PONDE, L. F. C. E. S. Em busca de uma Cultura Epistemológica. In: Faustino Teixeira. (Org.). Ciência(s) da(s) Religiões . São Paulo: Paulinas, 2001, v. 1, p. 11-66.
EM BUSCA DE UMA CULTURA EPISTEMOLÓGI EPISTEMOLÓGICA CA
LUIZ FELIPE PONDÉ* A desconfiança com relação às convicções e sua função monológica habitual...
Bakhtine sobre o caráter dialógico da obra de Dostoievski1
[ ...]? Eu não sei, mas ma s temo que a religião não possa ser compreendida senão por ela mesma e que sua estrutura particular e sua diferença característica lhes permanecerá obscura se não pertenceres a alguma religião.2
Praticar epistemologia é antes de tudo ter consciência do drama presente na experiência dos limites de nosso aparelho cognitivo e nas diferentes (e insuficieninsuficie n[11] tes) formas de transmissão dos conteúdos produzidos por este aparelho. É contemplar, como fez Kant com sua filosofia transcendental (voltaremos a Kant posteriormente), a “cela”3 em que vivem o homem e a mulher, enquanto o “mundo em si” permanece opaco, velado sob nossas próprias sombras. Portanto, de certo modo, praticar epistemologia é experimentar, no sentido mais forte do termo, a insegurança, i nsegurança,
* Professor
do programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e membro do Grupo Israelo-alemão de Estudo das Controvérsias em Ciência, Teologia e Filosofia, Pós-doutor em epistemologia na Universität Giessen /University of Tel Aviv (2000). 1 BAKHTINE,
M. La poétique de Dostoievski . Paris, Scuil. 1970.
2 SCHLEIERMACHER,
F. Des Reden uber die religion . 6. ed. Góttingen, Vandenhoeck & Ruprecht,
1957, p. 286. 11 3 O cachor pascaliano pascaliano
(a cela pascaliana), perdido perdi do entre os dois infinitos. infinit os. Sobre esta questão ver Pascal, “Os Pensamentos”. In. col. Os Pensadores, v . Pascal, São Paulo, Editora Abril, 1983.
o limite, o esforço de lidar com essa angústia da cognição. Sem tal consciência, a epistemologia torna-se uma vazia burocracia metodológica. O epistemólogo, ou a pesquisadora que pensa seu método de trabalho, é alguém que “trabalha uma falha”, uma “falta”.4 Não é necessário visitar o mito da Queda para se perceber tal realidade, basta olhar ao redor e contemplar nossa “miséria” cognitiva e noética, realidade absolutamente empírica: quem busca o conhecimento a partir do campo de procedimentos elaborados pela reflexão epistemológica epistemológica (isto é, quem se preopr eo[12] cupa com a grade de critérios que legitima sua condição de agente noético) é um exilado da certeza, seu idioma é o da dolorosa busca das evidências (mal) compartilhadas. Após o surgimento, um tanto recente, do pensamento de Thomas Kuhn 5, e a cascata de consequências que a partir dele se produziu, termos como “crise de paradigmas”, “anomalias” ou “pressão do meio ambiente sobre as teorias ”6 se tornaram bastante ativos entre os praticantes da atividade cientifica e afins. Seguramente existem aqueles que recusam, de modo critico ou acrítico, todo este vocabulário (para)kuhniano, remetendo-o simplesmente a mais um surto epistemológico relativista ou historicista. Não é minha intenção entrar na discussão acerca da validade ou não dos vocabulários, mas sim partir do fato de que parece haver, na minha opinião, um “papel para a História”7 no movimento que tem apresentado as teorias científico-filosóficas a partir do advento da filosofia grega e do judaís-
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Mesmo diante da conhecido argumento que afirma o evidente fato de que “n ão há outro aparelho cognitivo melhor experimentado por nós”, logo não se pode falar em “imperfeição” — já que não haveria um ideal padrão — em nossa cognição, afirmo que a angústia diante das dificuldades que
experimentamos interna e externamente (na transmissão e no estabelecimento de critérios) com relação à atividade cognitiva é um dado suficiente para a legitimidade do que descrevo como “angústia na cognição” em razão da “falta”. 5 Tomamos
o pensamento de Thomas Kuhn antes de tudo como representante de toda uma tradição contextualista — que na realidade data da reflexão reflex ão sofista, tal como veremos abaixo — que nele ganhou um corpo legitimamente legitimament e elaborado em torno do tema da inserção da história históri a na reflexão epistemológica. 6 Leia- se,
“meio ambiente” dos pr ofissionais de epistemologia e ciência.
7 Referência
ao título da introdução da obra clássica de Kuhn, Estrutura das Revoluções Científicas (São Paulo, Perspectiva, 1984).
[13] mo no Ocidente. Na realidade, sou inclinado cada vez mais a aceitar a máxima de que, em se tratando do ser humano, “tudo é história”, ainda que toda essa experiência histórica humana possa se perder sob a categorização de “variável fora de controle ”. Por isso reconheço as dificuldades que a disciplina histórica tem em realizar as demandas de objetividade em epistemologia. Tal fato não desfaz o caráter essencialmente histórico da existência humana, mas simplesmente traz à luz, mais uma vez, o alto grau de impenetrabilidade 8 que existe no chamado “objeto histórico”. Aliás, a consciência da impenetrabilidade do objeto que o competente historiador deveria ter, segundo o medievalista francês George Duby, na minha opinião deveria contagiar todo e qualquer praticante da busca de conhecimento criterioso, ao invés de ingenuamente se deliciar nos delírios de suficiência cognitiva e noética que certas formas de surtos epistemológicos parapositivistas propõem. 9 Por sua vez, tal fato não implica a inexistência de aporias (caminhos que não levam a lugar nenhum) [14] nas abordagens contextualistas em geral 10, principalmente nas suas vertentes mais “radicais” como esta grande gr ande aporia (para)filosófica chamada “pós-modernismo”.
Um outro traço derivado do “paradigma kuhniano” em epistemologia11 é a tendência ao surgimento do fenômeno da “militância holística”, isto é, da busca de autoafirmação de “concepções de mundo” que quase sempre não apresentam quaisquer esforços em dialogar com as mais banais demandas de objetividade em epistemologia, escondendo-se atrás de uma argumentação que muitas vezes não
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Sobre tal “impenetrabilidade” do Objeto histórico, ver, entre outras, as belíssimas páginas de G. Duby, “Le Chevalier, la femme et le prête” In: (Paris, Quarto/Gallimard, 1996). 9 Por
tais surtos refiro apenas formas de prática natural-science-oriented , mas também, e sobretudo, ao que se refere aos estudos humanísticos, aos diversos “sociologismos”, “ economicismos ” ou “behaviorismos eliminacionistas”. 10 Como
no caso dos diversos solipsismos epistemológicos e cognitivos produzidos por argumentações contextualistas e relativistas ingenua ingenuamente mente assertivas. 11
Na realidade, o uso do termo epistemologia “epistemologia” aqui é até abusivo visto que na maioria das vezes, os integrantes mais “combativos” do fenômeno ao qual faço neste instante, parece padecer
de um agudo analfabetismo epistemológico.
passa de uma retórica construída em nome de uma “mística da totalidade”.12 Voltarei a este tema das demandas epistemológicas mais abaixo, mas adiantaria que a compreensão do que está em jogo na relação apontada por Karl Popper entre ciência experimental e prática democrática em política, isto é, visibilidade experimental metodológica e visibilidade política na democracia — compreensão esta que não me parece haver na “militância holística” apressada —, [15] permanece um dado demarcatório fundamental entre quem é “alfabetizado” em ciência experimental moderna e quem permanece sob a absoluta ignorância do que significa conhecimento criterioso após a revolução empiricista moderna. Todavia, tal consciência não dissolve o que me referia acima como o drama dra ma da impenetrabilidade, agora generalizando-a, do mundo, que quando profundamente experimentada, radicaliza a vivência desta impenetrabilidade. Na minha opinião, deve existir um certo ceticismo “de fundo”, antes de tudo de caráter propedêutico, em qualquer atitude epistemológica consistente: penso penso que a prática de uma disciplina epistemológica faz a consciência deslizar suavemente para a consciência da espessura da dúvida cética.13 Este fato, simplesmente, aponta apon ta para o estatuto do que entendo como “drama epistemológico”, definido aqui de modo breve como sendo a condição de miséria cognitiva em que se encontra o ser humano e a busca constante de superá-la. A categoria estritamente epistemológica epistemológica para descrever tal miséria é o que chamamos ceticismo. [16] Um campo específico em epistemologia contemporânea desdobrado a partir das investigações kuhnianas é o estudo conceitual e empírico-histórico das controvérsias, tal como vem sendo desenvolvido por Marcelo Dascal14 — entre outros estudiosos — e seu grupo de pesquisa em controvérsias científicas, teológicas e 12 Não
deveria ser negligenciada a semelhança entre este termo, “totalidade”, muito em voga nas tendências holistas, e a ideia de um “totalitarismo cognitivo”. 13 Uma
certa angústia cética não pode deixar de estar presente na prática de qualquer homem ou mulher que pretenda mergulhar no mundo do conhecimento de modo não ingênuo. 14 Entre
critics ”. In: Science in context outras obras, ver, por exemplo, Dascal. M., “Critique without critics” (Cambridge University Press).
filosóficas no período compreendido entre os anos de 1600 e 1800 na Europa ocidental. Focalizando o que chamaria de “crises” como sendo o eixo central do modo como se dá a construção das teorias em ciência, e a resolução (ou não) destas via apreciação da dialética dos argumentos (a controvérsia em si, no caso de um estudo empírico em particular), penso que seria consistente descrever o seguinte cenário específico: o campo Científico de estudos do fenômeno religioso é um caso “clínico” típico de controvérsia,15 e se tratado como tal poder-se-á, talvez, esclarecer (no sentido de torná-las mais iluminadas) algumas das mais importantes questões epistemológicas (e metodológicas) em questão na nossa prática. Assim sendo, por exemplo, a controvérsia que envolve a oposição entre o singular (religião) e o plural (religiões), como descrição central de nosso ob[17] jeto de pesquisa, revela a controvérsia controvérsia profunda e histórico-filosófica entre essencialismos platonizantes, empiricismos de variados graus de radicalidade e etnocentrismos diversos.16 No pequeno estudo que aqui esboço, pretendo em um primeiro momento percorrer algumas dessas questões no campo mais geral da epistemologia, fora do problema específico dos estudos do fenômeno religioso, e em seguida tentarei levantar algumas hipóteses de trabalho (que espero, sejam úteis aos meus colegas e minhas colegas) mais específicas da nossa área de pesquisa. Evidentemente que não pretendo esgotar estas questões, mas apenas introduzir algumas abordagens que julgo de valor para a criação de uma cultura e uma consciência epistemológica (entendida aqui como maior intimidade com a dúvida e mais lentidão na assunção de certezas) mais sólida em nossa área de atuação. [18]
15 Logo 16 Acho
abaixo e sclarecerei mais de que modo estou usando o termo “controvérsia”.
impossível, no meu modo de ver, separar a prática científica, digamos, de uma pesquisadora do fenómeno religioso, de uma certa concepção de mundo construída na história europeia, mesmo que esta pesquisadora sofra de “pesadelos” noturnos em razão de seu “irresistível” viés europeu no tratamento dos fatos que se dão no mundo em geral.
I Parte Pretendo aqui ensaiar um diálogo entre alguns autores que poderiam ser definidos como clássicos17 (ainda que não todos de modo unânime) para a temática epistemológica (não só em ciências da religião) a fim de que certos eixos de problemáticas essenciais surjam, iluminando alguns possíveis percursos frutíferos para a prática investigativa. É essencial que uma consciência epistemológica do “problema” e da dúvida como os verdadeiros produtores do conhecimento seja
cultivada (e portanto produza-se uma cultura epistemológica da dúvida e da controvérsia) entre profissionais que se definem como investigadores. 18 Penso que, e aqui já enuncio de certa cer ta forma um pressuposto epistemológico, epistemológico, o hábito de lidar com clássicos é fundamental para a formação de uma pesquisadora em humanidades à medida que por meio deste hábito um campo de ferramentas de [19] pensamento (a tool box) vai tomando corpo, criando aquilo que denominaria sua (da pesquisadora e sua área de atuação) grade epistemológica de trabalho ou até mesmo um vocabulário legitimador das suas construções e trocas conceituais. 19 Na conferência realizada em Praga ( Dialogue in the heart of Europe, 1996), foi proposta uma definição para “controvérsias ” em epistemologia, definição esta diretamente ligada aos trabalhos do filósofo Marcelo Dascal. Na opinião dos autores 20 17 Sobre
uma interessante problematização do que ser ia um “clássico” e de seu funda mental valor, ver Calvino, I. Por que ler os clássicos (São Paulo, Cia. das Letras, 1992). Antes de tudo, o valor de um clássico está em que ele pode ser infinitamente interpretado pelo leitor em diferentes épocas, assim como também, ele, o “clássico”, pode interpretar diversas diversas épocas. Objeto literário de infinito valor, ele é em si mesmo agente, dentro do universo das letras, de variadas formas de se “estar ” no mundo. 18 Esta
questão de uma “cultura epistemológica da controvérsia e do conflito ” como valor fundante de consistência cognitiva, experimental e sintetizadora, é amplamente (e diversamente) trabalhada por autores diferentes como santo Agostinho ( “duvido, logo existo ”), Popper, Kuhn, Berlin, Pascal, Dascal, Dostoievski, Bakhtine, Eliade e Rorty, entre outros; voltarei a alguns deles na sequência. 19 19
Poderia até fazer uma analogia com o conceito de “ jogos jogos de linguagem” do Wittgenstein das “Investigações Investigações Filosóficas”: o hábito de frequentar f requentar os clássicos em uma disciplina fundaria um jogo de linguagem útil para a prática de pesquisa e síntese dentro desta disciplina, à medida que propõe eixos de problemas e parâmetros de legitimidade (assim como também objetos de crítica e possível “superação ” destes). 20 Cmejrkova, S.; Hoffmann, J.; Mullerova, O.
1996.
Types of polemics and types of polemical moves . Prague,
do paper apresentado, visando esclarecer tal conceito, vemos que o centro de gravidade do conceito de controvérsia cai sobre a ideia de que, por meio das controvérsias, argumentos sejam apresentados pelas partes em contenda a fim de que o “equilíbrio” da razão (isto é, que a “razoabilidade” se movimente entre seus polos de sentido) tenda para um dos lados, sem falsear frontalmente frontalmente o outro, ou que os conflitos assumam outra configuração aceitável pelas argumentadoras, ou em último caso, que a natureza das diferenças seja melhor iluminada. Sendo assim, [20] o conceito acentua o “em processo de” tentar dissolver conflitos, mostrando a difícil solução absoluta em razão do peso dos argumentos argumentos opostos. Todavia, a controvérsia tornará mais visível — e visibilidade é fundamental em ciência, como argumentei acima e voltarei a fazê-lo na sequência — o valor e os problemas de cada posição e o quanto a comunidade que “sofre” a controvérsia pode ganhar com o choque entre as diferentes vertentes. Tendo tal definição em mãos, tentarei ver o quanto a aceitação de seu valor metodológico (isto é, compreender os choques de posturas quanto ao conhecimento conhecimento na história da filosofia) pode nos ajudar a compreender alguns instantes da construção histórica da discussão científica. Na sequência, tentarei me aproximar de alguns núcleos de temas onde a ideia i deia de controvérsia pode nos ser útil no estudo científico da religião. Grosso modo, poder-se-ia dizer que o tema epistemológico está posto desde a tradição grega, via discussão entre Platão (Sócrates) e a vertente sofista (os verdadeiros ancestrais de toda a frente contextualista e relativista em ciência e filosofia). Em diálogos como o Teeteto21 de Platão, cujo possível subtítulo poderia ser “sobre a ciência ”, discute-se o problema da oposição
[21] entre o que poderíamos chamar abordagem relativista (sofista) da Verdade (entendida como doxa ou opinião, ou a afirmação do caráter circular da validade de qualquer enunciado em razão da sua legitimidade l egitimidade unicamente unicamente contextual) e a busca plat platônica ônica de um critério transcendente à linguagem ou qualquer outro tipo de contexto 21 PLATÃO.
Teeteto. 2 ed. Madrid: Aguilar, 1990.
relativizador, o que nos levaria a uma abordagem universalista do problema da Verdade22 (trata-se aqui da proposta platônica de opor à doxa uma episteme, entendida como conhecimento universal e necessário, livre de “dramas” quanto à legitimação dos enunciados). Sabemos que a chamada “desqualificação” dos órgãos dos sentidos como campo da construção do conhecimento feita por Platão (e que deixou marcas indeléveis na cultura ocidental) começará a ser enfrentada ainda na Grécia por Aristóteles à medida que para este autor a observação empírica via órgãos dos sentidos encontrará seu lugar de valor legítimo no processo do conhecimento, conhecimento, ainda que o sistema “epistemológico” aristotélico permaneça na sua essência e no seu alcance marcadamente metafísico. Tal vertente “sensualista” da epistemologia (antes de tudo, ainda neste momento, entendida entendida como [22] “teoria do conhecimento ”, ou “fenomenologia” do processo humano de cognição) será
amplamente desenvolvida no período moderno por autores como Locke (séc. XVII), Hume e Condillac (séc. XVIII), entre outros, forçando a entrada conceitual do empirismo sensualista no universo da epistem epistemologia ologia enquanto critério essencial (diria até único) do processo de construção do conhecimento, e portanto daquilo que será proposto como “ciência moderna”.23 Falar em empirismo sensualista é adentrar o campo da experiência e do experimental (O contexto sensorial): o conhecimento
22 Não
quero aqui adentrar o problema de que Platão seguirá na direção de uma “geometria” de caráter metafiísico, quero apenas marcar a oposição entre a vertente relativista sofista e a universalista platônica com relação ao(s) critério(s) da Verdade do e no conhecimento. 23 Condillac
no seu Tratado das sensações (col. Os Pensadores, v. Condillac, Helvétius, Dégérando , São Paulo, Editora Abril, 1983) afirma que Aristóteles, ainda que tenha lançado as bases do empirismo sensualista não diz absolutamente nada de esclarecedor acerca de como se dá o papel dos órgãos dos sentidos na construção do conhecimento, e que este problema só será devidamente enfrentado por Locke; todavia, ainda Locke permanecerá preso aos resquícios metafisicos ou “metafóricos” ou “reificadores”, diria Norbert Elias — platonistas/aristotélicos e vagos quando supõe faculdades da alma sem registro evidente de como são construídas do ponto de vista sensualista; ele, Condillac, dará o passo fundamental quando mostrar que nem uma consciência em sentido psicológico existirá antes da ação coordenada dos órgãos dos sentidos que é essencialmente fisiológica, quanto mais alguma ideia de aparelho cognitivo. A crítica de Condillac, assim como a de Locke, é diretamente anti-inatista (Descartes): inatismo é a assunção da existência pré-sensualista, e portanto de alguma forma prénascimento, de algumas ideias fundantes e organizadoras do aparelho cognitivo. O empirismo radical de William James (séc. XIX e XX) retomará em parte a argumentação de Condillac, verticalizando-a de uma certa forma — voltarei ao empirismo radical posteriormente.
construído em bases sensualistas (via órgãos dos sentidos) apresenta basicamente o caráter de visibilidade que é fundamental na construção do conhecimento projetado pela moderna ciência galilaica e baconiana. A sustentação da validade do conhecimento [23] sensualista baseado na visibilidade se erguerá contra uma forte tradição medieval construída a partir do valor da razão geométrico-dedutiva (metafísica escolástica 24) e que apresentava um forte componente não legitimador de seus produtos — à visão moderna — à medida que esta razão trabalhava essencialmente com critérios nãovisíveis, ainda que de grande teor argumentativo e geométrico: a geometria produz triângulos equiláteros e círculos perfeitos, ainda que eles não existam na natureza. Esta será essencialmente a “equação” epistemológica empiricista: a natureza, portanto o real, só é minimamente apreensível de modo visível pelos órgãos dos sentidos. A evidência da falha desses órgãos, fonte da “desqualificação” platônica, ao invés de ter o papel de sustentáculo [24] da total recusa do sensualismo, passará a ter a função de demanda de métodos que de algum modo mitiguem esta “miséria” epistemológica dos órgãos dos sentidos. Grosso modo, será a associação entre esta “recuperação” moderna do empirismo sensualista e os esforços metodológicos 25 para reduzir drasticamente a margem de 24 É
interessante lembrar que autores como William of Occham e Meister Eckhart, ainda na idade média (ambos séc. XIV), de alguma forma já iniciarão uma crítica do conhecimento “abstrato” produzido pelo modelo metafisico escolástico. No caso de Occham, sua herança será a fundamental crítica aos “universais transcendentais transcendentais ”, sustentando a não-substancialidade de tais “conceitos” universais contra a consistência (não necessariamente ontológica) apenas dos “nomes” singulares; tal crítica é evidentemente uma das fundamentais raízes do surgimento em solo inglês da tradição empírica no séc. XVII (entre outras obras de Occham, Summa Logicae e Expositio Aurea ). Meister Eckhart, primeiro filósofo de língua alemã, sustentará a importância da experiência direta da Divindade ( Cognitio Dei Experimentalis ) para o conhecimento de Deus e para a construção de uma moral racional consistente com o cristianismo; sua obra está na raiz de toda a filosofia alemã posterior, principalmente o romantismo alemão, que por sua vez retomará, na contra-corrente do exteriorismo iluminista (séc. XVIII), sua crítica implícita ao conhecimento conhecimento que despreza a experiência radicalmente interior. No caso específico do fenômeno religioso, tal procedimento será de vital importância à medida que adentra a questão da mística e do caráter irredutivelmente interior da “experiência religiosa ”; a chamada psicologia profunda nos sécs. XIX e XX também será em grande parte devedora da argumentação eckhartiana (entre outras obras, Expositio S. Evangelii S. Joannem e Von Abgeschiedenheit ). 25 É
importante lembrar do postulado epistemológico de Eliade acerca da necessidade de associar o percurso de observação dos dados (empiria) a constantes e perenes discussões metodológicas; ver,
erro da apreensão sensível da natureza (a “miséria” epistemológica e cognitiva) que dará luz à aventura da ciência moderna experimental. A visibilidade da construção estará exatamente na associação entre o caráter experimental das bases para a discussão cognitiva (apreensão da natureza) e metodológica e seu modus operandi racional (induções, generalizações e matematização). Assim sendo, a discussão metodológica é um processo de construção da visibilidade dos objetos em questão. O filósofo catalão José Ferrater Mora no seu monumental dicionário de história da filosofia26 se refere ao moment momento o filosófico acima descrito como a passagem de um pensamento “ontofílico” — o antigo e medieval, ocupado, de certa forma, primordialmente com [25] o Ser e não com nossas possibilidades cognitivas de acessá-lo — para um epistemofílico, epistemofí lico, nascido na era moderna, orientado para os meios pelos quais podemos nos assegurar do que conhecem conhecemos. os. A máxima deste turn seria o criticismo kantiano e sua revolução copernicana: do objeto às condições de possibilidade de conhecê-lo, conhecê-l o, e assim, fundar-se-ia de fato a epistemologia tout court. Agir de modo “epistemofílico” é supor que o verdadeiro problema da filosofia está no “como” conhecer estes meios e considerar “aquilo” que conhecemos como de algum modo secundário, já que este “aquilo” permanece envolto na trama de como se dá sua apreensão (ou construção
pura e simples) pelo aparelho cognitivo-sensorial humano. 27 Na realidade, esta preocupação com relação ao “como” da validade de nossos enunciados acerca dos dados do mundo é mais um retorno a um certo modo de filosofar já grego — lembremos da polêmica platônico/sofista platônico/sofista referida rapidamente rapidamente acima — do que uma invenção estritamente moderna. Todavia, não é minha intenção discutir aqui os possíveis desdobramentos (possivelmente nefastos) de tal virada (ou retorno), nem tampouco a história da ci-
por exemplo, La nostalgie des origines (Paris, Folio/ Gallimard, 1971) e Traité d'histoire des religions (Paris, Payot, 1949). Voltaremos a este postulado abaixo. 26 MORA, 27 Na
José Ferrater. Diccionario de Filosofia. Madrid, Alianza Editorial, Editorial, 1986.
realidade, penso, não seria absurdo assimi lar a démarche kantiana a um estudo do “contexto
transcendental” de como se dá a apreensão e organização noética do “mundo em si”.
[26] ência. Partindo da problemática imediatamente acima descrita como “epistemofilia” moderno-contemporânea, moderno-contemporânea, pretendo assumi-la como realidade dada e buscar levantar algumas hipóteses a partir de uma vertente epistemológica que ilumina a atividade do conhecimento pela via da controvérsia (Pascal, Dascal) — de como uma prática do conflito conceitual acerca dos objetos e métodos pode nos colocar no centro desta “filia” filia” e portanto iluminar as possíveis e variadas formas de compor este “contrato
epistemológico” que determina o alcance de nosso trabalho de investigação e nos define como, antes de tudo, “seres epistemológicos” ou agentes noéticos. filia” como o espaço onde se dá a construção do Definiria, portanto, esta “filia” “contrato epistemológico”. Ao usar uma metáfora como “contrato”, minha intenção é
apontar para a consciência de que existem “contratantes”28: a passividade por parte da “contratante ” implica na condição de ela se tornar “vítima” daquelas [27] que decidem em seu lugar. É necessário que as pesquisadoras tenham consciência de que a disciplina epistemologia epistemologia não é algo “sem corpo político e social ”, e mais, que tal disciplina “trabalha a falha cognitiva ” (como dizia acima) em meio a discordâncias constantes acerca dos modos de enfrentar tal falha. Falar em “contrato epistemológico” é também discutir os condicionamentos aparentemente extraepistemológicos do tema do conhecimento científico: é por meio da discussão metodológica em todos os níveis, da decisão de enfrentar temas aparentemente “insolúveis”, do questionamento de suas próprias “evidências” teóricas, da
identificação de seus a prioris metodológicos, dos ganhos e perdas político-
28 Evidentemente
que o conceito de “contrato” em filosofia nos remete ao jusnaturalismo (Hobbes, Locke, Rousseau etc.) e à tentativa deste em determinar as bases de legitimação da vida em sociedade já que a sustentação sustentação político-teológica político-teológica tomista havia havia entrado em decadência decadência por volta dos sécs. sécs. XVI e XVII e tal decadência se firmava como tendência laicizante no XVIII. Ver o problema epistemológico imerso em uma metáfora “dura” como “contrato” suporá portanto que está em jogo o problema da legitimidade dos critérios (dos objetos e métodos) de verdade dos enunciados, e mais, que a discussão que faz o “luto da legitimidade”, que não necessitava de um contrato, passa pelo campo político e social (também psicológico), portanto, parâmetros entendidos como extra-epistemológicos. Não é minha intenção pensar “contrato” em epistemologia como um conceito que carrega o caráter puramente convencional das teorias, mas sim, antes de tudo, apontar para o fato de que uma “convenção ” implica em agentes que definem os critérios de legitimidade da consistência das teorias.
institucionais e sociais, da tentativa de erguer propostas funcionais, que se dará a ação neste “contrato”. No século XVII francês, o matemático, filósofo, teólogo e cientista experimental Blaise Pascal já ensaiara uma proposta metodológica metodológica na qual a ideia de “contrato” em epistemologia aparecera. Na sua prática científica e no estudo da chamada geometria (sistemas dedutivos de caráter necessário que sustentariam a apoditicidade dos juízos em física)29, o horizonte é claramente [28] aquele que no século XX será compreendido como como a irredutibilidade i rredutibilidade do contexto contexto em epistemologia e ciência. Para Pascal, a pesquisa científica experimental depende do instrumental utilizado, da armação conceitual partilhada pela comunidade de especialistas que compõem a discussão do problema e pela assunção arbitrária de um dos dados do sistema físico estudado como como variável vari ável (o fenômeno a ser estudado) enquanto os outros são mantidos constantes, determinando assim a variação local (artificialmente delimitada) a ser tratada pelo experimento. O resultado será sempre circular (entre o instrumental, a comunidade científica e as variáveis assumidas como constantes). Em momento algum Pascal assumirá que seu experimento “toca o Ser da Natureza”, porque a “natureza” sobre a qual o experimento aprofunda o conhecimento é antes de tudo um espaço convencional que brota da sucessão de experimentos circulares (daí seu conceito de “verdade local ”). A validade de seus experimentos será diretamente proporcional a sua habilidade em persuadir seus parceiros do rigor de suas conclusões. Quanto ao sistema de deduções geométricas (o “espírito geométrico”), este será nada mais do que um sistema de convenções centrado [29] na definição precisa de palavras, sem deslizes de significado criadores de ruídos dentro da comunidade envolvida, jamais pressupondo-se que tal armação convencional descreva as coisas “tal como elas são”. Portanto, para Pascal “sua 29 Sobre
este tema ver de Pascal, L'ésprit géométrique , L'art de persuader e as correspondências sobre ciência e matemática, citadas por Jean Mesnard em Obras completas (Paris, DDB, 1991/1993).
geometria” não é um espelho do mundo mas uma forma de lidar com ele. 30 Está presente tanto o caráter contextual como a argumentação constante. Tais índices apontam para a construção de um “contrato” que visará meios minimamente seguros para se aceitarem “verdades naturais”31. Quando Thomas Kuhn, em seu As estruturas das revoluções científicas,32 analisando o percurso per curso dos paradigmas das ciências, particularmente particularmente da física, aponta para dados do campo exterior (questões [30] sociais, políticas, religiosas, ou até mesmo arbitrárias) arbi trárias) à ciência como determinantes para a constituição de um paradigma aceito pela comunidade científica, ele está trazendo o drama do contextualismo para o seio da suposta autonomia e neutralidade epistemológica da ciência — de certa forma, ele sociologiza a ciência. Contextualizar Contextualizar a epistemologia é mostrar as bases “não científicas” para aquele conjunto de enunciados que serão aceitos como verdadeiramente científicos. Na realidade, poderíamos levantar a hipótese de que a teoria de Kuhn, antes de tudo, apontaria para o fato de que a pesquisadora tem seu “olho” carregado de teorias que organizam o espaço conceitual, e mesmo sensível, onde se dá a elaboração da armação conceitual que terá papel ativo na sua construção “científica ”. Esta “carga teórica” que se constitui no paradigma não deve ser considerada exterior na minha opinião — à discussão epistemológica, já que como nos diz Kuhn, de algum
30 Para
além da possibilidade de que uma tal visão radical da natureza como contingente seja questionável fisicamente, a ciência pragmática experimental pascaliana carrega na ideia do contexto como insuperável e como, na realidade, o critério definitivo em ciência natural. Evidentemente ele avança a discussão do contextualismo kuhniano sem mencionar a história — trata-se mais de contexto sociolinguístico e político. O importante é ter em mente que um modelo como esse implica em uma progressiva dissolução do conceito de natureza como um “absoluto ”, o que em muito abre o campo da discussão para a validade da biotecnologia pesada, já que o contexto pode determinar mudanças nos hábitos as “leis naturais” “descobertas ” pelas ciências seriam em muito “hábitos” antigos jamais tocados. 31 Sobre
o caráter pragmático da ciência pascaliana ver de Catherine Chevalley, Pascal contingences et probabilités (Paris, P UF, 1992); de Luiz Felipe Pondé, “Pascalian experimental ontopragmatics ”. In: Pragmatics and Negotiation (Israel, University ofTel Aviv, 1999) e La connaissance dans Ia disgrace (University ofTel Aviv, 2000); e o volume v olume organizado organizado por Martine Pécharman, Pascal, Qu 'est-le que la verité (Paris, PUF, 2000). 32 32
revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1990. KUHN, T. As estruturas das revoluções
modo, as teorias científicas que se impõem o fazem não por um valor extracontextual extracontextual autônomo, mas sim por um processo no qual o choque social e político (não só interno à comunidade científica) entre modelos, muitas vezes incomensuráveis, definirá seguramente o desfecho do drama cognitivo: [31] Um elemento aparentemente arbitrário, composto de acidentes pessoais e históricos, é sempre um ingrediente formador das crenças esposadas por uma comunidade científica específica numa determinada época. [...] [...]: quais são as entidades fundamentais que compõem o universo? Como interagem essas entidades umas com as outras e com os sentidos? Que questões podem ser legitimamente feitas a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções? (Kuhn, op. cit., p. 23).
Tal citação descreve traços fundantes do processo pelo qual a natureza é “forçada” a entrar no modelo — que “carrega” primariamente de teorias “ontologizantes” as hipóteses futuramente experimentais — o qual, para a
comunidade em questão, tem valor de verdade como descrição do mundo. Se tomarmos a teoria de Kuhn na sua leitura “forte”, — ontologizante — isto é, como As revoluções como mudanças de aparece, por exemplo, no capítulo nove, “ As concepção de mundo” mundo”, da obra acima citada, podemos pensar que questões como
limites cognitivos adquiridos, pressupostos metafísicos latentes necessários etc., já estão de algum modo contempladas nesta discussão. Ainda que o recurso formal, matemático, do percurso cognitivo possa ser de alguma forma visto como não contextual, vale lembrar que o caráter platonizante da geometria geometria dedudedu [32]
tiva já havia sido problematizado desde a era moderna pelo fato de que sua consistência interna, e mesmo externa em muitos casos, não esgota suas “falhas” enquanto espelho onde se realizaria a adequatio Rei perfeitíssim per feitíssima. a. 33 Outro eixo que problem pr oblematiza atiza a suposta evidência evidência de modelos epistemológicos epistemológicos neste caso, limites cognitivos naturais — são os das teorias naturalizantes como a de Quine.34 Teorias como essas têm o valor de tentar tratar do problema dentro do modelo forte do materialismo materialismo (contextualismo duro): poderíamos compreender melhor os “dramas epistemológicos” se compreendêssemos melhor o processo neuronal envolvido — portanto sua gênese. Havendo falhas no processo neuronal — ou “imperfeições bioquímicas” que implicariam em imprecisões cognitivas é evidente que
o problema da certeza se deslocaria para o domínio das relações, de algum modo, atômicas. Mas não é minha [33] intenção a discussão quiniana propriamente dita, mas sim algo que ela nos aponta. Sendo o organismo humano — no qual se inscreve a função epistemológica — de todo habitado por falhas, a inconsistência i nconsistência de modelos cognitivos e epistemológicos é tão evidente quanto qualquer outra inconsistência: estamos estamos no campo da insuficiência natural do sistema biológico que define o ser humano. Não se constitui em “drama” para a medicina o fato de que o sistema de identificação i dentificação de moléculas “indesejáveis” seja falho o suficiente para que ele “assimile” facilmente moléculas que destruirão (venenos) seus órgãos constitutivos; assim o faz porque na escala atômica a reação com a molécula “indesejável” não configura algo de “errado”: a morte é um fenômeno evidentemente criado pela escala.35 Assim sendo, a inconsistência do sistema
33 Sobre
esta questão é importante a leitura de dois opúsculos de Pascal, L'ésprit géométrique e L'art de persuader , ambos na edição das Obras Completas de Pascal de Jean Mesnard, (Paris, DDB, 1992, v. III). Nestes textos, Pascal busca iluminar o caráter de convenção da geometria, e de como ela por si mesma não descreve de modo necessário o Ser — ela é antes de tudo um sistema formal que deve evitar qualquer deslize de significado nas suas etapas dedutivas — e que para que a aceitemos é necessário um processo retórico pelo qual a aplicação do chamado “princípio geométrico ” a evidências experimentais passa pelos recursos da persuasão. 34 QUINE, 35 Daí
W. V. Epistemologia naturalizada . In: col. Os Pensadores . São Paulo, Editora Abril, 1983.
questões como a de Eliade acerca da dependência da escala para definição de fenômenos; ver, por exemplo, Traité d'histoire des religions , (Paris, Payot, 1949).
humano é tão óbvia na sua relação com o meio ambiente que a imprecisão epistemológica deveria ser tomada como de fato o é: “natural ”. Circularidade contextual adquirida, imanência biológica da (falta de) legitimidade: o ser humano deveria levar mais a sério o conselho de Milton no seu Paradise lost: “livre” da transcendência limitadora (a garantia
[34] externa, divina), Adão deveria se sentir livre li vre no seu jardim da imanência e legislar l egislar de modo consciente sobre sua tragédia. Não quero entrar nesta discussão teológica, mas apenas tentar apontar para o fato de que a epistemologia é um campo do conhecimento que está longe de evidências geométricas autônomas, o que complica a sustentação não circular. Uma vez que o problema da legitimidade dos enunciados é necessariamente permeado por polêmicas quanto à armação linguística, 36 cultural e biológica — contextualismo forte — é evidente que a figura do contrato epistemológico pragmático pragmático surja no horizonte de tal “drama”.37 Um modo de pensar este contrato pragmático é pensá-lo enquanto processo de estabelecimento do conceito de demarcação em epistemologia da ciência. 38 Um forte exemplo de tal proposta é a de Karl Popper no seu
36
Entre outros, autores como Pascal, Pensées , Wittgesntein, Investigações filosóficas e Rorty, Contingência, ironia e solidariedade , tratam tr atam exaustivamente deste deste tema da circularidade. 37 Sobre
este tema ver de R. Rorty, Contingência, ironia e solidariedade (Porto, Presença, Presença, 1993). Neste texto, Rorty mostra que sendo a relação entre mundo e linguagem contingente, é necessário buscar conceitos que nos ajudem a “lidar ” com o mundo de forma funcional. 38
Evidentemente que não pretendo afirmar a absurda ideia de que deveriam existir tantas epistemologias quantos pesquisadores e pesquisadoras, mas sim afirmar que se a filosofia da ciência produz — ou produzirá teorias demarcatórias x, y, z, a comunidade envolvida na atividade de pesquisa não deve assumir a postura de “consumidora de manuais ” de epistemologia, mas sim ter uma cultura epistemológica robusta o bastante para poder participar da discussão acerca do problema do conhecimento — discussão essa que em alguns casos deságua na produção de teses demarcatórias — tendo consciência conceitual e histórica dos fatos envolvidos no problema geral elou específico sob polêmica. A analogia com a cultura política é mais uma vez útil: participar da produção de contratos sociais e políticos não implica que “todos seremos políticos profissionais ” mas sim que não seremos “vítimas” inativas do processo de decisão dentro de nosso espaço social e político. Uma postura ativa na discussão epistemológica implica tanto a participação na “produção ” de teses demarcatórias como a identificação e posterior recusa crítica de modelos aceitos muitas vezes de forma apressada em razão de militâncias retóricas. Ainda que no caso das chamadas ciências duras tal proposta seja também válida, no caso específico das ciências humanas a necessidade de tal cultura é ainda mais evidente, para isso basta lembrarmos da “impenetrabilidade essencial ” do ser humano e de sua condição de “resistente” aos métodos exteriorizantes das ciências modernas, assim como dos “modismos” que
[35] Lógica da pesquisa científica .39 Para Popper um enunciado terá valor científico
quando sua forma lógica for aberta à possibilidade de falseação, isto é, que ele possa ser “provado falso”. Tal critério pesado faria inúmeras “baixas” no campo das ciências ci ências humanas. 40 Todavia, o importante antes de tudo é ter em mente que tal contrato demarcatório popperiano busca garantir o máximo possível a possibilidade de que aquilo que uma comunidade humana toma como enunciados legítimos esteja [36] aberto à crítica racional, sensível (órgãos dos sentidos) e humana — tema da visibilidade mais uma vez: contra um platonismo renitente na cultura ocidental (o “feitiço” de Platão segundo Popper 41), aquilo que não é passível de crítica deve ser
considerado como inválido para um contrato epistemológico que postula a abertura para os órgãos do sentidos como exigência para qualquer afirmação que possa ter valor de verdade no espaço público. Popper pensa que a ciência experimental é uma defesa da condição humana contra o risco de se tornar refém do invisível. Uma outra forma de se colocar diante de contratos epistemológicos é aquela de autores como o inglês Isaiah Berlin42 aqui bem mais concentrado nas ciências humanas.
Posicionar-se
epistemologicamente
é
antes
de
tudo
iluminar
inconsistências locais de propostas metodológicas e não unicamente fazer propostas “positivas”. Suas críticas se concentram basicamente contra a “cientificidade” das regularmente assolam as universidades, inclusive no nosso país. A “práxis” epistemológica é que produz realmente pesquisadores e pesquisadoras ativos na crítica dos modelos, e assim sendo, tende a reduzir a adesão a esses modelos por meio de processos pouco legítimos e dados a “simpatias” por modismos. 39 (São
Paulo, Cultrix, 1989); ver também do mesmo autor, The open society and its enemies , (London, Routledge, 1992). 40 É
evidente que tal contrato não “serve” para as ciências humanas visto vist o que dificilmente os enunciados destas estão abertos para uma falseação definitiva. Todavia ao invés de tentar desqualificar a proposta de Popper, que seguramente coloca um problema fundamental — a visibilidade tem valor político democrático —, as “vítimas” deste critério cri tério popperiano deveriam buscar contratos que de alguma forma f orma viabilizassem critérios nos quais a visibilidade de algum modo fosse razoavelmente preservada. 41 Popper,
The open society and its enemies , cit.
42 Pensamos
em obras como O limite da utopia (São Paulo, Cia. Das Letras, 1991) e O sentido de realidade , (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999).
ciências históricas — Berlin dialoga muito com Vico e Tolstoi, entre outros autores. Para Berlin, os pressupostos de que exista alguma racionalidade generalizante passível de ser construída a partir de [37] dados empíricos acerca da “dimensão histórica” é muito frágil pois os dados são praticamente infinitos e caóticos — os limites do aparelho cognitivo e noético estão aquém do “quantum” da “oferta” empírica em História. Uma crítica como esta na realidade aponta para a inconsistência das “ciências históricas” e suas derivadas, não para a inconsistência da condição histórica em si do ser humano. Procedimentos como o de Berlin são interessantes porque fazem de alguma forma o “drama epistemológico” contagiar a sociedade: sabendo-se da inconsistência epistemológica — isto é, a dificuldade de se estabelecer contratos epistemológicos funcionais para
sustentar enunciados de determinadas áreas do conhecimento conhecimento — sociedade pode “se libertar ” de determinadas pseudo-autoridades pseudo-autoridades científicas que na realidade não passam de atitudes retóricas de domínio sem contratos epistemológicos razoáveis que as sustentem. 43 Tal atitude crítica descreve na realidade um ato de dimensão política: como já haviam mostrado Kuhn e Popper, de modos distintos. disti ntos. Fazer epistemologia epistemologia é estar na dimensão políti[38] ca44 e o conceito de verdade “contagia” os critérios sociais e são por eles contagiad contagiados os (Kuhn, Pascal, Dascal, F Foucault). oucault). Contagiar a sociedade com “dramas epistemológicos” é fazer epistemologia de modo verticalmente filosófico. Em um grau mais restrito à comunidade de pesquisadores e pesquisadoras, faz parte da construção de contratos epistemológicos a participação ativa na discussão de modelos epistemológicos existentes existentes e não a pura aceitação de tais modelos como “manuais explicativos de comportamento em campo ca mpo”.
43 Exemplo
típico de “ciência” frágil epistemologicamente é a economics , mas que no entanto hoje alça vôos que produzem figuras do poder político institucional como “autoridades monetárias ”. 44 Outros
autores também navegam por essas águas, como Pascal e Foucault, mas não podemos adentrar esta questão agora.
É parte da formação desses profissionais a discussão acerca dos parâmetros cognitivos que fundam sua disciplina e não só seus “objetos”. Evidentemente que para tomar parte em tal processo é necessário o conhecimento de controvérsias que desenham o campo das hipóteses hi póteses epistemológicas epistemológicas existentes em um dado momento. Após este rápido percurso pelo tema ao longo do que poderíamos chamar de “epistemologia geral”, passarei agora à tentativa de pensar algumas questões
relativas ao campo mais específico do estudo do fenômeno religioso. Ocupar-me-ei basicamente com três argumen[39] tos: a posição de Eliade (e Otto 45 pontualmente), a proposta do “ateísmo metodológico” e a vertente mais radicalmente empiricista.
II Parte Mircea Eliade no seu livro Nostalgie des origines46 discute aquilo que seria uma espécie de “complexo de inferioridade” dos pesquisadores e pesquisadoras em ciências da religião que poderia ser descrito como um “drama epistemológico” localizado, o que nos levaria ao “caso clínico” de controvérsia ao qual fiz referência
45 O
fato de que um autor como Rudolph Otto encontra-se em “desgraça” para muitas pesquisadoras (na Alemanha, por exemplo), em razão da sua fenomenologia eliminacionista pouco importa na minha argumentação pelo simples fato de que sua “eliminação ” do universo de instrumentos dialógicos (basicamente por causa da crítica contundente feita à sua categoria platonizante do “Sagrado ”) por muitos colegas não toca diretamente o núcleo do problema que eu trato neste paper , e além disso (e não menos importante), o fato de que alguns colegas ou comunidades de pesquisadores “eliminem ” um autor (em uma dada época) não é argumento suficiente (na minha opinião), porque simplesmente posso não aceitar seus argumentos. O postulado epistemológico de Otto (ruidoso, concordo) carrega um grande valor igualmente epistemológico para a discussão metodológica em estudos da religião, e não me parece que seu simples abandono demonstre algo mais do que desconhecimento do problema que ele coloca em termos de verticalização filosófica do problema do conhecimento: Otto aponta para uma suposta “falta” sensorial (ou uma experiência sensorial específica) por parte de alguns investigadores e investigadoras em estudos da religião. 46 ELIADE,
M. Nostalgie des origines . Paris, Folio/Gallimard, 1971, caps. 2 e 4.
acima. Tal complexo teria como desdobramento a tendência de se fixar nos estágios filológi[40] cos do trabalho investigativo já que este estágio tem o aval epistemológico das demais ciências humanas (análises sociológicas, econômicas, políticas, psicológicas, linguísticas). Tal atitude, segundo Eliade, levaria à dissolução do objeto das ciências da religião em províncias variadas das demais ciências humanas. Isto é, o fenômeno “religião” ou “experiência religiosa” passaria a ser apenas um fato a ser compreendido
através das grades conceituais das demais ciências (consequência de questões econômicas mal resolvidas, traumas psicológicos, manipulação política, miséria social, “patologia” linguística, funções sociais, processos de construção das identidades etc.), o que para Eliade implicaria na destruição da religião como objeto real do conhecimento pois a esta seria negado algo que lhe sustentaria dentro de alguma autonomia: um contrato epistemológico específico — termo meu. No restante deste trabalho, tentarei levantar determinadas questões possivelmente úteis, espero, para a construção de uma cultura epistemológica entre os estudiosos e estudiosas do fenômeno religioso. Vemos, portanto, que para Eliade não se trata meramente de uma discussão acerca do estatuto de objeto interdisciplinar da religião, mas sim si m de uma controvérsia acerca da abordagem epistemológica do problema ciências da religião. Como mencionei acima, para Eliade é central a discussão metodológica na prática das ciências [41] da religião. Acrescentaria Acrescentaria que para compreender compreender Eliade — assim como o “anacrônico” Otto, outro grande clássico pertencente à corrente fenomenológica dos estudos de religião — seria central um contato com a escola filosófica a partir da qual seus conceitos se formarão, a saber, o pensamento kantiano e o idealismo alemão para p ara daí chegarmos à proposta alemã de “ciências do espírito ”. Percebemos logo que na visão de Eliade fazer ciências da religião é investigar um conceito chamado “espírito”, que
tem sua gênese central na obra de Hegel. 47 Ler Eliade sem referência às suas matrizes, por exemplo, como se ele fosse assimilável simplesmente aos esquemas das ditas ciências sociais, é fazer com ele aquilo que ele combate ao longo de toda sua obra: o reducionismo.48 Todavia, não pretendo discutir aqui os percursos necessários para dialogar com Eliade — ler um autor é sempre um ato dialógico, o que implica que não estamos sós nesta leitura. Gostaria apenas de chamar a atenção para a “es[42] pessura histórico-filosófica” que qualquer contrato epistemológico epistemológico implica. Uma ideia que salta aos olhos, se situarmos Eliade na sua tradição, é que para ele ciências da religião não é “apenas” uma “ciência humana” mas uma ciência do espírito. Considerar o “espírito” um conceito simplesmente simplesmente “deletável” é retirar em muito a substância da problemática eliadiana — como uma “lobotomia”. É reduzi-lo a um quadro de referências que ele não pensou. A visibilidade deste conceito será realizada por meio de um procedimento que Eliade denominará hermenêutica: partindo de uma fenomenologia empírica buscaremos adentrar a experiência existencial interna do homem religioso, a fim de aí ver de que forma ele enfrenta vital e objetivamente, por meio da cultura religiosa em questão, seu drama ontológico ou seu terror da contingência. A hermenêutica se dará exatamente pelas análises e sínteses que faremos dos dados e das suas múltiplas relações contextuais nas quais está mergulhada a vivência deste drama ontológico. A discussão metodológica (epistemológica) se dará precisamente nas variadas tentativas de melhor acessar o núcleo espiritual deste drama ontológico: um ser ontologicamente contingente que pressente e sente psicofisiologicamente psicofisiologicamente o poder e a existência do Absoluto. A questão que se impõe é: há suficiente visibilidade nestes conceitos “espirituais”? É possível
47 Além
de Kant e Hegel, julgamos fundamental para compreender o alcance do continente eliadiano outros integrantes da tradição alemã como Schelling, Fichte, Schleiermacher, Schleiermacher, Cassirer, entre outros. 48 Poder-se-ia
levantar a crítica de que estaríamos historicizando demasiadamente a epistemologia das ciências da religião na medida em que demandaríamos uma “história dos conceitos ” para fazer uma abordagem dos problemas desta disciplina. Evidentemente que em “ciências naturais” não se discute o caráter histórico hist órico das equações, sua precisão é “eterna”. Talvez seja sej a por isso mesmo que são “escritas” em forma matemática, o que não é o caso das ditas “ciências do espírito” (ou humanas). Conceitos não são fórmulas matemáticas, têm história e sem esta são na realidade inapreensíveis na sua natureza.
ainda lidar com conceitos que parecem resistir epistemologicamente a aportes empíricos sensualistas? [43] Para Eliade, como para qualquer autor que tenha bebido na tradição romântica alemã49, é evidente que uma abordagem que recuse a existência de um conceito como “espírito” não compreende bem o problema humano. Portanto, uma “ciência humana” que não tome o “espírito” como conceito-chave não é humana de modo consistente. Evidentemente que posso contra-argumentar reafirmando que “espírito” não tem qualquer visibilidade empírica. Todavia, talvez, usando um recurso eliadiano — como ele faz ao discutir terminologias como “religião”50 — seja interessante não entrar diretamente na polêmica acerca da validade do conceito de espírito, mas sim indagarmos se aquilo que o espírito faz, isto é, trabalhar produzindo sentido e indagando acerca dele, é suficientemente visível para a pesquisadora — evidentementee que mediante suas (do espírito) formas materiais evidentement [44] de expressão.51 O “tato religioso”52 é um órgão que opera buscando (e sofrendo com isso) o sentido primeiro e último das coisas — um u m “órgão” que produz ontologias. A experiência religiosa (a “sensação ” do Absoluto) é basicamente uma experiência deste “tato”. Seria interessante que a discussão epistemológica, a partir de Eliade, passasse pela indagação (aparentemente absurda) de se as pesquisadoras supõem 49 É
importante lembrar que o romantisino alemão tem como característica central a resistência crítica à abordagem por demais “exteriorizante” do modelo científico empiricista e iluminista. Sobre este tema ver, entre outras referências, Berlin, I. A Revolução Romântica: uma crise na história do pensamento moderno. In: O sentido de realidade (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999). 50 Sobre
isto ver Eliade, Traité d'histoire des religions (Paris, Payot, 1949).
51 Seria
interessante entrar em contato com a argumentação que desenvolve o psiquiatra e filósofo existencialista alemão Karl Jaspers acerca das dificuldades de objetivação do objeto maior da psiquiatria — assim como a entende Jaspers — que é a alma humana na sua obra de referência em psicologia e psicopatologia fenomenológica, Psicopatologia geral (Rio de Janeiro, Livraria Atheneu, 1979). A argumentação de Jaspers nesta obra é muito próxima da que tento apontar neste momento. 52 Termo
cunhado a partir do conceito de “tato lógico” desenvolvido por Kant no seu período crítico, em obras como Kritik der Reinen Vernunft .
ou não a existência de tal forma de sentido essencial das coisas, ou se ao contrário, essencial ”, isto é, têm uma experiência do real enquanto algo “essencialmente não essencial”
sem sentido que não circular, ou seja, segundo Eliade, profano. 53 Sustento que questões como esta são fundamentais na abordagem epistemológica a partir do profana” — forçando continente eliadiano porque uma postura “epistemologicamente profana”
a linguagem — significa que a pesquisadora não compartilha da consistência epistemológica epistemol ógica de um conceito concei to como “tato religioso” como órgão de cognição (do real), ou o vê apenas como reminiscência de uma humanidade pré-emancipada. Toda a problematização da religião em Eliade passa por esta ideia de que a experiência religiosa implica a vivência interior por parte do homem religioso e da mulher religiosa enquanto sendo seres abertos ao que lhes [45] transcende (e seu sentido está nesta transcendência absoluta) e que portanto seu al go que lhes escapa, portanto, axis mundi não está nele nem nela mesmos mas em algo lhes é de algum modo essencial, invisível e inatingível — esta experiência é precisamente o que podemos denominar descentramento religioso-existencial que implica na “perda de si mesma ”. Tal visão necessariamente fere a “sensibilidade” emancipada (sinônimo de profana) do ser humano moderno para o qual seu axis mundi — se existir um — está necessariamente nele mesmo, do contrário,
evidentemente alguém o está “ofendendo ontologicamente ” para manipulá-lo. A questão é: seria epistemologicamente possível para uma pesquisadora operar supondo haver uma validade (legitimidade cognitiva e noética) nesta vivência que fala acerca de sua essencial falta de autonomia ontológica, ou necessariamente seria ela obrigada a supor que a experiência religiosa tal como Eliade define tem de ser algo de arcaico (pré-moderno) ou sintom sintoma a de outra esfera que não religiosa — e não uma estrutura consistente e essencial do espírito humano —, ainda [que] publicamente afirme aceitar a validade da definição da experiência religiosa como núcleo de produção dos valores que realmente importam (definição de Eliade)?
53 Evidentemente
que tal problema toca essencialmente o tema do “ser religioso” da pesquisadora, e em qual medida tal “ser ” implicaria contágio epistemológico com os “desvios da fé”. Voltarei a este problema posteriormente. posteriormente.
Poder-se-ia perguntar se uma tal forma de falar em epistemologia das ciências da religião não implicaria uma visão desta enquanto algo “iniciático”. Para [46] Eliade não. A percepção de que há um “tato religioso” indagando acerca do sentido essencial das coisas é suficientemente visível em qualquer ser humano, havendo apenas uma relação difícil entre os homens e mulheres contemporâneos e esta vivência, por causa da sua apologética do profano, diria Eliade. Todavia, apenas pelo instrumento da racionalidade podemos perceber que o espírito humano continua se “debatendo” com o problema do sentido e que qualquer pesquisadora é capaz de
investigar o “tato religioso” apenas estabelecendo uma hermenêutica das formas de se resolver o “drama ontológico” com relação ao terror da continência em bases claramente logotrópicas. Eliade pensa que o complexo de inferioridade das curado” caso elas pesquisadoras (e pesquisadores) em ciências da religião pode ser “curado”
pratiquem esta hermenêutica (racionalíssima) da situação sit uação existencial “dramática” dramática” por meio da análise da trama filológica empírica em questão em chave agônica. Não estou tão seguro desta aposta eliadiana. Talvez, o complexo por ele referido seja mais radical: será possível para a pesquisadora que tem no registro profano de funcionamento uma espécie de garantia ontológica de sua autonomia 54 aceitar a experiência da trans[47] cendência do sentido como algo que não seja doentio (ou no mínimo indesejável, ultrapassado como modo de ser, logo inválido como eixo de sentido), à medida que desvia o axis mundi da existência individual para algo a que “ignora”? A questão é se na realidade a redução da experiência religiosa a grades que a definem como desdobramentos de algum tipo mal-functioning do humano não é de fato a visão verdadeira que qualquer pesquisadora “precisa” ter para não abrir mão de sua condição emancipada. A conclusão seria que necessariamente os dados religiosos 54 Acho
que este problema exige muita atenção, pois não creio que haja neutralidade na agenda profana” moderno-contemporânea com relação ao “religioso”: aquela foi construída em muito contra este. Epistemologicamente falando, contra sua “promiscuidade promiscuidade cognitiva ” com o invisível e os riscos nefastos que tal “promiscuidade ” implica.
assumiriam o estatuto de meras
“figuras
expropriadas” (patologias
ou
desdobramentos indesejáveis) desprovidas de valor em si, ainda que tais pesquisadoras pesquis adoras negassem este fato. Se tal hipótese de uma denegação da real posição das pesquisadoras quanto à desqualificação da experiência religiosa for verdadeira (isto é, se elas na realidade, ainda que de modo latente, aderem ao pensamento desqualificador), o resultado é que ainda que sustentem o contrário, serão redutoras (mesmo “sem querer ”), ou no mínimo reduzirão (ou denegarão) toda e qualquer experiência religiosa que não lhes parecer harmônica com os valores modernos de emancipação: o axis mundi deve estar no indivíduo, senão o Sagrado não é sagrado ou é doença. Esta é minha hipótese a partir do problema posto de modo eliadiano: o impulso redutor é fruto de uma condição ontológica (e histórica, porque por que o ser humano é [48] histórico) do ser humano emancipado. O que a pesquisadora recusa é a validade de uma situação humana na qual o eixo de sentido não a considere como axis mundi 55 autocêntrico rico — ou seja, só há hierofania verdadeira se seu (do ser humano) “desejo” autocênt for hierofânico. Teríamos portanto duas possibilidades: ou religião é epifenôm epifenômeno eno do social e psicológico, ou se escapar disso, deve estar inserida na “historicidade sagrada” do messianismo messianismo humanista (narcísico) europeu moderno. Evidentemente que tal hipótese parece apontar para um caráter essencialmente profano (a partir da definição de profano dada por Eliade, isto é, o lugar da ausência a priori do sentido, espaço da contingência) da epistemologia das ciências da religião — na realidade de qualquer ciência. E mais: só há racionalidade se operarmos no registro profano e que portanto o “complexo de inferioridade” é o desdobramento desdobramento necessário ao tentarmos tentarmos lidar li dar com uma realidade que é por definição a negação de nosso tesouro ontológico, o registro profano emancipado, a menos que desqualifiquemos desqualifiquemos tal realidade religiosa a partir das patologias antropológicas [49] 55 Valeria
a pena investigar se as formas de religiosidade que surgem hoje em dia e que são tomadas como “retorno do espiritual ” não são na realidade formas de experiência do Sagrado onde este “só pode se manifestar ” desde que “atenda” aos requisitos básicos da revolução francesa.
variadas ou a domestiquemos para a tornarmos palatável à sensibilidade profana emancipada. Criticar tal funcionamento funcionamento poderia levantar l evantar a hipótese de que tal percurso flertaria com a absurda defesa de uma “epistemologia religiosa”! Seria como dizer que afirmo que uma epistemologia “no” profano seria incapaz de dar conta da discussão em ciências da religião. Quando Eliade se indaga do porquê de outras ciências humanas, tendo os mesmos “abusos” e “absurdos” na origem, não terem “deprimido” como as ciências da religião, ele na realidade se pergunta se não haveria algum motivo mais profundo para o “complexo de inferioridade” que descreve. A resposta que ensaio aqui é que compreender a religião como algo que signifique uma exterioridade a priori com relação à Razão moderna — e defender seu valor — parece ser uma declaração de guerra à emancipação humana.56 Na realidade, para retomar o vocabulário kuhniano, o que veríamos aqui é o caráter anormal da concepção ontológica da atitude religiosa com relação à atitude ativa na organização epistemológica que funda a ciência moderna — haveria uma incompatibilidade intrínseca entre religião e a busca metodológica desencantada desencantada da modernidade. [50] Na realidade, tal hipótese não pretende sustentar uma ingênua “epistemologia religiosa” ou “iniciática”. Pretendo sim apontar para o fato de se o conteúdo cognitivo da experiência religiosa não seria a priori indesejável para a pesquisadora, e exatamente pelo fato de haver um choque necessário (estrutural e não conjuntural) entre a posição religiosa e a científica (o contágio danoso). Nesta linha, gostaria de levantar a questão (radicalizando a indagação eliadiana) do porquê de postulados epistemológicos eliminacionistas como como o de Otto não poderem participar da discussão fundante de procedimentos epistemológicos epistemológicos em ciências da religião, mas deverem ser a priori considerados evidentemente inviáveis como instância para o diálogo
epistemológico, justamente justamente por serem muito facilmente facil mente considerados “iniciáticos”57
56 Evidentemente
que um certo relativismo antropológico, do qual Eliade faz parte de certa forma, já dialoga com este tipo de descentramento do logotropismo ocidental. Todavia, ainda que se defenda a integridade de uma forma de vida “estranha ” à européia, que é a “nossa”, não nos parece verdadeiro que este relativismo abra mão de um pressuposto epistemológico em que a visão ontológica profana seja o sustentáculo da atividade da pesquisa. 57 A
mesma linha de argumentação pode ser levada com relação ao que o sociólogo da religião francês Jean-Paul Willaime (entrevista dada ao Caderno MAIS!, Folha de São Paulo, 21/1/2001) se refere como as exigências injustas feitas ao sociólogo da religião: por que não é negado à mulher fazer antropologia
[51] O leitor é convidado a dirigir sua mente para o momento de uma experiência religiosa profundamente sentida, o mínimo possível qualificada por outras formas de consciência. Qualquer um que não possa fazer isso, que não conheça tais momentos em sua experiência (de vida), é requisitado requisitado a parar de ler; pois não é fácil discutir questões de psicologia da religião com alguém que pode se recordar de emoções de sua adolescência, ou dos desconfortos da indigestão, ou digamos, dos sentimentos sociais, mas não pode se recordar de nenhum sentimento intrinsecamente religioso. ( R. Otto, Das Heilige, p. 8).
Seria razoável excluir a priori alguém que tem a experiência de ser ianomâmi da possibilidade de vir a produzir um discurso racional de um ponto de vista antropológico que seja construído exatamente sobre dados que são oferecidos apenas a quem tem a experiência de ter nascido e vivido como c omo ianomâmi ianomâmi e depois depoi s se ver tomado pela possibilidade de discutir a realidade antropológica de ser ianomâmi em uma comunidade de pesquisadoras das sociedades indígenas indígenas brasileiras? Excluir a ianomâmi da comunidade de antropólogas seria claramente identificado como preconceito. Aplicando o mesmo raciocínio, não seria a exigência epistemológica de não ser religiosa (jamais ter tido experiência religiosa ou julgá-la epistemologicamente como “sintoma” de qualquer ordem ou sem valor para a justificação de um grupo específico de hipóteses em questão) [52] idêntica à exclusão da ianomâmi — ou uma exigência “injusta” em comparação à “permissividade” graciosamente dada às cientistas sociais mulheres ocupadas com a
condição feminina, como fiz referência na nota sobre o sociólogo francês Jean Paul
da condição feminina, mas pelo contrário é considerado legítimo? Como não ver a possibilidade de que a “substância” feminina poderia jogá-la do empírico ao normativo muito rapidamente e com isso transformar a antropologia em militância política? Não seria o caso de sustentarmos a posição de que só homens poderiam pesquisar a condição “inferior ” da mulher na sociedade, para garantir a neutralidade metodológica? Mas se argumentarmos que essa neutralidade não pode ser garantida pelo homem em razão do fato de que ele “é” o responsável pela condição feminina, não sustentaríamos assim a legitimidade l egitimidade da mulher em fazer antropologia antropologia da mulher? Ou talvez devessem ser os homens homossexuais a fazer, pois assim garantiríamos a neutralidade não chauvinista e a eliminação do “interesse ” da mulher? Seguramente entraríamos em um “machartismo de gênero ”. Seria a condição de não crente neutra com relação à religião? Como dissemos acima, não foi o projeto ontológico “profano” construído contra os riscos cognitivos da religião?
Willaime acima? Por que o oposto simétrico ao postulado de Otto seria sustentável? E mais (radicalizando), por que, ainda que se aceite a experiência religiosa na vida privada da pesquisadora, esta experiência não deve servir como quadro de referência e sustentação para a investigação? Deveria nossa hipotética índia excluir metodologicamente sua “substância ianom i anomâmi âmi” da investigação para que ela fosse bem sucedida? Evidentemente que a postura epistemológica em antropologia seria que tanto indivíduos de etnia ianomâmi como não ianomâmi poderiam participar da investigação, e mais, que alguém que fosse de etnia ianomâmi deveria tomar cuidados para não incorrer em erros em razão de suas “paixões étnicas”58 mas que sua condição étnica não seria considerada a priori instância necessária de desvio d esvio cognitivo justamente porque ela teria acesso à “substância” ianomâmi. Seguramente uma pesquisadora ianomâmi teria um número infinitamente maior de referências da condição antro[53] pológica da vivência interna de sua tribo do que uma estrangeira que a observasse, justamente por sua “substância ” — o mesmo valendo para nossa antropóloga da condição feminina. Mesmo que não, seguramente ser-lhe-ia dado o privilégio da dúvida. Nos estudos científicos acerca dos fenômenos religiosos é comum se supor que a experiência religiosa é danosa ao aparelho racional cognitivo 59 e que portanto seus frutos podem servir como dados para a análise enquanto objeto mas nunca como referenciais epistemológicos da pesquisadora. O indivíduo religioso poderia até usar sua “substância” para fazer teologia, mas não ciência da religião. 60
58 Como
se a crítica ao eurocentrismo não tivesse apontado para as “paixões étnicas” eurocêntricas e portanto presentes em qualquer cientista social. 59 O
que seria semelhante a supor que a nossa antropóloga teria desvios cognitivos por causa de “furores uterinos”. 60 Poder-se-ia
também afirmar que indivíduos religiosos (ainda que laicos) envolvidos em pesquisa de religião seriam facilmente passíveis de se submeter a demandas ideológicas ou políticas geradas a partir de sua pertença religiosa institucional. Tal argumento é sem dúvida válido pois aponta para ruídos que “evitam o feliz sono ingênuo ” das pesquisadoras (supostamente) “livres” de pertença. Todavia, levando-se em conta a óbvia presença de demandas internas às políticas institucionais acadêmicas, não vejo por que tal tipo de “pertença” não deveria também ser foco desta visão “purista”, já que qualquer sociologia da ciência revela os graves desvios cognitivos que tais formas agressivas de políticas acadêmicas geram no seio da comunidade científica. Mais uma vez, me parece que aqui existe
Minha hipótese, até aqui, poderia ser, portanto, descrita da seguinte forma: qual argumento sustentaria o “ateísmo metodológico” — a exclusão apriorística da [54] “substância” religiosa — senão uma postura essencialmente antirreligiosa na qual
seria traída uma visão da experiência e vida religiosas como algo necessariamente danoso para a vivência racional e “cognitivamente ” emancipada do ser humano (ou invisível”, a mesma raiz suposta por nós para o “complexo de seja, o “horror do invisível” inferioridade” inferioridade” descrito por Eliade)? Por que, ao contrário, tendo em mãos o postulado
de Otto não poderíamos afirmar que — sendo a experiência religiosa no seu centro de gravidade algo pertencente ao registro da experiência interior, inefáve i nefávell (tal como é descrita pelos indivíduos que já a tiveram ou a têm com frequência) e exterior na sua porção essencial às capacidades de representação “visível ” pela linguagem — seria razoável supor que indivíduos desprovidos do “tato religioso” seriam como cegos tentando descrever a natureza do vermelho, ou como homens tentando compreender a “essência” do sofrimento feminino na sociedade? Não deveríamos tomar estes r ealidade indivíduos que por uma carência epistemológica específica “cegos” como na realidade e letal l etal metodologicamente — falta do “órgão dos sentidos” necessário para a pesquisa — devem produzir esquemas mitigadores desta mesma mesma carência? Como não nativespeakers ensinando inglês?
A importância das controvérsias em epistemologia é antes de tudo a de nos ajudar a romper com esquemas referenciais que por serem demasiadamente famifami[55] liares nos levam a cegueira pelo hábito de ver sempre as mesmas coisas. O stress intelectual do conflito aumenta a visibilidade do que está em jogo. Como foi familiar a geometria escolástica e sua hierarquia invisível dos seres, ou a radicalidade sensualista do empirismo iluminista anterior à crítica romântica, ou a crença em um não contextualismo (histórico, político, social, psicológico, limites cognitivos, metafisicas latentes) absoluto das teorias científicas anterior às críticas kuhnianas, uma “suspeita ” mais claramente posta com relação à “condição religiosa ” do que meramente um problema institucional ou metodológico.
pensamos que hoje o familiar é supor que a experiência religiosa profunda de nada serve à discussão epistemológica — tem legitimidade apenas enquanto objeto das ciências da religião mas não enquanto princípio regulador no contrato epistemológico desta disciplina. O que legitimaria tão facilmente a recusa do conteúdo do “tato religioso” como princípio regulador? Não seria na realidade um contrato epistemológico que a priori recusa validade ao discurso do portador da experiência religiosa que sustenta a aparente “gritante” consistência de tais críticos? O que diz tal contrato, senão que postulados como o de Otto não devem ser legítimos para uma discussão epistemológica porque simplesmente causam ruídos desviantes? Por que será que a “miséria” dos sentidos humanos, base da desqualificação destes para a metafísica epistemológica platônica, de princípio uma “desgraça” epistemológica, posteriormente passou a ter um papel de demanda legítima para a base da discussão [56] epistemológica moderna? A visibilidade que os modernos viram nos órgãos dos sentidos era sombra para os metafí metafísicos sicos platonizantes. Será que a miséria de nosso “tato religioso” ocidental não poderia mudar de registro epistemológico e passar a ser
demanda de mitigação da miséria cognitiva dos “sem-tato ”? Talvez, poder-se-ia levantar a hipótese de que a pura e simples recusa de tal hipótese se deve ao fato de que o “ateísmo metodológico” tem pavor de adentrar uma região da experiência interna humana que simplesmente desconhece, ainda que se diga especialista nela. 61 Não seria a não experiência do “tato religioso” um caso particular e culturalmente recente de uma “miséria” na cognição? A argumentação esboçada até aqui busca iluminar um campo de hipóteses que associa conceitos como “experiência religiosa”, “Sagrado”, “tato religioso”,
61 É
fundamental se dar conta de que a mística, núcleo duro da experiência religiosa, que aliás é o verdadeiro objeto da análise psicológica e fenomenológica de Otto, difere em muito de qualquer outra forma de teologia teologi a já que não é fruto de pura especulação especul ação conceitual mas sim de uma experiência radical radi cal do Sagrado que será objeto do testemunho. Assim sendo não se trata de “simples” teologia racional ou derivada de um “ saber da fé” mas sim decorrência de uma experiência sensorial (um saber experimentado). E interessante perceber como esta relação entre experiência mística e experiência sensorial será a base pela qual a tradição alemã medieval (Eckhart, Tauler, Suso, De Cusa) chegará à noção de mística especulativa: partindo do postulado ockhamniano (também séc. XIV como os três primeiros citados acima) do “primado da experiência ” para o conhecimento, e tomando a experiência mística como evento do “tato interno”, produzirá o esforço de compreender o contato com Deus de modo racional e transmiti-lo conceitualmente.
[57] “drama ontológico”, “substância 62 ianomâmi ou feminina”, enfim, temas que em muito
se aproximam do que alguém poderia descrever como platonismo implícito ou essencialismo platonizante. Afinal de contas, o que viria a ser “a essência da experiência religiosa”? Não é minha intenção adentrar verticalmente verticalmente o argumento em favor (se é que valeria a pena) do “ateísmo metodológico” metodológico”, pois inclusive já esbocei acima que o julgo problemático em termos de consistência enquanto se abre para uma espécie de “contágio” contágio ” — o “horror do invisível” invisível” — simetricamente oposto ao “contágio” contágio” que condena na postura “religionista” religionista” platonizante: na realidade não me
parece que tal “método” opere dentro do que se chamaria de “razoável neutralidade”, mas sim a partir de uma militância 63 antirreligiosa e portanto duvidosa quanto à meu” argumento de que ser neutralidade, a menos que a pesquisadora aceite “meu”
religioso implica em “atitude ontológica” implicari a ontológica” evidentemente inconsistente, o que implicaria a afirmação de que a “religião” é uma concepção de mundo “comprovadamente” comprovadamente” categorizada como [58] “patológica” ou no mínimo cognitiva e epistemologicamente indesejada, o que me
parece uma discussão muito mais complexa em termos epistemológicos duros do que possa parecer para um “iluminista ingênuo”. Trabalhar o conhecimento como diálogo produtor de controvérsia não implica em pura e simples aceitação de qualquer argumento — considero o “ateísmo metodológico” inconsistente, a menos que se assuma como militância específ específica ica —, mas sim em ser capaz de lidar com posições que se contrapõem mas que se sustentam nesta oposição. Esta tensão é que ilumina os elementos em jogo. É antes de tudo saber lidar com a impossibilidade de uma síntese “fácil”. O mundo jamais nos permite a tranquilidade das sínteses. A proposta é ver o surgimento do conhecimento “no” conflito e “no” rearranjo dos argumentos que
62 Evidentemente
que não precisamos ir até a metafisica aristotélica para compreendermos uma tal “substância”, basta pensarmos no conjunto dos fenômenos que caracterizam em um dado momento os indivíduos sociais que carregam a condição biológica feminina. Perceberemos necessariamente a historicidade dessa “substância”, mas ela permanece como apresentando uma positividade categorial — o mesmo vale para o caso ianomâmi. 63 Na
militância, o foco da prática é a normatividade e não a descrição empírica do mundo.
se confrontam. Penso que mais interessante do que a crítica ao essencialismo eliadiano e ao eliminacionismo de Otto que levanta a militância (disfarçada de neutralidade metodológica) do discurso sobre o “contágio religioso”, são as posturas que criticam o essencialismo platonizante a partir de uma atitude que definiria como “empirismo radical” (tomando emprestado o nome do conceito de William James Ja mes 64), e
que evitaria os “platonismos” porque estes [59] prioris” que pouco lançam a pesquisadora em “atormentadas” questões acerca de “a prioris”
ajudam no trabalho científico. Neste sentido, poderíamos dizer que o “complexo de inferioridade” da pesquisadora em religião se daria exatamente porque ela se “perde” em questões platonizantes que são na realidade desdobramentos da tradição teológica (ainda que de uma teologia natural latente) agindo sobre sua prática de agente noético. Sua “inferioridade” seria na realidade um “afeto” que é causado pela baixa percepção que tem do desvio “essencial” que gera qualquer atitude que se construa sobre pressupostos não produzidos pela experiência do que é visível (empirismo radical) neste caso, faltaria epoqué (o ato cético de suspensão de juízo) tanto à “pesquisadora eliadiana/ottoniana eliadiana/ottoniana” como à “atéia metodológica” pois ambas, de modo simetricamente oposto, levariam em conta enunciados que sustentam juízos acerca de variáveis fora de controle, isto é, a afirmação da existência do “Sagrado” ou sua negação, que também é um ato dogmático, ainda que às avessas. Acredito que esta posição empiricista tem sua consistência e que uma cientista da religião (principalmente de “simpatia” fenomenológica ou platonizante) não pode se furtar ao diálogo frontal com ela. Resumidamente, diria que segundo tal postura devemos deixar de lado problemas que na sua enunciação implicam substantivos que nos afastam da empiria histórico-social. Nesta linha, estaria [60] o historiador das religiões alemão Kurt Rudolph, por exemplo. Ao sustentar o plural histórico “religiões” como objeto de estudo do fenômeno religioso (ciência das religiões) defende a ideia de que as religiões historicamente estabelecidas formam um
64 JAMES,
W. Ensaios em empirismo radical. In: Os Pensadores. São Paulo, Editora Abril, 1983.
universo univer so de experiência humana que por si só se sustenta como objeto e que de d e modo algum precisamos de discussões platonizantes acerca e questões do tipo “o que é religião?” religião?” ou “o que é a conversão?” conversão? ” etc. Falemos acerca do que foi o fenômeno Comum”, ou como se dão os histórico “paleocristianismo ibérico do séc. II da era Comum”
relatos dos indivíduos que são definidos (pelos scholars da área) ou auto definidos como judeus do período romano pré-cristão com relação à sua vivência da Torá, ou de que modo os doi doiss se relacionam a partir do que empiricamente se constitui. Estão em jogo os modos de estabelecimento das categorias metodológicas, modos esses que passam ao largo de discussões essencialistas como as de Eliade ou Otto, mas que abraçam procedimentos empiricistas (argumento próximo ao sensualismo radical de Condillac) como as que exemplifiquei acima como os dois modos possíveis de se lidar com a definição específica de um grupo religioso, isto é, ou por auto definição estabelecida na fonte ou por definição dada por scholars que se baseiam em estudos empíricos do material produzido pela comunidade em questão. A radicalidade do empirismo estaria no fato de que a [61] própria categoria organizadora (começando pelo “nome” do fenômeno) do material é dada pelo próprio material empírico (a fonte histórica/empírica histórica/empírica estabelecida), e o que não poder ser organizado a partir da empiria, deve cair sob a categoria categ oria eliminacionista metodológico” e portanto não científ de “variável sem controle metodológico” científica. ica. Na realidade tratatrata -
se quase de uma “prática de vocabulários” produtores de ciência (portanto, de visibilidade) contra outros que produziriam especulação fora de controle metodo metodológico: lógico: afirmar ou negar conteúdos que sustentariam a objetividade concreta. É evidente a filiação nominalista desta postura: os nomes usados sempre nos remetem a realidades empíricas, mesmo quando as combinamos a fim de chegar a generalizações. Identificar um fenômeno religioso “novo” não implica visitarmos a definição pura (no mundo dos homens e das mulheres não há “pureza”) de “religião” mas vermos em que medida ele se enquadra nos eventos empíricos que fazem parte da “família” de fenômenos historicamente identificáveis como religiosos. É claro que invisível ” (as “essências” são metodologicamente invisíveis) há aqui uma crítica ao “invisível”
como havia no “ateísm ateísmo o metodológico”, mas o foco não é negar a crença revelando-a como epifenômeno de uma carência cognitiva, psicossocial psicossocial ou epistêmica contagiosa, mas simplesmente evitar metodologicamente o confronto com o platonismo que
[62] alimenta
necessariamente
toda
a
discussão
(pseudo-pedagógica)
religiosa/antirreligiosa, e que inviabiliza o conhecimento metodologicamente controlável. Uma pesquisadora alimentada pela visão eliadiana/ottoniana poderia dizer que conceitos como “drama ontológico” permitem uma verticalização da compreensão que nenhuma empiria purista proporcionaria. Além disso, tal conceito seria na realidade fruto da observação empírica empírica e da generalização metodologicamente metodologicamente produzida, não essencialismo. Uma empirista radical poderia dizer que de nada adianta sair por aí buscando “dramas ontológicos” ou “crito-ontologias”. Trata-se de falar do que está posto objetivamente na fonte. Quanto mais leve for nossa carga metateórica — já bastam nossa linguagem, nossos preconceitos políticos e nosso senso comum “neurofisiológico” —, mais ágeis cognitivamente seremos e portanto, menos desvios
na análise cometeremos. cometeremos. Um argumento como o de Otto afirma na realidade que uma pesquisadora que não tem experiência religiosa não terá categorias cognitivas para ver (corretamente) a empiria em questão. Acho que exatamente por sua radicalidade, a posição de Otto é interessante: a experiência religiosa alteraria a cognição em si. Uma pesquisadora empiricista diria que seria necessário estudar estudar as próprias colegas “religiosas” religiosas” a fim de “ve-
[63] rificar ” tal argumento. argumento. Como estabelecer a consistência empírica de tal transformação transformação
cognitiva? O que (empiricamen ( empiricamente) te) é cognição e seu objeto? Não há como co mo entender o tema do conhecimento sem fazer filosofia. Assim sendo, tal argumento aponta para um estudo antes de tudo epistemológico e empírico da própria comunidade de pesquisadoras. Pela vertigem causada na contraposição dos argumentos, apreendemos melhor o relevo dos problemas em jogo. Tomar posição acerca de um contrato epistemológico é antes de tudo verticalizar esses problemas. A prática, comum, infelizmente, de aplicar propostas metodológicas como um manual “pronto” implica realmente o analfabetismo
epistemológico corrente, a assunção de posições sem a consciência dos seus desdobramentos desdobramentos e de suas origens, enfim, a inconsciência com relação às instâncias que dialogam (em conflito) no subterrâneo de nosso pensamento. As posições que tentei pôr em diálogo neste texto introdutório nos apresentam um universo de problemas. Não foi minha intenção produzir uma conclusão dos argumentos em choque (não se trata de um recurso retórico, mas não acho que exista uma conclusão satisfatória para tal discussão que não seja na realidade ingênua, pois ela delineia o horizonte do problema filosófico do conhecimento particularizado no vocabulário específico das ciências da religião), mas [64] sim iluminar algumas de suas tramas, na tentativa de apontar para o fato de que a dúvida é a maior de todas as companheiras de quem lida com o conhecimento: a epistemologia agônica é um modo sofisticado de contemplar a condição humana. Uma passagem talmúdica diz que Deus, aborrecido pelo comportamento de Adão e Eva, mas resistindo a condená-los absolutamente à cegueira com relação ao conhecimento da verdade última, decidiu despedaçá-la em infinitos fragmentos ao longo do espaço e do tempo. Mesmo que não exista esse Deus e que não haja maldição, a evidência da impenetrabilidade causada pelo despedaçamento é evidente. Quando no início deste texto fiz referência ao fato de que trabalhar com epistemologia é lidar com uma “falha”, era exatamente isto que tinha em mente: insuficiência, conflito, enfrentamento, continuidade interminável. Nada mais socrático: diante dos olhos apaixonados pelo Belo e pela Verdade, a impenetrabilidade do mundo. [65]
[66]