Itinerário de Antígona: a questão da moralidade (Do livro: Itinerário de Antígona: A Questão da Moralidade, Bárbara Freitag, SP, Papirus, 1992) 1992) Introdução
A questão da moralidade pode ser estudada valendo-se de uma pergunta aparentemente simples: "Como devo agir?". Essa pergunta, todavia, desencadeia uma série de novas perguntas: -
Como possa julgar a minha ação ou a dos outros? Quais os critérios segundo os quais faço esse julgamento? Segundo que máximas, princípios ou valores deve orientar-se (minha ou) a ação (dos outros)? Como posso ter certeza de que os princípios (ou valores) pelos quais oriento a minha ação ou julgo a ação dos outros sejam os princípios certos, justos e corretos? Qual a relação entre a moralidade individual e a normatividade social?
A resposta a todas essas perguntas não esgotaria a problemática da moralidade, já que cada pergunta gera uma infinidade de outras, que por sua vez exigiriam respostas cada vez mais sofisticadas. Mas formular perguntas pertinentes já é meio caminho andado para a solução de problema. Antes de aventurar-me na busca de respostas pertinentes, arriscarei algumas observações gerais. As perguntas acima relacionadas dão destaque ao sujeito que age; sua ação pode ser submetida a um julgamento; esse julgamento julgamento orienta-se por certos critérios ou valores; valores; esses critérios ou valores valores podem ser transformados (ou não) em máximas ou princípios para orientar as ações - as próprias ou as dos outros - no futuro próximo. Isso significa que: 1. a moralidade tem que ver com a ação ação,, mais especificamente, com a ação de um ego, self ou self ou sujeito que relaciona sua ação com a ação dos outros (interação); assim sendo, a moralidade passa a ser ser um assunto de interesse interesse da sociologia. sociologia. 2. a moralidade pode ser lida com os critérios do julgamento segundo os quais a própria ação ou a dos outros é analisada, criticada ou julgada; essa análise criteriosa da ação pressupõe um sujeito consciente, uma consciência moral, capaz, capaz, de julgar o certo e o errado, o bem e o mal, o justo e o injusto; assim assim sendo, a moralidade moralidade passa a ser um assunto de interesse da filosofia; 3. a moralidade pressupõe uma causa da ação, uma explicação para as razões que levaram o sujeito a agir assim e não de outra forma; atribuímos razões, motivos, intencionalidade ao ator; no momento em que procuramos explicar uma ação, localizando sua origem na psique, na alma, na vontade, na razão do sujeito, nesse momento a moralidade passa a ser um assunto de interesse da psicologia. Enquanto a sociologia pergunta pelas conseqüências objetivas de uma ação no contexto social, a filosofia pergunta pelos critérios ou princípios (conscientes) que orientaram essa ação, e a psicologia tenta desvendar as causas subjetivas (os impulsos, os motivos) que levaram o sujeito a agir consciente ou inconscientemente desta e não de outra forma. f orma. 1
Os três enfoques admitem em geral uma vontade (livre) para agir, alternativas de ação (segundo critérios e meios variáveis), o que necessariamente leva a conseqüências alternativas da ação. Em outras palavras, a questão da moralidade implica uma concepção de (relativa) liberdade do ator. O ator pode ser levado a agir por diferentes razões ou motivo; pode utilizar-se de diferentes critérios e meios para justificar a sua ação, provocando (mais ou menos intencionalmente, conscientemente) essas ou aquelas conseqüências de seus atos. Mas se a moralidade é uma questão sociológica por estudar a ação de um ego em relação a um alter, ela não pode ser tratada exaustivamente pela sociologia, porque esta concentra sua atenção nas ações sociais regulares, padronizadas (em papéis, regras e prescrições socialmente sancionadas), institucionalizadas (em instituições como a Igreja, o Estado etc.). Em outras palavras, a sociologia negligencia o aspecto subjetivo da moralidade, a consciência moral. Por isso não surpreende que o tema da moralidade (com exceção de Durkheim) não tenha recebido muita atenção dos sociólogos. A sociologia, com sua ênfase nas ações objetivadas, institucionalizadas, não seria capaz de sozinha responder às perguntas acima formuladas. Algo semelhante ocorre com a filosofia moral. Herdeira da teologia, ela assume a reflexão sobre os valores e critérios (ancorados no sujeito) que orientam sua ação e controlam o seu julgamento. Ela, contudo, não conseguiu por si só resolver a questão da moralidade, justamente por ter concentrado sua atenção na consciência moral, negligenciando tanto as conseqüências objetivas da ação de um sujeito em um dado contexto social quanto os aspectos irracionais, inconscientes da ação. Por isso mesmo, a filosofia também não seria capaz de esgotar, com sua reflexão, a problemática da moralidade. Coube à psicologia sublinhar ao lado dos motivos conscientes intencionais de qualquer ação, já ressaltados pela filosofia, os motivos (impulsos não-intencionados) inconscientes que levam um sujeito a agir, muitas vezes contra sua vontade ou seus interesses. Mas, se a moralidade fosse reduzida à questão do mero comportamento pulsional de um organismo, estamos reduzindo a questão da moralidade a unia questão biológica; se a víssemos exclusivamente com o olho do psicanalista, tudo teria sua razão de ser em estruturas (inconscientes) que não obedecem à vontade do ego. Assim sendo, o sujeito não pode ser responsabilizado pelos seus atos, já que suas pulsões escapam ao seu controle consciente. Nesse caso, não faz sentido perguntar "Como devo agir?, pois não há liberdade (subjetiva) de ação. Se admitirmos a versão da psicogênese das categorias morais da criança, a exemplo do estruturalismo genético, fica excluída a reflexão sobre a objetivação das ações e suas conseqüências materiais e sociais (objetivações). Por estas (e outras razões) tampouco a psicologia conseguiria responder, sem recurso às outras disciplinas, às questões vinculadas à moralidade. A ação moral pressupõe, como já vimos, um sujeito da ação, livre, dotado de vontade e razão, capaz de controlar e orientar os seus atos segundo certos critérios e princípios, disposto a assumir conscientemente as conseqüências desses atos, responsabilizando-se por eles. Por isso a questão da moralidade exige um tratamento multidisciplinar; ela não pode ser estudada de forma compartimentalizada e isolada, seja pela sociologia, seja pela filosofia, seja pela psicologia. Ela pressupõe um tratamento capaz de integrar várias óticas. Entre essas, a filosofia, a sociologia e a psicologia certamente assumem um lugar privilegiado. Acredito que um tratamento interdisciplinar que busque na herança filosófica da Ilustração, na teoria sociológica critica e na psicologia genética os elementos para delimitar as condições da possibilidade de nossa ação em dados contextos sociais possa responder melhor às muitas perguntas levantadas no início deste capitulo, ajudando a definir o espaço de liberdade de cada ator em contextos sociais e políticos pré-estruturados. Este tipo de tratamento permite reformular as perguntas iniciais e buscar respostas capazes de abranger as dimensões centrais da questão da moralidade. 2
Qual a liberdade de ação de um sujeito em uma dada sociedade? Mais especificamente: Como um alemão dos anos 30 poderia ter agido no contexto do nacional-socialismo? ou: Como um cidadão brasileiro pode agir no contexto da sociedade de classes brasileira, marcada pelas extremas desigualdades sociais, econômicas e políticas que a caracterizam nesse final do século XX? Este livro pretende ser uma reflexão critica sobre os limites e as possibilidades da ação social do indivíduo em contextos estruturais pré-configurados. Ao fazer a crítica do pensamento sociológico clássico e contemporâneo, o livro procura delimitar o espaço de liberdade possível ao sujeito que vive em sociedade. Ao revisar os pontos de vista filosóficos, procura evitar a idealização do sujeito como ser racional onipotente e onisciente, um verdadeiro Ubermensch (super-homem) na versão nietzscheana. Ao recorrer à psicologia genética, pretendo não cair num reducionismo psicológico mas apontar para uma concepção dinâmica de um sujeito em formação. Esse sujeito não é, a priori, livre, dotado de vontade e razão, capaz de orientar sua ação em princípios auto-elaborados. O sujeito epistêmico da filosofia crítica de Kant é substituído pelo sujeito em formação e transformação permanente, à luz da experiência. Trata-se de um sujeito que pretende a liberdade, a autonomia, a justiça e a igualdade e reconhece os seus limites internos e externos, agindo adequadamente (racionalmente) nos dados contextos sociais, transformando-os, para aumentar o espaço de liberdade individual e coletiva. Assim, a mobilização interdisciplinar das ciências humanas é necessária para compreender a questão moral. Mas a recíproca também é verdadeira. As ciências humanas só podem justificar-se hoje em dia se contribuírem para uma resposta aos desafios do presente, e esses desafios são todos de natureza ética: a batalha pela paz, pelo desenvolvimento e pela preservação da natureza. As ciências humanas ajudam a elucidar a moralidade; esta dá sua justificativa contemporânea às ciências humanas Este livro tenta situar-se no centro dessa dialética. Parte 1
A FILOSOFIA DA MORALIDADE "O mundo trágico exclui a hierarquia dos saberes e a união do saber e do poder que a filosofia crê realizar. Poderes e saberes enfrentam-se nessa opacidade que separa o mundo dos deuses daquele dos homens, e na qual é necessário, a todo instante, escolher." ( Vidal-Naquet) Capitulo 1 A MORALIDADE ENTRE OS GREGOS: DA TRAGÉDIA A FILOSOFIA Quem triunfa então aqui? Claramente, é o Desejo, o Desejo nascido dos olhares da virgem prometida ao leito de seu esposo, o Desejo, cujo lugar é ao lado das grandes leis, entre os senhores deste mundo. Antígona (Sófocles) Há muitos argumentos que podem ser usados em favor da inclusão de um capitulo especial sobre a moralidade entre os gregos da Antigüidade clássica. A Grécia de Homero a Péricles lançou os fundamentos da civilização ocidental. A filosofia contemporânea seria literalmente impensável sem o trabalho pioneiro dos filósofos gregos: Sócrates, Platão, Aristóteles e tantos outros. Em suas obras 3
encontramos a sistematização e a delimitação dos grandes temas filosóficos, a definição de seu objeto, a elaboração dos seus conceitos, que até hoje mobilizam a reflexão filosófica, inclusive sobre a moralidade e a ética. Aliás, foram justamente os gregos da Antigüidade clássica que deram um tratamento filosófico (e não teológico) à questão da moralidade, inaugurando uma tradição que seria levada adiante, em toda a radicalidade, pela filosofia da Ilustração. Todas as grandes escolas, correntes e autoridades da filosofia moral que sucederam aos gregos citam, criticam, retomam, idolatram ou diabolizam o pensamento filosófico grego, ponto de partida e de chegada de quase todos os modelos ou sistemas do pensamento subseqüente. Mas também existem muitos argumentos contra a inclusão de um capítulo sobre a moralidade entre os gregos em nosso debate. À vista do peso e da complexidade da contribuição do pensamento grego para a questão da moralidade, impõe-se o seu tratamento em profundidade e extensão. Para fugir da acusação da superficialidade, o tema teria de ser desdobrado em vários capítulos. Isso, por sua vez, poria em risco o programa inter- e multidisciplinar esboçado na introdução. Para escapar à visão unidimensional (filosófica) do problema, propus justamente a inclusão da dimensão psicológica e sociológica, focalizando, entre outras, as contribuições modernas ao tema. Para escapar ao dilema, a solução mais fácil seria a omissão do capítulo. Uma vez que o pensamento grego é retomado, refletido e debatido por quase todas as correntes subseqüentes da filosofia moral, poder-se-ia evitar a repetição, o eterno retomo dos mesmos argumentos, pela omissão do capítulo. Os prós e contras poderiam ser multiplicados, buscando-se sempre novas formas de equilíbrio. Não é essa a minha intenção. Este capítulo sobre a moralidade entre os gregos não pretende ser una reconstrução exaustiva do pensamento grego sobre o assunto, assim como o livro não pretende ser uma história da filosofia moral de Homero até os nossos dias (cf. MacIntyre, 1987). A referência à moralidade da Grécia serve como um fio condutor através do livro. Assim como Teseu serviu-se do fio de Ariadne para escapar do labirinto do Minotauro de Creta, assim a citação da moralidade grega fornece o fio vermelho que permite escapar do emaranhado da questão moral. O mito, a tragédia e a filosofia grega fazem menção dos aspectos fundamentais e centrais da questão, dando-lhe coerência e unidade. No tratamento da questão, de Homero aos nossos dias, a moralidade foi sendo fracionada e desmembrada. Passou a ser submetida a uma divisão do trabalho segundo a qual teóricos e críticos literários, filósofos, historiadores, psicólogos, sociólogos, cientistas políticos e outros escolhiam um ou outro aspecto do seu interesse, desenvolvendo-o em todos os detalhes, sem ocupar-se dos demais, deixados ao encargo de outros especialistas igualmente unilaterais, interessados em outros aspectos igualmente parciais. A referência à moralidade entre os gregos da Antigüidade clássica tem por isso mesmo uma função metafórica: ela faz alusão à possibilidade de apresentar o tema da moralidade em sua complexidade, em suas múltiplas dimensões e estratificações, sem apagar os conflitos e as contradições, sem reduzir as dimensões, sem simplificar o drama e o enredo, sem perder de vista a unidade e a coerência da questão. Ao discutirmos a questão valendo-nos dos enfoques filosófico, sociológico e psicológico, voltaremos ao palco grego, iluminando os personagens e as relações que o respectivo autor ou corrente passaram a sublinhar, deixando as demais no escuro. A escolha dos paradigmas (e, no interior de um paradigma, a escolha dos autores) foi feita de modo que se desse voz a cada protagonista (mesmo aos não previstos pelos gregos). 4
O presente capítulo tem, por isso mesmo, dupla função: de critério de seleção e ao mesmo tempo de Wegweiser (marco de estrada). O discurso dramático
A tragédia grega tinha (cf. Vidal-Naquet, 1973) pelo menos três funções básicas: a expressão artística, a educação do público e a função catártica. 1. A expressão artística do dramaturgo revela-se no domínio perfeito da linguagem, comunicando, na tragédia em questão, emoções, problemas ou conflitos emocionais e morais de um grupo ou uma coletividade a um público mais amplo. 2. A educação do público ocorre quando a tragédia encena os vários pontos de vista de um problema ou conflito, sob a forma de diálogos, permitindo ao público formar sua própria opinião, ouvidos os argumentos de todas as partes. 3. A função catártica é preenchida quando uma peça permite reduzir, no público, a tensão pulsional, provocada pelos conflitos individuais e sociais encenados, por meio da identificação das pessoas do público com um ou outro personagem da peça. A tragédia grega alimenta-se da mitologia. O mito, forma original de representação das emoções, dos conflitos, das ações humanas projetadas em personagens mitológicos, fornece a matéria-prima para a trama dos protagonistas da tragédia. Aqui são encenados emoções e conflitos universais, vinculados inevitavelmente à condição humana, com fim trágico (a morte) de quase todos os personagens. Os atores e suas ações assumem feições típico-ideais, quase caricaturais. Dessa forma, a tragédia grega exprime, nos planos dramático e literário, os traços essenciais da questão moral. Mostra com toda a nitidez os dilemas e as contradições nas quais envolvem-se os seres humanos, inseridos em situações conflitantes que os impelem para a ação. Agir é perigoso. Mas é preciso agir, pois a ação exprime, em sua essência, a vida. Se a questão da moralidade encontrou na tragédia grega sua expressão dramática mais refinada e elucidativa, a Antígona de Sófocles é, sem dúvida, um dos seus mais belos exemplos. Nessa peça, o conflito sobe ao palco, encarnado em vários personagens, entre os quais Antígona e Creonte assumem os pontos extremos de uma polaridade. Vale a pena recapitular o contexto geral da peça. Antígona é filha de Édipo, rei de Tebas. Em outra tragédia, Sófocles havia relatado o triste destino desse personagem, que, por desvendar o enigma da esfinge e virar rei de Tebas, tornara-se - sem saber - duplamente culpado. Édipo comete parricídio e pratica o incesto, atraindo a ira dos deuses sobre si e sobre Tebas. Para apaziguar os deuses e fazer penitência, ele abandona o trono de Tebas, errando cego pelo mundo. Do casamento incestuoso de Édipo com sua mãe, Jocasta, haviam nascido quatro filhos: Polinice, Etéocles, Ismena e Antígona. Creonte, irmão de Jocasta, e portanto tio de Antígona, havia usurpado o trono de Tebas. Polinice contesta pelas armas a legitimidade do novo tirano de Tebas, que é apoiado por Etéocles. No combate às portas de Tebas, os irmãos caem no campo de batalha, um ferido pela mão do outro. Creonte decide distinguir Etéocles como herói da cidade, homenageando-o com, os funerais de um guerreiro que morrera defendendo Tebas, e castigar Polinice corno traidor, negando-lhe os funerais tradicionais. Decreta ainda a pena de morte contra aquele que ousasse enterrar Polinice, para assegurar-lhe a vida eterna nos Campos Elíseos. Desta forma, Creonte cria um conflito existencial para as irmãs de Polinice - Antígona e Ismena -, que segundo a tradição grega devem enterrar os seus mortos segundo um certo ritual. Ambas enfrentam de 5
diferentes maneiras o conflito entre a lei do oikós, ou dos deuses, e a lei da polis, ou dos homens: Antígona obedece à primeira lei; Ismena, à segunda. Seguindo a voz de sua consciência e fazendo valer a lei da família ( oikós), Antígona decide enterrar Polinice, contrariando as ordens do tirano. Creonte castiga-a de morte, mandando enterrá-la viva, em nome da lei da polis ou dos homens. Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, decide suicidar-se diante do mundo da noiva, o que por sua vez leva Eurídice, mãe do rapaz e esposa de Creonte, a suicidar-se. Sobrevivem Creonte e Ismena. Esta não tivera coragem de ajudar Antígona a enterrar o irmão Polinice, mas defende Antígona diante de Creonte, depois do ato consumado. Corre, assim, o risco de sofrer o mesmo destino de sua irmã. Creonte, interpelado pelo coro (os anciãos; de Tebas), pelo corifeu (seu porta-voz) e por Tirésias (o filósofo sábio e cego, chamado "o Divino"), tenta revogar sua decisão, perdoando a pena. Tarde demais, contudo; as três mortes já estavam consumadas. A questão moral aqui encenada pode ser tratada de vários pontos de vista (cf. Freitag, 1989a). Na análise que segue, procurarei concentrar-me no conflito moral vivido por Antígona e Creonte, segundo as intenções dramatúrgicas de Sófocles. Nessa peça, Sófocles preenche magistralmente as três funções básicas da tragédia. A análise da primeira função (a expressão artística) fica reservada aos meus colegas de teoria e crítica literária. Cabe apenas lembrar que Sófocles transforma literariamente o mito grego em um drama universal vivido, de uma forma ou outra, por cada um de nós. Quais seriam as intenções pedagógicas (segunda função da tragédia) da peça Antígona? Sem dúvida, Sófocles quer mostrar ao seu público que toda ação humana é suscetível de erro, que cada ponto de vista defendido tem sua razão de ser, remetendo contudo ao ponto de vista radicalmente contrário, cujas validade e legitimidade vão se tornando evidentes no desdobramento da trama de cada personagem. Sófocles empreende uma verdadeira conscientização do seu público. Antígona representa a lei divina (do oikós, ou seja, da família grega), em nome da qual enterra o irmão e contraria o tirano de Tebas. Creonte representa a lei dos homens (da polis, isto é, do Estado grego), em nome da qual condena Antígona à morte, ferindo a lei do oikós (as relações de parentesco entre tio e sobrinha). Se no início da peça esses princípios de ação parecem ser inconciliáveis, representando alternativas de ação excludentes que não permitem nenhuma mediação, muito menos uma conciliação, o espectador (o leitor) é, no final da peça, convencido do contrário. Ele aprende a ver as mediações e a hierarquia existentes entre lei divina e lei dos homens. Age mal todo aquele que não compreender essa mediação e essa hierarquia. Antígona, desconhecendo e desrespeitando a lei dos homens, paga a sua ação com a morte. Ela sabia da punição prevista para a sua transgressão da lei dos homens e estava disposta a sofrer essa conseqüência. O que ela não sabia é que ela estava arrastando para a morte Hêmon e Eurídice, ambos inocentes, ferindo assim, despropositadamente, a lei divina. Também não lhe ocorreu que poderia estar provocando a ira dos deuses, visto que assumia o ponto de vista da justiça divina, infalível e absoluta. Tarde demais ela se dá conta de que sofrerá, ela própria, o destino do qual quis preservar o irmão Polinice: não terá os funerais tradicionais que lhe assegurariam a vida eterna nos Campos Elíseos. Finalmente, lamenta-se por ter abdicado a vida, antes de vivê-la e degustá-la. Os deuses não retribuem sua ação com reconhecimento ou compaixão. A razão e a vontade divina permanecem impenetráveis ao humano. Somente restam os homens (o coro dos anciãos, o corifeu e Tirésias) para reconhecer o gesto magnânimo e o sacrifício absurdo da jovem virgem. Creonte, o tirano, está absolutamente convicto da legalidade e legitimidade de sua decisão de proibir os funerais de Polinice e condenar Antígona à morte. Mas, quando é alertado pelo coro, pelo corifeu e por Tirésias, corrige a sua intransigência, procurando reverter a decisão inicial. Mas os deuses não lhe 6
perdoam a precipitação e lhe impõem o sacrifício do filho e da mulher amada. Creonte é forçado a admitir a vigência simultânea. das duas leis, a dos deuses e a dos homens. E mais, que a primeira, representando o principio da vida, é hierarquicamente superior à lei elaborada pelos mortais. Também ele desespera diante do destino implacável e intransparente à razão humana, traçado arbitrariamente pelos deuses para os mortais. O espectador aprendeu, no final da peça, que é preciso reconhecer os princípios de ação em conflito, ponderá-los adequadamente e reconhecer a sua hierarquia implícita. O espectador aprende com os erros e a intolerância de Antígona e Creonte. Ambos tiveram de aprender, a duras penas, que é, exatamente tal qual era, como acontece com o divino, mas deixando sempre em lugar do indivíduo que se vai e envelhece um. jovem que se assemelha a ele". (Platão, 1964, p. 69). A prática do bem coincide com a busca interminável do conhecimento, da verdade por parte do homem, ingredientes indispensáveis da justiça. Esse ensinamento de Sófocles é retomado por Platão na alegoria da caverna: os homens acorrentados, prisioneiros na caverna, são incapazes de voltar-se para a luz que ilumina a entrada da caverna. Somente percebem as suas sombras, projetadas por essa luz nas paredes internas da caverna. Os objetos que passam e desfilam lá fora são projetados, graças à luz vinda de fora, nas paredes internas. Só as sombras são visíveis para os homens acorrentados. O sol que os ilumina é, para Platão, a idéia do bem, causa da ciência e da existência. Essa idéia é o limite do mundo inteligível, mas também é o ápice de uma hierarquia de idéias que reproduz a metáfora apresentada no Fedro: a alma escalando o céu, seguindo um cortejo divino. Para Platão, a teoria moral coincide com a busca do bem. Essa busca, por sua vez, encontra sua expressão mais nobre ria produção do saber filosófico, no saber que busca a verdade e a justiça. Como é sabido, a teoria psicológica de Platão atribuía à alma humana três virtudes (hierarquizadas): o instinto, a coragem e a razão. No instinto, manifestam-se os desejos carnais, considerados inferiores mas essenciais para a sobrevivência e a reprodução do homem. Ele constitui a base da hierarquia da alma. A coragem é a expressão dos desejos superiores, elevados, do homem A coragem dá testemunho da existência de uma vontade livre e autônoma; ela ocupa o patamar intermediário da organização da alma. Finalmente, a razão, sediada no topo da organização da alma, é a expressão da capacidade de contemplação, sabedoria e temperança do homem. Por meio da razão o homem consegue governar sua vontade e seus instintos, estabelecendo um equilíbrio entre as três virtudes. É fácil verificar que cada uma das virtudes está sediada em uma parte do corpo humano: os instintos, no abdome; a coragem, rio peito (coração); e a razão, na cabeça (cérebro) dos homens. As virtudes da alma correspondem, as virtudes do Estado ou do corpo social, que preenchem as funções vitais do todo societário; o governo, a defesa e a reprodução. A cada instância corresponde um grupo de pessoas adequadas para preencher as funções (virtudes) essenciais para a sobrevivência do corpo social: os filósofos constituem a cabeça do corpo social, ocupando-se do governo, do exercício da justiça e da busca do equilíbrio entre as forças; os guerreiros constituem os braços e o tórax do corpo social, ocupando-se da defesa corajosa da polis; e, finalmente, os trabalhadores e artesãos correspondem, à parte inferior do corpo social, assegurando a produção e reprodução material que garante a sobrevivência do corpo social. As virtudes do corpo social, da politeia, não são as mesmas para cada grupo social. A virtude, como prática do bem, consiste em executar bem a tarefa predeterminada para cada grupo social, ria divisão de trabalho acima idealizada. À harmonia entre as três funções da alma (desejo, vontade, razão), assegurada pela autoridade da razão, corresponde a harmonia estabelecida entre filósofos (e magistrados), guerreiros e trabalhadores (e artesãos), habilmente obtida graças ao conhecimento e à capacidade de governo dos filósofos. 7
A educação, no interior de cada um dos agrupamentos sociais (estamentos), é o instrumento que permite obter o preenchimento satisfatório das funções em cada um dos grupos. Essa educação inclui o aprimoramento de todas as virtudes da alma, destinando-se simultaneamente a homens e mulheres, e dela fazem parte, além do ensinamento de habilidades manuais e intelectuais, o ensino da música e da ginástica. A seleção dos futuros filósofos faz-se não somente entre os filósofos e magistrados mas entre os melhores dos três grupos sociais (filósofos, guerreiros e artesãos). Essa ordem social e ética é válida para cada cidade grega, em si autônoma (Atenas, Esparta, Tebas e tantas outras). Vemos que o filósofo grego d'A República já introduz unia distinção, que futuramente será retomada por Kant e Hegel, entre moralidade e ética. A moralidade ocupa-se das virtudes da alma; a ética, das virtudes da polis. A primeira reflete filosoficamente as condições subjetivas da ação correta; a segunda, as condições objetivas. Uma toma como base a ação do indivíduo; a outra, a ação da polis do Estado, do todo social. A moralidade responde à pergunta do indivíduo isolado sobre como agir de forma moralmente correta, na busca do bem pessoal; a ética responde à pergunta dos governantes sobre como agir de forma política correta, na busca do bem coletivo. Entre os gregos, a polarização indivíduo-sociedade, cidadão- polis (Estado) não tem o significado que tem em nossas sociedades contemporâneas. O cidadão grego era inconcebível como um ser isolado do Estado. Por isso, moralidade e ética são dois lados de uma mesma medalha. O ser moralmente competente é aquele que consegue assegurar um equilíbrio entre seus desejos, sua vontade e sua razão, que por isso mesmo coincide com o cidadão livre , membro da polis grega. A polis eticamente saudável é a que consegue integrar os interesses dos governantes, guerreiros e artesãos, assegurando a equilíbrio do todo social. A liberdade de ação (individual e coletiva), por definição, refere-se aos homens livres, aos membros da polis, aos cidadãos. Os escravos, os estrangeiros, como ficavam fora da polis, não eram considerados membros do corpo social, razão pela qual Platão não os inclui em sua reflexão. Aristóteles
Em seus diálogos (0 banquete, A república), Platão discute a questão moral e ética no contexto indissociável do verdadeiro, do belo e do justo. Em sua obra filosófica, Aristóteles procura sistematizar a reflexão filosófica grega, distinguindo entre a teoria e a Práxis. A teoria ocupa-se da física e da metafísica, enquanto a práxis é dividida em política e moral, lógica e poética. Dos quatro tratados de moral atribuídos a Aristóteles ( Ética a Nicômano, Ética a Eudemo, Grande moral e Tratado das virtudes e dos vícios), somente a Ética a Nicômano é considerada autêntica, não havendo dúvidas sobre sua autoria. Nicômano é o nome de seu filho, a quem Aristóteles destinava esses ensinamentos morais. O objetivo supremo da prática aristotélica é a felicidade. O eudemonismo e, pois, o traço constitutivo da moralidade aristotélica. Mas essa busca da felicidade assume traços distintos para as elites e para as massas, para o filósofo e para o homem comum. Jean Volquin, em sua introdução à Ética a Nicômano explicita: a moral grega é uma moral aristocrática que atinge uma elite. Ela é cultivada por homens sábios, felizes e materialmente privilegiados. Ela exclui crianças, escravos e trabalhadores manuais (Volquin, 1965, p. 12). 8
A felicidade para Aristóteles consiste não na virtude suprema em si (objetivo máximo para Platão) mas na atividade ajustada à virtude. Essa atividade não consiste na ascese mas deve estar acompanhada de prazer. "A felicidade confunde-se com a virtude em geral ou com alguma virtude em especial, porque a felicidade é, na nossa opinião, a atividade da alma voltada para a virtude". (Aristóteles, 1965, p. 31). À virtude Aristóteles opõe o vício: "A virtude, no que se refere aos prazeres e às penas, é a capacidade que mencionamos de executar as mais belas ações; e o vicio é a disposição em contrário" (Aristóteles, 1965, P. 49). A Ética a Nicômano pode ser encarada como um tratado das virtudes do homem. Por isso, Aristóteles discute, em cada um dos capítulos desse tratado, uma virtude (básica), contrapondo a cada uma delas o seu oposto, o vício. A Ética compreende duas categorias de virtudes (e vícios): as virtudes morais (calcadas na vontade) e as virtudes intelectuais (calcadas na razão). São exemplos de virtudes morais: a coragem, a generosidade, a magnificência, a doçura, a amizade, a justiça. São considerados vícios: a covardia, a mesquinharia, a desonestidade, a cólera, a inimizade, a injustiça, que correspondem homologamente àquelas virtudes. São exemplos de virtudes intelectuais: a sabedoria (à qual se opõe o vicio da ignorância), a temperança (oposta à intemperança), a inteligência (oposta à estupidez) e a verdade (oposta à mentira). A ação repousa numa qualidade adquirida, voluntária, em que a razão estabelece a boa medida, o equilíbrio entre os externos. Essa ação é justa quando consegue equilibrar todas as virtudes morais; ela é verdadeira quando consegue alcançar todas as virtudes intelectuais. Justiça é, pois, o objetivo da ação moral, e a verdade, o objetivo da ação intelectual, já que a justiça representa a síntese ideal de todas as virtudes morais, e a verdade, a as virtudes intelectuais. As virtudes morais são conseqüência da vida, da experiência, do tempo e da idade. Elas decorrem da ação e não podem ser ensinadas. Mas, a massa da população procura sua felicidade no prazer carnal e material, por ser bruta e ignorante, ao passo que a elite procura a felicidade no prazer imaterial, no conhecimento e no amor à verdade. Por isso, a ação moral somente é encontrada entre os membros da elite, dos sábios, dos homens dotados de razão, temperança e sabedoria. A teoria moral de Aristóteles é, como a de Platão, aristocrática, para não dizer elitista. Mas, ao contrário de Platão, Aristóteles faz urna distinção nítida entre a justiça moral e a justiça da lei. A justiça moral é a virtude adquirida pelo sujeito na experiência e no controle racional dos seus desejos, praticando com temperança as virtudes morais. A justiça da lei (direito contratual e direito restitutivo) é unia justiça geral, universal, rígida que se aplica a todos e ignora o caso particular. Agir de forma justa significa fazer justiça no caso concreto, exigindo a aplicação da lei geral ao caso particular. Nesse caso, a justiça da lei mediada pela justiça moral. A justiça é a mais importante das virtudes, porque ela contém todas as demais, mas ela também é uma virtude completa, porque estabelece a relação com o outro. A idéia de justiça pressupõe a reciprocidade, a igualdade e o respeito às leis. "A justiça é aquilo que é capaz de criar ou salvaguardar, no todo ou em parte, a felicidade da comunidade política." (Aristóteles, 1965, p. 125). Platão x Aristóteles
Confrontando o pensamento filosófico de Platão e Aristóteles, podemos chegar às seguintes constatações (provisórias): 9
1. Aristóteles é herdeiro do Pensamento de Platão e sistematiza e aprofunda, na Ética a Nicômano, os temas tratados pelo autor d'A República. Os elementos de uma teoria moral dispersa nos diálogos de Platão são reorganizados e inseridos, devidamente ordenados, no sistema filosófico de Aristóteles. 2. Aristóteles abandona definitivamente o plano dramatúrgico, ainda presente nos diálogos de Piarão, movimentando-se exclusivamente no plano filosófico. A sedução e a espontaneidade dos diálogos platônicos cedem lugar ao discurso filosófico organizado e um tanto seco de Aristóteles. O que se ganha. em coerência perde-se em elegância e prazer estético. 3. Aristóteles substitui o idealismo de Platão pelo empirismo. A teoria moral aristotélica busca seu ideal não em uma idéia universal e inatingível do bem, do belo e verdadeiro, mas numa concepção de felicidade, alcançada pela ação, reflexão e experiência, consubstanciada no conceito de justiça. Conclusões
A teoria moral entre os gregos encontra sua expressão máxima na tragédia, nos diálogos platônicos e no sistema filosófico de Aristóteles. Dramaturgos e filósofos não polarizam a relação indivíduosociedade (cidadão- polis), porque concebem os seres humanos como membros integrantes de uma comunidade (oikós-polis) e não como sujeitos singularizados, fora de um contexto social. A ação moral, por isso mesmo, toma-se indissociável da ação política . A moralidade praticamente confundese com a ética, e esta com a decisão política, levando em consideração o outro, no interior do seu grupo ou de sua comunidade política. Sófocles, Sócrates, Platão e Aristóteles, os representantes do pensamento grego aqui discutidos, não põem em questão a ordem social estabelecida. Sófocles não questiona abertamente a reclusão da mulher no oikos e sua conseqüente exclusão da vida política. Sócrates movimenta-se entre seus discípulos, com quem partilha, em pé de igualdade, as preocupações filosóficas, inclusive o momento extremo da morte imposta. Mulheres, crianças, escravos ficam excluídos, permanecendo em seu devido lugar, no oikós. Sua função é a reprodução material e biológica da vida e nada mais. Platão e Aristóteles reconhecem como válida a hierarquia social dada. A reflexão teórica e a prática política é reservada à elite (aristocracia) da sociedade, excluindo a plebe, trabalhadores, escravos, estrangeiros, mulheres e crianças. A virtude máxima para esses pensadores gregos é a temperança, o equilíbrio entre desejos, vontades e razão, sob a égide dessa última. Todos os excessos são condenados, toda ação unilateral (fanática), criticada. A temperança (seu melhor exemplo é a prudência de Aristóteles) é o fruto da experiência, o resultado da ação refletida e corrigida em conseqüência de erros anteriores. A justiça sintetiza o valor moral supremo. Ela é a simbiose de todas as outras virtudes. Consiste essencialmente em praticar o bem no interior da hierarquia estamental preestabelecida. Por isso ela assume conteúdos distintos para os filósofos (a prática da verdade ria construção do conhecimento), os guerreiros (a prática da coragem na guerra) e os artesãos (a utilidade na produção e reprodução material de bens). Agir corretamente (isto é, moralmente) significa agir de acordo com uma lei (a boa medida) fixada por cada um a si mesmo. Mas agir corretamente (isto é, de forma politicamente justa) significa seguir a lei da polis, fixada pelos filósofos e políticos, empenhados na verdade e no bem coletivo, adequando-a ao caso particular. Creonte acaba agindo corretamente quando adapta a lei da polis ao caso particular de Antígona, perdoando-lhe o desafio à sua vontade e a transgressão da lei de Tebas.
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