UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO COMUNICAÇÃO JORNALÍSTICA – COM122 PROFESSOR: LEANDRO COLLING
EQUIPE DE REPORTAGEM EM:
Salvador 2006
EXPEDIENTE: EQUIPE DE REPORTAGEM: Anderson Sotero Breno Fernandes Deijeane Nascimento Edinaldo Júnior Eric Carvalho Luana Muniz Luciana Rebouças Luigi Piccolo Matheus Feitosa Mayana Mignac Nina Neves Rafaela Chaves Rebeca Bastos Robson Carneiro Taciana Gacelin Vinícius Carvalho
EDIÇÃO:
Breno Fernandes Edinaldo Júnior Rafaela Chaves
COORDENAÇÃO:
Leandro Colling
CRÔNICA DE UM DOIS DE JULHO Luigi Piccolo Dois de julho, um dia após o vergonhoso jogo das quartas-de-final em que a França obrigou os brasileiros a despertarem do longo transe e discutirem algo mais produtivo do que o percentual de gordura no corpo do Ronaldo Fenômeno. Coincidentemente, é dia também da Independência da Bahia, quando os baianos, em 1823, botaram para correr os portugueses e selaram a promessa do tal grito do Ipiranga. Um dia triste, daqueles que dão vontade de se meter sob as cobertas e de lá sair somente daqui a quatro anos, quando a seleção faz o caminho inverso dos negros africanos, rumo a África do Sul. Um dia simbólico, em que uma mulher travestida deu um chute no traseiro do Manuel e o mandou montar sua padaria em outra freguesia. Que fazer então? Ora pois, alugar um DVD e se empanturrar de chocolates, sob um delicioso e confortável edredom. Obviamente com um filme baiano, para fazer jus ao dia que perdeu um aeroporto, mas não as páginas da História do Brasil.
EM BUSCA DO DENDÊ COM PIMENTA – Ao caminhar pela Graça, podemos encontrar, a sombra de um grande letreiro, a auto-intitulada “maior locadora do centro da cidade”, a Vídeo Hobby. Com centenas de fitas e dezenas de livros – não se pode entender nunca o motivo de estranho casamento – a vídeo locadora está localizada num bairro nobre, rebento de um centro histórico ainda fervilhante, com suas “salas de arte”, museus e turismo intenso. Pede-se um filme baiano e o jovem supervisor devolve a pergunta, “Um filme baiano? Como assim um filme baiano?”. O drama poderia ter sido menor se o repórter inocentemente não tivesse resolvido perguntar, “Você não conhece nenhum cineasta baiano”? O sistema das cinco videolocadoras Vídeo Hobby não é unificado, deixando o cliente à mercê da boa vontade do catalogo. “Quando falta um filme, ligamos para a central para eles providenciarem, principalmente se há uma grande procura” diz Renato Neres de Souza, 27 anos, supervisor da filial da Graça. “Os filmes são indicados pelos clientes ou apresentados por alguma distribuidora. Às vezes nós mesmos pesquisamos na internet em busca de novos títulos”. No emaranhado de filmes era difícil encontrar os títulos baianos que o repórter tinha em mente, até que, finalmente, ele acha a sessão de filmes nacionais. Uma moça aproxima-se para ajudá-lo e ele então pergunta, “tem filme baiano”? Meio confusa ela pede para que ele seja mais especifico, convidando-o a juntar-se a ela numa pesquisa pelo catalogo informatizado da locadora. “Glauber Rocha”? Sim, uma cópia de Deus e o Diabo na terra do sol e sol e duas cópias de Terra em Transe. Transe. Os dois únicos títulos disponíveis disponíveis do diretor, ambos em formato DVD, nenhum dos dois locados fazia mais de três meses. O repórter corre para a sessão de documentários e não acha absolutamente nada que tenha sido produzido em sua cidade natal, além de uma série de workshops capitaneada pelo médium espírita Divaldo Franco e um vídeo a la Discovery Channel chamado Naufrágios na costa da Bahia. Havia sete títulos diferentes sobre o campeonato de basquetebol da NBA, nenhum título sobre as rodas de capoeira no Porto da Barra. Encontrando outros representantes (menos baianos, é verdade) do Cinema Novo, como o o Pagador de Promessas, Promessas, ou do cinema de referência a Bahia, como o
sucesso Dona-Flor sucesso Dona-Flor e seus dois maridos, maridos , Tieta do Agreste e Canudos, Canudos, o repórter resolve bombardear a moça com nomes estranhos como, Meteorango Kid , Superoutro e outros representantes do Cinema Marginal da década de 70 e 80, mas ela não se sentiu ameaçada, sempre respondendo um “não” seco. Ele tenta Três Histórias da Bahia, Bahia , junção de curtas que ganhou até um assento no Multiplex, e recebe uma outra negativa. Desesperado, achando que teria que assistir pela milésima vez a um filme de Glauber Rocha, deixa escapar um “tem Cinderela Baiana”? A moça sorri e responde, “Só em VHS”!
EM BUSCA DO DENDÊ COM PIMENTA 2, O RETORNO – A hipótese de que o cinema baiano era uma espécie mais alienígena do que o cinema iraniano dentro das videolocadoras veio a se confirmar. A GPW, famosa na Pituba e em toda Salvador por possuir o maior acervo de títulos “impossíveis de serem achados”, igualava-se a Vídeo Hobby quando o assunto era cinema baiano. A sessão de Cinema Nacional contava com Glauber Rocha e os seus dois filmes encontrados na videolocadora da Graça. No mais, os mesmos filmes que fazem referência a baianidade, a Jorge Amado e a Antônio Conselheiro – com a carismática participação de Carmem Miranda, se pudermos chamar os balangandãs da pequena portuguesa de referências a Bahia. Para Jefferson Cardoso, 21, responsável pela entrega a domicilio, os superoitistas, como ficaram conhecidos os diretores do Cinema Marginal, que usavam a bitola de 8mm (mais acessível), eram muito mais uma espécie de equipe de super-heróis do que sôfregos e atuantes cineastas. O repórter ainda tomou fôlego para telefonar para a gigantesca multinacional Blockbuster, uma espécie de McDonalds das videolocadoras. Localizada no bairro da Barra, no boêmio e inquietante Jardim Brasil, a filial da norte-americana chega a contar com duas dezenas de copias de um filme lançamento em suas prateleiras. É a Meca do entretenimento, rápida e indolor, sem filas e esperas. Passou, pegou, devolveu, tudo em escala industrial. Convencido de que numa loja chamada Blockbuster só encontraria “blockbusters” (aqueles filmes explosivos com bilheterias estratosféricas), o repórter não se deixou intimidar, ligou e inquiriu a recepcionista. Glauber Rocha? Não. Pagador de Promessas, Promessas, Dona-Flor , Canudos, Canudos, Tieta, Tieta, Três Histórias da Bahia? Bahia ? Cinco vezes não. Não também para os superoitistas. E um grande não para Carla Perez e o seu Cinderela Baiana. Baiana. Não se decepcionou, sabia o que iria encontrar ali, ou melhor, não encontrar. No entanto pensou que seria mais honesto colocar uma grande placa na porta afirmando, “Não temos filmes baianos, com referências a Bahia, nem mesmo portuguesas vestidas de baiana com bananas na cabeça”. A Blockbuster Blockbuster só ganhava em uma coisa das outras duas concorrentes, possuía mais copias de Cidade Baixa, Baixa, dez, todas locadas. Vitória Esmagadora. ACEITANDO PÃO CACETINHO COM CAFÉ E MANTEIGA – Alugar um filme nas grandes videolocadoras de Salvador é um luxo que não é para todos, ao preço é acrescido o livro que não queremos comprar, a pipoca de microondas que já temos na despensa e outras “conveniências” que deixam os filmes de lado e os serviços à frente. Achar o filme que queremos é uma tarefa de garimpagem; como achar o maior diamante do mundo, quando se trata do cinema baiano. O repórter, então, tenta fugir das grandes e buscar nas pequenas e especializadas, um refúgio. Ouviu falar na Casa de
Cinema, uma locadora de clássicos e filmes de arte, que obviamente trabalha com lançamentos, porque alguém precisa pagar as contas de casa. Moreno, o simpático atendente, responde com a boca cheia, “Glauber Rocha, claro”, quando o repórter pergunta se ele conhece algum cineasta baiano. Afirma que também tem em disponível Terra em Transe e Deus e o Diabo o Diabo na terra do sol , porém eles são filhos únicos. Apesar Apesar de contar com uma sala dividida por nomes de diretores, clássicos divididos por década, a Casa de Cinema não dispõe de muitos filmes baianos – excetuando o sempre onipresente Cidade Baixa, Baixa, disponível em todas as videolocadoras. Quanto aos superoitistas, que tentaram preencher (com muito sarcasmo e ironia) o vácuo deixado pelo Cinema Novo, Moreno reconhece o nome de Pola Ribeiro, é aquele que ta filmando o Jardim das Folhas Sagradas, Sagradas , né”? E também reconhece o nome de Araripe, perguntando “se ele tem algum longa-metragem”. Mas confessa, levemente triste, que lá o repórter não encontrará nem Meteorango Kid e nem Superoutro. Superoutro. Embora satisfeita com o seu catalogo e contando com bons recursos humanos, a Casa de Cinema não é a Vídeo Hobby, a GPW ou a Blockbuster – encontra-se em um shopping pequeno, não tem o mesmo peso no mercado e não pode fazer milagre, mesmo tendo uma clientela seleta e de nível cultural elevado. Exaurido e duplamente derrotado – pelos franceses e pela determinação de, no dia da independência, somente assistir a um filme local – o repórter desiste, se rende a Vídeo Hobby Megastore da Pituba, compra uma barra de trinta por quinze centímetros do mais puro chocolate e aluga o documentário Pelé. Pelé. Vai dormir assistindo ao futebol arte e sonhar com o dia em que, ao entrar numa videolocadora, possa correr direto a sessão de Cinema Baiano. ♦
QUE SE FAÇA A LUZ! Vinícius Carvalho
Às nove horas de uma noite quente de outubro, no ano de 1904, dentro de um dos cômodos mal iluminados da ampla oficina de pianos situada à Rua Carlos Gomes, Feliciano da Ressurreição Baptista, conhecido e honrado pela sociedade baiana pelo excelente desempenho e dedicação à busca de inovações artísticas, envolvia-se numa experiência diferente, inusitada. De costas para o seu filho José e os amigos Antônio e Justiniano, que assistiam à pequena distância, Feliciano concentrava-se num esforço cada vez maior para conseguir mais intensidade do foco luminoso da lâmpada que, àquela época, chamava-se oxyethérica e seria usada para exibições da invenção mais festejada do momento: o cinema. Trazido à capital baiana sete anos antes, precisamente no dia quatro de dezembro de 1897, o cinema deixou maravilhada uma classe média soteropolitana carente de novidades tecnológicas. Instalada provisoriamente no Theatro Pollytheama por um certo Dionísio Costa, a máquina que projetava imagens em movimento passou a ser o novo passatempo burguês na província. Sem um local fixo para ser montado, o aparelho passeou por sobrados, teatros e antigos casarões. Num deles, na Rua Carlos Gomes, Nicolas Parente, um emergente empresário, também instalou um projetor depois de ter ouvido, um ano antes, notícias sobre o sucesso que o equipamento havia feito em exibições na famosa rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Pouco tempo foi necessário para que houvesse lugares específicos para as sessões cinematográficas. Intelectuais pessimistas proclamavam o fim do teatro e da boa dramaturgia. Nas telas, eram exibidos filmes de títulos no mínimo interessantes. Dentre eles: Carnaval em Veneza, Briga de mulheres-sem-coragem, Uma reunião de amigos em divertimento jogando uma partida de cartas , além da conhecida produção dos irmãos Lumière que assustava platéias inexperientes com a cena de trem em movimento. Ao longo de anos, os ricos espectadores, cada vez mais exigentes, queriam imagens mais nítidas e salas mais amplas e iluminadas. iluminadas. Na cidade, diferentes formas de projeção passaram a ser experimentadas. A luz oxyethérica parecia ser uma excelente alternativa, e nela Feliciano Baptista trabalhava na noite de 20 de outubro de 1904. Não satisfeito com a qualidade da luz que conseguiu, pressionou ainda mais, calcando com as próprias mãos o balão superior, feito de ferro, que funcionava como depósito de oxigênio. Ao retirar as mãos, deu-se uma explosão que clareou todo o aposento e rompeu-lhe o ventre, deixando os intestinos intestinos derramados. Noticiado nos grandes jornais da cidade, o acidente não assustou por muito tempo o público ávido por mais imagens e histórias na tela. Em 1909, já aconteciam as primeiras produções feitas na Bahia. Foi a Photographia Lindemann, estabelecida à Praça 13 de Maio, a pioneira no estado no fabrico de filmes. Inaugurou suas experiências gravando com êxito “Regatas na Bahia”, primeira de algumas películas produzidas por um dos donos da companhia: Diomedes Gramacho. Usando material francês, Gramacho e o seu amigo José Dias da Costa levaram à frente a empresa, cujo nome – Lindemann – era de um alemão que os ensinou a técnica de fotografia e filmagem. Num laboratório próprio, cumpriam todas as etapas da realização fílmica, e durante quatro anos o cinema ocupou destacado papel em suas
múltiplas atividades. Foram pioneiros em fazer pequenos cinejornais que eram apresentados em uma casa na Rua Chile e tinham duração média de meia hora. O sucesso da Photo Lindemann perdurou até meados de 1920, quando um incêndio destruiu o ateliê que ficava na Praça da Piedade. Desesperado e falido, Diomedes jogou seus filmes ao mar. Aquele mesmo mar que havia sido o tema de suas primeiras gravações. Octogenário, um pouco surdo, Gramacho morreu muito tempo depois, sem conseguir reerguer a Lindemann ou concluir outros filmes. Abriu a primeira lacuna na produção fílmica do estado, que só voltou à tona em fins da década de trinta, quando entra em cena Alexandre Robatto, Filho. Cirurgião dentista, nascido em Alagoinhas, interior da Bahia, Alexandre Robatto demonstrou desde cedo grande interesse pelas imagens projetadas em movimento. Morando em Salvador, produziu uma série de curtas que, embora provincianos, percorreram percorr eram o país e fizeram sucesso. Eram, em sua maioria, documentários que abordavam temas diversos como a aplicação da vacina antituberculose, a zootécnica, a procissão dos navegantes, a visita de Getúlio Vargas, dentre outros. Robatto fez com que o estado voltasse a ser o principal pólo cinematográfico do país. Muitos dos filmes, porém, desapareceram ou foram perdidos pelo desgaste provocado pelo tempo. Os personagens aqui comentados hoje se escondem entre as páginas amareladas e gastas do já extinto Correio de Notícias, o mesmo que, um dia depois de publicar a triste morte de Feliciano Baptista, comemorava a chegada de George Meliès à Bahia, o ilusionista inventor dos primeiros efeitos especiais cinematográficos. Há, ainda, as primeiras observações críticas sobre o assunto, organizadas por Sílvio Boccanera em seu livro Os cinemas na Bahia: 1897 – 1918. 1918 . Fontes de pesquisa que foram, ao seu tempo, fundamentais para a afirmação do que hoje se chama cinema baiano. Um cinema de histórias ímpares. De idas e vindas. De retomadas, para os que assim preferem chamar. ♦
ANOS DOURADOS Breno Fernandes
27 de junho de 1950. Auditório da Secretaria de Educação do Estado da Bahia. Uma grande platéia assiste a Os Visitantes da Noite, Noite , do francês Marcel Carné. Lançado originalmente em 42, numa França ocupada pelos alemães, o filme é uma parábola exaltadora do amor e da liberdade: passa-se na Idade Média; um casal de menestréis enviados pelo Diabo chega a um castelo na noite de um casamento consumado tãosomente por interesse. Em dada seqüência de uma dança, os gestos e sons vão crescentemente lenteando até a imagem congelar por completo. O público, pensando se tratar de defeito do velho e não muito usado projetor, fica desencantado por ver interrompida a história num momento tão bonito. Surpreendentemente, som e movimento voltam. Percebendo que se tratava de um artifício do diretor, todos riem de si mesmos. *** Na história do cinema baiano, não houve década mais importante que a de 50. Mesmo levando-se em conta o fato de o primeiro longa-metragem ser de 59 e de os filmes mais importantes para a cinematografia local datarem dos anos 60, sem a preparação que os anos 50 conferiram aos cinéfilos, o que se seguiu não teria sido possível. Nesta época, a vida cultural soteropolitana fervilhava a temperatura elevadíssima, repleta de novas propostas, movimentos, publicações independentes. Foi quando começaram a despontar em meio à juventude figuras como Glauber Rocha, Calazans Neto, Paulo Gil Soares, João Carlos Teixeira Gomes e muitos outros. No xadrez cinematográfico, entretanto, a peça fundamental do tabuleiro foi Walter da Silveira (leia mais em Walter da Silveira, o eterno efêmero), efêmero ), à época já renomado crítico. 27 de junho de 1950 foi justamente quando nasceu o Clube de Cinema da Bahia, estrelando Os Visitantes da Noite como filme inaugural. Concebido por Walter da Silveira nos moldes dos cineclubes franceses, o Clube não apenas teve importância fundamental na formação de cineastas e críticos baianos, mas também despertou o interesse de figuras representativas da cultura baiana pelo cinema. “As projeções cineclubistas representaram verdadeiros cursos de formação de espectadores e de criadores, influindo decisivamente para o nascimento do que foi certo dia o ‘cinema baiano’”, escreveu o crítico André Setaro, freqüentador do cineclube ainda estudante do ginásio. De forma alguma as reuniões semanais do Clube, realizadas no Cine Glória (atual Tamoio, próximo à Rua Chile), se resumiam às exibições. Não. Antes, Walter da Silveira sempre brindava os presentes com uma palestra na qual abordava a estética, a importância em termos de linguagem cinematográfica e a relação do filme a ser exibido logo mais com seu país de origem e trajeto pessoal do diretor. Não muito diferente de hoje, até então as produções hollywoodianas eram exclusivas em Salvador. O Clube abriu as portas para o cinema de outros países. Conta-se inclusive uma (muitas, na
verdade) curiosa história a respeito de certas obras mudas provenientes da URSS: Walter, na época filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), onde conseguira estes filmes, mas as legendas eram em russo. Movendo mundos e fundos, descobriu uma filha de agricultores soviéticos no interior do estado, em Catu, foi até lá e a trouxe a Salvador, para, microfone em mãos, traduzir ao público o que aparecia na tela. O cineclube firmou-se com tanta solidez que, em menos de um ano, em abril de 51, pôde realizar o I Festival Internacional de Filmes Curta-Metragem, com a participação de 12 países – nada tão organizado se fizera no Brasil até então. Houve conferências, com convidados portentosos, entre os quais Alberto Cavalcanti, Alex Viany e Vinicius de Moraes (para os que não sabem, este escrevia sobre cinema, tendo aprendido com ninguém mais, ninguém menos que Orson Welles!), e a platéia se dedicava a polêmicas discussões sobre os merecedores da vitória. E neste ritmo seguiu o Clube, até 1967, quando terminou por pressão dos militares, avessos a qualquer tipo de reunião com o mínimo de caráter subversivo. Antes do Clube de Cinema da Bahia, os únicos filmes realizados no estado eram produções estrangeiras, comensais da paisagem pitoresca e do folclore da terra. Já no fim dos anos 50, este panorama começa a mudar. Em 1957, Roberto Pires, Oscar Santana e Braga Neto montaram a produtora Iglú, com a missão de filmar um longa ( Redenção). Redenção). Em 1959, Glauber conseguiu exibir no cineclube seu primeiro curta, A Praça, Praça, já revelador de seu anseio por inovar, logo antes de Os Boas-Vidas, Boas-Vidas, de Fellini. Logo a seguir, nasceria uma trilogia cuja temática e estética parecidas reuniram-se sob a alcunha de Escola Baiana de Cinema, movimento que tornaria a Bahia a “meca do cinema brasileiro”. ♦
WALTER ALTER DA SILVEIRA, O ETERNO EFÊMERO Eric Carvalho
As tropas alemãs invadiam a Bélgica, para penetrar em solo francês. Era 1915, início da Primeira Grande Guerra. Paralelo a isso, no outro lado do oceano, na capital da província baiana, nascia Walter Raulino da Silveira, homem que teria sua vida diretamente ligada ao país do General De Gaulle. Mas o elo que os aproximara era anterior à guerra. Surgira 20 anos antes do seu nascimento. Na mesma França, em Paris, os irmãos Lumière apresentavam ao mundo o cinema. A sétima arte seria a grande paixão de Walter da Silveira. Walter passou parte da infância em Estância, interior de Sergipe. Lá, desde os três anos passou a freqüentar salas de projeção. Pedia a suas irmãs que lessem os folhetos dos filmes em voz alta para decorá-los. E assim o jovem garoto se alfabetizou, lendo o mundo nas projeções de filmes e nas imagens refletidas na tela. A paixão pelo cinema era tanta que, já com 12 anos, de volta a Salvador, escreveu o seu primeiro artigo, para o jornal Imparcial. Falava de Charles Chaplin, seu grande ídolo, que teria papel fundamental nos capítulos finais de sua vida. Quando ainda bastante novo, perdeu a mãe. Aos 15, foi convencido pelos professores a entrar precocemente na faculdade de Direito. Nesta época, o dinheiro era escasso. Usava roupas curtas. A desigualdade social foi um choque universitário. Para ele, "na universidade as roupas marcavam a diferença". Também sem poder comprar livros, freqüentava bibliotecas. Nelas, viajava o mundo com Julio Verne e, como mesmo disse, se iniciou sexualmente nos romances de Aluísio de Azevedo. Após a formatura, Walter levou seu amor pelos filmes para o interior do estado, onde fora trabalhar como juiz de direito. O jovem crítico de cinema, autodidata, exibia seus filmes em várias salas (quando conseguia encontrar alguma em condições). Em uma delas, conheceu dona Ivani, e a amante dos filmes de caubói e das revistas de cinema logo passou a ser a outra paixão de Walter. Dessa união, desfeita apenas com a morte do baiano, gerou-se sete filhos. De volta a Salvador, passou a freqüentar, no centro da cidade, o Bahia Bar, onde se encontrava com os amigos da Academia dos Rebeldes, grupo de artistas e intelectuais comunistas, entre eles Dias da Costa, Clóvis Amorim, Jorge Amado e outros, que se reuniam para discutir poesia e política. No período da Segunda Guerra Mundial, Walter e Jorge se aproximaram dos judeus e combateram juntos o nazismo e a ditadura Vargas. Nesta época, passou a escrever poemas e se auto-intitulou o "demissionário da poesia". Walter passara a exibir filmes de todas as partes do mundo na capital baiana. Salvador, antes dominada pela indústria norte-americana, foi invadida por rolos de filmes dos quatro cantos do planeta. Os filmes chegavam diretamente das cinematecas do Rio de janeiro e de São Paulo. O braço direito de Walter, Hamilton Costa, em apêndice do último livro do crítico, relata o processo sucintamente: “O camarada tinha todo um esquema, os filmes saiam no Rio e íamos correndo pegar... Quando saía um livro na Europa, os caras logo mandavam pra ele.”
UM ROTEIRO ORIGINAL – Walter já era uma unanimidade no cinema brasileiro, quando, em 1950, fundou o Clube de Cinema da Bahia, trazendo a Salvador clássicos da sétima arte. E se por ventura os estudantes do Colégio Central, assaz freqüentadores, insistissem em conversar durante as palestras ou exibições, Walter, temperamental como era, logo as interrompia para expulsá-los. O Clube contava com vários cinéfilos hoje notórios, dentre eles Sante Scaldaferi, Calazans Neto, Carybé, Caetano Veloso e Glauber Rocha – uma das vítimas dos esporros de Walter. GURU DE UMA GERAÇÃO – Em 1967, com a ditadura militar, o Clube foi fechado. Mas Walter não se curvou, e, um ano depois, criou o Curso Livre de Cinema, promovido pela Universidade Federal da Bahia. O “doutor” Walter era adepto da idéia de que o esclarecimento é a grande função da crítica. De fato, tornou-se um grande nome do País. Com sua oratória simples e clara, educou toda uma geração de estudiosos, produtores, cineastas e entusiastas. Walter escreveu três livros: Fronteiras do Cinema, Cinema, Imagem e Roteiro de Charles Chaplin e A História do Cinema vista da Província, Província , mas morrera antes de completar este último. O CARINH CARINHO O DO ÍDOLO – Em 1970, o intérprete de filmes, como se auto-declarava, passou a sofrer os danos causados por um câncer e foi desfalecendo aos poucos, mas mantendo sua firmeza. Foi nessa época, próxima ao fim da vida, que Walter viveria uma de suas maiores emoções. Pouco antes de morrer, recebeu uma carta de seu grande ídolo, Charles Chaplin. O ingênuo Carlitos, eterno personagem de Chaplin, era vagabundo rejeitado pela sociedade das grandes máquinas, deixando, pelas engrenagens cinematográficas, a ternura presente em grandes homens. A carta foi a grande catarse do fim da vida de Walter, que contava, eufórico, a todos: “Chaplin sabe quem eu sou”. Na verdade, a carta partiu de um plano arquitetado pelo amigo Jorge Amado, que enviou a Chaplin o livro que Walter publicara sobre ele, pedindo-lhe que escrevesse para seu grande fã antes deste morrer. Era um papel timbrado com desejo de melhoras e agradecimentos, batidos à maquina, abaixo a assinatura: Charles Spencer Chaplin. O mestre do cinema mudo, profundo conhecedor das delicadezas delicadezas humanas, usara palavras para dar a Walter sua última alegria. Uma semana após seu enterro, Charles lhe escrevera outra mensagem, elogiando com entusiasmo o livro que finalmente pudera ler. Walter partiu em silêncio, no dia cinco de novembro de 1970, dia dedicado à cultura nacional. Intelectual por excelência, mas também um homem do povo, foi o grande caleidoscópio do século XX, como definiu certa vez o ex-aluno e cineasta Zé Umberto. “Walter foi o nosso único grande ensaísta”, disse Jorge Amado na despedida do amigo. Junto com Walter, morrera também uma era, um tempo de grandes pensadores, de um grande espaço na imprensa dedicado à cultura. Para a posteridade, deixou uma das maiores bibliotecas sobre cinema do País, doada por dona Ivani à Associação Baiana de Imprensa (ABI). Além dos seus três livros, uma compilação de seus ensaios, O Eterno Efêmero, Efêmero, está sendo organizada pela Fundação Pedro Calmon, sobre coordenadoria de Zé Umberto.
A lembrança de um homem popular, sereno e apaixonado pelo que fazia permanece na mente de quem o conheceu. Na sua despedida, viu-se desde juristas e intelectuais intelectuais a simples pessoas do povo. O ser sempre paradoxal, corajoso e determinado, mas que temia as trovoadas e a efemeridade, estava eternizado. ♦
QUANDO O CINEMA DA BAHIA FEZ ESCOLA Luana Muniz , com resenhas de Mayana Mignac
O Cinema Novo é o movimento cinematográfico mais conhecido do País. Mas poucos sabem que, sem a Escola Baiana de Cinema, ele não existiria. Tendo como função apreender a realidade local, utilizando e apresentando a sua cultura, a Escola teve Rex Schindler, Roberto Pires e Glauber Rocha como pioneiros, traçando um caminho para se fazer um cinema característico da nacionalidade, contemporâneo. Em 1959, temos Redenção temos Redenção,, uma produção de Roberto Pires, que, apesar da falta de equipamentos e de experiência anterior de seus realizadores, pode muito bem ser considerado exemplo de uma obra que abriu as portas do cinema na Bahia. Sua conclusão provou que era possível se fazer filmes nestas plagas. A partir daí surgem mais três, que podem ser considerados os mais importantes em toda a história do cinema baiano. Barravento, Barravento, A Grande Feira e Tocaia No Asfalto. Pouco se conserva, porém, da história cinematográfica baiana. Dos quatro filmes citados, só estão disponíveis três, em VHS, na Diretoria de Imagem e Multimeios Audiovisuais da Bahia (Dimas), e as cópias não se encontram em boas condições. Ao que parece, Redenção parece, Redenção ficará apenas na lembrança de seus contemporâneos. Contudo, o que se pode perceber, em críticas como a de André Setaro, é que seu valor maior é ter sido o primeiro. “ Redenção “ Redenção,, todavia, não obstante a sua importância histórica, se coloca à margem da chamada ‘Escola Baiana de Cinema’, posto que é apenas uma película amadorística sem maiores preocupações senão a de contar uma história policial”. Já A Já A grande feira dependerá de uma boa manutenção não ocasional ou um vídeo que não a estrague. Enquanto isto, tudo que se pode afirmar é que a crítica o vê como um filme no qual quase se equaciona o problema do complexo arte/política econômica/ conquista do público. Foi o passo mais largo dado pelo nosso cinema em direção da resolução dessa questão, sendo considerado um filme novo no cinema brasileiro, apesar dos seus defeitos de estrutura e definições psicológicas-sociais.
“PRINCESA ISABEL É ILUSÃO” – Primeiro longa de Glauber Rocha, Barravento tem grande importância na história do cinema baiano por ter sido um dos pioneiros a captar aspectos essenciais da nossa sociedade. O filme pode ser considerado quase um documentário sobre a cultura popular da Bahia, pois durante os seus 82 minutos de duração são mostradas diversas cenas de samba de roda, capoeira, puxadas de rede e rituais religiosos. Apesar dos recursos ainda precários da época, a fotografia é admirável e o diretor abusa de planos abertos para mostrar a grandiosidade e beleza da Praia de Buraquinho, a 10 km de Itapoã. I tapoã. Barravento conta com leveza a história de um grupo de pescadores pobres e sofridos da Bahia. São negros que, apesar de passado quase um século desde a abolição da escravatura, ainda não conseguiram se livrar das suas amarras e continuam submissos, dominados pelo misticismo e pelo sistema, sem perspectiva de mudanças. Desta forma, o personagem principal Firmino (Antônio Pitanga), ex-morador da vila, pode ser considerado um revolucionário, pois ele é consciente da sua situação e, em meio a tanta miséria, consegue ir para a cidade e transformar sua vida – mesmo
utilizando-se de meios duvidosos. Firmino depois, volta à Buraquinho a fim de tentar libertar também os seus companheiros desta alienação social e conformidade religiosa. No entanto ele é ignorado pelos pescadores que só seguem os ideais do mestre e acaba atuando de má fé, apropriando-se de práticas do candomblé para conseguir o que deseja. Glauber se preocupava muito com questões relacionadas ao fanatismo mítico e a agitação política. Ele queria acabar com o exotismo da cultura negra tão cantada pelos artistas baianos: “Fiz um filme contra candomblés, contra misticismos e, num plano de maior dimensão, contra a permanência de mitos numa época em que exige lucidez, consciência, crítica, ação objetiva. O folclore e a beleza contagiante dos ritos negros são formas de alienação”, disse Glauber em entrevista ao Diário de Notícias em abril de 1962, ano em que o filme foi lançado. E pensar que tudo podia ter sido diferente... A direção e o roteiro iniciais eram de Luiz Paulino, porém os produtores se mostraram descontentes como rumo romântico que o enredo estava tomando. Decidiram, então, nomear Glauber (que era produtor executivo) o novo diretor. Após a conclusão das filmagens em 1959, o longa ainda fica na gaveta por um ano, pois lembrava o neo-realismo italiano, oposto às idéias compactuadas pelo diretor. Deste modo, o filme só é montado em 1961 por insistência de Nelson Pereira dos Santos e lançado em maio de 62.
CPI NÃO É DE HOJE – Com estrutura narrativa de um thriller, Tocaia no Asfalto foi lançado em 1962, época de plena efervescência do “Ciclo Baiano de Cinema” (1959 – 1963). Este foi o terceiro longa-metragem de Roberto Pires, e veio para confirmar o seu talento para com a sétima arte. arte . Diretor e roteirista, Pires mostrou mais uma vez possuir um sentido “intuitivo” na construção de uma mise-en-scène. Segundo Setaro, “Pires possui o que muitos não têm: o engenho e a arte de saber se articular por meio de elementos puramente cinematográficos. cinematográficos. Seus melhores filmes ( A ( A Grande Feira e Tocaia No Asfalto) Asfalto ) mostram um realizador de plena consciência de seu ofício”. O filme se passa basicamente em dois ambientes: o primeiro burguês, da casa de um político corrupto (Milton Gaúcho), e o segundo pobre, de um prostíbulo no qual um pistoleiro (Agildo Ribeiro) vindo do interior está hospedado para matar o tal político. As filmagens foram feitas na Salvador dos anos 60 e, através delas, é possível conhecer pontos turísticos da cidade e costumes da época. Há também cenas memoráveis no Pelourinho, no Farol de Itapoã e na antiga Linha de Trem. Uma das cenas mais festejadas, no entanto, se passa no interior da Igreja de São Francisco – quando o pistoleiro persegue o político a fim de matá-lo, mas não consegue. Outra cena impactante e digna de destaque é o tiroteio que acontece no cemitério Campo Santo, quando enfim o atirador consegue cumprir o seu dever. Pires consegue transmitir uma emoção muito forte no modo de contar histórias. Em Tocaia, ele ainda sobressai ao tratar de um tema sempre atual: corrupção. O filme aborda também a prepotência das classes dominantes, o pistoleirismo e a luta de um jovem deputado (Geraldo D´El Rey) para instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e desmascarar os demais políticos da região. Faz jus às palavras de Glauber Rocha: “Se já não houvesse Cinema Baiano, Roberto Pires o teria inventado”. ***
AINDA HÁ ESPERANÇA – Foi encontrada uma cópia integral de Redenção em Recife. Petrus Pires, filho do diretor, trouxe essa cópia para a Dimas, em Salvador, a fim de restaurá-lo. ♦
A BAHIA E O CINEMA NOVO ALÉM DE GLAUBER Matheus Feitoza, Feitoza, com colaboração de Anderson de Anderson Sotero “Escrevi um artigo negando o cinema. Não acredito no cinema, mas não posso viver sem o cinema. Acho que devemos fazer revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às ruas, me deixou sem dormir. Precisamos fazer a nossa aqui. Cuba é o máximo (...). Estão fazendo um novo cinema (...), vários filmes longos e curtos. Estou articulando com eles um congresso latino-americano de cinema independente. Vamos agir em bloco, fazendo política. Agora, neste momento, não credito nada à palavra arte neste país subdesenvolvido. Precisamos quebrar tudo. Do contrário eu me suicido”. Esta passagem foi retirada de uma carta de Glauber Rocha para o cineasta Paulo César Saraceni, e se encontra publicada no livro Por dentro do Cinema Novo: minha viagem, viagem, do próprio Saraceni. Data do início dos anos 60 e representa uma das primeiras articulações em busca da criação do maior movimento cinematográfico do Brasil: o Cinema Novo. É bem verdade que, quando surge o Cinema Novo, a produção na Bahia se encontra estagnada. Depois de 1962, ela se limita a filmes bastante esparsos, nada que tenha uma projeção nacional e represente uma ascensão do cinema local. Este só voltaria à tona com o boom super-oitista, que lhe deu novo fôlego. No entanto, o que torna este movimento interessante, além da grandiosidade, é a presença do baiano de Vitória da Conquista Glauber Rocha na sua articulação. O Cinema Novo buscava mostrar a realidade do País de uma forma diferente da até então vista, a qual fosse capaz de obter diversas interpretações, dependendo do grau de consciência crítica do público. Representava uma espécie de cinema com baixo custo de produção e uma profundidade de abordagem temática. Para Glauber, o movimento era muito mais: em uma publicação de 1963, chamada Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Brasileiro , com então 24 anos, ele atribui ao ainda emergente Cinema Novo um espírito de modernismo, com a ruptura estilística e a busca de um cinema poético. Dizia: "Queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser comprometido com os grandes problemas de seu tempo". Não é à toa que uma das marcas mais fortes do Cinema Novo é a incomum quantidade de diálogos durante a projeção. Além de Glauber, que tem como obra mais conhecida Deus e o Diabo na Terra do Sol , produção baiano-fluminense, o movimento contou com cineastas como Nelson Pereira ( Rio 40 graus, graus, Boca de Ouro e Vidas Secas), Secas), Anselmo Duarte (O ( O pagador de Promessas), Promessas), Paulo César Saraceni ( Porto ( Porto das Caixas), Caixas), Cacá Diegues (Ganga ( Ganga Zumba), Zumba), Leon Hirszman ( ( A Falecida), Walter Lima (Menino ( Menino de Engenho), Engenho ), Roberto Santos (Matraga). Matraga). Todas estas são produções de caráter nacional e que prezavam a valorização de uma forma própria de fazer cinema. É uma reação à Vera Cruz, até então a maior produtora de cinema do País, cujos filmes eram de caráter hollywoodiano. E se, mesmo com tudo que já foi dito, ainda se precisa entender qual foi a participação da Bahia e da verba estadual para o Cinema Novo, só se pode afirmar que, em uma noite solene, Walter da Silveira levou Glauber Rocha para fazer uma palestra sobre a situação do cinema brasileiro para seus alunos. Este aproveitou o seu discurso para dizer que, durante a administração de Luis Viana Filho, não recebeu nenhum
auxílio do governo do Estado. Durante a gravação de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, Guerreiro , filme premiado em Cannes, o Governo Estadual lhe negou até uma kombi para terminar o seu projeto. Se, para o maior cineasta brasileiro, brasileiro, que surpreendeu o mundo, a Bahia não deu nada além do berço e da consciência social, fica perceptível porque o Cinema Novo não contou com produções genuinamente baianas. Porém, para alguém como Glauber, o cinema era muito mais que simples captação de recursos e filmagens com fins comerciais. O cinema era uma paixão e uma batalha constante em busca do sonho. “(...) estamos recriando recriando nosso cinema e você precisa precisa voltar para ser soldado nesta luta. Não quero que você fique mais tempo na Itália. (...) precisas FAZER FILMES aqui no Brasil dentro de nossa luta: joaquim [ Pedro Pedro de Andrade ] , , eu, [ Luis Luis] paulino [dos Santos] , , você, miguel [ Borges Borges] , , marcos [ Faria Faria] , , leon [ Hirszman Hirszman] e outros novos que surgirão”. ♦
QUANDO A GENTE NÃO PODE MAIS, FAZ TUDO PARA PODER DE NOVO Uma breve análise sobre o cinema baiano nos anos 70 e 80. Breno Fernandes Artigo 5º – A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: I - cessação de privilégio privilégio de foro por prerrogativa de função; II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; sindicais; III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados determinados lugares; c) domicílio determinado. Eis aí um excerto do documento mais tenebroso e mais vergonhoso da história do Brasil: o Ato Institucional N°5. Decretado em 13 de dezembro de 1968 pelo presidente Artur da Costa e Silva, o AI-5 fechou o Congresso Nacional por quase um ano e não só desrespeitou as liberdades individuais como intensificou as torturas e assassinatos assassinatos dos inimigos (reais e imaginários) dos militares, no poder desde o Golpe de 64. Ironicamente, a década de 70 foi uma das mais produtivas para a cinematografia baiana: foi quando nasceu e se consolidou a Jornada Internacional de Cinema da Bahia, o segundo mais antigo festival do País, importantíssimo evento que motivou toda uma geração e que segue até os dias de hoje. E pensar que as Jornadas Baianas, como também são conhecidos estes encontros, são praticamente fruto de um estupro, sendo o AI-5 o vilão, e a vítima, o Grupo Experimental de Cinema (GEC)...
CINEMA NA UNIVERSIDADE – Um curso de cinema era um dos sonhos de Walter da Silveira. No início de 1968 isto foi possível, graças à ajuda fundamental de Guido Araújo, à época recém-chegado da antiga Tchecoslováquia, onde passara mais de dez anos. Guido trabalhava na Coordenação de Extensão da Universidade Federal da Bahia, que aceitou patrocinar o projeto. O curso era livre e tinha duração de um ano, com carga horária de quatro horas semanais. Walter ensinava História & Estética do Cinema. Guido, Teoria e Prática. "O curso foi um sucesso", relembra o crítico André Setaro em seu blogue. "Dele saíram alguns dos principais realizadores realizadores e críticos futuros do cinema baiano: André Luiz Oliveira – que realizou, ainda em 1969, Meteorango Kid, o herói intergalático, intergalático , clássico do chamado Cinema Marginal, entre outros filmes –, José Umberto – que, além de curtas, fez O Anjo Negro, Negro, longa-metragem, em 1972 –, Carlos Vasconcelos Domingues, Geraldo Machado, José Frazão, autor de um longa baiano desconhecido e perdido, Akpalô perdido, Akpalô,, em 1971, entre muitos outros, inclusive este colunista". O GEC, além disso, convenceu o reitor Roberto Santos a liberar – sem nem consultar o Conselho – o Salão Nobre da reitoria para exibições sabatinas de filmes. "Um feito e tanto", escreveu Setaro, "pois significou o reconhecimento pela
Universidade da natureza artística do cinema, que, a partir de então, se punha em pé de igualdade, perante a academia, às demais artes". Todavia, o GEC não duraria muito. Guido, em entrevista publicada no primeiro número da revista digital O Olho da História, História , produto do Núcleo de Produção e Pesquisas da relação Imagem-História da Ufba, relembra como era difícil continuar as atividades cine-clubistas: "Mesmo antes [do AI-5], numa das últimas exibições que realizamos, já havíamos tido problemas. Durante a exibição de Os Companheiros, Companheiros, com a reitoria superlotada, ocorreu uma manifestação lá dentro. Tive que me esconder, porque disseram que a polícia estava à minha procura. Como era final de ano, período de férias, suspendemos as atividades”. No ano seguinte, quando se preparava para reiniciar as atividades, Guido sentiu que havia uma grande resistência. Realizou apenas duas ou três sessões. Então um dia, aproveitando-se de uma viagem do reitor ao exterior, exterior, os militares proibiram as exibições, com uma alegação “meio cretina”, segundo Guido; “diziam que havia desaparecido um aparelho de telefone da portaria e que deveria ter sido alguém da sessão de cinema. Na verdade, a partir do AI-5, qualquer evento que concentrasse pessoas, sobretudo jovens e, particularmente, estudantes, era visto como subversivo". O jeito, então, era pensar em alternativas.
CINEMA AQUI, CINEMA ACOLÁ – Ainda inseguro, Guido resolveu tentar algo mais inofensivo – uma retrospectiva retrospectiva dos dez anos de longa-metragens longa-metragens baianos, realizada no Cine Bahia. Obtendo resultado positivo nesta mostra – tanto no que diz respeito ao público quanto à censura –, resolveu reaver as atividades cine-clubistas, extintas desde 67, quando do fim do Clube de Cinema. As exibições começaram na Biblioteca Central, nos Barris, mas veio o período de chuvas e tudo ficou alagado. Migraram para o Cine Rio Vermelho. O ano é 71 e, em viagem ao Rio de Janeiro, através do diretor da cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), Cosme Alves Netto, Guido se encontra com Roland Schaffner, este ansioso para conhecer aquele. É que Schaffner estava de mudança para Salvador, para dirigir o Instituto Cultural Brasil Alemanha (Icba) e, além do mais, queria levar a mostra de dez anos do Festival de Obenhausen para a Bahia. Selava-se uma parceria tripla essencial para as Jornadas Baianas. CINEMA (MAS NÃO SÓ CINEMA) NO ICBA – A primeira jornada foi em janeiro de 72. Intitulada I Jornada Baiana de Curta-metragem, foi modesta, local, carecia de recursos, mas ainda assim importante, por apresentar ao público bons curtas, como Vôo Noturno, Noturno, de José Umberto (o primeiro filme "marginal" baiano), e abrir espaço para discussão dos problemas do cinema, principalmente no Brasil. "Na noite de encerramento, o Schaffner me convidou para comemorar sua chegada à Bahia. Ele e o Cosme me disseram: olhe, se você quiser continuar com a idéia de fazer a Jornada no próximo ano, pode contar com o nosso apoio. O Schaffner ofereceu o espaço, e o Cosme auxiliou no sentido de conseguir filmes no Sul do país", relembra Guido. O salto entre a primeira e a segunda edição foi enorme. "Partimos para uma Jornada nordestina", conta Guido. "Ela teve uma importância cinematográfica e política extraordinária. Naquela época, toda a atividade cinematográfica do país havia sido esmagada, quer dizer, o movimento cine-clubista tinha sido totalmente aniquilado pela ditadura. Não havia sequer um clube de cinema funcionando no país. Existia de um desejo de ir contra a situação política, mas, naquela época, as coisas eram barra
pesada!" Neste aspecto, a parceria com o Icba, um espaço quase consular, foi condição sine qua non. non. "A repressão era violentíssima dentro das universidades, dos colégios e era muito difícil se fazer alguma coisa. O Icba, como uma instituição alemã, gozava de certa imunidade diplomática. Isso nos permitiu a audácia de fazer coisas, lógico, graças ao apoio do diretor e também da Alemanha, no período, ter um governo socialdemocrata mais liberal, que lhe dava respaldo". A jornada de 73 ocorreu em setembro e também ficou famosa com o strip-tease de Edgard Navarro, numa acalorada discussão com José Carlos Avellar. “Eu percebi que não ia ganhar a discussão, então comecei a tirar a roupa”, conta um maroto Edgard.
DO SUPER-8 AO SUPEROUTRO – No campo do cinema baiano, a década de 70 é conhecida pelo boom superoitista. Super-8 é uma das muitas bitolas (medida padronizada da largura de uma película) existentes, conjunto no qual a 16mm e 35mm eram consideradas as verdadeiramente profissionais. Uma geração inteira de cineastas baianos vêm provar que se pode, sim, fazer cinema com Super-8. Dela fazem parte figuras tais quais Edgar Navarro, Póla Ribeiro, Fernando Bélens, José Araripe Jr e muitos outros. Por um lado, o custo de se filmar em Super-8 permitia mais do que nunca àqueles jovens cinéfilos terem uma câmera na mão para expor suas idéias. Por outro, a periodicidade setembrina das jornadas era a garantia de que suas obras seriam vistas. Somando-se estes dois fatores, mãos à obra! A principal influência dos neófitos de então foi o Cinema Marginal (ou Cinema Underground), nascido após a bancarrota da Escola Baiana de Cinema, em 68, cujo mote está em seu primeiro longa-metragem, O Bandido da Luz Vermelha, Vermelha , do catarinense-baiano catarinense-baiano Rogério Sganzerla: "Quando a gente não pode nada, tem mais é que esculhambar!" E se engana quem pensa que nesta corrente se encontrará anarquia pura e gratuita. O Cinema Marginal troca a "estética da fome" do Cinema-Novo por um Brasil completamente urbano, consumista e gerador de lixo industrial. Ainda do Cinema Marginal, temos clássicos como Meteorango Kid, o Herói Intergaláctico; Caveira My Friend (de Friend (de Álvaro Guimarães); Guimarães) ; Akpalô e O Anjo Negro. Assim se passaram duas décadas. O frisson, no entanto, diminuiu à medida que o País foi se abrindo politicamente. Paradoxal? De modo algum: a partir do momento em que se tem mais liberdade, começam a ressurgir outros espaços e outros festivais curtametragistas no resto do Brasil. As Jornadas Baianas, assim, perdem sua exclusividade. Em 89, o que parecia ser uma nova chama se revelou mais tarde somente uma faísca. Trata-se do premiadíssimo Superoutro, Superoutro, de Edgard Navarro, “o último e temporão rebento do boom superoitista”, segundo o próprio. "Pode-se dizer que nele eu retomei a estética caótica e desabusada da simpática bitola (aliás, citada explicitamente no título) para fazer, do ponto de vista formal, uma espécie de inventário de uma época fecunda e criativa", comenta Navarro. O média-metragem – que, inclusive, é filmado em 16mm – instaurou, pela primeira vez, a polêmica de uma retomada. Contudo, os anos 90 chegaram, a Era Collor se instaurou e foi fechada a Embrafilmes, importante produtora estatal existente desde 1969. O cinema nacional praticamente parou, segundo Roque Araújo, membro Diretoria de Artes Visuais e Multimeios da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Dimas). “No Rio e em São Paulo, os caras começaram a fazer cinema erótico para sobreviver, porque era barato.
Pegavam uns quatro atores, botavam num apartamento e em quatro semanas o filme tava pronto.” Foi a Dimas, inclusive, quem promoveu o edital que culminou com 3 Histórias da Bahia em 2001 – “filme-durex”, nas palavras de André Setaro, que fundiu três curtas cujas temáticas, mui tenuamente, giram em torno do carnaval. Ou seja: por mais de uma década, Superoutro será a única produção local a ter alguma repercussão. ♦
O SUPERBACANA DO CINEMA BAIANO Robson Carneiro
Ele é o superbacana do cinema baiano. Mas como nem mesmo os seres superiores conseguem driblar certas amarras sociais, o cineasta baiano Edgar Navarro, antes de vender a alma às grandes telas, formou-se em Engenharia Civil, negando por um instante toda sua genialidade cinematográfica, numa atitude, segundo ele, mais por pressões familiares do que por vontade própria. Mas o cinema exigia espaço, queria salvá-lo da morte. Os super-heróis inspiravam liberdade, um refúgio de uma realidade chata e opressiva. As câmeras Super-8 – febre em meados dos anos 70 por serem acessíveis e de fácil manuseio – davam-lhe a real oportunidade de criar seus próprios mundos. Combinação perfeita, futuro previsível! Daí que, em seus filmes, assistimos a toda intensidade da vida de um condenado, não na visão simplista de uma retórica do último dia, mas com a liberdade e a legitimidade de ser o que é ou do que se queria ser. Aos poucos, Edgar Navarro se transformou em um dos grandes nomes de nosso cinema. Falastrão, ruidoso e teatral, parece tentar viver o que diz. Diz alto, quase discursa. Respira cinema e transpira encenação, o tempo todo. Imita vozes, cita autores, dita as trilhas sonoras e as canta, bem ou mal. Cria um ambiente tipicamente navarriano, parece dirigir até mesmo um papo informal. Os desavisados se perdem, se deixam levar, mas para onde? Talvez, ao universo clichê de todo mortal: ataques ao governo, as estruturas sociais, a família. Poderia ser o ator principal de qualquer um de seus filmes, se assim já não é, ao menos simbolicamente. Anarquista e ácido demais, na visão dos mais conservadores, homem frouxo e vulnerável para entre suas “negas”, mas sem dúvida, um sopro de criatividade em tempos já não não muito virtuosos. virtuosos. Entre suas obras, obras, desfilam desfilam títulos como Alice no País das Mil Novilhas, Novilhas , O Rei do Cagaço e Superoutro – o mais conhecido de todos. Atualmente, prepara o lançamento de Eu me Lembro, Lembro, filme que narra, a partir das lembranças do próprio autor, a evolução da capital baiana nos últimos 50 anos. Gênio e louco, como ele próprio se considera, Navarro lamenta apenas não ter saúde mental suficiente para tocar “projetos mais audaciosos”. É defensor do discurso de um cinema baiano sempre muito rico e criativo, mas ainda pouco profissional. Não por critérios técnicos ou da ordem de recursos humanos, mas por falta de uma melhor estrutura, incentivos e planejamento – também essenciais. Apesar de demonstrar ser um grande paranóico, não aceita a idéia de testemunhar os produtores de cinema na Bahia acomodados sob a alegação de viver um eterno boicote. Considera a falta de organização como uma triste herança do processo de colonização, que, acontecendo de formas diferentes nas diversas regiões do País, nos faz melhor em muitas coisas e pior em várias outras. Piores nessa história pragmática que o neoliberalismo e o sistema sempre exigem do cristão, por exemplo. Talvez, no futuro, as pessoas passem a classificar determinados filmes como dotados de um certo tom “navarriano”. Nada mais justo. Navarro é autêntico e sabe disso. Muito mais do que um super-oitista ou modista de época, como muitos chegaram a rotulá-lo no princípio. Ou toda essa gente se engana ou então finge que não vê que ele nasceu para ser o superbacana. superbacana. ♦
DESCONSTRUÇÃO DA NORMALIDADE Luciana Rebouças
O grito inicial é a principal chamada do Superoutro: Superoutro: “Acorda, humanidade!” Superoutro, Superoutro, filme de Edgar Navarro, 1989, é, antes de deduções óbvias, um filme que pode levar o espectador a pensar. Para alguns, esta é a história de um morador de rua, louco, que faz nojeiras e palhaçadas palhaçadas durante os rápidos 40 minutos do média-metragem; média-metragem; mas para outros este é um filme que está muito além da obviedade. Superoutro se compõe nas entrelinhas e nos faz pensar que os loucos são aqueles que moram em um prédio de luxo e pagam para alguém dormir na sua portaria durante a noite. Mais uma psicose da modernidade. O personagem principal, interpretado por Bertrand Duarte, é o morador de rua que quer acordar a humanidade e vai parar em um hospício da cidade de Salvador. Quando devolvido à rua, sua casa, começa a passear por pontos turísticos, perambular, observar e refletir sobre esta cidade e sobre a sociedade, mas suas idéias estão muito além da específica região de Salvador. O Superoutro é um personagem universal. Todavia, o filme, tão bem construído dentro da sua “lógica da desconstrução”, perde-se em algumas cenas escatológicas que ora são gratuitas, como o close no processo de defecação do personagem, ora são engraçadas e anárquicas, como quando o Superoutro arremessa seu cocô em um motorista parado no sinal. Possivelmente, este tenha sido mais um recurso de Navarro para acordar a humanidade, mas ele se perdeu em risos e constrangimentos. Navarro, diretor baiano, só veio a realizar seu primeiro longa-metragem, Eu Me Lembro, em 2005. O filme foi bastante premiado no Festival de Brasília 2005, recebendo sete candangos: melhor longa-metragem, melhor direção, melhor atriz (Arly Arnaud), melhor ator coadjuvante (Fernando Neves), melhor atriz coadjuvante (Valderez Freitas Teixeira), melhor roteiro e melhor prêmio da crítica. Também Superoutro, Superoutro, em 1989, ganhou dois prêmios: o Prêmio Especial do Júri e o Prêmio de Melhor Diretor, ambos no Festival de Gramado. O bom trabalho de Edgar Navarro parece evidente, talvez falte apenas mais oportunidade para a realização de um cinema mais sólido na Bahia. "Para quê que eu vou querer saber de tudo. O dia que eu souber de tudo, eu não vou querer saber mais de nada", diz o Superoutro ao chupar suas tangerinas trocadas por uma nota de 500 cruzados. Esta é apenas uma frase de um turbilhão de idéias que se pretendem rebeldes e questionadoras, mas, por vezes, deixa o espectador confuso, devido a tantas exigências mentais proporcionadas por uma série de reflexões, uma atrás da outra, em seqüências que se atropelam e querem atropelar quem assiste. É preciso estar preparado, com a mente mais aberta para apreciar este média-metragem, quem sabe seguir a instrução de um dos espectadores que, revendo o filme, falou antes da sua exibição para a platéia jovem: “Preparem seus saquinhos de vômito”. Infelizmente, foi em meio às inúmeras dificuldades do cinema baiano que Navarro compôs este anti-herói que invade as telas para tentar aproximar o público de uma realidade mais crua. Todavia, a dificuldade de distribuição e as poucas cópias disponíveis para os espectadores mais jovens fazem esta história perambular e, talvez,
afligir apenas uma geração passada. Há a promessa de sua reprodução em DVD, mas está é apenas mais uma expectativa deste sofrido cinema realizado na Bahia. ♦
DIAGNÓSTICO DO CINEMA BAIANO Por Anderson Sotero e Taciana Gacelin G acelin O paciente, ao entrar no consultório, foi logo se queixando ao doutor. Achava que estava enfermo. O vigor que tivera em certa época esmoreceu. Não se sentia mais o mesmo. Não conseguia compreender o que lhe sucedera. Estremecia só de pensar na possibilidade de cair no ostracismo. Erguia-se um pouco, mas o fulgor que tivera outrora não se repetia com a mesma intensidade. Definitivamente, adoecera. Nascido na Bahia somente por volta de 1911, com descendência européia, recorda ter vivido momentos esplendorosos. Era exibido em salas exíguas, que ficavam constantemente lotadas, devido à grande receptividade da capital baiana diante da fascinante novidade: a sétima arte chegava finalmente para os baianos. Ganhou repercussão nacional e mundial com notáveis obras que permitiram a sua difusão e, por conseguinte, angariar admiradores. Glauber Rocha, um dos seus principais representantes – “com uma idéia na cabeça e uma câmera na mão” –, produziu alguns dos filmes que o alavancaram e o fizeram de referência para muitos outros posteriores. Todavia, os dias de glória não foram uma constante em sua vida. Houve até quem o chamasse de “cinema sazonal”. Então, considerando-se desconhecido, sobretudo para os próprios baianos, pediu insistentemente ao médico que lhe receitasse algum medicamento eficaz, e não mais paliativos. O doutor, com uma feição hesitante, sabia que o pedido do seu paciente não seria uma tarefa fácil. A análise de alguns sintomas seria imprescindível para que se pudesse elaborar um diagnóstico atual deste conspícuo paciente, o cinema baiano. Ei-los: “O jardim do vizinho é sempre o mais bonito ” – O que talvez pudéssemos chamar de cinema baiano não parece despertar tanto interesse quanto o que vem de fora. Para Conceição Miranda, responsável pelo Projeto de Formação de Platéia em Cinema, que visa atrair alunos do ensino fundamental e médio através de exibições gratuitas, há ainda certo provincianismo por parte da população, pois somente dá valor ao jardim alheio, ao outro, ao estrangeiro. “ É conhecido sim! Mas lá fora!” fora!” – Roque Araújo, contemporâneo de Glauber Rocha e dono de um currículo de produções cinematográficas invejável (cerca de 180 filmes), argumenta que “o cinema baiano não é desconhecido. Ele impulsionou o desenvolvimento cultural brasileiro, sobretudo com as produções de Glauber Rocha. Ele é conhecido mundialmente. O problema é que os baianos estão acostumados com produções americanas e italianas”. “Salas de exibição” exibição ” – Muitos cineastas reclamam da dificuldade que enfrentam para que seus filmes possam ser vistos nas grandes salas de exibição. Geralmente, passam em salas de cinema de arte, salas alternativas, destinadas às películas que, via de regra, não se enquadram nos padrões comerciais hollywoodianos. Desde 2004, todas as salas foram forçadas licitamente (cotas de salas) a reservar 63 dias, no mínimo, para a exibição de produções nacionais. Roque Araújo salienta ainda que, mesmo com as
poucas salas existentes, algumas ainda são vendidas para instituições religiosas. Ele faz um apelo para que seja criada uma lei que proíba este tipo de comercialização. “ Há quem nunca tenha ido sequer ao cinema” cinema ” – Ir ao cinema é uma prática comum, mas que é permitida a somente uma parte seleta da sociedade. As salas de cinema se localizam no centro da cidade. Isto dificulta o acesso a elas, por boa parte das pessoas que moram nos bairros periféricos. Sem falar dos empecilhos financeiros. Gil Giardelli, colunista do portal UOL, salienta que, de acordo com uma recente pesquisa requisitada pelo governo, de cada dez jovens brasileiros, quatro nunca foram ao cinema. Quando se trata do universo feminino, é mais agravante: um terço (ou 1,9 milhões) das brasileiras nunca foram ao cinema. “Cinema de Arte” Arte” – Filmes que destoam do padrão comercial, com narrativas nem sempre lineares, “intelectualizados”. Isto pode interferir na compreensão do público, pois se faz necessário compartilhar de uma gama de conhecimento prévio, a que o filme pode fazer referência. Tem-se o exemplo de Superoutro, Superoutro, dirigido por Edgard Navarro, no qual são feitas várias alusões a Castro Alves, poesia gregoriana e Glauber Rocha. “ Incentivo governamental ” – Em 7 de junho de 2006, foi apresentado em Brasília o Projeto de Lei que cria o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que deverá funcionar atrelado ao Fundo Nacional de Cultura (FNC). Almeja-se investir em programas e projetos para estimular o desenvolvimento e a competitividade da indústria audiovisual brasileira. No ano passado, o governo patrocinou cerca de 65% dos filmes nacionais em cartaz. Os sintomas parecem apontar para um quadro clínico complicado. O Cinema Baiano talvez necessite de acompanhamento médico intenso. Oxalá que não seja dependente do Sistema Único de Saúde (SUS). ♦
MONOPÓLIO DAS SALAS DE EXIBIÇÃO Luciana Rebouças com colaboração de Matheus Feitoza
Situado na região do Comércio, em Salvador, em uma rua agitada, mas longe da luxosidade de outros centros empresariais da cidade, está localizado o escritório da maior operadora de salas de exibição do estado: a Orient Filmes. No sétimo andar, encontram-se amplas salas com paredes decoradas por cartazes de filmes recentes, que em breve estrearão, como Piratas do Caribe – O baú da morte, morte, ou que entraram em cartaz na mesma semana, como Poseidon como Poseidon,, um remake hollywoodiano. Em geral, a maioria dos espectadores faz uma grande confusão com as três esferas básicas do cinema: a produção, a distribuição e a exibição. A produção é responsável por fazer o filme, é ela quem lida com atores, roteiristas e todos os funcionários envolvidos com a realização. Já a distribuidora tem o papel de fazer a publicidade publicidade do filme, repassar as cópias e negociar com as salas de projeção. E, no final do percurso, se tem as salas de exibição. Estas são administradas por uma determinada empresa, que cuida do funcionamento em geral, da programação e da venda de ingressos. É neste papel que se encontra atualmente a Orient Filmes, na coordenação total de 26 salas de cinema em Salvador e em Feira de Santana: Shopping Barra (2), Center Lapa (2), Multiplex Iguatemi (12), Cine Ponto Alto (2), Orientplace Itaigara (1), Iguatemi de Feira (4), Cine Tupy (1) e o Vilas Boullevard (2). Na contramão da regra, estão as salas da UCI, no complexo de cinemas do Aeroclube, e as Salas de Arte, sendo, atualmente, quatro em funcionamento (Rio Vermelho, Vitória, Contorno e Pelourinho). O presidente desta mega estrutura é Aquiles Dante Costa Mônaco, baiano, que começa no ramo cinematográfico muito cedo, sendo até mesmo necessária sua emancipação para fundar a Orient. A empresa foi fundada em julho de 1979, e passou seus cinco primeiros anos como distribuidora de películas 16 e 35 mm, já sendo líder na distribuição da bitola de 16 mm. A sorte parecia estar ao lado de Aquiles e, de 1984 a 1990, foram abertas cerca de 50 salas de cinema, em quinze cidades da Bahia, o que foi mais um fator para a empresa dominar completamente o mercado cinematográfico. A compra do Cine Jandaia, na Baixa do Sapateiro, em 1984, marca o início da história da empresa como operadora de cinemas. É deste modo que se inicia todo o monopólio que a Orient possui até os dias atuais. Hoje, seu maior motivo de orgulho é o Multiplex Iguatemi, que alcançou a quarta colocação em número de espectadores no ranking nacional ranking nacional neste último ano. Em 2002, recebeu 2.800.000 espectadores, e em 2003 bateu mais um recorde, com 3.200.000 freqüentadores. Este sistema de cinemas teve início em Bruxelas, nos anos 90, e prima pela concentração de entretenimento em um único local. Geralmente, são shopping centers, com grandes praças de alimentação, que atraem muitas pessoas diariamente e têm como estratégia principal oferecer muitas opções de filmes para os consumidores. Alguma semelhança com o Shopping Iguatemi, que possui um fluxo de 120.000 pessoas por dia? Pois bem, parece que o Multiplex é realmente um excelente negócio. Mas o negócio que parece ter apenas pontos positivos tem também os seus problemas. Dentre os 27 anos de atuação da Orient, Iracema Volta, a gerente de marketing, ressalta uma crise pela qual o cinema vem passando, proporcionada pela
qualidade dos novos aparelhos de DVD; pela pirataria, principal ponto que está afastando o público das salas; e pela rapidez da chegada dos filmes nas locadoras. Em contraposição, ela observa a expansão da quantidade de pessoas que vão ao cinema, atingindo maiores camadas da população, ou seja, uma massificação do ir ao cinema, por mais que não se faça deste programa um hábito constante. A questão que se coloca, porém, é a seguinte: o que os baianos estão assistindo nestes cinemas? Seus próprios filmes? Definitivamente, não. A Orient, segundo Iracema, tem o maior interesse em incentivar o cinema baiano, mas esbarra em dificuldades que antecedem a boa vontade da corporação. “Na verdade, o problema é com distribuição mesmo. Tem muitos filmes baianos que não conseguem distribuidoras para representá-los e ficam como produções independentes, que vão muitas vezes para uma sala de arte. A gente exibe filmes de arte no Multiplex. Às vezes, fica uma semana só, porque precisa de público para sustentar”, diz Iracema, já deixando claro um motivo secundário para as poucas exibições das produções do estado nas salas. Não é nenhuma novidade que os filmes precisam se sustentar, e os filmes baianos, ao que parece, não se sustentam, pois não têm público, como possui um longa norte-americano. Iracema corrobora a preocupação da Orient com o cinema baiano relatando os cuidados que tiveram com o filme Cidade Baixa, Baixa, de Sérgio Machado. “A gente aposta, tanto é que o Cidade Baixa entrou com uma semana de antecedência aqui em Salvador. Antes de o Brasil inteiro ver, Salvador já estava exibindo. A gente apostou, apoiou o Cidade Baixa, Baixa, fez cabine de imprensa. Nós ajudamos a distribuidora a fazer a publicidade dele aqui em Salvador”, afirma Iracema. Deste modo, sem perceber, ela retoma ao velho questionamento sobre um filme ser produzido no Rio de Janeiro, como é o caso de Cidade Baixa, Baixa, e ser considerado baiano por ter sido rodado na Bahia e contar com atores e diretor baianos (mas que aualmente moram no Rio de Janeiro).
PONTO ALTO – Infelizmente, não são só estes problemas de exibição que o cinema baiano enfrenta. Há interferências negativas relacionadas a questões mais gerais. Nos dias de hoje, se observa também o constante fechamento de salas menores, que costumam levar uma camada mais pobre ao cinema. Apesar desta análise ser menos específica em relação a filmes propriamente baianos, esta realidade é insustentável, pois está minando a possibilidade dos soteropolitanos de irem a um cinema mais acessível. No princípio de junho, os Art I e Art III, da agora extinta operadora de salas Art Filmes, fecharam as portas depois de 30 anos de funcionamento no Shopping Iguatemi. Na contramão desta perspectiva, encontra-se um outro cinema, distante do centro, mas ainda aberto: Cine Ponto Alto, também comandado pela Orient Filmes. O Cine Ponto Alto está situado na avenida São Rafael, no Pau da Lima. Longe do centro e das modernas salas de exibição (com sons digitalizados, super arcondicionados e da badalação teen), teen), estas duas pequenas salas, com 112 lugares cada uma, formam um típico cinema de bairro. Normalmente, ele recebe um público variado, mas tem como seus maiores freqüentadores as crianças, os estudantes e os moradores das imediações. Independente da idade, ou do dia da semana, o preço do ingresso está fixado em quatro reais, com direito a um saquinho de pipoca. Fator importante na escolha, o valor do Ponto Alto é um atrativo para as famílias que avaliam as outras opções como muito caras. Segundo Denise Santos, moradora do bairro de Itinga, só quem gosta muito de
cinema poderia levar seus filhos para estas salas tão despendiosas. Por indicação de um colega de trabalho, foi conhecer o Ponto Alto e gostou da falta de filas e da localização do Cine, bem perto de sua casa. “A maioria dos outros shoppings é muito cheio. Para você conseguir entrar no cinema, tem que pegar uma fila imensa, além de pagar caro”, diz Denise. Apesar de pagar mais barato, pessoas como Denise, ao irem ao Ponto Alto, acabam assistindo a filmes que já estrearam nas grandes salas há duas ou mais semanas. No entanto, este não é um motivo tão forte para fazer com que o público abandone o Cine. Segundo Cleusa Oliveira, gerente do Ponto Alto, não há reclamações e as pessoas costumam esperar até que uma cópia seja disponibilizada pela Orient Filmes. “O número de cópias é limitado, aí eles dão preferência a colocar no Multiplex, Barra, Center Lapa, para, por último, chegar aqui. Eles sabem que o público daqui é um público que espera”, justifica Cleusa. Na tentativa de trazer pessoas para as sessões do meio da semana, que costumam ser vazias, o Ponto Alto iniciou um projeto que visa aproximar o cinema das escolas. Distribuindo cortesias aos professores, o Cine constrói uma ponte entre as crianças e o Ponto Alto, que quase sempre possui em uma das salas um filme infantil. Ainda segundo Cleusa, estes colégios particulares costumam procurá-los, pois, nos seria inviável levar, levar, aos outros cinemas, um número tão grande de crianças. Recentemente, Recentemente, na véspera do Dia das Mães, o Centro Educacional Mundo Infantil promoveu um encontro festivo no Ponto Alto, no qual mães e filhos participaram de uma proposta mais cultural. Em contraposição aos filmes infantis, os chamados filmes de arte, que algumas poucas vezes chegam no Ponto Alto, não atraem praticamente ninguém. Não passam de uma semana em cartaz e trazem em média 150 pessoas durante toda a sua estadia na sala. Exemplos recentes foram os longas Hotel Ruanda e Capote. Capote. Na via inversa, estão blockbusters como A como A Era do Gelo e Madagascar . Estes filmes já tinham todas as suas sessões lotadas às três da tarde de domingo, e ainda tinham pessoas que pegavam cadeiras extras, ultrapassando a lotação do cinema. Em média, são 850 espectadores no final de semana e de 150 a 200 por dia de segunda a sexta. Infelizmente, Infelizmente, estes cinemas de bairro estão perdendo espaço com a expansão do formato multiplex. Estas salas modernas investem em extremo conforto, em um cardápio variado de longas e em muita pipoca. São sinônimos de divertimento, divertimento, mas não se preocupam em acolher todo o público, sendo naturalmente excludentes. O preço elevado não possibilita a Denise sair de Itinga para ir ao Iguatemi. Ela conta, preocupada, que teme a provável extinção destas pequenas salas. “Para mim tanto faz cinema pequeno ou grande. Agora, se botar um Multiplex, vai botar um preço igual aos outros. E aí já vai ficar difícil!”, diz. ♦
QUARTO BAIANO - CINEMA BAIANO NAS TELAS Deijeane Nascimento
Abrem-se as portas da Sala Walter da Silveira. Apagam-se as luzes e, como toda quarta-feira da semana, é apresentada ao público uma produção cinematográfica baiana. As Quartas Baianas, projeto organizado pela Dimas, junto à Associação Baiana de Cinema e Vídeo (ABCV), surgiu em 2004. O evento é nada menos que uma mostra de filmes que, ao contrário das salas convencionais e comercias, valoriza e exibe, exclusivamente, filmes baianos. A produção de filmes na Bahia não é vasta por diversos motivos. Os principais são: falta de incentivo cultural, recursos financeiros e, dentre estes, pode-se citar a desvalorização do cinema local pelos espectadores, que ocupam intensamente as salas de circuito comercial, dando bilheteria, assim, às grandes produções hollywoodianas. hollywoodianas. É nesse contexto turbulento que são produzidos grandes filmes de raízes baianas. Estes não conseguem espaço, porém, para serem exibidos nas salas comerciais, certamente por não darem, em sua maioria, o retorno financeiro que elas esperam. Justamente por tal motivo, surgiram as Quartas Baianas. Segundo seu organizador, Lúcio Mendes, o objetivo principal do projeto é dar visibilidade às “produções da casa, já que quem produz quer exibir”. Para o cineasta Roque Araújo, esse é um problema nacional, já que as salas de exibição do circuito comercial pertencem a grupos multinacionais que detém o monopólio e decidem o que ou quem irá apresentar suas produções. A partir desse projeto, a produção de cinema baiano ganhou um espaço fixo para se tornar visível. Para Roque, o projeto é interessante, porém, ainda é pouco: “Para tirar os filmes que temos da prateleira, seria necessária a criação de salas de exibição nacionais e em locais que possuam infra-estrutura. Estacionamento, por exemplo, é um problema para a Walter. Não há local para estacionar aqui”. O público do evento é variado, mas reduzido. A sala onde acontece o evento possui 200 poltronas, porém, durante as exibições, são ocupadas pouco mais de 30 lugares. Lúcio afirma que, apesar de pequena, essa freqüência é constante. São cineastas, cinéfilos, estudantes e curiosos da sétima arte, que variam de acordo com o realizador do filme que está sendo exibido. Caso esse seja um grande mobilizador, o evento pode contar com um público maior. O projeto acontece há pouco mais de dois anos e exibiu mostras diversas, nas quais foram abordados todos os momentos do cinema baiano, com filmes de Glauber Rocha, Roberto Pires, José Umberto, Joel Almeida, José Araripe Jr, Póla Ribeiro, Roque Araújo e outros. As sessões são todas as quarta-feira, às 20h, na Walter Walter da Silveira, localizada no Centro da Cidade, no bairro dos Barris. ♦ *** Neste mês de Julho, já está agendado para o dia 05/07 a seguinte programação:
Viva o dois de Julho, Julho , de Tuna Espinheira
O Corneteiro Lopes, Lopes , de Lázaros Faria
Para quem quer ver cinema baiano não pode deixar de acompanhar esse evento.
UM FESTIVAL PARA O BAIANO SE VER Rebeca Bastos
Para quem está habituado a ler revistas, assistir à tevê, ir ao cinema e costuma prestar atenção em anúncios publicitários, não é difícil perceber a baixa representatividade da população negra nos veículos de comunicação brasileiros. Este déficit histórico – que também ocorre no cinema – vem sendo discutido desde 1999 pelo Festival de Cinema Pan-Africano, que já se prepara, em 2006, para sua sexta edição em diversos espaços de Salvador. Em uma terra que muito consome, mas pouco conhece do seu próprio cinema, um festival como o Pan Africano vem para mostrar o que a Bahia, o Brasil e a África são capazes de fazer no cinema. O festival de cinema é fruto de uma conversa entre Fátima Fróes, produtora cultural e diretora do festival, e Póla Ribeiro, cineasta baiano, sobre a falta de divulgação e exibição do cinema com temática africana em Salvador. Numa cidade de grande maioria negra, não poderia ser mais pertinente. Decididos a transformar o projeto em realidade, Fátima e Póla conseguem encaixar o festival dentro da Programação do Mercado Cultural, organizado pela Casa Via Magia. O festival conta com duas mostras, sendo uma delas competitiva. Os filmes selecionados disputam o Prêmio Milton Santos, no valor de dois mil reais (a primeira vez que o evento ofereceu premiação em dinheiro foi na V edição). Segundo os organizadores, a África é “desconhecidíssima” e, através dos filmes, percorre-se a história daquele continente. Os filmes são produzidos por realizadores que se prestam ao esforço de evidenciar o que a diretora do festival chama de "cinema negro brasileiro". A produção produção africana conta com cineastas como o senegalês Boubacar Boris Diop, que fala sobre os “talibés”, as crianças de rua africanas, e também conta com filmes,, do já conhecido francês Jean Rouche. filmes O festival prestigia a produção local, que se faz presente tanto na mostra competitiva, quanto na não-competitiva. Os filmes, em sua maioria, giram em torno da temática negra, mas a mostra é aberta para outros temas e produções do País. Pelo festival, já passaram filmes de veteranos do cinema baiano como Póla Ribeiro ( A ( A Lenda do Pai Inácio), Inácio), José Araripe (Mr ( Mr.. Abrakadabra Abra kadabra e Rádio Gogó), Gogó), Fernando Bélens ( Anis ( Anis e Pixaim) Pixaim) e Geraldo Sarno ( Iaô ( Iaô)). Também não faltam novos realizadores, como Lazáro Farias Farias ( A A Cidade das Mulheres), Mulheres), Sofia Federico (Caçadores (Caçadores de Sacis) Sacis) e Edyala Yglesias ( No No Coração de Shirley). Shirley ). Para Sofia Federico, atual diretora da Associação Baiana de Cinema e Vídeo (ABCV), o festival é importante porque traz à tona questões como a diáspora africana e a situação do negro na sociedade brasileira. Além disso, o evento leva cinema para áreas ditas “marginais” da cidade e provoca, mais ainda, no público o sentimento de inclusão. Seu filme foi sucesso de público na V edição do festival e ficou com o segundo lugar da mostra competitiva, atrás apenas de Narciso Rap, Rap, do paulista Jeferson De. Dos filmes selecionados para a mostra competitiva, competitiva, apenas um levará o prêmio. O vencedor é escolhido através de júri popular formado pelo público em geral e por estudantes de escolas públicas, com idade a partir dos 12 anos, além de universitários. Dessa forma, o festival pretende formar platéia e estimular seu potencial crítico.
Para a próxima edição do festival, que deve ocorrer de 16 a 22 de novembro, Fátima já planeja oficina de atores e iluminação para a pele negra. Deve haver também performances de VJs e de grupos de hip-hop do cenário local. Uma das grandes atrações do próximo festival pode ser o relançamento de Samba Riachão, Riachão, documentário premiadíssimo de Jorge Alfredo e que ainda foi pouco visto na Bahia. O esforço do evento serve para divulgar o cinema da diáspora africana entre as comunidades suburbanas, suburbanas, estimular a formação de platéia e realizadores negros, além de expor uma imagem diferente dos afrodescendentes da que costuma aparecer na mídia. Além das mostras cinematográficas, o festival também oferece oficinas de formação nas áreas de fotografia básica, grafite e formatação de projetos audiovisuais, que compõem o projeto Escola Popular de Imagem. A iniciativa das oficinas visa dar acesso à linguagem audiovisual e estimular a cidadania participativa entre os jovens integrantes. Inserido no contexto de uma cidade com as características de Salvador, o evento é uma fonte de inspiração para as necessárias mudanças de todo sistema audiovisual e um bálsamo para alma de sua população que está acostumada a se ver apenas nas piores situações.
CANNES É AQUI, CANNES NÃO É AQUI Nina Neves “O cinema baiano está de volta a Cannes” – foi a frase estampada em grandes letras amarelo-vivo por toda Salvador em 2005. Os outdoors que se encarregaram de espalhar curiosidade e, quem sabe, esperança de algo novo na cinematografia local, explicaram também que se tratava da propaganda do filme recém-produzido Cidade Baixa. Baixa. Roteirizado e dirigido pelo baiano Sérgio Machado, o filme teve cenário e atores também baianos, mas o financiamento foi do Governo Federal. Ao se passear pelas ruas da cidade baixa, de carona na grua de filmagem, a publicidade – que é um tantinho exagerada e escandalosa, aliás, como toda publicidade – até que ganha sentido e convence. Muitos espectadores pensam com alívio, na intimidade da sala escura, “É, o cinema baiano voltou...”, e terminam de assistir ao filme satisfeitos e orgulhosos da terrinha. Mas nas colunas e sites especializados em cinema, os créditos sobem, a luz é acesa e a conclusão não é a mesma. Muitos críticos levantam a discussão de Cidade Baixa ser ou não cinema baiano. Segundo alguns, o que caracteriza genuinamente o cinema de um lugar é ele contar com investimento local e ser produzido, do começo ao fim, no estado, além de a fonte de inspiração temática ser também regional. Cidade Baixa tem quase todos os requisitos, mas a produtora é carioca, e o recurso nacional, conseguido através do Concurso de Apoio à Produção, Finalização e Desenvolvimento de Filmes de Longa Metragem promovido pela Agência Nacional de Cinema (Ancine). Seguindo esta linha de pensamento, então, o filme em questão não faria parte do repertório baiano. Mas não é radical “desbaianizar” uma produção cinematográfica que possui tanta gente da casa? Se o acarajé, o vatapá, o caruru e a pimenta foram feitos aqui e depois pagos e montados em um perfeito banquete de comida baiana no Rio de Janeiro, ele deixa de ser baiano? É verdade que os dois atores principais e o diretor não vivem mais aqui, mas os filhos pródigos voltaram à casa e possibilitaram que se fizesse algo sobre a cidade natal. O correto seria esperar que algum realizador baiano, que tivesse um projeto baiano, conseguisse um dinheiro baiano para então a Bahia voltar às telonas? Algo em que pensar, caro leitor. Para o videoasta Daniel Lisboa, essa discussão quanto à nomeação estatal de um filme é grande besteira e perda de tempo. Ele acha que todos enfrentam as mesmas dificuldades durante o processo de desenvolvimento de uma produção e que deveriam ser classificados apenas como cinema brasileiro. O gasto de fôlego e energia pensante seria melhor empregado na busca de uma solução para a dificuldade de se conseguir apoios financeiros para a produção cinematográfica. cinematográfica. Cinematográfica e/ou videográfica. Este detalhe de denominação, que não é tão pequeno assim, é, inclusive, outra questão levantada por críticos, realizadores e espectadores de cinema e, do que se chama, de audiovisual.
PELÍCULA VS. IMAGEM DIGITAL – Produto audiovisual, experiência videográfica, ensaio de imagem e som são alguns dos nomes que se dá ao que não é chamado de cinema. Em tese, a diferença é principalmente o uso de fitas digitais e analógicas no lugar de película, mas para o crítico André Setaro, ela se estende a uma questão da cultura atual. Segundo ele, as idéias têm sido lançadas em vídeo sem lapidação. “A ânsia expressiva é tanta que o realizador não tem paciência para a elaboração de um roteiro, e quer logo a praxis, desejando imediatamente pegar na câmera e sair filmando, o que ocasiona, muitas vezes, certos vexames expressivos, resultando na emergência de vídeos que estariam melhor colocados numa lixeira virtual”, costuma dizer. Mas, como depois da enxurrada vem a terra fértil, ele reconhece também que esta é uma oportunidade para que boas idéias surjam, como aconteceu com o vencedor do último Festival Imagem em 5 Minutos, promovido pela Dimas, O Fim do Homem Cordial Cordial , de Daniel Lisboa. A polêmica do vídeo, que já foi tantas e tantas vezes discutida, sai agora do seu conteúdo anti-carlista para entrar na discussão do ser cinema ou não, o que vem sido feito pelos irmãos Daniel e Diego Lisboa, Kau Rocha, Carlos Pronzato, entre outros. Para uma geração de críticos que sempre foi apaixonada pela aura especial que paira (pairava?) em torno do cinema, é mesmo difícil compreender que não há tanta diferença assim em relação a produção videográfica. Além da distinção de suporte físico, é certo que o vídeo não tem uma tradição linear ainda como a do cinema, mas os dois se igualam em termos de função para o realizador e para o espectador: são recursos audiovisuais de comunicação. E assim, como grande parte do cinema atual, os vídeos dependem de Editais para sobreviver, o que foi duramente criticado por Daniel Lisboa (ler mais na entrevista com o videoasta). Kau Rocha, diretor do vídeo Choque, Choque, declarou que “o audiovisual genericamente inclui tudo, desde fotografias seqüenciadas, filmes, vídeos, videoclipes à videoarte. Acho que a perspectiva de quem produz imagem hoje não é se fechar, mas se abrir e ser híbrido, não ter medo de experimentar. Depois da obra feita, os intelectuais que dêem nomes, categorias”. O mesmo desprendimento é constatado por Lisboa. Para ele, o vídeo dá uma grande liberdade de experimentação; há espaço suficiente para que se possa escapar da estética hollywoodiana, do roteiro linear, da montagem usual. É atribuído ao termo “cinema” uma grande carga de valor cultural. Talvez o medo de perdê-la faz com que se conserve tal denominação. Por outro lado, ela é gasta levianamente em tantas produções que não merecem levar o nome. Pode-se, então, considerar um erro não definir as produções audiovisuais como cinema apenas para não exaltá-las demais. Kau Rocha argumenta sobre não ser fundamental a denominação, mas sim a realidade criativa do momento. “Se eu fizer um transfer e colocar Choque colocar Choque em película, a partir daí ele é cinema. E o fato de Choque já ter sido visto por milhares de pessoas não faz dele um fato social muito mais importante do que se ele fosse película e tivesse dentro da gaveta mofando”, afirma. O que se há de entender é que, independentemente do suporte material ou denominação, esses vídeos são uma realidade e começam a fazer história. Os já citados O Fim do Homem Cordial Cordial ee Choque formam um triângulo eqüilátero com A com A Revolta do Buzú em termos de impacto social. De peça em peça, a retomada do cinema baiano se
revela um grande mosaico em construção, do qual as partes mais coloridas se formam do novo.♦
“A ALTERNATIV ALTERNATIVA A É O CINEMA DE MUTIRÃO, O CINEMA CI NEMA DE ATITUDE” Rafaela Chaves com colaboração de Edinaldo Júnior
Uma câmera digital na mão e uma boa idéia na cabeça. Assim seria a famosa frase de Glauber se falasse do atual panorama baiano. É também essa a perspectiva atual para os jovens realizadores baianos, enuviados por idéias e sedentos por recursos que não existem. Daniel Lisboa é um deles e, hoje, o de maior destaque no cenário regional e brasileiro. Após despontar no Festival de 5 minutos gerando polêmica sob as vistas de quem provoca com seu O Fim do Homem Cordial , e ganhar alguns festivais de importância nacional, ele se vê envolto a projetos que não pode concretizar. Mas é se arriscando, colocando a cara pra bater e criando polêmica que Lisboa segue fazendo escola e retomando, ou mesmo iniciando uma nova versão do audiovisual baiano. Atual e atuante, criativo e inquieto. Produzindo o que chama cinema de terceiro mundo, terrorismo audiovisual ou produção underground, ele movimenta um estado rico em idéias, mas que as vende para que possam virar obras. Refém de editais públicos de patrocínio e remunerações em festivais nacionais, é esse o quadro do cinema baiano, que se refugia na resistência de pequenas produtoras e vídeos de baixo custo.
RAFAELA CHAVES – Há uma discussão sobre uma possível retomada do cinema baiano. Algumas pessoas defendem que isso aconteceu no fim dos anos 90 com o Três Histórias da Bahia, outras somente com o recente Cidade Baixa, quando isso veio à tona. Você acha que está acontecendo mesmo essa retomada? DANIEL LISBOA – O que existe de fato é que os realizadores baianos, principalmente os da geração do superoito, Edgar Navarro, [José] Araripe, Fernando Bélens, Póla Ribeiro, conseguiram, através de editais, realizar seus projetos antigos de longametragem. Então, realmente, esse momento agora aqui na Bahia dá essa impressão de que está existindo uma retomada, mas, na verdade, o que está existindo são bons resultados. O que existe hoje para se realizar filmes de orçamento, filmes que você precise de uma grana uma grana para viabilizá-los, é um sistema de editais. Se você não se der bem nesse sistema de editais, quase um vestibular, você não vai fazer seus filmes, porque fazer filme é caro. Para mim, muito mais que uma retomada, de um movimento em que pessoas dizem “não, vamos voltar a fazer cinema”, é muito mais um lance de resultados que foram obtidos. EDINALDO JÚNIOR – Então – Então seria uma espécie de boom? DL – É, um boom de resultados. Póla [Ribeiro] ganhou edital de baixo orçamento do BNDES, Edgar Navarro, Tuna Espinheira e Fernando Bélens ganharam edital do Governo do Estado. Estas pessoas que estão fazendo cinema agora são impulsionadas por conquistas dos editais. O edital da Bahia, por exemplo, esse ano não teve. Aí você fica assim: “bom, se não teve esse ano, será que vai ter algum filme para rodar ano que vêm?”. Na verdade, o que eu acho importante ser dito é a compreensão desse sistema de editais que existe. Hoje em dia, ser cineasta é você saber fazer projeto. Se você faz um bom projeto, você tem uma chance imensa de ganhar um edital. Então, a coisa começa a se inverter. Para nós, que estamos começando, às vezes dá desânimo mesmo...
RC – Mas não é algo parecido com a questão dos festivais patrocinados? DL – Exatamente. Aí, surge a questão dos festivais. É uma outra peneira que seu filme tem que passar. Aqui em Salvador tem dois festivais: o Festival de 5 Minutos, do DIMAS, e a Jornada de Cinema da Bahia, que é tanto para longa quanto para curtas. Mas a verdade é essa, você só faz seu filme, se você ganhar um edital. E eu não sei até que ponto eles são legítimos, porque existe a questão da influência, do “lobby”. É muito obscura essa questão dos editais para quem está de fora. Por exemplo, o do Governo do Estado geralmente tem dois representantes do governo como jurados e um ou outro da classe do Audiovisual. Eles colocam de uma forma que dá para barrar de certa forma. É estranho você depender de outras pessoas, que vão lhe dar a possibilidade de realizar suas obras, diferente da música que você ali, escreveu sua música, depois tá tocando. Você concretizar uma obra de orçamento, aqui no Brasil, é complicado. Ou você vai por essa via do edital, que é uma loteria, ou então vai para a via do underground, do alternativo, dos filmes que dão para fazer em casa e que você consegue bons resultados com esses filmes... EJ – E hoje em dia é até mais fácil fazê-los... DL – Os meus mesmo nunca receberam um edital. Nunca recebi dinheiro para fazer meus trabalhos. Eu mesmo os faço e depois luto para conseguir exibir, conseguir colocar em festival e, às vezes, rola um resultado legal. Eu tô meio em crise com essa coisa do filme só valer a pena se obter bons resultados em festivais. Eu tô em processo de crise com o sistema audiovisual, com essa coisa de fazer o filme se ganhar edital ou determinados festivais. RC – Mas você ganhou notoriedade a partir do Festival de 5 Minutos.. DL – Mas é assim, você só ganha notoriedade com festival. Primeiro que o filme tem que pelo menos entrar nos festivais, porque, se não, ele não vai ser nem visto. Aí fica essa coisa louca dos realizadores atrás dos festivais. O que acaba acontecendo é que o realizador acaba tendo que pagar para seus filmes serem exibidos. Você tem que pagar o Sedex, a mídia, material de divulgação. Você acaba tendo um gasto grande com festivais, e no final de tudo, você fez seu filme ou através dos editais, ou através dos seus esforços pessoais. Os festivais têm uma política que agora eu tô colocando muito em questão que é de não remunerar o realizador. Tem festivais que tem bilheteria, e esse dinheiro não vem para o realizador. Uma banda que é contratada para tocar no Parque de Exposições, ela é paga. Se seu filme é chamado para um festival, você não ganha nada. Pelo contrário, você paga para ele ir. O realizador independente está sendo estrangulado por esse sistema de dependência dos festivais. EJ – Sobre a idéia de uma retomada, algumas pessoas acreditam que é uma ferramenta para valorizar o cinema baiano, chamar mais atenção para essa questão.. DL – Pois é! Tem uma galera aí doida para chamar atenção pro cinema baiano... RC – Foi esse o marketing do ‘Cidade Baixa’.. Mas aí já entra em uma polêmica de considerar o filme como cinema baiano ou não, pelo incentivo ser nacional. A
locação se passa na Bahia, o diretor é baiano, os atores são baianos, mas os recursos não são. Por isso, muita gente não considera cinema baiano. O que você acha disso? DL – Acho isso uma besteira. Acho que tem outras coisas para se discutir do que se o filme é baiano ou carioca. O filme é um filme, é cinema brasileiro. Cinema baiano, cinema do Tocantins, do Acre, isso não existe! É cinema brasileiro...Todo mundo tem problemas do mesmo jeito para conseguir fazer, não tem diferença das dificuldades de se fazer cinema na Bahia de se fazer cinema em São Paulo. Todos sofrem com esse sistema de editais. Existem cinco editais: o edital da Petrobrás, que é aberto para o Brasil todo, tem o do BNDES, o do Ministério da Cultura [MinC] e os editais regionais, que aqui na Bahia é pelo Governo do Estado. Seria anual, mas não está sendo, é um edital flutuante. Nos da Petrobrás, MinC, BNDES participam pessoas do Brasil inteiro! É complicado... complicado... EJ – Caso não houvesse editais, qual seria a solução para o cinema baiano? DL – Se não tiver edital, ia ficar tudo parado como tava. Edgar Navarro ficou um período enorme sem fazer nada. O projeto dele tava engavetado, porque não estava ganhando nos editais nacionais e não existia um edital regional. O edital regional veio agora. Se não tem edital, o filme fica parado. E qual a alternativa? O cinema de mutirão, cinema da atitude, de você pegar seu roteiro, juntar seus amigos e sair fazendo sem dinheiro. Aí entra outra questão importante, que é o público. Você ganha um edital, com dinheiro para fazer seu filme, um filme maravilhoso. E ai? Vai fazer o que com um longa-metragem que custou 2 milhões de reais? Não tem onde exibir. E quando você consegue local para exibir, o público não vai assistir. O público brasileiro não tem interesse. EJ – Nesse ponto, os filmes se tornam muito dependentes da bilheteria... DL – É... Aí o filme fica uma semana em cartaz. Por exemplo, se você colocar ‘Esses Moços’ de Araripe no cinema, a galera não vai, a bilheteria vai ser muito fraca. O público não tem interesse em assistir um filme que não está nos outdoors, que não está sendo divulgado nas televisões, televisões, nas revistas, r evistas, que não tem uma mídia. O exemplo disso é o ‘Vermelho da Madrugada’ de Ruy Guerra. Um filme que todo mundo esperou muito e que ficou três semanas em cartaz, 1800 pessoas assistiram. Uma sessão do CinePE, contou com 3000 pessoas em uma sessão. Quer dizer, mais pessoas assistiram O Fim do Homem Cordial, quando eu tava lá no CinePE, do que um longa-metragem de Ruy Guerra. O problema vai de você fazer, viabilizar o filme, até depois de viabilizar uma distribuição e depois conseguir dar público ou não. Isso vai ser posto em prova agora com o filme de Edgar Navarro, que vai entrar em cartaz em setembro, acho. É um filme que ganhou sete prêmios em Brasília, que já chega com um respaldo. Será que vai dar público? Acho que as pessoas querem ver outro tipo de filme. Não é nem culpa delas, é um processo de anos de colonização audiovisual, de gostar de um certo formato de filmes, o formato americano, hollywoodiano. RC – Essa visibilidade maior do vídeo com o seu filme, o de Carlos Rocha, que começaram a circular mais.. você acha que eles chamaram mais atenção para o cinema baiano?
DL – Eu acho. Acho que o vídeo baiano, sim, está passando pelo seu momento. Um momento em que nunca teve antes, tanto de produção quanto de resultado. Hoje, no Brasil, tem dois ou três festivais por mês... Festival virou indústria, a pessoa que faz o festival ganha muito dinheiro. Ela consegue patrocínio da Petrobrás, do MinC...No final, ela consegue uns 2 milhões e fica com uma boa parte para ele. Se você for acompanhar esses festivais, sempre têm um número de trabalhos baianos de vídeo, no mínimo três ou quatro obras realizadas e era uma coisa que não acontecia. O Fim do Homem Cordial foi muito esse boom de correr o circuito todo nacionalmente e veio trazendo uma galera atrás e não tem como parar. O vídeo é algo mais tranqüilo de se fazer sem precisar do edital. São projetos viáveis, idéias simples que você monta em sua casa mesmo. Isso nunca vai parar, uma coisa que começou com o advento digital. A Cavalo do Cão [sua produtora] vem fazendo isso, por enquanto, uma coisa bem simples mesmo. EJ – Você se acha incentivador dessa explosão do vídeo com O Fim do Homem Cordial? DL – Com certeza, mas não com a consciência disso. Eu só fui entender o universo do audiovisual com o FHC. Foi com ele que eu freqüentei os circuitos dos festivais, passei a viajar, a ver o funcionamento das coisas. O que vem depois é meio natural, não foi nada muito planejado não. RC – Com essa facilidade do vídeo, a película vai perdendo, com o tempo, o espaço e o vídeo digital vai superar a película? DL – Eu acho que é uma tendência mesmo. Quando o vídeo chegar num nível em que as pessoas que gostam de trabalhar com película acharem que eles se equipararam, não tem mais porque trabalhar com película, que é bem mais complicado. EJ – André Setaro num texto que cita bastante o seu vídeo fala que existe uma diferença de apreciação do vídeo e da película. Você concorda? DL – Aquilo que Setaro fala é sobre linguagem. Porque existe a liguagem cinematográfica tradicional que é a narrativa no formato hollywoodiano, que a gente tá acostumado a ver. O vídeo te dá uma liberdade de experimentação absurda. Por exemplo, alguém que vá ver o Fim do Homem Cordial e tiver catequizada com a realidade hollywoodiana não vai gostar. Se você não tiver olhos pra apreciar a linguagem videográfica, você vai me bater se vier com essa visão do hollywoodiano. O meu novo filme, o Frequência Hanói incomoda muito se você não tá disposto a esse tipo de linguagem. EJ – Muitas pessoas inclusive criticam essa manipulação de imagens porque geralmente não tão acostumadas com esse tipo de filme. DL – É, sim, se você não está acostumado com uma ausência de narrativa ou uma narrativa desconstruída, experimentação com imagens, às vezes um incômodo proposital. Pra você apreciar o vídeo, tem que entender o universo que tá entrando. Pode ter também no vídeo a linguagem tradicional, clássica, linear, com atores, tudo direitinho como manda o script, mas pode também não ter. Hoje pode tudo! O problema
mais sério mesmo é o dinheiro. Tá todo mundo quebrado. Quem optou mesmo por fazer cinema, tá quebrado!
EJ – Você termina não tendo tanto retorno? DL – É, o retorno às vezes nem existe, é mais de fama mesmo. Você termina vendo que o festival quer o seu filme, ele quer premiar o seu filme, só que muito mais pra mérito deles, pra ter um filme polêmico envolvido. Eu tenho nojo tanto do sistema de editais quanto de festivais, mas me vejo refém dos dois. Se você não ganha um festival ou edital, aí vai viver de que? Você pode cair na publicidade, que é a morte pra qualquer cineasta. Se eu já to enojado com esse meio que é da arte, do autor, imagina o meio publicitário ou político! São do que eu tento fugir de toda forma por ideologia, pelas coisas que aprendi e enquanto eu tenho possibilidade de continuar fazendo meu trabalho. A partir do momento que você entra num esquema desses, você não tem tempo mais para suas coisas, você só tem tempo para as coisas dos outros, muitas vezes coisas que você não concorda. Mas tem uma galera que tenta uma resistência, eu, Fábio Rocha, meu irmão [Diego [ Diego Lisboa]. RC – E quais são seus projetos agora? DL – Vários. Tô fazendo agora um documentário, que é um formato que dá pra fazer aos poucos, porque a gente tá tendo problemas com câmera porque tem que pegar emprestado com os outros. Na época da faculdade, a gente pegava lá, agora que me formei, não posso mais pegar. Às vezes a gente consegue com amigos e vai filmar. Vai ter também o festival do minuto agora na TVE, eu fiz um quase um clipe com as cenas que tenho das manifestações em torno de O Fim do Homem Cordial e vou mandar, vou arriscar. Mas a verdade mesmo é que não há liberdade de expressão aqui na Bahia, tem certos temas que são intocáveis, e quando você toca, cria um problema pra você. Com O FHC mesmo, se eu fosse um cara que estivesse sonhando entrar pra publicidade, pra trabalhos políticos ou pra televisão tava ferrado, porque ele fechou todas essas portas. ♦
ESSA TAL DE RETOMADA – PARTE 2 Edinaldo Júnior com colaboração de Luigi Piccolo
Alguém pode apertar o botão PLAY? Porque a cena, aquela mesma da mesa de bar, em que as pessoas queriam mudar de assunto rapidamente, foi congelada. - Oh, seu diretor, diretor, vai começar de onde parou parou mesmo? Sim! Quer dizer, corta! Essa cena dos cinéfilos tentando falar da CPI das Sanguessugas está muito clichê. Todo mundo faz isso, e neste filme, cuja história conta a retomada do cinema baiano, a discussão principal não pode perder seu foco. Refazer a cena! Todo o panorama histórico fez seu trabalho de produção: instalou todo o cenário, preparou cenógrafos e figurinistas, alocou todos os materiais necessários. Mostrou muitos realizadores cujos nomes, antes dela, soariam estranhos nos ouvidos de qualquer cidadão da Bahia e provou, acima de tudo, que o estado já foi considerado local de intensa e borbulhante realização cinematográfica.
ROTEIRISTAS, GÊNIOS BAIANOS – Agora, entram em cena os roteiristas: cada um dos atuais realizadores, especialistas e críticos da sétima arte dividiu opiniões quanto ao foco central: o cinema baiano voltou ou não voltou? Tratando-se do drama que persegue a gravação deste longa, a retomada não é mais do que uma questão secundária. Afirmar a continuação de um caminho que foi interrompido é negar o processo de produção realizado pela história do cinema baiano. O estado não contou com uma linearidade produtiva durante o seu processo de firmação cinematográfica, e as realizações foram acontecendo em seus momentos isolados. Os grandes artistas da terra, com geniais idéias, tiveram que engavetar projetos por não adaptação aos editais, que lhes garantiam investimentos. Edgar Navarro é exemplo dessa dependência. “Se de Superoutro para Eu me lembro, lembro, eu levei uns 17 anos, se eu levar mais 17 anos, eu vou dirigir sentado, sem conseguir mais a mesma energia. Sem parecer pretensioso e já sendo, eu sei que eu tenho um recado pra dar para o mundo e só eu posso dar”. Foi com essa sede de transmitir o seu recado para o mundo que Navarro ganhou sete candangos no Festival de Brasília com Eu me Lembro, Lembro, voltando para sua terra-natal com um respaldo que pode lhe garantir sucesso com a estréia do filme, programado para estrear em setembro próximo. Quem entra em cena ainda é a última equipe de produção. Esta equipe é do tipo chiliquenta: só aparece nos sets de filmagens quando quer, e só trabalha para quem quiser. Assim, ficam atores, roteiristas e produtores à mercê de uma boa ação desta produção temperamental.Ela é conhecida como Edital de fomento à produção audiovisual pelo Governo da Bahia. Sua sazonalidade dos é responsável por uma dependência dependência dos realizadores. realizadores. Navarro e seus colegas cineastas, como Fernando Bélens, José Araripe Jr. e Pola Ribeiro, são grandes personagens da história do cinema baiano, daqueles que tentaram ao máximo se libertar financeiramente, mas não conseguiram. “Eu, Fernando Beléns, Araripe e Pola éramos porras-loucas. Nós fizemos uma empresa chamada Lumbra
Cinematográfica, que não foi pra lugar nenhum, não tinha livro de registro, não tinha nada. Não tinha caixa, não tinha porra nenhuma. Só existia na lombra”. Hoje, a maioria deles está em processo de realização dos seus projetos. Quatro longas conseguiram, recentemente, aprovação em editais e estão em processo de produção: Jardim das Folhas Sagradas, Sagradas, de Pola Ribeiro; Pau Brasil , de Fernando Bélens; Estranhos, Estranhos , de Paulo Alcântara; e Revoada, Revoada, de Zé Umberto. Além disso, três curtas baianos vão ser rodados em 2006 com verba de edital. Escrito o roteiro da questão da retomada, agora está tudo nas mãos do diretor e da sua equipe de atores transformarem toda essa simples discussão em um grande longa que leve os apreciadores a uma reflexão.
ENTRANDO EM CENA – O que fica evidente na confusão que se estabeleceu na produção deste filme sobre a retomada do cinema baiano é que ele não conta com um diretor, e a falta da figura enérgica, que encaminha toda a obra transformou o panorama atual da sétima arte em um reduto de dúvidas. Dúvidas acerca da chegada dessa retomada, já que falta, e sempre faltou, uma linha tênue para esta arte seguir. Dúvidas que giram em torno de filmes como Cidade Baixa serem ou não baianos. E mais: a dúvida quanto a inclusão do audiovisual no panorama dessa retomada. Nesse capítulo da história da produção deste filme, a confusão só permite acreditar que há um bom lugar esperando o cinema baiano. Sim, porque o que mais ficou claro com toda discussão é que sempre existiram grandes gênios do cinema nestas terras, como hoje ainda existem. Ninguém conseguiu guiar o filme da retomada ainda, ninguém conseguiu efetivar este dito momento do cinema baiano. Sem diretor, está sem final, esperando que o sistema de editais perca seu caráter competitivo e seletivo, que novas safras de produtores, roteiristas e atores surjam, aliados aos atuais, e que apareçam leis de incentivos, agindo direta e indiretamente. Assim, irá se cravar um novo marco na cinematografia baiana: a tal da retomada. ♦
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