FILOSOFIA & TEURGIA EXCERTO DO TEXTO FILOSOFIA & TEURGIA NA TRADIÇÃO DE MISTÉRIOS
Fernando Liguori
esde a Antiguidade, o termo magia tem ganhado conotações pejorativas e tem sido associado a prestidigitação e trapaças de todos os tipos. 1 Tanto mageia quanto goē goēteia eram sinônimos de feitiçaria,2 um tipo de prática mágico-cerimonial de caráter inferior devido às inclinações particulares de quem pratica, e não pelos métodos ou procedimentos que se realiza,3 muito embora esse também seja um tema
D 1 Veja
a sequência de instruções na Lição 1: A Tradição Hermética de Mistérios , onde mageia é interpretada dentro do contexto iniciático da Tradição Hermética que compreende a prática da mística filosófica especulativa do CORPUS HERMETICUM atribuído a Hermes e a aplicação da magia como delineada nos P APIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS. As palavras de Peter Kingsley em seu artigo C ONHECER PARA ALÉM DO CONHECER: O ÂMAGO DA TRADIÇÃO HERMÉTICA ressalta a diferença entre a prática mágica hermética e a feitiçaria: No centro da tradição Hermética reside a necessidade de um determinado tipo de conhecimento: gnose, ou conhecimento do divino. Isto é algo inteiramente diferente dos tipos formais de conhecimento, que nos separam e distanciam do que julgamos que sabemos. 2 O termo feitiçaria ( goēteia) está associado desde a Antiguidade a uma classe inferior de magia conectada aos
PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS sem o desenvolvimento espiritual atribuído a mística do C ORPUS HERMETICUM. Embora muitas sejam as tentativas desde a Antiguidade tardia de ressignificar a feitiçaria, ainda permanece o tom pejorativo de seu exercício. Veja a lectio divina TEURGIA & GOÉCIA na Lição 2.2. Veja também as lições de estudo do CFO: Curso de Filosofia Oculta . Alex B. Elias, estudioso profundo e magista habilidoso, tem sua definição particular do termo feitiçaria. Para ele, feitiçaria é a arte de movimentar a matéria psíquica através de bases materiais. Neste sentido, o simples fato de se acender uma vela em uma oração ao daimon pessoal , por exemplo, já é uma prática de feitiçaria. A partir da obra de Agrippa e dos grimórios medievais de magia, o termo goēteia passou a ser associado a evocação magística de 72 daimones classificados dentro de uma estrutura judaico-cristã. Estes 72 daimones são uma herança medieval da classificação hierárquica do neoplatonismo tardio dos 72 Deuses Sub-Lunares, quer dizer, deuses abaixo da Lua , também conhecidos como os Deuses Hilíticos, Arcontes Materiais ou simplesmente Arcontes. Eles dominam o cosmos material abaixo do reino da Lua, que é o último dos céus. Eles estão cercados pela matéria e são marcados por uma jactância em poder e ação. Sua aparência é instável, muda de forma e tamanho devido a sua proximidade com a matéria. Eles trazem consigo os melhores aspectos da vida material, ao mesmo tempo em que atraem para si o caos do mundo material. Os Deuses Sub-Lunares são materiais e se misturam com os elementos, são sombrios e divididos. Eles também estão cercados por fantasmas poderosos que podem afligir a Alma (o que imediatamente traz à mente a comitiva de Sátiros e os Bacanais de Dionísio). Em uma visão teúrgica, os Deuses Sub-Lunares manifestam-se vagamente, cercados pelo acúmulo de matéria, mas com certa autoridade, pois reúnem em torno de si elementos materiais e sua própria ordem. 3 Veja a lectio divina T EURGIA & GOÉCIA na Lição 2.2. A lectio divina é um exercício espiritual de de contemplação em um texto. O termo exercício espiritual aqui é utilizado como na obra de Pierre Hadot, uma prática de vida filosófica, o que implica em profundas mudanças espirituais, quer dizer, em todo complexo psíquico. Veja EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS E FILOSOFIA ANTIGA, realizações, 2014. Pessoalmente, melhorando Hadot, eu colocaria desse modo: o exercício espiritual, que se trada de uma prática ou estilo de vida filosófico em acordo com a filosofia antiga, reestrutura e equilibra todo o complexo da consciência. Hadot estabelece Sócrates como o arquétipo fundamental do filósofo. Alguns amigos filósofos têm estabelecido que o arquétipo ideal do filósofo devesse ser encontrado entre os filósofos pré-socráticos. Pessoalmente, penso que o berço da Tradição Ocidental de Mistérios é uma pirâmide: sua base começa com Pitágoras e seu ápice termina em Jâmblico. O arquétipo perfeito ao filósofo é àquele, portanto, que combina filosofia e teofania, resgatando assim a tradição filosófica antiga.
deveras debatido.4 O Séc. III d.C. apresentou uma disputada questão na taxonomia e na definição de suas práticas e qualidade de ritual. Em meio a essa disputa, a teurgia neoplatônica também foi acusada ter equivalência com a prática da magia ( goēteia, feitiçaria). Jâmblico, filósofo e teurgo, era um homem que combinava o refinamento e a profunda inquirição espiritual filosófica com a devoção e a teofania de um hierofante de mistérios. Ele se esforçou em demonstrar que a teurgia tratava-se de uma prática cerimonial de tipo superior, aliada a um estilo de vida filosófico. Jâmblico ensinava que a teurgia é o complemento religioso-cerimonial da filosofia, acreditando que somente a devoção inspirada poderia levar o filósofo do ver para o ser em um arrebatado estado de união com o divino ( henosis). Como veremos adiante, a filosofia antiga é um estilo de vida, uma maneira distinta de olhar a realidade. A teurgia, neste mesmo caminho, não difere da filosofia, antes disso, a complementa. É correto dizer que filosofia e teurgia são artes irmãs. Nos primeiros séculos da era cristã, principalmente entre os Sécs. III e IV onde esse embate crescia fervorosamente, o cristianismo se apresentava como uma alternativa filosófica, uma vez que orientava um estilo de vida sacramental em concordância com o Logos. Nesse processo, ele rejeitou e perseguiu os rivais da filosofia helênica que perseguiam os mesmos objetivos espirituais, mas com metodologias dialéticas e teúrgicas distintas. Porfírio, professor de Jâmblico, classificava os cristãos em dois grupos, os letrados e os iletrados. Os iletrados eram a maioria, os polloi kai alloi, os letrados eram a minoria, os hairetikoi. Estes poucos eram os gnósticos, àqueles que possuíam hairesis, uma firme e oposta doutrina filosófica. Os gnósticos foram completamente exterminados pelos cristãos e a ekklesia, antes orientada pela philosophia verissima de Platão, agora orientava-se aos mistérios menores . A lógica e os aspectos psíquicocosmológicos da filosofia foram aceitos, mas a espiritualidade pagã foi furiosamente sufocada. A teurgia e metafísica neoplatônicas de Jâmblico e Proclo transformaram-se na teologia mística de Pseudo Dionísio, mas a dimensão teúrgica do neoplatonismo foi demonizada e perseguida. Uma vida filosófica é essencialmente mística. Um filósofo na Antiguidade era um místico. No entanto, o embate acalorado e por vezes deveras sangrento entre cristãos e pagãos também mudou completamente a orientação das academias de filosofia que por fim foram completamente fechadas e seus professores e alunos perseguidos. Houve nesse período um maciço ingresso no cristianismo, que se apoderava dos ideias filosóficos espirituais de imortalidade da filosofia, deixando apenas uma casca de discurso racional amorfo. O cristianismo se valeu dos exercícios espirituais 4 O
tradicional corte ou sacrifício de sangue foi um tema amplamente debatido pelos filósofos neoplatônicos, gnósticos e cristãos do Séc. III. Os cristãos, mas também os gnósticos e alguns filósofos neoplatônicos, criticavam duramente os sacrifícios de sangue, dizendo serem eles impróprios aos deuses, servindo apenas a uma classe inferior de daimones. Embora na diversificada cosmologia e cosmogonia neoplatônica um daimon não necessite de nenhum alimento provido pelas Almas humanas, os gnósticos e cristãos diziam que daimones de classes inferiores alimentavam seus veículos pneumáticos do sangue e da fumaça da carne queimada. Veja ótima discussão sobre o tema em Heidi Marx-Wolf, S PIRITUAL TAXONOMIES AND RITUAL AUTHORITY, PENN, 2016.
da filosofia, renegando esta apenas a um conjunto de especulações. É essa filosofia desprovida de estilo de vida filosófico que chegou até nós nos dias de hoje em nossas universidades. A filosofia moderna é um fruto direto desta corrupção do neoplatonismo tardio e pagão em virtude da apropriação cristã de sua espiritualidade. A partir do Séc. IV d.C. a filosofia nunca mais seria a mesma. Ela daria lugar a especulação filosófica abstrata de uma atividade intelectual desprovida de identidade própria, perdendo completamente suas dimensões teológica, religiosa e teúrgica. O resgate da filosofia antiga pode, dessa maneira, ser estabelecido através da prática da teurgia. A filosofia compreendida como um desenvolvimento da tradição órfica, pitagória e platônica, não se trata de uma explicação teórica da realidade, do mundo, mas antes disso, de um rito de renascimento , o que implica em transcender a finitude material. O objetivo de uma vida filosófica inclui a habilidade de viver bem no aqui e no agora, pois o pano de fundo noético de cada filósofo, quer dizer, o Uno inefável, está presente em toda parte. Nos termos da cultura egípcia, trata-se portanto de uma transição ao reino de Osíris ( duat ) ou corpo alquímico da deusa Nuit (o céu), às vezes representado como um templo na forma de vaca (a deusa Hathor). Para um filósofo, portanto, aprender a viver bem se trata de aprender a morrer e essa paideia (educação) filosófica é análoga a construção da tumba real , quer dizer, a maṇḍala teúrgica de palavras (hekau) e os espíritos hieróglifos animados ( medu neter ), ), a incorporação das Formas platônicas. Essa tumba filosófica é a própria cripta de iniciação do filósofo, onde ele passará pela transformação alquímica no templo de Osíris no duat . O termo grego filósofo tem equivalência com o termo egípcio mer rekh, que significa amante do conhecimento , que dizer, àquele que busca por uma teofania divina com os neteru (deuses) em henosis. Esse elemento teofânico dá acesso ao espírito da sabedoria, quando o deus Thoth é assentado na ponta da língua e a deusa Maat no santuário do coração. Como todo hierofante de mistérios egípcios, o filósofo busca a ressurreição no reino de Osíris-Rá. A revolução intelectual helênica despertada por Pitágoras e Platão modernizou e adaptou este conhecimento egípcio, transformando o antigo Faraó-Hórus, o theios aner , no Filósofo-Sacerdote platônico buscando união com os princípios elevados noéticos ( neteru) adentrando a barca de Rá. O Atum-Rá egípcio equivale ao Intelecto Divino ou cosmos noético (kosmos noetos) de luz espiritual.
Sobre o Autor: Fernando Autor: Fernando Liguori é hermetista praticante e escritor interessado em Neoplatonismo, Tradição Salomônica, Magia na Antiguidade, Filosofia, Yoga, Tantra, Āyurveda, Xamanismo e Cabala Crioula. É líder e fundador do Colegiado da Luz Hermética , uma Escola Neoplatônica de Iniciação que inclui uma Igreja de Ciências Herméticas (Ecclesiae Lvx Hermeticae ) e a Ordem das Irmãs de Seshat , cujo trabalho é apresentar os Arcanos de Mistério da Tradição Esotérica Ocidental sob uma perspectiva feminina e para mulheres apenas. Nós celebramos os Mistérios & Arcanos da Iniciação através do conhecimento inspirado transmitido por Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Plotino, Jâmblico, Dionísio, o Areopagita e Marsílio Ficino. Somos uma comunidade teúrgica ecumênica fundada na cidade de Juiz de Fora (MG). Nós nos esforçamos para nos engajar na veneração do divino e alcançar o autoconhecimento celestial.
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