundem com aquelas firmadas pelos seus instituidores ou integrantes. Objetivação, em suma, é o oposto da dimensão subjetiva do direito, cuja expressão-síntese é a relação urídica e as posições subjetivas em que ela se desdobra, examinadas no capítulo 2. “Em primeiro lugar, a instituição não se resolve nunca em uma simples relação ou em várias relações jurídicas determinadas. A relação jurídica diz respeito à concepção subjetiva do direito [...] A relação não é, portanto, uma entidade em si, mas uma relação entre diversas entidades, adotada essa palavra em sentido amplo. A instituição, por sua vez, é o direito objetivo, e é o direito objetivo porque é um ente, um corpo social, que tem, no mundo jurídico, uma existência efetiva, concreta, objetiva. Essa implica relações, mas não se resolve nelas, antes é a elas preordenada, no sentido de que consiste naquela organização ou estrutura que é necessária para que as próprias relações, se e quando se desenvolvem na sua órbita, possam ser qualificadas como jurídicas” 338.
Em resumo, “a instituição é unidade; a relação, jurídica ou não jurídica, postula a pluralidade”339. A objetivação resultaria de um processo de diferenciação, pelo qual o novo ente, instituído com a formação de um ordenamento jurídico, passa a se distinguir das pessoas que o instituíram. E isso se aplica tanto a empresas como ao Estado. No caso das empresas, um dos traços do capitalismo é a autonomização do controle do capital em relação às pessoas dos proprietários, e a sociedade anônima é a maior expressão desse fenômeno. No caso do Estado – a instituição “típica e característica”340 – o processo de objetivação representa a formação de uma estrutura jurídica permanente, que se descola da pessoa do soberano341. A objetivação assegura, ainda, a continuidade da instituição, independentemente das pessoas, no caso do Estado, desvinculando-se das preferências pessoais e irresponsabilidade do monarca. Este detém apenas uma osição no reino, um elemento subjetivo que passa a integrar uma noção agora objetivada, o Estado342. “[...] o Estado é sempre e sobretudo um regime, um ordenamento jurídico, uma instituição da qual o monarca, os súditos, o território, as leis, não são senão elementos. [...] A antiga questão de saber se o rei, em certos Estados, está acima das leis, é muito diferente daquela se ele está acima do Estado. O rei pode considerar-se acima de seus súditos, da sua terra, das leis por ele emanadas e ab-rogadas: se se quiser usar a terminologia moderna, se pode também dizer que os súditos, terra e leis sejam objeto do seu poder; mas em todos os casos, se trata apenas de elementos do Estado, não do Estado inteiro, no qual se compreende o próprio monarca. Este, em outros termos, não tem um direito de domínio meramente individual, mas um direito que lhe compete como membro soberano do Estado e que portanto implica uma posição sua neste último” 343.
A institucionalização converte em jurídicas questões antes postas em termos apenas políticos. O fato de se tratar de um poder eventualmente absoluto, num raciocínio em tese, não altera a circunstância de que a objetivação se faz pela separação da esfera pessoal daquela institucional. E esta última se expressa sempre na forma jurídica, mesmo que se trate de alterar as próprias leis que conformam a instituição344. A objetivação é necessária à modernidade. A identidade entre ordenamento jurídico e instituição é posta em questão quando se trata do Estado, especialmente o Estado em formação. A resposta de Santi Romano demonstra o que vem a ser o processo de objetivação do direito, que “põe as normas”. A formação de um Estado, segundo a visão tradicional, seria um fenômeno do poder; a potestade do Estado seria uma potestade de fato, um atributo pré-jurídico do próprio Estado, o que seria ilustrado com o seguinte raciocínio: “o direito é posto pelo Estado; então o Estado antecede o direito; então aquilo que constitui o Estado antecede o direito”. Ao que refuta Santi Romano: “[...] Estado e ordenamento jurídico estatal não são [...] dois fenômenos diferentes, nem manifestações de um mesmo fenômeno, mas vice-versa são coisas idênticas e, portanto, isso significa que um atributo essencial do Estado, como a sua potestade, não é nunca extra ou pré-jurídico, mas nasce com ele e com o seu ordenamento, que sempre a disciplina e regula. Que esse então seja o poder de pôr um novo direito, isso não quer dizer que preceda o direito: também essa sua afirmação e manifestação se move na órbita que lhe é permitida por um direito preexistente, cuja primeira vida é a mesma desse poder” 345.
Reafirma-se e se reforça, portanto, a correlação entre Estado e direito. A instituição é uma forma de organização social346 e também ordenamento jurídico, “uma esfera mais ou menos completa de direito objetivo”. Há uma implicação recíproca entre instituições e direito e essa é a terceira ideia-chave, a de que a objetivação e a organização ocorrem por meio do direito: “[...] o direito é o princípio vital de cada instituição, aquilo que anima e reúne os vários elementos de que essa resulta, que determina, fixa e conserva a estrutura dos entes materiais. Reciprocamente a instituição é sempre um regime jurídico”347. O caráter jurídico é dado pelo poder social que determina a instituição. A organização, assim, não é
apenas uma norma ou complexo de normas; é posição, estruturação de um ente social, mas é principalmente um fenômeno que se verifica pela sua execução, o que revela o caráter sociológico e empirista da formulação institucionalista. A noção de organização tem especial destaque para o direito público, uma vez que indica o relevo peculiar do direito não como limite, mas como estrutura e função das tarefas estatais. O Estado é a primeira e a mais importante entre as instituições. É uma instituição complexa, instituição de instituições, e ao mesmo tempo parte de uma instituição mais ampla, a comunidade internacional. Tem como instituições subordinadas, no seu interior, as comunas, as províncias, os órgãos, assim como outras unidades, mais ou menos autônomas, mais ou menos independentes, no que respeita aos meios, mais o menos perfeitas, tais como os Poderes Legislativo, Judiciário e administrativo, as escolas, academias etc.348. Em relação ao Estado, “o direito é e não pode deixar de ser o seu princípio de vida, sua estrutura orgânica, sua essência”349. Independentemente das relações jurídicas estabelecidas pelo Estado, o seu caráter institucional é definido não por essas relações, mas pela sua organização, que abriga os componentes subjetivos sob o objetivo350. A teoria institucionalista de Santi Romano permite compreender o mecanismo de tradução do poder político em fenômeno jurídico, com a noção de objetivação, combinando-o com uma visão publicista da organização, que corresponde ao ordenamento jurídico. A teoria romaniana é notável se considerarmos que data de 1918, portanto, antecede a crise de 1929, a Segunda Guerra Mundial e as circunstâncias que acentuaram o desenvolvimento do direito no sentido da intervenção estatal, dos incentivos governamentais e mecanismos jurídico-institucionais que vieram a consagrar-se ao longo do século XX351.
b) Hauriou: ideia-diretriz e poder organizado Hauriou é contemporâneo de Santi Romano e assim como ele é um dos autores pioneiros do direito público, com obras em direito administrativo, em sociologia do direito e diversos outros temas de relevo no desenvolvimento das bases jurídicas do funcionamento do Estado. A teoria institucionalista de Hauriou, cujos contornos iniciais se apresentavam no seu Précis de Droit Public, de 1916, foi publicada de forma autônoma como o ensaio Teorie de l’Institution e de la Fondation. Essay de Vitalisme Social352, em 1925, mais amplamente difundido. Santi Romano, que conhecia a versão inicial da teoria de Hauriou353, destaca a importância de sua obra, tanto por introduzir no mundo jurídico o conceito de instituição como por desenvolvê-lo desvinculado da noção de personalidade jurídica, com relevo à “individualidade objetiva” da instituição354. Apesar disso, discorda da admissão, pelo francês, da figura da instituição como fonte de direito. Para Santi Romano, a instituição é o direito, isto é, existe perfeita identidade entre a instituição e o ordenamento jurídico (“cada ordenamento jurídico é uma instituição e vice-versa, cada instituição é um ordenamento jurídico”). Apesar das distinções entre as duas teorias, ambas têm pontos de contato evidentes, na composição e nos argumentos, que lhes conferem força explicativa para a compreensão da dimensão institucional do Estado e o papel do direito na sua organização. A teoria de Hauriou é apresentada num desconcertante ensaio sobre o “vitalismo social”. Na introdução, as instituições são apresentadas como “a categoria da duração, da continuidade e do real”355, entendimento que se aplica não apenas às instituições jurídicas, mas também às da história. Haurio considera necessário enfrentar a objeção que denomina “a querela do objetivo e subjetivo”. Esse ponto
merece ser aprofundado, porque, embora aparentemente distancie a formulação de Hauriou da de Santi Romano, na verdade, conforme análise mais detida, aproxima os dois autores na fundamentação objetivista, predominante para o segundo e complementar para o primeiro, do institucionalismo. A dicotomia subjetivo/objetivo é apresentada da seguinte maneira: “Os juristas entendem por direito subjetivo tudo o que, em direito, se mantém pela vontade consciente de sujeitos determinados, como, por exemplo, as situações contratuais e as disposições testamentárias chamadas de última vontade; pelo contrário, entendem por direito objetivo tudo o que, em direito, se mantém sem a ajuda da vontade consciente dos sujeitos determinados e que, dessa maneira, parece manter-se por si mesmo, como, por exemplo, uma regra de direito consuetudinário” 356.
O direito, na verdade, seria composto por essa dualidade, em que coexistem elementos subjetivos e objetivos. A radicalização subjetivista de meados do século XIX, representada pelas noções de personalidade jurídica e direito subjetivo, teria sido seguida de uma contraposição objetivista. A regra de direito objetivo, expressão, por excelência, dessa última visão, compondo-se do conjunto de leis e regulamentos e a “ordem pública”, no direito francês com a obra de Duguit, que rejeita a ideia de direito subjetivo357. Por influência de Durkheim, expressa-se uma concepção de base sociológica, que permite transcender a dimensão individual, “a regra de direito é um produto do meio social, uma regra aceita como obrigatória pela ‘massa das consciências’”358. A formulação da teoria da personalidade jurídica do Estado, ponto essencial nos primórdios da teoria jurídica do Estado, como a vontade subjetiva da pessoa Estado, vontades do legislador ou do governante, representa a tentativa de fundir as duas visões359. Os limites do direito objetivo, contudo, segundo Hauriou, são inerentes à sua inaptidão para a criação das inovações sociais. “Esta é uma contraverdade por demais evidente; o meio social não tem mais que uma força de inércia que se traduz por um poder de intensificação das iniciativas individuais, quando as adota”; “se o meio social fosse dotado de um poder criador, a regra de direito seria um deplorável instrumento de criação, porque o princípio que existe nela é um princípio de limitação. As regras de direito são limites transacionais impostos às pretensões dos poderes individuais e dos poderes das instituições: são regulamentos que se antecipam aos conflitos”360. E a tensão entre objetivismo e subjetivismo é apresentada a partir do problema-limite do surgimento das instituições, de forma análoga ao que faz Santi Romano: “[...] se é verdade que as regras de direito são, para as instituições, um elemento de conservação e de duração, não se pode concluir disso que seja o agente de sua criação. Nisso reside todo o problema: trata-se de saber onde se encontra, na sociedade, o poder criador; se são as regras de direito que criam as instituições ou se são as instituições que engendram a regra de direito, graças ao poder de governo que contêm”361.
A resposta de Romano, como sabemos, é que o mesmo poder criador que engendra as instituições faz nascer o direito; há uma plena identificação entre instituição e ordenamento jurídico. A resposta de Hauriou se apresenta como composição da dualidade, na medida em que “os elementos subjetivos são os que constituem as forças criadoras e, portanto, a ação; os elementos objetivos, a regra de direito, o meio social, a ordem pública, não são senão elementos de reação, de duração, de continuidade”362. “As grandes linhas dessa nova teoria são as seguintes: uma instituição é uma ideia de obra ou empresa que se realiza e dura juridicamente em um meio social: para a realização dessa ideia, se organiza um poder que lhe proporciona os órgãos necessários; de outra parte, entre os membros do grupo social interessado na realização da ideia, se produzem manifestações de comunhão dirigidas por órgãos do poder e regulamentadas por procedimentos. [...] As instituições nascem, vivem e morrem juridicamente; nascem por operações de fundação que lhes fornecem seu fundamento jurídico ao continuar-se; vivem uma vida ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, graças a operações jurídicas de governo e de administração repetidas
e, ademais, ligadas por procedimentos; por fim, elas morrem por operações jurídicas de dissolução ou ab-rogação. Deste modo, as instituições representam juridicamente a duração, e sua urdidura sólida se cruza com a trama mais frouxa das relações jurídicas passageiras”363.
A despeito dessa composição, Hauriou adota uma categorização dúplice, admitindo as chamadas “instituições-pessoas” e as “instituições-coisas”. As do segundo tipo, entre as quais se define a própria regra de direito, não correspondem a um princípio de ação ou empresa, mas, ao contrário, a um princípio de limitação. Seu contorno exato não resta claro, até porque o desenvolvimento que se segue no texto não se ocupa delas, mas pode-se inferir que se trata das estruturas permanentes do Estado. Quanto às primeiras, aproximam-se bastante das instituições definidas por Santi Romano, uma vez que se trata dos “corpos constituídos” (Estados, associações, sindicatos). São elas as instituições-pessoas ou instituições corporativas, que correspondem à teoria de Hauriou conforme a conhecemos. Os elementos da teoria institucional de Hauriou são três: “1ª) a ideia da obra a realizar em um grupo social; 2ª) o poder organizado posto a serviço dessa ideia para sua realização; 3ª) as manifestações de comunhão que se produzem no grupo social a respeito da ideia e de sua realização”364. A ideia-diretriz talvez seja a marca mais visível da teoria institucionalista de Hauriou e o que, a despeito da objetividade e concretude com que foi descrita, associa essa teoria a uma aura um tanto mística, como se da “ideia”, metafísica e intangível, pudesse evolar a instituição. Contudo, na locução ideia-diretriz, o segundo componente, sinônimo de plano de ação e organização em vista da ação, é tão marcante quanto a componente ideológica; “na ideia-diretriz existe um elemento de plano de ação e de organização em vista da ação, que supera singularmente a noção de fim”365. A noção de fim vincula-se ao resultado, enquanto a organização e o plano de ação referem-se aos meios que devem ser empregados para alcançar os resultados366. A ideia-diretriz também não se confunde com a noção de função. “A ideia de Estado sobrepassa singularmente a noção das funções do Estado. A função não é senão a parte já realizada ou, pelo menos, já determinada da empresa; na ideia-diretriz dessa subsiste uma parte indeterminada e virtual que alcança até mais além que a função. A separação dos dois domínios é nítida no Estado; existe o domínio da função, que é o da administração e da marcha determinada dos serviços e existe também o domínio da ideia-diretriz, que é o do governo político, o qual trabalha no indeterminado. Agora bem: é um fato que o governo político apaixona os cidadãos muito mais que a marcha da administração, de tal maneira que o que há de indeterminado na ideia-diretriz exerce sobre os espíritos uma ação maior que o que está determinado sob a forma de função” 367.
Depois de rejeitar as aproximações da ideia-diretriz em relação às noções de fim e função, Haurio aproxima-a da noção de objeto. E com isso, curiosamente, o viés objetivista da figura é realçado, na mesma linha da objetivação de Santi Romano. É pela ideia-diretriz que “a empresa vai objetivar-se e adquirir uma individualidade social”368. Não obstante, o elemento subjetivo, no institucionalismo de Hauriou, convive em posição de equivalência com o objetivo. A ideia da empresa, não no sentido econômico, mas com a significação de “empreendimento” social, para ele, está associada a um componente subjetivo obrigatório: “não existe instituição corporativa sem um grupo de interessados”. “Este grupo pode ser determinado em parte pela constrição exercida pelo poder, mas o ascendente da ideia de obra e o interesse que os membros têm em sua realização desempenham um papel muito importante enquanto explicam o que as adesões têm de voluntárias”369. Cada interessado é sujeito da ideia da empresa ou do Estado, tem os riscos e a responsabilidade por seu sucesso. Tem a posição equivalente à de um acionista da “empresa do Estado”, e é justo que adquira, em contrapartida, um direito de controle e participação no seu governo. O segundo elemento da instituição é o poder de governo organizado. Por ele, a organização opera a
transformação do elemento subjetivo – “o poder é uma forma de vontade” –, ela “espiritualiza o elemento humano da organização”370. A organização do poder de governo se resume em dois princípios: a separação de poderes e o regime representativo. O princípio do regime representativo corresponde à necessidade de forjar uma visão comum, que possa ser considerada como do corpo, formalmente distinta e destacada da de cada um dos seus membros. Já a separação de poderes, formulada em termos inteiramente distintos da teoria clássica, corresponde a uma separação de competências; no Estado moderno, “o Poder Executivo tem a competência da decisão executória; o poder deliberativo, a competência da deliberação e o poder eleitoral, a do assentimento”371. Essas competências são distribuídas em órgãos, dos quais se destaca o poder do sufrágio, que é exercido pelos eleitores da circunscrição. O fenômeno da supremacia das competências é que transmuda a força, o poder de dominação, em “poder de direito suscetível de criar direito”372. E embora a organização do poder lide muitas vezes com motivações egoístas, alguns fatos demonstram a força da explicação institucional, por exemplo, a submissão dos chefes militares ao poder civil, nos Estados modernos. “[...] o poder de governo é uma força de ação espontânea e não somente o chamado ao cumprimento de uma função, já que muito amiúde esta força de ação se rebela contra sua função; logo a história revela o poder de ascendência que possui a ideia de obra a realizar, posto que lenta mas segura e progressivamente, mesmo no Estado, as paixões fogosas dos governantes terminaram por sujeitar-se ao seu serviço [...]” 373.
Essa conformação do poder à organização se sustenta sobre o “espírito público compenetrado na ideia de Estado”, uma mentalidade criada pela ascendência da “ideia de obra a realizar”. Por fim, o terceiro elemento das instituições é a chamada “manifestação de comunhão”. Haurio utiliza-se da figura da refração para ilustrar a disseminação de uma ideia (em especial a ideia-diretriz) pelo meio social. “A ideia se refrata em conceitos similares em milhares de consciências”374. A força e a persistência residem no seu caráter objetivo, isto é, no fato de não se tratar de uma ideia de um indivíduo, mas de uma noção latente no corpo social, que apenas é “encontrada” por ele. É o caráter objetivo da obra que lhe permite passar a outro espírito sem perder a identidade375. Hauriou questiona a noção de consciência coletiva, conforme sustentada por Durkheim, com base na formação de uma “opinião intermediária” no campo social. Entende ele que, “ao contrário, a refração de uma mesma ideia-diretriz em uma pluralidade de consciências individuais reserva o papel dirigente das mais altas consciências às consequências que devem obter-se pela ação”. O papel das elites não se confundiria com a evolução do meio376. Nesse sentido, a posição de Hauriou é próxima daquela formulada posteriormente por Gramsci, que distingue a filosofia do senso comum e atribui ao intelectual orgânico, por meio da filosofia da práxis, a responsabilidade de “elaborar uma filosofia que – tendo já uma difusão ou possibilidade de difusão, pois ligada à vida prática e implícita nela – se torne um senso comum renovado pela coerência e pelo vigor das filosofias individuais”377. Essa passagem está relacionada com a ideia gramsciana de inspirar a massa a uma “concepção de vida superior”. E embora a conclusão de Hauriou reafirme o caráter dúplice do direito, subjetivo e objetivo378, sua convicção de que a objetividade das instituições é a contribuição mais importante do institucionalismo (em convergência, finalmente, com o conceito de objetivação de Santi Romano) é textual: “O erro de Léon Duguit, quando edificou seu sistema de direito objetivo, foi o de apostar no direito objetivo, de apostar na regra de direito. O verdadeiro elemento objetivo do sistema jurídico é a instituição; é verdade que ela contém um germe subjetivo que se desenvolve por meio do fenômeno da personificação; mas o elemento objetivo subsiste no corpus da instituição e só esse corpus, com sua ideia-diretriz e seu poder organizado, já é muito superior em virtude jurídica à regra de direito. São as instituições que fazem a regra de direito, não
são as regras de direito que fazem as instituições”379.
A contribuição de Hauriou, assim como a de Santi Romano, ao mesmo tempo que fundamentam a disciplina jurídica do Estado não restrita às suas normas, mas vinculada às instituições, indicam os conceitos fundamentais de organização e poder organizado pelo direito como as bases para a uridificação do Poder Público do seu tempo. O detalhamento conferido por Hauriou ao aspecto organizacional das instituições, bem como ao movimento de institucionalização, assim como o conceito de objetivação em Santi Romano, associado à noção de ordenamento jurídico, representam uma articulação interessante das noções de poder e direito, abordagem publicista que renova a tradição das instituições e oferece importantes perspectivas de desenvolvimento da abordagem jurídica das políticas públicas.
c) A contribuição das teorias institucionalistas à compreensão jurídica das políticas públicas A despeito da acuidade dos chamados “corifeus” do institucionalismo jurídico, sua elaboração teve influência relativamente modesta, no fornecimento de categorias de estruturação do pensamento jurídico, campo da teoria geral do direito, na comparação com suas homólogas normativistas, em especial o positivismo kelseniano, sendo mais aplicadas no direito administrativo e constitucional. Os problemas de aplicação prática do institucionalismo jurídico decorrem, talvez, de uma certa “fluidez”das instituições, dificilmente redutíveis a elementos puramente objetivos, abrigando, ao contrário, idiossincrasias e vícios consagrados pelo “costume social”. Ele tenderia, por isso, a ser conservador, afastando-se da evolução racional pautada pela busca de generalidade e abstração. Carl Schmitt examinou os diferentes tipos de pensamento jurídico, demonstrando o lugar do pensamento institucionalista380, ou “do ordenamento concreto”, na sua formulação, que se diferenciaria do normativista, na medida em que este último atuaria na lógica “do conflito”, compondo argumentos, com base nas normas, apenas para justificar a decisão judicial, enquanto o pensamento do ordenamento concreto seria próprio dos tempos de paz, normalidade e estabilidade381. Essa distinção realça uma característica bastante presente na cultura jurídica atual, em que as disputas udiciais têm proporção exacerbada, na formação e na militância profissional jurídicas, se comparado o diminuto peso relativo das questões judicializadas, em face da escala e repercussão social de questões de organização, pré ou extrajudiciais. Santi Romano já registrava esse fenômeno, no início do século XX, postulando a superação da “tradição constituída com base na prática do direito privado, de reduzir o direito às regras de decisão, no âmbito do processo judicial”382. O pensamento do ordenamento concreto, para Schmitt, valorizaria a “elaboração espontânea” do direito pelas comunidades, com base em seus “sentimentos” e na “situação estamental concreta”. Em outras palavras, “os costumes, regularidades e previsibilidades do ordenamento”, essencialmente no plano privado, retomando-se o fio do direito natural383. O ordenamento concreto recolheria as concepções de direito, provendo os conceitos que orientam a elaboração e a aplicação das normas384. Essa visão, diga-se, também está presente no neoinstitucionalismo jurídico mais recente, que considera as instituições “conceitos-premissas”, entendimentos consolidados que servem como referências na criação da lei e, posteriormente, no momento de sua aplicação. Nesse sentido, não são as normas que constituem as instituições, mas, ao contrário, as instituições que dão às normas sua força385. Um dos problemas do institucionalismo reside no aspecto fluido das instituições, o que dificulta sua apreensão e sistematização racional. No contraponto com a teoria normativista poder-se-iam identificar formas para diminuir essa lacuna. A teoria pura do direito, de Kelsen, busca apartar de elementos políticos ou sociológicos aquilo que
seria específico no direito, o “direito positivo”. Ainda que pareça chocante que se pudesse cogitar de uma teoria do direito desconectada de seu fundamento axiológico primeiro – a justiça –, essa proposição, adotada por Kelsen como ponto de partida, é, evidentemente, um recurso metodológico, no sentido de buscar uma compreensão específica das questões normativas386. Apesar de ser talvez o jurista de maior influência na formação de uma concepção técnico-jurídica do direito, reconhecida por seus debatedores, Kelsen é muitas vez mal compreendido, sem que se lembre que dessa mesma concepção decorreu a criação do mecanismo jurídico do controle concentrado de constitucionalidade, positivado pela primeira vez na Constituição austríaca de 1920387 e que está na base da concepção normativa da Constituição, segundo a qual as disposições desta não são meros enunciados políticos, mas prescrições exigíveis perante os tribunais. Isso amplia, na prática, em muito, o controle judicial, em relação ao universo anteriormente restrito ao direito privado. É verdade que à época da criação do controle concentrado já funcionava, havia mais de um século, o controle de constitucionalidade difuso, criação da Suprema Corte americana388. No entanto, sem a concepção formalista kelseniana, não se teria o controle propriamente urídico das “normas políticas”, isto é, as normas constitucionais, que foi o que se generalizou com o constitucionalismo pós-positivista. A consagração dos tribunais constitucionais, na grande maioria das constituições dos movimentos de redemocratização pós-segunda guerra, representa de forma emblemática esse fenômeno e é a inovação – normativa, a partir de uma elaboração teórica – que altera, na prática, a ordem jurídica a partir da segunda metade do século XX. Talvez a questão mais relevante a opor o institucionalismo jurídico clássico e o normativismo kelseniano seja o problema das fontes do direito. O institucionalismo rejeita a redutibilidade do Estado às normas, considerando-o “a instituição das instituições, em cujo ordenamento numerosas outras instituições, independentes em si, encontram sua proteção e ordem”389. E mantém uma reserva em relação ao direito estatal, que arriscaria “perturbar os equilíbrios e destruir as instituições”390. Enquanto Schmitt concorda com Santi Romano quanto à precedência do ordenamento em relação à norma391, o positivismo kelseniano adota como premissa a estatalidade do direito, isto é, a correspondência entre direito e Estado. A ideia de redução do direito ao direito estatal tem outros opositores. A ideia de uma ordem jurídica normativa baseada em um conceito idealizado de validade, cuja manifestação última é a norma fundamental hipotética, pedra angular do positivismo, é recusada não apenas pela teoria institucionalista, mas também pelo realismo jurídico, representado pela teoria empirista de Alf Ross, que a considera metafísica. Partindo, assim como Schmitt, de uma abordagem tríplice das visões do direito – pensamento analítico (“formalismo metodológico”), de Austin e Kelsen, baseado no sistema de normas positivas; pensamento ético, centrado na ideia de justiça, como critério para a “retidão” de uma norma jurídica, a partir do direito natural; e pensamento centrado na interação do direito e a sociedade, isto é, “o direito tal como se desenvolve realmente na vida da comunidade”392 –, Ross confere relevo a esta última abordagem, que tem muitos pontos em comum com o pensamento institucionalista, a despeito da argumentação própria de cada uma. A teoria empírica baseia-se na apreensão sociológica da realidade e na asserção de que só se poderia considerar direito o “ordenamento concreto vigente”, assim exemplificado: “o direito de Illinois, da Califórnia etc.”. “Direito vigente significa o conjunto abstrato de ideias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação, o que por sua vez significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque são experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias”393. A centralidade da dimensão fática acentua o aspecto não estatal do direito e é essa a interseção relevante com o pensamento institucionalista. Assim como neste, a teoria de Ross destaca a possibilidade
de aplicação espontânea do direito: “A maioria das pessoas obedecem ao direito não só por receio da polícia e das sanções sociais extrajurídicas (perda da reputação, da confiança etc.), mas também por acato desinteressado ao direito. O cidadão comum também é animado – num maior ou menor grau – por uma atitude de acato ao direito, à luz do qual os governantes aparecem como “poderes legítimos” ou “autoridades”, as exigências do direito como credoras de acato e a força que é exercida em nome do direito não é considerada como mera violência, mas sim justificada na qualidade do que respalda o direito. Quando as regras do direito estão bem estabelecidas, essa atitude se torna automática, de sorte que nenhum impulso surge no sentido de contrariar o direito” 394.
O problema dessa proposição, no entanto, é não conferir relevo à distinção dos conceitos de vigência e efetividade. Isso a torna problemática para aplicação numa ordem jurídica caracterizada por ampla margem de inefetividade, como a do Brasil, o que será comentado mais à frente395. A visão institucionalista contém elementos que a aproximam de uma e de outra abordagens, tanto a formalista como a empírica, e nisso reside o seu interesse396. A instituição jurídica leva em conta o fenômeno social que está “por trás” do direito, aquilo que leva à sua produção. Essa consideração da “sociedade real” empresta a densidade social necessária para enfrentar os dilemas próprios de um Estado que aspira à condição de democracia desenvolvida, mas onde não se logrou a efetividade do direito e onde as instituições muitas vezes são meramente “nominais”, o mesmo ocorrendo com o Estado, que, pela ótica institucionalista, é a instituição de instituições. O diálogo dos vários tipos de pensamento jurídico é rico para a crítica dos processos de criação do direito que se pretendem mais próximos das práticas sociais e, com isso, mais vocacionados a tornar-se planos de organização da vida social, dotados de efetividade. O que se propõe é um novo tratamento para a construção do direito estatal, com forte peso do processo social que lhe dá origem, no sentido do institucionalismo romaniano, “o direito são as normas e o que põe as normas”. As políticas públicas ocupam esse espaço, canalizando parte das tensões sociais – que tradicionalmente desaguavam na disputa pelo texto da lei – para o campo da ação governamental, que alarga o contexto de formação do direito, ainda que este mantenha compulsoriamente, por força do princípio da legalidade, sua posição central naquilo que respeita à ação do Estado. Nessa perspectiva, a “caixa de ferramentas”397 para a construção das políticas públicas traduz-se num arsenal de categorias urídicas, teoricamente bem estabelecidas e conscientemente conectadas a aspectos tratados pela economia e pelas demais ciências sociais, se o que se pretende são efeitos sociais duradouros e de interesse público. Os programas de ação governamental – direito estatal por definição – devem ser formados e validados, com base na combinação orgânica de práticas sociais virtuosas com categorias urídicas cultivadas na democracia. Esse seria um caminho realista, que levaria em conta os diferentes estágios de amadurecimento e planos de interlocução existentes em relação a cada um dos diversos temas e problemas enfrentados pelo governo, conforme se definam os arranjos institucionais. 3.2 Formação jurídica dos arranjos institucionais, na lógica de um “regime de efeitos”
a) Arranjos e modelos institucionais A partir das formulações teóricas apresentadas no tópico anterior, passa-se a considerar o conceito de instituição como qualificativo para os arranjos institucionais que consubstanciam as políticas públicas. Instituição e institucionalizar não são sinônimos, mas termos correlatos. As políticas públicas não são entes ou corpos, mas materializam-se em arranjos de normas, decisões e medidas, correspondendo mais à figura das “tramas”, envolvendo competências públicas e interesses individuais e coletivos, em função de um objetivo comum. Daí a necessidade de certas mediações, para aplicar a teoria das
instituições às políticas públicas. Os arranjos institucionais que materializam as políticas públicas apresentam um caráter sistemático que justifica que, embora “sem corpo”, a eles se apliquem, pelo menos em parte, os atributos próprios das instituições. Há uma diferença de intensidade; a agregação nos arranjos institucionais não tem o mesmo caráter e permanência daquele que organiza os elementos nas instituições. A institucionalização é a objetivação e a organização por meio da ordenação jurídica. É o que mantém a agregação, a força que impede a dispersão dos elementos e permite a caracterização destes como componentes de um arranjo funcional, a despeito de suas naturezas distintas. O adjetivo institucional refere-se ao conjunto de estruturas jurídicas, políticas e sociais que o tornam um objeto definido, distinto do ambiente que o cerca, a partir de certa ordenação e unidade funcional sedimentada, que produz a reiteração de determinados comportamentos. Pode-se definir o termo institucionalizar, no sentido da ação governamental, como a iniciativa de estabelecer um determinado padrão de organização – permanente e impessoal, formalmente desvinculado da pessoa do governante ou gestor que desencadeia a ação –, que atua como fator de unidade de vários centros de competência em articulação, visando à composição de distintos interesses, meios e temporalidades, em função da ideia-diretriz. Institucionalizar, a partir da teoria de Santi Romano, é objetivar, isto é, constituir uma instância, um feixe de ações organizadas, que se descola da pessoa que o instituiu e passa a ter vida própria. Além disso, é ordenar, organizar segundo determinada combinação de conceitos e diretrizes racionais. A estruturação da ação é dada pelo direito, em determinado arranjo de disposições, regras e procedimentos previsíveis e definição de autoridades, com os poderes devidos, para o exercício das funções do Poder Público, destinadas à estabilidade, permanência e previsibilidade. A institucionalização pode ser caracterizada basicamente pelos seguintes traços: a) objetivação, descolamento em relação ao governante ou gestor que institui o programa; b) um padrão de organização; c) a juridificação desse padrão organizativo, baseada na formalização e nos elementos jurídicos que o definem, que distribui posições e situações jurídicas subjetivas dos diversos atores – deveres, proibições, autorizações e permissões –, cujo exercício movimenta o programa de ação e lhe confere vida concreta; d) uma ideia-diretriz, isto é, um princípio referencial, que orienta todos os atores e atos envolvidos naquele arranjo, associado ao plano de ação. Arranjo institucional é locução que conota o agregado de disposições, medidas e iniciativas em torno da ação governamental, em sua expressão exterior, com um sentido sistemático. É utilizada em substituição à expressão vaga “outcomes dos processos políticos”398. Como a exteriorização de uma política pública é muito diversa e variável, a noção de arranjo, menos comprometida com um aspecto formal determinado, é mais adequada à descrição do fenômeno, dado que qualquer política pública é necessariamente a composição de um conjunto de elementos, normas, órgãos, valores, interesses, orientado à implementação de uma mudança estratégica. O arranjo institucional de uma política compreende seu marco geral de ação, incluindo uma norma instituidora (com o perdão da tautologia), da qual conste o quadro geral de organização da atuação do Poder Público, com a discriminação das autoridades competentes, as decisões previstas para a concretização da política, além do balizamento geral das condutas dos agentes privados envolvidos, tanto os protagonistas da política quanto os seus destinatários ou pessoas e entes por ela afetados, como empresas e consumidores, por exemplo. O arranjo institucional comporta uma análise específica, seus componentes podendo indicar maior o menor aptidão para os resultados, considerado um conjunto de variáveis, a partir dos elementos que compõem o modelo. Como quadro sistemático de ação, o arranjo institucional permite considerar tanto a dimensão objetiva, isto é, o conjunto organizado, como a dimensão subjetiva, ou seja, cada uma das
posições de indivíduos ou grupos envolvidos na política pública. Neste último caso, o interesse subjacente a essas posições também pode ser analisado em cada processo, conforme descrito no capítulo 2. Modelo institucional significa um determinado padrão de arranjo institucional, passível de aplicação e replicação em contextos semelhantes. Pode-se utilizar o modelo399 no sentido de replicar, em escala ampla, um padrão de arranjo institucional, para um fim específico. O modelo institucional, como tipo ideal, contém o roteiro de ação, seus valores orientadores, suas referências históricas, seus compromissos ideológicos. Quanto mais esses componentes forem conscientemente percebidos e apropriados pelos atores sociais envolvidos na formulação e implementação das políticas públicas, mais se estará diante de um quadro racional, em que os vetores da política são fielmente traduzidos em medidas técnicas e jurídicas de execução. Os modelos institucionais conferem unidade à ação governamental, em complemento ou em substituição, em determinadas circunstâncias, à atividade de planejamento centralizada. Podemos aplicar ao substantivo modelo o qualificativo institucional nas duas acepções de Hauriou, instituições-pessoas ou instituições-coisas. O primeiro tipo corresponderia às políticas públicas como programas de ação, para a obtenção de resultados e realização de metas em quantidade e prazo definidos (plano de ação). O segundo tipo, que Hauriou associa à regra de direito, corresponderia à legislação estruturante, não diretamente vinculada a plano de ação, como é o caso dos códigos jurídicos, por exemplo. A técnica do modelo poderia ser (e é) aplicada nas duas situações, mas neste estudo será examinada sempre com foco no primeiro caso. Os modelos são usados na realidade dos países desenvolvidos com duas formas de aplicação que importa considerar. Uma delas é a das diretivas, aplicadas no contexto da União Europeia em relação a uma série infindável de temas que era conveniente ou necessário disciplinar de modo, se não uniforme, pelo menos convergente. Além dos temas iniciais, a união aduaneira e a circulação de pessoas, ainda no âmbito do Mercado Comum Europeu, posteriormente outros aspectos passaram a ser de interesse enfrentar pelos vários países de maneira convergente e às vezes padronizada. É o que acontece, por exemplo, quando a circulação de pessoas passa a envolver o intercâmbio de profissionais qualificados e a certificação, em termos de formação acadêmica, precisa ser traduzida, não apenas no plano linguístico, mas em relação à certificação de competências. As rudimentares tabelas de equivalência entre os diplomas e graus dos diversos países passa a dar lugar a um processo formal de convergência, voluntário, da organização dos estudos e da documentação da formação dos estudantes400. O próprio processo de busca de convergência é modelizado, de tal maneira que, em prazo determinado, certas etapas são percorridas e o conjunto dos países envolvidos as supera simultaneamente. A “modelização” ou adoção de modelos de convergência é empregada em inúmeros campos, por meio das diretivas, cuja premissa é a pactuação de um formato próprio para a disciplina da matéria definida. Assim, passam a ser objeto de deliberação, segundo disciplina jurídica voltada à obtenção do consenso, os parâmetros para o conteúdo pretendido, os prazos, com a consideração dos recursos envolvidos, sejam humanos, materiais ou financeiros. A outra experiência de ação modelizada é aquela emanada de alguns organismos internacionais na execução de programas-padrão401. O exemplo mais dramático é o dos programas de privatização dos anos 1990, adotados segundo um “receituário” que o foi não apenas nominalmente, mas também na essência, proposto e aplicado segundo esse espírito como condicionante para a obtenção de financiamento internacional. Trata-se de um caso em que a formação do direito resulta de adesão, em grande medida não voluntária, a padrões definidos de maneira heterônoma. Há outros exemplos, como o
das Metas do Milênio, ilustrativos de que a técnica dos modelos pode ser adotada como fator de aceleração do desenvolvimento de certas áreas, por meio do estabelecimento das normas e documentos urídicos básicos e convergentes para a conquista de objetivos de interesse geral. A distinção entre a uniformidade e a convergência, evidentemente, adquire relevância, em especial se considerado o espaço de atuação conferido à autonomia dos verdadeiros interessados. No âmbito europeu, a ramificação técnica dessa discussão resultou no desenvolvimento da área da inteligência artificial aplicada ao direito, que lida com a criação de taxonomias, isto é, a categorização de determinados campos, com base na representação do conhecimento aceita como comum402. Finalmente, existe uma terceira recorrência da ideia de modelo institucional, talvez a mais difundida na prática jurídica, pela qual um determinado padrão de organização tende a servir de inspiração para propósitos análogos, por um mecanismo informal de emulação, sem um crivo racional de comparação muito apurado. A discussão sobre a possível adoção dos “sistemas únicos” no Brasil, no campo dos direitos sociais, por inspiração do Sistema Único de Saúde, é um exemplo dessa prática informal403. As expressões modelagem ou desenho institucional geralmente são utilizadas significando a atividade de composição de um arranjo determinado, com a manipulação consciente de cada um de seus elementos, tendo por base uma funcionalidade previsível. Existem diferentes tipos, modelos, desenhos e também graus de institucionalização. A distinção entre “políticas de Estado e políticas de governo” pode ser compreendida por esse prisma. O arranjo institucional, pode-se dizer, nasce “política de governo” e aspira ser “política de Estado”404. Ele assumirá essa condição a depender de dois fatores: a institucionalização e a legitimação política. A institucionalização é o fator relacionado aos dispositivos jurídico-institucionais – a lei, as normas de atribuição de competência etc. – que dão corpo à política, conferindo permanência a determinada orientação no ordenamento jurídico, pelo menos até que venha a ser modificada, mediante procedimento de idêntica natureza, em regra por iniciativa de outro grupo político que assuma o governo. O outro fator que indica tratar-se de política “de Estado” é o da legitimação política, que funciona como impeditivo à reversão de uma orientação de governo, mesmo quando há troca de grupo político nas eleições, nas situações em que os efeitos sociais e econômicos são reconhecidos pela generalidade da população como de interesse coletivo e passam a ser merecedores de sustentação pela opinião pública. O “estadista” distingue-se do mero “governante” pela alçada de sua atuação, descortinando visões e diretrizes que perduram por prazo longo, transcendendo o horizonte do seu tempo político presente, ou pelo menos de sua gestão governamental. A “morte” de uma política dita de Estado, na sucessão de governos, pelo esvaziamento de meios o pelo deslocamento de competências, não necessariamente descaracteriza aquela política como “de Estado”; pode revelar apenas o seu baixo grau de institucionalização. Considerando a imprescindível dimensão jurídica, pode-se afirmar que as políticas “de governo” estruturadas e institucionalizadas – o que, evidentemente, depende da natureza do processo político que logrou produzir consenso não apenas sobre os fins da política, mas também sobre os meios e o processo de implementação – alcançarão ser políticas “de Estado”. Mesmo as políticas temporárias, especialmente relevantes nos países em desenvolvimento, como iniciativas de equalização social, que se devem esgotar no momento em que o conjunto da população atinge determinado patamar de fruição de direitos e benefícios sociais, não caracterizam, por isso, políticas de governo, mas inserem-se, como as demais, na categoria das políticas de Estado, uma vez que seu fundamento transcende a base política do grupo no exercício do poder. Em vista desse paradoxo, mais esclarecedora que a dicotomia política de Estado ou de governo parece ser a distinção entre
políticas “estruturantes”, cuja vocação de permanência é de maior duração, em virtude de seu caráter diretivo sobre outras políticas, e políticas “contingentes”. Mas a recíproca pode não ser verdadeira. Há políticas que nascem estruturantes e nesse sentido, suprapartidárias, sem atrelamento especial com o grupo político no exercício do governo. É o caso de medidas permanentes relacionadas ao fortalecimento de estruturas estatais, como a justiça, a educação e assim por diante405.
b) Formação do direito na base da política pública No campo das políticas públicas, o que faz das instituições objeto de interesse é o seu papel na formação do direito, ou o que alguns denominam “política jurídica”406. Esse é um tema que se consagrou, no normativismo, especialmente a partir da obra de Kelsen, pelo aspecto negativo, uma vez que, em nome da cientificidade e do progresso do universo jurídico, buscou-se a estruturação do conhecimento jurídico como técnica social específica, baseada em postulados e método próprios, independentes de apreciações ou juízos de cunho político. Com isso, proscreveu-se o estudo das conexões do direito com a política. “[...] desde o começo foi o meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão. A luta não se trava na verdade – como as aparências sugerem – pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas consequências que daí resultam, mas pela reação entre a ciência jurídica e a política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objetiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter um caráter altamente subjetivo, mesmo que surjam, com a melhor das boas-fés, como ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe” 407.
Quando o olhar do jurista se desloca do fenômeno do direito posto, em que foi enclausurado pelo positivismo, em seu esforço de desprender aquilo que considerava o aspecto intrinsecamente jurídico do direito – as normas – das questões políticas, sociais, além da moral e da própria justiça, e pretende ocupar-se do processo de criação e formação do direito, percebe que são pobres as categorias próprias tanto para a análise como para a construção das normas e arranjos institucionais, especialmente no campo da teoria geral do direito, que auxiliem a compreensão sobre como se dá o encontro entre o direito e a política no processo de elaboração das normas, legislativas, administrativas e até mesmo judiciais o quase judiciais, como é o caso das decisões das cortes de contas, entre outras. A teoria institucionalista permite considerar, na linha da proposição de Santi Romano, que as instituições são “as normas e o que põe as normas”, o fenômeno que antecede a formalização do direito, quando se materializa o direito posto408. Nesse sentido, a visão institucionalista, indissociavelmente historicista e organizacionista, tem grande poder explicativo em relação aos processos que levam à formação do direito. Na União Europeia, o aumento e a multiplicação de normas se intensificou, gerando uma “crise das fontes” do direito, em que as questões da sociedade passam a demandar tratamento jurídico e este, por sua vez, emerge não necessariamente do corpo estatal, mas surge nos diversos contextos e espaços de relações sociais. “[...] hoje não se pode deixar de reconhecer um papel determinante à própria práxis, práxis de homens de negócios e dos seus consultores jurídicos. São os canais privados da assim chamada globalização jurídica, que correm seguros ao lado dos canais oficiais e que se apresentam, na plasticidade de suas invenções, como uma fértil oficina de instrumentos indispensáveis ao capitalismo maduro que estamos vivendo (invenções não previstas, na maioria das vezes, nem pelos legisladores nacionais, nem pelos supranacionais). O primeiro diagnóstico provisório que o historiador pode expressar é de que estamos perante a reapropriação do direito por parte da
sociedade: a sociedade é um corpo vivo, em crescimento, e não pode tolerar o fato de levar nas costas uma pele antiga que para ela se resume em uma constrição. Este pluralismo jurídico significa a recuperação de um papel autenticamente ordenante do direito. Não são mais as centrais do poder político a, de modo prevalente, modelá-lo segundo os próprios desenhos, mas são as instâncias emergentes – que emergem de baixo – que pedem soluções técnicas” 409.
A institucionalização da União Europeia não se faz sem crise; a crise da estatalidade, visto que a implementação da instância supranacional – melhor seria dizer no plural, das instâncias supranacionais, uma vez que a “Europa de Bruxelas” se traduz numa diversidade de estruturas e instâncias administrativas, em que o poder técnico e político se distribuem e a descentralização emerge como fenômeno – tem um significado histórico e institucional determinado. Se esse modelo desperta uma percepção renovada da relação entre a produção do direito e sua base social, no plano da ação, no entanto, não serve de paradigma para o Brasil, em que o contexto é, de certa maneira, oposto, associado à maior centralidade e protagonismo do Estado na condução ao desenvolvimento. O problema reside em como fazê-lo no cenário da democracia, a partir da agregação das forças sociais vivas410. O reconhecimento de que há um espaço de criação do direito na sociedade, que, se bem apreendido e adequadamente formalizado, leva à evolução social, está presente na percepção de que a atuação estatal não ocorre de maneira centralizada e monolítica, mas fragmentadamente e em camadas. O pluralismo sugerido por um governo de políticas públicas visa responder, não como alternativa, mas como caminho de viabilidade, pelo enfrentamento, a fragmentação do Estado, tanto política como administrativa. As políticas públicas, como arranjos institucionalizados, são maneiras de viabilizar a participação da sociedade no governo, além da organização do próprio governo, democratizando as ações e processos governamentais, em compasso com o processo político em sentido estrito. No direito público, a identidade, pelo menos parcial, de objeto com a sociologia e a política faz necessário sempre um esclarecimento preliminar de escopo. No surgimento da teoria do Estado, como disciplina, isso foi necessário, assim como ocorreu com o direito administrativo e posteriormente com o direito econômico. A especificidade jurídica desses campos está no seu caráter normativo, que é, paradoxalmente, a despeito de experiências malsucedidas de positivismo exacerbado (em geral a serviço de governos autoritários, para os quais a autoridade da norma posta, independentemente das circunstâncias do processo de positivação e da legitimidade deste, esgotava o fenômeno do direito), o instrumento precípuo de transformação social pela via jurídica. Reduzido à observação sociológica, o direito abriria mão dos instrumentos que o dever-ser, investido em normas, lhe confere para influir sobre as relações sociais e alterar o curso daquelas que produzem pobreza, iniquidades e injustiça. O Estado deixaria de ter sentido como unidade organizada de decisão e ação411. “[...] a Teoria do Estado, como parte das ciências jurídicas, está destinada à questão do “dever-ser” e assim impedida de se conservar somente com a questão do “ser”. Essa afirmação se justifica simplesmente pela qualificação das tarefas do direito que está no fato de o direito ter que regular o convívio entre as pessoas, não podendo se limitar à mera contemplação. O direito possui um compromisso de formação [...]. O ordenamento jurídico deve possibilitar o convívio, mesmo que, como demonstrado, somente a partir da determinação valorativa e voluntária, não propriamente jurídica, dos objetivos do Estado que estão ao seu serviço. Destarte, é o caráter dinâmico da ciência jurídica que a diferencia da fenomenologia da sociologia política” 412.
Essa é a razão que justifica que um país como o Brasil, cuja realidade social é mais próxima da Índia e da China, siga se inspirando na teoria jurídica europeia e norte-americana para a busca de modelos urídicos de ordenação, em vista do grau de refinamento teórico que tais sistemas alcançaram, desenvolvido e experimentado em instituições em geral também relativamente evoluídas, do ponto de vista de seu regramento e da participação democrática. Mas a observação sociológica da realidade há de
incidir, no caso dos países em desenvolvimento, sobre os problemas jurídicos peculiares, de modo a detectar desafios específicos e forjar soluções originais413. Um problema peculiar entre nós, talvez o primeiro deles, é o da inefetividade das normas, como parte de um modo próprio de formação do direito, que enfraquece iniciativas de transformação das estruturas desiguais da sociedade.
c) Organização. Articulação e caráter siste mático Considerando o princípio da legalidade administrativa, todo programa de ação governamental se estrutura sobre uma base legal. Ainda que a fonte de habilitação não seja imediatamente a lei – muitas vezes é norma de hierarquia inferior, decreto, portaria, resolução ou até mesmo disposição da legislação orçamentária, que trate da alocação de recursos, ou outra disposição, que discipline a utilização dos meios públicos ou atribuições da burocracia –, tais normas, evidentemente, deverão estar fundadas em disposição legal. Isso não quer dizer, no entanto – e aqui a construção institucionalista tem toda pertinência –, que o programa surja com a edição da norma. O “ordenamento jurídico” do programa de ação, diriam os institucionalistas clássicos, não nasce com a norma, mas é ele que põe a norma. Em outras palavras, o amadurecimento político dos contornos da ação é que desencadeia a sua formalização institucional, quando então a norma passa a lhe conferir existência oficial. Pode ocorrer – e frequentemente ocorre – a criação de programas por expansão ou desdobramento de outros existentes, ou ainda por adaptação de ações em prática, ao abrigo de disposição normativa mais geral. Desenvolvem-se, assim, programas de ação de forma incremental, de modo que experiências iniciais, geralmente normatizadas de forma singela, em atos do âmbito interno de estruturas administrativas, tais como ministérios, após uma fase de experiência e aprovação, acabam alargando se âmbito de aplicação e se fortalecendo, no que diz respeito aos recursos, o que resulta em reformulações, sob normas administrativas de hierarquia superior, tais como decretos, ou mesmo convertidas em programas regidos por lei ou até emendas constitucionais414. O efeito dessa modificação é o aumento de sua densidade institucional, considerando que a consagração do programa em lei significa atribuir à ação vocação de permanência, e portanto maior objetivação, deixando a sua aplicação de depender da vontade dos ocupantes do Poder Executivo responsáveis pela formulação da política pública. Com isso amplia-se, pelo menos em tese, a condição de continuidade da execução dos programas, em reação a um dos grandes problemas das democracias pouco maduras, a descontinuidade administrativa. Os programas de ação iniciados por diferentes governos não se materializam sobre uma “tábula rasa” institucional. O cenário mais típico é o da existência de “camadas de estruturas”415, isto é, órgãos, competências, corpos burocráticos criados para determinado programa, num governo, que terminam esvaziados com as sucessões políticas e ali permanecem. Cada novo programa arranja, de maneira peculiar, sobre uma base normativa própria, atribuições de órgãos públicos muitas vezes preexistentes, novas funções para servidores públicos, aproveitando estruturas antigas ou criando outras e articulandoas ou rearticulando-as, a partir da orientação governamental presente (integral ou parcialmente) da norma instituidora, que passa a conferir novo sentido àquele conjunto. O traço a destacar no arranjo institucional, portanto, é seu caráter sistemático, de ordem, que atua graças, em grande medida, à coesão proporcionada basicamente pelos instrumentos jurídicos. No ambiente caótico da multiplicidade de normas e estruturas, o arranjo institucional se configura como ordem definida, que permite visualizar seus contornos, distinguindo-o do ambiente de normas e decisões circundante. Não se trata da ideia, presente em Kelsen, da ordem jurídica como um sistema de normas. Trata-se da valorização do aspecto organizativo do direito, mais próximo da proposição de Hart, que evolui no positivismo, partindo de uma visão crítica da insuficiência das normas de conduta como expressão do
sistema jurídico (próxima, nesse sentido, de Santi Romano). As chamadas “normas de organização” – regras de reconhecimento, de alteração e de decisão, que funcionam como “metarregras” sobre as demais –, ditas normas secundárias, compõem, com as normas de conduta, ditas primárias, o sistema jurídico, definindo um elemento de ordem pública no sistema normativo. A mudança que decorre do advento dessas regras é tão importante para Hart, que “pode mesmo ser considerada a passagem do mundo préurídico ao mundo jurídico”. “Porque a introdução na sociedade de regras de atribuição de competência aos legisladores para alterarem e acrescentarem as regras de dever, e aos juízes para determinarem quando as regras de dever foram violadas; é um passo em frente tão importante para a sociedade quanto a invenção da roda. [...] pode mesmo ser considerada a passagem do mundo pré-jurídico ao mundo jurídico” 416.
Essa descrição do direito como composto por duas classes de normas, as normas de conduta e as de competência, também é utilizada por Alf Ross, consubstancia aquilo que na sua visão determina exatamente o “caráter institucional” do direito: “[...] o direito consiste não só em normas de conduta, mas também em normas de competência, as quais estabelecem um conjunto de autoridades públicas para aprovar normas de conduta e exercer a força em conformidade com elas. Devido a isto, o direito tem o que podemos denominar caráter institucional. Funciona através de uma maquinaria jurídica que visa à legislação, ao juízo e à execução, e se afigura, portanto, ante os olhos do indivíduo como algo objetivo e externo. É a expressão de uma comunidade supraindividual, uma ordem social, enraizada numa consciência jurídica formal” 417.
A teoria geral, portanto, vem reforçando a dimensão organizacional do direito, antecipada pelas teorias do institucionalismo jurídico clássico, com base nas noções de objetivação, organização, poder organizado e ideia-diretriz. Em obra mais recente, o escocês Neil MacCormick – Professor de Teoria do Direito ( jurisprudence, no direito inglês) e membro do Parlamento Europeu, oriundo do partido nacionalista escocês – reforça o dualismo entre normas e uma ordem normativa institucionalizada, a partir de um outro critério, aquele que distingue os meros usuários dos criadores e implementadores de normas418. O plano institucional caracteriza-se pela geração das normas e padrões normativos que orientarão as condutas do conjunto dos usuários. “O direito é uma ordem normativa institucional e o direito do Estado contemporâneo é uma forma de direito. Há outras, como o direito internacional, o direito das novas formas político-legais emergentes, tais como a União Europeia, direito canônico, direito da sharia, o direito das organizações esportivas e o dos jogos que elas regulam e sem dúvida muitas outras. Todas têm em comum a aspiração à ordem (no sentido de ‘ordenação’, não no sentido de ‘comando’). Um conjunto elaborado de padrões para a conduta humana é considerado obrigatório para todas as pessoas no âmbito do domínio ordenado, e a ordem prevalece entre as pessoas destinatárias, na medida em que elas logrem adequação entre suas condutas e os padrões estipulados. A possibilidade de ordenação resultante da conformidade com tais padrões depende, obviamente, do conjunto de padrões configurar uma totalidade racionalmente inteligível. Portanto, há uma qualidade sistemática postulada sobre os padrões de conduta supostos ou ‘normas’ que subjazem à aspiração à ordem” 419.
O caráter sistemático das políticas públicas é o que possibilita enfrentar a fragmentação o desarticulação da ação governamental, evoluindo no sentido do desenvolvimento. Esses problemas apresentam-se tanto no âmbito intragovernamental, quando a ação depende do envolvimento sistemático de vários polos de competência com atribuição sobre o tema, como extragovernamental, quando o sucesso da ação governamental está relacionado ao comportamento de agentes externos ao corpo do governo. Outro aspecto para o qual é importante a ideia sistemática é a “articulação temporal”, visando enfrentar a descontinuidade administrativa, que põe em risco a execução dos programas de ação quando ocorrem trocas de comando político, associadas ou não ao processo eleitoral. Essa questão,
primordialmente política ou político-partidária, pode ser enfrentada, pelo menos em parte, se a estruturação jurídica da ação governamental considerar um “regime de efeitos” no tempo, isto é, se for definida de modo a minimizar os riscos de inefetividade que terminam por esvaziar os objetivos finais previstos na norma. Isso só é possível com base na construção programada de um encadeamento de normas e seus efeitos, que redundem na organização concreta e operacional da atuação dos agentes públicos envolvidos na política pública.
d) Ideia-diretriz e unidade da ação A ideia-diretriz, de Hauriou, é interessante para explicar como se opera a distinção da política pública em relação ao ambiente. A ideia-diretriz, como se viu, é mais do que a ideia, a imagem do programa, que se pretende disseminar entre os seus beneficiários e a população em geral, é o plano de ação420. Contudo, é inegável seu aspecto comunicacional. No plano das políticas públicas esse aspecto coincide, em certa medida, com o que hoje se chama de “marca política” do programa. A “refração” da ideia-diretriz mencionada por Hauriou corresponde à replicação da carga de referenciais, não apenas emocionais, mas, também, e principalmente, conceituais, sobre os quais se alinham as expectativas cívicas. Daí ser equívoca a redução da marca do programa de ação a um expediente de simples “mercadologização”, por meio de sua associação a um ícone emocionalmente assimilável. Trata-se, mais do que isso, de compactar na marca a ideia, de forma que se reconheça nela o entrelaçamento de conceitos, compromissos e resultados esperados, subjacentes ao programa de ação. Quando eventualmente esses elementos logram consolidar-se na marca, tem-se a suma de um processo de legitimação social do programa. Ou seja, retorna-se ao conceito original de ideia-diretriz, que combina o componente simbólico, de direção, compartilhado por vários atores envolvidos naquela política pública, com a dimensão do “plano de ação” e “organização da ação”. A diferença entre a marca de apelo “mercadológico” imediato e aquela que sintetiza compromisso político repousa sobre a justificação política real, o fundamento do próprio Estado, que se desdobra nas razões que justificam a ação do governo. Não basta descrever tecnicamente mecanismos e expedientes de ação articulada. Examinar as premissas do funcionamento do Estado e compreender as razões de sua sustentação política e jurídica é necessário para que o trabalho com a ação governamental não se limite ao tratamento técnico (e tecnocrático) das regras e componentes do funcionamento do aparelho de Estado. A sustentabilidade desses mecanismos reclama uma fundamentação político-institucional que represente busca e obtenção de legitimidade política e social pelo tempo necessário para que os resultados visados com a ação governamental sejam percebidos pelo público externo ao governo. Algumas teorias governamentais centradas no problema dos interesses em disputa, em nome da “maximização do bem-estar”, retiraram do horizonte a perspectiva de um interesse comum que pudesse colocar-se acima das aspirações individuais. E se é necessário compreender estrategicamente os movimentos internos ao Estado, que entrelaçam a política à maximização dos interesses econômicos, entre outros, a desconsideração da existência de uma esfera de interesse público autêntico, que se sobrepõe aos interesses individuais imediatos, com respeito à coletividade e podendo mesmo transcender o horizonte temporal da geração presente, gera como saldo uma compreensão amesquinhada da política. O que confere densidade social à ação governamental é estar lastreada em fundamentação da moral coletiva, suficiente para gerar um sentimento compartilhado de utilidade e valor positivo. Em outras palavras, a fundamentação do Estado, sua justificação filosófica. Esse argumento é nuclear para uma abordagem das políticas públicas que considere a centralidade da ação governamental na vida social.
Sem considerar, na linha de Hegel, o Estado como culminância da evolução histórica, síntese e ápice da evolução da vida política421, não se pode aceitar a tese oposta, do Estado como mero subsistema, ator social ou arena política. A despeito de possíveis crises, o Estado ainda é o locus privilegiado de organização da política interna, com grande peso também na política internacional. Hegel descreve o movimento da história, continuamente em direção ao Estado, que o materialismo dialético de Marx posteriormente inverte, não em direção ao Estado, mas rumo à sua dissolução. O alcance da dialética como movimento de evolução social repercute sobre o fenômeno do Estado, e também sobre conceitos fundamentais da teoria do direito. A vontade coletiva – a partir da vontade geral de Rousseau – é uma evolução em relação à vontade individual422, assim como o dever o é em relação ao instinto423, e a sociedade, em relação à moral individual. Da mesma forma, a vontade, produto da razão, refletida em relação aos seus limites, é uma evolução em relação ao livre-arbítrio, e a pena, evolução que liberta o homem, uma vez que permite que suas escolhas gerem respostas do Estado. A “dialética do luxo”, antecipando a voracidade do capitalismo então nascente, multiplicando as necessidades, é uma evolução no “sistema de carências”424. A ideia de unidade no fenômeno do Estado, central na obra hegeliana, perdeu-se, em geral, nas análises políticas do século XX, sobretudo na norte-americana, que tenderam a destacar muito mais a fragmentação do poder. O conceito de unidade entre os interesses individuais e o interesse coletivo é contraponto e complemento necessário à abordagem da ação governamental como traçada e definida em nome de interesses concretos. E se pretendemos um tratamento jurídico da ação governamental hábil a superar ou minimizar os efeitos da fragmentação, faz-se necessário compreender e aprofundar mecanismos jurídicos de coordenação e articulação de agentes envolvidos com a sua produção e implementação, sem perder de vista o seu fundamento primeiro.
e) Regime de efeitos. Efetividade e sustentabilidade A política pública, devidamente recortada em relação ao entorno institucional e social, como tipo ideal, deve ser considerada o arranjo institucional hábil a produzir um encadeamento de ações, organizado em função de um regime de efeitos. Em outras palavras, ações que produzem diretamente efeitos sobre outras relações jurídicas ou que geram os pressupostos para a produção dessas novas relações, conexas com as primeiras, de modo que a direção estratégica possa desenrolar-se ao longo de uma cadeia jurídica extensa, que crie uma teia de vinculações ordenadas entre diversos atores sociais, ao longo de um período de tempo abrangente o suficiente para a percepção social (mais do que jurídica) de seus efeitos. O objeto políticas públicas, como um constructo especulativo de pesquisa, vem sendo adotado como arranjo que deve ser identificado com base nos efeitos institucionais produzidos. Em outras palavras, os arranjos que não permanecem ou não geram efeitos não são relevantes no plano ideal típico adotado neste trabalho. Por outro lado, os arranjos estabilizados, identificados como tais na vida social, e que se habilitam à produção reiterada de efeitos, interessam para essa perspectiva. Considera-se o aspecto dinâmico da política pública, isto é, o arranjo institucional em funcionamento, produzindo efetividade urídica e, por sua vez, sofrendo efeitos “replicados e treplicados”, a partir da ação governamental. O que caracteriza idealmente a política pública, como objeto de interesse para o direito, distinto dos atos jurídicos e atividades que a compõem, é a existência de umregime de efeitos jurídicos combinados, articulados ou conjugados decorrentes desses mesmos atos e atividades, ou, dito vulgarmente, a sua “amarração jurídica”. O relevante é a sucessão de atos encadeados ou combinados, cujo nexo são efeitos
com significado jurídico e social particular. Não é casual que se privilegie esse aspecto, numa quadra em que a dimensão da efetividade do direito tem sido tão destacada. O pragmatismo da cultura política dominante dialoga com esse valor, ao reforçar a importância dos resultados práticos da ação políticosocial. A efetividade ideal do direito, dessa forma, não reside em um ato de vontade do gestor público, mas decorre da cultura institucional, baseada na adoção de práticas que reforçam o tratamento jurídico expresso e sistemático das consequências da ação, seus desdobramentos e seus contraefeitos. O acompanhamento desses ao longo do tempo e sua qualificação pelo direito é a tônica do que se chama de “regime de efeitos”. Esse “regime”, que explicita o desenvolvimento da ação governamental no tempo, exibe a impropriedade dos esquemas de compreensão baseados em códigos binários. É o que ocorre, por exemplo, na teoria de sistemas luhmanniana, baseada na chave “lícito/ilícito” como identificadora do subsistema jurídico. Essa abordagem é extremamente empobrecedora, visto que há em direito vasta gama de meios-tons entre o lícito e o ilícito, especialmente se consideramos os seus efeitos. Toda a ciência da punibilidade das condutas, as agravantes e atenuantes, a exclusão de ilicitude, opera segundo um mosaico de disposições que raramente gera resultados idênticos, mesmo quando se está diante do concurso de agentes de uma conduta ilegal. O esquema binário válido/inválido, aplicado sobre o passado, não reflete, nem palidamente, a riqueza de possibilidades que se coloca para a ação governamental no sentido de delinear o regime de efeitos mais adequado ao seu processo de implantação e execução. A evolução mais recente do direito, aliás, com o desenvolvimento da chamada soft law, isto é, modalidades de disciplina das relações jurídicas não baseada na coerção425, torna sem sentido essa estruturação. Aliás, a técnica jurídica da regularização pactuada de situações irregulares perante a ordem jurídica (anistias fundiárias, parcelamentos de débitos fiscais etc.) baseia-se exatamente na mitigação diferenciada dos efeitos da invalidade originalmente prevista na regra. Em nome do valor maior do saneamento da situação e da permanência da relação no âmbito do direito oficial, deixam-se de aplicar punições que a literalidade da norma atribuiria aos atos inválidos. A noção de regime jurídico consubstancia a mais cotidiana expressão de sistema com que convivem os chamados “operadores do direito”. O regime nada mais é senão o encadeamento de regras aplicáveis a determinada situação, uma vez deflagrada a hipótese de incidência normativa. Os debates outrora comuns na doutrina a respeito da “natureza jurídica” de determinados institutos cede lugar à discussão acerca do regime jurídico incidente, isto é, sobre as regras e precedentes de aplicação que incidem no caso. Aplica-se aí a dedução, com uso de silogismos, ou a analogia, para suprir a omissão de algum elemento que impede a sua aplicação imediata. Embora seja o “pão de cada dia” da prática jurídica, o regime é tratado de maneira insuficiente pela teoria geral do direito, especialmente no campo público, omissão mais significativa quando se cogita dos processos de formação do direito, que deveriam ser fortalecidos com base na utilização de regimes jurídicos existentes ou organização de novos regimes, para conjuntos de políticas estrutural ou funcionalmente análogas (o que ocorre, repita-se, de maneira informal e assistemática, por emulação de regimes existentes). Exceto para aplicação específica em alguns campos, como é o caso do direito tributário, por exemplo, há pouca tradição de sistematização de categorias-base para o desenvolvimento de regimes jurídicos. A proposição de um “regime jurídico de efeitos” da ação governamental não significa que se trate de regime jurídico único e idêntico às diversas expressões possíveis para as ações governamentais que integram o sentido da política pública. Em vez disso, indica que a análise da projeção dos efeitos da ação governamental no tempo, com os instrumentos do direito, pode revelar direções políticas o
técnicas indesejadas ou pervertidas em relação ao seu enunciado. Fala-se em efeitos, não em efeito, no singular, pois o que caracteriza a política pública é o encadeamento de ações e consequências, às vezes dependente de múltiplos centros de imputação jurídica, envolvidos na inovação institucional. O desafio é criar capacidade de articular não apenas pessoas, mas agora normas e efeitos previstos em normas e, dito melhor, as relações jurídicas objeto dessas normas. O fenômeno das cadeias normativas, a partir das quais se definem os regimes jurídicos, que, afinal, conferem tratamento de conjunto a uma situação, identificando papéis e estabelecendo a dinâmica dos atores sociais, merece a consideração como tal, isto é, como conjunto, mais do que cada norma considerada em si. O “regime de efeitos” que se propõe como ideal típico para as políticas públicas não é propriamente um regime jurídico, já que não cuida de uma cadeia normativa, mas procura identificar traços o elementos em cadeias jurídicas com feições similares, que as tornam mais aptas à produção de certos efeitos. Trata-se de uma abordagem que não aparta, e sim combina, necessariamente, as dimensões da validade, isto é, o encadeamento hierárquico de cada norma com a que lhe confere fundamentação, numa relação de compatibilidade, e da eficácia. O domínio técnico desse ponto deve habilitar a uma intervenção política ou social mais eficiente (com menos “calor e perda de energia”). O papel da base normativa do programa é renovar tanto a cadeia de incidência de efeitos jurídicos como a sucessão de consequências deles no plano social, da qual decorre sua legitimidade. A inovação e a renovação jurídico-institucionais marcam a natureza evolutiva das políticas; alterações contingenciais podendo produzir câmbios estruturais. A qualidade da base jurídica e a densidade institucional da política refletem-se reciprocamente.
f) Objetivação. A constituição da autoridade pública como entrelaçamento do político e jurídico A constituição da autoridade repousa sobre a definição formal da regra de competência. A regra de competência representa importante “nó” de cruzamento da política com a técnica jurídica. A instituição da autoridade pública é um ato ao mesmo tempo jurídico-formal, de organização e político, sem a qual não se pode, a rigor, falar em Estado moderno. Sem a regra de competência, estaríamos na situação dos Estados pré-modernos que ainda não lograram estabelecer o Estado de direito. “No coração da teoria do Estado de direito está o princípio de que os diversos órgãos de Estado não podem agir senão em virtude de uma habilitação jurídica: todo uso de força material deve estar fundado sobre uma norma jurídica; o exercício da força [ puissance] se transforma em uma competência, instituída e enquadrada pelo direito”426. O estabelecimento da autoridade, para a ação governamental, também apresenta uma dimensão de efetividade, uma vez que sua capacidade de gerar, ao longo da cadeia de decisões e execuções, expressões fiéis aos objetivos visados, é condição necessária a qualquer concepção de plano governamental eficaz. Até mesmo para os mecanismos flexíveis do direito, em que a lei permite e não obriga ou comanda, a existência da autoridade, conjugando seus sentidos abstrato e concreto, isto é, a condição de exercer orientação e coordenação, é requisito indispensável para o funcionamento das figuras e mecanismos consensuais. A norma que institui o programa de ação define a regra de competência, identificando os agentes e órgãos públicos com atribuição para a prática dos atos relacionados à sua implementação. Em direito, ao feixe de atribuições deve estar associado um correspondente feixe de poderes427, ou melhor, poderesdeveres, uma vez que se trata de poderes juridicamente cometidos à realização de tarefas de interesse público. Conforme os contornos da regra de competência e dos poderes associados, esta pode ser nominal ou efetiva, esvaziada ou hipertrofiada428
Na linguagem da gestão pública, fala-se na articulação de competências, o que sem dúvida é um aspecto primordial para a execução das etapas de implementação da política pública, cujo objeto é, em geral, multifacetado e multidisciplinar. Dada a magnitude do resultado e das metas a atingir, a execução do programa de ação depende de um feixe de manifestações, decisões e medidas concretas, que se assentam sobre vários centros de decisão administrativa e política. Essas manifestações devem ocorrer em articulação, seja por coordenação, isto é, em condições de equivalência entre os vários centros de competência, seja por subordinação, sob a direção de um deles. A competência pode ser direta, para a decisão, ou indireta, para os atos a ela subordinados, tais como os atos de instrução, dos quais a decisão depende. A inefeti inefetividade vidade jurídica reiterada rei terada e o problema proble ma da “desconfirmação” “desconfir mação” da autoridade autori dade
Para a existência de um “regime de efeitos” da política pública é necessário que a autoridade do órgão decisório se mantenha íntegra ao longo do ciclo de produção e implementação da decisão, ou, mais importante, na hipótese de não implementação ou implementação defeituosa desta. Em outras palavras, o que reforça a autoridade é a condição de o detentor da competência proceder a ajustes neutralizadores de resistências ou à inefetividade da regra, mantendo-se a capacidade de dirigir a ação. A habilidade à produção de efeitos está diretamente ligada à efetividade da autoridade, tanto política como jurídica429. E o teste para a verificação da existência e efetividade da autoridade reside na capacidade de reação ao descumprimento das normas que a instituem, em primeiro lugar, e ao conteúdo das disposições por ela expedidas, em seguida. Ao decidir pela exigibilidade de determinada conduta, a autoridade deve considerar as hipóteses de cumprimento do comando e execução da conduta, ou, alternativamente, descumprimento do comando e não execução da conduta. E deve, para cada uma das alternativas, encadear normativamente as hipóteses sucessivas e respectivas consequências. O descumprimento da norma pode caracterizar situação de ilegalidade, por afronta ao seu conteúdo, ou simplesmente “extralegalidade”, quando o padrão do descumprimento é de tal ordem generalizado e reiterado que se está diante da inexistência ou negação da autoridade. No plano macroinstitucional, esse quadro pode corresponder ao estado de exceção, descrito por Carl Schmitt como ensejador da decisão 4300. Ou corresponde a um padrão costumeiro de ilegalidade, isto é, uma ilegalidade tão reiterada política43 que consolida o comportamento de inexistência ou de aplicação seletiva da regra de competência. É o que ocorre nas cidades brasileiras, conforme denunciam os urbanistas, num exemplo que poderia ser estendido esten dido a diversos di versos campos campos do direito dir eito brasileiro: brasilei ro: “Mais além do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular a produção da cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de fronteiras de poder. A lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de vida e à micropolítica familiar dos grupos que estiveram mais envolvidos em sua formulação. Funciona portanto como referente cultural fortíssimo na cidade, mesmo quando não é capaz de determinar sua forma final. Aí reside, talvez, um dos aspectos mais interessantes da lei: aparentemente funciona como uma espécie de molde da cidade ideal ou desejável. Entretanto, e isto é poderosamente verdadeiro para o caso de São Paulo e provavelmente para a maior parte das cidades latinoamericanas, ela determina apenas a menor parte do espaço construído, uma vez que o produto – cidade – não é fruto da aplicação inerte do próprio modelo contido na lei, mas da relação que esta estabelece com as formas concretas de produção imobiliária na cidade. Porém, ao estabelecer formas permitidas e proibidas, acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada. Esse fato tem implicações políticas óbvias, pois, além de demarcar as fronteiras da cidadania, há um importante mecanismo de mídia cultural envolvido, desde que as normas urbanísticas funcionem exatamente como puro modelo. Com isto queremos dizer que, mesmo quando a lei não opera no sentido de determinar a forma da cidade, como é o caso de nossas cidades de maiorias maio rias clandestinas, é aí a í onde onde ela e la é mai maiss poderosa no sentido de de relacion relacionar ar di diferença ferençass cul c ulturais turais com sistemas hi hierár erárqui quicos” cos” 431.
A transcrição elucida um mecanismo perverso de associação do estatuto de regularidade à concentração de riqueza e poder, em que a ineficácia da legislação urbanística em regular a produção da cidade “é a verdadei verdadeira ra fonte fonte de seu sucesso político, polí tico, financeir financeiroo e cultu c ultural ral,, em um uma cidade ci dade em que que riquez ri quezaa 4322. Em que pese o fato de que nas cidades e poder estiveram historicamente bastante concentrados”43 brasileiras a situação de ilegalidade não é reservada exclusivamente aos mais pobres – ao contrário, há um sem-número de mansões ilegais, “ilhas particulares”, descumprimento de normas ambientais urbanas por parte de grandes empreendimentos imobiliários etc. –, isso não invalida o argumento de que a situação de conformidade com a lei é um “ativo”, um bem, ou, na linguagem de políticas públicas, um meio que o agente agente público ut utili iliza, za, consciente consciente ou in i nconscient conscientem ement ente, e, para pa ra dem demarcar arcar espaços polí políticos. ticos. Neste último caso, o primeiro desafio do gestor público é a constituição ou reconstituição da autoridade, não referida à pessoa do gestor público, mas à instância ou instituição de onde promana o comando inatendido. Esse processo é político e jurídico simultaneamente. Num Estado em desenvolvimento, são relevantes, para o objetivo proposto neste trabalho, as causas de inefetividade do direito, sejam elas diretamente políticas, expressando interesses e vantagens de determinados setores no não funcionamento do Estado, sejam involuntárias. Se se tratasse de um fenômeno físico, dir-se-ia que o mau funcionamento do Estado compreende o aquecimento excessivo e a dissipação de energia, quando o que se deseja é exatamente o contrário, pouco calor e energia dirigida aos objetivos de desenvolvimento e emancipação social. Mecanism os jurídic Mecanismos jurídicos os de restabel restabelecime ecimento nto da autoridade num contexto de descumpri descumprimento: mento: ônus sancionatório sancionatório e medidas m edidas de ajustamento
A situação de descumprimento da norma resulta num ônus. Assim como o processo de decisão (originária) pode ser mais bem compreendido com a consideração da distribuição dos ônus, ao longo do histórico institucional de sua produção, situação equivalente ocorre na hipótese de descumprimento. Partindo do binômio válido (isto é, conforme a norma) e inválido (desconforme a ela), a cada um desses status corresponde uma posição jurídico-institucional. Ambas as partes, tanto o destinatário da norma status prescritora de condutas quanto a autoridade, destinatária do comando de cumprimento (norma de organização), assumem, cada qual, os ônus correspondentes ao status status.. E aí não é indiferente o aspecto “quantitativo” da desconformidade. Conforme se trate de descumprimento individual ou descumprimento general gen eralizado, izado, a perspec perspectiva tiva políticopol ítico-institu institucional cional se conf configu igura ra de um modo modo distint di stinto. o. O descumprimento individualizado corresponde ao mínimo de descumprimento a que aludiu Kelsen como revelador exatamente da força da norma. A imputação da sanção é a expressão da efetividade da norma, isto é, da sua capacidade de gerar efeitos. Do ponto de vista político-institucional, isso significa força ativa do comando legal e da autoridade detentora da competência. Dito vulgarmente, trata-se de lei que “pegou” e, portanto, pode-se predizer o que ocorrerá diante de condutas semelhantes no futuro, com base no fato de que a autoridade se estabeleceu, jurídica, política e socialmente. Por outro lado, quando o descumprimento da norma tem larga escala, como ocorre no exemplo do direito urbanístico acima, o problema normativo se converte em um problema político-institucional, uma vez que o primeiro aspecto a enfrentar será exatamente o de tornar viável o exercício da atribuição cometida pela norma de organização originária. Aqui se pode fazer uma distinção entre o caso da lei “que não pegou” e aquela que “pegou seletivamente”, isto é, cuja existência é justificada com fins retóricos, de alcance amplo, mas cuja aplicação seletiva e, mais importante, cuja inaplicação seletiva podem ser ocultadas do público em geral e portanto dispensadas de justificativas e explicações. A norma que é simplesmente letra morta implica que se retome política e juridicamente a efetivação da regra de competência, para o que muitas vezes se faz necessário “quebrar” o ciclo político, editando nova norma
de atribuição, a fim de restabelecer de início a autoridade. No segundo caso, a aplicação seletiva da norma, em geral com conexões político-institucionais, merece uma análise política mais detida, a fim de verificar a que interesses está associado o descumprimento tolerado da norma. O descumprimento generalizado ou o “estado de tolerância” é um problema no plano macroinstitucional similar à questão da lacuna, no plano normativo, a qual, como sabemos, deve ser colmatada com base em mecanismos de integração previstos nas regras do próprio sistema, a fim de evitar o comprometimento da integridade deste. O mesmo ocorre com a tolerância generalizada ao descumprimento, embora se trate de um paradoxo, uma vez que é um defeito normativo, que pode revelar-se (e geralmente se revela), no entanto, funcional do ponto de vista de alguns segmentos políticos. Mas seria um excesso de simplificação correlacionar de maneira direta todas as insuficiências e todos os problemas intrínsecos ao sistema normativo à proteção de interesses. Às vezes (e não poucas vezes) os defeitos e falhas jurídico-institucionais em determinado setor são apenas isso, defeitos que decorrem de limitações técnicas na construção ou no funcionamento do sistema e cuja perpetuação não traz vantagem significativa ou traz vantagens laterais, que pelo porte não justificariam suporte político capaz de explicar a sua permanência. Trata-se do defeito como costume, nada mais. Segundo a teoria da norma de Tércio Sampaio Ferraz Jr., com base na análise do discurso normativo, em sua “pragmática da comunicação normativa”, trata-se de uma situação comunicativa de “desconfirmação”, isto é, aquela em que o “endereçado” da norma nem a cumpre, nem a contesta, mas se retira do papel de colaborador no processo de implementação da norma433. “A desconfirmação equivale ao aniquilamento da autoridade enquanto tal”434. Nos processos vistos acima, as disfuncionalidades apontadas em relação ao sentido original ou próprio de cada caso pode ser lida como forte dose de desconfirmação tolerada ou reiterada. Regime de transição tr ansição como efeito ef eito particular. part icular. Aplicação do direito direit o intertemporal intert emporal
O rompimento do “estado de tolerância com o descumprimento” requer iniciativas combinadas nos planos jurídico e político-institucional. A decisão de extinguir o “estado de tolerância” deve ser combinada com uma inovação na ordem jurídica (similar à novação, nos contratos) que possa desencadear efeitos novos. É preciso criar uma fonte de legitimação renovada, um novo momento, com nova base jurídica, mesmo que aos olhos dos intérpretes a prescrição vigente fosse suficiente para a exigibilidade da conduta. Como à aparente suficiência normativa não correspondeu a mesma leitura em relação ao plano político-social, a criação de uma inovação na ordem jurídica que passe a justificar o cumprimento da ordem pode ser a escolha estratégica de menor custo para a autoridade. A edição de uma outra norma mantém a discussão na esfera do Poder Legislativo (ou eventualmente do governo, se se tratar de norma infralegal), podendo ocorrer a inovação da matéria por decisão judicial. A norma nova atua como elemento de legitimação renovado, como um mote de apelo à ordem, mais que de recurso à coerçãoo efetiva. A coerção poten coerçã potencial cial pode ser se r suf s ufici icient entee como indutor indutor de condu condutas. tas. O processo de formação dessa nova ordem se baseia na buscada criação de condições para um novo estabelecimento da autoridade. E o primeiro desafio desta é, em geral de forma pactuada, eliminar a situação massiva de desconformidade à legislação, o que se faz no âmbito da técnica jurídico-normativa, por meio da fixação da regra de transição e suas condições de incidência. É o que ocorre com as “anistias”, isto é, elisão de efeitos previstos na regra vigente de baixa efetividade em relação à ilicitude de condutas. As anistias, utilizadas, por exemplo, no campo fiscal, retiram os efeitos ilícitos (o diminuem dimin uem o seu sign si gnificado ificado econôm econômico, ico, por meio da redução de valores val ores de multas, multas, ou supress supressão ão de juros, por exemplo), como medida de inserção de situações no campo do universo lícito e sob a jurisdição da
autoridade. Neutraliza-se a desconfirmação e tem-se o jurisdicionado materialmente inserido no campo de incidência da regra formal. As regras de transição excessivamente permissivas ou sem prazo definido indicam a fraqueza da autoridade, sem condição para implementação integral e conclusão do processo de transição. Transcorrido certo período, esvaziado o potencial de expectativa que havia sido renovada na efetivação das medidas governamentais, volta a ocorrer a desconfirmação da norma. Mais uma vez o campo tributário fornece exemplos, em que a permanência das práticas de desconformidade demonstra que a autoridade não se restabeleceu. Nova reforma legislativa se faz, nova anistia é concedida e se repete o ciclo. A nova regra de transição, a partir daí, deixa de ser uma “válvula de acomodação”, para o restabelecimento de uma situação legal (no sentido do império da lei), e passa a expressar a linguagem do atendimento a interesses especiais, diante da incúria da autoridade pública, cujo fundamento deveria residir no interesse geral. Há, portanto, uma técnica jurídica própria para o restabelecimento da autoridade, desde que haja disposição para o enfrentamento de uma cultura social e política cética em relação a essa possibilidade. Embora tal cultura seja apontada como um traço da “cordialidade” brasileira, que seria mais afeita à composição que à aplicação estrita da legalidade, a história de outros povos traz também seus registros nesse sentido435. O “bom governo” é condição de exercício da autoridade. Mas sem exageros... A existência da autoridade é necessária para imprimir a direção do governo, mas está longe de ser suficiente para isso. Regime de responsabilidade projetada no tempo
A responsabilidade é o outro lado da moeda da competência. Quem recebe o poder deve responder por ele, esse é o princípio. Quem detém competência para determinada decisão, detém, em tese, a responsabilidade para os atos que com ela se relacionem. Ressalvam-se os atos complexos e procedimentos, modalidades de exercício composto de competência, que reclama formas de articulação, acima referidas. Mas também para esses, o tratamento jurídico da responsabilidade deve acompanhar o da competência. Quando se fala em responsabilidade, aqui, deve-se pensar na combinação das atribuições com os meios necessários para sua execução. Independentemente do histórico de determinada norma atribuidora de responsabilidade, o movimento em direção à sua efetividade ou funcionalidade deve caminhar na direção da correspondente atribuição de meios. A questão da accountability diz respeito a um problema de responsabilidade e a questão da articulação das competências federativas também. Algumas críticas ao caráter absoluto do princípio da impessoalidade da Administração Pública, na Constituição brasileira, apontam o reforço do caráter “burocrático” (no sentido vulgar), associado ao formalismo ou à ineficiência. Os processos de licitação, impositivos para as compras e contratação de serviços no âmbito público, têm sido vilanizados como consagradores desse viés indesejado. O único princípio capaz de contrabalançar o princípio da impessoalidade, sem suprimir o avanço em que ele consiste, no sentido de inibir a apropriação privada dos meios públicos, é o princípio da responsabilidade. O Estado, assim como as demais organizações burocráticas, incluindo as privadas, sofre as virtudes e os vícios da impessoalidade. No caso do Estado, a impessoalidade é outra expressão do Estado de direito, uma vez que assegura a aplicação da lei “sem olhar a quem”, indistintamente aos poderosos e aos humildes. Todavia, para que se evolua em relação a esse conceito, é preciso que avanços na liberdade de ação do gestor público sejam combinados com a correspondente responsabilidade. E o centro de imputação da responsabilidade, no direito político, é a pessoa física do gestor, não a
pessoa jurídica, a pessoa moral, a organização. Por isso, as formas mais desenvolvidas de organização administrativa associam ao poder decisório formas de responsabilização pessoal. Reversamente, as formas organizativas que não associam responsabilidade à atribuição de poderes consubstanciam organizações degradadas, do ponto de vista social. Exemplo disso, no âmbito das corporações privadas, que também se orientam pela organização burocrática impessoal, é a situação dos dirigentes de instituições financeiras cujas operações desembocaram em gigantesca crise econômica de proporções globais, em 2008, sem que seus bônus pessoais fossem tocados ou ameaçados. Essa perspectiva é mais um argumento a reforçar o discurso, há muito estabelecido no campo da gestão pública, de que sem um corpo de funcionários adequadamente profissionalizado e comprometido com o exercício da função pública será muito difícil a qualquer Estado em desenvolvimento executar sua missão. E embora se trate de um lugar comum, a ele não corresponde uma reflexão jurídica igualmente amadurecida. O estatuto jurídico do servidor público no Brasil ainda não equacionou a questão da negociação coletiva, dos incentivos não financeiros à evolução na carreira, do regime complementar de previdência. No campo da gestão, a considerar as administrações públicas federal, estaduais e municipais no conjunto, nem sequer o número de servidores e os custos reais da força de trabalho, compreendidos ativos e inativos, são conhecidos com precisão, como se tratasse de “questão menor” no funcionamento das instituições públicas.
g) Alocação de meios públicos e posições subjetivas na base jurídica do arranjo institucional A ideia-diretriz de Hauriou compacta conceitualmente um plano de ação associado a metas e resultados a obter, a partir da organização do poder. Seria forçado dizer que a reserva de meios já havia sido pensada pelos corifeus do institucionalismo tal como se aplica hoje no contexto das políticas públicas. Evidentemente, não, até porque àquela época a evolução da economia – previamente à crise mundial de 1929 e ao papel ativo do Estado no desenvolvimento capitalista – ainda não havia dado ensejo ao estabelecido no direito econômico, enquanto disciplina sistemática da intervenção do Estado sobre e no domínio econômico. Mas não deixa de ser, também nesse ponto, antecipatório o olhar do institucionalismo, em relação ao que veio conformar-se posteriormente como políticas públicas. Um dos traços distintivos destas, idealmente consideradas, é a alocação de meios no arranjo institucional que conforma o programa, de maneira proporcional e suficiente à realização da ação e consecução dos objetivos. Deve haver uma combinação ajustada entre o escopo e a escala (diremos, em vez de metas) e a previsão de meios. O sucesso da engenharia institucional da política – especialmente a se pensar em ação governamental inovadora – reside na articulação bem resolvida de meios e fins, além das etapas do percurso para atingir esses últimos. Com a evolução que se sucede à Segunda Guerra Mundial e a perspectiva de exaustão do paradigma belicista como representação de poder na arena mundial e fator de desenvolvimento econômico das nações militarizadas, a evolução dos papéis institucionalizados do Estado passa a conferir relevo, ao lado do monopólio do uso da violência, ao monopólio do uso dos meios públicos, em função das demandas dos agentes econômicos, polarizadas com as pressões por serviços e benefícios. Os instrumentos e a linguagem econômicos penetram crescentemente o direito. As próprias sanções, tanto punitivas como premiais, passam a expressar-se cada vez mais na forma econômica. Na composição dos arranjos institucionais, o governo dispõe basicamente dos recursos oriundos da arrecadação tributária. Além disso, tem poder deliberativo sobre a utilização do crédito público, bem como a possibilidade de manejar mecanismos de renúncia fiscal, os quais podem beneficiar de maneira distinta setores ou atividades. E também a possibilidade de influir sobre a orientação de investimentos de
fundos públicos ou com participação do Poder Público, na proporção desta, observada a representação nos seus órgãos deliberativos. Dispõe, assim, de poder sobre os meios fiscais, alocados no orçamento público em rubricas vinculadas aos programas, e detém disponibilidade, nos termos da legislação, sobre os orçamentos de investimento das empresas públicas e poder deliberativo sobre a utilização dos recursos das agências oficiais de fomento, responsáveis pelas políticas de estímulo à produção ou à inovação, tais como, no Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) o a Agência de Financiamento de Projetos (FINEP), no campo da ciência e tecnologia. Devem-se considerar, ainda, o acesso a crédito em bancos públicos, bem como o acesso diferenciado a compras governamentais e mecanismos similares. Mas o Estado pode atuar sobre a economia de forma mais estruturante, por meio da criação, na norma instituidora do programa de ação, de categorias de relações e negócios jurídicos, o que significa posições subjetivas também para os entes privados, passíveis de gerar resultados econômicos. Trata-se da chamada “função distributiva” do direito, que se acresce às funções tradicionais, de regulação e controle. Essa é a função por meio da qual “aqueles que dispõem do instrumento jurídico atribuem aos membros do grupo social, sejam esses indivíduos ou grupos de interesse, os recursos econômicos e não econômicos de que dispõem”. Esses recursos referem-se a bens, dinheiro ou serviços, tais como possibilidades de emprego, educação e assim por diante436. O arranjo institucional opera uma distribuição de papéis, ou de posições subjetivas jurídicas, com o sem significado econômico direto. Isso porque a política pública não envolve apenas o Poder Público, de um lado, e os beneficiários do programa, de outro, mas, com frequência, dispõe sobre as condições de participação de agentes privados no programa. É o caso das políticas que preveem mecanismos especiais de financiamento ou linhas de crédito, disciplinando de forma sistemática os requisitos para habilitação dos agentes, as condições de financiamento e assim por diante. Dessa forma, posições subjetivas são constituídas ou ampliadas, nos termos da base normativa que rege a política pública. Quando se considera o mercado não como dado da natureza, mas como construção jurídica, pode-se depreender a carga institucionalista dessa leitura, uma vez que o “mercado”, nesse sentido, é um ordenamento que existe, mas que “põe as normas”437, das quais resultam instâncias e campos de interação social438. A lei, ao mesmo tempo que cria uma “ordem objetiva”, que disciplina comportamentos acima das vontades e das condutas dos indivíduos, distribui papéis e regulamenta posições jurídicas. É o que ocorre, por exemplo, com o mercado de capitais, cuja existência depende de uma regulação que crie a figura dos valores mobiliários, institua as autoridades reguladoras e estabeleça as atividades dos investidores e demais agentes daquele mercado. O mesmo se pode dizer do “mercado da construção civil”, expressão que conota não apenas uma atividade econômica, mas um conjunto de atividades, que passam a constituir agentes juridicamente investidos de alguma forma de capacidade (reguladores, incorporadores, mutuários etc.), e também os empreendedores privados, que passam a exercer papéis definidos na normatização, com base em uma dotação de meios nova e especialmente organizada (o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo, os recursos da caderneta de poupança, do Fundo de Garantia por Tempo de Serviços e assim por diante). Outro exemplo seria o dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL), como o mercado de créditos de carbono, pelo qual é possível comercializar em mercados secundários e bolsas de valores os créditos gerados nos projetos; comprar créditos de carbono no mercado equivaleria a comprar uma permissão para emitir gases do efeito estufa439. Com isso, como resultado da elaboração jurídica, “cria-se um mercado”, caracterizado pelo intercâmbio, a título oneroso, de permissões de emissão, direitos com valor patrimonial, em que aquele
que emite menos que o permitido tem a faculdade de vender o superávit440. Assim, nesse tipo de política pública que constitui campos de atividade econômica e social, a norma instituidora define agentes e disciplina seus deveres, direitos, faculdades e feixes de relações recíprocas em torno do objeto daquele programa, conferindo condição de repetitibilidade aos vários papéis, o que representa o seu grau de institucionalização. A organização, neste caso, consiste na configuração de posições ou situações pelo arranjo institucional. Com isso, passa a haver complementaridade entre as dimensões objetiva e subjetiva contidas no arranjo institucional que materializa a política pública. Em resumo, esse tipo de organização corresponde à “institucionalização” do mercado de capitais, do mercado da construção civil e assim por diante. Ela se dá por meio da objetivação da atividade – que passa a ocorrer segundo determinados parâmetros estabilizados formalmente em lei, independentemente das pessoas que ocupam as várias posições necessárias ao funcionamento global daquela atividade – e, simultaneamente, pela criação organizada das situações subjetivas envolvidas. Sistematizados os meios econômicos à disposição do Poder Público para a estruturação das políticas públicas, cumpre examinar de que maneira as decisões alocativas econômicas se integram aos arranjos institucionais. A característica das políticas públicas, idealmente consideradas, é que a disposição de meios componha a base normativa do arranjo institucional, de forma proporcional e suficiente ao escopo e escala definidos para o programa de ação. Pode ser traçado um paralelo com a proposição de Kelsen a respeito da especificidade do direito como técnica social, residindo esta no fato de que a sanção não está fora do direito, mas integra a própria regra jurídica, e a proposição institucionalista, em especial de Hauriou, de que na instituição os meios da ação compõem a ideia-diretriz e, portanto, o programa de ação. A teoria de Kelsen é baseada na descrição das regras de conduta, dotadas de coerção; o ponto essencial é a presença da sanção na mesma norma que dispõe sobre a conduta. Essa formulação é uma resposta a outras teorias que se limitavam a descrever o direito como organização ou ordem social. A sanção, presente nas regras jurídicas, numa relação de imputação, seria o elemento especificamente urídico da ordem social, o modo como se organiza a coerção. A visão institucionalista não coincide com essa posição. Santi Romano entende que a coatividade é consequência da imperatividade das normas, e não o contrário. Para o ordenamento basta, segundo Romano, “uma simples garantia, direta ou indireta, imediata ou mediata, preventiva ou repressiva, segura ou apenas provável, e ainda que incerta, desde que seja, em certo sentido, preordenada e organizada no mesmo edifício do ordenamento jurídico”. A coatividade, portanto, reside não em cada regra, individualmente considerada, mas no ordenamento, considerado no seu conjunto. Instituição, cumpre lembrar, é sinônimo de ordenamento jurídico e, ao mesmo tempo, de organização. Também nesse ponto há menos distância do que parece entre o normativismo evoluído de Hart e as formulações originais do institucionalismo. Hart recusa a ideia do direito composto de comandos coativos, entendendo que a imperatividade está no conjunto, na “ordem coativa”441. A institucionalização, como movimento de formalização do programa e transposição da iniciativa do governante para as estruturas impessoais do Estado, reduz a flexibilidade necessária para as correções de rumo que se farão no curso da implementação do programa de ação. Esse aspecto é mais um ponto tormentoso para a teoria normativa. E também em relação a ele se apresenta o paradoxo do governo e do Estado; o governo mais regrado é mais rígido e cerceado na necessidade de dinamismo para inovações e correções de rumo. O plano de ação se assenta sobre uma base normativa, mas se distingue por conter e revelar uma determinada estratégia, isto é, a direção, combinada com a coordenação da ação. A estratégia implica a
predição de comportamentos de maneira hipotética, diante das diferentes possibilidades de conduta dos demais participantes do programa de ação. A gestão pública mais moderna no mundo desenvolvido há muito tempo deixou de privilegiar os ritos e as regras administrativas, em favor do resultado da ação, por meio dos chamados indicadores de desempenho, elementos quantitativos, fixados, evidentemente, com base em parâmetros qualitativos. Quantos beneficiários, com que perfil social, a que custo e em que prazo são informações absolutamente relevantes para qualificar a ação administrativa. Essas informações também são importantes para valorar a conduta do gestor público no que diz respeito ao significado político e social de suas ações e para informar o estabelecimento de prioridades. Considerando que um traço característico da política pública é a reserva de meios, precipuamente econômicos, combinada com o escopo e a escala, pelos quais se delimita e quantifica o universo dos beneficiários, a utilização de indicadores de gestão e desempenho como desencadeadores de determinados efeitos só pode ser feita com base em norma jurídica que confira a eles esse atributo. As normas gerais e abstratas, precipuamente as leis, não podem, nem devem, referir aspectos quantitativos ou temporais concretos no seu texto. Importante é que elas definam o escopo e a escala da ação. A disposição jurídica que trata da admissão dos elementos não jurídicos no regime daquela política, definindo também os seus efeitos, observa a descrição da regra de reconhecimento, nos termos da proposição de Hart. A regra de reconhecimento tem, portanto, uma função de comunicação, permitindo que sistemas abertos estabeleçam relações jurídicas com outros planos não jurídicos442. Em outras palavras, define as fontes não jurídicas de efeitos jurídicos. “A palavra fonte refere-se [...] a um dos critérios de validade jurídica aceites no sistema jurídico em questão”443. A disciplina orçamentária, embora não seja objeto precípuo do modelo, é um exemplo interessante de atuação da regra de reconhecimento. Pois a formulação do orçamento, do ponto de vista da teoria geral do direito, é absolutamente peculiar. Até a apresentação gráfica da lei orçamentária expressa essa questão, compondo-se de poucos dispositivos formalmente apresentados como proposições normativas, que se fazem acompanhar de grande número de tabelas e quadros, contendo as referências quantitativas de valores financeiros ou servidores públicos. A lei orçamentária seria um exemplo de “acoplamento operativo” entre o subsistema jurídico e o subsistema econômico de finanças públicas, na linguagem da teoria de sistemas. Passa a haver um nexo entre elementos extrajurídicos, os indicadores, e jurídicos, os efeitos da conduta que levou à produção dos resultados que os indicadores expressam. Esse nexo só é possível com base na regra de reconhecimento, porque esta, na qualidade de regra jurídica, é que dispõe sobre os efeitos do elemento extrajurídico. Isto é, a escolha dos indicadores, a escala, tudo isso depende de variáveis, às vezes bastante sofisticadas, de relevância estatística. É ao direito que incumbe estabelecer o regime de efeitos resultantes de um ou outro indicador. Por essa razão, a institucionalização da política pública faz-se, em geral, de forma “modular”, isto é, com a organização em norma de institucionalização mais alta e os elementos quantitativos, em outra disposição, com grau inferior de institucionalização. A técnica usual para essa “normatização modular” é a da remissão a regulamento, norma hierarquicamente inferior444. É verdade que essa técnica muitas vezes resulta de uma imposição típica das soluções de compromisso do ambiente político – reveladora de pouco sucesso no processo de institucionalização, uma vez que a ação não logra objetivar-se, mas permanece associada à iniciativa e aos compromissos (ideologia) do instituidor. Com isso, a disposição maior resta “em aberto”, até que, em nova rodada o instância de negociação, se preencham os vazios na conformação da política pública. Por outro lado, há
iniciativas que, a despeito do relativo consenso, não é possível ou viável completar desde logo no desenho da política pública, porque os componentes materiais desta requerem maior flexibilidade, seja porque são mutáveis, seja porque dependem do comportamento de agentes estranhos ao corpo do governo.
322 Maria Paula Dallari Bucci. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas Públicas. Possibilidades e Limites. Belo Horizonte: Fórum, 2008, especialmente p. 225-260. 323 Douglas North. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. London: Cambridge University Press, 1990. 324 “Para colocar esse ponto mais concretamente, consideremos a relação entre os eleitores e as políticas públicas. Se os eleitores pudessem expressar plena e livremente suas opiniões sobre cada política pública, o resultado seria, provavelmente, um caos de opinições ao invés de um consenso com relação a essas políticas. Os procedimentos políticos [...] impõem limites ao processo político, que permitem as tomadas de decisão, mesmo onde não há equilíbrio natural de preferências.” Ellen Immergut. O núcleo teórico..., in Políticas Públicas, cit., p. 155-195 (a citação refere-se à p. 158). 325 Immergut, ob. cit. Segundo a autora, essa visão institucionalista, de que o processo altera o resultado da decisão, já estava presente em Rousseau, para quem: “As leis e os costumes moldaram as preferências do homem e institucionalizaram o poder e o privilégio”. A noção de vontade geral, em oposição à soma de vontades dos indivíduos, expressaria a raiz institucionalista desse autor. 326 “ Institutional factors play two fundamental roles in this model. On the one hand, the organization of policy-mak ing affects the degree of power that any set of actors has over the policy outcomes... On the other hand, organizational position also influences as actor’s definition of his own interests, by establishing his institutional responsibilities and relationship to other actors. In this way, organizational factors affect both the degree of pressure an actor can bring to bear on policy and the likely direction of that pressure.” Sven Steinmo; Kathleen Thelen e Frank Longstreth. Structuring Politics. Historical Institutionalism in Comparative Analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. 327 Tratei desse tema em Notas para uma metodologia de análise jurídica de políticas públicas ( Políticas Públicas, cit.). 328 Neil MacCormick. Law as Institutional Fact. In: An Institutional Theory of Law. Neil MacCormick e Ota Weinberger. Dordrecht, Holanda: D. Reidel Publishing Company, 2a. impr., 1992, p. 49-76. 329 Paolo Biscaretti de Ruffia. A contribuição de Santi Romano para a moderna ciência juspublicística italiana . In: Princípios de Direito Constitucional Geral. Santi Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. IX-XXVII; Norberto Bobbio. Teoria e ideologia nella dottrina di Santi Romano. In: Dalla Strutura alla Funzione. Nuovi Studi di Teoria del Diritto. Milano: Edizioni di Comunità, 1977, p. 165186. 330 Santi Romano. L’Ordinamento Giuridico. Firenze: Sansoni, 1962. 331 Santi Romano, ob. cit., p. 14. 332 Santi Romano, ob. cit., p. 25-27. 333 Santi Romano, ob. cit., p. 35-39. 334 Santi Romano, ob. cit., p. 15 – grifei. 335 Santi Romano, ob. cit., p. 19-20. 336 Santi Romano, ob. cit., p. 27. 337 Santi Romano, ob. cit., p. 19. 338 Santi Romano, ob. cit., p. 66-67. 339 Idem, ibidem. A noção de relação jurídica está no cerne da abordagem processualista, examinada no capítulo 2. 340 Santi Romano, ob. cit., p. 71. 341 Na história, esse processo de objetivação se dá antes de tudo com três funções, o fisco, o exército e a justiça, a partir do século XVI, segundo Weber, A política como vocação, in Ciência e Política, cit., p. 70. 342 “A própria alienação ou transmissão de um monarca a outro do Estado tem precisamente esse caráter e importa não só a alienação ou transmissão de um direito, mas a perda de um status pessoal, a saída do rei do reino e o ingresso nesse de um novo rei.” Santi Romano, L’Ordinamento Giuridico, cit., p. 71. 343 Santi Romano, ob. cit., p. 73. 344 “Ainda que, em tal ordenamento, se trate de um senhorio que excede em grande medida o que um sujeito tem em face de um objeto de sua potestade, se dessume disso que os efeitos do seu exercício podem resolver-se em alterações da estrutura, da organização e das leis do Estado, portanto, na emanação de um novo direito objetivo”. Santi Romano, ob. cit., p. 71.
345 Santi Romano, ob. cit., p. 82. 346 “A organização ou instituição não seria um ente natural, dotado de vida própria, mas um ente que serviria ao atingimento de determinados escopos sociais, que seria pensado ou considerado como sujeito de direito.” São exemplos de entes as corporações e fundações, “conjuntos de meios, materiais ou imateriais, pessoais ou reais, patrimoniais ou de natureza ideal, destinados a servir permanentemente a um fim determinado, em benefício não de pessoas que pertencem à própria instituição, mas de pessoas estranhas, que são os destinatários”. Sentido similar é registrado na criação do instituto público ( Anstalt ) no direito administrativo alemão, descrito por Otto Mayer e Fleiner, em obra de 1913, que não seria uma pessoa jurídica, mas “um conjunto, uma unidade de meios, materiais ou pessoais, que, nas mãos de um sujeito da administração pública, são destinados a servir de uma maneira permanente a um determinado interesse público: o exército, uma escola, um observatório, uma academia, os correios etc.”. Santi Romano, ob. cit., p. 29-30 e 37. 347 Santi Romano, ob. cit., p. 46. “O direito não pode ser apenas a norma posta pela organização social, como muitas vezes se diz, mas é a organização social que, entre suas várias manifestações, põe também a norma” (p. 51). 348 Santi Romano, ob. cit., p. 38 e 42. 349 Santi Romano, ob. cit., p. 48-49. 350 “Para alguns outros ramos do direito estatal, nossa doutrina ganha maior evidência. O direito constitucional não se exaure nas normas que regulam as relações do Estado, antes contempla, primeiro que tudo e na sua maior parte, o Estado em si e por si, nos seus elementos, na sua estrutura e na sua função, que como aquela legislativa, não dão lugar a relações singulares e concretas. Esse é o reino em que o ponto de vista do direito como instituição é tão decidido e amplo que esquecê-lo ou negá-lo significa anular, ou quase, todo o direito constitucional. Mas também o direito administrativo, antes de disciplinar as relações que nascem da função administrativa, é o direito que estabelece a organização dos entes que a exercem. Igualmente, o direito processual, nos seus desenvolvimentos ulteriores, se funda sobre a organização do Poder Judiciário e assim por diante.” Santi Romano, ob. cit., p. 98. 351 A exposição faz referência à discussão sobre a lei em sentido material, entendendo que, a despeito de a norma ser geral e abstrata, isso não impede que a lei – que não se reduz às normas – contenha também certos provimentos especiais (de efeitos concretos). Santi Romano, ob. cit., p. 21. 352 Maurice Hauriou. La Teoría de la Institución y de la Fundación (Ensayo de vitalismo social). Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1968, p. 31-77. 353 A formulação original de Hauriou, utilizada por Santi Romano, definia a instituição como uma organização social, ou “todo arranjo permanente por meio do qual, no interior de um grupo social determinado, os órgãos que dispõem de um poder de dominação são postos a serviço de objetivos de interesse do grupo, por uma atividade coordenada com aquela do conjunto do grupo”. Apud Romano, ob. cit., p. 31. 354 Santi Romano, ob. cit., p. 32. 355 Hauriou, La Teoría, cit., p. 31. No início do texto, Hauriou refere dois obstáculos ao desenvolvimento da visão institucionalista, o primeiro que chama de “querela do contratualismo” e o segundo, a querela do subjetivo/objetivo. O primeiro teria sido oposto por Rousseau e a proposição do contrato social, uma vez que, para Rousseau, “as instituições sociais existentes estavam viciadas por haver sido fundadas sobre a força pura e que era mister renová-las mediante o contrato social, mediante livre consentimento”. Para Hauriou, no entanto, o equívoco de Rousseau seria confundir força e poder. As instituições são produto do exercício consentido do poder, não se caracteriza a violência. 356 Não deixa de ser curiosa a “objetividade” de Hauriou, relacionada à ideia de consciência, “assim, o subjetivo se mantém por nossas vontades conscientes e o objetivo, por nossas ideias subconscientes”. Hauriou, ob. cit., p. 32. 357 Leon Duguit. Leçons de Droit Public Général. Paris: Éditions la Mémoire du Droit. 2000, p. 53 [obra de 1926]. 358 Hauriou, La Teoría, cit., p. 36. 359 A base da pessoa jurídica é o ordenamento jurídico, a instituição, que, portanto, precede a personalização formal do ente. “Uma instituição assume caráter de pessoa quando essa, ou pelo seu próprio ordenamento ou por um outro ordenamento, mas sempre sobre a base daqueles, se considera como um ente dotado da sua própria vontade, isto é, quando a vontade, materialmente manifestada por certos indivíduos, que são elementos em sentido amplo (membros, órgãos, administradores) da instituição, com as formas e para os fins que impõe sua estrutura, é considerada como vontade da própria instituição.” A questão da personalidade jurídica não é relevante nesse ponto. Santi Romano, L’Ordinamento Giuridico, cit., p. 78. 360 Hauriou, La Teoría, cit., p. 37. 361 Hauriou, ob. cit., p. 36. 362 Hauriou, ob. cit., p. 38. 363 Hauriou, ob. cit., p. 39-41. 364 “[...] para nossas instituições, produz-se um fenômeno de incorporação, quer dizer, de interiorização do elemento poder organizado e do elemento manifestações de comunhão dos membros do grupo, dentro do marco da ideia a realizar e que esta incorporação conduz à personificação.” Hauriou, ob. cit., p. 41. 365 Hauriou, ob. cit., p. 44 – grifei. 366 Hauriou, ob. cit., p. 42-43. 367 Hauriou, ob. cit., p. 43. 368 Hauriou, ob. cit., p. 44. 369 Hauriou, ob. cit., p. 46. 370 Ainda que desperte certa estranheza a expressão “espiritualização”, que é empregada em diversas passagens do texto como aplicação de
figuras psicológicas ao corpo estatal, o sentido que vem reiterado é o de abstração do fenômeno institucional em relação à vontade pessoal do instituidor, dos integrantes ou qualquer ente fisicamente existente. Hauriou, ob. cit., p. 47. O paralelo com o organismo humano tem longa tradição na teoria política, podendo-se citar Hobbes, para quem a soberania é a “alma” do Estado. 371 Hauriou, ob. cit., p. 47. 372 Idem, ibidem. 373 Hauriou, ob. cit., p. 48-49. 374 Hauriou, ob. cit., p. 51. 375 Hauriou, ob. cit., p. 45 e 77. 376 Hauriou, ob. cit., p. 51. 377 “Autoconsciência significa, histórica e politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se ‘distingue’ e não se torna independente ‘por si’, sem organizar-se (em sentido lato); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, sem que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas ‘especializadas’ na elaboração conceitual e filosófica.” Antonio Gramsci. Concepção Dialética da História. 8. ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1989, p. 21. 378 “ [...] verdade, tão velha quanto o mundo, que os elementos importantes, dentro do sistema jurídico, são os atores jurídicos – os indivíduos, de um lado, e as instituições corporativas de outro – porque eles são pessoas vivas e criadoras, tanto pelas ideias de empresas que representam, quanto por seu poder de realização. No que respeita às regras de direito, não representam senão ideias de limite em lugar de encarnar ideias de empresa e de criação.” Hauriou, La Teoría, cit., p. 76. 379 Maurice Hauriou. A Teoria da Instituição e da Fundação. Ensaio de Vitalismo Social. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 2009, p. 53. 380 Carl Schmitt. Os três tipos de pensamento jurídico. In: Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito (Ronaldo Porto Macedo Jr. – org.). São Paulo: Max Limonad, 2001. Cumpre advertir que nesse texto Schmitt enaltece o “[...] novo conceito de jurista introduzido na Alemanha pelo movimento nacional-socialista. A integração corporativa dos juristas alemães na Frente do Direito Alemão em um conceito de jurista que suspende e supera o dilaceramento positivista de direito e economia, direito e sociedade, direito e política [...]”. 381 Além desses, haveria um pensamento de tipo decisionista, cuja marca é a “soberania”, típico dos momentos de caos ou de anarquia, situação que demandaria e justificaria a decisão, conforme descrita por Hobbes, seu expoente máximo, em Leviathan . Carl Schmitt. Os três..., in Carl Schmitt , cit., p. 182. 382 Santi Romano, L’ Ordinamento Giuridico, cit., p. 10. No mesmo sentido, Schmitt: “O tipo decisionista está especialmente difundido entre os juristas, pois o ensino jurídico e uma ciência do direito que serve diretamente a práxis jurídica tendem a ver todas as questões jurídicas apenas sob a perspectiva de um caso de conflito e atuar como meros preparadores da decisão judicial sobre o mesmo. [...] na decisão do caso e na sua ‘fundamentação’ normativista a partir do teor literal de uma normatização escrita. O pensamento jurídico orienta-se dessarte exclusivamente segundo o caso de colisão e de conflito. Ele é dominado pela representação de que um conflito ou uma colisão de interesses, quer dizer, uma desordem concreta somente é superada e ordenada por meio de uma decisão. As normas e regras com as quais a fundamentação da decisão em termos jurídicos se depara, transformam-se dessarte em meros pontos de vista para a decisão de litígios, material de documentação para fundamentações de decisões judiciais. Deste modo a rigor nem existe mais uma ciência sistemática do direito; todo e qualquer argumento de ciência do direito não passa de razão potencial da decisão à espera de um litígio.” Os três..., in Carl Schmitt , cit., p. 183. 383 Schmitt, ob. cit., p. 164. 384 “Todo e qualquer ordenamento, também o ‘ordenamento jurídico’, está vinculado a conceitos normais concretos que não são derivados de normas genéricas, mas geram tais normas a partir do seu próprio ordenamento com vistas a ele./Uma regulamentação legal pressupõe conceitos do normal que tão pouco derivam da regulamentação legal, que, muito pelo contrário, sem eles justamente a normatização se torna inteiramente incompreensível e nem se pode mais falar de uma ‘norma’”. Schmitt, ob. cit., p. 177. 385 Neil Mac/Cormick. Law..., in An Institutional, cit., p. 49-76. 386 Hans Kelsen. Teoria Geral do Direito e do Estado , cit. 387 “[...] o sistema austríaco, obra pessoal e sem dúvida alguma genial (uma das maiores criações históricas devidas a um só jurista) de Kelsen, sistema surgido pela primeira vez na Constituição austríaca de 1920 e aperfeiçoado na reforma de 1929” (p. 56). Eduardo García de Enterría. La Constitución como norma jurídica. In: La Constitución como Norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1985, p. 39120. 388 Cf. item 1.4, acima. 389 Schmitt, Os três..., in Carl Schmitt , cit., p. 207. 390 Schmitt, ob. cit., p. 175. 391 Schmitt, ob. cit., p. 178. 392 Alf Ross. Direito e Justiça. São Paulo: Edipro, 2000, § 1. Assim, a distinção schmittiana entre normativismo, ordenamento concreto e decisionismo em Ross não tem o último termo, em lugar do qual aparece o pensamento ético. 393 Ross, ob. cit., p. 41. 394 Ross, ob. cit., p. 80. “Posto que a obediência é fortalecida pelo costume, toda ordem mantida de fato, incluso aquela que se apoia principalmente na mera força, tende a se transformar numa ordem ideologicamente aprovada. Este é o fenômeno que foi descrito pelo filósofo do direito alemão Georg Jellinek como a ‘força normativa do realmente existente’. Todo poder soberano de jure tem como antecessor um
poder soberano de facto.” Ob. cit., p. 83 – grifei. 395 Item 2.2.f. 396 Norberto Bobbio faz uma breve alusão à teoria institucional do direito como a designação que à época se dava à teoria sociológica. L’analisi funzionale del diritto: tendenze e problemi. In: Dalla Struttura alla f unzione, cit., p. 90. 397 A expressão é utilizada por Jean-Claude Thoenig. L’analyse des politiques publiques. In: Traité de Science Politique (Madeleine Grawitz e Jean Leca – coords.). Paris: PUF, 1985, p. 3. 398 O sentido aqui utilizado não coincide com algumas formulações na ciência política, que associam a ideia de arranjo à provisoriedade da situação, como é o caso de Dahl: “o que é necessário para que um país seja democraticamente governado? No mínimo, ele terá de ter determinados arranjos, práticas ou instituições políticas que estariam muito distantes (senão infinitamente distantes) de corresponder aos critérios democráticos ideais./ Arranj os políticos podem ser considerados algo muito provisório, que seriam razoáveis em um país que acaba de sair de um governo não democrático. Costumamos pensar que práticas são mais habituais e, assim, mais duráveis. Em geral, pensamos que as instituições estão estabelecidas há muito tempo, passadas de geração a geração. Quando um país passa de um governo não democrático para um governo democrático, os arranjos democráticos iniciais aos poucos se tornam práticas e, em seu devido tempo, tornam-se instituições. Por úteis que pareçam essas distinções, para nossos objetivos será mais conveniente preferirmos instituições, deixando as outras de lado”. Robert Dahl. Sobre a Democracia, cit., p. 98. O que falta a essas definições é justamente a consideração do elemento jurídico, pois é ele, e não o transcurso do tempo, que produz modificação no estado de determinada combinação de práticas, no sentido de sua permanência. 399 Francisco G. Heidemann e José Francisco Salm (orgs.). Políticas Públicas. Bases Epistemológicas e Modelos de Análise. 2. ed. Brasília: Ed. UnB, 2010, caps. 3 e 4. 400 Esse é um dos aspectos do chamado Processo de Bologna, pelo qual, a partir de 1999, os países participantes, em caráter voluntário, buscaram estabelecer parâmetros comuns para certificação da formação, com a adoção do sistema de unidade de transferência de créditos (ECTS), de forma a viabilizar a intensificação da circulação de estudantes no contexto europeu e o aproveitamento de créditos nas várias fases da vida acadêmica, para a superação dos problemas formais do reconhecimento de estudos. Jeroen Huisman. The Bologna Process towards 2020: institutional diversification or convergence? In: The European Higher Education Area: Perspectives on a Moving Target (Barbara M. Kehm, Jeroen Huisman, Bjorn Stensaker – eds.). Rotterdam: Sense Publishers, 2009, p. 245-262; Dirk Van Damme. The search for transparency: convergence and diversity in the Bologna Process. In: Mapping the Higher Education Landscape. Towards a European Classification of Higher Education (Frans van Vught – ed.). The Nederlans: Springer, 2009, p. 39-56. 401 Gilberto Marcos Antonio Rodrigues. A Organização das Nações Unidas e as políticas públicas nacionais. In: Políticas Públicas. Reflexões sobre o Conceito Jurídico (Maria Paula Dallari Bucci – org.). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 193-216. 402 Danièle Bourcier, Patricia Hasset e Christophe Roquilly. Droit et Intelligence artificielle. Une Révolution de la Conaissance Juridique. Paris: Romillat, 2000. Esse tema é referido no capítulo 4. 403 Assim foi criado o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e se discute a criação de um Sistema Único de Segurança Pública (“SUSP”). Também se cogita de um “sistema único de educação”. Todos esses “sistemas únicos” visariam enfrentar precipuamente o problema generalizado da desarticulação federativa, particularmente acentuado em matéria de direitos sociais e seus respectivos recursos humanos. 404 Referi a distinção em O conceito de política pública em direito, in Políticas Públicas, cit., p. 18-20. 405 Paulo Roberto de Almeida. Sobre políticas de governo e políticas de Estado: distinções necessárias. Disponível em: . Acesso em: 17-6-2011. 406 Não por acaso, um dos que utiliza essa expressão é Maurice Hauriou. Politica giuridica e materia del diritto. In: Maurice Hauriou. Teoria dell’Istituzione e della Fundazione (Widar Cesarini Sforza – org.). Milano: Giuffrè, 1967, p. 119-169. Também Alf Ross, Direito e Justiça, cit. 407 Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [obra de 1934], Prefácio à 1ª edição, p. XI. 408 Uma das divergências entre Hauriou e Santi Romano é o problema das fontes do direito. Para o primeiro, a instituição é fonte do direito; para o segundo, é o próprio direito. Santi Romano defendia o pluralismo jurídico. 409 Paolo Grossi. Introdução à edição brasileira de L’Ordinamento Giuridico. In: O Ordenamento Jurídico. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, p. 26. 410 Konrad Hesse. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1991. 411 Heller, Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 273, ou, conforme a referência de Doehring, como “unidade orgânica de decisão e produtora de efeitos” (Teoria do Estado, cit., p. 16). 412 Karl Doehring. Teoria do Estado, cit., p. 15. 413 No mesmo sentido, entre outros, Mario Gomes Schapiro. Novos Parâmetros para a Intervenção do Estado na Economia. São Paulo: Saraiva, 2010. 414 Essa ideia foi trabalhada em meu O conceito de política pública em direito (in Políticas Públicas, cit.), com referência às diferentes expressões e suportes jurídicos das políticas públicas. 415 Humberto Falcão e Arnaldo Cunha Jr. entendem que “não há um único melhor desenho; as estruturas são contingentes”, ainda que isso possa parecer paradoxal, visto que as estruturas geralmente são mais permanentes e os processos nelas apoiados é que sofrem as contingências passageiras. Mas a observação da prática da administração pública evidencia que “o desempenho organizacional depende de uma lógica de contínuo ajustamento estrutural”. Humberto Falcão Martins e Luiz Arnaldo Pereira da Cunha Jr. Organização governamental – Problemas e soluções em perspectiva conceitual e da administração pública brasileira. In: Nova Organização Administrativa Brasileira
(Paulo Modesto – coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 247-279. Ver item 2.2.a, acima, comentário sobre a questão organizacional e o processo administrativo. 416 Hart, O Conceito de Direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 50. 417 Ross, Direito e Justiça , cit., p. 85. 418 Neil MacCormick. Institutions of Law. An Essay in Legal Theory. Oxford: Orford University Press, 2007, p. 2. 419 MacCormick, ob. cit. p. 11. 420 Ver item 3.1.b, acima. 421 Hegel. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa: Guimarães Ed., 1986, p. 43 [obra de 1820]. 422 “§ 19. [...] o homem descobre em si, como dado da consciência, que quer o direito, a sociedade, o Estado etc. Mais tarde, aparecerá uma outra forma do mesmo conteúdo; agora o seu aspecto é o do instinto, mais tarde será o do dever.” Hegel, ob. cit. 423 “§ 149. [...] Mas o que na realidade o indivíduo encontra no dever é uma dupla libertação: liberta-se, por um lado, da dependência resultante dos instintos naturais e bem assim da opressão em que se encontra como subjetividade particular submetida à reflexão moral do dever ser e do possível; liberta-se, por outro lado, da subjetividade indefinida que não alcança a existência nem a determinação objetiva da ação e fica encerrada em si como inatual. No dever, o indivíduo liberta-se e alcança a liberdade substancial.” Hegel, ob. cit. 424 “§ 195. [...] Orienta-se o estado social para a indefinida complicação e especificação das carências, das técnicas e das fruições até aquele limite que é a diferença entre a carência natural e a carência artificial. Daí provém o luxo que é, ao mesmo tempo, um aumento infinito da dependência e da miséria.” Hegel, ob. cit. 425 Entre nós são exemplos dessa modalidade os termos de ajustamento de conduta, largamente utilizados pelo Ministério Público para induzir o cumprimento das regras, entre outros. Outra vertente, mais desenvolvida em outros países, é a da negociação no momento da formação das relações jurídicas. Olivier Soubeyran. Définir les politiques. L’étude d’impact de l’aménagement à l’environnement. In: L’Analyse des Politiques Publiques aux Prises avec le Droit (Didier Renard et al. – coords.). Paris: LGDJ, 2000, p. 183-206. 426 Jacques Chevallier. L’État de Droit. Paris: Montchrestien, 1992, p. 13. 427 Competência administrativa, para Hely Lopes Meirelles, é “o poder atribuído ao agente da Administração para o desempenho específico de suas funções. A competência resulta da lei e é por ela delimitada” ( Direito Administrativo, cit., p. 134). 428 Max Weber define a noção de competência ao tratar da “dominação por meio de organização” como a primeira característica do modo de dominação burocrática e que evidentemente inspira o regramento jurídico sobre competência, ainda atual: “O funcionamento específico do funcionalismo moderno manifesta-se da forma seguinte: I. Rege o princípio das competências oficiais fixas, ordenadas, de forma geral, mediante regras: leis ou regulamentos administrativos, isto é: 1) existe uma distribuição fixa das atividades regularmente necessárias para realizar os fins do complexo burocraticamente dominado, como deveres oficiais; 2) os poderes de mando, necessários para cumprir estes deveres, estão também fixamente distribuídos, e os meios coativos (físicos, sacros ou outros) que eventualmente podem empregar estão também fixamente delimitados por regras; 3) para o cumprimento regular e contínuo dos deveres assim distribuídos e o exercício dos direitos correspondentes criam-se providências planejadas, contratando pessoas com qualificação regulamentada de forma geral”. Economia e Sociedade, cit., p. 198. 429 Hely Lopes Meirelles distingue os poderes administrativos dos políticos. Os primeiros são considerados “poderes instrumentais, diversamente dos poderes políticos, que são estruturais e orgânicos, porque compõem a estrutura do Estado e integram a organização constitucional” ( Direito Administrativo, cit., p. 100). 430 “Carl Schmitt afirma que só a partir do estado de exceção pode ser posto, em toda a sua profundidade, o problema da realização do direito, pois trata-se da essência do Estado, da questão da manutenção da unidade política. A normalidade não demonstra nada, só a exceção prova tudo, pois a regra vive da exceção. A soberania, simultaneamente, afirma e nega a ordem. Toda ordem repousa sobre uma decisão, não sobre uma norma. O estado de exceção não é apenas o oposto da ordem constitucional da normalidade, mas seu fundamento, a partir da decisão do soberano. O soberano decide sobre a situação na qual o direito pode valer”. (Gilberto Bercovici. Soberania e Constituição: para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 27-28 – grifo meu.) 431 Raquel Rolnik. A Cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp, 1997, p. 13-14. 432 Idem, ibidem. 433 O discurso normativo, segundo essa teoria, apresenta uma ambiguidade estrutural, consistente no fato de que o endereçado da norma é convidado a participar, codeterminando o sentido do relato da norma, mas ao mesmo tempo deve apenas submeter-se a ela. O relato, isto é, a informação transmitida pela norma, é mediado pelo cometimento, ou seja, a informação sobre a informação, ou como a norma deve ser compreendida. “Os discursos normativos são dialógicos no que se refere ao aspecto relato, monológicos, no que se refere ao aspecto cometimento.” Trata-se de uma formulação mais sofisticada, do ponto de vista jurídico, da situação da autoridade normativa. As limitações das teorias baseadas na imperatividade do comando normativo, em que a vontade é hipostasiada, com recurso a “metáforas de interpretação duvidosa e imprecisa (vontade da maioria, do governo, da administração, do povo etc.)”, levam a buscar uma compreensão do fenômeno comunicativo, que possa, também, auxiliar no entendimento de um tipo novo de norma, que aparece nas declarações de princípio das modernas constituições, nas quais “o caráter de comando é pouco visível”. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Teoria, cit., p. 38 e 45. 434 Ferraz Jr., ob. cit., p. 57. 435 A esse respeito, veja-se o relato de Maquiavel: “Logo que se apoderou da Romanha, tendo-a encontrado, em geral, sujeita a fracos senhores, que mais espoliavam do que governavam os seus súditos, dando-lhes apenas motivo de desunião (tanto que aquela província estava cheia de latrocínios, de tumultos e de toda sorte de violências), julgou o duque que era necessário, para torná-la pacífica e obediente ao braço
régio, dar-lhe bom governo. E ali colocou, então, Ramiro de Orco, homem cruel e expedito, ao qual outorgou plenos poderes. Este, em pouco tempo, conseguiu fazer com que a Romanha se tornasse pacífica e unida, tendo alcançado ele mesmo grande reputação. O duque julgou depois que já não era necessária tanta autoridade, pois temia que se tornasse odiosa. E constituiu um juízo civil no centro da província, com um presidente ilustre e benquisto, e onde cada cidade estava representada. Sabendo que os rigores passados haviam criado ódios contra ele próprio, para apagá-los do ânimo daqueles povos e conquistá-los a todos, definitivamente, em tudo, quis demonstrar que, se haviam sido cometidas crueldades, não procediam dele e sim da dureza do caráter do ministro. E em vista disso, tendo ocasião, mandou exibi-lo certa manhã, em Cesena, em praça pública, cortado em dois, tendo ao lado um pedaço de pau e uma faca ensanguentada. A ferocidade desse espetáculo fez com que o povo ficasse a um tempo satisfeito e espantado.” O Príncipe, cit., cap. VII, p. 58. 436 Bobbio, L’analisi funzionale del diritto, in Dalla Struttura alla Funzione, cit., p. 103, com base em J. Willard Hurst e outros. No mesmo sentido, Cassese, A Crise do Estado, cit., p. 87, “[...] mesmo no tradicional conflito entre autoridade e liberdade há uma função distributiva: ‘a atividade administrativa implica distribuição de pesos e vantagens’ e, portanto, a alocação de recursos limitados’”. 437 “Duas pessoas jurídicas podem, ainda que sem outro intervento estranho e sem o concurso de outros elementos, formar por si uma instituição. Isso porque a sua estrutura interna é toda criação do direito [...]”. Santi Romano, L’ Ordinamento Giuridico, cit., p. 68. 438 É o que sustenta Natalino Irti. “Ninguém duvida que o mercado seja uma ordem, [...] ordem no sentido de regularidade e previsibilidade do agir: quem entra no mercado – no mercado de um dado bem – sabe que o agir, próprio e alheio, é governado por regras, e portanto que, na medida definida por tais regras, os comportamentos são previsíveis. [..] Mas como introduzir regularidade e previsibilidade em um espaço que aparece dominado por necessidades e desejos singulares, por interesses individuais que se revelam e compõem de forma mutável? Como transcender a irrepetível solidão de cada ato no reiterar-se de comportamentos típicos? A regularidade, constitutiva da ordem, implica sempre a superação da individualidade; a previsibilidade envolve sempre um vínculo mútuo, e assim seja dado a cada parte conhecer o futuro e confiar nas ações dos outros. Este retornar a reconhecer-se as ações, desprezando singularidade das circunstâncias, exige sempre um fundamento de caráter objetivo, uma continuidade governada e controlada. Os sujeitos, estipulando um acordo qualquer (da locação ao mútuo, do contrato ao mandato) podem prever e calcular seus futuros comportamentos, apenas por referência comum a um critério , que esteja acima deles e a eles se imponha. Eles sabem que, firmado o vínculo do acordo, as vontades devem orientar-se segundo um princípio geral, mais forte e mais constante que os mutáveis interesses individuais. Estes são enfim transcendidos na estabilidade objetiva de um critério de ulgamento. L’Ordine Giuridico del Mercato. 4. ed. Roma-Bari: Laterza, 2001, p. 5-6 – grifos no original. 439 Ana Maria de Oliveira Nusdeo. Pagamento por Serviços Ambientais no Brasil. Elementos para uma Regulação Ambientalmente Íntegra e Socialmente Justa. Tese de Livre-Docência apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 117. Segundo a autora, a crítica à implementação atual do mecanismo reside no fato de que a preponderância dos interesses dos compradores de adquirir mais créditos por menores custos tende a dar contribuições medíocres ao desenvolvimento sustentável. 440 Sabino Cassese, A Crise do Estado, cit., p. 22. 441 “A sanção, de fato, acreditamos que possa não estar contida e ameaçada em cada norma específica: pode, ao invés, ser imanente e latente nas próprias engrenagens, no aparato orgânico do ordenamento jurídico considerado no seu complexo, pode ser força operante também de modo indireto, garantia prática que não dá lugar a nenhum direito subjetivo, e, portanto, a nenhuma norma da qual tal direito derive, freio conatural e necessário do poder social.” Santi Romano, L’ Ordinamento Giuridico, cit., p. 23-24. 442 “[...]os fundamentos de um sistema jurídico consistem, não num hábito geral de obediência a um soberano juridicamente ilimitado, mas numa regra última de reconhecimento que prevê critérios dotados de autoridade para a identificação de regras válidas do sistema. Esta tese assemelha-se em alguns aspectos à concepção de Kelsen de uma norma fundamental [...]”. Herbert L. A. Hart. O Conceito de Direito, cit., p. 274. O paralelo entre a regra de reconhecimento e a norma fundamental pressuposta estaria no fato de que ambas estabelecem a conexão primeira entre a política e o direito. Na verdade, a noção da existência de mecanismos de reconhecimento pelo direito estatal, em relação a ordens estranhas ao Estado, foi antecipada por Santi Romano em seu ensaio sobre o pluralismo jurídico, de 1918, a propósito do ordenamento da Igreja católica em suas relações com o Estado: “Deste modo, a autonomia da Igreja católica somente poderia ser um poder não atribuído pelo Estado, sendo que este último somente o reconhece, quando o reconhece; o que equivale a admitir que tal poder preexiste em relação ao reconhecimento estatal, que este último não é o seu fundamento, mas a condição para que possa ser legitimamente exercitado perante o ordenamento do Estado e com os efeitos que se dizem civis. A falta do reconhecimento comporta somente a falta de tais efeitos, mas não a sua ineficácia no âmbito estranho ao Estado”. Santi Romano. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. Tradução de Arno Dal Ri. Florianópolis: Ed. da Fundação Boiteux, 2011, cit., p. 137-241, p. 146. 443 Hart, O Conceito de Direito, cit., p. 276. 444 Ilustrativo desse raciocínio seria o caso da norma penal em branco em matéria de drogas, cujo completo delineamento, para a incidência do tipo penal que diferencia a simples comercialização do tráfico ilícito, depende de disposições infralegais que arrolam as substâncias entorpecentes. A identificação dessas substâncias, que ensejam tratamento mais rigoroso, do ponto de vista penal, insere-se na esfera de domínios do conhecimento estranhos ao direito, como a farmacologia e a medicina, com os quais o direito se conecta, por meio da regra de reconhecimento. Outra ilustração seria a fixação do prazo de validade de alimentos pela autoridade sanitária, sabendo que a degradação biológica dos alimentos pode ser descrita segundo parâmetros temporais médios, estatisticamente identificados, embora isso não signifique que não haja amostras daqueles alimentos que possam perecer em período inferior ao prazo ou, ao contrário, durar mais do que este, uma vez que a regra jurídica consubstancia uma abstração em relação ao plano dos fenômenos da vida analisados pela biologia.
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À GUISA DE CONCLUSÃO. DIRETRIZES PARA UM MÉTODO JURÍDICO DE ANÁLISE E CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
4.1 Método como recorte epistemológico: ordenação dos caminhos de conhecimento e intervenção
O estabelecimento de um método é um passo necessário às novas abordagens do conhecimento, se pretendem compartilhar suas perspectivas sobre um objeto, a partir de certos pressupostos, referências teóricas, instrumentos e procedimentos. O termo método remete à ideia de “caminho, percurso”. Há inúmeros exemplos, na história do pensamento, da fixação do método como base para o desenvolvimento de determinada forma de apreender as características de um objeto que passa a ser considerado relevante para a ciência, visando compreendê-lo e analisá-lo. Na obra coletiva de edificação do conhecimento humano, foram sendo sedimentadas camadas, a partir da crítica das formas de entendimento em vigor e da proposição de novos processos de estruturação e evolução do saber. Nas ciências sociais, os trabalhos de Weber445, Comte e Durkheim446 foram importantes, não apenas para estruturar a área de conhecimento, mas também por fazê-lo de modo que o objeto se desse a conhecer pelas suas próprias características, e não pela inclinação prévia do pesquisador. Jellinek447, nos primórdios do estabelecimento da teoria geral do Estado como disciplina, dedica um capítulo de sua obra maior ao método, assim como Herman Heller448. A estruturação da disciplina, também entre nós, foi precedida da afirmação das bases metodológicas, que devem integrar, necessariamente, a dimensão fática e a compreensão jurídica449. O direito econômico, campo com o qual a abordagem das políticas públicas no direito tem evidentes afinidades, também evoluiu lentamente, a partir das transformações nas relações entre o direito e a economia que sucederam o fim da Primeira Guerra Mundial, a revelar a exaustão do paradigma institucional-econômico do século XIX. Mas encontrou base para seu desenvolvimento na sistematização da reflexão teórica sobre temas que, ao mesmo tempo, vinham sendo progressivamente objeto de tratamento pelo direito positivo, à medida que se intensificavam e diversificavam as formas de intervenção do Estado no e sobre o domínio econômico450. O movimento que deu origem à nova feição da ciência política nos anos 1950, baseada nos estudos empíricos, é uma referência importante para a análise jurídica de políticas públicas, também sob o aspecto do método. O legado mais importante da corrente da policy analisis talvez tenha sido exatamente a incorporação da observação prática e da multidisciplinaridade. Em 1951, formou-se um grupo interdisciplinar na Universidade de Chicago, sob a coordenação do Departamento de Psicologia, para uma discussão sobre os problemas comuns em uma abordagem de sistemas nas ciências físicas, biológicas e sociais451. Foi necessário superar alguns problemas iniciais, “diferenças de linguagem,
perspectivas e expectativas em relação ao método – conceitos comuns para fenômenos diferentes, diferentes conceitos para fenômenos quase idênticos, variando a ênfase na necessidade de quantificação”452. Mas a experiência revelou a riqueza do veio metodológico aberto: “as perspectivas de uma análise de sistemas servem para ligar todas as ciências, naturais e sociais; ajudam a tornar possível e proveitosa a comunicação interdisciplinar e geram problemas comuns que podem ser resolvidos por discussão interdisciplinar”453. Na publicação resultante de um seminário realizado em 1963, Easton não esconde seu entusiasmo com aquilo que denomina “revolução teórica”, que resulta exatamente da aplicação do método científico à ciência política, assim como às demais ciências sociais. “No método reside a unidade básica de toda a ciência”454. “Porém, quando ficamos alertas para a variedade de modelos alternativos existentes fora da ciência política, modelos que procuram seduzir os cientistas políticos a adotarem suas diferentes formas de perceber os problemas de análise política geral, somos forçosamente despertados para outra força unificadora trabalhando ativamente na história de qualquer ciência, tanto social como natural. Ela abre a possibilidade de que não mais precisemos atribuir a unidade de toda a ciência unicamente ao método. É provável que tomando emprestadas teorias umas das outras, as ciências tenham podido manter, todas, alguma conexão, senão coesão, mínima, mesmo em face de seus objetos diversos e das tendências centrífugas da especialização. Aqui se encontra uma força negligenciada, trabalhando em prol da unidade das disciplinas. Ao verificarmos o parentesco entre a ciência política e relevantes teorias exteriores a ela, lembramo-nos que em todas as épocas existiam padrões teóricos dominantes que se infiltraram em todas as áreas básicas do conhecimento. Mas esses padrões teóricos não se tornaram dominantes através de alguma força etérea, mística, mas porque de fato são tomados de empréstimo de uma disciplina por outra e adaptados às necessidades da que recebe. Durante séculos, a mecânica newtoniana resistiu como modelo teórico para as ciências sociais bem como para as naturais. A teoria evolucionista de Darwin permeou todos os domínios do pensamento na última metade do século XIX. De forma similar, hoje, a cibernética – a ciência da comunicação e do controle, ou em sua concepção mais ampla, a análise de sistemas – espalhou-se por todos os campos de realização intelectual” 455.
A despeito desse entusiasmo, o empirismo deve manter abertas as portas para tradições e referências conceituais das teorias estabelecidas. Giovanni Sartori critica os excessos do empirismo, que o fazem tachar a então nova abordagem de “democracia confusa”, a reclamar uma “faxina conceitual”456, o que não o impedia, contudo, de valorizar a dimensão empírica da democracia e seus saberes. “Em termos simples, uma vez instalada a democracia, podemos ter uma ‘teoria empírica’ de democracia: mas antes, e como condição preliminar, precisamos de uma teoria toutcourt . O artefato ‘democracia’ tem que ser concebido e construído antes de ser observado. As democracias existem porque nós as inventamos, porque estão em nossas mentes e na medida em que soubermos como mantê-las vivas e em boas condições” 457.
Considerando a questão reversamente, o fato é que a ausência ou debilidade de método podem comprometer o desenvolvimento de um campo ou abordagem. Um método é condição necessária para o trabalho sistemático e estruturado de análise jurídica de políticas públicas, com a apreciação de um conjunto amplo de casos, por comunidades de pesquisadores, resultando em conhecimento em profundidade e densidade. Nesse sentido, o estado da pesquisa que relaciona direito e políticas públicas ainda tem muito a avançar em relação ao enunciado nos textos pioneiros458. Em trabalhos anteriores, apontei alguns passos desse caminho. Em O conceito de política pública em direito, a despeito de adotar uma conceituação para aplicação prática, concluí que a conceituação, nesse caso, seria sempre imprecisa, dada a natureza complexa, multifacetada e transdisciplinar do fenômeno olítica pública. Haveria um conceito “de que se servem os juristas”, não propriamente um conceito urídico, baseado em categorias jurídicas459. Independentemente disso, parece claro que o dilema há de ser dirimido a partir dos resultados de
trabalho proporcionado pelo estudo sistemático, com base em um método de análise jurídica. Essa direção foi explorada posteriormente em “Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas”, em que alinhavei algumas premissas e diretrizes, visando balizar as linhas de trabalho de uma metodologia no campo do direito. “a) Premissas: a.1) Políticas públicas como arranjos institucionais complexos; a.2) A decisão governamental como problema central da análise de políticas públicas; a.3) Estipulação da ação racional, estratégica e em escala ampla como identificadora das políticas públicas; b) Premissas negativas: b.1) As políticas públicas não podem e não devem ser reduzidas às disposições jurídicas com as quais se relacionam; b.2) As políticas públicas permanecem como categoria de análise e estruturação da ação do Estado, mesmo superado o paradigma do Estado de bem-estar social; b.3) As políticas públicas não se reduzem às políticas sociais; c) Diretrizes metodológicas: c.1) Não criar um ‘direito das políticas públicas’; c.2) Não tomar a noção de política pública como categoria jurídica; c.3) Realizar aproximações com campos ou temas estabelecidos na teoria jurídica; c.4) Formular uma metodologia geral, a partir da sistematização de estudos de caso, com base na análise da estruturação e funcionamento jurídicos de políticas públicas selecionadas” 460.
Este trabalho tem como objeto principal a compreensão do governo, enquanto instituição jurídica, fundamento necessário para uma teoria das políticas públicas baseada no direito. Os três planos de aproximação propostos permitiram confirmar que a existência do poder, como aspecto central do Estado, não afasta múltiplas outras ordens de fenômenos que influem sobre a atuação do governo, o criador e implementador de políticas públicas, por excelência. Posto o fenômeno governamental no nível mais próximo de observação, o microinstitucional, pode-se analisar o papel das subjetividades, os indivíduos, os grupos, seus interesses atomizados ou agregados. A categoria epistemológica processo, com sua carga de significados tanto para o campo do direito, conforme analisado no capítulo 2, como para a ciência política e demais ciências sociais, passa a ser o referencial para a compreensão de como se formam as decisões governamentais no nível microinstitucional e como são executadas, e quais as formas que organizam o enfrentamento dos conflitos e suas soluções no interior do aparelho do Estado. Num nível de maior distanciamento, podem-se ver as formas de organização de nível médio (middle range), ou o plano mesoinstitucional da ação governamental. Nesse plano, toma-se como referência a categoria das instituições, considerando a larga tradição dessa figura no direito, descrita no capítulo 3, e seu enraizamento na ciência política, para compreender a dimensão objetiva da ação governamental, expressa nos arranjos institucionais, que transcendem a abrangência individual, as iniciativas dos governantes e demais partícipes da ação, para assumir significados coletivos. A compreensão da dinâmica governamental, seus arranjos institucionais e seus processos, não visa, como observado, “definir um campo”, mas estruturar uma abordagem ou perspectiva que permita a sistematização e agregação de conhecimentos sobre as políticas públicas, combinando elementos do direito, política, economia e gestão pública, especialmente. Essa abordagem estruturada deve possibilitar que pesquisadores de várias formações participem, de forma colaborativa, de pesquisas comuns, compondo um acervo de práticas epistemológicas sobre padrões governamentais, jurídicos e conexos com as disciplinas afins, incorporando e elaborando experiências e habilitando à construção de um instrumental de análise e ação passível de ser utilizado e replicado em outros programas de ação governamental, para a potencialização das forças sociais subjacentes à ordem democrática. 4.2 Método como técnica. Repertórios estruturados de estudos de casos
a) Modelos analíticos e experiências. Dedução e indução As políticas públicas caracterizam-se pela fragmentação, diversidade e complexidade de formas, objetos e dinâmicas. O agregado de atos e iniciativas carece de um elemento de unidade. Uma das
dificuldades em conceituar a figura da política pública decorre do fato de que se trata de um fenômeno que não tem propriamente essência ou traço identificador aplicável universalmente, o qual se explicitaria num conceito. Desde que haja uma formulação adequada das questões pertinentes ao conhecimento dessa figura e suas relações, ela perderá sua “blindagem cognitiva”, abrindo-se à sistematização por categorias ou por elementos comuns, tais como os processos ou as instituições. Retoma-se aqui a dualidade problema-sistema, referida a propósito da aplicação da teoria da argumentação aos processos jurídicos de políticas públicas461. Parece mais propícia, como ponto de partida para a análise de uma política pública, a noção de problema do que a noção de sistema, mesmo que reconheçamos a existência de uma componente sistemática em todo arranjo institucional que concretiza o programa de ação governamental462. Ainda que possa parecer paradoxal, o ideal seria trabalhar com problemas de modo sistemático, isto é, compondo um sistema. Assim se poderia alcançar uma abordagem cognitiva dúplice combinando as dimensões dedutiva e indutiva. No aspecto dedutivo, o desafio reside em formular hipóteses e modelos analíticos de interações entre os vários elementos presentes na realidade das políticas públicas. Na dimensão indutiva, a capacidade de conhecer a realidade no nível de proximidade maior, com detalhamento, e a conjugação de ambas permitindo verificar a acuidade e precisão dos modelos teóricos. Rigorosamente, as questões de políticas públicas são “problemas” (ou casos). E estes poderiam ser trabalhados no interior de “sistemas” (ou modelos analíticos). O método problemático seria particularmente útil em vista da riqueza da experiência, ainda que variada e dispersa. O raciocínio dedutivo atuaria para sistematizar o acervo de casos, de acordo com premissas conceituais de diversos ângulos, organizadas numa “trama de pontos de vista”, representação para uma epistemologia das políticas públicas baseada na constituição de redes de conhecimento e atuação prática. Um método que venha a desenvolver-se deve contemplar, de maneira complementar, o uso da dedução e da indução; o pensamento por problemas e a inserção destes num sistema. A consideração dos problemas, de maneira estruturada, segundo critérios de apreciação definidos numa organização sistemática, permite isolar aspectos a serem comparados ou analisados de maneira controlada. Com isso, possibilita-se coletar e trabalhar experiências escolhidas, analisando cada um de seus elementos. Isso viabiliza a emulação consciente de modelos, aproveitando uma prática que ocorre, muitas vezes de maneira irrefletida, de reproduzir padrões ou fragmentos de políticas públicas em uso. Sem pretensão de recuar desnecessariamente na história, a referência à obra de Francis Bacon, na fundação do conhecimento científico moderno, é inspiradora para a definição do método baseado na observação empírica, com regras para a chamada “experiência escriturada”, isto é, o registro e a análise das características de elementos e ocorrências naturais, com base na observação controlada em experimentos, como na passagem que se tornou clássica. “Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intacto na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional” 463.
Embora se trate de método descrito há quatro séculos, suas linhas gerais são pertinentes para este trabalho, na medida em que indicam um modo de construir um conhecimento sistematizado, que abarque a experiência concreta individualizada464, de que a prática do direito é pródiga em exemplos, como as
hipóteses contidas em modelos analíticos de âmbito mais geral, sujeitos ao dever de verificação, corolário do pensamento científico. A abordagem dedutiva, do geral para o particular, é mais apropriada para a construção dos modelos analíticos, nos quais se organiza a compreensão de como se formam e atuam as políticas públicas. A abordagem indutiva consubstancia-se em inferências, a partir de casos concretos e particulares, até as hipóteses gerais, formuladas nos modelos. Aristóteles comparava a aplicabilidade dos dois tipos de raciocínio, observando que “enquanto o raciocínio indutivo é mais convincente e mais claro (por ser mais facilmente apreendido pela percepção sensorial, além de compartilhado pela maioria das pessoas), o dedutivo detém maior vigor racional e é mais eficaz contra os contestadores”465. Os modelos teóricos passíveis de verificação empírica controlada são importantes para que as experiências possam servir para validá-los. “Nossas teorias modelam o que observamos”, segundo uma frase atribuída a Einstein, o que significa que a observação empírica se guia pela hipótese teórica.
b) “Famílias” ou casotecas. Método comparativo: isolamento e correlação de variáveis jurídicas A complementaridade dos raciocínios sistemático e problemático no campo das políticas públicas leva a considerar como especialmente adequada a essa abordagem a técnica do estudo de caso de maneira regular, para comparar conjuntos de casos. A reflexão proveniente da prática jurídica, embora nem sempre na forma de casos estruturados segundo um método conscientemente observado, é bastante familiar ao mundo jurídico. Aquele que vive o direito na prática profissional cotidiana tende a escolher como objeto de análise exemplos de sua vivência pessoal. E dessa vivência extraem-se os dilemas do direito. Nesse sentido, a separação das visões do direito, segundo uma abordagem associada à atuação profissional – que foi legitimada, entre nós, com a vulgarização da separação de “dogmática” o “zetética”–, não auxilia a evolução da ciência jurídica, ao contrário, tende a empobrecê-la466. O tratamento sistemático de políticas públicas em conjuntos de casos comparáveis visa conferir profundidade ao método. Essa ótica faz parte do acervo empírico da pesquisa, tanto no campo do direito como das ciências sociais de maneira geral. Ao confrontar determinado instituto, arranjo ou inovação legislativa, é quase intuitivo buscar a comparação com modelos adotados em outros países, outras épocas, ou em relação a outros direitos (sistema de saúde e sistema de educação, por exemplo). Na área jurídica, o primeiro ponto de apoio é a base normativa da política, recorrendo-se com frequência à narrativa que recupera seu histórico. O método comparativo tem tradição no direito, sob a rubrica do “direito comparado”. Na verdade, ao sistematizar esse método, os autores que o fizeram preocuparam-se precipuamente com as condições da comparação, visando alertar para algumas possíveis impropriedades que poderiam resultar, por exemplo, do desconhecimento das distinções estruturais entre os sistemas da common law, inspirado na experiência inglesa e posteriormente na dos Estados Unidos, e o da civil law ou romanístico, cuja fonte é o direito romano e os seus tributários. O que não é usual é a análise sistemática apoiada num método de isolamento de variáveis – para o nosso objeto de interesse, jurídicas, ou juridicamente disciplinadas – que apontem razões de sucesso o insucesso de determinada ação governamental. Esse procedimento é adotado, com certeza, mas de forma individual e pouco apropriada à extração de resultados de maior alcance. O desafio é criar o roteiro ou chave de análise, que permita as comparações entre casos, de modo a proporcionar o acúmulo que viabilizará os estudos de segundo nível, isto é, com base na reflexão sobre as descobertas empíricas a partir da comparação de dados e do isolamento de variáveis. Esse roteiro
deve ser baseado em critérios ou elementos-chave para comparação. As comparações devem ser estruturadas, com base em visões compartilhadas entre vários pesquisadores ou grupos de pesquisadores. E o método será tanto mais útil na medida em que esses elementos coincidam com referências de sentido para cada tipo de interesse. Se se quer conferir maior profundidade à investigação e posteriormente replicar os resultados para outros campos, é necessário identificar as variáveis que influenciam a ação. O estabelecimento de correlações entre essas variáveis poderá elucidar o peso real de determinados aspectos sobre a apreciação da política ou do arranjo institucional como um todo. Esse método permite, assim como nas ciências da natureza, superar a apreciação subjetiva do pesquisador e perceber concretamente o objeto e suas injunções. Na verdade, método semelhante é utilizado nas ciências sociais aplicadas, com inspiração nas ciências exatas e biológicas, há muito tempo467. Elege-se determinada variável, propõe-se uma métrica estatisticamente consistente, e a partir daí estabelecem-se correlações com outros fatores, o que permite a extração de conclusões que ultrapassam o subjetivismo das opiniões. Quando a comparação se baseia em indicadores quantitativos, a linguagem matemática funciona como elemento de conexão entre os vários domínios sujeitos a comparação. A primeira tarefa do pesquisador é exatamente organizar o domínio a ser pesquisado e estruturar a coleta de dados de forma a obter expressões matemáticas dos fenômenos mais relevantes, cuja comparação possa fornecer informações significativas. A econometria faz isso, assim como as pesquisas eleitorais, as pesquisas sobre diminuição da pobreza, avanço ou retrocesso de indicadores sociais, violência policial, realidade urbana etc. Num universo em que os indicadores nem sempre são quantificáveis, no entanto, essa estratégia pode não ser possível. Um século e meio atrás, quando foi descrita a importância da assepsia nas intervenções médicas, os médicos desprezavam a ideia de um saber que avança com base na observação controlada da realidade468. A partir daí, com a adoção do método científico, as práticas médicas mudaram de patamar, que se expressa em indicadores de aumento de expectativa de vida e redução da mortalidade. Isso se deve, entre outros fatores de ordem social, à adoção de linguagens e códigos que permitem aos profissionais e estudiosos da saúde comunicarem-se, pesquisando e trocando informações sobre doenças, procedimentos curativos, formas de observação e acompanhamento, com resultados evidentes sobre a saúde humana. Em outras palavras, a medicina ganhou escala. Com o direito, isso não ocorreu. O direito ainda hoje é objeto de um fazer artesanal, “taylor made”, cada caso é um caso, estatuto que talvez permaneça na era da sociedade de massa, em razão da pretensa autoridade que conservam os profissionais e estudiosos do direito, como provedores de soluções particulares para cada caso concreto. Sem questionar as situações postas, é forçoso admitir a necessidade do trabalho em escala quando se trata da “política jurídica”, isto é, da formação do direito, para a composição das novas situações jurídicas. Esse trabalho jurídico em escala é indispensável para as demandas da democracia de massa. O trabalho jurídico com políticas públicas, em diálogo com outras áreas que se ocupam do tema, deverá ser desenvolvido a partir da construção de um acervo ou repertório de casos469. A estruturação deve-se apoiar sobre um roteiro de trabalho que oriente a coleta e análise de quantidade razoável de material, em estudos de casos e “famílias de casos” de políticas públicas, pela ótica dos arranjos o modelos institucionais. Os casos consubstanciariam sistematização e estudos de material primário, de acordo com um modelo de organização e análise conscientemente voltado ao trabalho futuro em segundo grau, baseado na comparação com casos análogos. As “famílias de casos” consubstanciariam base para
análises de segundo nível, mais elaboradas, visando extrair ensinamentos e orientações para outros arranjos, a serem propostos no futuro, no campo da elaboração de políticas públicas. A aplicação do método incumbiria a líderes de pesquisas, de modo que a coleta de material e estudos de primeiro nível pudessem ser feitos por pesquisadores iniciantes, aos quais caberia a descrição precisa e a compreensão do caso específico. A análise de segundo nível, com o isolamento das variáveis e verificação dos efeitos de cada uma, seria feita num nível mais elaborado, a partir da prática habitual da comparação institucional.
c) Representação do conhecimento: categorias e referências. Desenvolvimento colaborativo: a questão da escala As tecnologias da informação e comunicação representam muito mais que uma janela de oportunidade para profunda reformulação nos modos de atuação do Estado. Essa oportunidade existe, e deve ser considerada, é verdade, para dar um “salto” tecnológico que permita rapidamente superar décadas de atraso na organização dos processos e decisões governamentais. Mas há mais do que isso. As tecnologias de informação e comunicação passam por um processo vertiginoso de disseminação, com a expansão de usuários e de usos das suas ferramentas, no mundo todo. Esse movimento demanda um esforço de entendimento mútuo que merece atenção, como inspirador da iniciativa metodológica em nosso campo de interesse. Por trás de mecanismos de âmbito global, de consulta simples e resposta ágil (como é o caso do Google e da Wikipédia, para citar apenas dois dos exemplos mais conhecidos), existe uma sofisticada concepção da organização e da representação do conhecimento, baseada na teoria do conhecimento e na lógica470. As ferramentas ou “motores de busca” organizados a partir dessa formulação viabilizam que o resultado de determinada busca corresponda ao que efetivamente procura o pesquisador. Considerando que as informações da rede (world wide web, “teia de abrangência mundial”, numa tradução literal) são caóticas, isto é, aleatórias, não ordenadas, e por definição anárquicas, sem governo ou hierarquia, caso os buscadores não suprissem essa lacuna com seus próprios critérios de orientação da procura, com base em conceitos lógicos bem estruturados, essa operação não seria possível471. O mesmo princípio de organização do conhecimento que permite a uma infinidade de pessoas trabalhar coletivamente em assuntos diversos na rede mundial deve viabilizar a construção de um universo de noções comuns para a pesquisa e intercâmbio de informações sobre direito e políticas públicas. Esse princípio deve embasar os repertórios estruturados de casos e consiste na elaboração de taxonomias relacionadas ao âmbito do conhecimento pretendido. Um desafio conjunto a enfrentar por uma comunidade de pesquisa é a construção dessa “árvore do conhecimento”, em que se estruturam as principais categorias, seus atributos e suas relações, de modo que se possa aplicá-las aos casos que integram o repertório. Essa chave comum de classificações é que permite comparar experiências e intercambiar análises que se agreguem sobre um objeto determinado. As referências sobre a metodologia de estudos comparados no campo da ciência política refere a adoção de uma base conceitual comum como importante fator de desenvolvimento do campo472. Em relação à abordagem que relaciona direito e políticas públicas, a chave comum se estruturaria sobre a noção de ação governamental, a partir da qual seria construída uma taxonomia de modelos urídico-institucionais de políticas públicas e seus elementos, cuja aplicação, imagina-se, resultaria em grande força analítica. Na verdade, pode-se cogitar não de uma, mas de várias taxonomias, conforme as delimitações temáticas adotadas. Exemplificativamente, poder-se-ia adotar como elemento-chave para comparação áreas ou temas,
conforme a disposição constitucional, que, não por acaso, corresponde à especialização das estruturas governamentais competentes, tais como direito da habitação, da saúde, da educação etc. O direito público, em virtude de sua característica organizativa, conforme examinado no capítulo 2, tende a prover referências objetivas para esse tipo de sistematização, que orientaria a construção do acervo de casos. A abordagem por tema é talvez a mais usual na área da gestão pública, que ao pretender formular uma proposta inovadora de intervenção ou analisar modos de intervenção delimita o objeto da política pública pelo tema. Em seguida, aplica outros recortes, tais como o territorial e o temporal, mas a focalização do tema é o elemento que permite a comparação relevante. Ou ainda poderia ser organizada a comparação entre legislações similares para determinados assuntos, proposta que tem certo viés institucionalista; a sistematização não é dada pelo pesquisador a riori, mas elaborada a partir da forma como os assuntos foram legislados, reconhecida a partir do dado da realidade. Isso já ocorre, em alguma medida, em pesquisas de direito comparado, abordagem que poderia ser desenvolvida, com base na estruturação de conhecimento que se imagina. Ao se adotar, por exemplo, a comparação entre legislações sobre determinada matéria em vários países, o primeiro passo seria delimitar o universo da comparação identificando os países pertinentes; o segundo passo, definir os quesitos da comparação, podendo-se adotar os fundamentos da teoria jurídica das políticas públicas indicados neste trabalho como referências de comparação, em especial no tocante aos quesitos objetivos, institucionais, e subjetivos, processuais (administrativo, judicial, legislativo, orçamentário) ou alguns de seus elementos (decisões, competência, financiamento, sustentabilidade, acompanhamento, efeitos).
445 Max Weber. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: Metodologia das Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999, p. 107-154. 446 Émile Durkheim. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2009 [obra de 1895]. 447 Georg Jellinek. Teoría General del Estado. Montevideo-Buenos Aires: Julio Cesar Faira, Editor, 2005, cap. 2, p. 85-114 [obra de 1900]. 448 Herman Heller. Teoria do Estado, cit., 1968. 449 Paulo Bonavides. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, cap. 1. 450 Fábio Konder Comparato. O indispensável direito econômico. RT , v. 353, mar. 1965, p. 14 e s. 451 David Easton. Uma Teoria de Análise Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 15. 452 Easton, ob. cit., p. 16. 453 Idem, ibidem. 454 Easton, Modalidades de Análise Política, cit., p. 22. 455 Easton, Modalidades de Análise Política, cit., p. 22-23. Eduardo Marques, partindo da premissa do “esgotamento explicativo dos modelos macroteóricos representados principalmente pelo funcionalismo e pelo marxismo, diante de um mundo em transformação”, enxerga caminhos para as ciências sociais na busca de “convergência. Em vez de se insistir nas polêmicas entre modelos explicativos, alguns partindo das estruturas e outros da ação, a ordem do dia parece ser a produção de análises, trabalhos teóricos e metateóricos que permitam um diálogo entre paradigmas e matrizes disciplinares, incorporando e articulando olhares em vez de tentar hegemonizar um determinado campo de questões”. Notas críticas à literatura sobre Estado, políticas estatais e atores políticos. BIB, Rio de Janeiro, n. 43, 1º semestre de 1997, p. 67102, espec. p. 67. 456 Sartori, Teoria, cit., v. 1. 457 Sartori, Teoria, cit., v. 1, p. 37. 458 Charles-Albert Morand. Le Droit Néo-Moderne des Politiques Publiques. Paris: LGDJ, 1999. No Brasil, Fábio Konder Comparato. Ensaio sobre o juízo constitucional de políticas públicas . In: Direito Administrativo e Constitucional. Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba (Celso Antônio Bandeira de Mello – org.). São Paulo: Malheiros, 1997. 459 A busca de um conceito jurídico de política pública inspirou a obra coletiva, por mim coordenada, Políticas Públicas: Ref lexões sobre o Conceito Jurídico, cit. No artigo de abertura, “O conceito de política pública em direito”, cujo título é exatamente o mote da procura
conceitual, concluí, ainda sem a clareza de razões que se apresenta no presente trabalho, que não era possível ou útil estabelecer tal conceito, sendo mais frutífera a busca de um método de análise jurídica de políticas públicas, cujas diretrizes são objeto deste tópico (p. 47). 460 Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas, in Políticas Públicas, cit., p. 248-258. 461 Ver item 2.1.b, acima. 462 Ver item 2.1.b, acima, o tópico A valorização do processo e a teoria da argumentação jurídica . 463 Francis Bacon. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999, § XCV [obra de 1620]. O nome da obra é uma referência ao Organon, de Aristóteles, cuja Tópica já foi referida neste trabalho, e cujo título pode ser traduzido como “instrumentos”. Ambos podem ser considerados métodos de organização racional do pensamento e sua demonstração. 464 “[...] introduziu-se na filosofia, no que respeita à experiência, a mesma prática de um reino ou estado que cuidasse de seus negócios, não à base de informações de representantes ou núncios fidedignos, mas dos rumores ou mexericos de seus cidadãos. Nada se encontra na história natural devidamente investigado, verificado, classificado, pesado e medido. E o que no reino da observação é indefinido e vago é falacioso e infiel na informação.” [...] § C. “Mas é necessário, ainda, introduzir-se um método completamente novo, uma ordem nova e um novo processo, para continuar a promover a experiência. Pois a experiência vaga, deixada a si mesma, como antes já se disse, é um mero tateio, e presta-se mais a confundir os homens que a informá-los. Mas quando a experiência proceder de acordo com leis seguras e de forma gradual e constante, poder-se-á esperar algo de melhor da ciência.” 465 Aristóteles, A Política, cit., Livro I, XII, p. 361. 466 No mesmo sentido, Alf Ross, Direito e Justiça, cit., p. 20. 467 Fred Kerlinger. Metodologia da Pesquisa em Ciências Sociais. 11. reimp. São Paulo: EPU, 2009. 468 Louis-Ferdinand Céline. A Vida e a Obra de Semmelweis. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, Sherwin B. Nuland. A Peste dos Médicos. Germes, Febre Pós-Parto e a Estranha História de Ignác Semmelweis. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 469 Roberto Freitas Filho e Thalita Moraes Lima. Metodologia de análise de decisões. Anais do Conselho Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Direito (CONPEDI). Disponível em: . Acesso em: 1º-8-2011; Bent Flyvbjerg. Five misunderstandings about case-study research. Qualitative Inquiry, v. 12, n. 2, April 2006, p. 219-245; Michael Burawoy. The Extended Case Method. Sociological Theory, v. 16, n. 1, Mar., 1998, p. 4-33. 470 Tim Berners-Lee, James Hendler e Ora Lassila. The Semantic Web. Scientific American, maio 2001, p. 35-43. 471 Roberto Figueiredo Paletta de Cerqueira e Marcello Peixoto Bax.Método de modelagem domínio-ontológica do direito positivo brasileiro. VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação ( ENANCIB), 28 a 31-10-2007, Salvador; Danièle Bourcier, Patricia Hasset e Christophe Roquilly. Droit et Intelligence, cit. Ver referência aos modelos institucionais, item 3.2.a. 472 “ Modern comparative politics has made great progress in this respect as a result of the efforts of the field’s innovators to f ashion universally applicable vocabularies of basic politically relevant concepts, notably the approaches based on Parsonian theory and Gabriel A. Almond’s functional approach. Such a restatement of variables in comparable terms makes many previously inaccessible cases available for comparative analysis.” Arendt Lipjhart. Comparative Politics and the Comparative Method. The American Political Science Review, v. 65, n. 3, Sep., 1971, p. 682-693.
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