Introdução Dos poucos filósofos estudados até agora por mim, posso afirmar, não sem o perigo de estar enganado, que o conteúdo abordado e desenvolvido por Descartes em suas duas primeiras meditações poderia ter sido suscitado em qualquer mente mais questionadora de si e do ambiente/mundo que a cerca. Ainda com todos os materiais disponíveis para se compreender o que quis dizer-nos o filósofo, poderíamos nós mesmos traçar tal estratégia de autoconhecimento, visando não permanecer com conhecimentos baseados sem nenhuma, digamos assim, prova concreta. Vejo como curiosidade o fato de que o “Cogito”, ainda que textualmente de outra forma, também tenha sido também pensado por Agostinho, tantos séculos antes de Descartes. Possivelmente,Descartes teria lido Agostinho, e mais do que concluir, podemos supor isso, ainda que pessoalmente sinta que a originalidade em termos de filosofia, com todos estes mais de dois mil anos de pensamento ocidental, seja algo difícil nos termos de um pensamento totalmente original; creio que a originalidade estará no modo como o filósofo encara e trata tal ideia, no modo como ele destrincha os mais variados assuntos. E afirmo com isso que esse detalhe é o que faz com que a Filosofia seja algo tão antigo e ao mesmo tempo tão atual, fazendo-nos pensar nos tempos atuais embasados em conceitos por vezes tidos como “superados”.
Primeira e segunda meditação: breve exposição e apreciação. Primeira meditação: a “implantação” da dúvida Na primeira meditação são reveladas quatro situações que podem potencialmente confundir nossas percepções o suficiente para invalidar uma série de enunciados sobre o conhecimento. O mais importante dos argumentos invalidadores que Descartes apresenta é o do “gênio maligno”, argumento que sugere nossa criação por um Deus enganador, que tem a capacidade de confundir nossas percepções e joga dúvidas sobre tudo que podemos conhecer acerca do mundo e de suas propriedades. Desse modo, questiona a legitimidade das proposições que parecem ter máxima evidência, as que se apresentam com “claridade e distinção” (exceto as referidas à própria mente, como mostrará na descoberta do cogito), proposições do tipo “dois mais três são cinco”, ou “a soma dos ângulos de todo triângulo é igual a duas retas”. Portanto, chega a questionar a veracidade da própria matemática. Entretanto, ainda que o enganador possa falsear nossas percepções, não tem a capacidade de falsear o que “acreditamos” perceber. Descartes também conclui que o poder de pensar e existir não podem ser corrompidos pelo enganador. Segunda meditação, ou “dos caminhos para a certeza” A segunda meditação contêm o argumento de Descartes sobre a certeza da própria existência, inclusive diante da dúvida de todo o resto: “Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda sua indústria em enganar-me sempre. (...) De sorte que, após ter pensado bastante nisso e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu enuncio ou que a concebo em meu espírito.”
Em outras palavras, a consciência implica a existência. Em uma das réplicas às objeções do livro, Descartes resumiu essa passagem em sua agora famosa sentença: penso, logo existo (em latim cogito ergo sum – “penso, logo sou”). Essa sentença se tornou o ícone fundamental do racionalismo ocidental, embora Santo Agostinho, por exemplo, tenha oferecido um argumento semelhante, em “De civitate Dei: “A certeza de que existo, de que eu sei isto e de que estou feliz por isso acontece independentemente de qualquer fantasia ou contradição imaginária. Com relação a estas verdades, não temo qualquer argumento apresentado pelos acadêmicos. Se eles dizem „e se você estiver errado? ‟ respondo „ainda que eu esteja errado, ainda assim existo‟. O ser que não existe não pode ser enganar. Por isto se me engano, existo. Logo, o fato de estar enganado prova que eu existo, como posso estar errado quando penso que existo, se meu erro confirma minha existência. Por isso, devo existir para que eu possa estar errado, logo, mesmo que eu esteja errado, não se pode negar que não o estou na minha certeza de que eu existo. Portanto não estou errado ao saber que sei. Pois da mesma maneira que sei que existo, também sei que sei. E quando me alegro com esses dois fatos, posso acrescentar com igual certeza essa alegria às coisas que eu sei. Pois não estou errado nessa alegria, porque não estou enganado quanto às coisas que eu amo. Ainda que essas coisas sejam ilusórias, ainda seria um fato eu amar as ilusões.” Seria absurdo pensar que quando vemos e sentimos, na realidade não sabemos nem sentimos que estamos vendo e sentindo: posso pensar e duvidar de se o mundo existe ou não, mas está claro que, quando penso, esse pensamento efetivamente existe. Portanto, “penso (duvido), logo existo”. De tudo que foi dito por Descartes podemos concluir que primeiramente se pensa para existir, porque quando penso, sei que existo. Conclusão Posso concluir que a investigação cartesiana foi legítima, e no sentido amplo da busca da certeza de que não estamos sendo simplesmente levados a aceitar tudo aquilo que nos foi ou é imposto sem nenhum questionamento, é de
longe um dos melhores convites a abrir a mente e perceber-se um ser pensante, sem receios de que nessa busca poderemos afirmar com segurança tudo aquilo que antes pensávamos ser objetos de engano, e podemos afirmar que Deus também é um objeto de certeza, e que não seria capaz de nos levar ao engano ou à mentira. Referencias bibliográficas DESCARTES, R. Discurso do Método In: Vol. Descartes, Col. Os Pensadores, Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1983. “De civitate Dei” citado em: http://revistapandora.sites.uol.com.br/8_amor.htm.
Quinta meditação: Da essência das coisas materiais; e, novamente, de Deus, que Ele existe Descartes, apesar dos insistentes pontos oferecidos na Terceira Meditação sobre a questão de Deus e de sua realidade, parece suspeitar que ainda seja possível desenvolver e esclarecê-la mais. Para isso, elaborará uma versão, uma interpretação pessoal do argumento ontológico, devido a Santo Anselmo de Canterbury no século XI. Entretanto, retoma antes o assunto epistemológico de diferenciar ideias claras e distintas das confusas. Descartes afirma que uma das primeiras é a noção de “extensão”: todo objeto é extenso, e dele é possível enumerar “partes” e atribuir -lhe, nos diz Descartes, “magnitudes figuras, situações e movimentos” a cada uma. Isso é tão claro e sua verdade tão manifesta à mente que não lhe parece estar aprendendo nada de novo, senão que “me r ecordo de algo que já sabia anteriormente, isto é, que percebo coisas que já estavam no meu
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espírito, embora eu ainda não tivesse voltado meu pensamento para elas” . Além disso, nos assegura, há ideias de certas coisas das que é impossível pensar que são puramente nada ou mera invenção, ainda que num primeiro momento não guardem relação alguma com objetos do mundo sensível, senão que “devem” ter natureza verdadeira e imutável. Descartes emprega o exemplo de um triângulo. Sua ideia me vem à memória com facilidade, mas poderia não existir nenhum triângulo além do que está na minha mente. Desse modo, a figura possui uma certa forma, ou “essência” imutável e eterna, que não posso tê-la inventado eu, nem tampouco as suas propriedades particulares, propriedades estas que que lhe são próprias e que o configuram como tal, porque reconhecemos imediatamente um triângulo quando o imaginamos, mas não acontece o mesmo com suas propriedades (nem todos sabem, por exemplo, que os três ângulos de um triângulo valem o mesmo que seus ângulos retos, e outras características semelhantes). Suas propriedades, desse modo, lhe são próprias, são integrantes da essência do triângulo. Então, passa Descartes à prova ontológica: aceitamos que existam propriedades claras e distintas nos objetos (sejam eles reais ou não) que podemos captar como acabamos de ver. Em Deus, por sua parte, existe ao menos uma que é consubstancial, própria à ideia mesma de Deus: esta é a perfeição. Deus é um ser (é O ser) perfeito. Também essa é uma ideia clara e distinta. Imaginar a um Deus imperfeito seria algo sem sentido; não seria Deus, naturalmente. Descartes segue afirmando a inevitável ligação entre o conceito de um ser perfeito e sua efetiva existência, pois, como se pode imaginar um Deus, com propriedade clara e distinta da perfeição, mas que entretanto não exista? Se separarmos os dois atributos, a essência e a existência divina, seria como fizéssemos a seguinte separação: [...] da essência de um triângulo não pode ser separada a grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, da ideia de uma montanha, a ideia de um vale; de sorte que não sinto menos repugnância em conceber um Deus (isto é, um ser 1
DESCARTES, René. Meditações (Meditação quinta). In: Os Pensadores. Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 123.
soberanamente perfeito) ao qual falte existência (isto é, ao qual falte alguma perfeição), do que em conceber uma montanha que não tenha vale. 2
A existência é uma característica que forma parte da mesma perfeição de Deus. Definitivamente, a existência de Deus caminha junto com seu conceito, do mesmo modo que a natureza do triângulo retângulo caminha junto com a ideia de que a soma de seus ângulos seja igual a duas retas. Simples assim. Descartes fará uma autocrítica (uma refutação à prova ontológica original) ao supor que, ainda que se possa conceber um Deus dotado de existência, assim: “[...] parece não decorrer daí que haja algum Deus existente: pois meu pensamento não impõe necessidade alguma às coisas; e como só depende de mim o imaginar um cavalo alado, ainda que não haja nenhum que disponha de asas, assim eu poderia, talvez, atribuir existência a Deus, ainda que não houvesse Deus algum existente.3”
mas, se alguém pensa assim (ou seja, que uma coisa é pensar a existência de algo e outra muito diferente que esse algo exista), Descartes responderá o seguinte: o impossível, é precisamente o fato de não poder conceber a Deus sem a existência, pois segue-se que a existência é inseparável dEle, e portanto, que existe verdadeiramente. Não se trata de nenhuma imposição forçada, acrescenta Descartes, é a necessidade da coisa mesma a que determina a minha mente para que pense assim. Embora eu possa imaginar uma montanha sem um vale a seus pés, como imaginar a suma perfeição divina sem entrar na atribuição da existência? Não há nenhuma possibilidade; se reconhecemos que a existência é uma perfeição, devese concluir que esse ser primeiro e supremo existe verdadeiramente. Portanto, afirma Descartes, que em relação com a ideia de Deus, não somos livres de imaginá-lo como desejemos, ao contrário do que acontece com outras entidades; ele diz ainda que não é livre de conceber um Deus sem existência (ou um ser
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DESCARTES, René. Meditações (Meditação quinta). In: Os Pensadores. Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 125. 3 DESCARTES, René. Meditações (Meditação quinta). In: Os Pensadores. Trad. de J. Guinsburg e Bento P rado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 125.
sumamente perfeito, uma suma perfeição), como o é para imaginar um cavalo com ou sem asas. E isso se deve a que: [...] exceto Deus só, a cuja essência a existência pertence com necessidade. E em seguida, também, porque não me é possível conceber dois ou muitos deuses da mesma maneira. E posto que há um agora que existe, vejo claramente que é necessário que ele tenha existido anteriormente por toda a eternidade e que existe eternamente para o futuro. E, enfim, porque conheço uma infinidade de outras coisas em Deus, das quais nada posso diminuir nem mudar. 4
Descartes vai insistir na importância de que a ideia que temos de Deus é clara e distinta em grau absoluto, e de que graças a ela dispomos de um modo de conhecer as coisas: Poishaverá algo por si mais claro e mais manifesto do que pensar que há um Deus, isto é, um ser soberano e perfeito, em cuja ideia, e somente nela, a existência necessária ou eterna está incluída e, por conseguinte, que existe? [...] a certeza de todas as outras coisas dela depende tão absolutamente que, sem esse conhecimento, é impossível jamais conhecer algo perfeitamente.5
Consequentemente, volta Descartes ao mesmo ponto já tocado na Terceira Meditação: Deus existe e é bom, e não deseja enganar-me; a ideia do gênio maligno, em contrapartida, morre, de modo que podemos finalmente esquecer-nos dele e a partir de agora confiar somente na divindade, real e bondosa. Além disso, já temos o instrumento perfeito de conhecimento: as ideias claras e distintas são a raiz do saber verdadeiro, ratificado agora, graças à confirmação de um Deus bom que existe. O que necessitamos agora é alcançar um conhecimento, robusto e firme, do mundo exterior, se é que existe tal possibilidade.
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DESCARTES, René. Meditações (Meditação quinta). In: Os Pensadores. Trad. de J. Guinsburg e Bento Pr ado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 126. 5 DESCARTES, René. Meditações (Meditação quinta). In: Os Pensadores. Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 127.
Como conclusão, e ainda questionando, coloco as considerações seguintes: Sabemos que nossa mente existe, que Deus existe e é bom, e que somente podemos confiar nas ideias que percebemos como claras e distintas. Mas, será permitido a nós, tudo isso, saber com certeza a efetiva realidade do mundo exterior, sua essência, ou somente nos será possível determinar que, por mais aparente que seja, tal mundo não é mais que uma ingênua e vã ilusão? Definitivamente, seria real o mundo além de nossa mente? Sei que poderia ir muito mais além nessa investigação, e oportunamente irei, mas não no presente. Sei que ainda é um tema de solução longa, e ainda poderíamos perscrutar suas entrelinhas, que ainda se encontram repletas de interrogações e possibilidades. E assim, tão instigante e perguntador, concluo minha análise desta obra, tão grandiosa quanto envolvente, e (porque não dizer?) questionadora. Posso dizer que para mim foi um grande prazer debruçar-me sobre esta obra.
A estrutura do argumento da existência de Deus na Quinta Meditação cartesiana 1. Tenho em mim a ideia de um ente soberanamente perfeito. 2. Esta ideia é clara e distinta. 3. A natureza de meu espírito é tal que não posso me impedir de julgar verdadeiramente as ideias claras e distintas durante o tempo em que eu as concebo. 4. Em razão das premissas 2 e 3, segue-se que posso afirmar que a ideia clara e distinta de um ente sumamente perfeito é verdadeiro durante o tempo em que eu a concebo. 5. A ideia clara e distinta do ente sumamente perfeito que tenho diante de mim, é uma ideia inata, isto é, não é uma ideia forjada ou fabricada arbitrariamente por meu espírito. 6. Em razão das proposições 4 e 5, a ideia clara, distinta e inata de um ente sumamente perfeito representa a essência real e imutável desse ente. 7. Por definição, a essência de um ente sumamente perfeito contém todas as perfeições. 8. A existência é uma perfeição. 9. Em razão das proposições 7 e 8, pode-se afirmar que a essência do ente sumamente perfeito contém a perfeição de existência. 10. As propriedades da essência de um ente são propriedades do próprio ente. 11. Em razão das proposições 9 e 10, pode-se afirmar que o ente sumamente perfeito existe.
Referência Bibliográfica: DESCARTES, René. Meditações. In: Os Pensadores. Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1983.