Tabu da morte José Carlos Rodrigues
SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros RODRIGUES, JC. Tabu da morte [online]. morte [online]. 2nd ed. rev. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006. Antropologia e saúde collection. ISBN 978-857541-372-2. Available from SciELO Books
. >.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
Tabu da morte FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Gadelha Vice-Presidente de Ensino, Informação e Comunicação Nísia Trindade Lima EDITORA FIOCRUZ Diretora Nísia Trindade Lima Editor Executivo João Carlos Canossa Mendes Editores Científicos Gilberto Hochman e Ricardo Ventura Santos Conselho Editorial Ana Lúcia Teles Rabello Armando de Oliveira Schubach Carlos E. A. Coimbra Jr. Gerson Oliveira Penna Joseli Lannes Vieira Ligia Vieira da Silva Maria Cecília de Souza Minayo COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E SAÚDE Editores Responsáveis: Carlos E. A. Coimbra Jr. Maria Cecília de Souza Minayo Tabu da Morte José Carlos Rodrigues 2a edição revista | 1º reimpressão
Copyright © 2006 do autor Todos os direitos desta edição reservados à FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ / EDITORA ISBN: 978-85-7541-372-2 1ª edição: 1983, pela Editora Achiamé, Rio de Janeiro. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
2ª edição revista: 2006 | 1ª reimpressão: 2011 Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Angélica Mello e Daniel Pose Vazquez Capa: Danowski Design Ilustração da Capa: A partir do relevo de Hans Arp, Fruit of a hand, 1927-8. Digitação de originais: Gislene Monteiro C. Guimarães Revisão e Supervisão Editorial M. Cecilia G. B. Moreira Catalogação na fonte Centro de Informação Científica e Tecnológica Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca R696t Rodrigues, José Carlos Tabu da Morte [livro eletrônico]. 2.ed., rev. / José Carlos Rodrigues. – Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006 347 Kb ; ePUB (Coleção Antropologia e Saúde) 1. Morte. 2. Atitude frente a morte. I. Título. CDD 20.ed. – 301.2 2011 EDITORA FIOCRUZ Av. Brasil, 4036 – 1º andar – sala 112 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ Tels: (21) 3882-9039 e 3882-9007/ Telefax: (21) 3882-9006 e-mail: [email protected] [email protected] – – www.fiocruz.br Para Monique Nós ignoramos tudo sobre a vida; que podemos então saber sobre a morte? Confúcio
******ebook converter DEMO Watermarks*******
Apresentação Uma das características da ciência antropológica é o fato de ela se interessar pelo que está morto ou esteja em vias de morrer: cultura popular, índios, camponeses, relações comunitárias... e, agora, morte. É bastante provável que uma sociologia da ciência demonstre a existência de um vínculo estreito ligando estas mortes e o próprio procedimento antropológico de transformação dos outros em objetos e, entre esses, em objetos de conhecimentos. Um liame seguro deverá existir entre as mortes reais de seus objetos e a morte produzida pelo sistema de pensamento que objetiva, abraçando apenas uma parte pequena do real, de um real que o próprio sistema de pensamento define, feito de conceitos abstratos, esvaziados de seus conteúdos, com a finalidade de virem a ser manipulados formal como instrumentos de laboratório. As noções mais importantes da vida escapam inteiramente à ciência: beleza, felicidade, prazer, dor... A propósito delas, as teorias científicas nada podem falar o que nos autoriza a pergunta: é possível falar cientificamente sobre a morte? Falar cientificamente da morte é considerá-la como objeto e, logo, pô-la à distância. Mas a morte não é objeto, não se confunde com a sua mise-enscène segundo as diferentes culturas. Não pode ser apreendida. Diante disso, será que se pode considerar a morte como objeto de ciência e submetê-la à regra de ouro de nosso catecismo metodológico, considerando-a como coisa? Não obstante, a morte se transformou em objeto de saber e até mesmo em fenômeno de moda intelectual. Em tudo isso, é claro, existe uma tentativa de fechar a angústia de morte dentro de um discurso e de localizar o pensamento sobre a morte em um lugar seguro dentro da sociedade (e fora de nós). Este é o problema fundamental, ao qual nós fugimos dizendo que uma sociologia da morte só pode ser uma sociologia dos vivos e que nosso trabalho não é sobre a morte, mas sobre as representações sociais da morte; dizendo que em toda sociedade a imagem dominante da morte determina as concepções de saúde, reflete a interdependência dos membros da sociedade... Tudo isso é verdade e válido em seu nível próprio: o princípio metodológico de objetivar, o princípio sociológico de entender os vivos através de suas relações com os mortos, a fuga que tudo isso representa. Mas é também verdade que estas três coisas se contradizem e formam um paradoxo: não se pode falar sobre a morte senão de uma maneira exterior, generalizada, necessariamente limitada, reificada. Ela não se deixa apreender, ela escapa. Quando a consciência a apreende, é porque a morte não existe; quando ela ******ebook converter DEMO Watermarks*******
existe, a consciência não pode apreendêla: nada mais avesso ao método de observação participante dos antropólogos. Mas, coerentemente, se em nossa sociedade os homens sempre se interessaram em estudar o que está distante (os milagres tecnológicos do futuro, os astros, os processos microfísicos, o mundo químico...), é compreensível que, no momento em que se quer banir a morte e afastá-la, ela se transforme em objeto de estudo científico. Este livro reflete todas estas contradições e evidentemente não resolve nenhuma delas. De qualquer maneira, ele é um esforço de compreender, de retomar e de reelaborar alguns trabalhos sobre o tema geral da morte que nos foram oferecidos por cientistas sociais. Representa uma tentativa de compreender nossas representações da morte, a partir de uma estratégia definida. Tal estratégia comporta em primeiro lugar um exame amplo que poderíamos chamar de antropológico em sentido lato (com todas as vantagens e desvantagens que este ponto de vista implica) das práticas e crenças funerárias que nos são oferecidas por outras culturas, a partir de onde pretendemos colocar em relevo a associação entre concepções, ritos e processos sociais definidos: reprodução social, poder, circulação de bens e mensagens, consciência... Em segundo lugar, ela comporta um estudo dos processos históricos de formação da nossa visão de morte, das transformações ideológicas que, acompanhando as modificações ocorrentes em nível de organização econômica, produziram o sistema de pensamentos, sentimentos e comportamentos que configuram nossa sociedade tal como ela é: o surgimento da noção de biografia individual, o processo de acentuação do indivíduo e do individualismo, a separação entre corpo e alma com a transformação do corpo em objeto, a emergência das idéias científicas, das idéias higiênicas e do conceito de morte natural, o despontar do sonho de imortalidade-sobre-a-terra... Finalmente, a terceira parte do livro é uma tentativa de reunir essas primeiras vias na direção de esclarecer o sentido social e político do silêncio com que a sociedade industrial envolve a morte em seu território, tentando articular este silêncio com outras dimensões de morte nessa sociedade ecocídio, etnocídio, genocídio mostrando-o como um aspecto inabstraível da natureza do poder exercido nessa sociedade e como caminho para a formação da morte verdadeira, da Morte. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Em cada uma dessas partes, contraí profundas dívidas intelectuais que ficarão evidentes para o leitor. Não obstante, gostaria aqui de ressaltar a contribuição das idéias de Louis-Vincent Thomas, Philippe Ariès, Jean-Didier Urbain, Robert Jaulin e Jean Baudrillard, algumas contidas em seus livros e artigos, outras apreendidas em seus cursos e seminários sem as quais esta trabalho não teria sido possível. Mas, ao utilizar estas idéias, eu as modifiquei e freqüentemente as dispus de maneira diferente. Conseqüentemente, é provável que algumas vezes estes autores tenham dificuldade em se reconhecer nessas idéias e raciocínios: sou, pois, o único responsável pelo que escrevi. Agradeço aos senhores Pierre Chartier, Norbert Kalfon e Marie Speeckartz, que me ajudaram a dar forma inteligível à versão inicial do texto que segue (apresentado em outubro de 1981 à Université Paris 7, como tese de doutorado em Antropologia); a Monique Mahaut que me ajudou a proceder à pesquisa, cuidando de meus arquivos e datilografando os originais. Agradeço ainda a meus amigos Hortência Alves, Ana Maria de Almeida Lima, Maria Cândida Abreu, Pedro Paulo e Lúcia Nobre; aos professores Armando Mendes, Hélio Barros, Darcy Closs e Eduardo Diatahy; aos colegas Miguel Pereira, Laura Calcagno, João Vicente Abreu, Denise Jabour, Eliane Consídera eAlmir El-Kareh, que me ajudaram em momentos importantes; a todos que discutiram comigo o tema do trabalho e a todos que, mais uma vez, me provaram, em difíceis instantes, que eu não estava só e que o trabalho intelectual é obra coletiva. Expresso ainda meu reconhecimento aos professores J. T. Desanti, J. Bertaux e H. Essomé, membros da banca que examinou e aprovou este trabalho; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pelo apoio que me ofereceram.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
Parte I - Da natureza à cultura 1 Morte e consciência: pensar o impensável No conjunto das transformações que a humanidade tem sofrido no correr de sua história, duas ao menos permaneceram constantes, opostas, constituintes e complementares: os homens nascem, os homens morrem. Esta afirmação aparentemente óbvia, não o é, contudo. As filosofias, as mitologias, as práticas, os rituais se colocaram sempre, como questão urgente e fundamental, a minuciosa discussão dessa obviedade aparente, fornecendo, não obstante semelhanças de fundo, soluções extraordinariamente diversas. Na escala das existências individuais, posto que pode ocorrer antes do nascimento, a morte é a única certeza absoluta no domínio da vida: evento derradeiro, cujo peso de acontecimento não pode ser negado, mesmo que se lhe negue o valor de aniquilamento. Uma coisa é encarar a morte como algo inscrito necessariamente no destino dos homens em geral, enquanto membros da classe dos seres vivos. Outra coisa é pensar a realidade de cada morte individual. Entre os mortos e a morte, ou seja, entre determinado acontecimento biográfico e determinada condição ontológica – ou melhor, escatológica – os liames não são simples. Através de que meios, poderia um ser pensante pensar a condição de nãopensamento, sua condição de não-pensante? A que tipo de lógica recorreria um existente para pensar a não-existência, se o próprio ato de pensar o aniquilamento, o nada, se o conceito de 'nada' é já, em si mesmo, alguma coisa? Aniquilamento, nada, não-existência são, na ordem das idéias, conceitos neutralizados, conceitos sem significação: cogito ergo sum. Para um ser pensante, não é a morte, categoria geral e indefinida, que coloca um problema, mas o fato de que ele, sujeito pensante, morre – o fato de que 'eu' morro. No dizer de Jankélévitch (1954: 55-6), "morrer não é tornar-se outro, mas vir a ser nada ou, o que quer dizer o mesmo, transformar-se em absolutamente outro, porque, se o relativamente outro é o contraditório do mesmo, se comporta em relação a este como o não-ser em relação ao ser". Ora, como poderia um sujeito imaginar-se inteiramente outro, absolutamente outro, sem que o resultado dessa especulação fosse, para o sujeito, permanecer radicalmente ele mesmo? Não obstante – e talvez mesmo por causa da impossibilidade de sua inserção, absorção e submissão ao(s) sistema(s) da lógica – o fantasma do aniquilamento ronda, envolve, fustiga, desafia todos os sistemas humanos de explicação do homem e do mundo. De fato, apesar de alguns animais, como o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
opossum, vários insetos em estado larvar ou adulto, aranhas etc. manifestarem um simulacro de morte (Huxley, 1971); apesar de eles reagirem a um algo de morte contido no perigo, na agressão, no inimigo; apesar de serem munidos de todo um aparato de defesa e de ataque, em última instância produtor de morte e/ou protetor de vida (garras, venenos, asas, presas, espinhos, rapidez, mimetismo...), pode-se dizer que o homem é o único a ter verdadeiramente consciência da morte, o único a 'saber ' que sua estada sobre a Terra é precária, efêmera. O animal tem, é verdade, uma certa percepção da morte: ele a sente como um perigo que o ameaça e reconhece seus predadores, reagindo por instinto de conservação; ele tem alguma sensibilidade à aproximação de seu fim, o que lhe permite procurar um lugar para se esconder e morrer. Mas reconheceria a morte a mãe chimpanzé, que passeia com o cadáver decomposto de seu filhote? Poderia o animal transmitir a seus próximos sua experiência de morte? Entre os animais, o advento da morte não envolve comportamento algum convencional. Suas respostas ao advento da morte são ditadas pelas leis da espécie a que pertencem; são a imposição, sobre um indivíduo particular, dos ditames gerais, universais da espécie. Edgar Morin (1970: 69-70) se refere a observações segundo as quais macacos se teriam comportado em relação a cadáveres de ratos, gatos, pássaros, como se eles fossem vivos, e machos se teriam introduzido em suas fêmeas mortas e procedido sexualmente em relação a elas e aos outros machos, rivais em potencial, como se elas estivessem vivas. E conclui: "os macacos e os antropóides não reconhecem a morte, porque eles reagem a seus companheiros mortos como se eles fossem vivos mas passivos". O animal, enfim, não se sabe mortal: ele não pode se representar a morte, não pode conceptualizá-la, mesmo que de alguma forma possa captá-la no plano da sensibilidade. Os casos de animais domésticos, capazes, como alguns cães, de se recusar a abandonar as proximidades do túmulo do dono, dispostos algumas vezes a acompanhá-lo – e que demonstrariam desse modo alguma consciência da morte – são absolutamente excepcionais: são exceções que confirmam a regra, pois, como quer Morin, a consciência da morte está ligada à domesticação, à vida em sociedade humanamente organizada. Tal incapacidade animal de se saber mortal está associada à impossibilidade de o animal se ver como indivíduo. Embora esta individualidade exista, ele não pode reconhecê-la e, portanto, não pode avaliar sua perda: a morte. "Os instintos de conservação individual são específicos já que idênticos entre ******ebook converter DEMO Watermarks*******
todos os membros de uma mesma espécie; eles têm uma significação tanto mais totalmente específica quanto mais se integrem em um vasto sistema de proteção de toda a espécie" (Morin, 1970: 68-9). É com a consciência de si que aparece um enrijecimento da individualidade, capaz de enfrentar a tirania da espécie. E ao movimento de dissolução do indivíduo na espécie, o indivíduo, agora consciente de si, chamará morte: a perda de sua individualidade. A consciência da morte é uma marca da humanidade. Nós sabemos que as primeiras materializações que nos permitem acompanhar o processo de hominização são instrumentos de sílex bruto e marcas de presença humana em um território. Entretanto, outras provas desse processo se adicionaram logo a estas primeiras, de uma maneira cada vez menos contestável: as sepulturas. Determinar as circunstâncias dentro das quais o homem começou a inscrever sua marca sobre o cadáver é uma empresa improfícua. Neste domínio, como em outros, as origens estão provavelmente perdidas. Mas o 'homem' de Neanderthal não somente enterra seus mortos: também os reúne às vezes, como na Gruta das Crianças perto de Menton. Os homens das cavernas de Carmel (40.000 anos), da Chapelle-aux-Saints (45.000 a 35.000 anos), do Monte Circeo (35.000 anos) cavaram sepulturas e nelas depositaram seus mortos adultos, sentados, tornozelos e punhos atados, como fetos prometidos a uma segunda vida (Morin, 1970; Ziegler, 1975). As mais antigas sepulturas conhecidas (cavernas de Qafaz, em Israel) datam de cerca de 40.000 anos; as do homem de Neanderthal, entre 80.000 e 30.000 anos (Maertens, 1979). Um interesse religioso ligado aos despojos humanos parece provável, embora as provas arqueológicas sejam ainda escassas (crânio de Mas d' Azil, com seus olhos postiços). A consciência da própria morte é sem dúvida uma das conquistas maiores constitutivas do homem: "não se trata mais de uma questão de instinto, mas já da aurora do pensamento humano, que se traduz por uma espécie de revolta contra a morte" (Morin, 1970: 31). Desde então, os homens produziram e continuam a produzir uma imensa variedade de representações em torno de sua morte e da dos outros. A consciência da morte abre uma passagem pela qual vão transitar forças notáveis que transformarão a maneira humana de ver a vida, a morte, o mundo. Como disse Jean Ziegler (1975: 22-3), "a sepultura traduz incontestavelmente um progresso do conhecimento objetivo". Mas este conhecimento nada tem a ver, ou quase nada, com supostas razões, refletidas ou intuitivas, culturais ou instintivas, de caráter higiênico ou instrumental. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Trata-se já de uma obrigação moral e da necessidade de exprimir alguma coisa. Trata-se de se reconhecer no corpo o seu valor expressivo, porque o corpo humano morto não pode ser considerado como um cadáver qualquer. Não se poderiam explicar as práticas funerárias, o enterro, por exemplo, por motivos puramente utilitários ou higiênicos (afastar a sociedade de uma virtual fonte de elementos patogênicos), porque se isto fosse verdade, não se entenderia por que certas sociedades enterram seus membros antes mesmo que estes morram, nem poderíamos explicar por que certos povos convivem longamente com o processo de putrefação, como em Zanaga, ainda hoje, onde os grandes dignitários tegé – apesar de que "os inconvenientes e perigos de infecção que representa um tal costume não escapem a ninguém" (Alihanga, 1979: 277) – são conservados até seis meses, improvisando-se sob o leito mortuário um canal que recolhe os líquidos cadavéricos e os conduz aos lugares exteriores. Ademais, a efervescência ritual provocada por uma morte varia de acordo com a importância social do defunto. Como Robert Hertz (1970) observou, a morte não se limita a pôr fim à existência corporal. Ela destrói ao mesmo tempo o ser social investido sobre a individualidade física, ao qual a consciência coletiva atribuía uma maior ou menor dignidade. A morte de uma pessoa adulta significa normalmente dor e solidão para as pessoas que sobrevivem a ela: verdadeira chaga que põe em perigo a vida social. É diferente, e mais branda em geral, a reação que a morte de crianças produz na consciência coletiva. Na realidade, a comunidade investiu nelas pouco mais que esperança. Não chegou a lhes imprimir sua marca. Não se reconhece nelas e por isso sente-se pouco atingida. Tudo se passa como se tratasse de uma morte menor, de um fenômeno "infra-social", para conservar a expressão de Hertz (1970: 80). Portanto, a morte, sob o ângulo humano, não é apenas a destruição de um estado físico e biológico. Ela é também a de um ser em relação, de um ser que interage. O vazio da morte é sentido primeiro como um vazio interacional. Não atinge somente os próximos, mas a globalidade do social em seu princípio mesmo, a imagem da sociedade impressa sobre uma corporeidade cuja ação – dançar, andar, rir, chorar, falar... – não faz mais que tornar expressa. Nada há de surpreendente, pois, em que os membros em que a sociedade se encarna e que ela perde venham a ser objeto de uma atenção especial, de cuidados e preocupações mortuárias, em uma palavra, de rituais. Os ritos da ******ebook converter DEMO Watermarks*******
morte comunicam, assimilam e expulsam o impacto que provoca o fantasma do aniquilamento. Os funerais são ao mesmo tempo, em todas as sociedades – vê-lo-emos adiante – uma crise, um drama e sua solução: em geral, uma transição do desespero e da angústia ao consolo e à esperança. Estudar estes ritos é sociologicamente importante. A morte de um indivíduo é a ocasião em que o grupo, no mais amplo sentido do tempo, produz a sua reprodução, tanto nos planos cultural, simbólico e ideológico, como no plano das estruturas socioeconômicas. A existência da cultura, quer dizer, de um patrimônio coletivo de saberes, savoir-faire, normas, regras organizacionais, etc., só tem sentido porque as antigas gerações morrem e porque é necessário transmiti-la continuamente às novas gerações. Ela só tem sentido como reprodução, e este termo só adquire seu pleno significado em função da morte. (Morin, 1970: 12-3) Uma sociedade se estrutura não apenas 'apesar' da morte e 'contra' a morte, mas ela 'contém' a morte em si, "só existe como organização pela, com e na morte" (idem). Georges Balandier (1970: 9) concebe uma civilização como sendo um modo de responder ao problema colocado pela vida e pela morte, como a imposição ao homem e à sociedade de defrontar a evidência da entropia e de "se pensar na finitude". Também as civilizações são mortais e isto não deixará de marcar essencialmente suas representações da morte. Em princípio, todas se pretenderão eternas e imortais e, por isso, o tratamento da morte que uma sociedade elabora não é o tratamento de sua morte mas "o das fronteiras do universo que ela constitui" (Jaulin, 1977: 11). Tais fronteiras incluem as relações de uma civilização com outras culturas, com os indivíduos que ela deliberadamente coloca às suas margens (condenados, feiticeiros, doentes, desviantes...) e com a morte dos indivíduos que a compõem. Morte do indivíduo, morte da sociedade: eis, no plano da consciência, as duas faces de uma mesma moeda. Evidenciam-se na morte, nos ritos e práticas funerários, ao mesmo tempo o seu caráter de extrema individualidade e sua constituição social: ela traça um confim último entre a subjetividade do eu e o outro. Outro domínio em que germina a consciência da morte é o do psiquismo infantil. Os trabalhos de Piaget no-lo confirmam: é a partir do momento em que a criança toma consciência de si mesma como indivíduo que ela se sente afetada pela morte. Até a idade de três ou quatro anos, a criança, na nossa cultura, não tem idéia ******ebook converter DEMO Watermarks*******
alguma do significado da morte. A contraposição vivo-morto é ignorada. Mesmo que estes termos façam parte do seu vocabulário, ela nada sabe sobre a necessidade do morrer, ainda que as palavras concernentes à morte sejam talvez percebidas como algo de negativo, ligado a 'separação' e 'destruição'. A partir desse ponto, o vocabulário infantil concernente à morte infla progressivamente de conteúdos e assume um colorido emocional crescentemente negativo. Em nenhum caso, todavia, a morte é representada como aniquilamento definitivo: ela é afastamento dos domínios da criança; impossibilidade de se movimentar; doença grave, porém curável; no máximo, aniquilamento temporário e reversível. Nessa idade, não imagina a criança que a morte ameace também o próprio eu, embora tenda já a crer na possibilidade de que outros sejam afetados por ela. Aos cinco anos, a criança permanece incapaz de "conceber o fato de não estar/ser mais vivo, de ser/estar morto, ou de entender que outros tenham vivido antes dela" (Gesell 1949: 7). Às vezes, ela reconhece a terminalidade da morte, mas crê em sua reversibilidade. Pensa que os mortos podem reviver, de modo que não assume em relação à morte a mesma atitude emocional dos adultos. Entretanto, começa a vacilar a certeza da reversibilidade: a idéia de irreversibilidade principia a aparecer, ainda que apenas como fato de realização em futuro longínquo (Fuchs, 1974). Por volta dos seis anos, a criança toma consciência, afetiva e intelectualmente, cada vez mais nítida, do significado da morte: teme que a mãe morra, que a abandone à sua sorte, mas recusa a crer que ela mesma morrerá um dia. Disso, só começará a ter consciência aos sete anos. Aos oito, ou nove anos (Choron, 1969), ela sabe que os seres morrem quando alguém os mata, quando estão doentes ou velhos, que todos morrerão um dia, inclusive ela mesma. Nos anos sucessivos de sua vida, os nexos significativos se enriquecem de conteúdos e se aproximam progressivamente da imagem de morte dos adultos. Através de diversas formas de mediação e de orientação culturais, a criança se apropria das 'representações convencionais' que os adultos têm da morte. Em um primeiro instante, a palavra morte era para ela um continente vazio, uma abstração irrealizável. Esse invólucro se preenche progressivamente, em duas direções, de acordo com a orientação mais ou menos dominante que prevalece no universo dos adultos: no sentido das representações mágico-religiosas ou no dos saberes 'reais' sobre os processos da morte e do morrer (Fuchs, 1974). A apropriação da idéia de morte é, pois, função da interação do sujeito com os seus parceiros, com o seu próprio eu, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
com a sua cultura. A consciência "não fará jamais a experiência de sua morte, mas viverá durante toda sua vida com uma imagem empírica da morte, aquela que uma dada sociedade formula a partir do desaparecimento gradual de seus membros" (Ziegler, 1975: 21). Esta consciência de morte é especialmente importante, na medida em que desempenha uma função no que respeita à vida e na medida em que é uma função individual que se explica por relação à coletividade. Desmaios, sonos profundos, acidentes graves são modos de se aproximar da consciência de morte. Mas nenhum se iguala à experiência da morte do próximo, à de um ser ao qual se está afetivamente ligado, com o qual se constituiu um 'nós', com o qual se edificou uma comunidade que parece romper-se. Uma vez que esta comunidade é, de algum modo, eu mesmo, experimento algo de morte dentro de mim (Landsberg, 1951). Assim, a morte do outro evocará sempre minha própria morte; ela testemunhará minha precariedade, ela me forçará a pensar os meus limites. Como observou Louis-Vicent Thomas (1978: 24), é no momento em que tomo consciência de minha finitude que cada instante de minha vida se carrega de todo o peso do meu destino. Cada um dos meus atos se inscreve nele como uma peça nova de uma edificação irreversível que continua por toda a duração de minha existência, deixando-me cada vez com o gosto do inacabado. E o próprio autor conclui: "a consciência da morte é a condição mesma da vida da consciência" (idem).
******ebook converter DEMO Watermarks*******
2 Semantização do absurdo: entre dois mundos As páginas que seguem constituem uma discussão da apropriação cultural da morte. Esta discussão exige que tomemos por base o exame de uma larga relação de formas culturais possíveis, porque somente assim seremos capazes de distinguir os comportamentos funerários ou elementos desses que são comuns e invariantes através das sociedades, das práticas e concepções que são específicas a determinadas sociedades e que são função dos seus particulares arranjos estruturais. Entretanto, nosso interesse não é o de proceder a uma enciclopedização etnográfica dos ritos fúnebres; queremos apenas destacar determinadas estruturas de pensamento e codificações ideológicas, no interior das quais a morte é constituída como algo significativo, para, em seguida, tentar descobrir suas atualizações e realizações históricas na sociedade ocidental. Sem uma tal referência, corremos o risco de nos encontrar demasiadamente ligados à ideologia do sistema que queremos investigar, o que não tornará fácil o trabalho de lançar sobre ele um olhar crítico. Todavia, ao lançarmos mão de dados extraídos de diferentes culturas, tomamos consciência dos limites desse procedimento e procuramos nos resguardar da suposição de que possamos inferir a significação de cada um deles fazendo abstração do contexto etnográfico em que esses dados adquirem significação, isto é, da comunidade pontual em que vivem. Pelo contrário, a exposição que segue se esforçará em mostrar também que, em antropologia, duas coisas podem freqüentemente ser a mesma coisa, e que uma coisa normalmente é duas ou mais coisas, segundo as variações dos conjuntos significacionais a que pertençam. Os dados de diferentes procedências etnográficas que entram na composição do texto seguinte pretendem cumprir a dupla função de nos fazer sair de nós mesmos, para que nos possamos apreciar como objeto, e de colocar intelectualmente as mesmas coisas em novas relações, de maneira que possamos deduzir outras relações e novos conhecimentos. As crenças, as práticas, os ritos funerários operam dentro de um campo semântico. Mas este campo está longe de ser o mesmo segundo as culturas, os grupos sociais e os diferentes momentos históricos de uma sociedade. As diferentes mortes-acontecimentos significam coisas diversas, segundo o lugar desses campos que ocupem, de acordo com a classe particular de morte a que pertençam. Inserir a morte em um sistema de classificação, para compreender as mortes-eventos, dialogar com elas e atribuir-lhes sentido, parece ser um ******ebook converter DEMO Watermarks*******
trabalho que toda cultura realiza e cujos resultados exibe, seja em estado prático, seja através de um sistema de teorias, idéias e dogmas conscientemente formulados e ostensivamente oferecidos ao observador. No Brasil, por exemplo, uma pessoa pode morrer de 'morte morrida', morrer 'de velhice', de 'morte matada', de 'morte violenta'... cada uma delas provocando nos sobreviventes uma particular reação emocional. Morrer de 'morte morrida' significa que não é necessário procurar um culpado e que o indivíduo chegou ao termo da existência biológica por razões ligadas ao próprio funcionamento do organismo, sem que uma doença particular possa ser responsabilizada. Nesse caso, se a causa existe, é sempre apontada: 'morreu de enfarte', de 'nó-nas-tripas', de 'fraqueza', de 'desgosto'. Morrer de 'velhice' talvez seja a mais típica ocorrência da 'morte morrida'. É a morte do ancião, que lentamente se aproxima do fim – porque toda existência terrestre é finita – sem envolver acidentes, agressões ou outros alteradores do processo normal da vida. Morte 'morrida' e morte 'por velhice' confirmam talvez o que a cultura brasileira tradicional chama de 'morte natural', conceito que não se confunde com o que modernamente se entende por este termo nos meios urbanos e industriais sob influência da ideologia da medicalização (da qual falaremos nos capítulos subseqüentes). No outro extremo, encontramos a 'morte matada', categoria que inclui todos os eventos de morte para os quais se poderia apontar um responsável: morte por acidente, assassinato, suicídio... Nos meios mais escolarizados fala-se de 'morte súbita' e de seu contrário, 'morte agônica'. Para um brasileiro, este sistema de classificação da morte-evento é fundamental: diante da notícia de que alguém morreu, ele perguntará imediatamente, sem grandes reflexões – "de quê?". Em seguida, se se tratar de um morto não muito próximo, tecerá alguma referência elogiosa a sua pessoa: "que pena, ele era tão bom...". Para boa parte das culturas africanas, não existe morte natural. "Toda morte é um assassinato", diz Ziegler. Na África ocidental, quando um bambara morre, o acontecimento é recebido como uma agressão incompreensível. Para eles, nada predispõe um ser consciente à morte. Os bambara têm os seus velhos em grande consideração: pensam que eles possuem a consciência mais rica e penetrante. Não encontram nenhuma razão para a destruição da consciência do homem, pois essa consciência cresce com a idade. A explicação da desagregação do corpo não lhes parece suficiente. Então, os bambara remetem a morte "ao domínio exterior das agressões noturnas" e "do mal que vaga pelo mundo". Em bambara, a palavra 'morte' é sinônimo de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
'contágio' (Ziegler, 1975: 273-4). Os sistemas de classificação se esforçam por definir os limites das mortesacontecimentos. Quais as fronteiras, por exemplo, entre a morte e a doença? Já fizemos referência à prática em algumas culturas de enterrar os mortos/ doentes antes mesmo que estes exalem os últimos suspiros; no Ocidente, alguns doentes (leprosos, por exemplo) foram banidos e socialmente considerados mortos antes de expirarem. Entre o começo da agonia e suas conseqüências, os marcos nem sempre são visíveis ou considerados relevantes pelos grupos sociais. Assim, no dialeto aché-guayaki do Brasil, a mesma palavra mano, cobre as noções de 'estar acometido de uma doença grave' e 'morrer'. Esta questão classificatória não é meramente lingüística: os limites das categorias semânticoculturais da morte estão atrás das práticas de abandono dos velhos, das nossas discussões sobre aborto, contracepção, cura, tratamento, pena de morte... Por não admitirem, como a maioria dos negro-africanos, o conceito de morte natural (exceção feita à 'morte de Deus', quer dizer, por velhice), os altogoveanos antes de enterrar costumam praticar a autópsia do defunto a fim de classificar a morte-evento, determinando a causa e a origem. Assim, se as vísceras estão pretas, conclui-se que foi ngo que matou, se o ventre está vermelho, será mwili; a presença de pequenas feridas indica que o indivíduo morreu por akwuna. Entre os obamba, o morto é dividido da cabeça aos pés, em um lado 'patrilinear' e um 'matrilinear': se as referidas lesões se situam do lado esquerdo ou direito, as testemunhas da autópsia concluirão onde se deverá buscar a culpa, se entre os parentes maternos ou paternos (Alihanga, 1979). A crença em uma categoria de morte natural não exclui sempre a crença na morte por bruxaria. Pelo contrário, como entre os nuer, estas duas categorias são complementares, uma dando contra do que a outra não é capaz (...). A morte não é somente um fato natural – é também um fato social (...) trata-se também da destruição de um membro da família e rede de parentesco, de uma comunidade e uma tribo (...). Leva à consulta de oráculos, à realização de ritos mágicos e à vingança (...). A atribuição do infortúnio à bruxaria, não exclui o que nós chamamos 'causas reais', mas superpõe-se a estas (...). (EvansPritchard, 1978: 64) Semelhantemente, os krahó atribuem uma morte a feitiço, doença, ou acidente, esta última categoria parecendo englobar todos os eventos que nós ******ebook converter DEMO Watermarks*******
consideraríamos como mortes repentinas (Cunha, 1978). Em contraste, os guajiro assumem um grande distanciamento no que respeita às morteseventos, às mortes individuais. Para eles, estas não se devem à violação de tabus, nem são o resultado de ritos ou encantamentos mágicos da parte de um inimigo. Elas são obra de seres supra-humanos bastante abstratos e muito indiferentes à morte de cada homem individual. Os animais contaminadores e todos os outros causadores de doenças mortais atacam cegamente, ao acaso. Os guajiro consideram a morte 'anônima' e 'aleatória' (Perrin, 1979: 123). Existem também as classificações das mortes segundo o plano ético: 'morrer em paz', 'morrer tranqüilo'. A deontologia negro-africana, como observou Thomas (1976: 192), é denominada pela distinção boa/má morte. A primeira é aquela que se verifica conforme as normas que a tradição prevê: condições de lugar (morrer na aldeia); de tempo (morrer quando se está repleto de anos, quando a missão está cumprida e quando os filhos são numerosos para chorar o defunto e fazer os sacrifícios em sua intenção); de modo (morrer sem sofrimento, sem acidente ou doença desonrosa, na paz, sem rancor nem ressentimento). A boa morte, diz-se, "é bela e suave porque ela conduz ao 'pai' e aos ancestrais. Morrer é dizer a seu pai: eis-me, cantam os Pigmeus". De um modo geral, os sistemas de classificação da morte tendem a se estruturar diferentemente conforme se a veja como predominantemente determinada – isto é, previsível, classificável e universal ('ninguém escapa à morte') – ou predominantemente aleatória e cega, atuando 'quando chega o momento'. Estes dominantes, entretanto, não se excluem: a convivência, nos sistemas de classificação, do insólito e do comum, do acidental e do determinado, inspira-se na própria absurdidade do drama final da existência humana. Nossas sociedades industriais – tentaremos mostrá-lo nos próximos capítulos – tendem a supervalorizar, em seus sistemas de representação, as dimensões aleatórias da morte, em detrimento de seu lado determinístico e universal. O resultado, então, é que, cada vez menos vemos a morte como uma fatalidade e cada vez mais a encaramos como uma probabilidade que tende a diminuir na medida em que se controlam os fatores aleatórios: segundo essa concepção, se eu fizer ginástica, check-up rotineiro, observar as regras de segurança etc., reduzirei minhas possibilidades de morrer. Tentemos aprofundar essas questões de representação da morte segundo as pistas que nos fornecem as civilizações. O absurdo da finitude humana reside em parte no fato de que a morte física não basta para realizar a morte nas consciências. As lembranças daquele que ******ebook converter DEMO Watermarks*******
morreu recentemente continuam sendo uma forma de sua presença no mundo. E esta presença só arrefece aos poucos, lentamente, por meio de uma série de dilaceramentos de que são vítimas os sobreviventes. A consciência não consegue pensar o morto como morto e por isso não pode se furtar a lhe atribuir uma certa vida. A morte definitiva não é determinada pela realidade natural mais que pelas instituições sociais: o defunto conserva ainda, por algum tempo, determinados poderes e direitos, mais ou menos duradouros segundo as diferentes culturas. Entre os kota, por exemplo, uma viúva permanece a esposa do marido falecido, até que o status desse venha a ser definitivamente o status de um morto. Se, por acaso, depois da morte física do marido, ela vier a ficar grávida, a criança será considerada filha do falecido, com todas as conseqüências que isto implicar. O morto, então, não é visto como alguém que esteja completamente do outro lado, mas como alguém submetido a uma passagem, a um processo de mudança, a um estado transitório. Esta transição pode ser tão sutil que, segundo uma idéia bastante difundida, o defunto mesmo não percebe que não pertence mais ao mundo dos vivos. Por conseguinte, os mortos não estão fora da circulação das mensagens humanas: a morte não corta os canais de comunicação com o morto, embora imponha novos meios e novos códigos. Os diola, os dida, os bété , os baulé , os lobi e muitos outros africanos costumam interrogar seus mortos no sentido de saber destes quais são os responsáveis pela morte (Thomas, Rousset & Thao, 1976). Contrariamente, entre os krahó, são os vivos que acusam os mortos: "Se você se tivesse lembrado de nós, não teria morrido. Agora você que voltar para pegar a gente, vá-se embora, fique por lá" (Cunha, 1978: 57). Esta 'ultra-vida', a presença e sobrevivência do duplo, implica a continuação da interação, ou seja, o não reconhecimento da morte. Os trobriandinos crêem na existência de dois tipos de alma: baloma, que é a forma principal e durável do espírito do morto, e kosi, entidade mal definida e que leva uma existência breve e precária nos lugares freqüentados precedentemente pelo defunto. Só a primeira vai morar de maneira permanente na 'ilha dos espíritos', enquanto a segunda – mais íntima, digamos – ficará alguns dias que seguem o óbito amedrontando os vivos. No paleolítico, o esqueleto recoberto de ocre acocorado em posição fetal, logo acompanhado dos objetos pessoais, deixa-nos supor ser antiga a idéia de duplo e, mais particularmente, a idéia de que em sua outra vida, os mortos, como os vivos, têm necessidades. No estado de Chiuaua, no norte do México, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
o morto é enterrado com milho, feijão, seus arcos, suas flechas e um pote de tesvino (espécie de cerveja de milho), porque as pessoas acreditam ser melhor atender logo às necessidades do morto que proporcionar-lhe ocasião de retornar para satisfazê-las. Um sogro, sentado ao lado da tumba de seu genro morto por suicídio, entretém com este uma conversa, fazendo as perguntas e dando as respostas: Por que você morreu? – Porque decidi morrer. – Isto não é bom. Você é sem-vergonha. Que é que você ganhou, estando aí com estas pedras em cima de você?... Eu te deixo este tesvino e esta comida, carne... a fim que você se alimente e não retorne. Nós não queremos mais saber de você. Você é um imbecil... Você não beberá mais tesvino conosco lá em casa. Fique aqui! Não volte mais para casa, porque isto não vai lhe adiantar nada. Nós o queimaríamos. Adeus! Vá-se embora! Nós não queremos mais saber de você! (Soustelle, 1979: 106) A ambigüidade da situação comunicacional do morto-ainda-vivo é muitas vezes clara: entre os mitsogo do Gabão (Maertens, 1979: 158) um dançarino carrega o cadáver sobre seus ombros, fazendo piruetas, ambos envolvidos em uma vestimenta única, ao som de aclamações: "o morto anda" – enquanto uma voz na floresta imita a do defunto, ao som de aplausos: "o morto fala!". Sim, o morto fala. O morto fala por intermediários, através de possuídos, 'cavalos', como se diz em alguns cultos afro-brasileiros, que lhe emprestam a boca e o corpo. O morto fala diretamente, através de manifestações mais concretas: ele pode jogar pedras, ele pode assoviar, ele pode aparecer por meio de silhuetas estranhas (Madagascar). Os mortos se exprimem pelo reaparecimento de 'desencarnados', que têm a configuração visual de corpos, mas não são corpos de carne e osso porque não obedecem à lei da gravidade. Mas os desencarnados não são também puras espiritualidades: algumas vezes podem mesmo ser fotografados. Diz-se que aparecem envolvidos por uma espécie de aura luminosa e que são capazes de se deslocar pelos ares... Os mortos se comunicam por ruídos ouvidos nos túmulos, explosões de gases, fogos-fátuos, algumas vezes com objetivo significacional bastante definido (por exemplo, o túmulo de Silvestre II crepitava, segundo se acreditou, cada vez que um papa fosse morrer): existe uma linguagem dos túmulos como existe uma linguagem da arte. Os mortos falam por suas metáforas e por suas metonímias. Em sua extensa obra, Frazer levantou um grande número de proibições que tinham por objetivo proteger os vivos das sombras, ou proteger as sombras contra a ação ******ebook converter DEMO Watermarks*******
dos vivos. As crenças que exprimem temor dos mortos-sombras são da mesma natureza daquelas que exprimem medo das sombras dos vivos, pois nessas últimas os homens vêem freqüentemente uma dimensão de morte. Assim, é necessário evitar que a sombra seja projetada sobre os alimentos, proteger-se de projetar sombra sobre um morto, de encontrar sombra de mulheres grávidas. As mulheres devem se cuidar de não serem fecundadas por sombras... Entre os trobriandinos, kosi é comparado à sombra de um ser humano, enquanto baloma o é a seu reflexo no espelho (Panoff, 1972). Nas ilhas Fidji, os indígenas separam o que chamam de 'sombra escura' da 'sombra clara', o reflexo na água ou no espelho. O além do espelho é o verdadeiro reino dos duplos, o inverso mágico da vida... Os tabus, as superstições, os presságios do reflexo e do espelho são da mesma natureza dos que concernem à sombra. Ainda hoje um espelho quebrado é signo nefasto e, quando a morte sobrevém, se cobrem de negro os espelhos, na França, Alemanha, etc. (Morin, 1970: 152) O jogo especular se manifesta também nas concepções de morte entre os krahó: krahó: "os mekaró chamam-nos de mekaró, eles não se chamam (a si mesmos) de mekaró, eles têm medo de nós" (Cunha, 1978: 120). Poderíamos ainda falar das manifestações das mortes nos sonhos, nos ecos (reflexos auditivos) etc. A estas manifestações de vida dos mortos é necessário às sociedades responder. No candomblé da Bahia a função da casa dos mortos-que-voltam, no terreiro de egun, egun, é garantir uma comunicação ininterrupta entre os vivos e os mortos, mas de um modo regrado a fim de possibilitar o "livre fluxo do saber social dos ancestrais (...) na direção desses ignorantes da vida que são os vivos" (Ziegler, 1975: 203). Diálogo difícil, entretanto. O ar, o vento que o egun levanta ao dançar é benéfico e capaz de curar doenças; mas quem quer que toque as vestimentas do egun morre instantaneamente. Um verdadeiro pânico se abate sobre o grupo cada vez que o egun avança, dançando na direção do espaço reservado aos vivos. À noite, só os homens mais corajosos ousam passear, assim mesmo munidos de longas varas, a fim de se protegerem de tocar um egun vagando pela noite. Os eguns não só separam os mortos dos vivos, como levam morte aos vivos. Um equívoco profundo governa assim a casa dos mortos. Massacrantes e mediadores, protetores dos vivos e matadores, os eguns simbolizam em uma figura única as características terrificantes e contraditórias de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
uma morte que, mesmo o admirável sistema nagô não consegue dominar totalmente. (Ziegler, 1975: 212) Na Nova Guiné, segundo nos informa Thomas (1976), os viúvos só saem munidos de porretes, para se protegerem da sombra de suas mulheres falecidas. Numerosos esqueletos antigos foram descobertos com indícios de terem sido amarrados. Em Queensland, quebravam-se os ossos do morto, prendiamse os joelhos perto do queixo e enchia-se o estômago de pedras. O mesmo sentimento, provavelmente, levou a colocar grandes blocos de pedra sobre o peito dos defuntos, a fechar hermeticamente as sepulturas, a fechar com pregos as urnas e os caixões. Por toda parte, é necessário disciplinar a ingerência dos mortos na vida dos vivos: no Laos se amarram os dedos do pé do cadáver; em Uganda, os polegares são amarrados aos artelhos; os kayapó do Brasil amarram os tornozelos e ligam as mãos aos joelhos; no Tigre, na Etiópia, se amarram os polegares ao pênis; em algumas regiões do Quebec não se calça o cadáver, cadáver, a fim de impedi-lo de caminhar sobre a neve e o gelo (Maertens, 1979). Em muitas culturas, roga-se ao defunto que esqueça os seus, que deixe os vivos em paz: "A partir de hoje, você não tem mais parentes, não tem mais mulher, nem tem mais filhos, você não é mais da aldeia" (Thomas, 1976: 512), dizem os edo, edo, da Nigéria, quebrando as pernas e perfurando os olhos do morto, se por acaso se persuadirem de que se trata de um 'mau morto'. Outras vezes os vivos se dirigem aos mortos em uma linguagem menos direta e mais sutil. Assim, no noroeste da Espanha, onde as pessoas crêem que a alma do morto siga a família quando esta retorna do cemitério, costumava-se acender fogo diante da casa e queimar o colchão do defunto no cruzamento de duas estradas; na Trácia, uma atenção particular é dirigida ao lugar onde repousa o morto, especialmente onde esteve sua cabeça: coloca-se aí um recipiente com água e vinho e um pouco de farinha. Mas quando se acredita que a doença permaneceu no lugar onde estava o morto, coloca-se uma pedra pesada, um machado, quebra-se um recipiente feito de terra, enfiam-se pregos no local, espalha-se carvão ardente no lugar onde ficavam as pernas do morto, para "queimar a morte" (Ribeyrol, 1979: 51), isto é, pensando que assim procedendo podem cortar ou espantar a morte. Entre os camponeses europeus, é comum que se lave e se purifique a câmara mortuária e que se cubram os espelhos, na intenção de exorcizar a presença do morto. Tal intenção pode encontrar uma multidão de práticas. Os nayar, nayar, da Índia, que transportam um defunto, vestem-se de mulher para que este não ******ebook converter DEMO Watermarks*******
os reconheça. Em muitas zonas camponesas da Europa, o defunto é tirado de casa através do teto, com os pés para frente, a fim de que não retorne. Entre os zulu os zulu,, os que transportam um morto vêm encontrá-lo andando de costas, a fim de que seus rastros estejam voltados para o exterior. Na França, em Beauguesne, os sobreviventes rodam em torno do túmulo andando em marcha à ré, antes de o deixar. Os tsimithey de Madagascar jogam terra nas tumbas de costas para estas. Na Galícia, o carro funerário vem três vezes seguidas diante da porta, para que se esteja certo de que o espírito embarcou nele: além disso, abrem-se as portas, as janelas, as gavetas, para não deixar nenhuma chance ao espírito de ficar agarrado em algum desses lugares. Os cheremi, cheremi, os lodugan, lodugan, os hmong, hmong, entre outros, fazem uma abertura na parede só para a circunstância de uma morte, para, por ela, retirar o cadáver. Os pigmeus deixam um fogo em volta da casa durante quatro dias. Os panan de Bornéu amarram ao contrário a barca que transportou um cadáver para o outro lado do rio, com a intenção de tapear o defunto. Na Bretanha, o cortejo funerário fica ziguezagueando pela aldeia e pega os caminhos menos conhecidos e freqüentados para ir ao cemitério. Os iban de Bornéu, os malacitas das Ilhas Salomão, os luba do Kasai, voltam do cemitério por um caminho diferente daquele que foi tomado para ir. Os samoiedos e os esquimós abaixam a parede da tenda imediatamente após a saída do defunto. Os tunguses fazem a mesma coisa e mudam de lugar a tenda do morto... (Maertens, 1979). Eis alguns exemplos de um interminável diálogo a que nós, ocidentais, estamos cada vez mais surdos e cujos idiomas estamos crescentemente despreparados para entender. A humanidade, já dissemos, é a única espécie consciente da mortalidade de seus membros. Esta consciência faz parte da adaptação autocrítica dos homens ao mundo, que é a cultura, e está em relação com a significação do indivíduo no corpo social. Assim, a morte se situa no ponto de entrecruzamento das correntes bio-antropológicas fundamentais. É pela consciência dela que o homem se distingue mais nitidamente dos outros seres vivos e sua vida adquire o que ela tem de mais fundamental. Os bororo, bororo, por exemplo, colocam a consciência da morte e as práticas que dela decorrem no mesmo nível das interdições de incesto e das regras de sociabilidade: conta-se que antes do advento de suas instituições os bororo eram como os bichos e os outros índios, guerreando entre si, "deixando seus mortos apodrecerem na mata", "sem vergonha" nas suas atividades sexuais e "copulando até com suas próprias irmãs" (Crocker, 1977: 108). Em todas as culturas os indivíduos, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
para conseguirem construir intelectual e afetivamente suas (auto-)identidades, têm necessidade de um mito do fim, como de um mito da origem. E estes mitos não lhes faltam: purificação do pecado, punição da inveja do vizinho, vingança de um afim, mau-olhado... Poder-se-ia até dizer que cada cultura representa um estilo particular de morrer. Sobre a morte sistemas lógicos a brangentes e coer entes foram construídos, demonstrando uma extraordinária acuidade e qualidade de reflexão. Trata-se de inestimáveis saberes de conjugar o tudo e o nada, a angústia e o alívio, a tristeza e a alegria, a falta e a substituição, o inteligível e o incompreensível, o aqui e o além, a vida e a morte. Tais sistemas lógicos foram construídos para logicizar o absurdo que ameaça fazer da lógica um absurdo. Não podem encontrar outra solução que a rejeição da morte – exatamente fonte de absurdo, sem o qual a lógica não seria possível: interminável dialética de rejeição da morte, que consiste ao mesmo tempo em viver a vida e matar a morte, em viver a morte e matar a vida. Por isso, o morto não cessa de existir, ele apenas se libera do aspecto terrestre de sua existência para continuá-la em outro lugar. Os vivos poderão ser representados como já estando mortos e os mortos como retransformados em vivos. A recusa da morte pela crença na sobrevivência do duplo em um outro lugar é talvez tão velha quanto o homem: perto do esqueleto do homem de Neanderthal, na Chapelle-aux-Saints, descobriu-se uma perna de bizonte quase intacta – o que nos permite levantar a hipótese de que os companheiros do falecido tivessem querido prover as suas necessidades de alimento em um outro mundo. Depois, os exemplos abundam: na Idade do Bronze os mortos são enterrados com alimentos e utensílios de cozinha; no Egito antigo, algumas moedas de ouro são-lhes introduzidas na boca para que possam pagar suas estadias no além... Despedir-se de um indivíduo morto é um gesto de exclusão. Mas esta exclusão deverá ser compensada, invertida de certo modo, em um movimento contrário de re-inserção do indivíduo, de iniciação, de renascimento para uma nova vida, em um novo mundo, em uma nova sociedade. A sociedade do outro mundo é ainda uma sociedade cujas relações com a dos vivos são quase sempre bastante definidas. Assim, em muitas sociedades da América do Norte, a vida no outro mundo é concebida como uma réplica da vida terrestre, mas uma vida na qual tristeza, fome e aborrecimento não encontram lugar e onde os mortos são felizes, embora possam às vezes sentir saudades de seus companheiros, de suas antigas vidas e sejam tentados a reaparecer. Entre os ******ebook converter DEMO Watermarks*******
dayak , a sociedade dos mortos também se assemelha à dos vivos: a aldeia do além é vista como qualquer aldeia terrestre com suas divisões, indo o morto para um setor 'elegante' ou 'miserável' de acordo com o número de sacrifícios oferecidos pelos sobreviventes. Os cocopa, cocopa, da Califórnia, imaginam igualmente a mesma vida terrestre, embora sobre uma terra mais fértil. Os tubetube, tubetube, da Nova Guiné, imaginam uma sociedade do mesmo tamanho, onde continuam os casamentos e nascimentos, mas de onde desaparecem as distinções entre bem e mal (Maertens, 1979). Entre os krahó, krahó, o mundo dos mortos é oposto e complementar ao dos vivos: "a lua é o sol dos mekaró". mekaró". Os mekaró gostam da escuridão do mato e não da chapada e do limpo, que é a paisagem que os krahó consideram desejável; comprazem-se de lugares obscuros, de dias de inverno e de chuvas, e temem o sol quente; ficam em sua aldeia de dia, mas vagam pela mata de noite (Cunha, 1978: 116). Os bellabella-coola, coola, da Colúmbia canadense, pensam que os mortos passam para o outro lado da Terra, onde os defuntos vivem uma vida inversa à dos vivos: o inverno deles corresponde ao verão dos vivos; seus dias às noites; os rios correm na direção da nascente; as comidas amargas têm gosto saboroso e se, por acaso, um vivo neste mundo aparecer, é ele que exalará odor nauseabundo (Maertens, 1979). No Camboja, em alguns contos populares, o mundo dos mortos é descrito como sendo de proporções invertidas com relação às do mundo dos vivos: o que é grande aqui é minúsculo lá e viceversa (Thierry, 1979: 234). Entre os brou, brou, ainda no Camboja, o mundo da morte é o de uma 'vida invertida', onde o defunto se serve da mão esquerda, utiliza marmitas perfuradas, ferramentas sem cabo e sem corte etc. Uma vida invertida mas também vida menor, segundo informa Trubetzkoy (1979: 230-1): "a casa do defunto é uma casa em miniatura, ele se contenta com migalhas de alimentos". No fundo, a morte é como a sombra da vida: sombra projetada, menos densa que as coisas mesmas". Freqüentemente as relações entre mundos dos vivos e sociedades dos mortos são concebidas de modo complexo e indireto. Para o budismo, por exemplo, morte e nascimento estão no mesmo plano: os dois episódios se determinam reciprocamente e se inscrevem na engrenagem interminável das transmigrações, o samsara, samsara, porque tudo o que nasce, envelhece, morre e renasce. A lei fundamental do budismo quer que se saia desta engrenagem, que se neguem tanto o nascimento como a morte e o renascimento, que se despreze o 'querer viver', para poder escapar desse sistema de dor e sofrimento. A morte nada mais é que o resultado da vontade de viver e das ******ebook converter DEMO Watermarks*******
imperfeições que os renascimentos produzem. Por outro lado, no pensamento budista existe uma outra morte, libertação definitiva dessas existências sucessivas: o nirvana. nirvana. Aí se encontra a vida indeterminada, mas total, o êxtase, quer dizer, amor e plenitude, mas também vazio e nada. O nirvana é a extinção da engrenagem de renascimentos e mortes, é o fim da impermanência, é a eterna felicidade. É a 'outra margem', o outro mundo. A idéia de nirvana contém em si, confundidos, a verdadeira morte (que aparece como a verdadeira vida) e a vida absoluta (que aparece como morte permanente) – fusão na totalidade, descobrimento do conhecimento e da onisciência: "nossa faculdade de pensar desaparece, mas não nossos pensamentos; o raciocínio foge, mas o conhecimento permanece" (Buda). O seguinte relato da morte de Buda, que Solange Thierry (1979: 72) nos oferece, ilustra bem a visão budista da morte e do nirvana: nirvana: é provavelmente no ano de 478 antes de nossa era, uma noite de lua cheia do mês de karttika (novembro-dezembro) ou do mês de vaisakha (maio) do ano seguinte, que teve lugar a morte, ou melhor, a extinção de Buda. Os discípulos choram, a terra treme, mas sobre o corpo alongado, duas árvores gêmeas florescem fora de estação. Buda repousa em um pequeno bosque, perto da cidade de Kusinagara, não longe de um riacho. Ele está deitado sobre o lado direito, com a cabeça virada para o oeste, a perna esquerda alongada sobre a direita. Ele entrou no nirvana, a Extinção, que é para ele o mahaparinirvana, a 'grande total extinção'. O sopro de sua existência não encontra mais lugar em uma outra existência. Ele não renascerá mais, como renascem e renascem sem parar as criaturas imperfeitas, votadas a uma transmigração sem fim. Ele chegou à 'outra margem', ele se evadiu da engrenagem das mortes e das existências encadeadas uma às outras pela força do desejo e da ignorância (...). O nirvana é evasão da dor. Ele não é nem um lugar, nem uma duração: somente um estado imutável. Ele é o não-movimento, o não-recomeço, depois do turbilhão das existências. É a 'parada das sensações'. Mas, embora se defina negativamente, não é de modo algum o nada: o aniquilamento da dor, da morte, do renascimento, não significa o nada. O nirvana é uma certa concepção da plenitude, da realização, da perfeição... O hinduísmo propõe um escalonamento complexo para o movimento dos mortos. Acredita que aquele que viveu na fé entrará na 'vida de luz'. Quem viveu o bem trilhará o 'caminho de fumaça' e ficará no 'mundo dos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
antepassados', aguardando renascer segundo os seus méritos – e renascerá diversas vezes, tantos quantas sejam necessárias para que se purifique, se aperfeiçoe e atinja o objetivo supremo. Quem praticou o mal reencarnar-se-á em animais insignificantes (moscas, mosquitos etc.). Para o muçulmano, a vida no além também dependerá da vida levada aqui na Terra: ele será julgado pela sua vida e recompensado ou punido de acordo com os seus méritos. Vive a morte como uma fatalidade, mas sobretudo como uma porta de acesso a Deus, um passo que é necessário dar para ser admitido na intimidade de Alá. A morte é vivida por ele todos os dias e normalmente aceita com serenidade: nos cemitérios, não há muros altos, não há grandes construções sobre os mortos; apenas algumas pedras assinalam a posição do corpo, orientado na direção de Meca. O outro mundo dos muçulmanos mais antigos, que viviam em desertos áridos, era representado como uma paisagem de árvores frondosas e fontes de águas frescas e límpidas. O cristianismo tradicional compreendia o outro mundo estratificado: o céu – ou melhor os céus – o purgatório, os limbos dos Patriarcas, os limbos dos não-batizados. Os baba-kongo do Zaire também estabelecem graus na morte. Primeiro, a morte terrestre, quando as almas se perdem na mata; depois, mais ou menos rapidamente de acordo com a importância dos papéis sociais, as almas morrem outra vez (mulheres e crianças, no fim de alguns meses; homens comuns, ao cabo de alguns anos; os dignitários, após cinco ou dez anos; os chefes, depois de várias décadas; os grandes chefes e os grandes bandidos ainda mais tempo; os filhos de M'Bangala, de M'Bangala, a mulher de nove seios, ancestral de todos os yombe, os yombe, permanecem imortais). Todavia, esta morte definitiva atinge a pessoa e não o ser, porque as almas destruídas se fundem na substância dos gênios. No Senegal, entre os serere, a alma deixa o corpo (morte latente); depois, ela se retira definitivamente: então, o sopro vital se apaga, o corpo se decompõe, o defunto vai encontrar seus ancestrais (morte física, morte social); finalmente, vem o ngel bagtan, bagtan, quando já não há mais um esqueleto, quando ninguém mais se lembra do defunto, o morto se transfere para honolulu, no centro da Terra (morte escatológica). Os ancestrais importantes escapam a este estado último e às vezes são divinizados (Thomas, 1976). No pensamento nagô, a terra da vida imperecível, o orum, é povoada de clãs, de linhagens, de tribos e de hierarquias. O homem que deixa o corpo terrestre para se reunir a seu ipori no orum apenas abandona seu rosto humano, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
conservando sua família, sua linhagem, seu clã e o povo no qual o orixá o colocou no momento de sua criação. "Ninguém deixa seus ancestrais e os ancestrais não abandonam ninguém" (Ziegler, 1975: 201). Uma vez realizada sua individualização, o homem não retorna ao nada: vivo, ele é habitado pelo seu orixá; quando morre, retorna ao orum, sob forma de egun, conservando, nos dois extremos, sua individualidade própria, a mesma estrutura de personalidade, os mesmos laços de parentesco. A pessoa humana, uma vez nascida, é indestrutível. Quando um homem morre, "seu próprio rosto o espera no céu, a vida terrestre é então percebida apenas como um desdobramento. Cada homem possui sua eternidade desde antes do seu nascimento" (Ziegler, 1975: 250).
******ebook converter DEMO Watermarks*******
3 De um mundo a outro Diante desses sistemas lógicos de compatibilização do aqui e do além, da vida e da morte, o observador é imediatamente surpreendido por uma constatação equívoca: a permanência do problema e a extraordinária diversidade de soluções que a ele são oferecidas. Contudo, não é impossível localizar, atrás desse leque de soluções, alguns caminhos constantes que as culturas escolhem para atingir suas particulares soluções. Sob a diversidade, alguns pontos comuns saltam imediatamente aos olhos: em primeiro lugar, axioma fundamental, a morte não aniquila o ser; ela abre as portas para um além, para um outra vida: Inferno ou Céu, para os cristãos e os muçulmanos, Campos Elísios, para os gregos antigos, reencarnação e metempsicose na filosofia oriental, passagem para o reino dos ancestrais na África. Por toda parte a morte é entendida como um deslocamento do princípio vital. Em seguida, as culturas poderão escolher uma imagem maternal da morte (a vida do aqui é como a vida de um feto, a morte é o verdadeiro nascimento); ou uma imagem de sono (a morte é repouso, é o último sono – 'cemitério' em sua origem grega significava 'lugar onde se dorme'); ou construir uma teoria de metempsicose (idéia de uma vida que se estende no tempo, passando através de vários corpos); ou uma gramática de reencarnações (que supõem uma continuidade consciente da personalidade através de vários renascimento); ou ainda acreditar na ressurreição (restabelecimento da existência humana depois da morte: 're-viver'), e assim por diante. Entretanto, todas essas representações tranqüilizantes em última instância podem se reduzir a um repertório de categorias gerais que a humanidade produziu no correr do tempo e cujos termos – porque são caminhos diferentes de atingir o mesmo fim – normalmente não se excluem e freqüentemente coexistem em uma mesma cultura: morte-passagem, morte-libertação, convívio-eterno-como-criador, aniquilação-no-nada-que-é-tudo, ressurreição, reencarnação, metempsicose, possessão, permanência-através-dosdescendentes, morte fecunda... A morte, em suma, será sempre uma transformação. Todavia, uma imagem nova da morte está aparecendo entre nós, característica provavelmente exclusiva de nossa civilização: a morte é um desaparecimento. Tanto quanto concebidas, estas soluções aos problemas que a morte coloca são vividas. Por intermédio de suas posturas, de seus movimentos, de sua ação, de sua constituição, de suas transformações, de seus gestos, de suas emoções, o corpo humano fala e toma parte na vida social. Que o corpo porta ******ebook converter DEMO Watermarks*******
em si a marca da vida social, expressa-o a preocupação de toda sociedade de fazer imprimir nele, fisicamente, determinadas marcas, que ela escolhe de um conjunto cujos limites virtuais dificilmente poderiam ser definidos. Se considerarmos todas as modelações que sofre, constataremos que o corpo é pouco mais que uma massa de modelagem à qual a sociedade imprime formas segundo suas próprias disposições: formas nas quais a sociedade projeta a fisionomia do seu próprio espírito (Rodrigues, 1979). Entregue à ritualidade, dela o corpo sai maquiado, rasgado, mutilado, mascarado, vestido, lavado, modelado, perfurado… Enfim, promovido a figurar como significante no discurso social. Ora, ei-lo transformado em cadáver e submetido a uma dinâmica estranha, que escapa às regras sociais de estruturação do corpo e que contém em si o poder terrível de desagregar e desestruturar a imagem do social no corpo projetada e introjetada. Este processo comporta uma ameaça fundamental: a morte do corpo pode ser a morte do símbolo que o corpo é, a morte do símbolo da estrutura social. Se é verdade que para os homens o significante precede o significado e que o símbolo é mais real que a coisa simbolizada, então é necessário fazer algo: é necessário transformar em significantes integrados ao código os próprios acontecimentos por meio dos quais os significantes do código correm o risco de se desintegrar; é preciso transformar a evidência da entropia em signo de ordem, os perigos da finitude em exaltação da permanência. Emergem na cena os ritos funerários. Para cada sociedade, um complexo ritual, complexo que é um verdadeiro teste projetivo da vida coletiva. As emoções a sentir e a expressar – tristeza, indiferença, alegria – não são absolutamente questões de decisão individual. Ao contrário, dependem estreitamente do tipo de morte (acidente, feitiçaria...), da condição do morto (chefe, descendente, colateral, feiticeiro, inimigo...), da posição social do sobrevivente e de sua relação com o desaparecido. Observados estes condicionantes, e excetuadas as mortes de inimigos e feiticeiros (que podem produzir alegria e contentamento), de um modo geral as atitudes dos sobreviventes situam-se em torno de duas configurações a fetiva s funda mentais: tristeza e choro, ou distância e indiferença. Contudo, a reforçar a idéia de que os sentimentos são ritualizados e socialmente propostos, observemos que tristeza, indiferença e alegria não são necessariamente sentimentos reais, experimentados pelos indivíduos, mas, antes, comportamentos convencionais: carpideiras profissionalmente remuneradas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
para expressar um sentimento normalmente não real; alegria protocolarmente interditada; autocontrole, distância, indiferença estóica e mentirosamente sustentados... A morte é talvez o terreno por excelência daquilo que Marcel (1971) denominou "expressão obrigatória dos sentimentos". Thomas (1976) fala-nos, por exemplo, do costume encontrado entre os diola de, diante da morte, demonstrar desprezo ou indiferença zombeteira: ações imitativas irônicas, gritos cheios de alegria, estalos dos dedos, congratulações, andar saltitante sobre um só pé, piruetas, tambores e cantos frenéticos. Os parentes próximos do defunto permanecem imóveis, solenemente inexpressivos, enquanto as mulheres velhas, com ar grave, protegem o cadáver das moscas. Tudo se passa como se eles se dispusessem a aniquilar os prejuízos causados pela morte recusando-se a levá-la a sério e fazendo de conta que não a temem absolutamente. Mas, ao mesmo tempo, os diola desconfiam do morto, cuja alma persiste em rondar a aldeia durante os dias que seguem imediatamente o falecimento. Por esta razão, cuidam atenciosamente do cadáver: vestimenta, toalete, alimentos etc. Somente as mulheres choram. As crianças olham. Hoje ainda, no Oriente Médio, contratam-se carpideiras rituais para que elas aumentem a intensidade dos lamentos e as dimensões da tristeza socialmente obrigatória: elas se arrancam os cabelos, espalham cinzas, rasgam suas roupas, laceram a si mesmas com as unhas, num ritual que talvez provoque mais emoções do que exprima. Entre os malecitas, se houver bastante alimento para entreter as pessoas, o choro ritual pode durar mais de uma semana; entre os cocopa os gritos e choros duram vinte e quatro horas, mas atingem um limite extraordinário de resistência humana. Também em meios populares gregos, eslavos e africanos pode-se observar a prática de as carpideiras desnudarem os seios e os lacerarem, ou de rolarem por terra, para traduzir seu desespero. Entre os zande, por ocasião do enterro de um chefe, usava-se colocar no túmulo oito mulheres com os membros fraturados, cujos gritos de dor se reuniam aos das carpideiras, superando estes últimos (Maertens, 1979). Evidentemente, não se pode reduzir tais manifestações à expressão da tristeza individual, por mais viva que seja esta tristeza: pelo contrário, é mais possível que uma boa carpideira venha a sentir efetivamente os sentimentos que ela é paga para exprimir e provocar. Nesse sentido, seria oportuno lembrar aqui as palavras de Durkheim (1912: 571): se os cristãos durante as festas comemorativas da Paixão, se o judeu no ******ebook converter DEMO Watermarks*******
aniversário da queda de Jerusalém, jejuam e se mortificam, não é para dar curso a uma tristeza espontaneamente experimentada. Nestas circunstâncias, o estado interior do crente carece de proporção com as duras abstinências a que se submete. Se está triste, é, antes de tudo, porque se obriga a estar triste e se obriga a isso para afirmar a sua fé. A atitude do australiano durante o luto se explica da mesma maneira. Se chora, se geme, não é simplesmente para expressar uma dor individual; é para cumprir um dever que a sociedade circundante não deixa de recordar-lhe quando chega o caso. Com efeito, e em suma, quando choramos pela morte de uma pessoa e não choramos pela morte de outra, estamos, no primeiro caso, cumprindo uma obrigação que diz respeito à relação entre o nosso status e o status da pessoa que morreu; e dispensados dessa obrigação no segundo caso. Tais práticas funerárias – cujos traços mais antigos remontam ao menos ao paleolítico médio (entre 10.000 e 35.000 anos antes de nossa era), quando os homens de Neanderthal experimentavam talvez em relação a seus mortos um sentimento muito próximo aos nossos (Thoury, 1979) – apresentam, apesar de diferenças particulares de concretização em culturas específicas, uma certa unidade no que diz respeito à função: conhecer as causas da morte, restabelecer a ordem na sociedade no caso de haver um culpado, expressar interesse e afeição dos sobreviventes pelo defunto e, principalmente, contribuir para a sua viagem em direção ao outro mundo. No fundo, os ritos são solidários com os sistemas míticos e com eles supõem uma crença comum: a morte não é jamais o aniquilamento total do homem, ela é uma passagem para outra vida. De um modo qualquer, o morto ainda vive, tanto que se pode comunicar com ele e receber suas mensagens. Van Gennep (1969) e Hertz (1970) demonstraram que a morte é, para a consciência coletiva, um afastamento entre o indivíduo e a convivência humana. Todavia, esta separação tem um caráter temporário e pretende fazer com que o morto passe da sociedade palpável dos vivos à sociedade invisível dos ancestrais. Como fenômeno social, a morte e os ritos a ela associados consistem na realização do penoso trabalho de desagregar o morto de um domínio e introduzi-lo em outro. Tal trabalho exige todo um esforço de desestruturação e reorganização das categorias mentais e dos padrões de relacionamento social. O enterro, bem como as outras maneiras de lidar com o corpo morto, é um meio de a comunidade assegurar a seus membros que o indivíduo falecido caminha na direção de seu lugar determinado, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
devidamente sob controle. Por meio de tais práticas, o grupo recebe mensagens que evoluem da insegurança ao sentimento de ordem e representam a maneira especial que cada grupo humano tem de resolver um problema fundamental: é necessário que o morto parta. Assim, entre os toradja do sul (Koubi, 1979), antes de sua inumação definitiva o morto é objeto de um culto extremamente complexo, que às vezes pode durar algumas dezenas de anos – porque é necessário tempo para atingir o domínio dos mortos, para nele ser aceito, para se integrar à sociedade do além e, finalmente, para se transformar em deus ou ancestral. Segundo o pensamento toradja "é necessário tempo para morrer", porque a morte biológica não é a morte verdadeira. Por essa razão, não consideram como sendo ritos funerários os ritos que praticam por ocasião de um falecimento. Por algumas horas pelo menos, por alguns meses, às vezes anos, o defunto é considerado to ma saki, 'doente', e é nessa condição que ele é lavado, vestido, enfeitado, alimentado, exposto... O morto, ou melhor, o 'doente', está inerte, porque está privado de sumanga, 'energia vital', ou de enaa, 'sopro vital'. Mas nada impede que retorne e que o doente se levante e fale. Portanto, é necessário tempo para que o princípio vital, que se encontra difundido por todo o corpo, se evada deste. Isto significa, em outros termos, que a passagem da vida à morte nunca é instantânea. Ela é um trajeto, um percurso de provas e incertezas, que termina ao fim da celebração dos rios funerários. Este percurso, este trajeto, é então demarcado por gestos rituais que o circunscrevem, distinguem, controlam e vão terminar por demonstrar que afinal de contas os dois estados, de morto e de vivo, não são inteiramente diversos, pois os mortos, à maneira deles, continuam a viver. Por isso, não é por simples acidente que os ritos dos mortos são freqüentemente articulados a outros ritos de passagem, particularmente a ritos de iniciação: é que, também no nível dos rituais, a morte é a passagem de uma forma de vida social a uma outra; ela não é o fim da vida, mas iniciação a uma nova. Por conseguinte, os ritos funerários podem ser concebidos com recurso ao esquema clássico que consiste em compreender os ritos de passagem segundo três momentos diacrônicos: a 'separação', trabalho simbólico de desligamento do morto dos domínios dos vivos, a 'liminaridade', estágio intermediário em que o morto empreende sua viagem e em que nem bem deixou este mundo, nem bem passou a pertencer ao outro e a 'reintegração', momento final em que o morto é considerado como tendo atingido o reino dos mortos, o reino ******ebook converter DEMO Watermarks*******
dos ancestrais e como estando em seu lugar. É quando os sobreviventes retornam à vida normal e o grupo se recobra, restabelece sua paz e se reafirma. Todavia, este esquema geral, cujo valor formal parece pouco contestável, não pode mecanicamente ser aplicado às culturas particulares. É preciso cuidadosamente verificar nos detalhes dos dados etnográficos quais são os gestos específicos que significam separação, quais são os símbolos de liminaridade, quais são os ritos que expressam a reintegração. Além disso, é preciso não esquecer que os modelos abstratos consistem em separar no nível do pensamento coisas que estão confundidas no nível da realidade. Sobretudo quando se trata de elementos significacionais, esta defasagem é uma perigosa armadilha à espera do observador. Ainda mais: se levarmos em consideração o fato de que, na maioria das sociedades, os gestos simbólicos que concernem ao problema da morte são fundamentalmente ambíguos – porque tratam de tecer uma dialética de aceitação e de recusa, de conservação e banimento, de desordem e ordem – concluiremos que a aplicação de modelos formais universalizantes a culturas específicas deve ser vista com redobrada atenção. Na cultura brou, do Camboja (Trubetzkoy, 1979), a separação começa a se estabelecer não após a morte, mas a partir do momento em que se percebe que uma pessoa é portadora de um mal incurável. Então, constrói-se diante da habitação uma pequena casa para a qual o doente é transportado e onde ele viverá os seus últimos dias. A regra quer que se evite atenciosamente que um falecimento ocorra dentro de casa, hipótese na qual a habitação deverá ser abandonada por seus proprietários, seus elementos deverão ser queimados e uma nova construção deverá ser edificada em lugar diferente – todas essas precauções motivadas pelo temor de que outras pessoas sigam o defunto na sua viagem para o outro mundo. Entre os mbede, coisa parecida tem lugar, já que aí também o processo de separação tem início antes do advento da morte: quando um dignitário, ou qualquer homem livre, está doente, consulta-se um nga, um adivinho, que determina a causa da doença e, freqüentemente, também o processo de cura. Se ele vê que não há mais esperança, o adivinho recusa ser pago, por honestidade profissional: "eu não quero pagamento porque ele está morto". Quando a agonia começa, uma mulher idosa, em geral a primeira esposa para os polígamos, separa as pernas e coloca a cabeça do moribundo sobre seu peito. Cessam as brincadeiras das crianças; não se dança mais; o ambiente familiar fica pleno de gravidade, e todos os rostos marcados de tristeza. As ******ebook converter DEMO Watermarks*******
mulheres e crianças rolam pela terra e choram sem ruído. A partir do momento em que se constata que o doente expirou, sua mulher lhe fechará os olhos e os vendará em seguida com um pano branco, cor de luto (Alihanga, 1979). Identicamente, em alguns grupos da costa noroeste da América do Norte, quando um indivíduo sentia que ia morrer, as pessoas reuniam em torno dele todas as suas propriedades pessoais e um primo cruzado fabricava diante dele o seu caixão. Após a morte, punha-se o corpo sentado diante do fogo, em roupas de cerimônia; quatro dias mais tarde era posto em seu ataúde e levado para fora da casa. O caixão era colocado em uma cabana especial – ou, quando se tratava de um chefe, de um xamã, em uma árvore. A separação pode se expressar no momento de se colocar o morto na sepultura, quando se acende a fogueira, quando para ele se viram as costas, e assim por diante. No Nuristão, Afeganistão, no fim do século XIX, antes da islamização, em vez de se enterrar o defunto, se o colocava dentro de um cofre de madeira esculpida, fora da aldeia. Entre os acholi, de Uganda, quando se reparte um animal para a refeição do terceiro dia, o defunto tem direito somente a um pedaço pequeno, igual àqueles que se reservam aos hóspedes: ele não é mais parente, transformou-se em estrangeiro. Também por um código alimentar se expressam os dimasa dravidianos, quando depositam um último pote de arroz e de cerveja sobre a sepultura – e reforçam: "você partiu para sempre. Ouro e prata são preciosos mas se pode encontrar mais se se perdem. Você não voltará mais, você não poderá mais trabalhar por nós" (Maertens, 1979: 180-1). Nas sociedades timbira, segundo nos afirma Manuela Carneiro da Cunha (1978), a separação é o momento mais dramático dos funerais, especialmente o instante em que o cadáver transpõe a porta da casa. Ela se refere a verdadeiras batalhas entre coveiros e parentes, os primeiros querendo pegar o morto para enterrá-lo, os segundos se opondo, querendo conservá-lo consigo, impedindo sua separação e exclusão do grupo doméstico. Nesse momento em que o cadáver está sendo levado embora, as mulheres atiram os pés para o ar, dão saltos mortais, ferem a cabeça e as costas com brasa ou ferramentas e, no extremo do desespero, tentam suicidar-se para não deixar consumar-se a separação. Entre os índios do sudoeste dos Estados Unidos, o esposo sobrevivente jejua e toma eméticos durante os quatro dias em que o espírito de sua mulher ronda em torno dele; ao fim do quarto dia de luto, a alma da morta é liberada e pode empreender a longa viagem que a conduzirá ao país dos mortos: então, os membros da família se purificam e os objetos pessoais ******ebook converter DEMO Watermarks*******
do defunto são queimados ou enterrados às margens do rio. Tais exemplos, tirados um pouco arbitrariamente de momentos diferentes de ciclos rituais de sociedades diferentes, podem comportar todos, uma dimensão de separação. Com isso pretendemos dizer que mesmo que uma divisão formal do processo ritual para uma cultura determinada seja possível, tal fato não implica necessariamente que os ritos da primeira fase só signifiquem separação, os da segunda só liminaridade, e assim por diante. Pelo contrário, parece que embora ênfases de diferentes intensidades se possam observar segundo o momento, o essencial dos símbolos funerários é que eles são eminentemente equívocos e ambíguos, contendo em si precisamente essa dialética do lógico e do absurdo, do permanecer e do partir. Os símbolos funerários são exatamente símbolos-fronteiras e é precisamente esse caráter que lhes dá especificidade. O projeto dos ritos funerários é, de qualquer modo, facilitar a viagem do morto. O próprio simbolismo funerário no-lo diz: na Escandinávia, era costume enterrar o morto em seu barco; as tumbas dos chefes celtas continham carruagens, os sarcófagos egípcios da época pré-dinástica são em forma de barcas, na Melanésia se encontram pirogas-caixões. Os toda imaginam um percurso tão longo que, ao término da viagem, os defuntos terão consumido a metade de suas pernas: mil bilhões de lugares, dizem os antigos japoneses (Maertens, 1979). A descrição de Ruth Benedict (1934: 76-8) do ritual seguinte expressa sinteticamente tudo o que estamos tentando dizer: [aos zuñi], o que mais interessa é que a pessoa enlutada esqueça (...). Reúnem-se para alimentar o morto pela última vez e despedi-lo (…). Então, expulsam-no da aldeia, levando-o para fora dela e enterram tudo o que era seu. Voltam correndo para casa, sem olhar para trás e trancam a porta contra o morto, gravando nela com uma faca de sílex uma cruz para evitar que ele entre, o que corresponde ao formal rompimento com o morto. O chefe fala às pessoas, dizendo-lhes que o esqueçam para sempre (...). Despedem-se as pessoas e terminou o luto. Mas qualquer que seja a tendência de um povo, a morte é um fato impiedosamente iniludível (...) uma morte que toca muito de perto uma pessoa nem mesmo em zuñi é coisa fácil de esquecer (...) o cônjuge que sobrevive corre grande perigo. A sua falecida mulher pode puxá-lo para si: isto é, na sua solidão, pode levá-lo com ela (...). Por conseqüência, ele é tratado com todas as precauções com que foi a pessoa que morreu. Deve isolar******ebook converter DEMO Watermarks*******
se durante quatro dias de toda a vida corrente: não deve falar com ninguém nem ninguém se lhe deve dirigir; toma um emético todas as manhãs para se purificar e sai da aldeia para ofertar com a mão esquerda milho moído, fazendo girar quatro vezes a mão em torno da cabeça e arremessando o milho para 'arrancar de si o desgosto', como se diz. No quarto dia, crava no chão as varas de orar pelo morto e roga-lhe, na única prece que em zuñi se dirige a um indivíduo natural ou sobrenatural, que o deixe em paz, que o não arraste consigo e que lhe conceda: Toda vossa boa sorte Que vos guarde ao longo De um caminho seguro. Dentre as questões que os ritos funerários devem resolver, ligadas às transformações que a morte provoca e à necessidade lógica de separar o morto e transportá-lo para o outro mundo, uma é fundamental e, até prova em contrário, universal: é preciso fazer algo com o resíduo que a morte deixou, é preciso de algum modo se desembaraçar dele. Já fizemos referência ao desafio contido no cadáver que apodrece e à sua qualidade de antilinguagem agressiva, colocando em evidência o fato de que cada grupo soube, no correr de sua história, construir um sistema coerente de crenças e práticas específicas que o ajudam a traduzir a antiordem nos termos da ordem e a aprisionar nas malhas da cultura as evidências da destruição do corpo no qual ela se vê projetada. É preciso fazer algo, e este algo será necessariamente cultural: mesmo o abandono do cadáver aos animais terá uma significação ritual, pois tratar-se-á sempre de abandoná-lo a este ou àquele animal, desta ou daquela maneira, neste ou naquele lugar determinado. A exposição do cadáver (termo mais apropriado que o de 'abandono' do cadáver) é prática relativamente comum em numerosas sociedades e constitui um conjunto de técnicas que configuram diferentes estilos de lidar com os mortos dentro da mesma categoria: exposição ao sol, exibição ao ar, imersão na água, s us p ens ão em á r vor es , ofer ecimento a anima is car nívor os e a aves de rapina. Entre os nômades do Tibé, indivíduos especializados se ocupavam de repartir o cadáver em pedaços gramaticalmente estipulados e de oferecê-los aos cães; no vale do Nilo, por volta de 4000 anos antes de nossa era, algumas comunidades tinham o hábito de expor os cadáveres aos crocodilos, aos chacais e aos abutres; entre os karamojong de Uganda, os destinatários eram hienas e formigas; os primitivos balineses ainda não ******ebook converter DEMO Watermarks*******
queimam seus mortos, mas os expõem em um promontório ao sol e aos vermes até a decomposição... É claro que não podemos etnocentricamente ver nessas práticas aquilo que para nós representa – desprezo, desrespeito, desonra e humilhação – o negar a alguém uma sepultura. Nada disso representa um descuidado para com o morto, salvo exceções que concernem a feiticeiros e inimigos. No vale do Nilo, por exemplo, aqueles a quem se ofereciam os mortos eram animais divinizados (abutre, deusa mouk; crocodilo, deus sobek etc.). No Irã, por volta do século XVII, foram elevadas as 'torres de silêncio', destinadas à exposição de cadáveres a serem devotados por abutres. Estas torres são elaboradas obras de engenharia: uma construção circular, comportando três círculos concêntricos com alvéolos retangulares escavados pouco profundamente. Uma parte é destinada aos homens, outra às mulheres e a terceira às crianças. O interior é inclinado para o centro, onde existe um poço, e permite o escoamento dos líquidos que saem dos cadáveres bem como das águas das chuvas através de pequenos canais que ligam os alvéolos uns aos outros. Depois que os abutres comeram as carnes, o esqueleto permanece exposto até secar completamente, Então, é lançado ao fundo do poço, onde há cal. Os ossos, sob o efeito do sol, se transformam em poeira. O poço é equipado de orifícios para a passagem das águas de chuva que são evacuadas graças a quatro canais, no final dos quais são colocados areia e carvão renováveis periodicamente. Tais canais são ligados a quatro poços subterrâneos cujos solos são arenosos: o carvão e a areia decantam as águas da chuva e as purificam após a passagem. Como se vê, a exposição está longe de expressar descaso e despreocupação em relação aos mortos. Uma estratégia diferente da exposição está contida no ocultamento do cadáver que normalmente representam as técnicas inumatórias. Ainda aqui se deve abrir um amplo espaço para a diversidade de formas culturais que tais práticas comportam. Diversos tipos de sepulturas são conhecidos, em numerosos sítios pré-históricos de uma mesma época: caixões, vasos de pedra ou de terra, vasos de bronze, cestos conservando restos de ossos, freqüentemente restos de ossos calcinados e cinzas. Os mortos musterianos eram enterrados com pedras amontoadas sobre seus despojos, recobrindo particularmente o rosto e a cabeça. Mais tarde, o morto era acompanhado de alimentos e de armas feitas com ossos. Como acontecimento antropológico, a importância da inumação, uma herança que recebemos dos neandertaleses, ultrapassa em muito aquela que lhe foi ******ebook converter DEMO Watermarks*******
atribuída pelo cristianismo: seja individual, seja coletiva, praticada dentro ou fora dos domínios da comunidade, provisória ou definitivamente, a inumação é uma das mais difundidas técnicas funerárias – desde os índios da Terra do Fogo, aos australianos, aos africanos, aos americanos do norte e aos europeus. Contudo, essa disseminação das práticas inumatórias não pode romper os freios de nossa cautela e permitir que lhes atribuamos um valor maior do que elas realmente comportam. Foi com imensa repugnância e horror que os índios andinos obedeceram aos sacerdotes católicos, que queriam que os mortos fossem inumados em cemitérios consagrados. Eles tinham o hábito de depositar os mortos em cavernas ou em uma espécie de torre, às vezes redonda, às vezes quadrada, nada os predispondo a aceitar o conceito de inumação. Em conseqüência, tomados de desespero, durante a noite eles desenterravam os cadáveres para dispô-los segundo a maneira antiga, dizendo, quando perguntados, que o faziam "por piedade e comiseração por nossos mortos, a fim de que eles não fiquem cansados sob o peso da terra" (Métraux, 1962: 66). Mesmo dentro de uma mesma cultura – e a nossa é um bom exemplo disso – a inumação não é o destino de todos os indivíduos. Na Austrália, os walaroi enterram as mulheres logo após o falecimento, enquanto os homens só são enterrados depois de as carnes terem apodrecido, quando restam apenas os ossos. Entre os astecas, eram enterrados somente aqueles cujas mortes eram devidas aos deuses da água e da chuva – afogados, leprosos, pessoas afetadas de gota, hidrófobos, bem como as mulheres mortas em parto. Os toda, na Índia, enterram homens e mulheres, mas em cemitérios diferentes. Não suponhamos também que a posição horizontal do cadáver enterrado seja universal e automática. Outras atitudes devem ser observadas: de barriga para baixo (como as mulheres adúlteras dos últimos séculos europeus); em pé, como alguns militares; cabeça separada do corpo e em sentido invertido, como no caso dos condenados à guilhotina; em posição fetal, como nas urnas pré-colombianas (Thomas, 1976); sentados, como nos cemitérios muçulmanos da Síria e entre alguns monges na região de Nantes no final do século passado (Urbain, 1978); deitados de costas, com a cabeça virada na direção de Meca, como os muçulmanos... Também são diferentes os modos de construir as sepulturas (simples, monumentais, contato direto do corpo com a terra, umas sobre as outras formando edifícios etc.). Para um cristão, uma visita a um cemitério muçulmano pode ser uma excelente ocasião de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
relativizar suas estruturas de pensamento: aí os vivos e os mortos se interpenetram, o cemitério é aberto para a natureza e os mortos são diretamente colocados na terra, envolvidos apenas em uma mortalha. Aí as pessoas vão passear, invocar os mortos e encontrar outras pessoas. Os túmulos não são apenas o lugar onde se depositam os mortos, mas freqüentemente são também o símbolo da unidade do grupo familiar, em torno do qual vários ritos importantes são celebrados. Os betsileo, nesse sentido, atribuem imensa importância à construção do túmulo e o consideram como sendo a morada dos ancestrais onde se cristalizam todos os valores familiares – para eles, 'pertencer a uma família' se exprime em termos de direito em relação a um túmulo (Rajaonarimanana, 1979). A valorização de um território através dos mortos que a terra contém é um fato bastante conhecido dos antropólogos: os merina, que vivem dispersos por territórios recentemente atingidos, tomam como ponto de referência espacial não o território onde vivem, nem o território onde nasceram, mas sim a aldeia ancestral onde serão enterrados (Bloch, 1971; Cunha, 1978). Os sara, do Chade, associam fortemente a inumação (com culto pronunciado das sepulturas) com a cultura dos campos e consideram a terra como o ponto fundamental de aliança entre os vivos e os mortos. Estes fatos estão evidentemente associados, por meio da consideração da morte como sendo um outro nascimento, à fixação dos poderes mágicos da terra natal: os portos de Xangai, por exemplo, recebiam anualmente uma imensa quantidade de caixões, contendo corpos de chineses que, tendo emigrado, queriam ser enterrados na terra-mãe. Com efeito, a morte de um indivíduo fora de sua terra coloca freqüentemente problemas especiais. Nesse sentido, alguns artifícios simbólicos são acionados, na tentativa de minorar as dificuldades: na Sérvia, estelas funerárias são colocadas sobre túmulos que contêm apenas as roupas do desaparecido – e eles são periodicamente adornados com outras roupas , como se se tentasse continuamente a firmar a presença do defunto ausente. Na Grécia, um ciclo de cantos fúnebres é dedicado aos 'infelizes perdidos em uma região hostil' e em certas regiões a notícia da morte de alguém no exterior assume dimensões altamente trágicas e dá lugar a ritos funerários em ausência do corpo, colocando-se no leito um simulacro da personalidade do defunto, sobre o qual se acomoda uma parte de suas roupas, dirigindo-se a este simulacro as mesmas lamentações que se endereçariam ao cadáver verdadeiro (Hutter & Sike, 1979). Em Ovessant, os desaparecidos no mar eram simbolizados por cruzes de cera que acabavam ******ebook converter DEMO Watermarks*******
enterradas como corpos. Os tandanke, do Senegral, substituíam o defunto pela pedra sobre a qual ele havia descansado a cabeça no momento de seu falecimento Na Nova Guiné, os wahgi separam a mandíbula do cadáver, ou uma parte de suas roupas, para as levar à terra ancestral onde serão enterrados com todos os ritos de uma inumação comum. Os judeus mortos longe da terra prometida costumam ter colocada sob sua cabeça um travesseiro contendo um pouco dessa terra. Para os povos que praticam a inumação, de modo geral, as relações entre cadáver e terra são de mútua implicação: o cadáver santifica a terra, associando-a aos ancestrais; a terra (-mãe) recebe o cadáver, para que ele possa renascer. À desagregação lenta no solo muitas culturas opõem a combustão rápida pelo fogo. Nossos fornos modernos reduzem o processo de extinção do corpo a uma ou duas horas, enquanto uma cremação em fogueira de lenha ao ar livre leva de três a dez horas. A cremação tem progredido bastante nos últimos anos no Ocidente, mas é na Ásia que ela encontra o seu território por excelência e é onde ela se mistura de modo complexo com as práticas de inumação. A propósito dessa distribuição, escreveu Solange Thierry: "a carta de repartição, na Ásia, da incineração e da inumação, se se levassem em consideração todas as minorias, exigiria um trabalho tão minucioso quanto o estabelecimento de mapas lingüísticos" (Musée de l'Homme, 1979: 60). Mas, de um modo geral, são os mortos incinerados no mundo indiano e nas regiões indianizadas do sudeste da Ásia. Acredita-se nessas regiões que as chamas da fogueira não destruam senão de uma maneira provisória, uma vez que o ser se reencarna de existência em existência (porque a morte é somente uma passagem, ou melhor, um renascimento pelo fogo). Na ilha de Bali, no conjunto indonésio, a cremação se articula a uma complexa tessitura ritual que consiste em devolver cada elemento humano à sua origem: o corpo deve retornar à terra e o espírito ao mundo superior. Todavia, o enterro não é visto como um retorno à terra, porque a decomposição por esse intermédio é lenta e porque, enquanto os ossos não tiverem se transformado em terra, a purificação e a separação do espírito serão impossíveis: o fogo acelera o processo de afastamento do corpo e da alma (Charras, 1979). De ser a cremação um procedimento de decomposição rápida não se deduza, entretanto, que estes ritos sejam expeditivos quanto a suas dimensões simbólicas. Na Tailândia, por exemplo, a fogueira é feita de madeira mais ou menos preciosa e instalada entre quatro estacas. O modelo mais comum de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
armação de fogueira é constituído por quatro bambus que suportam um teto feito de um grande corte de tecido branco, ladeado por quatro estandartes brancos triangulares. O oficiante deita o cadáver com a cabeça voltada para oeste em um caixão cujo fundo é removível a fim de que o defunto queime melhor. Era uso que fosse um dignitário religioso que pusesse fogo em primeiro lugar com uma bucha de papel e de pólvora. A chama acendia dois fogos de artifício, que explodiam transformando em brasa todo o conjunto. Os assistentes, cada um em sua vez, desfilavam aos pés da fogueira, jogando nela uma pequena tocha acesa, varinhas de incenso e velas. O oficiante espera que todos tenham passado; depois, retira três pedaços de madeira da fogueira e diz que a 'alma' do defunto abandonou completamente o corpo e que todos podem voltar para casa. No dia seguinte, ou três dias depois, acontecem os ritos que consistem em recolher os ossos que permaneceram após a incineração. Os membros da família levam oferendas de alimentos e acompanhados dos oficiantes dão três vezes a volta ao lugar da cremação, tomando o cuidado de ter as cinzas sempre do lado esquerdo. Enquanto isso, bonzos, que igualmente estão presentes, recitam textos budistas. Depois de exame minucioso das cinzas e dos ossos, estes são reunidos e lavados, borrifados de um líquido de potência mágica. A família próxima põe alguns deles dentro de uma pequena urna que será conservada em casa. O resto, ou será enterrado em uma fossa cavada perto da fogueira, ou será jogado nas águas do rio, ou ainda será guardado em um monumento relicário, o stûpa budista (Musée de l'Homme, 1979). A obsessão de controlar a decomposição expressa-se também nas técnicas de embalsamamento e de mumificação que, embora menos comuns, foram largamente praticadas no antigo Egito e no Peru pré-colombiano. Apesar de a mumificação ser às vezes natural nas terras geladas do Alasca, nos solos salitrosos dos navajo no Novo México, ou no natro (carbonato hidratado de sódio natural) das areias do Egito, é claro que a mumificação, como rito funerário, é um procedimento eminentemente cultural. No Peru pré-colombiano, onde os corpos conservados artificialmente eram tão numerosos como no Egito antigo, o morto era geralmente vestido de suas roupas mais bonitas e de seus ornamentos mais ou menos preciosos segundo a posição social; uma placa de ouro lhe era colocada na boca e a seu lado se dispunham vários vasos de cerâmica ou de metal, suas armas, instrumentos, alimentos e bebidas. A morte era considerada como prolongamento da vida sob uma forma nova e superior e se estimava necessário que o defunto ******ebook converter DEMO Watermarks*******
chegasse a este novo mundo acompanhado de seus bens. Os corpos eram colocados em posição semelhante à do feto no útero – símbolo da posição do morto no seio da terra-mãe. Maertens (1979) nos informa de seitas japonesas em que um ioga aperfeiçoado permite ao asceta, depois de um jejum especial de mil, dois mil ou três mil dias, transformar-se por inanição em automumificação: basta então inumar o cadáver em uma terra especial, na postura de Buda, para dela o retirar em seguida e o laquear como uma estátua. Entre as técnicas mais importantes de se desembaraçar do cadáver é preciso considerar o canibalismo. Praticado desde a pré-história – como nos deixam supor os restos de treze neandertaleses quebrados, dispersos, parcialmente calcinados e associados a traços de fogueiras, descobertos em Krapina, na Iugoslávia, e atribuídos ao paleolítico médio – o canibalismo (que existia ainda recentemente em numerosas sociedades na África, no sudeste da Ásia, na Malásia, na Indonésia e na Oceania) representa um modo particularmente expressivo de se conceberem as relações entre os vivos e os mortos. É necessário particularmente sublinhar sua dimensão ritual e simbólica porque, contrariamente ao que com alguma freqüência se pensa, as práticas antropofágicas muito raramente – talvez jamais – podem ser consideradas como gestos puramente alimentares, destinados a garantir aos organismos dos vivos um suplemento de proteínas. Com efeito, os antropólogos sabem hoje que nenhuma alimentação humana é apenas instrumental e que as regras da cultura nela estão continuamente presentes. Mesmo em momentos críticos em que a vida corre perigo, o recurso à antropofagia como solução ao problema da fome representa uma opção entre a vida e a morte, opção que em larga escala é culturalmente afetada. Além disso, não é a qualquer homem que a cultura concede o atributo de poder comer, ou de ser comido. Da mesma forma não são todas as partes do cadáver que são comidas e nem todas são igualmente apreciadas. Tais questões dependem freqüentemente de regras complexas de repartição e distribuição. Para considerar um exemplo recente e não muito distante de nós, lembremos que grande repercussão foi obtida há poucos anos pela notícia de que um grupo de sobreviventes de um desastre aéreo nas montanhas geladas dos Andes, na ausência de outro tipo de alimento, servira-se da carne dos companheiros que haviam morrido. Este gesto resultou de uma opção entre viver um pouco mais (pois eram escassíssimas as possibilidades de salvamento) e morrer. Considerando que membros de outras culturas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
prefeririam seguramente a morte ao canibalismo, podemos sustentar que a decisão dos personagens desse drama corresponde a uma manifestação cultural e que a prática do canibalismo não representa uma possibilidade tão afastada quanto imaginamos, na nossa cultura, entre as alternativas abertas à defesa e conservação da vida. E mais: a ser confirmada a integralidade da notícia, teríamos razões adicionais para não considerar o gesto como puramente famínico, uma vez que, segundo consta, cada indivíduo deveria evitar comer aqueles com quem tivesse algum laço de parentesco e deveria preferir certas partes do organismo a outras. Mesmo à beira da agonia, a cultura não se furta ao esforço de controlar os processos naturais. A 'vítima' tem sempre uma qualificação especial: ou é um parente possuidor de virtudes notáveis de que se quer partilhar, ou é um amigo que teria comido um antepassado ou companheiro os quais agora se tenta recuperar, ou é um morto canibalisticamente transformado em alimento a fim de evitar o horror de uma lenta e indigna decomposição, e assim por diante. Além disso, ao contrário do canibalismo em estado 'puro' (ingestão de carne crua de outro homem), o que se observa é um refinado processo de culturalização, expresso nos modos de preparação e consumo da carne humana. Uma multiplicidade de técnicas e de receitas integra o cadáver a cada culinária das diferentes sociedades e o inscreve em regras hierárquicas de repartição e distribuição freqüentemente complicadas. Como no caso andino que acabamos de ver, a proibição do incesto, que funda a cultura, se manifesta: os guayaki proíbem a refeição antropofágica àqueles que cometeriam incesto se se unissem ao defunto quando este estava vivo; os dayak de Bornéu, que promovem a comunhão com os mortos misturando com arroz os líquidos que provêm da decomposição do cadáver, diferentemente, fazem com que os parentes próximos se alimentem desse prato obrigatoriamente durante o período fúnebre. Os surara e os pakidaí moem os ossos e os misturam a uma bebida festiva, cerveja ou sopa de bananas. No Paraguai, os guayaki misturam o pó de osso a um guisado de palmitos; os sanemayanoana, da Venezuela, misturam pó de osso com sopas. Entre os tupinambás, as mulheres consumiam os órgãos genitais; os adolescentes, o cérebro e a língua; os convidados, as pontas dos dedos e a gordura do fígado. Os arunta do sul, na Austrália, abriam o cadáver e consumiam a gordura dos rins para adquirir a força e a coragem necessária para vingar o morto, enquanto os dieri reservavam esta gordura aos parentes maternais Os narrinyeri comiam a carne dos mortos por acidente, mas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
enterravam as vísceras; entre os marindanim, os líquidos produzidos pelo cadáver eram consumidos pelos indivíduos que quisessem se tornar feiticeiros (Maertens, 1979). Embora o aspecto funerário nem sempre seja o mais importante das práticas canibalísticas, ele não pode ser desconsiderado, sobretudo quando os praticantes pensam oferecer ao morto uma 'sepultura', vendo-a muitas vezes como a mais decente, sob a forma dos organismos de seus semelhantes. Nesse caso, os ritos antropofágicos comportam as mesmas características básicas dos outros ritos funerários, isto é, essencialmente, a separação do morto, sua condução ao mundo do além e a reafirmação da vida. O canibalismo funerário talvez seja o complexo ritual que mais nitidamente exprime as ambigüidades e equivocidades das práticas humanas que dizem respeito à morte: reter/separar, conservar/destruir... Os fataleka, das Ilhas Salomão, comiam os mortos cozidos com carne de porco para mediatizar o contato com uma carne muito forte. Mas não se tratava dos seus mortos: eram inimigos comidos em honra desses últimos que por esse meio eram promovidos à condição de ancestral. Os tupinambás comiam os inimigos para, através desses, absorver a força vital de seus ancestrais que os inimigos teriam comido. Os mesmos fataleka, por ocasião da morte do chefe, visando a assegurar sua sobrevivência eterna comiam uma vítima sacrificada. Tal refeição era obrigatória e era vista como fundamental para a sobrevivência do grupo: se algum dos comensais vomitasse, os outros deveriam imediatamente ingerir o que tivesse sido rejeitado. Tal era o preço da proteção do grupo pelo chefe morto, contra as agressões das outras almas, e da produção da perenidade da sociedade e seus indivíduos (Maertens, 1979). Os guayaki só matam para comer quando da morte por doença de um homem ovem: pensada como injusta, essa morte provoca uma desordem tal que ameaça os vivos. Mas, em geral, quando eles comem seus mortos é para que seus corpos sejam a sepultura dos companheiros, a fim de que a alma dos mortos não retorne para fazê-los doentes. Helène Clastres (1972: 326-30) descreve assim esse ritual: Constrói-se o forno, o byta, onde são grelhados todos os mortos exceto as crianças muito jovens que são cozidas em panelas de terra (...). Durante esse tempo, as pessoas se ocupam do cadáver. Com sua faca de bambu, um homem – de preferência, se estiver ainda em vida, o padrinho do morto – corta o corpo. A cabeça e os membros são separados do tronco, braços e pernas são desarticulados, órgãos e ******ebook converter DEMO Watermarks*******
vísceras são extraídos do seu alojamento. A cabeça é cuidadosamente raspada, barba e cabelos, se se tratar de um homem, e é em princípio a esposa que se encarrega disso, da mesma forma que uma mãe raspará a cabeça de seu filho. Diferentemente das partes musculosas e dos órgãos – a carne propriamente dita – a cabeça e os intestinos são cozidos em panelas. Nada é eliminado do corpo de um homem; do corpo de uma mulher, se retira o pere, seu sexo, que não é consumido. Ele é enterrado. Acontece às vezes que os intestinos não sejam comidos; não em razão de um tabu alimentar, mas porque eles fedem muito, caso em que serão igualmente enterrados. Todo o resto é disposto sobre o byta. Quando está bem assado, quer dizer quando não se vê mais traço de sangue, reparte-se a carne entre os assistentes. (...) A cabeça, como a dos animais, é reservada aos velhos, homens e mulheres, e proibida aos caçadores jovens (...). Quanto ao pênis – como a cabeça cozida – ele é sempre destinado às mulheres e, entre elas, àquelas que estiverem grávidas. Elas terão assim a certeza de dar à luz um menino. Um legume acompanha a carne humana (...) cozido com a cabeça e as vísceras, assado sobre a grelha com a carne. Não se trata de simples acompanhamento. O vegetal desempenha uma função bem precisa: neutralizar a excessiva 'dureza', a 'força' demasiadamente grande, o myrakwa que faz da carne humana um alimento diferente de todos os outros e perigoso para aqueles que o consumissem puro (...) Misturada com palmito, ela perde sua 'força', pode ser comida sem temor, transforma-se em uma carne como as outras. Quanto aos ossos, eles são quebrados para deles ser extraída a medula. As mulheres, sobretudo as velhas, são muito gulosas disso. Nesse relato, podemos nitidamente perceber a ambigüidade da ritualidade canibal, ao mesmo tempo obrigatória, necessária e perigosa. Nela se podem ver subjacentemente uma comunicação e um jogo de trocas com os mortos. Por um lado, o canibalismo tem uma função terapêutica e aliviante: "eu estou muito doente, quase morto, tenho grande vontade de comer carne humana para sarar; quando a gente come carne de aché , a gente sara logo"; "quando a gente não come os mortos, fica angustiado. Se a gente come, fica tranqüilo, o coração não palpita". Por outro lado, os guayaki vêem um perigo na morte do próximo porque acreditam que ela libere uma alma que procura levar outros corpos embora com ela, provocando assim angústia, doença e morte. É possível ficar curado comendo os mortos porque, ao comer o corpo, separa-se ******ebook converter DEMO Watermarks*******
o cadáver da alma, dificultando-se assim a conjunção entre o corpo de um vivo e alma de um morto: se a alma resolver invadir um corpo vivo, o que é que ela encontrará? – seu antigo corpo despedaçado e consumido, os restos mastigados daquilo com que ela não pode mais entrar em relação. Assim, a aproximação de um corpo vivo com um corpo morto significa o distanciamento entre vivos e mortos, pois, impossibilitada de retornar a este mundo, a alma do morto decide partir para o outro. Podemos então compreender que, para as civilizações que o adotaram como procedimento funerário, o canibalismo – meio que consiste, como as outras técnicas, em ao mesmo tempo separar o morto e com ele continuar em comunicação – não é necessariamente nem grave nem traumatizante. A expectativa de ser comido não apavora, pois é vista como meio de sobreviver e prova de amor: entre os toré , o próprio indivíduo designa as partes de seu corpo reservadas a tal ou tais pessoas, bem como as pessoas que terão o privilégio de comê-lo. Além disso, nosso pensamento ocidental, que sempre se escandalizou com as práticas canibalísticas, é curiosamente inconsciente das manifestações simbólico-metafóricas de canibalismo, no interior mesmo de suas fronteiras: 'papa-defunto' (croque-mort , em francês), 'sarcófago' (que come carne) são palavras que nos deixam perceber tais manifestações inscritas em filigrana. Poder-se-iam invocar ainda práticas tradicionais, como a de expor o morto sobre a mesa da cozinha ou a de se fazer refeições à mesa sobre a qual esteve exposto um cadáver... Não poucos antropólogos observaram já o estreito paralelismo existente entre a prática cristã de comunhão – em que se ingerem o corpo e o sangue de Cristo – e os ritos canibalísticos de muitos povos que, como acabamos de ver, acreditam estar ingerindo, no ato de comer a carne humana, as virtudes veneradas na comunidade, celebrando por meio desta ingestão o estreitamento dos laços que ligam, por intermédio dessas virtudes, os membros entre si e à coletividade. Observemos que essas técnicas principais de se livrar do cadáver não são excludentes entre si. Os lolo, por exemplo, inumam os seus mortos e depois acendem uma fogueira sobre a sepultura; os thô põem no caixão uma quantidade considerável de cinzas; os nung secam o corpo no fogo antes de enterrá-lo (Thierry, 1979). Às vezes, encontra-se exposição do cadáver por um tempo razoavelmente grande e, depois, inumação ou cremação; existe canibalismo combinado com enterro ou incineração das partes não consumidas, e assim por diante. Também não são essas técnicas principais as ******ebook converter DEMO Watermarks*******
únicas disponíveis: os nootka da Colúmbia canadense, os dayak de Bornéu, os serere do Senegal colocam o cadáver no interior de um tronco de árvore; certos pigmeus desviam o curso de um riacho, enterram o defunto e depois devolvem ao riacho o seu curso original. Marinheiros muitas vezes jogaram cadáveres na água... Contudo, apesar da diversidade dessas técnicas, elas não deixam de apresentar uma certa similitude, constatável em toda parte, através do mundo e através da história. Parece que em todas as sociedades, ou quase todas, o ato de morrer – talvez o mais íntimo da existência humana – é transformado em uma ocasião pública. Há quase sempre uma manifestação de tristeza, mais ou menos real, mais ou menos convencional. O cadáver é quase sempre considerado perigoso, às vezes repugnante. Há sempre ritos que cumprem a missão de preparar o morto para sua viagem em direção ao outro mundo. Mallinowski (1954) observou a dupla e contraditória tendência nesses rituais, por um lado, a preservar o corpo, deixar suas formas intactas, ou reter partes do mesmo e, por outro, ao desejo de despachá-lo, de aniquilá-lo completamente. Para ele, a mumificação e a cremação corresponderiam a duas expressões extremas dessas tendências, enquanto o canibalismo funerário – freqüentemente praticado com repugnância e asco e ao mesmo tempo em nome da reverência, do amor e da devoção que se dedicam ao morto – representaria o ponto intermediário onde essas tendências se encontram, entram em conflito e se unem. Teria Mallinowski querido dizer que o canibalismo é o meio "bom" para pensar a ambigüidade e equivocidade da situação que a morte propõe aos homens? Ele acrescenta: é impossível ver a mumificação ou a cremação ou qualquer forma intermediária como determinadas pelo mero acidente de crença, como um traço histórico de uma ou de outra cultura que tenha ganhado sua unviersalidade pelo mecanismo da difusão e do contato apenas. Porque nesses costumes está claramente expressa a atitude mental fundamental dos parentes, amigos ou amantes sobreviventes.... (Mallinowski, 1954: 49) Em todas essas técnicas , trata-se de combater a putrefação. O embalsamamento e a mumificação pela solidificação: numerosas sociedades utilizam óleos e ervas para retardar a decomposição – os bateke, do Congo, cobrem o corpo do chefe com folhas embalsamantes , os maya e os algonquins cobrem o corpo do chefe com óleo; outros povos envolvem o cadáver com cera, cobrem-no de perfumes etc. (Maertens, 1979). A ******ebook converter DEMO Watermarks*******
cremação, pela supressão: a cultura chama para si o trabalho de destruir o corpo e promover o morto. A exposição, ora pelo afastamento, ora pelo enfrentamento: separa-se o cadáver, levando para bem longe os perigos que contém; ou, então, se os enfrenta – como certos indígenas que se untam com os líquidos que o cadáver produz ou que encarregam alguém de acompanhar e vigiar o processo de decomposição. A inumação, pelo ocultamento: entrega-se ou não a decomposição a seu próprio ritmo, mas os homens não a vêem. O canibalismo, pelo deslocamento e pela substituição: em vez de se transformar naturalmente em podre, o corpo é culturalmente transformado em alimento cozido. Enfrentamento, aceleração, supressão, retardamento, preservação, substituição e deslocamento constituem, embora contraditórias, as atitudes fundamentais diante do cadáver.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
4 Imagem da morte e imagem da sociedade Pela natureza de suas organizações, a cultura e os intelectos humanos em que está introjetada não podem lidar com o caos. O problema maior deles é o de se defrontarem com o que não podem controlar, seja por meios técnicos, seja por meios simbólicos ou teóricos. A cultura é um código de estruturação que gera lei e ordem: a expectativa de organização que lhe é imanente é responsável pelo medo à anarquia e à confusão dos domínios que considera como devendo ser mantidos separados. A possibilidade de que as categorias que constituem a cultura venham a perder o controle que exercem ou parecem exercer sobre o mundo se insinua como verdadeiro pânico na consciência ou no inconsciente dos indivíduos que a ela estão submetidos. Por isso, os membros de uma sociedade reconhecem em princípio algo de intrinsecamente bom e virtuoso na lei e na ordem que postula. Disso decorre, em conseqüência, que qualquer estrutura de idéias está investida de poderes que se opõem aos poderes antagônicos da ausência de estrutura e do comportamento não estruturalmente enquadrado de indivíduos e grupos. Os poderes estruturais reconhecem e resguardam os limites das categorias estabelecidas, protegendo as estruturas formais de autoridade contra as energias emanadas do exterior do sistema social ou de áreas menos articuladas do mesmo. Ao mesmo tempo, por esse confrontamento de poderes intra e extra-estruturais, o sistema desenvolve o seu interminável esforço de criar contornos e definir formas sociais. Contudo, como os sistemas de classificação são construções intelectuais, e uma vez que o pensamento não é idêntico à realidade que lhe é exterior, isto é, ao mundo real, podemos supor que qualquer sistema de classificação, por sua própria formação, dê nascimento a anomalias, quer dizer, se defronte com elementos que não correspondem às definições por ele preestabelecidas. Isto significa que qualquer cultura está destinada a enfrentar eventos que a desafiam (não será essa sua natureza mais fundamental?), seja quanto a seus limites interiores e exteriores, seja quanto a seus princípios, seja enfim quanto às definições que estes princípios estabelecem. Tais eventos são elementos que pertencem simultaneamente a domínios diferentes e incompatíveis, ou são elementos que se situam exatamente sobre os limites que os sistemas de classificação definem. Mary Douglas (1968a, 1968bb, 1970a, 1970b) concebeu esses eventos desafiadores como pertencendo a dois conjuntos básicos: o das coisas 'anômalas', isto é, que não preenchem determinado ******ebook converter DEMO Watermarks*******
conjunto ou série, e o das coisas 'ambíguas', ou seja, passíveis de duas interpretações. Para ela, bem como para Leach (1968, 1967) e Turner (1970, 1974), onde o sistema reconhece posições explícitas e definidas, reconhece também poderes controlados, conscientes e aprovados; onde o sistema se defronta com o que é ambíguo e hesitante, poderes incontrolados inconscientes, desaprovados e perigosos. Assim, tudo o que representa o insólito, o estranho, o anormal, o que está à margem das normas, tudo o que é intersticial e ambíguo, tudo o que é anômalo, tudo o que é desestruturado, pré-estrurado e antiestruturado, tudo o que está a meio caminho entre o que é próximo e predizível e o que é longíquo e está fora de nossas preocupações, tudo o que está em nossa proximidade imediata e fora de nosso controle, é germe de insegurança, inquietação e terror: converte-se imediatamente em fonte de perigo. Nessa perspectiva, podemos entender por que no Brasil se considera que a madrugada (tempo que se situa entre um dia e outro) é o tempo conveniente para a prática de certos delitos e para a vida de certas pessoas (boêmios, prostitutas, bêbados, vagabundos...); por que as esquinas (que se situam entre uma rua e outra) são lugares adequados para a prática de ritos mágicos, de certo tipo de comércio (camelôs, bares...) e para a permanência de certos tipos de pessoas (adolescentes, 'paqueradores'...); podemos entender por que as estações ferroviárias e rodoviárias (que simbolicamente são portas e limites das cidades), bem como as zonas de transição entre os diferentes bairros, no Brasil, são campos onde germinam aqueles tipos de pessoas e atividades que alguns integrantes da escola sociológica de Chicago chamaram de 'parasitas sociais'; por que a 'meia-noite' desempenha funções importantes nos filmes de terror; por que se celebra ritualmente a passagem do ano-novo; por que se preservam os orifícios do corpo (que são uma espécie de 'abertura') em alguns procedimentos rituais que tratam de 'fechar' o corpo. Compreendemos o porquê da evitação no Brasil de elementos como o sapo (que é ao mesmo tempo vivo e frio e anda ao mesmo tempo no chão e no ar), ou como o morcego (simultaneamente mamífero e voador, 'vidente' e 'cego'), ou a coruja (que enxerga no escuro), ou o peixe-boi e o boto (concomitantemente mamíferos e peixes). Explica-se o porquê de algumas figuras que nos parecem perigosas serem representadas por meio da conjunção de domínios díspares e incompatíveis: o lobisomem, o demônio (pés de cabra, chifres de bode, tronco humano, rabo, feições caninas, asas de morcego etc.), a sereia (como o conhecemos atualmente, ao mesmo tempo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
mulher e peixe). Esclarecemo-nos também por que as prisões, os elevadores, os banheiros, os velhos, as crianças, os mendigos, os estrangeiros etc., por estarem simultaneamente em contato com a sociedade, mas em certos planos isolados dela, requerem dos indivíduos uma atitude especial. Aí está a razão de serem as doenças e os doentes vistos como perigosos na nossa sociedade e em muitas outras: porque são uma categoria intermediária, ambiguamente situada entre a condição de vida e a condição de morte. Eis, a razão de as sociedades se cercarem de proteções simbólicas: não somente para proteger em o doente, mas para protegerem-s e a si mesmas . Freqüentemente proíbem os doentes de se lavarem ou se barbearem, obrigando-os a permanecer sujos e repulsivos, numa tentativa de fazer com que a impureza física represente para todos sua condição ritualmente desqualificada. Tais considerações – sobre as quais nos detivemos mais detalhadamente em outro trabalho (Rodrigues, 1979) – ajudam-nos a compreender o lugar do cadáver que se decompõe – diante dos sistemas de classificação: o morto é um ser que, estando próximo, está ao mesmo tempo distante; que estando morto, manifesta ainda violentas reações de vida (as unhas, a barba e os cabelos crescem, transpira, exala gases, odores, vermes...); que, estando presente, já está ausente. Por outro lado, o morto, o cadáver, é um ser que não pertence a este mundo, pois dele já partiu, nem ao mundo do além, pois lá ainda não chegou: vaga por algum lugar intersticial. Ele, que era a materialização da estrutura, agora se desestrutura. Agora é antiestrutura. É esta atividade incontrolada que sobrevém ao cadáver que a sociedade não pode suportar. É preciso esconder, queimar, apressar, intervir de alguma forma. Mitificar, enterrar, comer, cremar são formas de interferência, tentativas simbólicas de definir o irreversível processo por caminhos balizados. Nenhuma sociedade pode suportar indiferentemente um corpo alheio ao controle cujo aprendizado é uma das primeiras tarefas que impõe ao recém-nascido. Durante esta fase de decomposição o grupo está sujeito à ação das forças nefastas que a morte irradia, forças nocivas que ameaçam sua estruturação do mundo. É preciso exorcizar o cadáver, a morte, e tudo o que diga respeito a eles. Nesse ponto está a inspiração das práticas funerárias e de seu valor simbólico. Com efeito, o horror que o cadáver provoca não teria nada a ver com as transformações naturais que se operam no corpo se, do outro lado deste processo, não existissem uma cultura e um sistema de ordenação de idéias. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Tais transformações, em si mesmas, não significam tanto: elas valem por aquilo a que remetem os espíritos dos homens, ou seja, o caráter antropocêntrico, arbitrário e ilusório da cultura. Não se poderia supor na raiz dos ritos funerários qualquer conhecimento objetivo de um possível perigo patogênico dos cadáveres. Se assim fosse, como explicaríamos que algumas culturas enterrem seus mortos antes mesmo que eles morram, ou que outras, a que já fizemos referência, enterrem corpos ausentes, simulacros de corpos? Sabemos que a identificação, o reconhecimento e a valoração das sensações são culturalmente variáveis: o cheiro de alguns queijos altamente apreciados pelos franceses é considerado profundamente repulsivo por membros de outras populações; o cheiro do homem branco ocidental, a exemplo do que fazemos em relação a indivíduos de outras procedências, é muitas vezes considerado desagradável. O odor que produz a decomposição de cadáveres é considerado pelos dayak particularmente agradável, sobretudo quando se trata da cabeça cortada de um inimigo (Hertz, 1970). Se esses 'perigos patogênicos' tivessem alguma importância sociológica, como poderíamos compreender que algumas culturas demonstrem seu terror à decomposição de seus membros fazendo com que, paradoxalmente, com elas os sobreviventes convivam? Os tanal,a de Madagascar expõem o corpo durante trinta dias em uma cabana, devendo a viúva dormir ao seu lado, recobrindo periodicamente com poeira os líquidos que dele emanam. Os betsileo perfuram os calcanhares do cadáver para apressar a saída das águas; recolhem-nas em um pote e esperam que aí um verme se manifeste para poderem proceder ao enterro. Hertz relata que, entre certos indonésios, os parentes, e particularmente a viúva, têm a obrigação de recolher os líquidos produzidos pela decomposição, para aplicá-los sobre o próprio corpo ou misturá-los aos alimentos. Os hmong não negligenciam nem abandonam amais os despojos, por mais repugnantes e mal cheirosos que sejam. As mulheres e, às vezes, as crianças que lhes fazem companhia limitam-se a espantar as moscas até que todas as etapas rituais sejam completadas para o enterro. Não se poderia entender além disso o porquê de as regras de evitação do cadáver se alargarem muitas vezes e passarem a incluir determinadas categorias de vivos, ameaçando macular a todos e a tudo que tem ou teve contato com ele: se o morto é tabu, são também tabus suas propriedades, sua casa, seus parentes, seus amigos. Estes, segundo os casos e em graus ******ebook converter DEMO Watermarks*******
variáveis, se tratam com cuidados especiais, se evitam, se destroem ou se purificam. Entre os maori, por exemplo, os que tocaram um morto ou participaram de seu enterro estão altamente poluídos. Qualquer contato com outras pessoas lhes está interditado. Estão proibidos de entrar em casa e de tocar qualquer objeto, sob pena de os tornarem impuros também. Nem mesmo tocam com as próprias mãos os seus alimentos. Apenas indivíduos miseráveis e abandonados, que vivem de esmolas, podem se aproximar deles. Ao fim desse período de isolamento, tudo o que lhes serviu durante o perigo é sumariamente destruído e eles são purificados a fim de retornar à vida normal. Também na nossa sociedade a morte tem mana e atribui mana. David Sudnow (1971) relata o estigma que recai, nos hospitais que estudou, sobre os indivíduos que se relacionam com cadáveres. Descreve que sempre que se constata a presença desses indivíduos desconfia-se da ocorrência de morte: de onde quer que esses indivíduos venham e para onde quer que eles se encaminhem, são sempre vistos e imaginados como indivíduos que recolhem cadáveres ou que se acham envolvidos nas horripilantes tarefas de necropsia. É fácil verificar este poder negativo nas conotações com que vemos os 'papadefuntos', os coveiros e os que de uma ou de outra forma se relacionam com a morte. Se o perigo 'objetivo' de doenças provocadas pela decomposição dos cadáveres fosse determinante, como poderíamos compreender que todos os corpos não provoquem o mesmo horror? A experiência etnográfica demonstra que este horror pode variar imensamente com o tipo de morte e com a qualidade do morto. A morte do rei, do chefe, do governante ou de qualquer alto dignitário é normalmente seguida de intenso assombro, pois neles se resume toda a personalidade do social. A morte do rei anuncia, como nenhuma outra, a iminência do caos. A decadência de sua majestade se apresenta aos homens como catastrófica, deixando-os perplexos. À iminência do caos, muitos povos respondem com rituais de inversão da ordem, procurando produzir, sob controle social, a desordem que poderia provir de fontes implacáveis: nas ilhas Sandwich, muitos matam, pilham, incendeiam, enquanto as mulheres se prostituem. Reações da mesma natureza podem ser vistas nas ilhas Fidji. Esta licensiosidade ritual é obrigatória e não termina muitas vezes antes que a decomposição do cadáver real se complete e não reste senão um esqueleto imputrescível. O terror que acompanha a morte do rei coloca-se acima das divergências políticas profanas: aponta de modo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
inequívoco para a extrema precariedade da organização social, trazendo para a proximidade da consciência a possibilidade de uma existência anômica que não poderia mais ser humana. Além disso, o gênero de morte determina reações diferentes no trato com o cadáver, o que se expressa na diversidade das fórmulas rituais. Os que sofrem mortes violentas, as mulheres virgens, as crianças, os natimortos, os suicidas, os indigentes, os militares, os sacerdotes merecem, cada um, um procedimento particular. Em muitas sociedades o cadáver de um suicida suscita um pavor especial e mais intenso e, por isso, é imediatamente abandonado. No mundo cristão, os suicidas não podiam ser enterrados no mesmo cemitério que os mortos regulares, nem suas sepulturas receber a bênção sacerdotal, acreditando-se que iam para o inferno. Mas, se, por um lado, o suicídio pode gerar entre os parentes que sobrevivem um certo sentimento de vergonha, por outro, os sobreviventes de um suicida altruísta, de um mártir, de alguém que se deixou morrer em defesa dos ideais patrióticos e dos valores da moralidade coletiva, dele podem se orgulhar e sua memória se torna objeto das mais solenes reverências. Não poderíamos também entender, se estas práticas rituais se devessem explicar por razões higiênicas, porque, uma vez fechadas, as sepulturas às vezes não o permanecem para sempre. No Vietnam, existe o hábito de se renovar a sepultura, costume que tem uma função terapêutica, pois os seus praticantes acreditam que certas doenças podem ser enviadas por defuntos para lembrar aos vivos que eles não se sentem muito confortáveis e que gostariam de ver seus túmulos renovados. Em Madagascar, essa renovação de túmulo assume as vestes de mudança de posição do cadáver e consiste em abrir o túmulo para envolver o cadáver em uma mortalha nova. Prática aproximadamente do mesmo gênero pode-se presenciar no Ocidente, desde a Idade Média, quando os ossos, algum tempo após o enterro, são desenterrados e transportados para ossuários a fim de liberar espaço para outros sepultamentos. São numerosas as sociedades em que se praticam os duplos funerais. Os índios das planícies da América do Norte expunham os corpos sobre uma plataforma, recolhiam os ossos em pequenos pacotes e os enterravam posteriormente. Em Bali se pratica uma primeira cremação, ngaben, que restitui o corpo à terra pelo fogo, e uma segunda cremação comemorativa, mamuklue, purificação última que faz o espírito ter acesso ao panteão dos deuses. Em Creta, o ritual comporta primeiramente o enterro em uma tumba, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
para uma desagregação rápida e, ao fim de três ou quatro anos, a preparação de uma sepultura definitiva. Esta cerimônia é conduzida pelo neto do defunto, que entra na sepultura para recolher os ossos. Estes ossos devem em seguida ser lavados e depositados em um receptáculo de vidro. Na ilha Adaman, depois de uma morte, os indígenas abandonam a aldeia por vários meses, após o que retornam, quando os ossos estão secos e purificados, para realizar a cerimônia que fecha o período fúnebre. Entre os bororo verifica-se também a dupla inumação. Realizam um primeiro enterro rápido, quando durante várias semanas se joga água sobre a sepultura para apressar a decomposição. Quando esta se encontra adiantada, abrem a sepultura e lavam o esqueleto, retirando dele todas as carnes. Pintam, então, de vermelho os ossos e os enfeitam com plumas. Colocam-nos em um cesto e os submergem, em ato solene, em um rio ou lago, onde moram as almas. É claro que em todas essas práticas se está lidando com o perigo que o cadáver comporta. Contudo, não se trata absolutamente de um perigo 'objetivo'. Em um artigo bastante detalhado, Hertz (1970) mostrou bem claramente o significado desses ritos de dupla sepultura. No primeiro túmulo (enterro, exposição, cremação etc.), o cadáver, por assim dizer, é somente colocado. O tempo que decorre entre este primeiro enterramento e a sepultura definitiva varia, segundo as culturas, de alguns dias ou meses a alguns anos, e é o tempo em que se supõe que se deva dar a decomposição, até o descobrimento dos ossos. Corresponde ao tempo de passagem do defunto da sociedade dos vivos ao reino dos mortos: é um tempo em que o morto não rompeu ainda todos os seus laços sociais e está em uma posição intermediária entre os dois mundos. A segunda sepultura lhe confirma a entrada no reino dos mortos: é a ocasião em que os ossos do morto são reunidos aos de todos os outros defuntos. Desse modo, a figura ambígua de um defunto que se decompunha é transformada em antepassado protetor. Enquanto esse processo não terminar, como Hertz nos mostra, a alma é instável e ansiosa, "errando pelas florestas e freqüentando os lugares que ela habitou quando viva". É esta cerimônia que alguns povos, como os senufo, consideram como sendo propriamente 'funeral'. É nela que se dá geralmente o gesto essencial de reunir os ossos, lavá-los, limpá-los, contá-los cuidadosamente e dar-lhes uma morada definitiva. É através da segunda sepultura que os kraho 'matam' a morte: primeiro inumado no exterior da aldeia, o morto é posteriormente 'reinumado' na proximidade desta, tanto mais próximo do centro da aldeia quanto mais elevado for o seu status. O enterro secundário krahó retém do ******ebook converter DEMO Watermarks*******
morto o que dele não perece: seus ossos. Menos mortos e mais sociais, os ossos podem ser aproximados da aldeia e inumados na casa materna ou no pátio (Cunha, 1978). É nessa cerimônia que se encontra o simbolismo de expulsão definitiva da morte do mundo dos vivos. É nela que se mata essa outra-vida/antivida que sai do cadáver – humores, fedores, carne em decomposição, putrefação – e que representa perigo simbólico para a sociedade. É nela que se mata a morte. É necessário que a sociedade se aproprie desse processo natural porque, se os indivíduos morrem, ela, pelo contrário, sobrevive. Se ela vê no homem a sua imagem projetada, gravada, as forças que o constituem devem ter a mesma perenidade. A destruição do corpo turva essa imagem, sobretudo enquanto ele se consome. Obriga a sociedade a refletir sobre si e os homens a pensar em seus destinos. Evidencia-lhes as vulnerabilidades. Por isso, o que as sociedades buscam nessas práticas é descobrir algo que resista à morte. Compreende-se por que tantas são as culturas que atribuem especial valor simbólico aos ossos – exatamente àquilo que, da morte, fica. Tais culturas tentam trazer a certeza da vida eterna para perto de si, qualquer que seja o modo pelo qual a concebam. Aí está a razão da extrema difusão dos cultos de crânios, evocados já a propósito dos sinântropos. Leroi-Gourhan (1964) informa que, por ocasião das buscas na caverna Choukoutien, pôde-se observar que os fragmentos cranianos se encontravam preferencialmente em determinados lugares, do que se levantou a hipótese de terem sido os crânios assim dispostos para responder a uma finalidade cultual. Ainda entre o sinântropos foram encontrados crânios com orifícios occipitais alargados e comportando traços de carbonização, o que permitiu a certos autores atribuir-lhes as primeiras manifestações de um canibalismo ritual por extração do cérebro (Gastaud, 1974). Igualmente, a separação de certas partes do esqueleto e sua utilização após a desagregação da carne é inteiramente certa no paleolítico superior: na gruta dos Três-Irmãos (Ariège) foi encontrado um pedaço de mandíbula de criança, perfurada por um orifício de suspensão. Dentes humanos foram do mesmo modo arranjados em pendentes: em Dolni Vestonice, na República Checa, descobriu-se um incisivo humano, cuja raiz é perfurada de um furo de suspensão. Uma vértebra de cervídeo colocada em uma das órbitas de um crânio paleolítico pôde ser interpretada como simulação de olho, tentando dar ao morto a aparência de vida. No mesolítico, numerosos casos de cabeças ******ebook converter DEMO Watermarks*******
separadas do esqueleto e enterradas isoladamente puderam ser constatados; em Jericó, Oriente Médio, foi encontrado um crânio neolítico que possuía uma espécie de concha, à guisa de olhos, colocada nas órbitas (Thoury, 1979). Os registros etnográficos indicam que em nosso tempo os cultos de crânios e relíquias continuaram em condições análogas, senão idênticas, às da préhistória: na Melanésia e na Micronésia, o morto é exposto até o momento em que a cabeça se separe do tronco e o crânio esteja seco: é então decorado e conservado. Em certas regiões da antiga Iugoslávia, após a inumação, costuma-se depositar no ossuário apenas o crânio, devolvendo-se o resto dos ossos ao túmulo. As viúvas bena-bena, da Nova Guiné carregam no peito as caveiras de seus parentes. Nós mesmos tomamos, como símbolo da morte, a caveira: porque a cabeça é sede das faculdades interacionais mais importantes – pensamento, visão, olfato, audição, linguagem... – exatamente, o que, na morte, se quer que permaneça.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
5 Reprodução social e rotinas da morte Toda essa preocupação social em afastar a morte supõe, evidentemente, uma certa consciência realista do desaparecimento dos indivíduos e dos perigos estritamente sociológicos que este desaparecimento comporta. Não basta à sociedade produzir explicações e tabus que afastem a morte: é preciso ainda que ela tome decisões efetivas para assegurar sua continuidade 'contra' e 'através' do desaparecimento de seus membros. É preciso que as gerações se sucedam e que a cultura as una: a iniciação dos mortos na aldeia do além é também iniciação dos vivos na sociedade do aqui. Neutralizar a morte é necessário, mas ainda não suficiente: falta compensar a perda dos mortos, reorganizar as relações sociais de sexo, parentesco, idade, propriedade, direitos, obrigações... Os aparelhos sociais devem se armar para responder à terrível ameaça de aniquilamento presente no vazio interacional que o descomparecimento dos indivíduos deixa: 'buraco negro' que é ainda mais morte que o cadáver – porque, se o cadáver é antivida (mas ainda vida), a ausência é a mais verossímil metáfora do nada. Por esta razão, as sociedades são obrigadas a assumir atitudes firmes diante do desaparecimento de seus membros. Estas atitudes começam por uma espécie de rotinização da morte, ou seja, pela inserção dela em um esquema de expectativas. Em muitas sociedades, por exemplo, a trajetória humana é pensada a partir de um modelo de "enriquecimento progressivo da personalidade", segundo a expressão de Roger Bastide (1970: 12), em que o indivíduo é promovido no correr de sua existência do estado de recémnascido ao de criança, do de criança ao de adolescente, ao de adulto, ao de ancião, ao de ancestral, enfim. Neste modelo a morte é uma etapa obrigatória da mobilidade social e o status de ancião é visto como implicando da parte de todos as mais sérias reverências. O respeito que se devota ao ancião encontra um fundamento sociológico objetivo sobretudo nas sociedades de tradição oral, pois ele é contrapartida da transmissão à comunidade dos saberes imprescindíveis de que os velhos são depositários: saberes sobre as técnicas de bem viver neste mundo – que o ancião conhece por nele haver longamente vivido – e saberes adquiridos em razão de sua proximidade do mundo dos ancestrais, de que eles são os mediadores vivos na comunidade. Entre os vivos e os mortos, a morte do ancião normalmente não comporta ruptura das expectativas e da visão de mundo. De um modo geral, ela pode ser facilmente enquadrada nas diferentes cosmologias, como um acontecimento necessário à continuidade da ******ebook converter DEMO Watermarks*******
existência do grupo, pois este em sua integralidade é constituído também pelos ancestrais. A velhice e o envelhecimento são freqüentemente entendidos como resultando da própria participação do indivíduo na sociedade e em prol desta: a deterioração da vida individual é o preço da construção da vida coletiva. Os bororo (Crocker, 1977), por exemplo, acreditam que o envelhecimento, as mudanças físicas e a aproximação da morte se devam à perda, gradual no tempo, de rakare, quer dizer, de força ou élan vital – uma substância que entre os adultos tem limites definidos, que se pode escoar ou conservar, mas que não pode ser aumentada. A copulação é responsável pela maior parte das perdas de rakare, o que implica a possibilidade de ver a morte e o envelhecimento como uma espécie de fusão dos indivíduos na comunidade – esta última nascendo da morte dos primeiros do mesmo modo que o aparecimento dos indivíduos depende da colaboração coletiva. Entre os tenetehara, o mito de Maíra relata a derrota deste personagem frente a seu filho, derrota que Maíra aceita com resignação. Esta resignação expressa sua interpretação da ordem normal das coisas: a supremacia em última instância do elemento social jovem sobre o velho, sem que isto comporte um fator de desorganização tribal (Leopoldi, 1973). No mito, o resultado da disputa entre pai e filho não influi no relacionamento harmonioso que preside a convivência deles em uma comunidade ideal. Uma tal mensagem age no sentido não só de consolar o indivíduo frente às vicissitudes que a velhice pode progressivamente acarretar, como também no de reforçar para o grupo indígena a idéia de que o velho e o novo não se excluem e que, ao contrário, conjugam-se em uma complementariedade da qual a existência e a permanência da sociedade dependem. O status de ancião comporta seguramente uma certa ambigüidade. Por um lado, implica extremo respeito, imensa distância, como ocorre freqüentemente entre os pais e seus filhos. Por outro, comporta relações tenras e jocosas, de intimidade e proximidade, entre a geração dos avós e a dos netos. Em um primeiro nível, há uma atitude tensa entre a geração que exerce (ou exerceu) o poder e aquela sobre a qual o poder é (ou foi) exercido. Em um segundo nível, há uma atitude tenra na relação entre duas gerações que se identificam na continuidade social, já que a chegada do recém-nascido anuncia a morte do ancião e já que ambas se opõem à geração intermediária, que efetivamente detém os meios de exercer o poder. Louis-Vincent Thomas (1976) observou, entre os bambara e os agni da Costa do Marfim, que o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
moden-thon, ou seja, a jocosidade por ocasião da morte do avô, não existe quando se trata da morte do bisavô: este, com relação ao seu bisneto, tem atitude idêntica à que assume diante de seu próprio filho. Provavelmente, o mesmo princípio fundamental opera aí: o bisavô, tendo uma relação tenra com o seu neto, é assimilado a este e em razão disso passa a ser visto como tendo uma relação tensa com seu bisneto (da mesma natureza daquela que este tem com seu pai). É difícil não perceber esta ambigüidade. Assim, se o velho detém o saber, nem sempre detém os meios de transformá-lo em poder – entendido este como capacidade de fazer uso da violência. Às vezes, os anciãos são dotados de poder mágico proporcional à fraqueza física deles, como entre os aranda australianos que acreditam que os velhos sejam capazes de punir com doenças. No Vietnam, informa-nos Nguyen Kim-Chi (1977), o status do ancião é muito valorizado e o respeito que se lhe deve durante a vida deve continuar após a morte, quando ele se transformará em ancestral a ser cultuado. Para um ancião vietnamita é uma grande felicidade poder morrer envolvido por seus filhos e netos e ter recebido, muitos anos antes, um belo caixão como presente do filho mais velho... É difícil não perceber a ambigüidade. Os buriato vestiam os velhos de uma maneira especial, levavam-nos durante uma festa ao lugar de honra e depois os sufocavam. Os jakuti sepultavam os velhos ainda em vida ou deixavam-nos morrer de fome. Algumas populações tibetanas interrogavam o moribundo sobre suas intenções de voltar à vida: se respondesse afirmativamente era estrangulado. Rivers (1911-2) observa que os melanésios não conhecem palavra alguma correspondente ao significado de 'morte'. O termo de que dispõem significa ao mesmo tempo 'velho', 'doente' e 'morto' e, na prática social, não é raro que os velhos sejam enterrados vivos. Esta ambigüidade parece estar atrás dos debates e das práticas relativas à eutanásia, aqui e alhures: os hotentotes quando um homem decai muito em sua força física, preparam-lhe uma refeição, conduzem-no a uma cabana longínqua e aí o abandonam, com uma pequena quantidade de alimentos, para morrer de fome ou ser devorado por animais. Em algumas sociedades, os velhos são mergulhados na água gelada até morrerem e, em outras, são untados com mel e introduzidos em formigueiros. São muitas as maneiras de se praticar eutanásia, a maior parte delas associada ao bem-estar da sociedade. Entre os esquimós, os velhos que não são mais ******ebook converter DEMO Watermarks*******
úteis à sobrevivência do grupo são conduzidos, muitas vezes a pedido, para fora da aldeia onde morrem de frio, fome ou devorados por animais. Estes esquimós não têm nome para designar a guerra e, quando há conflitos entre seus vizinhos da zona de vegetação arborizante, retiram-se para não presenciar derramamento de sangue. Sua ética não admite que um ser humano seja morto, salvo nos casos de roubo e loucura porque acham que ambos constituem um perigo para o grupo. Aquilo que se convencionou chamar de 'morte provocada dos anciãos' é uma ritualização consciente da sobrevivência do grupo, decorrente normalmente de uma estação de caça ruim, que imporá um inverno sem víveres em quantidade suficiente. Após os velhos, era a vez das crianças de pouca idade, que se deixavam morrer de frio. E o racionamento deveria prosseguir de modo inexorável se aumentasse a falta de víveres, de modo que os últimos sobreviventes fossem os melhores caçadores e as esposas mais jovens, a fim de permitir a reconstituição do grupo (Calder, 1971). Freqüentemente tais práticas se articulam a crenças em um além paradisíaco, cujas alegrias não se quer negar aos velhos por muito tempo ainda. As preocupações com reprodução social estão presentes também nos cuidados que as sociedades normalmente tomam no sentido de garantir uma estrutura demográfica adequada. Contrariamente às opiniões românticas que envolvem as sociedades tribais, não está comprovado que a maioria delas disponha de meios anticoncepcionais realmente atuantes, preparados à base de ervas. Contudo, as práticas abortivas são largamente empregadas e se pode enumerar uma relação ampla de técnicas químicas e mecânicas apropriadas a este fim: muitos venenos vegetais ou animais que provocam traumas generalizados ou agem diretamente sobre o útero, passagens bruscas do frio ao quente, massagens violentas, golpes localizados etc. Tais técnicas, todavia, põem em perigo a vida da mulher grávida. Por esse motivo, é possível que uma boa parte das sociedades humanas tenha feito recurso a uma outra técnica de controle populacional: o infanticídio. O infanticídio assume um número largo de formas, indo do abandono ao estrangulamento, do afogamento ao estraçalhamento entre pedras, aos acidentes provocados por falta de cuidado, à morte por falta de alimentos... A eliminação dos recémnascidos apresenta, do ponto de vista do controle populacional, o atributo de poder ser seletiva, pois, se o infanticídio feminino for praticado, um resultado radical e a longo prazo poderá ser atingido. O aborto e a eliminação dos velhos não apresentam essas 'vantagens'. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
O equilíbrio demográfico obtido através da morte de crianças torna-se particularmente inteligível quando se considera que boa parte das sociedades conhecidas, talvez a totalidade, não admite um indivíduo como um de seus membros somente pelo fato de nascer. Com efeito, o simples nascimento biológico não basta. É preciso nascer socialmente: por isso freqüentemente se ogam os natimortos no lixo, como em alguns hospitais no Brasil. Coerentemente, é raro que se ponha luto pela morte de um recém-nascido, raramente se lhe prepara um enterro igual ao dos adultos, raramente se o enterra no mesmo lugar. Os lodugan dizem que uma vez que a criança morta volta para a mãe não são necessários os ritos funerários. Os totonaque pensam que estes ritos não são importantes por ocasião da morte de uma criança, pois ela deverá renascer através de uma outra mulher que até este momento fosse estéril. No mundo cristão, as crianças mortas antes de receberem o batismo (nascimento social) eram tradicionalmente enterradas em cemitérios especiais e não chegavam a obter o direito de ir para o céu. Em suma, as crianças ainda fora das malhas culturais são, como os natimortos, logo esquecidas (quando são levadas em consideração) e imediatamente substituídas pelo advento de outras crianças e pelo ruído do movimento da máquina social. Entre os bororo a morte de um bebê não comporta conseqüência social alguma antes da cerimônia de atribuição do nome: o cadáver é enterrado em cerimônia privada pelos pais, da mesma maneira que eles fariam com os animais domésticos. Mas, uma vez dotada de um nome a criança é associada às almas dos que já morreram há muito tempo, começa a possuir uma personalidade social e passa a ser sujeito de direitos, entre eles o de merecer rituais funerários (Crocker, 1977). Possuir um nome é pertencer a uma comunidade – e freqüentemente a reprodução social é pensada como sendo um revezamento de nomes. Assim, os esquimós do pólo acreditam que um homem possua dois atributos espirituais, seu nome e sua alma, e que após a morte o nome deixe o cadáver e se introduza em uma mulher grávida para renascer no corpo da criança que ela espera. Entre os guayaki a criança receberá o nome dos mortos que sua mãe terá comido durante a gravidez (Clastres & Sebag, 1963). Os baulé do Senegal dizem que uma mulher que coma os alimentos deixados sobre o túmulo do avô conceberá logo uma criança, que levará o nome do ancestral. Se uma mulher sara sonhar freqüentemente com um ancestral, é dele que ela estará grávida e é o nome dele que será atribuído à criança. Entre os luba, é ******ebook converter DEMO Watermarks*******
comum alguns indivíduos se comprometerem com um moribundo a perpetuar seu nome através de crianças que eles produzirão. Se por acaso uma criança pequena adoecer, seu mal poderá ser atribuído a ancestrais que brigam para lhe impor o nome. A mesma crença pode ser observada entre os tonga de Zâmbia, que atribuem a doença às disputas entre dois defuntos, um do clã paterno outro do clã materno, pelo nome da criança. Esse revezamento de nomes faz com que o morto continue de certo modo a viver, pois a morte verdadeira só aparece quando o morto desaparece da memória coletiva. Se os homens vivos conhecem seu nome, o morto continuará ainda um pouco vivo. Os nomes indefinidamente repetidos, alternandose de avós a netos, sugerem que é a mesma pessoa que se reencontra a cada duas gerações. Diante do desaparecimento dos atores, a transmissão dos nomes assegura a manutenção dos personagens e a perenidade do texto social. E o revezamento por gerações alternadas faz com que a geração dos indivíduos ativos e produtivos esteja sempre comprimida entre duas semelhantes uma à outra (pois os nomes são os mesmos), de modo a sugerir que o futuro seja a reconstituição do passado e que o tempo seja impotente diante da sociedade. É esta imobilização do tempo, que se torna reversível porque se refaz continuamente, que as culturas buscam nas práticas funerárias. Por isso, não é estranho que as diferentes consciências sociais da morte reproduzam a imagem da profunda função biológica desta: permitir o fluxo constante da corrente de vida, pela substituição de um indivíduo por outro e deste por outro, de modo que os desaparecimentos na escala dos indivíduos permitam a permanência no plano da coletividade, no plano da espécie. Nesse sentido, pode-se facilmente comp reender que os motivos fu ndament ais da s const ruções cultu rais concernentes à morte sejam "transferências e metáforas míticas dos processos bióticos fundamentais" e que a humanidade apreenda sua própria lei de morte à imagem das "leis de metamorfoses que ela reconhece em toda a natureza, onde toda morte é seguida de uma vida nova" (Morin, 1970: 22, 146-7). A morte vem a ser fecundidade e a fecundidade, morte. Passa a ser a grande fecundadora e as fronteiras entre os ritos propiciatórios, de fecundação e de iniciação, por um lado, e os funerários, por outro, tornam-se muitas vezes indistinguíveis. Os dois mitos fundamentais de superação da morte, o do 'renascimento' e o do 'duplo', "são transmutações, projeções fantasmáticas e noológicas das estruturas da reprodução, isto é, dos dois modos pelos quais a ******ebook converter DEMO Watermarks*******
vida sobrevive e renasce: a duplicação e a fecundação" (Morin, 1970: 21-2). Na África, por exemplo, Pierre Erny (1972) e Louis-Vincent Thomas (1976: 438-9) observaram que entre os ritos agrários que asseguram o crescimento dos vegetais cultivados e os ritos pelos quais a sociedade se perpetua pode-se definir um paralelismo constante. Na expressão do segundo, "entre os ritos de nascimento, os ritos de morte e os ritos de iniciação, as analogias de estrutura são tão importantes que não se pode estudá-los separadamente". A festa antiga dos hindus em que se celebravam os mortos coincidia com a festa da colheita; as mulheres algonkin que desejassem se tornar mães deviam acorrer à cabeceira de um moribundo, para que a alma dele se alojasse nelas. Os tibetanos vêem na criança que nasce no momento da morte do grande Lama a reencarnação deste. Muitas vezes, acredita-se que o último nascido seja a reencarnação do último morto e se lhe atribui o nome deste. Entre nós mesmos, a palavra 'inumação' remete a 'colocar em húmus', ou seja , 'fertilizar'. O ancestral é o caminho para superar a contradição que a descontinuidade da existência humana comporta e que a morte revela brutalmente. Por isso, o ancestral é o senhor da vida e da morte. Em Trobriand, nenhuma criança pode vir ao mundo sem a intervenção de um ancestral da mãe que lhe dará a força vital: a gravidez resulta da incursão no útero da mãe de um espírito que deixou o mundo dos mortos para recomeçar uma nova trajetória aqui em baixo. Mas, mesmo que eles não se reencarnem, os ancestrais continuam responsáveis pelos nascimentos, e é a eles que as mulheres estéreis devem recorrer para poderem ser mães. No folclore de Leipzig, mostravam-se imagens de pessoas mortas às mulheres jovens, para lhes dar fecundidade. A morte está igualmente presente na maioria dos ritos de passagem, que consistem em morrer para uma posição (por exemplo, 'adolescente'), e nascer para outra ('homem adulto', no caso). A propósito, escreveu Robert Jaulin sobre os sara (1974a: 134) que, na morte iniciática, as mulheres sabiam que seus filhos, percebidos sob suas roupas de folhas, não tinham ainda sido 'engolidos' pelos ancestrais, mas iriam sêlo imediatamente. Nós partimos e elas ficaram agachadas sob a árvore, provavelmente durante vários dias, chorando suas crianças 'mortas' na mata – só faltavam os cadáveres para que a situação fosse a de um verdadeiro velório – até o momento em que um moh veio anunciar a ressurreição dos neófitos, isto é, todo o tempo que dura a lamentação que segue necessariamente a morte de um filho. Os ressuscitados não ******ebook converter DEMO Watermarks*******
serão mais seus filhos, mas homens. O exemplo dos sara nos mostra de modo nítido as relações entre a morte, a preservação e a reprodução da sociedade: os ancestrais sara ingerem os neófitos e os devolvem depois como adultos completos; a morte e o renascimento iniciáticos ultrapassam a oposição entre a morte e a vida. A terra onde estão os defuntos representa uma natureza culturalizada, sobre a qual e com qual agem os vivos. Os ancestrais estão integrados à natureza: a eles se pede que interfiram por meio da terra, de que são esposos, junto aos animais, para que estes se dirijam na direção dos caçadores. Por sua vez, a terra só aceita privilegiar os homens se os ancestrais intervierem a favor deles. Assim, a terra-mulher se engravida de alimentos para os homens vivos, do mesmo modo que a mulher-humana dá à luz crianças que são alimentos para a sociedade e que serão, um dia, mortos comidos pelos ancestrais (no rito de iniciação) e pela terra. Os homens, cultura naturalizada, se aliam à terra, natureza culturalizada. E as crianças, alimentos dados aos ancestrais, são como os alimentos dados, através da interferência dos ancestrais, pela terra aos homens: "existe entre as crianças e os alimentos uma analogia evidente: a perpetuação da vida" (Jaulin: 1974a: 242). Os mara, vizinhos dos sara, acreditam que os homens inseminem a terra clânica com a colaboração dos antepassados e que a terra seja esposa conjuntamente dos vivos e dos mortos do clã. Pedem aos ancestrais que aceitem os grãos que plantam e que façam com que as colheitas apareçam. Entre eles, "a terra existe em função dos mortos, para o bem dos homens" (idem: 237). Através desses simbolismos, as mortes individuais são transformadas em ocasiões em que o grupo realiza a mise-en-scène de sua própria reprodução, em que demonstra preocupação muito maior com sua proteção própria do que com a dos indivíduos que morrem. Ao mesmo tempo, esses simbolismos localizam a morte como fenômeno concernente ao indivíduo, não à sociedade – e por este processo deixa insinuar-se a perpetuação da espécie. Mas nada disso é muito novo: na arte paleolítica já é difícil distinguir os símbolos de geração dos símbolos de morte, e os mortos pré-históricos freqüentemente já são introduzidos na terra em posição fetal – como se já se tivesse percebido a metáfora fundamental.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
6 Morte e comunicação Se a sociedade é um sistema de comunicação, o desaparecimento de um componente de sua organização põe em crise todo o sistema. A morte de um indivíduo não é um evento isolado, mas representa tantos eventos quantas relações o indivíduo morto mantivesse: amizades, inimizades, paternidade, filiação, aliança, propriedade... Todas essas relações, que constituem o tecido social, correm o risco de se romper ou se rompem efetivamente. Por isso, o desaparecimento de um indivíduo põe em marcha uma hiperintensificação das relações sociais. Desdobra diante dos indivíduos e grupos um jogo de espelhos que se inter-refletem e se reduplicam, de modo a encerrar no seio da comunidade a auto-identidade própria do grupo, produzindo, pelo reforçamento da solidariedade dos que ficaram, a superação do vácuo deixado pelos que partiram. Cada grupo à sua maneira impõe aos sobreviventes o desempenho de papéis recristalizadores que consistem em privilegiar determinadas relações e evitar outras. Cuidadosamente, exigir-se-á das crianças e dos jovens que se envolvam no drama e que desempenhem papéis que lhes irão revelar – através de uma linguagem adequada à circunstância – os princípios estruturais que a vida coletiva supõe: estes papéis têm, pois, uma função pedagógica evidente. Presencia-se, então, o desenrolar sutil ou escandaloso de trocas e prestações, o surgimento de novos parceiros de trocas, a imposição de que novos objetos se permutem, a proibição do comércio dos antigos, construções novas e desconstruções obrigatórias, sutilezas hierárquicas que se manifestam, proibições e obrigações alimentares e lingüísticas... Não se trata somente de esquecer o morto e de obturar a lacuna que ele deixou. Trata-se também de mobilizar a comunidade para suas relações com o novo parceiro – alma, espírito, ancestral etc. – que a morte criou. As relações não cessam com o falecimento, uma vez que o morto de numerosas maneiras vai continuar a influenciar os vivos. Esta comunicação dos mortos com os vivos se dá nos sonhos, no aparecimento dos mortos, através de fenômenos meteorológicos, pelas sombras, pelos recém-nascidos, pelos sacerdotes... Como todas as outras, está submetida a um código, a um contrato cujas cláusulas os jovens devem aprender. Na Espanha, os mortos são tradicionalmente os intercessores dos vivos junto a Deus; em compensação, esperam dos vivos as luzes que lhes permitirão não se perder no caminho para o Céu, as missas e as orações para o salvamento de suas almas. Em suma, esperam que os vivos sejam seus intercessores junto ******ebook converter DEMO Watermarks*******
a Deus para que suas almas saiam do Purgatório. O contato e o contrato com os mortos não são meras abstrações distanciadas do cotidiano: por três padrenossos se pode obter das almas que acordem alguém a uma hora determinada a fim de que não perca um trem ou um exame; o vizinho mais próximo avisa as abelhas da morte do dono, a fim de que estas fabriquem mais cera para confeccionar as velas que iluminarão o caminho do defunto (Fribourg, 1979). Entre os pame (Chemin-Bässler, 1979), do México setentrional, o contrato entre vivos e mortos supõe que estes últimos tenham no mundo das almas necessidades idênticas às dos vivos (eles comem, bebem, fumam, usam roupas...) e que seja obrigação dos sobreviventes prover as carências dos mortos (acreditam que as almas estejam sempre necessitadas porque Deus não lhes dá o bastante). Por isso, no mês de novembro, época em que os mortos vêm visitar suas famílias, os vivos devem fazer oferendas de alimentos, bebidas, cigarros, roupas, se possível com música, canto e dança (os mortos os apreciam igualmente). Não cumprir estes deveres acarreta o risco de sofrer as sanções correspondentes: os mortos passam a vir durante todo o ano, começam a importunar os vivos, causando-lhes dificuldades várias, doenças físicas, psicológicas e mesmo morte. Estes contratos visam a regular relações potencial ou abertamente críticas e antagônicas. Entre os antandroy, o clã tananatsosa rege suas relações com os mortos a partir de uma cláusula condicional. Cozinham feijões, depositamnos sobre o túmulo do parente e lhe dizem: "se estes grãos não germinarem, não volte mais" (Rabedimy, 1979: 178). Manuela Carneiro da Cunha (1978) observou a partir de Pierre Clastres (1972) que os tupinambás, ao comerem o inimigo aprisionado a quem haviam atribuído os objetos e paramentos do morto tribal, cuja morte agora iriam vingar, efetuavam uma substituição, pela qual eles não somente transformavam o inimigo em alguém como os da tribo, ou seja, como o 'nós' tribal, mas, além disso, faziam do morto, em homenagem ao qual matavam e comiam o prisioneiro, alguém semelhante aos 'outros', ou seja, um inimigo. Para os tupinambás, comer o inimigo é afastar o 'ex-vivo-amigo-agora-morto-inimigo', é uma vingança de guerra, uma reapropriação dos ancestrais comidos pelos inimigos, uma proteção contra perigos futuros, uma luta muito séria contra o morto e a morte. Enfim, um jogo complexo de mensagens, dons e contra-dons. Entre vivos e mortos se estabelece, portanto, para os tupinambás, mas também para muitas outras sociedades sul-americanas, como os guayaqui, os krahó, os bororo, entre outros, um sistema de comunicações ou de supressão ******ebook converter DEMO Watermarks*******
de comunicação (o que vem a ser o mesmo) que define um sistema de oposições nós/outros, fundamental para a configuração da fisionomia dessas sociedades. Diferentemente do que se tem observado em relação às sociedades africanas em geral, os mortos nessas sociedades sul-americanas são concebidos como encarnando a mais extrema alteridade, isto é, como sendo o 'outro' absoluto, a anti-sociedade, "que nega em seus fundamentos a sociedade dos vivos e a hostiliza, roubando-lhe os seus membros" (Cunha, 1978: 3). Contudo, exatamente como na África, mas por razões inversas, os mortos entre esses indígenas sul-americanos estão sempre presentes na vida dos vivos. Entre nós mesmos e até recentemente, a morte de uma pessoa implicava toda uma dialética comunicacional dos grupos sociais a que ela pertencesse: fechavam-se as janelas, recebiam-se visitas, tocavam-se sinos nas igrejas, os enterros eram pequenas procissões a tornar público o advento da morte, afixavam-se avisos de luto, colocavam-se os mortos com os pés voltados para o exterior das casas, celebravam-se missas, visitavam-se os túmulos, escreviam-se epitáfios, apresentavam-se condolências aos parentes do morto – enfim, toda uma reverberação de mensagens para mobilizar as pessoas e solidarizar o grupo. A saída de um corpo do circuito comunicativo implica mais comunicação. A própria toalete do cadáver – do corpo que se recusa a responder e que, quando fala, expressa-se por uma antilinguagem – é rica de mensagens. Exige-se freqüentemente que sejam os vizinhos que a executem, não os parentes. Quando se a permite aos parentes, normalmente se preferem os colaterais aos consangüíneos. Mesmo nos casos raros em que são os consangüíneos os que têm contato com o corpo do morto, trata-se com freqüência de ritos de inversão por meio dos quais algo normalmente reprimido se torna provisoriamente liberado. Em nome da máxima circulação, procura-se impedir o incesto que é a não troca do cadáver, a não socialização da morte, a não mobilização de pessoas, a não solidarização do grupo. Deste modo, nas práticas funerárias podem-se encontrar os mesmos "níveis fundamentais de comunicação e de articulação das estruturas sociais" que Lévi-Strauss (1967a) encontrou para a sociedade global. Entre os doadores de mortos e recebedores de crianças a nascer, entre doadores de palavras e recebedores de palavras, entre produtores e consumidores de bens e serviços, os mortos estarão sempre presentes. O entrelaçamento das redes de troca que ******ebook converter DEMO Watermarks*******
unem os vivos aos mortos é hipercomunicação a silenciar o silêncio. Tentativas de silenciar o silêncio através de palavras. Os mortos 'falam' através dos possuídos. Os mortos 'ouvem' as preces. Os malgaches, por exemplo, comunicam-se com os mortos por meio de diferentes preces e recitam todos os nomes dos ancestrais até o último que acabou de morrer. Nossos mortos ouvem: 'repousa em paz', 'volta para o lugar de onde vieste'... Tentativas de silenciar o silêncio através do silêncio: talvez para evitar que o morto fale por seu intermédio, aquele que lhe é próximo deve freqüentemente calar-se: é o silêncio imposto à pessoa enlutada. Por isso, não é raro encontrar cadáveres com a boca costurada (navajo) e sobreviventes provisoriamente condenados ao silêncio: algumas viúvas africanas só saem em público munidas de uma espécie de sineta para prevenir às pessoas que não lhes dirijam a palavra. Por isso, em muitos lugares se silencia o nome do defunto: warramunga e kaiabara na Austrália, tsimihety em Madagascar, samoyede, tatar e tchouktche, na Sibéria, yami em Tobago, os ameríndios do Pacífico, da Nova-Escócia (micmac, malecita) e da baía de Hudson, os tuaregues do Sahara, os ciganos... Na Nova Guiné modificam-se os nomes de objetos que de alguma forma se pareçam com o nome do defunto e na Sibéria os sobreviventes trocam seus próprios nomes. Entre os guajiro (Perrin, 1979) quando um indivíduo morre os outros estão proibidos de pronunciar seu nome. Quem quebrar este tabu deverá pagar: com gado, com jóias, com a própria vida. Mas hoje os guajiro admitem que se pronuncie o nome do morto, sob a condição de o preceder do qualificativo 'defunto', que põe o morto em seu lugar. Compreende-se: se o nome está associado àquele que o porta, se é uma parte constitutiva da identidade social da pessoa e se a palavra, como disse Roland Barthes (1971: 183), é o "antônimo rigoroso da morte" – pronunciar o nome de um morto é, além de uma forma de entrar em contato com ele, um meio de torná-lo vivo, ou ainda, o que pode ser grave, um meio de evocá-lo. No Brasil, embora o tabu do nome formalmente não exista, em um velório, diante do cadáver, o morto é sempre designado por 'ele'. Tentativas de silenciar o silêncio pela troca de objetos. As relações com os mortos implicam transformações nas relações de consumo, distribuição e produção, tanto no eixo vivos-vivos, quanto no eixo vivos-mortos. Na China, no Vietnam e na Coréia acreditava-se que queimar um objeto em oferecimento lhe conferisse uma realidade diferente e o reduzisse por assim dizer à sua natureza essencial, liberando-o de tudo o que fosse espúrio em ******ebook converter DEMO Watermarks*******
relação à sua essência. Aí está a raiz do sacrifício e das oferendas: a destruição (ou retirada do circuito dos vivos, o que equivale a uma destruição) faz passar um objeto de um domínio para outro, do profano para o sagrado, do mundo dos vivos para o mundo dos mortos. Com toda relação de troca, o sacrifício e a oferenda supõem reciprocidade, ou seja, uma ação em sentido contrário do recebedor da oferenda em fa vor do doador. E sta belecem, conseqüentement e, u ma comunicação (freqüentemente uma comunidade) entre os mundos diferentes postos em contato. Porque este contato é perigoso, a comunidade dos vivos se preserva e se protege dele, servindo-se deste intermediário que é a vítima ou o objeto destruído Louis-Vincent Thomas (1976) invoca a cerimônia epwê-atwê entre os abure da Costa do Marfim, que consiste em demolir e arrasar todas as cabanas, sem poupar nenhuma, que tenham sido habitadas por pessoas da geração precedente, a partir do momento em que restem somente poucos representantes dessa geração. E cita Niangoran-Bouah (1960: 86): "um bairro nasce e morre como um ser humano, deve acompanhar sua geração no além a fim de que seus membros possam habitá-lo". Uma nova aldeia é então construída, para exprimir simbolicamente "a permanência na mudança, a vitória da vida sobre a morte". A economia da morte tem um lugar importante na economia da vida: em Madagascar passa-se às vezes toda uma vida construindo as casas dos mortos; várias famílias chinesas foram arruinadas por um enterro e pela construção da morada dos mortos. O potlatch funerário foi praticado entre os haïda, os tinglit , os tsimishian e consistia normalmente em destruição de riquezas. Entre os mongo, do Zaire, matava-se um escravo e arruinavam-se as culturas da mulher do defunto. Se o morto fosse um chefe, às vezes não restava uma só árvore plantada nas imediações, como entre os wagawaga da Nova-Guiné. Os bens pessoais do defunto são muitas vezes queimados, enterrados, afastados, proibidos (dayak, arunta, mohave, totonaques, incas). Do ponto de vista dos vivos, estes objetos são sacrificados. São oferecidos aos mortos para que estes fiquem definitivamente longe do mundo dos vivos: se não se destinam diretamente à obtenção da proteção dos mortos, ao menos tornam possível a neutralidade desses. São numerosos os casos de comunhão alimentar: ocasiões em que se oferece alimento aos mortos, em que se os convida para comer, em que se lhes prepara uma refeição que será consumida sobre o túmulo. Na Espanha, além das luzes e das preces, certos alimentos são preparados particularmente em ******ebook converter DEMO Watermarks*******
homenagem aos mortos (castañadas, buñuelos, huesos de santos...), e se untam ao mel, ao vinho, aos biscoitos, às tortas que os vizinhos trazem para a vigília fúnebre (Fribourg, 1979). No México, as oferendas são gorditas (alimentos à base de milho, modelado em formas diversas, humanas ou animais: cachorros, vacas, porcos, pássaros etc.), frutas, café, legumes, leite, atole (à base de milho novo e açúcar bruto), tamales (à base de creme de milho, pimenta e carne de boi, frango ou peru, envolvidos em folhas de milho e cozidos ao vapor). Os chineses preparam refeições periodicamente, nas quais o defunto está presente por intermédio de um descendente que come, bebe e agradece em seu nome. Na Bretanha se prepara uma refeição de crepes, que é servida à meia-noite durante o velório; delas se abastece generosamente o defunto, antes que ele se vá... Em Madagascar, em Bornéu, entre os ciganos e em muitas localidades brasileiras, bebe-se. Consome-se álcool até a embriaguez e a perda da consciência: comunga-se com o morto a sua viagem... O tempo de luto é determinado freqüentemente não pelos sentimentos diretamente ligados à perda do morto, mas pela quantidade de gêneros produzidos e acumulados para as refeições funerárias e para as festas destinadas a despedir o falecido. Entre os toradja, espera-se o tempo das colheitas para realizar as solenidades; entre os edo, da Nigéria, a duração do luto depende da riqueza e da idade do filho mais velho do morto, sendo o status do defunto função da riqueza dos seus sobreviventes (Maertens, 1979). Por ocasião da morte, dá-se e recebe-se: o que é dado é minuciosamente contabilizado, em muitas sociedades, em vista das contraprestações relativas aos futuros óbitos. A sociedade continua a produzir, para se reproduzir; os bens continuam em movimento para responder à estagnação da vida. Diante da morte, os homens têm necessidade de víveres. Tentativas de silenciar o silêncio, pela intensificação das relações de aliança e parentesco. Quanto mais próximos os parentes, tanto mais atingidos e ameaçados. No Nepal, entre as altas castas hinduístas (Toffin, 1979), os agnatos distantes e as mulheres casadas ficam quatro dias de luto pela morte de uma pessoa. Mas os parentes patrilineares mais próximos permanecem impuros durante treze dias e os filhos, cônjuges, pai e mãe ficam poluídos um ano inteiro e sujeitos a proibições diversas: não podem comer determinados alimentos, não podem penetrar no templo, não podem participar de festas, são obrigados a usar roupas de cores determinadas. O período de luto comporta normalmente revisão e reorganização das ******ebook converter DEMO Watermarks*******
relações de parentesco. Assim, os fox organizam uma festa durante a qual o defunto é substituído no sistema familiar por um indivíduo do exterior que toma o seu nome, o seu status e herda seus direitos e relações, obrigando a família enlutada a se abrir para o exterior, evitando um fechamento mortal para a sociedade. Instituições de sororato, levirato e parentesco classificatório recuperam um indivíduo porventura deixado só na floresta do parentesco. Freqüentemente verificam-se festas comportando permissividade sexual e rompem-se as barreiras que interditavam o incesto, como se Tânatos despertasse Eros. Às vezes, a morte exige reversibilidade nos circuitos de trocas matrimoniais. O krahó quer morrer na casa materna e pede para ser transportado para lá no momento em que a morte se anuncia, mesmo que isso lhe custe esforço (Cunha, 1978: 23, 123): "se sua mãe estiver viva, um homem já maduro, e até chefe do grupo doméstico em que vive, voltará para junto dela", "a existência ost mortem é concebida como o reino da consangüineidade". Entre os mara, a terra é dividida, do ponto de vista das práticas funerárias em tantos cemitérios quantos são as linhagens. Isto porque os homens são enterrados nas terras das suas linhagens e as mulheres, dadas vivas às linhagens de seus maridos, são devolvidas mortas às suas linhagens de origem para aí serem enterradas. Por conseguinte, a terra, que recebe os mortos, constitui "de uma maneira ao mesmo tempo simbólica e imaginária uma garantia da perpetuação das trocas" (Jaulin, 1977a: 297-8). De modo geral, parece que se pode considerar as relações com os mortos como variando segundo a importância que se atribua a dois aspectos fundamentais dos sistemas de parentesco: aliança ou descendência. Nos sistemas que atribuem uma importância maior às relações de filiação e descendência – como boa parte das sociedades africanas – entre três e quarenta gerações (que são mais ou menos os limites dentro dos quais a profundidade dos sistemas genealógicos varia no tempo), haverá sempre um lugar para o morto. A passagem ao status de ancestral conterá em si uma certa continuidade e a persistência do morto encontrará uma dimensão temporal propícia. Neste caso, a sociedade cria laços de parentesco com os defuntos e se desdobra, reproduzindo-se sobre o nada, preenchendo o vazio e afastando os seus perigos. Ao contrário, existem sociedades, como a dos krahó, em que o indivíduo só conhece realmente aqueles com quem convive: "sabe enumerar as peculiaridades de temperamento de cada um, suas habilidades e até mesmo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
reconhece as pegadas de cada habitante de sua aldeia". Mas, ao fornecer uma genealogia, normalmente só consegue enumerar as pessoas que conheceu em vida. Por isso, "as genealogias dadas pelos krahó se estendem horizontalmente mas no sentido vertical são muito pouco profundas" (Melatti, 1978: 117-8). Em um tal sistema é difícil encontrar um lugar seguro para o morto: há uma descontinuidade entre os vivos e os mortos, uma ruptura entre as sociedades do aqui e do além. Os mortos passam a ser 'outros' – antagônicos, adversários, inimigos. A reprodução social, ou seja, a continuidade, efetua-se através de substituições, em que "uma pessoa assume a máscara social da outra e a substitui cerimonial e juridicamente" (Cunha, 1978: 141). A sociedade se vê não como um continuum em relação aos mortos, mas como uma oposição relativamente a estes. Manuela Carneiro da Cunha sustenta com muito propósito que esta tenha sido a opção de muitas sociedades indígenas brasileiras – opção que poderá exigir que seja repensada boa parte das generalizações feitas sobre o significado sociológico da morte, que tomaram o modelo africano como padrão único de referência. A morte do outro é o anúncio e a prefiguração da morte de 'si', ameaça da morte do 'nós'. Ela mutila uma comunidade, quebra o curso normal das coisas, questiona as bases morais da sociedade, ameaça a coesão e a solidariedade de um grupo ferido em sua integridade. A reação da comunidade é um impulso contrário a essas forças desagregadoras. A violência de suas manifestações significa que a comunidade continua a viver. Quanto mais ela chora, quanto maior a sua dor, quanto maior a efervescência pela qual dirige os indivíduos uns em direção aos outros, tanto mais intensa a sua presença nas almas de seus membros. A comunidade reage com veemência igual à da força que a feriu e os indivíduos nunca se sentem tão iguais a ela quanto quando ela é ameaçada. Reagindo ao desabrigo a que seus membros se viram submetidos, ela restabelece, pelo calor dos que sobreviveram, a integridade do grupo. Ela coloca a morte em seu devido lugar, mostrando-a como uma desventura existencial que se abate sobre o indivíduo e que nada nega da essência que nele foi investida pela sociedade. O rumor do social silencia o silêncio individual, através de manobras em que ao mesmo tempo se comunga com o morto e se o afasta. Imuniza-se a sociedade e evita-se que sofra outras infelicidades. Esta vontade de viver da comunidade foi claramente demonstrada por Robert Jaulin (1974a), em seu estudo sobre a morte sara. Aí, alimentos, vida, morte, ancestrais, crianças, mulheres, terra, homens constituem um jogo complexo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
de símbolos e de elementos que se 'interingerem' e se 'intercasam', que dão e que recebem, que articulam mortes reais e mortes iniciáticas simbólicas, conjugando e misturando elementos afetivos, mágicos, jurídicos, econômicos, simbólicos e imaginários que se entrecortam de prestações, presentes, pagamentos, oferendas e sacrifícios feitos em favor do morto e de sua família. A descrição de Jaulin é um belo exemplo de fenômeno social total e de entendimento do fenômeno específico da morte como tal. A morte sara, escreveu Pierre Bernard (1971: 39), associa continuamente três grandes domínios de atividade: as atividades da vida material (caça, pesca, trabalho dos campos, cozinha etc.); as atividades concernentes à organização social (trocas de mulheres, repartição de terras e de bens de consumo, organização das unidades de trabalho etc); enfim, as atividades simbólicas, culturais. Nenhum desses domínios está jamais separado dos outros; a imbricação completa e permanente deles é o fato dominante. A atividade simbólica em particular, mais fortemente posta em relevo na iniciação, deixa de referir-se ao mundo do além; ela se insere estreitamente na vida real do grupo, na medida em que seu papel é assegurar a compatibilidade e a coerência do conjunto de suas atividades; digamos mais, ela representa a respiração profunda do grupo e sua vontade de viver na duração histórica. Este caráter de fato social total pode ser percebido claramente através de descrição que Michel Perrin (1979) nos deu dos rituais funerários guajiro. Aqui, a morte não fala somente pelas concepções filosóficas e religiosas pelas quais se procura enclausurar o desaparecimento de indivíduos em um sistema cosmológico. Os funerais são as principais ocasiões de encontro coletivo e de reagrupamento dos indivíduos. É principalmente nessas circunstâncias que os guajiro dramatizam a ordem social. Ocasiões em que os vivos fazem um espetáculo para si mesmos, do qual cada pessoa é ao mesmo tempo ator e espectador, compondo um sistema de signos em que se exprime a posição social do morto e a de todos os participantes em relação ao grupo familiar e à sociedade global. A quantidade e o tipo de alimento distribuído a cada pessoa é função de seu status. Expressam-se o grau de sucesso material do morto – cujos bens são quase totalmente dilapidados – a posição hierárquica de sua matrilinhagem, bem como o grau de coesão dela (porque, se quiserem prosseguir o funeral após o esgotamento do gado do morto, os parentes devem se unir para poder oferecer um suplemento). Nos funerais, os ******ebook converter DEMO Watermarks*******
diferentes papéis dos grupos de parentesco afloram nitidamente: os parentes distantes, os patrilaterais e os maternos participam de modo diverso da distribuição dos alimentos, das proibições, dos ritos de purificação, do recolhimento de fundos e de gado. "Não é pois surpreendente que seja durante este ritual ostentatório que conflitos se exprimam abertamente, refletindo as contradições próprias à estrutura social guajiro..." (Perrin, 1979: 122). Diante da prefiguração da morte de 'si' e da ameaça da morte do 'nós' que se pode ver na morte do 'outro', a sociedade se emociona e sua palavra de ordem é a união. A resposta contida no canto bambara seguinte, que Ziegler (1975: 273-4) transcreveu, é exemplar: eles se reúnem, cerramse uns contra os outros – homens, mulheres e crianças formando círculos concêntricos e entoam: Aproximem-se, cheguem mais perto, Apertem-se para que a hiena (a morte) não os coma Apertem-se para que o leão (a morte) não os coma Apertem-se.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
7 Morte do poder e poder da morte O que até aqui foi dito nos leva a pensar nas relações entre morte e poder. Trata-se de um tema fundamental para a compreensão, seja das representações da morte vigorantes em uma sociedade, seja da natureza do poder exercido dentro dos domínios dela. Contudo, tal reflexão exige de início que duas noções sejam afastadas: em primeiro lugar, a que sustenta que existam sociedades sem poder; em seguida, a que postula que a morte em si possua algum poder. No que respeita à primeira, lembremos antes de tudo que a sociedade é um sistema. Como todo sistema, comporta dimensões coercitivas que desenham os seus contornos e garantem sua sistematicidade. Além disso, a sociedade é essencialmente um sistema de comunicação e de significação, o que implica seja ela um sistema de regras que organizam o pensamento, o sentimento e o comportamento de seus membros. Tais regras são intrinsecamente dotadas de poder: sem poder, elas não seriam regras e o sistema não seria sistemático. Por conseguinte, falar em sociedade é falar em poder – o que não exclui (ao contrário, exige sempre) a discussão da questão de sua distribuição entre os grupos sociais. Depois de afastar a idéia de 'morte do poder', é preciso repensar a de 'poder da morte'. Não é raro que as teorias do poder partam do a priori segundo o qual a morte em si seja um mal, que seja indesejável, que toda outra coisa lhe seja preferível, e que o poder, em última instância, consista em dispor dos meios de, através da violência e da ameaça de conduzi-lo à morte, coagir um adversário a se dobrar às intenções do dominante. No correr deste trabalho veremos que esta idéia é essencialmente etnocêntrica. Mas, por enquanto, limitemo-nos a lembrar que o 'poder' da morte reside no desafio que ela oferece aos sistemas de classificação e que este 'poder' é função da resposta que, à morte, cada sociedade forneça. Portanto, nada existe de poder na morte considerada em si: depende do tipo de morte, ou de morto, e da maneira pela qual cada cultura os domestica e os apreende em suas malhas. O 'poder' da morte é um fantasma que o poder cria e no qual se reflete. Nossos veículos de informação exaltam-se na descrição de desastres (colisões, quedas de pontes e viadutos, terremotos...) para nos conscientizar, e nos exorcizar, da morte catastrósfica de algumas dezenas de pessoas (logo esquecidas). Entretanto, eles se pronunciam moderadamente acerca das milhares ou milhões de pessoas que cotidianamente morrem em conseqüência das guerras, das epidemias ou das fomes. Na realidade, para a nossa cultura, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
os primeiros aparecem como mais inquietantes e ameaçadores, porque se produzem fora do nosso universo de controle e de certa forma além das fronteiras da estrutura social. Eles colocam em risco e desafiam os sistemas de classificação por meio dos quais nós apreendemos o mundo e organizamos as relações sociais. Tais eventos catastróficos denunciam a precariedade da condição humana tal qual nossa cultura a concebe. Por outro lado, fome, guerra... entre outras infelicidades humanas são um modo particular de operação da estrutura social e, consensualmente ou não, um produto da vontade humana cujas conseqüências são perfeitamente previsíveis. Compreende-se, então, por que talvez universalmente as culturas odeiem especialmente as mortes insólitas (e este termo significa, é claro, coisas diferentes para cada sociedade): entre nós, os desastres, a morte do casal que retorna da lua-de-mel, do jovem assassinado no dia de sua formatura, do rapaz fulminado por um raio, do filho que morre eletrocutado ao tentar salvar o pai, as chacinas e monstruosidades. Tais mortes produzem uma comoção especial: na Austrália, os que morreram por acidentes não merecem honras fúnebres; entre os ao-naga, os familiares de um morto por acidente matam todo o seu gado, e passam a viver miseravelmente. Sudnow (1971), estudando os dispositivos de organização social destinados a lidar com a morte em um hospital americano, relata alguns acontecimentos que causaram surpresa, comoção e pânico, entre as pessoas que constituíam o corpo de funcionários do estabelecimento. O primeiro acontecimento foi o assassinato de uma pessoa, nos domínios do hospital. O segundo, o suicídio de um paciente psiquiátrico. O terceiro, a morte acidental de um técnico de Raios-X, eletrocutado quando manipulava a máquina. O traumatismo de que foram afetadas as pessoas, o pânico e a comoção com que enfrentaram a morte, num contexto em que ela faz parte da rotina diária, têm a ver com o fato de que estas não são mortes 'de' hospital – ou seja, ocorridas de acordo com um conjunto de normas que admitem a morte como normal e a domesticam e aprisionam, porque capazes de desconhecer, atenuar ou neutralizar o seu impacto. Trata-se de mortes ocorridas 'no' hospital, isto é, fora da possibilidades de controle do sistema institucionalizado. Por causa disso, são mortes dotadas de um 'poder' especial. Em vez de se dizer que a morte tem poder, melhor seria dizer que ela tem mana, ou seja, uma capacidade geral de produzir efeitos no nível da sociedade e de seus sistemas simbólicos. É por causa deste mana que ninguém permanece perto de um cadáver sem que a fisionomia ateste que é ******ebook converter DEMO Watermarks*******
precisamente um cadáver o que se está vendo. Na nossa cultura atual, por exemplo, em que as pessoas não estão habituadas à visão de cadáveres, certas reações são típicas: as pessoas ousam olhar rapidamente para o cadáver e afastam os olhos imediatamente, como se quisessem separar do olhar algo que não querem ver. Há pessoas que cobrem os olhos e pessoas que desmaiam. Nessa ambigüidade está a essência do mana, que é ao mesmo tempo causa e conseqüência dessas atitudes: a morte é temível porque a tememos, e tememos a morte porque ela é temível. Os mitos e os ritos criam os perigos contra os quais nos protegem. O 'poder' da morte pode residir simplesmente na falta de cuidados rituais para com ela, ou seja, na falta de atenção em inseri-la regularmente no âmbito do discurso. Proceder de modo ritualmente correto é impedir que o defunto retorne sem autorização, que se transforme em vampiro, que vire inimigo – mas somente quando a cultura admite essas possibilidades no repertório de destinos que oferece ao morto. Assim, os edo retiram as unhas e os cabelos, que continuam a 'viver' depois da morte e que ameaçam falar fora do simbólico: expõem-nos diversos dias ao olhar da coletividade, exorcizam-nos com refeições servidas em horas regulares mas preparadas segundo receitas invertidas, e os enterram mais tarde. Os nigo de Gana, fazem algo parecido: enterram imediatamente o cadáver, mas sem as unhas e os cabelos, que são guardados em um pequeno caixão até serem enterrados quando a comunidade de parentes estiver reunida (Maertens, 1979). Em outras culturas, partes do morto são conservadas como lembrança e como relíquia, representando o mana que se atribui ao morto e à morte: elas são pontos de apoio com o auxílio dos quais, por um lado, se pode agir sobre os mortos e através dos quais, por outro lado, os mortos podem agir sobre os vivos, curando e propiciando boa sorte. Elas são, enfim, nas mãos de um feiticeiro, um meio de distribuir dor e infelicidade. Entre certos pigmeus, a iniciação dos magos exige provas para o ingresso na sociedade secreta que se consagra à magia negra. Algumas dessas provas são ligadas ao contato com o mana da morte e da impureza. Uma delas consiste em atar – peito contra peito e boca contra boca – o candidato a um cadáver e em os levar, ambos, para o fundo de um fosso, que se cobre de ramagens e onde permanecem três dias. Outros três dias o neófito passa em sua cabana, atado ao morto que se putrefaz, de cuja mão ele se deverá servir para a alimentação. Esta mesma mão, mais tarde, posta para secar, servirá como seu mais poderoso fetiche (Cazeneuve, 1972). Através desse procedimento, o feiticeiro se apropria do ******ebook converter DEMO Watermarks*******
mana da morte. Muito mais importante que um poder próprio à morte é a apropriação da morte pelo poder. Antes de tudo, a morte é apropriada pelo poder nos ritos de passagem. A sociedade é um sistema de posições e a passagem de uma posição a outra contém a morte simbólica para o estado anterior. À imagem da morte física individual, que corta os canais de comunicação do indivíduo com o mundo, os ritos de passagem, que são canais de comunicação entre as diferentes posições sociais, impõem ao indivíduo a morte em determinadas dimensões comunicacionais: quando decide transformar-se em monge, por exemplo, o indivíduo é às vezes envolvido em uma mortalha, deita-se com a face virada para o chão e morre para a comunicação sexual, pelo voto de castidade, para a troca de bens pelo voto de pobreza e algumas vezes para a comunicação lingüística, pela imposição de não mais falar às pessoas. Ao mesmo tempo, como a iniciação comporta um 'nascimento' para o novo status, o neófito adquire possibilidades de comunicação que lhe eram anteriormente vetadas. O controle da morte pelo poder se mostra também em uma espécie de seletividade na passagem para o mundo do além: a vida no outro mundo dependerá do comportamento que os indivíduos observem no mundo terreno. Este controle social o Ocidente cristão conheceu muito bem, durante séculos, a cada instante da vida individual, materializada na oposição Céu/Inferno. Aos muçulmanos, a mesma idéia é proposta: o morto recebe na mão direita um livro contendo suas boas ações e na esquerda a relação das más. Além disso, se aos homens, no outro mundo, se prometem esposas superiores em número, virtude e beleza àquelas de que dispunham em suas vidas terrenas, às mulheres muçulmanas se oferece um retrato de suas vidas terrestres, com todos os aborrecimentos e monotonia que estas comportam, fazendo as mulheres talvez crer que, ao menos sob este aspecto, a vida do aqui é a própria vida paradisíaca. Na religião asteca existiam diferentes 'paraísos': os indivíduos para eles se encaminhavam em virtude do gênero de suas mortes, determinadas antes mesmo do nascimento no livro do destino que continha a vontade dos deuses. As mortes mais prestigiosas nessa sociedade de guerreiros eram as que se davam nos terrenos de batalha e sobre os altares sacrificiais, ou as das mulheres que morriam ao dar à luz, isto é, em seus combates para produzir novos soldados. Na ilha de Eddystone, distinguem-se três tipos de morte: a dos inimigos mortos na guerra, que permanecem estrangeiros; a dos acidentados e das mulheres em parto, cujos corpos são ******ebook converter DEMO Watermarks*******
ogados no mar sem rito especial e que a sociedade esquece; a dos chefes ou homens comuns, que, por obra de ritos diferentes, transformam-se em ancestrais poderosos, mas benfazejos quando se lhes prestam as devidas oferendas. A continuidade da vida individual depende freqüentemente do comportamento dos sobreviventes. A morte real e completa só acontece quando o morto é esquecido, quando não há mais ninguém para sacrificar em sua intenção, quando não encontra mais suporte algum no mundo concreto. Então, a individualidade do morto desaparece e se dissolve na coletividade dos mortos – anonimamente, inidentificavelmente: as almas se misturam como as peças dos esqueletos em um ossuário. Contudo, a duração da vida da individualidade não é mesma para todos (Thomas, 1976): certos mortos privilegiados permanecem nomeados e identificados, às vezes são transformados em gênios, santificados ou divinizados. A dor provocada pela morte e os ritos que acarreta dependem do tipo de individualidade do morto, ou seja, de seu status em relação aos sobreviventes: dependem de ele ser 'próximo', 'íntimo' 'amado', 'respeitado', 'familiar', 'único', 'representativo', 'insubstituível' – qualidades que os poderosos procuram atrair sobre si. Conseqüentemente, a desigualdade no mundo dos vivos se traduzirá em desigualdade no mundo dos mortos, mesmo que no além as relações de força sejam miticamente alteradas: "os últimos serão os primeiros", "é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus"... Na realidade, todo homem desvalorizado, todo homem que não é reconhecido plenamente como homem, não tem direito à sobrevivência. O prisioneiro, o escravo, a criança, o desviante, o suicida, o acidentado não têm posteridade. Em muitas culturas não têm acesso à ancestralidade, simplesmente desaparecem, ou se transformam em espíritos a errar e a ameaçar o mundo dos vivos com suas forças maléficas. Entre os senufo, o acesso à posição de ancestral depende da idade do morto – o que lhe dá, na terra, notoriedade e poder – bem como das dimensões e da riqueza de sua linhagem (Jamin & Coulibaly, 1979). Os jovens de ambos os sexos, os acidentados, os suicidas e os cativos são enterrados depressa, sem outra manifestação que a tristeza dos próximos. Apenas os homens adultos iniciados e as mulheres mães de ao menos uma criança têm direito de entrar no reino dos mortos, através dos ritos que os sobreviventes irão executar. Mas a condição de ancestral dependerá ainda da vontade dos vivos, não sendo absolutamente uma ******ebook converter DEMO Watermarks*******
qualidade imediata do defunto: é negociada, reformulada, manipulada, cancelada ou esquecida. Seria muito ingênuo supor que a desigualdade dos homens diante da vida não se traduzisse em desigualdade diante da morte. Segundo dados que Maertens (1979) apresenta, as canonizações cristãs se revelam relativas às camadas de hierarquização social: assim, há 80% de clérigos contra 20% de leigos, muito mais nobres que camponeses, mais bispos que padres, mais abades que monges, mais romanos que estrangeiros, mais homens que mulheres... Uma vez promovidos à ancestralidade, os mortos passam a guardiães da lei social, a preservadores da ordem política: lá do alto, de longe, de perto, não importa de onde, os ancestrais vêem, vigiam, aconselham, protegem, castigam, intervêm nos conflitos que se verificam entre os homens, exercem influência sobre a sorte, sobre o resultado das caças, das guerras, das colheitas. Aqueles que representam a tradição, a norma, o poder enfim – os pais e os anciãos – levam consigo suas funções para o reino dos mortos e de lá continuam a cogovernar. A aliança entre o aqui e o além beneficia o aqui e especialmente aqueles que aqui são beneficiados. Ao supremo poder, corresponde a suprema imortalidade. A primeira lição de nosso primeiro catecismo nos ensina que Deus é todo poderoso e eterno. Todos os poderes se pretendem eternos. Os baulê da Costa do Marfim nem ao menos podem dizer que o chefe morreu, dizendo, ao invés, que "o rei sente dor no pé". Os diola do Senegal dizem que a "terra se quebrou" (Thomas, 1976: 405), e os mbede, que "a grande árvore foi abatida". De fato, em princípio, não se imagina que o rei morra. Na Europa, a partir do século XV, os reis eram embalsamados e as cerimônias funerárias reais eram imensas exaltações do sentimento monárquico e da fidelidade dinástica: "logo após seu último suspiro, ele era exposto como um vivo em um cômodo onde um banquete era preparado, com todos os atributos do seu poder de vivo. A conservação da aparência de vida era necessária à verossimilhança dessa ficção..." (Ariès, 1979: 355). Entre os rhadé-jarai, do Vietnam, o novo chefe da família é investido no momento em que bebe a água que serviu para lavar o cadáver de seu predecessor, comungando assim com o corpo místico do poder. O rei tem, mais que qualquer um, uma dupla corporeidade: a de homem e a de poderoso, um corpo biológico e um corpo político. Os reis se sucedem não tanto pelas regras de descendência, mas por encarnarem uma mesma corporeidade mística – o poder – provisoriamente ligada a seu corpo físico. Por isso, a ******ebook converter DEMO Watermarks*******
medicina moderna faz verdadeiros malabarismos para manter em vida os corpos em que o poder se encarna: Franco, Truman, Salazar, Tito... Os chefes continuam a governar mesmo depois de fisicamente incapacitados (Pompidou, Salazar, por exemplo) e mesmo depois de mortos: em Madagascar, entre os sakalave (Baré. 1977), em ritos de possessão e transes os reis mortos falam por meio de "possuídos reais" e constituem um poder paralelo ao do rei vivo, a confirmar o poder deste. Se não são cultuados, castigam os vivos com infelicidades, doença e pragas. À suprema imortalidade, o supremo poder. Mais que qualquer morte, a do chefe pode ser simbolicamente a da sociedade. Os mbede dizem que o nkani é uma grande árvore, que nunca cai sozinha. Por isto é necessário sacrificar, produzir estruturalmente a desgraça que poderia ocorrer de outro modo: para que o corpo do chefe não toque a terra, são sepultados juntos alguns escravos (Alihanga, 1979). Outros povos buscam o contato máximo do corpo do rei com a terra sobre a qual a sociedade vive e, com este fim, fragmenta-se o cadáver real e se o distribui pelo território (Halfden, da Noruega no século IX; os reis de França, distribuídos por diversas igrejas da Île de France). Às vezes, o corpo do rei é queimado, pulverizado e espalhado pelo território. Freqüentemente é inumado em espaços que se transforma em símbolos do espaço total. À morte do supremo poder corresponde a suprema vulnerabilidade do grupo. Roberto DaMatta (1979: 123) presenciou o drama que teve lugar quando o presidente Kennedy foi assassinado, imediatamente ocorrendo uma espécie de supressão do individualismo, com a nação americana tomando consciência de que era muito mais do que uma associação de indivíduos. A morte de Kennedy, assim, deu consciência de um algo acima das pessoas que o assassinato representava: a unidade de valores e idéias, sem a qual a existência mesma das vontades individuais não existe. Eu estava em Cambridge, Massachusetts, quando esta verdadeira catástrofe ocorreu. Ali , onde o mundo parecia totalmente compartimentalizado, inclusive pela ideologia cosmopolita dada por Harvard, o universo social transformou-se. Pela tarde, no dia do assassinato, e sob a comoção do advento, pessoas se falavam e se abraçavam chorando juntas. O mundo impessoal e individualizado sucumbiu sob o peso do todo e da imprevisibilidade da história.... Compreende-se, então, o porquê de a investidura do novo chefe ser normalmente uma ocasião de festa e de alegria: simbolicamente, é o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
restabelecimento da ordem e o renascimento em uma nova sociedade. Por isso, os mbundu de Angola enterram o corpo do rei (Maertens, 1979) de modo a poderem vigiar a queda de seu crânio, por obra da decomposição, em uma bacia colocada diante dele. Quando a queda se dá, num ambiente de excitação o túmulo é definitivamente fechado e o cadáver do rei deixa de ameaçar: seu corpo místico foi definitivamente separado de seu corpo biológico. O poder se apropria da morte construindo mártires e heróis e definindo modelos de morrer – rentabilizando, enfim, a seu favor, o evento terminal da vida de seus súditos e por esse caminho modelando toda a existência deles. Mártires e heróis não temem a morte: fazem dom de suas vidas à comunidade e nela sobreviverão. Heróis e mártires fizeram a história e com suas mortes fizeram ou mantiveram a vida do poder. Neles, a presença do grupo venceu o medo da morte. Daí cada poder reverenciar os 'seus' mortos seja nos monumentos aos mortos das guerras mundiais, seja no Valle de los Caídos do franquismo, seja no altar dos ancestrais. O poder se introjeta nos indivíduos e rentabiliza suas mortes. Os camicases eram cinco mil japoneses decididos 'voluntariamente' a se suicidar pela pátria, projetando-se com seus aviões carregados de explosivos sobre objetivos militares. Susumu Kijitsu, o aspirante dos camicases, 22 anos, escreve: Eu vivo normalmente (...). A morte não me mete medo e minha única preocupação é saber se eu vou poder afundar um porta-aviões projetando-me sobre ele. Os aspirantes Miyazaki, Tanaka e Kimura, meus companheiros, estão calmos e de bom humor; não se diria que eles vão partir a qualquer momento para uma morte certa; eles passam o tempo lendo e jogando cartas tranqüilamente... Eu não sei, meus queridos pais, como lhes exprimir meu reconhecimento por me terem criado durante vinte anos, e por me terem feito suficientemente robusto para me permitir devolver a Sua Majestade Imperial a décima milésima parte das graças que ela espalhou sobre nós... (Baechler, 1975: 221) Mas todo poder implica uma estratégia: "nada de excesso em sua pressa de morrer. Se você não encontrar o objetivo desejado, faça meia-volta. Você da próxima vez terá mais sorte. Escolha uma morte que dê o máximo de resultados" – aconselhava-se aos jovens no momento em que partiam para suas missões. Os camicases, porém, não eram apenas soldados especialmente condicionados ao sacrifício. Eles representavam um dado cultural ******ebook converter DEMO Watermarks*******
amplamente presente nos meios militares japoneses: sistematicamente se recusavam a tombar prisioneiros, a servir a outro senhor. Em agosto de 1942, quando da tomada de Guadacanal, os marinheiros japoneses naufragados recusaram-se a ser recolhidos pelos navios americanos. Alguns se deixaram morrer, outros ficaram atirando até o fim. Muitos outros japoneses, em diversas outras ocasiões, preferiram se suicidar, abrindo-se os ventres, ou fazendo suas granadas explodirem sobre seus corpos. Em julho de 1945, forças japonesas acuadas em Okinawa pediram um cessar-fogo, a fim de que os soldados pudessem se suicidar com tranqüilidade (Baechler, 1975). Até pelo menos cerca de trinta anos após o término da guerra, soldados japoneses desgarrados de seus grupos e não informados do fim das batalhas foram encontrados ainda com disposições guerreiras e mobilizados pela fidelidade ao Imperador. O carrasco e o poder são um par indecomponível. A sociedade intervém sobre as leis da natureza não somente para reproduzir a vida, mas também para se reproduzir e conservar o poder no lugar. A violência mortal está presente em todos os sistemas sociais. Através dela, a sociedade antecipa a seu favor as leis naturais concernentes à morte: infanticídio, gerontocídio, pena de morte, guerras, sacrifícios... Exemplo típico de introjeção do poder nos indivíduos e de apropriação destes pela morte são os casos de falecimento provocados por "sugestão da comunidade", para conservar a expressão de Mauss (1971): condenados pelo poder, os indivíduos morrem realmente, porque se acreditam condenados, perdidos pelo fato de haverem transgredido uma proibição. O social, por um processo inconsciente, age sobre o físico, por intermédio do psíquico. A morte vudu opera sem causas físicas constatáveis: deriva da exclusão do grupo, da declaração da morte social, do incutir nos indivíduos a perda da vontade de viver, que deprime os indivíduos, que lhes retira o apetite, que lhes consome até o fim as energias físicas, que os priva dos pontos de referência afetivos e intelectuais, desintegrando-os de tal forma que a partir de um determinado ponto a morte passa a ser um simples detalhe biológico. Como disse Lévi-Strauss (1967a: 194), "a integridade física não resiste à dissolução da personalidade social": diante da condenação coletiva, o indivíduo se transforma em seu próprio carrasco. Nos casos menos 'perfeitos' de condenação à morte, a sociedade pode delegar o poder de carrasco. Em Tikopia, informa-nos Firth, o condenado não é executado. Ele é colocado em um barco e obrigado a dirigir-se para o alto******ebook converter DEMO Watermarks*******
mar em péssimas condições de navegação. Se não voltar, a sentença terá sido executada. Se voltar, é porque os deuses estavam com ele: escapa à morte, seu crime é esquecido e ele é reintegrado à coletividade: um poder 'maior' o absolveu. Nos casos mais comuns, a sociedade delega seu poder de carrasco a um de seus membros: este faz a justiça, em nome da lei, em nome do rei. Todos os outros homicídios são reprimidos por tabus, regras jurídicas, convenções ou ritos religiosos: cultura alguma os considera coisas insignificantes. Mas os homicídios praticados em nome do poder são diferentes: não são assassinatos, são 'justiça'. O interesse do poder pela vida dos homens é também apropriação da morte deles. Poder algum admite a liberdade de suicídio. Vê nela uma afronta perigosa e intolerável: a vida e a morte do escravo pertencem ao senhor. Em toda parte onde exista a instituição penitenciária, um dos cuidados mais presentes é o de retirar dos prisioneiros todas as possibilidades de que se evadam de modo tão radical. É preciso que a morte seja controlada pelo poder e que seja dada por uma autoridade: são numerosos os casos de proibição de que os condenados à morte se suicidem (o que se procura evitar a todo custo) e os casos inversos, mas idênticos sob o prisma do poder, de condenação à morte de indivíduos que falharam em suas tentativas de suicídio. Quando não chega a este cúmulo de condenar à morte os suicidas fracassados, o poder, para vingar-se dos profanadores, freqüentemente preferiu condenálos à vida: amputando-lhes as mãos, jogando-os nos porões das galeras, confiscando-lhes os bens. Pronunciar a pena de morte seria satisfazer o desejo dos 'criminosos'. A Igreja Católica sempre fez do suicídio um pecado grave: Judas, segundo ensinava a doutrina tradicional, é o único homem que se sabe seguramente no Inferno, não por ter traído Cristo, mas por se ter suicidado. Na Idade Média, ela permitia a mutilação do corpo do suicida, a confiscação de seus bens em favor do senhor, a privação de sepultura em terra consagrada e a recusa de preces em sua intenção. O suicídio, na França, foi considerado um crime até depois da Revolução. Na Inglaterra, a legislação previa uma condenação posterior: o corpo era exposto, pendurado em uma estaca na rua principal, as propriedades do suicida eram confiscadas, sua memória tornada indigna, seus cúmplices eventuais condenados por assassinato... até 3 de agosto de 1961 quando esta lei foi revogada e os envolvidos em uma tentativa de suicídio passaram a ser passíveis de até 14 anos de prisão. O que no suicídio mais provoca o poder é que este reconhece naquele uma ******ebook converter DEMO Watermarks*******
manifestação de liberdade humana. Por esta razão, quando atribui a um condenado uma certa dignidade, o poder pode conceder-lhe a 'vantagem', o 'privilégio' de executar-se a si mesmo, isto é, de suicidar-se. Em Roma, o suicídio era uma prerrogativa dos membros das elites, que poderiam beneficiar-se dele e preservar algo de sua dignidade. Enquanto isso, quando condenados, os escravos e as pessoas do povo deveriam necessariamente perecer nas mãos do carrasco. Entre nós, este 'privilégio' foi dado a alguns militares, que foram autorizados a comandar seus próprios fuzilamentos. Mas estas são exceções, através das quais o poder se preserva diante dos olhos dos que lhe estão submetidos, evitando demonstrar uma vulnerabilidade que poderia ser deduzida da condenação de um poderoso à morte. Se o poder incute nos parentes de um suicida um certo sentimento de vergonha e se, de acordo com as culturas, decreta a impureza ritual deles, aqueles que se deram morte em nome dos valores cultuados pela coletividade, os suicidas altruístas, são dignos, não obstante, do respeito comunitário e credores de solenes homenagens e recompensas. O poder, às vezes, institucionaliza o suicídio, retirando da circulação social os indivíduos que cessaram de rentabilizar em seu favor e em favor de sua reprodução. É o caso dos esquimós, que já evocamos, que acreditavam que um homem, oferecendo sua vida, poderia salvar a de seu filho ou de seu neto. Entre eles os velhos que pesavam sobre a economia do grupo chegariam mais rapidamente ao paraíso – que concebiam como um mundo sem frio nem fome e no qual eles teriam um lugar especialmente favorável – caso dessem suas vidas à comunidade. Ou ainda, o poder postula o suicídio como solução honrosa às próprias contradições que impõe à vida dos indivíduos: assim, entre os sara, os nigo e os luba (Maertens, 1979), o suicídio da viúva é a solução para o incesto simbólico que ela seria obrigada a cometer se fosse constrangida a retornar à casa de seu irmão. Todo suicídio é uma tentativa mais ou menos institucionalizada, segundo as culturas, de solucionar situações contraditórias que estas culturas oferecem a seus membros. Recurso tipicamente humano, que não se pode encontrar nem entre os animais, nem entre os homens destituídos de toda forma de consciência, nem entre as crianças muito novas, o suicídio está constantemente disponível aos seres humanos: contrapoder, a desafiar o poder. Para cada cultura, as suas contradições e seus métodos de solução pelo suicídio: em Tikopia, o marido se mata eventualmente se sua mulher se ******ebook converter DEMO Watermarks*******
recusar a permanecer no domicílio conjugal; a mulher pode se matar em caso de infidelidade, uma mulher solteira grávida se o amante se recusar a desposá-la. Em Trobriand, por causa da revelação pública de transgressões das regras de exogamia e por causa de adultério; os navajo e os mataco, por ciúme e querelas conjugais; entre os chuckchee, que praticam a comunidade de mulheres com os amigos, estas podem se matar se não estiverem de acordo com o parceiro que lhes for imposto. No Ocidente capitalista, por dívidas ou por conservação da honra. Em Trobriand conhecem-se dois métodos básicos de suicídio: o envenenamento e o lo'u (jogar-se do alto de um coqueiro). Em Tikopia, as mulheres jovens se jogam na água durante a noite em região infestada de tubarões, os homens jovens pegam uma canoa e ganham o alto-mar e os adultos se enforcam. No Japão, os aristocratas praticavam o seppuku, espécie de harakiri que aprendiam desde a infância, cujo gesto sabiam realizar com extraordinária precisão; os subalternos tinham a cabeça cortada por um auxiliar de suicídio (hatamoto); nas camadas médias da nobreza, o indivíduo se abria o ventre com um punhal e seu melhor amigo o decapitava. As mulheres não tinham direito ao seppuku: abriam a jugular com um pequeno punhal que os pais lhes presenteavam por ocasião do casamento. Nos Estados Unidos, as armas de fogo são preferidas pelos homens, os venenos pelas mulheres; na França, os homens preferem se enforcar e as mulheres se afogar. Em todo suicídio existe uma dimensão de poder: ele é sempre contra algo, contra alguém, por alguma coisa. Na China, a mulher, inteiramente subordinada à sogra e não podendo divorciar-se, via-se diante de duas opções em caso de conflito grave: fugir para a cidade ou suicidar-se. Por este último caminho, transformava-se em espírito capaz de se vingar e provocava protesto da parte de seus consangüíneos que exigiam reparação. A tentativa de suicídio era um instrumento de sobrevivência, o único praticamente à disposição de uma mulher para enfrentar o poder de sua sogra. Esta via na nora, por seu lado, um perigo potencial, porque o suicídio que ela ameaçava poderia tornar praticamente impossível encontrar casamento para seus outros filhos e filhas. No Japão, se um nobre se sentisse ofendido por outro nobre poderia praticar harakiri diante da porta de seu ofensor, para lavar a honra. Este último teria duas alternativas: ou se matava também ou ficava desonrado – nos dois casos, o primeiro teria atingido seu objetivo, isto é, a vingança. Em Trobriand o suicida do alto do coqueiro pode se dirigir à comunidade reunida ao pé deste, reconhecer a culpa, mas ao mesmo tempo acusar, mobilizando a ******ebook converter DEMO Watermarks*******
solidariedade de seus parentes e amigos contra os acusados, provocando freqüentemente vinganças. Esta manipulação da própria-vida-própria-morte é um meio de agir as contradições em que o poder coloca os indivíduos, ou em que os indivíduos se colocam em virtude das contradições do poder. Mas é também um meio pelo qual os indivíduos manipulam o poder e o enfrentam: ameaçando eliminar a matéria-objeto sobre a qual ele se aplica e se exerce e, no caso extremo, criando senhores sem súditos, aniquilando o poder em sua base. É esta dimensão de liberdade da coragem do suicídio que está na raiz da rebeldia das comunidades que preferiram a morte à submissão, seja pelo suicídio coletivo, seja pela derrota diante do inimigo, seja pela vitória libertadora. Por causa dessa dimensão de liberdade, silenciosamente esquecemos, depois do estardalhaço produzido por nossa imprensa, os novecentos cadáveres de Jonestown, Guiana, dos quais muitos foram encontrados ainda de mãos dadas. E os acusamos, além disso: "fanáticos", "idiotas iludidos"... Existe, portanto, uma relação íntima entre morte e poder, mas tal relação não se reduz à simples questão de exercício ou de controle dos meios de exercer a violência. A possibilidade de levar o dominado à morte é um instrumento de exercício de poder apenas na medida em que o dominado reconheça na vida sob o poder alguma coisa preferível à morte – reconhecimento este que, como vimos, não é, absolutamente, universal. Na medida em que o desaparecimento do dominado elimine o objeto sobre o qual o poder se aplica, compreende-se que a morte seja também um instrumento de contrapoder, e que o poder se defina por uma dialética complexa entre a vida e a morte, que não pode ser descrita de maneira simples nem por fórmulas gerais. Essencialmente, diríamos que todo poder, para se exercer, exige que seus súditos apresentem simultaneamente um certo temor e uma certa intrepidez em relação à morte. Como temerosos da morte, os indivíduos subordinados preferem a vida e, conseqüentemente, a situação de dominados, que faz parte das condições de vida que o poder lhes oferece. Como destemidos diante da morte, os dominados podem ser soldados à disposição do poder, oferecer-lhe suas vidas, enfrentando aqueles que não aceitem as condições de vida que o poder impõe. Ambos os lados são necessários ao funcionamento do poder: medo e coragem. Todavia, quando o poder desenvolve outros meios de se exercer, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
quando, como na sociedade industrial moderna, os recursos tecnológicos lhe permitem abrir mão de que os indivíduos sejam soldados, o poder passa a incutir em seus súditos o medo extremo da morte e a obrigá-los a ver na vida o valor supremo: ela passa a ser preferível a tudo, qualquer que seja a sua qualidade e dignidade. É este o problema que estudaremos nas páginas subseqüentes.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
Parte II - Da comunidade ao indivíduo 8 A comunidade medieval dos vivos e dos mortos A morte, como vimos nos capítulos precedentes, é um produto social. Seja do ponto de vista dos seus estilos particulares de acontecer aos indivíduos, seja do ponto de vista de sua rejeição pelas práticas e crenças, seja sob o ângulo de sua apropriação pelos sistemas de poder, a morte é um produto da história. Ao mesmo tempo, a história, tanto quanto produto da vida dos homens em sociedade, é resultado da morte deles. As sociedades se reproduzem porque seus membros morrem. Têm história porque não se reproduzem exatamente como eram antes. Atingem novos estados porque, de certa forma, morrem para seus estados anteriores. Por isso, a morte tem um lugar de relevo na feitura e na interpretação da história. E a história, de sua parte, é a grande medida produtora de morte: das mortes-eventos e das concepções sociais que tentam compreendê-las e domesticá-las. Nas páginas que seguem estaremos preocupados com as relações entre a morte e a história no Ocidente. Tentaremos apreender, a partir da Idade Média, os movimentos das transformações vividas e concebidas que conduziram à morte tal qual nós a vivemos e a concebemos em nossas sociedades contemporâneas e a partir de onde poderemos divisar certas tendências futuras, já esboçadas no presente, apontando para uma configuração inteiramente nova da morte. Essa representação inteiramente nova comporta um significado antropológico também inteiramente novo: pela primeira vez uma sociedade se dispõe a negar a morte em seus sistemas de representação, simplesmente se recusando a representá-la, silenciando sobre ela, fazendo como se a morte não existisse. Nós acabamos de ver que os sistemas de compatibilização da vida e da morte, que fazem o tudo conviver com o nada, o aqui com o além, e assim por diante, são eminentemente paradoxais. Mas, um sistema que represente pelo silêncio é o cúmulo dos paradoxos. E o silêncio sobre a morte em uma sociedade que tem a morte como sua realidade mais barulhenta é o paradoxo dos paradoxos. Lancemos um olhar sobre a história desses paradoxos. As imagens que os cristãos se fizeram da morte, da vida e da imortalidade variaram no tempo. No mundo medieval, os contrastes, os cortes e as oposições que caracterizaram as épocas seguintes da história das mentalidades ocidentais se manifestavam de maneira inteiramente diferente. Nos espíritos da época, uma rede cerrada de correspondências entre a anatomia e a fisiologia humanas, entre as diferentes idades da vida e o tempo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
cósmico, remetia a um sistema mais amplo de correspondências entre o microcosmos e o macrocosmos, entre a individualidade, a sociedade e o universo. No corpo humano via-se em escala reduzida uma representação da ordem cósmica. Um sistema de classificações estabelecia um conjunto de interdependências e de interinfluências entre os diversos ritmos temporais da natureza (fases da vida, signos do zodíaco, estações do ano...), as qualidades sensíveis (estados da matéria, temperaturas, cores...) e uma classificação de temperaturas, humores e condições humanas. Até o século XI, quando os primeiros signos de uma concepção individualista da morte começam a aparecer, a morte, e tudo o que lhe dissesse respeito, era vivida coletivamente e concebida como questão comunitária. A imagem imperante até então, e vigente também depois, era a de um laço contínuo entre vivos e mortos, unidos na Terra e unidos na eternidade, evocado nos sermões dominicais. Para os cristãos dos primeiros séculos a morte era o caminho para a ressurreição. Mas tratava-se ainda do "creio na ressurreição da carne", que era uma concepção inteiramente diferente de pensamentos vigorantes alguns séculos depois, baseados na oposição platônica entre o corpo e a alma e que conceberiam a ressurreição como concernente aos aspectos imateriais da existência. Com efeito, o corpo é importante e deverá ressurgir gloriosamente: por isso a cremação dos corpos é condenada, considerada uma prática de bárbaros pagãos e castigo especial para certos criminosos. O batismo era o verdadeiro passaporte para a vida eterna. A salvação seria comunitariamente partilhada, sem necessidade de julgamento: os corpos deveriam sair nus de seus sarcófagos, homens e mulheres abraçados, acompanhados de anjos que lhes cantariam as glórias. Enquanto aguardam o momento glorioso do fim dos tempos, os homens dormem. Repousam, esperando o reencontro com Cristo, sentado em seu trono sob um arco-íris, receptivo, envolvido por anjos, evangelistas e patriarcas. Aqui embaixo, os vivos rezam pelo repouso dos mortos, configurando um quadro que se estenderá, penetrando profundamente as concepções populares sobre o além, até os nossos dias: se os mortos dormem, permanecem de certa forma vivos. De fato, dormirão diversos séculos mas acordarão sem se perceberem disto, pensando que dormiram apenas uma noite. Uma lenda, que Philippe Ariès (1977: 31-2) retoma, fala de sete mártires que ressuscitaram (segundo as versões) depois de 196 ou 370 anos de sono, para assegurar os vivos da realidade da ressurreição: "os santos se levantaram e se saudaram, pensando que tinham dormido apenas uma noite". ******ebook converter DEMO Watermarks*******
O imperador, os bispos, o clero se reuniram à multidão que envolvia os santos para vê-los, escutá-los: "creiam-nos, é para vocês que Deus nos ressuscitou antes do dia da grande ressurreição (...) nós estamos verdadeiramente ressuscitados e vivemos. Ora, assim como a criança no ventre de sua mãe vive sem sentir necessidade, nós também vivemos, repousando, dormindo, sem experimentar sensações". Ditas estas palavras, os sete homens repousaram a cabeça sobre a terra e dormiram de novo... (grifos do autor). O grande sono da morte começa antecipadamente. Logo que observam os primeiros sinais de morte, as pessoas se preparam para recebê-la como se se preparassem para dormir. É no leito que se morre como é no leito que se dorme. Mas o sono desta noite tem um caráter ritual. À espera da morte, o indivíduo se deita com o olhar voltado para o céu, corpo na direção do Oriente, mãos cruzadas sobre o peito, numa posição que a estatuária fúnebre fixará até os nossos olhares. Faz a sua profissão de fé, confessa os seus pecados, pede perdão às pessoas que o circundam, ordena que sejam reparados os males que porventura tivesse cometido, pede a Deus que proteja os sobreviventes, escolhe a sepultura, faz em voz alta o testamento (que passará a ser escrito por uma autoridade a partir do século XII). Até essa época e ainda por alguns séculos, o moribundo preside a sua morte, diante de uma assistência calma que contribui para que tudo corra bem. Uma dor percorria os presentes, mas silenciosamente, sem o caráter dramático que marcará a época romântica. Não se tratava de reter e reprimir uma dor insuportável e intolerável: dor existia, mas insuportabilidade e intolerabilidade não existiam. A cena é normal, aprendida, esperada... A medicina e a religiosidade da época conhecem meios de ajudar o homem a enfrentar dignamente seus momentos derradeiros: conhecem-se drogas contra a agonia dolorosa, mas é ao moribundo que cabe decidir se elas serão aplicadas; a presença de um sacerdote é habitual para os últimos sacramentos e normalmente é o moribundo quem o fez chamar. O moribundo desempenha um papel que já lhe é conhecido e por isso pode encená-lo lucidamente: muitas vezes deve ter feito parte da assistência desse ritual. Desde crianças os filhos podem ajudar os pais a morrer, mas sob a condição de não atrapalharem a despedida com choros desmedidos. Todos deveriam manter silêncio e conservar as portas e janelas abertas para facilitar a entrada da morte. É preciso que a morte seja consciente para que essa ritualidade funcione. A ******ebook converter DEMO Watermarks*******
morte se faz anunciar, os homens têm premonições, a magia procura adivinhar. Diversos procedimentos mágicos pretendem descobrir se uma doença é fatal, se vale a pena tratá-la ou se é melhor preparar-se para morrer: uma flor jogada em uma bacia flutuará ou não, por exemplo. Se uma pessoa por acaso não perceber que a morte se aproxima, os seus próximos têm o dever de adverti-la: nossas preocupações contemporâneas sobre a conveniência ou não de se dizer ao doente a verdade sobre seu estado são nesse contexto inteiramente desprovidas de sentido. Em todos os níveis, a morte é pública e comunitária. O detestável é morrer em segredo, longe, inesperadamente, sem testemunha, sem cerimonial. Em um mundo em que a morte é familiar, é a morte silenciosa, esquiva, traiçoeira, repentina que é especialmente temível: é esta que faz medo, que é considerada monstruosa, que porta maldição; é esta que dilacera a sensibilidade dos sobreviventes, que é absurda e incompreensível; é esta que é vergonhosa e difamante – expressão da cólera divina. A morte nesta época é eminentemente aquilo que os espanhóis (Fribourg, 1979: 35) chamam la cierta: ela vem lentamente, seguramente, é a coisa mais importante da vida de um homem, tudo é vão que não conduza a uma morte feliz. A morte repentina, a morte do condenado, a do suicida e a dos desviantes se distanciam desta morte feliz. Aos condenados, recusavam-se até as atenções religiosas e muitas vezes se os consideravam como já estando no inferno, o que significava que seus sofrimentos poderiam, ou deveriam, começar aqui. Em princípio, os corpos dos suplicados deveriam ficar pendurados, expostos até a putrefação, embora pudessem – em teoria – ser enterrados em terra sagrada: tendo pagado, não deveriam pagar duas vezes, raciocinava a Igreja (Ariès, 1977: 51). Mas este princípio permanecia puramente teórico: os homens não aceitavam, nessa época, limitar e encerrar os casos nas cortes de ustiça. Um suicida era jogado fora do cemitério; um traidor poderia ser esquartejado e jogado aos cães ou, ainda, ser queimado; um supliciado era queimado, deixado a apodrecer ou simplesmente coberto de blocos de pedra. Os casos de recusa de sepultura são inúmeros: as crianças não batizadas, os suicidas, aqueles que não fizessem suas Páscoas, os que tivessem duelado, os pecadores notórios, os que não fizessem testamento, os excomungados, os apóstatas, os hereges, os que se envolvessem em cismas religiosos... Todos os que fossem enterrados em desrespeito às disposições canônicas deveriam em princípio ser exumados e colocados em seus devidos lugares. Tratava-se, para os espíritos da época, de personagens temíveis, verdadeiros representantes do ******ebook converter DEMO Watermarks*******
mal, detestados por todas as forças humanas e divinas. A morte dos condenados era um espetáculo público, como era pública toda morte. E como a morte não era uma ruptura total com a vida, não viam contra-senso algum na acumulação de diversas penas de morte sobre um mesmo indivíduo: o que acontecesse ao morto depois da execução era parte da sentença. A fortiori, aqueles cujos crimes fossem descobertos após a morte poderiam perfeitamente ter seus cadáveres levados a comparecer diante dos tribunais, mesmo que isso exigisse exumação. Na Idade Média, a morte desempenha um papel imenso nas artes, nos jogos, na decoração religiosa ou leiga, na pedagogia. A cada passo, pensa-se na vida, na morte, na vida eterna. Quando a morte aparecia, era recebida com simplicidade e se tomavam imediatamente as providências rituais de tratamento do cadáver e de comunicar a todos a sua chegada. O morto era envolvido em uma mortalha, um lençol de linho, precioso no caso dos ricos ou muito simples no caso dos pobres. Em seguida, o corpo era colocado em um ataúde ou sobre uma padiola, ficava algum tempo exposto diante da porta da casa, até ser transportado ao lugar de inumação por um percurso prédeterminado, contendo certas paradas, fixadas normalmente pelo costume ou pelo morto, para ser depositado no sarcófago ou na sepultura. Durante toda essa operação, é Philippe Ariès (Ariès, 1977: 168) quem o sublinha, " o corpo e seu rosto permaneciam visíveis até o fechamento definitivo do sarcófago". Normalmente os funerais comportavam quatro fases fundamentais, segundo nos ensina o mesmo historiador. A primeira, a mais espetacular e a única que apresentava um caráter dramático, consistia na expressão da dor e tinha lugar imediatamente após a morte: "os assistentes rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e os cabelos, ralavam o rosto, beijavam apaixonadamente o cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de seus transes, faziam elogios ao defunto" (Ariès, 1977: 86-7). A segunda parte era a única religiosa: a absolvição, dita sobre o moribundo por um sacerdote e seu cortejo e repetida mais tarde sobre o cadáver. A terceira era o cortejo fúnebre: depois da absolvição, quando as manifestações de dor se tivessem acalmado, envolviase o morto em sua mortalha e se o transportava ao lugar de inumação, acompanhado de alguns de seus amigos. Era uma cerimônia eminentemente leiga, na qual em princípio não havia sacerdotes. A quarta parte, enfim, era a inumação propriamente, "breve e sem solenidade". Os funerais são, durante toda a primeira Idade Média, dominados pela expressão ritual de dor e de elogio do defunto, bem como pelo cortejo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
fúnebre até a sepultura. Tais ritos são eminentemente civis. A participação religiosa é importante, mas não possui ainda o caráter dominante que começará a ter a partir do século XVII, quando ela vai se fazer sentir sobretudo nos dias que se seguiam à morte e ao enterro, sob a forma de recitação de ofícios e celebração de missas. Esta laicidade das representações da morte está presente especialmente na arte macabra e na ocupação social dos cemitérios. No terreno das artes, o tema da morte se manifesta na 'dança macabra'. Aí temos uma imagem de morte em que ao menos tendencialmente o caráter de iniciação a uma nova vida, de passagem para recomeçar de novo e de ingresso na transcendência é obscurecido, para mostrar fundamentalmente o quadro do evento da morte, o fim da vida terrena e o que isto deixa atrás de si: cadáver e putrefação. A intenção inicial das artes e da dança macabra é recordar que a vida mundana é transitória e vã e, por esta estratégia de demonstração dos horrores angustiantes da morte, chamar a atenção para a vida do além e simultaneamente apontar para um certo fascínio da condição de ser vivo. Fascínio da condição de ser vivo, sobretudo através da condenação da vida pecaminosa e através da profunda igualdade que derivava, aos olhos da época, da sujeição de todos à morte: a certeza de que ela levaria a todos a mesma sorte. A visão e a iconografia da morte durante a Idade Média, até por volta do século XVI, é essencialmente alegre e folclorística, envolvendo uma espécie de grande festa comunitária e igualitária: reis, bispos, príncipes, burgueses, plebeus, todos iguais diante da morte. Esta representação contém uma dimensão irreverentemente contestatária da ordem social dos vivos, marcada pela desigualdade social da riqueza, do nascimento e do poder e se espelha na representação realista do corpo humano enquanto se decompõe. Ela é diferente das representações, freqüentes nos séculos XVII e XVIII, de esqueletos e caveiras que virão a desempenhar uma outra função ideológica. Aqui, nas cenas de danças macabras, os vivos dançavam com a morte e com os mortos, geralmente nos cemitérios, produzindo uma junção dos vivos com os mortos e com a morte que terminava na proclamação de que esta última é Rainha. A morte na dança macabra não é representada como uma figura antropomórfica especial mas como uma consciência macabra de si, como uma lembrança constante da tumba e dos processos naturais, considerados como parte integrante da vida, como uma confrontação do homem com sua imagem em um espelho realista (aliás, trata-se de uma época em que o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
espelho tem grande importância na vida cotidiana). A morte, em suma, é concebida em uma atmosfera de familiaridade e sensualidade. Essa aproximação entre vivos e mortos é também vivida nos cemitérios medievais. Em primeiro lugar, pela localização deles. Apesar de sua relativa familiaridade com os mortos, os homens da Antigüidade ocidental os temiam e os mantinham à distância. Eles praticavam ritos ao pé das sepulturas, mas estes ritos eram sobretudo voltados à manutenção dos mortos em seus devidos lugares, a fim de impedir que eles voltassem para ameaçar os vivos. Enterrados ou incinerados, os mortos eram considerados impuros e a proximidade deles significava risco de poluição. Por esta razão, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos deveriam ser mantidos radicalmente separados e os contatos submetidos a minuciosos cuidados rituais. Tratava-se quase de uma lei de ferro: nenhum corpo poderia ser inumado no interior das cidades. Os cemitérios antigos, como na Via Appia de Roma, situavam-se sempre fora das aglomerações, quer se tratasse de cemitérios coletivos (as catacumbas cristãs ligam-se provavelmente a esta tradição), quer se tratasse de túmulos de famílias ou indivíduos. Era comum em Roma a individualização das sepulturas. Quase todos, freqüentemente mesmo escravos, tinham um lugar de sepultura, lugar este normalmente assinalado por uma inscrição expressando o desejo de conservar a identidade do túmulo e a lembrança do falecido (Ariès, 1975). Os sarcófagos de pedra freqüentemente comportavam, além dos nomes do morto, o seu retrato. Mas, por volta do século V, esta configuração se decompõe: as inscrições desaparecem, os retratos caem em desuso, as sepulturas passam a ser inteiramente anônimas, os cadáveres são entregues à Igreja para esperar a ressurreição e as sepulturas passam a ser coletivas ao menos para os pobres. Um momento chegou em que a distinção entre a cidade e a periferia (na qual desde muitíssimos séculos se enterravam os mortos) começou a desaparecer. Em parte, pode-se atribuir este movimento ao crescimento dos agregados populacionais; mas as coisas não aconteceriam como aconteceram se modificações profundas nas concepções de vida e de morte não se tivessem feito presentes. Transparece aí o começo da suavização da repulsa que os vivos tinham pelos mortos: eles vão ultrapassar os muros das cidades, vão se estabelecer no coração destas, aproximar-se das igrejas e mesmo fazer-se enterrar no interior delas. "Doravante", escreveu Philippe Ariès (1977: 43), "e por muito tempo, os mortos deixarão inteiramente de fazer medo". A ******ebook converter DEMO Watermarks*******
sepultura isolada que é agora capaz de provocar temor; é o morto não integrado na comunidade dos mortos (e dos vivos) que fará horror. Por volta do século XIII as sepulturas romanas ao longo das estradas serão inteiramente abandonadas e já se estará em pleno 'comunismo cristão' no que se refere ao culto dos mortos. De agora em diante pouco importará o lugar da sepultura, desde que se esteja perto da igreja, enterrado em lugar santo. Nenhum monumento, nenhuma inscrição celebrará a individualidade do morto. Os cristãos partilharam nos primeiros tempos as opiniões correntes a respeito dos mortos e foram durante algum tempo enterrados juntos dos pagãos nos mesmos cemitérios. Passaram posteriormente a ter seus cemitérios próprios, ao lado dos cemitérios pagãos. Agora, localizam-se ao lado, ou dentro de seus templos. O que agora importa sobretudo é a fusão tranqüila na massa dos mortos, sob a proteção dos santos mártires e da divindade, aguardando o momento da grande ressurreição. A inumação nas igrejas, como observou Daniel Ligou (1975), é essencialmente um fato católico-romano. O judaísmo não somente proibia a inumação nas sinagogas, como também não admitia a presença de cadáveres no interior dos templos, devendo as orações pelos mortos ser proferidas nos cemitérios. Tal proibição será reencontrada nas Igrejas da Reforma (mesmo se numerosas exceções para os poderosos tenham sido historicamente concedidas) e na Igreja Ortodoxa (em que o enterro dentro dos templos era um privilégio das famílias reais sérvia, romena e russa). Do mesmo modo que a aproximação entre os cemitérios e as cidades, o enterro dentro das igrejas é inicialmente um gesto de contravenção do Direito Romano: somente a partir do século IV os bispos e os papas adquirirão o direito de serem inumados no interior dos templos e os imperadores cristãos o de serem enterrados à entrada dos mesmos. Estes privilégios progressivamente serão estendidos à massa dos comuns e transformar-se-ão em modelo básico de sepultamento durante a Idade Média (acontecia mesmo de se construírem igrejas para fundar um cemitério), até por volta de 1750. O enterro ad sanctos está ligado provavelmente ao costume vigorante entre os antigos cristãos de fazer refeições funerárias sobre os túmulos em que os mártires estavam enterrados. Esta prática evoluiu para a construção de edifícios funerários, nos quais se celebravam missas em homenagem a estes. Tal devoção está associada ao culto das relíquias e, por este caminho, à vontade dos fiéis de serem enterrados perto delas, a fim de assegurarem a proteção dos santos, não somente em relação ao corpo, mas também no que ******ebook converter DEMO Watermarks*******
concerne ao ser integral, tendo em mente o dia do Grande Despertar. Cada um tentará ser enterrado o mais próximo possível dos túmulos dos santos ou de suas relíquias, em um espaço sagrado que compreendia a igreja – que evidentemente não poderia comportar todos os mortos –, o claustro e suas dependências, assim como o terreno que envolvia a igreja. É a esses lugares que se faz referência quando nos testamentos se designa o lugar de sepultura: "na nave central de tal igreja", "entre as duas cruzes de pedra"... Como estes lugares não são ilimitados, não é difícil supor que os 'melhores', isto é, os mais próximos às relíquias, fossem reservados aos poderosos e que os pobres fossem empurrados para os limites do terreno santo, onde ficavam as fossas comuns. De qualquer forma, somente nos casos já evocados se recusava uma sepultura ad sanctos. No fim da primeira Idade Média, por volta dos séculos X e XI, o túmulo visível perdeu a supremacia para o enterro perto dos mártires. Já não é mais necessário, nem para o bem do corpo nem para o bem da alma, que os restos sejam etiquetados e associados a um nome e a um lugar particulares, individuais e singulares – salvo evidentemente o caso dos santos, que serviam de ponto de referência para todo o resto, e o de algumas pessoas, mais ou menos associadas aos santos, cujos monumentos funerários eram excepcionais, não coincidindo sempre com o lugar de inumação do corpo. O cemitério e a igreja acabam por se associar mesmo no nível do vocabulário, terminando as palavras que os designam por serem quase sinônimas: Philippe Ariès (1977) se refere a um texto da época que define um cemitério como uma igreja onde os defuntos são enterrados. Vê-se pois, entre os séculos VIII e X, a formação de um culto dos mortos interessante, limitado às catedrais, às abadias e às dependências destas, que deverá durar até o fim do século XVIII sem deixar muitas marcas nas representações posteriores. Até o século XVIII, o cemitério é sempre um pátio retangular associado às igrejas, que recebe os corpos das pessoas que não podem pagar as taxas elevadas de enterro no interior destas. Entre as paredes que cercam esse pátio, uma é sempre a da igreja e as outras três freqüentemente comportam carneiros. Sobre esses carneiros havia um ossuário no qual crânios e membros eram dispostos segundo um projeto artístico definido: motivos decorativos que vão desaguar nas artes barroca e macabra. Estes ossos normalmente provinham das sepulturas coletivas, largas e profundas de vários metros, que periodicamente eram renovadas; os corpos eram amontoados em uma sepultura, que era fechada quando estivesse cheia para ******ebook converter DEMO Watermarks*******
que fosse reaberta outra mais antiga. Mesmo os ricos enterrados dentro das igrejas acabariam, mais cedo ou mais tarde, nesta fusão artística de esqueletos: nessa época não havia a nossa idéia moderna segundo a qual os mortos deveriam ter um domicílio pessoal, de que fossem os proprietários privados ou familiares à perpetuidade (Ariès, 1975). Devemos observar, entretanto, que neste cenário religioso que os cemitérios constituíam podia-se assistir ao desenrolar de cenas extraordinariamente leigas, decorrentes da familiaridade com a morte e da aceitação dela como perfeitamente integrada à ordem da natureza. Por diversas vezes documentos emanados das autoridades procuraram coibir ou proibir o que consideravam uma forma de comportamento demasiadamente livre para com os mortos e os cemitérios. Tanto as altas autoridades eclesiásticas como o clero em geral pareciam não aprovar tais formas de comportamento. Mas a repetição das advertências e das proibições deixa-nos supor que elas fossem ineficazes e que a população continuasse a agir do mesmo modo. A quê, especificamente, se opõem essas autoridades? Em 1231, por exemplo, o Concílio de Rouen proíbe que se dance nos cemitérios, sob pena de excomunhão; um outro, de 1405, retoma a proibição de dançar e interdita também os jogos de toda espécie, as mímicas, os espetáculos de malabarismo, os músicos, o trabalho de charlatães (Ariès, 1975). O lugar dos mortos era aquele em que se vivia. O cemitério, o centro da vida social. Com a igreja, ele não constituía só ou principalmente o lugar onde se enterravam os mortos: até o século XVII, é uma praça pública, um sítio onde se comercia, em que as proclamações e todos os modos de informação coletiva têm lugar. Aí se passeia, brinca-se e diverte-se. Em suma, ele o lugar mais barulhento, movimentado e confuso da cidade. Espaço aberto a todos, envolvendo a casa comunal que a igreja representava, no cemitério as pessoas se reuniam para as manifestações profanas e sagradas que a igreja não pudesse comportar. Cada domingo e dia de festa o povo se reunia às sepulturas e com a ajuda de fantasias bizarras fazia uma dança da qual podiam participar todos os que tivessem vontade: a pessoa que conduzia a dança representava a morte e os participantes a seguiam, fazendo gestos e caretas, formando uma espécie de procissão que fazia diversas vezes o circuito das sepulturas. Considerando que tais práticas se davam também nos cemitérios do campo, compreende-se que elas se devam a motivos diferentes dos de uma eventual falta de espaço nas cidades. Na realidade, essa coexistência do profano e do sagrado – esta familiaridade ******ebook converter DEMO Watermarks*******
com o que antes e depois no Ocidente se considerou como objeto digno de expulsão – significa que, para os espíritos da época, os mortos não precisavam ser distinguidos por uma deferência especial. Hoje, essa familiaridade pode nos parecer indecente e pornográfica. Entretanto, nessa fase da Idade Média as pessoas freqüentavam e habitavam os cemitérios sem se impressionar absolutamente, sem se incomodar com a proximidade das grandes fossas comuns que ficavam escancaradas até que se enchessem, sem se perturbar com as exumações, misturando-se às cerimônias fúnebres que aí se verificavam. A visão e o cheiro do cemitério não impediam absolutamente que aí se localizasse freqüentemente o forno comunal de pão: a proximidade entre alimentos e cadáveres mal enterrados, exumados, expostos – que causaria extremo nojo em nossos contemporâneos – deixava os homens medievais insensíveis. É a partir do século XVI que estes sentimentos começarão a se transformar, lentamente, encontrando resistência na população. No século XVIII, restarão alguns traços das atividades econômicas que se desenvolviam nos cemitérios, mas as grandes feiras medievais já haverão desaparecido deles: começará a grande transformação que em nome da higiene se aplicará sobre o cemitério e a morte. Em resumo, a cidade medieval herdou dos romanos a prática da inumação, que se fazia em cemitérios rústicos ou em túmulos independentes, em pleno campo, ao longo das estradas. Por volta do século VIII, a inumação exterior às cidades havia praticamente desaparecido e começava a ser realizada dentro dos limites urbanos, junto aos túmulos dos mártires, em terrenos sagrados. Na prática, os enterros se davam dentro das igrejas para os ricos e nos seus pátios para os pobres. O cemitério era o centro da vida social, o que representa uma enorme diferença em relação às práticas anteriores e posteriores: o cadáver não inspira mais repulsa, a morte é "a grande irmã, ainda mais fiel que inflexível" (Dumas, 1976: 503). Agora os mortos moram dentro das cidades. São vizinhos dos vivos. Fundem-se anonimamente na comunidade dos vivos e dos mortos. As inscrições funerárias que identificavam os mortos individuais começarão a reaparecer somente a partir do século XII – depois de oitocentos ou novecentos anos de quase completo anonimato. O movimento de valorização de individualidade pôde ser seguido a partir de algumas pistas fundamentais: o ressurgimento dos túmulos individuais, o reaparecimento das inscrições funerárias, a representação da figura do morto na estatuária fúnebre, as transformações sofridas pelos testamentos e pelas concepções relativas à passagem à vida eterna. Trata-se de um movimento ******ebook converter DEMO Watermarks*******
lento, mas contínuo e contendo implicações profundas, diretamente associadas ao conjunto de transformações que se operavam no nível do sistema econômico. Destas últimas, as concepções contemporâneas relativas à morte serão o desdobramento quase direto. Podemos percebê-lo, por exemplo, entre os séculos XII e XVI, materializado no reaparecimento dos túmulos individuais. Sabemos que os túmulos individuais visíveis se tornaram raríssimos durante a alta Idade Média: eles eram um hábito romano, concernente muitas vezes aos próprios escravos, que se tornou dispensável durante a Idade Média, quando não se considerava necessário nem a especificação do lugar da sepultura nem sua individualização por um epitáfio ou uma inscrição qualquer. Como observou Robert Auzelle (1965), o túmulo individualizado, quer pela escritura quer pela representação da figura do morto, era um luxo. Para o mortal comum, a única marca que aponta para uma sobrevivência simbólica no aqui é uma marca coletiva, a grande cruz plantada no meio do terreno de inumação, sobre a qual periodicamente se escrevia um epitáfio coletivo, dirigido a todos os vivos por todos os mortos e ainda presente nos cemitérios das cidades do século XIV. O desenvolvimento dos túmulos individuais e individualizados expressa uma tentativa de assegurar a permanência do morto não mais somente no céu, mas também na Terra. Traduz uma intenção de proclamar aos sobreviventes as glórias imperecíveis do morto, glórias provenientes tanto da prática das virtudes cristãs, como da erudição humanista, das proezas cavalheirescas ou da graça divina. Nos séculos XV e XVI, observou Philippe Ariès (1975), as efígies associadas às sepulturas serão já fabricadas em série por artesãos especializados, segundo padrões socioeconômicos determinados, com o objetivo de ilustrar para os vivos o prestígio dos mortos. As placas que continham epitáfios de poucas palavras metamorfosear-se-ão no século XVII em verdadeiros resumos biográficos e passarão a ser o elemento importante do túmulo, ainda mais importante que a efígie, e freqüentemente em substituição a esta. O túmulo visível não é simplesmente o signo do lugar de inumação. Como escreveu Philippe Ariès (1975: 96-7), ele é a comemoração do defunto imortal entre os santos, e célebre entre os homens. Nestas condições, o túmulo visível era reservado a uma pequena minoria de santos e de pessoas ilustres: os outros, quer tivessem sido colocados na fossa dos pobres, quer no lugar da igreja ou do adro ******ebook converter DEMO Watermarks*******
designado para eles, permaneciam anônimos como outrora. Uma característica interessante desse processo – que progressivamente vai se tornando mais importante através de uma pululação de túmulos ao redor das igrejas, nos cemitérios das cidades ou dos campos – é a nova concepção funcional das sepulturas. Elas pretendem cumprir uma função de proteção: são esculpidas ou construídas em forma de teto, favorecendo o escoamento das águas de chuva fora da superfície de repouso do morto, afastando ao menos simbolicamente o risco de infiltração capaz de corromper a permanência e a integridade de um corpo que agora representa uma identidade definida (Urbain, 1978). O teto é contemporâneo de uma outra imagem que começa a nascer: a da sepultura como morada e, mais tarde, como habitação familiar. A partir do século XV, a maior parte dos testamentos expressará a vontade de ser enterrado na igreja ou no cemitério em que outros membros da família estão enterrados: perto do marido, da mulher, de filhos já mortos. Não se trata ainda dos jazigos familiares dos séculos posteriores, mas do despontar de um sentimento especial dos parentes em relação aos mortos: a imortalidade terrena do morto não depende mais de ele ter sido um santo ou uma pessoa célebre. Os epitáfios individualizadores das sepulturas exigem destinatários vivos. O amor dos filhos, do cônjuge, dos parentes é a contrapartida terrena da sobrevivência dos mortos e se expressa na determinação dos vivos de perpetuar a memória dos entes queridos desaparecidos. Pouco a pouco, entre os séculos XV e XVII, a família começa a se 'apropriar' do lugar de inumação e do monumento funerário, começa a 'privatizar' o lugar e os destinatários das homenagens fúnebres, começa a 'acumular ' os cadáveres dos parentes sob um teto único e começa a 'conservar' a lembrança de seus mortos. Uma série de transformações liga entre si a prática relativamente comum durante a Idade Média de construir uma igreja para fazer um cemitério, o uso posterior de edificar uma igreja para nela possuir um túmulo para si e para os seus e o costume dos séculos seguintes de levantar jazigos familiares privados em cemitérios comunais. Jean-Didier Urbain (1978) estabeleceu uma útil distinção entre a 'individuação' dos mortos e a 'individualização' destes. Sustenta que, embora relativamente rara e residual, a individuação dos mortos é bastante antiga no Ocidente e que até o século XII o tratamento simbólico dos mortos é essencialmente uma questão de individuação: as sepulturas contém apenas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
brazões, símbolos genéricos de status e de pertinência social (atributos cristãos, oráculos, espadas de cavaleiros) que não chegam a romper a natureza fundamentalmente anônima dos túmulos. Mas a partir do século XII, os mortos começam a ser individualizados e, no século XIII, o grande passo será dado com a representação individual e realista do morto sobre sua sepultura. O morto deixa de ser somente um indivíduo; passa a ser também uma pessoa. Entre os séculos XIII e XVII desenvolver-se-á progressivamente a prática de designar por uma inscrição, uma pintura ou um monumento, o lugar preciso da sepultura e a pessoa precisa a quem ela pertence. Isto está extraordinariamente bem materializado no costume de se moldar uma máscara reproduzindo o mais fielmente possível a fisionomia do morto, para integrá-la ao conjunto de estátuas que constituem o monumento funerário. Estas máscaras e estátuas representam o defunto deitado ou ajoelhado, vivendo sobre o lugar onde jaz. Observemos que não se trata de um morto/vivo qualquer: trata-se de uma pessoa muito particular, pois a individualização é uma personificação. Segundo a expressão de Jean-Didier Urbain (1978: 94-5), "sobre a base da refuncionalização radical da qual a máscara mortuária é objeto – integrada à efígie ela se transforma em significante da vida – os mortos se personalizam, se diferenciam de maneira absoluta" (grifo do autor). Modeladas sobre o rosto do cadáver e sendo realistas, as máscaras funerárias comportam algumas mensagens implícitas. Os traços cadavéricos não são reproduzidos com a intenção de causar terror nos passantes. São uma fotografia instantânea e natural do morto, que se procurava fazer vivo. Não se trata da representação do cadáver em decomposição das artes macabras anteriores, nem do dormente que tranqüila e insensivelmente espera o grande despertar: a máscara tenta apreender o momento mesmo da morte, da maneira mais realista possível, e expressa uma reavaliação social deste momento, apontando para sua interpretação futura como ponto de ruptura. Do anonimato completo, passou-se às curtas inscrições sobre as sepulturas e às máscaras realistas, em um processo de personalização do defunto que será reforçado no século XVII e que desembocará em importantes práticas contemporâneas. É interessante, contudo, observar que estas práticas de moldagem de um retrato realista do rosto do cadáver são em parte contemporâneas e em parte imediatamente posteriores à transformação do rosto do morto em objeto ******ebook converter DEMO Watermarks*******
interditado à visão. De fato, até o século XII e mesmo até muito depois nos países mediterrâneos, o rosto do morto permanecia descoberto e exposto aos olhares: o morto era transportado diretamente ao sarcófago ou à sepultura onde seria depositado com o rosto descoberto, mesmo que fosse um rico envolvido em sua mortalha preciosa, mesmo que fosse fechado em um caixão de madeira. Mas o corpo morto, que antes era um objeto familiar, evocador da imagem do sono, doravante possui um poder especial: ele pode ser representado mas não pode ser visto. É devorado por uma nova linguagem. Paralelamente, duas outras tendências se desenvolvem: a generalização do uso de caixões, em que os mortos serão fechados e subtraídos aos olhares (não se trata simplesmente da ocultação do rosto, mas da ocultação do cadáver) e a apropriação de tudo que diga respeito à morte pelo poder religioso. Na seqüência dessas tendências, alguns séculos depois, o morto será representado por um retrato feito quando estava vivo e as artes dos funeral homes farão a exposição do defunto como se ele estivesse em seu escritório de trabalho, como se estivesse falando ao telefone.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
9 Do grande despertar à pesagem da alma Evocamos nas páginas precedentes o fato de que durante quase toda a Idade Média o funeral, ou pelo menos o mais importante nele, era um cerimonial eminentemente leigo no qual a participação da Igreja estava pontualmente definida, limitando-se à imposição da absolvição ao morto (procedimento cujo significado funerário era em parte amenizado pelo fato de poder ser aplicado também ao moribundo, isto é, a uma pessoa ainda em vida). A partir dos séculos XIII-XIV, todavia, os funerais passam a ser cada vez menos civis e cada vez mais religiosos, até se transformarem, por volta do século XVII, em um procedimento quase totalmente religioso. Através desse processo o cadáver é integrado ao ritual religioso, generalizando-se o hábito de se fazer celebrar missas para a salvação dos mortos e de transportar o cadáver para o interior de uma igreja a fim de aí ser objeto de ritos de despedida. Mas, atenção: não se trata do cadáver tal qual era encarado nos séculos anteriores. Trata-se de um cadáver fechado dentro de um caixão, subtraído aos olhares. Ou melhor, retomando uma distinção de Jean-Didier Urbain (1978), não se trata exatamente de um 'cadáver', mas de um 'corpo' metaforicamente representado pelo caixão. Esta penetração do morto nas igrejas, a exposição dos caixões diante dos altares, implica uma modificação profunda das atitudes mentais: anteriormente os poderosos eram enterrados dentro das igrejas; agora, antes de partir todos passam sob os olhos dos sacerdotes e seus rituais. Além disso, nessa incorporação da morte pela ritualidade oficial está expresso o reconhecimento pela Igreja das práticas sarcofágicas individualizantes que então nasciam e que começavam a propor preocupações novas com a retenção e a conservação da corporeidade, agora associada à identidade pessoal do morto. Durante o primeiro milênio, como já evocamos, a morte não era separação da alma e do corpo, mas um sono profundo até o grande despertar, e a 'ressurreição da carne' era o reaparecimento de um ser integral. A partir do século XII, essas concepções sobre vida no além começam a mudar: adquirem o aspecto de uma separação – desta vida em primeiro lugar, dos próximos em seguida. Passa a ser separação entre o corpo e a alma, entre um corpo mortal e decomponível e uma alma eterna e personalizada que tornará perene a individualidade do morto. Em 1648, um conselheiro do parlamento de Toulouse escreverá em seu testamento, citado por Philippe Ariès (1975: 148): "eu dou minha alma a Deus, eu deixo meu corpo na igreja dos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Augustins, na sepultura dos meus". A valorização da individualidade pessoal, a valorização dos laços familiares, a separação entre a alma e o corpo e as tentativas de salvar estas identidades da destruição temporal, só podem ser entendidas conjuntamente. O inferno e a decomposição são os grandes horrores desse tempo. No século XV, o fantasma da danação individual era brandido por todos os lados e em todos os tons, através de imagens de morte e decomposição que traziam consigo o perigo do desaparecimento da identidade pessoal. O devir dos corpos se transforma no grande exemplo da pedagogia religiosa oficial, no grande tema dos sermões dos sacerdotes: o corpo que se decompõe nas sepulturas, o corpo supliciado de Cristo, o corpo que suporta as dores produzidas pelas chamas do inferno... As ameaças do castigo eterno são constantemente oferecidas àqueles que pela exasperação dos seus sentimentos de serem indivíduos autônomos se esquecem de suas obrigações sociais. O inferno se transforma na grande instância repressiva e produtora de obediência. Corpo e inferno formam um par nuclear de um discurso através do qual a Igreja quer se dirigir às camadas populares e através do qual essas próprias camadas pensam a obediência às leis terrenas e o castigo correspondente à infração delas. Através da conjunção do corpo e do inferno, a pedagogia eclesiástica obtém as imagens mais convincentes e eficazes para se impor à sua audiência. O corpo neste mundo e o inferno no outro: eis os dois pontos de ancoragem da dominação política. Essa imagem do inferno é nova. O batismo já não é mais o verdadeiro passaporte para a vida eterna. O grande dia não está mais em um futuro longínquo, no despertar de um imenso sono tranqüilo. Ele se aproximou, penetrou no quarto do moribundo. Entre os séculos XIII e XVI, uma nova imagem de inferno passa a imperar. A visão apocalíptica do julgamento final e da ressurreição dos mortos é cada vez mais coisa do passado. A pesagem das almas e a decisão sobre a salvação ou a perdição eternas têm lugar agora no momento mesmo da morte, em torno do leito do moribundo. O julgamento divino é agora imediato e definitivo. A morte se transforma na 'última prova', durante a qual o indivíduo reverá toda a sua vida e poderá recuperá-la pelo arrependimento de seus males, ou perdê-la definitivamente pelo seu agarramento às coisas do aqui. O episódio da morte se transforma em encenação de um tribunal: cada acontecimento da vida será pesado na balança do Bem e do Mal, em presença de todas as potências do Céu e do ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Inferno. Na iconografia das artes moriendi dos séculos XV e XVI, do outro lado da Trindade, da Santa Virgem e de toda a corte celeste, figura Satã e seu exército de demônios monstruosos. Aparece também nesta época o liber vitae, o livro da vida, que é um livro simbólico, nas artes figurativas e na imaginação popular, destinado a contabilizar as ações boas e más dos indivíduos e no qual cada indivíduo reencontra a totalidade de sua vida materializada em uma única peça. Deus conhece o conteúdo desse livro e julgará cada pessoa individualmente, pelos seus méritos e deméritos particulares e pessoais. Estamos já longe da ressurreição coletiva do século XII e anteriores: agora o indivíduo se apresenta só diante do Grande Juiz. Até o século XIII, a cena que se desenrolava no quarto do doente era solene e calma para ele. Ela reduzia fundamentalmente as diferenças entre os indivíduos, porque a morte era a mesma para todos e porque todos partiam em paz com os outros, com Deus e consigo mesmo. Mas agora um elemento novo se apresenta: o medo de não ser eleito, o pavor de ser discriminado, a angústia de ser julgado e de que o demônio se aproprie do livro da vida. O medo do além conseqüentemente começa a se manifestar em uma sociedade que anteriormente não temia a morte e que vivia familiarmente com ela: a reunião do momento da morte com o instante da decisão suprema, temperada com dúvida e insegurança, transformou a morte em um evento temível. A experiência da relação pessoal com Deus revelará a cada homem a sua solidão profunda. A ameaça de sofrer um assalto do diabo, desejoso de levá-lo para o inferno, incutirá em cada um o supremo pânico da agonia e da morte. Esta concepção judiciária do além está associada estreitamente a uma nova concepção da vida como biografia particular. A existência de cada um é a redação de um livro que conta uma história particular, da qual o episódio da morte é ao mesmo tempo a última página e a solene apresentação dos resultados àqueles que irão julgar. Esta última página é fundamental. Escrevendo-a, o indivíduo poderá salvar-se ou perder-se definitivamente: ele reverá sua vida inteira e será tentado ou pelo desespero e arrependimento de seus erros, ou pela vanidade de suas glórias terrenas, dos prazeres vividos sobre a Terra e do amor aos seres e haveres desse mundo. Sua atitude nesse momento apagará todo o seu passado, suas ações boas e suas ações más, condenando-o ou absolvendo-o. Até o último momento o indivíduo poderá agir sobre sua biografia, porque ele é cada vez mais senhor dela, porque ela ******ebook converter DEMO Watermarks*******
não é senão o desdobramento no tempo de sua individualidade pessoal. O olhar que a partir da última página o indivíduo lançará sobre sua existência reforçará sua consciência de individualidade própria. E como a última página do livro tem o poder de decidir sobre o destino após a morte, a última página não será verdadeiramente a página derradeira: a biografia individual prosseguirá até a eternidade. Esta última página é, pois, a mais importante. Para que seja bem escrita, é preciso que seja preparada desde o início, durante toda a duração da vida. Não é no momento da morte que se deve pensar nela, mas a cada passo da existência individual. A boa morte passa a ser a do indivíduo que, tendo pensado durante toda a sua vida em sua morte física, soube se preparar para ela e pôde enfrentá-la tranqüilamente, com a consciência leve. Como Philippe Ariès (1975) observou, a arte de morrer é substituída pela arte de viver, os cuidados relativos à morte são transferidos para a vida, para cada dia desta vida. Não se trata, porém, de uma vida qualquer: a preparação para a morte exige que toda a vida seja impregnada de morte, bem viver é viver com o pensamento da morte. O momento final comporta uma dialética ambígua. Em primeiro lugar, nada está jogado, pois tudo pode ainda ser ganho ou perdido; mas ao mesmo tempo são muito maiores as oportunidades daqueles que, tendo pensado nele durante toda a vida, souberam se preparar para este momento. Em segundo lugar, este momento derradeiro é considerado como ponto de passagem para o outro mundo, mas o peso de seu significado como fim da vida terrestre cresce continuamente e o fantasma de uma sepultura aberta começa a incomodar tanto quanto a incerteza sobre qual porta tomar, se a do Céu ou a do Inferno. A este propósito, o encontro com a morte se insinua como algo mais seguro que a imortalidade e ambas conformam uma dialética ambígua que talvez possa ser resumida em duas imagens: a morte é o objetivo da vida, mas é também o final dela. É preciso considerar também que esta época de temor da morte e das incertezas que ela comporta é também uma época de extremo e apaixonado amor pela vida, sentimento que é contrapartida da estratégia pedagógica dos predicadores, consistindo em ameaçar com inferno e putrefação. O amor à vida se expressa na ligação afetiva dos homens às coisas terrenas: os amigos, os parentes, os cães, os cavalos, as plantações. É contra este amor ao aqui que se volta a última prova, onde tudo pode ser ganho ou tudo pode ser perdido: serão salvos aqueles que souberem se desligar das coisas do aqui, pois o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
homem da segunda Idade Média e da Renascença não quer se separar dessas coisas e gostaria de levá-las consigo. O homem desta época é profundamente consciente da morte, pensa nela todo o tempo, reconhece toda a sua importância, mas ao mesmo tempo sente nela um envenenamento de sua existência, uma ruptura com as coisas de que gosta. A cena da morte é teatralização da passagem, é julgamento da vida, é consciência dela, mas é também representação intertextual do apego e do amor à existência no aqui.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
10 Corpo e alma: biografia burguesa e angústia de morte Refaçamos o caminho que seguimos até este ponto. Lembremos que durante a Idade Média a morte no leito era ao mesmo tempo comum e costumeira. Ela era acompanhada de dor da parte dos sobreviventes, mas esta dor não era nem insuportável nem inconsolável e não provocava grandes aflições nos indivíduos que iam morrer, porque estes não viam entre a vida do aqui e a do além uma ruptura radical e porque viviam/morriam na esperança de despertar em um paraíso assegurado. Vivida coletivamente, a morte era passagem de uma vida a outra. A crença na ressurreição da carne e a não-exasperação do valor da individualidade não despertavam aflições especiais quanto à perda da integridade da personalidade individual. Nas imediações do século XV, no bojo de transformações que começaram a operar a partir dos séculos XII-XIII, a morte no leito se carrega de um sentido dramático que não existia antes e que pôde ser associado a transformações importantes nas concepções de morte e de vida: desenvolvimento da individualização, aparecimento de uma consciência especial da biografia individual, dúvidas sobre a imortalidade, incertezas sobre a salvação, transferência do julgamento final para o quarto do moribundo no momento mesmo da morte, individualização do julgamento, crescimento do amor à vida... Este sentido dramático aumentará no curso dos séculos XVI e XVII: a morte começará a ser vista como o ponto onde o tempo linear pára, onde o homem se defronta com a eternidade (durante a Idade Média, a eternidade, através da presença de Deus, era imanente à história), os relógios começarão a proliferar, o tempo divisível, susceptível de medida exata, passará a ser rei, a identidade pessoal se transformará em biografia ou seja em encadeamento de eventos cuja seqüência a morte ameaçará romper. A existência não será mais "a plenitude de uma vida em sua duração total" (Illich, 1875: 177) e o homem não se conformará mais à idéia de ser mortal. Doravante deverá se preparar durante toda sua vida para morrer, o que significa que uma modificação fundamental teve lugar: não é necessário preparar uma coisa com a qual se está familiarizado. No século XV e XVI, ainda se está mais próximo dos modelos tradicionais de morrer, mas as mortes romântica e contemporânea já se fazem anunciar. Jean-Didier Urbain (1978: 93) esclareceu perfeitamente o sentido de todo esse processo: "apropriação do lugar e do edifício; privatização do lugar do culto; acumulação, seqüestro e proteção dos cadáveres dos parentes: tudo é ******ebook converter DEMO Watermarks*******
colocado sob o signo da posse e da conservação". Cita em apoio um trecho de Philippe Ariès (1975: 139): "em 1652, um testador quer que após sua morte seu corpo e o de sua esposa sejam transportados à minha igreja e aí serão eles colocados no jazigo da minha capela que aí eu mandei construir... e aí serão rezadas, todos os dias, missas em minha memória e em memória de minha mulher" (é Urbain quem enfatiza). Faz em seguida uma aguda aproximação entre estes processos e as transformações que o modo de produção então vigorante começa a sofrer: "o tema do Juízo Final se impõe no interior da predicação eclesiástica no século XII: é então, igualmente, que o termo 'burguesia' aparece" (Urbain, 1978: 98-9). Inicialmente esse termo será aplicado aos comerciantes, atores sociais que logo virão a desempenhar um duplo papel, econômico e político. Por um lado, eles irão se entreter com o comércio – com a circulação de dinheiro e de produtos. Por outro, farão empréstimos financeiros (adiantamentos a artesãos, pequenos investimentos etc.). A partir dessas atividades estes comerciantes transformar-se-ão rapidamente em banqueiros, logo terão como clientes os papas, os reis e as cidades, e progressivamente adquirirão influência política, econômica e social, tornando-se capazes de agir sobre os dominantes e sobre os dominados. "Proto-burgueses, eles serão os primeiros a vir parasitar semiologicamente o espaço funerário aristocrático, vindo traduzir na morte sua emergência, progressão e potência econômica e social" (idem). Além dos ricos banqueiros, outras categorias descenderão dos primeiros comerciantes: homens de leis, manufatureiros, lojistas – todos querendo afirmar na morte os progressos materiais e sociais que realizavam na vida, perenizar após a morte suas individualidades recém-valorizadas, romper com o anonimato, distinguir-se e promover-se. A comunidade medieval dos mortos está cada vez mais distante; a comunidade dos vivos perece igualmente: existe uma "covariância entre a individualização crescente das sepulturas e o desenvolvimento do capitalismo, primeiro comercial (negociantes) e depois industrial (manufatureiros)" (Urbain, 1978: 100). No período pré-capitalista, os poderosos foram os primeiros a individuar e individualizar suas sepulturas, tentando garantir para si um melhor quinhão de vida eterna: os nobres, os reis, os papas, os imperadores. Observando-os de perto, "percebe-se que o que possuíam, fundamentalmente, era os seus corpos". Eles dispunham de seus próprios corpos e dispunham também dos corpos alheios para defesa e sustentação desse privilégio. Por volta do século XIII, os comerciantes, em virtude de sua mobilidade social, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
"progressivamente escaparam a esta alienação feudal dos corpos": fazendose credores dos reis e dos papas, conquistaram uma identidade, uma " individualidade sociopolítica" (Urbain, 1978: 100 – grifos do autor). Emancipados da sujeição ao poder, eles tomaram posse de seus corpos e mais tarde viriam a se apropriar dos corpos dos outros. Estes comerciantes/banqueiros serão os primeiros a penetrar os domínios funerários aristocráticos, fazendo-se enterrar dentro das igrejas e mais tarde construindo suas próprias igrejas e capelas. O mesmo modelo reproduzir-se-á no século XVIII com relação aos artesãos, que farão frutificar um conjunto de pequenas empresas individuaisfamiliares, "nas quais o primeiro dos meios de produção é o corpo" (Urbain, 1978: 101). O artesão é um trabalhador manual que exerce um ofício por sua própria conta. Sendo artesão, o indivíduo é seu próprio senhor, seu próprio explorador. Ele se possui – mesmo que nós saibamos que isso não passa de uma ilusão, quando consideramos as pressões do sistema sociopolítico. Esta ilusão produz, entretanto, uma sensação de autonomia e autopossessão: é sobre esta ilusão que se constrói o individualismo burguês e é através dela que o artesão vai se infiltrar por sua vez no espaço funerário. A partir do século XIII, pois, o mundo econômico ocidental se transforma em palco de uma luta em que todos os participantes querem preservar suas identidades particulares e individuais. Esta "efervescência narcisista" é animada pelo fantasma da autonomia corporal, pela auto-suficiência e pelo "gozo absoluto de si" (Urbain, 1978: 104), que se traduz, nos fatos, por um crescimento do individualismo burguês, pelo nascimento de uma massa proletária e pelo desenvolvimento correlativo do capitalismo europeu. Este último se funda essencialmente na apropriação ilegítima do corpo do outro por alguém: "o corpo é o primeiro dos meios de produção e possuir os meios de produção é antes de tudo possuir seu corpo". Compreende-se então a significação traumática que a morte adquire neste contexto: ela é destruição da individualidade e destruição do corpo. Ela é o contrário do espírito das classes emergentes da época, se considerarmos que "o sonho, confrontado ao biológico, desmorona" (Urbain, 1978: 102, 105). Restam apenas dois caminhos, duas estratégias de sobrevivência: controlar o futuro através da 'vida eterna' ou então imobilizar o tempo através de tentativas simbólicas de conservação e de preservação dos mortos e de seus corpos. Ambas as estratégias serão utilizadas, na batalha ocidental-capitalista, para vencer a morte. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
O essencial da morte tal qual nós a conhecemos hoje nasce em meio a esta efervescência narcisista. A partir dos séculos XII-XIII, entre ricos, letrados e poderosos observa-se a ascendência do sentimento de que a cada um corresponde uma biografia pessoal. No início esta biografia consiste de atos. Bons ou maus, estes atos são globalmente apreciados como componentes do ser. Progressivamente, esta biografia começará a incluir coisas, pessoas, animais, fama – enfim, haveres. No final da Idade Média, "a consciência de si e de sua biografia se confundiram com o amor à vida". A morte passa a ser também a separação do haver, que na época se transformava em elemento fundamental da composição do ser. Ao lado da morte como balanço, como ulgamento, como acerto de contas ou ainda sono, começa a aparecer uma imagem de morte como apodrecimento e decomposição: "não mais o fim da vida e último suspiro, mas morte física, sofrimento e decomposição" (Ariès, 1977: 139-40). No nível religioso, a morte vai deixando de ser conseqüência do pecado original ou morte de Cristo sobre a cruz e começa a se transformar em corpo sangrando ao pé da cruz, como inúmeras vezes foi fixado na arte sacra ( Pietà), pondo em evidência a idéia de separação dolorosa e de atentado à integridade física que a morte comporta. Com a descoberta de sua biografia e do lugar que nela a morte vai ocupar, o homem ocidental rico do final da Idade Média começa a se reconhecer a si mesmo na morte e descobre aquilo que Philippe Ariès chamou de "a morte de si". Mas isto é o que ele não pode aceitar. Não pode aceitar, porque este homem pré-capitalista quer descer à sepultura carregando sua riqueza. Quer guardar até a eternidade o produto de sua acumulação terrena. Ele sabe que todo tesouro um dia deve ser despendido, mas ele vê nesse tesouro a síntese de uma vida e de uma identidade que não quer perder. Ele está dividido entre o aqui e o além e, na impossibilidade de levar consigo toda a fortuna, tentará usá-la como 'investimento' para conseguir a vida eterna (do que o testamento será um instrumento privilegiado). Essa não-aceitação da morte de si exprime-se de maneira absolutamente nítida na estatuária fúnebre: em oposição ao modelo até então dominante, o da representação do morto dormindo, ao final do século XIII um outro modelo começa a se esboçar – o do defunto ajoelhado, em prece, sobre sua sepultura (Urbain, 1978: 160). Este segundo modelo comporta uma geometria revolucionária, "diametralmente oposta à da estátua jacente". Porque enfatiza ******ebook converter DEMO Watermarks*******
a verticalidade, nele o signo parece afastar-se de maneira radical do referente primeiro, o cadáver. O morto-que-dorme não é um cadáver, mas dele conserva a horizontalidade e a imobilidade. Ao contrário, o morto-que-reza expressa um aguçamento da rejeição, uma ruptura radical da barra horizontal que separa os dois mundos, projetando violentamente a silhueta do morto para o mundo dos vivos, negando a barra de separação, em vez de limitar-se a anulá-la ou neutralizá-la, dotando além disso a imagem do morto de uma qualidade nova: o movimento. Mas esta recusa é apenas um lado da história. Enquanto se desenvolve entre os ricos e poderosos esta recusa da morte, enquanto aparecem os primeiros retratos reais autênticos, que se destinam a fazer presente a personalidade individual e transformada em intemporal de soberanos já falecidos, enquanto os poderosos passam a ser lembrados não apenas como almas, santos ou símbolos, mas também como presenças históricas contínuas, enquanto os ricos se preocupam intensamente em bem localizar e identificar suas moradas derradeiras, os corpos dos pobres continuam a ser jogados nas fossas comuns, simplesmente costurados dentro de um pano rústico, submetidos à caridade dos 'caridosos' (confrarias de pessoas que tentavam remediar o que lhes parecia a maior crueldade terrestre: não possuir uma sepultura em terra da Igreja e jazer abandonado, como os afogados, os acidentados anônimos, os condenados, os não batizados, os excomungados...). Entretanto, estes 'caridosos' nenhum sofrimento encontravam em atribuir aos pobres uma sepultura anônima. À pobreza, evidentemente, os pobres já estavam habituados – mas nestas transformações uma ordem social nasce, fundada na discriminação individualista e comportando a ruptura da comunidade tradicional. De fato, como Jean Baudrillard (1979: 43) observou, com a desintegração das comunidades tradicionais, cristãs e feudais, a morte não é mais compartilhada. Ela está agora, como os bens materiais que cada vez circulam menos, sob o signo de um equivalente geral. No mundo capitalista cada um se encontra só diante do equivalente geral. Da mesma forma, cada um se encontra só diante da morte. E isto não é uma coincidência, porque "o equivalente geral é a morte". Com esta imagem moderna da morte, com o desaparecimento das concepções medievais, com os jogos obsessivos da época barroca, mas sobretudo com o protestantismo, a consciência da morte progressivamente se individualiza diante de Deus, perde suas colorações coletivas e festivas, dando nascimento à angústia individual diante da morte. Dessa angústia surgirá o imenso ******ebook converter DEMO Watermarks*******
empreendimento moderno de exorcizar a morte: a idéia de acumulação e de produção material, a santificação através do investimento, do trabalho e do lucro, que se cha ma comu ment e, com Max Weber, o 'espírito do capitalismo'. O círculo se fecha: à medida que se instaura no poder, a burguesia impõe a todos suas próprias angústias de morte – que são também modelos de vida – interiorizando em cada indivíduo um "inferno psicológico" sobre o qual "outras gerações de sacerdotes e feiticeiros crescerão mais sutis e mais científicos" (Baudrillard, 1979: 43). Podemos apreender a intimidade desse processo na evolução dos testamentos. Ato de direito privado, exclusivamente destinado à transmissão de bens durante a Antigüidade romana, o testamento desaparece do uso generalizado até o século XII, quando reaparecerá expressando uma cosmovisão inteiramente diferente, função que conservará até o século XVIII – quando o peso das transformações que estamos considerando se fará sentir, obrigandoo de certo modo a retornar à sua função inicial. O testamento durante todo este tempo é um instrumento por meio do qual os homens pensam sua posição entre esta vida e a outra, entre a morte, a ruptura e a continuidade, e através do qual de certa forma continuarão a viver, pois poderão agir sobre o fluxo das coisas: daquelas que deixaram atrás de si e daquelas que encontrarão em suas viagens. Antes do século XII, o testamento é parte naturalmente integrante do rito de morrer. Noticiado de que a morte se aproximava, o indivíduo se recolhia e se deitava. Com o olhar dirigido para o céu, com os braços cruzados sobre o peito, fazia sua profissão de fé, confessava os seus pecados, pedia perdão aos sobreviventes, recomendava a alma a Deus, escolhia a sepultura e, se fosse o caso, dava instruções para a reparação dos prejuízos que tivesse causado a outros. Isto tudo era feito oralmente, como se nenhuma razão impusesse desconfiança em relação à disposição dos próximos de fazer cumprir as determinações contidas nas últimas vontades do testador. Nesta época tal quadro se transforma. Antes de tudo, o testamento passa a ser estritamente obrigatório, elevado à condição de sacramento, comportando uma sanção cruel, talvez a mais cruel de todas: aqueles que morressem intestados, seriam em princípio excomungados e conseqüentemente não teriam direito ao enterro em terra da Igreja. Essa obrigatoriedade se estendia a todos, possuidores ou não de bens a legar: na segunda Idade Média, a função religiosa dos testamentos é ainda predominante e até o século XVI é na maioria das vezes um funcionário da Igreja ou o vigário local o redator e o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
conservador dos mesmos. Ainda que a partir dessa data um escrivão público tenha substituído o padre nessas funções, o testamento continuará por bastante tempo uma questão de religiosidade e fé: confessar sua fé, reconhecer seus pecados, reconciliar-se com os sobreviventes e pagar um dízimo à Igreja sobre o valor de sua herança... Estas transformações ainda não refletem inteiramente os mutamentos radicais que se operavam em outros domínios da sociedade. Os testamentos por enquanto se limitam a reproduzir por escrito os ritos orais de épocas anteriores (Ariès, 1977). Por bastante tempo ainda, o testamento ficará intocado pelas formas extremadas de amor à vida, de obsessão macabra pela morte, de individualismo manipulador. O homem já está só diante de Deus, só com sua biografia individual, com seu balanço privado de boas e más ações, mas continua testando segundo o modelo tradicional do moribundo ao leito que em público abandona a vida e que até o fim conservará a palavra e a presença dos próximos. Estas transformações virão entretanto afetar os testamentos, promovendo a invasão pela porta aberta do amor à vida, do extremo apego às coisas terrenas e da imensa pena de as abandonar. De fato, o homem da segunda Idade Média e da Renascença se encontra dividido entre dois mundos, entre os temporalia e os aeterna. Não sabe se deve se apegar definitivamente às coisas do aqui e perder definitivamente sua alma, ou se deve ater-se exclusivamente às coisas da alma e perder conseqüentemente os prazeres da vida terrena. Neste quadro de dúvidas, ele descobrirá o testamento, ou melhor, uma dimensão nova do mesmo. Descobrirá que através dele poderá reunir os prazeres terrenos à salvação eterna, conservar o amor às coisas dedicando-as à sua felicidade no paraíso. Poderá enriquecer nesta vida, gozar as facilidades dessa riqueza e fazer seu testamento em favor da Igreja e dos interesses dela. Manipulado desse modo pelos indivíduos que legam e pela Igreja que recebe, o testamento se transforma, segundo a expressão de Philippe Ariès, em um "contrato de seguros" através do qual os indivíduos pagariam em moeda temporal sua sobrevivência na eternidade. As dificuldades em que começava a se ver o homem desta época se infiltram no testamento, permitindo-lhe ultrapassá-las: "o testamento foi, pois, o meio religioso e quase sacramental de ganhar os aeterna sem perder completamente os temporalia, de associar as riquezas à obra da salvação" (Ariès, 1975: 190). É de certo modo um contrato de seguros celebrado entre o indivíduo mortal e Deus, por intermédio da Igreja. Um contrato com dois fins. Primeiro, um ******ebook converter DEMO Watermarks*******
"passaporte para o céu", segundo a expressão de Jacques Le Goff: assim ele garantia os bens eternos, mas os prêmios eram pagos em moeda temporal, graças aos legados piedosos. Em seguida, o testamento é também um salvoconduto na Terra: nesta condição, ele legitimava e autorizava o gozo – em princípio suspeito – dos bens adquiridos durante a vida, dos temporalia. Os prêmios dessa segunda garantia eram pagos em moeda espiritual, legados piedosos, missas, doações para obras de caridade. "Assim, em um sentido, o testamento permitia uma opção pelos aeterna; em outro, reabilitava os temporalia" (Ariès, 1975: 190). Por volta do início do século XVIII, modificações importantes vão afetar os testamentos: preocupações com o lugar de inumação, caprichos sobre a composição das cerimônias fúnebres, determinações sobre quem deveria implementar as cláusulas piedosas, zelo de expressar suas convicções profundas sobre esta vida e a outra, cuidado de definir-se como cristão e católico, invocação da Trindade, da Virgem Maria, dos Santos padroeiros – todas essas disposições, características dos testamentos dos séculos anteriores, começam a cair em desuso. O objetivo do testamento continua a ser o de fazer o homem pensar em sua morte enquanto ainda há tempo, mas o pensamento se exerce agora a partir de outras premissas. Os testamentos não são mais escritos pelos padres, já não têm também o caráter de sacramento. Mas, mesmo cada vez mais laicizados, continuam fortemente impregnados de religiosidade, continuam a ser um gesto pelo qual o homem da época decidia sobre o que ele amava mais: seu corpo e sua alma. Em favor de seu corpo, sobretudo a escolha de uma sepultura; em favor de sua alma, missas e orações. Missas e orações que normalmente começavam no momento da agonia e que continuavam por tempo indeterminado, à perpetuidade, em intervalos regulares, distribuídas em datas fixas... Centenas de missas, milhares de missas eram previstas pelo testador. Entretanto, no século XVIII estas missas começam a deixar de ser distribuídas no tempo e se concentram o mais possível perto do momento do falecimento, na medida em que um julgamento a longo prazo é substituído por um julgamento sumário no quarto do moribundo. Junto a isso, na segunda metade do século XVIII outras transformações ocorrem: as cláusulas piedosas, as eleições de sepultura, as encomendas de missas e serviços religiosos, as esmolas desaparecem e os testamentos se transformam nitidamente em instrumentos de transmissão de riqueza e de poder. Assim laicizado o testamento foi se transformando em instrumento ******ebook converter DEMO Watermarks*******
exclusivamente jurídico que pouco ou nada mais faz que distribuir bens e fortunas. Mais precisamente, ele se transformou em instrumento de redistribuição do capital familiar, principalmente quando o morto fosse também o chefe da família. Na nova sociedade é imprescindível que este capital continue dentro da família e é obrigação de todos fazê-lo frutificar e multiplicar. Não se concebe mais que as riquezas legadas possam ser consumidas. Pelo contrário, o novo credo quer que sejam rentabilizadas. O burguês rico desta época sabe perfeitamente que o que faz sua glória (contrariamente ao que fazia a glória da aristocracia) é o seu dinheiro, e que sua riqueza se deprecia e se perde quando é consumida. O burguês está, por isso, submetido a uma pressão dupla: em primeiro lugar, por parte do ancestral acumulador das riquezas que ele recebe; em segundo, por parte dessa riqueza mesma, cuja natureza impõe um comportamento bem preciso, na ausência do qual se evapora. O testamento do século XVIII é uma transmissão de poder em todo o significado da expressão: não se limita a transmitir a alguém uma riqueza e um poder particulares; mais do que isso, impõe ao mesmo tempo regras à pessoa que recebe o poder. Entende-se, portanto, para onde vai a confiança que o moribundo progressivamente vai retirando à religião. Na formação das grandes dinastias burguesas, os testamentos vão encaminhar para as famílias o que antes endereçavam para os conventos e obras de caridade. São os familiares doravante os grandes responsáveis pela sobrevivência do morto: aqui na Terra, pela perenização e engrandecimento de sua obra; no outro mundo, pelo culto que lhe deverão dedicar (e que será uma das características mais nítidas das representações da morte no século XIX). Não se trata mais de eufemística acumulação de boas/más ações ou de centenas ou milhares de missas, mas de tesouros concretos, de capitais e propriedades. Não se trata mais de um testador que prevê os menores detalhes do seu funeral, mas do predomínio paulatino da fórmula "deixo à discrição dos meus...". Não se trata mais de uma morte serena, mas da extraordinariamente dramática encenação fúnebre do século XIX, marcada sobretudo pelo desespero da família e pelo gosto romântico pela morte (contrastante, mas nada paradoxal). Esses movimentos foram largamente comprovados pela pesquisa a que o historiador Michel Vovelle (1978) procedeu relativamente às práticas funerárias e especialmente testamentárias na Provence durante o século XVIII. Os documentos mais antigos deste século costumam compor-se de maneira a que no início dos testamentos figurem sempre as exaltações ******ebook converter DEMO Watermarks*******
religiosas: constatando a necessidade da morte e a incerteza em relação à sua hora, o testador resolve proceder a... Trata-se aí em verdade de uma fórmula á reduzida, se a compararmos a textos apenas um pouco anteriores que começavam pela lembrança do pecado de Adão, pelo reconhecimento da culpa deste e pela justiça do castigo que a morte representa. Os testadores de Vovelle declaram em seguida que são "cristãos e católicos", às vezes "apostólicos e romanos" e que "preferem a alma ao corpo". Invocam Deus, a Santíssima Trindade, a Virgem Maria, toda a corte celeste, os santos padroeiros, rogando-lhes intercessão. Esta fórmula vai se tornando reveladoramente mais leve com o correr do século: a lembrança do sinal da cruz, já rara no início, praticamente desaparece; a proclamação "sou cristão", neutraliza-se aos poucos; a invocação de Deus persiste, mas a corte celeste descomparece. Cada vez mais, os testadores manifestam pressa de ir ao ponto fundamental: "e como o maior e principal objetivo de todo testamento é dispor dos bens para evitar toda contestação...". A inevitabilidade da morte não é mais evocada ou o é raramente e a morte transforma-se em "tributo indispensável que nós devemos à natureza". Adão é esquecido, a referência a Deus é cada vez mais formal. Um número significativo de testadores, segundo os dados de Vovelle, ainda pede missas em abundância, mas modificações sintomáticas do espírito da época são dignas de nota: em primeiro lugar, o sonho de um número incalculável de missas celebradas até a eternidade é substituído por algo mais realista e pragmático, pela determinação de uma quantidade definida de missas a oficiar; em segundo lugar, a preocupação recente de que essas missas sejam tanto quanto possível concretizadas 'à vista', no momento mesmo do falecimento, no mesmo dia ou no dia seguinte; em terceiro lugar, a tendência a se dedicar uma quantia fixa em dinheiro para as missas, independentemente da quantidade delas. Os túmulos familiares começam a proliferar, ajudando a cimentar a união do grupo e a consciência de suas tradições, de sua unidade no tempo. Mas a vida eterna é um assunto que tende a desaparecer dos testamentos provençais – embora os legados para assegurá-la continuem (menos intensamente, é verdade) a ser feitos, e ainda que os intercessores terrestres para a vida eterna continuem existindo. É sobretudo às suas famílias que os indivíduos pedirão doravante que cuidem de suas almas e de suas salvações. Esse processo de laicização que atinge tanto os domínios da vida como os da morte é característico do Século das Luzes e encontra sua expressão nuclear ******ebook converter DEMO Watermarks*******
na oposição, que então se desenvolve, em todos os sentidos, entre o corpo e a alma – oposição que consiste fundamentalmente na mais completa separação destes elementos. Esta separação é fundamental para o entendimento da problemática da morte, sobretudo quando se considera que está no centro de todas as transformações ideológicas, filosóficas e científicas a que os séculos seguintes irão assistir. No curso dessas transformações os comportamentos, pensamentos e sentimentos funerários serão palco de modificações radicais: a transformação do corpo humano em objeto, a apropriação da morte pela medicina e pela família, o desenvolvimento da ideologia da higiene e a conseqüente separação entre o cemitério e a cidade, sem menosprezar os desdobramentos de cada uma dessas transformações principais e seus entrelaçamentos. É claro que a oposição entre o corpo e a alma não irrompe de repente e não se difunde de uma só vez por toda a sociedade. A bem dizer, ela se manifesta por um processo que mesmo em nossos dias não se pode considerar como tendo dito tudo o que tem a dizer. De qualquer forma, se hoje estamos já um pouco acostumados a suas mensagens, suas primeiras expressões perceptíveis foram verdadeiramente espetaculares. No século XVIII acreditava-se ainda na ressurreição da carne, da mesma forma que se julgava importante preocupar-se com a salvação das almas: os epitáfios da época, os testamentos, a arte fúnebre no-lo confirmam. Mas algo no coração da espiritualidade da época apontava para outras indagações e continha os germes dos discursos contraditórios que em seguida viriam, seja idealisticamente exaltar os componentes espirituais do ser, recusando tudo o que dissesse respeito à sua concretude carnal, seja materialisticamente reverenciar as dimensões corporais do homem em desprezo à sua alma. Por detrás de ambas as opções, a mesma ideologia desagregadora e o mesmo espírito discriminador que terminarão por reduzir o corpo humano à condição de objeto. Sem esta separação o corpo morto era considerado como digno de uma distinção especial: era tratado quase como se fosse uma pessoa em sua integridade. Não era uma questão de simples 'superstição', mas de direitos estabelecidos na jurisprudência medieval e, mesmo, de obrigações: com um estatuto legalmente reconhecido, o morto poderia ser perseguido em justiça – o que acontecia aliás com uma freqüência considerável. Poderia ser citado como testemunha e pagar suas condenações. Os laços de casamento não se rompiam imediatamente com o falecimento e os defuntos eram objeto de toda uma familiaridade, que expressava uma maneira particular de lhes reconhecer ******ebook converter DEMO Watermarks*******
dignidade. Contudo, a partir do momento em que a dignidade do ser passa a residir na alma e em que a morte passa a ser vista como o instante em que o espírito abandona o corpo, duas conseqüências seguem imediatamente: em primeiro lugar, o corpo enquanto corpo se transforma em algo intrinsecamente desprovido de dignidade; em segundo lugar e a fortiori, com a morte se extingue o sujeito de direitos, e a personalidade jurídica do indivíduo se decompõe. O cadáver se transforma em coisa, em refugo, em dejeto: ritos antigos, como a lavagem do corpo do defunto, de repente começam a agredir a sensibilidade do século XVIII; a liturgia funerária cristã progressivamente se desliga do cadáver, para prestar atenção quase que exclusivamente à alma. O corpo e a alma deixam de ser vistos em sua mútua implicação significacional já quase milenar. Cada um era a expressão metafóricometonímica do outro: uma morte feia era o fim de uma alma feia. Um condenado por uma falta grave era jogado a apodrecer entre as imundícies, era jogado aos animais, era esquartejado, tinha seu cadáver penalizado com uma punição suplementar – porque seu cadáver era o reflexo de sua alma, porque o sofrimento do corpo era expressão metafórico-metonímica do sofrimento da alma. Os condenados são também condenados a expor sua decomposição, porque esta é também a da alma. Mas os justos, estes ressuscitarão com os corpos inteiros, porque não faz sentido o gozo de um paraíso sem corpo, porque não existe gozo sem corpo. Esta estrutura de idéias existe ainda no século XVIII, embora talvez não seja mais representativa do espírito dominante. Lebrun (1975) relata um episódio, ocorrido em Château-Gontier, em 1718, que nos parece bastante ilustrativo do que estamos tentando dizer: aos dezesseis anos, grávida de seis meses, tentando fugir à desonra pública, Marie Jaquelin se envenena. Seu crime é duplo, pois leva à morte também a criança. O cadáver de Marie Jaquelin é processado após ter sido exumado e a sentença logo executada: o corpo é arrastado com a cabeça para baixo, o rosto encostado na terra, até a praça pública, onde o carrasco extrai do vente da infeliz o corpo da criança. O cadáver da criança é levado para um cemitério onde habitualmente são enterradas as crianças mortas sem batismo; o de Marie Jaquelin é injuriado, pendurado pelos pés, queimado em uma fogueira e as cinzas lançadas ao vento. Observemos que o carrasco se fantasia de parteira e faz com que Marie Jaquelin 'dê à luz', para separar o corpo criminoso do corpo inocente. Isto feito, encaminha cada um para o seu destino, porque a cada um corresponde ******ebook converter DEMO Watermarks*******
uma coloração de alma que o destino do corpo exprime: à mãe correspondem as cores do inferno; à criança, a incapacidade de penetrar no Céu, a imposição do Limbo e de seu cemitério determinado. A brutalidade e o desprezo em relação ao corpo-alma de uma expressa, por contraste, a atenção e a dignidade que se reserva ao corpo-alma da outra. Entretanto, com o desenvolvimento da oposição corpo/alma e com a valorização desta última, as coisas mudam, mesmo para os condenados. Desde a Reforma, são outras as atitudes dos religiosos em relação a eles. Não se considera mais (aliás, a Igreja nunca o considerou plenamente) que o criminoso seja a expressão do Mal, que sua corporeidade concretize o Mal e que sua alma já esteja no inferno. Tal suposição justificaria em última instância todos os sofrimentos que ao supliciado se impusessem e tornaria inútil e mesmo sacrílego todo e qualquer esforço de lhe prestar assistência espiritual. Progressivamente vai-se afirmando a idéia de que o supliciado é reabilitado pelo seu arrependimento e pelo seu sofrimento, mas este sofrimento agora é visto como castigo de um corpo, fonte de tentações, que se deve desprezar. Aos poucos, vai-se impondo a obrigatoriedade da presença de um sacerdote, de um confessor, ao lado do carrasco. Por este caminho, a morte do condenado poderia até – coisa inconcebível durante a Idade Média – ser melhor que muitas outras e oferecer-lhe de maneira segura a salvação eterna. Não nos iludamos, contudo. A separação corpo/alma dá nascimento também à negação da imortalidade da alma, negação à qual aderiu boa parte dos pensadores do século XVIII. Tais pensadores pretendem se desligar definitivamente de tudo o que não diga respeito à única coisa que interessa, isto é, a vida. Para eles, a morte passará a ser um 'acidente natural', desagradável, mas inevitável (Choron, 1969). O melhor que se poderia fazer era não pensar muito sobre isto e continuar vivendo, fazendo todo o esforço possível para melhorar as condições de vida na Terra, já que fora dela não existe outra vida. Eis o que sobre a morte escreveu La Mettrie (1709-1751), autor de um trabalho intitulado L'Homme Machine: "eis nossos projetos para a vida e para a morte: durante a vida, até o momento da morte, ser um epicurista sensual, mas no momento da morte me comportar com a firmeza dos estóicos". E ainda o que em seu Des Progrès de l'Esprit Humain (1794) prevê Condorcet: deve chegar um tempo em que a morte não será mais que o efeito, ou de acidentes extraordinários, ou da destruição cada vez mais lenta das ******ebook converter DEMO Watermarks*******
forças vitais, e em que enfim a duração do intervalo médio entre o nascimento e esta destruição não tenha um termo assinalável. Sem dúvida, o homem não se transformará em imortal; mas a distância entre o momento em que ele começa a viver e a época comum em que, naturalmente, sem doença, sem acidente, ele experimenta a dificuldade de ser, não pode crescer sem parar? (apud Choron, 1969: 116-7) Tocamos aqui os dois filões que a divisão do humano proporcionou à ideologia ocidental. Por um lado, a hipervalorização da alma, com o correlativo desprezo pelo corpo, abre os caminhos à incomensurável riqueza que poderá ser produzida e acumulada a partir do desenvolvimento da alma e da exploração do corpo: característica de um sistema capitalista ainda não extremamente industrializado, que encontra no saber (tecnologia) o seu projeto e no corpo (trabalho) o seu meio de produção fundamental. Por outro lado, um estágio posterior, característico de uma sociedade industrialmente desenvolvida, em vias de se liberar do corpo como meio de produção fundamental: a hipervalorização ideológica do corpo – do corpo 'liberado', medicalizado, estetizado, vivo, 'amortal', eternamente consumidor (que Condorcet, anteviu com precisão admirável), e que pertence a um homem disposto a viver esta vida como se ela fosse a melhor de todas, porque é a única. Se o primeiro filão retirou dos homens a dignidade de seus corpos, o segundo se prepara a subtrair-lhes a dignidade de viver. A separação do corpo e da alma, a transformação do corpo em objeto, faz dele também um objeto isolado de conhecimento, passível de ser observado de maneira fria e distante, capaz de ser visto como exterior ao espírito que observa. Nos séculos XVII e XVIII o corpo é aberto, exposto, decomposto, revirado, estudado, promovido enfim à condição de objeto de curiosidade científica. Sobre o cadáver, freqüentemente, passeia o olhar do médico; mas este olhar é desprovido do intuito de curar e se faz quase sempre acompanhar de um objeto cortante. Tudo isto é muito novo. Por toda a Idade Média, a sacralidade do corpo não poderia consentir uma tal postura. Ela seria certamente vista como uma sacrílega profanação, como uma crueldade indigna, injusta e imerecida. A abertura de um cadáver com finalidades educativas foi sempre considerada uma circunstância inteiramente excepcional, que exigia os mais minuciosos cuidados rituais. Ivan Illich (1975) lembra que uma primeira dissecação foi autorizada em Montpellier em 1375, imediatamente considerada coisa obscena e novamente proibida. Nova autorização, algumas décadas mais ******ebook converter DEMO Watermarks*******
tarde, foi concedida para uma única dissecação anual em toda a extensão do Santo Império RomanoGermânico. A Universidade de Bolonha foi igualmente contemplada com uma permissão de realizar uma autópsia por ano, às vésperas do Natal, por meio de uma cerimônia comportando uma procissão e diversos exorcismos durante três dias. E coerentemente com a visão medieval do corpo, os primeiros a serem submetidos a estas experiências anatômicas foram exatamente os criminosos: no curso do século XIV, a Universidade de Lerida e as universidades inglesas tinham periodicamente direito a alguns corpos de condenados. O desenvolvimento das práticas dissecatórias se compreende a partir da constatação do fato de que o morto perdeu todas as características de sua vida precedente, de que o seu cadáver doravante pode ser – a exemplo do que Durkheim pedirá mais tarde para os fatos sociais – tratado como coisa. Ele implica o abandono da crença na ressurreição da carne e o distanciamento das concepções mágico-religiosas do corpo. Com isto o ser deixa de ser um átomo, isto é, uma entidade indecomponível e intocável, e se transforma em aparelho desmontável em suas peças constituintes: divisível e fragmentável, como o sistema de trabalho que paralelamente se desenvolve na esfera da economia, cuja natureza funcional será em parte projetada no entendimento do corpo. A prática da dissecação anuncia o desmoronar de uma visão de mundo e constitui uma representação nova da vida, que resultará na descrição do corpo pela linguagem dos engenheiros e na sua estruturação intelectual por analogia às máquinas. Nos séculos XVII e XVIII os conhecimentos de anatomia brilham no alto da hierarquia dos saberes. O conhecimento de si exige agora o conhecimento do corpo. A filosofia passa a ser antes de tudo conhecimento da teologia natural, quer dizer, do prodigioso encadeamento de causas e conseqüências que permite aos organismos viver. Todos os que tenham alguma pretensão intelectual estão doravante obrigados a conhecer anatomia: os magistrados que devem se entender com os experts médicos e cirurgiões; os pintores e escultores que procuram reproduzir com alguma fidelidade; os médicos que queiram curar e mesmo o crente que pretenda conhecer Deus, porque os mistérios e espetáculos do corpo morto levam à int errogação da alma que o animava. Assim, progressivamente, o corpo vai se tornando objeto de curiosidade científica, de esnobismo intelectual e de sutil morbidez. Na pintura multiplicam-se as cenas de dissecação, as 'Lições de Anatomia' (a de Rembrandt é de 1632); na Holanda, por ocasião das feiras, as aberturas de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
corpos humanos eram realizadas publicamente, para maior satisfação da curiosidade coletiva. Esta curiosidade é algo mais que intelectual. É muito difícil, neste caso, fazer a delimitação perfeita entre o espírito científico e a sensualidade mórbida. As pesquisas sobre as cores do início da decomposição têm algo de tanatofílico e talvez expressem em linguagem dos séculos XVII e XVIII o que a 'beleza do morto' expressará no contexto do século XIX. Existe sem dúvida neste quadro uma certa aproximação entre Eros e Tânatos: as gravações e pinturas do século XVII concernentes às lições de anatomia são presentes trocados entre namorados, as visitas às dissecações são passeios que os casais fazem untos. Estas dissecações acontecem em grandes cerimônias, às quais acorrem todas as pessoas importantes da vida mundana: segundo Philippe Ariès (1977: 359-60), interpretando a gravura e a pintura do século XVII, as lições de anatomia eram "como as defesas de tese e o teatro dos colégios, uma grande cerimônia social onde toda a cidade se encontrava, com máscaras, bebidas refrescantes e divertimentos". Entre o ritual medieval-renascentista e a cerimônia dos séculos XVII e XVIII relativas à abertura e estudo do corpo humano, quanta modificação nas representações sobre a vida e a morte!
******ebook converter DEMO Watermarks*******
11 Higiene, ciência e medicalização: morte natural Durante todo este trabalho viemos percebendo que a morte 'natural' não existe para a maior parte das sociedades. Observamos que toda morte é pública, coletiva, social – sempre resultado de uma vontade adversa. Um problema, enfim, muito mais 'sociológico' que 'biológico'. Em certo sentido, a categoria de 'biológico' é resultado da separação entre o corpo e alma: "a biologia supõe fundamentalmente a dualidade da alma e do corpo" (Baudrillard, 1979: 48 – grifo do autor). Dessa dualidade nasce a Morte, a morte verdadeira, tal qual a conhecemos: porque, de certo modo, essa dualidade é a morte mesma. A liberação da alma e sua transcendência em relação ao corpo transformam-no em objeto, em dejeto: ele não pode ter outro destino senão a morte. Como em qualquer cultura, é preciso exorcizar a morte, é preciso dominála. Entretanto, estamos diante de uma cultura diferente: a morte será exorcizada de modo diferente. Até o advento da ciência moderna, a percepção da incapacidade humana se expressava na linguagem da religião. A vontade de Deus, a boa ou a má sorte, governavam os destinos humanos. Havia técnicas de intervir sobre estes fatores, mas os desígnios de Deus e da fortuna eram inacessíveis ao homem: a magia e a oração poderiam mudar o fluxo das coisas, mas este dependeria sempre da vontade de Deus – e contra esta nenhuma transformação era possível. A partir do século XVI esta concepção passa a ser crescentemente inaceitável. Com a separação do corpo e da alma, dos assuntos naturais e dos assuntos considerados verdadeiramente humanos, as coisas da alma são distanciadas ou colocadas entre parênteses. Começa-se a considerar o homem como uma das espécies biológicas, seus processos fisiológicos submetidos a profunda investigação científica. Existe aí um problema muito especial. A ciência, que insere o homem na natureza, dota-o ao mesmo tempo da capacidade de manipulá-la, de transmutar umas sustâncias químicas em outras, de criar substâncias artificiais, de modificar o fluxo natural das coisas, de alterar as leis da genética ou fazê-las operar em seu favor. Enfim, dota-o da capacidade de mudar o mundo à sua vontade. Mas submeter o mundo à vontade é próprio de um deus, não de um homem; de um ser imortal, não de um mortal. É preciso exorcizar a morte: transformá-la urgentemente em algo natural, porque é a natureza que os homens agora sabem poder controlar. O conceito de 'morte natural' aparece como a colocação de um problema, como a ******ebook converter DEMO Watermarks*******
montagem de uma extraordinária equação cujo desenvolvimento se prolongará até os nossos dias e seguramente nos ultrapassará: um sonho louco de transformar a natureza do homem, dotando-a da natureza dos deuses e, principalmente, da imortalidade no aqui. Este projeto está intimamente ligado ao imenso programa de domínio da natureza e particularmente à história da medicina. Bacon (1965: 209) chama atenção para o fato de que o dever da medicina é o prolongamento da vida: "Nós o dividiríamos em três partes, a primeira das quais é a conservação de saúde, a segunda a cura das doenças e a terceira o prolongamento da vida". Este último dever é o mais recente. Esta estratégia não é difícil compreender. Para imortalizar o homem, a ciência o introduz no domínio da natureza, isto é, coloca-o dentro das fronteiras do que é mortal. Mas este território é também aquele que o homem pode modificar através da ciência. A concepção de morte natural que encontramos no início da Idade Moderna pressupõe a capacidade humana de intervenção sobre as leis da natureza e o desenvolvimento do ambicioso projeto de supremacia sobre elas. Ao mesmo tempo, a noção de morte natural é coerente com o espírito das classes que então emergem: ela é um protesto contra a brevidade da vida, porque, se a morte não deriva mais do arbítrio das forças do além, mas de causas a que os homens estão submetidos enquanto partes da natureza, ela deriva, por conseguinte, de causas que os homens podem, senão abolir, ao menos controlar (eliminando a morte violenta, a morte precoce, a morte casual...). Assim, a morte 'natural' transforma-se rapidamente em uma aspiração e logo em um direito tácito das classes dominantes e emergentes, que passam a cultivar o ideal da morte natural, isto é, acompanhada medicamente, sem sofrimento e que acontece em idade avançada. A história da morte natural é também a da medicalização da morte e da 'luta contra a morte'. Aqui encontramos novas distinções, novas discriminações, características da cultura ocidental moderna: a morte sempre tinha sido uma; não se pensava muito sobre suas diversas formas. Era a vontade de Deus e ponto final. Protestar contra a decisão divina, um sacrilégio. Agora a morte se divide em duas: de um lado, uma morte considerada normal, natural, porque afinal de contas (por enquanto) tudo deve terminar; de outro, uma morte outra – anormal, indigna, inaceitável – que se pode atribuir a uma causa externa não natural (isto é, não controlável). Aos dominados, é claro, está reservada esta segunda morte, a morte 'não-natural'. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
A medicalização da morte é também recente. O terapeuta tinha tradicionalmente duas obrigações fundamentais: por um lado, ele podia ajudar seu cliente a encarar a morte, tornando-a mais suave, ajudando o moribundo a suportá-la se houvesse obtido o consentimento deste. Curando ou ajudando a morrer, o trabalho do médico não assumia jamais o caráter de uma luta contra a natureza. Neste contexto a idéia de adiar a morte, de prolongar artificialmente a vida, não tem lugar: ela parece às mentalidades da época uma blasfêmia, uma ofensa à vontade divina e, mesmo, um contrasenso que adiaria os prazeres do paraíso. Além disso, o médico está obrigado a manter seu cliente a par de seu estado e inteiramente impedido de omitir-lhe a proximidade da morte. Quando fossem religiosos, os médicos estavam formalmente impedidos pelo Concílio de Latrão (1215) de continuar exercendo o papel de terapeutas diante dos moribundos, sobrepondo-se a este o de sacerdote. É no meio desta cena que o médico leigo começa a se apropriar da morte, mas não sem intensa disputa de poder contra os representantes da religião. Os conflitos são freqüentes: o confessor se reserva o direito de ser o único presente à cabeceira do doente no momento da expiração; os Concílios de Ravena (1311) e de Paris (1429) proibiram que os médicos se apresentassem no quarto de um doente se o confessor aí não tivesse comparecido anteriormente e incentivavam os médicos a não fornecer medicação alguma aos moribundos que tivessem recusado a presença de um padre. Todas essas proibições e exortações são, entretanto, signos de mudanças que apontam para outra direção. Nos séculos XVII e XVIII, os médicos terão já substituído na cabeceira dos moribundos os homens da Igreja e já estará largamente anunciada a morte quase integralmente laica do século XX. Além disso, começarão a se desenvolver os interesses dos indivíduos leigos pelos meios de se sentir bem, de conservar a saúde, de prolongar a vida, de perceber os sintomas das doenças, de discriminar entre os bons e os maus médicos, os medicamentos eficazes e inoperantes, e assim por diante. Tendo sempre a morte como contraponto e, mais particularmente, a morte 'natural', o médico, inspirado na oposição corpo/alma, desenvolve o seu conceito novo de doença e as formas novas de tratá-la. Da idéia de morte natural, a doença adquire o caráter de elemento exterior, de estrangeiro inimigo. Por este caminho, a doença se transforma em uma entidade estranha ao homem, exterior a ele, distante dele, capaz de comportar um tratamento médico específico, isolável dos outros aspectos da sua integridade humana. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
O interesse do médico no final do século XVIII se desloca do doente para a doença. O indivíduo doente se transforma em um 'caso', portador de um rótulo patológico qualquer. Rapidamente o hospital se transforma no depósito desses casos, aonde afluem os pobres, dispostos a expor os seus males a qualquer médico disposto a tratá-los. Em troca, os médicos os estudam. Os hospitais passam a constituir uma espécie de museu de doenças, onde os médicos e os estudantes vêm se exercitar, vêm aprender a tratar outros casos similares. Fora desses 'casos', fora das doenças nomeadas e catalogadas, das quais se sabe que ela é o fim previsível, a morte não tem sentido e o tratamento não encontra rumo. A morte antiga, diante da nova medicina, começa a deixar de existir: os desígnios de Deus e a força vital são progressivamente substituídos pelas 'doenças mortais', por uma multiplicidade de causas específicas que se transformam nos novos responsáveis pelos falecimentos. A morte foi deposta. Agora, diversas mortes começam a imperar, cada uma delas mais ou menos passível de ter sua causa específica dominada pelo saber do médico. Uma outra observação se impõe: a medicalização da morte e o conceito de morte natural estão estreitamente associados à emergência ao poder de uma nova classe. Tradicionalmente os médicos recusavam a obrigação de prolongar a vida; mas, agora, sob os estímulos dessa classe de pessoas que se recusam a deixar a vida, este tipo de prestação passa a ser muito bem retribuído: "este novo tipo de cliente é um homem rico que se recusa a morrer, que quer ir até o fim de suas forças e morrer em plena atividade. Ele só aceita a morte se ela o encontrar em boa saúde, com idade avançada mas sempre válido" . No início da Idade Moderna tais homens eram raros; mas nos meados do século XIX eles não poderão mais ser contados: "o pregador que esperava ir para o céu, o filósofo que negava a existência da alma e o negociante que queria uma vez ainda dobrar o seu capital estavam de acordo em pensar que a única morte conforme à natureza é aquela que os encontraria em suas mesas de trabalho" (Illich, 175: 185). Até então somente os reis e os papas se viam constrangidos a permanecer no comando de seus empreendimentos até o fim de suas vidas. Somente estas pessoas recorriam aos médicos durante a Idade Média e a Renascença com o intuito de serem ajudadas a permanecer nos postos de comando: mas estes eram médicos especiais. Os médicos da corte davam aos monarcas a mesma assistência que os barbeiros davam aos homens comuns: sangravam-nos e purgavam-nos. Além disso, protegiam-nos dos envenenamentos. Mas os reis ******ebook converter DEMO Watermarks*******
não esperavam viver mais que os homens em geral e não esperavam de seus médicos serviços especiais neste sentido. A nova classe de anciãos, ainda segundo Illich, via na prolongação da vida um valor econômico absoluto e pagava seus médicos na mesma medida, impondo a estes a obrigação de prolongar a vida o máximo possível. Envelhecer tornou-se um meio de capitalizar. Ao mesmo tempo, duas outras variáveis se associam para tornar possível esse sonho de prolongação existencial: por um lado, a difusão, entre os burgueses, do hábito de fazer com que seus filhos estudem passa a permitir que os velhos fiquem por um tempo maior ocupando os postos de comando (nesse sentido, a invenção da 'infância' pela burguesia, tem uma evidente significação política); por outro, a vida menos desgastante fisicamente que esses burgueses passam a levar começa a tornar este sonho materialmente realizável. Por esse caminho, a idéia de morte vai tornando-se cada vez mais difícil de aceitar por esses indivíduos e cada vez menos se vai sentindo a morte como uma possibilidade próxima. A conseqüência de tudo isso é um pouco paradoxal: de um lado, é cada vez mais preciso se preparar para a morte; de outro, cada vez mais, as responsabilidades sobre o que fazer após a morte são transferidas para os membros da família. O indivíduo quer cada vez menos pensar na própria morte e, mesmo doente, não é mais a maior parte das vezes que seu médico o advertirá da gravidade de seu estado e da proximidade do desenlace. No século XIX será já necessário interrogar o médico, para que diga alguma coisa sobre as possibilidades de vida de seu paciente. A resignação à idéia de morrer está longe no passado; a grande obstinação do tempo não é mais a própria morte – esta começou a se transformar em tabu – mas a morte do outro, a morte do próximo, do amigo, do parente. A partir do século XVIII e sobretudo no século XIX, por omissão do indivíduo, são os familiares que se ocupam da morte dele, temendo seu desaparecimento antes e cultuando sua memória e seu túmulo depois do acontecimento da morte. A burguesia inventa, portanto, um sentido novo para a morte e atribui a ela uma qualidade nova: a secularização. Neste palco novo, um personagem também novo aparece e esta aparição com o tempo vai adquirindo um peso cada vez mais considerável. Este personagem é o médico, que se apropria da morte porque não só foi obrigado a prolongar a vida de seus clientes, mas também porque no enredo da farsa que se desenrola seu papel é cada vez mais nítido: não falar em morte. Ele faz parte de um complô de silêncio cujo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
arquiteto muito freqüentemente foi o próprio paciente: é este que muitas vezes solicita a seu médico nada revelar sobre seu estado; é este que quer que seu estado fique secreto. O médico se transforma em detentor de um segredo profissional, que é também um segredo comercial na medida em que a vida de seu cliente é um capital submetido às regras do sistema econômico. Nesse contexto, é compreensível que a morte tenha se transformado em uma questão política e que o poder passe a se interessar em se apropriar da doença e do tratamento: aí está a origem próxima da morte contemporânea, sob tratamento hospitalar intensivo. Em contraste, no outro extremo da escala social a morte continua soberana: para os pobres, nada de tratamento médico, ou quase nada. Por isso, começam a descobrir na morte uma fonte de reivindicações – contra o não-tratamento de suas afecções, contra sua condenação a morrer de morte não natural. Silenciada e deslocada em um plano, a morte começa a manifestar-se em outro: no dos fantasmas individuais e coletivos. Primeiro, a dúvida (ou esperança) de que morto não esteja realmente morto, o pavor de ser enterrado vivo. Os casos se multiplicam de pessoas que são encontradas em posição diferente daquela em que haviam sido colocadas em suas sepulturas, de caixões arranhados, de vozes que se ouvem em proveniência de túmulos, de cadáveres que se autodevoram e assim por diante. No momento mesmo em que tentam iludir a morte, os homens começam a temer ser iludidos por ela, começam a temer a morte aparente. Este imaginário algumas vezes se transformou em instituição: no final do século XVIII e início do XIX, em Berlim, em Weimar e em Munique, uma espécie de estabelecimento foi criado, onde os mortos deveriam permanecer expostos diante de observadores atentos à sua menor manifestação até o início da putrefação, a fim de que antes do enterro houvesse a certeza de que o morto estivesse verdadeiramente morto. Muitos solicitavam a um parente ou amigo que testasse, com uma faca ou agulha, se a morte realmente tinha acontecido, ou pediam que se demorasse o máximo possível a fechar o caixão e a proceder ao enterro, tentando exprimir, ambiguamente, a angústia diante da possibilidade de uma morte precoce e a esperança de que a morte não fosse verdadeira, de que pudessem conseqüentemente retornar à vida. Em segundo lugar, o medo dos mortos vem se adicionar ao medo da morte. Histórias fantásticas se multiplicam, cujos protagonistas são pessoas falecidas que reaparecem, que voltam para ajustar suas contas com os vivos. Não se trata simplesmente de associação entre morte e inferno, mas do ******ebook converter DEMO Watermarks*******
desenvolvimento de um inédito fascínio pela morte, em que os esqueletos substituem os cadáveres em decomposição dos tempos medievais, exprimindo uma nova problemática diante da morte: crânios e tíbias são promovidos a significantes especiais, combinados a outros objetos (foices, relógios, enxadas de coveiros...) e dispostos em lugares familiares (mesas, prateleiras...). Nessas representações macabras, não se trata nem da evocação do ancestral, comum nas sociedades tribais, nem da convivência familiar com os mortos e a morte, característica dos idos medievais. A 'morte seca' é evocação da Morte – ameaçadora, inimiga, frustradora dos planos terrenos, interruptora do tempo linear, representante, enfim, da ansiedade de uma cultura que sabe cada vez menos como encontrar a morte e que se encontra confusa e inquieta diante de suas interrogações sobre a natureza da vida e sobre o sentido das existências individuais. Mas esta representação é também uma espécie de canto do cisne da simbólica funerária no Ocidente: a partir dela a retórica funerária se mostrará cada vez menos exaltada, o medo imporá silêncio sobre a morte e ela deixará de ser representada explicitamente. Como tudo, aliás, que diga respeito à morte, este processo é extraordinariamente complexo e comporta inúmeras contradições aparentes entre seus planos constituintes. Assim, como acabamos de ver, ao mesmo tempo em que pretende silenciar sobre a morte a época clássica é obrigada a defrontá-la em seus fantasmas, em seus delírios de reaparição de mortos e de mortes aparentes. Da mesma forma, o silêncio que através da sua secularização se quer impor à morte é combatido e contestado pelo poder de uma religiosidade ainda consideravelmente atuante. A morte, que se quer pôr à distância, continua em muitos planos ainda presente (do que a arte religiosa barroca parece ser um magnífico exemplo). Esse discurso religioso consiste essencialmente em lembrar a todos a fragilidade e a brevidade da vida, o seu caráter vão em última instância e o fato de que o corpo é coisa fadada à decomposição. Ele lembra a necessidade de preparação para a morte e a conveniência da dissolução do momento final por toda a duração da existência. Ele releva o episódio das mortes individuais como acontecimentos pedagógicos a que o maior número de pessoas deva assistir a fim de bem interiorizar as regras do bem morrer. Para se realizar, essa interiorização exige um exercício cotidiano. Diversos livros sobre a arte de morrer são editados e muitas vezes reeditados, todos lembrando a necessidade da preparação cotidiana, a importância de viver na ******ebook converter DEMO Watermarks*******
companhia da morte. Tais tratados assumiam a forma de regras práticas a observar, de receitas de bem viver/bem morrer. Michel Vovelle estudou de perto estes manuais e de dois deles apresenta os extratos seguintes, capazes de nos fornecer uma idéia bastante aproximada do teor desses textos: Enfim, para te propiciares uma morte santa, faz estas três coisas: 1 Toma todos os meses um dia para pensar mais seriamente durante algum tempo na morte; 2 Quando fores atacado por alguma doença um pouco considerável dispõe-te a tudo o que puder te acontecer de mais aborrecido; 3 Tem um amigo fiel que te advirta livremente a partir do momento em que tu estejas em perigo sem que seja necessário tomar muitas precauções para te dizer essa notícia. É o melhor conselho que eu posso te dar; porque muitos são sempre surpreendidos pela morte, por falta de encontrar um amigo sincero que queira lhes prestar este bom ofício. ( La Douce et Sainte Mort , Pe. J. Crasset de la Cie. de Jésus, Paris, 1680, apud Vovelle, 1974, p. 65-7) Em seguida, o autor nos apresenta o sumário dos conselhos que outro manual da época oferece a seus leitores: Disposições remotas: I Pensar todos os dias na morte: 1. Que é certa. 2. Que está próxima. 3. Que é enganosa. 4. Que é terrível. 5. Que é cruel. 6. Que é semelhante à vida. II Bem viver: 1. Evitar o pecado mortal e venial de propósito deliberado. 2. Atacar sua paixão dominante. 3. Amar a cruz. 4. Freqüentar os Sacramentos. 5. Praticar a oração e a obediência. 6. Ter uma grande devoção à Santa Virgem. III Fazer cedo seu testamento. 1. Fazer celebrar missas diante de sua morte. 2. Fazer seu testamento em boa forma. 3. Devolver os bens mal adquiridos. 4. Pagar suas dívidas. IV Manter-se fiel a algumas práticas dos santos, para pensar na morte e se preparar para ela: 1. Ao se deitar, colocar-se na postura de um morto. 2. Comer em cada refeição um pedaço de pão para alimentar os vermes que comerão o corpo. 3. Olhar as doenças como companheiras da morte. 4. Ter uma caveira no quarto e meditar sobre o que ela foi, sobre o que ela fez, disse e pensou; o que ela é, o que ela será e refletir sobre si. 5. Fazer seu Relicário e seu Túmulo, e os beijar todos os dias. (Oeuvres Completes, Grignion de Monfort, cap. III, n. 3, 'Dispositions pour bien mourir ', apud Vovelle, 1974) Já observamos que não é necessário preparar algo com que se esteja familiarizado. De fato, ao fim de uma vida construída sobre a idéia da morte, era de se esperar que o acontecimento derradeiro devesse ser facilitado e ******ebook converter DEMO Watermarks*******
vivido como algo natural. Mas na realidade isto não acontecia mais: a promoção da morte ao status de cena principal da vida, a frustração que ela comporta e a ameaça de punição de que está imbuída transformaram-na em momento terrível, que o indivíduo tem cada vez menos capacidade de enfrentar sozinho. Ao mesmo tempo, o indivíduo se vê no centro de um enorme cerimonial coletivo que faz de sua morte o momento de reflexão sobre as contradições mais agudas dos grupos sociais a que pertencia, contradições essas que estão presentes também em sua mente: a começar pela própria idéia de morte – que ele não queria aceitar, na qual não pensava senão a contragosto, para a qual foi obrigado a se preparar porque no fundo nela não acreditava – e que agora se faz presente nos quadros de uma ritualidade marcada pelo exagero massacrante da ostentação barroca. Esse discurso religioso sobre o caráter vão da vida não se opõe entretanto de maneira conservadora às tendências em vias de dominar o sistema socioeconômico da época. Esta idéia de vanidade brota no espírito dos homens da Igreja, mas rapidamente se infiltra nas mentalidades coletivas e passa a comandar as atitudes novas diante da riqueza, do prazer e da matéria. Tais felicidades terrenas não são mais desejáveis por si mesmas e por isso podem ser adiadas e submetidas a um programa 'racional'. Nesse sentido, a idéia de que a vida é vã é solidária à implantação do capitalismo: se o gozo imediato dos bens continuasse dominante, a idéia de investimento não teria podido se impor e a idéia de acumulação dos lucros teria sido absolutamente impossível. Retirada do circuito de fruição imediata governada pelo prazer, a riqueza adquirida se transforma em fonte de novos lucros. Compreende-se, então, por que esta exaltação ascética se erige no verdadeiro prazer terreno. Outra transformação fundamental caracterizando a relação da sociedade do Grande Século com a morte foi a laicização dos cemitérios e sua separação das igrejas bem como das cidades, sob impulso de uma ideologia higienista inspirada pela ciência. Vimos em algumas páginas anteriores que, durante a Idade Média, as sepulturas eram colocadas dentro ou ao lado das igrejas e estas no coração das cidades: o cemitério se confundia com a igreja e oferecia à população o melhor lugar para as manifestações públicas e coletivas da comunidade. A convivência com a morte inclui a proximidade com a decomposição, seja de modo figurado, nas artes, seja de modo concreto, nas exumações ou nas sepulturas coletivas que permaneciam meio abertas até serem completadas. Nos cemitérios aconteciam as coisas públicas, até aproximadamente 1750: ******ebook converter DEMO Watermarks*******
neles as pessoas iam passear, dançar, vender e comprar, lavar a roupa; neles se dava a justiça, se resolviam questões políticas da comunidade, se consumavam execuções, se faziam reuniões, representações teatrais e se deixava o gado pastar. Nos séculos XVII e XVIII a situação começa a mudar. A intimidade com os mortos, que sempre provocou a reprovação da Igreja, agora começa a lhe soar como verdadeiro escândalo. A utilização 'profana' dos cemitérios passa a ser objeto de vigorosos protestos da Igreja, mas desta vez estes protestos são seguidos de medidas práticas. Protestar contra a familiaridade com os mortos, a Igreja sempre o fez: mas agora começa a construir muros em torno dos cemitérios e ordena que as portas sejam mantidas fechadas. Coerentemente, a inumação no interior das igrejas se torna mais difícil, tende a desaparecer e o retorno ao cemitério surge como uma das tendências principais da época: um número cada vez maior de pessoas, que anteriormente se teriam feito enterrar nas igrejas, dirige-se agora para os cemitérios. Estas pessoas carregam consigo a vontade de ancorar as suas identidades nesses cemitérios. O desejo de individualização existia antes da separação topológica entre o cemitério e a igreja e correspondia a transformações que transcendiam o campo específico das representações funerárias. Através desse desejo, como cada indivíduo procurasse reproduzir no espaço funerário a sua individualidade, o mundo dos mortos passa a espelhar o mundo dos vivos de maneira quase direta, instituindo-se em "lugar de reprodução simbólica do universo social" (Urbain, 1978: 85). Assim, ainda segundo Urbain (1978: 103), no século XVIII, o espaço funerário apresenta a cena seguinte: em torno dos túmulos monumentais, com efígies prestigiosas de reis, rainhas, nobres, bispos e outros poderosos, existem placas, às vezes com retratos, freqüentemente com uma simples inscrição: são os negociantes e artesão; depois, existe também este enorme branco, este vazio discreto, este nada semiológico dos humildes, dos pobres, dos sem poder, que traduz a inexistência deles: neste mundo-espelho que é o espaço funerário, os pobres não se refletem! No Ocidente, se não se remete o morto à sua diferença, remete-se, ao contrário, os vivos à sua diferença social até mesmo na morte. (grifos do autor) Este espelho, que é o cemitério, reproduz a sociedade também em outras dimensões. A proximidade entre cadáveres e vivos, a que nossos antepassados estavam habituados, passa doravante a incomodar. Este quadro ******ebook converter DEMO Watermarks*******
é literalmente insuportável, do ponto de vista da sensibilidade do século XVII e dos séculos seguintes. É aí que a repugnância contemporânea aos odores e emanações que acompanhavam as práticas funerárias medievais encontra o seu nascimento. Em razão dessa intolerabilidade, é necessário modificá-las urgentemente. Subitamente, uma nova consciência urbanística e higiênica se manifesta, lembrando que determinados abusos não poderiam continuar sendo praticados, especialmente a facilidade demasiadamente grande com que se permitia a construção de moradas de mortos no meio das habitações dos vivos. Estas novas técnicas vêm advertir que os 'odores fétidos' exalados pelos cadáveres eram uma indicação da própria natureza de que eles deveriam ser postos à distância; além disso, estas teorias reabilitavam as decisões dos povos da Antiguidade no sentido de colocar os mortos em sepulturas periféricas. Uma imensa lista de argumentos se adiciona aos argumentos fundamentais: as casas agora são altas e as exalações que anteriormente se perdiam no ar são impedidas de se dissipar; tais emanações, transportadas pelo vento, se depositam nas superfícies das paredes e ameaçam provocar doenças contagiosas; os vizinhos dos cemitérios não podem conservar os alimentos, pois estes se decompõem rapidamente; o ouro e a prata, os objetos brilhantes, em geral, nas proximidades dos cemitérios perdem logo o lustre; as feridas nessas regiões ficam mais abundantemente supuradas; a decomposição dos corpos é causa de epidemias e as casas próximas aos cemitérios são sempre as primeiras a ser atacadas... Multiplicam-se nesta época as dissertações eruditas que pretendem provar o poder fatal dos cadáveres inumados nas igrejas, tornados agora responsáveis pelas mortes de crianças que aí se reuniam para aprender o catecismo. Algumas pretendem conhecer casos de coveiros que teriam sido fulminados ao romperem acidentalmente com suas enxadas o ventre de um cadáver. Outros textos ainda querem demonstrar o poder perigosamente corrosivo das terras em que uma grande quantidade de inumações tenha sido realizada. O objeto dessa repulsa é o cemitério na superfície e o cadáver na profundidade. Michel Vovelle (1974: 200-2) registra uma carta anônima cujo autor subordina a saúde pública ao tratamento individual dos cadáveres: Um doente morre e é mantido em sua casa vinte e quatro, às vezes quarenta e oito horas: será ainda necessário guardá-lo em um depósito, descoberto, durante dez ou doze horas (...). Eis um cadáver que lança ao ******ebook converter DEMO Watermarks*******
ar sua infecção perigosa durante cinqüenta ou sessenta horas; o movimento que se é obrigado a fazer com ele várias vezes, para o levar à igreja e de lá ao depósito (...) aumenta ainda esta infecção, fazendo-a sair. Esta infecção, já tão perigosa para um só corpo, quanto não será para vários, para a multidão de mortos que pode existir em Paris, e também por causa da temperatura do ar? (...). Assim, o interior de Paris será, a todo momento do dia e em todos os bairros, enchido de putrefação cadavérica e pestilenta. Contra esses perigos, a distância e o fogo são os melhores remédios: em 1709, em Paris, grandes fogueiras são acesas nas praças públicas para eliminar o escorbuto; durante as exumações acendiam-se fogos, como se fez em 1785 no cemitério dos Inocentes. Entretanto, é o distanciamento que será considerado a solução mais adequada. Os fenômenos que os médicos e a opinião pública crêem observar não são mais denunciados como coisas do diabo, mas como um aborrecimento natural, para o qual é necessário encontrar um remédio. A administração pública ataca o problema em duas frentes básicas: a primeira consiste em encomendar pesquisas a médicos sobre a periculosidade dos cemitérios; a segunda, em legislar sobre o assunto, impondo novas regras oficiais de relacionamento com os mortos. Enquanto isso, no terreno da religião, multiplicam-se os estranhamentos relativos às práticas de inumação dentro das igrejas, assim como os textos e sermões lembrando que nesses lugares se deve sentir o perfume do incenso e não outros odores... Em 1765, uma decisão do Parlamento de Paris regulamenta as sepulturas e a transferência dos cemitérios para fora da cidade; em 1776, uma declaração real proíbe o enterro dentro das igrejas e no interior das cidades; entre 1785 e 1787, o cemitério parisiense dos Inocentes é desmontado e os ossos afastados da cidade; no calendário implantado pela Revolução, um decreto de 23 prairial possibilita "sem necessidade de autorização, colocar sobre o túmulo de parente ou de amigo uma pedra tombal ou signo distintivo de sepultura"; um ordenamento de 6 de dezembro de 1843 virá limitar esta liberdade à aprovação do prefeito. No início do século XIX, depois de terem sido afastados das igrejas e cidades, o princípio de separação dos mortos entre si (melhor, das famílias dos mortos entre si) se impõe, através da prática de fazer uma sepultura para cada morto, porque assim "quase não haverá cheiro". Todavia, estes dispositivos legais não se fizeram e não se impuseram sem ******ebook converter DEMO Watermarks*******
concessões aos privilegiados. A decisão do Parlamento, que proibia a partir de 1º de janeiro de 1766 enterrar nos cemitérios existentes em Paris, ordenava também que examinar-se-ia se os cemitérios eram perigosos ou não; que nenhuma sepultura poderia ser feita no futuro nas igrejas, excetuadas as dos padres, dos superiores, dos fundadores e das famílias que têm capelas e jazigos; que se colocariam os cemitérios fora da cidade e além dos subúrbios; que os cemitérios seriam cercados por muros de dez pés de altura. (Ligou, 1974: 64) No mesmo sentido, a declaração real de 10 de março de 1776 limita o direito de enterro dentro das igrejas (artigo 1º), exige (artigo 2º) a construção de jazigos, afirma que o direito aos jazigos é incessível (artigo 3º), transfere os direitos das pessoas que podem ser enterradas dentro das igrejas dos conventos, do interior destas para o claustro (artigo 4º), exige (artigo 5º) que as pessoas que têm direito a serem enterradas nas igrejas paroquiais possam escolher seus lugares nos cemitérios, fixa (artigo 6º) o estatuto dos religiosos, precisa (artigo 7º) que os cemitérios que se descobrirem insuficientes para conter os corpos dos fiéis poderão ser aumentados e que aqueles que, colocados no recintos das habitações poderiam ser nocivos à salubridade do ar, serão levados, 'tanto quanto o permitirem as circunstâncias, para fora dos recintos antigos...'. Enfim, o artigo 8º concede isenções fiscais às municipalidades que comprarem terrenos para este uso. (Ligou, 1974: 65) Quanto aos pobres, um progresso: o decreto de 23 prairial do ano XII determina que seus corpos não serão mais superpostos, mas justapostos, e que nenhuma sepultura poderia ser aberta e reutilizada antes de um período de cinco anos. Além disso, os sarcófagos, que desde a Antiguidade eram privilégio dos ricos, começam a se 'democratizar' através da generalização do uso dos caixões e do enfraquecimento do costume de se enterrar os pobres diretamente no chão. Esta prática durou seguramente até o final do século XVIII, época em que muitos testadores solicitavam expressamente que seus corpos fossem enterrados em caixões – o que prova que a prática não era automática. Um século depois, as teorias científicas serão inteiramente outras e serão de novo coincidentes (por acaso ou não) com a opinião pública da época. O Conselho Municipal de Paris, segundo nos informa Philippe Ariès (1977: ******ebook converter DEMO Watermarks*******
533-4) encarregou em 1879 uma comissão de especialistas de examinar as possibilidades de tornar mais salubres os cemitérios então existentes. A resposta desses especialistas destrói um século de argumentos: "os pretensos perigos da vizinhança dos cemitérios são ilusórios...". De fato, diversas experiências haviam já sido feitas, demonstrando por exemplo que a água extraída de um poço em um cemitério "dissolvia o sabão, cozinhava os legumes. Era límpida, inodora e de bom sabor", ou que animais criados em pastos onde organismos estavam enterrados para se decompor apresentavam uma evolução normal de seus pesos, ou, ainda, que "o vapor d'água que se eleva do solo, das flores e das massas em putrefação é sempre micrograficamente puro" e que "os gases que provêm de matérias enterradas em vias de decomposição são sempre isentos de bactérias"; em suma, no que se refere aos cemitérios de Paris, "a saturação do solo pela matéria cadavérica não existe nem do ponto de vista dos gases, nem do ponto de vista dos sólidos". Mas, a esta altura, os mortos já terão sido separados e afastados. O cemitério moderno, como os cemitérios antigos, retorna ao exterior dos muros das cidades. O morto de agora, como os mortos antigos, é expulso dos templos. Em poucos anos, hábitos milenares são abolidos em nome das regras de higiene e do 'perigo' que eles representavam para a segurança pública. A oposição entre o corpo e a alma materializa-se também nas concepções e projetos arquiteturais e urbanísticos e os argumentos de higiene prevalecerão sobre os de dignidade, piedade e respeito aos mortos. Em dois anos, de 1785 a 1787, o cemitério dos Inocentes, por exemplo, foi revirado de todas as formas e dele foram extraídos "mais de 10 pés de terra infecta de fragmentos de cadáveres", foram abertas "40 ou 50 fossas comuns, das quais se exumaram mais de 20.000 cadáveres" e se deslocaram "mais de 1.000 carretas de ossos". Como observou Philippe Ariès (1975: 161), "oito ou nove séculos de mortos retirados de uma sepultura que muitos haviam piedosamente escolhido na sua última hora" e cujo deslocamento se decidiu a partir de princípios de salubridade ou finanças, nunca a partir de critérios de respeito aos mortos e de afeição à terra em que repousavam os ancestrais (preocupação que certamente existia, mas que foi silenciada e dominada). A partir desse momento, a vida e a morte serão profundamente diferentes.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
12 A morte romântica A morte e a vida serão diferentes, mas continuarão ostensivamente presentes nos cotidianos dos homens do século XIX e do início do século XX. As execuções, por exemplo, mesmo tendentes ao desaparecimento e realizadas cada vez menos em público, serão ainda ocasiões de verdadeiras explosões da excitação coletiva: bastava que fosse afixado um decreto de execução para que ecos longínquos aflorassem imediatamente. Mesmo que alguns países europeus tivessem já abolido a pena de morte e que outros simplesmente a tivessem deixado cair em desuso, onde acontecessem, as execuções assemelhavam-se às cenas medievais de festa coletiva. Em 1807, em Londres, uma multidão de 40.000 pessoas vindas para assistir às execuções de Holloway e de Hoggarti "foi tomada de um tal delírio que, ao final do espetáculo, permaneceu sobre o terreno cerca de uma centena de mortos" (Camus & Koestler, 1972:24-5). Tamanha empolgação não afetava somente os membros das classes populares: construíam-se tribunas para as pessoas distintas, "exatamente como se faz hoje nas partidas de futebol"; as mulheres da aristocracia cobriam o rosto com uma máscara de veludo negro e faziam fila para encontrar o condenado em sua cela; jovens de famílias bem situadas atravessavam o país de um lado a outro para poderem assistir a uma execução. Tudo isso em plena época romântica, em que "as mulheres desmaiavam à menor emoção e homens barbudos versavam doces lágrimas entre os braços uns dos outros". Este quadro espetacular tende a reproduzir-se à sua maneira nas mortes do dia-a-dia: de um lado, a ritualização da morte corresponde a um imenso exagero no plano das manifestações públicas; de outro, estas manifestações são cada vez menos públicas. É verdade que se continua a morrer segundo os padrões tradicionais, isto é, diante dos outros. O moribundo espera a morte em seu leito e preside uma cerimônia organizada por um protocolo conhecido de seu ator e de seus espectadores. Dessa assistência, todos podem participar: o quarto do doente constituía um lugar público até o final do século XVIII, quando os médicos começam a protestar contra esta invasão. É claro, aí está uma modificação evidente: enquanto os espectadores se preocupam em ritualizar a morte, o desejo do médico é adiá-la e lutar contra ela. Assim, em nome das regras de higiene, o público da cerimônia de morte é mutilado e se reduz aos familiares do doente, adultos e crianças. No centro da cena, o padre confessa, freqüentemente em público, aquele que vai morrer – mas sua presença começa a comportar, para os olhares da época, uma certa ******ebook converter DEMO Watermarks*******
brutalidade e uma franqueza que incomodam tanto quanto consolam – e o moribundo, do alto de seu poder patriarcal, abençoa cerimonialmente os sobreviventes e distribui instruções para o futuro. Esta cena tradicional podemos surpreendê-la no século XVIII através da descrição célebre que nos deixou em suas Mémoires o Duque de SaintSimon, a propósito da morte do rei Luís XIV. Ela é ainda a mesma do século XIX, mas contém modificações que a comparação ao modelo tradicional nos permitirá depreender. A morte do rei se desenrola durante quase um mês: sua saúde declinava nitidamente há quase um ano e seu médico "era o único que não se apercebia de nada" (talvez mesmo porque fosse esta a função do médico: calar-se). Entre 9 e 23 de agosto de 1715, ele se retira progressivamente da vida normal: deixa de sair, deixa de andar, deixa de ficar em pé sem apoio... De 23 a 31 de agosto o rei agoniza, e morre a 1º de setembro, às oito horas, com a idade de 77 anos, no 72º de seu reinado. As páginas de Saint-Simon no-lo mostram lúcido, com plena consciência de seu estado, resolvendo calma e organizadamente os seus negócios com Deus e com os homens: examina gavetas, queima papéis, enfrenta a ação de pessoas que querem levá-lo a prover cargos vagos. Confessa no domingo, 25 de agosto, e recebe a unção dos santos óleos. Em 26 de agosto, dirige-se às pessoas que o cercavam: Senhores, eu vos peço perdão pelo mau exemplo que vos dei. Devo agradecer a maneira pela qual vós me haveis servido e a afeição e fidelidade com que vós me haveis sempre distinguido. Eu estou contrariado por não ter podido fazer por vós aquilo que eu teria gostado de fazer. Os maus tempos são a causa disso. Eu vos peço para meu neto a mesma aplicação e a mesma fidelidade que vós tivestes por mim (...). Segui as ordens que meu sobrinho vos dará. Ele vai governar o reino (...). Sei que eu me emociono e que eu vos emociono também; eu vos peço perdão por isso. Adeus, senhores, conto com que vós vos lembreis algumas vezes de mim. Aconselha o delfim, o futuro rei Luís XV: "meu filho, tu serás um grande rei. Não me imite no gosto que eu tive pelas construções, nem no que eu tive pela guerra; procura, ao contrário, ter paz com teus vizinhos". Toma decisões concernentes aos funerais e ao destino de seu corpo; resolvendo, por exemplo, sobre para qual igreja deveria ir seu coração e como deveria ser aí instalado. Preocupa-se também com seu destino após a morte, revelando a algumas pessoas que não pensa que a morte seja terrível, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
advertindo seus médicos que "na vida ou na morte, tudo o que agradar a Deus" e à pergunta de seu confessor sobre se sofria, respondendo: "Não, e é o que me aborrece; eu queria sofrer mais, para a expiação dos meus pecados". As últimas palavras, após as orações dos agonizantes que recitou com a assistência foram: "Oh, meu Deus! Vinde em minha ajuda; apressai-vos em me socorrer!". O homem do século XIX continuará piedoso, sobretudo no momento da morte. Continuará a decidir, ao sentir aproximar-se a velhice, sobre a organização dos negócios terrenos, mas tenderá na maior parte das vezes a deixar para os familiares as providências concernentes ao seu funeral. Entre aqueles que o envolvem, contudo, no momento da morte, profundas transformações estão em vias de se operar: no momento do último suspiro, a família estará reunida ainda em torno do doente; os parentes mais velhos, a mulher, estarão perto de seu leito, inclinados sobre o moribundo, olhando-o diretamente; os filhos, entretanto, estarão um pouco afastados, intensamente dominados pela tristeza e pela desolação, impossibilitados de enfrentar com o olhar o desenvolvimento da cena. No século anterior, os mortos foram banidos: agora a morte passa a comportar um componente dramático de despedida quase insuportável. A cena de morte deixa de apresentar a serenidade do modelo tradicional: os últimos adeuses são agora dilacerantes, uma emoção quase incontrolável aflige os espectadores. As bênçãos, as recomendações derradeiras, as orações e os sacramentos tornam-se praticamente inviáveis nesse novo contexto emocional. A angústia de morte, de que o moribundo era atacado desde os tempos finais da Idade Média, é agora partilhada também pelos participantes da cena: o medo da morte abate-se também sobre sobreviventes. Penetra-se no tempo da morte do 'outro' ou, segundo a expressão de Philippe Ariès da "morte de ti": a perda do ente querido se transforma em algo intolerável e o luto começa a fazer fronteira com a loucura. Três grandes e fundamentais modificações a observar. Em primeiro lugar, a apropriação das coisas da morte pela família: a partir do século XV, até o início do século XVII, o indivíduo tinha praticamente uma relação pessoal com a morte: resolvia suas coisas, redigia seu testamento, compunha freqüentemente o seu epitáfio. Essencialmente, via o indivíduo na morte um momento excepcional, em que sua individualidade recebia forma definitiva: ele não se sentia senhor de sua vida senão na medida em que se sentisse senhor de sua morte. A partir do século XVII, o indivíduo passa, por um jogo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
mútuo de interesses, a dividir essas responsabilidades com a família. No século XIX, a apropriação familiar da morte estará realizada e atingirá nos inícios do século XX o momento de apogeu. Em segundo lugar, a morte no leito é menos pública que anteriormente. O moribundo tem agora em torno de si apenas a família mais próxima e os amigos mais íntimos. Desapareceram os representantes da comunidade. A fortiori, desapareceram igualmente os estrangeiros desconhecidos que por lá estivessem passando e que no quarto do doente se reuniam para um cerimonial ao qual ninguém se poderia furtar, ainda que, com o tempo, a tranqüilidade e indiferença dessas pessoas tendessem cada vez mais a contrastar com o desespero dos familiares. Nessa emoção dos familiares, encontramos a terceira característica nova. Durante cerca de mil anos, a atitude das pessoas englobava um misto de tranqüilidade e indiferença, que se quebrava apenas, e por um brevíssimo período, no momento mesmo da morte – momento único em que os gritos e as lágrimas encontravam aceitação. A partir do século XVIII, num processo que culminará na segunda metade do século XIX e início do século XX, a necessidade de exibir dor, de mostrá-la à comunidade e o desespero da separação adquirem dimensões inéditas no Ocidente: geme-se, grita-se, desmaia-se, quer-se morrer, partir com o morto. Estes sentimentos demonstrados são na maior parte das vezes absolutamente reais e encontram uma profunda justificação nas relações entre as estruturas psicológicas e as estruturas sociais da época. De fato, nos períodos anteriores, a morte provocava tristeza. Mas era uma tristeza moderada, perfeitamente controlada, que não levava de maneira alguma ao desespero. Esta atitude sentimental antiga pode ser compreendida à luz das concepções então imperantes sobre vida e morte e especialmente sobre possibilidades de salvação. Ela comporta, entretanto, uma explicação mais tangível, observável no nível do relacionamento entre as pessoas: vivendo comunitariamente a sociedade, a família e a morte, a afetividade dos indivíduos não se concentrava sobre um número pequeno (e cada vez menor) de parceiros (os parentes próximos e mais tarde somente o casal e seus filhos): incluía também os parentes, no sentido extenso do termo, os vizinhos e os amigos. Naquele contexto, a morte, mesmo de uma pessoa muito próxima, não colocava em perigo a vida afetiva da pessoa. Como a noção de indivíduo não existia com seu sentido moderno, ele não era insubstituível e a comunidade era apta a oferecer aos sobreviventes uma variedade de substituições dos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
membros desaparecidos. Além disso, quer no plano ideológico quer no plano real, a morte era mais íntima e menos surpreendente: por um lado, antes dos progressos da longevidade individual, ela era um acontecimento sempre próximo, relativamente comum, que fazia parte dos riscos que a vida implicava; por outro, a interrupção da vida não comportava a frustração de que a imbuíram os projetos existenciais e econômicos da burguesia. Esta exaltação da afetividade está diretamente associada à promoção – característica da época – do morto e da morte ao status de objeto belo. Subitamente, sucedendo à repugnância do século anterior à idéia de morte e procedendo o reconhecimento dos traços cadavéricos como antibeleza fundamental, toda uma estética fúnebre começa a se desenvolver: o morto passa a ser belo, a 'beleza' do morto invade as conversas cotidianas, para aí permanecer latentemente até os nossos dias. A que atribuir esta modificação de sensibilidade? De novo fazemos contato com a composição contraditória das práticas e concepções funerárias. A promoção do morto à condição de coisa bela é contemporânea do pavor à morte. Acontece simultaneamente à recusa da morte e da perda da pessoa amada: por isso ela é antes de tudo uma recusa de reconhecimento do fim do ente querido. Ela é o contraponto da repugnância a imaginar, a representar e a enfrentar o corpo morto e a decomposição. A bela aparência do morto é também um signo de ausência de sofrimento físico, de uma morte que acontece sem morder o corpo, de uma agonia que se pretende tornar insensível. É ainda signo de ausência de sofrimento espiritual, porque ninguém neste quadro social pode acreditar que seu parente amado, que seu ente insubstituível possa ser condenado ao inferno: por isso o rosto do morto passa a exprimir tranqüilidade, tranqüilidade que pode ser um indício de um reencontro futuro com aqueles que aqui ficaram. A nova representação do Céu é a imaginação de uma espécie de jardim em que as pessoas separadas se reencontrem, em que as amizades desfeitas pela morte poderão se reconstituir e em que a comunicação poderá ser restabelecida (aliás, trata-se de uma época na qual se procura contato com os mortos e em que os 'aparecimentos' destes se multiplicam de maneira particularmente acentuada). Estranha beleza esta, entretanto, que pode ser falada, mas não pode ser vista, que é rapidamente ocultada, privatizada e distanciada. Estranha beleza esta, que sucede às representações macabras do período barroco, coexiste com a insuportabilidade de seu objeto e precede a consideração dele como algo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
indecente, análogo às secreções do corpo humano que não podem ser vistas ou tocadas sem um certo nojo. Estranha beleza esta, que é dissimulação do medo. O morto é dito belo, porque no fundo é pensado e sentido como temível e terrível: e o mesmo se pode dizer da beleza da morte. Esta simulação de beleza faz parte do cerimonial romântico de funeral e de luto, da exaltação da figura do morto, da confecção das estratégias de afirmação e reiteração do desespero, assim como da superação desse desespero. O luto romântico é ao mesmo tempo estas duas coisas: ele é a mise-en-scène da tristeza dos sobreviventes para os olhos da comunidade e é o procedimento comunitário (ou melhor, do que resta da comunidade) para a superação da tristeza, para a solidarização e amparo ao sobrevivente infeliz, para o reordenamento do grupo social. Sob o império do exagero, o luto romântico significa a dificuldade que os sobreviventes experimentam no que concerne à aceitação da morte do próximo. Sob o império da cor negra, não é mais apenas a morte de 'si' que é difícil de suportar, mas também a morte do outro, qualquer morte, a Morte, enfim. A associação de uma cor especial à morte não existiu sempre: ela surge a partir do século XVI, quando se começa a atribuir ao fim da vida terrena um caráter sombrio e, nesse sentido, é companheira da iconografia macabra. Além disso, o uso de uma cor especial para distinguir os enlutados corresponde, por um lado, a uma necessidade relativamente recente de discriminação entre o que está associado à vida e o que está ligado à morte e, por outro, de reconhecer a apropriação da morte por uma categoria definida de pessoas, os parentes do falecido: era desnecessário quando morte e vida não se opunham e quando a morte de um indivíduo era vivida coletivamente pela comunidade total em vez de por uma fração dela apenas. As condutas subseqüentes à morte eram tradicionalmente um laço a ligar mais solidamente a comunidade, sem comportar discriminação entre pessoas enlutadas e não enlutadas. Envolviam os parentes, os amigos, os religiosos, os ricos e os pobres e não objetivavam essencialmente o amparo a um sobrevivente individual dilacerado pela tristeza. Eram uma espécie de exorcismo de uma comunidade que se apressava em se reabilitar de uma mutilação: modificações do ritmo da vida social, visitas, missas, doações… no sentido de restabelecer o calor da vida social. Da tristeza transitava-se à alegria, do luto à festa, das lágrimas aos risos. No plano individual, o luto tinha também o efeito de proteger o sobrevivente contra os excessos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
eventuais de seu sofrimento: ele era obrigado a um certo tipo de vida social, a visitar e receber visitas de seus parentes, amigos e vizinhos. A presença de pobres, desses vivos-mortos, em todos os funerais não era sem sentido: mesmo sem a intenção explícita, ela vinha lembrar aos sobreviventes mais diretamente atingidos que, de qualquer forma, suas sobrevivências não eram as mais dolorosas. Estes pobres ajudavam a transportar o morto até sua sepultura e a chorá-lo. Em troca, recebiam esmolas, especialmente as capas, geralmente negras, com que os próximos do defunto se cobriam durante as cerimônias. Os pobres simbolizavam a comunidade total em sua realidade terrena. Por isso, eles não estavam nos funerais para serem socorridos nem para neutralizar a pobreza: ali eles estavam para expressar irreverentemente que a verdadeira dor está aqui, para tornar a pobreza gritantemente visível e mostrar que esta comunidade é composta também por aqueles que se agasalham com migalhas das cores dos privilegiados. O luto que se desdobra de modo ostentatório no século XIX tem ainda outra função. Ele não é mais a festa coletiva, mas um conjunto de gestos e expressões simbólicas que discriminam aqueles que têm algo a ver com a morte. Ele não é mais a dramatização da dor coletiva no teatro da coletividade, mas a mise-en-scène de um drama individual para uma platéia seleta, os íntimos e familiares. Este drama individual não tem mais limite de intensidade, a consternação é absolutamente arrasadora: coerentemente, o círculo dos próximos socorre o sobrevivente enlutado e procura diminuir sua dor. Ao mesmo tempo e paradoxalmente este círculo de parentes e amigos tende a aumentar e a agravar a dor individual: a expectativa de comportamento de que está imbuído é a de que o indivíduo sofra, de que sofra muito pela perda de um ente querido e que, à imagem do moderno sistema de divisão 'racional' do trabalho, sofra também em substituição àqueles que se sentem na obrigação de sofrer, mas que não chegam mais a experimentar este sentimento. Rapidamente, a ideologia ocidental vai mascarar este caráter coercitivo do luto romântico, ditado ao mesmo tempo pela solidão, pelo desamparo em que o enlutado se vê repentinamente e também pela tarefa de substituição por meio da qual ele se transforma em bode expiatório a resguardar a comunidade desses sentimentos incômodos. A tristeza do enlutado se transforma, então, em 'depressão', em dado da 'natureza humana', em objeto de estudo dos psicólogos. No entanto, esta tristeza e esta depressão individuais são contemporâneas da recusa ocidental de pensar na morte e ******ebook converter DEMO Watermarks*******
resultam precisamente da sobrecarga de uma realidade que, não querendo mais olhar de frente, a sociedade impõe ao indivíduo. Esta hiperenfatização da sensibilidade, que torna a morte uma coisa muito mais cruel do que outrora, alimenta a saudade e a reverência à memória do morto, erigindo a sepultura no templo especial onde este novo culto se desenrola. Este novo culto é inteiramente diferente e mesmo oposto às práticas medievais pelas quais os mortos eram entregues à igreja, para aí serem enterrados ad sanctos – pouco importando o lugar em que fossem colocados e nenhuma preocupação havendo quanto à conveniência ou necessidade de assinalar a identidade do ocupante de uma sepultura. Estas preocupações, como vimos, se desenvolvem a partir do século XIV e passam a dominar o universo funerário a partir dos séculos XVII e XVIII. Identificado como lugar de poluição durante o século XVIII, o cemitério não é ainda lugar de visitas sentimentais aos túmulos dos parentes. Contudo, no bojo do mesmo movimento que exclui os mortos, desenvolvem-se o desejo e mais tarde a obrigação de dotar cada morto de uma sepultura, exigindo-se que os corpos sejam enterrados lado a lado e não mais em superposição: assim, o cemitério adquire a imagem que ele hoje nos apresenta, de uma multidão quase interminável de sepulturas individuais. Essas sepulturas individuais trazem à consciência a presença de cada morto, mesmo que nem todas as sepulturas fossem ainda identificadas por intermédio de imagens e de inscrições. E o que é mais importante, estas sepulturas são signo da presença desses indivíduos no além. A conjunção do desenvolvimento da individualização, das transformações da afetividade e do aparecimento da sepultura-signo oferece aos espíritos dos séculos XVIII e XIX as condições de recusa do desaparecimento do ente querido e da vontade de continuar em comunicação com ele, de poder reencontrá-lo em um lugar determinado. Aí está a razão do surgimento de diversos projetos utópicos que pretendiam conservar o corpo intacto; de cemitérios em que se mumificaria o corpo por meio de soluções químicas, deixandoo visível; de projetos menos utópicos de conservar o morto em sua propriedade; ou ainda, de projetos bem factíveis de poder visitá-lo em lugar privado dentro de um cemitério público. É então que as concessões de sepulturas se transformam em prática corrente e que se começa a falar em concessões à perpetuidade, em jazigos perpétuos, e que se começa a construir sepulturas dotadas de formas híbridas entre a capela e a casa, para abrigar o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
indivíduo só ou acompanhado de sua família. É então também que o morto individual adquire uma espécie de imortalidade, alimentada pela lembrança dos sobreviventes e sustentada pelos jazigos 'perpétuos'. A sepultura individual oferece uma base material de reverência aos mortos. Esta irá transcender as divisões tradicionais entre as diferentes seitas religiosas ou concepções filosóficas, e será aceita tanto pelas diferentes Igrejas cristãs como por pensadores ateus e materialistas. Tal culto aos mortos será absorvido por crentes de todas as religiões e será apropriado pelas nacionalidades em busca de suas identidades, como símbolos de unidade. Como observou Philippe Ariès (1975: 90), "a visita ao cemitério foi – e é ainda – na França e na Itália o grande ato permanente de religião. Aqueles que não vão à igreja vão sempre ao cemitério, onde as pessoas se habituaram a florir os túmulos. Elas aí se recolhem, quer dizer, evocam o morto e cultivam a sua recordação". Entre os cristãos, esta sobrevivência-narecordação coexistirá com as crenças tradicionais na vida do além; mas, entre ateus e materialistas, esta eternidade-na-lembrança existirá, sobretudo durante o século XX, independentemente, sustentando a perenidade das amizades da vida no após a morte. Aceita por todos, esta eternidade-na-lembrança permanecerá segundo o mesmo historiador (Ariès, 1977: 465), "o grande fato religioso de todo o período contemporâneo" e constituirá, até a segunda metade do século, a expressão derradeira de representação da morte no Ocidente. Voltemos entretanto ao século XIX. O costume recente de sepultamento individual dota os cemitérios de um gigantismo inédito. Não possuir uma sepultura se transforma em algo inadmissível e não possuir uma concessão, algo vergonhoso. Ter uma concessão perpétua transformou-se em uma espécie de título de nobreza, freqüentemente afixado sobre as sepulturas. No mesmo sentido de exaltação da individualidade do morto, estas sepulturas começam a se cobrir de monumentos, muitas vezes de grandes dimensões, a lutar por todos os meios contra a possibilidade de o túmulo se tornar invisível e inidentificável. Estas concessões perpétuas não eram dadas a todos. Também não podiam ser objeto de transações comerciais. Desses dois fatos nasce o jazigo familiar, mantido entretanto por uma tradição já antiga. Esta nova forma de túmulo coletivo deriva das capelas que os ricos mandavam construir, para aí serem enterrados e para aí enterrar seus descendentes. Na origem e até o século XVII, quando o uso inumatório começa a prevalecer sobre o uso piedoso, estas capelas respondiam a uma ******ebook converter DEMO Watermarks*******
função mais religiosa que funerária. Por esta razão, as primeiras sepulturas coletivas dos cemitérios modernos são reproduções de capelas (embora, como vimos, houvesse um crescente movimento de laicização da morte) que apresentavam, em uma mistura típica, traços da arquitetura residencial – 'bons para pensar' a apropriação da morte pela família e a transformação desse local em verdadeira casa familiar. Em verdadeira casa familiar, pois este é também o tempo da desagregação terrena da família tradicional. De um lado, porque o advento das grandes guerras modernas expõe uma grande parte da população à morte e evidencia a fragilidade da família, este último bastião da convivência comunitária, roubando seus membros especialmente em um período de vida (início da idade adulta) em que a morte faz da reconstituição do grupo familiar algo particularmente difícil. De outro, a nova estrutura da sociedade é o maior responsável por este processo desagregador, uma vez que os imperativos da sociedade industrial e dos mercados que se desenvolvem não podem coexistir com a antiga organização espacial da família. Doravante, é preciso que o trabalhador esteja onde o mercado quiser que ele esteja e não onde seria melhor para a solidariedade do grupo familiar: sendo o trabalho uma mercadoria, ele deve estar onde puder ser vendido e comprado, onde puder ser comercializado com ganhos maiores. Desse modo, populações rurais se deslocam para as zonas urbanas para alimentar os centros industriais e comerciais; habitantes das cidades se mudam para outras cidades para sustentar o desenvolvimento dos centros políticos e administrativos. Destruída na vida, a família procura resguardar o que resta de si na morte. E o azigo familiar será, nesse projeto, o seu instrumento privilegiado. Durante o século XIX, a morte, que até o século XVIII era parte integrante do ato de viver, transforma-se em um acontecimento detestável e terrível, embora fascinante e atraente, que vem romper o andamento normal da vida. Em primeiro lugar, o desenvolvimento da noção de indivíduo e sua imposição sobre todas as dimensões da sociedade ocidental virão transformar a alma em elemento principal da personalidade humana, em quintessência da individualidade; virão fazer dos cemitérios intermináveis fileiras de sepulturas particulares e dos rituais funerários redes rarefeitas de relacionamento coletivo – inaugurando um novo culto cujos altares são as sepulturas individuais. Em segundo lugar, as transformações do imaginário religioso e as mudanças das concepções sobre a vida eterna. Elas amenizam o rigor do julgamento ******ebook converter DEMO Watermarks*******
individual no quarto do moribundo, transformam a condenação ao inferno em uma possibilidade aberta para os outros apenas (improvável para si e para os entes queridos) e promovem o morto à condição de objeto belo. Este movimento, como vimos, é dissimulação do medo na morte e da solidão na vida, assim como definitiva substituição, agora praticamente explícita, do temor do outro mundo pela pena de deixar este mundo. Em terceiro lugar, a invenção do abismo que separa o homem da natureza, a separação entre o corpo e a alma, a localização da morte no domínio estreito da corporeidade e a instituição de almas próximas a viver perto dos vivos, com os quais podem se comunicar e com os quais podem encontrar cotidianamente na lembrança ou diante das sepulturas que são a base material desse culto. Em quarto lugar, a localização das práticas funerárias e sua apropriação pela família, pela medicina e pelo poder público. Laicização que vai permitir a constituição de um discurso funerário relativamente consensual, com base no qual a partir das primeiras décadas do século XX os poderes públicos tentarão construir símbolos de unidade nacional. Enfim, o surgimento do cemitério moderno: retrato da sociedade, administrado pelos poderes públicos, aberto a todos os mortos, sem discriminação de suas opiniões religiosas, constituindo um campo neutro por onde todos os vivos e todos os mortos poderão passear. Neste novo cemitério, a integração dos dominados parece facilitada. A ver de perto, entretanto, os pobres aí estão para mostrar pela miséria de sua individualidade o fausto da individualidade dos dominantes. Tratava-se para os dominantes, não de proceder a uma abolição filantrópica das diferenças sociais na morte, mas de transformar os agentes sociais dominados em agentes conservadores, como eles, os dominantes, recuperando-os, assim, como diz Robert Jaulin, através de uma ilusão de questionamento do sistema... Nada mudou fundamentalmente sob o sol do Ocidente, apenas a esperança substituiu a resignação e a esperança faz viver e crer. (Urbain, 1978: 330-1 – grifos do autor) Nesse cemitério as oligarquias tentam por todos os modos esconder a decadência que a seus olhos a morte comporta, confrontando-se com a decadência dos pobres: as sepulturas são templos de mármore, monumentos sofisticados, verdadeiros edifícios luxuosos, de aço, de vidro, de concreto – obras de arte que contrastam com as sepulturas planas, mal encabeçadas por ******ebook converter DEMO Watermarks*******
um crucifixo pobre, cobertas por mato e castigadas pelas chuvas, habitadas por homens menores, cujas almas estão aí para serem transformadas em lumpemproletariado do além e humilhadas para a grande exaltação dos dominantes. Este cemitério é – à imagem da vida – marcado pela propriedade: como neste mundo, no qual quem não tem haveres não tem dignidade, no outro, no mundo do cemitério, quem não tem propriedade não tem individualidade respeitável. Em um mundo em que o econômico é rei, quem tem haver tem ser, quem continua tendo continua sendo: esta é a lei fundamental do nosso cemitério, que inventou concessões 'perpétuas' de sessenta ou de cem anos para nutrir a esperança e a ilusão de que o ter continuará a ser. Assim, separando o ter do ser e dispondo-os de maneira hierárquica, o Ocidente libera um imenso processo de discriminações e de hierarquizações que virão a separar a cidade do campo, a economia da ética, a alma do corpo, o indivíduo da comunidade, a pessoa do indivíduo, os sãos dos doentes, os vivos dos mortos... E a Morte estará sempre presente no coração desse projeto ocidental de desintegração.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
13 Uma revolução fúnebre A estrada que os historiadores das práticas funerárias ocidentais traçaram para nós possibilitar-nos-á, agora e nas páginas subseqüentes, apreciar adequadamente o significado histórico-sociológico de nossas práticas fúnebres contemporâneas. Mais particularmente, ela nos habilitará a avaliar o sentido político de práticas fúnebres que se insinuam, embora muitas vezes de modo embrionário, como características da civilização industrial plenamente desenvolvida e estabelecida. Através dessa viagem, pudemos perceber as inúmeras transformações que a imagem da morte sofreu na sociedade ocidental, mais ou menos paralelamente às reformulações que a própria estrutura da sociedade veio sofrendo. Não obstante, pudemos também perceber que, por detrás (ou apesar) dessas transformações, um certo fundo comum permaneceu relativamente imutável durante e através dos diferentes períodos históricos – uma permanência que ofereceu aos homens que a viveram uma ilusão de nãomudança. No curso das últimas décadas do século XX, todavia, nós presenciamos uma verdadeira revolução das práticas funerárias e dos pensamentos e sentimentos a elas associados. Esta transformação revolucionária, em duas palavras, consiste no seguinte: a morte, que sempre foi 'tudo' (sempre foi considerada absolutamente importante pela sociedade e pelos indivíduos), agora começa a ser olhada com aparente indiferença, desaparece do mundo do dia-a-dia, está em vias de tornar-se 'nada'. Padrões que vigoraram plenamente no Ocidente até o início do século XX conhecem uma franca decadência. A morte era um fator de comoção social nunca negligenciável, que se exprimia sempre nos detalhes dos comportamentos rituais: fechavam-se as janelas, acendiam-se velas, aspergiase águabenta pela casa, vizinhos, amigos e parentes compareciam, sinos repicavam, cartazes eram afixados noticiando o falecimento, serviços religiosos eram oficiados, condolências eram apresentadas à família do morto e um cortejo o conduzia ao cemitério. Os relógios eram paralisados, os espelhos cobertos, os velórios eram longos e freqüentados, as pessoas se vestiam de negro. Após o enterro, o tempo era preenchido por inúmeras visitas dos parentes ao cemitério e dos amigos aos enlutados… até que a vida retornasse ao seu ritmo normal e que as visitas ao cemitério se tornassem mais raras. Esta gestualidade é todo um esforço social para exprimir a tristeza pelo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
desaparecimento de um membro da comunidade, ao mesmo tempo que uma tentativa de superação dessa tristeza pela partilha dela com a comunidade, ou seja, pela socialização da dor. Mas o século XX modificou completamente essas práticas de descarregamento de lágrimas, gritos e lacerações que terminavam pelo domínio do cheio coletivo sobre o vazio individual. A expressão de dor foi proibida, sobretudo com a finalidade de poupar dela a coletividade; o luto foi abandonado à iniciativa individual e considerado quase uma agressão contra a comunidade (progressivamente passa a ser de bom tom guardar o luto como um segredo individual). Do indivíduo enlutado, espera-se que seja capaz de exibir sempre um rosto sereno – e não demonstrar dor transforma-se em signo de equilíbrio emocional. Analogamente, o luto é cada vez mais assunto de um número restrito de pessoas: ele se privatiza, tocando somente os parentes muito próximos (quando não desaparece totalmente). Elimina-se igualmente tudo o que fosse expressão de exaltação emocional: acabaram-se os jejuns, as abstinências, os fechamentos sobre si durante vários meses ou anos. Todos os signos distintivos das pessoas atingidos pela morte de um próximo (cor negra etc.) são apagados em nome da consternação e do cuidado de não perturbar as outras pessoas com assuntos tão desagradáveis. Assim, nas tinturarias de hoje não se vêem mais as placas que outrora anunciavam 'luto em 24 horas', um serviço de urgência que possivelmente contrastava com os hábitos do tempo, em que todos já deviam possuir suas roupas de luto. Os cortejos fúnebres são digeridos pela cidade. Não são mais nem as pequenas procissões que a pé percorriam os pontos principais das cidades, nem as carruagens puxadas por cavalos que com ar solene dominavam o ambiente, nem os clássicos carros funerários a motor que ainda despertavam atenções. Não: o cortejo fúnebre de hoje mal pode ser percebido. Os automóveis se perdem no meio de todos os outros e o furgão funerário se identifica cada vez menos como tal. Tudo se passa como se propositalmente se o quisesse ocultar, como se se quisesse atrapalhar o menos possível os sobreviventes e seus trânsitos urbanos. Do mesmo modo, desaparecem progressivamente as condolências, as visitas, as últimas homenagens. As próprias famílias 'enlutadas' solicitarão doravante que não se façam visitas, que não se enviem flores (essas flores que cada vez mais significam uma desculpabilização que se pode comprar), porque, conscientes, estas famílias se esforçam por evitar que a sociedade se incomode e que as pessoas pensem por muito tempo que uma morte tenha acontecido. Mesmo os lutos nacionais, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
como observou Louis-Vicent Thomas (1976), tendem a ser neutralizados: raramente se interrompe o trabalho, limitam-se os governos a decretar que as bandeiras sejam postas a meio-pau, reduz-se ao mínimo a duração do luto (assim, por exemplo, a morte do General De Gaulle provocou um luto oficial de sete dias no Senegal e no Egito, mas de um dia somente na França). A regra em nossa sociedade é a neutralização dos ritos funerários e a ocultação de tudo que diga respeito à morte. Veremos que os dois fenômenos estão associados estreitamente: porque nossa civilização nega a morte, não pode suportar sua ritualização; e, inversamente, por não possuir os necessários instrumentos rituais para enfrentá-la, a civilização ocidental moderna é obrigada a banir a morte e a negá-la por todos os meios. Nossa hipótese de base é a seguinte: este processo de supressão da morte não está absolutamente ligado às sensibilidades individuais das pessoas mais ou menos diretamente atingidas por um óbito; ele responde, ao contrário, a uma coerção social perfeitamente identificável, que obedece a princípios políticos inteiramente localizáveis, característicos de nossa cultura. As pessoas não encontram mais padrões de comportamento diante da morte. Das crianças são afastados os velhos, entre outros motivos porque são uma evocação da morte. Quando a morte acontece, a estas mesmas crianças, a quem hoje podemos explicar os complicados sistemas de tratamento eletrônico de informações e os detalhes da fisiologia sexual, dizemos que o morto fez uma viagem, que está descansando em outro lugar, que saiu e vai demorar a voltar... Os velhos mesmos não sabem mais como se comportar diante da morte e em toda parte o papel social de doente, ou melhor, de paciente hospitalar se sobrepõe ao de moribundo: ele se espera que siga as instruções médicas, que colabore até o fim com os médicos e os enfermeiros, sem pensar na morte, sem ensimesmar-se, sob pena de sofrer as represálias que os padrões de relacionamento pessoal hospitalar-paciente comportam. Não se fala mais em morte, embora se pague cada vez mais seguro de vida; não se pensa mais em morte, não se formulam mais conceitos para pensála, mas a ela se reage com sorrisos embaraçados, com silêncios reticentes, com desconversas que são signos do aparecimento de algo cuidadosamente reprimido. Tenta-se esconder a morte, fazendo-se com que seu tratamento seja responsabilidade de técnicos especializados, banindo-a completamente do domínio dos leigos, instituindo seu conhecimento em algo hermético e distante. Exalta-se a ignorância do que respeite à morte e o "tive ao menos a ******ebook converter DEMO Watermarks*******
satisfação de que ele não se sentiu morrer" substitui o "sentindo a morte próxima" que, como Philippe Ariès (977: 556) observou, caracterizou toda a história da morte no Ocidente. Em nome desta ignorância obrigatória a dissimulação da gravidade do estado de saúde de uma pessoa passa a ser a primeira obrigação dos médicos e dos familiares. Todos os signos que anunciavam a morte e em virtude dos quais os indivíduos para ela se preparavam são sistematicamente apagados. A presença do sacerdote passa a ser considerada como verdadeira monstruosidade, extrema crueldade contra o doente. Os derradeiros sacramentos são administrados somente (nos casos em que ainda o sejam) quando os doentes estejam inconscientes e quando os familiares se encontrem inteiramente sem esperança. Este silêncio é obrigatório, mesmo que se apóie sobre a mentira. No início, o silêncio e a mentira pretendiam proteger o doente contra sua angústia diante da morte; posteriormente, vêm desempenhar a função de fornecer uma confortável ilusão à comunidade, desobrigando-a de pensar sobre a morte, possibilitando-lhe fugir à emoção, banindo a morte da consciência de todos, permitindo, enfim, às pessoas continuar agindo como se fossem felizes ou, ao menos, continuar dando a todos a impressão de que o fossem. Em nome dessa ignorância obrigatória (mas não somente em seu nome) transferiu-se a morte para o hospital. Morre-se cada vez menos em casa, entre os familiares. Hoje e no futuro, morre-se em hospitais para onde os indivíduos doentes são deslocados tanto para aí serem tratados quanto para aí morrerem... É claro, pesam nessa transferência também o desenvolvimento das técnicas médicas e o fato de que muitos cuidados possíveis no hospital não são possíveis na residência do doente: os equipamentos são muitas vezes pesados e em número insuficiente, os tratamentos podem exigir intervenções freqüentes, os medicamentos podem exigir conhecimentos especiais para ser administrados... Não obstante estas razões de ordem técnica, não esqueçamos que a família já não é mais a mesma e que provavelmente o doente não encontrará quem dele se encarregue em casa. Não esqueçamos que nossas famílias pretendem oferecer a suas crianças um ambiente 'psicologicamente sadio' e que esta ambição é incompatível com a convivência com seres decrépitos, enrugados, decadentes, fracos, capazes de produzir contaminações físicas e psicológicas. Não esqueçamos que nossas famílias querem, para si e para seus doentes, ambientes assépticos e que a casa, paradoxalmente, não é suficientemente ******ebook converter DEMO Watermarks*******
asséptica para o doente, nem o doente é bastante esterilizado para permanecer no recinto doméstico. Não esqueçamos que famílias e doentes querem ambientes calmos e que nem poderá a família encontrar essa calma com a presença das contradições que o doente evoca, nem poderá o doente encontrar tranqüilidade no meio das contradições em que vive a sua família. Não esqueçamos que as famílias vivem em apartamentos, nas grandes cidades, e que os vizinhos aceitam a presença de um doente e a contigüidade da morte ainda menos que os familiares. Portanto, a expulsão do doente e a invenção do hospital como lugar aonde se vai morrer são contemporâneas do desenvolvimento da ideologia da higiene e da decomposição da instituição familiar: o hospital se transforma em asilo a proteger a família da doença e da morte, a proteger o doente das pressões emocionais de sua família, a proteger a sociedade da publicidade da morte. No hospital a morte não é mais a cerimônia pública que sempre a caracterizou na história do Ocidente, a que o moribundo presidia em meio a seus vizinhos, amigos e parentes. Este ambiente humano não tem nada mais a dizer. O doente também não. Ao encampar o doente, o hospital o despedaça, decompõe-no em peças constituintes. Ao fim de um longo processo de individualização, o indivíduo foi levado ao hospital. No hospital, ele perde sua individualidade e se transforma em número, fragmenta-se em órgãos que têm existências independentes; ele se descobre objeto de uma linguagem que não compreende, referente de uma língua que não é a mesma da vida cotidiana. Passa a ser gerido por máquinas que não conhece e que não pode controlar: tubos que penetram pelas narinas, pelos braços, pelos orifícios intestinais, pela boca; máquinas que fazem respirar, que purificam o sangue, que alimentam diretamente, que controlam as batidas do coração e o trabalho das células cerebrais; aparelhos que imobilizam ou fazem movimentar os membros... Nesse novo palco a morte se transforma em fenômeno técnico que o médico decreta quando resolve desligar os instrumentos: passa a ser um processo regulável que ocorre por etapas sucessivas de frustrações, isto é, por pequenas derrotas que o poder médico vai sofrendo à medida que o tempo passa. Assim, nem a família nem o indivíduo são mais senhores da morte. A primeira se desagregou e não quis mais saber da morte. O segundo se alienou de sua própria morte e a entregou aos médicos e suas máquinas. O momento final não existe mais. A morte, para o público, deixou de ser um processo e se transformou em notícia que o poder médico pode manipular em grau cada ******ebook converter DEMO Watermarks*******
vez mais considerável. O controle da morte se transformou em objeto e objetivo de ciência e os homens passaram a exigir desta o que esperavam antes da magia e da religião. O homem se transformou em objeto de sua própria morte, foi reduzido a uma condição menor, sem direito e sem vontade de saber que vai morrer. Transformou-se em ator de uma farsa da qual todos se sentem beneficiados e que todos fingem não conhecer. Para evitar a dor de pensar que a morte existe, o homem ocidental escolheu calar-se, instituir os fatos da morte em segredo que apenas o poder conhece e transformar os falecimentos hospitalares em signos de desenvolvimento econômico-social que, em nome do progresso, devem ser difundidos ao máximo (para a mais perfeita realimentação do sistema). A visão da morte é, portanto, inteiramente outra. Ela não é mais, como escreveu Monica Charlot (1976: 124), "definida metafisicamente como o ponto de passagem inevitável para uma outra vida, mas clinicamente, por aproximações científicas sucessivas". As concepções modernas do morrer, dominadas pela linguagem da medicina, supõem uma dialética complicada entre o andamento autônomo do organismo e as intervenções, voluntárias ou não, que sobre ele são operadas. Em decorrência dessas intervenções, a morte poderá ser postergada ou adiantada: as doenças poderão ser bem ou mal tratadas, os acidentes poderão ser evitados ou não, os hábitos de vida poderão ser mais ou menos saudáveis... A morte, de certo modo, se transforma em uma espécie de responsabilidade técnica que nada tem a ver com o andamento autônomo do organismo. As mortes-eventos são agora resultados de causas explicáveis e inteligíveis, mas essencialmente exteriores à natureza do organismo. Por este caminho, o organismo adquire uma espécie de imortalidade teórica – e a morte se transforma em acontecimento acidental, em inimigo externo que se quer (pode) recusar: se o homem morre, é por acidente, por culpa de alguém que não seguiu as instruções, por atraso da ciência que precisa ser incentivada, por interferência de um fator aleatório que vem interromper um projeto por natureza interminável: contra este fator devem-se tomar imediatamente as mais sérias medidas corretivas, restritivas, disciplinadoras, controladoras... Nasce assim o mito da imortalidade, ou melhor, em sua versão moderna, da 'a-mortalidade' do homem. Este mito tem suas raízes nos movimentos do século XVIII que separaram a alma do corpo e que promoveram o corpo a objeto de ciência, a coisa da natureza, mortal, mas sobre a qual se poderia agir desde que o poder de interferir se intensificasse e se desenvolvesse. O ******ebook converter DEMO Watermarks*******
poder se intensificou e se desenvolveu até o ponto de postular implicitamente que os organismos humanos são imortais por natureza e que a única coisa que impede a concretização prática dessa imortalidade é não ser o poder ainda suficientemente forte. Com isso, ele coloca o desejo de imortalidade a serviço de seu próprio fortalecimento e cria a esperança em seus súditos de desfrutar da eternidade sobre a Terra. Paralelamente ao aparecimento dessa nova concepção de imortalidade, observa-se o descomparecimento das antigas, quer no nível das preocupações cotidianas, quer no plano dos dados estatísticos – mesmo que os modernos conceitos de imortalidade coexistam ainda com crenças na existência de Deus (menos fortes que outrora, mas sempre presentes) e mesmo que coexistam com o pensamento de uma possível imortalidade na e através da natureza, à maneira dos materialistas (o homem morre mas a natureza continua, alimentada pela morte dos organismos). O pavor de perder a salvação eterna progressivamente se deixou substituir pela esperança de viver mais, de poder postergar a morte, de ser surpreendido por uma descoberta científica capaz de a cancelar. Dentro dessa nova escatologia a morte é quase sempre uma surpresa, porque sua possibilidade é dúvida tanto quanto certeza. Nessa moderna escatologia, a morte passa a ser preferida como acontecimento surpreendente e fulminante, porque assim se pode reduzir ao mínimo a angústia que ela comporta. Impõe uma nova estratégia de salvação: enquanto não for possível conquistar a imortalidade física, se a deve conquistar simbolicamente – por instrumento da empresa, das obras, do trabalho, das heranças e dos herdeiros, dos monumentos funerários... Desse modo, o materialismo burguês oferece aos indivíduos uma razão metafísica para viver neste mundo. E a metafísica, uma razão material para sobreviver no outro. Este outro mundo que agora nada mais é, entretanto, que as impressões positivas que sobre o mundo do aqui cada um tiver deixado – impressões por intermédio das quais continuará 'vivendo': contribuições ao bemestar coletivo, à cultura, à justiça, à liberdade... Garantias burguesas – em que os comunistas, apesar de discordâncias semânticas mais ou menos profundas, também crêem – de que a vida não se perde completamente com a morte. Esta é a imortalidade moderna, burguesa ou não: voltada para o mundo do aqui. De uma forma ou de outra, fisicamente ou não, é esta vida que não se quer mais deixar. A crença em que a morte não seja inerente à natureza do homem e em que ******ebook converter DEMO Watermarks*******
não estejamos a ela condenados, incentiva o desenvolvimento de meios tidos como capazes de transformar estas possibilidades em realidade concreta. Doravante, todos os meios são válidos, que permitam o afastamento da morte perene e sua substituição pela vida eterna. Vida e morte não são mais, nesses casos, termos metaforicamente empregados: nos Estados Unidos, por exemplo, há quem pense em fundar associações cujos objetivos sejam 'lutar contra a morte'; na França uma Sociedade Imortalista foi fundada em 1976 com o objetivo de ajudar as pesquisas sobre recuperação celular, rejuvenescimento, reanimação e esclarecimento de opinião pública sobre as possibilidades de prolongar a vida e de abolir a morte. No mesmo sentido, desenvolvem-se técnicas-tentativas de obtenção por meios químico-físicos da eternidade no aqui – do que a criogenização parece ser o exemplo mais ilustrativo. A criogenização é uma técnica de conservação que consiste em substituir o sangue do indivíduo, alguns segundos após ter sido considerado morto, por uma solução capaz de preservar os tecidos contra a decomposição e, em seguida, em reduzir a temperatura corporal a um ponto extremamente baixo, introduzindo-o em um cilindro isotérmico que, por sua vez, está colocado em uma espécie de central que cuida da manutenção de seu funcionamento. Aí o corpo aguardará até que o desenvolvimento da ciência permita a descoberta de meios de superação da(s) doença(s) de que o indivíduo teria morrido. Apesar da enorme incerteza que apresenta, a custos relativamente altos, o empreendimento se desenvolve com certa rapidez: diversas cidades americanas têm já suas centrais de criogenização, à espera do dia do Grande Degelo – versão em linguagem do século XX do Grande Despertar medieval! É claro que este sonho de imortalidade no aqui despreza todas as questões não estritamente ligadas à continuidade de existência biológica. A vida se reduz a um problema exclusivamente biológico sem importar a sua qualidade: viver é o que importa, qualquer que seja a vida. Perguntas como, por exemplo, se a vida após o degelo valerá a pena ser vivida, não são absolutamente formuladas. Onde estarão os amigos de antes? A mulher, os filhos? Que língua será falada no tempo do descongelamento? Terá o ressuscitado uma profissão? Como poderá ele ganhar esta sua nova vida? E sua 'quase-viúva', poderá ela contrair novas núpcias, dispor da herança do quase ex-marido? Existirão ainda todas essas coisas: dinheiro, núpcias, profissão? Tudo isso permite levantar a hipótese de que se trate, no fundo, de manipulação comercial de um sonho que permitirá ao cliente, mesmo em ******ebook converter DEMO Watermarks*******
caso de sucesso técnico, descobrir, após alguns milhares ou milhões de dólares de pagamento e décadas ou séculos de espera, que a mercadoria não era o que esperava. Encontramos aqui um exemplo cristalinamente claro de materialização da ideologia ocidental: conservar a vida, banir a morte, parar o tempo, apagar a história, exaltar a permanência, divinizar o poder. A criogenização exprime com rara nitidez até onde pode ir a ideologia individualista de nossa sociedade, onde os laços afetivos passam a não importar mais, onde uma vida sem afeto, em que os amigos e companheiros ficaram para trás, continua valendo a pena e pode ser tranqüilamente mercantilizada, transformada em algo que os ricos podem pagar. Ela nos mostra claramente que o poder se apropriou da vida e da morte (ele pode decidir quem será ou não congelado) e que um tempo pode chegar em que nem mesmo a morte seja uma porta para a libertação, pois nada impedirá que o indivíduo seja congelado contra a sua vontade, e descongelado quantas vezes quiser o poder – este poder que, como os deuses, poderá ressuscitar os mortos e imobilizar a história. Por esse caminho os antigos sonhos de ressurreição são substituídos no Ocidente pela vontade suprema de conservação, de conservação em todos os sentidos (idade, saúde, situação política...) – primeiro entre os poderosos, depois progressivamente entre todos. Os antigos teoremas sobre a imortalidade não convencem mais: uma espécie de insuficiência parece tê-los contaminado. É preciso substituí-los por algo mais convincente, por algo mais eficaz, mais coerente com o progresso da tecnologia, mais adequado a uma civilização de extremo desenvolvimento econômico e industrial. Assim se pode explicar a criogenização. Assim se pode explicar a arquitetura cemiterial. Assim se pode explicar a arte fúnebre contemporânea. Essas modernas concepções existem já em estado latente no culto dos túmulos do século XIX e início do século XX, em que o morto já não era mais reconhecido como tal pelos sobreviventes – em que ele era 'conservado' na memória dos seus. Este mesmo desejo de conservação, podemos surpreendêlo hoje em nossos cemitérios e em nossos objetos funerários, como o fez Jean-Didier Urbain (1978), em um trabalho absolutamente sedutor sobre o projeto significacional dos cemitérios ocidentais contemporâneos. O cemitério moderno é objeto de uma atenção relativamente recente. Até algumas décadas atrás, antes que o culto das sepulturas se impusesse, os cemitérios não recebiam os cuidados que hoje estamos habituados a ver. O costume de cada família cuidar das sepulturas dos seus e de as autoridades ******ebook converter DEMO Watermarks*******
públicas administrarem um cemitério como se administra uma cidade (limpeza, construção de vias de circulação, informações permitindo o direcionamento das pessoas no espaço cemiterial...) não existia, ou pelo menos não se havia imposto como prática geral. À medida que se desenvolve isto que estamos chamando de 'culto dos mortos', cada sepultura passa a ser ornada de flores, de objetos de arte, de retratos, de textos evocadores. Cada cemitério passa a ser objeto de preocupações estéticas, de planejamento urbano, de caprichos ecológicos. Os arquitetos contemporâneos, quando pensam a questão dos cemitérios, manifestam sempre o cuidado de integrálos ao cenário urbano, de descobrir para eles o melhor lugar. Não vigoram mais as atitudes do século XVIII que determinavam o banimento dos mortos em nome da higiene para fora das cidades: hoje, o afastamento dos mortos é pensado como uma medida a favor deles, como um intencional afastamento da confusão do mundo urbano, como a transferência deles a um lugar onde possam 'descansar em paz'. Por isso, os projetos mais modernos têm concebido os cemitérios como parques em que o repouso dos mortos se confunde com um retorno à natureza, quase como uma estadia prolongada na casa de campo tão sonhada, envolvida pelo verde cada vez mais raro. Assim, sob o pretexto de repouso dos mortos, o moderno urbanismo acaba oferecendo às grandes cidades industriais, muitas vezes, um dos únicos lugares vivíveis de seus territórios, ou pelo menos uma contribuição ecológica importante da qual na maior parte das vezes os habitantes urbanos não têm consciência. Entretanto, este moderno cemitério dificilmente pode ser identificado como terreno fúnebre por um passante não advertido. Ele se fantasia de parques nos quais as sepulturas são discretas, nos quais a morte é maquiada e por isso dificilmente visível em sua verdadeira fisionomia. Ele corresponde à versão moderna de imposição de silêncio à morte. Corresponde a uma simplicidade que se atingiu ao final do desenvolvimento de um complicado projeto arquitetural de que os cemitérios-cidades (compostos, como os cemitériosparques, de edifícios justapostos ou amontoados) participavam: integrar os mortos no mundo dos vivos, a partir da negação da morte. Os cemitérios-cidades clássicos, desenvolvidos a partir ou sob influência do seu banimento para fora do perímetro urbano no século XVIII, eram cercados por muros altos. Estes muros eram obrigatórios e assinalavam uma ruptura: constituíam uma barra, marcando uma oposição entre vivos e mortos, entre dois universos com identidades próprias. O cemitério-parque moderno, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
entretanto, tende a perder estes muros. Eles desabam, como desabaram todas as fronteiras com que a civilização ocidental se defrontou: este desmoronamento é o próprio processo por meio do qual os vivos devoram os mortos e os mortos perdem sua identidade característica. Embora a comparação, no ponto atual do presente trabalho, possa parecer precipitada, os mortos são vítimas de um processo similar ao que atingiu diversos grupos indígenas brasileiros: são encerrados em parques, em nome da proteção de sua tranqüilidade e da preservação de suas identidades. Este cemitério, que tínhamos caracterizado como um espelho de nossa sociedade, não é entretanto só isso. Ele não se limita a reproduzir a aparência: expõe igualmente a transparência de nossa cultura por meio de um jogo complicado de signos que se remetem reciprocamente. Ele é um repertório de pistas que a curiosidade convida a seguir – sobretudo no que respeita aos cemitérioscidades nos quais o empobrecimento semiológico não tornou ainda estas pistas escassas. As indicações que os cemitérios fornecem poderão levar-nos a descobrir de novo a intenção significacional deles: reter a dinâmica biológica, imobilizar a história, afastar qualquer idéia de revolução ou de decomposição, seqüestrar os cadáveres fazendo com que a idéia de morte se evapore das consciências, liquidar o 'outro' em sua diferença e alteridade próprias – enfim, abolir todas as descontinuidades no espaço significacional, que desafiam os dogmas de conservação e de continuidade sobre os quais o Ocidente quer se fundar. No cemitério contemporâneo cada objeto é um signo a desempenhar um papel significacional preciso em favor do imenso projeto de congelar o tempo. Os mausoléus, que eram capelas, se transformaram em casas muitas vezes luxuosas, obedecendo a estilos arquitetônicos atualizados, dotadas de ardins, de vidraças, ostentando o nome do proprietário... Nestas casas, o morto não está mais morto: ele possui um nome e um endereço. Existe, portanto: o tempo se transformou em espaço e se petrificou. O tempo se petrifica também nas flores, que agora são de plástico, que não murcham mais, que permanecem sempre idênticas a si, que são imitações cada vez mais perfeitas de flores naturais e vivas e que – principalmente – permitem aos vivos se preocupar menos com a existência dos mortos. O tempo se solidifica em nossa obsessão pela fotografia: na vida, fixando os momentos; na morte, conservando a imagem. É interessante observar que as fotografias, que em nosso cemitérios identificam as sepulturas, são quase sempre muito anteriores ao momento da morte, como se o desejo fosse o de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
conservar uma imagem bastante viva do morto. Quanta diferença aqui em relação às máscaras funerárias que, moldadas sobre o rosto do morto, pretendiam fixar e conservar exatamente sua fisionomia cadavérica! Ainda mais, a presença da fotografia em nossos cemitérios é perfeitamente coerente com uma sociedade em que as pessoas aprenderam a conhecer o real através de fotografias e por isso precisam fotografar a vida para senti-la real. Como diz uma publicidade (citada por Fuchs, 1974: 97-8) para venda de aparelhos fotográficos, "Vovô não está mais aqui. Mas, para nós, fuma como sempre o seu querido cachimbo. Filme! Assim você fixará um pedaço da vida!". A fluidez do tempo é solidificada pelos epitáfios que falam em 'lembranças eternas', que exaltam a perenidade do defunto. Ela é contestada pela solidez das pedras com que são feitas as sepulturas: pedras imperecíveis, que se transformam em metáfora da vida eterna. O tempo também não flui em um mundo cujas árvores estão sempre com folhas, em um mundo que escapa às variações climáticas das estações do ano. Estas mesmas funções significacionais vêm desempenhar os objetos de metais resistentes, o revestimento dos caixões com chumbo, a manutenção das sepulturas sempre limpas e polidas, para garantir que nada mudou, que tudo continua o mesmo, que a decomposição não se realiza... Obsessão tão forte de conservação, que às vezes o sonho se une à realidade: "a utilização de plástico", observou Louis-Vincent Thomas (1976: 355), "principalmente como revestimento dos caixões, desacelera consideravelmente a tanatomorfose". Esses signos pretendem dissimular a morte. Plantas disfarçam muros, escondem sepulturas sob argumentos de ordem moral, de calma, recolhimento, serenidade, intimidade etc. que devemos reservar aos mortos. Mas esses argumentos são apenas álibis: na realidade é a morte que se quer apagar, é dela que se quer afastar o pensamento dos vivos (Urbain, 1978). Sepulturas escondem caixões, que escondem corpos, que escondem... cadáveres... O cemitério é um imenso aparelho de fazer desaparecer e ao mesmo tempo conservar: ele é simultaneamente a barra de separação mundo dos vivos/mundos dos mortos e a dissimulação dessa barra. Tudo no espaço cemiterial é marcado por essa função significacional de neutralização (e o próprio cemitério por sua vez é dissimulado): oculta-se primeiro o cadáver, vestindo-o, envolvendo-o em uma mortalha, impedindo a sua visão, fechando-o dentro de um caixão; depois, oculta-se o caixão dentro de uma sepultura e a sepultura sob um monumento; enfim, constrói-se um muro a ocultar o espaço inumatório, muro este que é posteriormente ******ebook converter DEMO Watermarks*******
dissimulado por plantas, por árvores, por grades, por uma corrente, pela impressão de se tratar de um parque e não de um cemitério. Todos esses elementos, mortalha, caixão, grades, monumentos... são ao mesmo tempo signos de separação e neutralização da separação: "um trabalho incessante sobre a barra, situado entre a dissolução do objeto e a dissimulação do cadáver" (Urbain, 1978: 156 – grifos do autor) – um trabalho de ilusão dos vivos, de postulação da inexistência do objeto ocultado. É o cadáver que se quer ocultar por detrás da palavra 'corpo'. Ao longo de uma série de engavetamentos – roupa, mortalha, caixão, caixão exterior, caixão interior, sepultura, monumento funerário etc. – o cadáver é superado e substituído pelo 'corpo'. Eis a estratégia: vestir o cadáver, envolvê-lo com uma mortalha (ou cobri-lo de flores), fechá-lo em um caixão, depositar este caixão dentro de um outro, este outro em uma sepultura, esta sepultura sob uma lápide ou monumento funerário e, sobre tudo isso, escrever: 'aqui repousa o corpo de...'. No fim desse caminho, todo traço de desaparecimento biológico desaparece. Permanece em seu lugar um corpo, como o corpo de um criogenizado, pronto para despertar, não pertencendo mais à morte, mas aos vivos que o mantêm artificialmente em 'vida'. Substituindo o 'cadáver ' pelo 'corpo', esta semiótica trabalha sobre a barra, neutralizando-a ao mesmo tempo que a afirma: neutralizando-a pela negação do cadáver; afirmando-a pela postulação do 'corpo'. A barra que separa o universo da vida do universo da morte não é mais o cadáver, que não existe nesse discurso, mas o 'corpo' – o que equivale evidentemente a uma quase explícita negação da morte e à destruição da diferença entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Os sobreviventes podem ficar tranqüilos: este 'corpo' está protegido por caixões, sepulturas, roupas, monumentos, muros; ele está assimilado à dureza da pedra, à solidez da madeira de que é confeccionado o caixão. Ele é corpo e permanecerá corpo. Tudo é corpo: o caixão que protege, a lápide que dissimula, o terno que veste. Tudo é metáfora ou metonímia do corpo: o terno que lhe está contíguo, o caixão que reproduz estilizadamente suas formas e seu volume, a lápide que porta seu nome e sua fotografia... Esta estratégia de substituições é reforçada ainda por uma dialética entre conteúdos e continentes, entre significados e significantes – como observou o mesmo autor – que termina pela negação do conteúdo da sepultura, ou seja, do cadáver. Assim, os objetos funerários são livros abertos, caixas que contêm dados fisionômicos e biográficos do morto (nomes, datas, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
fotografias...), monumentos que contêm sepulturas, sepulturas que contêm caixões, caixões que contêm outros, que por sua vez contêm roupas, que contêm 'corpos'... Os continentes remetem sempre a conteúdos que são continentes, envelopes que contêm envelopes, que contêm envelopes... Assim, todo o espaço cemiterial se vê povoado de continentes, de formas que contêm outras formas, de formas que são conteúdos e que por isso negam de um modo sutil o vazio da sepultura, povoando-a de uma infinidade de signos que dão impressão de cobrir o vácuo sobre o qual se apóiam. Por isso, muitas vezes não é preciso que exista um cadáver para que exista sepultura (caso, por exemplo, de restos de soldados mortos em guerra), porque não é isto que se supõe existir dentro dela, porque a falta de cadáver não produz o vazio, porque é outra coisa que preenche uma sepultura: o que o objeto nega não é a própria fossa, mas sua vacuidade, sua insignificância, seu silêncio, sua escuridão... O objeto funerário assinala o não-vazio: ele semantiza o absurdo, conta o após-morte, faz da morte uma segunda existência... Por esta relação imaginária entre o visível e o invisível, o significante e o significado, o objeto se transcende, tudo se semantiza – o objeto e a morte. (Urbain, 1978: 32) Além disso, um jogo de redundâncias e reiterações vem reforçar este projeto significacional. O mundo semiológico dos mortos ocidentais é extraordinariamente monótono, extremamente repetitivo, cheio de significantes múltiplos para um mesmo significado, reproduzindo pela redundância a sua mesma obsessão: repetindo para fazer crer; repetindo mais ainda, para fazer esquecer. Sabemos que a redundância é um mecanismo significacional de redução da ambigüidade, de superação do ruído e de combate à entropia da mensagem. Todavia, a partir de um determinado limite (caso por exemplo de um cartaz publicitário que fique vários meses em um mesmo lugar), a redundância passa a desempenhar o papel oposto e a mensagem passa a não ser mais percebida (razão pela qual os publicitários substituem seus cartazes periodicamente). A redundância pode ser, portanto, duas coisas opostas – e é precisamente essa sua qualidade dupla que interessa ao projeto semiológico do cemitério: por um lado ela persuade, postula, torna claro; por outro ela faz(-se) esquecer, não (se) deixa perceber, oculta(-se). E mais, a redundância dos signos cemiteriais reproduz a idéia que os homens ocidentais têm do mundo dos mortos: um mundo sem novidades, sem mudanças, sem acontecimentos aleatórios, onde o tempo foi congelado, os ruídos silenciados, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
a história paralisada. Um mundo habitado por um povo que não faz senão se conservar, se repetir, se reproduzir eternamente igual. O mundo dos mortos é o mundo do fechamento por excelência, o mundo onde o tempo, ele mesmo encerrado, não pode mais fluir: tudo aí é incansavelmente igual. É, pois, o lugar do eterno existente, da eterna presença do objeto amado, o prolongamento em sonho do mundo dos vivos, a organização reprodutiva da ordem da vida, que denota claramente nossa sociedade como uma sociedade de conservação. (Urbain, 1978: 319) Desse modo, "de envelope em envelope", segundo a expressão de Roland Barthes (1976: 64), "o significado foge". De dissimulação em dissimulação, de repetição em repetição, de substituição em substituição, o cadáver desaparece, a morte se evapora, os vivos se esquecem de sua finitude e passam a viver um delírio de 'amortalidade'. Como fazem todos os mitos, evacua-se a realidade: o fato de que o homem é um ser limitado. Eis aí um discurso de poder que se postula eterno, postulando a imortalidade de seus súditos, fechando uma porta através da qual estes poderiam tentar uma chantagem libertadora; discurso que petrifica as existências deles, decretando-os mortos antes que a morte aconteça (porque, se não morrem não são vivos); discurso que os congela em prisões, asilos, hospitais, cemitérios e centrais de criogenização, até dispor dos meios de livrar-se do mal que os atinge. Assim como o cemitério-parque faz desaparecer a morte de maneira mais eficiente que o cemitério-cidade, a incineração é um procedimento mais radical de banimento que a inumação. Historicamente o Cristianismo considerou a prática de enterrar os mortos como um fator de autoidentificação, através do qual os cristãos se sentiam continuadores das tradições judias e se opunham às práticas crematórias, que consideravam tipicamente pagãs. A inumação, na história do Ocidente cristão, sempre se definiu como prática contrária à incineração, em nome do respeito que se deveria ter ao corpo após a morte. A partir de 785 a cremação é procedimento proibido, formalmente banido pelos poderes religiosos e seculares. Sua prática, por mais de dez séculos, será reservada como punição aos criminosos, feiticeiros e pecadores reconhecidos – até o século XVIII, quando ressurgirá justificada por argumentos higienistas, preocupados muito mais com a saúde dos vivos que com o destino dos mortos: em 1720, em Marselha, visando a combater a epidemia que então grassava, milhares de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
cadáveres foram queimados em cal viva. Em 1887, depois de diversos projetos não aprovados, a cremação foi autorizada na França, mesma época em que uma grande efervescência envolvia o tema em países como a Itália, a Áustria, a Inglaterra e a Alemanha. Desde então, o desenvolvimento da incineração se faz com uma rapidez considerável: na França, por exemplo, há cemitérios em diversas cidades (Paris, 1892; Rouen, 1899; Reims, 1903; Marselha, 1907; Lyon, 1914; Estrasburgo, 1922; Toulouse, 1972; Amiens, 1973), embora o número anual de incinerações não possa ser considerado exageradamente elevado: mais ou menos 2.500 por ano, ou seja 0,44% do número de mortos em 1974 (contra 0,23% em 1964), segundo dados que Daniel Ligou (1975) apresenta. Em compensação, estes números atingiam na mesma época 57,3% na Inglaterra, 45% na Alemanha Federal, 41,6% na Suécia, 40% na Checoslováquia, 37,2% na Suíça (Ligou: 1977). Trata-se, portanto, de uma prática nada desprezível, cujo desenvolvimento no Ocidente parece longe de estar terminado. Por instrumento da incineração os mortos são rapidamente reduzidos a poeira, as transformações biológicas são supressas e substituídas por um procedimento culturalmente controlado. Os argumentos tradicionais em seu favor – de que é mais higiênica, mais ecológica, mais moderna, mais econômica – não são absolutamente convincentes. O principal é que a incineração é espetacularmente redutora e radicalmente exterminadora: como disse Jean-Didier Urbain (1978), o fogo é o ultravivo que produz a ultramorte – a morte radical, a liquidação da morte, a morte dos mortos. Além disso, esta morte da morte, que a incineração produz, é produto da vontade social. A tanatomorfose cultural se impõe à tanatomorfose natural e afasta para longe o fantasma de uma decomposição sofrida. A incineração é praticamente a oficialização da decadência do culto das sepulturas, das visitas aos cemitérios, dos epitáfios e dos monumentos funerários: sobre 40 incinerações estudadas por Godfrey Gorer (1965) somente uma é acompanhada de uma placa e 14 são assinaladas por inscrições no 'livro de recordações' que se coloca à disposição dos visitantes. Para os outros, nada: suas cinzas foram espalhadas sobre o território do esquecimento como outras foram disseminadas sobre os oceanos. Evacuam-se os mortos, evacuam-se os signos, a mesma angústia, entretanto, permanece. Agora, reprimida, escondida, secreta. O progresso técnico que a incineração comporta não é mais que o progresso das técnicas de dominar os vivos, de instituir a morte como realidade impensável, como realidade ******ebook converter DEMO Watermarks*******
inexistente. No fundo desse silêncio coletivo os fantasmas individuais fazem suas danças macabras, roubando aos homens a consciência de seus limites, fazendo com que se acreditem amortais, por isso definitivamente presos ao tempo imobilizado. A extremamente alta temperatura da cremação desempenha a mesma função simbólica que a temperatura extremamente baixa da criogenização: fazer esquecer o morto, banir a morte, conservar a ilusão de vida através da abolição da noção de morte, através da decretação do fim do território onde os mortos vivem. E assim, produzir a verdadeira morte, a morte definitiva, a Morte. A morte se profissionalizou. A família transferiu o moribundo para o hospital que por sua vez o transferiu morto para as empresas funerárias. As estratégias mercadológicas dessas empresas subtraem o defunto de sua família mesmo nos casos raros em que esta esteja disposta a tomar por conta própria as providências necessárias. Mas a verdade geral é que a família não quer mais se encarregar desse problema. Não suporta mais a proximidade do moribundo, entregando-o aos hospitais e mesmo a empresas como a Threshold Society, de Los Angeles, que se especializa em prestar cuidados a moribundos: mediante uma certa quantia em pagamento por hora (7,5 dólares em 1975) um 'tanatologista' se coloca à cabeceira do doente, no lugar dos parentes que 'não podem' se dedicar ao mesmo (Thomas, 1978). Uma vez morto, são as empresas funerárias os grandes interessados pelo indivíduo. Essas empresas contam freqüentemente com a cumplicidade dos hospitais – adquirindo adiantadamente informações sobre a saúde dos doentes – e também com a da família do morto, que quer ver o 'problema' resolvido do modo mais rápido possível, mesmo que os preços sejam com freqüência exorbitantes. Nem as famílias sabem mais tomar as providências, nem a apropriação do mercado da morte pelas empresas funerárias permite que tais providências sejam tomadas por atores autônomos: empresas funerárias, fabricantes de caixões, construtores de monumentos funerários, compositores de epitáfios... estabeleceram já uma verdadeira ditadura econômica sobre o mercado, baixando a lei do 'morra, nós fazemos o resto', ocupando-se de 'tudo', desencarregando a família de tudo. Rentabilizar a morte é a razão econômica destas empresas. Multiplicam-se os objetos funerários, especula-se sobre os preços, utilizam-se sofisticadas técnicas de marketing e comercialização: nos Estados Unidos (Maertens, 1979), estimam-se em dois bilhões e meio de dólares anuais os recursos que circulam em função das empresas funerárias durante a década de 1970. Um ******ebook converter DEMO Watermarks*******
imenso mercado de desculpabilização, sem dúvida, que integra a negação da morte no sistema da vida, fazendo da morte, como escreveu Louis-Vincent Thomas (1978: 109-10), um evento "insidiosamente reduzido à medida do sistema: reificado, despido de todo simbolismo, despersonalizado, inscrito na linearidade temporal, objeto de operações comerciais, como um fato econômico qualquer". Nesse quadro econômico, a estratégia principal dos vendedores é incutir e explorar a 'culpabilidade dos sobreviventes' (Karsenty, 1977), levando-os a buscar o mínimo de culpa com o máximo de recursos – raciocínio que se aplica também a toda a empresa de conservação da vida, como os hospitais, as prioridades em matéria de política de saúde, os tratamentos médicos aos doentes graves, os seguros etc... Desse modo, como se tivessem consciência de que o desenvolvimento das concepções sobre morte no Ocidente não lhes é favorável a médio/longo prazo, tais empresas parecem querer tirar, de uma só vez, todo o lucro possível, aproveitando ao máximo o que ainda resta do romantismo do século XIX, impondo aos sobreviventes que comprem montanhas de flores, caixões de metal, travesseiros... Estas empresas não deixam entretanto de fazer concessões às 'mais recentes preferências do público', vendendo caixões que sejam 'belos' do lado de fora e 'confortáveis' do lado de dentro (já que quem os vai ocupar não é realmente um morto) e povoando seu discurso de eufemismos neutralizadores: 'sala de preparação' em vez de câmara funerária, 'ataúde' no lugar de caixão, 'caixão' ou 'féretro' significando corpo, 'corpo' no lugar de cadáver, 'cerimônia' em vez de sepultamento... Em conseqüência, são numerosos os sobreviventes que se endividam por muito tempo, às vezes até a própria morte, por terem querido dar a seus pais, a seu esposo, irmão etc. um funeral 'compatível', 'digno', 'à altura'... Por terem sido obrigados a colocar sua angústia à disposição do lucro de outrem. Outra conseqüência dessa comercialização da morte: a lógica do sistema impõe a produção em série. A criatividade tradicional desaparece, a morte se transforma em catálogo. Os catálogos contêm tudo: modelos de sepulturas, de caixões, de epitáfios, de alças de metal, de cerimônias fúnebres, de coroas de flores, de anúncios fúnebres – tudo já preparado, em conserva (ou congelado), pronto para ser consumido. Todos os produtos têm nomes que os identificam, como as marcas identificam os automóveis. Através da produção em série e apesar da multiplicação de objetos de consumo mortuário, as empresas fúnebres oferecem um discurso empobrecido, um discurso ******ebook converter DEMO Watermarks*******
redundante, incapaz de falar sobre a morte e por isso adequada a uma sociedade que quer fazer vigorar o silêncio. Um discurso cuja elasticidade se dá quase somente no sentido da hierarquia, em que as frases diferentes que se podem formar são unicamente aquelas que podem ser traduzidas em mais ou menos dinheiro, em maior ou menor consumo. Nesse mesmo sentido pode-se entender uma das mais recentes invenções dessas empresas, o funeral home e a tanatopraxia que lhe está associada, ambos imperando ainda quase exclusivamente nos Estados Unidos. Nesse país, até o final do século XIX, as providências funerárias eram quase uma exclusividade da família e dos amigos mais próximos, que cuidavam da inumação, da lavagem do cadáver, da sua vestimenta, da encomenda e às vezes da confecção do caixão, do transporte do defunto à igreja e ao cemitério, onde, à beira da sepultura, faziam uma prece comum. Até ser transportado normalmente o defunto ficava exposto na sala de visitas da família, cercado pelos amigos e parentes (Maertens, 1979). Os costumes modernos se opõem, todavia, a estas práticas tradicionais: cada vez se tolera menos a presença do corpo (doente ou morto) em casa, seja por convicções de ordem higiênica, seja por falta de condições psicológicas para enfrentar a realidade. Abandonado pela família, que não pode aceitar o desaparecimento do ente querido, pelos médicos, que se preocupam somente com o corpo doente, e pelos sacerdotes, que não se ocupam senão da alma, o cadáver se transformou, no século XX, em uma espécie de terra-de-ninguém, da qual os 'tanatólogos' das empresas funerárias rapidamente se apossaram, fazendo dele um dos grandes consumidores do sistema capitalista. Imaginou-se, então, colocar o corpo em exposição em um lugar especial, cercado de uma nova ritualidade, que desempenha as mesmas funções ideológicas que viemos percebendo no correr desse estudo. Esses funeral homes não são nem o ambiente personalizado da residência do morto nem o ambiente impessoal dos hospitais. Eles criam um ambiente novo no qual o morto é rei – e, como os reis, não morre. Um ambiente em que um mestre de cerimônia, o funeral director, comanda o comportamento das pessoas lembrando-lhes discretamente as 'boas maneiras' a observar em um salão funerário durante as cerimônias. O morto acolhe seus convidados, como se se tratasse de uma recepção: ele já foi lavado, embalsamado, cuidadosamente vestido, maquiado. Todo traço de morte foi eliminado: o ambiente é planejado para que a dor não aflore e não atrapalhe o bom funcionamento das coisas. Como se se tratasse de um coquetel ou de um vernissage, existe aí um ******ebook converter DEMO Watermarks*******
tom apropriado e um vocabulário conveniente cuja regra fundamental é a seguinte: a palavra morte – e tudo o que dela se aproxime – é uma obscenidade. Em nome do 'respeito ao defunto' e da 'preocupação de não traumatizar os vivos', os funcionários desses funeral homes cuidam da restauração do cadáver (apagar os traços de agonia), de sua conservação (disfarçar a tanatomorfose), de sua beleza (dando ao morto um aspecto saudável), de sua higiene (se não parece morto, não parece poluir), de seu ambiente (as pessoas se sentem mais à vontade, conversam mais livremente, em tom normal, ao som de música...). Em casos extremos, mas não raríssimos, o morto é colocado em posição de vivo, 'falando' ao telefone, sentado em seu escritório, maquiado, de óculos, pernas cruzadas, às vezes sentado em sua sala de visitas (living, em inglês). Ele está vivo, vai se mexer! Mas ele não se mexe, tudo isso é uma ilusão: o vivo quase-morto é na realidade um morto quase-vivo. Dominados por uma angústia silenciosa e por uma ideologia insidiosa, os sobreviventes não percebem o ridículo da farsa de que são personagens. E caem prisioneiros nas malhas dessa armadilha implacável e aparentemente paradoxal de negação e rentabilização da morte, em que morrer se transforma em uma transação comercial, em um ato que os vivos e os mortos desempenham como atores econômicos, em proveito da reprodução das relações de força do sistema social. Eis, então, em que se transformou a morte no Ocidente. Eis o destino dos ritos medievais que congregavam a comunidade, por intermédio dos quais, como vimos na primeira parte desse trabalho, todas as sociedades constroem um sistema especular por meio do qual vivos e mortos, vida e morte, se (auto) reconhecem reciprocamente e conseguem por referência a um outro lugar determinar a posição da vida no território da existência e a do homem no domínio da vida. Ocultando a morte, o moribundo, o cadáver, esquecendo as sepulturas e os ritos, maquiando e travestindo, queimando e congelando nossa sociedade destrói este complexo especular, decretando a alienação do homem diante da vida, a exaltação da vida contra a existência e a divinização da biografia contra a vida e contra a existência. Destruindo a idéia de morte, o(s) poder(es) do Ocidente erigem a vida em (falso) valor supremo e decretam a biografia individual como padrão de avaliação definitivo. Pela porta aberta do banimento da noção da morte e da postulação de que tudo é vida, o Ocidente inventa a morte verdadeira, o precipício definitivo, o não-tempo, o não-lugar, o não-pensamento, a não******ebook converter DEMO Watermarks*******
lembrança... Se a morte não existe, se só existe vida, como o Ocidente quer fazer crer a seus membros, toda a ação ocidental sobre o mundo passa como sendo produção de vida, criação e progresso: seu caráter arrasadoramente destrutivo poderá passar despercebido, a sociedade de 'consumação' e destruição poderá esconder-se atrás do mito da sociedade de consumo, de conservação e de progresso. O mito ocidental de conservação da vida, de amortalidade, de imortalidade, contém em si a Morte: o irreversível vazio que estamos em vias de produzir.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
Parte III - Do indivíduo à espécie 14 Um outro estilo de morrer O valor especial que parecemos atribuir à vida humana na sociedade ocidental tem uma história não muito longa. De fato, nem a morte representava o pavor que a ela atribuímos, nem a vida foi sempre o bem por excelência, a preservar e a acumular contra todos os outros. As concepções de morte imperantes no Ocidente foram em grande parte responsáveis por esta relativização do valor da vida. Contudo, razões de ordem infra-estrutural também se fizeram sentir, de modo ao menos igualmente marcante: é que a morte não estava ostensivamente presente apenas no nível das chamadas 'ordens concebidas'; constituía uma realidade cotidianamente vivida, cuja proximidade sempre foi parte integrante do existir. A onipresença da morte não poderia ser isenta de repercussões sobre os comportamentos e a relativa indiferença com que era vista não podia deixar de implicar uma certa indiferença no que concerne à valorização da vida. A freqüência mesma da morte, por si só, deveria implicar uma certa resignação. Isso era particularmente verdadeiro no que dizia respeito à morte de crianças: 25 a 30% das crianças medievais conheciam a morte antes que pudessem andar; 45 a 50%, se considerarmos os natimortos, os primeiros anos de vida e as épocas conturbadas. Como morriam? Atacadas por má nutrição, más condições de higiene, doenças infantis, certamente. Mas também por falta de precauções que poderiam evitar muitas mortes prematuras: exposição da criança ao clima, mães ou amas que dormiam sobre a criança e a sufocavam, falta de cuidados elementares com a sua segurança... Ariès (1948, 1973) e Lebrun (1975) desenham um quadro do tratamento da criança durante o Ancient Régime que não permite excluir a hipótese de o infanticídio ter sido praticado e de boa parte da mortandade infantil ter correspondido a um desejo mais ou menos consciente – reprovado, é certo, pela moral religiosa e oficial, mas na prática incluindo-se entre as coisas eticamente neutras, exercidas secretamente, incapazes de levantar suspeitas, pois impostas a seres socialmente menos valorizados, que nascimentos posteriores viriam substituir e cujas mortes provocam batismos urgentes e esquecimentos apressados. É preciso esperar a segunda metade do século XVIII para que este quadro apresente modificações sensíveis. É nesta época que a criança deixa de ser considerada como um ser rebelde, portador de perigos simbólicos, evocador ******ebook converter DEMO Watermarks*******
de doenças e de incômodos, cuja vida individualmente quase nada vale. É somente neste momento que a criança deixa de ser vendida, abandonada, assassinada. É então que ela passa a ter existência como categoria social, à qual se reconhece uma certa dignidade, dignidade destinada a crescer extraordinariamente com o desenvolvimento da sociedade industrial. Mas este é também o momento em que ela começa a ser avaliada como força de trabalho real ou potencial, em uma época em que os camponeses podem ainda se recusar a trabalhar nas usinas, em que a mão-de-obra industrial é ainda escassa e instável. O sistema industrial se faz fazendo também da criança seu produtor e seu consumidor, levando-a para as usinas e escolas, fazendo-a sujeito de 'necessidades' a satisfazer. Para tal fim, o sistema ajudou-a a viver: para que ela viesse a permitir, através da formação e da reprodução da força de trabalho que por seu meio se operavam, a vida do próprio sistema que estava em vias de se constituir. No final do século XVIII, mesma época em que começam a se multiplicar os livros de puericultura e de pedagogia, atraindo todos os olhares para a direção deste novo herói cultural, a mão-de-obra infantil é numerosa e bastante procurada. Participa de trabalhos domésticos, ajuda a tratar e limpar a lã e o algodão, a confeccionar vestimentas. Liga-se por contrato a empresários e interessa aos proprietários de usinas, na medida em que é remunerada em plano inferior e em que pode ser moldada para formar os operários-modelo do futuro. Fonte de riquezas, a criança é talvez o maior beneficiário das transformações das condições de vida, do desaparecimento das grandes epidemias, da evolução da estrutura demográfica. Por este caminho, a partir do início do século XVIII, a criança francesa tem uma esperança de vida superior à de seus pais, diferença que vai progressivamente aumentando com o tempo, pelo menos até o terceiro quarto do século XX (época a partir da qual tende a estabilizar-se nos países altamente industrializados). Ao mesmo tempo, o pensamento social se agita em torno da saúde dos trabalhadores adultos. Médicos, moralistas, filósofos, políticos, começam a colocar esta questão em primeiro plano. A acumulação de capital e a formação da economia industrial exigiram muito do trabalhador: em 1564, segundo nos informa Jacques Attali (1979), a duração do trabalho se limitava a 20 semanas por ano; em 1694 essa duração é de 48; em 1726 de 52, ou seja, o ano inteiro. Começa-se a criticar o desperdício de homens no trabalho, a se acusarem as doenças de diminuir a produtividade, a se estudarem cientificamente os problemas de organização do trabalho. A saúde e o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
descanso entram na pauta das reivindicações, no mesmo momento em que as máquinas começam a ser capazes de substituir o trabalhador ou mesmo de expulsá-lo da usina e em que o volume de produção exige que ele viva – não mais somente para produzir, mas também para consumir. Médicos, parteiras e regras de higiene passam a ser requeridos para proteger e policiar a saúde da população. A manutenção dessa saúde adquire caráter de investimento social. Proteger o trabalhador é uma medida em favor de um 'capital humano' e nesse sentido justificam-se como 'racionais' os gastos em saúde, educação, cultura e previdência social. Um certo Dr. Hacket (1925), preocupado em assegurar a rentabilidade desse capital humano, escreverá na introdução a seu livro sobre medicina do trabalho: A saúde dos trabalhadores deve ser mantida e melhorada enquanto meio de produção (...). Frangos, cavalos de corrida, macacos de circo são alimentados, alojados, treinados e mantidos no mais alto nível de força física para assegurar um rendimento máximo em suas funções respectivas. O mesmo princípio se aplica aos seres humanos. Um aumento de produção só pode ser esperado dos trabalhadores sob a condição de se atribuir uma grande atenção a seu ambiente físico e a suas necessidades. (citado por Attali, 1979: 202-3) Surge uma nova preocupação com a saúde e com a vida, não mais determinada pelo prolongamento da estadia do burguês à frente de seus negócios, mas pelo crescimento do valor do indivíduo enquanto trabalhador na produção e no consumo. O corpo se transforma em mecanismo que deve ser mantido em bom estado de funcionamento para poder produzir. Vem a ser uma ferramenta que faz com que outras ferramentas produzam. O grande inimigo deixa de ser o doente, que agride por sua diferença (e por isso é recolhido aos hospitais): transforma-se na doença, essa grande força destrutora de riquezas, essa praga a destruir plantações de operários e a impedir que homens sejam recolhidos às usinas e que se transformem em pontos terminais do circuito de consumo, onde a produção industrial deva escoar. Doença e pobreza são agora os grandes inimigos a abater nos domínios da sociedade industrial: medicina e polícia se transformam em estratégias político-econômicas. Por isso o aumento da esperança de vida se transforma em bandeira de burgueses e de proletários, em peça fundamental da otimização do sistema, mesmo que sua obtenção custe a diminuição da esperança de vida de populações marginais à sociedade industrial: transformação de cada ******ebook converter DEMO Watermarks*******
trabalhador industrial em uma máquina eficaz de produzir e de consumir. Por isso, são postos em evidência 'reivindicações', 'direitos' e 'vitórias' dos trabalhadores: 'progressos' na luta contra as doenças (em 1920 a tuberculose mata na França, por exemplo, três vezes menos que em 1770; os antibióticos são um golpe mortal contra doenças mortais; as vacinas protegem as crianças; o impaludismo e a difteria praticamente desaparecem do mundo rico industrial...) e contra a exploração econômica (encurtamento do número de horas de trabalho, melhoria das condições de habitação, férias remuneradas, proibição do trabalho das crianças, generalização da educação escolar, desaparecimento da servidão doméstica...). O aumento da duração do funcionamento da máquina humana de produzir se transforma em signo do progresso das nações, em ideal de ser da sociedade industrial, mascarado sob o pretexto de prolongamento da existência individual, que se quer ilimitadamente aumentada até a eternidade (negação da morte), mas que na realidade é otimizada de acordo com as leis do sistema: nem demasiadamente curta que não permita produzir, nem demasiadamente longa que seja deficitária socialmente. Concretamente, muitas modificações podem ser observadas no que concerne à distribuição da morte antes e depois da constituição da sociedade industrial. De fato, ao menos do ponto de vista estatístico a luta contra a morte e a doença apresentou resultados efetivos. Hoje estamos muito longe dos supostos 20 ou 22 anos de vida que se podiam esperar no início da era cristã, ou ainda longe dos 33 anos de esperança de vida do homem medieval inglês. Em 1550, época em que muitos cadáveres de crianças podem ser encontrados nas ruas e nos depósitos de dejetos de Londres, um nobre do sexo masculino podia esperar viver 36,5 anos, ou 38,2 se fosse mulher. Na França a esperança da vida é de 40 anos em 1861, transformando-se em 68 anos um século mais tarde. Na Inglaterra um homem vive em média, por volta de 1750, 44,5 anos e uma mulher 45,7 – média esta que será de 50 anos, pela primeira vez, talvez, para o estadunidense do início do século XX. Mais recentemente, no final do século, os homens e as mulheres suecos atingiram o recorde de média de vida, respectivamente 72 e 76 anos. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, a longevidade atinge nos anos 70 do século XX em média 68 anos para os homens e 75 para as mulheres. Na Europa, é claro; pois na América Latina, Ásia e África, nesta mesma época a vida humana dura menos de 40 anos, cifra que é ainda menor se considerarmos ocasiões especiais (secas, chuvas demasiadas, fome, guerras...). ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Na raiz desses fenômenos demográficos, encontramos a prevenção da varíola, a melhoria da alimentação, as vacinas, a medicina preventiva, certamente – embora em graus e em qualidades bastante diferentes dos que habitualmente se supõem. Estes fatores na realidade são bastante menos importantes que suas aplicações sobre um segmento particular da população (entre outros fatores): as pessoas em tenra idade. O aumento da esperança de vida dependeu fundamentalmente do decréscimo da mortalidade nos primeiros anos de vida. Desde o século XIX até o último quartel do século XX, por exemplo, os ganhos em esperança de vida em termos de idades avançadas foram relativamente pouco significativos: aos 50 anos, são de cinco anos para os homens e de dez para as mulheres; aos 60 anos, de três e de seis; aos 70 de um e de três anos, respectivamente; aos 80, praticamente nada se ganhou em termos de anos agregados à duração da vida. A maior parte das mortes, que até cem anos atrás se concentrava nos primeiros anos de vida, deslocou-se: de 20% no primeiro ano de vida para 1%; de 12% nos quinze primeiros para 0,5%. Observemos ainda que, enquanto este movimento operou nos estratos etários mais baixos, os limites máximos da vida permaneceram quase intocados no período mencionado. Por exemplo: apesar do fato de que nos países industrializados as doenças dos anciãos tendessem a absorver a maior parte dos orçamentos de saúde, o número de pessoas que ultrapassavam os cem anos permaneceu praticamente o mesmo de antes. Além disso, nessas sociedades industriais, em que o número de anos a viver foi estatisticamente multiplicado, a distribuição deles não se fez igualitariamente: apesar de que as condições de vida do trabalhador tenham melhorado, o contraste entre a esperança de vida do rico e a do pobre, de um modo geral, parece ter aumentado. A morte não é certamente tão neutra como acreditavam os baixos-relevos das catedrais da Idade Média, quando ela atacava todos, mais ou menos indiscriminadamente. Na França, a esperança de vida de um trabalhador braçal de 35 anos é sete anos inferior à do professor de igual idade e, nessa mesma idade, morrem três vezes e meia mais trabalhadores braçais que professores. Aos 70 anos, os trabalhadores correm duas vezes mais risco de morrer que os professores. O risco de morte de um trabalhador de 35 anos é estatisticamente igual ao de um professor de 47 anos: "de 1.000 trabalhadores braçais vivos aos 35 anos, resta menos da metade – 498 – 35 anos mais tarde, aos 70 anos; de 1.000 professores, ao contrário, permanecem 732, ou seja, quase três quartos. Aos 75 anos, contam******ebook converter DEMO Watermarks*******
se 572 professores sobreviventes, para 331 trabalhadores" (Charlot, 1976: 60). Aos 45 anos, duas vezes mais trabalhadores especializados morrem de câncer que funcionários administrativos. Com efeito, um imenso assassinato anônimo e silenciosamente é perpetrado dentro da coletividade, pois, se a pobreza e a debilidade fisiológica dos pais determinam as chances de vida dos filhos, como sabemos, a desigualdade diante da vida mais do que nunca determinará a desigualdade diante da morte. As causas mais importantes da morte na história ocidental operaram sempre em escala coletiva. Nas cidades, as condições de saúde, alojamento e alimentação eram precárias para a maior parte da população; as epidemias se propagavam de cidade em cidade, encontrando terreno fértil nos amontoamento de pessoas e de imundícies. Das cidades, elas passavam para o campo. As epidemias – peste, varíola, tifo, disenterias variadas, gripes, pneumonias, tuberculoses em ondas sucessivas – combinavam-se com períodos intercalados de fome e de guerra. A Grande Peste, por exemplo, aparecida na Ásia por volta de 1333, onde fez cerca de 25.000.000 de mortos, espalhou-se pela Europa, trazida pelos navios, propagada pelos ratos: um só doente contaminava toda uma cidade; em cinco anos, entre 1346 e 1350, dizimou um terço da população do continente. Diversos surtos epidêmicos são veiculados por soldados: o exército de Charles VIII, em 1494, transportou a sífilis de Nápoles para diversas regiões européias; entre 1520 e 1543, 19 milhões de astecas morreram de varíola, levada pelos soldados espanhóis; em 1490, os soldados espanhóis trazem o tifo de Chipre... Seria um pouco ingênuo querer explicar as transformações das taxas de mortalidade coletiva por progressos particulares verificados no plano das técnicas médicas, sobretudo aqueles que se referem à terapia individual. Ivan Illich (1975: 21-2), em um trabalho no qual critica de modo penetrante a instituição médica contemporânea, afirma que a diferença entre as esperanças de vida das gerações sucessivas aparece sob Ancien Régime, sem que tenha havido progressos notórios concernentes às técnicas terapêuticas: "ela se amplifica com a revolução pasteuriana e desaparece bem antes da recente aparição do arsenal do médico contemporâneo". De fato, não se trata de negar de maneira absoluta a importância dos progressos da medicina. Mas de colocá-los em seus devidos termos, localizando os progressos que foram realmente eficazes. Tais progressos são precisamente aqueles que se ligam às transformações do modo de vida ******ebook converter DEMO Watermarks*******
coletivo, como o aparecimento de preocupações higiênicas, a melhoria das condições de habitação e alimentação, as transformações nas condições de trabalho, a melhor organização das cidades no que diz respeito a esgotos e evacuação de lixo, a introdução de inseticidas, vacinas e antibióticos, a previdência social. Tais transformações têm uma dimensão social capaz de ser entendida à luz da própria racionalidade do sistema industrial, para o qual, á dissemos, a otimização da duração da vida é uma questão essencial. Assim, relativizando a importância de técnicas médicas particulares e isoladas, Ivan Illich lembra que a tuberculose, por exemplo, cuja taxa de mortalidade era da ordem de 700 por 100.000 em 1812, reduz-se a 370 por volta de 1882, quando Koch cultivava ainda o primeiro bacilo, a 180 em 1904, quando se abriu o primeiro sanatório, a 48 por 100.000 após a Segunda Guerra Mundial. A cólera, o tifo, a febre tifóide e a disenteria também teriam evoluído de modo relativamente independente das técnicas médicas, na direção do desaparecimento: escarlatina, rubéola, difteria, coqueluche perderam cerca de 90% de suas taxas de mortalidade na faixa de um a 15 anos, antes do emprego de antibióticos. A transformação mais efetiva, do ponto de vista da saúde, foi a modificação do modo de vida do operariado, esmagado de todas as formas pelas cidades. Aos olhos do sistema, as doenças, mais do que pessoas, atacavam trabalhadores e consumidores. Por isso era preciso urgentemente bani-las e nesse sentido as mais graves medidas médico-policiais foram tomadas. Toda uma política de saúde aparece, preocupada com a proliferação das mortes e dos nascimentos, com o nível de saúde e a duração da vida, com os fatores, enfim que fazem variar a longevidade humana, integrando-os à economia e à racionalidade capitalistas. Em torno da vida desenvolver-se-á toda uma política de vigilância e de acusação, pelas quais o médico e a medicina serão os grandes responsáveis: enunciando padrões de comportamento, muito mais que intervindo diretamente no plano orgânico. Ao mesmo tempo, contudo, deixar-se-á que apareçam e que se desenvolvam outros fatores de mortalidade, integráveis à logicidade do sistema: ansiedade e solidão produzidas pelo dinheiro, angústias e distúrbios nevosos e psíquicos relacionados com as contradições sociais, suicídios ocasionados pela solidão dentro de uma sociedade que se pulveriza, doenças mentais, estresse, acidentes cardíacos, hipertensão, alcoolismo, doenças respiratórias e digestivas patrocinadas por estes grandes contribuintes do fisco que são as fábricas de cigarros e bebidas, acidentes de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
trabalho, desastres de circulação, drogas, colorantes, conservantes químicos… Tudo isso em meio de estandartes que defendem o afastamento da morte, a perpetuação da vida e que são no fundo muito mais políticas demográficas que atitudes efetivas em vista da conquista da saúde e da dignificação da vida. Um dos resultados dessa política é a proliferação de anciãos, muitas vezes produzidas nos laboratórios médicos. A preocupação com a duração da vida implica naturalmente o esforço de postergar o seu final, o que se poderá conseguir por meio da consideração do corpo humano como uma máquina que se pode conservar e reparar. A saúde das pessoas idosas coloca-se no primeiro plano das políticas orçamentárias dos países industriais. Na Suécia, por exemplo, que é um dos países que melhores resultados obtiveram nesse domínio, por volta do último quarto do século XX, 10% da população ultrapassavam 70 anos e utilizavam 50% das despesas hospitalares e os 2,5% que ultrapassavam 80 anos eram responsáveis por 25% essas mesmas despesas (Attali, 1979). De um modo geral, nos países ricos quase metade das despesas de saúde destina-se a oferecer às pessoas idosas algumas semanas ou alguns meses suplementares de vida. Conseqüentemente, o desenho que se forma é o de uma sociedade que, querendo aumentar a vida, está multiplicando o número de velhos (sobretudo na faixa dos 60-75 anos) – o que não deixa de representar uma frustração, ou um fracasso, para uma sociedade que cultua a juventude e que pretende conservá-la. Tal multiplicação de anciãos é ainda mais paradoxal quando se considera que esta é uma sociedade hostil aos velhos. De fato, quanto mais os homens vivem, menos são reconhecidos simbolicamente como socialmente importantes. Esta sociedade é inteiramente diferente das sociedades africanas no que respeita à situação dos velhos. Na África em geral não existe decréscimo com o passar dos anos, não existe decadência, mas, pelo contrário, enriquecimento da personalidade humana até a morte e mesmo depois quando os velhos se transformam em ancestrais. Os velhos são sábios porque são detentores dos conhecimentos tradicionais que transmitem à comunidade; são ricos de uma riqueza que não pode de outro modo ser adquirido. Aqui, ao contrário, os anos acumulados são um fardo que os velhos e os jovens devem carregar. Os anciãos são vistos como conotadores de doença e morte e por isso deles se afastam as criancinhas. São testemunhas de um fracasso e daquilo que não se quer ver: respectivamente, a impossibilidade de conservação da juventude e a realidade da morte. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Multiplicando os velhos nossa cultura tornou-os paradoxalmente inúteis: improdutivos e relativamente fracos consumidores. Seus saberes e sua experiência não são mais úteis à construção do progresso da sociedade ocidental que, mudando continuamente, torna-os obsoletos e dispensáveis diante das técnicas modernas que podem cada vez mais ser dominadas por ovens especialistas que sabem mais e mais sobre menos e menos. Em uma cultura em que ser velho é out, é compreensível que os velhos sejam afastados e jogados fora do círculo dos plenamente vivos – e que sua morte social seja decretada antes mesmo de sua morte biológica. Não se eliminam os velhos nas culturas ocidentais (apesar da atualidade crescente dos debates sobre eutanásia), mas eles são socialmente mortos através da aposentadoria, que, baseada na idade cronológica e sem grandes relações com as idades fisiológica e psicológica, arranca o indivíduo muitas vezes compulsoriamente do círculo de suas relações, decretando-lhes, em imenso número de casos, a morte real poucos meses ou anos depois. Matamse os velhos internando-os nos asilos, impondo-lhes a separação das pessoas e coisas que amam e a conseqüente solidão. Matam-se os velhos forçando-os à inatividade e ao abandono, encaminhando-os definitivamente para a morte em vida – pois o internamento, na prática, como a morte, é uma passagem irreversível – e obrigando-os, nos asilos, a conviver cotidianamente com a presença da morte dos companheiros. São internados para que morram: na França, nas grandes cidades, 80% das mortes se dão nos asilos e hospitais. Qual o sentido da velhice em nossa sociedade? É claro que ela não se limita a dar lucro às companhias de seguro, que calculam o valor dos anos de vida como qualquer mercadoria. Ela não se limita a manter elevado o número de consumidores, pois os velhos não são grandes consumidores, embora sejam os maiores clientes do imenso mercado de produtos farmacêuticos e serviços médico-hospitalares. O sentido de velhice não está seguramente no pesomorto que os velhos representam, muitas vezes, do ponto de vista da racionalidade do sistema econômico (um terço da sociedade vivendo de parasitismo econômico). Não, nada disso. O sentido da velhice é o de ser um símbolo, de simbolizar uma fronteira, um muro que se pode teoricamente fazer recuar e onde se faz concentrar a ação da morte. O afastamento e discriminação dos velhos é criação de um território onde se espera que a morte opere. Por este caminho busca-se o afastamento, a discriminação e o direcionamento da morte. Estes velhos – nos quais apreciamos sobretudo a juventude (quando a têm) – são ******ebook converter DEMO Watermarks*******
testemunhas de acumulação, valor máximo de nossa sociedade: são testemunhas de acumulação de vida, de acumulação de consumo, de acumulação de energia. Eis por que os deixamos viver e até os obrigamos a isto: são o contraponto que nos permite enxergar a nossa vida – como o louco nos permite enxergar nossa razão, o índio, nossa cultura e o homossexual, nossa sexualidade. A presença do velho é indispensável em uma sociedade que cultua a 'morte natural'. A morte do velho, mesmo que contra ela se lute com todo esforço, é a única morte 'normal', a única morte 'lógica' porque situada precisamente no 'fim' da vida – a única morte aceitável. A partir dessa localização da morte no fim da vida, o não-velho pode viver tranqüilo, sem pensar na morte e mesmo viver na esperança de que com o passar dos anos a técnica gerontológica venha a ampliar a vida, esticar os seus limites, aboli-los até. Essa idéia de morte natural não é aceitação da morte como fazendo parte da ordem natural das coisas. Pelo contrário, é transformação dela em algo remoto, em coisa removível, abolível, esquecível. É o outro lado de uma vida concebida como valor, como mercadoria, como propriedade que se deve preservar e trocar pelo melhor preço (variável com as condições do sistema econômico-político em que se insira), como propriedade que se pode consumir (no trabalho, por exemplo), mas que não se pode consumar, vivendo-a integralmente e livrando-se dela quando se tornar insuportável. É a este ideal de morte natural que responde essencialmente a instituição médica contemporânea. Perseguindo o sonho de morte natural, nossa sociedade fez do setor médico um de seus mercados mais importantes, empregando nos países desenvolvidos cerca de 5% da população ativa – à frente, portanto, de setores à primeira vista dominantes, como o siderúrgico e o de produção de veículos. A medicalização penetra fundo em nossas vidas e constitui um dos domínios em que o poder da técnica foi mais bem acolhido e menos contestado: cada habitante das sociedades desenvolvidas é um hóspede potencial dos hospitais, um paciente quase certo de operações cirúrgicas, um freqüentador assíduo de consultórios e ambulatórios. Se, antes, freqüentar um hospital era signo de pobreza (os hospitais eram lugares pestilentos, sustentados pela caridade pública, pontos de concentração de indigentes que aí vinham receber esmolas, onde a preocupação de curar não ocupava absolutamente um posto especial), hoje os hospitais e as clínicas são indicadores de desenvolvimento econômico, lugares que as pessoas têm a obrigação quase moral de freqüentar. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Nos hospitais e centros de pesquisas médicas operam-se os grandes milagres de nosso tempo. Aí, a aplicação racional de técnicas terapêuticas se envolve de moderno misticismo, em que o poder se proclama capaz de executar o impossível, transformando-se por causa disso em credor de obediência cega, em depositário da mais incondicional confiança. Corretiva ou preventivamente a medicina invade nossas vidas: profissionais de manutenção da saúde e de gestão do corpo são cada dias mais capazes de nos dizer o que fazer, o que comer, quanto dormir e assim por diante. As instituições médicas permitem e estimulam o consumo de dentifrícios milagrosos, de loções que fazem nascer cabelos, de remédios que emagrecem, que tranqüilizam, que estimulam, que restabelecem e fortificam o apetite sexual, que recuperam o esforço despendido no trabalho, que produzem beleza e que propiciam felicidade... constituindo, assim, um discurso que nos obriga a não ver sob a cobertura das miragens que apresenta. Desse modo, as instituições médicas se transformam em instrumentos de controle social, apropriando-se da tarefa de administrar a saúde e a vida dos indivíduos. O hospital, embora de modo diverso, continua exercendo a função policial, função que absolutamente não monopoliza, dividindo-a com a imprensa, a publicidade, a escola, o consumo... Diante da moderna medicina o doente se transformou em paciente, destino que foi também o do indivíduo são. A pessoa hospitalizada foi reduzida a uma dependência comparável à do prisioneiro na penitenciária, à do estudante na escola, à do operário diante da linha de montagem: foi desnudada por essa instituição total, perdeu sua identidade, transformou-se em número, em um 'caso' de uma doença particular, deixou de ser responsável por si mesmo, por sua doença e por sua vida. O indivíduo são deve agora consumir medicamentos e fazer exames rotineiros. Para prevenir as doenças, o indivíduo saudável é obrigado a fazer ginásticas, dietas, tirar férias, divertir-se… Enfim, é coagido a submeter-se a uma vida 'sã', a padrões de comportamento que estes 'técnicos' lhe propõem e mesmo lhe impõem. Por esse caminho, pela medicalização da vida biológica e psíquica, os problemas cruciais são despojados das dimensões sociais, são despolitizados e acabam apresentados como questões particulares, individuais que uma visita a um especialista, um bom calmante, um passeio ou um regime alimentar podem resolver. Estas instituições são gigantescos aparelhos de fazer desaparecerem a dor e a morte – o que fundamentalmente vem a ser a mesma coisa. O hospital é o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
lugar para onde se transportam aqueles que sentem dor, como acontece com aqueles que vão morrer. Assim escondido, o sofrimento não poderá obscurecer a imagem de felicidade e de bem-estar, que por toda parte a sociedade moderna tenta incutir em seus membros. Assim escondida, a dor terá silenciada a pergunta que sempre traz, pois ela é uma indagação sobre o sentido da vida e o lugar desta no seio da existência, em um momento particular. A anestesia, sob todas as suas formas, é uma das grandes descobertas de nosso tempo: através dela se estabelece a separação entre o mal e a sua consciência. Grande invenção, de que o poder político lançou mão muito antes do poder médico: grande invenção, capaz de alienar o sujeito de seu sofrer. Segundo a expressão de Ivan Illich (1975: 150), "é extremamente difícil, hoje, reconhecer que a capacidade de sofrer possa constituir um signo de boa saúde". Em uma sociedade dominada pela analgesia, fugir à dor é o caminho racional, preferível a todos os outros. A dor, como a morte, é o grande inimigo e contra ele de nada valem consciência, liberdade, fantasia, coragem... À medida que são absorvidas pelas instituições médicas, as capacidades de enfrentar a dor, de inseri-la no ser e de vivê-la são retiradas do indivíduo. Tratada por drogas, a dor entre nós é vista medicamente como um ruído nos circuitos fisiológicos e é despojada de sua dimensão existencial. Não possuímos mais os mitos de outrora, que atribuíam à dor um sentido e ao sofrimento uma razão de ser (maturidade e força para muitas sociedades tribais, sombra do prazer e da felicidade para os gregos, prenúncio da salvação para os cristãos...). Estamos em uma sociedade em que sofrer não tem sentido e por isso somos incapazes de perceber o sentido do sofrimento, o sentido do nosso sofrer. Ao lado do medo à dor, sentimento dos mais intensos do tempo em que vivemos, uma constatação se impõe: as técnicas de analgesia estão nas mãos do poder (como as técnicas de matar) e opor-se pode significar ser condenado à dor. Uma técnica de tortura pela suspensão da dor nasce: somos todos potencialmente torturados, estamos todos submetidos a uma tortura latente. Vivendo em uma sociedade anestesiante, estamos todos anestesiados, incapazes de sentir sobre nós a pressão do poder. Lobotomizados por todos os meios, semiológicos, econômicos, políticos... estamos incapacitados de sentir conscientemente a tortura silenciosa de que somos objeto cotidianamente. Incapazes de sentir prazeres provocados por estímulos de baixa intensidade, escravizamos nossos prazeres à necessidade de estímulos sempre mais fortes ******ebook converter DEMO Watermarks*******
e nos proibimos, como em muitos outros níveis de nossa existência, a satisfação com pouco. O banimento da dor ocorre paralelamente ao banimento da morte. O hospital é o lugar onde se sofre e se elimina a dor, assim como é lugar onde se morre e se elimina a morte. As instituições médicas são empresas de eliminação da dor, de produção de conformidade orgânica e psicológica e de luta contra a morte. Entretanto, de acordo com o padrão geral da sociedade em que existem, nem mesmo nestas instituições a morte é encarada de frente. Dos moribundos exige-se aí que fiquem calmos e em repouso; a eles aí se administram calmantes que além da função de tratamento específico do doente põem em evidência a impossibilidade dos outros de suportar a "enunciação da angústia, do desespero ou da dor" (Certeau, 1979: 27). Em torno do moribundo, observou ainda Michel de Certeau, o pessoal médico se retira, foge. O moribundo é colocado à distância, posto na posição de morto ('tem necessidade de repousar', 'é preciso deixá-lo dormir'). "Os moribundos são proscritos, porque são os desviantes da instituição organizada pela e para a conservação da vida" – um fenômeno que se pode compreender pelo desejo de restabelecer a ordem normal das coisas, porque, em uma sociedade em que se nega a realidade da morte, os mortos ameaçam menos do que aqueles que estão morrendo. Coerentemente com a estratégia de ocultação da morte, os pacientes devem acreditar que nunca se morre nos hospitais em que se encontram. Com este propósito são freqüentemente colocados em quartos privados ou semiprivados. Por isso, a arquitetura do hospital e sua organização interna tornam difícil a formação de comunidades de pacientes ou mesmo o simples estabelecimento de interação entre eles. Tal determinação, além de ocultar a morte, contém do ponto de vista do poder médico uma vantagem adicional: impossibilitados de formar grupos com seus iguais, os doentes se vêem enfraquecidos diante da instituição (Mauksch, 1977), já que, comunicandose, poderiam transmitir-se reciprocamente as regras e expectativas vigorantes no hospital e desenvolver meios de as manipular. Pulverizados, desprovidos de relação ente si, os doentes se transformam mais docilmente em 'pacientes'. Contrariamente ao que se pensa de um modo geral, o não enfrentamento da morte é parte da própria formação do pessoal hospitalar. O médico atualmente é quem luta contra a morte – ainda mais que seu paciente – mas sua formação e sua carreira são marcadas pelo afastamento dela. A morte não faz parte do programa de estudos das faculdades de medicina, superada pelo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
estudo da doença, da patologia que causa a morte – salvo nos casos hoje relativamente raros de estudos curriculares de medicina legal e nos casos mais modernos em que a morte é profundamente estudada com objetivo de ser compreendida, postergada e cancelada. Elisabeth Kübler-Ross (1977: 14) refere-se ao depoimento de uma estudante de medicina sobre como pôde passar seus anos de aprendizado sem contato algum com a morte: Eu vivi, como estudante de medicina, experiências dramáticas e desesperadas de ressurreição, mas lembro-me com dificuldade de ter percebido um morto. Isto se deve em parte a meu próprio desejo de evitar todo contato com cadáveres, é claro. Mas depende também da engenhosidade que se põe em prática para fazer desaparecer o corpo o mais rapidamente possível, como por encantamento. Passei horas nesse hospital, de dia e de noite, mas nunca percebi... No mesmo sentido, em suas carreiras profissionais o pessoal hospitalar tem tanto menos chance de presenciar a morte e de ter contato com cadáveres quanto mais elevadas forem as suas posições na hierarquia funcional. Nos hospitais existe uma verdadeira divisão de trabalho na maneira de se lidar com cadáveres: os médicos somente tocam cadáveres quando diagnosticam a morte ou realizam autópsia, considerando a manipulação de corpos mortos um trabalho de menor dignidade, destinado a pessoas de status menos elevado. Os médicos e enfermeiras de posições mais altas são normalmente os que menos chances têm de presenciar falecimentos, de ver cadáveres e de os manipular fisicamente, já que "o trabalho de locomoção e preparo dos cadáveres é feito por pessoas de menos nível", conforme nos declarou certa vez um médico entrevistado (Rodrigues 1979: 51). Em um dos hospitais norte-americanos que Sudnow (1971) estudou, a tarefa de preparar cadáveres estava a cargo de funcionários de baixa posição, 95% dos quais eram negros. Tudo isso é bastante coerente com o fato de que – sendo o acontecimento da morte uma experiência vivida como fracasso pelo profissional hospitalar – sejam considerados 'bemsucedidos' exatamente aqueles profissionais que com ele menos contato têm. Face a este ritual obsessivo de negação da morte, o moribundo perde a liberdade de renunciar à vida e o médico se apropria cada vez mais da vida e da morte, admitindo sempre de má vontade os casos em que não pode mais nada e deve capitular diante da insuficiência do seu saber, diante de sua incapacidade de realizar milagres. Obrigado a curar, o médico tenderá a ******ebook converter DEMO Watermarks*******
entregar o moribundo a máquinas que conseguirão mantê-lo artificialmente em vida, às vezes por tempo indeterminado. Odette Thibaud (1975) cita o caso de um ancião de 85 anos, em coma irreversível, quadriplégico, em hemodiálise por causa de danos graves dos rins, munido de um estimulador cardíaco e mantido em respiração artificial. Em semelhante contexto, tornando-se capazes de manter vidas não autônomas, os médicos se transformam também em senhores da morte, capazes de decretá-la ao determinar a colocação ou não dos aparelhos, a manutenção ou a retirada deles. Mais do que nunca, a morte se transforma em um gesto de quem detém o poder. No plano técnico a tarefa médica de combater a morte realiza façanhas extraordinárias: injeções de hormônios, reanimações depois do ingresso na morte clínica, invenção de corações e pulmões artificiais, transplante de órgãos sem substituição aos órgãos doentes... A partir da concepção do organismo como uma espécie de mecânica funcional, considera-se que suas peças podem ser substituídas. Levado às últimas conseqüências, tal pensamento permite supor uma certa imortalidade teórica, do ponto de vista funcional. Mas, em contrapartida, esta concepção despreza todos os problemas de identificação e de relação do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade. Em nome da recusa da morte (e vice-versa) o corpo é concebido e tratado como uma máquina exterior e independente da pessoa. Raramente é percebido em sua globalidade e em suas relações simbólicas: é integrado – ao pé da letra – visceralmente à sociedade industrial. Pernas e braços artificiais, intestinos de matéria plástica, corações controlados por baterias, olhos transplantados, rins doados etc. etc. integram-se no sistema industrial e no circuito das mercadorias ('bancos' de sangue e de olhos, 'catálogos' de órgãos...) dentro em pouco produzidos em série, submetidos à lei da obsolescência tecnológica e constituindo homens-robôs. Nas palavras de Jacques Attali (1979: 283), "o hospital, teatro de cura onde a morte se mascara, transforma-se em lugar de morte onde a vida é esquecida". Todas essas inovações – deslocamento para a velhice, asilos, hospitais etc. – tornam a morte um fenômeno menos cotidiano. Nos tempos anteriores, todos estavam condenados a perder durante a vida, além dos pais e avós, irmãos, irmãs, primos, tios, um ou vários filhos, inúmeros amigos, vizinhos e conhecidos. Hoje, a experiência da morte nas sociedades industriais acontece normalmente em idade relativamente elevada, atingindo um avô ou uma avó. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Sendo as famílias atuais reduzidas aos pais e filhos e muitas vezes residindo longe do domicílio dos avós e de outros familiares, pode acontecer de uma pessoa não vir a conhecer a experiência da morte antes de ser adulta. Contudo, somente isso não poderia explicar o distanciamento da morte. Esse distanciamento é algo explícito e ostensivamente querido. De fato, contrariamente à rarefação da experiência da morte no domínio familiar, a morte adquire hoje na vida coletiva uma presença estatística poucas vezes atingida anteriormente. Os cemitérios urbanos estão saturados: na antiga Berlim Ocidental, por exemplo, era necessário esperar seis semanas para encontrar um lugar em algum dos seus cento e dezesseis cemitérios; no Japão somente os membros da família real podem ser enterrados em Tóquio; em algumas cidades começa-se a construir cemitérios verticais. A falta de espaço para enterrar é um dos argumentos dos defensores da cremação e em muitos países só é possível enterrar a cerca de duzentos quilômetros das grandes cidades. Em nossa sociedade a longevidade se transformou em riqueza, a vida em capital e a morte naquilo que demonstra que nada disso tem sentido. Por isso não se pode pensar nela, se a deve banir. Por isso se constrói a idéia de morte natural, que acaba por se identificar com o limite a partir do qual o organismo humano não resiste mais à aplicação de instrumentos, máquinas e drogas e passa a recusar qualquer tratamento adicional. O instante da morte deixa de ser marcado por uma ação corporal ('fechar os olhos', 'dar o último suspiro', 'parar de respirar ', 'silêncio das batidas do coração') e se transforma em indicações fornecidas por ap arelhos (por exemp lo, quando o regist ro do eletroencefalograma é constante, apontando para a inatividade absoluta das células cerebrais). Além disso a noção de morte natural exclui a possibilidade de que o homem porte a morte em si, de que ela seja parte integrante da vida, reduzindo-a a um acidente – circulatório, cerebral etc. – que não ocorreria se o paciente estivesse em um hospital, se o hospital tivesse mais recursos, se a ciência estivesse mais adiantada e assim por diante. Nessa idéia de acidente, como observou Jean Baudrillard (1976), citando Octavio Paz (Conjonctions et Disjonctions), percebe-se uma armadilha: a idéia de acidente coloca como exterior ao sistema a sua própria fraqueza. A idéia de acidente reduz as mortes automobilísticas, por exemplo, a algo casual, aleatório, subordinado à sorte e inteiramente exterior a um sistema social que se apóia na locomoção mecanizada. A noção de acidente, ao invés de mostrá-lo como algo interior, intrínseco, endógeno ao sistema, define-o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
como uma interferência exterior que mais sistema pode eliminar: por isso, ela torna possível e até reclama que medidas repressivas, corretivas, preventivas, disciplinadoras sejam tomadas para banir os acidentes e para punir aqueles que, por negligência, permitiram que o acidente acontecesse. A teoria do acidente é, pois, uma forma a mais de banimento da morte, de ocultação dela e de postulação de imortalidade. Eugène Ionesco percebeu isso de maneira sagaz, ao declarar mais ou menos o seguinte em uma entrevista: acabei compreendendo que a gente morria porque teve um acidente, que de qualquer modo a morte era acidental e que prestando a atenção em não ficar doente, tendo juízo, usando cachecol, tomando remédios, tomando cuidado com os veículos, a gente não morreria nunca. Este pavor à morte, esta postulação e reafirmação insistentes de 'amortalidade' são o outro lado da criação da morte verdadeira, da morte profunda, da Morte. Negando a morte, nossa cultura criou a Morte. A negação da morte e a invenção da Morte são um fato específico da sociedade industrial, fruto da oposição vida/morte que nossa cultura não sabe integrar. Todas as culturas, como vimos na primeira parte deste livro, acreditam que a morte comece antes da morte e que a vida dure depois da vida, de forma que morte e vida não sejam termos inconciliáveis, que uma não seja o fim da outra, que ambas se encontrem no mesmo plano e não sejam pensáveis separadamente. Enquanto as outras culturas privilegiam a continuidade, a nossa cultua a ruptura. E, com medo de suas divindades, é obrigada a abjurálas. Por isso silencia. Por isso tenta esquecê-las. Não obstante nossa argumentação, tudo o que estamos dizendo poderia ser aparentemente contestado se ligássemos um aparelho de televisão. Este simples gesto poderia, à primeira vista, demolir todas as acusações de ocultação e de negação da morte, dirigidas contra nossa cultura. Um gesto tão simples, que talvez tenha esta função de demolição como um de seus deveres ocultos. Afinal, como afirmar que a morte não pode ser objeto de conversa, como afirmar que existe todo um esforço social para escondê-la, como sustentar que só pode ser descrita com o uso de eufemismos, como declarar que a educação das nossas crianças ignora a realidade da morte, como dizer que nossa sociedade quer expulsá-la, se os nossos jornais relatam e dissecam dezenas de mortes diariamente? Como afirmar o tabu da morte, se em nossa cultura ela exerce fascínio, é ambicionada mercadoria jornalística e se o destinatário dos meios de comunicação de massa, como diz Kientz (1973: 140), "é um espectador insaciável dos casos de morte"? Como afirmar o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
silêncio, se a morte participa ruidosamente da maior parte dos espetáculos e formas de comunicação, como filmes, teatro, televisão e literatura? Sobre que base dar crédito a este tabu, se a morte entra na arrecadação publicitária dos ornais (anúncios de falecimentos, por exemplo), nos noticiários (catástrofes, crimes, acidentes) e assim por diante? Contra a idéia de silêncio, os meios de comunicação nos dão a impressão de um imenso barulho, de um intenso falar sobre a morte. Mas que morte é essa, que povoa os meios de comunicação? São mortes normais, do dia-a-dia, do próximo, daquele com quem temos alguma coisa a ver? São mortes que despertem pânico, que coloquem explicitamente uma fronteira entre o aqui e o além, que evoquem o drama da finitude humana? São mortes que impliquem um ritual, que questionem o homem no mais fundo de sua existência? – Não! Simplesmente são mortes que ocorrem sobre a tela da televisão, sobre o papel do jornal, incapazes de perturbar o ritmo de nosso antar ou o sabor de nosso café da manhã. São mortes que não evocam a decomposição, que não nos colocam diante de um impasse escatológico, que não transformam as relações sociais. São mortes excepcionais, pouco prováveis, violentas, acidentais, catastróficas, criminosas ou que atingem pessoas importantes e excepcionais. Em suma: não são mortes. São mortes desprovidas de sentido. O morto dos meios de comunicação é um desconhecido, um anônimo, um qualquer, um estranho, um 'ele'. O morto dos meios de comunicação não nos concerne diretamente. É uma abstração remota que não se concretiza jamais. É um acontecimento distante, que atinge um 'outro' intangível. Por isso se disse que tais mortes são na "terceira pessoa" (Jankélévitch, 1977), objetos sem nenhuma característica própria, iguais a todos os outros, sem nenhuma dimensão trágica, sem nenhum poder, desgastados pela redundância, esquecíveis com a mesma facilidade com que se desliga o aparelho de televisão ou se viram as páginas de um jornal. Sobre a morte, então, pode-se falar porque ela está transformada, desprovida de conteúdo, negada. A verborragia que a cerca nos meios de comunicação de massa é negação da morte, é ocultação dela do mesmo modo que o silêncio imperante em outros domínios. O que os meios de comunicação fazem é reverberar o tabu da morte, vendendo para cada um de nós um sentimento reprimido no fundo de cada alma, e por meio dessa falsa enunciação tornar a repressão ainda mais efetiva. Dando a impressão de dizer o que não pode ser dito, os media dão a seus espectadores a impressão de sentir o que não pode ser sentido e, em lugar das ******ebook converter DEMO Watermarks*******
perguntas sem respostas que toda morte comporta, oferecem respostas para as quais não houve perguntas – respostas que se destinam a silenciar toda indagação, a abolir antecipadamente toda reflexão sobre o evento terminal da existência humana e sobre essa existência mesma. Por detrás desse rumor silenciante mais uma porta se abre, pela qual a morte poderá ser integrada ao circuito econômico do lucro, colocando-se em vitrines, transformando-se em apelo para a venda das mercadorias da indústria cultural.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
15 Trabalho morto e consumo Nossa civilização mede os progressos a partir de uma noção vaga de acumulação de energia per capita. Para nós os progressos se avaliam relativamente à capacidade de transformar e de dominar a natureza, isto é, relativamente às nossas possibilidades de produzir. A valorização da vida humana nesta sociedade é uma manifestação desse culto que prestamos à acumulação de energia, culto que se revela, entretanto, de maneira estatística: não se trata originalmente da valorização de cada vida, mas de uma política de implementação de um sistema que se serve da vida como energia e que se preocupa com sua distribuição estatística muito mais do que com sua significação. Tanto isto é verdadeiro que, em nome da acumulação de energia, nossa sociedade não se furta à destruição de vidas. Ela procura, através de uma distribuição estratégica da duração e da valorização da vida, implementar uma média abstrata coerente com os interesses que imperam em um determinado momento de evolução do sistema. Assim, nossa civilização obriga cada um de seus membros a vestir a pele do Homo oeconomicus. Impõe-lhe a obrigação de encarar a vida como energia, como valor, como mercadoria. Incutindo em seus membros a ideologia do 'progresso', ou seja, de domínio da natureza em função de uma produção sempre maior, nossa cultura transforma cada um de seus homens em uma espécie de empresário de si mesmo: constrange-o a ver a própria vida como um empreendimento, força-o a inserir-se até o fundo nas malhas da racionalidade do sistema, obriga-o a se conceber como algo a dominar e de que se podem retirar resultados sempre maiores. Por esse caminho, a vida humana se vê reduzida às dimensões de um sistema em que 'tudo tem preço'. Ao mesmo tempo ela é ideologicamente erigida em beneficiário maior desse sistema, beneficiário em proveito do qual tudo se justifica: em suma, contraditoriamente a vida é erigida em algo que, como dizemos, 'não tem preço'. As sociedades industriais supõem acumulação (e consumo) de vida assim como supõem acumulação de capital. Elas exigem que cada operário trabalhe sobre um capital e que este capital se renove. 'Acumular, acumular' é a lei do sistema – lei que não exclui a vida, mas a inclui como primeira condição, como força produtiva elementar, como 'capital social básico' indispensável. É com ela que o operário trabalha, mas é também sobre ela que deve trabalhar. A vida humana é igualmente objeto de trabalho e o sistema postula-lhe um conjunto de 'necessidades' que trabalhador e sistema devem satisfazer. Por ******ebook converter DEMO Watermarks*******
este caminho, insere-se a vida humana no circuito do consumo e se a erige em ponto fundamental de articulação deste com a produção e em pedra angular de legitimação de toda uma civilização. Ponto inicial, terminal e nodal do sistema, não há como não compreender por que a vida seja proclamada o seu valor mais alto. Isso não nos dispensa, entretanto, de examinar a questão um pouco mais de perto. O sistema industrial é muito mais transformação da vida em objeto de trabalho, que algo dependente da vida como força produtiva. Ele se funda, sobretudo, na substituição de trabalhadores por máquinas, de trabalho vivo por trabalho morto, de homens por bens de capital. A máquina, decerto, é trabalho. Mas é trabalho acumulado, congelado sob uma forma inerte, desprovido das dimensões vivas do trabalho do operário. O progresso da sociedade industrial comporta o desaparecimento dessa força produtiva original e sua substituição por bens de capital, capazes de serem mais adequadamente ajustados aos ideais de progresso do sistema – além, é claro, de serem mais docilmente controláveis. Contudo, desinteressando-se da vida como fonte de trabalho, o sistema industrial tende a valorizá-la como objeto de trabalho, como algo que pode ser moldado à maneira do sistema, como ponto de convergência e escoamento da produção. As questões relativas à formação do consumidor passam a ser mais atuais que as concernentes à mera reprodução da força de trabalho. A simples existência da máquina contém em si um elemento de exclusão do trabalho e do trabalhador – exclusão que é tanto maior quanto mais eficiente for o engenho. Além disso, a organização industrial da produção, com o que exige de especialização e de fragmentação do trabalho, significa a exclusão do trabalhador ao mesmo tempo do processo de produção e do resultado do trabalho: o labor é cada vez mais pulverizado, até que seja impossível para o trabalhador ter uma visão de conjunto de sua atividade produtiva, até que o seu trabalho perca toda significação. Nesse sentido, é uma ingenuidade acreditar que a alienação do trabalhador na sociedade industrial se reduza a uma simples questão de relações de produção e que deva desaparecer espontaneamente com a abolição das relações de classe e da exploração do homem pelo homem. Infelizmente as coisas não são tão simples: é verdade que em um sistema capitalista as relações de produção fazem com que o fruto do trabalho do homem se torne um objeto exterior a ele e estranho ao homem; é verdade que o operário não tem direito algum sobre o produto de seu trabalho; é verdade que o artefato que fabrica ******ebook converter DEMO Watermarks*******
não tem nenhuma referência a ele, constitui um mundo estranho ao trabalhador e mesmo hostil, agredindo-o como um inimigo; é verdade que o homem que trabalha, sendo explorado, se aliena 'em' e 'por' seu trabalho e que o resultado de sua labuta lhe seja mostrado não como resultante de um esforço de produção histórico e social, mas como fruto de um milagre, como decorrência mítica da Técnica e do Progresso. Tudo isso é verdade. Não obstante, não podemos esquecer que as usinas modernas são tecnicamente projetadas e organizadas para que em seu espaço qualquer invenção criativa, qualquer manifestação espontânea de vida não programada seja impossível; que o programa de uma linha de montagem fornece ao operário toda informação de que este necessita para o seu trabalho, recusandolhe qualquer escolha, qualquer decisão, qualquer participação; que o trabalhador nelas inserido é devorado por encadeamentos medidos segundo o ritmo das máquinas, determinando a priori e exteriormente todos os gestos do trabalhador e que o transformam progressivamente em complemento da máquina, em trabalho morto como esta... À medida que progride, a sociedade industrial abre mão do produtor. Bane o homem da cena como responsável por esse papel e o substitui por trabalho morto (que nesse sentido é uma metáfora da máquina), põe no lugar dos produtores trabalhadores imigrantes (que são 'máquinas' mais baratas, trabalho morto também), ou ainda robôs, artefatos programados e até mesmo inventos genéticos adaptáveis a determinadas tarefas específicas, produzidos como se produzem máquinas. Assim, o Kennedy Institute da Georgetwn's University declara em um relatório sobre engenharia genética: "seres quiméricos e parahumanos poderiam legitimamente ser fabricados para fazer trabalhos difíceis e desvalorizantes". Ou ainda: "a sociedade poderia ter necessidade de produzir pessoas que tivessem uma resistência excepcional para desempenhar papéis particulares, por exemplo, pessoas de pequeno tamanho para os vôos no espaço" (Fletcher, 1974: 17). Desse modo, o homem morre para e pela produção, é sacrificado no altar do crescimento e da produtividade e termina transferido para o território do consumo. Segundo as leis do sistema, é necessário eliminar as atividades não rentáveis, para produzir valor e capital, para acumular energia; é necessário substituir os elementos obsoletos por elementos novos, capazes de criar novos valores com menor dispêndio. Segundo essas mesmas leis, a partir de determinado ponto de desenvolvimento é necessário substituir o homem como trabalhador produtivo e valorizá-lo especialmente como consumidor. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Aí está, evidentemente – na substituição do trabalho humano pelo trabalho da máquina – uma das contradições de um sistema que necessita pagar salários a seus trabalhadores. Os salários destinam-se não somente a preservar a vida e a força produtiva daqueles, mas também a fazer com que gastem, com que consumam, com que escoem a produção. Assim fazendo, o consumo dos trabalhadores determina que os salários retornem às fontes que os versaram. No âmbito do sistema capitalista, por conseguinte, e ao contrário do que muitos pensam, entre reivindicações operárias de salários mais altos e classes dominantes não há antagonismo senão a curto prazo e conjunturalmente: maiores ou menores, os salários são peças do funcionamento do sistema. Portanto, o salário não é mais necessariamente algo que alguém recebe como contrapartida do trabalho, mas algo que introduz um indivíduo em um sistema de consumo. O trabalhador não pode mais ser considerado apenas como produtor de mercadorias – coisa que vai deixando progressivamente de ser, substituído por máquinas, por robôs e por imigrantes (esses operários de segunda categoria, condenados a realizar as tarefas que os ex-operários nativos não quiseram mais realizar e destinados a consumir o que estes não quiseram mais consumir – o velho apartamento, por exemplo). Em uma sociedade que produz em série, estandardizadamente e em escala industrial, o trabalhador se transforma em cliente do sistema, em consumidor por excelência. Seu trabalho deixa progressivamente de ser produtivo; passa a ser trabalho consumidor – o que é uma outra espécie de trabalho. Esta outra forma de trabalho é menos espontânea do que comumente se supõe. Ao ser inserido no consumo o indivíduo recebe toda uma pauta de deveres a realizar. Sob a capa da liberdade e do prazer o sistema de consumo impõe a cada um que seja o que é, quer dizer, que concretize o ideal de ser que a sociedade forja para seus membros: o consumo é obrigatório, a ninguém é lícito viver aquém de suas possibilidades. Contudo, não é como ética e como obrigação que o consumo procura se legitimar: mais insidioso, é como 'necessidade' que se apresenta. Segundo este argumento, os homens consomem porque possuem 'necessidades' internas, genuínas, inatas... que o sistema de consumo graças aos milagres da sociedade industrial vem satisfazer. Não porque uma coerção externa a isto os constranja. Fazendo abstração de todos os seus determinantes culturais, o conceito de 'necessidade' legítima como natural a pauta de consumo que a cada indivíduo é proposta e até imposta. Sob o manto da 'necessidade', o consumo é mostrado não como fenômeno específico da sociedade industrial, mas como ******ebook converter DEMO Watermarks*******
algo que sempre existiu, como uma espécie de satisfação de uma demanda genuína da natureza humana, como o preenchimento de uma lacuna que as outras formas de organização da vida social foram incapazes de completar. Para contestar essa argumentação, nem precisamos fazer recurso a outras culturas e verificar se tais 'necessidades' são mesmo universais. Basta olharmos para nossa própria sociedade e constatar que com o desenvolvimento do aparelho produtivo estas necessidades se tornam mais e mais imprecisas, mais e mais indeterminadas e complexas. Basta olhar para nossa própria sociedade e verificar que, quando o sistema penetra na 'era da abundância', tais necessidades se tornam cada vez mais arbitrárias, evidenciando que não existem limites para o consumo. Se tais necessidades fossem reais, era de se esperar que fossem satisfeitas a partir de um certo nível de consumo: mas elas são impossíveis de se serem satisfeitas, porque são peças essenciais de um sistema que se funda na carência constante e que impele os indivíduos a consumir sempre mais e mais. Se essas necessidades não são naturais, mas produzidas sistematicamente, seria um erro acreditar que o território do consumo seja uma parte passiva do sistema social, inteiramente submetida aos estímulos do setor produtivo, considerado como único elemento dinâmico. Na verdade, ele tem dinâmica e peso próprios, que se tornam mais e mais importantes, ao menos no que diz respeito à manipulação da vida humana, à medida que o trabalho produtivo humano é substituído por trabalho morto. É claro que historicamente o sistema vive primeiro da exploração da força de trabalho; mas vai progressivamente substituindo essa força de trabalho, transferindo a exploração para outros níveis, realizando a dominação por outra estratégia: deslocando tudo isso para o consumo, provocando uma legitimação circular da exploração, estabelecendo o reino do ilusório, fazendo com que a sujeição seja vivida como liberação, transformando o obrigatório em agradável e desejável. É por esse caminho que se pode entender a publicidade, por exemplo, que, originalmente um instrumento econômico, transforma-se em verdadeira escola social de consumo, indispensável ao equilíbrio do sistema, através da regulação psíquica dos indivíduos – prevendo, reduzindo, estimulando, vigiando as motivações humanas profundas. A publicidade é como um leque de possibilidades oferecido a cada indivíduo e um estímulo a que opte. Não é possível não optar. Uma nova ditadura está instaurada, usando uma estratégia oposta à que consiste em não permitir opções. A estandardização dos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
produtos deixa o consumidor em presença de um mundo de bens equivalentes, cuja diferenciação somente pode ser estabelecida a partir de fatores psicológicos, sobre os quais atuam as técnicas de persuasão: qualquer opção é a mesma coisa, qualquer escolha é eleger o sistema. Não optar é a única forma de libertar-se dele. Este raciocínio ajuda-nos igualmente a entender a moda, outro mecanismo dos mais importantes na dinâmica do sistema de consumo. A moda é um conjunto de mudanças que expressa a ação impositiva do sistema cultural, muito longe de responder a alguma necessidade natural: mudar de sapatos, de móveis, de roupas, de veículos etc. responde às determinações de uma sociedade competitiva, que utiliza a competição como meio de alimentação do consumo e da produção. A moda é manifestação de uma sociedade marcada pela obsolescência necessária dos objetos, ou seja, pela morte obrigatória deles, contrapartida lógica de sua substituição por outros novos, sob o estímulo do discurso publicitário. A moda é manifestação de uma sociedade marcada pela perempção programada de pessoas, que são obrigadas a se renovar e a se reciclar sob pena de desaparecerem digeridas pela competição, que são obrigadas a se transformar continuamente para sobreviver: aquele que de modo radical não acompanhar a moda passa a ser out e morre socialmente. Compreende-se então que a instituição da moda só apareça em uma sociedade em que se lute por mobilidade social. Em sociedades desse tipo, pelo recurso ao 'estar na moda', os indivíduos fogem à possibilidade de se sentirem rebaixados, ao mesmo tempo em que criam para si a ilusão de uma mobilidade ascendente que não existe na realidade: se estou na moda, estou in; se estou in não decaí socialmente, se acompanho a moda, superei o estágio anterior. Assim, através da moda e da publicidade, entre outras táticas, o consumo reduz o homem a um ser passivo, manipulado por necessidades artificiais, absolutamente sem vida própria, obrigado a estar de acordo mesmo quando pensa discordar. Por intermédio do consumo o sistema encontra o melhor caminho para reproduzir-se, para conservar sua vida contra todas as outras. Decretando a morte dos produtos existentes, o consumidor abre as portas para novas emissões produtivas e isto permite ao sistema renascer continuamente. Como Baudrillard observou (1976: 49), "não há mais consumo produtivo, nem consumo improdutivo, só há consumo reprodutivo". O tempo livre, tempo de consumo, é tão produtivo como o trabalho: "Ninguém produz mais. A produção morreu. Viva a reprodução!" (grifo do autor). ******ebook converter DEMO Watermarks*******
É preciso que tudo seja levado à morte para poder ser reproduzido. Os objetos são produzidos de forma a incluir em sua estrutura o germe de sua decadência. Nesse sentido, nossa cultura, ao construir destrói. Inclui voluntariamente uma dimensão de morte mesmo nos gestos seus que aparentemente são gestos de vida. Em virtude da necessidade de optar, de fazer distinções psicológicas entre produtos iguais, o acessório passa a imperar sobre o essencial, com tudo o que isso implica de saqueamento de produtos primários e de desperdício de energia humana. Não se trata somente de um problema de produção: mesmo que os objetos tivessem vida longa e se limitassem a suas qualida des essenciais , eles s eriam ps icologicamente cons iderados velhos, imprestáveis e inúteis, porque, em uma sociedade marcada pelo consumo e pela reprodução, os objetos não valem pelos valores de uso nem pelas necessidades reais ou fictícias a que devam atender – mas por suas simples presenças, presenças condenadas à ausência e à substituição por outras presenças fadadas ao mesmo destino. À primeira vista, a mudança está inscrita no coração do sistema. Velhos produtos são substituídos por novos, por novos aparentemente diferentes, diferentes principalmente porque são novos (qualidade importantíssima em uma sociedade de consumo); antigas técnicas são substituídas por novas, reputadas como mais aptas a aumentar a produtividade, a substituir trabalho humano por trabalho artificial. Consumo e produtividade determinam um mundo característico: durante séculos foram as gerações de homens que se sucediam em um cenário estável de objetos; hoje as gerações de objetos se sucedem em ritmo acelerado durante a mesma existência individual. Se antes o homem impunha seu ritmo aos objetos, hoje são os objetos que impõem os seus aos homens (Baudrillard, 1973). Diante dessa nova cadência é preciso que os homens se reciclem continuamente se não quiserem ser devorados pelos objetos. Fala-se até em 'educação permanente', considerada uma coisa necessária. Sabemos que a educação existe sobretudo porque as antigas gerações morrem e porque é necessário transmitir a cultura às novas gerações. Se a educação se transforma em algo 'permanente' é porque a morte é permanente; é porque a sociedade mata, morre e se suicida cotidianamente: matar, morrer e se suicidar continuamente são próprios de uma sociedade que muda constantemente, que permanece mudando, cuja permanência é a mudança. Ao mesmo tempo, em uma sociedade com tais características é compreensível que tudo o que diga respeito à morte adquira uma coloração especial: pálida, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
provavelmente. Por toda parte a morte ocorrida no plano ontogenético é condição da reprodução no plano filogenético. E a morte dos indivíduos, condição da reprodução da sociedade. Um sistema fortemente marcado pela reprodução é necessariamente um sistema fortemente marcado pela morte. Justificando a reprodutividade pela satisfação das 'necessidades' humanas, o sistema transforma progressivamente a produtividade em fim em si mesmo e despoja o homem das características de vivo. Transforma-o em matéria a ser trabalhada, educada para o consumo, impossibilitada de ser livre, escrava das 'necessidades' através das quais o sistema quer se erigir em algo natural e universal e se impor por uma lógica incontestável – pois fundada no 'ser das coisas'. Tal ideologia contém um objetivo preciso, que é oferecer uma base irrefutável à dominação política em uma sociedade que se transformou no principal consumidor de vidas, sob todas as formas: pela violência, pelo trabalho, pelo consumo...
******ebook converter DEMO Watermarks*******
16 Natureza morta A lei do lucro máximo e do máximo consumo nunca levou a sério a preservação do planeta. Partindo do princípio de que os recursos são inesgotáveis (uma condição essencial para um sistema que quer produzir e consumir sempre mais e que pretende ser eterno), nossa sociedade impôs um sistema de relações entre a produção, o consumo e a natureza que a impulsiona sempre na direção do esgotamento desta última. Por este caminho, ela terminará por arrasar irremediavelmente sua própria substância, aquilo que lhe vem do meio natural: extraordinariamente predatória, nossa sociedade tende a manter a própria vida através da destruição dos recursos da natureza. Entretanto, uma contradição: como para todos os predadores a sobrevivência depende estritamente da vida das presas, à medida que a predação aumenta as possibilidades de sobrevivência do predador diminuem. Levando à morte as outras formas de vida, nossa civilização atrai a morte para si, transforma-se em Morte e se envenena de morte: condena-se à extinção, levando consigo as demais formas de vida. Todo um aparato persuasivo é necessário para nos fazer esquecer que a fruição consumística não tem sentido quando se liga aos aspectos predadores da sociedade industrial; que não tem sentido fruir certos bens da vida quando a fruição destes bens contém a promessa de destruição da vida. Crescimento demográfico, poluição, esgotamento dos recursos naturais, empobrecimento das terras cultiváveis... desenham no horizonte o fantasma da morte coletiva, do desaparecimento total da humanidade: fantasmas que começam a despertar angústias ainda mais fortes que as da morte individual porque retiram da vida toda significação, porque fazem dela um instrumento de aceleração da morte total, da morte verdadeira, da Morte. Para produzir o seu primeiro milhão de habitantes o planeta precisou de cerca de dois milhões de anos. A partir do aparecimento do homem moderno, do Homo sapiens, seiscentos mil anos foram necessários para que o efetivo da humanidade atingisse os quatro bilhões. A agricultura e a sedentarização desenvolveram prodigiosamente os recursos alimentares, permitindo às populações crescer: seis mil anos de agricultura permitiram atingir 250 milhões, que foram dobrados em mil e quinhentos anos. Desde as primeiras eras da humanidade os rendimentos agrícolas têm crescido consideravelmente, e este crescimento foi em parte responsável pela multiplicação populacional: se ao caçador paleolítico eram necessários dez quilômetros quadrados para se alimentar, o pastor neolítico precisou de dez ******ebook converter DEMO Watermarks*******
hectares, o camponês medieval de dois terços de hectare e o cultivador aponês do final do século XX de um sexto de hectare (Dorst, 1970). Depois da industrialização o ritmo populacional se acelerou vertiginosamente: o primeiro bilhão foi atingido em 1830; o segundo, em 1930; o terceiro, em 1960; o quarto, em 1978 e o sexto na virada do segundo milênio. Em decorrência desse ritmo a densidade de população atinge números dificilmente poderiam ser imaginados há algumas dezenas de anos: alguns bairros contam 38.600 habitantes por quilômetro quadrado em Chicago, 69.500 em Londres, 92.700 em Tóquio e 302.600 em Hong Kong (Dorst 1970). Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU, 1958: 22) observa que se o ritmo atual de crescimento continuar ainda por seiscentos anos "o número dos seres humanos sobre a Terra seria tal que cada um não teria mais que um metro quadro de superfície à sua disposição". Enquanto isso, há os que imaginam o dia em que o volume dos humanos será igual ao volume do planeta. É claro que esses dias não chegarão – o que é uma gritante evocação de Morte qualquer que seja o caminho tomado. Os países subdesenvolvidos, muito mais numerosos, são responsáveis em termos absolutos pela maior parte desse crescimento demográfico, seguindo o caminho já percorrido pelas nações industrializadas. Tais países começaram mais tarde nesse caminho, conhecendo tardiamente a queda da mortalidade (quando a conheceram) e aplicando com menor assiduidade as técnicas de controle de nascimento. Na China, por exemplo, a população triplicou entre 1650 e 1850, passando de 113 a 350 milhões; em 1933 a população era de 450 milhões, que se reduziram em razão de fome e guerras a 400 milhões por volta de 1946, antes de passar aos 583 milhões de 1953, a um bilhão ou mais no último quartel do século XX. A existência nesses países de uma população majoritariamente jovem mantém as taxas de fecundidade sempre elevadas – o que encontra terreno livre para se desenvolver em sociedades nas quais a vida humana ainda não é colocada em balança, avaliada e programada de acordo com as diferentes conjunturas econômicas. Assim, em um mundo em que os poucos ricos poluem e destroem mais do que os muitíssimos pobres, descobrimos um paradoxo: esses países ricos estão muito mais densamente povoados que os países pobres; mas, enquanto estes últimos se decidem cada vez mais a limitar o crescimento de suas populações, nos países ricos se estabelecem incentivos tributários para fomentar a existência de famílias numerosas. Cada vez maiores quantidades de pessoas se concentram nos centros urbanos. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
O desenvolvimento incontrolável das cidades acarreta a perda de suas almas: nenhuma das nossas poderá jamais ser uma comunidade humana, nem mesmo um aglomerado de comunidades. Coerentes com a lógica do sistema social de que fazem parte, as cidades impedem a seus habitantes que tenham uma vida comunitária (o que elas comportaram durante muitos séculos), impondo-lhes vidas justapostas, submetidas cada vez mais à ação coercitiva das estruturas urbanas. A cidade moderna é uma verdadeira catástrofe: aspirando as populações rurais para uma vida miserável, devorando tudo o que é produzido pelo ambiente que a envolve (terra, água, ar), acumulando dejetos dos quais não sabe o que fazer, poluindo pulmões, olhos e ouvidos, prendendo, escravizando... Não é por acaso que nelas possamos encontrar alguma semelhança com nossos cemitérios, como Louis-Vincent Thomas (1976: 191) observou: Não é singular que a configuração das cidades se pareça tanto com a dos cemitérios? A or den ação de uma e de outra obedece ao mesmo enquadramento geométrico e a repartição dos elementos responde a questões similares. Habitat individual e coletivo, ruas, avenidas, praças onde a circulação é regulamentada, bairros aristocráticos ou populares, lugares de descarga, cartazes e tabuletas, tudo isso se encontra nas aglomerações dos vivos e dos mortos, em escalas variáveis segundo suas populações. Mesmo os grandes cemitérios, como as grandes metrópoles têm seus arranha-céus, suas torres de silêncio, ou as terão, para conciliar o crescimento do número e a penúria do espaço; e têm freqüentemente seus fornos crematórios, equipados como as usinas modernas... Para sustentar essa imensa massa de homens que vivem nas cidades sem produzir diretamente os bens que os mantêm em vida é preciso exigir muito da terra e dos homens que nela trabalham, é preciso fazê-los produzir intensivamente. Substâncias diversas foram criadas, capazes de aumentar a produtividade da terra. O emprego de pesticidas, no sentido restrito, é um progresso evidente. Todavia, o uso dessas substâncias acarreta problemas, pois, disseminados em escala industrial sobre a natureza, tais produtos fazem muito mais que eliminar de modo definitivo o perigo dos predadores das plantações: produzem rupturas gravíssimas do equilíbrio natural, matando de maneira indiscriminada, destruindo a fauna, todos os insetos, 'úteis' ou 'nocivos', e por essa via permitindo a ruptura das cadeias naturais de relacionamento entre as espécies, inclusive as que religam o homem e o mundo. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Partes do mesmo sistema de assalto à natureza, cidade e campo se aliam na difusão de poluição pelo planeta – poluição atmosférica, poluição alimentar, poluição das terras e das águas – e impõem um estilo de vida novo, vida pálida, quase morte: quando a poluição ultrapassa certo nível perigoso, aconselha-se aos habitantes de Los Angeles não fazerem muito esforço, para não respirar muito; em Tóquio muitas vezes se utilizam máscaras de gás. Não é inimaginável o dia em que se atingirá este ponto para o conjunto do planeta, quando se poderá verificar que as medidas isoladas de controle – aqui as chaminés das usinas, ali os motores dos automóveis, aqui a poluição dos rios, ali os pesticidas e conservantes alimentares – de nada adiantam, a não ser no sentido de mascarar o problema geral de estruturação da sociedade e de relação do homem com a natureza. Produtora e consumidora insaciável de objetos, a sociedade industrial é também produtora de restos que não pode consumir e que é obrigada a rejeitar em favor de novas levas produtivas. O lixo se tornou um verdadeiro problema civilizacional: uma tonelada de lixo por habitante anualmente em Nova Iorque; um milhão de toneladas na cidade de Paris em 1972; centenas de quilos de embalagens em qualquer cidade industrial por habitante e por ano; dezenas de milhões de dejetos industriais, centenas de milhares de toneladas de pneumáticos, centenas de milhares de veículos abandonados e assim por diante. Essas montanhas de objetos imprestáveis são testemunhas de uma mutação significativa na história humana: até tempos relativamente recentes, até pelo menos a Revolução Industrial, os dejetos eram fundamentalmente de natureza orgânica, passíveis de serem absorvidos pelos processos de corrosão natural, não constituindo, portanto, uma agressão, muito menos uma agressão violenta, ao ambiente. Agora objetos de curta duração na escala humana são dotados paradoxalmente de extraordinária longevidade diante dos processos naturais, o que os institui automaticamente em desafios que estes processos naturais devem enfrentar. Extremamente destrutiva de objetos, a cultura aprsenta constantemente à natureza um problema que esta não sabe mais resolver: destruir objetos. Os cemitérios de automóveis, que fazem parte hoje da decoração de todas as periferias urbanas, são ilustrações gritantes desse desafio. A propósito, no mesmo trabalho, Louis-Vincent Thomas (1979) observou os paralelismos entre os dejetos e a morte: o que se joga fora perdeu suas funções vitais ou teve a morte socialmente decretada. Em uma sociedade governada pelo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
princípio de rentabilidade, cadáver e dejeto são iguais, definidos pela incapacidade de rentabilizar, ambos essencialmente inúteis. Em ambos os casos, a mesma pergunta se coloca continuamente: como se livrar disso? – pergunta que recebe respostas análogas, pois os dois são jogados em um buraco para que todos se esqueçam o mais rapidamente possível do futuro que nos está reservado, para que não se fale mais sobre isto. "De uma parte e de outra, é a mesma intenção de supressão material, de isolamento e de colocação distância". Tais questões são particularmente importantes no que diz respeito aos dejetos atômicos, capazes de prolongar seus efeitos no tempo e no espaço, ameaçando com terríveis conseqüências. A possibilidade de um acidente em uma central atômica (a ruptura de uma canalização, por exemplo) comporta uma catástrofe de extensões imprevisíveis – possibilidade que, naturalmente, transforma essas centrais em privilegiados objetivos militares na eventualidade de uma guerra. No entanto, os interessados nessa nova fonte de energia se esforçam em nos convencer de que os riscos são remotos, de que as instalações são seguras, de que os ganhos compensarão os riscos... Aliás, segundo os defensores desse moderno eldorado, os riscos são pequenos: afirmam que são da ordem de um acidente em vinte mil anos por reator. Tudo muito seguro: mas esquecem de dizer que se tudo der 'certo' dentro de algumas décadas existirão no mundo cinco mil reatores, o que significa uma probabilidade de um acidente nuclear a cada quatro anos. É interessante observar ainda que os que afirmam a segurança das centrais estão ao mesmo tempo inseguros dela: para que esta segurança seja efetiva é preciso proteger as usinas contra inimigos, acidentes naturais, acidentes técnicos, terroristas etc.; é preciso cercá-las de todo um aparato de disciplina, vigilância, pressão, triagem, espionagem, manipulação, terror... Aí está: a partir de nossa tecnologia, da exploração demográfica e de nossos próprios atos, plasmados pela cultura, podemos destruir o equilíbrio de uma natureza da qual nossa própria vida depende. Para evocar a presença dessa catástrofe, não é necessário pensar em bomba nuclear: nossa própria vida tornou-se agente de destruição da biosfera. Cada um de nós pode sentir hoje, concretamente, em suas vidas, a decadência das condições naturais de vida. E diante dessa consciência inevitável do ataque irreversível que fazemos à natureza, os meios de comunicação apressam-se em nos falar das riquezas inesgotáveis dos mares (até que os próprios gestos de nossa economia contra os oceanos se incumbissem de desmoralizar essa mentira), e a difundir em ******ebook converter DEMO Watermarks*******
escala industrial uma falsa consciência ecológica. Esta falsa consciência ecológica quer nos ensinar a evitar fontes particulares de poluição, a crer que o problema pode se reduzir ao simples controle das descargas dos automóveis e das fábricas, à redução das taxas de colorantes e conservantes de nossos alimentos ou a passeios freqüentes por paisagens rurais. Mas não é só o meio urbano que está sendo atingido. É o conjunto do meio natural, é todo o ecossistema planetário que está ameaçado pelos dejetos industriais, pelo escapamento dos motores, pela agricultura química. Não se trata somente de uma hecatombe animal, que promete transformar a Terra em um deserto. Não se trata somente da destruição da cobertura vegetal da terra e do desaparecimento em cadeia das espécies animais e vegetais. Também não se trata de medidas de preservação que se possam tomar aqui e ali. Tratase de muito mais do que isso: da colocação em questão de toda uma civilização, do reexame radical de todos os nossos valores. A isto esta falsa consciência ecológica se recusa. Esta falsa consciência ecológica, preocupada com replantios de árvores e filtros nas chaminés, esquece e faz esquecer que vivemos em uma sociedade na qual a natureza foi transformada em escrava e reduzida à condição de matéria a ser desfrutada em nome de um consumo opulento que assegura o crescimento industrial. Cúmplice do sistema de consumo, esta consciência ecológica deixa de mostrar que o crescimento do sistema não se faz através da proliferação de coisas realmente necessárias, que a maior parte dos produtos não se destina a satisfazer necessidade alguma que não tenha sido criada pelo próprio sistema e que é necessário uma quantidade maior de produtos para garantir o mesmo grau de 'in-satisfação' de 'necessidades'. Para garantir maior consumo, substituímos os transportes em escala orgânica por transportes em escala mecânica e mais tarde os transportes ferroviários por transportes rodoviários (consomem sete a oito vezes mais energia e se desgastam muito mais depressa); substituímos os objetos aparafusados, que podem ser facilmente reparados, por objetos soldados, que devem ser jogados fora porque impossíveis de recuperar; substituímos embalagens degradáveis por outras não degradáveis e mesmo assim devem ser jogadas fora; introduzimos o hábito de consumir coisas imediatamente descartáveis – enfim, organizamos um sistema de vida que é uma punção constante da natureza. Este sistema de vida, nossa falsa consciência ecológica não denuncia. E não denuncia porque é parte do próprio sistema. Assim, os ornais de domingo em Nova Iorque e em outras cidades industriais são cada ******ebook converter DEMO Watermarks*******
vez mais volumosos: cada número dominical do New York Times custa 77 hectares de florestas canadenses (15 hectares para o número ordinário) e é em grande parte ocupado por publicidade que incita a consumir outros objetos. Na maior parte das vezes estes objetos são inteiramente dispensáveis e aí está uma das razões pelas quais este consumo deve ser estimulado publicitariamente. Cora Dubois (1976: 77) dá a palavra a uma anciã wintu, falando com pesar da relação dos homens brancos com a natureza: A gente branca nunca quis saber da terra, dos gamos ou dos ursos. Quando os índios matam carne, comem-na toda. Quando desenterramos raízes, fazemos buracos pequenos... Não derrubamos as árvores. Só usamos madeira morta. Mas a gente branca revolve a terra, abate as árvores, mata tudo... O espírito da terra odeia-a. Os brancos arrancam as árvores e tumultuam as entranhas da terra. Serram as árvores. Isso fazlhes mal, causa-lhes dores. Os índios jamais magoam seja o que for... O mesmo contraste podemos sentir nas relações que os mbuti têm com a floresta. Segundo a expressão de Maurice Godelier (1974) a floresta para os mbuti é "tudo". Ela é o conjunto de todos os seres animados e inanimados; constitui uma realidade superior aos diferentes bandos locais e aos indivíduos: existe como uma Pessoa, uma divindade à qual os mbuti se dirigem utilizando termos que designam ao mesmo tempo o pai e a mãe, o amigo e o amante. A Floresta isola e protege, oferece caça e mel, bane as doenças e pune os culpados. A Floresta é a Vida. A morte acontece porque a Floresta adormeceu e por isso é necessário despertá-la a fim de que continue sendo pródiga em alimentos, saúde, felicidade, compreensão e harmonia social para todos os mbuti, qualquer que seja o bando a que pertençam. Quando alguém morre, durante um mês e quase todos os dias o bando caça com mais intensidade que de hábito, capturando uma quantidade maior de animais que são divididos e consumidos em um festim seguido de danças e cantos que duram até quase a aurora. De manhã a voz da Floresta chama de novo os mbuti para novas caças e novas danças... Estes sistemas de ritos e crenças podem nos parecer superstições ridículas, mas têm por efeito conservar o grupo humano em equilíbrio com o meio natural. Pode ser inconcebível para nós que uma planta seja considerada um ser respeitável e que ninguém a colha sem um motivo muito importante, sem observar prescrições rituais que objetivem apaziguar os espíritos da natureza. Pode parecer incompreensível que animais de caça sejam protegidos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
magicamente contra os abusos dos caçadores que não poupem as fêmeas e os filhotes. Pode parecer puro idealismo romântico acreditar que os homens, os animais e as plantas constituem uma única relação recíproca de vida e que todos os excessos contra um sejam um ataque contra os outros... Mas foi sob essa filosofia que a humanidade conseguiu viver os muitos milênios de sua existência na Terra – sem jamais colocar-se, sem jamais colocá-la, em perigo de extinção. Nossas filosofias ocidentais acentuam, quase todas, a supremacia do homem sobre o resto da natureza. Fazem desta apenas um cenário destinado a enquadrar a existência temporária dos homens sobre a Terra. Deus os abençoou [o homem e a mulher] e lhes disse: "crescei e multiplicaivos, e enchei a Terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra. Disse-lhes também Deus: Eis, aí vos dei eu todas as ervas, que dão as suas sementes sobre a terra; e todas as árvores, que têm suas sementes em si mesmas (...) para vos servirem de sustento a vós (...)". (Gênesis 1, 28-29) Assim, encontra o homem ocidental uma justificativa moral para se transformar em agente geológico capaz de decretar o esgotamento de todas as fontes de energia e a paralisação de um planeta tornado inabitável. Em uma só geração, sem enfrentar nenhum obstáculo de ordem ética ou mítica, nós aniquilamos recursos e energias que desde milhões de anos jaziam nas entranhas do planeta: o carvão é explorado há oitocentos anos, mas quase a metade já tinha sido extraída antes dos meados do século XX; a metade do petróleo bruto conhecido até por volta de 1975, gerado desde as origens da humanidade, foi consumida nos dez anos anteriores; o urânio deverá desaparecer se forem construídas todas as centrais nucleares previstas. Ao contrário de objeções éticas ou míticas, até poucos anos economistas e políticos de todas as colorações teóricas e ideológicas consideravam retrógradas e reacionárias todas as posições ligadas às transformações das relações do homem com a natureza e à moderação do ritmo da sociedade industrial. Esta questão põe igualmente em evidência o mito do desenvolvimento econômico para as nações pobres. Esta máquina de destruição da natureza é também de destruição do homem – e os pobres dela são as primeiras vítimas. Até as últimas décadas do século XX o mundo rico, com 29% da população do planeta, utilizava e esbanjava mais de 80% dos recursos mundiais e não ******ebook converter DEMO Watermarks*******
aceitava em nenhuma hipótese uma redução do que se chama 'nível de vida'. Ora, não havendo redistribuição da riqueza existente não há redução possível da pobreza. Os projetos de enriquecimento de todos devem ser imediatamente excluídos como impossíveis, pois planeta algum pode resistir a um ritmo de produção e consumo comparável ao do americano médio. Por exemplo, se todos os humanos consumissem tanto petróleo quanto o cidadão americano as reservas conhecidas deste líquido durariam apenas sete anos. Conseqüentemente, a continuar imperando um sistema de vida em que duzentos milhões de americanos consomem e poluem mais do que o fariam cinco bilhões de índios, a defasagem entre as zonas desenvolvidas e os países dominados não desaparecerá jamais e o nível de vida dos países pobres não se aproximará nunca do 'nível de vida' dos países industrializados. Portanto, para estes países é outra a direção a ser buscada, diferente da opção industrial (que deve ser eliminada de seus horizontes e de todos os outros). Este impasse do desenvolvimento a falsa consciência ecológica não denuncia. Limita-se a discutir as datas prováveis de esgotamento deste ou daquele mineral e a procurar desacelerar o ritmo de sua exploração enquanto um substituto não seja encontrado. Contenta-se com pregar a utilização do mineral substituto, quando este seja conhecido. Limita-se a propor que as raridades produzidas pelo sistema de produção sejam superadas por uma produção aumentada, agravando, assim, necessariamente, as raridades: o aumento da produção de energia aumenta a poluição, que será combatida com construções, usinas de beneficiamento e de purificação, que aumentarão o consumo de energia, que aumentará a poluição, e assim por diante – fazendo com que se gaste mais e mais energia e recursos para se proteger contra suas próprias atividades, para se proteger de si mesmo. Presa neste círculo vicioso, essa consciência ecológica cria os clubes de férias nos quais os ricos vão mergulhar em elementos naturais, vão se evadir das dificuldades urbanas, descobrir os modernos paraísos, esses ecossistemas artificiais que escondem e ao mesmo tempo revelam a morte da natureza. Uma verdadeira consciência ecológica não é nada disso: é uma maneira de olhar as contradições da sociedade industrial, uma crítica radical de seu relacionamento com a natureza, questionando a própria organização da sociedade e suas razões de ser. Para esta verdadeira consciência ecológica, as depredações impostas à natureza, a poluição e tudo mais não são meros subprodutos do desenvolvimento e da sociedade industrial, mas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
conseqüências tão lógicas quanto fatais. Comportam o espectro da Morte, concretizam o que Morin (1975: 250) chamou de "ideologia de Cortez e de Pizarro".
******ebook converter DEMO Watermarks*******
17 Sobre a guerra Existem sociedades inteiramente avessas à guerra e que jamais a praticam. Nada há que nos obrigue a supor que este gênero de violência seja indispensável ao funcionamento das sociedades. Entre tribos que nunca guerreiam e que parecem não encontrar prazer algum na violência podemos lembrar, entre muitas outras, os lepcha do Himalaia, os pigmeus que vivem na floresta Ituri do Congo e os arapesh da Nova Guiné. Estas sociedades, que vivem em montanhas, desertos e florestas distantes, têm como principal característica comum o fato de não procurarem exercer dominação sobre seus vizinhos, capturá-los ou matálos, embora possuam armas suficientes para fazê-lo. Não obstante a existência de sociedades como essas, do ponto de vista antropológico a guerra não é uma exceção: indivíduos e grupos podem se associar de diferentes maneiras, combatendo-se inclusive. À primeira vista a luta pode parecer o oposto da sociabilidade e da cooperação, por ser essencialmente um antagonismo. No entanto, pode desempenhar uma função social importante. Não somente grande parte das hierarquias sociais foram historicamente estabelecidas a partir de guerras, como também, e de uma maneira muito mais ponderável, as guerras funcionam como mecanismos de identificação grupal, a partir da oposição que estabelecem entre o 'nós' tribal e o 'ele' inimigo. Exercem uma função lógica e sociológica, na qual a alteridade é muito mais resultado do enfrentamento que propriamente a sua causa – coisa difícil de compreender para os membros de uma sociedade que, incapaz de tolerar o 'outro', aniquilao constantemente. Entre os tupinambás e os uroni, povos que se preparavam seriamente para serem brutais e implacáveis em relação aos inimigos em campo de batalha, a guerra era vista como uma espécie de homicídio ritual. Antes de se lançar à luta os guerreiros se pintavam e se decoravam, invocavam os antepassados, drogavam-se com substâncias alucinógenas para entrar em contato com os entes protetores e reforçavam suas armas com fórmulas mágicas. Os inimigos mortos em campo de batalha representavam na verdade 'sacrifícios', no sentido de que suas mortes satisfaziam os ancestrais e eram meios pelos quais os guerreiros comungavam com o passado e solidificavam o presente. Da mesma maneira, os dani da Nova Guiné (Gardner & Heider, 1969), que vivem em clãs potencialmente inimigos entre si, crêem ser necessário fazer a guerra para a prosperidade da ordem social e para obter saúde e felicidade através da expressão de agressividade contra os inimigos tradicionais. Suas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
batalhas, combinadas previamente, duram um dia inteiro, desde que não chova ou que não faça muito calor, casos em que os combates deverão ser adiados. A decisão de organizar uma batalha é tomada pelos chefes de guerra, que se interpelam aos gritos. Passam toda a manhã preparando a batalha, até que por volta do meio-dia os exércitos se alinhem um diante do outro, a uma distância de cerca de quinhentos metros. Assinalando o início do combate, um pequeno grupo avança até cerca de cinqüenta metros da linha inimiga e lança flechas. Bate em retirada em seguida e repete várias vezes este ataque ritual. Depois destes preliminares passa-se à segunda fase da 'guerra', que consiste principalmente em uma série de escaramuças nas quais grupos de cerca de duzentos guerreiros lançam suas flechas durante dez ou quinze minutos. Quase toda a energia é gasta em se esquivar das flechas do inimigo e em tentar armar-lhe uma cilada. Coisa complicada, porque o combate é feito em terreno aberto. Após algum tempo os guerreiros que moram mais longe começam a se retirar de modo a estarem em casa antes que a noite caia. Então, as flechas dão lugar às injúrias de parte a parte. No final das contas, a batalha custou algumas feridas superficiais, provocadas por flecha ou lança. Às vezes, mas raramente, pode acontecer de alguém morrer, o que será sempre um acidente deplorável: em todo um ano, os mortos são em número de dez a vinte, menos do que se morre de gripe entre os dani, embora a guerra seja uma instituição envolvendo todos os homens. Essa ritualidade predominante nas guerras da maior parte das sociedades está muito distante do que se imagina ser guerra em nossa sociedade. Aqui, procura-se evitar que as crianças tenham contato com os mortos e com a morte, mas se lhes permite divertir-se com filmes sobre guerras e destruições e se lhes dão armas em miniatura como presentes. Aqui se aumentam incessantemente as despesas militares, ao mesmo tempo em que se engajam cada vez menos os militares nos combates e no planejamento das guerras. O lado ritual da guerra praticamente desaparece, aqui, sob a hipervalorização de sua função destrutiva. Em oposição a enfrentamentos em que muitas vezes os adversários se conhecem pessoalmente, nossas guerras são cada vez mais tentativas de aniquilamento em massa de objetivos civis. A indústria e a tecnologia modernas, colocadas a serviço da guerra, exigem destruição em escala industrial. Podemos lembrar, a propósito, um acontecimento ocorrido no início da Primeira Guerra. Quando os zepelins alemães começaram a fazer incursões noturnas sobre Londres, Bernard Shaw escreveu uma carta ao Times ******ebook converter DEMO Watermarks*******
sugerindo que o Conselho do condado de Londres tomasse providências no sentido de construir abrigos para as crianças das escolas, temendo que a Alemanha adotasse sistematicamente este método de ataque. Os redatores do Times ficaram tão indignados com a sugestão de Shaw, que quase não permitiram a publicação da carta. Em editorial, acusaram-no de irresponsabilidade, porque havia ousado acenar, ainda que por brincadeira, com a possibilidade de que um governo civil, como era o alemão, pudesse aviltar-se tanto a ponto de pretender fazer incursões aéreas contra cidadãos pacíficos. Como a história largamente demonstrou, Bernard Shaw não teve necessidade de defender-se, já que a resposta acabou vindo dos próprios alemães. Desde então os objetivos civis têm sido privilegiados pelos militares: destruir as cidades é levar ao fim a resistência do adversário e desmoralizá-lo. Em Hiroxima o bombardeiro provocou um furacão de fogo que durou seis horas e devastou inteiramente uma extensão de mais de 10 km2, destruindo literalmente toda a cidade. A operação foi repetida três dias mais tarde, desta vez sobre Nagasáqui, levando o Japão a render-se. Esses dois bombardeios fizeram mais de 100 mil mortos e de 200 mil feridos. Cada uma dessas bombas possuía uma potência de cerca de 20.000 toneladas de TNT (trinitrotolueno), ou seja, duas mil vezes mais que as maiores bombas de TNT usadas durante a guerra (Clarke, 1971). Desse modo penetramos na época da guerra-extermínio, fazendo nossas a teoria e a prática de nossos inimigos fascistas. Instituímos o genocídio como técnica bélica, isto é, eliminamos da guerra o que ela tem – por mais paradoxal que isto possa nos parecer – de respeito humano e de atribuição de uma certa dignidade ao 'outro'. Dignidade que faz dele um ente à altura de ser considerado adversário. O genocídio é o mais antigo e brutal substituto da guerra. Mas apresentou-se em nosso tempo sob o nome de 'guerra total', que consiste não mais em enfrentar os exércitos inimigos sobre os campos de batalha, obtendo sucessos militares, mas em disseminar pânico e morte entre as populações civis, com o mínimo risco possível para o agressor. Madri, Varsóvia, Londres e Roterdam foram os primeiros objetivos dessa guerra total, inaugurada pelos fascistas. Mas não se limitou a eles o número de adeptos, pois antes do fim da Segunda Guerra, os americanos já se haviam convertido, aperfeiçoando os métodos de matar em massa. Um bombardeio aéreo sobre Tóquio, por exemplo, causou 180.000 vítimas em uma só noite. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Uma das conseqüências dessa moderna forma de guerra é que a relação mortos militares/mortos civis se inverteu: na guerra de 1914-18, cerca de 13% dos mortos eram civis; na guerra de 1939-45, a porcentagem foi de 70%; na Guerra da Coréia, de 84% e na Guerra do Vietnã, para 900.000 soldados vietnamitas mortos, 4.300.000 civis perderam a vida. "Na batalha do Globo, se ela tiver lugar, a humanidade chegará ao cúmulo do absurdo: porcentagem dos civis entre os mortos = 100%, porcentagem de militares = 0%" (Clarke, 1971: 279). Segundo Getting (1963), de 1820 a 1999 o número de mortes causadas por guerras tem evoluído, prospectivamente, da seguinte maneira: de 1820 a 1859, 800.000 mortos em 92 guerras, isto é, 0,1% da população mundial; entre 1860 e 1899, 4,6 milhões de vítimas fatais em 106 guerras, quer dizer, 0,4%; de 1900 a 1949, 42 milhões em 117 guerras, o que significava 2,1% da população; entre 1950 e 1999, se continuar o mesmo ritmo, deverá haver 406 milhões de mortos e 120 guerras, o que representará 10,1% da população mundial. Enfim, na faixa entre os anos 2000 e 2050, 4.050 milhões de vítimas, equivalentes a 40,5% dos homens. Estes números não levam em consideração o emprego das modernas armas atômicas, hipótese em que todos esses cálculos não farão o menor sentido. Não obstante, as armas nucleares estão aí e as armas convencionais são cada vez mais terríveis pelos efeitos diretos e indiretos: três quintos do Vietnã estão por longo tempo impossibilitados de serem cultivados por causa da destruição dos diques que protegiam os arrozais: por causa do lançamento de pesticidas e herbicidas que comprometeram gravemente o equilíbrio natural, produzindo altos riscos de câncer; por causa da craterização do solo, com o conseqüente enterramento da camada de húmus e a multiplicação dos riscos de malária; por causa da carbonização da superfície, produzida pelas bombas de napalm e assim por diante. A exportação de armas cresceu 700 vezes entre 1950 e 1970, o que representou uma taxa de progressão anual de 9%, ou seja, quase duas vezes o crescimento anual médio do Produto Nacional Bruto (PNB) dos países subdesenvolvidos (Getting, 1963). Desse comércio participaram todos: ricos e pobres, comunistas e capitalistas. Na maior parte dos países os orçamentos militares são superiores aos de saúde. Tais gastos têm estado acima de qualquer suspeita e acima de todo debate. Qualquer pensamento de redução dos mesmos com freqüência tem ressoado como medida antipatriótica, como alta traição. Resultado dessa corrida armamentista: a bomba atômica que destruiu ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Hiroxima é hoje uma arma insignificante diante dos explosivos modernos. Somando apenas os 'recursos' dos Estados Unidos e os legados pela antiga União Soviética, a moderna tecnologia bélica é capaz de destruir algumas dezenas de vezes todos os traços de vida sobre a Terra. Por que dezenas de vezes se uma vez só seria muito mais que suficiente? – eis uma pergunta impossível de ser respondida em termos militares. A resposta exigiria o exame das relações que nossa cultura mantém com a natureza: obsessivamente voltado para a conquista da natureza, o homem hoje é capaz de destruir a espécie humana e passou a ter direito de veto sobre a evolução de sua própria espécie. Nada pode nos assegurar que não o faça, sobretudo se levarmos em consideração que o custo de fabricação de bombas nucleares baixa rapidamente e as põe ao alcance também dos países subdesenvolvidos, democratizando ironicamente o 'direito' de destruir o planeta. Além disso, não está excluída a possibilidade de que em futuro mais ou menos próximo técnicos de média qualificação venham a ser capazes de improvisar uma bomba rústica, ampliando o problema de sua proliferação, colocando-a ao alcance de um maior número de megalomaníacos. Não é indispensável que estes armamentos sejam acionados para que o poder destrutivo deles opere. As riquezas extraordinárias empregadas em armamentos provocam desperdício de minerais, de espaço, de energia e de cérebros. Assim, em quase todos os países industrializados ou fortemente militarizados, a maior parte dos orçamentos de pesquisas é encampada pelos militares – pesquisas essas que muitas vezes não são publicadas, por serem consideradas 'segredos estratégicos'. Ainda mais: os armamentos poluem perigosamente as águas e o ar, provocam leucemias (radiatividade produzida pelas experiências nucleares), alterações genéticas que até o momento não se soube explicar muito bem... A eventualidade de uma guerra nuclear é causa de uma das maiores crises que afetam nossas sociedades contemporâneas, pelo simples fato de ser uma possibilidade apropriada e manipulada por quase todos os poderes nacionais e internacionais – inclusive através do sofisma de que as armas são meios dissuasórios de impedir a guerra. A ciência é um grande aliado do moderno militarismo. Não é por pura consciência que a teoria atômica está na raiz da bomba atômica do ponto de vista dos termos e da prática. A ciência é também Nagasáqui e Hiroxima, é Vietnã e Coréia, é os campos de concentração alemães e suas experiências sobre seres humanos, é as projeções sobre os mortos prováveis de uma guerra nuclear, é os resultados colaterais de pesquisas militares. O poder do homem ******ebook converter DEMO Watermarks*******
sobre a morte é também poder de morte sobre os semelhantes: estão aí as armas bacteriológicas, as técnicas de tortura 'cientificamente' estudadas para obter melhores resultados sem deixar que a vítima morra, a bomba de nêutrons que é capaz de destruir todas as vidas e preservar as riquezas, bombardeando uma região com raios gama e de nêutrons. Tudo isso dá sentido pleno à constatação de que o melhoramento e o aparente maior teor de segurança de nossas condições atuais de vida configuram-se como produtos secundários de uma pesquisa científica posta ao serviço do aniquilamento. Tudo isso impõe o mais radical reexame da ciência e sua desmistificação. Os poderosos se transformaram em árbitros da vida e da morte de toda a humanidade. Ingenuamente acreditamos (por falta de crença melhor) que, afinal de contas, seria necessário um louco para acionar estes armamentos e que Hitler está definitivamente morto. Esquecemos que muitos estiveram perto de Hitler depois de sua morte. Esquecemos, sobretudo, que a loucura que esperávamos de Hitler foi Truman quem a cometeu. Estamos inteiramente enganados em nossa crença de que seria necessário que um louco chegasse ao poder para que esses armamentos deixassem de ter efeito apenas dissuasório. Isto porque não é a bomba atômica em si mesma que comporta real perigo, mas a nossa vontade de usar qualquer meio de extermínio, ou seja, o ethos da bomba atômica. Nos tempos antigos os exércitos invasores querendo exterminar o inimigo poderiam envenenar as reservas de água das populações civis. Mas o envenenamento da água é um tabu de guerra que raríssimas vezes foi violado: porque a destruição nunca valeu por si, porque guerra não era sinônimo de extermínio e de genocídio. Estamos enganados quando cremos que seja necessário que um louco ocupe o poder para que estes perigos sejam efetivos, simplesmente porque os loucos á estão no poder. Como disse Michel Serres (1972: 200), "os loucos perigosos já estão no poder, pois eles é que construíram esta possibilidade, organizaram os estoques, prepararam finamente a extinção total da vida. A psicose deles não é um acesso momentâneo, mas uma arquitetura racional, uma lógica sem rasuras, uma dialética rigorosa".
******ebook converter DEMO Watermarks*******
18 O outro morto Nossa civilização não se limita a desenhar o fantasma da morte coletiva em seus horizontes próprios. Ela leva a realidade dessa morte às outras sociedades. África, América, Ásia foram ou estão em vias de ser devorados por este espectro. O caso da América é exemplar e permite compreender o funcionamento dessa máquina de destruição. Na ocasião da chegada dos espanhóis havia de tudo entre os indígenas americanos: astrônomos, canibais, engenheiros, matemáticos, guerreiros, nobres, plebeus, ouro, prata... Mas nenhuma das culturas americanas conhecia o ferro, nem a pólvora e o emprego da roda era praticamente inexistente. A civilização que aqui aportou veio contaminada de idéias conquistadoras e subjugadoras, próprias do Renascimento, das cruzadas, dos romanos, dos faraós... A real conquista não se verificou jamais, mas a destruição foi fácil: as civilizações nativas não adotaram os padrões que lhes traziam os europeus, mas sucumbiram rapidamente. Fernão Cortez desembarcou em Vera Cruz acompanhado de cerca de 100 marinheiros e 500 soldados, trazendo uns dez canhões, mosquetões, pistolas e alguns arcabuzes. E isto foi suficiente, embora a capital dos Astecas, Tenochtitlan, fosse cinco vezes maior que Madri e tivesse o dobro da população das maiores cidades espanholas. Pizarro entrou em Cajamarca com 180 soldados e 37 cavalos, encontrando um exército de 100 mil índios para defender um império que se estendia sobre todos os Andes Centrais. Além disso, as bactérias e os vírus foram aliados importantes: os europeus traziam consigo a varíola e o tétano, várias doenças intestinais, pulmonares e venéreas, o tifo, o tracoma, a febre amarela e a lepra, as cáries... Os índios morriam em quantidade, porque seus organismos não opunham resistência às doenças novas, fator responsável pelo desaparecimento de quase metade da população indígena logo ao primeiro contato. Entre 1492 e 1551 toda uma civilização foi destruída pelos espanhóis, após a queda dos impérios inca e asteca. Os índios morreram ou foram condenados ao trabalho forçado em terras que lhes foram arrancadas e que viraram propriedade dos invasores. Todas as estruturas políticas foram arrasadas, como o tinham sido a economia, os sistemas de irrigação, o urbanismo, a rede de estradas... Entre 40 e 100 milhões de pessoas viviam na América em 1500, segundo as diferentes estimativas. A catástrofe foi muito maior do que comumente se supõe (Ribeiro, 1973), pois um quarto da humanidade foi exterminado pelos micróbios e pela sede de ouro dos europeus. Entre os incas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
os 10 milhões de indivíduos de 1530 foram reduzidos a um milhão em 1600, enquanto no México a destruição atingiu 96 em cada 100 indígenas. Os que sobreviveram foram condenados ao trabalho nas minas até a morte, obrigados a colaborar com o imenso saque destinado a financiar o capitalismo europeu. Essa destruição se baseou nas próprias características das sociedades destruídas, vítimas de sua sociabilidade. Os invasores não foram recebidos como invasores, mas como estrangeiros aos quais se deve hospitalidade. Ainda assim, mesmo quando transformados em inimigos, a inimizade não chegou a lhes negar uma certa dignidade. Do ponto de vista europeu, ao contrário, o índio era mero objeto, um instrumento para ou contra a obtenção das riquezas, destituído de qualquer atributo humano respeitável. Para manipular essas características o invasor usou duas táticas fundamentais: o saque e a invasão. A invasão e a rapina, conforme Robert Jaulin (1979a) observou, caminham juntas: sobrecarregar uma comunidade de objetos estranhos é um dos muitos modos de saquear esta comunidade. Estes objetos, recebidos com boa acolhida e curiosidade exatamente porque são estrangeiros, são dotados de imenso poder destrutivo pela corrosão que produzem no cotidiano tribal, na medida em que são elementos exteriores, não pertencentes ao sistema de relações humanas que definem a comunidade. Não é por coincidência simples que ao menos nos primeiros contatos tais objetos são dados aos indígenas e não vendidos ou trocados. Estes elementos penetram no cotidiano da comunidade e efetuam o saque 'por dentro' ou 'de dentro'. Por isso, o saque econômico e político é freqüentemente associado à difusão de tais produtos que efetuam um trabalho de conversão ao estrangeiro, de sedução e de criação de 'necessidades'. Por isso, aos povos colonizados os conquistadores querem sempre socorrer, vestir, alimentar, instruir, cuidar, alojar, civilizar, sanear... Não é só pela eliminação física que levamos a morte coletiva às outras civilizações. Pelo contrário, uma sociedade poderosa e agressiva como a nossa otimiza a vida e a valoriza como energia e consumo. Ela só mata em determinadas condições, ditadas por sua racionalidade particular. Ela tem necessidade de vidas para poder se estender, para encontrar força de trabalho e mercado consumidor. Ela é essencialmente conquistadora, precisa que homens vivos existam para serem conquistados. Por isso está mais interessada em destruir as relações humanas que prevalecem entre os indivíduos do que em destruir em si mesmos estes indivíduos. Seu objetivo sendo a introdução de bens industriais produzidos em escala maciça, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
homogênea e estandardizada, seu inimigo só pode ser a diferença, não necessariamente os indivíduos portadores de diferença. Seus inimigos são indivíduos sociais, não indivíduos biológicos. O problema real não é o genocídio, mas o etnocídio, a liquidação do diferente. Massacrar ou assimilar, reprimir ou depositar em reservas, utilizar, suprimir, esterilizar, comprar, vender, investir... são meios de realizar o etnocídio, implicando ou não genocídio. A negação do outro é uma postura civilizacional que pode se operar do modo mais cordial. Desse fato inúmeros missionários, indigenistas e antropólogos nos deram a prova, no momento mesmo em que pensavam estar a ajudar os indígenas e a lhes oferecer o 'bom' caminho. Essencialmente, quer pela destruição pacífica quer pela destruição material do outro, o etnocídio é o crime que nossa civilização comete contra povos que nos apresentam uma diferença que não conseguimos aceitar. Esta diferença não consideramos que o outro tenha direito de possuir. A coexistência com o outro é inteiramente contraditória com a estrutura de nossa sociedade, mesmo que ela o ignore, mesmo que o extermine. Por esta razão, o primeiro movimento dela será na direção de liquidar o outro enquanto outro e de transformá-lo em 'mesmo'. Esta urgência de liquidação do outro, este movimento de expulsão das pessoas e comunidades delas mesmas, é um ponto crucial na caracterização da dimensão de Morte da sociedade ocidental: do banimento dos mortos (que são 'outros' em relação aos vivos), do banimento da morte (que é 'outra' em relação à vida), da expulsão dos indivíduos de si mesmos (na medida em que, privados da morte, perdem a noção de seus limites). Tocamos aqui em mais um ponto contraditório e paradoxal de nossa sociedade em sua relação com a morte: detestando a morte e os mortos como outros, esta sociedade bane os mortos e mata a morte. Contudo, no momento em que os bane, no momento em que estabelece ruptura e oposição entre vivos e mortos e entre a vida e a morte, ela os transforma em outros que ela detesta. Ao destruir o outro pelo genocídio, pelo etnocídio, pelo consumo, guerra ou trabalho, ela os transforma em mortos – ainda 'outros', destinados a serem destruídos. Desse modo, a dinâmica de destruição não tem fim. E na impossibilidade de transformar o outro em mesmo, ou seja, os mortos em vivos, terminará fatalmente por transformar os vivos em mortos: movimento que contém o apocalipse total como possibilidade perfeitamente lógica. Este apocalipse já o viram muitas civilizações. No final do século XVI os indígenas sobreviventes do Peru eram levados ao suicídio para se livrar do ******ebook converter DEMO Watermarks*******
desespero e dos maus tratos que lhes impingiam os espanhóis: alguns se enforcavam, outros se deixavam morrer de fome, outros ingeriam ervas venenosas; mulheres matavam seus filhos no momento do nascimento para livrá-los dos tormentos que os aguardavam. Os índios da América do Norte que vivem hoje nas reservas apresentam uma taxa de suicídio maior que a taxa geral americana. Entre esses índios o suicídio atinge sobretudo os jovens de menos de trinta e cinco anos e é, segundo as diversas tribos, tanto mais atuante quanto mais destruídas se encontrem as estruturas tradicionais. Segundo Galeano (1978), em Cuba, durante o século XIX, muitos escravos se suicidaram em grupo, tentando por esse caminho enganar o amo: acreditavam que desse modo ressuscitariam com carne e espírito na África. Mas os senhores respondiam a esta indisciplina mutilando os cadáveres, para que os escravos ressuscitassem castrados, manetas ou decapitados: desse modo, conseguiam com que muitos desistissem da idéia de se matar. O mesmo autor ilustra os efeitos da 'conquista' sobre os indígenas da Guatemala: Os efeitos da conquista e todo o longo tempo de humilhação posterior despedaçaram a identidade cultural e social que os indígenas tinham alcançado. Todavia, essa identidade fragmentada é a única que persiste na Guatemala. Persiste na tragédia. Na Semana Santa, as procissões dos herdeiros dos maias dão lugar a terríveis exibições de masoquismo coletivo. Arrastam pesadas cruzes, participam da flagelação de Jesus passo a passo, durante a interminável ascensão do Gólgota; com gemidos de dor, convertem Sua morte e Seu enterro no culto da própria morte e do próprio enterro, a aniquilação da formosa vida remota. A Semana Santa dos índios guatemaltecos termina sem Ressurreição. (Galeano, 1978: 61-2) Diante de uma sociedade incapaz de compreender a diferença de outra maneira que em termos de desigualdade, diante de uma cultura que não vê como alternativa para o outro senão a assimilação ou a destruição, as demais civilizações morrem. Morrem pela destruição física de seus membros ou pela necrose dos tecidos do grupo social que constituem. Assimilação e destruição são, do ponto de vista do 'outro', a mesma coisa: privadas de seus próprios pontos de referência, essas sociedades se vêem impedidas de entrar em relação consigo mesmas, de inventar por si mesmas as suas próprias existências. Na medida em que nossas relações com estas culturas são essencialmente uma extensão de nossa civilização sobre elas e uma negação delas (Jaulin, ******ebook converter DEMO Watermarks*******
1977), na medida em que tais culturas não são mais elas mesmas, pois desprovidas de seus próprios pontos de referência, de suas relações consigo mesmas, revela-se diante de nossos olhos uma verdade palmar: nossas relações com elas são radicalmente relações conosco mesmos, e a negação e destruição que lhes portamos são negação e destruição de nós próprios. Tudo o que queremos das outras civilizações é incluí-las como objetos de manipulação em nosso mundo: vítima dessa máquina infernal, o 'outro' conquistado se transforma em 'mesmo' conquistador – para a mais completa e eficiente extensão do sistema. Esta ação destrutiva do Ocidente não é recente, ainda que agora nós a percebamos em escala industrial. Responde a alguns milênios de tradição faraônica, romana, judaico-cristã etc., e desembocou nos 'conquistadores', nos pioneiros, nos bandeirantes, nos colonos, nos missionários, nos imperialistas... Este ethos conquistador e destrutivo é certamente uma das mais assentadas premissas da sociedade ocidental: Espanha, Portugal, Inglaterra, Holanda, França, América do Norte, Rússia... não apenas foram herdeiros legítimos dessa tradição, como também asseguraram a sua preservação e a sua transmissão, destruindo sempre e cada vez mais os seus 'selvagens' do interior e do exterior. Esta eficácia crescente adquire força total a partir do momento em que o Ocidente consegue instalar dentro dos povos poderes estranhos aos povos. Isto é, a partir do momento em que em nome da independência e da descolonização o Ocidente ocidentaliza definitivamente estes povos, incutindo-lhes o ideal de estatização e de submissão a governos e burocracias inteiramente artificiais e a partir do momento em que os conduz às ideologias da modernização, do crescimento econômico, da competência profissional… Em outras palavras, a partir do momento em que os converte à religião do 'progresso' e ao culto da substituição da colonização política pela suposta independência industrial. Por esse caminho a sociedade ocidental reproduz em relação às outras culturas a mesma ação predatória que marca seu comportamento em relação à natureza. Fascinada por si mesma, nossa cultura fere a natureza e agride as outras civilizações, tentando sobre ambas imprimir o seu ser: reduzimos a natureza ao 'nós', reduzimos os 'outros' ao 'nós'. Não nos imaginamos fazer parte integrante da natureza, do mesmo modo que não reconhecemos que somos essencialmente essas relações com o outro e com a natureza. Não costumamos perceber que negar tais relações corresponde a negar a nós ******ebook converter DEMO Watermarks*******
mesmos: a ruptura que nossa sociedade impõe entre o homem e o mundo é manifestação extrema da contradição do nós com o outro e da identificação da natureza com o outro a negar e a destruir, seja pela violência, seja pela assimilação. Alargando sem cessar seu campo de influência – pela mundialização de sua cultura, pela extensão material do seu território, pela penetração insidiosa no 'outro' – nossa civilização põe fim à existência do outro, mas também à existência de si. Compreende-se: na medida em que preciso do outro para me ver, por contraste, como 'mesmo', o outro e eu estamos solidariamente unidos. Cada um de nós é para o outro a um tempo o 'outro' e o 'mesmo'. Destruindo o outro, estou automaticamente arruinando esta parte essencial de mim que o outro é. Conseqüentemente, negar o outro é negar-se a si mesmo. O preço da negação do outro é necessariamente a solidão. Mais grave ainda, esta destruição engendra as conseqüências sociológicas da solidão: se a relação de uma sociedade consigo mesma é função de sua relação com o outro, na ausência do outro ela não terá mais relação consigo mesma, isto é, será desprovida de identidade, cessará de existir como grupo social. A sociedade explodirá ou desaparecerá em decorrência da pulverização de suas partes. "O desaparecimento do outro é a asfixia que nos forjamos", observou Robert Jaulin (1974b: 20). A morte da natureza e das civilizações é ao mesmo tempo nossa Morte, "a ruptura dos laços de viver". E mais: se o olhar lançado sobre outra sociedade é o único meio pelo qual os indivíduos podem conhecer sua própria sociedade, privar-se do outro é condenar-se à submissão definitiva. Portanto, aceitar que uma sociedade seja aniquilada é provocar a própria morte de si, é compactuar com a supressão da própria liberdade ou, como disse LouisVincent Thomas (1976: 113), "é morrer da morte do outro". Não é por coincidência que nossos poderes pretendem à humanidade única e à implantação da civilização universal: nesse projeto somos os senhores, mas também somos os escravos; somos tão vítimas como as culturas que desaparecem – igualmente fadados ao desaparecimento. Podemos compreender isto facilmente se considerarmos a sociedade como um sistema de comunicação. A comunicação exige a presença do outro, porque a alteridade é sua razão de ser: supõe a existência de uma diferença a ser trocada, porque o 'mesmo' não se comunica com o 'mesmo'. Se a sociedade ocidental for uma civilização de 'mesmos', a comunicação em seu seio será impossível e ela não poderá se manter enquanto sociedade: "a ******ebook converter DEMO Watermarks*******
referência a um único sistema de civilização implica o silêncio" (Jaulin, 1977: 55). Expandindose, desenvolvendo ao máximo sua própria lógica, nossa civilização encontrará a perfeição total e se descobrirá só. Como em todo sistema de perfeição total, a eficiência absoluta significará paralisia, entropia, Morte: nenhum sistema pode subsistir sem receber ajuda do exterior. Não se trata de propor o empalhamento das culturas e a paralisação de sua história. Não se trata absolutamente de escravizar as culturas às suas características distintivas atuais, de impedir que mudem em seus ritmos e direções próprios. Não se trata de privilegiar qualquer diferença particular. Não: as diferenças podem ser quaisquer umas, seus conteúdos localizados importam pouco. É o fato da diferença, a existência da alteridade, que deve ser conservado. O que nossa sociedade faz é destruir o fato da diferença, produzindo uma imensa monocultura, uma imensa massificação que nos tornará cada vez maiores e mais sós, cada vez maiores e menores. Destruindo as alteridades autênticas, nossa sociedade, tentando sobreviver, cria internamente outras diferenças. Ela privilegia o indivíduo, ela o especializa e fragmenta, rompe os liames do indivíduo com a comunidade. O indivíduo se torna incapaz de ver e de sentir a comunidade: desprovidos de padrões comuns de relacionamento, estes indivíduos conseguem cada vez menos se comunicar e são o ponto onde a desagregação da sociedade se mostra de modo mais agudo. Contra uma desagregação que opera em escala industrial, é necessária uma solidariedade igualmente produzida nos laboratórios: não conheço mais o meu vizinho, sequer o cumprimento, mas sofremos juntos, na mesma hora, cada um em seu apartamento, o mesmo drama da heroína que os media nos oferecem. Ou ainda, contra uma desagregação que se realiza em virtude da falta de 'outros' autênticos, é necessário produzir 'outros' artificiais que nos ajudem a gerar uma consciência fantasmática de nós mesmos: multiplicam-se as rachaduras internas entre classes, entre raças, entre povos, entre nações, entre minorias de todo tipo... Assim, a realização da 'megaetnia', ideal explícito de muitos filósofos desde a Antiguidade, não poderá ser outra coisa senão a concretização desta solidão total e o caminho para a 'megamorte'. Algo dessa possibilidade se revela já em nosso imaginário, na nossa ficção futurista, talvez de modo inconsciente: nossas representações da aventura espacial estão repletas de mitos em que a Terra é invadida por seres extraterrestres, desconhecidos que vêm nos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
dominar e destruir. Como se algo dentro de nós nos acusasse, criamos estes Cortez e Pizarro dos séculos vindouros, desta vez contra nós – talvez porque algo secretamente nos diga que eles sempre estiveram contra nós. Assim como os marinheiros portugueses viam monstros nos mares, nós enxergamos monstros no espaço. Estranha analogia, reflexo da mesma atitude civilizacional: nossa atitude diante do espaço é a mesma que sustentamos diante do 'outro'. Nada tem de uma curiosidade impulsionada pela sociabilidade, por uma vontade de travar contato com o diferente: é uma 'conquista', orientada para a negação da diferença entre a Terra e o espaço, para reduzir o segundo às dimensões da primeira.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
Conclusão - Quatro mitos e uma ilusão Estas considerações nos levam a aproximar de alguns mitos que nossa sociedade forjou sobre si mesma e a descobrir por detrás deles o caráter ideológico e a função política de dominação. Trata-se de quatro mitos fundamentais, ativamente presentes nas representações que as populações ocidentais fazem da sociedade em que vivem. Constituem um conjunto de premissas a orientar os nossos pensamentos, comportamentos e sentimentos com relação a nós mesmos e a todas as formas de existência. Em primeiro lugar, o mito da extrema riqueza da sociedade industrial. Desde algumas gerações, todo um esforço de pedagogos, jornalistas, historiadores, antropólogos, sociólogos, políticos, economistas, publicitários (para destacar apenas alguns especialistas dentro de uma tendência geral de pensamento vigorante em nossa sociedade) tem-se voltado para o objetivo de convencer cada um de nós do fato de que pertencemos a uma sociedade extremamente rica; de que esta riqueza é crescente e característica peculiar da sociedade industrial, que nesse domínio teria obtido resultados inigualáveis, em muito superiores aos de qualquer outra sociedade que se lhe pudesse opor como parâmetro de comparação. Seria difícil duvidar da veracidade dessa riqueza, sobretudo quando olhamos ao redor e nos vemos cercados por uma multiplicidade quase asfixiante de objetos, aparelhos, estantes de livros, consumo de energia... Seria quase uma negação da evidência afirmar o contrário dessa riqueza, quando olhamos nossas cidades com suas ruas pavimentadas, entulhadas de veículos que mal podem se locomover, quase inteiramente cobertas de edifícios amontoados; quando examinamos nossas gavetas e armários e descobrimos a multidão de objetos que compõem os nossos pertences; quando consideramos nossos orçamentos privados e os de nossos governos, dos mais simples aos mais ambiciosos... Mesmo que consideremos esta riqueza mal distribuída, todos estamos convencidos da extraordinária riqueza de nossa sociedade quando nos comparamos a outros povos contemporâneos ou anteriores, os quais consideramos como sendo de economias 'primitivas', de tecnologias 'rudimentares', de trocas 'tradicionais', desprovidos de mercados 'modernos'... Não há como fugir desta impressão, quando comparamos o volume absoluto ou per ou per capita de nosso produto ao de qualquer outra sociedade; ou quando estabelecemos um paralelo entre os nossos pertences, os objetos que nos cercam e os objetos pessoais e o ambiente de cultura material de outras ******ebook converter DEMO Watermarks*******
sociedades. Contudo, é esse mesmo raciocínio comparativo, mas exercido sobre outras bases, que nos levará a compreender a questão de modo diferente e a lançar sérias dúvidas sobre a resistência dessa obviedade a um exame crítico mais apurado. Porque vivemos em uma sociedade que considera a riqueza como um de seus valores absolutos e um de seus objetivos mais urgentes, somos incapazes de relativizar o conceito de riqueza e de examinar com acuidade o seu verdadeiro sentido sociológico. Para nós, membros de uma sociedade que busca continuamente a acumulação de bens, riqueza e pobreza são categorias absolutamente contraditórias, possuindo cada uma valores próprios que se excluem: ser pobre é ser pobre, ser rico é ser rico – e isto independe do modo particular pelo qual riqueza e pobreza sejam vividas concretamente em situações sociais definidas. Uma consideração sociologicamente válida do problema exige que abandonemos a idéia de que riqueza e pobreza sejam categorias absolutas e excludentes pairando acima das sociedades e as vejamos como categorias sociológicas que só adquirem sentido em termos de relações sociais. Desprezando nossa concepção etnocêntrica de riqueza e pobreza, que as põe acima de tudo, e vendo estas categorias como relações sociais, atingiremos um nível em que as relações entre os homens e os bens produzidos e/ou disponíveis se apresentam sob uma ótica inteiramente diferente, através da qual poderemos enxergar coisas que as lentes de nossa ideologia não podem captar e cujo aprofundamento (que não faremos aqui) poderia nos conduzir a conclusões absolutamente inesperadas. Nesse sentido, seria interessante nos deter um minuto na apreciação da relação entre um membro de uma sociedade de economia de 'subsistência' – para utilizar um termo ao agrado dos apologistas de nossas riquezas – e os poucos bens e serviços que povoam o seu espaço social. Que vemos aí, de um modo geral? Objetos comunitariamente significativos, que têm uma história identificável e conhecida de todos, que preenchem o espaço com significação e que vão muito além de suas funções utilitárias ou de seus valores de uso. Uma borduna é muito mais que uma borduna: é um signo, contém uma história conhecida, é resultado do exercício de uma técnica comunitariamente partilhada. Uma flecha não é somente uma flecha: está associada a determinadas fórmulas mágicas, a determinado animal a que se destina, a determinado ancestral que primeiro a fabricou. Cada objeto tem uma identidade própria e um valor em si, não sendo devorado pelo anonimato de ******ebook converter DEMO Watermarks*******
produções em massa ou em série; cada objeto preenche todas as funções pragmáticas ou significacionais que se esperam dele. Ao contrário, o nosso objeto não é nada disso, ou o é muito pouco. Ele é cada vez mais anônimo; ele se reduz às suas funções de uso. Mesmo suas dimensões significacionais são transformadas em dimensões utilitárias (sobretudo de hierarquização de seus possuidores, criando necessariamente muitos pobres para poucos ricos). Nosso objeto nada nos diz sobre sua história, despreza inteiramente o trabalho social que nele foi investido. Mesmo as funções de uso de nossos objetos foram sacrificadas: pela obsolescência programada, pelas transformações da moda, pela multiplicação de objetos que se destinam à mesma função. Não atendem a nenhuma necessidade que não tenha sido artificialmente criada pelo sistema do consumo e nesse sentido estão necessariamente condenados à incompetência e à incapacidade de satisfazer – porque é nessa insatisfação que reside o princípio do seu desprezo e de sua substituição por outro produto, alimentando o sistema de produção e de consumo em massa. Eis o resultado dessa comparação: todo o imenso volume de produtos saídos de nossos braços e de nossas máquinas é essencialmente marcado pela insatisfação. O ideal de maior riqueza é dominado pelo sentimento de constante pobreza, sentimento este que é o verdadeiro motor do sistema. Se significação é a categoria humana por excelência, nossas 'riquezas' são extremamente pobres, pois se definem sempre por outras riquezas, outros bens que a partir deles poderão (ou não poderão) ser obtidos e que em si mesmos significam cada vez menos: necessitamos então, incessantemente, de mais e mais objetos para tentar (sem sucesso) suprir a mesma lacuna significacional. Chegamos assim a uma primeira conclusão paradoxal: se riqueza e pobreza podem ser considerados como categorias válidas (o que não é seguro) de reflexão sobre o social, é precisamente a sociedade de cuja riqueza jamais duvidamos que deverá vestir a roupa da pobreza e aquelas que sempre consideramos pobres que a melhor título poderiam se livrar desse rótulo. Em segundo lugar, consideremos o mito da extrema capacidade produtiva da civilização moderna. Com raríssimas exceções, somos orgulhosos dos 'milagres' que nossa tecnologia é capaz de operar. Mais do que isto, encaramos com desprezo dogmático, rotulando-as de retrógradas e reacionárias, quaisquer tentativas de relativização dessa capacidade produtiva – o que vale também para as propostas de reexame e moderação dela. Apenas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
recentemente começamos a oferecer espaço a idéias que sustentem que esta capacidade produtiva estaria indo longe demais e passamos a considerar a hipótese de que determinados freios precisem ser acionados em benefício do futuro do próprio sistema produtivo. Mas estas recentes concessões são simples questões gerenciais, destinadas a otimizar este ou aquele aspecto do sistema sem examiná-lo a fundo em seus próprios princípios estruturais. Tais concessões esquecem que o problema reside no próprio diálogo envenenado que nosso sistema produtivo mantém com a natureza, assim como na própria natureza dos bens que produzimos. Fizemos referência nas páginas anteriores ao verdadeiro saque que nossa sociedade pratica contra a natureza. Consideramos o descompasso existente entre o ritmo obsessivo de produção industrial e o ritmo natural da regeneração. Consideramos a precariedade dos bens produzidos, predestinados à morte rápida pelo próprio gesto que os produz. Examinamos nossos arsenais bélicos, nossas relações com outras culturas. Tornamos então manifesta a existência em nossa sociedade de uma dimensão destrutiva normalmente escondida, de uma dimensão de morte normalmente oculta. Tudo isso nos leva a colocar sérias dúvidas sobre a realidade de nossa capacidade produtiva, em grande parte compensada, ou mesmo superada, por nossa capacidade de destruir. Nós nos orgulhamos de termos desenvolvido como nenhuma outra sociedade as técnicas de construir, mas sistematicamente esquecemos que a maior parte dos inventos que aos nossos olhos fazem a glória de que nos jactamos deriva de descobertas fundamentais pelas quais não somos os responsáveis: domínio do fogo, invenção da roda, cerâmica, alavanca, domesticação de animais e de plantas... Deveríamos, pois, ser mais prudentes e considerar que também edificamos, como nenhuma outra sociedade na história humana, técnicas, artefatos e máquinas de destruir. E que, incapazes de produzir e até mesmo de entender os processos fundamentais da vida e da existência, possuímos os meios de destruí-los e a tudo mais que em nosso planeta encontre existência. Ainda mais: no nosso delírio destrutivo, somos capazes de repetir outras e outras vezes a mesma operação de aniquilamento – como se isso fosse possível ou necessário! Em terceiro lugar, o mito do 'progresso', essa verdadeira religião do nosso tempo. O progresso é a projeção do presente sobre o futuro e o projeto de eliminação de todos os elementos do presente que não se submetam às ideologias do poder imperante. O progresso é a projeção do presente sobre o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
passado e o desprezo a todos os elementos do passado que não contribuíram para a edificação do poder presente. No presente, no passado ou no futuro, progresso é uma noção impossível de se definir fora dos interesses instalados no poder e, portanto, inteiramente viciada como instrumento de reflexão sobre o destino das sociedades. Participa da natureza etnocêntrica e etnocidária de nossa civilização, pela imposição a todas as outras dos ideais presentes e futuros de nossa sociedade e pela decretação de nosso trajeto histórico como sendo aquele único que todas as outras culturas devam observar. De modo apriorístico, postula a superioridade da sociedade ocidental sobre todas as demais e nos seduz. Seduzidos pelo progresso, aceitamos todas as violências que em seu nome sejam praticadas. O progresso é o máximo de progresso, no sentido definido pelo poder. Por isso é categoria adequada a uma sociedade que quer indefinidamente produzir, acumular, consumir e permanecer. Conseqüentemente, tal noção não pode resistir à desmistificação das concepções relativas à riqueza dessa sociedade e à natureza de suas capacidades produtivas. Produção e riqueza – acumulação de energia – são os fundamentos materiais da idéia de progresso e esta não pode permanecer de pé quando esses fundamentos soçobram. Por este caminho, podemos relativizar esta noção e desvendar a sua função política e ideológica de racionalização e de legitimação. Podemos também repensar a natureza de cada um dos acontecimentos considerados como constituindo progressos (transformações tecnológicas, modificações na organização política e social, descobertas científicas, desaparecimentos de usos e costumes etc) e abrir uma via para a compreensão de suas funções políticas específicas, isto é, como algo relacionado ao aperfeiçoamento das técnicas de exercício de poder. Enfim, o mito da vida. A crença na idéia de que mais do que qualquer outro lugar nossa sociedade é o terreno propício ao florescimento da vida. Este mito contém o pensamento de que podemos produzir vida, graças à nossa ciência médica, à nossa agricultura, à nossa zootecnia – enfim, graças à nossa capacidade produtiva, à nossa riqueza e a nosso progresso. Este mito é o banimento da idéia de morte, a postulação da amortalidade e da imortalidade humanas. É o mito fundamental, a síntese de todos os outros, o caminho que leva à compreensão do tabu com que envolvemos a morte e ao entendimento das estratégias pelas quais escondemos nossas dimensões de Morte. Acompanhando esse caminho reencontraremos algumas questões a que anteriormente fizemos referências e que agora poderemos retomar em bases ******ebook converter DEMO Watermarks*******
mais compreensíveis: essencialmente, nossas reflexões sobre as relações entre morte e poder e a atualização específica dessas relações na sociedade industrial. Por detrás da cortina que o mito da vida e o tabu da morte antepõem a nossos olhos, muito pouco ou quase nada aprenderemos sobre a morte – esta condição inacessível à inteligência humana. Em compensação, alguma coisa poderemos descobrir sobre a natureza do poder e os modos de seu exercício em nossa sociedade. Consideremos inicialmente a concepção tradicional de poder. Esta concepção pensa, implícita ou explicitamente, o poder, como sendo a possibilidade de fazer prevalecer a própria vontade e os próprios interesses, através do domínio e/ou monopólio dos meios de exercício da violência – concepção que contém, como conseqüência extrema, a capacidade de o dominante levar o dominado à morte. Limitada aos aspectos mais superficiais da situação de dominação, esta definição evoca a morte como seu fundamento lógico. Paradoxalmente, entretanto, ela não serve para pensar as relações entre o poder e a morte. Tal limitação não é difícil de demonstrar. Em primeiro lugar, a definição é tautológica. Ao incluir na definição o objeto a definir, impõe um retrocesso lógico que, sob a aparência de um procedimento intelectual de penetração, de aprofundamento e exame crítico, limita-se a confirmar e a legitimar pré-noções sobre o poder que já povoavam nossas mentes. Assim, poder é a 'capacidade de', é a 'possibilidade de', é 'dispor dos meios de', é a 'superioridade sobre' – expressões que em última instância significam que 'poder é poder': poderíamos perfeitamente reescrever a definição, simplesmente dizendo que poder é 'poder' usar os meios de exercício da violência, que poder é poder levar o adversário à morte e assim por diante. Em segundo lugar, a definição faz economia dos aspectos culturais do poder, das dimensões simbólicas, induzindo a pensar a situação de dominação como simples atuação mecânica de forças. Esquece que uma arma, por exemplo, só é um instrumento de poder na medida em que seja reconhecida como tal – ou seja, quando está inserida em um sistema cultural e quando a ameaça que comporta pode ser identificada. A definição coloca em segundo plano o fato de que é necessário que os dominados conheçam os códigos de pensamento e de sentimento que lhes permitam comportar-se como dominados, isto é, que lhes possibilitem desempenhar o papel social de subordinados. Qual o poder de um revólver sobre o indivíduo que nunca tenha visto um e que não conheça seus efeitos potenciais? Qual o poder do Inferno sobre indivíduos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
que nele não creiam, ou de um deus para seguidores de outros credos? Sem conversão prévia, como é que membros de uma sociedade que desconheça a disciplina castrense poder-se-iam enquadrar nas instituições militares? Em terceiro lugar, decorrência imediata dessa segunda fraqueza, a definição despreza o caráter recíproco do poder e o apresenta como uma via de mão única. Não considera que o dominado também age sobre o dominante: forçao a procurar uns caminhos de preferência a outros, obriga-o a exercer determinada estratégia de atuação e uma tática de manipulação dos símbolos envolvidos. Ignora que as relações de poder, como todas as relações sociais, são relações de troca e que o dominado pode encontrar em sua situação atual algo que não queira perder (mesmo que este algo lhe seja taticamente induzido pelo dominante), preferindo-a muitas vezes a outra situação a que eventualmente poderia se ver reduzido se assumisse radicalmente o risco de se rebelar. A quarta fraqueza reside no fato de a definição supor, como conseqüência de seu matiz não relacional, que o poder seja algo localizável em uma determinada fração da sociedade que o 'detém' e que 'impõe' sua vontade e seus interesses a outras frações, que passivamente os aceitam. Faz crer que o poder seja algo que alguns grupos e pessoas 'têm' e não uma dimensão fundamental da própria estrutura da sociedade. Em vez de ver pessoas, instituições, grupos e classes como canais pelos quais o poder circula na sociedade, essa definição tradicional prefere ver o poder como algo que alguém possui, que não se quer perder, que pode ser dado e tomado – como algo enfim que os homens dominam, e não como alguma coisa que domine os homens. Deixa escapar, assim, toda possibilidade de compreensão da reprodutibilidade do poder e sua perpetuação no tempo. Em quinto lugar, supõe a definição, como decorrência desse quarto erro, que os interesses e vontades de dominantes e dominados sejam necessariamente contraditórios e incompatíveis. Tal idéia representa um a priori que dificilmente poderia ser confirmado se estivéssemos habituados a considerar uma civilização na globalidade de seu conjunto e se tivéssemos as atenções voltadas para a compreensão dos antagonismos internos a uma sociedade como uma de suas características exteriores. De modo mais apropriado, não cometeríamos este erro se tivéssemos a capacidade de perceber as contradições de uma sociedade não como meros epifenômenos destinados a serem devorados pela marcha da história, mas como constituindo o próprio modo de ser desta sociedade. É por não assumir esta perspectiva holística que ******ebook converter DEMO Watermarks*******
a definição nos impede de enxergar situações em que dominados sejam cúmplices de dominantes. No caso específico, por exemplo, ao pleitearem maiores salários, diminuição das jornadas de trabalho, ampliação das férias remuneradas e da duração da vida individual, ao saquearem a natureza, ao reivindicarem ampliação do consumo, ao procederem à destruição das outras culturas... fatores que constroem, no tempo, um sistema social de que burgueses e proletários são os (supostos) beneficiários. Finalmente, para nos limitar apenas aos aspectos mais relevantes para o present e estudo, a definição parece edificar-se sobre uma concepção etnocêntrica de morte. Contém implicitamente a idéia de que a vida seja preferível à morte, de que qualquer vida seja preferível a ela. Esquece que a idéia de morte é socialmente construída e que não representa para todos o que significa para o homem ocidental. Despreza inúmeros exemplos históricos de indivíduos e grupos que preferiram morrer a viver a qualidade de vida que lhes era imposta. Passa por cima do fato de que o próprio poder necessita que seus soldados tenham um certo grau de destemor diante da morte e que estejam dispostos a morrer para permitir a vida do poder. Pecado fundamental, esta concepção faz crer que o dominante não necessita da vida do dominado – além de não considerar a possibilidade que tem o dominado de empenhar sua própria vida no jogo do poder, ameaçando subverter de modo radical a relação de dominação. Vendo a morte como um monopólio do dominante, que a impõe sobre e contra o dominado, a definição nos impede de ver a morte aplicada pelo dominado sobre si e contra o dominante, possibilidade única de levar as relações de poder ao paroxismo e ao colapso. Uma análise em termos de poder, que queira compreender o papel da morte em nossa sociedade, só é possível se conceber o poder como uma relação social inscrita e enquadrada em um contexto cultural, ele mesmo impregnado de poder, que se implementa e se reduz em cada ação social e que implica manipulação estratégica de símbolos. A relação de poder envolve necessariamente no mínimo dois pólos, ambos participando de um poder que se distribui de maneira não obrigatoriamente homogênea pelos diferentes planos da estrutura social e das relações sociais. O poder não se confina a uma área específica do social que reconhecemos como seu campo privilegiado e onde esperamos que se manifeste de modo formal – o 'político'. Não é 'algo' localizável em um ponto particular da organização social – mas é o princípio mesmo dessa organização, aquilo que permite a uma sociedade constituir-se em sistema íntegro, protegendo as ******ebook converter DEMO Watermarks*******
fronteiras interiores e exteriores contra elementos capazes de decretar a ruína de sua sistematicidade. Desse modo, o poder é essencialmente algo que domina os homens como membros de organizações sociais, não algo que os homens dominem enquanto poderosos. Fazer a crítica do poder significa, portanto, muito mais do que atacar os poderosos. Significa revolucionar todo um tipo de vida social. É claro que a questão da 'natureza' do poder e a da 'detenção' do poder não são independentes. Pelo contrário, a solução da segunda exige o perfeito conhecimento da primeira, sob pena de se substituir eternamente uma tirania por outra – fato do qual toda a história ocidental é uma inequívoca ilustração. A pergunta importante é talvez menos 'quem tem o poder?', mas: 'o que é o poder e como pode ser comunitariamente implementado?'. Em outros termos: 'que tipo de relação dos homens entre si, da cultura com a natureza, de uma civilização com outra civilização?' Inverter esta ordem de valores é querer 'tomar o poder' e desse modo reproduzir apenas com papéis trocados a mesma estrutura de exploração. A compreensão da natureza do poder é o grande tabu de uma sociedade em que o poder é detido, enquanto a questão da detenção do poder, por sua própria natureza, é na maior parte das vezes colocada de maneira explícita e inconfundível – mesmo que se sofisme e que se minta sobre os modos de ascensão; mesmo que se procure mostrá-los como 'legítimos', 'justos' ou 'democráticos'. Por si só, este fato impõe uma ordem de prioridade à reflexão. Com efeito, na medida em que os poderosos tanto podem tomar quanto podem dar e na medida em que o mesmo se aplique aos dominados, porque o poder é uma relação de troca, a questão da detenção do poder poderá sempre receber uma resposta equívoca e ilusória: 'a situação de hoje é melhor que a de ontem', 'estamos construindo uma democracia', 'o poder é exercido em nome do povo'... desse modo – já que a própria estrutura da relação de poder e dominação não foi recusada – a manipulação de dominados cuja aspiração é 'participar do poder' e 'dominar o poder' acaba se transformando em um problema relativamente fácil para o dominante. Pensar a natureza do poder é recusar esta estrutura, é abandonar o delírio de assumir o poder, é recusar-se a exercer o papel dominante, mas é sobretudo rejeitar o papel social de dominado. Nesse ponto, a morte tem um significado especial, que tentaremos tornar explícito. O poder está presente em todos os pontos e contamina todas as relações. Tem uma extraordinária capacidade digestiva, que lhe permite transformar em ******ebook converter DEMO Watermarks*******
alimento que o sustenta até mesmo veneno com que se tenta destruí-lo. Instaura-se de maneira fragmentária ou extensa em todo o tecido social, penetra em todas as existências, transforma o dominado em agente de dominação, mesmo pelo ato através do qual pensa estar se libertando e 'assumindo' o poder. Constrói-se a partir de baixo, em cada mínima ação, insinuando-se como necessidade vital. Reproduz-se através da tecnologia e como tecnologia, através do saber e como saber, através da vida e como contrapoder. Só encontra uma fronteira: a morte. Não a morte de que se apropria e da qual é senhor (que a definição tradicional sabe identificar). Não a morte que se lhe contrapõe, matando pessoas identificadas como dominantes. Mas a morte com que se o desafia, forçando-o a ser poder até as últimas conseqüências e obrigando-o a se estabelecer de maneira tão total que a dominação se pulverize diante da inexistência de dominados, fazendo desse modo com que o sistema exploda pela hipertrofia de sua própria lógica. Como assinalamos anteriormente, em todo o curso da história e na maior parte das sociedades a ameaça de morte violenta é meio de controle social, sanção contra os comportamentos desviantes, instrumento de dominação, em suma. Como quer a teoria tradicional do poder, podemos todos ser mortos e por isso obedecemos. Entretanto, como Hegel nos ensinou em sua Fenomenologia do Espírito, não é na minha morte que o poder está interessado, não é dela que se nutre: pelo contrário, é minha vida que preenche essas funções. Por isso, o dominante permite ao dominado que viva e a isto até o obriga. Por isso adia sua morte. E se apropria da vida do súdito, apropriando-se de sua morte, constituindo a relação de dominação pela negativa de decretação da morte do dominado. Por instrumento do adiamento da morte do dominado, o dominante faz deste um servo, um escravo, apropriando-se de seu trabalho (e mais tarde também de seu consumo). Portanto, não é a capacidade de decretar a morte que faz do poder poder. Pelo contrário e paradoxalmente, é a estratégia de obrigar a viver que o constitui. Dentro desse quadro, o risco de morte é um pressuposto absoluto da libertação. É a única maneira de fazer explodir uma relação que pressupõe a negação da morte para poder existir. Um raciocínio em termos de detenção do poder nos mostraria pessoas obedecendo para escapar da angústia de morte, submetidas à chantagem que o poder encena de cortar a vida, de condenação eterna, de julgamento final... Levar-nos-ia a crer que só exista o poder da morte e que todo poder seja sempre o poder da morte, quer seja veiculado pelo Príncipe, pelo patrão, pelo ******ebook converter DEMO Watermarks*******
carrasco, pelo pai ou por Deus. Tenta convencer-nos de que a vitória do poder implique sempre a vitória pela morte e pela proclamação do direito de vida e de morte sobre os derrotados. Contrariamente, um raciocínio em termos de natureza do poder mostrarnos-ia um poder preocupado em conservar a vida de seus súditos, munindo-se de todo o aparato de instituições jurídicas, médicas, policiais etc. que possam garantir a segurança deles. Um raciocínio em termos de natureza do poder nos mostraria o poderoso preocupado em fechar a única porta segura de libertação e de destruição da relação de poder: a morte. É exatamente para fechar esta porta que o poder incute nos dominados o medo da morte, o supremo pânico de deixar de existir; é para fechar esta porta que transforma a morte em tabu, que a bane das possibilidades cognitivas e afetivas de seus súditos. É claro que um tabu dessa natureza envolvendo a morte só é possível em um tipo particular de sociedade: a sociedade industrial. Em toda sociedade a dominação se funda sobre o medo da morte (ou seu equivalente: inferno, por exemplo) e sobre a regulamentação do direito de produzir a morte. A pena de morte é definida pelo poder e ninguém pode provocar a morte de outro ou de si mesmo sem ser a isto autorizado pelo poder. Assim, o temor da morte desempenha um papel importante na dominação e sem ele ela provavelmente não seria possível. Mas, em contrapartida, o soberano depende também de que seus súditos sejam capazes de enfrentar a morte, de ser mártires, de ser soldados que morram para permitir a existência do poder. Conseqüentemente, o medo absoluto da morte não interessa ao poder, na medida em que decreta a paralisia de seus soldados. Este pavor extremo só é possível sob uma condição: que os soldados possam ser substituídos por máquinas, que o poder possa abrir mão de que sejamos soldados. E isto só pode acontecer em uma sociedade industrial. Dispensando os súditos de morrer, o poder abre caminho para tirar o melhor proveito de suas vidas. Para isso, entretanto, é preciso impedir que os dominados façam por si mesmos o que o poder não fez, ou seja, é necessário proibir-lhes que decretem eles mesmos suas mortes. Por isso o suicídio não é tolerado por nenhum poder: porque é visto como um meio de independência, porque subverte a relação de poder e a corrói radicalmente. O suicídio é imperdoável: em seu delírio, o poder irá até condenar à morte o indivíduo que tentou suicídio, irá impedir que se suicide o condenado à morte, irá executar penas de morte sobre cadáveres de suicidas. Tudo isso não se explica apenas ******ebook converter DEMO Watermarks*******
porque o suicídio seja um desafio ao poder, mas também porque todo verdadeiro desafio ao poder seja de natureza suicidária. Assim, somos cada vez menos livres para atentar contra nossa saúde e contra nossa integridade física (vacinas obrigatórias, declaração obrigatória de certas doenças, obrigação de tratamento em certos casos, prolongamento artificial da vida mesmo contra os desejos do doente...). Cada vez mais somos obrigados a proteger nossas vidas e a preservá-las (como ilustração, pensemos nos equipamentos obrigatórios de segurança). Visando a eliminar o suicídio, um relatório do Ministério da Saúde francês (citado por Baechler, 1975), propõe consultas obrigatórias de higiene mental nas escolas, exames médicos obrigatórios para todos os trabalhadores de menos de vinte e cinco anos, observação estrita dos jovens trabalhadores isolados e dos estudantes de primeiro ano, vigilância aumentada por ocasião das provas escolares, criação de plantões de serviços sociais em cada bairro de Paris, em cada cidade de razoáveis proporções, em toda escola de certo tamanho e assim por diante. Tais medidas tornam-se compreensíveis quando examinamos a significação coletiva dos suicídios. Matam quase tanto quanto os veículos a motor, segundo dados franceses de 1970 (Charlot, 1976): entre as mortes acidentais e violentas, 19,3% das dos homens foram por suicídio, contra 29,6% em acidentes motorizados; quanto às mulheres, 18,1% das mortes foram autoprovocadas, contra 18,4% em acidentes com veículos. Nas últimas décadas do século XX, as estatísticas apontavam para a França cerca de 15 mil suicídios declarados a cada ano, embora muitas mortes efetivamente por suicídio não pudessem ter sido consideradas como tal oficialmente: por exemplo, suspeita-se que uma quantidade considerável de acidentes de automóvel possa ser vista mais propriamente como sendo voluntária. E mais: naquele ano estimavam-se para a França as tentativas de auto-extermínio entre 200 mil e 400 mil anualmente. Mas este país ocupava uma posição apenas intermediária, quando tomamos as taxas de suicídio em escala comparativa: ao lado de países como a Bélgica (16 por 100 mil), a Austrália (14,9) e o Japão (14,7), acima dos Estados Unidos (11,1), abaixo da então Alemanha Federal (41,3), da Áustria (22,8) e da Hungria (29,8). Não se trata absolutamente de fazer apologia do suicídio. Mas estes dados parecem indicar algo mais que simples ações isoladas de indivíduos desesperados. São um imenso clamor pelo direito à felicidade, uma demonstração, por um gesto irrecusável, de que a vida tal como é não merece mais que a ela se esteja ligado. São uma escandalosa afirmação do direito à ******ebook converter DEMO Watermarks*******
liberdade e à dignidade – afirmação que o opróbrio lançado contra o suicida e seus próximos tenta anular. São ainda uma provocação àqueles que, não sendo mais felizes que o suicida, são, todavia, incapazes de cometer o mesmo gesto. Além de dramas pessoais, estes dados permitem supor que, embora de modo desorganizado e privado, muitos transgrediram o tabu da morte em busca da porta da liberdade. Mas esta porta só será real quando o desafio for coletivo, pois então a morte será a do poder, incapacitado de ir às derradeiras conseqüências de seu ser – porque essas últimas conseqüências representam precisamente sua própria morte. Entendemos, então, por que o poder impõe sobre a morte um tabu: para lacrar esta porta, para eliminar esta possibilidade. Retirando aos homens a noção de seus destinos, subtrai-lhes a consciência real de suas vidas, escondelhes de cada instante a real significação e institui o presente em modo único de ser. Ao negar e banir a morte, o poder age coerentemente: sabe que a liberdade do homem exige a existência da morte e que é esta existência – não temida – que impele a ousar e a não esperar. Sabe que é sobre o adiamento da morte do súdito que o poder constrói sua própria superioridade. Desse modo, como Baudrillard (1979: 39) agudamente percebeu, se é "sobre a gestão de vida como sobrevivência objetiva que o poder se funda", "a única solução é retornar contra o sistema o princípio mesmo do seu poder (...). Desafiar o sistema por um oferecimento ao qual ele não possa responder, senão por sua própria morte e seu próprio desmoronamento..." (os grifos desta citação e das seguintes são do próprio Baudrillard). É necessário que o próprio sistema "se suicide em resposta ao desafio multiplicado da morte e do suicídio" (Baudrillard, 1976: 64). Este desafio é o de fazer aqueles que detêm o poder assumir o poder até seu limite, que não pode ser senão a morte dos dominados. Desafio ao poder de ser poder: total, irreversível, sem escrúpulo e de uma violência sem limites. Nenhum poder ousa ir até este ponto (no qual ele se liquidaria também). E é então diante desse desafio sem resposta que ele começa a se desagregar. (Baudrillard, 1977: 74-5) Esta é a única arma absoluta e sua simples ameaça coletiva pode fazer o poder desmoronar (...): se ele vive de minha morte lenta, eu lhe oponho minha morte violenta. (Baudrillard, 1976: 64) Prossegue: isto muda todas as perspectivas revolucionárias sobre a abolição do poder. Se o poder é a morte adiada, ele não será suspenso enquanto o ******ebook converter DEMO Watermarks*******
suspense dessa morte não for suspenso. E se o poder (...) reside no fato de dar sem que lhe seja retribuído, é claro que o poder que tem o senhor de conceder unilateralmente a vida só poderá ser abolido se esta vida lhe puder ser devolvida – em uma morte não adiada. Não há alternativa: não é conservando a vida que se abolirá um dia o poder, uma vez que não terá havido reversão do que foi dado. Só a devolução desta vida, a retorção pela morte imediata da morte adiada constitui uma resposta radical e a única possibilidade de abolição do poder... (Baudrillard, 1976: 69) E conclui Baudrillard (1976: 268), "a maior parte das práticas, mesmo ditas políticas e revolucionárias, contenta-se com negociar a sobrevivência, isto é, com comerciar sua morte com o sistema..." Assim, entende-se o porquê de a nossa sociedade ter criado a Morte, essa linha socialmente postulada de separação entre vivos e mortos, essa irreversível passagem que abole a morte, que a institui em pavor primordial retirando-lhe as características de (outra) vida que nela sempre viram todas as culturas e estabelecendo em seu lugar um grande silêncio, um vácuo insuportável, um abismo definitivo, um vazio incomensurável, um nãoespaço, um nãotempo, uma eternidade invertida que só pode ser uma coisa: temida. Temendo este depois da vida que não é mais vida, que passou a ser Morte, os súditos de nossa sociedade passam a temer a morte e a aceitar a vida que lhes é imposta. Transformam-se em seres incapazes de oferecer suas vidas a si mesmos, isto é, em seres incapazes de correr o risco de morrer. De certo modo estes homens passam a ser incapazes de viver, pois não querer morrer e não querer viver são a mesma coisa. Seres humanos incapazes de viver, pois só há um meio de não morrer: já estar morto. Entende-se também por que o direito à vida e à proteção contra a morte – vitórias dos trabalhadores de nosso tempo, através da promoção da saúde, da previdência social, da segurança do trabalho, dos seguros... são igualmente vitórias do poder: por isso o médico luta mais contra a morte que o próprio paciente, por isso o poder impõe as medidas de segurança e de proteção das vidas de seus súditos. Não é por acaso que tantas vezes as populações que supostamente estavam sendo protegidas se rebelaram contra a proteção, recusando a idéia de se vacinar, de observar os limites de velocidade, de obedecer às sinalizações, de usar os equipamentos de segurança, de curvar-se às normas: é que elas viam, na possibilidade de dispor e mesmo de arriscar ******ebook converter DEMO Watermarks*******
suas vidas, uma dimensão fundamental de sua liberdade. Tão importante é para o poder o banimento da morte e dos mortos que, em uma sociedade em que tudo se transforma em mercadoria, é significativo que o 'após morte' escape a este destino. De fato, após os funerais, o esquecimento de que são vítimas os mortos fazem deles fracos consumidores: as visitas às sepulturas vão se tornando cada vez mais esparsas e o consumo de que os mortos são responsáveis vai diminuindo com o tempo. É que este próprio esquecimento é condição de funcionamento do sistema: há uma incompatibilidade absoluta entre os valores da economia industrial e a aceitação da morte. A morte nega a idéia de acumulação de bens, que diante dela deixa de ter sentido. A morte questiona radicalmente as ideologias da eficácia e da competência e ridiculariza a competição social. Quebra radicalmente a linearidade do tempo e demonstra que o tempo ou é reversível ou é nada, verdade insuportável para um sistema que quer que o tempo seja linear e adverte que 'tempo é dinheiro'. Mostra que o 'progresso' é uma ilusão, que o progresso não tem fim e que haverá sempre mais um progresso a realizar quando se morre. Acima de tudo, para uma sociedade que quer acreditar nessa ilusão, a morte é inadmissível porque elimina a possibilidade de atingir objetivos, porque mostra que a realização pessoal e coletiva, nos termos definidos pelo sistema, é impossível. Mas a urgência do banimento da morte não chega ao ponto de exigir o sacrifício da lógica do sistema: as contabilidades nacionais utilizam estudos seriíssimos sobre a morte, no que respeita ao custo econômico. Para evitar a morte, é necessário investir em segurança, previdência, medicina, alimentação... Portanto, existe um limite além do qual, apesar de o sistema nos dizer que a vida humana não tem preço, não vale a pena investir e é melhor deixar as pessoas morrerem. Se quisermos, por exemplo, diminuir em 20% o número total de mortos em acidentes automobilísticos, será necessário gastar x, o que significará um preço y por morto. Este investimento global deverá teoricamente ser tão elevado quanto menor se pretenda que seja o número total de mortos. Analogamente, se quisermos diminuir o número de falecimentos em catástrofes na rede ferroviária, seremos obrigados nos termos do sistema econômico e social a pagar um aumento considerável do custo desse transporte, coisa que nem sempre passageiros e companhias de transporte estão dispostos a fazer. E isto se aplica a tudo em uma sociedade em que a vida humana foi transformada em mercadoria: aos tratamentos médicos, às relações com a ecologia, à previdência social, à limitação dos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
armamentos, à pesquisa científica... Banida, produzida, administrada, a morte está em toda parte na sociedade industrial e esta presença é o grande paradoxo de uma sociedade que pretende divinizar a vida. Este paradoxo é talvez a mais fundamental explicação do ser desta sociedade: não é à toa que a sociedade que mais cuida da segurança, da higiene e do banimento da morte, a sociedade norte-americana, seja também a sociedade mais violenta e mortífera de que se tem notícia, e que seu exemplo seja seguido de perto por todas aquelas que a acompanham no estilo industrial de vida. É pura ilusão querer se libertar dessas sociedades, ao mesmo tempo mortíferas e policiais, produtoras e negadoras de morte, sem se libertar desse estilo industrial de vida (ou de Morte). Optar por este estilo de vida é deixarse cair nas malhas desse círculo vicioso, o 'progresso'. O progresso deve sempre negar-se a si mesmo para permanecer progresso. Ele se constrói sobre uma produtividade crescente do trabalho social, produtividade necessariamente ligada a uma repressão crescente. O progresso industrial quer ser a mais total dominação do homem sobre a natureza e isso engendra lógica e necessariamente (já que o homem é parte da natureza) a dominação do homem pelas técnicas da dominação. E isto nos leva a uma conclusão palmar: dominar o domínio – e não a natureza – transformou-se na grande questão de nosso tempo. Sociedades de tecnologias 'rudimentares' nos ensinam que a simplicidade e a acessibilidade dos meios de produção não permitem o exercício eficaz de controle sobre os trabalhadores por intermédio desses meios de produção. Em contraste, a complexificação da tecnologia transforma o controle dela em algo não apenas possível, mas em coisa necessária: as usinas nucleares, por exemplo, sejam capitalistas ou socialistas, supõem uma sociedade obrigatoriamente centralizada, estratificada e policial. Desse modo, se quisermos lutar por uma sociedade diferente, devemos lutar por um modo diferente de relação com a natureza e por uma sociedade construída sobre outras bases tecnológicas. E devemos substituir o sonho louco de crescimento ilimitado, que é em última instância o que justifica essa tecnologia, por algo que esteja ao alcance humano e que possamos controlar. Em nome desse crescimento, desse 'progresso', nós nos transformamos em nosso próprio inferno: somos capazes de destruir todas as formas de vida, mas somos capazes por meio da bomba de nêutrons de preservar as riquezas; somos capazes de inventar e de justificar horrores como o genocídio dos ******ebook converter DEMO Watermarks*******
udeus, os campos de concentração, as câmaras de gás, o etnocídio e o ecocídio; somos obrigados a criar inimigos fictícios para através da morte deles propiciar-nos uma sensação artificial de vida. Tudo isso coloca para nós, que nos vemos nos píncaros do saber, no ponto mais alto da Evolução, a indagação sobre um tema elementar, para a qual não temos resposta – e na falta da qual nos perdemos no mundo: Que é o homem? Que significa ser homem? Qual o lugar do homem no mundo? Incapazes de responder a estas questões elementares, nós nos arvoramos em agentes geológicos, em modificadores dos processos biológicos, em seres capazes de guiar a evolução; em seres imortais, preocupados com a longevidade individual, quando desprezamos a longevidade das civilizações – enfim, em 'conquistadores' da natureza. Mas, estamos preparados para isto? Podemos aceitar a responsabilidade de mudar o período de vida dos indivíduos, tornando-os imortais contra as leis da espécie? Alterar os códigos genéticos, criar seres vivos artificiais? Colocar em perigo a existência do planeta? Todas essas questões apontam para uma problemática antropológica e filosoficamente nova, concernente à morte: todas as culturas, todas as sociedades estiveram preocupadas com mortes presentes e passadas, com cadáveres e antepassados; mas nossos pensadores começam a se preocupar com a morte de nossos filhos, com a morte futura, com a Morte que estamos programando e disseminando pelo planeta. Tal é a grande questão do nosso tempo e qualquer teoria social, política e principalmente antropológica será vã se não tentar respondê-la, se não colocar em destaque os mecanismos de terror que permitem que esta Morte seja construída. E se não evidenciar que diante dessa Morte a idéia tradicional de Revolução se tornou demasiadamente fraca.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
Referências bibliográficas ALIHANGA, M. Rites de la mort au Gabon. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. ARIÈS, P. Histoire des Populations Françaises et de leurs Attitudes devant la Vie depuis le XVIII ème Siècle. Paris: Self, 1948. ARIÈS, P. L'Enfant et la Vie Familiale sous l'Ancien Régime. Paris: Seuil, 1973. ARIÈS, P. Essais sur l'Histoire de la Mort en Occident: du Moyen Age à nos ours. Paris: Seuil, 1975. ARIÈS, P. L'Homme devant la Mort. Paris: Seuil, 1977. ATTALI, J. L'Ordre Cannibale: vie et mort de la médecine. Paris: Grasset, 1979. AUZELLE, R. Derhières Demeures. Paris: Imprimérie Mazarine, 1965. BACONE, F. Della dignità e del progresso delle scienze. In: Opere Filosofiche. Bari: Laterza, 1965. (em português F. Bacon). BAECHLER, J. Les Suicides. Paris: Calman-Levy, 1975. BALANDIER, G. Préface. In: HERTZ, R. Sociologie Religeuse et Folkore. Paris: PUF, 1970. BARÉ, J. F. Pouvoir des Vivants, Langage des Morts: idéologies sakalave. Paris: Maspero, 1977. BARTHES, R. Semiologia e Lingüística. Trad. Lygia Vassalo e Moacy Cirne. Petrópolis: Vozes, 1971. BARTHES, R. L'Empire des Signes. Genebra: Skira, 1976. BASTIDE, R. A travers la civilisation. Echanges. Le sens de la mort (N. especial), 98, nov. 1970. BAUDRILLARD, J. O Sistema dos Objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 1973. BAUDRILLARD, J. L'Echange Symbolique et la Mort. Paris: Gallimard, 1976. BAUDRILLARD, J. Oublier Foucault. Paris: Galilée, 1977. BAUDRILLARD, J. L'economia politica e la morte. In: CARAMORE, G. (Org.) Luoghi e Oggetti della Morte. Perugia: Savelli, 1979. BELMONT, N. Arnold Van Gennep: le créateur de l'ethnographie française. Paris: Payot, 1974. BENEDICT, R. Padrões de Cultura. Trad. Alberto Candeias. Lisboa: Livros do Brasil, 1934. BERNARD, P. L'alliance entre une sociéte et le monde (Prefaáio). In: ******ebook converter DEMO Watermarks*******
JAULIN, R. La Mort Sara. Paris, Ed. 10/18, 1971. BLOCH, M. Placing the Dead. Londres-Nova York: Seminar Press, 1971. CALDER, P. R. La ritualisation dans les relations internationales. In: HUXLEY, J. (Org.) Le Comportement Rituel chez l'Homme et l'Animal. Paris: Gallimard, 1971. CAMUS, A. & KOESTLER, A. La Pena di Morte. Trad. Claudia Patrizi. Roma: Newton Compton, 1972. CARAMORE, G. (Org.) Luoghi e Oggetti della Morte. Perugia: Savelli, 1979. CAZENEUVE, J. Lévi-Bruhl: sa vie, son oeuvre. Paris: PUF, 1963. CAZENEUVE, J. Mauss. Paris: PUF, 1968. CAZENEUVE, J. Sociologia del Rito. Trad. José Castelló. Buenos Aires: Amorrortu, 1972. CERTEAU, M. de. Scrivere l'innominabile. In: CARAMORE, G. (Org). Luoghi e Oggetti della Morte. Perguia: Savelli, 1979. CHARLOT, M. Vivre avec la Mort. Paris: Alain Moreau, 1976. CHARRAS, M. Et le feu t'emportera... Bali: de la mort à l'ultime purification. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort. Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. CHEMIN-BÄSSLER, H. La fête des morts chez les pames septentrionaux de l'Etat de San Luis Potosi au Mexique. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort. Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. CHORON, J. La Mort et la Pensée Occidentale. Trad. Monique Manin. Paris: Payot, 1969. CLARKE, R. La Course à la Mort ou la Technologie de la Guerre. Trad. Georges Renard. Paris: Seuil, 1971. CLASTRES, H. Les beaux-frères ennemis; à propos du cannibalisme tupinambá. Nouvelle Revue de Psychanalyse. Destins du cannibalisme. (N. especial), aut.: 71-82, 1972. CLASTRES, P. Chronique des Indiens Guavaki. Paris: Plon, 1972. CLASTRES, P. & SEBAG, L. Cannibalisme et mort chez les Guayakis. Revista do Museu Paulista, 5(14): 174-81, 1963. CROCKER, C. The Social Organisation of the Eastern Bororo, 1967. Tese de doutorado, Harvard University. CROCKER, C. Les reflexions du soi. In: Seminaire 'L'identité' (dirigido por Claude LéviStrauss). Paris: Grasset, 1977. CUNHA, M. C. C. Os Mortos e os Outros. São Paulo: Hucitec, 1978. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
DaMATTA, R. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. DORST, J. La Nature de-Naturée: pour une ecologie politique. Paris: Seuil, 1970. DOUCET, L. La Foire aux Cadavres. Paris: Denoël, 1974. DOUGLAS, M. Pollution. In: International Encyclopedia of the Social Sciences, 12, 1968a. DOUGLAS, M. The social control cognition: factors in joke perception. Man (3): 361-7, 1968b. DOUGLAS, M. Natural Symbols: explorations in cosmology. Londres: Barrie and Rockliffe, 1970a. DOUGLAS, M. Purity and Danger. Londres: Pellican Books, 1970b. DUBOIS, C. Wintu ethnography. American Archeology and Anthropology, 36, 1935. (University of California Publications). DUMAS, A. Le retour de la mort. Esprit, 455, mars, 1976. DUMONT, R. L'Utopie ou la Mort. Paris: Seuil, 1973. DURKHEIM, E. Les Formes Elémentaires de la Vie Religiuse. Paris: Felix Alcan, 1912. ERNY, P. L'Enfant et son Milieu en Afrique. Paris: Payot, 1972. EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Trad. Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. FÉRAUD, M. & QUEROUIL, O. Les Territoires de la Mort. Paris: Le Centurion, 1976. FLETCHER, J. The Ethics of Genetic Control: ending reproductive roulette. Nova York: Doubleday and Company, 1974. FRIBOURG, J. Une conception espgnole du monde des morts. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. FUCHS, W. Le Immagini della Morte nella Società Moderna: sopravvivenze arcaiche e influenze attuali. Trad. Grazia Dore. Torino: Einaudi, 1974. GALEANO, E. As Veias Abertas da América Latina. Trad. Galeno de Freitas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. GARAUDY, R. Appel aux Vivants. Paris: Seuil, 1979. GARDNER, R. & HEIDER, K. Gardens of War. Londres: Deutsch, 1969. GASTAUD, H. Quelques remarques sur le culte du crane. In: MORIN, E & PIATTELLIPALMARINI, M. (Orgs.) Pour une Anthropologie Fondamentle. Paris: Seuil, 1974. ******ebook converter DEMO Watermarks*******
GESELL, P. L'Enfant de 5 à 10 Ans. Paris: PUF, 1949. GETTING, L. A. Halting the inflationary spiral of death. Air Force Space Digest, Apr. 1963. GODELIER, M. Une anthropologie economique est-elle possible? In: MORIN, E. & PIATTELLI-PALMARINI, M. (Orgs.) Pour une nthropologie Fondamentale. Paris: Seuil, 1974. GORER, G. Death, Grief and Mourning in Contemporary Britain. Nova York: Doubleday, 1965. GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort: rituels funéraires à travers le monde. Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. HACKET, D. Health Maintenance in Industry. Chicago: Shaw, 1925. HERTZ, R. Sociologie Religieuse et Folklore. Paris: PUF, 1970. HUTTER, M. & SIKE, Y. Le chant du destin. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. HUXLEY, J. (Org.) Le Comportement Rituel chez l'Homme et l'Animal. Trad. Paulette Vielhome. Paris: Gallimard, 1971. ILLICH, I. Némésis Médicale: l'expropriation de la santé . Paris: Seuil, 1975. JAMIN, J. & COULIBALY, N. V. A bout de souffle: la dette de la vie chez les Senoufo. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. JANKÉLÉVITCH, V. Philosophie Première. Paris: PUF, 1954. JANKÉLÉVITCH, V. La Mort. Paris: Flamarion, 1977. JAULIN, R. La Mort Sara. Paris: Ed. 10/18, 1974a. JAULIN, R. La Paix Blanche. Paris: Ed. 10/18, 1974b. JAULIN, R. Les Chemins du Vide. Paris: Christien Bourgeois, 1977. JAULIN, R. L'Ethnocide. Paris. Ed. 10/18, 1979a. JAULIN, R. Morbosità e economia ocidentale. In: CARAMORE, G. (Org.) Luoghi e Oggetti della Morte. Perugia: Savelli, 1979b. JUNG, K. Anima e Morte: sul rinascere. Trad. P. Santarcangeli e A. Vitolo. Torino: Boringhieri, 1978. KARSENTY, S. Quelques questions à propos de la culpabilité des survivants. In: THOMAS, L.-V. (Org.) La Mort Aujour'hui. Paris: Anthopos, 1977. KIENTZ, A. Comunicação de Massa: análise de conteúdo. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Eldorado, 1973. KIM-CHI, N. La vieillesse, la mort et le Viet-nam d'autrefois, In: THOMAS, L-V. (Org) La Mort Aujourd'hui. Paris, Anthropos, 1977. KOUBI, J. Le malade, le mort et son double visible en pays toradje. In: ******ebook converter DEMO Watermarks*******
GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. KÜBLER-ROSS, E. (Org.) La Mort: dernière étape de la croissance. Trad. Pierre Maheu. Ottawa-Québec: Amérique Inc., 1977. LANDSBERG, P. Essai sur l'Experience de Mort. Paris: Seuil, 1951. LEACH, E. Critique de l'Anthropologie. Trad. Dan Sperber e Serge Thion. Paris: PUF, 1968. LEACH, E. Genesis as Myth and Other Essays. Londres: Cape, 1969a. LEACH, E. Repensando a antropologia. In: LARAIA, R. B. (Org.) Organização Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1969b. LEACH, E. Un Mundo en Explosión. Trad. José R. Llobera. Barcelona: Anagrama, 1970. LEBRUN, F. Les Hommes et la Mort en Anjou aux XVIIème et XVIIIème Siècles. Paris: Flamarion, 1975. LEOPOLDI, J. S. A linguagem social de um mito tenetehara. Revista de Cultura Vozes, 67(2), 1973. LEROI-GOURHAN, A. Le Geste et la Parole I: technique et langage. Paris: Albin Michel, 1964. LEROI-GOURHAN, A. Le Geste et la Parole II: la mémoire et les rythmes. Paris: Albin Michel, 1965. LE ROY LADURIE, E. Homme-animal, nautre-culture, les problèmes de l'equilibre démograhique. In: MORIN, E. & PIATTELLI-PALMARINI, M. (Orgs). Pour une Anthropologie Fondamentale. Paris: Seuil, 1974.. LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Trópicos. Trad. Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957. LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. Trad. Eginardo Pires e C. S. Katz. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967a. LÉVI-STRAUSS, C. Introdução à obra de Mauss. In: MENDONÇA, E. P. (Org.) Estruturalismo: antologia de textos teóricos. Lisboa: Portugália, 1967b. LIGOU, D. L'evolution des cimetières. Archives des Sciences Sociales de la Religión, 39: 61-7, 1975. LIGOU, D. La crémation. In: THOMAS, L-V.; ROUSSET, B. & THAO, T. van. (Orgs.) La Mort Aujourd'hui. Paris, Anthropos, 1977. MAERTENS, J. T. Le Jeu du Mort (ritologiques I): essai d'anthropologie des inscriptions du cadáver. Paris: Aubier Montaigne, 1979. MALLINOWSKI, B. Magic, Science and Religion and Other Essays. Nova ******ebook converter DEMO Watermarks*******
York: Anchor Books, 1954. MARCUSE, H. L'idée de progress à la lumière de la psychanalyse. In: Freudo-Marxisme et Sociologie de l'Aliénation. Paris: Ed. 10-18, 1976. MAUKSCH, H. Le contexte organisationnel de la mort. In: KÜBLER-ROSS, E. (Org.) La Mort: dernière étape de la croissance. Ottawa-Québec: Amérique Inc., 1977. MAUSS, M. Sociología y Antropología. Trad. Teresa R. N. Retrotello. Madri: Technos, 1971. MEADOWS et al. I Limiti dello Sviluppo. Milão: Mondatori, 1974. MEILLASSOUX, C. Terrains et Théories. Paris: Anthropos, 1977. MELLATTI, J. C. Ritos de uma Tribo Timbira. São Paulo: Ática, 1978. MENAHEM, R. La Mort Apprivoisée. Paris: Universitaires, 1973. MÉTRAUX, A. Les Incas. Paris: Seuil, 1962. MITFORD, J. The American Way of Death. Nova York: Simon and Schuster, 1963. MONFERIER, J. Le Suicide. Paris: Bordas, 1970. MORIN, E. L'Homme et la Mort . Paris: Seuil, 1970. MORIN, E. L'Esprit du Temps 2: nécrose. Paris: Bernard Grasset, 1975. MORIN, E. & PIATTELLI-PALMARINI, M. (Orgs). Pour une nthropologie Fondamentale. Paris: Seuil, 1974. MORON, P. Le Suicide. Paris: PUF, 1975. MUSÉE de L'Homme. Rites de la mort . Catalogue de l'Exposition du Laboratoire d'Ethnologie du Musée d'Histoire Naturelle. Dir. Jean Guiart. Paris, 1979. NIANGORAN-BOUAH, G. Le village aboune. Cahiers d'Études Africaines, 2, mai, 1960. ORGANISATION DES NATIONS UNIES (ONU). Études Démographiques, n. 28. Nova York: 1958. PANOFF, M. Bronislaw Mallinowski. Paris: Payot, 1972. PERRIN, M. Il aura un bel enterrement: mort et funérailles guajiro. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. RABEDIMY, J. F. Essai sur l'idéologie de la mort à Madagascar. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. RAJAONARIMANANA, N. Achèvement des funérailles et offrandes de linceuls. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le ******ebook converter DEMO Watermarks*******
Sycomore/Objets et Mondes, 1979. RIBEIRO, D. As Américas e a Civilização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. RIBEYROL, M. Documents reccueillis dans des groupes bulgares et macédoniens (1968-1974). In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. RIVERS, W. H. The primitive conception of death. Hibbert Journal, 10, 1911-2. RODRIGUES, J. C. Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979. SCHNEIDER, P. La Tentative de Suicide. Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1954. SERRES, M. La thanatocratie. Critique, mars, 1972. SOUSTELLE, G. L'indien mexicain et la mort: observation sur les rites funéraires de quelques populations autochtones. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. SUDNOW, D. La Organisación Social de la Muerte. Trad. Giovanna von Wiekhler. Buenos Aires: Tiempo Contemporaneo, 1971. THIBAUT, O. La Maitrise de la Mort. Paris: Universitaires, 1975. THIERRY, S. L'autre rive. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. THOMAS, L-V. Anthropologie de la Mort. Paris: Payot, 1976. THOMAS, LV. Mort et Pouvoir. Paris: Payot, 1978. THOMAS, L-V. Civilizations et Divagations: mort, fantasmes et science fiction. Paris: Payot, 1979. THOMAS, L-V.; ROUSSET, B. & THAO, T. van (Orgs.) La Mort ujourd'hui. Paris: Anthropos, 1976. THOURY, S. La dernière demeure de l'homme préhistorique. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. TOFFIN, G. Les rites funéraires des hautes castes hindouistes newar (Népal). In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. TOLSTOJ, L. N. La Morte di Ivan Ill'ic. Milão: Rizzoli, 1976. TRUBETZKOY, J. Conduire celui qui part. In: GUIART, J. (Org.) Les Hommes et la Mort . Paris: Le Sycomore/Objets et Mondes, 1979. TURNER, V. The Forest of Symbols: aspects of Ndembu ritual. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1970. TURNER, V. O Processo Ritual. Trad. N. C. Castro. Petrópolis: Vozes, ******ebook converter DEMO Watermarks*******