FOUCAULT E DELEUZE/GUATTARI C ORPOS , I NSTITUIÇÕES E S UBJETIVIDADES
H ÉLIO R EBELLO C ARDOSO J ÚNIOR F LÁVIA C RISTINA S ILVEIRA L EMOS O R G A N I Z A D O R E S
FOUCAULT E DELEUZE/GUATTARI CORPOS, INSTITUIÇÕES E SUBJETIVIDADES
Infothes Informação e Tesauro
Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922
FOUCAULT E DELEUZE/GUATTARI: CORPOS, INSTITUIÇÕES E SUBJETIVIDADES
Coordenação de produção Produção Revisão Capa Finalização
Ivan Antunes Rai Lopes – Paginação ? Carlos Clémen Lívia
CONSELHO EDITORIAL Eduardo Peñuela Cañizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam) Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Aléssio Ferrara
1ª edição: julho de 2011 © Hélio Rebello Cardoso Júnior | Flávia Cristina Silveira Lemos
ANNABLUME editora . comunicação Rua M.M.D.C., 217 . Butantã 05510-021 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-1754 www.annablume.com.br
Agradecimentos
Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo fomento às pesquisas realizadas pelos estudiosos que escrevem os capítulos deste livro! Também somos gratos à FAPESP pela co-editoria deste livro e pelo apoio financeiro dedicado para tal publicação! Um agradecimento especial à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis/SP) por ter oferecido toda sua infraestrutura para a realização das pesquisas aqui apresentadas! Também é relevante agradecer ao Grupo de Pesquisa: Deleuze/ Guattari e Foucault, elos e ressonâncias pelo apoio e colaboração nas discussões dos estudos aqui publicados! Um agradecimento especial ao professor e pesquisador Hélio Rebello Cardoso Júnior pela competência e disponibilidade, pelo espírito crítico e acolhimento ético constante em sua trajetória acadêmica!
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. É preciso que sirva, é preciso que funcione. Gilles Deleuze
Sumário
Prefácio | 11 | Cap. 1 | Foucault, história do presente e ontologia histórica: o que estamos nos tornando? Hélio Rebello Cardoso Júnior | 15 | Cap. 2 | A genealogia foucaultiana como ferramenta para a escrita da história do presente Lucas de Almeida Pereira | 27 | Cap. 3 | Amizade, em Foucault, e vida não fascista, em Deleuze e Guattari: modos de vida a favor da diferença Thiago Canonenco Naldinho | 41 | Cap. 4 | Um estudo sobre os modos de subjetivação na Sociedade Disciplinar e de Controle a partir dos agenciamentos existentes na Contemporaneidade Mirela Fernanda de Freitas Alves | 55 |
Cap. 5 | Estudo sobre a sociedade disciplinar no pensamento de Foucault e a sociedade de controle no pensamento de Deleuze: sobre o papel da instituição educacional e o controle na infância Vivian de Jesus Correia e Silva | 75 | Cap. 6 | Por que ainda acreditar na escola: uma busca pela transformação das relações pedagógicas através da estética da existência e da amizade Lucilla Panacioni de Araújo | 95 | Cap. 7 | Foucault, com Deleuze e Guattari: problematizando as identidades culturais, o ideal de progresso e de desenvolvimento nas práticas da Unesco e Unicef no Brasil Flávia Cristina Silveira Lemos | 115 | Cap. 8 | Práticas de conselhos tutelares em dois municípios do interior paulista Jeyson Muruyama; Andressa Kelly Bardella Monteiro; Priscila Rabelo de Souza; Flávia Cristina Silveira Lemos | 125 |
Prefácio
FLÁVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOS HÉLIO REBELLO CARDOSO JÚNIOR
Os textos reunidos nesta coletânea são frutos de projetos integrados pela linha de pesquisa “Ideia de história e temas históricos em Deleuze/ Guattari e Foucault”, do Grupo de Pesquisas “Deleuze/Guattari e Foucault: elos e ressonâncias”, certificado desde 2004 pela UNESP, junto ao Diretório de Grupos do CNPq, cujo líder, professor de Filosofia da UNESP/ Assis, é o organizador do presente volume, juntamente com a pesquisadora Flávia Cristina Silveira Lemos. Todos os demais co-autores foram alunos da UNESP e estiveram sob a orientação do professor Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior, em projetos de pesquisa financiados pela FAPESP e pela CAPES. Hélio Rebello Cardoso Júnior, no capítulo de abertura – Foucault, história do presente e ontologia histórica: o que estamos nos tornando? – corajosamente afirma que pretende pensar uma relação entre uma história do presente e uma ontologia histórica, por meio da intercessão de Foucault e Deleuze, em que este destaca como Foucault constituía ontologias históricas: o “ser-saber”, o “ser-poder” e o “ser-si”. Foucault e Deleuze produziriam uma filosofia da imanência, problematizadora do presente, por meio de uma ontologia histórica de nós mesmos: o que estaríamos deixando de ser e nos tornando? Seria no ponto de confluência entre disciplina e controle que Foucault e Deleuze possibilitam a construção de uma história do presente como ontologia histórica de nós mesmos.
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Lucas de Almeida Pereira, no capítulo Genealogia foucaultiana como ferramenta para a escrita da história do presente, busca analisar alguns conceitos fundamentais, como o de acontecimento, o de descontinuidade e a crítica à noção de origem, para a compreensão da historicidade dentro da fase do pensamento de Michel Foucault conhecida como genealogia, no âmbito de uma história do presente. Thiago Canonenco Naldinho, em seu capítulo – Amizade, em Foucault, e vida não fascista, em Deleuze e Guattari: modos de vida a favor da diferença –, apropria-se do pensamento de Foucault, Deleuze e Guattari, fazendo deles operadores conceituais para produzir resistências e máquinas de guerra, frente ao panorama da sociedade contemporânea. A pergunta apresentada gira em torno de como criar uma ética, estética e política da vida que rompa com os microfascismos e tentativas sutis de captura do Capitalismo Mundial Integrado. Como fazer da amizade estabelecida entre Foucault, Deleuze e Guattari um potente dispositivo de deslocamento do pensamento e, de modo imanente, um processo de singularização da existência? Mirela Fernanda de Freitas Alves, no capítulo Um estudo sobre a caracterização dos modos de subjetivação nas Sociedades Disciplinar e Controle a partir dos agenciamentos existentes na Contemporaneidade, interroga os processos de subjetivação engendrados por meio dos mecanismos disciplinares e de controle, problematizando suas táticas específicas e compostas em dispositivos materiais e concretos que investem os corpos, na sociedade contemporânea. Da modelização individualizante e fixa em subjetividades homogêneas, na sociedade disciplinar, opera-se uma transição para uma modulação fluida, em meio-aberto e veloz, em que se passa a falar de uma marcação da identidade pela diferença, um novo ser fragmentado, que se reveste de identidades múltiplas, segundo deseja ou necessita, como um consumidor de subjetividades deslizantes e mutantes. Proliferam-se singularidades e não mais sujeitos. Vivian de Jesus Correia e Silva, em seu capítulo – Estudo sobre a sociedade disciplinar no pensamento de Foucault e a sociedade de controle no pensamento de Deleuze: um olhar sobre o papel da instituição educacional e o controle na infância –, questiona a construção do sujeito pedagógico, no campo da Educação Infantil, na sociedade contemporânea. As crianças seriam confinadas cada vez mais cedo, funcionando em uma rede complexa de disciplina e controle dos corpos, em um capitalismo mundial integrado.
Hélio Rebello Cardoso Júnior | Flávia Cristina Silveira Lemos
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Lucilla Panacioni de Araújo, no capítulo seguinte – Por que ainda acreditar na escola: uma busca pela transformação das relações pedagógicas através da estética da existência e da amizade ˆ cartografa linhas de forças suscitadas em encontros e experimentações realizadas em uma prática de estágio em curso de graduação em psicologia, no estabelecimento escola. A autora se propõe pensar não só entradas da psicologia na educação, mas múltiplas saídas para “rachar” a psicologização e medicalização das práticas instituídas no âmbito escolar e criar zonas de abertura para produção de outras conexões de professores e estudantes com a escola. Flávia Cristina Silveira Lemos, no capítulo Foucault, com Deleuze e Guattari: problematizando as identidades culturais, o ideal de progresso e de desenvolvimento nas práticas da Unesco e Unicef no Brasil, interroga como as agências Unicef e Unesco vêm instrumentalizando o conceito de identidade cultural, na gestão diferencial das populações, por meio de uma biopolítica. Lemos coloca em xeque e problematiza o próprio acontecimento identidade cultural e as tentativas de construção de uma concepção de direitos humanos sustentada em uma justiça equitativa. Jeyson Muruyama, Andressa Bardella, Priscila de Souza, em coautoria com Flávia C. S. Lemos, em capítulo sobre as Práticas de conselhos tutelares em dois municípios do interior paulista, baseados na genealogia de Michel Foucault, analisam os efeitos de práticas de conselheiros tutelares, problematizando como descreviam as crianças, jovens, seus familiares, os direitos e os deveres prescritos no Estatuto da Criança e do Adolescente. O Conselho Tutelar participa da produção e manutenção de uma rede de relações de poder que captura os corpos e os submete. Atravessado por inúmeras outras instituições e, por outro lado, atravessando-as também, o Conselho insere-se nos diversos mecanismos que compõem o que Deleuze chamou de Sociedade de Controle. Os corpos são submetidos a infindáveis modulações, vindas das instituições disciplinares, as quais já não possuem delimitações definidas. Seus muros foram rompidos e seus mecanismos disciplinares difundiram-se na sociedade, por intermédio da sobreposição de funções das instituições.
1 Foucault, história do presente e ontologia histórica: o que estamos nos tornando?
HÉLIO REBELLO CARDOSO JÚNIOR
O OBJETIVO DO presente texto é fazer uma reflexão a respeito de dois assuntos que afugentam tanto historiadores quanto filósofos, de parte a parte, cada qual por motivos e idiossincrasias que lhes são próprios. Aos historiadores, nada mais lhes mete medo do que uma, assim chamada, história do presente: aliás, como seria possível escrever a narrativa daquilo que não acabou e, portanto, adquirira a sedimentação requerida por toda crítica documental – esta que é o fundamento de todo conhecimento histórico? Os filósofos, por sua vez, arrepiam-se quando alguém propõe uma suposta ontologia histórica, pois lhes parece uma contradição nos próprios termos da proposição: afinal, como se pode conhecer o Ser na história, se aquele é estabilidade e esta é movimento do tempo? Se ambos os lados, historiadores e filósofos, já ficam assim implicados pelas questões que acima formulo e a eles dirijo, imaginem se ambas as indagações, para embaralhar os partidos tomados, fossem reunidas em uma única equação. Por isso, para complicar, eu digo: uma história do presente necessita de uma ontologia histórica. Essa é, pois, a proposição que temos de tratar. O que é ontologia histórica e como ela permite uma história do presente? Antes de resolvermos a questão assim formulada, vejamos que as relações entre historiadores e filósofos têm sido marcadas, justamente, por uma dificuldade em realizar uma cooperação mútua.
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Entre historiadores e filósofos As tentativas de estabelecer relações entre filosofia e história têm originado os mais diversos posicionamentos. Por vários motivos, oscilase desde a negativa absoluta quanto à possibilidade de cooperação entre ambas até exortações vagas que exaltam a sua união. Com efeito, recorde-se que palavras de um historiador de peso, como Lucien Febvre, são capazes de desconcertar e afugentar leitores ou historiadores que também apreciam a filosofia, quando afirma: “Aliás, permiti-me dizer muitas vezes: os historiadores não têm grandes necessidades filosóficas” (FEBVRE, 1965, p. 4). Naturalmente, tal censura serviria apenas àqueles historiadores que acreditam numa suficiência metodológica adquirida um tanto intuitivamente, de modo que, assim incentivados, põem-se a perscrutar com ânimo redobrado a atmosfera repleta dos arquivos. Ressalve-se, no entanto, que a rigidez desse posicionamento é em parte verdadeira e em parte falsa. Verdadeira, pois se dá que os filósofos tendem a esquecer os limites materiais do conhecimento histórico, ou seja, os acontecimentos encontrados nos documentos, de maneira que passam a prescrever uma filosofia da história “no sentido hegeliano, especulação sobre o devir da Humanidade” (MARROU, 1958, p. 11, 17-18). Falsa, porque uma reação cega não pode vislumbrar a possibilidade de cooperação entre filosofia e história, do ponto de vista epistemológico. Porém, este último posicionamento, embora indique certa positividade, é ainda uma exortação bastante vaga. De fato, o historiador ficará insatisfeito se a cooperação epistemológica se estabelecer em dois sentidos. Em primeiro lugar, e espontaneamente, ao historiador devotado ao afã da investigação parecerá insuficiente, e talvez contraditório, que se demande da filosofia apenas uma disciplina capaz de examinar os problemas de ordem lógica suscitados pela pesquisa empírica. Em segundo lugar, supondo que o mesmo historiador arrisque preocupações filosóficas mais ambiciosas, desconfia que uma intervenção da filosofia em questões de ordem cognitiva atinentes à objetividade do conhecimento histórico poderia novamente abrir o flanco à metafísica que ele julgava ter evitado, com a rejeição à filosofia da história. Em ambos os casos, vale notar, o historiador reage com razão, pois o seu trabalho está sendo literalmente monitorado e superposto pela filosofia.
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Por seu turno, o filósofo não deseja ver o historiador sufocado dessa maneira. Refletirá um pouco e constatará que historiadores clássicos, como Tucídides, Edward Gibbon e Marc Bloch, não estão vinculados a nenhum dos dois modos de conceber as relações entre filosofia e história, e, entretanto, realizaram obras históricas reconhecidas. Por outro lado, o filósofo, compreensivelmente, não pode admitir que essas admiráveis realizações da historiografia se façam às expensas da filosofia. É para ele inconcebível que ali, no interior do trabalho do historiador, já não esteja guardada alguma lição que deva ser trazida à luz, de modo que a filosofia possa, enfim, cooperar adequadamente com a história. Sendo assim, o espírito do filósofo povoa-se de sentimentos desencontrados. A sua tarefa é complexa. Ele precisa indicar a contribuição da filosofia à história e, simultaneamente, respeitar a liberdade do historiador, para que este não se sinta constrangido e continue sendo um bom narrador, isto é, que conte bem uma história, como Tucídides, Gibbon ou Bloch. Começará, por conseguinte, pelo mais simples, formulando uma tarefa filosófica nos seguintes termos: a cooperação entre filosofia e história deve, em princípio, acolher a autonomia de ambas, em suas relações de convivência. Creio que uma das soluções possíveis a esse impasse da convivência pode ser dada através da proposição de uma ontologia histórica, como assinalado acima. Nós o faremos com a ajuda de dois filósofos contemporâneos: Foucault e Deleuze. Aquele, devido a seu grande interesse pela história e por ter produzido conhecimento histórico; este, porque, justamente, aponta que os livros de histórias do filósofo Foucault realizam ontologias históricas. Ontologia histórica: o que é e para que serve A fim de evidenciar tal trajeto, que constitui a plataforma desse texto, é importante indicar que um dos aspectos mais desenvolvidos por Foucault fora uma certa junção entre ontologia e história, inédita no cenário da filosofia contemporânea, inovadora inclusive com relação a uma potente ontologia de nosso tempo, a de Heidegger, na medida em que esta inclui – lembre-se de passagem – o problema da historicidade. “Foucault”, declara Deleuze, “é seguramente, ao lado de Heidegger, mas de uma maneira totalmente diversa, aquele que mais profundamente renovou a imagem do pensamento” (DELEUZE, 1990, p. 130-131). Deleuze reservou um nome próprio para a novidade legada
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por Foucault: trata-se de um campo conceitual delimitado por determinadas “ontologias históricas”. Deleuze procurou sistematizar essa junção entre ontologia e história, elaborada por Foucault, aplicando à obra deste um conceito de definido por Leibniz: a “dobra”. As conexões desse conceito, no interior do campo conceitual foucaultiano, não só são uma versão fiel e inovadora do pensamento de Foucault, como o levam ao coração da teoria das multiplicidades sistematizada por Deleuze, permitindo em contrapartida desvendar na obra de Foucault uma importante contribuição à ontologia contemporânea. Geralmente, tal aspecto é tido como avesso ao pensamento foucaultiano ou minimizado em sua importância, devido a uma suposta incompatibilidade entre a positividade dos problemas históricos e a abstração das questões a respeito do ser. Como sistematizador das ideias onto-históricas de Foucault, o conceito de “dobra”, em sua formulação, conexões e aplicação aos conceitos foucaultianos, fornece-nos um mapa do encontro Foucault/ Deleuze/Guattari. O conceito de dobra propicia entender por que a obra filosófica de Foucault se enraíza tão profundamente nas questões práticas que envolvem a história, inclusive a história do tempo presente, abrigando perguntas vitais que fazemos diretamente para nosso tempo. Uma “ontologia histórica” engloba, antes de qualquer coisa, certo modo de conceber a relação entre filosofia e história. Foucault quer transformar a história em seus métodos, no modo de lidar com a documentação histórica, já que “é certo que a história faz parte de seu método. Mas Foucault nunca se tornou historiador. Foucault é um filósofo que inventa com a história uma relação que difere totalmente da dos filósofos da história” (DELEUZE, 1990, p. 130). Certamente, ele traz novos temas, novos objetos, novas técnicas; porém, de forma mais aguda, ele oferece ao historiador, ao cientista social, ao educador, ao linguista, uma compreensão filosófica da história que não deturpa o trabalho destes, não os obriga a tergiversar, amargurar-se ou, o que é pior, curvarse a uma ontologia que parece mal acomodada à lide empírica. Para evitar essas admoestações que impunham um estranhamento entre o filósofo e aqueles que precisam da história como demanda para suas pesquisas, segundo Deleuze, Foucault teria inventado três ontologias históricas, a saber, a do “ser-saber”, do “ser-poder” e do “ser-si” ou “dobra do ser” (cf. DELEUZE, 1986, p. 117, 119-122). O ser-saber diz respeito a um “estrato” ou “formação histórica” subdividido em duas séries, o “enunciável” e o “visível”, que têm
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existência singular de acordo com o momento considerado. Trata-se da “arqueologia do saber”, para utilizar a denominação consagrada. Da mesma forma, o ser-poder consiste em relações que obrigam as séries de enunciados e de visibilidades a um corpo a corpo, apesar de sua exterioridade relativamente aos estratos. Desse modo, temos a conhecida “genealogia do poder”. Essas relações sempre se distribuem de acordo com o momento, isto é, para cada confronto entre um enunciado e uma visibilidade, há uma determinada relação. Conforme Guattari e Rolnik, o modo deleuzeano de entender o “ser-si”, na sua formulação foucaultiana, relaciona-se à noção de “produção de subjetividades”, na qual se observa, não apenas a sua relação com os estratos, como também o seu papel nos “processos de singularização” que caracterizam uma “estética da existência” (cf. GUATTARI; ROLNIK, 1993, p. 25-30). Essas três ontologias históricas, do ponto de vista filosófico propriamente, podem ser compreendidas como caracterizando uma substância que, ao invés de se definir pela unidade, pelo primeiro-motor, pela transcendência, pelo ato transcendental ou pelo esquecimento do ser, compusesse um ser cujos principais atributos – saber, poder e si – são especializações de relações a partir de elementos quaisquer. Esses elementos podem ser chamados “forças”, em função de seu caráter eminentemente relacional, uma vez que uma força somente se explicita na relação com outras forças. Além disso, uma relação entre forças estabelece sempre uma “singularidade”, em vista de seu caráter heterogêneo frente a todas as outras relações. Essas relações de forças se especializam como dobras que se fazem e desfazem umas sobre as outras, não apelando, portanto, para nada além. Com base nesse aprendizado, chegara a hora de desbloquear certas retenções da filosofia contemporânea. Segundo Machado, através da “temática da dobra em Foucault [...] Deleuze estabelece uma ligação entre ele e Heidegger e Merleau-Ponty, que ultrapassa a intencionalidade através da dobra do ser ou ultrapassa a Fenomenologia através de uma ontologia” (MACHADO, 1990, p. 202). Deleuze alerta que essa finta dentro do campo filosófico contemporâneo é dupla, pois, além da fenomenologia, o pensamento de Foucault também inovaria com relação ao de Heidegger. De um ponto de vista panorâmico, pode-se dizer que Deleuze destaca a problemática da “dobra do ser” em Foucault, a fim de demarcar, neste último, seu desvencilhar-se em relação à “intencionalidade” da fenomenologia e à ideia de dobra, em Heidegger.
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Podemos já retirar uma observação parcial dessas passagens de história da filosofia, salientando que Deleuze celebrava com Foucault, concretamente em suas alianças conceituais, a realização de uma filosofia da imanência. As ontologias são históricas, de fato, porque, em cada uma delas, a condição que o ser impõe ao condicionado, ou seja, o saber, o poder e o si, nunca é maior que eles, posto que, nos termos precisos de Deleuze, “sendo condições, elas não variam historicamente; mas elas variam com a história” (DELEUZE, 1986, p. 122). Outra forma de explicar o caráter das ontologias históricas é destacar que essas condições não se referem à experiência possível, isto é, elas não são condições apodíticas, no sentido kantiano do termo, mas condições “problemáticas”, na medida em que procuram dar conta das condições da experiência real. O problema do condicionamento nas ontologias históricas foucaultianas é outra maneira de dizer que tais ontologias se estabelecem em um campo de imanência. Vejamos por quê. Essas ontologias fornecem ao historiador perguntas – “problemas” – muito precisas que remetem diretamente para a massa documental ou são perguntas que ele faz para seu próprio tempo, porque um problema somente é verdadeiro se formulado em função de uma cláusula de condicionamento imanente que não vai além da experiência real: “[...] o que eu posso saber, ou o que eu posso enunciar e ver em tais condições? Que posso fazer, que poder pretender e quais resistências opor? O que eu posso ser, de que dobras me envolver ou como me produzir como sujeito?” (DELEUZE, 1986, p. 122). As questões das ontologias históricas, nesse sentido, instauram um campo problemático formado por três “práticas” que se efetuam como “dobras”, cada uma com sua caracterização própria: as práticas discursivas (domínio ontopragmático do ser-saber), as práticas nãodiscursivas ou de poder (domínio ontopragmático ser-poder) e as práticas de subjetivação (domínio ontopragmático ser-si). O questionário histórico, não somente o dos historiadores, cientistas sociais, educadores, linguistas, como também de qualquer um, assim, é caracterizado por uma simplicidade pragmática que, se atende a uma premência que dá o tom de toda ação, por outro lado, não deixa de envolver uma sofisticação filosófica do conhecimento histórico. Tudo se passa como se nos sentíssemos agora livres para fazer perguntas simples e diretas. Em um campo problemático, a pergunta que eles fazem para seu tempo ou que fazem para o passado se equivale, visto
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que, em ambos os casos, a pergunta está dirigida para “o que se vê, o que se fala, o que se combate, o que se vive”. O questionário histórico desenvolve-se, especialmente, para os dois diagramas históricos de que fazemos parte: a “sociedade disciplinar” e a “sociedade de controle”, dos quais trataremos adiante. De fato, quanto a todos os aspectos que, como vimos, operacionalizam as ontologias históricas, as quais, por si só, evidenciam a coparticipação de Foucault e Deleuze/Guattari em um mesmo plano conceitual e temático, a mesma interseção entre esses pensadores pode ser observada na especificação dos diagramas das sociedades “disciplinar” e de “controle”. Sociedade disciplinar e sociedade de controle como campo de estudos das ontologias históricas: história do presente Toda sociedade impõe um controle social sobre o corpo. Mas é exatamente esse controle que varia historicamente. Na sociedade disciplinar, o corpo é um objeto de análise e é fragmentado, a fim de que a disciplina possa transformá-lo num “corpo útil”, na expressão de Foucault (FOUCAULT, 1999b, p. 287) Através de certas técnicas que se aplicam ao corpo, o ser humano é visado como um objeto que pode ser modelado. Foucault dá o exemplo dos exercícios militares, onde a coordenação dos movimentos dos soldados visa a destituí-los de toda dimensão subjetiva, de modo que cada um deles possa estar ligado por operações formalizadas. Trata-se de uma organização do espaço – o espaço disciplinar – mas também do tempo, pois a ideia é que uma função disciplinar (operações formalizadas) molde os corpos em tempo contínuo, dentro de cada espaço disciplinar. E, quando o indivíduo sai de um espaço para o outro, ou seja, quando ele vai ser moldado segundo outra função, a operação exercida sobre o corpo no espaço anterior sirva como preparo para a nova função. Por conseguinte, a sociedade disciplinar se organiza de acordo com a contiguidade de vários espaços disciplinares, onde funções, embora diferentes entre si quanto a seu objetivo, se interconectam, no sentido de que obedecem ao mesmo diagrama ou organização. Dessa forma, o ideal da sociedade disciplinar é maximizar o exercício da função em cada espaço, para que as várias funções disciplinares se encadeiem sem lacunas. A sociedade disciplinar precisa igualmente aumentar os espaços disciplinares, a fim de que o deslocamento dos indivíduos entre os vários espaços não interrompa a continuidade da modelação.
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Em determinado sentido, pode-se dizer que a disciplina controla os corpos para produzir indivíduos. Eis a produtividade do poder disciplinar: produção de individualidade, por meio de modelagem dos corpos nos espaços disciplinares. Quando a função é educar, a matéria são os escolares; quando é castigar, a matéria são os prisioneiros – e assim por diante. Desse modo, a tecnologia disciplinar parte da ideia de que os indivíduos têm entre si uma igualdade formal. O exame, enquanto procedimento da tecnologia disciplinar, que transforma o indivíduo em objeto de conhecimento. Eis o elo poder-saber, ou seja, de que forma as relações de poder constituem os regimes discursivos de um determinado tipo de saber. Os detalhes da vida cotidiana tornam-se temas de pesquisa, através de documentação minuciosa. Para Foucault, quanto a esse aspecto, há uma ligação importante entre as ciências humanas e os procedimentos disciplinares. De fato, um aspecto disciplinar é, ao mesmo tempo, um lugar de aplicação de tecnologia disciplinar e um laboratório onde um saber é produzido de modo bruto, isto é, como dados a serem organizados e formalizados em procedimentos, teorias, sistemas etc. Sendo assim, [...] pelo jogo dessa quantificação, dessa circulação dos adiantamentos e das dívidas, graças ao cálculo permanente das notas a mais ou a menos, os aparelhos disciplinares hierarquizam, numa relação mútua, os “bons” e os “maus” indivíduos. Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua, opera-se uma diferenciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos, de sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor. (FOUCAULT, 1999a, p. 151).
A sociedade disciplinar é formada por vários espaços disciplinares, cada qual tomando o corpo como objeto do qual extrai uma determinada função disciplinar. Devido à articulação em rede dos espaços disciplinares, Foucault afirma que existe um “diagrama” da sociedade disciplinar. Trata-se de um esquema de seu funcionamento que explica, em cada caso, como o corpo é submetido a uma tecnologia de poder – o “diagrama de um mecanismo de poder”, porque resume seu “modelo generalizável de funcionamento”, sendo uma “maneira de definir as relações de poder com a vida cotidiana dos homens” que se destaca de “qualquer uso político” para se tornar uma “figura da tecnologia política” (FOUCAULT, 1999a, p. 181). As aplicações desse diagrama são
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múltiplas: corrigir prisioneiros, cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar loucos, fiscalizar operários. A grande lacuna da sociedade disciplinar era a questão dos espaços interdisciplinares. Procura-se coordenar todas as funções disciplinares, mas sempre restavam lacunas à disciplinarização. Por quê? Os saberes e os poderes de todos os tempos procuram domar os corpos, mas estes lhes escapam, perfazendo uma história da resistência relativa à vida, já que “o ponto mais intenso das vidas, onde se concentra sua energia, fica exatamente ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças e escapar de sua armadilhas” (FOUCAULT, 1977, citado por DELEUZE, 1986, p. 101). O que acontece, portanto, é que, por mais disciplinados que fossem, os corpos encontravam como ponto de fuga os espaços de intervalo entre os lugares de disciplinarização. Os espaços disciplinares não eram eficazes, se não fossem pouco extensos. Em espaço aberto, a disciplina não alcançava as subjetividades. Esse era o ponto cego da sociedade disciplinar. Foucault descobrira pontos de resistência difusos, na maioria das vezes imperceptíveis para uma percepção disciplinar (FOUCAULT, 1985, p. 91-92). Foucault ilustra fartamente a ideia de que há resistência à disciplinarização, pois a subjetividade se diferencia das estratégias identitárias que buscam focá-la. Há, entre outros exemplos, a tarefa impossível da medicina da sexualidade em classificar o espaço ocupado pela homossexualidade. Na verdade, o tratamento das perversões de ordem sexual deflagrou um furor classificatório, com o fito de registrar as mínimas diferenças entre comportamentos sexuais, expediente este relativo à “psiquiatrização do prazer perverso” (FOUCAULT, 1985, p. 53-55). O resultado dessa cruzada taxionômica é que os comportamentos sexuais perversos pareciam ter uma variedade infinita, de sorte que os critérios para sua classificação nunca eram suficientes. Ora, esse relativo fracasso por parte da medicina da sexualidade indica que toda disciplina deflagra uma resistência pela qual novos modos de comportamento são criados à revelia do dispositivo. Em vista de relativo fracasso das disciplinas, a partir do século XX, os dispositivos de captura das subjetividades começam a funcionar de acordo com uma nova dinâmica. As subjetividades passam a ser moldadas em espaço aberto. Elas não se reduzem mais à individualidade, ao centro de um “eu”. Ao contrário, as subjetividades são formadas por feixes de fluxos que se combinam ou se afastam, em um movimento
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acelerado. As formas de moldagem dos sujeitos não mais se confinam os espaços disciplinares, submetendo os indivíduos a uma vigilância generalizada - essas novas práticas de compor subjetividades caracterizam o que Deleuze convencionou chamar de “sociedades de controle” (DELEUZE, 1990, p. 219-226). Ao invés dos moldes de subjetividade baseados na identidade do indivíduo, teremos uma subjetividade em modulação contínua. Não precisamos mais estar em casa para nos sentirmos filhos ou na escola para aprendermos como alunos. Por um lado, somos filhos e alunos em qualquer parte, pois ser filho ou aluno é um fluxo que passa por nós. Por outro, temos uma margem de escolha, porque, como a subjetividade é apenas o ponto de cruzamento de diversos fluxos, podemos deixar de ser filhos ou alunos, quando ser um ou outro satura. Assim, vivemos, quanto à nova sociedade de controle, uma situação paradoxal. Os lugares que, na época da disciplina, se constituíam enquanto espaço de fuga e de resistência, são agora o lugar do controle. Parece que não adianta ser um nômade com relação aos espaços disciplinares, já que a própria sociedade capitalista criou um dispositivo nômade que captura a subjetividade em movimento. Contudo, como se pode fugir dessa “axiomática capitalista” (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p. 373) que coopta a subjetivação? [...] é que para Deleuze e Guattari o que está em jogo é sempre a possibilidade de estarmos em conexão com os processos desterritorializantes que se constituem como possibilidade de construção de novos territórios existenciais, deslocados das estratificações normalizadoras e fixistas. São tais estratificações que produziriam a cada vez os sintomas. (LOPES, 1996, p. 106).
Ora, o próprio Foucault entendia que a possibilidade de construção de “novos territórios existenciais” e, portanto, a fuga dos processos de controle da “axiomática capitalista” dependiam de um modo histórico de se compreender a vigência de nossa subjetividade. A subjetividade, o sujeito, para Foucault, envolve um processo de subjetivação, ou seja, toda experiência que concretiza uma subjetividade engloba modos historicamente peculiares de se fazer a experiência do si. A subjetivação não é um processo totalmente cooptado pelos dispositivos de saberpoder vigentes. A subjetivação, como modo histórico imanente de realizar as práticas de si, é formada por linhas de fuga ou pontos de resistência.
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Em A vontade de saber, Foucault descobrira pontos de resistência à rede do poder, mas ele precisava responder a partir de onde se formam essas resistências difusas, na maioria das vezes imperceptíveis (FOUCAULT, 1985, p. 91-92). Tal indagação tornava-se necessária por uma constatação: se as subjetividades oferecem resistência, se elas estão envolvidas por processos de subjetivação que vão além da forma subjetiva, por consequência, o sujeito dispõe de uma mutabilidade ou plasticidade que lhe confere uma dimensão temporal ou transformacional. Tal problematização, quer dizer, a procura de uma instância positiva de subjetivação, que não apareça meramente como lugar de “resistência” aos saberes e poderes, coloca-nos justamente num ponto de questionamento daquilo que deixamos de ser com o que estamos nos tornando. Em suma, é necessário, tanto para o historiador quanto para o filósofo, observar essa zona de confluência entre disciplina e controle. É esse ponto de questionamento que torna apta uma história do presente, tendo em vista a ontologia histórica e seu modo de captar a transformação histórica.
Referências Bibliográficas DELEUZE, G. Foucault. Paris: Minuit, 1986. ______. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Trad. de Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago, 1976. FEBVRE, L. Combats pour l’Histoire. Deux. éd. Paris: A. Colin, 1965. FOUCAULT, M. História da sexualidade – vol. I (a vontade de saber). 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. ______. Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões. 19. ed. Petrópolis/ RJ: Vozes, 1999a. ______. Em defesa da Sociedade – Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999b. LOPES, P. C. Pragmática do desejo: aproximações a uma teoria clínica em Gilles Deleuze e Félix Guattari. 1996. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1996.
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2 A genealogia foucaultiana como ferramenta para a escrita da história no presente
LUCAS DE ALMEIDA PEREIRA
Este capítulo visa a analisar alguns conceitos fundamentais para a compreensão da historicidade no pensamento de Michel Foucault, a partir da genealogia, no âmbito de uma história do presente. Foucault sempre pensou a história: prova disso é que sua obra possui uma História da loucura, em seus primórdios, e uma História da sexualidade (FOUCAULT, 2005d), em seu fim. O pensamento foucaultiano atravessou o campo da história em vários momentos, no entanto, foi na fase conhecida como genealogia que o pensamento foucaultiano mais alcançou os historiadores, angariando críticas e sendo, inclusive, alvo de debates entre historiadores. Livros, como Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1995) e o primeiro volume da História da Sexualidade. A vontade de saber, foram debatidos por nomes, como Michel de Certeau, Carlo Ginzburg e Jacques Leonard, sempre envoltos em polêmica pelo modo ousado como Foucault encarava a história. Pretendemos examinar o impacto dessa história genealógica de Foucault como instrumental teórico para uma história do presente, através da análise de três conceitos: acontecimento, descontinuidade e crítica à noção de origem. Consideramos tais aspectos fundamentais para o entendimento da historicidade no percurso de Foucault, pois permitem fazer uma nova abordagem da história, abrindo ao campo histórico novas perspectivas de pesquisa, enfim, um novo modo de fazer história. Propomos, portanto, analisar o que Foucault chama de genealogia, por intermédio desses três conceitos.
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Em vários momentos da genealogia, Foucault refere-se a uma “história tradicional” para diferenciar seu método de análise. Em Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2005), ele enumera algumas características dessa “história tradicional”: ela seria marcada pela busca de continuidade, de sentido, dentro das rupturas, da uniformização do múltiplo, seguindo o projeto de uma história global (cf. FOUCAULT, 2005, p. 6-13). Nas palavras de Foucault: O projeto de uma história global é o que procura reconstituir a forma de conjunto de uma civilização [...] a significação comum a todos os fenômenos de um período, a lei que explica sua coesão – o que se chama metaforicamente o “rosto” de uma época. (FOUCAULT, 2005, p. 10 – 11).
Foucault arrola certas características da “história global”: esta relacionaria todos os acontecimentos de uma dada área espaço-temporal, estabelecendo relações homogêneas, de sorte que haveria uma rede de causalidades que permitiria encontrar um grande núcleo comum central. Dessa forma, supõe-se que “[...] a história pode ser articulada em grandes unidades – estágios ou fases – que detêm em si mesmas seu princípio de coesão” (FOUCAULT, 2005, p. 11). Posteriormente, mais exatamente em “Nietzsche, a genealogia e a história”, Foucault opõe a essa “história tradicional/global” a visão de “história efetiva”, termo diretamente derivado da “wirkliche Historie” de Nietzsche. Ao contrário da “história tradicional”, que procura totalizar a história e oferecer a segurança de um sentido, a “história efetiva” vem questionar as bases, buscar as rupturas, colocar tudo em termos de movimento, de relações. É dentro dessa perspectiva de “história efetiva” que Foucault apresenta os conceitos metodológicos que embasam sua visão de história, na genealogia. Mas o que seria a genealogia foucaultiana? Em primeiro lugar, devemos destacar a importância fundamental de Nietzsche para tal empreitada teórico-metodológica. A simples menção da palavra “genealogia” já alude ao pensador alemão e a seu projeto de uma genealogia da moral. O termo “genealogia” foi introduzido por Nietzsche em uma tentativa de inverter a lógica da moral, na qual o bem seria moral dos oprimidos/escravos e mal a moral dos opressores/aristocratas. Foucault retoma alguns aspectos da
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genealogia nietzscheana, não mais visando a uma análise da moral, mas buscando fundamentar sua teoria do poder. Durante uma passagem pelo Brasil, em 1973, Foucault apresentou uma série de conferências, posteriormente compiladas no livro A verdade e as formas jurídicas (FOUCAULT, 2001). Na primeira conferência, Foucault justifica a marca de Nietzsche em suas pesquisas, ao enfatizar: [...] parece-me, encontramos efetivamente um tipo de discurso em que se faz a análise histórica da própria formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo de saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento. O que me proponho agora é seguir na obra de Nietzsche os lineamentos que nos podem servir de modelo para as análises em questão. (FOUCAULT, 2001, p. 12).
Nesse sentido, é necessário sublinhar que Foucault ressalta como se utiliza de Nietzsche, ao afirmar que seguirá os lineamentos que podem lhe servir. Esse uso do pensamento nietzscheano é fundamental para a genealogia de Foucault, pois constitui uma forma de produzir liberdade ao pensamento. Na primeira conferência de A verdade e as formas jurídicas (FOUCAULT, 2001, p.7-27), Foucault invoca Nietzsche para demonstrar que o conhecimento, ao contrário do pensamento kantiano, por exemplo, não é inerente, mas construído. Mais que isso, o conhecimento é um campo de batalha. Ora, o conhecimento não é natural, instintivo, mas inventado, resultado de jogos entre os instintos. O caráter perspectivo do conhecimento não deriva da natureza humana, mas sempre do caráter polêmico e estratégico do conhecimento. Pode-se falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa batalha. (FOUCAULT, 2001, p. 24).
Podemos ressaltar dois aspectos, dentro dessa discussão. O primeiro é a questão do modo como Foucault conversa com o pensamento de Nietzsche. Foucault não se interessa em periodizar a obra de Nietzsche ou em extrair dela um contexto geral. Foucault atém-se apenas ao que julga fundamental no pensamento desse filósofo, ou seja, utiliza-o de acordo com seus interesses, como uma “caixa de ferramentas”, conforme Queiroz (QUEIROZ, 1999, p.60). Nas palavras do próprio Foucault:
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[...] tomei este texto de Nietzsche em função de meus interesses, não para mostrar que era essa a concepção nietzscheana do conhecimento — pois há inúmeros textos bastante contraditórios entre si a esse respeito — mas apenas para mostrar que existe em Nietzsche um certo número de elementos que põem à nossa disposição um modelo para uma análise histórica do que eu chamaria a política da verdade. (FOUCAULT, 2001, p.22).
O segundo aspecto diz respeito ao ponto central da discussão. Quando Foucault evoca a questão do conhecimento, ele o faz para discutir o problema da origem. Foucault contrapõe dois termos empregados por Nietzsche – Ursprung (origem) e Erfindung (invenção) (FOUCAULT, 2001. P.14) –, usualmente traduzidos como símiles, mas que possuem significados distintos. Essa análise de termos nos leva a um texto anterior de Foucault. Trata-se de Nietzsche, a genealogia e a história. Publicado em 1971, Nietzsche, a genealogia e a história (FOUCAULT, 2005c) pode ser considerado o texto de apresentação da genealogia, por inaugurar os delineamentos das futuras pesquisas de Foucault. A primeira definição da genealogia, dada pelo próprio Foucault, é: “A genealogia é cinzenta; ela é meticulosa e pacientemente documentária” (FOUCAULT, 2005c p.260). A genealogia é um método histórico inovador que se destaca por sua concepção original. O genealogista não deve procurar profundidade, segredos solenes, mas as descontinuidades, os erros, os acidentes; deve ater-se à superfície dos acontecimentos e seus sutis contornos. Cabe-nos agora perguntar, primeiramente, qual o sentido de origem, na genealogia foucaultiana. Como afirmamos anteriormente, a genealogia procura os desvios, não as solenidades. Dessa forma, podemos afirmar que há na genealogia foucaultiana uma crítica à noção de origem. Ora, ao ater-se à superfície, ao recusar a profundidade, temos uma recusa ao conceito de origem, que, para Foucault, possui três funções, também caracterizadas pelo pensador francês como postulados da noção de origem (cf. FOUCAULT, 2005c p.262 – 263). A primeira função da pesquisa de origem seria a busca da essência exata das coisas. Foucault nos alerta para a necessidade de refutar essa busca de essência incólume, uma vez que não encontramos identidades preservadas no começo histórico das coisas, mas a “discórdia entre as coisas, o disparate” (FOUCAULT, 2005C, p. 263.). A segunda função a ser refutada acerca da pesquisa de origem seria sua solenidade. Não devemos procurar um ilusório início onde as coisas
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se encontravam em estado de perfeição, porque devemos observar que o começo histórico é baixo. Por fim, devemos evitar a pesquisa de origem como lugar da verdade. Aqui, temos uma contribuição de Foucault para o campo da pesquisa histórica: o questionamento da verdade. Ele adverte que a noção de verdade, ligada à de origem, nos leva, incessantemente, a um ponto recuado no passado, intangível. A verdade “estaria nessa articulação inevitavelmente perdida em que a verdade das coisas se liga uma verdade do discurso que logo a obscurece e a perde” (FOUCAULT, 2005c, p. 263). Vimos, com esses três postulados a respeito da pesquisa de origem, que, na verdade, não existe uma essência como origem histórica estável, posto que esta é um campo de forças marcado pela heterogeneidade da luta. Nesse sentido, a genealogia não representa a busca de uma origem, de um espírito perfeito, olvidando os fatos, os erros; demora-se, porém, nas meticulosidades, nos acasos de um começo. Podemos explicitar melhor essa crítica da origem, ao analisarmos a primeira conferência de A verdade e as formas jurídicas. Foucault nos mostra que Nietzsche representa um ponto crucial na história da filosofia: o momento de ruptura com a metafísica. Podemos exemplificar essa ruptura na discussão sobre a origem da poesia, conforme apresentada nessa primeira conferência. Nietzsche afirma que não há uma Ursprung da poesia, mas que esta foi inventada. Foucault salienta: Um dia alguém teve a idéia bastante curiosa de utilizar um certo número de propriedades rítmicas ou musicais da linguagem para falar, para impor suas palavras, para estabelecer através de suas palavras uma certa relação de poder sobre os outros. (FOUCAULT, 2001, p.14).
Foucault aplica esse mesmo raciocínio em torno da religião. Não há um espírito metafísico que conteria o núcleo da religião, eternamente presente em todos, como pensava Schopenhauer. Em algum momento, houve um acontecimento que pode ser identificado como começo da religião. É possível destacar a forma como tal pensamento trabalha com rupturas. Ora, se não há uma origem estática e solene, de onde seria possível reconstituir uma verdade intocada, pode-se afirmar que tudo é formado por rupturas, por pequenos acidentes. A recusa aos três postulados de uma pesquisa de origem pode ser apontada, ao levantar-
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se essa discussão sobre a poesia. Ao aludir à poesia, Foucault não evoca uma origem perfeita, mas a rebaixa a um jogo de sons e a uma invenção. Finalmente, ao tratar do conhecimento, Foucault afirma que este não está presente na natureza humana. Não há germe do conhecimento, não existe conhecimento inato. Ao contrário, o conhecimento constitui um campo de batalha entre os instintos; o conhecimento “[...] é uma centelha entre duas espadas” (FOUCAULT, 2001, p. 16). Ou seja, o conhecimento não é inerente ou faz parte da natureza humana, mas é forjado na luta entre instintos, resultado de um jogo (FOUCAULT, 2001, p.16). Com essa crítica, Foucault pretende mostrar que em todas as coisas há visibilidade, conforme as palavras de Dreyfus e Rabinow: “[...] observado da correta distância e com o olhar certo, há uma profunda visibilidade em cada coisa” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p.119). O olhar do genealogista deve estar sempre voltado para os acontecimentos das superfícies, essa questão da visibilidade, do olhar superficial que está diretamente ligado à questão da origem. Enfatiza Foucault: Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. (FOUCAULT, 2005c, p. 262).
Quando se afirma que a genealogia se preocupa com a superfície, tem-se justamente o intuito de evidenciar que os significados das questões mais profundas, na verdade, devem ser analisados a partir das práticas superficiais, não buscadas em segredos, em essências misteriosas. Por isso, Foucault afirma que o genealogista deve impor um olhar históricosuperficial e não metafísico àquilo que se propõe examinar. É importante ainda frisar, quanto a este olhar “histórico-superficial”, que Foucault ressalta a ligação fundamental entre o genealogista e a história: “O genealogista tem necessidade da história para conjurar a ilusão da origem” (FOUCAULT, 2005, p. 264). Se, de acordo com o raciocínio que traçamos acima, não há origem, apenas invenção (Erfindung), não se pode, por conseguinte, atribuir continuidade, ou melhor, sentido contínuo à história. Nesse momento, devemos abordar a questão da descontinuidade, tendo em vista sua
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relação direta com o conceito de origem. Foucault propõe uma visão descontínua dos fatos, declarando: “O sentido histórico [...] reintroduz no devir tudo que se tinha creditado imortal no homem” (FOUCAULT, 2005c, p. 271). A história torna-se efetiva, à medida que reintroduz o descontínuo em nosso ser. No entanto, a “história tradicional” tende a dissolver o acontecimento singular numa continuidade ideal, quer dizer, sacrifica o acaso, os acidentes, os acontecimentos, objetivando atribuir uma perfeita continuidade, um sentido contínuo à história. Desse modo, essas forças históricas não obedecem à destinação ou a uma mecânica, mas ao acaso da luta, como já foi exemplificado anteriormente, com a questão do conhecimento. Com base nesse raciocínio, observamos que, se a história não possui uma origem cristalizada, podemos sustentar que ela é descontinua e não possui sentido, uma vez que a descontinuidade anula qualquer sentido atribuído à história, de sorte que “[...] o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referência ou sem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos” (FOUCAULT, 2005c, p. 273). Na realidade, a descontinuidade é uma das várias reminiscências do método arqueológico que Foucault desloca para sua nova proposta metodológica. Prova disso é o artigo Sobre a arqueologia das ciências: Resposta ao círculo epistemológico (FOUCAULT, 2005B), publicado em 1968, antes mesmo do lançamento de Arqueologia do saber, onde Foucault procura defender, entre outras teses, a relação entre descontinuidade e história. Foucault salienta que o conceito de descontinuidade começou a tornar-se forte ,quando a atenção dos pesquisadores mudou de foco, das vastas unidades (época, séculos) para os fenômenos de ruptura (FOUCAULT, 2005b p.84), ou seja, ao invés das continuidades estáticas, procuram-se as interrupções. Assim, Foucault destaca como o sentido de descontinuidade na história mudou de estatuto. Para a “história tradicional”, a descontinuidade constituía um incômodo a ser suprimido, ou seja, um pequeno evento que contrariasse uma lógica de continuidade seria olvidado para preservar essa continuidade. Em suma, na visão da história tradicional/global, a descontinuidade era “[...] esse estigma da dispersão temporal que o historiador tinha o encargo de suprimir da história” (FOUCAULT, 2005b, p. 84). Foucault alerta-nos que, atualmente, a descontinuidade ocupa uma posição de elemento fundamental da análise histórica, por possuir três
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funções: é o recorte que o historiador deve fazer, isolando e distinguindo os níveis possíveis de uma análise; é resultado da descrição, e não mais elemento a ser excluído, porque “[...] o que ele (o historiador) tenta descobrir são os limites de um processo” (FOUCAULT, 2005b, p.84); e, por fim, é um conceito multiforme: “[...] ela assume uma forma e uma função diferentes conforme o domínio e o nível nos quais é assinalada” (FOUCAULT, 2005b p.85). Podemos usar as palavras de Foucault, para definir a relação entre descontinuidade e história: Querer fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o tema originário de qualquer saber e de qualquer prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. Nele o tempo é concebido em termos de totalização, e a revolução nada mais é do que uma tomada de consciência. (FOUCAULT, 2005b, p. 86).
Em acréscimo, há um terceiro elo que dá coerência aos dois conceitos que abordamos até o momento, que é o acontecimento. Conforme vimos, a partir dos conceitos de descontinuidade e origem, a história para Foucault não possui uma origem; assim, podemos afirmar que também não possui um sentido contínuo. Com isso, Foucault criticou um modelo de história tradicional, onde o sentido histórico serve para construir explicações totalizantes. Rago sintetiza bem essa proposta, ao sublinhar que [...] trata(va)-se então, para o historiador,de compreender o passado, recuperando sua necessidade interna, recontando ordenadamente os fatos numa temporalidade seqüencial ou dialética, que facilitaria para todos a compreensão do presente e a visualização de futuros possíveis. (RAGO, 1995, p. 68).
Se o projeto histórico de Foucault recusa um sentido contínuo e o sujeito, qual seria o aspecto fundamental de sua análise? Podemos afirmar que este seria o conceito de acontecimento. No pensamento genealógico de Foucault, o acontecimento supõe uma ruptura evidente que faz surgir a singularidade. O acontecimento é, nas próprias palavras de Foucault, uma inversão nas relações de força, é a emergência de uma singularidade no momento e local de sua produção (cf. FOUCAULT, 2005c, p. 273). O acontecimento deve ser considerado no espaço de sua dispersão, de forma que somente assim é possível chegar a uma análise histórica
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descontínua, formada por relações de força e não por continuidades, por linearidades. Para compreendermos melhor o acontecimento, é necessário voltar a Nietzsche, a genealogia e a história, e examinar dois conceitos: proveniência e emergência. A proveniência (Herkunft) trata diretamente do corpo. Sobre ele, encontram-se estigmas de acontecimentos passados, da mesma maneira que dele nascem desejos, desfalecimentos e erros. A proveniência não trata de uma evolução, de um destino, de uma ininterrupta continuidade, mas, justamente ao contrário, da procura dos acidentes, dos desvios, para “manter o que se passou na dispersão que lhe é própria” (FOUCAULT, 2005c, p. 265), enfim, é a procura pelo aparecimento instável do acontecimento e não pelo começo sem arestas. O corpo é, em decorrência, lugar da dissociação do Eu: “A genealogia [...] deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo” (FOUCAULT, 2005c, p.267). Nessa passagem, o corpo adquire importância histórica, visto que ele é o lugar de aplicação das tecnologias políticas. Torna-se necessário tratarmos da questão da profundidade do corpo, na obra de Foucault. Podemos exemplificar essa profundidade histórica de como o corpo aparece como ponto de aplicação de tecnologias políticas, a partir da leitura de Vigiar e Punir. Nessa obra, Foucault nos apresenta diversas formas de dominação e de uso do corpo humano, como o suplício, onde o corpo deve ser castigado publicamente (cf. FOUCAULT, 1995, p. 10 – 11), a masmorra, onde corpos devem ser acumulados e esquecidos, e finalmente a prisão, que seguiria o princípio de que o indivíduo encarcerado e em condições ideais poderia ser re-educado. Mais que isso, podemos notar que, na obra de Foucault, o corpo, suas tecnologias e usos são sempre postos em evidência. No corpus de sua obra, observam-se temas como loucura, delinqüência e sexualidade, entre outros, ou seja, independentemente da “fase” (Arqueologia, Genealogia, Ética) de seu pensamento, Foucault sempre trata do corpo. De acordo com Dreyfus e Rabinow, “Foucault tenta escrever a história efetiva do aparecimento, da articulação e da disseminação destas tecnologias políticas do corpo” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 126). Em suma, a proveniência é o instrumento para a recusa da pesquisa de um “passado vivo” em função da busca da “exterioridade do acidente” (FOUCAULT, 2005c, p. 266). A emergência designa o ponto de surgimento, o momento em que ocorre a inversão de forças, o jogo de poder, conforme Foucault:
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A emergência é a entrada em cena das forças [...] enquanto a proveniência designa a qualidade de um instinto, a emergência designa um lugar de afrontamento [...] ninguém é responsável por uma emergência, ela se produz num interstício. (FOUCAULT, 2005c, p. 269).
Nessa frase, Foucault sublinha mais um aspecto crucial da genealogia: não existe sujeito, individual ou coletivo, como motor da história, quer dizer, os sujeitos não existem previamente e entram em cena, na verdade: para a genealogia, os sujeitos emergem apenas nos campos de batalha e apenas ali desempenham as funções que lhes são designadas. O mundo não é um jogo que apenas mascara uma realidade mais verdadeira existente por trás das cenas. Ele é tal qual parece. Esta é a profundidade da visão genealógica. (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 122).
Ainda sobre a questão do acontecimento, é preciso abordar mais um aspecto: a acontecimentalização. Esse conceito deve ser compreendido em dois níveis: em primeiro lugar, uma ruptura com o evidente. Foucault exemplifica essa ruptura com a questão da loucura, visto que “não era tão evidente que os loucos fossem reconhecidos como doentes mentais” (FOUCAULT, 2003, p. 339), ou seja, quebrar o que era considerado uma evidência. Em segundo lugar, acontecimentalizar pressupõe uma desmultiplicação causal, isto é, analisar o acontecimento a partir da multiplicidade de processos que o constituem. Foucault nos dá um exemplo: Assim, analisar a prática do encarceramento penal como “acontecimento” [...] é definir os processos de “penalização” (quer dizer de inserção progressiva nas formas de punição legal) das práticas precedentes de internamento. (FOUCAULT, 2003, p. 340).
Dados os três conceitos que consideramos fundamentais para a compreensão da dimensão histórica intrínseca à genealogia foucaultiana, cabe-nos interrogar como esses conceitos e a própria genealogia se incorporam ao pensamento de uma história do presente. Lemos, na obra de Foucault, uma escrita da história no presente. Para trabalharmos com a questão da história do presente, é necessário, primeiramente, definir a noção de ontologia histórica. A palavra “ontologia” remete à área da
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filosofia, que estuda o ser enquanto ser que possui uma natureza comum, compartilhada por todos. Ora, uma ontologia histórica pressupõe uma tarefa complicada, aparentemente ambígua: pôr o ser, aparentemente imóvel, na história, que é tempo, mobilidade. Isso nos leva a mais um posicionamento: um dos grandes temas abordados por Foucault é, na verdade, a questão do tempo. Foucault se preocupa com o presente, com um pensamento de ação, em especial, a partir da genealogia. Analisando sua biografia (algo profundamente antifoucaultiano, no entanto, muito elucidativo acerca do homem e sua obra) escrita por Didier Eribon (ERIBON, 1990), pode-se observar o quanto Foucault foi marcado pelos acontecimentos de sua realidade, de seu presente (a questão da Argélia, o Maio de 68 etc.), e como ele se preocupou em achar maneiras de poder atuar sobre seu presente (sua militância política, o Grupo de Informação das Prisões, mesmo algumas improváveis parcerias com Jean-Paul Sartre). O que é possível apreender, de todo esse levantamento biográfico? Que Foucault escava o passado, para tentar compreender o que nos tornamos e o que poderemos vir a ser. Como já frisamos anteriormente, a história é, sob a ótica foucaultiana, descontínua (com todas as suas implicações, suas recusas à origem e ao sentido), de sorte que Foucault não busca nessa relação passado/presente/futuro um sentido escatológico, determinista, de como as grandes estruturas moldaram o homem moderno, mas intenta observar a composição heterogênea constituinte de nosso presente, nossa realidade. Enfim, Foucault procura, na história, problematizar o presente, buscar alternativas para tratar do presente. É o próprio Foucault quem afirma: Meu projeto não é o de fazer um trabalho de historiador, mas descobrir por que e como se estabelecem relações entre os acontecimentos discursivos. Se faço isso é com o objetivo de saber o que somos hoje. Quero concentrar meu discurso no que nos acontece hoje, no que somos, no que é nossa sociedade. Penso que há, em nossa sociedade e naquilo que somos, uma dimensão histórica profunda e [...] os acontecimentos que se produziram a séculos ou há anos são muito importantes [...] Em um certo sentido não somos nada além daquilo que foi dito há séculos, meses, semanas. (FOUCAULT, 2006, p. 258).
Assim, embora possamos aceitar a esquiva de Foucault de que ele não faria um “trabalho de historiador”, podemos admitir que os
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questionamentos presentes em seu trabalho propõem certo uso da história e um método para produção de conhecimento histórico. Por isso, uma história do presente é uma proposta sólida e inovadora. Nesse sentido, pensamos com a autora brasileira Margareth Rago, que, em um artigo chamado Libertar a história (RAGO, 2005), aborda a questão da má leitura de Foucault: Mal lido, mal escutado, mal compreendido, o filósofo foi soterrado por interpretações e críticas que invalidam seu aporte, mais ainda, vários de seus conceitos e problematizações são incorporados à sua revelia nos estudos históricos, sem que lhe reconheçam os créditos. (RAGO, 2005, p. 255).
Rago atribui a Foucault um papel que se acrescenta ao de modelo alternativo para a escrita da história, pois ele seria o libertador de uma história presa a velhos (pré) conceitos, de acordo com a autora: A autonomização da História formulada pelo filósofo traduz-se, então, como um libertar-se de determinadas representações do passado, de procedimentos que levam a determinados efeitos, relações de poder, enfim, de construções autoritárias do passado. (RAGO, 2005, p. 261).
Mais do que isso, Foucault procura trabalhar problemas colocados no presente, cuja resolução exige uma volta ao passado. Desse modo, quando Foucault questiona a oposição razão-loucura, a questão da punição ou da sexualidade, na verdade, está problematizando nossa atualidade, propondo um diagnóstico que “não se limite a mostrar o que somos, mas que aponte para aquilo que estamos nos tornando” (RAGO, 2005, p. 263). É nesse sentido que vemos a utilidade do método genealógico foucaultiano como modelo para a escrita de uma história do presente. A crítica à noção de origem, a introdução da problemática da descontinuidade e, principalmente, a noção de acontecimento operam no sentido de buscar na história um diagnóstico para o presente. É problematizando o passado descontínuo, que provém “de baixo” (cf. FOUCAULT, 2005c), no qual Foucault identifica práticas que podem responder a questões como “o que estamos no tornando”. Pensemos em A vontade de saber. Foucault assevera que a noção da mecânica do poder, em nossa sociedade, seria de ordem repressiva.
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Dessa forma, ele busca uma resposta para perguntas presentes (que poder pretender? Que resistência opor?), interrogando a história. Ao tratar da hipótese repressiva, Foucault desloca sua análise para um passado específico: As dúvidas que gostaria de opor à hipótese repressiva têm por objeto muito menos mostrar que essa hipótese é falsa do que recolocá-la numa economia geral dos discursos sobre o sexo no seio das sociedades modernas a partir do século XVII. (FOUCAULT, 2005d, p. 16).
Vemos, com essa citação, que A vontade de saber está de acordo com as proposições do método genealógico, já abordadas anteriormente. Foucault não busca correlações com passados distantes; ao invés disso, situa sua análise em pontos específicos. A análise da “hipótese repressiva” nos leva a uma incitação discursiva referente à esfera da sexualidade (cf. FOUCAULT, 2005d, p.17), um exemplo de acontecimento, analisando sua emergência e proveniência, suas relações com o corpo. Com isso, Foucault é coerente com a proposta de uma “acontecimentalização”, fazendo emergir singularidades, em especial com relação ao trinômio poder-corpo-saber, com base no rompimento com um pressuposto até então aceito como evidente, no caso, o de uma repressão à sexualidade incitada por uma moral burguesa. Além disso, ao empreender a desmultiplicação causal deste acontecimento, Foucault encontra relações de inteligibilidade externa, que suscitarão a abordagem de temas tais quais a educação, a cientificidade etc. embasando a indissolúvel relação poder-saber. Observamos a relação entre os três conceitos abordados e a genealogia foucaultiana, visando a criar um plano conceitual para a análise da história do presente. É importante assinalar que tais conceitos não constituem uma metodologia, no sentido mais amplo do termo, mas são referências para auxiliar análises; poderiam ser chamados de ferramentas, como pretendia Foucault, as quais nos possibilitam outro olhar sobre a história, articulando-a com questões filosóficas de nosso presente, explícitas na breve análise de A vontade de saber.
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3 Amizade, em Foucault, e vida não fascista, em Deleuze e Guattari: modos de vida a favor da diferença1
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É compreensível que alguns lastimem o vazio atual e busquem, na ordem das idéias, um pouco de monarquia. Mas aqueles que, pelo menos uma vez na própria vida, provaram um tom novo, uma nova maneira de olhar, um outro modo de fazer, aqueles, creio, nunca sentirão a necessidade de se lamentar porque o mundo é um erro, a história está farta de inexistências; é tempo para que os outros fiquem calados, permitindo assim que não se ouça mais o som da reprovação por parte deles... (FOUCAULT, 1980).
Deleuze (1988/1989), em seu Abecedário, afirma que a possibilidade de haver uma rede de resistência composta por ele, Foucault e Guattari se situaria como um bom acontecimento frente ao cenário de empobrecimento de ideias em que vivemos – tratar-se-ia de uma máquina de guerra contra a bobagem dominante a que somos submetidos. Referenciando-se em tais palavras, o presente trabalho intenta mergulhar no plano conceitual desenvolvido e compartilhado 1. O presente trabalho se situa como parte integrante de uma pesquisa mais abrangente, desenvolvida pelo autor, com o apoio da FAPESP. 2. Bacharel e Licenciado em Psicologia – UNESP/Assis. Integrante do grupo de pesquisa Deleuze/ Guattari e Foucault, elos e ressonâncias (certificado junto ao CNPq e reconhecido pela FAPESP). E-mail:
[email protected].
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por tais autores (CARDOSO JÚNIOR, 2005), para encontrar suas considerações acerca das resistências possíveis de serem empreendidas, no panorama contemporâneo. De acordo com os pensadores em questão, vivemos em sociedades nas quais as subjetividades são assujeitadas a uma normalização imposta por uma forma hegemônica de poder – o Estado Moderno3, segundo Foucault, ou o Capitalismo Mundial Integrado4 (CMI), para Deleuze e Guattari (FOUCAULT, 1995a; GUATTARI; ROLNIK, 2005). Independentemente do nome ou da definição quanto a sua localização ou estruturação, a questão mais relevante e urgente sobre tal modalidade de poder gira ao redor do objetivo que este almeja, isto é, reduzir permanentemente o risco potencial presente no desenvolvimento dos processos de subjetivação ou singularização com o intuito de facilitar sua administração sobre os indivíduos. Nesse quadro de dominação, a subjetivação se tornaria possível praticamente apenas através de processos de sujeição 5 aos saberes dominantes e à matriz de individualização, desenvolvidos e impostos pelo Estado Moderno ou CMI. Entretanto, Foucault, Deleuze e Guattari sinalizam haver possibilidades de mudança quanto à atual situação, as quais se processariam por meio de uma estratégia que permitiria não apenas resistir, mas, de certa maneira, escapar à constrangedora condição – a simultânea individualização e totalização exercida pelo modo de poder 1. O Estado Moderno é, conforme Foucault, a forma política de poder, surgida no século XVI, que absorveu muito da nova tecnologia de poder que, ao contrário daquela presente na soberania, manifesta um enorme interesse pela vida, por isso chamada de biopoder. Contudo, deve-se ressaltar que o biopoder não é idêntico ao Estado, pois extrapola os seus limites, agindo em diversas outras instâncias não vinculadas ao aparelho de Estado, como a família, as organizações não governamentais, “empreendimentos privados, sociedades para o bemestar, de benfeitores e, de um modo geral, de filantropos” (FOUCAULT, 1995a, p. 236-239; 1999, p. 35-37, 285-315). 2. Segundo Guattari, o Capitalismo Mundial Integrado impõe duas formas de opressão. A primeira, através de mecanismos no plano econômico e social; já a segunda, “de igual ou maior intensidade que a primeira, consiste em o CMI instalar-se na própria produção de subjetividade: uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 48, grifo dos autores). 3. De acordo com Foucault, subjetivação é o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito ou, mais especificamente, de uma subjetividade. Tal processo pode ocorrer, dependendo do local e momento histórico onde está situada a moral em que estamos imersos, ora de forma mais autônoma, com mais influência de práticas de liberação ou formas de subjetivação – morais mais orientadas para a ética –, ora de maneira mais jurídica, a partir de práticas de sujeição impostas por uma forma de poder – morais mais orientadas para o código (FOUCAULT, 1984, p. 29-30; 1995a, p. 235; 2004a, p. 262; 2004d, 291).
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dominante – à qual nos encontramos submetidos. Tratar-se-ia da recusa à imposição dessa individualidade normalizada, acompanhada pela reabilitação, na atualidade, da estética da existência. Estética da existência Se Foucault trabalhou em seus dois primeiros grandes eixos de pesquisa, respectivamente, o saber e o poder, foi apenas durante o período mais recente, em que passou a abordar especificamente o si ou os processos de subjetivação. Essa mudança de foco do autor decorreu dos resultados obtidos por este, durante a elaboração do primeiro volume – A vontade de saber – de sua História da Sexualidade, quando se viu impelido a estender o período que servia de substrato às suas pesquisas até a Antiguidade greco-romana. Foi necessário ir tão longe, pois Foucault descobriu que, para conseguir cumprir o objetivo inicial dessa história – estudar, a partir do século XVIII, o surgimento da experiência6 da sexualidade – deveria necessariamente compreender por que o desejo estava no centro, tanto da teoria clássica da sexualidade, quanto daquelas dela divergentes, além de esclarecer se e como o desejo foi, aparentemente, herdado, durante os séculos XIX e XX, de uma longa tradição cristã– era preciso, enfim, empreender uma genealogia do desejo e do sujeito desejante. Foucault descobre que havia na Antiguidade, diferentemente do que ocorre no período que abrange desde o século XVIII até, em termos, os dias atuais, uma experiência relativa ao sexo e a seus prazeres, distinta daquilo que conhecemos por sexualidade. Denominada como aphrodisia, tal experiência, presente entre os antigos greco-romanos, é definida por Foucault como a unidade constituída pelos atos, prazeres e desejos relacionados à atividade sexual, com o destaque para o fato de que, ao contrário do que ocorre na experiência da sexualidade, em que a ênfase se destina ao desejo, o foco de atenção nos aphrodisia situava-se nos atos do indivíduo imerso na experiência em questão. Isso se deve ao tipo de modalidade moral privilegiada em tal período, uma vez que, conforme Foucault (1984, p. 26-31) explica, podemos considerar a moral antiga como orientada para as práticas de si, ou seja, para a ética, apesar de, assim como em qualquer outra moral, haver também 6. Foucault entende por experiência a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade (FOUCAULT, 1984, p. 10).
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naquela a presença do código. Tratava-se, por isso, mais de uma questão de atitude frente aos acontecimentos da vida, às ações morais em geral – não restringível à dinâmica dos aphrodisia7 – do que da submissão a condutas e regras morais impostas. Ao contrário de seguir um restritivo código moral, o indivíduo buscava exercer sua liberdade na prática de uma ética que lhe permitisse elaborar da maneira mais bela possível sua própria vida como uma obra de arte, que fosse portadora de certos valores estéticos e que respondesse a certos critérios de estilo, quer dizer, procurava exercer uma ética que fosse uma estética da existência. Essa elaboração de si manifestava-se por intermédio de um conjunto de práticas de si (ascese), refletidas e voluntárias, exercidas pelo indivíduo que quisesse alcançar um modo de vida almejado, isto é, por meio de um intenso e permanente trabalho de si sobre si, que tinha por finalidade modificar o sujeito em seu próprio ser. Retornando à atualidade, o mais interessante quanto a essa temática está na similaridade que Foucault (1995, p. 255) identifica entre as questões morais atuais e as da Antiguidade. Segundo o autor, hoje em dia, “a maior parte das pessoas não acredita mais que a ética esteja fundada na religião, nem deseja um sistema legal para intervir em nossa vida moral, pessoal e privada” (FOUCAULT, 1995, p. 255), ou seja, a ideia de uma moral centrada na submissão a um código está desaparecendo. “E a esta ausência de moral corresponde, deve corresponder uma busca que é aquela de uma estética da existência” (FOUCAULT, 2004d, p. 290). Desse modo, haveria na atualidade a possibilidade histórica da reabilitação da estilística da existência, sem, todavia, compreendê-la como uma tentativa de resolver nossos problemas com uma solução produzida em outra época. Em adição a isso, é possível encontrar, em Deleuze e Guattari, pontos de vista semelhantes quanto a tais ideias foucaultianas. Podemos afirmar, baseados em fortes indícios, que há nestes autores, especialmente no que se refere à noção de corpo sem órgãos, uma concepção de trabalho de si sobre si, processado por meio de um conjunto de práticas, que tem por finalidade a modificação criativa do próprio si8 (DELEUZE, 1998, p. 19; DELEUZE; GUATTARI, 1996). Dessa maneira, acreditamos que haja, tanto em Foucault quanto 7. O regime dos aphrodisia não constituía a única problematização moral da Antiguidade, além de ser uma temática menos importante do que os exercícios físicos e a alimentação (FOUCAULT, 1984, p. 49, 104; 1995, p. 253-254, 258-259). 8. Trabalhamos em detalhes a questão da presença da estética da existência e da prática de si na obra de Deleuze/Guattari, em outra publicação decorrente de nossa pesquisa.
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em Deleuze e Guattari, a ideia da possibilidade do surgimento de inúmeras resistências eficazes contra o empobrecimento do tecido relacional – empreendido pela forma de poder hegemônico em atuação em nossas sociedades, o qual tem por objetivo facilitar a produção e gerência da subjetividade –, o que situaria, dessa maneira, a estética da existência como algo extremamente perigoso para o Estado Moderno ou CMI, na medida em que, por meio desta, poder-se-ia desenvolver modos de vida inéditos e à revelia do modelo dominante. Amizade e vida não fascista9 Contudo, mesmo que agíssemos conforme tal estratégia, não estaríamos plenamente seguros, uma vez que a modalidade hegemônica de poder possui diversos mecanismos que atravessam o campo social, com o objetivo de localizar e trazer à visibilidade qualquer indício de processos de irrupção da diferença. Nessa perspectiva, após uma minuciosa análise quanto ao teor revolucionário de uma singularidade capturada, decide se esta deverá ser combatida ou integrada ao seu amplo axioma de individualidade, o que acaba muitas vezes por nos fazer crer que agimos de forma revolucionária, quando, na realidade, nosso potencial criativo está a serviço da norma do poder subjetivante. Ainda quanto aos riscos frente ao poder dominante, situa-se, em paralelo à captura neutralizante empreendida por este, a possibilidade de os processos de singularização não se articularem às lutas do nível de forças reais – forças sociais, econômicas, materiais etc. – e acabarem por girar ao redor de si mesmos até sua autodestruição, acarretando, muitas vezes, a manifestação desses processos no campo social sob a forma daquilo que Deleuze e Guattari denominam como microfascismos. Não há receita alguma que garanta o desenvolvimento de um processo autêntico de autonomia, de desejo, pouco importa como o chamemos. Se é verdade que o desejo pode se reorientar para a construção de outros territórios, de outras maneiras de sentir as coisas, é igualmente verdade que ele pode, ao contrário, se orientar em cada um de nós numa direção microfascista. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 284).
9. As descrições pormenorizadas, tanto da amizade quanto da vida não fascista, foram expostas por nós em outras publicações.
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Contra tais perigos, encontramos na amizade e vida não fascista – modos de vida propostos ou, simplesmente, implicados, respectivamente, nas filosofias de Foucault e Deleuze/Guattari – uma ferramenta extremamente eficaz (FOUCAULT, 1993; ORTEGA, 1999, p. 151-172). Consiste numa atitude que comportaria um exigente princípio ou dispositivo analítico-crítico que verificaria constantemente nossas condutas, com a finalidade de descobrir indícios de focos de microfascismos ou, como Foucault os denomina, estados de dominação. Entretanto, vale ressaltar a importância de tal princípio ser apenas crítico e não regulador, o que vai de encontro à necessidade de, se tratando de relações de poder, agirmos de maneira prudente – uma vez que o que separa tais relações dos estados de dominação é uma linha extremamente emaranhada e nebulosa – e empírica, pois podemos acabar, mesmo possuindo interesses pré-conscientes revolucionários, investindo inconscientemente no bloqueio de processos desejantes. Contudo, essa atitude específica não se limita a uma constante vigilância sobre nossas condutas, já que, simultaneamente, podemos encontrar naquela um fator de constante invenção, diferenciação; de reflexão, trabalho e afirmação de si enquanto força criativa. Essa atitude seria algo como um certo modo de sensibilidade; uma certa maneira de pensar, sentir e agir; uma postura ativa e aberta frente à atualidade: aquilo que Guattari chama de revolução molecular ou função de autonomia, e Foucault de atitude de modernidade – uma atitude ético-analítico-política. Exercê-la requer um permanente trabalho crítico atuante sobre nossos próprios limites, que se processaria através de uma ontologia crítica de nós mesmos, aliada a uma intensa experimentação. Tal empreitada se apresenta muito próxima daquilo que Foucault (1984, p. 13) define por filosofia: “uma ‘ascese’, um exercício de si, no pensamento”, uma atividade de autotransformação. [...] o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? (FOUCAULT, 1984, p. 13).
Nessa ascese, o material a ser trabalhado, por meio de uma intensa atitude experimental, seria o pensamento.
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A filosofia é o deslocamento e a transformação das molduras de pensamento, a modificação dos valores estabelecidos, e todo o trabalho que se faz para pensar diferentemente, para fazer diversamente, para tornar-se outro do que se é. (FOUCAULT, 1980).
Assim, toma destaque a presença, tanto na amizade quanto na vida não fascista, de uma constante preocupação em não só evitar interromper os processos de singularização, como também criar vias de passagem entre os níveis do campo social para que aqueles possam interligar-se com outros processos e, assim, multiplicarem-se em suas diferenças criativas. Tal cuidado marca outra característica desses modos de vida, isto é, a desindividualização, a qual, para ser abordada, requer que antes esclareçamos a relação da subjetividade com a individualidade. De acordo com Foucault, Deleuze e Guattari, não há um sujeito dado, universal. Não há uma subjetividade do tipo recipiente, onde se interiorizam fatores exteriores, mas sim “uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 33). Para Guattari, a subjetividade, assim como a linguagem, em vez de estar confinada a uma pessoa, encontra-se em circulação pelo campo social, de onde pode ser “assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 42, grifo dos autores). Sua produção é realizada essencialmente no campo social e executada não por entidades individuais ou sociais predeterminadas, mas por agenciamentos coletivos de enunciação – compostos por fatores extraindividuais (sistemas sociais, econômicos, científicos, religiosos, ecológicos etc.) e infrapessoais (sistemas de sensibilidade, percepção, produção de pensamento etc.). Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivíduo e de subjetividade. Para mim, os indivíduos são o resultado de uma produção de massa. O indivíduo é serializado, registrado, modelado. […] A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 40, grifo dos autores).
Dessa maneira, o indivíduo não seria uma condição necessária para a subjetividade, porém, apenas um terminal ou consumidor desta; o
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resultado de uma produção de massa pela matriz moderna de individualização ou grande máquina de subjetivação capitalística. Estaríamos, por conseguinte, fadados a ser marionetes teleguiadas agindo conforme os ardilosos interesses do poder subjetivante moderno ou CMI? Não necessariamente, pois, para Foucault e Deleuze/Guattari, sempre há vacúolos de possível, de escolha, de autorreferência, de regras facultativas, mesmo nas sociedades mais opressivas e restritas moralmente. Contra essa imposição de um modo de semiotização10 pela forma de poder hegemônica, tais autores nos propõem a desindividualização do sujeito, através de um processo de esquizofrenização11. O indivíduo, por meio de uma relação criativa com a subjetividade, poderia se apropriar de componentes desta para produzir, por processos de singularização, novos registros referenciais, novas sensibilidades, novos modos de viver, sentir e pensar distintos da individualidade – uma reabilitação da estilística da existência, uma encarnação da vida. É o conjunto das possibilidades de práticas específicas de modo de vida, com seu potencial criador, que constitui o que chamo de revolução molecular, condição para qualquer revolução social. E isso não tem nada de utópico, nem de idealista. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 214).
Essa característica da amizade e da vida não fascista vai de encontro ao objetivo político, ético, social e filosófico de nossos dias, isto é, a recusa daquilo que somos, daquela individualidade padronizada que nos é imposta há séculos. Tais modos de vida não negam com isso a importância daquilo que realmente torna os indivíduos seres individuais, mas sim se opõem à imposição, exercida pelo Estado Moderno ou CMI, de uma subjetividade normalizada.
10. Para Guattari, modo de semiotização seria um conjunto de características e modos de sensibilidade e percepção que dá sentido às práticas de determinado grupo, povo ou modo de vida (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 24, 25, 31). 11. Com isso, Deleuze e Guattari não pretendem dizer que os esquizofrênicos são os revolucionários inatos. Na realidade, o esquizo, como entidade clínica, figura hospitalizada e separada da realidade, seria o resultado da interrupção ou da continuação no vazio do processo esquizofrênico, o qual é considerado como potencial revolucionário. A esquizofrenia como processo seria a oposição ao processo de neurotização, de edipianização (DELEUZE; GUATTARI, 1966, p. 357, 380, 381).
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Desejo, prazer e sexualidade Torna-se evidente que, tanto na amizade quanto na vida não fascista, há uma ampla preocupação com o surgimento e expansão dessa potência criativa capaz de romper com a dominação do poder hegemônico, porém diferindo quanto a sua definição. Para Deleuze e Guattari, tal potencial revolucionário se encontraria no desejo – desejo como processo, produção desejante como produção de qualquer produção. Ao desejo nada faltaria, porque este se encontraria sempre próximo às condições de sua existência objetiva. Dessa maneira, estaríamos constantemente imersos em processos de singularização movidos pelo desejo, os quais, contudo, seriam ininterruptamente perseguidos por processos de individuação a favor da subjetividade capitalística. [...] eu proporia denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 260-261, grifo dos autores).
Quanto a Foucault, encontraríamos tal potência no prazer, considerado como a “força do encontro que constitui o corpo de relações” (CARDOSO JÚNIOR, 2005a, p. 16) entre nosso núcleo de subjetividades e as coisas que nos circundam. Essa discordância quanto à definição da força transformacional do campo subjetivo e social possui também distintas leituras entre os mesmos autores. Foucault, apesar de não suportar o termo desejo, por não conseguir deixar de remetê-lo à falta ou à repressão, sublinha que talvez aquilo que denomina como prazer seja o mesmo que Deleuze (1994) chama de desejo. Entretanto, para Deleuze, essa distinção não se restringiria a uma simples troca de palavras. Não posso dar ao prazer qualquer valor positivo, porque o prazer parece-me interromper o processo imanente do desejo; o prazer parece-me estar do lado dos estratos e da organização; […] Pareceme que o prazer é o único meio para uma pessoa ou sujeito “reencontrar-se” num processo que o transborda. É uma reterritorialização. Do meu ponto de vista, é da mesma maneira que o desejo é relacionado à lei da falta e à norma do prazer. (DELEUZE, 1994).
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Todavia, independentemente de não encontrarmos uma unanimidade quanto a um termo que represente a potência em questão, permanece em evidência o caráter de mutação dessa força que perpassa os processos de subjetivação. Como sabemos, tanto em Foucault quanto em Deleuze e Guattari, podemos encontrar a discussão sobre a ampla manifestação de vetores de singularização dentro de minorias, no campo da sexualidade. Com efeito, Foucault ressalta, em seus últimos estudos, o enorme potencial criativo encontrado entre os homossexuais, devido não a alguma espécie de essência gay, mas à posição de enviesado de que estes dispõem, no tecido relacional – consequência de um conjunto de considerações práticas processadas em nossas sociedades, as quais acabaram favorecendo a experimentação e o desenvolvimento de novas formas de prazer e relacionamento, dentro dessa minoria. Entretanto, apesar de ser reconhecida como um fecundo campo de invenção de inéditas relações e modos de sensibilidade e percepção, não devemos considerar a sexualidade como a única saída ofensiva contra a dominação exercida pelo poder subjetivante moderno, pois, para Foucault, Deleuze e Guattari, o fator transformacional não estaria circunscrito apenas ao campo normativo da sexualidade. A idéia de que o prazer físico provém sempre do prazer sexual e a idéia de que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis, penso, é verdadeiramente algo de falso. O que essas práticas de S/ M nos mostram é que nós podemos produzir prazer a partir dos objetos mais estranhos, utilizando certas partes estanhas do corpo, nas situações mais inabituais, etc. (FOUCAULT, 1984b, grifo nosso). Se Gilles Deleuze e eu tomamos o partido de praticamente não falar em sexualidade, e sim em desejo, é que consideramos que os problemas da vida, da criação, nunca são redutíveis a funções fisiológicas, a funções de reprodução, a alguma dimensão particular do corpo. Eles sempre envolvem tanto elementos que estão além do indivíduo no campo social, no campo político, quanto elementos que estão aquém do indivíduo. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 338, grifo nosso).
Portanto, encontraríamos de forma explícita, tanto na amizade quanto na vida não fascista, a presença de uma dessexualização, respectivamente, do prazer e do desejo, ou seja, o rompimento com a arraigada ideia que estabelece uma ligação fundamental entre sexualidade e aquilo que, segundo os autores em questão,
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serve de estopim e combustível à luta contra a subjetividade capitalística. Algumas considerações finais No lugar das atuais sociedades modeladas pela forma hegemônica de poder – que bloqueia, captura e confina as singularidades no esquadrinhamento da norma de subjetividade, com a finalidade de preservar e expandir cada vez mais os limites de sua dominação e produção econômica – Foucault, Deleuze e Guattari nos possibilitam pensar a invenção e o desenvolvimento de uma nova forma de sociedade, que permita o constante surgimento do novo sem, com isso, acarretar prejuízos a sua sustentabilidade. Para tanto, segundo eles, há a necessidade de se criar os meios para que se desenvolva uma nova sensibilidade, uma nova lógica, que não possua um programa, mas que privilegie a análise da atualidade12 – daquilo que estamos nos tornando –, a qual possibilite a articulação e proliferação rizomática de múltiplas formas de irrupção de singularidades. Neste ponto, é evidente a importância encontrada na amizade e na vida não fascista para a concretização dessa tarefa revolucionária, visto que tais modos de vida seriam agentes de possibilidades de manifestação do novo – uma vez que a atitude que os permeia está voltada não somente para a localização e a eliminação dos focos de bloqueio do prazer e do desejo, mas também para um trabalho de assimilação e propagação de vetores de singularidade, aliada a uma intensa atitude de experimentação ensaística. Assim, por meio desses modos de existência – amizade e vida não fascista –, poderíamos encarnar a potência transformacional da vida em proveito da diferença, cujo processo depende menos da consciência de que estamos submetidos a uma dominação exercida pelo CMI ou Estado Moderno, do que do tipo de relação que mantemos com o mundo. Não basta termos um discurso favorável à necessidade da consideração da diferença, na constituição da subjetividade e da sociedade, pois também é preciso que essa singularidade seja encarnada, vivida, praticada.
12. Segundo Deleuze/Guattari (1997, p. 145), há uma distinção profunda entre as noções de presente e atual, para Foucault. O presente seria aquilo que somos, que já deixamos de ser. Em contraposição, o atual é o que nos tornamos, o que estamos nos tornando.
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AMIZADE, EM FOUCAULT, E VIDA NÃO FASCISTA ...
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4 Um estudo sobre os modos de subjetivação na sociedade disciplinar e de controle a partir dos agenciamentos existentes na contemporaneidade
MIRELA FERNANDA DE FREITAS ALVES
A estruturação da Sociedade Disciplinar esteve ligada a uma série de processos históricos, no interior dos quais ela se desenvolveu. Estamos nos referindo aqui a um período que compreendeu o Século das Luzes, a Revolução Francesa e a tomada da burguesia, sendo vivenciado com um medo que assombrou a segunda metade do século XVIII: a sociedade se configurava pelos espaços escuros, pelos anteparos de escuridão que impediam a visibilidade das coisas, das pessoas e das verdades. Era preciso dissolver esses fragmentos da noite que se opunham à luz, fazer com que não houvesse mais escuridão nas cidades, demolir essas câmaras escuras onde se fomentavam e se encobriam o despotismo político, os caprichos da monarquia, as crenças religiosas, os complôs dos tiranos e dos padres, as ilusões da ignorância e as epidemias. As instituições (castelos, hospitais, cemitérios, prisões, conventos) suscitavam tal desconfiança, que acabava por implicar em sua supervalorização, o que somente contribuiu para a ideia de que, para a implantação de uma nova ordem política e moral, estas deveriam ser eliminadas, ao menos sob a forma que existiam. O Século das Luzes quis ver desaparecer também, no homem, seus lugares escuros (FOUCAULT, 2000). Referimo-nos a um período em que houve uma grande explosão demográfica, um aumento da população flutuante, em que os grupos se expandiam e potencializavam revoltas que importava controlar ou manipular, na visão do Estado nascente. Concomitantemente, houve o
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desenvolvimento do aparelho de produção no capitalismo industrial, cada vez mais extenso e complexo, por um lado, e custoso, por outro, cuja rentabilidade era preciso fazer crescer. O desenvolvimento dos modos disciplinares veio em resposta à necessidade de controlar essas instâncias. As disciplinas marcaram o aparecimento de técnicas de poder rudimentares que se instalavam no alicerce produtivo dos aparelhos, no crescimento dessa potência e na utilização do que ela produzia. Entrava em cena a substituição do antigo princípio “retirada – violência” que permeava a economia do poder, pelo ideário “suavidade – produção – lucro”. No referencial da Revolução Francesa, a opinião constituía a instância de julgamento. O objetivo não era fazer com que as pessoas fossem punidas pelo mal que cometessem aos outros, mas que elas sequer chegassem a praticá-lo, diante de tal estado de visibilidade no qual se encontrariam, permeadas pela opinião social e pelo olhar dos outros, somados ao seu discurso. Nesse reino da opinião, o exercício do poder exercia-se pela consciência de que as coisas seriam sabidas e de que as pessoas seriam vistas por um tipo de olhar imediato, coletivo e inominado, intolerante à escuridão. As disciplinas apareceram enquanto técnicas que visavam a assegurar as multiplicidades humanas e definir em relação a elas uma tática de poder que pretendia tornar o exercício do poder o menos custoso possível, fazer com que os efeitos desse poder social atingissem o seu máximo de intensidade e que fossem estendidos ao máximo alcance, sem fracasso, sem lacunas, e, finalmente, ligar esse crescimento econômico do poder ao rendimento dos aparelhos no interior dos quais se exerciam. Em suma, tratava-se de promover ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema (FOUCAULT, 2003). Nesse ínterim, Bentham nos traz, com o Panóptico, um modelo de arquitetura capaz de traduzir esse novo ideal iluminista. O princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior [...] que permite que a luz atravesse toda a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito de
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contraluz, pode-se perceber da torre [...] as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia. (FOUCAULT, 2003, p. 165-166).
O efeito mais importante dessa arquitetura era o de induzir no encarcerado um estado consciente e permanente de visibilidade, que deveria assegurar o funcionamento automático do poder. Uma vigilância permanente em seus efeitos, mesmo que descontínua em sua atuação. O indivíduo era visto, mas não via. O panoptismo era a representação do processo técnico da coerção. Toda essa atuação das instituições disciplinares era apenas o aspecto mais visível dentre os diversos processos mais profundos que se articulavam. Um paradoxo em que os mecanismos disciplinares se ramificavam, ou seja, ao mesmo tempo em que os estabelecimentos de disciplina se multiplicavam, seus mecanismos tinham certa tendência a se desinstitucionalizar, a sair das fortalezas fechadas onde funcionavam e ir circular em estado “livre”; as disciplinas maciças e compactas se decompunham em processos flexíveis de controle, que se podia transferir e adaptar (FOUCAULT, 2003). A disciplina não podia se identificar com uma instituição nem com um aparelho: ela era um tipo de poder, um modo de exercê-lo que comportava todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela era uma anatomia do poder, uma tecnologia. Foucault alude a uma sociedade cujos elementos principais eram, de um lado, os indivíduos privados, e, do outro, o Estado. Este, por sua vez, exercia uma influência crescente sobre a sociedade, em todos os detalhes e relações da vida social, aumentando e aperfeiçoando suas garantias, utilizando e dirigindo para essa finalidade a construção e a distribuição de edifícios destinados a vigiar, simultaneamente, uma grande multidão de homens. O tempo da disciplina criou um novo saber sobre o homem, e atuava em cada indivíduo, em nível físico mesmo, corporal, apertando-o e aperfeiçoando-o para seus fins produtivos. Os corpos acabavam sendo compostos e formados por esses saberes, que simplesmente o reproduziam. Esse reproduzir do poder estava diretamente ligado ao saber que deveria ser instituído acerca de todos os corpos. Permitindose conhecer, era-se mais facilmente capturado e, consequentemente,
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submetido a dispositivos específicos de poder. O homem disciplinar não deveria ter espaço para pensar, criar. Em cada corpo que capturava, a disciplina era dual: de um lado, queria e privilegiava a produtividade, potencializando-a; por outro lado, destituía-o de uma atuação política na forma de resistência, buscava uma rendição, uma submissão cheia de proibição e de limitação. A disciplinarização ocorria pela produção de um novo modo de vida, que não significava ser bom ou ruim, mas diferente. Os indivíduos eram objetivados e, ao mesmo tempo, subjetivados. Essa tecnologia de disciplina, enquanto dispositivo, produzia saber sobre os indivíduos e normatizava seus comportamentos. Os indivíduos estavam submetidos a uma vigilância extremada, na qual a subjetividade de cada um era formada por um imenso registro e controle dos movimentos. As disciplinas não só colocaram em ordem as instituições, como fizeram delas aparelhos tais que quaisquer mecanismos de objetivação podiam valer neles como instrumentos de sujeição, e qualquer crescimento de poder deu neles lugar a conhecimentos possíveis. A Sociedade Disciplinar tinha como tarefa diminuir o que era visto como uma “desutilidade” dos fenômenos de massa, diminuir aquilo que, em uma multiplicidade, fazia com que ela fosse menos manejável que uma unidade, reduzir o aparecimento daquilo que se opunha à utilização de cada um de seus elementos e de sua soma, diminuir tudo o que nela pudesse anular as vantagens do número. Por isso, a disciplina fixava, imobilizava, regulamentava os movimentos e resolvia as confusões, as aglomerações e as repartições. Ela deveria dominar as forças que se formavam a partir da própria constituição de uma multiplicidade organizada; deveria neutralizar os efeitos de contrapoder que dela nasciam e que formavam resistência ao poder que queria dominá-la. Para tanto, a Sociedade Disciplinar empregava processos de separação e de verticalidade, introduzia, entre os diversos elementos de mesmo plano, barreiras tão estanques quanto fosse possível, definia redes hierárquicas precisas, opunha-se à força intrínseca e adversa da multiplicidade e não o processo da pirâmide contínua e individualizante. As disciplinas deveriam fazer crescer a utilidade singular de cada elemento da multiplicidade, por meios que fossem mais rápidos e menos onerosos, ou seja, utilizando a própria multiplicidade como instrumento desse crescimento (FOUCAULT, 2003). Para tanto, buscava extrair dos corpos o máximo de tempo e forças, usando os métodos de conjunto que eram os horários, os treinamentos,
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os exercícios, a vigilância ao mesmo tempo global e minuciosa. Era necessário, além disso, que os efeitos de utilidade próprios às multiplicidades aumentassem os efeitos utilizáveis do múltiplo, através das táticas de distribuição, de ajustamento mútuo dos corpos, dos gestos e dos ritmos de diferenciação das capacidades, de coordenação recíproca em relação a aparelhos ou a tarefas. Era preciso fazer funcionar as relações de poder – não acima, mas na própria trama das multiplicidades. Para tanto, atendiam a essas necessidades instrumentos de poder anônimos e coextensivos às multiplicidades, como a vigilância hierárquica, os registros contínuos, os julgamentos e as classificações incessantes (FOUCAULT, 2003). Assim, as disciplinas tinham que substituir um poder, que se manifestava pelo brilho dos que o exerciam, por um poder que objetivava insidiosamente aqueles aos quais era aplicado; formar um saber a respeito desses. Surgiu, por conseguinte, no lugar da sociedade de espetáculos, a sociedade de vigilância; sob a superfície das imagens, investiam-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstração da troca se processava o treinamento minucioso e concreto das forças úteis, os circuitos da comunicação eram os suportes de uma acumulação e centralização do saber; o jogo dos sinais definia os pontos de apoio do poder; a totalidade do indivíduo não era amputada, reprimida, alterada pela ordem social, mas o indivíduo era cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos. Segundo Foucault (2003), nesse momento, a ordem deveria prescrever a cada um o seu lugar, a cada um o seu corpo, a cada um a sua doença, a cada um o seu bem, por meio de um poder que pretendia ser onipotente, onipresente, que tudo sabia. Se cada sociedade se articula sob um determinado sistema de saberes-poderes, consequentemente, o poder não devia ser visto como uma totalidade produtora de subjetividades, porque estava sempre relacionado às produções sociais, em mutabilidade permanente, sendo construído e reconstruído o tempo todo, com base em novas relações que se produziam e que estabeleciam novos saberes. Foucault enfatiza que onde há poder, há imanentemente uma resistência sendo criada, sendo esta última condição primordial para a existência do primeiro, a partir da suas multiplicidades de atuação. Destaca ainda que as resistências constituintes de nossos corpos os percorrem, caracterizando-se como pontos móveis e inventivos,
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causadores de singularizações. Este parece ter sido o “erro” da Sociedade Disciplinar: ter-se esquecido da resistência imanente. O Panóptico de Bentham foi, em certo aspecto, a ilusão do poder, haja vista que deu à opinião uma autoridade considerável. Acreditou-se que as pessoas iriam tornar-se virtuosas, apenas pelo fato de serem olhadas. A opinião foi, para eles, uma reatualização espontânea do contrato. No entanto, ela não é justa por natureza, tem componentes materiais, econômicos e políticos, não se constitui em uma vigilância democrática. De maneira geral, os pensadores parecem ter-se esquecido das dificuldades que encontrariam para fazer seu sistema funcionar, ignorando que haveria sempre formas de se escapar às malhas da rede e que as resistências desempenhariam o seu papel. Todavia, de que forma os indivíduos reagiam? Apesar de se tratar de um controle contínuo, exaustivo, houve revolta contra o olhar das disciplinas. Do Panóptico, aquele que tudo via e controlava ininterruptamente. Foi possível acompanhar os movimentos desviantes dos indivíduos, que demonstravam sua insatisfação pelas greves fabris, pelas faltas exacerbadas ao trabalho, pela recusa em habitar as cidades operárias que foram construídas. A Sociedade Disciplinar foi, aos poucos, perdendo seu poder de atuação frente a uma nova demanda de sociedade. Houve uma abertura dos espaços e uma série de modificações a respeito das quais o próprio Foucault, embora não tenha analisado sua continuidade, reconheceu uma nova sociedade em um futuro próximo, sendo o escritor Burroughs quem propôs o termo controle, para falar do que estava por vir. De acordo com Pelbart (2003), a sociedade disciplinar não conseguia penetrar inteiramente nas consciências e nos corpos dos indivíduos, a fim de organizá-los na totalidade das suas atividades. Tratava-se de uma relação poder-indivíduo ainda estática que, além disso, era compensada pela resistência deste último. Na sociedade de controle, por outro lado, o conjunto da vida social é englobado pelo poder e desenvolvido em sua virtualidade. A sociedade passa a ser integralmente tomada por um poder que a invade, até os centros vitais de sua estrutura social; que alcança as consciências e os corpos da população, atravessando as relações sociais e as integralizando. É a tomada da economia, da cultura e também do bios social por um poder que assim engloba todos os elementos da vida, mas é um domínio que produz algo muito paradoxal, pois, ao
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invés de unificar tudo, cria um meio de pluralidade e de singularização não dominável. Dando continuidade ao pensamento de Pelbart, vivemos hoje no tempo do Império, onde estamos subordinados a uma nova estrutura de comando, pós-moderna, descentralizada e desterritorializada, que correspondente à fase atual do capitalismo globalizado. Um período que não enxerga limite ou fronteira, que abrange a totalidade do espaço do mundo, que se apresenta como fim dos tempos e busca em profundidade a vida das populações, seus corpos, mentes, inteligência, desejos, afetividade. Um tempo que compreende a totalidade do espaço, do tempo e da subjetividade, que segue uma lógica de poder mais “democrática”, horizontal, fluida, esparramada, em rede, entrelaçada ao tecido social e à sua heterogeneidade, articulando singularidades étnicas, religiosas e minoritárias. O poder se transfigurou. No lugar dos dispositivos disciplinares que constituíam a nossa subjetividade, encontramos novas modalidades de controle. As antigas instituições que fechavam e esquadrinhavam os indivíduos – família, escola, hospital, manicômio, prisão, fábrica –, tão características do período moderno e da sociedade disciplinar, funcionam agora por mecanismos de monitoramento mais difusos, flexíveis, móveis, ondulantes, “imanentes”, com atuação direta sobre os corpos e as mentes, prescindindo das mediações institucionais antes necessárias, que, de qualquer forma, entraram progressivamente em colapso. Em seu livro Conversações (1992), Gilles Deleuze afirma que as instituições acima citadas deixaram de ser espaços analógicos convergentes a um mesmo proprietário, o Estado ou a potência privada, já que se tornaram “figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes”. As artes entraram para os circuitos fechados de um banco, os mercados passaram a ser conquistados por tomadas de controle, determinação de cotações e não mais por disciplina, redução de custos; os produtos foram sendo transformados e não mais se trabalha com a especialização dos mesmos. O poder continua agindo sobre os indivíduos, atuando sobre a subjetividade de cada um, no entanto, ele adquiriu outras formas de se relacionar com o espaço, que agora é liso e flutuante. Articula-se por meio dos sistemas de informação, de comunicação, das atividades de enquadramento e é, por sua vez, interiorizado e reativado pelos próprios sujeitos.
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Contudo, como Foucault já nos colocava, o poder não pode ser visto apenas como algo repressivo, intransponível, negativo, como se ele nos amputasse a capacidade de reação, mas ele possui uma potência positiva enquanto força que gera produção (ORTEGA, 1999). Ele é incumbido da produção e reprodução da vida, formando a dimensão biopolítica da sociedade de controle. Nessa sociedade, o corpo e a vida, juntamente com seus mecanismos, são integrados no domínio dos cálculos explícitos do poder, que administra e domina a vida social desde dentro, seguindo-a, interpenetrando-a, assimilando-a e a reformulando. A vida torna-se objeto de poder, uma vez que passa a ser uma função integrante e vital que cada indivíduo abraça e reativa, por sua própria conta e vontade (PELBART, 2003). Tratamos agora de um poder organizativo, que removeu os últimos obstáculos para a subsunção real e total da sociedade ao capital. Foram conjuntamente carregados com isso os Estados-nação, a separação público/privado, a sociedade civil, instituições com função de mediação e, como nunca, o bios social foi. Por outro lado, essa lógica pôs a nu as sinergias de vida, os poderes virtuais da multidão, o poder ontológico da atividade de seus corpos e mentes, a força coletiva de seu desejo e, por conseguinte, a possibilidade real de ela reapropriar-se dessa sua potência. O controle vigente agora pertence ao marketing, funciona em curto prazo, é contínuo e ilimitado, em detrimento da disciplina, que era de longa duração, infinita e descontínua. De confinados a espaços disciplinares, passamos a endividados nos espaços abertos. O controle sobre as subjetividades e as identidades atenuou-se, estamos subordinados a uma vigilância generalizada, aberta, que vai além do confinamento das instituições. O poder foi transformado, revestido. A sociedade aparece como uma imensa solução fluida na qual se difundem, se diluem, se mesclam e se confundem substâncias psicoquímicas de cores diferentes. Crenças, tradições, ilusões, fés, ódios, desejos que provêm de vários estratos do inconsciente antropológico, fluxos midiáticos oriundos de fontes diversas do ciberespaço, fluxos subculturais provenientes de diferentes níveis de imaginário planetário. E longe de reduzir ou uniformizar o comportamento cultural, a integração planetária produziu uma multiplicação de refrações, esfumaçamentos, meios-tons que dependem dos diversos graus de contaminação. (PELBART, 2003, p. 90).
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A opinião e a vontade, anteriormente utilizadas, cedem lugar aos fluxos psicoquímicos, ou seja, aos hábitos, medos, às ilusões, fanatismos que permeiam a mente social. A esfera pública, antes fundada no confronto de opiniões, tem suas bases voltadas para a determinação fragmentária, imprevisível, cada vez menos referida a esquemas políticos definidos. A vida neste Império, de acordo com Pelbart (2003), associa-se às coletividades, à cooperação social e subjetiva, no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Tornou-se a expressão de inteligência, afeto, cooperação, desejo. Ao se diferenciar da concepção biológica do termo, adquiriu uma amplitude inesperada e passou a ser redefinida como poder de afetar e ser afetado. O trabalho, o capital e a terra abriram espaço agora à inteligência, que está longe de ser um recurso escasso ou calculável. As identidades que um dia foram fixas, locais, agora dão lugar a outras flexíveis, móveis, cuja velocidade é ditada pelo mercado e com sua alta velocidade. Pelas redes flexíveis, moduláveis e flutuantes, o poder foi desfigurado, ampliou seu alcance, penetração. Surgem, assim, formas ultrarrápidas de controle ao ar livre. Fica mais fácil visualizar algumas mudanças, se as colocarmos como ocorreram na prática: os hospitais, antes meios de confinamento, foram setorizados, criaram-se os hospitais-dia, surgiram atendimentos a domicílio, que permitiram novas liberdades, mas, por outro lado, também passaram a agir como mecanismos de controle que disputavam com os mais duros confinamentos. Ao assinarmos qualquer documento, como um cheque, imprime-se nesse momento a nossa identidade. A assinatura, produzida pelo indivíduo e objeto de identidade pessoal historicamente conhecido, vem sofrendo os efeitos dessa contemporaneidade líquida. O CPF, antes conhecido apenas como o número de registro do indivíduo em uma massa, garantia-nos o estatuto de existente regulamentado. Na sociedade de controle, nossa assinatura é posta em xeque, torna-se objeto de verificação, de confirmação para movimentos financeiros. Em substituição à assinatura, o controle cria o código e a senha, instaurados pelo sistema (COSTA, 2004). A sociedade de controle é marcada pela interpenetração dos espaços, por sua suposta ausência de limites definidos (a rede) e pela instauração de um tempo contínuo, no qual os indivíduos nunca conseguem terminar coisa nenhuma, pois estão sempre enredados numa espécie de formação
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permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo aberto (cf. PELBART, 2003). Deleuze (1992) ressalta que Félix Guattari imaginou uma cidade onde as pessoas pudessem abandonar seus lares, bairros, por meio de um cartão de identificação eletrônico e individual, que derrubaria as barreiras – o que já existe. No entanto, se esse cartão falhasse, o indivíduo deixaria de ser quem outrora fora, perderia sua identidade, não poderia ser aceito como dono de sua casa, os acessos lhe seriam negados: esse é o conceito de modulação universal de que nos fala Deleuze, em que o indivíduo passa a ser divisível, ora podendo, ora não podendo (cf. COSTA, 2004). Na verdade, a modulação a sobre um conjunto ou grupo de códigos, o indivíduo podendo ou não ter acesso a um serviço liberado pelo sistema. Também do ponto de vista da geografia, o código vem substituindo gradativamente a identidade. As noções de identidade e corpo físico sempre estiveram associadas uma à outra. Com o advento do espaço urbano partilhado administrativo, há a emergência de um duplo do corpo: o sistema numérico que nos identifica. Assim, o telefone, o cartão de crédito, o número da previdência etc. possibilitam, cada vez mais, expandir ou restringir nossa mobilidade no espaço físico (BOULLIER, 2000, apud COSTA, 2004). Atualmente, um habitante está inscrito em uma rede variável, em que a prova de domicílio não é mais o título de propriedade ou o pagamento de aluguel, mas a fatura de água, de eletricidade ou gás, de telefone etc. É a inscrição nessas redes, o estatuto de consumidor de fluxos técnicos que serve como prova jurídica de nosso pertencimento espacial. Somos humanamente definidos como membros de múltiplas redes (ibid). As redes sociotécnicas, nas quais estamos inseridos, são muitas: água, transportes, comércio, telecomunicação, telefonia, comunicação, TV, jornal, computação, web, portáteis. Na era digital, em casa ou no trabalho, pelo fato de essas redes estarem interconectadas, podemos acessar múltiplos serviços, sem a necessidade de nos deslocarmos. Por outro lado, em trânsito, temos acesso à cidade digital via cartões multisserviços, terminais eletrônicos, aparelhos portáteis. Uma nova lógica, portanto, está em curso, no que diz respeito aos deslocamentos e acessos. Tudo isso nos é possível, porque o dinheiro se tornou eletrônico, em substituição ao seu oneroso antecessor de papel. O dinheiro eletrônico,
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além de reduzir os custos, acaba gerando mais controle sobre os indivíduos e a circulação do capital: o papel moeda é anônimo, o dinheiro eletrônico, não (ibid.). Tornamo-nos marcas, amostras de moedas, dados. Com relação ao dinheiro, “as trocas são flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem diferente de amostras de moeda” (DELEUZE, 1992). Na sociedade da informação, o governo, a produção e a circulação das informações são uma única coisa. Somado às transfigurações já colocadas, o antigo meio de registro disciplinar também se aperfeiçoou, de sorte que estamos circundados por um novo tipo de olhar vigilante – as câmeras. Estas estão presentes em todos os locais, acompanhando nossa movimentação, nossas atitudes, registrando tudo, permanentes em sua atuação. O intuito é estabelecer essa modulação contínua, no presente, onde os indivíduos não sendo mais que pontos localizáveis numa série de redes que se entrecruzam. Assim, resta aos usuários controlar todo o tempo as informações pessoalmente identificáveis que eles estão fornecendo ao sistema, continuamente (cf. COSTA, 2004). Há uma mudança na natureza do próprio poder, que não é mais hierárquico, e sim disperso em uma rede planetária. Isso pode significar que a antiga dicotomia opacidade-transparência não seja mais pertinente. Nessa sociedade, as instâncias de poder estão dissolvidas por entre os indivíduos, o poder não tem mais uma “cara”. Hoje, o importante parece ser essa atividade de modulação constante dos mais diversos fluxos sociais, seja de controle do fluxo financeiro internacional, seja de reativação constante do consumo (marketing) para regular os fluxos do desejo ou, não esqueçamos, da expansão ilimitada dos fluxos de comunicação. Por outro lado, da mesma forma que o terrorismo é uma do terror imposto pelo Estado, a ação não localizada dos hackers, produzindo disfunções e rupturas nas redes, parece ser o efeito que corresponde adequadamente aos novos modos de atuação do poder. Nenhuma forma de poder parece ser tão sofisticada quanto aquela que regula os elementos imateriais de uma sociedade: informação, conhecimento, comunicação (cf. COSTA, 2004). O Estado está se tornando uma verdadeira matriz onipresente, modulando os indivíduos continuamente, segundo variáveis cada vez mais complexas. Na sociedade de controle, estaríamos passando das estratégias de interceptação de mensagens ao rastreamento de padrões de comportamento.
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Diante de todo esse cenário, de todas essas transformações, o homem passou a ser sujeitado de outras formas. Na Sociedade Disciplinar, fomos passivos de uma série de confinamentos, tornando possíveis determinados modos de subjetivação. Hoje, enquanto combinação da Disciplina – Controle, entre uma sociedade que se acaba e outra que surge, não fugimos a essa realidade; o contexto mudou, mas estamos condicionados a outras vigilâncias. Como nos constituímos, enquanto sujeitos que saem de um espaço fechado para um aberto, na medida em que os poderes e os saberes se transformam ao nosso redor? Os modos de subjetivação, dispositivos historicamente constituídos que podem se desfazer, transformar-se, à medida que novas práticas de subjetivação se formam, e a subjetividade, que, por sua vez, é o único lugar onde um sujeito, uma identidade, podem medrar, se desenvolver, estão imersos em uma nova concepção de indivíduo. Nossa vida passou a associar-se às coletividades, à cooperação social e subjetiva, no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Tornou-se a expressão de inteligência, afeto, cooperação, desejo. Ao se diferenciar da concepção biológica do termo, adquiriu uma amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetação. O sujeito agora se desfaz em uma série de processos que multiplicam as subjetividades que são mais ou menos montáveis e desmontáveis. Um “neonarcisismo” surge, onde a perigosa contemplação de si mesmo – a que praticava Narciso no espelho das águas – é substituída por uma série de exposições cujo controle parece fugir ao sujeito. O que vale é uma potência de variação que o sujeito sente como alheia e que somente pode ser acessada através de um “aparelho” – um novo dispositivo? – que a relação da subjetividade com a consciência que se tem dela. (CARDOSO JÚNIOR, 2005, p.22-23).
O sujeito atual não se fixa em uma identidade, mas se permite atravessar, ser, de várias formas segundo lhe convém. Deve ser capaz de se sentir seduzido pela incessante possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de contentar-se com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça infindável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência (BAUMAN, 1998). Dando continuidade a essa, Nietzsche (s.d.) possibilita uma caracterização de um tipo psíquico característico do modo de
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subjetivação contemporâneo: “Uma nação que perdeu a piedade para com o passado e que o seu gosto cosmopolita condena a uma mudança permanente e a uma procura incessante do novo, e sempre do novo”. Tratamos, assim, de uma marcação da identidade pela diferença, um novo ser fragmentado, que se reveste de identidades múltiplas, conforme deseja ou necessita. O indivíduo torna-se tão receoso e hesitante, que perde a confiança em si; dobra-se sobre si mesmo, sobre a sua interioridade, que nesse caso significa dobrar-se sobre um amontoado de coisas aprendidas que não têm qualquer ação sobre o exterior e sobre um saber que não se transforma em vida. Ao observarmos de uma certa distância, apercebemo-nos de que a extração dos instintos pela história transforma os homens em sombras e abstrações. As pessoas não ousam mais serem elas próprias, todos trazem máscaras, disfarçam-se de homens cultos, de poetas, de políticos. E quando atacamos uma máscara dessas, acreditando que ela se leva a sério e não se trata de um simples fantoche – todas dão mostras de grande seriedade – fica-se nas mãos com trapos e enganos, falsetes, ouropéis de cores variadas (NIETZSCHE, s.d.). Hoje, assistimos a uma proliferação de singularidades, e não mais sujeitos. A identidade, a responsabilidade, a participação política, a pretensão de um governo da totalidade são exemplos de obsessões que impedem algo mais elementar, uma espécie de criatividade caosmótica e recombinações singulares, eventos libertários que uma célula independente pode examinar por si e propor como exemplo, como contágio, fazendo rizoma sem precisar dominar. Seria uma maneira de pensar alternativas no interior desse caldo, onde se dissolveram os corpos compactos, como classes, ideologias, todas essas figuras simplificadas que já não agregam qualquer constelação de acontecimentos, de ações, de projetos (PELBART, 2003). Devemos atualmente, ser o mais enxuto possível, leves, termos navegabilidade, a fim de poder atentar para os projetos mais pertinentes, com término previsto, para o qual se mobilizam as pessoas certas e, ao cabo do qual, estão todos novamente disponíveis para outros convites, outras propostas, enfim, outras conexões. Podemos pensar na figura do empreendedor, que já não é aquele que tudo acumula – capital, propriedades, família – pelo contrário, é atualmente aquele que pode deslocar-se mais, de cidade, de país, de universo, de meio, de língua, de área, de setor. O mundo conexionista é inteiramente rizomático, não finalista, não identitário, favorece os hibridismos, a migração, as
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múltiplas interfaces, metamorfoses etc. Seu objetivo ainda é o lucro, mas o modo pelo qual ele agora tende a realizá-lo é prioritariamente através da rede (id.). De acordo com Pelbart (2003), estamos submersos em um mundo que trabalha em rede, que conta com equipes auto-organizadas, com uma nova função de manager, onde não é propriamente o diretor que manda, calculista e frio administrador, mas sim o líder visionário e intuitivo, capaz de catalisar uma equipe, animá-la, inspirar confiança, comunicar-se com todos, com uma intuição criativa, enfim, um humanista. É o homem da rede, da complexidade, do mundo reticulado, da mobilidade, que atravessa fronteiras, sejam elas geográficas, culturais, profissionais ou hierárquicas, capaz de estabelecer contatos pessoais com atores muito diferentes dele. Ironicamente, no mundo atual, o problema do neomanagement é precisamente o do controle: como é possível controlar o incontrolável – a criatividade, a autonomia, a iniciativa alheias – senão fazendo com que as equipes auto-organizadas se controlem a si mesmas? Surgem, em decorrência, as noções de implicação, mobilização, prazer no trabalho (nada que lembre controle ou manipulação). Ao mesmo tempo, a importância da satisfação do cliente transfere parte do controle para fora, porque é ele que deve exercer o controle. Passamos a um autocontrole, para uma externalização dos custos de controle antes assumidos pela empresa, em direção aos próprios assalariados e aos clientes. Os trabalhadores se tornam mais responsáveis pelo processo produtivo como um todo e, portanto, menos alienados. Concomitantemente, a proposta é ter certa liberação generalizada; à medida que uma mobilidade é estimulada, é valorizado aquele que pode trabalhar com as diferenças, em seus vários níveis, aquele que está aberto e flexível para trabalhar em projetos distintos, adaptar-se a circunstâncias diversas, e cada projeto traduz uma oportunidade para enriquecer as competências próprias e aumentar sua empregabilidade. Com isso, o neomanagement traz consigo uma margem de liberdade, reivindicando mesmo uma autonomia, uma espontaneidade, uma mobilidade, uma pluricompetência, uma conviviabilidade, uma abertura à novidade, à criatividade, à sensibilidade, à escuta do vivido e ao acolhimento de experiências múltiplas, contatos interpessoais etc. (PELBART, 2003). Temas como esse, relacionado ao mundo do trabalho, eram associados a uma crítica radical ao capitalismo, mas agora são
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valorizados por si mesmos e postos a trabalhar em favor daquilo que outrora criticavam. O taylorismo, no seu aspecto rudimentar e robótico, não permitiria pôr diretamente a serviço da busca de lucro as propriedades mais humanas dos indivíduos, ou seja, seus afetos, o sentido moral, sua honra, sua capacidade de invenção. Por outro lado, os novos dispositivos, que pedem um engajamento mais completo e que se sobre uma ergonomia mais sofisticada, integrando os aportes da psicologia pós-behaviorista e das ciências cognitivas, precisamente porque são mais humanos, penetram também mais profundamente na interioridade das pessoas, das quais esperam que elas se entreguem ao seu trabalho e tornem possível uma intrumentalização dos homens no que eles têm de propriamente mais humano. O capital, para aumentar seu poder de captura, englobou os aspectos mais humanos dos indivíduos – potencial, criatividade, interioridade, afetos – tudo isso que dizia respeito, antes, ao ciclo reprodutivo. Passa a articular na produção tudo o que, antes, pertencia à esfera privada, da vida íntima, ou até mesmo do que há de artístico no homem, daquilo que caracteriza mais o artista que o operário. O capitalismo em rede nos pede mais do que trabalho, demanda atividades que visam a gerar projetos, que dependem dos encontros, em que a atividade por excelência, que não existe a priori, consiste em inserir-se nas redes e explorá-las, a fim de engendrar um projeto. Um projeto deve ser visto como um dispositivo transitório, e a vida é concebida como uma sucessão de projetos, tanto mais válidos quanto mais diferentes uns dos outros, e o que importa é ter uma um projeto, algo em vista ou em preparação, com outras pessoas, mesmo sabendo que esse projeto é transitório e que a associação com essas pessoas é temporária – isso em nada deve diminuir o entusiasmo. “Justamente porque o projeto é uma forma transitória que ele é ajustado a um mundo em rede: a sucessão dos projetos ao multiplicar as conexões e ao fazer proliferar os laços tem por efeito estender as redes” (PELBART, 2003). No mundo conexionista, as pessoas sentem a necessidade, o desejo de se conectar, de entrar em relação, de fazer ligações, de não ficar isolados, o que exige confiança, comunicação, flexibilidade, atividade, autonomia, riscos, estar atento como um radar, e poder “pilhar”, com habilidade e talento, sabendo antecipar, pressentir, farejar as ligações que merecem ser feitas. Uma coisa é o capital econômico, outra é o capital de relações, e outra ainda é o capital de informação; e esses dois últimos, num mundo em rede, são correlatos.
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O homem contemporâneo enxerga o mundo enquanto possibilidades de novas conexões, e deve saber onde estar, por em valor sua presença, saber escutar, trocar, ecoar, ter toda uma estratégia de monitoramento de si, apresentar a faceta que mais possa conectar; por isso, ele é ainda afetivo, amigável, é uma pessoa de verdade, não realiza nada mecanicamente e põe o que tem ou sabe a serviço de certo bem comum, impulsionando um meio, facilitando, dando alento, insuflando, impulsionando com vida, dando sentido e autonomia. Tornamo-nos conectores, uma ponte, e quanto mais conseguirmos por nós mesmos realizar um papel ativo na expansão e na animação de redes, tanto mais seremos valorizados (cf. PELBART, 2003). O sujeito, hoje, já não sofre com a perda da identidade: pelo contrário, ele até intensifica essa perda, a fim de contabilizar mais rapidamente perdas e ganhos nas exibições do “aparelho de intermediação”. Cria-se uma espécie de narcisismo da diferença, onde o cuidado de si, como denominava Foucault, ou a potência de diferenciação do corpo se vê capturada por um mecanismo que parece ter atingido o coração dos processos e práticas de subjetivação. De repente, estranhas potências passam a atravessar a relação do si consigo mesmo (CARDOSO JÚNIOR, 2005). O mercado tem se inspirado nas artes para formar seus chefes de projeto, os managers. “A malhagem informal é o modo de organização preferido dos artistas, cientistas e músicos que evoluem em domínios onde o saber é altamente especializado, criativo e personalizado” (PELBART, 2003). Devem, assim como os artistas, lidar com a desordem, ter capacidade de atravessar distâncias, geográficas, institucionais, sociais. Nessa perspectiva, contrariamente ao velho burguês, o conexionista é legitimamente errático, e o que importa é seu capital de experiências, os diversos mundos que ele atravessa, a sua adaptabilidade. Tendo em vista que o que importa é intangível, impalpável, informal, é na natureza interpessoal da conexão que recai o peso todo. Tornam-se importantes a mobilidade, o nomadismo, a leveza, o deslocamento, em detrimento da propriedade, da segurança e do enraizamento. Nesse ínterim, a problemática do laço, da relação, do encontro, da ruptura, da perda, do isolamento, da separação, como prelúdio de novos laços, a tensão entre a exigência de autonomia e o desejo de segurança estão no coração da vida pessoal, amistosa e, sobretudo, familiar. O
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laço como problemático, frágil, a fazer ou refazer, e o mundo vivido como conexão, desconexão, inclusão, exclusão. Tudo aponta para uma nova moral cotidiana, como podemos perceber. O capital criou uma nova maneira de garantir o seu lucro, por intermédio da idealização da realização pessoal, da livre associação etc. Foram deixados de lado, nesse contexto, os efeitos sociais importantíssimos que acompanharam essa reconfiguração, notadamente a precarização do trabalho, a supressão de direitos trabalhistas diversos, o novo desemprego, a nova seletividade em função das novas normas valorizadas pelo conexionismo, excluindo vastos contingentes cuja subjetividade não se coaduna com os novos parâmetros pessoais. Uma exploração que se intensifica em face de uma pulverização da resistência, a uma individualização dos contratos e da remuneração, à dessindicalização, à desintegração da comunidade de trabalho, à desconstrução da própria de classe social, à tematização crescente, em substituição ao tema das classes, dos excluídos como agregados (PELBART, 2003). Mobilizou-se em ações diretas destinadas a aliviar o sofrimento dos infelizes, passando a privilegiar estratégias de ação, conforme outras exigências. As pessoas têm o direito de se associar de maneira mais fluida numa ação conjunta, sem necessidade de realizar uma filiação partidária. Haveria como que uma “homologia morfológica” entre os novos movimentos de protesto e as formas do capitalismo que se instalaram ao longo dos últimos vinte anos. Em compensação, a ruína de vários tabus – morais, familiares, sexuais – expandiu paradoxalmente o mercado de bens ou serviços em direção antes exteriores ao mercado, como a sexualidade, por exemplo. O capitalismo se aproveitou muito da aspiração das pessoas à mobilidade, à pluralização das atividades, ao aumento de possibilidades de ser e de se fazer, e se apresenta como um reservatório de quase sem limites, para conceber novos produtos e serviços a serem colocados no mercado. Poderíamos mostrar que quase todas as invenções que alimentaram o desenvolvimento do capitalismo foram associadas à proposição de novas maneiras de se liberar, e isso desde os inúmeros artigos eletrodomésticos, da informática, até o turismo, a sexualidade e o entretenimento. O capitalismo mercantilizou o desejo, sobretudo o desejo de liberação, e assim o recuperou e o enquadrou (cf. PELBART, 2003). Até mesmo o desejo de autenticidade foi transformado em mercadoria. A crítica à massificação, o desejo de singularidade, de
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diferenciação, foi endogeneizado, mercantilizado, e seguiu-se a produção de produtos autênticos, “diferentes”, o que representou uma ocasião para os empresários superarem uma saturação do mercado, adentrando domínios antes alheios a ele. Sob pretexto de humanização, tomaram a cargo a produção de bens “autênticos”. Transformação do nãocapitalizável em capitalizável, seres, valores, bens, tesouros (PELBART, 2003). O capitalismo transforma o não-capital, não só paisagens, ritmos, mas também maneiras de ser, de fazer, de ter prazer, atitudes, e nisso consiste sua inventividade nos últimos anos, na intuição de antecipar os desejos do público, com a importância crescente dos investimentos culturais e tecnológicos. Mercantilização da diferença, da originalidade – que, evidentemente, logo se perde –, de um novo sentido, que também se esvai, gerando novas formas de inquietude e talvez novos limites. Existir é diferir, a diferença é o alfa e o ômega do universo; por ela tudo começa... Por toda parte uma exuberante riqueza de variações e de modulações inauditas jorra (das) espécies vivas, sistemas estelares... e acaba por destruí-los e renová-los inteiramente... Se tudo vem da identidade e se tudo visa e vai à identidade, qual é a fonte desse rio de variedades que nos encanta? (PELBART, 2003, p. 113).
Sob essa perspectiva, tudo é novidade, a própria invenção significa um acontecimento jubiloso, uma combinação singular, encontro, hibridação, novo agenciamento das relações entre as forças, rearranjo. A invenção é uma pequena diferença introduzida no mundo, que pode traduzir uma grande alegria. A alegria da invenção tem que ver com as novas formas de cooperação que ela enseja (cf. PELBART, 2003). Na contemporaneidade, a demarcação de uma identidade pela diferença tornou-se uma característica imanente. As pessoas são valorizadas a partir de sua capacidade de diferenciação, de fragmentariedade do seu ser, do sujeito. O oposto disso, a fixidez, está no nível do inaceitável, retrógrado ou, como nomeou Bauman (1998) da “sujeira” social. Isso não é sinônimo, no entanto, de felicidade psíquica. Temos que ser dessa forma, a fim de estarmos mais adequados ao estilo de vida pós-moderno. O Narciso atual se perderia frente a tantas imagens, não tanto pela beleza de cada uma, mas principalmente pelo sentimento de vazio coexistente com tantas máscaras e capas, que nada mais fazem do que nos proteger, a nossa tal identidade, de sofrer
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ainda mais nessa sociedade fluida, líquida, que não consegue se entregar verdadeiramente a nada.
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5 Estudo sobre a sociedade disciplinar no pensamento de Foucault e a sociedade de controle no pensamento de Deleuze-Guattari: um olhar sobre o papel da instituição educacional e o controle na infância VIVIAN DE JESUS CORREIA E SILVA
Parece que de repente Sabes que te falta uma mão Os dois olhos A língua Ou a esperança É possível, Pedro João ou Tiago Que perdesses algo Tão necessário Sem que percebesses? Pablo Neruda
Será que, diante da conjuntura social atual, os indivíduos estão mesmo perdendo algo importante sem perceber? Será que, analisando a rotina das crianças, poderemos entender uma parte desse complexo processo de expropriação? De acordo com Foucault, as sociedades disciplinares surgem no século XVIII, atingem seu apogeu no século XX e entram em processo de decadência a partir desse período, dando lugar ao surgimento de uma nova forma de organização social. Essa nova sociedade foi definida por Deleuze como sociedade de controle.
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Passamos, por conseguinte, de disciplinas expressas pelas regras e pelo confinamento presente nas instituições a um tipo de controle manifesto além dos muros da instituição. E, para manter o funcionamento de uma nova organização social, há que se constituir uma nova forma de subjetividade para sustentá-la. “Os saberes e os poderes de todos os tempos procuram dominar os processos de subjetivação, atuando como dispositivos de normalização dos comportamentos” – salienta Foucault (CARDOSO, 2005, p. 6). Essa homogeneização das ações feita através da sujeição dos comportamentos às normas estabelecidas como verdades funciona como agente transformador da maioria dos seres humanos, estes ficam subordinados a essas normas, mesmo que elas sejam contraditórias e definidas por uma minoria. Os processos ou modos de subjetivação consistem em ferramentas para a fabricação de sujeitos e a história do cuidado e das técnicas de si seria uma das maneiras de fazer a história da subjetividade (FOUCAULT, 1997, p. 111). Entretanto, para que essa relação de poder sobre as subjetividades seja exequível, Foucault destaca três modos de se sujeitar as pessoas. O primeiro se caracteriza pela investigação que tenta atingir o estatuto de ciência, colocando o ser humano na posição de objeto de estudo. O segundo consiste em atingir o ser humano com práticas divisoras, fragmentando-o em seu interior e em relação aos outros e o terceiro por definir o ser humano em relação à sexualidade (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 231-232). Nesse sentido, nosso interesse neste capítulo incide no primeiro modo de subjetivação descrito anteriormente. Desejando, pois, estudar o processo de subjetivação infantil dentro da sociedade atual, é imprescindível que olhemos para as práticas pedagógicas adotadas pelas instituições educacionais. Ora, o amplo alcance e a difusão da Educação Infantil demonstram sua importância na vida contemporânea. No âmbito da instituição educativa, Larrosa argumenta que o sujeito pedagógico é uma produção de abordagens pedagógicas. Mesmo que se afirmem pretensamente neutras, tais abordagens não o são porque colaboram na construção de discursos que nomeiam o sujeito e se utilizam de práticas institucionalizadas que o capturam (LARROSA, in SILVA, 2000, p. 52). Diante disso, buscaremos caracterizar alguns modos de subjetivação do sujeito infantil nas instituições educacionais. Chamaremos especificamente de institucionalização precoce (IP) os momentos da história das instituições educacionais que envolvem o confinamento de
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crianças menores de seis anos. Sobre esse modo de subjetivação do sujeito pousará o foco do capítulo na parte referente à caracterização da sociedade disciplinar de Foucault. Entretanto, convém ressaltar a posição ambígua da IP, pois foi desenvolvida para atender à sociedade disciplinar, mas continua seu funcionamento e sua expansão após o século XX. Com a minuciosa observação feita sobre a sociedade disciplinar, Veiga-Neto aponta que ela substituiu a política de soberania vigente até o século XVIII porque esta última não realizou o propósito pretendido de realizar o poder hegemônico. Diversas situações escapavam do olhar do soberano, por mais atento que ele estivesse. Dessa forma, o poder disciplinar tomou o lugar da soberania justamente por imprimir marcas profundas o bastante para “fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo que seja descontínua em sua ação” (VEIGANETO, 2005, p. 79). Contudo, a sociedade disciplinar precisava de um modo de aplicação de seus preceitos que atingisse um elevado número de pessoas. Para Veiga-Neto, foi através da instituição educacional que se construiu a sociedade disciplinar, tendo em vista que a escolarização possibilitou a ação exitosa da disciplina, mostrando-se capaz de funcionar “engendrando subjetividades” (VEIGA-NETO, 2005, p. 84). E, partindo da constatação de que, em geral, as pessoas vivem a maior parte de sua infância e juventude dentro de escolas, temos noção da pertinência do processo educacional no engendramento da sociedade disciplinar (VEIGANETO, 2005, p. 85). A instituição educacional detém sob seu comando o planejamento de uma rotina diária e com vários anos de duração, o que certamente lhe assegura “os efeitos desse processo de subjetivação”, classificados como “notáveis” (VEIGA-NETO, 2005, p. 85). Encontramos em Deleuze dados sobre a transição que aconteceu posteriormente, da então consolidada sociedade disciplinar para a sociedade de controle. O autor explicita o surgimento de modos ainda mais abrangentes de contenção e direcionamento do sujeito contemporâneo. Ele constata que, antes, o confinamento disciplinar era fixo e rígido, “como os buracos de uma toupeira”, porém, na sociedade de controle, a disciplina é substituída por outro tipo de estratégia, modulada e flexível, “como os anéis de um uma serpente” (DELEUZE, 1992, p. 226). Nesse contexto, para Deleuze, vivemos um momento histórico no qual existem, simultaneamente, características da sociedade disciplinar em decadência e da sociedade de controle em expansão (DELEUZE, 1992, p. 220).
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Diante da concepção deleuzeana, a sociedade de controle surgiu como uma transformação da sociedade disciplinar. No tangente ao poder, o controle pode ser visto também como a “estratégia vencedora” dentre tantas outras estratégias já utilizadas ao longo da História. Afinal, ao invés de disciplinar os indivíduos dentro de instituições de sequestro, com muros altos e também altos investimentos para inculcar-lhes artificialidades legitimadas como úteis, o controle exercita seu poder de uma forma muito mais interessante. Pode-se intuir que não se trata apenas de uma transformação da sociedade disciplinar, mas sim uma evolução das estratégias de sujeição que demonstram maior complexidade, flexibilidade e alcance. Lançamos a hipótese de que a IP acompanha e reflete a transição da disciplina para o controle, adaptando-se a essa demanda social mesclada e complexa. Quando consideramos a disciplina como sólida, constatamos o controle como gasoso. A disciplina, por sua solidez, precisa de anos para se concretizar enquanto obra. Dedicação exaustiva (dos cuidadores); martelos, picaretas, lixas (técnicas de cuidado); artistas especializados (professores); matéria-prima em abundância e em situação de uso imediato (alunos aptos); locais apropriados (escolas); ciência legitimadora (pedagogia). A disciplina “cai bem” para qualquer um que deseje se servir dela. Já o controle precisa de menos recursos, de pouco tempo. Funciona com incrível capacidade em ambientes abertos, não vigiados por elementos externos. Possui algumas particularidades provenientes de seu estado “gasoso”. O controle atua passando despercebido, espalha-se e penetra em todas as frestas, não necessitando que seus sujeitos estejam em condições de legitimá-lo; basta respirar o mesmo ar que os outros. Precisa apenas de um ambiente que permita a passagem de seus vapores porque “o controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado”, fazendo contraponto com a disciplina, que “era de longa duração, infinita e descontínua” (DELEUZE, 1992, p. 224). Podemos deduzir que uma das mudanças de paradigma da subjetividade do controle é a continuidade da sensação de vigilância. Antes o indivíduo vivia a disciplina apenas dentro da clausura. Agora o vínculo parece mais consistente, pois o aprisionamento pode estar dentro dele mesmo, independente do espaço físico que ele vier a ocupar. Faz-se importante, nesse caso, o nascimento de um novo homem, cuja subjetividade da era disciplinar se modifica/adapta sob a égide do controle.
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Desse modo, caberia questionarmos a IP como uma dentre as estratégias flexíveis de poder atuantes na modelagem de um tipo prédeterminado de subjetividade, provavelmente visando à normalização das ações e a padronização dos interesses. Para Foucault, esses mecanismos estratégicos operam sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; incitam, induzem, desviam, facilitam ou tornam difícil, ampliam ou limitam, tornam mais ou menos provável, chegando até a coagir ou impedir, caracterizandose sempre pela ação de um sobre outros sujeitos ativos, “uma ação sobre ações” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 243). A ação constante sobre a criança que é atendida na rotina da IP caracteriza a posição de sujeito pedagógico descrita por Larrosa (LARROSA, in SILVA, 2000, p. 54). O processo de subjetivação infantil passa a ser lentamente moldado, desde muito cedo, pelo sistema de funcionamento da IP. De acordo com Deleuze, a subjetividade se constrói de forma empírica, sendo as circunstâncias do que é dado na prática fundamental para a diferenciação do sujeito, ou seja, “circunstâncias [...] são, exatamente, as variáveis que definem nossas paixões, nossos interesses” (DELEUZE, 2001, p.116). Sendo assim, quando as circunstâncias são planejadas e prédeterminadas para alcançarem um objetivo, estamos presenciando o nascimento de uma estratégia. Nesse caso, pode-se identificar, em termos de estratégias de subjetivação, os mecanismos utilizados nas relações de poder (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 248). Notamos que a relação do adulto empregado da instituição educacional com a criança confiada aos seus cuidados é uma relação de poder. Larrosa ressalta a validade de se perguntar pelos mecanismos estratégicos específicos que constituem o que é dado como subjetivo, isto é, como a experiência de si foi e é produzida, remetendo à ideia foucaultiana do sujeito contemporâneo ser uma produção social (LARROSA, in SILVA, 2000, p. 55). A subjetividade interage com o social, segundo Deleuze. Sendo a subjetividade composta por fluxos de desejo, os adultos envolvidos no processo de subjetivação infantil seriam “meios, abridores ou fechadores de portas, guardas de limiares, conectores ou desconectores de zonas” (DOMINGUES, 2002, p. 5). Para Deleuze e Guattari (D&G), “o desejo faz constantemente a ligação de fluxos contínuos e de objectos parciais” (DELEUZE & GUATTARI, 1966, p. 11). Dentro desta idéia podemos intuir que, se há possibilidade de conexão do desejo com o seu entorno
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formando a subjetividade, também é possível restringir sua fluência a determinados tipos de conexões visando manter um certo padrão subjetivo. Este padrão, em Guattari, corresponderia à demanda da ordem social capitalista porque a espécie humana traz em si cargas de desejo de que o capitalismo pretende se apoderar. (GUATTARI, 1987, p. 206). Entendemos que o domínio dessas cargas de desejo pode contribuir para a manutenção do capitalismo. E o quanto antes esse desejo for direcionado, melhor integrado o sujeito poderá estar ao papel social que dele se espera. Podemos supor que, em contrapartida, quanto mais cedo esse desejo for estimulado a se expandir, mais ampla e diversificada será a subjetividade do adulto resultado desse processo de conexão criativa com seu entorno. Depende das circunstâncias. Sendo a subjetividade construída de forma empírica, ela segue acompanhando as mudanças históricas e as tais circunstâncias cotidianas. Deleuze observa que não há subjetividade teórica porque a proposição fundamental do empirismo é a construção do sujeito prático, nascido para interagir e moldado subjetivamente pelas experiências que lhe foram proporcionadas (DELEUZE, 2001, p. 118). Dessa maneira, se a subjetividade é construção prática e modifica seu formato segundo as circunstâncias na qual fora entalhada, pode-se inferir que ela deve vincular-se à vivência institucional estreitamente, ao cotidiano da organização, que, por sua vez, funciona conforme um objetivo capitalista. De acordo com o conceito de que as circunstâncias definem o sujeito em sua subjetividade, torna-se possível refletir sobre o alcance da IP, sobre a importância do processo educacional na construção da subjetividade contemporânea e das relações dela provenientes. Dessa maneira, verificam-se, por exemplo, alguns critérios de funcionamento das relações: “Se é verdade que a associação é necessária para tornar possível toda relação em geral, cada relação em particular de modo algum é explicada pela associação. O que dá à relação sua razão suficiente é a circunstância” (DELEUZE, 2001, p. 116). Supondo, assim, que a subjetividade e as relações são desenvolvidas através das circunstâncias práticas, é possível vislumbrar a grande importância da rotina na modelagem dos sujeitos, das subjetividades, do direcionamento dos desejos, da disponibilidade afetiva etc. O papel das circunstâncias. A vida escolar e as práticas pedagógicas contribuem para a consagração de um certo tipo de rotina que pode resultar no
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desenvolvimento de seres humanos estereotipados subjetivamente. Podese imaginar a influência do controle gasoso quando o sujeito é obrigado a respirar esses ares continuamente, em fases de construção da identidade, ou seja, vivenciar a maior parte de sua infância e juventude dentro de circunstâncias controladas, como ocorre no processo de escolarização. No caso da Educação Infantil, a IP corresponde a um conjunto de tecnologias políticas que investem na regulação das populações através dos processos de controle e normalização, objetivando controlar e produzir “infância” (PAIVA; CARRIJO, 2005, p. 306). Essa criança produzida pela infância atual provém de formas de controle e avaliação contínuos. Adicionados ao controle constante encontra-se a ação da formação permanente sobre a escola, o regime de abandono às pesquisas e a introdução do caráter empresarial em todos os níveis de escolaridade (DELEUZE, 1992, p. 225). Isso demonstra que, “assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa”. Observa-se que existe harmonia entre os métodos escolares e os objetivos empresariais, produzindo ressonâncias o fato de que a estruturação da escola está ligada à produção de uma infância engajada nos ditames do capitalismo, com suas inovações que o caracterizam agora como empresarial e volátil, voltado para a sociedade de controle. Outra característica a se destacar no surgimento das sociedades de controle é sua plasticidade. Tal processo de flexibilização se expressa em “nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal” (DELEUZE, 1992, p. 221). Nota-se que a IP, através do controle das circunstâncias às quais estão entregues os sujeitos menores de seis anos, poderia modelar/orientar a subjetividade dessas crianças, com a meta de integrá-las ao novo tipo de controle social. Fazendo-as respirar precocemente os vapores da sociedade em ascensão, torna-se provável o surgimento de um tipo padrão de novos homens, com suas subjetividades construídas empiricamente pelas circunstâncias disponíveis, do “... homem do controle... ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo” (DELEUZE, 1992, p. 222). Relacionar as características desse novo homem com os novos formatos do capitalismo e da escolarização é possível. Através da
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formação continuada, o sujeito estará sempre vagando ao redor de uma órbita, como um satélite que gira continuamente ao redor de um planeta próximo cujo magnetismo é mais forte. Esse feixe contínuo de conexão do indivíduo à fonte do controle pode demonstrar como prédeterminada estará a sua trajetória. Sua movimentação dá-se de um modo que é desnecessário conter ou vigiar, é suficiente deixar que se cumpra o caminho estabelecido, numa órbita de movimentos padronizados que poderão configurar um novo tipo de dominação, a subjetiva. Estaríamos testemunhando o fim do confinamento no interior – indivíduos trancados em ambientes vigiados e disciplinados – para o princípio de um confinamento do interior – no qual, independentemente do lugar que o ser se encontre, seu eu subjetivo estará devidamente capturado desde a infância? Mesmo gozando de livre movimentação exterior, a nova estratégia vencedora do poder parece consistir-se em controle contínuo através de um feixe de conexão cujas bases seriam lançadas nos primeiros anos de vida pela atuação da IP. Supondo isto ser verdadeiro, o controle possui alcance maior que a disciplina e a IP pretende proporcionar um encaixe sem sobras do sujeito infantil dentro da sociedade. Ao longo do tempo, de acordo com a evolução da disciplina para o controle, pode-se antever o surgimento das possibilidades de dominação mais radicais. “Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa” (DELEUZE, 1992, p. 225). Seria o início da era de escravidão subjetiva? Podemos destacar que se a sociedade disciplinar regularizava a rotina das pessoas, a sociedade de controle regularizaria, pois, as pessoas para a rotina, desde os seus primeiros anos de vida. Enquanto a disciplina restringia o dia-a-dia dos indivíduos, enclausurando, disciplinando e mediando suas relações, a sociedade de controle cria um novo tipo de modelagem que ocorre antes das exigências do cotidiano. Pode ser estarrecedor verificar que os sujeitos são entalhados desde cedo para a rotina, para se tornarem portadores de uma subjetividade suscetível ao gás-controle, capaz este de penetrar em todos os lugares, arregimentando seus súditos para as funções cujos produtos culminarão em metas capitalistas. Da disciplina para o controle, a sociedade precisava ser preparada para receber a mudança de paradigma, sem provocar choques
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motivadores de reações, capazes de abalar a implantação dos novos objetivos de controle social. Sendo assim, estaria a IP visando à padronização dos interesses e a normalização das ações das crianças para a ascensão e estabelecimento da sociedade de controle? O papel da escola continua fundamental para a organização da sociedade. Veiga-Neto mostra a profundidade do processo de escolarização, ao destacar que “[...] a escola é, depois da família (mas, muitas vezes, antes dessa), a instituição de seqüestro pela qual, todos passam (ou deveriam passar...) o maior tempo de suas vidas, no período da infância e da juventude” (VEIGA-NETO, 2005, p. 85). O projeto educacional da Modernidade baseou-se no afastamento entre o homem e a natureza, alegando que o processo civilizador se daria ao seguir novas pautas de conduta. Essas novas pautas de conduta funcionavam segundo a imagem idealizada de um homem extremamente diferenciado dos animais, tendo em vista que, ao negar seu lado selvagem, caótico, afetivo, o indivíduo estaria se aproximando lentamente de um estado de nobreza e superioridade racional. Do mesmo modo, o indivíduo cuja rotina funcionasse distanciada das regras de conduta definidas pela elite social como verdadeiras deveria ser classificado como desviante e, ou seria excluído dos benefícios da integração social, ou seria capturado pelas instituições filantrópicas ou educacionais para aprender o jeito certo de se viver, de se apreender o mundo, de se relacionar com os outros seres. A noção moderna de infância foi apropriada pelas instituições sociais e esteve associada à produção de novos modos de educação com foco na institucionalização das crianças da mais tenra idade. “A educação significa [...] a produção de uma racionalidade de um certo tipo – a Moderna – e a Educação Infantil não escapa a este projeto” (BUJES, 2002, p. 61). Assim, o ser submetido ao processo civilizador obrigatório desde a infância corresponderia mais eficazmente à ideia moderna de homem que, se bem educado, seria capaz de controlar-se, de mostrar-se indiferente e até oposto às urgências desejantes. Como já foi discutido, o período de escolarização transcorre com maior intensidade e vigilância justamente nos anos de formação das bases da personalidade, nos anos de infância e juventude. Tais diretrizes escolares consistem na constante afirmação: “O sujeito da educação aprende a ser livre pelo acatamento de limites e das leis sociais” (BUJES, 2002, p. 52). Sendo assim, se o grupo social privilegiado que estabelece as leis sociais não deseja o fim do capitalismo – tendo
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em vista que tal sistema de organização os favorece amplamente dentro da sociedade – faz sentido pensar que essas referências utilizam-se da Pedagogia como justificativa científica para que suas abordagens cheguem às crianças com o poder de verdades absolutas. Com o tempo, essas referências podem passar a se construir como irrefutáveis devido ao momento de base em que aparecem na vida dos indivíduos, no caso do presente estudo, aos menores de seis anos em situação escolar. Para um adulto reagir à intrincada rede de poder pré-estabelecida já é difícil, imagina-se o quão complicado essa tarefa pode ser para uma criança que cresce dentro dessa lógica, modelada por relações de poder profundamente arraigadas. Nessa perspectiva, como um adulto que passou pelo processo de IP, durante a infância, pode reunir condições subjetivas para contestar práticas pedagógicas, se elas possuem o caráter de inquestionabilidade das estratégias vencedoras e se são amplamente divulgadas como desejáveis? Guattari questiona como evitar que as crianças se prendam às semióticas dominantes ao ponto de perderem muito cedo toda e qualquer verdadeira liberdade de expressão (GUATTARI, p. 50, 1987). Ele entende que o processo de escolarização é responsável por limitar a criatividade infantil, assim como acredita que está nas mãos dos funcionários das instituições de ensino mudar essas relações de poder para não deixar que a criança seja tão intensamente modelada pelos discursos cristalizados. “Hoje, no seio das creches e das escolas, alguns trabalhadores estão em posição de lutar contra esses sistemas de integração e de alienação” (GUATTARI, 1987, p. 54). Isso indica que o papel dos educadores das creches que constituem a IP vai muito além de cumprir o Referencial Curricular Nacional, mostrando a abrangência de suas ações. O governo das crianças, exercido desde os primeiros meses, começou com a Revolução Industrial, século XVIII, consolidando novos arranjos familiares e novas exigências às mulheres trabalhadoras, que foram afastadas progressiva e drasticamente do contato com seus filhos (BUJES, 2002, p. 61). Para Bujes, fenômenos associados à infância são manipulados com o objetivo de governar as ações das crianças, sendo o surgimento das instituições de Educação Infantil vinculado a uma aliança entre diferentes instâncias de instituições sociais (Revista Educação e Filosofia, p. 306). A educação infantil, tratada por IP no presente capítulo, faz parte de um conjunto de tecnologias políticas caracterizadas por investir na
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regulação das populações, através de processos de controle e de normalização. Isso traz à luz outro fato inquietante, cuja intencionalidade cabe apontar, que é o arbitrário direcionamento de pesquisas sobre infância: em sua maioria, estão limitadas às descrições nas teorias de Psicologia do Desenvolvimento, excluindo-se o aspecto de construção social e de foco dos discursos constitutivos e das tecnologias de poder neles contidas (BUJES, 2002, p. 26). Deve-se também discutir possibilidades de usar a escola de modos diferentes, indo além da propagação da ideologia dominante, usando essa mega-estrutura educacional - já feita com a intenção de aprisionar - como uma ferramenta, um meio de articulação do novo, para libertar. “A luta pela polivocidade da expressão semiótica da criança nos parece ser um objetivo essencial dessa micropolítica ao nível da creche” e, em vista disso, entende-se que é possível contribuir na preservação das manifestações desejantes que povoam o início da vida dos seres humanos. Este pode ser um passo decisivo para que os mesmos não se tornem adultos cujos fluxos desejantes se movimentem somente conectados aos objetivos do capitalismo (GUATTARI, p. 54, 1987). A antiga concepção dominante de ordem social implicava uma definição de desejo (das formações coletivas de desejo) como um fluxo a ser disciplinado, de modo que se pudesse instituir uma lei para estabelecer seu controle (GUATTARI; ROLNIK, 2000, p. 217). Uma vez estabelecida tal lei, o desejo estaria disciplinado. Porém, com a mudança da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, domar o desejo somente após sua manifestação se mostrou insuficiente para o novo formato do capitalismo. O ensino obrigatório a partir dos seis anos pedia um complemento prévio. Seria necessário controlar inclusive o nascimento dos fluxos desejantes, limitando sua aparição ao mínimo imprescindível para iniciar a constituição da subjetividade verticalmente determinada. Entendemos que o desejo aprisionado pelo enclausuramento da disciplina pode um dia se libertar e agir. Já o desejo conectado precocemente a um feixe contínuo de dominação dificilmente sairá provocando grandes reações, tendo em vista que não terá forças suficientes para desvincular-se e ousar por trajetórias muito diversificadas, depois de passar anos ligado a uma órbita previsível, justamente os anos primordiais, os de base para o desenvolvimento da subjetividade na qual se estruturaria sua identidade futura, remetendo novamente ao processo de escolarização.
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O estudo dos objetivos e meios de ação da IP pode significar uma forma de análise ao que foi feito com os indivíduos na sociedade disciplinar e uma projeção sobre o que poderá se realizar na sociedade de controle. Este estudo pode constituir uma possibilidade de reação à ascensão da sociedade de controle e seus planos para a subjetivação contemporânea. Guattari diz que é necessário afrontar tanto os meios materiais coercitivos quanto microscópicos meios de disciplinarização dos pensamentos e dos afetos, de militarização das relações humanas (GUATTARI, 1987, p. 138). A afronta pode ser considerada como um aspecto de reação para transformar/inovar e poderia ser feita ao se desvendar os meios e fins da sociedade de controle, com seu capitalismo empresarial, volátil e flutuante. “Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”, enfatiza Deleuze (2000, p. 220). Para Deleuze e Guattari, “o desejo faz constantemente a ligação de fluxos contínuos e de objectos parciais” (DELEUZE; GUATTARI, 1966, p. 11). Dentro dessa ideia podemos entender que, se há possibilidade de restringir a fluência dos fluxos desejantes a determinados tipos de conexões, como, por exemplo, através do controle das circunstâncias provocadas pela IP, com suas diretrizes produtoras de um tipo prédeterminado de infância, também é possível a conexão do desejo com o seu entorno, formando uma subjetividade mais ampliada. O resultado do procedimento da escolarização precoce seria a manutenção de um certo padrão subjetivo, o que retoma as estratégias de modelagem da subjetividade já problematizadas. Entretanto, na ausência ou modificação desse processo educacional na vida do sujeito, seus fluxos desejantes teriam grandes possibilidades de escapar ao padrão. Esse padrão, para Guattari, corresponderia à demanda da ordem social capitalista porque “o capitalismo pretende se apoderar das cargas de desejo que a espécie humana traz em si” (GUATTARI, 1987, p. 206). O domínio dessas cargas de desejo aparentemente pode contribuir para a manutenção do capitalismo. Portanto, o quanto antes o desejo for direcionado, melhor integrado o sujeito poderá estar ao papel social que dele se espera. Podemos supor que, em contrapartida, quanto mais linhas de fluência o desejo puder seguir, mais ampla e diversificada será a subjetividade e identidade do adulto resultado desse processo de conexão criativa com seu entorno, integrando uma contracorrente social. Ressaltamos que a modelagem dos fluxos proporcionada pela IP age em oposição ao fluxo criativo da criança, pois aprisiona os sujeitos em uma existência de
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subordinação subjetiva, de maneira estereotipada, duradoura, controlada precocemente por relações de poder. De acordo com os argumentos apresentados, é preciso/necessário formatar as subjetividades através da IP para o estabelecimento da sociedade de controle. Porém, indagamos: será que o processo de modelagem subjetiva é tão preciso/exato? Existem vários pontos de vista sobre a infância, cada qual fomentando estratégias e ações incisivas na rotina das crianças. Por exemplo, se [...] a proposição de leis e a institucionalização cada vez mais precoce das experiências de Educação Infantil também vão servir para questionar aquilo que é visto como ameaças que estas sofrem a partir de outros lugares sociais [...] (BUJES, 2002, p. 26).
Pode-se entender que essas ameaças, colocadas como perigos em potencial para as crianças, fazem com que elas sejam tratadas pela educação como objetos de proteção. Isso denota outro ponto de vista em relação às mesmas, justamente porque “[...] esta criança que passa a ter características e sensibilidades próprias é vista também como [...] desafio, risco [...]” (BUJES, 2002, p. 48). Ou seja, a criança é um ser paradoxal: é dita frágil, mas ao mesmo tempo ameaça a ordem social com a diversidade subjetiva da qual nasce portadora. Assim, o objetivo da Educação, com suas ações e seu cientificismo pedagógico vinculados ao capitalismo, segue im-preciso diante da ameaça de inovação subjetiva simbolizada pela criança, com sua marcante expressividade de desejos, demonstrando a velocidade das reações de fuga dos fluxos desejantes ao mais minucioso controle. Tal fato é demonstrado pela constante intensificação da atenção dada aos menores de seis anos, não apenas para preservar-lhes a vida, mas para coordenar-lhes a rotina. Apesar de limitada e dificultada para as crianças menores de seis anos, a posterior singularização da subjetividade ou desenvolvimento da autonomia desejante ainda ocorre, justificando a constante articulação de diretrizes da Educação Infantil com as metas do capitalismo empresarial. É certo que a formatação e padronização subjetivas são importantes para a sociedade de controle, contudo é preciso afirmar que não conseguem a precisão cirúrgica para acabar com a criatividade; conseguem embotá-la, adiá-la, limitá-la, mas ela ainda pode escapar e se expressar. Nota-se que o modo pelo qual os indivíduos vivem essa
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subjetividade oscila entre dois polos: uma relação de alienação e opressão na qual o indivíduo simplesmente se submete à subjetividade padronizada tal como a recebe e uma relação de expressão e de criação, na qual ele se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo seu processo de singularização (GUATTARI; ROLNIK, 2000, p. 33). Por conseguinte, o processo de formatação/modelagem que prepara o sujeito para viver sob controle é muito preciso, mas não a ponto de impedir escapes e singularizações; ele restringe, tenta finalizar o movimento desejante, mas não consegue. Isso acontece porque os mecanismos de controle não acompanham a velocidade dos fluxos de desejo, que são sempre linhas de fuga mais rápidas que o mais instantâneo dos controles. Orlandi ressalta que, apesar disso, existem os mais imprevisíveis jogos entre o liberar e o controlar, sendo possível até encontrar dispositivos de controle mobilizados em lutas destinadas à liberação de forças (ORLANDI, 2005, p. 235). Assim, a IP, com sua proposta de escolarização que interpreta, nomeia e coordena a rotina das crianças com o objetivo de protegê-las e inseri-las na sociedade, pode realmente cumprir seu papel com sucesso, mas cabe-nos questionar esse tipo de cidadão formado diariamente pelas estratégias educacionais. Esse questionamento possibilita a articulação de novas formas de reações ao domínio social capitalista, observando a estreita ligação entre os processos educacionais, os subjetivos e os de reestruturações sociais ao longo da história. Assim sendo, apesar de não ser infalível, não se deve desconsiderar que o alcance do poder é extremo porque atua prioritariamente através da educação de massa, elaborada com suas estratégias pedagógicas, distribuída em larga escala e obrigatória durante os anos de crescimento do indivíduo, como já colocado. Isso se traduz através de Guattari, que atribui às abordagens da Educação Infantil a meta de “extirpar da criança, o mais cedo possível, sua capacidade específica de expressão e em adaptá-la, o mais cedo possível, aos valores, significações e comportamentos dominantes” (GUATTARI, 1987, p. 53). Considerações Finais De acordo com os argumentos apresentados, podemos perceber que a transição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle está repleta de caracteres merecedores de estudo, pois afeta diretamente a formação subjetiva dos indivíduos, principalmente as crianças menores de seis anos, atendidas pela IP.
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Inicialmente, analisamos a sociedade disciplinar com suas estratégias específicas de enclausuramento e disciplinarização, visando a extrair com sucesso as forças individuais para a produção. Percebemos que, para a concretização de seus objetivos, a sociedade disciplinar contou com uma interessante aliada, a Pedagogia. Através do processo de justificação científico-pedagógica intercedendo para a intensificação da educação obrigatória, as estratégias escolares trabalharam em favor das indústrias, preparando as crianças para tal mercado de trabalho. Na atualidade, percebe-se novamente a escola agindo como formadora de alianças com os paradigmas sociais, ao invés de cumprir com as metas oficiais de promoção do desenvolvimento de seres humanos. Fato marcante foi evidenciado por Bujes, sobre o RCN – Referencial Curricular Nacional –, quando propõe uma linguagem associada à liberdade e à autonomia, mas que é utilizada para regular argumentos que dizem respeito aos meios e aos fins legítimos pelos quais se subjuga a infância (BUJES, 2002, p. 179). Com a decadência da sociedade disciplinar, a escola ganha um novo formato de atuação na vida infantil para atender às demandas da sociedade de controle. Agora a escolarização aparece cada vez mais cedo na existência dos indivíduos, devido à meta de subjetivação das crianças, facilitada pela consolidação da mulher-mãe e do homem-pai no mercado de trabalho com jornadas incompatíveis às necessidades de cuidado e vínculo com as crianças, fato este que precarizou a convivência familiar. A Educação Infantil é divulgada como uma necessidade ao desenvolvimento dos menores de seis anos e como – especificamente no caso da IP – a resposta a um direito universal das próprias crianças: “[...] ela é um direito [...] de todas as crianças, e não apenas dos filhos das trabalhadoras” (CAMPOS, 1999 in BUJES, 2002, p. 59). Entretanto, as expressões da IP recuperam novamente a tática de preparar as crianças para o novo mercado, reconhecendo-lhes apenas esse direito de integração social ao capitalismo empresarial, em detrimento de todas as outras necessidades infantis. No alcance ou não de seus projetos, de seu desenvolvimento, de sua expressão criativa, percebe-se que no mundo contemporâneo existe uma intensificação no domínio e modelagem das subjetividades e posterior conexão a um processo identitário artificial e complexo. Essa identidade difere daquela aprendida anteriormente na convivência familiar, tendo em vista que “[...] a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles [...] a criança
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foi separada dos adultos e mantida à distância [...]” (ARIÈS, 1981, in BUJES, 2002, p. 58). Podemos perguntar o porquê da transição da convivência familiar para a formação escolar. Uma das respostas pode consistir em usurpar dos adultos a possibilidade de enxergar na convivência com as crianças outras possibilidades de existência além daquela que lhes foi inculcada artificialmente. Observando que uma das maiores justificativas para a intervenção na infância é o fato de se atribuir a esse período o caráter de fragilidade e desorganização, atuase nele com a autoridade de que esse suposto desajustamento infantil deve ser administrado o mais precocemente possível. O que aparece na intensidade da relação entre o capitalismo e a escola são relações de saber e de poder, que subjetivam as crianças através do controle de suas rotinas e da limitação drástica do tempo de convivência das mesmas com os adultos que estão fora da IP, como aqueles que não estão engajados nas diretrizes do processo educacional. O achatamento da expressão desejante, feito pelo direcionamento constante dos fluxos, aparece como estratégia para subjetivação e criação da nova infância, cujo objetivo parece ser a produção de adultos plenamente adaptados ao funcionamento da sociedade de controle e desligados de outras possibilidades, desconectados de muitas de suas necessidades. Segundo Orlandi, precisamos considerar o tipo de combinação de forças que caracterizam a potência máxima atingida pelos processos de saber, poder e subjetivação (ORLANDI, 2005, p. 222). O tipo de combinação de forças em questão remete à fluidez incontrolável dos fluxos financeiros do capitalismo empresarial, lutando constantemente com os fluxos desejantes com suas resistências e linhas de fuga (ORLANDI, 2005, p. 233). Devido à sua flexibilidade, esses fluxos do capitalismo provocam constantes embates com os fluxos desejantes. Nesse sentido, é importante perguntarmos: será que as linhas de fuga dos fluxos desejantes infantis esbarram na potência máxima do capitalismo empresarial e escapam ou será que muitos deles já encontraram seu limite de reação dentro do processo de subjetivação precoce? Sobre os escapes e singularizações, pode-se entender que, simultaneamente ao processo de massificação em larga escala da IP, coexistem micro processos de reação ao controle, inclusive através da tática educacional que se mostrou sua principal ferramenta. Guattari e Rolnik observam que pessoas foram capazes de experimentar, com seriedade, outros métodos educacionais desmontando a mecânica
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imposta com a implantação de um tipo diferente de abordagem, capaz de preservar a riqueza de sensibilidade e de expressão própria da criança (GUATTARI; ROLNIK, 2000, p. 54). Isso mostra que é possível modificar os rumos da Educação Infantil. Podemos evitar tanto a manutenção de uma sociedade de sujeitos disciplinados quanto a construção de uma sociedade com indivíduos controlados. “O indivíduo disciplinado é aquele que não só tem a sua liberdade mais limitada, como ainda e principalmente, é aquele que passa a dar respostas mais homogêneas, mais padronizadas e mais automáticas” (VEIGA-NETO, 1996, in BUJES, 2002, p. 145). Já o indivíduo controlado seria aquele cuja liberdade de movimentação é proporcional à órbita na qual está conectado, ou seja, é o alvo da observação e da avaliação permanentes, expresso em “[...] apontar para a onipresença da observação como instrumento de uma avaliação permanente que é aplicada sobre as crianças” (BUJES, 2002, p. 130131). Nesse caso, o indivíduo passa a direcionar-se, a ser sujeito da própria vigilância para o alcance das metas de uma avaliação que não acaba, é um gerente trabalhando em prol de objetivos cuja origem ele pode ignorar, constituindo um modo de se inibir e restringir ações criativas. Outro ponto a destacar é a constante intensificação do domínio da infância na sociedade de controle, como alerta Varela, ao afirmar que, [...] como por ironia, esta criança foi vigiada e controlada muito mais do que nas velhas pedagogias, porque não apenas se requeriam dela as respostas corretas, mas também agora era necessário que o verdadeiro mecanismo do desenvolvimento mesmo fosse controlado. (VARELA, 1995, in BUJES, 2002, p. 70).
Isso culmina no raciocínio de que um reflexo dessa intensificação é claro ao se constatar que, na sociedade disciplinar, o alcance das estratégias de poder era menos amplo que o atual. Consideramos que a IP colabora para que a sociedade de controle concretize sua hegemonia, todavia também pode ocorrer, através daquela, a articulação de outros modos de organização social. Assim, Pedro, João ou Tiago, do poema de Pablo Neruda, podem ser informados desde cedo de que estão tentando roubar-lhes algo valioso, íntimo, intransferível, único, entretanto deformável e amputável, de acordo com as circunstâncias. Somente quando os adultos aceitarem o papel de aliados das crianças em suas necessidades mais puras e
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verdadeiras, ao invés de combatê-las ferozmente, demonstrarão uma leitura de mundo mais ampla e saberão informá-las das formas de dominação da contemporaneidade. Com essa aceitação da criança, constatação da realidade, os adultos poderão construir novos papéis. Terão a chance de funcionar como facilitadores da infância, articulando as crianças para construírem-se como seres atuantes; assim, desde a mais tenra idade, poderão reagir às tentativas de expropriação. Mas, tudo isso, antes que não tenham mais condições de reconhecer a captura de sua singularidade.
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6 Por que ainda acreditar na escola: uma busca pela transformação das relações pedagógicas através da estética da existência e da amizade
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O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta. (FOUCAULT, 2005, p. 26).
Gostaríamos, em primeiro lugar, de explicitar aos leitores como surgiu o estudo que, em parte, será apresentado a seguir. Este trabalho teve início em 2006, numa primeira fase de investigações acerca da escola contemporânea. Com o auxílio do professor Hélio Rebello Cardoso Júnior, realizamos as primeiras leituras para delinear quais seriam as questões a serem discutidas dentro de um assunto tão amplo e complexo. Esse diálogo possibilitou, por conseguinte, um encontro que nos parece de suma importância, entre os saberes da Psicologia, da História e da Filosofia, o que ampliou nossos horizontes de discussão sobre a escola enquanto instituição e lugar de relações entre colegas, profissionais, professores e alunos. Além disso, tal encontro se concretizou, sobretudo na escolha de nosso referencial teórico, a saber, a obra de Michel Foucault, onde tais linhas de saberes se cruzam e se complementam na releitura de nossa contemporaneidade. Em confluência aos estudos teóricos, uma proposta desenvolvida como parte das atividades de estágio curricular do curso de Psicologia nos permitiu elaborar um trabalho de campo numa escola de Ensino Fundamental, em Assis/SP. Tal empreitada foi desenvolvida em companhia de meu parceiro de curso Thiago Canonenco Naldinho, que,
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assim como o professor Hélio, também contribui para este livro. Portanto, é importante esclarecer que é devido a essas parcerias na orientação e nos trabalhos práticos que foi possível aprofundar-me nos temas aqui desenvolvidos, e é nesse sentido que o texto falará, referindose a essa coletividade que o forma e não apenas a mim, que dou palavras à pesquisa. Seguindo adiante em nosso trajeto, o trabalho propunha acompanhar semanalmente, durante o ano letivo de 2006, as atividades cotidianas dessa escola. Após os primeiros meses de observação e diálogo, durante as aulas, as reuniões de professores e os intervalos, ficou claro para nós o modo como a representação do “saber psicológico” se configura no imaginário coletivo: como uma ferramenta de coerção e de disciplinamento, aspecto que Foucault pontuara em sua obra e que confirmamos na prática. A que se deve, porém, essa construção coletiva? Vejamos. As disciplinas, que surgem e se disseminam entre os séculos XVII e XVIII (cf. FOUCAULT, 2004, p.118), representam um poder que age sobre os corpos individualmente e se encontra instalado e desenvolvido principalmente nas instituições, onde tem como função esquadrinhar e aumentar a força dos corpos através de um controle detalhado, exercícios e treinamentos constantes; a intenção é mantê-los como máquinas, sempre produzindo através do exercício de uma coerção sem folga. Porém, nos séculos seguintes a esse período, contingências históricas e sociais vão agregando às disciplinas outro tipo de poder, que trabalhará junto à primeira, atuando em outro nível e utilizando instrumentos diferentes da primeira, de modo a aumentar o campo de atuação do corpo individual para a população. A articulação entre o poder disciplinar e o poder regulamentador por meio da norma é o que Foucault chama de biopoder. Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. [...] se o desenvolvimento de grandes aparelhos de Estado, como instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de produção, de poder, os rudimentos de anátomo e biopolítica, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas [...], agiram no nível dos processos
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econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e os sustentam; operaram, também, como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento. (FOUCAULT, 2005, p. 133).
É em decorrência desse cenário que a estatística torna-se tão importante para gerir as populações, encontrando nelas as suas regularidades e seus desvios, manipulando a massa através dos saberes científicos que se desenvolveram largamente no período, dentre os quais se destaca a medicina e a psicologia no estudo daquilo que subtrai as forças do corpo, diminui a produtividade e gera custos de tratamento: as endemias, acidentes, anomalias, distúrbios, enfermidades de toda espécie, a velhice. Assim sendo, os saberes passam a dialogar entre si, sendo que agora as instituições intercambiam suas práticas aumentando em muito seu poder de ação. Pode-se observar esse diálogo na escola brasileira contemporânea ao perceber que, mesmo ela tendo mantido os recursos disciplinares – cuja utilidade e eficácia atravessam os séculos – foi preciso criar novos meios de manipular as subjetividades, valendo-se das novas tecnologias à disposição, como as parcerias feitas entre essas instituições e a rede de saúde, o que tem ampliado significativamente a demanda por diagnósticos médicos e psicológicos, no mesmo ritmo em que se expande a gama de distúrbios e transtornos possíveis de se encontrar na infância. Vemos, portanto, como o discurso psicológico ampliou sua atuação na sociedade como um mecanismo regulador, e levou os indivíduos a reconhecerem-na como um aparato coercitivo e reafirmador das hierarquias de conhecimento do eu. Não pretendemos, contudo, nos opor integralmente a tais práticas, mas chamar a atenção para o uso que é feito dos diagnósticos que atualmente são requeridos pelos pais e, muitas vezes, pela própria escola. A intenção, ao contrário, é de criar espaço para se repensar a necessidade
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da psicologização e da medicalização da educação e questionar com que intenção tais diagnósticos são solicitados. Em 2006, pesquisas mostraram que 10 em cada 35 alunos das classes de Ensino Fundamental de escolas públicas são encaminhados para algum tipo de terapia, quando apenas duas ou três dentre essas dez apresentam de fato algum tipo de transtorno (cf. BARROS; HARTT, 2006, p. 36-43). Tais fatos sinalizam, portanto, que a detenção de discursos especializados, com ênfase nos “psi”, é fator importante no desenvolvimento histórico de uma nova tecnologia do poder individualizante (cf. FOUCAULT, 2004, p.161). Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. (FOUCAULT, 2005, p. 43, 44).
Portanto, entre essa representação imaginária da Psicologia da qual tentávamos escapar e o papel que efetivamente pretendíamos ocupar ali enquanto supostos detentores desse discurso, procuramos espaço para ampliar as visões daquilo que é possível entre a Educação e a Psicologia: sugerimos aos professores um espaço para discussão das práticas e das relações, tanto da Pedagogia quanto da Psicologia e, principalmente, da prática e da relação de ser professor; tendo como perspectiva, nesse contexto, uma Psicologia histórico-crítica, voltada para a análise social dos processos de subjetivação do sujeito e das linhas que atravessam esse processo. Nosso ambiente de discussão, entretanto, nos revelou muitas outras dimensões de nossa contemporaneidade, para além das fronteiras a que imagináramos nos aventurar. Foi necessário, para tanto, expandir as perspectivas que nos guiavam até então. A realidade que se nos apresentou indicou para a insuficiência das tecnologias disponíveis, como aquelas da própria Pedagogia ou das ciências que a auxiliam, o que se traduz na tão aclamada crise na Educação. Os educadores de Ensino Fundamental com os quais tivemos contato apontaram justamente a mídia como uma das razões para justificar a crise do ensino escolarizado, e se diziam incapazes de “competir” com
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essa nova realidade para atrair a atenção das crianças, devido ao fluxo acelerado com que as informações chegam até elas através da TV, internet etc. Além disso, é comum reclamarem a perda de autoridade em sala de aula, outro motivo que, de seus pontos de vista, acarreta tal crise. Os principais aspectos problemáticos colhidos a partir dessa experiência fazem coro ao que especialistas já vêm discutindo1. A perda da autoridade, por parte dos professores, e a perda de interesse, por parte dos alunos, apontam para um duplo constrangimento: de um lado, educadores que consideram seu valor profissional diminuído em função da velocidade e da dinâmica dos meios de informação atuais; queixam-se da perda de autoridade e da validade de suas técnicas, visto que não são mais autorizadas a aplicar castigos físicos ou morais2 aos alunos. Reclamam do desamparo e despreparo para lidar com a multiplicidade; ora acusam a família do aluno por apresentar configurações estruturais diversas daquela ainda considerada tradicional; ora denunciam o abandono da responsabilidade dos pais, que estariam delegando à escola a incumbência de educar seus filhos; ora transferem o encargo desses problemas para uma série de dificuldades psíquicas que impediriam os alunos de aprender. Por outro lado, as crianças se baseiam em um novo sentido atribuído à palavra liberdade3, que traduz muitas vezes apenas o “eu quero” individualizado, e se comportam o tempo todo como consumidores dispostos a absorver tão somente o que lhes parecer interessante – e elas não costumam considerar interessante permanecer sentadas, quietas, a ouvir conceitos que a seu ver não possuem utilidade prática em sua realidade. Tais queixas dos professores, sobre uma instituição que não consegue concorrer com os meios de comunicação com os quais as crianças convivem diariamente, nem com a subjetividade “sem limites”, “sem moral”, “sem estrutura familiar” de seus alunos, traduzem a inocuidade
1. Entre outras referências, ver: AQUINO, 2000, 2003; FRANÇA, 1996, 1999. 2. Devemos ressaltar que é notável o modo como os castigos físicos e humilhações morais são ainda presentes nas memórias escolares das educadoras, de quando eram alunas, e como elas afirmam a eficácia de tais métodos para o próprio disciplinamento, apesar de associarem também a lembrança de forte sentimento de constrangimento. 3. Devemos lembrar que uma das novas táticas do poder “é a maximização da liberdade individual. Não importa que se diga que essa maximização só se dá como uma realidade construída discursivamente, pois se ela existe no discurso, ela está no mundo. O que importa, então, é que esses discursos produzem resultados, de modo que cada um pense que é livre para fazer suas escolhas” (VEIGA-NETO, 2000, p. 199).
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contemporânea ao modo de ensinar e aprender através da dominação/ submissão. Relegados a essa nova condição, é notável o sentimento de desvalorização e de desmotivação dos mestres. Todavia, nesse caso, é claro que diagnósticos e medicamentos não poderiam curar essas “patologias sociais” das quais tantos educadores se queixam. Não deveríamos buscar ou acreditar numa sociedade “curada” de seus males, nem sequer imaginar alunos ideais para os quais seria gratificante ensinar. A atitude possível de ser tomada foi, mais uma vez, nos questionarmos sobre esse social e os poderes que o atravessam: o que vem mudando desde que Foucault falou sobre o biopoder? Essa sociedade regida pelo trabalho conjunto dos mecanismos disciplinares com os de regulamentação, o que Foucault chamou biopoder, quando estudada por outros teóricos, como Gilles Deleuze, é intitulada apenas de sociedade disciplinar. Historicamente, Deleuze (1992) indica o apogeu dessas sociedades disciplinares no início do século XX, e Costa (2004) data seu declínio nos anos da segunda metade do mesmo século. Assim diz Deleuze sobre elas: “[...] as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser”. E continua, logo adiante: “São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. ‘Controle’ é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo” (DELEUZE, 1992, grifo nosso). Podemos depreender, portanto, que vivemos em um momento de transição entre a sociedade disciplinar, como a definiu Foucault, e a sociedade de controle, da qual Deleuze falou brevemente, deixando que outros teóricos continuem essas investigações. E, se as instituições tiveram um papel determinante nas sociedades disciplinares, neste momento de transição, as vemos tomar outro rumo: em seus estudos, Deleuze diz que “todos sabem que essas instituições [como a escola, a indústria, o hospital, o exército, a prisão] estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam” (DELEUZE, 1992). Em outras palavras, em um momento de transição que caminha para a extinção das instituições, é de se esperar que estas estejam em crise, vistas as mudanças que ocorrem nos modos de subjetivação dos
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indivíduos. Se, sob o domínio das disciplinas, a grande preocupação estava em fazer dos indivíduos corpos dóceis, principalmente através de espaços fechados como estes, logo adiante o biopoder foi essencial para a gestão das populações em espaço aberto. Porém, cada vez mais rapidamente as populações mudam, e, para acompanhar essa mudança, é preciso que novas tecnologias de poder surjam na mesma velocidade. Para isso, o poder também perde características como a verticalidade e a hierarquia: ele se encontra cada vez mais dissolvido numa rede universal e horizontal, e se torna tão mais presente em cada atitude cotidiana quanto mais distante de ser localizado. [...] numa sociedade inteiramente axiomatizada, as instâncias de poder estão dissolvidas por entre os indivíduos, o poder não tem mais uma cara. Sua ação agora não se restringe apenas à contenção das massas, à construção de muros dividindo cidades, à retenção financeira para conter o consumo. Essas são estratégias que pertencem ao passado. Hoje, o importante parece ser essa atividade de modulação constante dos mais diversos fluxos sociais, seja de controle do fluxo financeiro internacional, seja de reativação constante do consumo (marketing) para regular os fluxos do desejo ou, não esqueçamos, da expansão ilimitada dos fluxos de comunicação. [...] Nenhuma forma de poder parece ser tão sofisticada quanto aquela que regula os elementos imateriais de uma sociedade: informação, conhecimento, comunicação. O Estado, que era como um grande parasita nas sociedades disciplinares, extraindo mais-valia dos fluxos que os indivíduos faziam circular, hoje está se tornando uma verdadeira matriz onipresente, modulando-os continuamente segundo variáveis cada vez mais complexas. (COSTA, 2004).
Nossa realidade já dispõe de uma série ilimitada de meios de comunicações, em que podemos buscar informações, conhecimentos, compartilhar dados, fazer compras. Através de tantas possibilidades, os indivíduos se percebem cada vez mais diversos e singulares entre os outros, afinal, quase tudo é personalizado de acordo com os desejos do cliente e suas posses financeiras. Em troca dessa suposta liberdade de escolha que nos é oferecida, damos aval às tecnologias de vigilância para apurarem seus métodos, aumentando o controle sobre indivíduos e populações. Ao acessarmos sites, por exemplo, de compras quer de produtos, quer de passagens, de ingressos, ou ainda quando utilizamos cartões de
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crédito ou débito, fornecemos registros sobre nossas preferências e interesses, através dos quais é possível, na rede, desenhar os movimentos de cada indivíduo no espaço informacional. Tais métodos usados para traçar o perfil das populações são muito mais eficazes, atualmente, do que confiná-las ou saber sobre seu deslocamento físico; “[...] as massas [...] tornam-se amostras, dados, mercados, que precisam ser rastreados, cartografados e analisados para que padrões de comportamentos repetitivos possam ser percebidos” (COSTA, 2004, grifos do autor). Todas essas transformações da sociedade, engendradas em grande parte pelos avanços tecnológicos recentes, evidenciam, como disse Deleuze, “uma mutação do capitalismo”. Ao contrário de como funcionava anteriormente, hoje ele já não é “um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo” (DELEUZE, 1992). Tais alterações vão ao encontro do deslocamento da lógica econômica, após a Segunda Guerra Mundial, quando a oferta de mercadorias se diversificou e se intensificou, na intenção de acelerar o ciclo de produçãoconsumo-lucro e, consequentemente, aumentar a acumulação. Devido a esse processo, foi necessário também criar e intensificar demandas de consumo, o que torna tão importante o aprimoramento de tecnologias como o marketing para analisar e conhecer os comportamentos, necessidades e desejos dos sujeitos. A esse indivíduo que deve suprir tais demandas Veiga-Neto chama de sujeito-cliente (cf. VEIGA-NETO, 2000, p. 199). Entretanto, não podemos deixar de lado o fato de que, enquanto tais instituições agonizam a espera de seu fim, elas tanto se modificam de acordo com as transformações que se operam na rede social, quanto são, também, responsáveis por tais transformações. Veiga-Neto lembra que [...] é preciso entender que tais instituições são, ao mesmo tempo, também produtoras dessas novidades na nossa história recente. É por isso, então, que todas elas estão intimamente conectadas com a construção da Modernidade e com a manutenção de suas práticas e dos valores que a justificam e a sustentam. (VEIGA-NETO, 2000, p.188, 189).
Se antes, nas disciplinas, os indivíduos não cessavam de recomeçar, de uma instituição à outra – da família para a escola, da escola para a fábrica, eventualmente para a prisão ou para o hospital – na sociedade de controle os processos não terminam, eles se interconectam de forma
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que se tornam infinitos: a formação acadêmica é continuada –, parecenos essencial se especializar cada vez mais, mercado para o qual não existe fim, visto o número de especializações, aprimoramentos e cursos disponíveis. O exame, nas escolas, nas empresas, é substituído por avaliações constantes, que abarcam todos os aspectos de desempenho, seja acadêmico, seja profissional. O salário se tornou instável e definido através de jogos, competições infinitas em um mercado de exigências flutuantes que “gere as competências” de cada indivíduo. Ao invés de moldá-los, os indivíduos passam por uma modulação constante, numa rede sem limites espaciais definidos, como “prisioneiros em campo aberto” (COSTA, 2004). Além disso, Deleuze (1992) já nos alertara que a escola tende a atuar como uma empresa, através da avaliação contínua e da modulação de recompensas, levando os alunos a uma eterna competição que se inicia em sala de aula. Desse modo, os contornos dessa sociedade contemporânea vêm produzindo e sendo produzidos também pela escola, na medida em que esta modifica suas funções e objetivos a fim de servir a uma economia neoliberal que tem como modelo a empresa, a competição de mercado e a subordinação do social ao econômico. O modelo de subjetivação do indivíduo escolarizado perde seu caráter essencialmente disciplinar para dar lugar a uma lógica de psicologização da indisciplina e a uma formação voltada para a preparação do aluno para o mercado de trabalho. “Ao sucumbir a um modelo que assegura uma profissionalização, a educação despolitizase, tornando-se mercadoria por meio da qual cada indivíduo visa intensificar valores e interesses privados. Isso significa que ela se torna algo descartável” (FRANÇA, 1996, p. 143). Podemos dizer que esse novo modo de subjetivação se ativa através da oferta de múltiplas identidades, mutantes e fragmentadas, construídas a partir de produtos e ideias que preenchem o cenário cotidiano do indivíduo, independentemente de seu status socioeconômico, sua faixa etária ou localização geográfica, pois estão presentes tanto nas instituições quanto na mídia nos hábitos e modas compartilhados por grupos, e por todo o tipo de apelo consumista aos quais estamos sujeitos, transformando, assim, a forma como os indivíduos se relacionam entre si e com esses espaços. Com efeito, todas essas facetas que caracterizam a sociedade de controle podem ser analisadas através de um processo importante que vem ganhando cada vez mais evidência em nossa contemporaneidade,
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que encontramos na obra de Foucault, intitulado empobrecimento do tecido relacional, devido às limitações de possibilidades relacionais impostas pela nossa cultura e suas instituições (cf. FOUCAULT, 2004, p.120). Podemos observar como esse empobrecimento vem se intensificando proporcionalmente aos avanços dessa nova configuração social, impulsionado principalmente pelas tecnologias e pela lógica de mercado. Acrescido a esse fato, percebemos hoje que o conceito de liberdade vem perdendo seu sentido coletivo e desvinculando o trabalho sobre si mesmo como um pressuposto imanente a sua conquista. Ora, se nos remetermos aos estudos de Foucault sobre a Grécia Antiga, vamos nos lembrar de que os gregos problematizavam a questão da liberdade como um problema ético. Esse êthos designava para eles “[...] maneira de ser e de se conduzir [...] [que] se traduz pelos seus hábitos, por seu porte, por sua maneira de caminhar, pela calma com que responde a todos os acontecimentos, etc. Esta é para eles a forma concreta da liberdade” (FOUCAULT, 2004, p. 270, grifo nosso). Vemos, portanto, que a liberdade estava diretamente ligada a um trabalho sobre si e a um cuidado com os outros, que implica primeiramente o cuidado consigo mesmo: “A liberdade é [...] em si mesmo política” e “o cuidado de si é ético em si mesmo; porém implica relações complexas com os outros, uma vez que esse êthos da liberdade é também uma maneira de cuidar dos outros” (FOUCAULT, 2004, p. 270, grifo nosso). Posteriormente, na transição da Grécia Antiga para o período helenístico e romano, ocorreu uma intensificação do cuidado de si, que adquiriu um alcance bastante geral, constituindo-se como prática social (cf. FOUCAULT, 1985, p. 50). Desse modo, durante o domínio da moral cristã, inicia-se um lentíssimo movimento que deslocaria a preocupação com o cuidado de si – a epimeleia heautou – para a preocupação com o cuidado dos outros – a epimeleia tonallon – o que representa a função do pastor para com seu rebanho (cf. FOUCAULT, 1995, p.276), figura adotada pelo cristianismo como símbolo do papel clerical sobre os fiéis. Essa mudança fez a relação consigo tender a se interiorizar e se individualizar, intermediada por uma ética de renúncia a si, e o trabalho sobre si passou a se caracterizar a partir do exercício constante de decifração da alma e de uma hermenêutica dos desejos, forte influência desenvolvida principalmente com o cristianismo e que se mantém presente na subjetivação dos indivíduos apesar da perda de espaço das instituições religiosas na cultura contemporânea.
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Todavia, como resultado dos processos históricos de que resultam profundas alterações culturais e, por isso mesmo, relacionais, hoje, com a constituição subjetiva dos indivíduos sendo balizada por um crescente apelo consumista devido à globalização econômica e por uma exacerbação do individualismo, a liberdade é transfigurada para algo que se alcança a partir da total independência em relação aos outros indivíduos e, assim, passa a ser um fenômeno da vontade pessoal. Como Foucault, o espaço público despolitiza-se e passa a ser local de expressão da vontade de cada um, desvinculada da relação com os outros. Além disso, as tecnologias de marketing, nas sociedades de controle, veiculam um ideal de liberdade que pode ser perseguido e alcançado através da aquisição de produtos e serviços: terrenos em condomínios fechados, automóveis, contas bancárias, marcas de roupas e calçados etc. Desse modo, não parece mais ser necessário aos sujeitos-clientes desenvolverem um trabalho constante de cuidado consigo, refletido no cuidado com os outros, se é possível comprar a liberdade e manter relações fugazes com desconhecidos, por meio de uma pesquisa via web de interesses e atividades em comum. Ao mesmo tempo, quando sujeitado ao ensino escolarizado, que apresenta conteúdos prédeterminados a eventuais escolhas, esse sujeito-cliente não se mostra mais disponível a esse papel, e os educadores, por seu turno, pouco sabem lidar com esse sujeito para além dos métodos disciplinares, percebendo que não haverá milagre da parte de seus colegas médicos e psicólogos. Até quando, porém, é possível sustentar uma sociedade despolitizada e privatizada? Ao abandonarmos gradualmente uma ética baseada na religião e recusarmos a de um sistema legal que interfira em nossa moral, perdemos as bases éticas que sustentam nossas atitudes, e sofremos com a carência de princípios sólidos – devido à insuficiência e vulnerabilidade das modas e tendências – que nos sirvam de base para a elaboração de uma nova ética. Foucault nos lembra da semelhança entre a busca atual para compor outros princípios éticos que não estejam fundados na religião, nem no Estado, nem na interpretação do homem, e a ética desenvolvida na Grécia Antiga, que, em detrimento de todos esses aspectos contemporâneos, se preocupavam com a constituição ética de sua própria existência (cf. FOUCAULT, 1995, p. 255). Não é viável, contudo, pensar na elaboração de uma nova ética baseando-se na solidão, na passividade e na interioridade, pois só é
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possível exercermos nossa existência a partir da relação que mantemos com o outro. Ao nos apropriarmos de tais fatos que apontam para essa sensação generalizada de ausência de princípios éticos, é preciso que os indivíduos respondam a essa crise ativamente e se disponham a ações coletivas para uma discussão crítica sobre as práticas sociais vigentes. E era esse, afinal, o interesse de nossa ação junto ao grupo de educadores. Até aqui, em nosso trajeto em torno de toda essa problemática dos tempos atuais, buscamos elementos que nos ajudassem, em nosso grupo de discussão, a desconstruir coletivamente os conceitos elaborados como causadores de uma crise da sociedade, da família, da moral, dos “bons costumes” e, consequentemente, da educação, tal como eram vistos pelos educadores, e ampliarmos nosso foco para as contingências sociais e políticas que vão desenhando os rumos da sociedade. Discutimos as insuficiências das velhas formas de dominação hegemônica pelos métodos disciplinares e do papel da escola na formação das subjetividades, e, por conseguinte, da sociedade, procurando esclarecer o papel determinante do educador nessa engrenagem social. Para tratarmos desse tema, aprofundamo-nos nas questões éticas: tanto em relação ao que se encontra já instituído, quanto sobre outros modos de se construir relações éticas. Dentre as muitas possibilidades que teríamos para abordar a ética dos sujeitos e das relações, através dos estudos foucaultianos, somos atraídos a repensar, antes de tudo, a relação que os sujeitos constroem consigo próprios. Constituir a própria existência como matéria do trabalho ético representa, dentro da obra de Foucault, uma possibilidade concreta de fugir dos poderes que moldam nossa subjetividade e criar, através de um exercício de pensamento e experimentação constantes, uma arte de viver. Essa arte de reinventar a existência se desenvolve na medida em que se exercita o cuidado consigo através do cuidado com o outro, por meio de uma implicação política. A ética das relações, tal como foi pensada por Foucault, não se restringe às formas relacionais conhecidas e legitimadas: a amizade foucaultiana é carregada de potência de transformação e inquietude, que deve nos levar a problematizar o tempo toda a existência, a sociedade, os valores. Minha opinião é que nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a fazer. Portanto, minha posição não
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conduz à apatia, mas ao hiperativismo pessimista. (FOUCAULT, 1995, p. 256, grifo nosso).
Em vista dessa ouca de amizade foucaultiana, faz-se necessário não apenas analisar o discurso da crise e procurar suas razões na modernidade, mas, para além disso, procurar mudar o foco e entender quais outros tipos de leitura podem ser explorados para se problematizar o tempo presente. Ao retomarmos a caminhada ao lado de Foucault, somos instigados a traçar linhas de resistência aos novos modos de dominação em vigência, buscando criar e transformar modos de existir. Apesar de incitados a acreditar em outras possibilidades, procuramos sempre manter o foco na perspectiva dos professores, levando em conta sua experiência da realidade. Concordávamos que, considerando todo o cenário atual discutido entre todos nós, parece-nos pouco provável existir brechas na instituição escolar para um trabalho ético que tivesse como condição a reativação da coletividade. Pois, ainda que à primeira vista a escola nos pareça um espaço óbvio de convívio público, ir ao encontro de seu cotidiano transforma tal convicção. Afinal, se todas essas transformações sociais tiveram como o abandono dos espaços públicos e a exacerbação da individualidade depreendeque tais espaços deixaram de ser um ambiente agradável e seguro para se habitar. Em função do aumento da sensação de liberdade e ao novo sentido atribuído à expressão, as relações entre professores/ alunos, alunos/alunos e indivíduos/instituição se transformam em embate de forças que procuram dominar umas às outras: são vinte, trinta assentos de carteiras escolares ocupados por vontades individuais que querem fazer-se ouvir e impor. Aqui chegamos ao nosso ponto crucial. Apresentadas e discutidas essas análises sociais e históricas, indagamos: como pensar, na prática, uma relação entre professores e alunos pautada na amizade que Foucault nos apresenta, visto ser um movimento que requer uma problematização, uma inquietude constantes? Qual será, pois, a razão de acreditarmos que seja possível uma transformação ética a partir da relação entre professor e aluno? Observamos que, apesar desse aparente pessimismo e dessa falta de alternativas, reconhecemos na escola um campo fértil para pensarmos novas configurações do sujeito e da sociedade. Isso se deve às três características essenciais imanentes a essa instituição, nas quais vamos amparar nossa argumentação: a escola básica continua sendo
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considerada necessária e obrigatória pela sociedade e pela Constituição4; continua dependendo de relações entre os sujeitos; e continua pressupondo o exercício do pensamento para a produção do conhecimento. Vejamos a razão da importância desses pontos. Para a maioria das crianças, a escola é o primeiro ambiente pedagógico para além dos limites da família, e, por pior que possa parecer hoje, o primeiro contato estabelecido com o coletivo. Nesse lugar de aprender e ensinar, somos impelidos a construir relações éticas com o outro, tendo que levar em conta não mais apenas nossa interioridade, mas também os atravessamentos do mundo em sua multiplicidade. A questão é: apesar da obrigatoriedade de ensino escolarizado a todas as crianças, o modo como as instituições e a subjetividade vêm se modificando na atualidade vem dificultando o desenvolvimento do objetivo primeiro da educação, que, como sabemos, é o conhecimento. A velocidade com que se produzem discursos e relações leva educadores e alunos a confundirem informação e conhecimento. Daí a queixa desse primeiro personagem pela incapacidade de “competir” com a mídia de hoje. Antes de tudo, é preciso que se redesenhem e se ressignifiquem o papel da educação: é aceitável que o professor ofereça a seus alunos, como ponto de partida, dados de informação, desde que a construção do conhecimento seja o ponto de chegada. O que não se pode admitir é a transformação do professor em uma personagem midiática ou animador de . Com efeito, a relação que deve ser construída entre a transmissão do conhecimento e professor/aluno, se estabelecida a partir da amizade foucaultiana, pode direcionar a outros rumos essa crise contemporânea. Pois, se a proposta dessa relação pressupõe desenvolvê-la a partir do menor quantum possível de dominação sobre o outro, o exercício constante dessa atitude implicará necessariamente a construção de uma relação que leve em consideração o prazer do outro. E quando nos referimos a prazer, remetemos às pistas deixadas por Foucault sobre a definição de amizade – visto que se trata de “uma relação ainda sem forma” (FOUCAULT, 1981) que temos que inventar cotidianamente – não remetemos ao seu caráter sexual; entendemos
4. Aquino (2000, p.106) cita o artigo 205 da Constituição de 1988, no qual se estabelece que “[...] educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família”.
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que, apesar de Foucault partir do prazer sexual para falar de amizade, sua proposta de conseguir levar em consideração o prazer do outro e integrá-lo ao nosso prazer vai muito além do prazer sexual; a questão estaria em levar em conta o coletivo, e não apenas o individual, para se ter prazer. E, ao pensarmos coletivamente na constituição dos sujeitos, numa ética a ser elaborada, estaremos dando novos contornos aos modos já estabelecidos de se relacionar, de forma que se ampliariam os espaços para as multiplicidades em suas mais diversas formas de existência. Na prática, os conceitos de autoridade, autonomia e liberdade, fundamentais para o trabalho de aquisição de conhecimento, se determinariam coletiva e politicamente. Não é necessário destituir o professor de seu lugar de autoridade; deve-se, antes, ressignificar esse lugar. Em nosso cotidiano, autoridade e autonomia parecem-nos experiências humanas antagônicas. A figura de autoridade quase sempre é percebida como aquela que nos submete a seus desígnios, e a autonomia é a emancipação de toda e qualquer espécie de sujeição a essa autoridade. Ou seja, estamos denotando as duas em apenas um plano: querer o poder de um sobre o outro – ser livre é ser independente dos outros enquanto ter autoridade é, ao contrário, prevalecer sobre eles. (FRANÇA, 1999, p. 157).
Nesse sentido, é possível ao professor construir esse lugar de autoridade com seus alunos, desde que tal papel não implique a sujeitálos, mas sim implicá-los na construção desse papel, dando-lhes autonomia de ações e abertura para pensarem além daquilo que está instituído como sendo autonomia e autoridade. Esse processo se daria, para Foucault, através da elaboração de um novo direito relacional, “que permitisse que todos os tipos possíveis de relações pudessem existir e não fossem impedidas, bloqueadas e anuladas por instituições empobrecedoras do ponto de vista das relações” (FOUCAULT, 2004c, p.121). Une-se, dessa forma, o desenvolvimento de um modo relacional baseado na amizade foucaultiana, que se elabora através do trabalho sobre si, do êthos, com vistas ao desenvolvimento da autonomia do sujeito que esteja além da captura das tecnologias de dominação dos poderes vigentes, mediante o exercício do pensamento. Acreditar numa transformação das relações pedagógicas é também acreditar no homem como sujeito pensante, capaz de romper as redes
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de sujeição por meio do esclarecimento e de um trabalho crítico constantes. Apesar de sabermos que se trata de uma instituição, com todos seus engessamentos disciplinares, e mesmo sabendo que ela caminha para os objetivos da economia, é preciso se ter coragem para acreditarmos nos homens que compõem as instituições, é preciso acreditar em sua capacidade de pensamento, de criação e de transformação. Se a escola é a morada do conhecimento e se esse conhecimento se constrói através de uma relação, não podemos tratar a inteligência humana como “um depósito de informações, mas um centro processador delas” (AQUINO, 2000, p. 115). Se professores e alunos, e alunos entre si, se implicam na atividade de pensar o presente, o ensino não mais representará um repasse de informações aparentemente desnecessárias e desinteressantes, mas dirá respeito à constituição ética dos sujeitos pedagógicos, dirá da construção do mundo que habitam. Buscar o esclarecimento de maneira prudente pode ser uma forma de trabalho sobre si, de cuidado consigo e também com o outro, de modo que esse pensar sobre si mesmo e sobre o mundo só pode se dar na companhia de outros. O educador, nesse processo, readquire o valor ético de sua profissão, vista a importância que ele assume no percurso de busca do conhecimento de seus alunos. Acerca do assunto, Foucault argumenta: Trata-se precisamente de ver que as relações de poder não são alguma coisa má em si mesmas, das quais seria necessário se libertar. [...] O problema não é, portanto, tentar dissolvê-las na utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas se imporem regras de direito, técnicas de gestão e também a moral, o êthos, a prática de si, que permitirão, nesses jogos de poder, jogar com o mínimo possível de dominação. [...] Tomemos também alguma coisa que foi objeto de críticas freqüentemente justificadas: a instituição pedagógica. Não vejo onde está o mal na prática de alguém que, em um dado jogo de verdade, sabendo mais do que um outro, lhe diz o que é preciso fazer, ensina-lhe, transmite-lhe um saber, comunica-lhe técnicas; o problema é de preferência saber como será possível evitar nessas práticas – nas quais o poder não pode deixar de ser exercido e não é ruim em si mesmo – os efeitos de dominação que farão com que um garoto seja submetido à autoridade arbitrária e inútil de um professor primário; um estudante, à tutela de um professor autoritário, etc. Acredito que é preciso colocar esse problema em
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termos de regras de direito, de técnicas racionais de governo, e de êthos, de prática de si e de liberdade. (FOUCAULT, 2004, p. 284, 285).
Dessa maneira, acreditamos ter trazido para a realidade de alguns professores dessa escola conceitos que parecem muitas vezes distantes demais da atuação profissional. Porém, a partir da demanda dos educadores, fizemos juntos uma leitura que nos ofereceu elementos para analisar a contemporaneidade e construir ferramentas para a prática de outra relação com os poderes, com os saberes, com o ensino e com os alunos, permitindo a ampliação do campo de escolhas sobre a forma de ser professor. No início, não sabíamos, nem os estagiários nem os professores, quais rumos essa experiência iria tomar, assim como não é possível saber como esse percurso atravessou cada um dos que acompanharam a caminhada e de que modo as nossas práticas foram afetadas. Tínhamos em mente que, em qualquer trabalho coletivo, só é possível saber da importância da discussão coletiva, e não tínhamos esperanças de grandes revoluções, pois não se tratava de uma pregação de verdades. Além do mais, para que se efetivem tais exercícios críticos sobre a contemporaneidade, é necessário, antes de tudo, ter coragem para escapar das fronteiras que separam a segurança da vida privada e a realidade da vida pública, e nunca sabemos quantos de nós teremos essa coragem. Não supúnhamos, afinal, que apresentamos o verdadeiro saber através de teorias da Filosofia ou da Psicologia; apenas apostamos na proficuidade da união dos discursos, para a criação de algo novo, ou a transformação do instituído. E o resultado colhido desse trabalho em conjunto representou, para nós, a efetivação de uma atuação micropolítica possível, na direção de criar linhas de resistências através do exercício coletivo do pensamento.
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7 Foucault, com Deleuze e Guattari: problematizando as identidades culturais, o ideal de progresso e de desenvolvimento nas práticas da Unesco e Unicef no Brasil FLÁVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOS1
Este texto2 visa criticar como as Nações Unidas utilizam o conceito de identidade cultural, instrumentalizando-o para a gestão dos países considerados bárbaros e não civilizados aos quais a ONU (Organização das Nações Unidas) e seus “desinteressados” assessores peritos pretendem “pacificar” e “desenvolver”. A gestão da cultura como via de governo dos países e populações, por meio de mecanismos de indução ao desenvolvimento econômico e social, tem sido defendida pelo UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e por outras agências da ONU, como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em suas práticas dirigidas às crianças e aos jovens, inclusive no Brasil, atualmente (LEMOS, 2007). A produção de estratégias de gerência da população pela via da tática de instrumentalização da cultura tem sido afirmada pelos assessores do UNICEF e da UNESCO como dispositivo de produção da paz mundial. A cultura, para esses assessores é vista como uma unidade fechada e modeladora de identidades substantivadas através da 1. Psicóloga/UNESP-Assis/SP; Mestre em Psicologia e Sociedade/UNESP-Assis/SP; Doutora em História e Sociedade/UNESP-Assis/SP. Professora Adjunta de Psicologia Social da UFPABelém. 2. Este capítulo é resultado de problematizações realizadas em Tese de Doutoramento em História e Sociedade, financiada pela FAPESP, na UNESP-SP, sob orientação do prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior.
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promoção da “equidade” e da defesa de políticas para a diversidade em projetos de “proteção das crianças e jovens”, no Brasil (LEMOS, 2007). A associação indissolúvel da igualdade com a diferença é uma estratégia utilizada pelo UNICEF para justificar políticas compensatórias de correção das diversas formas de desigualdades para promover o que define como desenvolvimento de um país. Tratar todas as crianças e adolescentes de forma igual, sem considerar suas diferenças ou suas desigualdades, pode estar reforçando ou mesmo gerando ainda mais iniqüidades, mais discriminação negativa, mais problemas do que soluções. (UNICEF, 2003, p. 10). Há a necessidade, ao lado do direito à igualdade, de se afirmar o direito à diferença, o respeito à diversidade. [...] Qual a importância e os impactos positivos de se construir novos arranjos para as políticas para a infância, considerando a diversidade, a diferença, o outro? (UNICEF, 2003, p. 13).
Guattari e Rolnik (1996) dirão que a identidade cultural supõe uma reificação da subjetividade, uma referência pretensamente universal, e acaba conduzindo ao etnocentrismo. Em Tese de Doutoramento em História, Lemos (2007) problematizou a visão de cultura como uma unidade de diferenças, afirmando que essa proposição potencializaria processos de intolerância e construção de guetos. Desse modo, as práticas dessas agências multilaterais em nome da síntese diversidade-igualdade como proposta de cultivo da tolerância estão ancoradas no uno-múltiplo e não na multiplicidade. Conforme Lalande (2006), o termo “equidade”, que ganhou destaque nos relatórios da UNICEF e da UNESCO, tem sido utilizado para atenuar as crises sociais, políticas, econômicas e culturais. Foi criado por Aristóteles e remete a uma justiça corretiva e compensatória, aplicada aos casos particulares. Para Aristóteles, o bem é atingido quando conquistamos a ciência universal e encontramos a unidade racional da alma que transcende a diferença entre dos povos, das cidades, das línguas e dos indivíduos. Mas para que o homem se torne racional (ou, como ele diz, para que o homem atualize a capacidade de raciocinar adormecida nele enquanto possibilidade lógica) é preciso ser antes um homem virtuoso. [...] O homem de juízo é um homem
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classificador. Classifica a multiplicidade para reduzir suas diferenças acidentais à diferença específica e à identidade de gênero, isto é, para reduzi-las à unidade da razão universal. [...] Platão, Aristóteles e o Ocidente inteiro humanizam a natureza e divinizam o homem, louvam o homem separado da natureza que habita as alturas superiores da representação. (FUGANTI, 1990, p. 38-50).
Uma ética utilitarista é renovada, ao final do século XX, em nome da defesa de virtudes humanistas, buscando a felicidade através da promoção da qualidade de vida, medida em índices de desenvolvimento humano, sendo que a concepção de justiça particularista aristotélica seria uma das séries de sua composição atualizada. Ewald (1993) ressalta que a justiça corretiva de promoção da “equidade” objetiva traçar equivalências entre supostas substâncias desiguais, em uma negociação pretensamente produtora de “harmonia” social e estabilidade político-econômica. A gerência de identidades se daria pela construção e redefinição de normas de referência. A norma convida cada indivíduo a reconhecer-se diferente dos outros, encerra-o no seu caso, na sua individualidade, na sua irredutível particularidade. Precisamente, o normativo afirma tanto mais a igualdade de cada um perante todos quanto infinitiza as diferenças. (EWALD, 1993, p. 109).
Analisando a fabricação de identidade na sociedade disciplinar, Foucault (1999) destaca que as normas são parâmetros para a igualdade e também para a diferença, fornecendo uma medida de comparação. Desse modo, os estilos de vida já estão demarcados pela cultura difundida por grupos sociais vistos também como totalidades homogêneas, fixados em identidades que deslizam e são consumidas no mercado das identidades. Albuquerque Júnior (1998) salienta que os costumes começam a ser geridos e catalogados pelo Estado ao final do século XVI e início do XVII, através de agenciamentos administrativos. Emerge uma polícia dos costumes que interroga, denuncia, delata, registra em arquivos, constrói dossiês dos “maus costumes”. Ainda no século XVI, Montaigne já se interrogava sobre o poder do costume, se os fundamentos da moral, as regras da razão e os princípios do comportamento humano eram regidos pelos costumes. No momento em que está emergindo a natureza humana, o
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pensamento de Montaigne já se interroga se esta está submersa pelos costumes ou se a existência destes põe em dúvida a existência daquela. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1998, p. 75).
A noção de natureza humana é produzida em uma dimensão biológica darwinista, em que um sujeito racional é biologizado em uma mente/estrutura que se desenvolve. A visão de natureza humana também é concebida como uma mente/natureza cultural, cunhada pelo nascimento da Sociologia e pelo movimento romântico, que defende a singularidade da mente humana através da internalização das relações sociais (HALL, 2005). No século XVIII, os costumes vão ser organizados em identidades nacionais; portanto, dirão de uma suposta alma da Nação. Com Voltaire, os costumes seriam constituídos como objeto da história; e evoluiriam em uma noção de progresso cultural e espiritual humano referenciado a uma natureza humana e uma essência, de acordo com Albuquerque Júnior (1998). No século XIX, os costumes serão considerados fatos de uma civilização. Assim, [...] o conceito de civilização expressava, na verdade, a consciência que o Ocidente tinha de si mesmo. Ou seja, através deste conceito a sociedade ocidental moderna julgou-se superior às sociedades anteriores e as outras sociedades contemporâneas, consideradas ‘primitivas’ e ‘incivilizadas’. A história dos costumes deixa de ser a procura do entendimento do ‘espírito dos tempos e das nações’, para ser a descrição daquilo que constitui o caráter especial dos ocidentais, aquilo que os orgulha, que faz a sua superioridade. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1998, p. 76).
Os costumes, vistos em uma perspectiva evolucionista e de desenvolvimento linear e contínuo da história rumo a um progresso, seriam transmitidos de geração a geração, sendo classificados como raízes da identidade de um povo, nação, comunidade e grupo. A visão teleológica aparece como efeito dessas práticas de gestão do Estado Moderno. Os costumes seriam a expressão da natureza humana; através de sua análise poder-se-ia chegar ao conhecimento desta natureza, desta essência humana, descobrindo, para além das diferenças dos costumes, suas continuidades, suas permanências. Os costumes dariam identidade a um povo, a uma classe social, a um grupo: é
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no seu estudo que se deveria buscar a definição do um e do outro. Para além dos costumes relativos a espaços, tempos e povos diferentes se deveria buscar os costumes generalizáveis, universalizáveis, como aqueles que dispõem sobre a verdade, a moralidade, a justiça e o bem. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1998, p. 78).
As práticas do UNICEF e da UNESCO se nesses discursos de atualização de uma natureza humana universal que evoluiriam rumo ao progresso econômico e social a partir de uma identidade cultural referida a um grupo social, devendo sempre se enquadrar em uma referência à comunidade global. Nessa lógica, os Estados atuais, sobretudo os países considerados “em desenvolvimento”, sofrem uma chantagem contínua do UNICEF e da UNESCO, por meio de suas agências, para que abandonem um modelo identitário nacionalista em nome de uma identidade multicultural internacionalizada, pautada em uma ética universal. O pluralismo não é apenas um fim em si mesmo. O reconhecimento das diferenças é, acima de tudo, uma condição para o diálogo, e, portanto, para a construção de uma união mais ampla de pessoas diferentes. A despeito das dificuldades, temos uma obrigação inevitável: conciliar o novo pluralismo com a cidadania comum. O objetivo deve ser não apenas uma sociedade multicultural, mas um Estado constituído de forma multicultural, um Estado que reconheça o pluralismo sem renunciar à sua integridade. (UNESCO, 1997, p. 97). O desenvolvimento divorciado de seu contexto humano e cultural não é mais do que um crescimento sem alma. O desenvolvimento econômico, em sua plena realização, constitui parte da cultura de um povo. (UNESCO, 1997, p. 21). A emergência da cultura cívica global parece suscitar novos elementos normativos. Em particular, a Comissão chama a atenção para o princípio da legitimidade democrática. A escolha do método de governo já não é vista como uma preocupação puramente nacional, impermeável à consideração internacional. Como têm mostrado vários casos de eleições sob monitoramento internacional, a comunidade mundial admite cada vez mais que a participação democrática represente uma grande preocupação internacional. (UNESCO, 1997, p. 49).
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Os assessores do UNICEF e da UNESCO, com fins de gestão das populações, vão disparar práticas de poder-saber, sustentadas por discursos de economistas, como Ignacy Sachs e Amartya Sen, para estabelecerem uma fusão de economia, desenvolvimento, cultura, progresso e identidade como um projeto modernizador (LEMOS, 2007). A busca do desenvolvimento puramente econômico ignora o desenvolvimento da identidade pessoal, que se encontra no cerne de todo projeto educacional viável. (UNESCO, 1997, p. 216). Investir na valorização da diversidade como justiça social é conferir uma face humana ao desenvolvimento que, sem igualdade de oportunidades, não consegue sair dos patamares atuais também no campo econômico. [...] Não investir no desenvolvimento do potencial dos talentos de todas as pessoas, nas suas capacidades e habilidades coloca os países em risco nessa atual fase de interdependência global. (UNICEF, 2003, p. 33). Nosso propósito é mostrar a todos como a cultura forja todo nosso pensamento, nossa imaginação e nosso comportamento. Ela é, ao mesmo tempo, o veículo da transmissão do comportamento social. (UNESCO, 1997, p. 16).
Sachs (2004) sublinha que, para Amartya Sen, a ética e a economia estavam unificadas desde Aristóteles, com fins utilitários de promoção da felicidade, através de ações afirmativas de identidades desiguais, equiparadas por políticas “equitativas” de gerenciamento planejado por especialistas com pretensões de ampliação de habilidades e capacidades daqueles que são classificados como excluídos (LEMOS, 2007). Uma ética universal revela a unidade subjacente à diversidade de culturas, pois define os padrões mínimos que toda comunidade deveria observar. Um exemplo do imperativo ético universal é o impulso que leva, sempre que possível, à busca do alívio do sofrimento humano, suprimindo suas causas. [...] A democracia e a proteção de minorias são princípios importantes da ética universal, e são também condição necessária para a eficiência das instituições, a estabilidade social e a paz. (UNESCO, 1997, p. 23).
Nessa perspectiva, os peritos do UNICEF e da UNESCO se apropriaram do conceito de identidade, remetendo-o ao conceito de
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humanidade, tanto no campo biológico, como no plano cultural. Nessa concepção, todos “humanos” seriam membros de uma mesma família considerada igual por essas agências e, simultaneamente, diferente. Somos iguais, porque somos diferentes. Porque somos membros de uma mesma família, com uma diversidade que é nossa característica e nossa riqueza. Somos iguais e diferentes. [...] A afirmação de que somos iguais é a base sobre a qual podemos também afirmar que somos todos diferentes, com expressões plurais e interdependentes em nossas formas biológica e culturalmente diversas. (UNICEF, 2003, p. 17). A identidade pressupõe o estabelecimento de limites % e limites sempre geram tensões. Mas é assim mesmo. Embora partilhemos da mesma natureza humana, nunca seremos membros de uma única tribo universal. É precisamente a esplêndida e às vezes estonteante diversidade da raça humana que está na raiz da humanidade que nos une a todos. Hoje, com o fim dos regimes imperialistas e totalitários, podemos reconhecer nossa natureza comum e começar a difícil negociação que ela nos exige. (UNESCO, 1997, p. 95).
A defesa de particularismos culturais traduziu-se em disputa de identidades nacionais, sexuais, étnicas, regionais, religiosas. A noção de político foi reduzida à gerência de identidades culturais. A democracia foi reduzida a um povo étnico preso aos consensos comunitários de grupos sectaristas ou a uma comunidade maior denominada humanidade (RANCIÉRE, 1996). O’Brien (1995) enfatiza que as análises de Foucault são operadores para realizar a escrita da história da cultura, problematizando as tentativas de naturalizar a cultura e de torná-la um universal. Foucault ria das histórias lineares e evolutivas, dava gargalhada da história contínua demarcadora de progressos que caminhava para um apogeu no futuro, a partir de uma origem primeira fundadora, baseada em essências. Desse modo, Foucault colocou em xeque as identidades, tanto as individuais quanto as coletivas. Lemos (2007b) sublinha como Foucault rompeu com o conceito de singularidade aglutinador dos estudos culturais, interrogando a cultura como essência e como uma totalidade/entidade metafísica; afinal, em Foucault e Deleuze há defesa de uma política da diferença como promoção de identidades alternativas.
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Em Lyotard (1996), há igualmente uma crítica das sociedades capitalistas que se apropriaram da cultura, afirmando as diferenças moduladas por categorias identitárias. Em uma micropolítica, Guattari (1996) destaca que há um processo de produção de subjetividades homogêneas modeladas por equivalente cultural imanente ao capital; e Rolnik (1997, p. 19) analisa esse processo como “toxicomania de identidades”, afirmando que [...] a mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades, implica também na produção de kits de perfispadrão de acordo com cada órbita do mercado, para serem consumidos pelas subjetividades, independentemente de contexto geográfico, nacional, cultural, etc. Identidades locais fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas flexíveis que mudam ao sabor dos movimentos do mercado e com igual velocidade.
A cultura parece ganhar um papel redentor da humanidade, sendo acrescida de um retorno a uma comunidade idealizada. Wieviorka (2006) declara que, desde a década de sessenta, no século XX, os particularismos culturais se expandiram através de um fechamento identitário, apontando para um retorno ao comunitarismo e da substantivação das diferenças. De acordo com Pierucci (1990), até os conservadores da direita reivindicam o direito às diferenças sob a bandeira da defesa das desigualdades de fato reclamadas em desigualdades de direito. A busca da afirmação das diferenças desliza entre as concepções biológicas e culturais racistas atualizadas pelas lutas por reconhecimento de identidades como mecanismo de governo. Ora, a constatação de que as identidades culturais são produzidas em torno da gravitação de normas negociadas aponta para a fabricação de novos párias continuamente, dado que os supostos inimigos sociais são inventados e reiventados, conforme Negri (2003). A lógica compensatória e afirmativa de identidades culturais opera uma política da guerra civil, em nome da pureza de grupos específicos e da defesa contra o perigo encarnado naqueles que seriam impuros, na visão etnocêntrica das sociedades contemporâneas (DOUGLAS, 1990; BAUMAN, 2005). Em uma proposta de regulação normalizadora, a UNICEF e a UNESCO sustentam uma lógica de redução de conflitos, através da
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gerência da cultura, como modo de estabelecer um consenso político e de controlar os corpos, em nome da “democracia” global e de uma cínica pacificação da sociedade mundializada. De fato, o consenso é a estratégia de um Estado policial, administrado pelos peritos da norma regulando um “povo” étnico, em que as partes não entram em litígio, pois elas estão unidas ao mesmo tempo por uma comunidade maior % a humanidade sob o manto do governo biopolítico do UNICEF e da UNESCO.
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8 Práticas de conselhos tutelares em dois municípios do interior paulista
JEYSON MURUYAMA ANDRESSA KELLY BARDELLA MONTEIRO PRISCILA RABELO DE SOUZA FLÁVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOS O presente texto é resultado da reorganização do relatório final de pesquisa de iniciação científica, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no Curso de Graduação em Psicologia/UNESP. Nesse estudo, o objetivo era analisar as práticas de conselheiros tutelares, da gestão 2001-2004, em dois municípios do interior paulista, com o suporte das contribuições metodológicas de Michel Foucault. Entre os objetivos específicos, foram investigadas as práticas discursivas sobre a infância, a juventude e a família, produzidas pelo Conselho Tutelar. Também foram analisadas as práticas discursivas a respeito dos direitos e deveres das crianças e dos jovens, segundo esses trabalhadores sociais. Foram utilizadas as ferramentas metodológicas e teóricas da históriagenealógica de Michel Foucault, em que saber e relações de poder estão em jogo e em relações recíprocas. A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes re-escritos. (FOUCAULT, 1989, p. 15, grifos nossos).
O método histórico-genealógico de Foucault permite interrogar os objetos naturais e propõe uma análise das práticas datadas em seus
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efeitos produtores de objetivação e subjetivação. Dessa forma, os objetos são o que são em relação às práticas que os objetivaram de tal maneira (VEYNE, 1998, p. 248-250). A genealogia é uma analítica que focaliza as relações de saber, poder sobre os corpos, na sociedade moderna, explicitando o campo político em que o corpo está diretamente mergulhado (DREYFUS; RABINOW, 1995). A partir do século XVIII, na Europa, há uma intensificação de investimentos sobre os corpos com o poder disciplinar, em que estes passam a ser objetivados por meio de mecanismos que os sujeitam, tornando-os dóceis e produtivos. As disciplinas “adestram” os sujeitos para ligar suas forças e multiplicá-las, tirando, assim, dividendos de poder, na medida em que aumentam seus efeitos, através de instrumentos simples: a “sanção normalizadora”, o “olhar hierárquico” e o “exame”. É o surgimento do que Foucault chamou de Sociedade Disciplinar. Por meio desses instrumentos, os mecanismos disciplinares puderam capturar e produzir indivíduos. Vigiando as minúcias da vida, trabalhando com os ínfimos detalhes do comportamento humano, saberes foram construídos, saberes estes que constituem, produzem a própria alma daquele sobre o qual falam. Todavia, tais saberes não são neutros, eles produzem efeitos diretos sobre os quais se referem; efeitos de poder e verdade, efeitos políticos. E é neste sentido que a genealogia visa às relações de saber, poder e corpo, como afirmado acima. As relações de saber e de poder estão intrinsecamente ligadas e influenciadas pelas condições políticas das sociedades as quais se referem (MACHADO, 1988, p. 137-200), criando campos de possibilidade da formação do sujeito do conhecimento e suas relações com a verdade. Assim, ao pensar as práticas discursivas, não-discursivas e de subjetivação dos conselheiros tutelares, perguntamos em que saberes eles se pautavam e qual relação de poder os sustentava, enquanto conselheiros. Será que, como afirma Caponi (2000), ao mesmo tempo em que a assistência social e o saber médico, preocupados com o bem-estar da população, constituem também estratégias efetivas de poder, estariam os conselheiros trabalhando nessa mesma lógica? Ao analisar tais relações, partimos da hipótese de que [...] as relações, as estratégias e as tecnologias de poder que nos constituem, nos atravessam e nos fazem, são acompanhadas, permitem e produzem formações de saberes e de verdades [...]
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Inversamente, a análise do saber, das formações discursivas e dos enunciados deve ser feita em função das estratégias de poder, que, numa dada sociedade, investem os corpos e as vontades [...] (EWALD, 1993, p. 11).
Afirma Cardoso Júnior (2004) que o saber é algo datado, portanto, sua organização, sua forma de produção são características de um determinado período. O saber é também um “regime discursivo”. Os discursos organizam os saberes, ditam regras e normas metodológicas e conceituais, apontam para o objeto do conhecimento dizendo o que é possível conhecer em cada época, caracterizando-se, assim, uma “episteme”; são igualmente mecanismos de poder, pois se referem a uma forma de controle sobre os corpos. Os saberes formam-se através de um sistema de registros, comunicação e acumulação, que são eles próprios uma forma de poder. Inversamente, todo poder se exerce extraindo, apropriando-se e distribuindo saberes (FOUCAULT, 1997, p. 19), de sorte que “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2001, p. 10). Os saberes não são transmitidos continuamente de uma época à outra e um saber não leva a outro; nesse sentido, não haveria, por exemplo, o “embrião” da psiquiatria nos gregos antigos. Cada época objetivou de maneira diferente aquilo que, na Época Moderna, se denominou loucura. Foi preciso que novos rearranjos fossem constituídos, que outra “episteme” surgisse e que as “práticas discursivas” organizassem os saberes de uma nova forma para que a psiquiatria emergisse (CARDOSO JÚNIOR, 2004). As relações de poder são abordadas em seu caráter produtivo, positivo, e não em uma forma repressiva subordinada ao Estado. Elas produzem almas e corpos, assim como o espaço e o tempo, realidades. O corpo é investido pelas relações de poder, de maneira que também é o corpo “[...] correlativo do exercício do poder sobre ele [...] Toda produção de corpo é produção de poder para esse corpo [...]” (EWALD, 1993, p. 49). Há a possibilidade de desvios e reversões, através das resistências, os contrapoderes. As resistências não são localizáveis, não se pode falar de um lugar da grande resistência, elas estão pulverizadas nessa teia de relações. São os contrapoderes o outro termo nas relações de poder,
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são pontos de resistência móveis, irregulares, transitórios (FOUCAULT, 1988, p. 91-92). São batalhas perpétuas, em que surge a necessidade de o poder disciplinar gerir e submeter esses corpos. Não seria, por conseguinte, o Conselho Tutelar uma forma de gestão desses mecanismos? Porém, o poder não é algo que se possua, ele é da ordem da relação. Em oposição a um poder que reprime, pensamos em um poder que liga como uma teia de forças, para dela “[...] tirar efeitos de dominação, e benefícios e dividendos de poder [...]” (ibidem, p. 13). Foucault (2003), ao analisar documentos que remontam à época clássica, na França, mostra em um artigo os efeitos de poder sobre a vida das pessoas, e as relações saber-poder e poder-saber que estão implicadas nisso. Discursos que atravessaram os corpos e que tiveram efeitos sobre estes, muitas vezes subjugando-os, selando seus destinos. Vidas que, como afirma Lemos (2002), “[...] dificilmente seriam objeto de heroificação, de se constituírem em monumentos memoráveis [...]” (p. 24), mas sobre as quais é dada visibilidade, a partir do momento em que se confrontaram com o poder. No entanto, não há um poder central, como já se afirmou, emanando do Estado, e sim relações de poder capilares vindas de vários pontos, por meio de mecanismos como as petições e as cartas régias, ou as “lettres-de-cachet”. Intervenções de micropoderes políticos começam a atravessar o cotidiano de pessoas comuns e são capturadas pelas instâncias macropolíticas. Petições vindas de baixo, vindas da própria população exigiam a intervenção do rei em assuntos privados. As ordens do rei, [...] na maior parte do tempo, eram solicitadas contra alguém por seus familiares, seu pai e sua mãe, um de seus parentes, sua família, seus filhos ou filhas, seus vizinhos [...], esposos injuriados ou espancados, fortuna dilapidada, conflitos de interesse, jovens indóceis, vigarices ou bebedeiras [...] (FOUCAULT, 2003, p. 214).
Os documentos examinados por Foucault, os quais têm suas origens no Cristianismo Ocidental, com o mecanismo da confissão, tornam-se, ao final do século XVIII, agenciamento administrativo, funcionando como mecanismos de captura do discurso. “A tomada do poder sobre o dia-a-dia da vida, o cristianismo a organizara, em sua grande maioria, em torno da confissão [...]” (ibidem, p. 212). No cristianismo, o “sujeito” é obrigado a tudo dizer sobre si através desse mecanismo de coerção,
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para logo em seguida sua fala sumir, e só restar o arrependimento e as obras de penitência. Mas, desde o momento em que esses registros se tornam agenciamentos administrativos, constituindo arquivos e dossiês, suas funções serão outras, eles engendrarão outras formas de relação entre o poder, o discurso e o cotidiano. A partir disso, Foucault mostra como tais relatos apontam para uma nova economia do poder, aquele poder capilar descrito anteriormente. Foi com esse olhar sobre o discurso que abordamos os arquivos dos Conselhos Tutelares. O registro de um fragmento da vida das pessoas pode se tornar um documento que constitui o arquivo de um Conselho Tutelar, formado por outros tantos documentos. Com as denúncias que chegam aos Conselhos, podem ser produzidos relatórios que constróem saberes com efeitos de verdade e exercitam poderes, os quais objetivam a infância e a família, e dão suporte às práticas dos Conselheiros até mesmo em outros aparelhos que os atravessam. Nosso trabalho se propôs questionar tais práticas. A genealogia obstina-se em dissipar a aparente unidade dos objetos, da história. Ela “[...] pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam [...]” (FOUCAULT, 1989, p. 35). Os fatos humanos são arbitrários, pois o que é poderia ser diferente, nesse sentido, a genealogia – opondo-se à pesquisa de origem, a qual procura a essência – mostra a singularidade dos acontecimentos, ela vai até o ponto em que eles emergem, para encontrar os elementos heterogêneos de que são formados e que dão a ilusória aparência de unidade. Assim, é feita uma pesquisa de proveniência, em que são procuradas as rupturas, desconstruindo nossas identidades e mostrando que elas foram construídas historicamente peça por peça. A proveniência está também relacionada ao corpo, pois é este uma superfície de inscrição dos acontecimentos. Que os pais adotem este ou aquele preceito religioso ou moral é o corpo de seus filhos que será marcado com isso. A genealogia é a análise de emergência: ela explicita um lugar de afrontamento entre os diferentes elementos de que são constituídos os acontecimentos, ela mostra o jogo de submissões que estão envolvidos nos fins aparentemente últimos. Foucault (1989) afirma que interpretar é impor uma outra direção a um sistema de regras, é dobrá-lo a uma nova vontade, e a genealogia deve ser a história da emergência de interpretações diferentes.
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Dessa forma, a genealogia passa pela política do verdadeiro. Ressalta Ewald (1995): “O problema da verdade é menos o da sua descoberta que o da sua invenção [...]” (p. 15). Os discursos não são, eles próprios, verdadeiros ou falsos, mas o que está em questão é o regime de produção da verdade, aquele que, numa dada época, em uma dada sociedade, exclui, desqualifica, invalida saberes em detrimento de outros discursos. Os dispositivos de poder produzem o próprio objeto do qual falam, e cuja verdade pretendem descobrir, sujeitando-o. Cabe à genealogia, não produzir uma verdade mais verdadeira, porém, questionar os regimes de produção de verdades para saber se são possíveis novos regimes. Por isso, ao pesquisarmos os arquivos dos Conselhos Tutelares, procuramos questionar: quais regimes de verdade davam sustentação às práticas dos conselheiros, que saberes eram apagados para que outros entrassem em cena? Para quais era conferida visibilidade e por que não a outras coisas? A formação do saber dos conselheiros se dá através de vários mecanismos, como o inquérito, utilizando entrevistas, visitas domiciliares, conversas com vizinhos e observações dos comportamentos dos membros das famílias, em casa ou em locais públicos; as escolas também são fontes de informações. Todo saber que um conselheiro produz perfaz um conjunto com uma rede de “informantes”. A partir do momento em que o Conselho Tutelar é acionado, uma série de processos é encadeada, legitimando as ações dos conselheiros. Estes não agem sozinhos: é preciso que outras instituições ou que os vizinhos daqueles sobre os quais recaem as denúncias os ajudem na construção de seus saberes para legitimar suas intervenções. Muitas vezes, um discurso psicologizante ou até mesmo moralizante atravessa a fala do conselheiro. Pautado no ECA, o discurso jurídico dá igualmente o suporte legal para as intervenções do Conselho. Como são formados os saberes dos conselheiros? Por quais “regimes discursivos” organizam seus saberes e quais discursos os atravessam e os compõem? Como se dão as relações de poder, nas práticas dos conselheiros, e como tais relações produzem saber? Análise das práticas dos Conselheiros Tutelares Neste item, serão examinados os relatos obtidos de uma amostra aleatória simples dos arquivos produzidos pelos Conselheiros Tutelares, em dois municípios do interior paulista.
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Afirma Donzelot (1986) que os saberes psiquiátricos e psicanalíticos ajudam a desenvolver o processo de tutela das famílias pelos trabalhadores sociais, normalizando as condutas das pessoas, suas relações, a família e a criança. Pode-se observar esse aspecto na fala de uma conselheira, ao relatar que a mãe de uma dada criança parecia não ser normal, destacando: “[ela] não consegue organizar a casa porque sofre de alguma deficiência, pois é lenta mentalmente” (Doc. 1). Assim, fora encaminhada para tratamento no Departamento de Saúde Mental do município, visto que “não tem conseguido cuidar dos filhos, pois vem apresentando comportamento estranho” (Doc. 1). O ECA preconiza, como medida aplicável aos pais ou responsáveis, o “encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico” (ECA, cap. V, art. 129, item 3). É o saber psicológico com todo o seu aparato que lhe dá suporte, como, por exemplo, uma Unidade Básica de Saúde, sendo o local onde esse saber é aplicado e se ancora em diversas práticas, interferindo e até guiando as práticas dos conselheiros. O ECA é um dispositivo jurídico responsável pela integridade da vida de crianças e jovens, com o objetivo de preservá-los enquanto cidadãos, podendo intervir na família e outras instituições que ameacem esses “indivíduos”. Ao mesmo tempo em que protege, entretanto, o ECA dá margem para práticas de controle da população. Rago (1985) salienta que, no século XIX, surge um novo modelo de feminilidade atribuído à mãe, chamado de “esposa-dona-de-casa-mãede-família”, cabendo a ela a responsabilidade pela organização da casa e higiene. Também no século XIX, aliada ao médico, a mãe burguesa adquire um novo poder, o de controlar sua família, deixando esta mais higienizada e organizada (DONZELOT, 1986). Juntamente com o discurso médico e higienista, entram mecanismos de controle que atuam como processos de subjetivação, moldando os comportamentos segundo os ideais de higiene. Esse significado dado à mulher transcorre até a atualidade. Observa-se esse modelo se reproduzir, na fala de outro conselheiro: [...] quanto à desorganização da casa, este Conselho compreende a dificuldade que a genitora (sic) enfrenta para se organizar, percebendo que a mesma sofre de algumas deficiências, [...] é um problema que se torna difícil de solucionar, visto que a família não tem como acomodar seus pertences, pois faltam móveis, ocasionando a má organização da casa. (Doc. 2).
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É interessante notar que, mesmo o conselheiro reconhecendo as dificuldades materiais pelas quais a família passa, ele responsabiliza a mãe pela desorganização. Em outros arquivos analisados, há uma excessiva cobrança na prática dos conselheiros tutelares com respeito às mães, que são culpadas pelo não cuidado e zelo da casa. Essa culpabilização desencadeia todo um processo de regulamentação e moralização dos hábitos daquela família: “[...] apesar dela estar bem, precisa aprender a ser mais higiênica” (Doc. 03), de acordo com um conselheiro, ao visitar a casa da mãe de uma criança atendida. Paralelamente com saberes acerca dos ideais de higiene, mecanismos de controle são acionados, modulando subjetividades e atuando como práticas de subjetivação. Outro relato em que é dada visibilidade às condições de higiene da casa foi encontrado em um arquivo, no qual uma das causas de notificação fora o cuidado com a higiene. O Conselho Tutelar procedeu solicitando uma vistoria técnica da vigilância sanitária, a qual relata que o quintal estava sujo, os cães soltos no corredor, fezes eram jogadas em um pequeno espaço de terra onde as crianças brincavam, e a cozinha se encontrava desorganizada e suja (Doc. 04). Não havia, na pasta, outros registros além deste, de sorte que não se pode saber a respeito do desfecho do caso. Em outro arquivo, é interessante notar como é descrito um encaminhamento: [...] a mãe se comprometeu diante desta conselheira a cuidar de seus filhos, a trabalhar e deixá-los na creche, visando proteção integral das crianças. Compreendeu também que este Conselho Tutelar passará a acompanhá-la através de visitas para orientá-la e ajudá-la no que for possível. (Doc. 03).
Neste caso, é atribuído à mãe, como enfatiza Rago (1985), o papel de cuidadora da família. Há também um processo de tutela sobre uma mulher, a qual é pressionada a se submeter a um tratamento para alcoolistas de uma Unidade Básica de Saúde, caso não quisesse perder a guarda dos filhos. O ECA dá sustentação à questão de auxílio aos pais alcoolistas e usuários de drogas, para encaminhamento a medidas de tratamento, “inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.” (ECA, cap. V, art. 129, item 2). É o discurso
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médico-jurídico, embasado no ECA, sustentando as práticas dos conselheiros. O saber dos conselheiros é igualmente construído através de uma rede de “informantes”, composta por familiares, vizinhança ou qualquer pessoa da comunidade. Há um caso em que o conselheiro conversou com a sogra de uma mulher sobre a qual recaía a suspeita de ter espancado a filha. Informou a sogra que os pais da nora sempre a haviam espancado com vara, e que esta, por conseguinte, também batia com vara na filha. (Doc.05). Em outro caso, o conselheiro foi até a casa e não encontrou a mãe; conversou com a vizinha, a qual relatou os problemas conjugais dessa mulher, ligados ao fato de ela beber (Doc. 06). São nos pequenos procedimentos dos conselheiros que percebemos as relações de poder como uma multiplicidade de correlação de força. É o conselheiro enquanto trabalhador social, produzindo um verdadeiro “inquérito” social; é a sogra ou a vizinha, negando ou dando a informação ao conselheiro, que produz efeitos de poder nas famílias sobre as quais recaem as denúncias. Segundo Lemos (2003, p. 50), “as práticas dos conselheiros tutelares parecem se inscrever num modo policialesco de gerir a vida das famílias pobres, de controlar, de ameaçar e punir as pequenas ‘infâmias’ destes corpos”. Como explicita uma conselheira: “Ficou muito claro ao casal que a posição do Conselho Tutelar é acompanhar de perto e com firmeza a vida familiar do casal, pois a educação e os cuidados com os filhos serão supervisionados e acompanhados por este Conselho Tutelar” (Doc. 7). Além disso, os comportamentos públicos da população atendida são vigiados e policiados pelos conselheiros. É o que vimos em um bilhete anexado em um arquivo, no qual um conselheiro declara: “Viu [na tarde daquele dia], D. e J. B. aos beijos pela rua” (Doc. 8). Ao observar de perto, o conselheiro tanto vigia, quanto faz uma descrição minuciosa dos comportamentos, ao produzir enunciados baseados em tecnologias de vigilância dos corpos. Esse exemplo de prática nos remete ao mecanismo de poder disciplinar que Foucault denominou como exame, o qual permite objetivar os corpos, tornando-os dóceis e visíveis, nos diagramas de poder-saber. Ainda é produzida toda uma documentação com arquivos de detalhes, é um “poder de escrita” que capta os corpos e os fixa, tornando cada indivíduo um “caso” capaz de ser controlado.
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O Conselho não age a partir da família, mas através dela, controlando a população pobre. Portanto, o termo “polícia”, atribuído ao Conselho Tutelar, é caracterizado pela tutela e vigilância sobre as famílias como forma de controle social. O processo de vigilância das famílias de camadas populares parece ter-se potencializado com a rede que os Conselhos Tutelares formaram, interligando-se a outros estabelecimentos, como as Secretarias Municipais, projetos sociais, escolas, “[...] uma rede que captura e controla a vida das camadas populares em seus mínimos detalhes” (LEMOS, 2003). Foram inúmeros os casos em que a escola encaminhava a criança ao Conselho Tutelar com queixas referentes a problemas de comportamento e indisciplina, ou as crianças eram redirecionadas pelo Conselho para outros estabelecimentos. Essa rede microfísica de poder faz com que haja uma superposição das instituições, de forma que um espaço disciplinar remete a outro, por meio de uma transposição de funções, isto é, as instituições perdem suas delimitações e são atravessadas por todas as outras com as quais mantêm intensa relação, caracterizando a Sociedade de Controle, distinguindo-se pela modulação constante dos corpos, em que todos os moldes tendem a estar no mesmo lugar e uma instituição é atravessada por muitas outras. Muitas vezes, os projetos sociais assumem o papel de tutela das crianças e jovens com fins punitivos e de “reeducação” frente a comportamentos não esperados pelos conselheiros. Sobre os projetos sociais, em vários relatórios encontraram-se registros de crianças e jovens que foram a eles encaminhados pelo Conselho Tutelar, para ocupar-lhes o tempo ocioso e dar possibilidade de mudança de comportamentos avaliados como indesejados pelo Conselho, família e sociedade, como argumenta um conselheiro: “[...] a menina é muito rebelde, e necessita de acompanhamento”, sendo encaminhada para um projeto social (Doc. 9). Da mesma maneira como as instituições de assistência, na França, que emergem após a Revolução Francesa, as quais procuram “[...] manipular aqueles sujeitos que fogem à categoria médico-jurídica de “normalidade” e moldar sua vontade para fins precisos e socialmente eficazes [...]” (FOUCAULT, apud CAPONI, 2000, p. 43), através de mecanismos coercitivos, porém socialmente aceitos, esse conselheiro parece guiar sua prática no mesmo sentido.
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Algumas vezes, o Conselho Tutelar assume a função que tinham as “Lettres-de-cachet” francesas, que duraram um século e que, segundo Foucault (1996, p. 97), asseguravam o policiamento do grupo ou grupos – paroquiais, familiares, religiosos – por eles mesmos, como observamos acima. É o que analisamos em um relato em que a mãe acionou o Conselho Tutelar, para “ajudar a conter a filha, esta não obedece ninguém e sai a hora que quer” (Doc. 10). Como a mãe não consegue conter um membro de sua família, ela pede para o Conselho Tutelar intervir. É o que Ewald (1993) chama de “servidão voluntária”, em que o sujeito toma para si as coerções do poder dos quais é investido e faz “[...] de tudo aquilo que uma vontade quiser o princípio da sua própria servidão [...]”, p. 53. Nos arquivos pesquisados, o atendimento realizado pelos conselheiros tutelares tenta garantir a justiça social, porém, realiza julgamentos individuais. Eles culpabilizam as famílias por determinadas situações de risco às quais estavam submetidas as crianças e os jovens. Nesse sentido, tais práticas possuem uma abrangência em escala micro e macroimanente, dirigidas à família, abrangendo a sociedade, as relações políticas, além de limitadores econômicos, sociais e culturais. A posição do conselheiro já é um local estratégico de relações de poder; para ocupá-la, o ECA prevê alguns pré-requisitos: “Art.133 para a candidatura a membro do Conselho Tutelar, serão exigidos os seguintes requisitos: I reconhecida idoneidade moral; II idade superior a 21 anos; III residir no município.” Assim, não é qualquer pessoa que poderá intervir nas famílias. Por intermédio da produção de seus saberes, os conselheiros, por aquilo que sabem sobre a população, dão encaminhamentos que afetarão vidas, relações de poder que mudarão os caminhos seguidos até então por aquelas pessoas. Discursos produzidos dos mais diversos campos entrelaçam-se para a finalidade das práticas dos conselheiros. Suas falas, seus relatos mostram as variadas combinações que são operadas em seus discursos. Mostrando-nos suas emergências, os discursos dos conselheiros, em suas formas finais, aparentam uma ilusória unidade, mas, ao desmontálos, tendo em vista certos enunciados neles imbricados, pudemos elucidar como, apesar de heterogêneos, os variados discursos que formam seus saberes são costurados tal qual uma colcha de retalhos, que, somente de modo forçado, podem se acomodar uns aos outros. Em decorrência, procedemos à nossa análise, explicitando a proveniência de cada um destes.
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Contudo, as famílias não são objetos passivos, à espera de intervenção, pois há o que Foucault chama de resistências, contrapoderes. Num registro encontrado, a Secretaria da Educação, devido ao não comparecimento de uma criança ao atendimento oferecido pela APAE (Associação de Pais e Amigos do Excepcional), convoca a mãe a comparecer ao Conselho Tutelar. Ela se justifica, alegando má qualidade do atendimento oferecido. O procedimento do conselheiro foi promover visitas à casa e intermediar a relação da mãe com a APAE (Doc. 11). Em nenhum momento do relato, há um questionamento da qualidade dos serviços oferecidos pela instituição em questão, recaindo sobre a mãe a deficiência do tratamento, não lhe conferindo autonomia para ela escolher qual seria a melhor forma de criar sua filha. Porém, a mãe se coloca numa posição de questionamento, não acatando a decisão do Conselho sobre qual o melhor modo de cuidar de sua filha. Num outro relatório, há registros de um caso em que a mãe não permite o controle total de sua vida. O Conselho Tutelar tenta inúmeras vezes fazer com que ela passe por um tratamento para alcoolistas, entretanto, ela resiste e, embora o Conselho intervenha por alguns meses nessa família, a mãe não se submete ao tratamento (Doc. 12). Propusemo-nos, no início do trabalho, dentre outras coisas, analisar os focos de resistência que indicassem outros caminhos a serem criados, porém, nossos olhares sobre os relatórios pesquisados não puderam dar visibilidade a tais acontecimentos, por pouco aparecerem nos enunciados da amostra selecionada. Foucault (1988) afirma que as resistências, muitas vezes, são imperceptíveis, justamente por serem difusas. Por isso, seria necessário, para conseguirmos dar visibilidade a tais resistências, mecanismos mais refinados, como entrevistas com a população atendida ou com os próprios conselheiros. Há limitações, quando se utiliza apenas a metodologia de análise de documentos, em uma pesquisa – além de que o documento é monumento. O Conselho Tutelar e suas práticas: ressonâncias O ECA surge como efeito de lutas pela democratização do país, de sorte que sua conformação final abarca “[...] mecanismos da democracia representativa, da democracia direta e do corporativismo [...]” (BOTELHO, 1993, p. 148). Portanto, interesses heterogêneos de diferentes
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segmentos da sociedade brasileira se confrontaram, para sua confecção. Muitos atores desses segmentos vinham empreendendo uma luta contra a tutela exercida pelo Estado, imposta a partir de 1964, e não aceitavam a suspensão de certos direitos civis, políticos e sociais. Assim, como afirma Coimbra (1994, p. 01-08), a maioria dos brasileiros não exerce efetivamente a cidadania, pois não usufruem os seus direitos civis, políticos, de moradia, salários dignos, saúde, educação, alimentação e segurança. Em vários arquivos, encontramos registros das famílias passando pelo Conselho Tutelar para conseguirem auxílio em questões do acesso à saúde, alimentação e educação, direitos garantidos pelo ECA a todas a crianças e jovens: “A criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (ECA, cap. I, art. 7º). E, ainda, “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho [...]” (ECA, cap. IV art. 53). As políticas assistenciais e sociais das iniciativas privadas, associações e ONGs, juntamente com as governamentais, perpetuam as práticas de gestão da população, submetendo-a a normalizações. A proteção, aliada à prevenção preconizada no ECA, tende a associar-se ao controle. O ECA, ao prever que o Conselho deverá “promover a execução de suas decisões, podendo para tanto: a) requisitar serviços públicos na área de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança [...]” (art. 136, cap. II), parece ter potencializado a vigilância e o controle, através das ações dos Conselhos, ao tecer verdadeiras redes entre os serviços públicos, as quais capturam os corpos e os fazem entrar num circuito de controle. Considerações finais Os saberes dos conselheiros tutelares revelam uma heterogeneidade de proveniências. Vindos dos mais diversos locais, da Psicologia, do campo do Direito, das escolas, dos “informantes”, esses saberes acomodam-se uns aos outros para as ações dos conselheiros. Suas ações, pautadas nesses conhecimentos, interferem na vida das pessoas e as marcam. As relações de poder exercidas nas práticas dos conselheiros
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geram efeitos de mecanismos de controle como processos de subjetivação, os quais tentam modular comportamentos conforme ideais pré-estabelecidos, como ideais de higiene, família, ou o papel da mulher. O Conselho Tutelar participa da produção e manutenção de uma rede de relações de poder que captura os corpos e os submete. Atravessado por inúmeras outras instituições e, por outro lado, atravessando-as também, o Conselho insere-se nos diversos mecanismos que compõem o que Deleuze chamou de Sociedade de Controle. Os corpos são submetidos a infindáveis modulações vindas das instituições disciplinares, que já não possuem delimitações definidas. Seus muros foram rompidos e seus mecanismos disciplinares difundiram-se na sociedade, por meio da sobreposição de funções das instituições. A escola, que não tem apenas a função de educar, mas também de profissionalizar; a família, que é atravessada pelo discurso da escola, através da televisão; o Conselho Tutelar, com as “multifunções” – pedagógicas, jurídicas, moralizantes. Muitas vezes, vimos a própria população pedir a intervenção do Conselho, para conter um de seus membros. É um pedido que incita formas de controle do grupo pelo próprio grupo, caracterizando a rede de poder que atravessa a comunidade. Percebemos a importância do ECA, na ação dos conselheiros. Esse Estatuto é um agenciamento de forças que compilam um ideal de infância e juventude, além de ser igualmente uma mobilização de segmentos da sociedade para sua implantação e a utilização de órgãos e aparelhos para sua aplicação e desenvolvimento; assim, são os Conselhos Tutelares órgãos que funcionam como agentes fiscalizadores pelo cumprimento de propostas do ECA. Também nos arquivos, percebemos o uso ainda do termo “menor”, em inúmeras falas dos conselheiros. O ECA, para evitar a depreciação que o termo veicula, o substituiu por “criança” e “adolescente”, no intuito de fazer com que as crianças e adolescentes sejam considerados “sujeitos de direito” e não mais tratados como sujeitos passivos. A genealogia é um saber perspectivo, local, regional e que tem consciência disso; nesse sentido, ela afirma a posição política que assume. Entendemos, pois, que a relevância deste trabalho perpassa não apenas pelas interrogações que dispara, mas porque pode compor outras ressonâncias nas práticas instituídas pelos conselheiros. Dessa maneira, propusemos aos conselheiros, ao final da pesquisa, que voltássemos e utilizássemos nosso trabalho como material para discussões, o que foi aceito e acordado.
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