João Sette Whitaker Ferreira Ferreira
SISTEMATIZAÇÃO CRÍTICA SISTEMATIZAÇÃO CRÍTIC A DA PRODUÇÃO ACADÊMICA Volume organizado para concurso de Títulos e Provas para obtenção do título de Livre-Docente Livre -Docente junto ao Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. - Volume 01. Área de conhecimento de Planejamento Urbano (GDPL) Edital ATAAc 067/2012 Janeiro de 2013.
SISTEMATIZAÇÃO CRÍTICA SISTEMA CRÍTIC A DA PRODUÇÃO ACADÊMICA
João Sette S ette Whitaker Ferreira
Volume organizado para Concurso de Títulos e Provas para obtenção do título de Livre-Docente junto ao Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo. - Vol. Vol. 01.
Área de Conhecimento de Planejamento Urbano (GDPL)
Edital ATAAc 067/2012
Janeiro de 2013.
Ao meu querido amigo Jorge Oseki, sempre quem mais me incentivou, dedico este trabalho, com muita saudade. 4
Agradecimentos. Todo trabalho acadêmico só se realiza com a colaboração, inestimável, de colegas e amigos que, em algum momento, compartilharam do esforço para sua realização, ou mesmo ajudaram em aspectos imprescindíveis para sua finalização. Os textos que compõem este volume, por retratarem todo um período da minha vida acadêmica, receberam contribuições ou resultaram do intercâmbio com um número inestimável de pessoas amigas, alunos, professores, que instigam permanentemente nossa produção intelectual. Suas contribuições estão sem dúvida espalhadas em cada pedaço dos textos aqui apresentados. Destaco o papel especial de Ermínia Maricato, pela amizade, o apoio e o constante exemplo que é para mim. Devo sempre um agradecimento especial aos meus colegas do LabHab, professores e equipe de pesquisadores, dos estagiários aos pós-doutorandos, pela reflexão comum e pelo engajamento acadêmico por uma causa, a de cidades mais democráticas e justas. Agradeço à Maria Lúcia Refinetti, pelo apoio e amizade. Para a realização desta Livre-Docência, agradeço especialmente à Daniele Queiroz, sem quem o trabalho – e a infindável compilação de documentos – simplesmente não teriam existido, e à Karina Leitão, colega incansável e companheira de todas as horas na condução do LabHab. Também agradeço a todos os funcionários da FAUUSP, ágeis e solidários na busca de documentações faltantes, e em especial ao Tadeu e funcionários do LPG, pelo empenho em imprimir estes volumes em tempo. Por fim, é claro, só posso agradecer muito à Luciana e à Helena, que sabem compreender a ausênc ia no dia-a-dia que trabalhos como este significam.
5
Índice. 1.1. INTRODUÇÃO: Impasses e desafios do planejamento urbano no contexto
do subdesenvolvimento.
08
1.2. A FORMAÇÃO URBANA NO SUBDESENVOLVIMENTO.
18
1.2.1. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil
19
Publicado em Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005. 1.2.2. Desafios para a construção de uma teoria crítica a partir da periferia
36
Publicado nos Anais do Colóquio Internacional: os desafios urbanos no Brasil e na África do Sul - Sessão Temática 5, IPUUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. Atualizado nesta edição. 1.2.3. São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo “à brasileira”.
43
Publicado na Revista do IEA – Estudos Avançados – Dossiê São Paulo - vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011 1.3. A QUESTÃO DA TERRA.
52
1.3.1. Onde o arcaico ainda dá as cartas: notas sobre a questão fundiária no Brasil no início do séc.XXI - Com Ermínia Maricato e Karina Oliveira Leitão.
53
Trecho da introdução do livro “O nó da terra” (título provisório) - MARICATO, LEITÃO E FERREIRA (Orgs.), LabHab-FAUUSP, no prelo. 1.3.2. Notas sobre a visão marxista da produção do espaço urbano e a questão da “renda da terra”.
60
Texto produzido para a disciplina AUP-5703 – Desenho do Espaço Urbano, do Programa de Pós-Graduação da FAUUSP, 2012. 1.4. SOBRE OS IMPASSES DO ESTATUTO DA CIDADE E A IMPLEMENTAÇÃO
DE SEUS INSTRUMENTOS: O caso das ZEIS e das Operações Urbanas Consorciadas.
79
1.4.1. A efetividade da Implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial. – com Daniela Motisuke.
80
Capítulo do livro: BUENO, Laura Machado de Mello e CYMBALISTA, Renato (orgs); “Planos diretores municipais: novos conceitos de planejamento”, São Paulo: Annablume, 2007. 1.4.2. OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualde? - Com Erminia Maricato.
94
Capítulo do livro OSORIO, Letícia Marques. “Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras”. Porto Alegre/São Paulo: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. 6
1.5. SOBRE AS ÁREAS CENTRAIS DAS CIDADES BRASILEIRAS.
109
1.5.1. Prefácio do livro “A batalha pelo centro de São Paulo: Santa Ifigênia, concessão urbanística e projeto nova luz”. - de Felipe Francisco de Souza, São Paulo: Paulo´s Editora, 2011.
110
1.6. OS IMPASSES DA POLÍTICA URBANA: GESTÕES “DEMOCRÁTICAS E
PARTICIPATIVAS” NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO.
1.6.1. Gestão democrática e participativa: um caminho para cidades socialmente justas?
115 116
Publicado na Revista Democracia Viva 18 – Rio de Janeiro: Ibase, 2003. 1.6.2. Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização das cidades no Brasil e os riscos de um “urbanismo às avessas”.
124
Capítulo de livro: Oliveira, Francisco, Braga, Ruy, Rizek, Cibele. Hegemonia as avessas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. 1.7. SOBRE A PROBLEMÁTICA HABITACIONAL.
140
1.7.1. Que cidade queremos para as gerações futuras? O trágico quadro urbano no Brasil do século XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentáveis.
141
Capítulo 1 do livro “Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil Urbano”, LabHab/FUPAM, 2012. 1.8. O PAPEL DO ARQUITETO-URBANISTA NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO.
151
1.8.1. Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profissão?
152
Publicado no Portal Vitruvius - Arquitextos 133.07. Ano 12, julho de 2011. 1.9. SOBRE A “QUESTÃO AMBIENTAL”.
165
1.9.1. A Formulação de uma Nova Matriz Urbana no Brasil, Baseada na Justiça Socioambiental. - Com Luciana Ferrara.
166
Artigo produzido para o Ministério das Cidades, Ministério do Meio Ambiente e OnuHabitat para Diálogos da Rio+20 e Fórum Urbano Mundial de Nápoles, versão final dez. de 2012. 1.10. BIBLIOGRAFIA.
191
*Desenho de capa do autor. 7
INTRODUÇÃO. Impasses e desafios do planejamento urbano no contexto do subdesenvolvimento. Certa vez, em meados da década de dois mil, uma equipe de estudantes de uma das disciplinas de Planejamento Urbano da FAUUSP apresentou seu trabalho final da seguinte forma: “ resolvemos não fazer nada. Apenas propomos uma reflexão, a ser feita agora, nesta apresentação ”. Não se tratava de alunos preguiçosos ou desinteressados, pelo contrário, era uma equipe que havia trabalhado bem todo o semestre. Tinha discutido muito, em torno de uma proposta de intervenção urbana em alguma região de São Paulo. A conclusão a que chegaram foi explicada assim: “ de tanto trabalhar, discutir, ler, propor alternativas, chegamos à conclusão que qualquer coisa que propuséssemos não iria adiantar nada. Não alteraria o status quo, não seria capaz de mudar os problemas estruturais da cidade. Seria uma intervenção cosmética. Há questões jurídicas que não teríamos como resolver neste trabalho, impasses políticos, conflitos socioeconômicos, e achamos que o poder de transformação do planejamento urbano e da nossa intervenção seria nulo. Então, melhor não fazer nada, mas discutir essa constatação ”. A equipe tirou ótima nota. Afinal, professores sabem que, em alguns casos, o que mais importa pedagogicamente é o processo, o empenho, a evolução, mais do que o resultado em si. Eles tinham, de fato, trabalhado muito. Embasavam suas afirmações. E, no fundo, não estavam de todo sem razão. Talvez tivessem mesmo chegado a um nível de amadurecimento que me permitiu pensar, com certa ironia: “acho que eles entenderam a verdadeira complexidade do planejamento urbano”. Ocorre que a profissão do planejamento urbano no Brasil está em cr ise, e o urbanismo como campo de estudos, cada vez mais complexo. Neste começo de século, não há dúvidas que o Brasil passa por um momento de inflexão. Resta saber para onde. Como já colocou Caio Prado Jr (apud Sampaio Jr., 2001), talvez a maior marca do subdesenvolvimento seja do país viver sempre o dilema de estar “entre a Nação e a Barbárie”. E resta saber, no nosso caso, como se coloca nesse contexto esta disciplina que pretende organizar e direcionar o crescimento das cidades. Pois o caminho trilhado desde a redemocratização apresenta-se, visto com algum recuo, bastante antagônico. Por um lado, é certo que alcançamos avanços consideráveis, tanto na luta pela democratização das cidades quanto na consolidação de instrumentos que permitam ao poder público exercer o papel central desse processo. A escola humanista lebretiana – cuja influência na FAUUSP é inegável – já havia dado as bases para uma compreensão das cidades pela ótica da justiça social e da democratização do espaço urbanizado, e mesmo durante o regime militar, não obstante o autoritarismo, a tecnocracia e a burocratização, houve avanços no uso de técnicas e instrumentos de planejamento que hoje são aproveitados. A mobilização da sociedade civil – na qual se incluíam os urbanistas, com destaque – levou à aprovação da emenda popular pela Reforma Urbana na Constituinte de 88, e dos artigos referentes aos instrumentos urbanísticos. Conceitos como a função social da propriedade foram garantidos na lei maior, assim como a descentralização, com a municipalização da prerrogativa da gestão do território, e as aparências indicavam uma retomada dos rumos para o planejamento urbano e a arquitetura que haviam sido apontados, mais de vinte anos antes, no Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, no Hotel Quitandinha. Entretanto, os entraves no caminho que se retomava iriam ficar evidentes nos longos treze anos necessários à regulamentação dos artigos constitucionais e à aprovação final do Estatuto da Cidade, em 2001. Porém, após vinte anos de ditadura, seria querer demais que as coisas fossem fáceis. Tal dificuldade era inerente ao processo político e não dizia forçosamente que o processo de democratização da questão urbana estivesse em risco. 8
Ainda mais porque, nesse mesmo período, a partir dos anos 90, consolidou-se o processo democrático e a ascensão ao Poder Municipal de partidos de esquerda que – capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores –, de repente, colocavam novamente em pauta o sonho de se fazer política urbana democrática e socialmente transformadora no Brasil. De Norte a Sul, em Fortaleza, Recife, em muitas cidades da Região Metropolitana de São Paulo, assim como na própria capital, em Curitiba, Porto Alegre e tantas outras cidades, prefeitos e suas equipes formadas por muitos arquitetos-urbanistas tentavam por em prática os novos instrumentos de que dispunham para promover o que se convencionou chamar, desde então, a Reforma Urbana: zoneamentos especiais para urbanização de favelas, para a regularização fundiária das áreas informais ocupadas, obrigatoriedade de implementação de mecanismos de participação, etc. Ao mesmo tempo, no âmbito do controle do uso e ocupação do solo de toda a cidade, novas tentativas de planejamento eram feitas, dentre as quais destacou-se o Plano Diretor de São Paulo, de 1991. Instrumentos de zoneamento inspirados na escola francesa, como o Direito de Preempção, o IPTU Progressivo, a limitação de coeficientes construtivos e a Outorga Onerosa, foram aplicados, numa perspectiva de regulação pública da produção do espaço urbano. Mas, também nesse ponto, apesar do otimismo que envolvia tais experiências, a aplicação de ferramentas de regulação pública diretamente inspirados de uma realidade completamente diferente – a dos Estados de Bem-Estar Social europeus –, se fosse passar pelo crivo de uma análise mais detalhada, indicaria uma série de entraves previsíveis. Resumidamente, trata-se do fato de que, no Brasil, nunca tivemos essa forma de Estado, submetidos que fomos aos padrões do patrimonialismo e de um Estado de elites, como mostrou Florestan Fernandes (e no âmbito urbano e da FAU, Csaba Déak). Na Europa do Pós-Guerra ou nos EUA do New Deal, a regulação estatal, em todos os campos, inclusive no da ocupação do território, era parte da solução keynesiana em voga para garantir a sobrevivência do sistema capitalista de produção após a crise de subconsumo dos anos 1930. Tratava-se de implantar uma economia de consumo de massa, para a qual era imprescindível a regulação pública para garantir a produtividade, mas sobretudo os padrões de consumo necessários. O “bem-estar social” passava também pela garantia da casa, e os esforços dos arquitetos e urbanistas do movimento moderno se encaixavam nessa lógica. Em suma, as economias do bem-estar social eram sistemas includentes, embora estruturados em torno da desigualdade e da luta de classes, nos quais a incorporação da maior parte da sociedade no mercado de consumo, em diferentes níveis de riqueza, era parte da receita (mantidas as taxas de desemprego e de pobreza admitidas pela teoria econômica). A forte regulação estatal incidia sobre os termos das relações de trabalho, sobre a oferta de educação e saúde, mas também para garantir uma mínima homogeneidade na estrutura urbana, para a boa fluidez de todo o sistema econômico e social. Não é que não tenhamos, aqui, sentido a pressão do keynesianismo, que no pós-guerra era, inclusive, a ideologia aceita e difundida pelos organismos multilaterais. Porém, o que tivemos aqui foi um keynesianismo peculiar, como mostraram muitos autores, dentre eles Oliveira (2003) ou Mantega (1997)�, capaz de utilizar o intervencionismo estatal – em geral de forma autoritária – não para o estímulo à formação de uma sociedade de consumo de massa, mas para fortalecer um modelo econômico de concentração da renda baseado na desigualdade, em que se buscava o baixo custo de reprodução da força de trabalho, que não precisava constituir-se em mercado de consumo, por meio da chamada “industrialização com baixos salários” (Schwarz e, no âmbito do urbano e da FAU, Maricato). É esta forma peculiar de desenvolvimento, em que se combinam os fatores do moderno e do atraso, o primeiro alimentando-se do segundo, e caracterizando o chamado subdesenvolvimentismo�, aliás, que explica grande parte da situação antagônica em que se encontram as cidades brasileiras hoje, vivendo importante salto de modernização, por sobre uma espantosa miséria soc ial. Esta lógica sustentou o que � Oliveira, F. (2003) sobre o keynesianismo avant la lettre e a queima do Café, entre outros casos, e MANTEGA, G. (1997), sobre o modelo econômico do “desenvolvimentismo autoritário” do regime militar. � Ver sobre isso a escola sociológica de interpretação da formação brasileira, a saber: Caio Prado Jr., Celso Furtado, Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini, Francisco de Oliveira, Maria da Conceição Tavares, Roberto Scharz, José Luis Fiori, entre outros.
9
chamo de “urbanização desigual”, pela qual, invariavelmente, os recursos públicos para a estruturação das cidades foram sistematicamente canalizados para os setores privilegiados ocupados pelas elites dominantes, como mostrou Flávio Villaça em seu já clássico trabalho (2000). Mais adiante, comentarei como a compreensão do subdesenvolvimento fez e faz parte da minha interpretação conceitual do urbano, e é apresentada neste trabalho, nos ar tigos iniciais desta compilação�. Voltando à história recente do planejamento urbano e à implementação, pelas prefeituras, dos instrumentos urbanísticos, a questão era: seria possível esperar efeitos de muita eficácia na regulação da produção do espaço urbano, de instrumentos pensados em um contexto econômico da socialdemocracia europeia, com um Estado forte e plenamente portador do sentido do “público” como o “bem de todos”, em uma realidade de um Estado e uma sociedade patrimonialistas, que historicamente imiscuem o “público” com o privado e transformam o Estado em instrumento de proteção dos privilégios dos setores dominantes? Esta discussão foi colocada em um dois ar tigos apresentados nesta sistematização crítica da minha produção�. Talvez esteja ai uma das explicações para a grande dificuldade que as mesmas prefeituras acima citadas passaram a ter, com o passar do tempo, para promover de fato transformações estruturais nos processo de urbanização desigual nessas cidades. Os avanços existiram, mas foram até certo ponto frustrantes, embora tenham permitido a consolidação de processos de gestão mais democráticos, e a paulatina incorporação da temática da exclusão socioespacial e da precariedade habitacional na agenda política brasileira. Tal desafio tornava-se ainda mais difícil porque, a partir dos anos 90, o país foi tomado pela onda de expansão neoliberal da chamada globalização, a partir do receituário do Consenso de Washington , cujos efeitos desastrosos na economia são hoje bastante conhecidos: forte desregulação e enfraquecimento do papel do Estado, privatizações e abertura do mercado interno para o capital internacional, desnacionalização da indústria, abandono das políticas públicas estruturais em favor de políticas assistencialistas e de remediação, entre outros. No campo do urbanismo, receitas prontas de “grandes projetos de mercado” apresentavam-se aos prefeitos como uma tábua de salvação frente às dificuldades acima citadas. Sustentadas pelo grande capital, tinham roupagem de modernidade e efeito visual inestimável para fins eleitorais, mas continuavam ainda mais concentradoras dos investimentos públicos nos setores já privilegiados das cidades, exacerbando a exclusão socioespacial. Ironicamente, em mais uma faceta das contradições típicas da modernização em uma sociedade que ainda se alimenta do atraso, é um dos instrumentos do Estatuto da Cidade, o das Operações Urbanas Consorciadas – capciosamente inserido no Estatuto justamente pelos setores conservadores do mercado imobiliário – que permitiu alavancar boa parte desses grandes projetos urbanísticos. Sobre esse processo, escrevi capítulo de livro organizado por Francisco de Oliveira, Cibele Risek e Ruy Braga, que apresento mais adiante neste trabalho�. Não obstante certa tortuosidade na aplicação de políticas urbanas democráticas nas cidades, os avanços em relação ao período do autoritarismo não cessaram. A criação do Ministério das Cidades, em 2002, e as ações decorrentes, como a implantação do Conselho das Cidades (com participação dos movimentos populares), a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e a estruturação de uma política de financiamento envolvendo municípios e estados, significaram saltos importantes na luta pela reforma urbana. Além disso, um dos resultados mais importantes desse processo, e que se relaciona diretamente aos cursos de Arquitetura e Urbanismo e ao ensino do planejamento urbano, é o de que pouco a � “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil” e “Desafios para a construção de uma teoria crítica a partir da periferia”, neste volume. � Ver “A efetividade da Implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial”, neste volume. � Ver “Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização da s cidades no Brasil e os riscos de um ‘urbanismo às avessas’”, neste volume.
10
pouco, em decorrência destas transformações, foi-se desfazendo a cisão extremamente perniciosa que havia ocorrido entre o planejamento urbano e a chamada “questão habitacional”. De fato, talvez como decorrência dos anos de autoritarismo, tornara-se mais interessante politicamente se, de forma tecnocrática, se associasse o planejamento urbano mais a regras de uso e ocupação do solo do que ao conjunto das dinâmicas sociais e econômicas que compõem a produção do espaço urbano. Tratar do déficit habitacional havia se tornado uma espécie de disciplina à parte, geralmente abarcada por setores “de esquerda” na academia, afastados da disciplina do planejamento, subliminarmente alimentando a noção de que este problema pudesse ser independente da questão urbana mais ampla. Um fenômeno curioso no âmbito da arquitetura e do urbanismo, cujas disciplinas curiosamente nunca deixaram de ser mantidas unidas no currículo universitário, e que ia de encontro à própria tradição da tão influente escola modernista europeia, que em sua origem teve, como sabemos, a questão da moradia popular no cerne de suas discussões. De certa forma, manter o planejamento como a ação de regulação da cidade – e a arquitetura como a ar te de projetar edificações para os mais ricos – permitia que se tratasse apenas da cidade “que funcionava” e que todos viam, e não da “não-cidade” de milhares de excluídos que o modelo econômico fazia crescer a cada ano. As periferias, não planejadas e sem arquitetura, tornavam-se a regra, embora compusessem uma espécie de “cidade invisível”, um termo frequentemente usado por Ermínia Maricato. Um dos exemplos mais cristalinos desse processo de separação entre planejamento urbano e a problemática habitacional talvez esteja no plano de zoneamento do município de São Paulo, de 1972. Neste, ficou clara a enorme diferença entre uma hipertrofiada regulamentação para a cidade “formal”, que cabia aproximadamente no chamado “centro expandido”, aquela em que estavam os investimentos em infraestrutura e equipamentos, e que foi dividida em um sem-número de zonas precisamente detalhadas, e o “abandono regulatório” do restante. Em linhas gerais, para o “resto” da cidade, adotouse uma única categoria de zoneamento (as Z2), imprecisas e pouco restringentes, que permitiram o crescimento “sem controle” das periferias. Flávio Villaça, em vários de seus textos, trabalha a maneira como o termo “a cidade” se aplica, no senso comum alimentado pelo aparato ideológico da grande mídia, apenas à cidade formal, em uma generalização do particular que permite “esquecer-se” da cidade que não interessa aos setores dominantes. Pois bem, o avanço das discussões em torno da Reforma Urbana e da democratização das cidades, permitiu que essa ruptura fosse pouco a pouco desfeita. É claro que ajudou para isso o fato de que, em certo momento, não se pôde mais “tapar o sol com a peneira”. A desigualdade urbana gerada pelo modelo de urbanização desigual tornou-se grande demais para ser invisível. Cerca de 40% da população das grandes cidades vive hoje na informalidade, em algumas das modalidades resultantes da urbanização com baixos salários (Maricato, 1997), em favelas, loteamentos irregulares ou clandestinos, cortiços, ou mesmo nas ruas. Isso sem falar da parcela importante que vive dentro da legalidade, mas ainda assim em bairros e casas bastante precários. Entender a “cidade” sem enxergar tal contingente populacional, enquanto os noticiários são regularmente invadidos pelas tragédias – enchentes, deslizamentos, incêndios – que se abatem invariavelmente sobre ele tornou-se um exercício de cinismo por demais inaceitável. Politicamente, a questão habitacional se reinseria na agenda eleitoral, e com isso tornava-se evidente, inclusive para as novas gerações de estudantes, que a “questão urbana” se referia a um todo, no qual o planejamento da cidade deveria incorporar, talvez até como seu problema central, a problemática da moradia. De certa forma, a obrigatoriedade de realização de Planos Diretores, e sua vinculação à aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade – aspectos centrais dos avanços de que falamos – foram elementos importantes nesse processo transformador. Mais do que isso, hoje trabalha-se com a obrigatoriedade, para a obtenção de recursos federais, da realização de Planos Locais de Habitação de Interesse Social, especificamente voltados, dentro da política de planejamento dos municípios, para a questão do déficit habitacional. Assim, no que tange às favelas, a ideia da erradicação total e expulsão sistemática, que norteava as ações de planejamento da “cidade que valia” até quase o fim do século passado (e ainda ocorre em alguns municípios, infelizmente) está paulatinamente dando lugar à políticas de urbanização e integração à 11
cidade, processo para o qual o conhecido plano “Favela Bairro”, realizado no Rio de Janeiro a partir de 1994, teve papel importante. Esforços para uma regularização fundiária mais ampla passaram a fazer parte da agenda política dos municípios, equipamentos de educação e saúde chegaram a ser implantados em número mais significativo, por exemplo em São Paulo, em áreas pobres de periferia. Assim, o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, cujos instrumentos deveriam dar aos municípios condições de adquirir terras urbanizadas subutilizadas para destiná-las a fins sociais, poderia ser visto como desencadeador de um processo efetivamente em curso para a reversão da injustiça urbana no Brasil. Porém, ao mesmo tempo, e reforçando o antagonismo de que falamos aqui, hoje há de se constatar que o mesmo Estatuto da Cidade foi, até agora, de quase nenhuma efetividade. O desequilíbrio urbano brasileiro continua inalterado, o déficit habitacional indecentemente alto, a precariedade urbana continua matando muitos a cada chuva. As cidades médias e grandes vivem verdadeiro colapso estrutural, não suportando mais a opção reiterada por políticas elitizantes, e o caso da mobilidade urbana e da opção sistemática pelo incentivo ao automóvel em detrimento do transporte público de massa, que as jogas em um total imobilismo, é o exemplo mais gritante. Embora o Estatuto da Cidade tenha dez anos, um instrumento como o IPTU Progressivo, que permitiria combater os lotes vazios nas áreas centrais, sequer foi regulamentado na maior cidade do país. Não há no Brasil, pode-se dizer, nenhum município que tenha de fato aplicado a totalidade dos instrumentos do Estatuto da Cidade, de forma sistêmica, e assim adotado uma postura política de enfrentamento real da desigualdade socioespacial. A questão é, de fato, política: adotar tal postura significaria encarar de frente os poderosos interesses que norteiam a organização social e territorial no Brasil, a saber, a defesa da propriedade e a busca do lucro. Significaria enfrentar efetivamente aquilo que Ermínia Maricato denominou o “nó” da produção do espaço: a disputa pela propriedade da terra, que nos acompanha desde a colônia, tratada também em um capítulo deste trabalho�. Embora a aplicação dispersa de alguns instrumentos do Estatuto em algumas c idades possa ter servido como elemento remediador da tragédia urbana, não temos, ainda, motivos para comemorações. Em que pese a luta dos movimentos populares e demais grupos organizados da sociedade civil, os avanços alcançados parecem não ser suficientes para gerar as profundas transformações necessárias para mudar a ordem estamental que gera a desigualdade urbana e a cidade da intolerância. Pior do que isso, o abandono a que foram deixadas as regiões mais pobres de nossa cidade não significa que, do outro lado da balança, as áreas mais privilegiadas se beneficiem, quanto a elas, de uma planejamento urbano de melhor qualidade. Em outras palavras, e como é comentado em alguns dos textos apresentados neste trabalho�, a uma “má” urbanização dos assentamentos precários, não se contrapõe uma “boa” urbanização nos bairros mais ricos. O modelo urbano brasileiro da cidade “que funciona” se baseia em práticas ambientalmente destrutivas, e por isso não pode servir de modelo. Em todas as grandes metrópoles brasileiras, impera uma liberalidade impressionante para com o mercado imobiliário, que funciona sem regulação efetiva. A verticalização desordenada, a produção intensiva de shopping centers e outros centros de negócios, de empreendimentos habitacionais fortificados que renegam a rua e a cidade, tudo sob o único critério da lucratividade, são a marca das nossas cidades. Impermeabiliza-se o solo, destroem-se os córregos, engolem-se os bairros assobradados, configurando um modelo de urbanização nas grandes cidades que, para aumentar a escala do desastre, é seguido cegamente em cidades médias e pequenas, que ainda teriam todas as condições para promover uma urbanização sob novos paradigmas. Neste cenário de absoluta hegemonia da iniciativa privada, “grandes eventos” tornaram-se justificativa inquestionável de “revitalização urbana”, e hoje muitas das nossas cidades não são mais planejadas pelos seus governantes, mas pelos altos mandatários de � Ver “Onde o arcaico ainda dá as cartas: notas sobre a questão fundiária no Brasil no início do séc. XXI” e “Notas sobre a visão marxista da produção do esp aço urbano e a questão da ‘renda da terra’”, neste volume. � Ver “A Formulação de uma Nova Matriz Urbana no Brasil, Baseada na Justiça Socioambiental” e “Que cidade queremos para as gerações futuras? O trágico quadro urbano no Brasil do século XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentáveis”, neste volume.
12
entidades esportivas internacionais, que aliás ninguém no Brasil elegeu. Por essa razão, o planejamento urbano brasileiro hoje deve justificar-se por permitir que cidades médias gastem bilhões de Reais para a construção de estádios para a Copa do Mundo de 2016 (e, é claro, junto a eles, vistosos bairros de negócios) sem que tenham sequer time jogando na primeira divisão do esporte nacional. A política urbana hoje parece ser resultado da soma de obras descomprometidas com o processo de planejamento. Como já mostrou Flavio Villaça, os planos cumprem o papel do discurso mas não orientam nem regulam os investimentos. Os fatores que os regulam são os interesses do mercado imobiliário, de empreiteiras, a prioridade às obras viárias ou de grande visibilidade eleitoral. A prioridade a políticas públicas arcaicas e concentradoras da renda, as grandes obras pouco urgentes, o descaso com questões básicas como o saneamento e a informalidade habitacional, ainda são a marca da grande maioria das políticas municipais. Sintomaticamente, dentro da lógica da “modernização conservadora”, a capital brasileira que mais vê aumentar seus “problemas” urbanos, como a insegurança, a informalidade e a segregação espacial, é Vitória – ES, justamente aquela que mais se “beneficia” da globalização econômica, sendo a principal de saída da produção do agrobusiness e da mineração brasileiros. Por outro lado, no que diz respeito ao enfrentamento do déficit habitacional, o momento também é de antagonismos. O crescimento econômico interno associado a uma maior preocupação política com a questão da moradia para os mais pobres levaram a uma solução ambígua: uma política de produção em massa de moradias, apoiada no mercado da construção civil, como forma, também, de promover uma ação anticíclica, em relação à crise econômica externa. Dessa opção decorreu um aquecimento sem precedentes do setor da construção para uma faixa de renda média e média baixa, que não era até então objeto de interesse do mercado. Também permitiu estabelecer uma política de subsídios inédita para financiar a moradia para as faixas de renda muito baixas. Porém, ao mesmo tempo, características do patrimonialismo, como a permissividade para uma ação demasiadamente livre e desregulada do mercado da construção, ou como a falta de controle sobre o fundiário, (que gerou um processo especulativo e uma alta de preços consequente), associados a uma autonomia as vezes talvez ampla demais dos municípios na gestão do território, produziram resultados ambíguos: ao mesmo tempo que se produziram mais de um milhão de unidades em poucos anos, em um ritmo mais compatível com o déficit a suprir, surgiram conjuntos distantes da cidade, com infraestrutura e equipamentos insuficientes, com qualidade urbanística e arquitetônica geralmente sofríveis, constituindo um passivo ambiental e urbano que poderá cobrar seu preço em algumas décadas. No Chile e, sobretudo, no México, políticas de produção em massa baseadas em absoluta liberalidade do mercado da construção levaram a problemas pelos mesmos motivos, hoje conhecidos como a problemática dos “ con techo” no Chile, e vista em empreendimentos que chegam a 165 mil unidades habitacionais (gerando cidades de 400 mil habitantes!), distantes de mais de 70 km do centro, como em Zumpango, no México. Hoje o país vive um momento de transição. Florestan Fernandes (1968) defendia que o Brasil dá recorrentemente saltos “modernizantes” que nos levam a um novo patamar econômico sem que, entretanto, tenhamos superado com isso os desequilíbrios estruturais da etapa anterior. Porém, criamse a cada salto “mitos da modernização”, que servem para legitimá-los, mesmo se, para ocorrer, tais avanços tenham que alimentar-se do aprofundamento do atraso e da miséria. Porém, o salto atual é mais complexo, pois pode indicar que haja, de fato, o esgotamento do modelo de modernização conservadora tal qual ocorreu até hoje. Em outras palavras, que não é mais possível, no contexto de uma economia globalizada, sustentar o crescimento econômico sem integrar de maneira mais intensa as parcelas populacionais tradicionalmente excluídas. Do Plano de Metas ao milagre econômico, a sustentação do crescimento econômico se deu baseada na exacerbação das desigualdades e da concentração da renda, fato que poderia estar se confrontando, hoje, com a aparentemente necessária expansão da “classe média” e do mercado consumidor. Estaríamos então diante do que Deák (1991) chama de “passagem para o estágio intensivo de desenvolvimento”, uma perspectiva interessante e inédita pois, se for verdadeira, significaria um conflito real em relação ao modelo subdesenvolvimentista.
13
Isto significa, do ponto de vista político, um confronto entre uma tendência desenvolvimentista em nova roupagem – que de certa forma o “Lulismo” e agora a gestão Dilma Roussef, tentam vestir – e os traços mais tradicionais e arcaicos de uma sociedade que não tolera a pobreza (ou melhor, alimenta-se dela), e menos ainda os ventos eventuais de uma real democratização econômica (e social). O debate está colocado: não são raras as divergências entre importantes escolas econômicas nacionais sobre as bases do processo de crescimento econômico vivido no Brasil na última década. A polêmica gira em torno do questionamento sobre a real dimensão desse crescimento, e sobre se seus impactos são de fato sustentadores de mudanças de nossas estruturas sociais ou apenas reforçam a dinâmica predatória com ares de modernização. Diante de tal cenário, as indagações dos meus estudantes, que comentei ao iniciar este texto, não soam mais tão fantasiosas. Como um estudante de urbanismo que se forma hoje no Brasil deve e pode encarar o papel da sua profissão, frente a antagonismos tão complexos como os analisados neste texto? Para piorar, deve-se observar que a força do mercado e o fetichismo dos valores da realização capitalista levam os arquitetos recém-formados a querer trilhar, com mais facilidade, os sedutores caminhos da “arquitetura de mercado”, mais do que o assustador – mas tão instigante – enfrentamento da questão da exclusão urbana. Porém, a verdade é que a profissão de urbanista não tem mais como se furtar ao desafio de tentar resolver nossa indecente desigualdade urbana. É por isso que escrevi, em 2010, artigo destinado aos jovens arquitetos e urbanistas, em que justamente apontava para os desafios que a eles se apresentavam face à realidade urbana brasileira atual, para além do festejado mundo daqueles escritórios de arquitetura que atuam no – restrito – mercado formal da construção civil. Esse artigo também é parte deste trabalho�. *
*
*
O presente trabalho, dentro das exigências para a obtenção do título de Livre Docente da Universidade de São Paulo, apresenta uma sistematização da minha reflexão acadêmica recente, cujo fio condutor apresentei, de forma resumida, na introdução acima. É importante destacar que se trata da produção posterior à minha Tese de Doutorado, que foi publicada em 2007 sob o título “O mito da Cidade-Global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano” (Vozes, 2007). Com uma desconstrução da teoria das cidades-globais, em especial aquela difundida por autores como Borja, Castells e Sassen, a partir do festejado modelo urbano de Barcelona 92, mostrei como o conceito não se aplicava, se tomados com rigor os parâmetros característicos da “cidade-global” apresentados por esses autores, à cidade de São Paulo. Mostrei como, em compensação, montava-se um discurso ideológico que defendia a “necessidade” de adoção de certas políticas públicas urbanas – e sobretudo a destinação de recursos públicos importantes – para garantir o status de cidade global à capital paulista. Um rótulo que, na verdade, de nada alterava as condições de subdesenvolvimento da cidade, a forte desigualdade social e a intensa segregação econômica-espacial, mas propiciava vantagens e lucros fabulosos, à custa de investimentos públicos, aos setores econômicos dominantes na produção do espaço, tradicionais e bastante arcaicos, capitaneados pelo chamado mercado imobiliário. As reflexões aqui sistematizadas partem, portanto, desse ponto, e já consideram consolidada a crítica à importação – alavancada por forte processo ideológico – do modelo do planejamento estratégico, com todas suas consequências. A maioria dos textos apresentados é recente, e fazem parte de artigos ou capítulos de livros, alguns publicados, outros ainda inéditos. Em alguns casos, contei com a colaboração de orientandos ou pesquisadores do LabHab, na compilação de dados, na redação de assuntos mais específicos dos textos, e nesses casos eles aparecem como co-autores. No caso dos textos escritos com Ermínia Maricato e Karina Leitão, trata-se de uma redação compartilhada.
� Ver “Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profissão?”, neste volume.
14
Um dos aspectos interessantes, ao se observar essa produção com algum distanciamento, é o fato de que nós, urbanistas, somos levados a refletir uma gama bastante variada de assuntos, todos eles, evidentemente, inerentes ao processo de produção do espaço. Por isso, uma das intenções desta sistematização foi a de mostrar tal abrangência, organizando os textos não por ordem cronológica, mas por assuntos. O primeiro deles diz respeito ao embasamento conceitual que, de cer ta forma, será retomado em todos os demais. Trata-se da relação entre o urbano e a formação da sociedade e do Estado brasileiros, a partir da transposição para a dimensão espacial e urbana da escola sociológica que cunhou modelos interpretativos como do subdesenvolvimento e da modernização conservadora. Na minha formação, fui bastante influenciado por professores que, na FAUUSP, faziam tal aproximação: com a economia, o professor Csaba Deák, que redigia seu texto “Acumulação entrava da no Brasil e a crise dos anos 80” (1991) justamente quando estava no quarto ano da graduação e, com a sociologia econômica e os grandes intérpretes da formação nacional, a Profa. Ermínia Maricato, que também escreveu “Metrópole na periferia do capitalismo”, justamente parafraseando Roberto Shwarz�, no momento em que fazia minha pós-graduação. Assim, a primeira parte deste volume, “A formação urbana no subdesenvolvimento”, traz três textos um pouco mais antigos, que serviram para sistematizar as bases dessa reflexão: “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil”, escrito em 2005, e “Desafios para a construção de uma teoria crítica a partir da periferia”, de 2007. O terceiro texto, intitulado “São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo ‘à brasileira’”, produzido para a Revista Estudos Avançados do IEA-USP em 2011, apresenta a discussão mais atualizada sobre o tema, e lança elementos da pesquisa que pretendo desenvolver a partir de agora, após a livre-docência. A discussão que nele apresento, sempre baseada nos mesmos elementos de compreensão do que chamo de um urbanismo do subdesenvolvimento, tenta entretanto ir além dessa interpretação. Nele, como se verá, busco entender como as dinâmicas de produção do espaço urbano no Brasil, que ditam a ocupação do território, se alimentam também - e talvez de forma intransponível - em uma cultura sócio urbana que anda carrega heranças do passado colonial, como o racismo, a intolerância à pobreza e a intransigente recusa da cidade democrática como modelo urbano. O segundo tema abordado é aquele que, como comentei anteriormente, é o gargalo mais complexo de resolver no âmbito do urbanismo no Brasil: a questão da terra. Os dois textos apresentados são, neste caso, muito recentes, um deles inédito. Há bastante tempo que acalentamos, no LabHab, a ideia de juntar e sistematizar a produção, bastante densa mas um pouco dispersa, sobre a temática fundiária, feita ou no laboratório, ou por pesquisadores associados a ele. Este ano, consegui, junto com Ermínia Maricato e Karina Leitão, fazer esse trabalho, e redigir um texto introdutório que pudesse fazer um balanço da questão da terra nos dias de hoje. É esta introdução, intitulada (provisoriamente) “Onde o arcaico ainda dá as cartas: notas sobre a questão fundiária no Brasil no início do séc.XXI”, ainda não publicada, que apresento aqui. O segundo texto também é recente, mas por outra razão: desde que iniciei minha carreira acadêmica, me deparo com uma polêmica que instiga urbanistas, geógrafos e pensadores marxistas de todas as áreas. A questão da “renda da terra” em Marx e de como ela pode ser, ou não, uma matriz explicativa aplicável à realidade fundiária atual, e à brasileira em especial. Nunca havia escrito nada a respeito pois, confesso, era uma discussão para mim bastante árdua, e de certa forma pouco frutífera. Porém, ao oferecer a disciplina de Pós-Graduação “Desenho do ambiente urbano”, neste ano de 2012, percebi que a confusão não era só minha, e que os estudantes veriam com bons olhos uma sistematização de tal polêmica, pelo olhar dos urbanistas, que no meu entender, nunca havia sido feita. Disso resultou o texto didático “Notas sobre a visão marxista da produção do espaço urbano e a questão da ‘renda da terra’”.
� SCHWARZ, R. “Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis”, São Paulo: Duas Cidades, 1990.
15
A partir dessas duas discussões, o trabalho começa a abordar alguns dos diversos temas de discussão a que sou confrontado, nas atividades docentes ou de pesquisa e extensão, no LabHab. O terceiro tema, “Sobre os impasses do estatuto da cidade e a implementação de seus instrumentos: O caso das ZEIS e das Operações Urbanas Consorciadas”, é o do já comentado antagonismo entre a aprovação do Estatuto da Cidade e de instrumentos “progressistas” de planejamento e o impasse na sua aplicação efetiva. Apresento primeiramente um capítulo de livro, “A efetividade da Implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial”, de 2001, que estuda, seis anos após a aprovação do estatuto, o caso específico das ZEIS, provavelmente o instrumento mais “radical” de promoção da reforma urbana que os municípios brasileiros hoje dispõem, mas que concretamente tem uma aplicação pouco efetiva (ainda?). O segundo texto, o mais antigo desta sistematização, escrito em 2002 com Ermínia Maricato, aborda o polêmico instrumento das Operações Urbanas Consorciadas, em um momento em que talvez ainda houvessem esperanças de que ele pudesse ser utilizado efetivamente para a Reforma Urbana, fato que não se verificou posteriormente. O quarto tema abordado está muito em voga, é o da questão habitacional e urbanística nas áreas centrais das cidades brasileiras. Está em voga por, provavelmente entre outras, duas razões: a primeira, porque com a falta de terras disponíveis, as áreas centrais, esquecidas durante anos e deixadas à sua vocação popular, vêm se tornando um novo espaço de forte interesse do mercado imobiliário. Disso, e do conflito gerado por esse avanço por sobre regiões que consolidaram nesse período de abandono seu perfil de uso popular, decorre uma intensa dinâmica urbana, em muito marcada pela ação – do meu ponto de vista bastante adequada – dos movimentos de moradia, que ocupam edifícios abandonados que não cumprem sua função social. As reintegrações de posse marcadas pela violência, ou ainda planos de intervenção urbanística claramente marcados pelo elitismo e o favorecimento dos interesses privados aparecem frequentemente no noticiário e dão à questão toda sua atualidade. A segunda razão é justamente porque hoje no Brasil há um número de unidades vazias em áreas centrais, cerca de cinco milhões, quase o equivalente ao déficit habitacional total, que gira em torno de seis milhões de unidades. Escrevi vários textos a respeito, inclusive em função de pesquisas específicas sobre o assunto. Porém, em 2011, a publicação, por Felipe Francisco de Souza, de seu livro “A batalha pelo centro de São Paulo” (Paulo´s Editora, 2011), que denunciava os lastimáveis mecanismos do projeto urbanístico “Nova Luz”, me deu a oportunidade de escrever, para o prefácio que ele me convidou a fazer, uma reflexão mais sistematizada da questão. É o texto que apresento neste trabalho. Na parte seguinte, a quinta, apresento uma discussão sobre “ Os impasses da política urbana: gestões ‘democráticas e participativas’ no contexto da globalização ”. Trata-se novamente da discussão sobre os entraves a se fazer planejamento urbano no contexto do subdesenvolvimento e da modernização conservadora. Desta vez, apresento dois textos que têm uma sequencia cronológica interessante: o primeiro deles, “Gestão democrática e participativa: um caminho para cidades socialmente justas?”, de 2003, foi escrito no início da chamada “Era Lula”, quando as experiências de gestões de esquerda nos municípios já apontavam para alguns problemas, mas as esperanças de mudanças ainda eram fortes. Utilizei a experiência de uma pesquisa do LabHab para dar ao texto um caráter propositivo, em torno de preceitos de planejamento, como a proximidade local e a participação, que nos pareciam bastante efetivos. O segundo texto é um capítulo de livro que bastante me honrou, organizado por Francisco de Oliveira, Cibele Rizek e Ruy Braga, “Hegemonia as avessas” (Boitempo, 2010), e que justamente fazia uma análise crítica do governo Lula, quando, na opinião de Oliveira, “ não são mais os dominados quem consentem na sua própria exploração. São os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, à condição de que a “direção moral” não questione a forma da exploração capitalista” ��. No texto “Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização das cidades no Brasil e os riscos de um ‘urbanismo às avessas’”, discuto a dimensão que o impasse entre a reforma urbana e o avanço do “urbanismo de mercado” tomou, e a dificuldade que isso passou a representar para as gestões ditas “democráticas e populares”.
�� Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, Revista Piauí, n. 4. Rio de Janeiro-São Paulo: Ed. Alvinegra, jan. 2007.
16
O sexto tema abordado é o da problemática habitacional e o cenário urbano no Brasil de hoje, sob os impactos do aquecimento do mercado da construção civil e do Programa Minha Casa Minha Vida, comentados acima. O texto, “Que cidade queremos para as gerações futuras? O trágico quadro urbano no Brasil do século XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentáveis”, é o primeiro capítulo do livro recém-lançado pelo LabHab, intitulado “Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano”, que se propõe a lançar uma ampla e crítica discussão sobre o cenário urbano atual, e o impacto urbanístico e ambiental dos grandes conjuntos que vêm sendo construídos país afora, para os segmento de renda dito “econômico”. O sétimo e penúltimo tema “ O papel do arquiteto-urbanista no atual contexto brasileiro”, trata da atuação desse profissionais face a tal cenário, já amplamente comentada nesta introdução, e foi escrito para os estudantes da área. Publicado em 2011 pelo Portal Vitruvius, “Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profissão?” teve o mérito de despertar grande polêmica e um número significativo de leituras e apoio, na era da divulgação de textos pela internet. Por fim, a última parte trata de um assunto extremamente atual, e completamente inserido no campo de discussão dos urbanistas, a chamada “questão ambiental”. Sabemos que ai reside um outro gargalo para quem estuda a questão urbana. À medida que a disponibilidade fundiária torna-se cada vez mais reduzida, os assentamentos populares – e agora também os de alta renda – tendem a ocupar áreas ambientalmente frágeis, tornando intensa a mediação entre ur banização e preservação ambiental. Por outro lado, o crescimento econômico leva a uma explosão urbana, que também afeta drasticamente o meio ambiente. Paradoxalmente, quanto mais cresce a economia e a urbanização tida como “da riqueza”, mais se acentuam os impactos decorrentes da sua péssima qualidade ambiental. Em 2012, fui convidado, pelo Ministério das Cidades, o do Meio Ambiente e a UM-Habitat (seção América Latina), a produzir um documento, no âmbito da Conferência Rio+20 e do Fórum Urbano Mundial da Um-Habitat, que sintetizasse a discussão sobre o conceito, bastante impreciso, de “sustentabilidade urbana”. Dai sai o texto “A Formulação de uma Nova Matriz Urbana no Brasil, Baseada na Justiça Socioambiental”, que apresento como conclusão deste trabalho.
17
A FORMAÇÃO URBANA NO SUBDESENVOLVIMENTO.
18
A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil Publicado em Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005.
As cidades brasileiras são hoje a expressão urbana de uma sociedade que nunca conseguiu superar sua herança colonial para construir uma nação que distribuísse de forma mais equitativa suas riquezas e, mais recentemente, viu sobrepor-se à essa matriz arcaica uma nova roupagem de modernidade “global” que só fez exacerbar suas dramáticas injustiças. Pesquisas de várias instituições indicam que as grandes metrópoles brasileiras têm em média entre 40 e 50% de sua população vivendo na informalidade urbana�, das quais de 15 a 20% em média moram em favelas (chegando a mais de 40% em Recife). E não seria exagero afirmar que a questão do acesso à propriedade da terra está no cerne dessa enorme desigualdade socioespacial.
A Lei das Terras e o surgimento da propriedade fundiária Até meados do século XIX, a terra no Brasil era concedida pela Coroa – as sesmarias – , ou simplesmente ocupada�. Os municípios tinham o Rossio, terras em que se implantavam as casas e pequenas áreas de produção, sem custo. Assim, a terra ainda não tinha valor comercial, mas essas formas de apropriação já favoreciam a hegemonia de uma classe social privilegiada. A Lei das Terras, de setembro de 1850, transformou-a em mercadoria, nas mãos dos que já detinham “cartas de sesmaria” ou provas de ocupação “pacífica e sem contestação”, e da própria Coroa, oficialmente proprietária de todo o território ainda não ocupado, e que a partir de então passava a realizar leilões para sua venda. Ou seja, pode-se considerar que a Lei de Terras representa a implantação da propriedade privada do solo no Brasil. Para ter terra, a partir de então, era necessário pagar por ela. Para Maricato (1997), foi entre 1822 e 1850, nas décadas anteriores à aprovação da Lei das Terras, que se consolidou de fato o latifúndio brasileiro, através da ampla e indiscriminada ocupação das terras, e a expulsão dos pequenos posseiros pelos grandes proprietários rurais. Tal processo se deu muito em função da indefinição do Estado em impor regras, decorrente das disputas entre os próprios detentores do poder. Segundo a autora, “ a demorada tramitação do projeto de lei que iria definir regras para a comercialização e propriedade da terra se devia ao medo dos latifundiários em não ver ‘suas’ terras confirmadas”. O resultado dessa disputa foi o fim do projeto liberal de financiamento de uma colonização branca de pequenas propriedades, baseada nos colonos europeus, por meio da venda das terras do Estado�. No lugar, promoveu-se uma demarcação da propriedade fundiária nas mão dos grandes � No Brasil, entende-se por esse termo habitações de favelas, cortiços e loteamentos clandestinos. A informalidade urbana diz respeito à inadequação físico-construtiva e ambiental da habitação e/ou do entorno – construções precárias, terrenos em áreas de risco ou de preservação ambiental, área útil insuficiente para o número de moradores, etc., à ausência de infraestrutura urbana – saneamento, água tratada, luz, acessibilidade viária, etc., ou ainda à ilegalidade da posse da terra ou do contrato de uso. � Sobre a Lei das Terras e as origens da propriedade da terra no Brasil, que desenvolveremos nos parágrafos que seguem, foram usados como referência: MARICATO, Ermínia. “Habitação e Cidade”, São Paulo: Atual Editora, 1997, WHITAKER FERREIRA, Francisco. “L’homme exclu et le droit de proprieté”, paper para a Assembléia Nacional Francesa e a Missão Interministerial para a Celebração do Centenário da Lei 1901, Paris, 25 de junho de 2001, e MARTINS, José de Souza. “O Cativeiro da Terra”, São Paulo:Livraria Editora de Ciências Humanas, 1978. � Sabe-se que, em especial no período inicial da República, várias correntes se opuseram quanto às formas de ocupação do território e de construção da cidadania republicana, o que refletia também nas políticas de ocupação do território. Mas mesmo anteriormente, antes até da independência, Dom Pedro e José Bonifácio já procuraram incentivar a vinda de colonos europeus para o sul do país, com a intenção de formar uma classe média rural de pequenos proprietários agricultores, enquanto que a migração para São Paulo era destinada ao fornecimento de mão-de -obra para a grande lavoura (ver FAUSTO, Boris. “História do Brasil”, São Paulo: Edusp, 1994). Dentre as diferentes correntes que se enfrentaram entre 1880 e 1930, Ribeiro e Cardoso apontam para as correntes de pensamento “racista”, que buscava o “branqueamento como tarefa civilizatória”, através das polí ticas migratórias, ou ainda a “ruralista”, capitaneada po r Alberto Torres, que defendia “uma intervenção do Estado que recompusesse a estrutura fundiária, com ênfase nas pequenas propriedades” (QUEIROZ RIBEIRO, Luiz César, e CARDOSO, Adauto Luiz. “Planejamento Urbano no Brasil: paradigmas e experiê ncias”, in Espaços & Debates: Revista de Estudos Urbanos e Regionais, nº 37, São Paulo: Neru, 1994). Mesmo que anterior à República, ou justamente como resultado das disputas na sua preparação, a Lei de Terras de alguma forma consolidou os interesses dos grandes latifundiários no processo de apropriação da terra no país.
19
latifundiários, que nesse processo conseguiram inclusive apropriar-se de muitas terras do Estado. E os imigrantes, em vez de colonos de pequenas plantações, serviram de fato como mão de obra nos grandes latifúndios, substituindo a mão de obra escrava. Pois o processo político de aprovação da Lei das Terras tem muito a ver com o fim do tráfico de escravos. Como se sabe, o fim da escravidão no Brasil está mais ligado aos fortes interesses comerciais ingleses, a potência hegemônica da época, do que a ideais abolicionistas. A expansão comercial imposta pela Revolução Industrial fez com que aumentasse o interesse dos ingleses sobre o comércio brasileiro, e as pressões para impedir qualquer restrição a seus produtos e garantir o aumento do mercado, o que incluía também o fim da mão de obra escrava e a implantação do assalariamento. Segundo Boris Fausto (1994), entre 1870 e 1873, os produtos ingleses eram responsáveis por 53,4% do valor total das importações brasileiras. A proibição do tráfico negreiro, em 1831, não impediu a continuidade do comércio de escravos, que entretanto tornavam-se mais caros para os grandes produtores agrícolas, indicando a solução da mão de obra imigrante. Foi somente em 1850, após a ameaça concreta, feita um ano antes pelos ingleses, de fechamento dos portos brasileiros, que uma lei coibiu definitivamente o tráfico. Restava então aos grandes produtores cafeeiros recorrer à mão de obra “livre”e assalariada dos imigrantes. Nesse sentido, a Lei das Terras coibiu, como vimos, a pequena produção de subsistência, dificultando o acesso à terra pelos pequenos produtores, inclusive imigrantes, e forçando seu assalariamento nas grandes plantações. Entretanto, também com relação a estes foi estruturado um sistema de endividamento – as “parcerias” – pelo qual os trabalhadores recém-chegados abriam crédito com seus patrões para a compra dos bens que necessitavam, chegando a um ponto em que o pagamento dessas dívidas tornava-se impossível. Na prática, tal dependência instituiu um sistema de pseudo-escravidão para esses trabalhadores (que aliás perdura até hoje em algumas regiões do Brasil), que por muitos anos�, até a abolição, conviveram nas fazendas com a mão de obra escrava. Outro aspecto decorrente da Lei das Terras, embora menos significativo que sua função de promover a implantação do trabalho assalariado, é que antes da sua aprovação, o “capital” dos grandes latifundiários era medido pelo número de escravos que cada um detinha, fosse no campo ou nas cidades�. A abundância de terras, a dificuldade para ocupá-las e a condição colocada para sua concessão de que elas se tornassem produtivas, tornavam a posse de escravos mais importante do que a da terra em si. Em suma, a riqueza dos poderosos era medida pelos seus escravos, que serviam – o que não era o caso da terra, antes de 1850 – até como objeto de hipoteca para a obtenção de empréstimos. Como lembra Maricato (1997), não foi por acaso que a Lei das Terras foi promulgada no mesmo ano – na verdade, em um intervalo de poucas semanas – do que a proibição definitiva do tráfico. Está claro que, em meio a um processo político-econômico em que se restringia o sistema de escravidão, a Lei das Terras serviu para transferir o indicativo de poder e riqueza das elites de então: sua hegemonia não era mais medida pelo número de escravos, mas pela terra que possuía, agora convertida em mercadoria, e o trabalho assalariado podia então se expandir no Brasil, respondendo às pressões inglesas.
� É verdade que o sistema de parcerias sucumbiu à pressão dos imigrantes, notadamente após a revolta de Ibicaba, em 1857, quando imigrantes alemães se levantaram contra o Senador Campos Vergueiro, que havia instituído em suas fazendas pela primeira vez o sistema de parceria. A repercussão internacional foi importante o suficiente para fazer com que o governo alemão proibisse a emigração de alemães para o Brasil. Ainda assim, novas formas de exploração forma estabelecidas, como a das “colônias”, pseudo-independência dada aos trabalhadores dentro das grandes fazendas. � O papel dos escravos não era desempenhado somente no campo. Nas cidades, eles eram indispensáveis à vida urbana, encarregando-se de todos os serviços mais pesados. Segundo MARICATO, Op. Cit. (pg. 17) os escravos na cidade eliminavam os dejetos, carregando barris cheios de fezes até a praia, por exemplo, abasteciam as casas com água e lenha, recolhiam o lixo, transportavam objetos e pessoas, e realizavam, na condição de “escravos de ganho”, atividades de comércio e uma série de pequenos serviços para seus proprietários, que incluíam desde a venda de quitutes até a prostituição.
20
Evidentemente, tal situação consolidou a divisão da sociedade em duas categorias bem distintas: os proprietários fundiários de um lado�, e do outro, sem nenhuma possibilidade de comprar terras, os escravos, que seriam juridicamente libertos apenas em 1888, e os imigrantes, presos à dívidas com seus patrões ou simplesmente ignorantes de todos os procedimentos necessários para obter o título de propriedade. A presença de ambos já era na época considerável: se o país tinha, em 1700, cerca de 3 milhões de habitantes, o tráfico negreiro alterou bem a situação, e em 1850 somente os escravos já eram cerca de 4 milhões. Quanto aos imigrantes europeus e japoneses, sua vinda começou efetivamente na década de 1840, intensificando-se após 1850. Entre esse ano e o de 1859, cerca de 110 mil imigrantes chegaram ao país, parte par te deles concentrando-se, vale dizer, nas cidades. Em São Paulo, por exemplo, dos 130 mil habitantes em 1895, 71 mil eram estrangeiros�. Mas, a terra como “mercadoria” não ficou por causa disso mais disponível para essa massa de população. Como vimos, a distribuição das terras no Brasil se deu, para os senhores de então, em um sistema com muito pouca, ou nenhuma concorrência.
As cidades na economia agroexportadora Mas se o processo acima descrito descr ito ocorre essencialmente no meio rural, é importante frisar que a Lei das Terras teve também forte influência nas dinâmicas de apropriação da terra urbana. Ermínia Maricato lembra que a lei “distingue, pela primeira vez na história do país, o que é solo público e o que é solo privado” (Maricato, 1997:23). Assim, torna-se possível, inclusive, regulamentar o acesso à terra urbana, definindo padrões de uso e ocupação, que como veremos, também iriam servir para garantir, ao longo do tempo, o privilégio das classes dominantes. Ou seja, nas cidades como no campo, a estrutura institucional e política de regulamentação do acesso à terra foi sempre implementada no sentido de não alterar a absoluta hegemonia das elites. Analisando mais de perto per to a questão urbana, vale lembrar, em primeiro lugar, o argumento apresentado pelo sociólogo Francisco de Oliveira�, para quem é errada a ideia, bastante comum na historiografia nacional, segundo a qual na economia brasileira agroexportadora da passagem do século XIX para o XX, o meio rural predominava sobre o meio urbano. Como lembra o autor, se a sede da produção agroexportadora era necessariamente o campo, c ampo, o controle de sua comercialização, entretanto, se dava essencialmente nas cidades. O papel central das cidades não acontecia apenas porque a efetivação das exportações necessitasse de atividades urbanas. Segundo o autor, “ porque a produção foi fundada para para a exportação, a cidade nasce no Brasil antes mesmo do campo. Daí o caráter político-administrativo das cidades no Brasil desde a Colônia, o que foi confundido...como um predomínio do campo sobre a cidade ”. Entretanto, as cidades brasileiras da época cafeeira tinham a característica, que iria mudar após a consolidação da industrialização, de serem um espaço urbano onde não ocorria nem o mercado (já que o mercado real da economia era o da exportação agrícola) nem a própria produção (que se dava no campo). Assim, antes mesmo do início da industrialização, a cidade do Rio de Janeiro já atingia um tamanho significativo, ainda no século XIX, por sua condição de capital, e S ão Paulo, como veremos, se consolidava como sede administrativa da produção cafeeira paulista. O fim do tráfico e a libertação de escravos antes mesmo da abolição, geraram um afluxo para a cidade do Rio, que em 1890 tinha cerca de meio milhão de habitantes. Com o advento da república, consolidou-se ainda mais seu crescimento, de tal forma que, na virada do século retrasado, a cidade se mantinha a mais populosa do país, com cerca de 600 mil habitantes, mais do que o dobro de São Paulo ou Salvador.
� Uma elite que se manteria para sempre no no poder, pois estaria na origem da burguesia industrial nacional, que por sua vez consolidaria sua hegemonia a partir da década de 30. � Até 1940, o Brasil recebeu cerca de 5 milhões de imigrantes. imigrantes. � OLIVEIRA, Francisco de. “Acumulação monopolista, Estado e urbanização: a nova qualidade do conflito de classes”, classes”, in “Contradições Urbanas e Movimentos soc iais” iais”,, São Paulo: CED EC, 1977.
21
Na cidade de São Paulo, a expansão da produção cafeeira, associada ao surgimento de uma indústria ainda incipiente, iriam ser determinantes para seu crescimento acelerado, que a consolidaria como a maior cidade do país já nas primeiras décadas do século XX, superando, à medida em que a industrialização se consolidava, as limitações de seu papel de sede do controle da exportação agrícola. A diversificação dos investimentos oriundos do “capital cafeeiro”�, intensificou atividades de caráter essencialmente urbano. Muitos fazendeiros começaram a transferir sua residência para mansões nas cidades. As atividades de comércio do café, e a construção da estrada de ferro Santos-Jundiaí, em 1867, já haviam insuflado a economia urbana, com empresas de importação-exportaçã importação-exportação, o, bancos, o comércio para atender a uma população urbana crescente, e as atividades da construção civil e dos serviços urbanos, como a implantação de vilas operárias, a construção de reservatórios de água, a instalação de iluminação urbana a gás, de linhas de bonde, etc., sempre com a presença marcante de empresas inglesas. Nesse período agroexportador e de uma industrialização incipiente imperou, tanto no Rio quanto em São Paulo, uma visão de que as cidades não podiam ser a expressão do atraso nacional frente ao modernismo das grandes cidades europeias, em especial em um momento em que as exportações de café reforçavam a participação do país no comércio internacional. Sendo elas o centro comercial e político do país, interessava que cidades como Rio e São Paulo tivessem uma aparência compatível com a ambição comercial da expansão cafeeira. Segundo Ribeiro e Cardoso (1981:81), por essa razão as primeiras grandes intervenções urbanas ur banas “visaram criar uma nova imagem da cidade, em conformidade com os modelos estéticos europeus ”. Nesse processo, ainda segundo os mesmos autores, “ as elites buscavam afastar de suas vistas – e das vistas do estrangeiro – o populacho inculto, desprovido de maneiras civilizadas, mestiço. As reformas urbanas criaram uma cidade ‘para inglês ver ’’.’’. Explicita-se então o porquê das duas grandes cidades do país nesses primeiros momentos da urbanização brasileira, já promoverem uma sistemática segregação social: simplesmente reproduziase na cidade a mesma diferenciação social resultante da hegemonia das elites que se verificava nos latifúndios. É dessa época que datam os primeiros registros de cortiços e até mesmo de ocupação dos morros com moradias populares. Mesmo que não fosse ainda regida pelas dinâmicas do capitalismo industrial, a cidade já tinha por marca a diferenciação socioespacial, pela qual a população mais pobre, via de regra, era excluída para as áreas menos privilegiadas. Segundo Maricato (1997:27), o R io contava, em 1888, ano da abolição, com mais de 45 mil pessoas vivendo em cortiços, sendo a maioria escravos libertos. A insalubridade, as epidemias, decorrentes da ausência de infraestrutura, como por exemplo o saneamento básico, a violência, a alta densidade urbana, eram marcas de uma parte da cidade, e já mostravam a tônica do que viria a ser a cidade brasileira do século XX. Mas o que se destaca nesse processo são dois fatores f atores que estão na base do entendimento das dinâmicas de segregação socioespacial urbana: o conceito de localização e a participação do Estado, representando no Brasil os interesses das elites, na formulação e implementação das políticas públicas de urbanização. Esses dois aspectos merecem ser vistos com mais cuidado��.
Diferenciação urbana e produção social do espaço A cidade se caracteriza por ser um ambiente construído, ou seja, seu espaço é produzido, fruto do trabalho social. Há anos existe um intenso debate acadêmico sobre a conveniência de se transferir ou não para o solo urbano a teoria da renda da terra, que Marx utilizou para o contexto bem específico – e pouco comparável ao solo urbano – da propriedade rural. Sem entrar nessa polêmica, o que se pode dizer é que o solo urbano tem seu valor determinado por sua localização. Esta se caracteriza pelo � Ver a respeito, SILV SILVA, A, Sergio: ”Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil”, Brasil”, São Paulo: Alpha-Ômega, 1981. �� Agradeço a colaboração do Prof. Dr. Nuno Fonseca, da FAUUSP FAUUSP,, na estruturação dos pa rágrafos que seguem. Ver a respeito: VILLAÇA, Flávio. “Espaço intra-urbano no Brasil” Brasil”,, São Paulo: Nob el, 1998, e DEÁK , Csaba. “A busca das categorias d a produção do espaço” espaço”,, Tese de Livre-Docência, FA FAUUSP UUSP,São ,São Paulo, 2001.
22
trabalho social necessário para tornar o solo edificável (a infraestrutura urbana), as próprias construções que eventualmente nele existam, a facilidade de acessá-lo (sua “acessibilidade”) e, enfim, a demanda. Esse conjunto de fatores é que distingue qualitativamente uma parcela do solo, dando-lhe certo valor e diferenciando-o em relação à aglomeração na qual se insere. A localização é um fator de diferenciação espacial por motivos óbvios: terrenos com uma vista privilegiada, ou situados em locais de fácil acesso, ou muito bem protegidos, ou próximos a rodovias ou ferrovias, tornam-se mais valiosos para interesses variados. São mais agradáveis para o uso habitacional, ou melhor situados para escoar a produção de uma fábrica, ou para atrair mais consumidores para uma loja, e assim por diante. Nas cidades brasileiras do início do século passado, que acabamos de descrever, os bairros centrais, que tinham boa infraestrutura, concentravam mais gente, dispunham de linhas de bonde, eram próximos das estações de trem, eram os bairros privilegiados onde acontecia a vida urbana e comercial nascente, e onde se instalavam os palacetes da elite, embora as vezes bairros um pouco mais “distantes”, como a avenida Paulista, em São Paulo, atraiam os poderosos justamente pela sua exclusividade. Mas o que fica claro é que a localização será tanto mais interessante quanto houver um significativo trabalho social para produzi-la, ou seja, para torná-la atrativa dentro de uma determinada aglomeração urbana. Assim, fica evidente, que a localização urbana é fruto de um trabalho coletivo, e não pode ser individualizada: ela dependerá sempre da aglomeração em que se situa, ou seja, do entorno urbano na qual está, e da intervenção do Estado para construí-la e equipá-la de tal forma que ela ganhe interesse. Por isso, como aponta Deák (2001), “ a intervenção estatal é um complemento necessário, ainda que Tal intervenção pode dar-se por meio antagônico, à regulação pelo mercado ”�� do acesso ao solo urbano. Tal de obras urbanizadoras convencionais, mas também ocorre por meio de um conjunto de instrumentos tributários e reguladores do uso e das formas de ocupação do solo urbano. Ou seja, nessa dinâmica é muito fácil entender como a influência sobre a máquina pública pode render benefícios significativos a quem conseguir direcionar os investimentos do Estado segundo seus interesses de valorização, como veremos logo adiante. No Brasil, desde as primeiras ondas de crescimento das nossas cidades, na virada do século XIX para o XX, todas as grandes intervenções inter venções urbanas promovidas pelo Poder Público foram, salvo raras exceções, destinadas a produzir melhorias exclusivamente exclusivamente para os bairros das classes dominantes. Evidentemente, nem todas as correntes teóricas admitem tal interpretação sobre a produção da diferenciação espacial e do valor fundiário urbano. Segundo o pensamento liberal, que no urbanismo se evidenciou na chamada “Escola de Chicago”, Chicago”, ainda nas na s primeiras décadas do século passado, mas com um poder de influência que perdura até hoje, a cidade apenas refletiria, no âmbito espacial, a lógica da “mão invisível” e da autorregularão, frutos do laissez-faire econômico. Assim como supostamente ocorreria no âmbito econômico da regulação dos preços e do emprego, as cidades teriam a capacidade de crescer espontaneamente, equilibrando-se naturalmente, pela lei da oferta e da demanda, em um sistema no qual os mais privilegiados encontrariam seus espaços, assim como os mais pobres acabariam achando o seu, com as diferenciações “naturais” de qualidade inerentes à própria lógica do capitalismo. Evidentemente, parece-nos que as coisas não ocorreram, e ainda não ocorrem, exatamente assim. E nas nossas cidades, a intervenção estatal foi capaz de produzir recorrentemente a diferenciação espacial desejada pelas elites, e a disputa pela apropriação dos importantes fundos públicos destinados à urbanização caracterizou – e caracteriza até hoje – a atuação das classes dominantes no ramo imobiliário. imobiliário. Assim, a implantação de infraestrutura urbana no Brasil sempre se deu em áreas concentradas da s nossas cidades, não por acaso os setores ocupados pelas classes dominantes. Essa prática da desigualdade na implantação de infraestrutura, ou seja, do trabalho social que produz o solo urbano, gerou – e ainda gera – diferenciações claras entre os setores da cidade, produzidas pela ação do Estado (ao contrário do que defendia a Escola de Chicago) e acentuando a valorização daqueles beneficiados pelas obras, em �� Ver Deák, Op. Cit.
23
relação à escassez do restante da cidade. Assim, a brutal diferença de preços que tal fenômeno produz nunca esteve dissociada, evidentemente, dos interesses do capital especulativo que sempre soube, no Brasil, fundir-se à ação estatal e canalizar os investimentos públicos para locais de seu interesse, gerando altos níveis de lucratividade��.
Os primeiros planos urbanísticos No início do século passado, as dinâmicas de urbanização da cidade explicitavam, como vimos, processos de valorização fundiária e imobiliária que iriam constituir uma matriz de exclusão que perdura até hoje, sobrevivendo e fortalecendo-se em cada nova fase do nosso desenvolvimento. Na jovem república ou no Brasil industrial, o acesso à cidade urbanizada só foi possível, em suma, para aqueles que pudessem pagar por ela, ou que tivessem um razoável poder de influência dentro da máquina pública. As relações de poder se estabeleciam no âmbito urbano por um lado, em torno do privilégio dado às elites no direcionamento dos recursos públicos e na construção de bairros de elite, e do outro pela exclusão que atingia invariavelmente a população urbana mais pobre, e posteriormente o proletariado urbano. Entre esses dois extremos, uma classe-média encontrava algum lugar, em diferentes momentos históricos, conforme fosse beneficiada por uma ou outra política pública, pelos resquícios de um ou outro ciclo de crescimento econômico. Nesse processo, o Estado cumpriu sistematicamente um papel de controle sobre a produção do espaço urbano. Um “controle às avessas”, pois se na Europa ele visava alguma universalização e democratização no acesso à cidade��, no Brasil ele se deu ou para garantir a onipotência das elites, e manter em níveis aceitáveis os bairros de classe média, deixando aliás o mercado imobiliário bastante livre para atuar, ou para “resolver” as demandas populares quando absolutamente necessário, na base de relações populistas e clientelistas, e no que Schwarz chamou das “relações de favor”��. Como exemplo das reformas urbanas “para inglês ver”, no Rio de Janeiro dos primeiros anos do século passado, o presidente Rodrigues Alves deu ao então prefeito do Distrito Federal, Francisco Pereira Passos, poderes absolutos (e inconstitucionais) para promover uma profunda reforma urbana, destinada a sanar as epidemias crescentes e recuperar a cidade, vista como um órgão doente (Maricato, 1996). Para atrair o capital estrangeiro para o país, era necessário “sanear” a cidade: novas avenidas foram abertas – notadamente a Avenida central, hoje Rio Branco –, o porto foi modernizado, e novos e “modernos” edifícios foram construídos, substituindo casarões e prédios antigos. Nesse processo, e nas demais intervenções de urbanização no Rio do início do século passado, em que morros foram desmontados, aterros criados, e a natureza bastante modificada para a construção da capital, não havia sequer possibilidade de contestação por parte da população atingida, e os propósitos de uma “higienização social” estavam muito pouco escondidos. A população pobre foi sistematicamente expulsa dos cortiços e dos morros centrais, deslocando-se invariavelmente para locais distantes – menos valorizados – ou mesmo para outros morros. Tais planos urbanísticos, que ficaram conhecidos como de Melhoramentos e Embelezamento, repetiram também em São Paulo essa mesma lógica, assim como em muitas outras �� Vale observar que, nesse sentido, a melhor forma de lutar contra a especulação imobiliária urbana seria simplesmente, se a questão dos recursos não fosse tão complexa, generalizar a oferta de infraestrutura para toda a cidade, “quebrando” dinâmica de diferenciação espacial gerada pela concentração do investimento público em infraestrutura urbana. �� Os dois momentos mais significativos da produção habitacional de interesse social na Europa, entretanto, não se deram por filantropia, mas para sustentar, respectivamente, o modelo de crescimento do capitalismo industrial e o do Estado do Bem-Estar Social. As reformas higienizadoras do final do século XIX, em que se destaca a ação do Barão de Haussmann em Paris (1850), visavam disciplinar a classe trabalhadora e dar-lhe condições mínimas de subsistência e reprodução em um sistema industrial nascente que havia produzido até então, por causa de seu viés liberal, um caos urbano que acabara por prejudicar a própria produção. No pós-guerra, as maciças políticas habitacionais, amparadas pela ideologia urbanista modernista, visavam contribuir com os esforços de criar, na Europa que se reconstruía, um mercado consumidor à altura da expansão do fordismo-taylorismo, capitaneada pelos EUA. Assim, a necessária melhoria do poder de consumo da classe trabalhadora exigia que se incluísse, no cálculo do custo de sua reprodução, a moradia. É importante observar que em cada um desses momentos, esses padrões urbanísticos foram “importados” em um contexto nacional absolutamente diverso, no que Schwarz chamou de “idéias fora do lugar” (referindo-se ao primeiro momento). Na virada do século XIX, as reformas higienizadoras usadas para disciplinar uma classe operária nascente na Europa, foram implementadas aqui, como se verá no próximo parágrafo, em uma sociedade que sequer era industrial. No pós-guerra, o urbanista modernista aqui no Brasil não podia ser base para um aumento do poder de consumo da classe trabalhadora, como ocorrera na Europa, pois os baixos salários, como veremos logo adiante no texto, eram condição para nossa industrialização. �� Ver SCHWARZ, Roberto, “As idéias fora do lugar”, 1974.
24
cidades brasileiras, como Curitiba, Porto Alegre, Santos, Manaus, Belém. Amparadas na preocupação de higienização dos bairros mais pobres, onde se verificava uma relação direta entre insalubridade e doenças como a febre amarela, entre outras, as intervenções da época aproveitavam tal justificativa para pouco a pouco promover a expulsão da população mais pobre das áreas centrais e renovar esses bairros com novos padrões de ocupação. Como coloca Paulo Cezar de Barros, “ higienizar e modernizar a cidade significavam sobretudo, eliminar os lugares infectos e sórdidos, o desmazelo, a imundície e as residências coletivas (cortiços e cabeças de porco) em que habitava a maioria da população”.�� Sempre baseando-se inicialmente no propósito pouco questionável do controle sanitário, esses planos marcaram também o início de uma outra prática que, se por um lado instituiria padrões mais modernos de controle do processo de urbanização, por outro lado iria ajudar, ao longo do século XX, na diferenciação de localizações urbanas privilegiadas: a implantação de uma complexa legislação urbanística, que estabelecia normas extremamente rígidas para a construção de edifícios e para as possibilidades de uso e ocupação do solo. Com isso, saia privilegiado o mercado imobiliário, capaz de respeitar tais regras ou de dobrá-las graças à sua proximidade com o Poder Público e seu poder financeiro, e prejudicava-se definitivamente a população mais pobre, incapaz de responder às duras exigências legais. Para construir, seria necessário ter a documentação da posse da terra, dominar o aparato técnico-jurídico do desenho e da aprovação de plantas, e respeitar as diretrizes legais sanitárias e de ocupação e uso do solo, que muitas vezes impunham regras que só podiam ser aplicadas nos terrenos mais caros. Os Código de Posturas de São Paulo e do Rio, ainda no final do século XIX, já proibiam por exemplo os cortiços nas áreas urbanas centrais, e determinavam recuos para as construções que só podiam ser aplicados em lotes de grande área, restringindo assim por meio da lei a ocorrência de terrenos pequenos e mais baratos. A casa unifamiliar, de grande porte, centrada no lote, era a casa padrão das regulamentações urbanísticas, acrescentando-se posteriormente o edifício vertical, também de mais alto padrão social. Segundo Rolnik, comentando as primeiras regras aplicadas em São Paulo, “ a essas leis, definindo a especificidade do modo de construir nos bairros de elite, corresponde uma característica absolutamente marcante na construção da legalidade urbana na cidade de São Paulo: a lei como garantia de perenidade do espaço das elites ”��. Embora até 1930 a provisão habitacional social ainda se desse, como veremos, por iniciativa do setor privado, Nabil Bonduki aponta que, “ das medidas urbanísticas contra as duas epidemias de 1893 surgiram três frentes de combate – legislação, planos de saneamento básico e estratégia de controle sanitário – , que são a origem da intervenção estatal no controle da produção do espaço urbano e da habitação ”(Bonduki, 1998:33)��.
Industrialização e urbanização Mas é com a intensificação da industrialização que o conceito de diferenciação espacial pela localização e a importância da intervenção estatal ganham toda sua dimensão. O capitalismo industrial, ao exacerbar a divisão social do trabalho e a luta de classes, acentuou a divisão social do espaço: era quase natural que as classes dominantes continuassem a apropriar-se dos setores urbanos mais valorizados, justamente por sua localização privilegiada, por sua acessibilidade, e pela infraestrutura disponível, deixando os bairros menos privilegiados para as classes mais baixas. Como se sabe, a industrialização é um fenômeno essencialmente urbano. Ou seja, a diferença agora era que a cidade tornava-se o locus do próprio sistema de produção, e não mais o campo. Por isso, aumentava consideravelmente a população urbana de baixa renda, pela necessária presença do operariado urbano, e a segregação espacial-urbana tornava-se mais visível. As leis funcionariam mais do que nunca para demarcar os lugares de cada um,
�� BARROS, Paulo Cezar “Onde nasceu a cidade do Rio de Janeiro ? (um pouco da história do Morro do Castelo)”, in Revista geo-paisagem (on line), Vol. 1, no. 2, Julho/dezembro de 2002, ISSN Nº 1677 – 650 X �� ROLNIK, Raquel. “Para além da lei: legislação urbanística e cidadania”, in SOUZA, Maria Adélia A. (et outros, Orgs.). “ Metrópoles e Gl obalização” , São Paulo: CEDESP, 1999. �� BONDUKI, Nabil. “Origens da habitação social no Brasil”, São Paulo: Estação Liberdade/Fapesp, 1998.
25
e as classes dominantes intensificariam ainda mais sua presença na máquina do Estado para garantir os novos espaços de alta valorização em que se implantavam��. A primeira fase de nossa industrialização, que como visto se inicia nas últimas décadas do século XIX em um processo concomitante às atividades da economia cafeeira agroexportadora, fez com que, já em 1920, São Paulo superasse com folga a produção industrial de todos os demais estados brasileiros. Por isso, a cidade também era a que mais se urbanizava. Embora fosse ainda uma industrialização incipiente, até mesmo em função das disputas entre os interesses ingleses de escoamento da sua indústria, as resistências dos grandes produtores cafeeiros e dos coronéis mais arcaicos, face ao empreendedorismo da “moderna” burguesia industrial nascente, ela já era suficiente para que a cidade, além do local das atividades administrativas e comerciais oriundas da atividade cafeeira, se tornasse também sede da produção industrial. Como já dito, ao contingente de trabalhadores do setor de comércio e serviços, começava a somar-se de forma significativa, sempre com a ajuda dos escravos libertos e dos imigrantes europeus, o proletariado urbano. Nabil Bonduki ressalta que, já “no segundo quinquênio da década de 1880, a cidade de São Paulo passa a atrair, pela sua própria potencialidade econômica, imigrantes que vinham inicialmente para as lavouras do café”��. Segundo o autor, em 1895, quase 40% dos 104 mil imigrantes que passaram pela Hospedaria dos Imigrantes (esta estrategicamente colocada na “periferia” de então, no bairro proletário do Brás, para deixar bem claro o lugar na cidade que lhes era destinado��) ficaram na cidade. A diferenciação espacial, que antes marcava apenas o centro como a área privilegiada de assentamento de uma elite dourada voltada ao comércio cafeeiro, com nenhuma importância para os ainda raros, distantes e pouco populosos bairros pobres de periferia, agora começava a ocorrer nos moldes de uma típica cidade industrial – como aquelas que Engels já havia descrito na Inglaterra industrial do século XIX – gerando bairros proletários com péssimas condições de habitabilidade. O Brás e a Lapa eram os bairros operários, tanto pela proximidade da estrada de ferro inglesa, que tornava interessante a implantação das fábricas, quanto por serem as várzeas dos rios Tamanduatey e Tietê, com forte ocorrência de alagamento, e portanto pouco interessantes ao assentamento habitacional das elites. Estas concentravam-se nos “bairros nobres”, para os quais a intervenção estatal não foi tímida: a construção do Viaduto do Chá, que ligava o “centro velho” à cidade nova e a abertura da Avenida Paulista, ainda na última década do século XIX, e a implantação de infraestrutura básica no bairro de Higienópolis, nas encostas arborizadas e agradáveis do espigão da cidade. Segundo Bonduki, é entre 1886 e 1900 que se dá o primeiro momento crítico de falta de habitação na cidade de São Paulo. Vale notar que tal dinâmica, embora seja exemplar na cidade de São Paulo, se reproduzia, em escala menor, nas cidades do interior do Estado onde se instalavam as primeiras indústrias ligadas ao café (em geral indústrias têxteis, como no Vale do Paraiba), e também nas demais capitais do país��. Até os anos 30, a provisão habitacional para as classes populares foi garantida pela iniciativa privada, seja através das vilas operárias de empresas – em especial no caso de indústrias que se estabeleciam no interior do Estado de São Paulo, em locais isolados – seja através da moradia de aluguel, que se limitava em sua maior parte à construção de cortiços ou de vilas de baixo padrão. As vilas, uma forma de produção estimulada pelo poder público com incentivos fiscais por ser uma solução de disciplinamento e higienização, eram em São Paulo e no Rio um empreendimento interessante para investidores imobiliários que iam desde comerciantes mais abonados até grandes fortunas do café (Bonduki, 1996:46). Entretanto, só conseguiam ter acesso a essas moradias os operários qualificados, funcionários públicos, comerciantes, enfim, segmentos da baixa classe média, e não a população mais �� Ver a respeito VILLAÇA, Flávio, “Espaço intra-urbano no Brasil”, São Paulo: Nobel, 2000, obra na qual o autor anal isa o processo de urb anização capitaneado pelas classes dominantes em várias capitais brasileiras. �� BONDUKI, Op. Cit. �� Ver a respeito, DRUMMOND, André S. M. “Lugares sem uso e usos sem lugar ”. Trabalho Final de Graduação, FAUUSP, 2002. �� Ver VILLAÇA, Op. Cit.
26
pobre. Para esta, restavam os cortiços, investimento também muito interessante para os proprietários, pelo baixo custo de sua construção, e que apesar de serem combatidos em nome da saúde pública, se proliferaram de forma significativa, mostrando que a demanda por soluções de habitação de baixa renda começava a ser considerável. Quando os cortiços se tornavam obstáculos para as iniciativas de renovação urbana conduzidas para áreas mais nobres da cidade, eram demolidos e a “massa sobrante” obrigada a se deslocar para as áreas menos valorizadas pelo mercado (Villaça,1986)
O urbano e a moradia no período populista A era Vargas, a partir de 1930, instituiu no pais um novo clima político, e a emergência na Europa do Estado do Bem-Estar Social dá ímpeto à tentativa, no Brasil, de construção de uma nação com um Estado forte e um mercado de consumo interno mais significativo. O Estado passou então a intervir diretamente na promoção da industrialização, através de subsídios à indústria de bens de capital, do aço, do petróleo, à construção de rodovias, etc. A burguesia agroexportadora perdia sua hegemonia, para dar lugar a um Estado populista que, entretanto, pouparia seus interesses, evitando uma reforma agrária e mantendo intacta a base fundiária do país. Ermínia Maricato resume com precisão as características do período: “O Estado mantém uma postura ambígua entre os interesses da burguesia agrária e os da burguesia industrial. ... A essência do populismo consistirá em reconhecer a questão social, mas dando a ela um tratamento paternalista e simbólico, que nega a auto-organização dos trabalhadores. A oposição e as lideranças operárias são esmagadas, mas a massa trabalhadora seria submetida a intensa propaganda do governo e das “benesses” que este lhe concede: instituição da Previdência, promulgação da CLT, fixação do salário mínimo” (Maricato, 1997:35).
Assim, esse período presenciou pela primeira vez os efeitos de uma crescente migração rural-urbana, de uma importante massa vinda do Nordeste para o Sul em busca dos sonhados empregos industriais. Embora esse processo fosse realmente intensificar-se somente algumas décadas depois, nos anos 50/60, o fato é que tal dinâmica elevou o problema da provisão habitacional para a massa operária a patamares em que o mercado não tinha mais condições de – ou sobretudo interesse em – enfrentar. Por isso, no âmbito da provisão habitacional, a lógica populista se repetiria: o período Vargas ficou marcado por introduzir pela primeira vez políticas habitacionais públicas, reconhecendo (ou cedendo às pressões para reconhecer) que o mercado privado não tinha como atender à demanda por moradia e anunciando que o Estado assumiria tal função. Mas, como era característico do populismo, retirou-se do mercado privado a responsabilidade pela questão habitacional, sem que houvesse, entretanto, uma política pública de fôlego, que realmente respondesse à demanda que se criava. Como mostra M aricato, os Institutos de Aposentadorias e Pensões, criados na década de 30 e até hoje uma referência na história da habitação social no Brasil��, entre 1937 e 1964, iriam produzir apenas 140 mil moradias em grande parte destinadas ao aluguel, o que, segunda a autora, mostraria “ muita publicidade para uma resposta modesta dos programas públicos de habitação”. A Lei do Inquilinato de Vargas, que congelaria os aluguéis em 1942, apenas intensificou a segregação urbana dos pobres nos loteamentos de periferia, pois estimulou a propriedade privada do imóvel urbano, no lugar do aluguel, restringindo ainda mais o acesso à habitação (Bonduki, 1998). Com a oferta de moradia de aluguel declinando, e sem que o Estado suprisse a consequente demanda por habitações, restava à população pobre uma solução que, na prática, “liberava” tanto o Estado quanto o mercado da responsabilidade pela questão da moradia: a ocupação pura e simples das terras, ou o loteamento das periferias, estimulado pela chegada do transporte público sobre rodas, que garantia o necessário acesso, mesmo que precário, aos loteamentos mais distantes, que sequer recebiam a infraestrutura urbana necessária (Maricato, 1997:36). Estava começando a delinear-se o que seria a matriz do crescimento urbano no Brasil a partir de então.
�� Ver BONDUKI, Op. Cit.
27
A “urbanização com baixos salários” A mudança para um novo paradigma econômico, o da abertura ao capital internacional promovida nos anos 50 por Juscelino Kubitschek, que alguns grandes intérpretes da formação da nação consideram como o momento de negação definitiva da possibilidade de construção de uma economia capitalista minimamente autônoma e distributiva��, iria exacerbar de vez a situação de extrema desigualdade no acesso à terra urbana. A partir desse momento, graças ao fenomenal impulso promovido pela chegada das multinacionais, a industrialização brasileira sofreu uma inflexão significativa, garantindo o “milagre econômico” e a ascensão do país, em pouco mais de uma década, à condição de oitava economia do mundo. Mas esse modelo de intenso crescimento sofria de um duplo problema: por um lado, estabelecia um padrão congênito de atraso tecnológico, pois as indústrias traziam para cá tecnologias já obsoletas em seus países de origem, e por outro lado estava condicionado a um padrão de alta concentração da renda, já que se baseava na manutenção de uma mão de obra de baixo custo, necessariamente subassalariada. Vale notar que a entrada do capital estrangeiro no país a partir do Plano de Metas, a que Francisco de Oliveira chamou de “ a fraude e traição mais notável à vontade popular de que se tem notícia no Brasil moderno”�� (Oliveira, 1977:73), deu-se em um contexto muito específico do desenvolvimento do capitalismo internacional caracterizado pelo interesse das empresas multinacionais, nas palavras de Plínio Sampaio Jr., “em aproveitar as oportunidades de investimento geradas pelo processo de substituição de importações mediante o deslocamento de unidades produtivas ” (2000:37). Essas oportunidades de investimento que apareciam em uma economia periférica em fase de industrialização (aliás, em vários países subdesenvolvidos, e não só no Brasil) significavam um cenário perfeito para a economia capitalista em plena expansão. De fato, após a crise de 29, as políticas keynesianas norte-americanas de maior intervencionismo estatal, com o New Deal do presidente Roosevelt, e já no pós-guerra as políticas de implantação do Estado do Bem-Estar Social na Europa, representavam uma resposta ao liberalismo econômico, e uma tentativa de regular, pela mediação do Estado, os interesses do Capital e do Trabalho, não por razões filantrópicas ou humanitárias, mas porque se percebia que era necessário manter um padrão mínimo de poder aquisitivo da classe operária para que pudesse ocorrer a expansão do mercado de consumo, imprescindível para a própria sobrevida do sistema��. Nesse período, instituíram-se nos EUA e na Europa, não só todas as leis trabalhistas e a garantia de serviços universais de educação e saúde, mas também políticas habitacionais de peso, que incorporaram a moradia aos custos básicos de subsistência da classe trabalhadora��. Entretanto, não só o Estado do Bem-Estar Social custava caro, como ele limitava sobremaneira a possibilidade de realização da mais-valia, ao aumentar significativamente os custos de reprodução da classe trabalhadora e diminuir as taxas de lucratividade. Nesse sentido, os países subdesenvolvidos, como o Brasil, em fase de expansão industrial, representavam uma fantástica opor tunidade de investimentos, em função do inesgotável exército industrial de reserva que representava a população agrária pobre do nordeste, disponível para migrar paras as cidades industriais em busca de emprego, mesmo que �� Autores como Caio Prado Jr. ou Florestan Fernandes enxergam na política de industrialização pela abertura ás multinacionais estrangeiras, iniciada nos anos 50, o momento de definitiva renúncia à possibilidade de construção da nação, e da associação definitiva entre as burguesias nacionais e os interesses expansionistas do capitalismo internacional, dando origem ao que Fernandes denominou da “contrarevolução brasileira”. Ver a respeito SAMPAIO Jr, Plínio. “Entre a Nação e a Barbárie”, Petrópolis: Voes, 2000. �� Escrito em 1977, o texto de Oliveira não podia prever a escalada de fraudes que este pob re país iria ainda presenciar, nas frustradas Diretas Já, na ascensão do caçador de marajás, na adesão irrestrita aos ditames neoliberais do Consenso de Washignton, etc. �� Ford já havia explicitado essa percepção, ao acreditar na força das corporações capitalistas para manter um nível de consumo suficiente para a regulação do sistema quando, às vésperas do crash de 29, ele aumentou o salário de seus funcionários, acreditando que isso poderia aquecer o consumo e evitar a crise. Ainda no mesmo sentido, vale lembrar que, no ímpeto de constituir um mercado de consumo suficiente para o capitalismo que se fortalecia no pós-guerra, os EUA simplesmente financiaram, com os planos Marshall e Mac Arthur, a reconstrução da Europa e do Japão, nos moldes que lhes interessava. �� Esse processo ocorre paulatinamente, e inicialmente nos EUA, com o New Deal, ainda nos anos 30. A segunda guerra retardaria a implantação do modelo keynesiano na Europa, mas no pós-guerra ficaram famosas as maciças políticas de provisão habitacional européias – como, por exemplo, a dos “grands ensembles” na França –, ancoradas aliás nas idéias de industrialização da construçã o do movimento modernista.
28
por salários baixíssimos. A associação do interesse industrializante das burguesias mais modernas no Brasil, e dos interesses de expansão do capitalismo internacional provocaria o que Florestan Fernandes indicou como a renúncia das burguesias nacionais em fortalecer a revolução burguesa e a implantação de um sistema capitalista endógeno focado na consolidação de um mercado interno. Optando por aliar-se aos interesses expansionistas do capitalismo internacional, mesmo que “ às custas do reforço de seu caráter antissocial, antinacional e antidemocrático ” (Sampaio Jr., 2000:418), as burguesias nacionais escolhiam um caminho que garantiria uma rápida industrialização, preservando seu poder de barganha no sistema capitalista mundial e reforçando sua absoluta e intolerante dominação interna. Assim, com a vinda das indústrias multinacionais para o país, estabelece-se um padrão de crescimento em que os baixos salários não eram apenas uma consequência da injustiça inerente aos sistema capitalista, mas a própria condição para nossa industrialização, no que alguns autores chamaram de “industrialização com baixos salários”. O mercado interno que se formava era apenas residual, o foco da atuação das multinacionais aqui instaladas sendo antes de tudo a exportação. Como o interesse destas era o de explorar a mão de obra barata, e o da elite brasileira, o de perpetuar sua hegemonia interna, utilizando-se para isso do seu controle sobre o próprio Estado, passa a ser lógico o fato deste último não criar exigências que aumentassem o custo de reprodução da força de trabalho, entre elas a de instalação de infraestrutura urbana e de moradia. Com a intensificação da migração rural-urbana em patamares nunca antes vistos, já que além de tudo a ausência de uma reforma agrária tornara a sobrevida dos pequenos agricultores impossível, estourava a demanda habitacional, e cresciam de forma inexorável os bairros periféricos de baixa-renda, literalmente “abandonados” pelo Estado. Se em 1940 a população urbana no Brasil era de apenas 26,34% do total, em 1980 ela já era de 68,86%, para chegar em 81,20% no ano 2000. Em dez anos, de 1970 a 1980, as cidades com mais de um milhão de habitantes dobraram, passando de cinco para dez��. À “industrialização com baixos salários” se acoplava, nos termos da urbanista Ermínia Maricato, uma “urbanização com baixos salários”. Ou seja, ao contrário do que ocorreu na formação dos Estados do Bem-Estar Social nos países centrais, o processo de concentração populacional nos grandes centros industriais brasileiros não foi acompanhado por uma ação do Estado que garantisse condições mínimas de infraestrutura urbana e qualidade de vida, pois isso resultaria, em última instância, na elevação do custo de reprodução da classe trabalhadora, o que não interessava às classes dominantes industriais. Francisco de Oliveira, em recente trabalho��, lembra como o incentivo à autoconstrução (através da pouca presença do Estado, que deixou a cidade periférica crescer sem controle algum) foi uma fórmula capaz de assegurar uma morada mínima para a classe trabalhadora a preços baixíssimos, sem elevar o custo da mão de obra. O exemplo de São Miguel Paulista, na cidade de São Paulo, é sintomático desse processo, embora tenha se dado ainda antes da abertura da economia na década de 50, como em uma pré-estreia do que se tornaria um padrão: na década de 30, dois importantes industriais brasileiros�� firmaram uma joint-venture com um industrial norte-americano, para remontar no Brasil uma fábrica petroquímica de fios rayon, já obsoletos nos EUA, onde se dominava a tecnologia subsequente, do nylon. A tal fábrica, reconstruída em São Miguel Paulista, então um bairro ainda semirrural da periferia paulistana mais distante, tornou-se instantaneamente a mais moderna indústria petroquímica do país, com o nome de Nitroquímica. Em dois anos, a população do bairro quadruplicou, sem o menor acompanhamento do Estado. As favelas que surgiram na época, há sessenta anos atrás, até hoje caracterizam o bairro. Tal situação de abandono da população trabalhadora mais pobre nas franjas periféricas das grandes cidades só iria desencadear alguma reação quando estivesse ameaçada a própria coesão social. No regime militar, face à tal cenário, o Estado passaria a promover deliberadamente soluções habitacionais �� Ermínia Maricato, Metropole na periferia do capitalismo, Hucitec, São Paulo, 1996 �� Oliveira, Francisco de; “O Ornitorrinco”, São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. �� Horácio Lafer e José Ermírio de Morais.
29
de baixo custo nas periferias. Como argumentou a então deputada Sandra Cavalcanti em carta ao presidente Castello Branco, “...achamos que a revolução vai necessitar agir vigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de modo que nós vamos ter que nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que as soluções de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora...” (apud Villaça, 1986).
Assim, o período pós-64 inaugurou uma nova fase de intervenção estatal na h abitação, criando o Banco Nacional de Habitação – BNH, que atuava como o banco central do Sistema Financeiro de Habitação, que por sua vez geria a poupança compulsória do FGTS (8% dos salários do mercado formal) e a do SBPE, esta uma poupança voluntária, ambas destinadas ao financiamento habitacional. Em função disso, foi no regime militar, paradoxalmente, que mais se produziu habitações populares no Brasil, cerca de quatro milhões de unidades��. Porém, o modelo do SFH/BNH, mais do que promover políticas públicas de universalização do direito à habitação, tinha como objetivo central a acumulação privada de setores da economia envolvidos com a produção habitacional, como as grandes empreiteiras, no bojo dos esforços para alavancar o chamado milagre brasileiro. O uso dessa significativa poupança para o financiamento habitacional, saneamento e infraestrutura urbana proporcionou mudanças importantes nas nossas cidades, porém proporcionalmente muito mais significativas nas faixas de população de renda média ou alta: os centros verticalizaram-se, gerando a valorização especulativa da terra urbana, a produção imobiliária para a classe média foi dinamizada, grandes empresas de obras públicas de infraestrutura foram beneficiadas. No campo específico da habitação social, a formatação institucional do SFH/BNH acabou por favorecer somente a construção de unidades habitacionais sem o necessário conjunto de equipamentos e melhorias urbanas. Com o discurso populista do acesso à “casa própria”, o número de unidades produzidas – e não a qualidade de vida que propiciavam – era o único índice de eficiência do modelo. Isso gerou grandes conjuntos-dormitórios, distantes das áreas centrais e da oferta de emprego, geralmente mal servidos pelo transporte público e sem quase nenhuma infraestrutura nem serviços urbanos. Além disso, os financiamentos do sistema nunca conseguiram beneficiar a população realmente pobre, com renda abaixo de 5 salários-mínimos, e a distribuição das habitações tomou-se um instrumento do clientelismo, favorecendo a generalização da inadimplência no setor habitacional de interesse social. Por outro lado, a submissão da terra urbana ao capital imobiliário fazia com que enquanto as periferias das grandes cidades expandiam seus limites e abrigavam o enorme contingente populacional de imigrantes, o mercado formal se restringia a uma parcela da cidade e deixava em seu interior grande quantidade de terrenos vazios. Kowarick e Campanário�� mostram que em 1976, a terra retida para fins especulativos no município de São Paulo atingia 43% da área disponível para edificação. Somente em 1980 as áreas periféricas da cidade aumentaram em 480 km², permanecendo desprovidas dos ser viços urbanos essenciais à reprodução da força de trabalho. Nos dias atuais, uma pesquisa recente do Centro de Estudos da Metrópole, do CEBRAP, mostrou que a periferia paulistana ainda cresce por ano seis vezes mais do que a área central. Ou seja, ao lado dos grandes conjuntos, a solução da ocupação pura e simples de glebas vazias e os loteamentos clandestinos continuava – e continua até hoje – a responder à maior parte da demanda habitacional dos excluídos do sistema. Com o tempo e o esgotamento dessas terras, restou à população mais pobre ocupar as únicas áreas onde estariam à salvo da ação do mercado: as áreas de proteção �� Agradeço à urbanista Luciana Royer, que escreveu comigo o artigo que deu origem aos p arágrafos sobre o período militar, para o jornal Correio da Cidadania (SP). �� KOWARICK, Lúcio & CAMPANÁRIO, Milton; São Paulo, “Metrópole do subdesenvolvimento industrializado: conseqüências soci ais do crescimento e da crise econômica”, CEDEC, 1984 cita do in SANTOS, M., “Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo”, São Paulo: Nobel / Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
30
ambiental, como as beiras de córregos, os mananciais e as encostas. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 1,2 milhão de pessoas vivem hoje nos mananciais das represas Billings e Guarapiranga.
Os movimentos populares de luta pela moradia, a constituição de 88 e o Estatuto da Cidade �� Face ao inquietante quadro exposto até aqui, é fácil entender que as desigualdades decorrentes dos processos de industrialização e de urbanização acabaram gerando insatisfações sociais significativas, que já haviam sido premeditadas por Sandra Cavalcanti. Já em 1963, o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana tentou refletir parâmetros para balizar o crescimento das cidades que começava a se delinear. A ditadura militar desmontou a mobilização da sociedade civil em torno das grandes reformas sociais, inclusive a urbana, substituindo-a por um planejamento urbano centralizador e tecnocrático. Nos anos 70, os excluídos do “milagre brasileiro”começam a mobilizar-se novamente em torno da questão urbana, reivindicando a regularização dos loteamentos clandestinos, a construção de equipamentos de educação e saúde, a implantação de infraestrutura nas favelas, etc. Uma primeira vitória ocorreria em 1979, com a aprovação da Lei 6766, regulando o parcelamento do solo e criminalizando o loteador irregular. Na Constituinte de 1988, 130.000 eleitores subscrevem a Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, e com isso conseguiram inserir na Constituição os ar tigos 182 e 183, que estabeleciam alguns instrumentos para o controle público da produção do espaço urbano e introduziam o princípio da chamada “função social da propriedade urbana”: imóveis situados na chamada “cidade formal” geralmente se beneficiam de infraestrutura urbana (esgoto, água, luz, asfalto, etc.) custeada pelo poder público e, portanto, por toda a sociedade; mantê-los vazios, a prática recorrente dos especuladores, representa um alto custo social, assim exercer a função social da propriedade não é nada além de dar-lhes uso. Porém, a regulamentação desses artigos só viria a ocorrer 11 anos depois, com a aprovação definitiva do capítulo da reforma urbana da nossa constituição, em uma tramitação que contou com a pressão constante do Fórum Nacional de Reforma Urbana, e que culminou com a aprovação da Lei 10.257, o Estatuto da Cidade, em julho de 2001. A ideia de “instrumentos urbanísticos” capazes de dar ao Poder Público um maior controle sobre as dinâmicas urbanas originou-se no esforço de construção do Estado do Bem-Estar Social na Europa, onde o Estado tinha, como já comentamos, um forte papel regulador. A ideia era a de que cabia ao Poder Público uma forte ingerência na regulamentação e no controle do desenvolvimento urbano, para garantir uma mínima variedade social na produção urbana, buscando prover habitação de interesse social integrada à malha urbana, para proteger antigos moradores mais pobres dos processos decorrentes da valorização imobiliária, que os expulsam e substituem por moradores de maior renda (a chamada gentrificação), para permitir a preservação dos espaços públicos como espaços de uso democrático, protegendo-os da ação invasiva da iniciativa privada, e para promover usos habitacionais sociais no mercado imobiliário privado através de ações de indução e incentivo. Vale notar que essa tradição não conseguiu impedir, nem naqueles países, processos marcantes de exclusão social e de gentrificação, capitaneados pelas forças do mercado. Mas é inegável que, apesar disso, há na Europa e até mesmo nos EUA uma cultura política de respeito ao papel importante do Estado no controle urbano. Para dar ao Estado a capacidade de exercer tal função, uma variedade de instrumentos jurídicos e financeiros foram criados. Por um lado, deu-se ao Estado um poder regulador significativo sobre o uso e a ocupação do solo, estabelecendo-se restrições de uso, parâmetros de adensamento, limites à verticalização, taxas de ocupação, punições efetivas para o descumprimento das leis urbanísticas, etc. Por outro lado, criou-se uma estrutura financeira – evidentemente apoiada na incomparável disponibilidade de recursos que aqueles países dispunham e dispõem – e uma gama de isenções para incentivar, através �� O texto dos parágrafos que seguem foi originalmente publicado, com modificações, no artigo “Alcances e limitações dos Instrumentos Urbanísticos na construção de cidades democráticas e socialmente justas”, preparado para a Vª Conferência das Cidades - Câmara Federal, 02 de dezembro de 2003.
31
de linhas de crédito e renúncias tributárias específicas, determinadas ações dos agentes privados, como por exemplo a recuperação e manutenção de edifícios antigos nas áreas centrais, sua reconversão para locação social privada, ou ainda a fixação da população mais pobre em seus locais de residência, graças a auxílios financeiros diretos. Pois bem, é nessa mesma lógica que, no Brasil, os defensores da Reforma Urbana se mobilizaram para garantir a aprovação, na Constituição e posteriormente no Estatuto da Cidade, de instrumentos que permitissem dar às prefeituras um instrumental para exercer algum controle sobre as dinâmicas de produção da cidade. Esse é o princípio, em suma, dos chamados “instrumentos urbanísticos” apresentados no Estatuto da Cidade. Note-se, entretanto, a profunda diferença estrutural entre as realidades dos países industrializados e a brasileira. Enquanto lá os instrumentos urbanísticos surgem no pós-guerra, concomitantemente à estruturação do Estado do bem-estar social, no Brasil os instrumentos urbanísticos aparecem como uma tentativa de reação face a um modelo de sociedade e de cidade estruturalmente organizadas de forma propositalmente desigual, o que muda completamente seu potencial e seu possível alcance. Aqui, trata-se de reverter a posteriori um processo histórico-estrutural de segregação espacial, o que significaria, em essência, dar ao Estado a capacidade de enfrentar os privilégios urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua hegemônica atuação histórica de 500 anos. Não se trata, pois, de tarefa simples. E desde já percebe-se que tais instrumentos só poderão ter alguma eficácia se houver, ao mesmo tempo em que são criados, uma vontade política muito determinada no sentido de promover a reversão do quadro de desigualdade urbana em que vivemos, enfrentando portanto os poderosos interesses que hegemonizam hoje a produção do espaço urbano. Sem essa vontade política, que implica em políticas de governo claramente dispostas a enfrentar os privilégios das classes dominantes, os instrumentos urbanísticos podem servir apenas como uma maquiagem demagógica, sem muito poder para mudar o quadro urbano brasileiro. Vale notar que a briga é longa, e até agora, tem sido difícil.
O atual contexto da “globalização” e sua influência nas cidades É importante observar que a instituição de instrumentos urbanísticos que deem maior poder de controle para o Estado estão na contramão da tendência neoliberal de absoluta minimização do papel do Estado, que se institucionalizou no Brasil a partir da década de 90, no bojo das reformas preconizadas – e seguidas à risca pelo governo FHC – pelo chamado “Consenso de Washington”��. Nesse sentido, aliás, vale comentar que os tão propagandeados “novos paradigmas” da economia globalizada deste começo de século não trouxeram nenhuma mudança significativa no quadro estrutural de exclusão social no Brasil, e ainda menos no âmbito da segregação espacial urbana. Ao contrário, sabe-se hoje que os anos de políticas macroeconômicas neoliberais de estabilização monetária por meio de instrumentos cambiais apenas exacerbaram a dependência externa e a desigualdade interna, e vêm sendo responsáveis pela camisa de força na qual o Brasil se encontra quanto à enorme dificuldade para enfrentar sues problemas sociais. Nos anos 70, as burguesias nacionais reforçaram sua hegemonia interna por meio da aliança com os interesses de expansão do capitalismo internacional, acirrando a dependência do país, mas promovendo a rápida industrialização já comentada anteriormente. Esse crescimento econômico do “milagre brasileiro”, permitiu sustentar o que Florestan Fernandes chamou do “mito do crescimento”, que legitimava o papel das burguesias e escamoteava uma economia que, na verdade, era a que menos distribuía suas riquezas no mundo��. Hoje, a “globalização” parece reavivar o mito: vende-se a �� A famosa cartilha do “Consenso de Washington”, elaborada num seminário realizado entre 14 e 16 de janeiro de 1993, sob a orientação de Fred Bergsten, em um destacado think tank de Washington, o Institute for International Economics , estabelece literalmente dez pontos a serem seguidos pelos países interessados nesse “modelo” de adesão ao capitalismo global, que incluem, entre outros, pontos tão didáticos e sintéticos quanto “as empresas estatais deverão ser privatizadas ”. �� KOWARICK, Lúcio & CAMPANÁRIO, Milton; São Paulo, “Metrópole do subde senvolvimento industrializado: conseqüências sociais do crescimento e da crise econômica”, CEDEC, 1984 cita do in SANTOS, M., “Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo”, São Paulo: Nobel / Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
32
nossa suposta “entrada” no mundo global, alimentada pelo perverso apelo do consumo e o acesso aos importados, enquanto que a economia do país é tomada por empresas transnacionais, e se exacerba a pobreza generalizada. Em suma, uma modernidade que ainda não superou os desequilíbrios herdados do Brasil colonial. Assim, também no âmbito das cidades, o discurso da “globalização” serve para vender uma imagem supostamente “necessária” de modernização, enquanto que na verdade se acentuam ainda mais os desequilíbrios na alocação dos investimentos públicos urbanos, gerando diferenciações e valorização fundiárias ainda mais abruptas. A desculpa da necessidade de “inserção na economia global” vem sendo usada para construir centros de negócios, avenidas ultramodernas, verdadeiras “ilhas de Primeiro Mundo” em meio ao mar de pobreza das nossas cidades, e isso, evidentemente, com o farto uso do dinheiro público. Em trabalho recente��, mostramos como, por exemplo, a propalada “centralidade terciária globalizada”da região da Marginal Pinheiros em São Paulo – um cartão-postal de “modernidade urbana” – foi construída na década de 90 com cerca de 4 bilhões de Reais públicos, enquanto que a dinamização econômica gerada por essa região nunca mostrou-se significativa, e nem mesmo as supostas conexões com a “economia global”. Em suma, assim como nos planos urbanísticos do começo do século passado, as novas avenidas e túneis, os trens com ar condicionado e as demais obras públicas na região serviram, no final, para um único objetivo: promover a valorização fundiária que interessa ao mercado imobiliário e ás classes dominantes. O interessante é que um dos principais instrumentos que permitiram a construção dessas “ilhas de primeiro-mundo” financiadas pelo dinheiro público, foram as chamadas “Operações Urbanas”, que estabelecem parcerias público-privadas urbanas, e que também estão pospostas no.....Estatuto da Cidade! Ou seja, nas duras negociações para sua aprovação, o Estatuto acabou dando margem também à aprovação de instrumentos que podem servir para alavancar interesses privados. No caso, as Operações Urbanas, pelo menos até agora, submeteram o planejamento urbano das cidades onde foram implantadas aos interesses do mercado. Evidentemente, os significativos fundos destinados ás “ilhas de primeiro mundo” poderiam ter tido destinos mais urgentes, como a provisão de saneamento básico ou outras melhorias nas periferias. O contexto da “globalização” pouco alterou, como se vê, o permanente exercício de hegemonia das classes dominantes sobre a propriedade urbana, até mesmo nas inserções que estas lograram ter em projetos supostamente destinados à democratização do acesso à terra urbana, como o Estatuto da Cidade.
Os instrumentos progressistas do Estatuto da Cidade Nesse contexto antagônico dos tempos da “globalização”, a maioria dos instrumentos de indução do desenvolvimento urbano e tributários aprovados no Estatuto da Cidade tentam assim mesmo estabelecer, no cenário brasileiro, uma perspectiva de uma nova presença do Estado na regulamentação, indução e controle dos processos de produção da cidade, mesmo que esse seja, como vimos, um desafio e tanto. Tais instrumentos visam, em essência, refrear o processo especulativo e regular o preço da terra, ao forçar o exercício da função social da propriedade urbana punindo o “mau proprietário”. Buscam também permitir um maior controle do Estado sobre usos e ocupações do solo urbano, em especial em áreas que demandem uma maior democratização. Alguns exemplos são as Zonas Especiais de Interesse Social, que permitem a definição de um padrão urbanístico próprio, com tratamentos diferenciados tanto em áreas de favelas ou loteamentos que demandem urbanização, como em áreas vazias sujeitas à provisão de moradia de interesse social, ou ainda terrenos ou imóveis subutilizados em áreas com infraestrutura urbana, geralmente nas áreas centrais. Este último aspecto se destaca quando confrontado ao esvaziamento das áreas centrais nas grandes e médias cidades, que provoca um aumento de terrenos não-utilizados especialmente propícios à Reforma Urbana e à provisão habitacional de interesse social. Outro exemplo é o do usucapião urbano, que permite dar a propriedade a moradores de favelas ou cortiços que ocupem esses imóveis, sem contestação jurídica, por mais de 5 anos. A concessão especial �� Ver FERREIRA, João Sette Whitaker. “ São Paulo: o mito da cidade -global”, Tese de Doutorado, FAUUSP, 2003.
33
de uso para fins de moradia, aprovada por Medida Provisória complementar ao Estatuto, permite a poder público conceder o direito de uso habitacional em áreas públicas ocupadas. O IPTU progressivo, como um último exemplo, permite que se puna o proprietário que deixa seu imóvel ou terreno vazio por mais de sete anos com um aumento progressivo de imposto, que pode culminar com a desapropriação do imóvel. A Constituição de 1988 obrigou todo município com mais de 20.000 habitantes a ter um plano diretor. Embora fosse um instrumento urbanístico antigo, tal fato o reinseriu na agenda política urbana, ainda mais quando o Estatuto da Cidade, em 2001, determinou que as cidades que ainda não têm plano o produzam em 5 anos. O Estatuto dá uma importância significativa aos Planos Diretores, ao determinar que seja neles que se faça a regulamentação dos instrumentos urbanísticos propostos. Esse fato tem consequências positivas e negativas. Positivas porque joga para a esfera municipal a mediação do conflito entre o direito privado e o interesse público, e isso é bom pois permite as necessárias diferenciações entre realidade municipais completamente diversas no país. Além disso, garante que a discussão da questão urbana no nível municipal torne-se mais próxima do cidadão, podendo ser mais eficientemente participativa. Porém, o aspecto negativo é que, ao jogar a regulamentação dos instrumentos para uma negociação posterior no âmbito dos Planos Diretores, estabelece-se uma nova disputa essencialmente política no nível municipal, e conforme os rumos que ela tome, esses instrumentos podem ser mais ou menos efetivados. Em alguns casos, até, ocorreu que o próprio texto do Plano Diretor, ao propor os novos instrumentos do Estatuto, relegasse sua regulamentação local para mais uma etapa ainda ulterior, estendendo além do razoável seu prazo de efetivação. A tradição urbanística brasileira, como visto calcada em um Estado estruturado para ratificar a hegemonia das classes dominantes, sempre tratou os planos diretores por um viés tecnicista que os tornavam herméticos à compreensão do cidadão comum, mas eficientes em seu objetivo político de engessar as cidades nos moldes que interessavam às elites, muito embora grande número de urbanistas tenham se esforçado, na década de 70 e apesar do regime vigente, em torná-los mais eficientes. Mas, por exemplo nas grandes capitais, infelizmente marcaram história os calhamaços técnicos nada democráticos, que serviram mais para fins eleitorais, para estabelecer uma rígida regulamentação nos bairros ricos, ou ainda para priorizar a construção de mais e mais avenidas (em detrimento dos transportes públicos), enchendo os bolsos de políticos inescrupulosos e dos especuladores imobiliários. Em compensação, os Planos Diretores pouco fizeram para a enorme parte da população excluída da chamada “cidade formal”. Na prática, os planos se distanciaram da realidade urbana periférica, e não impediram a fragmentação das políticas públicas urbanas. É por isso, aliás, que hoje vêm sendo pesquisadas novas metodologias de planejamento, mais próximas da realidade e da gestão locais, mais abertas à participação dos agentes sociais dos bairros, e promotoras de uma reintegração transversal das políticas setoriais, como os Planos de Ação Habitacionais e Urbanos propostos recentemente pelo Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da FAUUSP. Mas isso não impede, obviamente, que hoje os planos diretores possam ser um instrumento para inverter a injusta lógica das nossas cidades, desde que incorporem e efetivem a implantação dos instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade. Mas, para isso, não devem ser um ementário de tecnicismos, mas um acordo de toda a sociedade para nortear seu crescimento, reconhecendo e incorporando em sua elaboração todas as disputas e conflitos que nela existem. Só assim, surgido de um amplo e demorado processo participativo, que não fique sujeito à apressada agenda político-eleitoral dos governantes de turno (em que a “governabilidade” e a busca pela reeleição passam por cima dos fins públicos que se deseja das políticas públicas), o Plano Diretor e os instrumentos do Estatuto da Cidade podem eventualmente tornar-se um ponto de partida institucional para que se expressem todas as forças que efetivamente constroem a cidade. Se toda a população – inclusive as classes menos favorecidas – apreender o significado transformador do plano e do Estatuto da Cidade, e conseguir aprovar sua efetiva implementação no âmbito municipal, cobrará sua aprovação e fiscalizará sua aplicação, em uma oportunidade para conhecer melhor seu território e disputar legitimamente seus espaços. 34
Infelizmente, ainda hoje planos diretores continuam resultando muitas vezes de uma apressada montagem em gabinetes, visando apenas transformá-los, o mais rápido possível, em fatos políticos. E os instrumentos do Estatuto da Cidade vêm sendo muitas vezes esquecidos nos Planos Diretores, ou mesmo são aplicados sem o necessário cuidado, fragilizando muito seu potencial transformador. Recentemente, em São Paulo, foi lançado pela prefeitura um concurso de urbanização para uma área central de cerca de um milhão de m² – de propriedade privada e mantida vazia há anos –, sem que se exigisse dos participantes uma provisão mais significativa de h abitações de interesse social. O edital do concurso pedia que apenas cerca de 7% das habitações propostas fossem destinadas ás classes menos favorecidas. Em um quadro em que a exclusão ao acesso á terra urbana é estrutural, e em que cabe aos municípios, seguindo os preceitos do Estatuto da Cidade, punir a especulação e obrigar o reequilíbrio social, esperava-se uma aplicação mais drástica da exigência da função social da propriedade urbana. Ainda assim, mais uma vez o que se promoveu foi um projeto de urbanização que, às custas de investimentos públicos, acabará mais uma vez provocando, para a felicidade dos proprietários que mantinham a área vazia, a valorização fundiária e o surgimento de um bairro de classe média-alta. Por isso, vê-se que a eficácia do Estatuto da Cidade e de seus instrumentos é hoje ainda uma incógnita, que faz muitos urbanistas temerem que se trate, mais uma vez, de regras que ficarão no papel e pouco contribuirão para uma reversão efetiva da desigualdade estrutural no acesso á terra e no direito à cidade no Brasil. Se o Estatuto da Cidade servir apenas para as discussões acadêmicas dos urbanistas, mas não for efetivamente utilizado pelos municípios, corremos o risco de, mais uma vez, termos uma lei que não sairá do papel, mantendo-se o estrutural desequilíbrio no acesso ao solo urbano. Além do mais, é inegável que tanto os planos diretores quanto os outros instrumentos do Estatuto da Cidade não podem ter, e nunca terão, o poder de condão de provocar por si só a reviravolta estrutural muito mais profunda que o Brasil necessita, que não se resume obviamente à tecnicismos urbanísticos, mas depende de uma revolução política nas formas de estruturação da nossa sociedade e do nosso sistema econômico. É, mais uma vez, o cruel dilema que se coloca hoje no campo ideológico progressista: estamos, com tais esforços jurídico-urbanísticos, com toda a mobilização política pela efetivação nos municípios de Planos Diretores que incorporem o Estatuto da Cidade, reforçando um “ status quo” que pouco afetará as relações de poder na produção das cidades e na hegemonia intolerante das nossas elites, ou promovendo reformas de fundo que, pouco a pouco, serão capazes efetivamente reverter a histórica exclusão socioespacial e promover a existência de cidades mais justas no nosso país? Só o tempo dirá.
35
Desafios para a construção de uma teoria crítica a partir da periferia Publicado nos Anais do Colóquio Internacional: os desafios urbanos no Brasil e na África do Sul - Sessão Temática 5, IPUUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. Atualizado nesta edição.
As teorias socioeconômicas que sustentam as políticas públicas brasileiras, em qualquer setor da produção capitalista, e portanto também no da produção do espaço, na maioria das vezes reproduzem modelos e metodologias já experimentadas nas economias centrais do sistema. Tal prática têm explicações evidentes, que se situam tanto em dinâmicas exógenas quanto endógenas: de fora, as matrizes que parametrizam nossas políticas são difundidas pelas agências multilaterais, pelos governos dos países centrais em suas parcerias e acordos de cooperação, pelas empresas transnacionais, pela influência do pensamento acadêmico, e traduzem uma dinâmica de dominação e criação de dependência econômica de cunho ideológico, que obviamente serve aos interesses econômicos e políticos dos países centrais. Mais ainda no bojo do atual processo de expansão do capitalismo em crise, que se convencionou chamar de globalização, mas que alguns autores denominam, mais corretamente, de expansão ultraliberal. De dentro, a aceitação dessas matrizes se dá pela submissão dependente na política, na economia, na academia, aos ditames das receitas importadas, mesmo que quando aplicadas aqui se tornem ideias “fora do lugar”. As razões para tal submissão podem ser decorrentes de uma muito útil alienação (que se vale também da perpetuação da miséria como fomentadora de massa de manobra), consolidada pela força dos processos de formação de opinião, especialmente com o uso ideológico da mídia, mas também são decorrentes de decisões conscientes dos setores dominantes internos – tanto no interior do Estado quanto no mercado – que historicamente se beneficiam dos pactos realizados com as forças do capitalismo mundial (e agora, “global”), para reforçar sua hegemonia, mesmo que para isso tornemse agentes essencialmente antinacionais, antidemocráticos e antidesenvolvimentistas (considerando o desenvolvimento como o crescimento com distribuição da renda) (Sampaio Jr. , 2001). Assim, não há nada de anormal no fato de que as políticas públicas brasileiras sempre tenham exacerbado a estrutura absolutamente desigual da nossa sociedade. O Estado – até recentemente sempre nas mãos dos setores dominantes�– especializou-se em promover ações desestruturadoras que pudessem justamente consolidar aquilo que é a base fundamental da nossa sociedade: o antagonismo de dois grupos, um dominante e minoritário, outro dominado e majoritário, que desde sempre compuseram as relações de forças política e econômica brasileiras. O primeiro, em cada momento da nossa história, sempre que possível com o apoio das forças capitalistas externas, re-impõe reiteradamente suas condições de dominação, baseadas na exploração absoluta do trabalho e no controle do território e da propriedade fundiária. Assim se sustentaram cada um dos ciclos da nossa história – excetuados alguns poucos períodos – sobrepostos uns aos outros por “novas” matrizes supostamente “modernas” do ciclo subsequente, mas que nunca superaram (ou nunca quiseram superar) os antagonismos do anterior. Essa matriz da “modernização conservadora”, nos termos de Maria Conceição Tavares, alimenta o “mito do desenvolvimento” e favorece a manutenção de um consenso em torno de políticas excludentes que apenas consolidam a hegemonia interna do grupo dominante. Por isso, o Estado brasileiro, cuja característica patrimonialista imiscui o público e o privado para o favorecimento dos que detêm o poder, é uma máquina azeitada durante séculos não para estruturar, mas sim para desagregar, desarticular o tecido social, desmontar as estruturas eventualmente includentes, e assim fortalecer os � A vitória de Lula teria alterado esse cenário? Uma questão polêmica, que remete à uma análise profunda do sentido d o “lulismo”. Ver, sobre isso, e com interpretações opostas, os trabalhos de Oliveira, Risek e Braga, “Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira” (Boitempo, 2010), e o de André Singer, “Raízes sociais e ideo lógicas do lulismo”, in Revista Novos Estudos Cebrap, nº85, nov.2009.
36
mecanismos de poder. É por isso que no Brasil temos, em quase todas nossas cidades e ao longo dos século XX, “não-políticas de transportes”, que favoreceram o transporte individual em detrimento das modalidades mais democráticas do transporte de massa, e que hoje cobra seu preço no novo paradigma da “sustentabilidade”. Temos historicamente uma “não-política habitacional”, que quando produziu habitação o fez por um recorte privatista sem beneficiar efetivamente as classes de renda mais baixa, para a qual restou a solução da autoconstrução, um modelo propício, como lembrou Chico de Oliveira, à manutenção do baixo custo de reprodução da mão de obra (Oliveira, 1982). É por isso que a inversão de prioridades tornou-se o padrão da ação pública, sempre excluindo ao invés de ampliar e incluir. Essa foi a base da nossa “industrialização com baixos salários”, que nas cidades se traduziu pela “urbanização com baixos salários” (Maricato, 1996). Evidentemente, essa lógica alimentou-se permanentemente nas dinâmicas externas, em um movimento simbiótico pelo qual as dinâmicas internas interessam aos setores dominantes da economia mundial. Como se sabe, o Brasil sustentou parte da sua industrialização e do seu crescimento acelerado da década de 60 e 70 na sua capacidade de fornecer mão de obra barata, assim como a China hoje sustenta seu significativo crescimento. A manutenção de um modelo econômico interno recordista mundial de concentração da renda, enquanto o PIB alcançava a oitava posição mundial é o retrato mais evidente dessa equação�. As políticas públicas “na contramão” do sentido público� se repetem invariavelmente na área da saúde, da educação e, é claro, na da infraestrutura urbana, que é o investimento social necessário à produção do ambiente construído. Se a diferenciação dos investimentos em infraestrutura está na base da compreensão do conceito de valor de localização como motor da produção da cidade capitalista, onde quer que ela se situe, o fato é que aqui no Brasil essa lógica se exacerba, pela peculiaridade da estrutura socioeconômica brasileira. O sentido da economia de escala e da permanente agregação do valor está na base da compreensão do modelo do bem-estar social: à economia capitalista que se consolidava, interessava ampliar mercados, agentes econômicos e trocas, sempre pautada pelo conflito de classes e pela dominação capital/trabalho, ainda que amenizados pela mediação estatal. Nesse sentido, uma infraestrutura urbana abrangente e homogênea garante a permanente ampliação da forma-mercadoria, incluindo novos agentes à produção capitalista. A partir da crise de 1930 e reconstrução do pós-guerra, a montagem do sistema do bem-estar social keynesiano, nos EUA e na Europa respectivamente, respondeu à necessidade de aumento generalizado do poder aquisitivo e de ampliação da capacidade de consumo e do mercado, graças aliás ao forte apoio dos EUA, embora tal processo tenha se dado, como se sabe, às custas da internacionalização da divisão do trabalho e da dependência dos países subdesenvolvidos. Por mais que as cidades capitalistas desenvolvidas tenham no período gerado marcada diferenciação espacial, em função da competição própria do capitalismo por localizações, por mais que o mercado imobiliário tenha tido um papel predador na estruturação do espaço, como bem mostrou Topalov, ainda assim a lógica dominante nas sociedades do Estado do Bem-Estar Social era uma lógica inclusiva. Por isso um nível de homogeneização razoável da infraestrutura urbana, embora a lógica da diferenciação continuasse inalterada. No Brasil, tal lógica econômica não funciona, e por isso torna-se contraditória. Ou melhor, não funcionava, pois na era da globalização as dinâmicas mudaram sensivelmente. Pelas peculiaridades apontadas � Sobre o modelo econômico do “Desenvolvimentismo autoritário”, ver MANTEGA, G., “Teoria da dependência revisitada – um balanço crítico” - EASP-FGV/SP-INPP – Núcleo de pesquisas e publicações, relatório de Pesquisa nº27, 1997. � Vale aqui observar que na confusão conceitual que as relações de dependência criam, os conceitos de “público”, e seus derivados como “política pública”, “sentido público” se apoiam na referência de um “Público”, ou mesmo de uma forma de Estado que não é a nossa, mas sim aquela que se desenvolveu no âmbito do Estado burguês moderno e do Estado-Previdência, formas que não tivemos, historicamente, no Brasil. Daí certa lógica no fato de que tais conceitos, de fato, não se apliquem aqui. Usar o termo “não-política” se refere exclusivamente à oposição com o que são as políticas “públicas” no Estado Providência e no universo bibliográfico da Ciência Política europeia contemporânea. Para a nossa realidade, tratam-se de políticas sim, mas com o sentido “público” próprio das sociedades patrimonialistas e marcadas pelo subdesenvolvimento.
37
acima, entre outras, a dinâmica capitalista se inverte na formação brasileira, o que foi amplamente discutido pelos interpretes desse processo. A agregação generalizada não era necessária, pois o capital não dependia dela. O lucro estava em outros mercados, à exceção de um limitado mercado interno, quase residual. Nossa competitividade econômica externa se dava, como mostrou Rui Mauro Ma rini, pela exploração exacerbada do trabalho (a escravidão duradoura foi um bom exemplo disso). A manutenção de uma economia “entravada” (Deák, 1991) que não se desenvolve plenamente pela própria ação da burguesia (mais propriamente uma elite, que promove na verdade a “contra revolução” burguesa, segundo Florestan Fernandes) e a rigorosa restrição ao acesso à terra (inclusive por meio de entraves jurídicos à profusão) são a marca do subdesenvolvimento. O chamado processo de Globalização trouxe novos elementos a essa análise (Ferreira, 2007), que discutiremos adiante. Voltando ao âmbito do espaço urbano, resta que aqui, historicamente, a lógica nunca foi – e continua não sendo, mesmo em tempos de grande “modernização” – a de ampliar a infraestrutura e democratizar as cidades, mas de promover sua concentração, exacerbando as diferenciações de valor e favorecendo uma pequena parcela da sociedade. As “cidades” brasileiras do discurso hegemônico, aquelas que são objeto da ação dos arquitetos, dos planejadores, das leis e, é claro, do mercado formal, não são cidades mas apenas pequenas parcelas delas, aquelas áreas bem estruturadas e formais, enquanto que uma “não-cidade”, excluída, marginalizada, onde o desemprego predomina, esquecida pelo poder público (exceto pela presença policial, para estabelecer permanentemente as divisas desses territórios), recebe geralmente metade ou mais da nossa população urbana. Este é o quadro social brasileiro decorrente do subdesenvolvimentismo, já bastante discutido, e que no âmbito urbano, teve sua exacerbação com a industrialização acelerada da segunda metade do século XX. É uma matriz composta ela mesma por uma sobreposição de matrizes supostamente “modernas”, que se implantam, pela imposição política dos grupos dominantes, por sobre as matrizes arcaicas. As marcas dessa matriz estrutural são visíveis nas formas de ação do Estado patrimonialista, nas dinâmicas econômicas de exclusão, nas leis que se aplicam para uns e não para outros, na aparente “incompetência” do Estado na condução de políticas “públicas”. O que é geralmente parte da própria lógica da nossa sociedade é tido como incapacidade: políticas “não dão certo”, levando muitos a estudar as razões desses fracassos, quando na verdade o fracasso é a própria comprovação da eficácia do sistema. “Soluções” apresentadas nas cartilhas das agências multilaterais como modelos de práticas a serem seguidas não dão e nem podem dar certo porque não enfrentam verdadeiramente as causas estruturais dos problemas. Muito se faz, muito se pensa, quando na verdade a quase totalidade desses esforço se volta para problemas que não dizem respeito às causas mais profundas da nossa fratura social. No âmbito urbano, grande parte dos pesquisadores, dos legisladores, dos governantes, pensa e reflete problemas que focam apenas parte da cidade como se ela fosse a única, fingindo-se que não se vê que a cidade que precisa ser pensada não é essa. Concursos são lançados, muitas vezes por governos progressistas, invariavelmente para pensar e propor partes da cidade “ideal”, invariavelmente aquela onde a economia funciona e os investimentos são feitos, onde as leis valem, onde há arquitetura, onde há transportes. A necessária inversão absoluta e radical das prioridades, a mudança corajosa dos paradigmas que ditam a ordem dos investimentos públicos, a priorização intransigente das necessidades da cidade informal, dos excluídos, esta não é feita e, pior, quando é sugerida tal postura é automaticamente tolhida, censurada e marginalizada. A simples sugestão de uma mudança mais radical dos parâmetros da ação do Estado e dos investimentos públicos, para que estes se tornem mais “públicos” em um país em que isso significa simplesmente dar vez aos pobres, é automaticamente vista e rotulada como uma subversão da ordem pública, radical, insurgente. Em todas suas formas de expressão, sejam econômicas, políticas, culturais, as dinâmicas de funcionamento da nossa sociedade, conduzidas pelas classes dominantes, reproduzem quase que invariavelmente uma postura de completa ignorância para com a parte majoritária da sociedade, a dos excluídos. Exceto quando esta lhes serve, é claro.
38
Os exemplos são intermináveis. A população das periferias das metrópoles brasileiras compõe a quase totalidade da mão de obra da construção civil. Serve a empreiteiras, construtoras, arquitetos e engenheiros, a donas de casa em busca de um “faz tudo”, sempre em condições precárias de emprego e salários, com contratos informais, alojamentos subumanos. Mora na periferia, porém é comum que a enorme maioria dos estudantes de arquitetura das nossas escolas – que aprendem cedo em seus estágios profissionais como se comportar como empregadores – sequer cheguem a conhecer, nos seus vários anos de formação, essas mesmas periferias. Não a conhecem quando estas deveriam ser o objeto natural de suas preocupações como arquitetos-urbanistas. A violência é um tema que preocupa e ocupa a mídia somente quando ela invade o território das elites, saindo dos bairros periféricos onde ela há tempos impõe sua lei sem que isso pareça ter incomodado ninguém. No Rio de Janeiro, um prefeito chegou a propor que simplesmente se construísse um muro para separar a “cidade” das favelas, da “não-cidade”. A propriedade privada é sagrada quando alguns pobres excluídos resolvem ocupar um prédio mantido vazio por décadas em plena cidade urbanizada, em total contrassenso com a gritante demanda social por moradia. Reintegrações de posse são rapidamente expelidas por uma justiça das mais ágeis. Mas a mesma propriedade privada não parece ser tão importante quando ela é pública, e glebas inteiras são ocupadas ilegalmente para a construção de shoppings-centers ou condomínios de luxo. Mais recentemente, no bojo da matriz “modernizadora” da “globalização”, um novo paradigma invadiu nossas cidades, tornando-se a prioridade das políticas urbanas: a construção de “cidades-globais” que supostamente respondam às “exigências” da economia globalizada. Tomando-se por modelo os paradigmas do planejamento estratégico e outras cartilhas urbanísticas, discute-se nas universidades e implementa-se nos governos soluções de gestão urbana importadas dos “cases” de sucesso das grandes cidades europeias e norte-americanas, que criam ilhas de fantasia da modernidade, ignorandose absolutamente as periferias e o fato de que a metade das populações das metrópoles brasileiras ainda vive na informalidade, grande parte sem sequer saneamento adequando. O mercado imobiliário fervilha com os novos objetivos de construção de bairros de negócios “compatíveis” com a globalização que nos promete o Primeiro-Mundo, e recursos e mais recursos públicos são canalizados para permitir seu surgimento, enquanto se adia mais um pouco a reversão pelo menos parcial da absoluta segregação a que são submetidos os cada vez mais distantes bairros periféricos informais, que crescem ininterruptamente. A mesma massa de mão de obra, ignorada em seus direitos aos transportes e à mobilidade urbana, privada de acesso a sérvios e equipamentos públicos tão básicos como a moradia, a educação e a saúde, é a que constrói os novos barros da “cidade-global” tão propagandeada. Ocorre que as dinâmicas de dominação estão tão enraizadas que elas passam despercebidas. Porém, uma observação mais atenta mostra rapidamente os incontáveis exemplos de como nossa sociedade ainda é, em essência, a mesma sociedade escravocrata de duzentos anos atrás. E assim, um novo elemento, pouco considerado, surge como mais um entrave à possibilidade de construção de uma sociedade mais justa, ou de uma ação do Poder Público efetivamente mais “pública”: é a absoluta intolerância à pobreza, a negação enfática por par te dos que tem um pouco mais em relação àqueles que têm menos. Essa intolerância perpassa as ações públicas e privadas, molda os comportamentos das elites, torna-se um elemento cultural que alimenta no Brasil uma espécie de apartheid social, pelo qual os segregados não são somente os negros, mas os mulatos, os nordestinos, enfim, essencialmente, os pobres. A intolerância à pobreza molda o comportamento das elites, mas também do Poder Público que muitas vezes a estas lhe serve, determina as políticas públicas, as dinâmicas sociais e, evidentemente, as urbanas. Em agosto de 2007, a tradicional Faculdade de Direito da USP foi “invadida” simbolicamente, por 24 horas, por movimentos sociais e estudantes, que lá promoveram shows musicais e manifestações pela defesa da inclusão social. Visto como ameaçador, tal movimento foi duramente debelado pelo batalhão de choque da polícia. Sintomaticamente, após sua ação, esta separou e “fichou” apenas os militantes do movimento negro e do MST, liberando sem constrangimento os estudantes envolvidos na ocupação, estes evidentemente na sua maioria oriundos das elites, que têm acesso a tão tradicional universidade. Assim, a mesma intolerância demonstrada no âmbito da justiça e do uso da força 39
“legítima” do Estado quando se massacram presos no Carandiru ou Trabalhadores Sem-Terra no Pará, a mesma indiferença demonstrada quando se deixam morrer pessoas nas filas do serviço público de saúde, a mesma intolerância que se vê quando escolas são sucateadas, deixadas a professores com salários miseráveis, a mesma intolerância que se observa na maneira como são contratadas e tratadas as empregadas domésticas nos lares abastados das nossas cidades, essa mesma intolerância se repete e molda as dinâmicas urbanas e as políticas urbanísticas. Em São Paulo, por exemplo, as empregadas domésticas, aliás, muitas vezes são obrigadas a morar, abdicando até de suas famílias, em quartos de 3,5 m², sem janela, nos fundos de apartamentos de luxo, quando a legislação exige um mínimo de 5 m² para ambientes “de repouso” em apartamentos habitacionais. As construtoras escrevem nas plantas que se trata de “depósitos” “depósitos”,, e a administração pública faz que não vê. Milhares e milhares de plantas são aprovadas, quando se sabe que os ditos “depósitos” “depósitos” são os quartos de empregada, a serem ocupados por estas escravas da era moderna. Nas áreas nobres da cidade, a prefeitura implantou “rampas “rampas anti-mendigos” em baixo de viadutos e objetos pontiagudos nos bancos públicos para evitar o pernoite de indesejados moradores de rua, sob o argumento de garantir a segurança pública. A pobreza, aliás, é sistematicamente confundida com a criminalidade pelo discurso hegemônico, ajudando a reforçar a intolerância cultural, enquanto milhões de trabalhadores pobres sofrem diariamente a violência de passar quatro horas ou mais de seu dia (não computadas na jornada de trabalho) espremidos em transportes coletivos precários. Outro exemplo é o da legislação urbana: de que serve pensar, nos meios acadêmicos, nas casas legislativas, em novos instrumentos urbanísticos supostamente capazes de fomentar a democratização da cidade se estes são quase sempre rejeitados pelos poderes dominantes sem o menor constrangimento no momento em que deveriam ser regulamentados pelos municípios? De que servem essas novas ferramentas “democráticas” se nos Planos Diretores municipais simplesmente ignora-se a população pobre e suas demandas? Como bem lembra Flávio Villaça, tornam-se planos inúteis, peças de pura ideologia destinadas a confundir e criar a impressão de que se faz urbanismo democrático no Brasil. Embora exista um esforço – sempre por meio da proposição de instrumentos que acabam não saindo do papel – para se pensar em formas de povoar democraticamente as áreas centrais das cidades, que estão se esvaziando, recentemente um empresário do setor imobiliário declarou que a questão da diversidade nessas regiões era apenas uma “preocupação da academia”, e não uma questão de fato importante para se pensar o centro das cidades, pois o lugar dos pobres não deveria ser, de fato, nas áreas valorizadas. Enquanto instrumentos como as ZEIS - Zonas Especiais de Interesse Social propõem – no papel – a destinação de 50% ou mais de sua área construída para habitações para as faixas mais pobres da população, em 2003, um concurso de urbanismo pediu um “bairro “bairro novo” para São Paulo, em uma área vazia de um milhão de m² na região central, mas no edital – elaborado pelo mesmo Poder Público encarregado de implementar as ZEIS – solicitava-se apenas 700 unidades habitacionais de interesse social de um total de cerca de dez mil, ou seja, apenas 7% do total. Há alguns anos, um documentário canadense sobre São Paulo mostrava a ação impune dos guardas particulares de um grande condomínio de luxo, destruindo violentamente alguns barracos de pessoas que tinham ousado instalar-se em terrenos vizinhos aos muros do condomínio. Em 2007, moradores de um prédio de classe média atearam fogo nas madeiras que iriam servir à construção de moradias precárias em um terreno baldio vizinho. A grande preocupação dos moradores era, em uma completa inversão de valores, o fato de que a presença indesejada de uma favela iria “desvalorizar” seu imóvel. Também no mesmo ano, a indesejada presença de uma favela no terreno vizinho a um novo megaempreendimento residencial de luxo, no bairro da Cidade-Jardim, levou os incorporadores a oferecer R$ 40 mil por família para que estas desocupassem “amigavelmente” a área, “limpando” a vizinhança, quando o terreno em questão já havia sido delimitado como ZEIS e estava portanto supostamente no aguardo da tão esperada regularização fundiária e produção de moradias. Como se vê, os exemplos são intermináveis.
40
A intolerância à pobreza impede o desenvolvimento urbano em moldes minimamente democráticos, ela interfere na valorização fundiária e imobiliária, torna-se um elemento a mais, talvez tão importante quanto o da infraestrutura de acesso. No centro de São Paulo, áreas delimitadas como ZEIS tiveram suas atividades imobiliárias simplesmente congeladas. Ninguém compra onde há conjuntos habitacionais anunciados. Em pesquisa recente, verificou-se que os corretores escondem deliberadamente o fato de que se trata de ZEIS quando interrogados pelos potenciais clientes. Na Mooca, quando da revisão do Plano Diretor Municipal, em 2006, a população de classe média mobilizou-se para que as ZEIS previstas no plano dois anos antes, porém nunca implementadas, fossem retiradas. Não queriam pobres em seus bairros, estavam fartos da presença de moradores de rua, de sujeira, de ratos, em suas palavras. A perspectiva da presença da pobreza desestimula o negócio, afugenta compradores. Viver ao lado de pobres é, para a elite, inaceitável. Mesmo que tal intolerância os obrigue a deslocar-se por horas desde seus bairros residenciais para o local de trabalho: são motoristas de ônibus, seguranças, faxineiros, caixas de supermercados, empacotadores, ascensoristas, empregados do comércio, office-boys, todos trabalhando duramente para que a “cidade” “cidade” continue a funcionar. func ionar. São úteis a ela, mas têm que residir o mais longe possível. As transformações recentes na economia, sob o paradigma da chamada “globalização”, podem estar alterando um pouco tal quadro, mas, como dito, elas podem estar exacerbando ainda mais as dinâmicas da intolerância, pois justamente as afetam diretamente. Como comentado inicialmente, a globalização é um processo de reação à crise de superprodução e endividamento pela qual vem passando a economia capitalista desde a década de 70, quando se inicia o que David Harvey chamou de “reestruturação produtiva”.. Face à contradição clássica de um sistema que aumentou exponencialmente sua capacidade produtiva” de produção graças às novas tecnologias da informática, ao mesmo tempo que gerou um desemprego crescente e a incapacidade de sustentar o modelo do bem-estar social, a s economias centrais passaram a expandir-se em busca de novos mercados de consumo. E, uma vez que os blocos econômicos aperfeiçoaram ao extremo, já na década de 80, as barreiras tarifárias e alfandegárias, afunilando a concorrência inter-blocos na busca de novos consumidores, os mercados do Sul, dos países chamados “emergentes” tornaram-se o alvo preferencial para o escoamento da produção capitalista, desde que tais países fizessem, evidentemente, alguns ajustes. Os ajustes visavam evidentemente a estabilização monetária para que uma maior parte dos segmentos mais capitalizados de sociedades com extrema concentração da renda pudessem de fato consumir, vencendo a barreira desorganizadora da hiperinflação. Por meio de forte aparato de imposição ideológico, que na América do Sul se traduziu no Consenso de Washington, planos de estabilização monetária foram adotados, e permitiram o desejado ingresso dessas economias no consumo global. Se até então elas participavam da economia mundial com o fornecimento de mão de obra barata, agora passavam a oferecer, além da mão de obra, também consumidores potenciais. Além disso, a forte dependência monetária, em razão do modelo de juros altos e significativo endividamento, “obrigou” a processos de privatização que se traduziram em mais uma porta de entrada para empresas internacionais, com destaque para o setor de serviços, que tem forte relação com a questão urbana. No que alguns autores chamam de avanço ultraliberal, os mercados do Sul foram compulsoriamente desregulamentados, privatizados e abertos para a livre circulação dos produtos internacionais. Se antes era oferecida à população brasileira pouca ou nenhuma assistência social, educacional, de saúde, esta agora tornou-se radicalmente privatizada, com a livre movimentação de empresas que exploram o mercado de consumo de uma classe média sem alternativas, sob a (des)regulamentação de “agências reguladoras”. Essa nova perspectiva abriu sem dúvida possibilidades de mudanças significativas para o Brasil, que foram iniciadas já na década de 90, mas mais eficazmente postas em prática e capitalizadas pelo governo Lula. A economia brasileira estaria, de alguma forma, passando para o “estágio intensivo” de desenvolvimento (Deák, 1991), ampliando-se, e tendo que incorporar uma classe média mais importante. Também Também se beneficiaria da crise c rise recorrente das economias centrais, que não se resolveu na globalização. Porém, ainda aparece claramente que esse processo é mais um “avanço modernizador”, 41
sem que por isso, como em eventos anteriores, tenham sido resolvidos os entraves históricos do subdesenvolvimento. É esse seguramente o maior dilema conjuntural que o país vive hoje: enfrentar a euforia de uma “modernização” que pode ser não só limitada, como certamente afunda nas frágeis bases do ornitorrinco (Oliveira, 2003). Pois se o padrão econômico brasileiro já era segregador, a nova matriz de modernidade a estabelecerse sobre as bases arcaicas anteriores agora exacerbava essa condição, ao permitir a entrada no “mundo globalizado” apenas parcelas da população, agora consumidoras, mas deixando de fora parte significativa da sociedade. A matriz da “globalização” inclui apenas quem pode consumir, e nesse processo são deixados de lado os de sempre, as massas que desde sempre “sobram” nas periferias das cidades, solenemente ignoradas pelas políticas públicas e pela sociedade “que vale”. O aumento festejado de uma nova classe média parece ser um processo real de enriquecimento das faixas pobres (D) em direção à classe média baixa (C), mas não afeta verdadeiramente a concentração da renda e altera com pouca velocidade a situação das faixas de extrema ex trema pobreza, embora haja melhorias (Oliveira, 2011 e Pochmann, 2012). Nas metrópoles, a exacerbação desse processo resulta na continuidade do crescimento regular dos assentamentos periféricos informais, enquanto que a cidade das classes médias tende a se estabilizar estabilizar,, ou mesmo a diminuir. Mike Davis (2006) tratou precisamente desse problema, ao apontar como o novo padrão urbano do mundo capitalista é o da produção de “massas “massas sobrantes” que aos poucos vão se tornando não mais a exceção, mas a regra. Ainda assim, o fenômeno de ampliação do mercado vem provocando, especialmente nos centros urbanos mais desenvolvidos, onde se concentra a população consumidora, algumas alterações que parecem interessantes. De certa forma, a presença de empresas multinacionais no mercado interno pressiona para que este se amplie, o que significa inverter a lógica dominante até agora, incluindo setores antes segregados no mercado potencial. O choque entre o moderno e o arcaico começa a ocorrer em um campo antes inexplorado, porque desnecessário: o do mercado de consumo. A possibilidade de ampliação do crédito, possibilitada pela estabilização monetária, vem permitindo a entrada no mercado de consumo barato de faixas antes excluídas. Um exemplo atual, porque ligado à questão da “sustentabilidade”, é o dos carros “populares”, agora acessíveis – embora com enorme sacrifício – a mais pessoas. Uma dezena de novas montadoras se instala no país a partir da década de 90, e é esse hoje o segmento comercial de maior lucratividade: acentua-se em nome do consumo e da lucratividade das empresas privadas a opção pelo transporte individual, em detrimento dos sempre adiados investimentos em transportes coletivos de massa. As cidades não têm mais onde colocar tantos veículos, e torna-se evidente mais uma vez o choque do novo padrão de modernidade – sob o paradigma do consumo – com as matrizes estruturais atrasadas. É certo que esse movimento de emancipação do mercado, no bojo da atual “modernização”, cujos aspectos aparentemente positivos ainda não deixaram claro o quanto superam os aspectos negativos da consolidação do liberalismo, estão relacionados também com a visível emancipação e democratização políticas, cujo amadurecimento ficou claro nas duas últimas eleições. Qual a relação entre esses processos? Ainda é cedo para analisar. Porém, Luiz Werneck Vianna atentou, em artigo recente, para o fato de que a democracia política deverá “passar pelo duro teste da democracia social”. Para o autor, o controle social sempre foi o instrumento da expansão econômica, o que explica, como dissemos, termos uma economia avançada ao lado de níveis exacerbados de desigualdade social. Agora que esse controle se enfraquece, em razão do amadurecimento do jogo político democrático, é possível que essa desigualdade torne-se de fato obstáculo à democracia social, necessária ao novo consenso para a formação de um mercado de consumo mais amplo. Em que medida a intolerância absoluta à pobreza, traço como vimos característico das classes médias e altas, será superado na construção de uma economia que, ainda que extremamente excludente, pretende ser um pouco mais agregadora e inclusiva?
42
São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo “à brasileira” Publicado na Revista do IEA – Estudos Avançados – Dossiê São Paulo - vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011 - ISSN 01034014
“... quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos...” Caetano Veloso e Gilberto Gil, Haiti
A cidade é um espaço de conflitos. A civilização humana, em sua extraordinária capacidade de gerar sociedades desiguais, sempre produziu cidades igualmente injustas. A sua configuração, seu desenho, sua eficácia como abrigo e espaço de produção, sua capacidade em promover qualidade de vida para uns ou para todos, irão depender das dinâmicas sociais e econômicas e das correlações de forças de cada momento histórico. São Paulo, uma das cinco maiores metrópoles do mundo, expressa as disputas e conflitos da cidade capitalista, com o agravante de carregar também as contradições peculiares do subdesenvolvimento. A produção do espaço urbano responde a uma lógica na qual se relacionam fundamentalmente o Estado, o mercado e a sociedade civil. A tensão existe no fato de que o mercado procura obter lucro por meio da valorização fundiária e imobiliária, enquanto que a sociedade civil interessa-se mais pelo valor de uso da terra urbana. Na cidade capitalista, tal tensão se exacerba, uma vez que a diferenciação de classes e a possibilidade de cada uma delas apropriar-se de áreas desigualmente valorizadas fazem com que a balança penda invariavelmente para o lado dos dominantes, que podem comprar terras nas áreas mais privilegiadas. Caberia ao Estado regulamentar o uso e a ocupação do solo, de tal forma a evitar tal desequilíbrio, restringir a supervalorização especulativa e garantir o acesso democrático à cidade a uma maior parcela da sociedade. Ocorre que quem alavanca a valorização da terra e dos imóveis nas cidades capitalistas é, paradoxalmente, o próprio Estado. O que dá valor à terra urbana é sua localização, definida pela disponibilidade de infraestrutura (Villaça, 2000): um lote é mais caro porque há “mais cidade” em torno dele, ou seja, avenidas e transporte público para acessá-lo, serviço de esgoto, água, luz, coleta de lixo. Porém, quem produz a infraestrutura é o Estado. Aí reside a contradição fundamental da cidade capitalista: um imóvel só tem valor em função de uma complexa malha de infraestrutura, que é construída com investimentos públicos. Assim, a valorização de um terreno decorrente do investimento coletivo, público, é apropriada individualmente por aqueles que possam “pagar pela localização” (Deák, 1989). Por isso, o papel do Estado supostamente deveria ser o de regular e mediar esse antagonismo entre mercado e sociedade: garantindo uma produção homogênea de infraestrutura, evitando a exclusão das parcelas populacionais de menor renda, construindo equipamentos acessíveis por todos, e recuperando, com tributos, parte do lucro obtido pelo mercado em decorrência de investimentos públicos, a chamada “mais-valia urbana”. Parece compreensível que nos países centrais do capitalismo, no bojo do Estado do Bem Estar Social, tal regulação tenha ocorrido, em maior ou menor grau. Claro que a intervenção pública sobre o uso do solo, feita por meio de leis e procedimentos administrativos chamados de “instrumentos urbanísticos”, ocorreu paulatinamente, ao mesmo tempo em que se consolidava o poder econômico da burguesia industrial europeia a partir do séc. XIX, com a função objetiva – e nada filantrópica – de racionalizar as cidades para torná-las um instrumento eficaz da acumulação. Nas décadas do Pós-Guerra, o intervencionismo econômico keynesiano refletiu-se espacialmente, com o Estado garantindo certa igualdade na apropriação e uso do território, provendo equipamentos, serviços e moradia (os grandes conjuntos habitacionais), requisitos para o “bem-estar social”, que na verdade alavancaria um mercado de consumo de massa.
43
Se o Estado Providência cumpriu esse papel nos países centrais, em sua época, consolidando o mercado de consumo que se desejava, isso não significa, vale notar, que tal modelo tenha se mantido até hoje. Após a reestruturação produtiva dos anos 1970 e a consolidação do capitalismo financeiro globalizado, de recorte neoliberal, mesmo naqueles países, o “bem estar” e os direitos universais providos pelo Estado sucumbiram à hegemonia da economia de mercado, que favorece as corporações e exacerba a concentração da renda, promove a exclusão dos mais pobres (sobretudo imigrantes) dos benefícios sociais, fortalece governos cada vez mais autoritários e chauvinistas, e onde se revelam com cada vez mais frequência casos de mal-uso da máquina pública e de corrupção. Se não importamos até hoje a ideia de um Estado “publico” nos moldes de lá, é aceitável dizer que, nos dias atuais, são os países centrais que agora se inspiram no nosso modelo de modernização conservadora. No que diz respeito às cidades, não há dúvidas que a situação é uma só: como disse Mike Davis (2006), o mundo é, hoje, um planeta favela. Mas, se ao menos até os anos 1980 o Estado Providência deu algum sentido ao “público” e alavancou certa regulação do urbano, na periferia do sistema capitalista isso nunca chegou a ocorrer. Diversos intérpretes da formação brasileira mostraram que no nosso país o conceito de “público”não é exatamente fiel ao seu significado original. O Estado brasileiro, em seu viés patrimonialista (Faoro, 2001), confunde o público e o privado na defesa dos interesses das elites, e essa equação afetou dramaticamente o modelo da nossa urbanização. Assim, quando ao longo do séc. XIX, nossas cidades ganharam importância, não como lócus da produção propriamente dita, mas sim de comando da economia agroexportadora (Oliveira, 1977), na falta de um Estado de Bem Estar Social regulador, os investimentos públicos em infraestrutura foram claramente concentrados nas áreas ocupadas pelos setores de alta renda, capitaneados pelos interesses do mercado imobiliário (Villaça, 2001). Sua ausência no restante da cidade não se deu por causa de alguma “incapacidade” dos governantes – como é recorrentemente aventado – mas sim, em razão de uma eficaz política de segregação socioespacial. Na lógica peculiar do subdesenvolvimento, o poder público, sem o sentido de público das democracias desenvolvidas, traveste-se pela lógica das “ideias fora do lugar” (Schwarz, 2000) e se transforma em um “não-Estado”, de traço patrimonialista, marcado pela imiscuição dos interesses das classes dominantes, que aperfeiçoaram a máquina estatal como um instrumento a seu serviço, e alimentaram-se do atraso como alavanca para sua hegemonia. Esse Estado peculiar, no âmbito urbanístico, não planeja ações para a superação do atraso, mas confunde; não organiza, mas desestrutura; não facilita, mas embaralha os procedimentos burocráticos e administrativos; não é ético, mas tolera o favor e o clientelismo, não porque seja incompetente, mas por ser extremamente eficaz no seu objetivo de emperrar um desenvolvimento urbano mais justo, redistributivo e includente, que poderia contrariar o equilíbrio de forças políticas. A acelerada industrialização e urbanização “com baixos salários”, das décadas de 1950 a 1970 (Maricato, 1996), gerou a chamada “modernização excludente” (Maricato,1997), ou seja, um crescimento econômico significativo, porém condicionado à manutenção da pobreza. No âmbito urbano, traduziu-se por um padrão de absoluta segregação socioespacial, com investimentos apenas na cidade hegemônica, que chamamos de modelo da “urbanização desigual”. A metrópole de São Paulo é a resultante desse processo. Se não é a única, pois esse padrão se repete em todas as nossas cidades, talvez seja o caso mais exacerbado e um infeliz modelo para o resto do país. Os efeitos da modernização excludente se leem no forte antagonismo entre áreas da cidade muito reguladas, beneficiadas por constantes investimentos públicos e objeto de intensa atividade imobiliária formal, e outras sujeitas ao abandono e marcadas pela precariedade. Não é verdade que tal dicotomia se expresse no território por uma divisão geográfica entre o centro rico e a periferia pobre. Os assentamentos informais também se multiplicam nos interstícios da cidade hegemônica, nos terrenos abandonados, em baixo das pontes, nas beiras de córregos. Mas de fato se estendem majoritariamente pelas regiões mais distantes do centro. Ao longo do séc. XX, a população mais pobre, sem alternativas 44
de moradia, foi se instalando em um distante “exílio na periferia” (Maricato, 2001), onde o custo da localização é menor. Esse amontoado infinito de casas e barracos reflete o que foi, no Estado patrimonialista, a “melhor” política habitacional, ou seja, a “não-política”, deixando à população mais pobre a solução da autoconstrução, como resultado da falta de alternativas habitacionais, da impossibilidade de acessar a terra urbanizada, e da ação de loteadores clandestinos que disseminaram a ocupação informal. Como já comentou Francisco de Oliveira, uma solução bastante funcional do ponto de vista das necessidades da acumulação (Oliveira, 2003:59): o exército de reserva composto pela massa de imigrantes em busca de trabalho era “ parte também dos expedientes de rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho urbana”, sendo as favelas e loteamentos clandestinos uma “solução” habitacional para os pobres que reduzia “o custo monetário de sua própria reprodução ” (Oliveira, 2003:130). Assim, enquanto os bairros ricos de São Paulo se beneficiavam de uma modernização constante, o padrão de urbanização para os mais pobres, a partir do impulso industrial do “milagre econômico”, passou a ser o da ocupação da periferia pela mão de obra imigrante, cujos baixos salários não permitiam acesso à moradia formal pela compra da casa própria. Pedreiros e marceneiros cheios de sabedoria (pois é deles a mão de obra que ainda hoje levanta a cidade formal), que construíram sozinhos a periferia com mais perícia do que se poderia imaginar: a precariedade de condições desses assentamentos poderia, não fosse isso, gerar ainda mais tragédias do que as que já assistimos a cada ano, quando chegam as águas do verão. Mas, onde não há poder público para proibir, regulamentar, fiscalizar, ou mesmo adequar o solo à construção de casas, é impossível impedir a ocupação de encostas inseguras, de beiras de córregos sujeitas a enchentes, deixando essa população muito vulnerável às calamidades naturais. Nas últimas décadas, com o esgotamento de áreas urbanizáveis as regiões de maior fragilidade ambiental, a princípio protegidas por lei, tornaram-se alternativas ainda mais distantes de assentamento. Ao alastrar a cidade dessa maneira, a urbanização desigual distancia cada vez mais a população trabalhadora dos centros de emprego. A precariedade do transporte oferecido faz com que não seja incomum perder 5 a 6 horas por dia no trajeto periferia-centro-periferia�. Uma deseconomia incompreensível para a cidade mais importante de um país tão rico, a de permitir-se fazer sua mão de obra ativa perder por dia mais de meia jornada de trabalho, no estressante aperto de ônibus e trens superlotados. Incompreensível para a racionalidade econômica, mas perfeitamente explicável pela lógica incongruente do subdesenvolvimento. O resultado desse quadro é desalentador. Segundo levantamento da Prefeitura de 2004�, cerca de 3,5 milhões de pessoas moravam na informalidade, seja nos loteamentos de periferia, nas favelas, nos cortiços ou mesmo na rua. Se considerarmos ainda o grande contingente de pessoas que vivem em casas precárias, porém regularizadas, é provável que o número de paulistanos que vivem sem dignidade seja bem maior. Porém, a discussão sobre os problemas de São Paulo não se resume a observar apenas a trágica situação dos assentamentos precários como se, em contrapartida, as regiões mais ricas das cidades fossem bem urbanizadas. Esse raciocínio esconde uma visão dicotômica, como se cada lado – o rico e o pobre – existisse por si só, independentemente do outro, quando na verdade ambos interagem e se autoalimentam, numa dinâmica de co-dependência. Muito longe de serem perfeitos, os bairros abastados, mesmo com todos os investimentos que recebem, promovem uma ocupação do território � Simulação pelo site http://www.sptrans.com.br/itinerarios, da SP Trans, mostra, por exemplo, que o trajeto entre a Rua João Felipe, no Jd. São Luiz, ao lado da favela Rio de Janeiro, até a Rua Itambé, em Higienópolis, duraria 2h51mn, sem ser hora de pico e utilizando-se ônibus, mas também o metrô. Da rua Porto do Bezerra (Lajeado, Z. Leste) à Av. Faria Lima (Z. Oeste), o trajeto só de ônibus, duraria, segundo o SP Trans, 2h23mn. Um teste real entre Pinheiros (Z.Oeste) e Jd. Ângela (Z. Sul) em hora de pico (18:00h) e dia de chuva, só de ônibus, levou 3h20. � “Balanço qualitativo de gestão: 2001-2004”, SEHAB/PMSP. Estimava-se em 2004 que moravam em favelas 1,2 milhão de pessoas, nos loteamentos cerca de 1,8 milhão, sendo impreciso o levantamento de moradores de cortiços e de rua, que podem chegar a meio milhão.
45
tão ou mais nociva à cidade do que a da periferia. No exagerado luxo, nos muros eletrificados, na impermeabilização do solo para suas garagens é que se expressa o gosto das elites por um modelo de vida que refuta a cidade e é autodestrutivo. Os muros segmentam o urbano, eliminam a vitalidade das ruas e as matam como espaço de convívio; as áreas verdes públicas são menosprezadas, pois aquelas internas aos condomínios já satisfazem os que podem pagar por elas; o favorecimento ao automóvel – uma das maiores fontes de emissão de poluentes que o homem produziu – é tão abusivo que nas pontes, túneis e viadutos, construídos com dinheiro público, proíbe-se a passagem de ônibus! Mas na Região Metropolitana de São Paulo, as viagens diárias feitas de carro ou táxi representam apenas 31% do total, sendo que 69% são feitas por transporte coletivo ou a pé�! Ainda assim, gastou-se, em 2010, quase R$ 2 bilhões para ampliar a marginal do Rio Tietê, quando seria possível construir com esse montante cerca de 10 km de metrô. O favorecimento às obras viárias para o carro em detrimento do transporte coletivo é incompreensível, se não fosse coerente com a lógica da urbanização desigual. A engenharia urbana brasileira especializouse em construir avenidas de fundo de vale, canalizando e tamponando rios e córregos, que já nem mais se sabe onde estão. A liberalidade dada ao mercado imobiliário leva à desconfiguração dos bairros antigos, vítimas da verticalização sem controle, à impermeabilização do solo, e ao colapso dos sistemas de drenagem e escoamento das águas, como atestam a cada ano, na época das chuvas, os incontáveis alagamentos. Esse urbanismo que destrói a possibilidade de uma cidade mais humana e justa não foi fruto do acaso, nem tampouco é natural às grandes metrópoles, como o senso comum pode levar a crer. Nosso Estado peculiar transformou-se, ao longo dos anos, em uma máquina bem azeitada para promover a urbanização desigual. Não é por falta de leis que a cidade se autodestrói, muito pelo contrário. Mas no Brasil, o que é excesso para uns, é condescendência para outros, e se a violação da propriedade alheia é fortemente combatida quando se trata da ocupação pelos movimentos por moradia de um imóvel vazio há anos (sem cumprir sua função social), tal energia não é demonstrada contra as ocupações, bem menos legítimas, perpetradas pelos setores de alta renda. É sabido que uma ampla faixa de área pública do Parque do Ibirapuera, ao longo da Av. República do Líbano, foi tomada por mansões que até hoje ali estão. Se um dos mais importantes condomínios horizontais da Região Metropolitana tem cerca de 30% de sua área ocupando terras indígenas da União, isso não é realmente um problema. Há para isso uma taxa que legitima a situação e permite o uso. Quando um centro de exposições da cidade é construído em área municipal devoluta, sem o menor constrangimento, nem por isso se vê forças policiais aplicando por lá a reintegração de posse. A cidade de São Paulo é a cidade dos vários pesos e medidas. Seja na prioridade dos investimentos públicos, seja na rigidez variável da aplicação das leis, seja na diferença abismal entre a oferta de moradia para as classes mais ricas e para as mais pobres, seja no imobilismo face às dinâmicas predadoras de urbanização. É também a cidade da indiferença: a exclusão dos mais pobres produz uma lógica perversa em que as classes dominantes cultivam a sensação de que a cidade funciona sozinha, ignorando que é um contingente populacional importante e pobre que a move, mas que tem que desaparecer de vista findo o serviço. Mas São Paulo é sobretudo a cidade da intolerância: o desprezo, a desconsideração para com as condições de vida dos mais pobres e suas demandas são também motivados por políticas e ações bem determinadas, porém veladas. O que nos remete à sensação de uma espécie de apartheid , não exatamente aquele da África do Sul, mas uma versão espacial de uma estrutura estamental, institucionalizada, de segregação dos mais pobres, de intolerância à pobreza . “existe realmente um racismo no Brasil, diferente também do racismo praticado na África do Sul durante o regime do apartheid...porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto” (Munanga, 2008). � Pesquisa Origem-Destino - OD Metrô-SP, 2007.
46
Se há, como indica o professor Kabenguele Munanga, uma espécie de “racismo à brasileira”, existente porém não confesso, é fácil supor que ele se expresse também na configuração do espaço. Os pesquisadores Eduardo Rios e Juliana Riani, da UERJ, mostraram que em São Paulo, no ano 2000, as áreas que concentram as camadas mais ricas e cuja porcentagem de pobres varia (segundo as áreas de ponderação) de 1,6 a 9,6 % da população, são também aquelas onde a porcentagem de negros está sempre abaixo de 13,7% dos habitantes, chegando a 3,8% em algumas áreas. Os bairros periféricos, onde se situa a maioria dos assentamentos precários, com uma população de pobres que vai de 19,8 a 58,6%, são também os bairros dos negros, que representam de 26 a 58% dos habitantes�. Se considerarmos a origem étnica e geográfica, e a segregação e o preconceito para com a população migrante nordestina que fez a cidade desde meados do séc. XX, a correlação entre a segregação étnico-racial e a social fica ainda mais evidentes. Não há muita diferença entre o racismo explícito e as forças que movem a cidade pela lógica da intolerância à pobreza. Clubes da alta sociedade paulistana não aceitam negros entre seus sócios, mesmo que disfarçadamente. Mas também obrigam babás, negras ou nordestinas, mas todas pobres, a usar branco, e as impedem de adentrar seus restaurantes�. Como explica Antonio Sergio Guimarães, “o racismo brasileiro está umbicalmente ligado a uma estrutura estamental, que o naturaliza, e não à estrutura de classes, como se pensava. Na verdade, também as desigualdades de classe se legitimam através da ordem estamental. O combate ao racismo, portanto, começa pelo combate à institucionalização das desigualdades de direitos individuais” (Guimarães, 1999:15).
Essa ordem estamental, para a qual trabalham a favor os mecanismos de dominação do Estado patrimonialista, busca suas raízes na modernização conservadora, cujo traço é o de não ter rompido, em nenhum momento da história, o equilíbrio de forças que garante a hegemonia das elites, como é observado por Magalhães: “ a ordem hierárquica, seja estamental, seja racial, sobre a qual se fundou a sociedade escravocrata no Brasil, não foi inteiramente rompida ” (Guimarães, 1999:14). Sua força ideológica é medida pela forma como é assimilada como natural pelos dominados. Sutil como o é o “racismo à brasileira”, a intolerância à pobreza na construção do urbano, escancara-se, para quem quiser ver, em incontáveis exemplos que, entretanto, passam despercebidos. Parece natural, ou sequer se sabe, que são comumente aprovados, pelas autoridades municipais, empreendimentos imobiliários cujos apartamentos têm quartos de 2x2 metros ou menos, sem janelas ou ventilação, com a designação “depósito” na planta oficial, muito embora todos saibam que servirão de dormitório para as “domésticas” da casa�. Parece natural, ou sequer se questiona, que essas empregadas domésticas sejam frequentemente solicitadas a “dormir no serviço”, separadas dos seus para cuidar dos bebês das famílias ricas. Uma expressão atual dos “escravos domésticos”, símbolo de ascensão social da classe média paulistana e carioca no séc. XIX? A maior revista semanal do país estampou, em 2001�, uma capa com o título “ O cerco da periferia”, sugestiva interpretação da cidade de São Paulo pelo viés da institucionalização das desigualdades de direitos individuais. Nela, uma fotomontagem mostrava no centro ícones como os Edifícios Copan e Itália, casarões em meio a árvores, um parque, em uma ilha colorida cercada por uma massa feia e cinzenta de barracos de periferia. A legenda era enfática: “ Os bairros de classe média estão sendo espremidos por um cinturão de pobreza e criminalidade que cresce seis vezes mais que a região central das � “Proporção de pessoas negras, pobres e indigentes por área de ponderação - São Paulo, 2000”, in RIOS, Eduardo e RIANI, Juliana: “Desigualdades Raciais nas Condições Habitacionais da População Urbana”. Texto para Discussão nº 35, Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2007. � Folha de S. Paulo, 27 de fevereiro de 2011. “Clube obriga babá a usar branco e barra ida a restaurante”, reportagem de Cristina Moreno de Castro. � “Já faz parte da família”, reportagem de Luaura Calvi Anic, Revista Trip nº 158. Consultado em http://revistatrip.uol.com.br/158/empregadas/home.htm. � Revista Veja, Edição 1684, ano 34, nº3, 24 de janeiro de 2001, Editora Abril, São Paulo.
47
metrópoles brasileiras” . A ameaça à “cidade”, entenda-se a cidade das elites, é clara. Ela vem dos pobres que, pela lógica do texto, crescem demais e são também criminosos. As elites consolidam a intolerância, aprofundam a ideologia da segregação e invertem o diagnóstico: não é a minoria abastada que destoa de um cenário generalizado de pobreza. É a pobreza que desfigura e ameaça a cidade moderna.
Se a intolerância à pobreza pode ser medida em declarações explícitas como essa, ela também se revela em ações concretas. No centro da cidade, onde centenas de edifícios são mantidos vazios por seus donos, à espera de alguma valorização�, a conduta para com os pobres, ou com os movimentos que lutam por moradia, é digna do apartheid à brasileira. Se um prédio vazio há anos é ocupado, a reintegração de posse é quase imediata, e feita frequentemente com violência�. Neste caso, a justiça não tarda, mesmo que um edifício vazio, nos termos do Estatuto da Cidade, não cumpra sua função social. Mas no Brasil o direito à propriedade está acima do direito à moradia, o que no Estado patrimonialista, faz sentido. Poucos se indignaram, também, quando foram instalados pinos nos bancos para que os sem-teto não durmam, ou “rampas anti-mendigo” nos vãos dos viadutos��. Em seu “dossiê-denúncia”��, o Fórum Centro Vivo, que agrupa movimentos populares da região, denuncia todo tipo de abusos do poder público contra a população de rua, moradores de cortiços e de ocupações: criminalização dos pobres, perseguição à lideranças populares, despejos violentos, jatos de água fria na madrugada, sprays de pimenta. Ações voltadas à retirada sistemática de qualquer vestígio de pobreza, que muito lembram um Estado de Exceção. Esse Estado de Exceção, em plena vigência do Estado democrático, pode no entanto existir, quando se trata da cidade segregada. Em fevereiro de 2009, a Polícia Militar de São Paulo reagiu a um protesto de moradores, ocupando a favela Paraisópolis, encravada no bairro “nobre” do Morumbi. A causa do protesto ficou mal explicada: uma perseguição a um carro roubado nas vielas da favela resultou em tiroteio e morte do motorista. Aquilo serviu de estopim para um protesto da comunidade. A ocupação policial que se seguiu tornou a favela uma zona de exceção: averiguações nos barracos sem mandato judicial, revistas nos jovens que circulavam, acusações de violência e coação em interrogatórios. Segundo noticiou o jornal O Estado de S. Paulo, “ durante pouco menos de três meses de operação, entre 4 de fevereiro e 26 de abril, 400 policiais em 100 viaturas e um helicóptero, com 20 cavalos e 4 cachorros, aplicaram 51.994 revistas a moradores do bairro”��. Se o Estado cumpre seu papel promovendo a intolerância à pobreza, ele o faz porque há quem o legitime, o que as classes dominantes expressam sempre que possível. Nas audiências públicas para a revisão do Plano Diretor de São Paulo, em 2006, os moradores de classe média do tradicional bairro da Mooca solicitaram abertamente a retirada das Zonas Especiais de Interesse Social�� ali previstas, temerosos pela “desvalorização” que elas criariam decorrente da atração de “pessoas pobres”. Os empreendedores de gigantesco condomínio próximo à ponte Cidade Jardim, que junta apar tamentos de luxo com um centro comercial exclusivo, incomodados com a vista para uma favela, acharam por bem “estimular” a saída dos indesejados vizinhos pagando-lhes R$ 40.000 por família. Logo em frente, do outro lado do rio, é a Prefeitura que se encarregava da ação de “limpeza”, oferecendo o popular “cheque despejo”: R$1.500,00 � No Brasil, chega-se ao cúmulo de termos cerca de 6 milhões de domicílios residenciais vagos, em grande parte nas áreas centrais de nossas metrópoles, número comparável ao déficit habitacional do país, que gira em torno de 5,8 milhões de moradias. IBGE, 2010 e Fundação João Pinheiro, 2008. � Ver a respeito o documentário “Dia de festa”, de Toni Venturi e Pablo Georgieff, Olhar Imaginário, Bélgica/França, 2006. �� Ver, entre outros, Folha de S. Paulo, 23 de setembro de 200 5. “Serra põe rampa antimendigo na Paulista”, reportagem de Afra Balazina. �� Fórum Centro Vivo. “Dossiê-denúncia - violações d os direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas”. Disponível em http://dossie.centrovivo.org/Main/HomePage �� O Estado de S. Paulo, 31 de maio de 2009: “82 dias de medo em Paraisópolis”, reportagem de Bruno Paes Manso. Ver também “Infernópolis”, Revista Caros Amigos, ano XIII, nº145, abril de 2009. �� As ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social, são instrumento previsto no Estatuto da Cidade, e regulamentado no Plano Diretor Municipal. Com algumas variações e especificidades, preveem a destinação obrigatória de Habitações de Interesse Social em novas construções situadas em áreas de assentamentos precários previamente delimitadas.
48
para sair de lá, e R$ 5.000,00 se a família fizesse a “gentileza” de voltar ao seu Estado de origem��. Já na favela Jurubatuba, a solução dos empreendedores de um prédio de luxo foi colocar um “ mega-outdoor ” de forma a escondê-la, e utilizar o Estado para estimular a saída dos moradores por R$1.500��. Em janeiro de 2011, moradores de nove edifícios de alto padrão, indignados com um projeto da prefeitura para a construção de um conjunto habitacional de interesse social na favela do Real Parque, vizinha, entram com uma ação no Ministério Público��, pedindo a suspensão da obra. Reclamam da falta de estudo de impacto ambiental e de possíveis transtornos, além do fato de que para poder alojar todos os moradores da favela, a prefeitura comprou dois terrenos vagos na área, por R$7,5 milhões. Segundo o porta-voz dos moradores dos prédios de luxo, eles deveriam ter sido avisados dessa aquisição e do destino dos terrenos. As informações sobre as obras lhe foram passadas por uma funcionária de sua casa, que mora na favela. Quando o Estado por ventura abandona a lógica do patrimonialismo, ele é repreendido. Os moradores do condomínio argumentam com indignação e aparente sapiência sobre impactos viários e ambientais, questões da alçada do poder público. O discurso escamoteia certa parcialidade: a preocupação com os impactos não se revelou quando foram construídas as nove torres em que habitam. Indigna-os que a prefeitura compre sem consultá-los, pelas leis do mercado, um terreno para ampliar o conjunto habitacional, pois parecem acreditar que a livre iniciativa vale apenas para eles. Outorgam-se o direito de opinar sobre quem pode ou não receber o privilégio de sua vizinhança. Parece-lhes normal que seus empregados vivam numa favela às suas portas. Certos do bem que exercem ao oferecer-lhes um emprego, incomoda-os que, além do mais, possam, enfim, viver dignamente. *
*
*
Mesmo que sejam gritantes os indícios de uma ordem estamental que alimenta a intolerância à pobreza, ainda assim não se pode por causa disso acreditar que não existam caminhos para uma reversão dessa tragédia urbana. Nossa estrutura social, embora carregada em muitos aspectos das heranças do passado, vem passando por mudanças significativas. Ela não é assim tão dicotomizada entre dominantes e dominados, assim como o que chamamos de “classes dominantes” não é um grupo tão monolítico. Desde a redemocratização e o novo papel dado aos municípios, pela Constituição de 1988, na condução da política urbana, desde a ascensão, inclusive em São Paulo em 1989, de governos comprometidos com as demandas populares, o movimento da chamada “reforma urbana” logrou avanços consideráveis. Resultante da mobilização de setores da sociedade civil em prol de cidades mais justas, ele conseguiu ao menos inserir essa problemática na agenda política. Embora tenha sofrido retrocessos em várias ocasiões, e esteja atualmente estagnada, São Paulo foi pioneira, em momentos diferentes, em experimentar políticas habitacionais participativas, ou em tentar aplicar no seu Plano Diretor os chamados instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade. Tais experiências não foram isoladas, e se deram no bojo de mudanças em todos os níveis de governo. A criação do Ministério das Cidades, em 2002, e as ações decorrentes, como a implantação do Conselho das Cidades (com participação dos movimentos populares), a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e a estruturação de uma política de financiamento envolvendo municípios e estados, significaram avanços importantes na luta pela reforma urbana. No que tange às favelas, a ideia da erradicação total e expulsão sistemática, está paulatinamente dando lugar à políticas de urbanização. Esforços para uma regularização fundiária mais ampla ocorreram, e equipamentos de educação e saúde chegaram a ser implantados em número mais significativo, por exemplo em São Paulo, em áreas �� “Kassab quer remover 19 favelas da marginal”. Folha de S. Paulo, 8 de setembro de 2007. �� “Gafisa usa subprefeitura para retirar favela da vizinhança”, reportagem de Marcelo Soares, Folha de S. Paulo, 20 de dezembro de 2007. �� Portal G1, Globo.com, 07/02/2011. “Moradores contestam projeto de urbanização de favela em SP”, disponível em http://g1.globo.com/ sao-paulo/noticia/2011/02/moradores-contestam-projeto-de-urbanizacao-de-favela-em-sp.html
49
pobres de periferia. Assim, o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, cujos instrumentos deveriam dar aos municípios condições de adquirir terras urbanizadas subutilizadas para destiná-las a fins sociais, poderia ser visto como um caminho para a reversão da injustiça urbana no Brasil. Mas, há de se convir que ele foi, até agora, de quase nenhuma efetividade. O desequilíbrio urbano brasileiro continua inalterado, e São Paulo é exemplo disso. Os desastres que assolam a cidade na época das chuvas – e atingem em geral os mais pobres – são prova concreta do descaso para com a urbanização informal nas periferias, que continuam crescendo muito acima da média. Intervenções urbanas muito festejadas, como as Operações Urbanas, preveem um adensamento populacional significativo, porém exclusivamente voltado à demanda de alto padrão, em detrimento dos quase 4 milhões de paulistanos sem moradia adequada. A construção das novas vias da marginal do Tietê significou a retirada sumária de assentamentos que atrapalhavam a obra, como a Favela do Sapo. Embora o Estatuto da Cidade tenha dez anos, um instrumento como o IPTU Progressivo, que permitiria combater os lotes vazios nas áreas centrais, sequer foi regulamentado. Não há, portanto, motivos para comemorações. Em que pese a luta dos movimentos populares e demais grupos organizados da sociedade civil, os avanços alcançados parecem não ser suficientes para gerar as profundas transformações necessárias para mudar a ordem estamental que gera a desigualdade urbana e a cidade da intolerância. Evidentemente, uma das razões desse impasse está na dificuldade de transformação do próprio Estado e, em maior escala, do sistema e das práticas políticas que o legitimizam. Uma máquina aperfeiçoada durante séculos para dificultar qualquer tentativa de transformação da lógica de produção do espaço urbano desigual não facilita a vida, evidentemente, daqueles que participam de gestões com intenções verdadeiramente “públicas”. Têm de enfrentar um aparato de gestão marcado por procedimentos centralizadores, fragmentado pelas disputas internas, abalado pelos projetos políticos pessoais, pela corrupção e pelo clientelismo, distante da população e de suas reivindicações, e ineficaz – quando não ativamente contrário – para promover transformações sociais mais efetivas. Somem-se a isso as demandas emergenciais, as alegadas restrições financeiras (injustificáveis na maior cidade da décima economia mundial), os constrangimentos da “governabilidade” e a reiterada recondução ao poder de gestões identificadas com os setores mais atrasados e clientelistas de nossas elites. Por essas razões, parece de um otimismo ingênuo acreditar que hoje, no Brasil, instrumentos urbanísticos importados do Estado Providência possam ser capazes de alterar a ordem estamental que, mesmo que sutilmente, solidifica cada vez mais as dinâmicas de intolerância à pobreza, constrói uma cidade de muros e alimenta o apartheid urbano. A questão é, em essência, política. E as mudanças desejadas passam por uma profunda transformação individual, que possa levar cada um dos paulistanos a aceitar que há de ocorrer, para se salvar a cidade, uma radical inversão na lógica do seu funcionamento. O mais comum nas mobilizações da sociedade para melhorar uma cidade que colapsa a olhos vistos é que cada grupo proponha e defenda soluções que lhe dizem respeito: os que têm a sorte de morar em uma rua pacata propõem o seu fechamento, os moradores dos bairros de alto padrão querem o bloqueio de avenidas aos domingos para a prática de esportes, os jovens de periferia lutam para a emancipação da cultura hip-hop, e assim por diante. São todas reivindicações justas, e necessárias. Porém, não terão por efeito mudar a cidade, pois não a entendem como uma expressão coletiva, ou seja, de todos. A possibilidade de uma mudança passa por alterar o equilíbrio de forças que rege as prioridades das políticas públicas estruturais: o enfrentamento da questão da terra e daqueles que a retém para fins especulativos; a inversão radical dos investimentos, para atender emergencialmente e de forma maciça as periferias; a provisão de moradia para todos; a construção de um sistema integrado de transporte público, mesmo que isso afete, de imediato, os usuários de carros; a fiscalização da ocupação e transfiguração descontrolada dos bairros pela construção civil de alto padrão. Tudo isso só seria possível se houvesse uma mudança de conduta individual que pudesse contaminar, por assim dizer, toda a sociedade. O que pressupõe interromper, ou combater (para os que não as 50
adotam) as atitudes que, mesmo que veladamente, reproduzem a enraizada cultura da intolerância. Ocorre que a cultura da construção de uma sociedade que rompa com as estruturas do atraso ainda está longe de ser majoritária. E, paradoxalmente, aquilo que se festeja hoje como um ideal de progresso e modernidade, a ascensão a patamares “desenvolvidos” de consumo de massa, é justamente o padrão urbano menos sustentável e mais excludente. A euforia do nosso crescimento é, também, o caminho inexorável para uma tragédia urbana ainda maior. Devemos, urgentemente, questionar e repensar qual o modelo de cidade, e de sociedade, que queremos.
51
A QUESTÃO DA TERRA.
52
Onde o arcaico ainda dá as cartas: notas sobre a questão fundiária no Brasil no início do séc.XXI. Com Ermínia Maricato e Karina Oliveira Leitão Trecho da introdução do livro “O nó da terra” (título provisório) - MARICATO, LEITÃO E FERREIRA (Orgs.), LabHab-FAUUSP, no prelo.
O Brasil vive, passada a primeira década do séc. XXI, um curioso momento. É festejado no cenário internacional como um dos mais promissores países “emergentes”, e se coloca entre as oito maiores economias do mundo. A redemocratização parece ter atingido maturidade, após um governo de grande popularidade capitaneado por um líder oriundo do movimento operário, e tendo uma mulher, ex-guerrilheira, na presidência. Esta onda virtuosa trouxe transformações visíveis, com um relativo aumento da renda per capita, uma leve diminuição da concentração da renda – embora continue sendo das mais altas do mundo –, um aumento do emprego e do salário mínimo (mais de 30% em oito anos) que provocaram aquecimento econômico e corrida ao consumo, facilitada pela internacionalização da economia, iniciada com o avanço do neoliberalismo, já na década de 1990. No discurso oficial, o Brasil estaria enfim superando a matriz do atraso e adentrando o verdadeiro desenvolvimento capitalista. No âmbito das cidades, o aquecimento econômico resultou, evidentemente, numa aceleração da urbanização, que já havia alcançado significativos 80% na virada do século. Hoje, as 15 regiões metropolitanas brasileiras abrigam cerca de 50% da população e respondem por mais de 60% do PIB nacional. Mas além delas, e em decorrência também do crescimento do agronegócio e da exportação de commodities como motor do crescimento econômico, assiste-se também ao desenvolvimento das cidades médias (entre 100 mil e 500 mil habitantes), cuja população pulou, em dez anos, de 36% para 40% do total de habitantes do país. Alguns estudos recentes� mostram que de fato há uma mudança ocorrendo na equação das migrações internas e na conformação das redes urbanas, com um novo papel de protagonismo regional dessas cidades médias, cuja população e PIB crescem mais do que as outras cidades brasileiras, inclusive as metrópoles. Esse fenômeno também se relaciona, ao que tudo indica, com o crescimento substancial da chamada classe C, mais relacionado com uma desconcentração dos salários nas faixas mais baixas e com “um adicional de ocupados na base da pirâmide social” (Pochmann, 2012) do que com uma efetiva distribuição da renda dos estratos mais ricos da sociedade, como se quer crer. Ainda assim, é fato que, segundo a FGV, 29 milhões de pessoas ingressaram nessa faixa entre 2003 e 2009, passando para 94,9 milhões em 2009 (cerca de 50,5% da população brasileira). Embora o avanço econômico tenha sido real em muitos aspectos, e o país tenha de fato logrado um protagonismo inédito no cenário mundial, isto não deve fazer-nos esquecer que ainda somos, pelo menos até agora, uma economia cuja base histórica e estrutural é marcada pela industrialização tardia e dependente, pelo patrimonialismo, pelo subdesenvolvimento, que caracterizam o que os interpretes da formação nacional chamaram de uma “modernização conservadora”. Assim, mesmo se com tal cenário o país tenha de fato logrado – como se felicita o governo vigente – diminuir timidamente a distância entre os mais pobres e os mais ricos, ou ainda retirar cerca de 20 milhões de brasileiros da pobreza absoluta, ainda assim a ideia de que vultosas operações financeiras, grandes projetos internacionais (as olimpíadas, a Copa do Mundo, por exemplo), o crescimento econômico em uma conjuntura internacional desfavorável, a ampliação e modernização do consumo sejam indícios � Dentre os quais se destacam os de Tânia Bacelar, da UFPE, de Maria da Encarnação Espósito, da UNESP, e também uma importante produção dos pesquisadores do IPEA.
53
de um novo patamar de desenvolvimento, embora seja simpática, deve ser vista com cuidado. Como coloca Sampaio Jr., “na realidade, as tendências estruturais responsáveis pela perpetuação da pobreza e da desigualdade social não foram alteradas”�. A modernização conservadora caracteriza justamente sociedades que assistem a saltos de modernidade significativos, sem que com isso, entretanto, sejam rompidas as dinâmicas arcaicas de atraso características dos períodos anteriores. Isso não quer dizer que a atual conjuntura não possa estar mudando, aos poucos, tais estruturas, e eventualmente enraizando transformações estruturais mais profundas na ordem política que perpetua o atraso. Tomara. Porém, não se pode ignorar, no ímpeto da euforia da “modernização”, que a herança do atraso é muito forte, que as instituições e os mecanismos de perpetuação dos poderes hegemônicos ainda parecem inabaláveis. O debate está colocado: não são raras as divergências entre importantes escolas econômicas nacionais sobre as bases do processo de crescimento econômico vivido no Brasil na última década�. A polêmica gira em torno do questionamento sobre a real dimensão do crescimento econômico recente, e em que medida seus impactos se revelam predatórios ou tomam ares de um desenvolvimento enraizado em mudanças de nossas estruturas sociais. Faz-se ainda precoce, porém necessária, a análise sobre os seus desdobramentos em nossas cidades, em nosso território. Mesmo com a ampliação da base salarial e da oferta de empregos, cerca da metade da força de trabalho no país ainda é informal, subempregada ou desempregada, e a massa de pobres ainda está na casa dos 30 milhões de brasileiros, o equivalente a três vezes a população de um país como Portugal, por exemplo. O descaso com os mais pobres é visível na não aplicação das leis, na existência do trabalho escravo�, na criminalização e perseguição aos movimentos populares organizados, no favorecimento absoluto, nos investimentos públicos, aos setores economicamente privilegiados, na manutenção de multidões em situação precária de moradia em periferias distantes. Essa generalização da precariedade habitacional, que assume a forma de favelas, cortiços, loteamentos irregulares, palafitas, tornou-se regra, sendo hoje a forma predominante de moradia nos países mais pobres, como mostrou Mike Davis.� Ou seja, o país ainda é legatário do modelo do “desenvolvimentismo autoritário” (Mantega, 1997), que se deu a partir da década de 1960 na sequência de uma industrialização tardia e dependente, e que se baseou na concentração da renda como geradora de poupança e nos baixos salários como garantia de baixos custos da reprodução da força de trabalho. A marca do subdesenvolvimentismo é, justamente, a modernidade alimentar-se do atraso, e Florestan Fernandes, dentre outros analistas da formação da nossa sociedade, já mostrou como, a cada salto modernizador, se reforça na verdade o pacto de poder e dominação entre os diferentes setores das elites internas e entre estas e os interesses colocados pela ordem econômica global (Fernandes, 1968). Neste processo, acentuam-se, em vez de se dissiparem, os mecanismos de dominação interna, de instrumentalização da máquina estatal para sustentar interesses patrimonialistas, restringem-se a uma pequena parcela dominante não só os instrumentos de poder como os direitos de cidadania, que se supunham universais. Por sobre tal base arcaica, os efeitos da “modernização neoliberal” foram devastadores, tanto no meio rural quanto no urbano. O expansionismo do capitalismo na era financeira, gerado pela reestruturação produtiva, alcançou nosso país a partir da década de 90, e provocaram importantes transformações � SAMPAIO Jr. Fatos e mitos dos governos progressistas no Brasil, in Correio da Cidadania, 24 de outubro de 2012, http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7758:manchete241012&catid=72:imagens-rolantes � Vide polêmica recente entre José Luiz Fiori (UFRJ) e Ricardo Carneiro (Unicamp) sobre a natureza do processo de crescimento da economia nacional. Cf. http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5537 � Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, entre 1995 e 2012, 44.231 trabalhadores foram resgatados em situação análoga a da escravidão – TEM / Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo – DETRAE – “Quadro geral das operações de fiscalização para erradicação do t rabalho escravo - SIT/SRTE”. � DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.
54
econômicas: forte desregulação e enfraquecimento do papel do Estado, privatizações e abertura do mercado interno para o capital internacional, abandono das políticas públicas estruturais em favor de políticas assistencialistas e de remediação, e assim por diante. O que restava, há apenas 30 anos, de territórios ainda virgens da atividade predadora do capital, está hoje em fase final de incorporação. No campo, o agrobusiness estabeleceu sua hegemonia sobrepondose à agricultura das pequenas propriedades, não obstante sejam estas as produtoras da maior parte dos alimentos consumidos no Brasil�. Nas cidades, a desnacionalização da indústria e precarização absoluta das relações trabalhistas, marcam a reiteração da associação entre elites internas e grandes companhias estrangeiras para dar ao país competitividade internacional em detrimento de um desenvolvimento mais sustentável, equilibrado e equitativo. Economistas discutem uma possível tendência à re -primarização da economia nacional e a uma desindustrialização nociva que fragilizaria a nossa pauta exportadora e impõe um sentido regressivo ao tão aclamado progresso econômico atual vivido no país�. No cerne das dinâmicas que representam o atraso, no centro do conflito social, está, ainda que de forma renovada, a questão da terra. A propriedade da terra, elemento central do poder no Brasil desde seus primórdios e mais ainda a partir da Lei de Terras de 1850, ainda define grande parte da tradicional e nefasta relação entre propriedade, poder político e poder econômico, e está no centro dos conflitos em torno dos latifúndios, das reservas indígenas e dos quilombos, do desmatamento da Amazônia. Nas cidades, a dificuldade de acesso à terra regular para habitação é uma das maiores responsáveis pelo explosivo crescimento de favelas e loteamentos ilegais nas periferias. E embora possamos ficar em parte esperançosos com alguns avanços econômicos, o MST nos lembra, apoiando-se em dados do Incra, que em pleno início do século XXI, a concentração da terra e a improdutividade ainda aumentam no Brasil. Se em 2003, 112 mil proprietários detinham 215 milhões de hectares de terra, em 2010 eram 130 mil proprietários concentrando 318 milhões de hectares. Além disso, no mesmo período, o registro de áreas improdutivas cresceu mais do que o das áreas produtivas�. Com o crescimento do agronegócio, que se baseia no latifúndio e na monocultura, produtos primários como celulose, grãos, carne e etanol garantem a inserção estratégica da economia brasileira nos mercados globais, em uma volta aos tempos das “vantagens comparativas”. Como isso, promove-se a concentração da terra e a expulsão de camponeses do meio rural. Repetindo a história, como quando da “libertação” dos escravos, os pobres são impedidos do acesso à terra. As tensões, no meio rural, em decorrência da falta de uma reforma agrária efetiva e do cerceamento do acesso à terra, mantém-se em níveis incompatíveis com um país que pretende estar entrando no “mundo desenvolvido”: Em pleno século XXI, entre 2002 e 2011, foram assassinados 360 camponeses em disputas de terra no Brasil�, crimes que, na maioria, seguem vergonhosamente impunes. E mesmo que esse saldo trágico demonstre a fragilidade dos mais pobres nessa disputa, é impressionante a criminalização dos movimentos sociais organizados de luta pela terra, e em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. O judiciário, a polícia e grande parte da mídia alimentam uma construção ideológica que cerca e protege o conceito de propriedade privada, de tal forma que, numa
� Felizmente, no bojo das transformações e ressaltando o paradoxo político do momento, a agricultura familiar recebeu, em 2006/2007, cerca de 8,4 bilhões de Reais pelo programa PRONAF, o que não afeta o poder incomensurável dado ao agronegócio, mas ao menos evita o desaparecimento definitivo da pequena agricultura. � Cf.Belluzzo, 2007. A controvérsia sobre desindustrialização. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi0804200707.htm e CANO, W. (2012). A desindustrialização no Brasil. In Ver. Economia e Sociedade, Campinas, v21, número especial, p.831-851, dez, 2012. � Por Igor Felippe Santos: “Terras estão mais concentradas e improdutivas no Brasil”, página de conjuntura do MST, 21 de junho de 2011 – acessível em http://www.mst.org.br/node/12025. � Comissão Pastoral da Terra-CPT. “Conflitos no Campo Brasil 2011”, Organização: Antônio Canuto, Cássia Regina da Silva Luz, Isolete Wichinieski – Goiânia: CPT Nacional Brasil, 2012.
55
inversão completa de papéis, aqueles que deveriam se beneficiar da aplicação das leis, e em nome de quem elas são aprovadas, são acusados de se insurgir contra elas. Pois dentro das contradições que caracterizam o “ornitorrinco” brasileiro��, dentro da lógica que permite um avanço nas aparências para garantir a continuidade do atraso, não é por falta de leis que uma ocupação mais democrática da terra não ocorre. O Estatuto da Terra, de 1964, fala que “é dever do poder público: promover e criar condições de acesso do trabalhador rural à propriedade da terra”, associando a reforma agrária a uma “melhor distribuição de terra” e maior “justiça social”. O Estatuto da Cidade, de 2001, é tido como um exemplo para o mundo, e restringe e limita o direito de propriedade, subordinando-o ao “bem coletivo” e ao “interesse social”. A função social da propriedade e o direito à moradia estão previstos na Constituição Federal. Porém, entre a retórica e a prática há uma enorme diferença e a aplicação da lei no Brasil geralmente ocorre de forma inversa ao motivo que a inspirou. Ou seja, reafirma a concentração da propriedade e a exclusão ou despejo dos pobres. Assim, se é difícil para uns, a apropriação da terra é mais fácil para os poderosos, mesmo quando indevida. E nestes casos, a lei às vezes até ajuda. Configurando uma gigantesca fraude que avança há mais de um século pelo território nacional e atualmente tem sua fronteira de expansão na Amazônia, as terras devolutas vão sendo inexoravelmente ocupadas. Não só não há controle, como o caminho é até facilitado por uma legislação que, se ao mesmo tempo é retoricamente progressista, na prática também pode alimentar indústria da legalização da grilagem. Uma recente iniciativa nesse sentido foi a medida provisória 422, de março de 2008, que dispensou a licitação para a compra de terras públicas: quem tem a titulação, ou simplesmente a posse de terras (de até 1500 há de extensão), e quer regularizá-las, deve levar a documentação solicitada ao Incra. Evidentemente, pequenos posseiros e ribeirinhos não têm essa informação nem recursos para providenciar os documentos. Segundo um estudo do professor Ariovaldo Umbelino, da USP, só com base nessa medida provisória 60 milhões de hectares de terras públicas poderão ser privatizados. Em São Paulo, Alphaville, renomado loteamento fechado de luxo, tem parte da sua área ocupando terras da União, assim como há centros de exposições, estádios e outros edifícios privados em áreas devolutas municipais, simplesmente ocupadas, ou às vezes se beneficiando de concessões com prazo de validade de quase um século. Mas foi sem dúvida no episódio de Pinheirinho, em São José dos Campos – SP, em 2011, que o desequilíbrio da balança da justiça em favor dos poderosos ficou evidente: protegeu-se a propriedade de uma gleba abandonada de um milhão de m², massa falida de empresa de um investidor financeiro com passagem na justiça, contra o direito à moradia de 1600 famílias, ali instaladas há oito anos, expulsas pela fúria absurda de dois mil policiais. Uma sucessão de interpretações equivocadas da letra da lei, associada à violência estatal e policial, resultarem numa distorção incrível no que tangia a garantia de permanência da população moradora do assentamento e de seus direitos humanos. Corroborando o entendimento de que não é a pela falta de leis que o acesso à terra não está garantido no país��. E são centenas os casos, nos centros de nossas cidades, de uso violento da força policial para reintegrações de “posse”, contra famílias de sem-teto, ocupantes de prédios vazios. A tal “função social da propriedade”, estabelecida na constituição, está longe de ser realidade��.
�� OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista e O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. �� Recente TFG da aluna Carolina Laiate, FAUUSP 2012, demonstrou os requintes de crueldade contra a população moradora do assentamento Pinheirinho. Cf. Pinheirinho, movimento social, violência estatal e a constituição do espaço urbano em São José dos Campos, TFGFAUUSP, 2012. �� Vale destacar – por seu caráter histórico – a decisão do Juiz Luiz Fernando Camargo de Barros Vidal que indeferiu pedido de reintegração de posse solicitado pela Prefeitura, na gestão de Gilberto Kassab, de um edifício ocupado pelo movimento de moradia, na rua do Boticário, 48, para a instalação de um circo-escola. No despacho do processo 0045635-59.2011.8.26.0053, da 3ª Vara da Fazenda Pública – Fórum Central de São Paulo, o juiz argumenta: “As pessoas que tomaram a posse do imóvel integram um grupo de cidadãos paulistanos desprovidos de habitação, aos quais a municipalidade recusa a oferta de atendimento habitacional [...].Tais elementos permitem considerar provisoriamente que os requeridos alegam privação do direito social de habitação garantido pelo art. 6º da Constituição Federal [...].Como já afirmado , a municipalidade declarou nos autos que nada oferecerá aos requeridos para a satisfação do mínimo existencial inerente ao direito de habitação. Isto implica que a reintegração dar-se-á com desconsideração do direito social fundamental [...].Que a municipalidade poderia atender com mais vigor o direito constitucional à moradia não há dúvida, pois concede incentivos fiscais para construir
56
Já foi suficientemente estudado como, na sociedade brasileira, a disputa pelo controle da terra sempre foi elemento central das relações econômicas e políticas e das dinâmicas de poder, desde a colonização e os sistema de concessão de sesmarias. Nesse longo processo histórico, invariavelmente, o acesso à terra, seja rural ou urbana, foi cuidadosamente controlado pelas elites econômicas e políticas. José de Souza Martins�� mostrou como, na transição do trabalho escravo para o trabalho livre e com a aprovação da Lei de Terras, em 1850, a terra tomou o lugar do escravo na hierarquia de poder. Escravos, colonos, trabalhadores “livres” e terra desempenham, na interpretação de Martins, devedora das análises pioneiras de Marx, o papel de mercadoria que cria as bases para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas no país. Mas, até então, a terra não merecia tratamento jurídico mais elaborado e nem maior controle sobre a propriedade, tal a sua abundância. Valia sobretudo a capacidade de cada proprietário, pelo número de escravos que tinha, de explorá-la. O sistema de sesmarias tinha a particularidade de que as terras voltavam à propriedade da Coroa, como terras devolutas, caso as exigências de produtividade não fossem respeitadas. Ele foi mantido até a independência, em 1822, e nas décadas seguintes, até a aprovação da Lei de Terras, que o latifúndio brasileiro se consolida, justamente pela indefinição do Estado e a consequente ocupação ampla e indiscriminada das terras, expulsando os pequenos posseiros. A pressão dos grandes proprietários contribui para a demora na provação da Lei, e impediu, exceto em algumas regiões do Sul, a colonização combinada à pequena propriedade��. A Lei de Terras oficializou então a propriedade fundiária no Brasil, f azendo com que a terra tivesse de ser adquirida, em moldes muito favoráveis à consolidação dos grandes latifúndios, dificultando a pequena propriedade rural e mais ainda o acesso à terra aos ex-escravos e imigrantes, que continuavam assim a constituir uma importante massa de mão de obra barata, essencial para a inserção competitiva das agroexportações brasileiras no comércio capitalista mundial. No âmbito urbano, a Lei de Terras teve impacto na ordenação do solo, já que ela diferenciou, pela primeira vez, o que era solo público e solo privado. A partir de então, inicia-se um longo processo de práticas que, na lógica do patrimonialismo, permitiram às elites o controle absoluto da propriedade da terra e a apropriação particular de terras públicas. Durante mais de 150 anos, um incrível número de iniciativas, decretos, comissões, portarias, cadastros e leis complementares se sucederam e se repetiram sem jamais serem aplicados. Como evidenciam diversas teses acadêmicas, a confusão no sistema de registro de terras é notável: cercas se movem, ampliando largamente ou superpondo propriedades. A ocupação irregular torna-se prática comum, graças à confusão nas delimitações de propriedades e proprietários, à superposição de datas, à confusão entre cadastros municipais, estaduais, federais e paroquiais, à reiterada prática da fraude nos registros, à imprecisão na demarcação das terras públicas, aos cadastros e mapeamentos incompletos. Até hoje a situação perdura, não só no meio rural, como também nas grandes metrópoles. Se na Amazônia Legal, segundo o INCRA, apenas 4% do território é regularizado – o que alimenta toda sorte de invasões e fraudes – na cidade de São Paulo é comum a existência de vários registros sobre o mesmo pedaço de terra (configurando alguns andares de títulos sobre a mesma gleba), obrigando o poder público a pagar diversas indenizações pelo mesmo objeto. Nos parques estaduais paulistas, como nos mostra Joaquim de Britto da Costa Neto neste livro, precatórios sobre terras desapropriadas podem resultar, findo o processo judicial, em “superindenizações” com valores dez vezes acima do preço corrente de mercado. Até hoje, os noticiários são corriqueiramente ocupados por notícias sobre conflitos em torno de terras griladas em grandes fazendas pelo país, em função da demarcação das reservas indígenas, do loteamento e fechamento de grandes glebas para empreendimentos imobiliários, e assim por diante. estádio de futebol, o faz para a realização de programas de “revitalização” urbana, e destina recursos até para a construção de escolas de circo como no caso dos autos [...]. �� MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. 3. ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1986. �� MARICATO, Ermínia. Habitação e Cidade. São Paulo: Atual, 1997.
57
Se a questão da terra é atual e presente no meio rural, ela é também central para a compreensão da tragédia urbana que o país vive. Em primeiro lugar, porque a explosão urbana tem parte das suas causas na imigração rural-urbana, decorrente dos desequilíbrios regionais, da falta de reforma agrária, das políticas de expulsão dos pequenos agricultores que perduraram ao longo de todo o século XX e da falta de oportunidades e empregos no meio rural.Tocada do campo, e excluída do acesso à terra urbanizada ou a moradias formais, essa população se amontoa desde então em favelas sem redes formais de água, sem esgotos, sem transporte, sem emprego, sem escolas e hospitais. São pessoas que vivem num cenário dantesco, em um cenário que marca não só o Brasil, mas o conjunto das grandes metrópoles dos países marcados pelo subdesenvolvimento, na América Latina, na África ou na Ásia. Em segundo lugar, porque esse quadro também resulta do modelo econômico do “desenvolvimentismo autoritário”�� que sustentou a industrialização e a urbanização a partir da década de 1960. Recebendo nas cidades esse contingente populacional em busca de trabalho, o modelo baseou-se na concentração da renda como geradora de poupança e nos baixos salários como garantia de baixos custos da reprodução da força de trabalho��, promovendo uma matriz de urbanização marcada pela desigualdade social e o não atendimento à demanda habitacional por parte da população de baixa renda, que não encontrava terra para morar. Nossa urbanização ocorreu marcada pela diferenciação econômica dos espaços urbanos e a segregação socioespacial. O mercado residencial legal no Brasil, por sua vez, atendia até meados dos anos 2000 somente cerca de 30% da população, e deixou historicamente de fora até mesmo parte da classe média. O aquecimento econômico dos anos 2000 e o programa Minha Casa Minha Vida alteraram um pouco o quadro, promovendo um mercado de classe média na construção civil. Porém, a falta de terra, mais uma vez, faz com que esteja ocorrendo uma produção habitacional maciça, de grande impacto urbanístico e ambiental, em glebas sempre mais distantes e urbanizadas com pouco controle. Pessoas dessas faixas de renda, legalmente empregadas, se não optarem por essa nova solução, não raras vezes são vistas morando ilegalmente em favelas de São Paulo e do Rio. Quanto aos mais pobres, sujeitos de políticas habitacionais nunca suficientes para cobrir o enorme déficit, eles nunca tiveram acesso ao mercado, e sem qualquer alternativa legal, ocupam terras para morar. Vivemos um paradoxo, quando finalmente o Estado brasileiro retomou o investimento em habitação, depois de 29 anos, um intenso processo de especulação fundiária e imobiliária promoveu a elevação do preço da terra e dos imóveis considerada a “mais alta do mundo”. Entre janeiro de 2008 e setembro de 2012 o preço dos imóveis subiu 184,9% no Rio de Janeiro e 151,3% em São Paulo, à semelhança de tantas outras cidades brasileiras (FIPE ZAP). E tudo especialmente porque a terra se manteve sem controle estatal apesar das leis e dos planos que objetivavam o contrário. No mais dos casos as Câmaras municipais e prefeituras flexibilizaram a legislação, ou apoiaram iniciativas ilegais para favorecer empreendimentos privados. Uma simbiose entre Governos, parlamentos e c apitais de incorporação, de financiamento e de construção promoveu um boom imobiliário que tomou as cidades de assalto. Se nos EUA o mote da bolha imobiliária foi a especulação financeira, cremos que no Brasil foi a histórica especulação fundiária (patrimonialista). O “nó da terra” continua como trava para a superação do que podemos chamar de subdesenvolvimento urbano. É preciso lembrar no entanto que a questão urbana/fundiária é de competência constitucional dos municípios, ou estadual quando se trata de região metropolitana. Mas nenhuma instância de governo tocou nas propostas da Reforma Urbana, sequer em discurso. A centralidade da terra urbana para a justiça social desapareceu. Aparentemente a política urbana é resultado da soma de obras descomprometidas com o processo de planejamento. Os planos cumpriram o papel do discurso mas não orientaram os �� MANTEGA, Guido. “Teoria da Dependência revisitada: um balanço crítico”, in EAESP/FGV/NPP - Núcleo de Pesquisas e Publicações, Relatório de Pesquisa Nº 27/1997. �� MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1997.
58
investimentos. Outros fatores como os interesses do mercado imobiliário, o interesse de empreiteiras, a prioridade às obras viárias ou de grande visibilidade, deram o rumo para aplicação dos recursos. O que mais se vê atualmente são planos sem obras e obras sem planos. A autoconstrução em loteamentos periféricos aos grandes centros econômicos é, de meados do séc. XX em diante, a forma comum de acesso à moradia pela população de baixa renda, buscando responder, na limitada medida do possível, não só à falta de teto para morar, mas, evidentemente, também à ausência de terra urbanizada. Na década de 80, quando o investimento em habitação social foi quase nulo, a taxa de crescimento da população que mora em favelas triplicou em relação à população urbana em seu conjunto. Nos anos 90, a taxa duplicou. Perto de 12% da população de São Paulo e Curitiba moram em favelas. Em Belo Horizonte e Porto Alegre, até 20%. No Rio de Janeiro, 25%. Em Salvador, Recife, Fortaleza, São Luiz e Belém, mais de 30% das pessoas vivem em favelas. Somando-se as outras formas de moradias precárias e ilegais, como os loteamentos irregulares, os cortiços ou mesmo os moradores de rua, encontramos aproximadamente 40% da população das grandes cidades vivendo na informalidade, muitas vezes em condições de insegurança permanente. Se até o início dos anos 1980, as grandes cidades brasileiras ainda dispunham de certa disponibilidade de terras urbanizáveis, estas foram rareando. Isso resultou na ocupação cada vez mais recorrente das áreas ambientalmente frágeis, onde o mercado imobiliário não pode atuar, exacerbando o conflito entre urbanização e preservação ambiental. Áreas de proteção de mananciais, mangues, dunas, beira de córregos, várzeas, encostas íngremes e espaços cobertos por matas nativas são as que “sobram” para a maioria da população. Ao sul da metrópole paulista, por exemplo, em apenas duas bacias dos reservatórios Billings e Guarapiranga, moram mais de 1,5 milhão de pessoas. Nenhuma grande cidade brasileira, nem mesmo a região metropolitana de Curitiba, escapa a esse destino de exclusão, segregação e predação ambiental. Mas a ilegalidade da propriedade da terra urbana não diz respeito só aos pobres. Os loteamentos fechados que se multiplicam nos arredores das grandes cidades são ilegais, já que o parcelamento da terra nua é regido pela lei federal 6766, de 1979, e não pela que rege os condomínios, a lei 4591, de 1964. Moram em loteamentos fechados juízes, promotores do Ministério Público, autoridades de todos os níveis de governo, que usufruem privadamente de áreas verdes públicas e também vias de trânsito que são fechadas intramuros. Para viabilizar a privatização do patrimônio público, na forma de um produto irresistível ao mercado de alta renda, há casos de prefeituras e câmaras municipais que não titubearam em se mancomunar para aprovar leis locais que contrariam a lei federal. Ou seja, aprova-se uma legislação ilegal, bem de acordo com a tradição nacional de aplicação da lei de acordo com as circunstâncias e o interesse dos donos do poder. Além do caso dos condomínios, as recentes tragédias decorrentes das fortes chuvas tropicais nas serras do Rio de Janeiro mostraram a situação irregular das mansões em áreas íngremes, cenário que se repete ao longo de todo nosso litoral. Seja as casas de veraneio das elites paulistana e carioca, seja os grandes resorts e hotéis de luxo, os casos de ocupação ilegal das orlas da união é tão recorrente que levou a Secretaria do Patrimônio da União, do Governo Federal, a criar um programa especial, o Projeto Orla, para tentar fiscalizar e inibir os abusos. Há muito tempo que o Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAU USP se debruça sobre a questão da terra, em pesquisas diversas, na produção de dissertações, teses e artigos acadêmicos ou na imprensa. Essa produção significativa, mas de certa forma dispersa, alimentava o desejo de uma publicação que pudesse juntar, em um só volume, parte desse material, não só diretamente produzido no LabHab, mas também por pesquisadores associados de outras instituições, para alavancar de forma mais coesa uma reflexão sobre o tema fundiário, que permanece irresoluto e, por isso, na ordem do dia no país.
59
Notas sobre a visão marxista da produção do espaço urbano e a questão da “renda da terra” � Texto produzido para a disciplina AUP-5703 – Desenho do Espaço Urbano, do Programa de Pós-Graduação da FAUUSP, 2012.
Renda ou preço? Terra ou localização? A questão da “renda da terra” ainda é um tema que circula no meio acadêmico brasileiro ligado ao urbano, especialmente em cursos de Arquitetura e Urbanismo e de Geografia. Se foi tema central de debates calorosos na década de 80, hoje entretanto ele é menos frequente. Porém, sua força se deve à influência do pensamento urbano marxista europeu no meio acadêmico daquela época, quando as reflexões trazidas por intelectuais europeus de esquerda tinham especial impacto entre aqueles que, aqui, se esforçavam para manter viva a reflexão de esquerda em pleno regime militar. Porém, nos dias de hoje, talvez face à rapidez e complexidade com que as questões urbanas evoluíram desde então, talvez em razão das especificidades das questões brasileiras, talvez em razão da intensa teorização que o tema da renda da terra envolve (afastando-o um pouco da compreensão da realidade concreta), o debate em torno da renda da terra se arrefeceu. Ainda assim, associa-se frequentemente o “pensamento marxista” do urbano a uma aceitação automática da existência de uma “renda da terra” nas dinâmicas de produção do espaço na cidade capitalista, quando na verdade esse tema esteve e ainda está longe de ter sido plenamente resolvido, do ponto de vista teórico. Parece-nos, e é o que tentaremos tratar neste texto, que mais importante do que voltar á questão específica da “renda da terra”, é entender que a cidade, sob um enfoque marxista, é palco dos conflitos decorrentes da reprodução capitalista, e essa é uma matriz explicativa importante para se entender as cidades brasileiras de hoje. O que se pode chamar de uma abordagem marxista da questão urbana, apoiada nas escolas francesa e anglo-saxônica dos anos 70 (Lojkine, Petreceille, Alquier, Lefebvre, Ball, Harvey), vale essencialmente no que se refere à compreensão do espaço construído como espaço socialmente produzido, fruto do trabalho social. Topalov define bem a questão, apontando as mudanças na compreensão do urbano trazidas pelos pensadores marxistas franceses da década de 70 (grifos meus): “Em resumo, a cidade não é mais definida como um dado da natureza, um conjunto de mecanismos de mercado, um objeto de planejamento ou uma cultura: é o produto da estrutura social em sua totalidade, ao mesmo tempo que o resultado e o objeto das contradições entre classes. No seio desta estrutura, portanto, nenhum elemento pode ser considerado como um dado. Quer se trate do ambiente construído, das políticas públicas ou das práticas sociais, não existe mais variável independente, tudo deve ser analisado simultaneamente como parte de um mesmo processo, a urbanização capitalista. Não se pode estudar os usos que se faz da cidade sem estudar também sua
produção. Não se pode considerar separadamente os agentes econômicos privados e a ação pública. Não se pode isolar a técnica da política, nem a política dos movimentros sociais. Esta abordagem implica a abolição das fronteiras entre disciplinas acadêmicas, e a nova pesquisa urbana vai efetivamente mobilizar sociólogos e economistas, juristas e arquitetos” (Topalov, 1986).
Ou seja, o espaço urbano é espaço de conflito, essencialmente o conflito de classes, e todas as relações econômicas e políticas que nele se estabelecem (sobre ou em função dele) são resultantes dessa tensão. Harvey coloca a questão sob o mesmo prisma:
� Agradeço a gentileza do Prof. Dr. Csaba Deák pela revisão precisa que fez deste texto
60
“Podemos concluir que os conflitos no local de vida são meros reflexos de tensões subjacentes entre capital e trabalho. Os apropriadores de renda e a facção da construção civil mediam as formas de conflito, eles se erguem entre o capital e o trabalho e por isso escondem de nossas vistas a verdadeira fonte de tensão. A aparência superficial dos conflitos em torno do ambiente construído – as lutas contra o proprietário da terra ou contra a renovação urbana – disfarça uma essência oculta que é, nada mais nada menos, que a luta entre o capital e o trabalho” (Harvey, 2006)
É claro que a afirmação de Harvey incorpora o conceito da renda da terra, mas salientamos que neste caso ele não é essencial para entender a natureza do conflito. Também na especificidade do processo sócio-histórico brasileiro, a natureza do “capital” e do “trabalho” sofre variações dada as diferenças em relação ao contexto de surgimento do capitalismo industrial, no meio do qual tais categorias foram pensadas. Ainda assim, estas duas citações resumem a proposição fundamental sobre a qual se apoiam as análises marxistas da cidade, a partir da qual estabelecem outras afirmações importantes: • •
O espaço urbano é produto do trabalho humano, e nele se denem localizações (propriedades). A localização (expressa sobre uma base física de terra) tem valor, que é resultante do trabalho social
investido na sua produção. Seu preço se estabelece pela competição no mercado, em função do seu valor de uso, dado pela sua posição no espaço urbano. Antes de prosseguir, vale um comentário, a respeito de uma questão importante: por que a terra (e não especificamente a renda da terra, diga-e) é tão central nas análises urbanas marxistas? Uma primeira resposta pode ser atribuída à “necessidade” ressentida pelos pensadores marxistas do urbano em encontrar um “vínculo” entre seu objeto de estudo e a teoria marxista mais geral. Assim como ocorre em qualquer área do conhecimento que não seja diretamente uma das muitas em que Marx se aprofundou, pensadores que se utilizam do método marxista, baseado na compreensão sócio histórica das dinâmicas da vida em sociedade, na consideração das relações econômicas e políticas decorrentes do conflito entre capital e trabalho, e entre as classes sociais, irão naturalmente procurar entender como, em sua área específica, tais categorias de análise podem ser utilizadas. No caso dos urbanistas e dos geógrafos, o objeto de estudo é o espaço, que tem sido confundido à “terra”. A “transposição” do pensamento marxista para quem trabalha sobre a questão do espaço e da terra busca, portanto, tentar entender como as categorias propostas por Marx encontram ressonância nas dinâmicas atuais de ocupação e organização do território. Porém, vale dizer que Mar x nunca chegou a analisar propriamente o espaço urbano, tendo tratado a questão da terra sobretudo em torno do tema da “renda da terra agrícola”, proposta anteriormente pelos economistas clássicos. Por isso, esse tema é recorrente, sendo uma espécie de “elo” entre nosso campo de estudo e o pensamento marxista (embora defendamos aqui que não é um elo necessário para legitimar o pensamento marxista sobre o urbano). A segunda resposta é sem dúvida mais importante. Para abordá-la, podemos partir de outra pergunta. Por que a moradia é uma mercadoria de tão dificilmente “mercadorizável”, ou seja, por que ela é tão difícil de ser adquirida pela maioria da população, ainda mais a de renda mais baixa? Por que não se adquire uma casa com a mesma facilidade do que se pode comprar qualquer outra mercadoria, até mesmo mais caras como, por exemplo, um carro? Por que, em momentos de grande crescimento econômico, há um aumento considerável no consumo de automóveis novos, porém o acesso à moradia continua travado e seu déficit tão fenomenal? Uma parte da resposta está é claro na análise específica do processo produtivo desse bem, no fato de que ele não pode ser produzido industrialmente (estamos falando da moradia, não da terra) com a mesma facilidade do que um carro. Não é um bem de consumo durável móvel, que se compra e se leva para qualquer lugar. Ele é imóvel. Por quê? Esta é a outra par te da resposta: justamente porque ele está atrelado à terra. A “mercadoria moradia”(ou outras edificações) tem de fato uma aspecto único, peculiar. Ela está atrelada à disponibilidade de uma base físico-espacial, de uma parcela de terra, de um espaço do território, para se concretizar (muito embora, no futuro, possamos imaginar que essa base possa ser 61
outra – a água, o espaço, ou o que for, como ela já o é, aliás, para muitas formas da produção capitalista). Mas então, a mercadoria moradia (ou outros imóveis de uso comercial) está atrelada a algo que, em si, não é produzido, mas “está lá”, dado pela natureza, mesmo que esse pedaço de terra só ganhe utilidade urbana se localizado em um espaço urbano socialmente produzido. Pois veremos adiante que o que de fato importa na comercialização da moradia e, neste caso, também da sua base territorial, é essencialmente esse “espaço urbano”, este sim fruto do trabalho humano investido na sua produção. E o espaço urbano é, assim como a terra, não têm as mesas facilidades ou mecanismos de comercialização do que qualquer outra mercadoria. Como coloca Deák, “ a produção do espaço urbano é governada por leis diferentes daquelas da produção de mercadorias, devido ao fato de o mesmo não poder ser produzido enquanto valor de uso individualizado ”. Veremos mais adiante o desdobramento mais preciso dessa afirmação, mas por hora vale notar a diferenciação à qual o espaço urbano está sujeito em relação ao que se chamaria de “mercado de cosumo usual” e que faz com que, como dissemos , a “terra” seja objeto de tantas investigações por parte dos urbanistas marxistas. Na teoria econômica marxista, toda mercadoria produzida é fruto do trabalho, porém a terra não o sendo, sendo uma dádiva da natureza, como se pode compreender economicamente o processo produtivo do que está sobre ela? Tal questão era premente em uma época em que a sociedade inglesa se dividia entre proprietários de terra diretamente descendentes da divisão feudal do território, capitalistas agrícolas interessados em explorá-la, e trabalhadores empregados para isso. A resposta dada pelos economistas clássicos, e desenvolvida por Marx, era: separando uma coisa da outra. Por um lado temos aquilo que se produz graças a instalações sobre a terra, ou inicialmente (no cenário da terra agrícola estudada pelos economistas do séc. XIX), a partir da terra. Por outro lado, temos a terra em si, que é circunscrita, no sistema capitalista, pela propriedade. A primeira atividade é produzida, é uma atividade capitalista, que gera lucro. Porém, o produtor capitalista dessa atividade não é obrigatoriamente o dono da terra, do suporte para sua produção, especialmente na realidade econômica analisada por Marx e os clássicos: como dito, a terra, naquele contexto da Inglaterra na transição da sociedade feudal para a capitalista, era geralmente propriedade do Senhor de Terras. Por isso, para poder produzir, o capitalista teria que pagar ao proprietário uma taxa pelo uso da terra, taxa esta que seria deduzida do seu lucro. Valeria a pena para o produtor usar a terra enquanto o que ele pudesse ganhar na sua produção superasse não só os custos com mão de obra, mas também o custo desse aluguel. Por isso, na agricultura, onde a introdução de tecnologia era limitada (mais do que na indústria), a mais-valia decorrente da exploração da mão de obra teria de ser naturalmente alta (ver mais adiante o conceito de Composição Orgânica do Capital), para compensar a taxa de uso da terra e ainda dar lucro ao produtor. O dono da terra, naquela situação, se apropriaria dessa taxa, isto é de uma quantia resultante do simples fato de ele ser dono da terra, sem que tenha tido que despender qualquer montante nem produzir qualquer esforço. A essa quantia, portanto separada da produção sobre a terra em si, apropriada pelo dono da terra, deu-se o nome de renda da terra. Nesse cenário, ter uma terra mais ou menos fértil, ou mais ou menos próxima do mercado consumidor, traria vantagens ao capitalista, que poderia produzir mais ou a menor custo, aumentando seu lucro. O dono da terra, também, tenderia a aumentar a taxa pedida pelo seu uso, à medida que a sua terra se mostrasse mais fértil, ou melhor localizada. A esta diferença entre uma ou outra qualidade da terra, Marx chamou de renda diferencial (retomaremos os conceitos com mais detalhes à frente), que teria papel determinante no preço médio do produto agrícola, já que custos mais altos da terra menos fértil teriam de ser cobertos pelos ganhos maiores da terra mais fértil. Por que afirmamos aqui que essa discussão, entretanto, não é essencial para a compreensão marxista da produção do espaço urbano? Porque nos parece, assim como para alguns autores que citaremos abaixo (Deák, Villaça, Fisette), que a terra urbana da economia contemporânea é muito mais complexa do que o cenário sobre o qual se baseou Marx, assim como a composição das classes sociais que nas se divide 62
mais 3 categorias de então, e que por isso não é possível “transferir” para o cenário atual o conceito de renda da terra agrícola proposto por Marx, muito embora tenha sido esse o exercício feito pelos urbanistas marxistas da escola francesa, que tiveram grande influência sobre o pensamento urbano no Brasil. Vale notar, inclusive, que a rigor o que se poderia chamar de uma Teoria Marxista da Terra não existe enquanto tal, já que não há referencias a ela no livro primeiro de O Capital , ou em outros escritos genuinamente atribuídos a Marx. Segundo Deák, se originalmente, em 1862-64, ainda havia no projeto de O Capital um livro destinado à questão da renda: de planejados seis, os três primeiros livros seriam I. Capital, II. Salário e III. Renda. Porém, os dois primeiros se fundiram em um, O Capital, publicado em 1867, e o terceiro, sobre a Renda, desapareceu (o Capital III sendo editado por Engels a partir de anotações de Marx, 12 anos após a sua morte, em 1895). Em síntese, o que se afirma aqui é que as relações econômicas, políticas e sociais – em uma compreensão marxista dessas dinâmicas – foram e são mais importantes para se entender a luta pela terra e sua escassez – inclusive para permitir a generalização da mercadoria moradia – do que propriamente o componente “renda”. Mesmo no caso brasileiro, houve épocas em que a propriedade da terra nem era o mais fundamental para se entender as dinâmicas de dominação e os conflitos sociais, estes sim aspectos típicos de uma abordagem marxista. Antes de 1850, importavam, mais do que a propriedade da terra em si, a posse dos meios para sua produção, os escravos, esta sim indicadora de poder. Foi só depois de 1850, com a Lei de Terras, que à posse de escravos – com fim marcado – substitui-se, como mostrou Martins, a propriedade da terra, condição para o assalariamento, dando-se início ao desenvolvimento capitalista no Brasil. Porém, um capitalismo bem particular, que foi o brasileiro, marcado pelo patrimonialismo e pelo subdesenvolvimentismo. A compreensão histórica das dinâmicas políticas e macroeconômicas dessa forma peculiar de capitalismo é mais importante para entender como iria se formando o que Ermínia Maricato chamou precisamente de o “nó” da terra – hoje talvez o principal entrave à democratização de seu uso no Brasil – , do que uma tentativa de entender como, nessa específica relação de produção escravocrata, em uma economia periférica do capitalismo mercantil, se materializaria a “renda” proposta por Marx na realidade pós-feudal inglesa. Importa, portanto, o conjunto de relações políticas e econômicas do mercado capitalista que permitem ou não a posse da terra, em determinado contexto social e histórico. Na época de Mar x e dos economistas clássicos, o aspecto central para dar “capacidade de suporte” à terra era a sua fertilidade, e também a sua localização (mais ou menos perto do mercado de consumo). Hoje em dia, sabemos que o que dá suporte à produção é o que podemos chamar no sentido largo de “urbanização”, que vários autores aqui citados chamarão melhor de “localização”, e que corresponde não à fertilidade, mas ao conjunto de processos produtivos, sociais e privados, que estruturam o urbano e dão sentido não só à terra, mas a qualquer outro suporte físico de uma localização, como parte desse urbano. É a disputa pela terra enquanto mercadoria urbanizada (ou mais precisamente estruturada), que passa a ser antes de tudo “localização”, ou em outras palavras, a sua retenção nas mãos de poucos, dentro do mercado capitalista, mas com as vicissitudes do capitalismo brasileiro, que determina a questão da terra no Brasil. Quem a tem – e esse acesso, na sociedade patrimonialista, é mediado pelo Estado de maneira bastante peculiar – terá imediatamente as vantagens de poder explorá-la, seja no meio urbano ou rural, como qualquer mercadoria capitalista (seja alugando, seja produzindo, seja especulando, etc.). Por isso, talvez não seja tão importante saber se essas vantagens – que se materializam em capital em algum momento do processo de produção – são decorrentes do que tecnicamente se possa chamar de “renda”, tanto quanto é importante entender que elas só são possíveis pelas condições históricas, políticas e econômicas com que se estrutura o poder, os processos de dominação e a luta social, e consequentemente o acesso à propriedade da terra no Brasil. 63
Ou seja, dizer que a questão específica da “renda “renda da terra” não é uma categoria útil para a análise urbana atual, não significa questionar ou diminuir a afirmação de que a propriedade da terra, ou melhor, da localização, esta sim, é seguramente o aspecto pelo qual se explica a desigualdade urbana e a segregação sócio-espacial que caracterizam as cidades brasileiras. Trata-se, em suma, de questionar a lógica capitalista como um todo. Nos dias de hoje, mais do que tentar encontrar onde esta estaria escamoteada nas dinâmicas fundiárias urbanas, a discussão proposta por vários urbanistas passou a girar sobretudo em torno do conceito, muito mais útil, da “localização”, que abaixo detalharemos segundo as visões de Villaça e Deák. Na formação dos preços da terra urbana, na restrição de seu acesso (por causa do preço) ou na sua escassez, o que é determinante é o conjunto de trabalho social dispendido para tornar a terra, logo o espaço, um espaço “urbanizado”, que por causa dessa urbanização será mais ou menos apto a servir de base à produção capitalista (ou a ser trocado como mercadoria). Essa “urbanidade” da terra só existe por ela estar localizada em um espaço socialmente produzido, e porque a ela é possível ter acesso, também graças à infraestrutura. Continuemos a citação de Deák, acima, na qual explicava que o espaço urbano não pode ter um valor de uso individualizado, e é justamente por isso que o conceito de “renda da terra”, terra”, este sim individualizado para cada propriedade, perde seu sentido. O espaço é produzido (e não a terra) socialmente, e as localizações individuais que decorrem dessa produção serão colocadas no mercado, tendo seu preço estabelecido pela competição capitalista. Como explica Deák, uma mercadoria terá o valor do trabalho dispendido na sua produção validado no seu consumo, “através da venda da mercadoria como valor de uso”. Em outras palavras, o total de trabalho investido individualmente na produção daquele bem, se materializa na sua venda. Se não vender, esse bem torna-se inútil, e o valor de seu trabalho inválido. Na produção do espaço urbano, na criação de localizações, entretanto, aponta ainda Deák, “o valor do trabalho dispendido não pode ser validado dessa forma, porque espaço não é valor de uso”, como já dissemos acima. “O espaço enquanto tal não pode ser utilizado por um processo de produção ou consumo individual”, senão apenas em suas porções definidas como propriedades, constituindo localizações. Essas possuem então um valor de uso; seu preço ou valor no entanto, não decorrerá de algum custo de produção ou trabalho incorporado (já q nem foram produzidas individualmente) senão diretamente através da competição por elas que por sua vez dependerá da diferenciação do espaço urbano com um todo (maior diferenciação, preços mais altos, etc.). Vejamos mais uma vez a colocação de Deák: Deák : “O valor de uso do espaço é representado pelas localizações nele contidas – mas, por sua vez, uma localização, sendo uma posição no espaço, não pode ser produzida enquanto tal. Qualquer intervenção numa particular porção do espaço resulta numa transformação do espaço como um todo e, em última instância, de todas as localizações nele contidas. O que é produzido é o espaço, enquanto localizações – valores de uso – resultam coletivamente. Isso significa que a produção do espaço não pode ser governada pela lei do valor imposta num mercado e, portanto, tem de ser executada coletivamente, ao nível social”.
A ideia da renda da terra, que repousa na figura da propriedade individual de uma porção do território, não resiste a essa conceituação de constante transformação do espaço “como um todo”. Há um preço da terra em si, mas que é antes de tudo, como aponta Deák, um “pagamento pela localização”, localização”, que é um valor de uso, é comercializada “enquanto mercadoria, dotada de valor de troca”. Esse pagamento não corresponde a um eventual “sobrelucro “sobrelucro”” como como seria o da renda da terra, corresponde ao valor do trabalho dispendido coletivamente na sua reprodução, e cujo montante, como o de qualquer mercadoria, é função exclusiva da competição que se cria por sua aquisição, regulada pelas regras estabelecidas pelo Estado (taxas, leis, etc.). 64
Se na lógica de quem considera a “renda da terra” não aparece a ideia de “preço” da terra ou “preço imobiliário” imobiliár io”,, mas de “preço “preço de produção prod ução das mercador me rcadorias ias produzidas produz idas sobre a terra” te rra”,, o que impediria impedir ia de se falar em um “mercado” “mercado” imobiliário ou fundiário, consideramos a terra – ou melhor, a localização – como uma mercadoria, com um preço. Até mesmo urbanistas marxistas, como por exemplo Lojkine, abaixo citado em Villaça (2012), acabam por reconhecer que o “valor” da terra urbana é dado por uma categoria mais geral e coletiva, a localização, que embora possa resultar de dinâmicas típicas da tensão entre capital e trabalho e da luta de classes, nem por isso são tão simplesmente identificáveis com a renda da terra em si. Para Lojkine, adquire crescente importância [pressupõe-se no capitalismo contemporâneo da segunda metade do séc. XX], um “terceiro” “terceiro” valor valor de uso da terra [lembrando que o autor trabalha com as categorias marxistas de renda e valor], decorrente da “socialização das condições gerais de produção, i.e. aquilo que chamamos capacidade aglomerativa “socialização de combinar socialmente meios de produção e meios de reprodução de uma formação social’. Lojkine considerava que esse valor de uso reside na ‘. .. propriedade que o próprio espaço urbano tem de Villaça, 2012). fazer com que os diferentes elementos da cidade se relacionem entre si’ ( (apud Villaça,
Esse valor sendo dado pelo trabalho social investido se traduz pelo fato de que, como coloca ainda Villaça, semelhantemente ao apontado acima por Deák, “ a ‘capacidade’ ou ‘propriedade’ de que nos fala Lojkine, não é um atributo dado pela natureza, como as propriedades físicas ou químicas dos corpos. Essa ‘propriedade’ ou ‘capacidade’ ‘capacidade’ é, evidentemente, produto de trabalho humano, da força de trabalho coletiva, n ão é exclusiva do espaço urbano, mas de qualquer território. social ” (Villaça, 2012: XX), e não Esse valor, decorrente da “capacidade aglomerativa de combinar socialmente os meios de produção”, que é mais ampla do que a simples infraestrutura urbana, se assemelha então ao que Villaça chama de valor de localização, ou simplesmente a localização. Observe-se que falamos de valor de localização, que tem uma conotação ampla que abarca a ideia da produção social e não individualizada – o espaço –, e não de “valor de UMA localização”. Deák atenta para esse aparente detalhe: “‘Valor de uma localização’, entretanto, não tem significado, pois que, como vimos, nenhuma porção do espaço tem qualquer conteúdo específico de trabalho abstrato: todo trabalho efetuado em qualquer parte do espaço redefine (transforma) o espaço urbano como um todo. Assim –e na verdade, exatamente como no caso das mercadorias –, o preço de uma localização não provém de seu suposto valor, senão, simplesmente, de sua condição de instrumento de organização da produção sob as condições correntes de competição entre capitais”.
O preço da terra, mesmo se decorre da “ condição de instrumento de organização da produção sob as condições correntes de competição entre capitais ” (Deák), um conceito que pode se aproximar do da “capacidade aglomerativa aglomerativa de combinar socialmente os meios de produção”, (Lojkine), pode ter ainda assim um componente que deriva de um aspecto individual, único, diretamente vinculado à sua unicidade espacial dentro mesmo do espaço urbano (único ou quase, pois lotes vizinhos na cidade terão muitas vezes condições físicas quase idênticas, e aspectos “únicos”muito relativos). Esse preço especificamente, para Marx, não decorre de uma renda, mas do que ele chamou de “monopólio” (as vezes usado – para aumentar a confusão – como uma forma diferente de renda, a renda-monopólio): uma vista única para o mar, ou uma nascente, uma cachoeira, que podem eventualmente gerar um ganho excedente, decorrente dessa situação única, e independente – ou quase – da localização. A ideia de que possa ser uma forma de renda decorre do fato de que esse ganho excedente não resulta tão diretamente do trabalho social investido (embora isso seja relativo, já que um terreno de frente para o Pão de Açúcar ainda será um terreno NA cidade do Rio de Janeiro, com ótima localização), mas dá-se sem esforço do proprietário, pela sua única condição natural. Porém, há de se convir que trata-se de situações pontuais, pouco expressivas em termos agregados e por isso mesmo insuficiente para ter caráter explicativo de uma possível renda da terra urbana. 65
Assim, no lugar do conceito de renda ,viu-se que é mais pertinente tratar do conceito de “localização” “localização”, ou mesmo, como propõe Villaça, de “terra-localização” “terra-localização”, embora esse termo híbrido pareça não conseguir se separar definitivamente da base física da terra, mas que – e é o que importa – não vem da renda e nem gera renda, e sim o que o autor denomina de “juro e amortização” sobre um capital investido. Assim como mostrou Deák ao falar do conceito de espaço, Villaça afirma que o elemento central para gerar a localização da terra é a acessibilidade à essa terra, ou seja, a capacidade dela ser acessível na cidade. Deàk, que trabalha com o conceito de localização, define claramente seu vínculo com uma lógica marxista de compreensão do espaço: “ Os conceitos de localização e espaço derivam da prática social de produção e reprodução no contexto da divisão social do trabalho ”. O autor trata do espaço urbano decididamente como espaço econômico (um método marxista de compreensão das relações sociais e sua subordinação às relações econômicas), o que por si só explica que o espaço urbano seja fruto do trabalho, seja produzido pelas relações econômicas de produção e reprodução. “as relações que constituem o espaço econômico são caminhos, estradas, �os, cabos, tubulações, antenas, satélites etc, pelos quais objetos materiais e pessoas podem ser transportados de localização a localização. São estruturas físicas – em seu conjunto uma infraestrutura – e devem ser construídas para existirem. Somente assim a distância entre duas localizações (em comprimento comprimento,, em tempo, em custo monetário), a estrutura do espaço e em última análise, o próprio espaço, se materializa. O espaço econômico é um produto do trabalho”.
Ainda citando Deák, temos uma definição bastante precisa e definitiva, para nós, do que seria a localização. Sem consultar a opinião dos autores, arriscamos dizer que os conceitos de Villaça e Deák são bastante complementares: “Uma localização é constituída de uma estrutura física (edífício) apoiada geralmente direto sobre o solo. As propriedades distintivas de diferentes localizações individuais derivam de suas respectivas posições no espaço urbano. Espaço urbano é a totalidade de (localizações interligadas por) uma infraestrutura – vias, redes, serviços etc. – construída e mantida por trabalho social, que atende aos requisitos da economia e que torna a localização ‘útil’ (isto é, dotado de valor de uso). Na medida em que a regulação da economia capitalista, e com ela, a organização espacial da produção (e reprodução) é exercida pelo mercado, a localização comanda um preço, ele próprio estabelecido no mesmo mercado. Surge portanto um pagamento pela localização, porque localização é um valor de uso, e porque é comercializada enquanto mercadoria, dotada de valor de troca. O pagamento pela localização entra no preço de produção de mercadorias mercadorias,, junto com o pagamento pelas demais condições de produção: trabalho e meios de produção. O preço de mercado dos produtos, que regula as quantidades relativas das mercadorias a serem produzidas, regula assim, ao mesmo tempo, também a distribuição espacial da produção no espaço urbano”. (Deák, 1985, cap.4)
No nosso entender, o conceito de localização é tão mais preciso para explicar a produção do espaço urbano que, muitas vezes, autores que acham estar falando de renda da terra estão, sem perceber, referindo-se à localização (por exemplo, Singer, Singer, 1986). Por ora, nos atemos a destacar que é a localização o elemento-chave para a compreensão do espaço urbano sob o capitalismo.
O que chamam de “mais-valia “mais-valia urbana”? Uma vez que discutimos a maior propriedade do conceito de “localização”, do que o da “renda da terra”, para discutir a produção do espaço urbano, há ainda algumas observações a fazer sobre algo que comumente se lê na bibliografia urbanística marxista, o conceito de “mais-valia “mais-valia urbana”, urbana”, evidentemente também “importado” “importado” do conceito marxista mar xista da mais-valia. Vejamos Vejamos de onde ele surge.
66
Se uma terra tem um preço, determinado pela competição por localizações, decorrentes da atividade econômica que as produz socialmente, fato é que participam desse processo de produção, de forma dialética, Estado e mercado e, por extensão, capitais públicos e capitais privados. Deák explica que em toda produção social, e portanto também na produção do espaço, desempenha papel central a relação dialética entre os polos antagônicos da produção capitalista: a produção de mercadorias, cuja generalização é o motor do próprio capitalismo, regulada pelo mercado, e a produção direta de valores de uso, por meio da intervenção do Estado, provendo para a primeira condições de infraestrutura de toda ordem: física, institucional e jurídica. De fato, a intervenção estatal – é condição para a existência da localização. Deák destaca essa questão: “Uma vez que a mercadorização e, com ela, a regulação pelo mercado, não podem se generalizar pelo todo da economia capitalista, tais condições de competição são circunscritas pela intervenção estatal. Assim como o fluxo de capital entre firmas e indústrias é regulado em maior ou menor grau, ...através de taxas, subsídios, intervenção direta, regulação afetando concentração e centralização de capital, controle alfandegário transnacional e assim por diante, da mesma forma é a localização espacial enquadrada por leis de zoneamento, tributos imobiliários, serviços públicos etc., de forma que o preço da localização exerce sua função de organização apenas dentro dos confins da ‘liberdade’ remanescente do mercado”.
No que se pode concluir, ainda segundo Deák, que “o planejamento – isto é, intervenção estatal – não vem para aumentar a ‘eficiência’ (vale dizer, a taxa de acumulação) que, ‘de outro modo’, isto é, sem planejamento, seria mais baixa, mas por pura necessidade imposta pelos limites à mercadorização da economia. Em outras palavras, a intervenção estatal não torna a produção de mercadorias mais ‘eficiente’ – ela a torna possível ”. Na produção capitalista, qualquer produto no mercado tem variações de preço que dependem, em parte, do mercado e das leis de oferta e demanda, mas também da regulação estatal: isenção de impostos, incentivos, reserva de mercado, etc. O exemplo da mercadoria automóvel é interessante, pois se aproxima do caso do lote urbano: um carro, sem a estrutura urbana por onde possa circular, perde seu valor de uso, e terá pouca possibilidade de venda. Essa estrutura urbana, suas regras, sua base física, são essencialmente resultantes da intervenção e regulação estatais, que afetam portanto diretamente a taxa de acumulação de quem produz o carro. A imposição de um forte pedágio urbano poderia, por exemplo, afetar totalmente o mercado do automóvel em determinada cidade ou região. Isso vale para qualquer mercadoria: ações de empresas podem valorizar-se ou desvalorizar-se em razão de impostos, taxações financeiras ou qualquer outro tipo de regulação estatal. A produção de localizações não foge à essa regra. O Estado, e os investimentos públicos, são portanto parte essencial na compreensão da dinâmica urbana. A regulação estatal, os investimentos em infraestrutura, afetarão os preços das localizações. Como no caso do carro, em que ela pode beneficiar o lucro individual do fabricante, ou do dono do automóvel, na cidade poderá gerar a valorização ou desvalorização individual de um imóvel. Ocorre uma apropriação individual da valorização gerada pelo investimento social (assim como pode ocorrer uma perda de capital devido à desvalorização). Entretanto, como no meio urbano a base e condição para a produção e reprodução do espaço, surgida da ação estatal, é mais evidente, pois fisicamente visível (ruas, pontes, infraestruturas...), os ganhos obtidos com o aumento de preço de uma localização decorrente de investimentos públicos são mais facilmente assemelhados a um ganho “sem trabalho” por parte do proprietário, já que, como visto, seu valor, ou mesmo sua utilidade, se difunde por todo o trabalho social investido na criação d totalidade do espaço urbano. Neste caso, que a rigor não difere de outros processos de valorização em outros setores da produção capitalista que sempre dependerão da formação de valores de uso a partir da intervenção estatal 67
reguladora, os urbanistas marxistas costumam ver um “trabalho social não pago”, que permite um ganho individual significativo ao proprietário da terra, a partir de um trabalho para o qual ele não contribuiu individualmente de forma direta. No conceito marxista, a mais-valia é o ganho obtido sobre o “trabalho não pago” ao trabalhador (diferença entre o preço de venda da mercadoria e seu custo de produção) --na verdade, em condições de competição, o lucro-- que, aqui no contexto urbano, é assemelhado por esses autores ao ganho obtido sobre o trabalho não-pago pelo trabalho social investido, gerando então o que chamaram de “mais valia urbana”. A fragilidade do conceito está no fato de que, como já dito anteriormente, o espaço enquanto tal “não pode ser utilizado por um processo de produção ou consumo individual” (Deák) e, portanto, qualquer ganho ou perda de dinheiro no preço de uma localização sempre será resultante da existência (ou da falta) de investimentos públicos e da regulação do Estado, que é condição necessária à própria reprodução. No estágio intensivo de acumulação, racionalizam-se os processos produtivos e eleva-se o nível de reprodução da força de trabalho, o que significa que aumentam os salários – pelo lado do mercado – mas também a regulação estatal, ou seja, os investimentos em infraestrutura, serviços, etc. Ainda assim, não é equivocada a ideia de que ao regular a produção e reprodução do espaço urbano, o Estado irá estabelecer mecanismos que afetam o aumento (ou a diminuição) de preço e as possibilidades de lucro (ou de perda) decorrentes dos investimentos que faz, pois isso é a lógica mesma dos processos de produção e reprodução das mercadorias no sistema capitalista. Em todo mercado, a regulação serve também para compensar desequilíbrios decorrentes das próprias dinâmicas desse mercado: aumentam-se taxas, diminuem-se barreiras, liberam-se subsídios, e assim por diante. No âmbito urbano, é para “reequilibrar” a eventual heterogeneidade dos investimentos em infraestrutura (que são, por sua natureza, caros e de difícil implementação), que buscou-se no contexto dos Estados-Providência e das políticas keynesianas, dar ao Estado “instrumentos” capazes de fazer essa regulação urbanística. São os instrumentos urbanísticos, cuja função é redistribuir, por meio de taxas e compensações, esses desequilíbrios de infraestrutura. Por exemplo, uma casa em área nobre e valorizada se São Paulo paga um IPTU muito maior do que um terreno na periferia pobre (que as vezes é até isento), no sentido de “compensar” a parte da valorização decorrente de investimentos públicos da qual a área nobre se beneficia. No linguajar marxista, trata-se de recuperar a tal da (pouco precisa conceitualmente ) “maisvalia urbana”. A imprecisão da ideia está no fato de que, como visto acima, os instrumentos urbanísticos não servem exatamente para “recuperar” o investimento público “apropriado” individualmente (o sentido da “maisvalia” urbana), em um certo maniqueísmo que coloca o bem (o investimento público) contra o mal (o mercado e o proprietário da terra). Tal questionamento até poderia ser feito, mas tratar-se-ia então de repensar todo o sistema capitalista (o que é legítimo). Mas, dentro desse sistema, a cidade capitalista depende do Estado, como vimos, para dar condições à criação de valores de uso das localizações. Tratase, portanto, tão somente dos instrumentos de regulação do Estado em um mercado capitalista, que podem evidentemente ser mais ou menos liberais ou rígidos em relação à ação do mercado, conforme a equação de forças política, a conjuntura econômica, o estágio de desenvolvimento vigente, etc. Obviamente, a questão aqui é a de sempre: em um país que sequer teve um Estado Providência nos moldes dos países industrializados, que como mostra Florestan Fernandes nunca efetivou a revolução burguesa, e que resulta em uma sociedade patrimonialista com um Estado das elites, a não-regulação, ou mesmo a não-intervenção estatal que crie condições de funcionamento de um mercado de produção e reprodução do espaço é a regra, e por isso as tensões e discrepâncias desse desequilíbrio tornam-se mais claras e evidentes: absoluta heterogeneidade na implantação de infraestrutura, imiscuição dos interesses privados nos públicos sem nenhum controle, desregulação do mercado e liberalidade para a ação do mercado. Por isso, a análise da “mais-valia” urbana parece muito explicativa, embora seja, como vimos, bastante imprecisa conceitualmente.
68
É comum as pessoas, na leitura crítica do papel exercido pelo proprietário de um lote ou de um imóvel, ao compra-lo por um preço e revende-lo depois por outro superior, com lucro, associarem esse proprietário ao senhor de terras de Marx e esse ganho à “renda da terra”. A renda da terra hoje seria claramente identificada na figura do “especulador” imobiliário, que ganha uma “renda” somente por possuir um terreno, sem nada fazer nele. Evidentemente, esse raciocínio tende a esquecer que um proprietário pode também perder dinheiro caso seu terreno se desvalorize, por falta de demanda, mas também por falta de investimentos públicos. A figura do especulador, comum a todos os mercados capitalistas, está associada, no caso urbano, à ação mais agressiva de um investidor em apostar na eventual valorização de uma localização. Como, no caso do Brasil, o mercado fundiário/imobiliário é especialmente livre e isento de regulações por parte do Estado, o que é típico do patrimonialismo, e como no Brasil a oferta de infraestrutura é especialmente heterogênea, é normal que a ação do especulador, que estoca lotes ou imóveis na espera de algum ganho de preço, seja também especialmente impactante e afete, ou mesmo entrave, a eventual regulação do Estado. Um proprietário que comprar e revender um terreno estará tão somente fazendo uma transação comercial dentro do sistema capitalista. Comprando e vendendo um produto, e lucrando com sua eventual valorização (ou perdendo com sua desvalorização). Esse lucro provém não da terra em si, mas da localização que lhe deu valor, e que por diversas razões, foi alterada. Assim como ocorreria com a compra e venda de um carro usado, as dinâmicas de mercado, da oferta e da demanda, o desejo pelo bem, e sobretudo suas qualidades de localização, que se alteram e se renovam permanentemente na cidade, lhe darão maiores ou menos possibilidades de lucro. Dentre as operações de compra e venda de qualquer produto, existem aquelas de caráter especulativo, em que o capitalista aposta na valorização de seu bem. Em relação à terra urbana e à localização, a especulação também existe, e a rigor é parte coerente da lógica de funcionamento do mercado (o que não significa dizer que seja justa, pois o sistema capitalista, em essência e como mostrou Marx, não é justo). Pode-se arriscar mais ou menos, ao apostar no aumento do valor de localização de um determinada região, que afetará o preço de um terreno. É claro que esse valor de localização está, como vimos, atrelado ao Estado e aos investimentos públicos – mas não só. Por isso, a especulação imobiliária ou fundiária parecem perversas ao apostarem nas variações do trabalho social para garantir ganhos individuais, como já mostrado acima. Mas isso é parte da lógica – ela mesma injusta – da produção capitalista do espaço urbano. O que ocorre é que à s vezes temos investidores que especulam em cima de informações privilegiadas – e portanto ilegais – sobre possíveis investimentos públicos futuros, antecipando-se à ação do Estado e lucrando ainda mais com isso. Trata-se no caso, não de renda nem algo parecido, mas simplesmente de ilegalidade. Assim como o é, em comparação, o ato de se valer, na bolsa de valores, de informações privilegiadas do governo para lucrar com títulos públicos. Porém, no Brasil, em que o Estado é peculiar, em que impera o patrimonialismo na cultura social e política, e em que valem os privilégios dados aos proprietários em geral, as condições para tais condutas são muito mais frequentes, e a ilegalidade na ação especulativa torna-se muitas vezes regra. O exemplo do centro das cidades é interessante para ilustrar isso tudo: um terreno ali situado é mais caro, dizem, porque no centro existe mais infraestrutura. Ou seja, a localização é melhor, e o preço maior. Entretanto, com o deslocamento das elites para novos centros, fenômeno apontado por Villaça (2001), e o abandono do centro maios antigo, tal infraestrutura torna-se obsoleta, a demanda de maior renda cai, e os imóveis tornam-se vazios e desvalorizados. Em economias mais reguladas, como em NY, os preços de compra e venda são publicados regularmente em revistas de amplo acesso, assim como as perspectivas de investimentos e renovações são divulgadas, permitindo uma regulação constante dos preços, seja pelo mercado quanto pelo Estado, que irá intervir com instrumentos urbanísticos para relativizar variações mais acentuadas. 69
No Brasil, os deslocamentos para novos centros são muitas vezes acer tados entre mercado e Estado, em um contexto de grande heterogeneidade de infraestrutura, que é implantada em á reas privilegiadas, de forma pouco transparente e muitas vezes com o conhecimento apenas dos que comandam o mercado e têm acesso ao poder, gerando ganhos extraordinários. Isso não é novo, e ocorreu, por exemplo, quando da abertura dos bulevares Haussmanianos em Paris no séc. XIX, em que proprietários e empreendedores próximos do poder lucravam muito ao saber antecipadamente das obras a ser realizadas. Não se pode aqui falar em “mais-valia urbana”, mas sim em dinâmicas de dominação que vão muito além das regras do mercado e da legalidade. Ao mesmo tempo, nas antigas áreas mais centrais, a desvalorização gerada pela queda da demanda, que poderia por exemplo permitir a aquisição de terras para fins de políticas públicas de moradia, é travada pela ação dos proprietários que, sem ação reguladora do Estado (por exemplo por meio de ZEIS ou de IPTU progressivo), retém imóveis para fins especulativos. A questão então não é a ação especulativa em si, mas a permissividade do Estado na (falta de) regulação e no abandono de infraestrutura, que fazem perder valor de uso, embora o mercado insista em manter terrenos vazios com preços fictícios, sem serem incomodados por ações reguladoras do Estado e à espera que o mesmo venha, por ventura ou por acertos escusos, investir novamente na área. Temos portanto que, no Brasil, as interfaces entre Estado e mercado ocorrem contaminadas por outras dinâmicas típicas do Estado e das sociedades no subdesenvolvimento, que merecem atenção, pois exacerbam fenômenos desiguais do capitalismo, aqui completamente desregulados, e portando especialmente favoráveis os setores dominantes do capital. A questão fundiária e o “nó da terra”, apontado por Maricato, estão vinculados muito mais à propriedade da terra e às dinâmicas de regulação do Estado patrimonialista – e da maneira como, na história, deixa de fazer ou ao contrário cria entraves e regramentos exagerados (como por exemplo a burocracia cartorial), para favorecer os proprietários fundiários –, do que à natureza da terra em si e sua suposta capacidade em gerar “renda”. Para concluir, podemos dizer que as categorias principais do método marxista, a saber, a abordagem dialética, a compreensão da cidade pela lógica do materialismo histórico�, o entendimento de que o espaço urbano é produzido e é resultado e palco das disputas entre o capital e o trabalho, são os aspectos centrais de uma “abordagem marxista do espaço urbano”, capazes, estes sim, de fornecer um ferramental analítico das cidades no sistema capitalista atual. No Brasil, tais categorias devem ser cotejadas com aquelas sobre as peculiaridades da formação nacional e do subdesenvolvimento. Não nos parece útil, apenas para “legitimar” o marxismo da abordagem, “ter que encontrar” a qualquer custo uma relação entre a terra urbana das cidades contemporâneas com a terra agrícola estudada por Marx, e ainda menos tentar achar na situação atual equivalências ao que Marx definiu como renda da terra. Vale notar que ao criticar a relevância do conceito de “renda da terra”, em uma análise que detalharemos um pouco mais no anexo deste texto, não se pretende minimizar a importância dada, por muitos analistas da questão territorial e urbana, à “propriedade privada da terra” na imposição das injustiças sócio-espaciais da cidade capitalista e, mais ainda, das cidades nas economias marcadas pelo subdesenvolvimento. O papel do Estado e do mercado – com todas suas vicissitudes, que não são poucas no contexto do subdesenvolvimento e das sociedades patrimonialistas e de elite – é determinante na democratização ou não do acesso às localizações (que se costuma chamar, na bibliografia, de “terra urbana”) e da organização produtiva mais igualitária do território, pois para isso a distribuição fundiária é essencial (vide a importância da reforma agrária que o Brasil nunca teve). Porém não porque haja na sua natureza um componente da “renda” que, teoricamente na visão marxista, influenciaria na formação de seu valor e na composição orgânica do “capital fundiário”, digamos assim, mas porque, politicamente, a propriedade fundiária (ou seja, a propriedade de localizações) sempre foi a garantia � embora Marx não tenha nunca usado o termo – trata da compreensão das formas políticas, culturais, determinadas pelas relações econômicas, com que se produzem as dinâmicas da vida em sociedade, a partir da leitura história da luta entre as classes sociais, da exploração dos dominantes sobre os dominados
70
de dominação territorial e econômica. Assim como a propriedade em geral é elemento intrínseco de poder no sistema capitalista em geral. Na transição para uma economia industrial urbana, as estruturas de dominação e de concentração de poder garantidas pela concentração da propriedade privada da terra no Brasil mantiveram-se no meio urbano, e com o surgimento do “espaço urbano” como tal na nossa industrialização, foram essenciais para a continuidade da dominação das elites (que, sabe-se, deslocaram-se do rural ao urbano) nas cidades. *
*
*
Anexo: Detalhando as críticas ao conceito de renda da terra urbana. Diante das observações da primeira parte deste texto, a questão da renda da terra propriamente dita, analisada por Marx, perde importância para se definir o que seja uma abordagem marxista do espaço construído. Tal fato é admitido por vários autores, dentre os quais o próprio Villaça: “ O tema da renda da XXI são muito diferentes das dos séculos XVIII e XIX. (...) Em segundo lugar, porque uma faceta da renda da terra realmente envelheceu, ou seja, aquela ligada à propriedade da terra e à produção rural ”. Para Villaça, as categorias dos Senhores de Terra da Inglaterra pós-feudal e a realidade agrícola sobre a qual se baseia Marx não são mais válidas para a economia atual. Se mostramos acima que Deák apresenta o conceito de localização e explica as dinâmicas de produção do espaço urbano por outra lógica do que a da renda, é porque, partindo de um estudo pormenorizado da teoria ricardiana, ele sugere uma periodização do capitalismo bem diferente da periodização marxista, baseada nos estágios de desenvolvimento�, em que é relevante a passagem do estágio extensivo, em que a reprodução do capital e a expansão da forma-mercadoria se processam pelo avanço generalizado, indiscriminado e predatório sobre o território, os bens da natureza e as pessoas, para o intensivo. Neste, o esgotamento do estágio extensivo anterior obrigou o sistema a racionalizarse, seja pelo avanço tecnológico, ou pelo aproveitamento mais racional dos bens da natureza e da força de trabalho, ou ainda, por exemplo, pela racionalização da política (o Estado) e das políticas púbicas. Essa transição ocorre na longa passagem do feudalismo para o capitalismo, passando pelo período bonapartista (em que o poder econômico do capital ainda demandava o uso da força política para legitimar-se) e estendendo-se até os arranjos econômicos pós Segunda Guerra, que abriram caminho para os “trinta gloriosos”. Como aponta Deák, o estágio de desenvolvimento no qual Marx se situa ainda é o extensivo, enquanto que o atual, no qual surge e se consolida o “urbano” dentro do capitalismo, como objeto econômico e social, é intensivo. Para Deàk: “ A construção ‘renda da terra urbana’ é portanto uma não-categoria, pois ‘renda’ e ‘urbano’ referem-se a estágios distintos do capitalismo” . Mas Deák questiona a aplicação do conceito da renda da terra à realidade urbana atual não só por esta defasagem do contexto histórico do capitalismo, mas porque o próprio conceito de renda, na formulação original de Ricardo (sobre a qual Marx se baseou), tem segundo o autor pressupostos frágeis. Deák, primeiramente, observa as características históricas específicas da Europa nos séculos XVII e XVIII, em especial da realidade inglesa surgida após a revolução e a restauração da monarquia em 1660. Sua crítica à Teoria da Renda, bastante original, parte da crítica aos pressupostos que a sustentam. Os dois primeiros são aqueles que já apontamos neste texto: o primeiro, que a renda é um pagamento por uma dádiva da natureza, argumento que perde sentido no contexto da terra urbana do capitalismo atual, em que se paga pela localização (socialmente produzida). Deák vai além, apontando para o fato que mesmo na Inglaterra do séc. XVII, o pagamento pela terra era decorrente não do fato desta ser recurso natural, ma sim dela ser propriedade privada, “o que é certamente um produto social e não um � Deák se aproxima neste ponto de análise dos regulacionistas franceses, notadamente Aglietta, que utiliza os termos estágios extensivointensivo de desenvolvimento, sem tanto conceituá-los. Mas, como lembra Deák, destaca-se por, assim como ele, fugir da periodização clássica marxista: primitivo/concorrencial; monopolista; monopolista-do-Estado/ imperialista
71
dom da natureza” (Deák, 1992:30). O segundo, que a renda é uma transferência da classe dos capitalistas à dos proprietários de terra, o que também se refere a uma sociedade de três classes (além dessas, a dos trabalhadores), chamada de “Fórmula da Trindade”, e que não tem sentido no capitalismo do séc. XX. Deák, entretanto, propõe-se a questionar também os pressupostos auxiliares, de caráter mais econômico, da Teoria da Renda ricardiana. O do equilíbrio, no qual ocorrem as condições para a renda da terra, e que o próprio Marx havia criticado por seu caráter a-histórico. Como mostra Deák, o equilíbrio anula a ideia do processo de transformação, característico da própria dialética: “ Através do pressuposto do equilíbrio, tudo o que se oferece à análise é o nada, deixando o terreno livre para a ideologia ” (Deak, 1992:30). Deák também se atém aos demais pressupostos, o da fluidez per feita de capitais, que decorre do equilíbrio e também anula a ideia da transformação do processo produtivo; e enfim o pressuposto da renda diferencial, que se baseia na ideia de um produto único (o grão). Como mostra o autor, citando outros (Fine) que observaram a mesma coisa, a teorização ricardiana foi feita em um cenário “perfeito”, a partir de um conceito abstrato de “valor-trabalho”, desconsiderando a realidade econômica de produção de produtos diversos (o gado, por exemplo) sobre a terra: “ com produtos diferentes produzidos sobre terras de qualidades diferentes, cada qual com seu próprio preço de mercado, a renda diferencial torna-se inconcebível, independentemente de haver ou não pagamento pelo direito de uso da terra ” (Deák, 1992:29). Para terminar, Deák aponta a impossibilidade do pressuposto de que a pior terra pague uma renda (lembrando que o preço do grão é determinado pelo preço de produção na pior terra, que é compensado pelos preços alcançados nas melhores), sob pena de inviabilizar a própria teoria do valor de Ricardo, pois não haveria de ser possível que “ o preço da mercadoria, expressão do valor da mesma ” (pela teoria do valor), inclua “um componente que não se origine do trabalho”. Embora por aqui as afirmações de Deák possam ter parecido ousadas (a saber, questionar a Teoria da Renda de Ricardo em sua origem), porém outros autores apontam para aspectos que podem reforçar essa ideia. O próprio David Harvey, por exemplo, aponta que, em primeiro lugar, a teoria da renda marxista é bastante hermética e confusa: “Não obstante seus escritos sobre o tema, todos eles postumamente publicados, são em sua maioria pensamentos tentativos que pôs por escrito no processo de descobrimento. Como tais, no detalhe parecem contraditórios. As formulações contidas em seu livro anterior, ‘Teorias sobre a mais-valia’, diferem consideravelmente dos poucos trechos bem polidos de ‘O Capital’, enquanto que sua análise nesta última obra, mesmo que extensa e no detalhe penetrante, está marcada por certas dificuldades que não cedem facilmente ao seu toque mágico habitual. O resultado é muita confusão e uma enorme e contínua controvérsia entre as poucas almas valorosas que trataram de encontrar seu caminho por meio do campo minado de seus escritos sobre o tema” (Harvey, 1982). Harvey, mais adiante, avança em uma explicação para o aspecto confuso da questão da renda em Marx que se aproxima da de Deák, exatamente no ponto da contradição entre a renda e a própria Teoria do Valor. Para Harvey, Marx se deu conta que “a explicação cabal da renda tem que tornar compatível o pago feito ostensivamente pela terra com uma teoria do valor focada no trabalho”. Segue Harvey (grifos meus): “Marx pôde ver com bastante clareza que Ricardo tinha se equivocado ao buscar respostas a essa pergunta , mas não pôde encontrar a forma de superar essa mesma dificuldade. Marx tinha muita dificuldade em admitir os feitos da distribuição no coração da sua teoria, e estava muito inclinado a tratar a renda como uma simples relação de distribuição e não de produção”. Harvey, na sequencia, explica que tratará de mostrar como para ele Marx dá respostas positivas sobre o funcionamento do mercado de terras, que se baseia por sua vez na capacidade de apropriar-se da renda. Mas é uma interpretação, respeitável pois de parte de um dos maiores especialistas em Marx, que ele mesmo indica como sendo “ um argumento que quase não se consegue discernir nos textos de Marx, que parecia estar extraordinariamente relutante em admitir que o senhor de terras pudesse ter qualquer papel positivo no capitalismo ”. A explicação para que Marx, mesmo assim, tenha adotado a teoria ricardiana, também nos é dada por Harvey, e está ligada ao combate de Marx contra a economia política clássica: “os ricardianos descrevem 72
os senhores de terra como parasitas, remanescentes supérfluos da Era Feudal. Malthus lhes deu um papel mais positivo, como consumidores e portanto como fonte de demanda efetiva. Onde podia colocar-se Marx dentro disso tudo? Obviamente não queria pôr-se no campo de Malthus. Como poderia então se distanciar de Ricardo sem parecer apoiar Malthus? Por isso passou abertamente ao campo de Ricardo, mas isso lhe apresentou um dilema”. Não continuaremos aqui a descrever a excelente análise de Harvey. Apenas interessa-nos mostrar que, como aponto Deák, as imprecisões contidas na teoria da renda resultam de compreensível e complexo debate conjuntural na época em que se formulavam as teorias explicativas do capitalismo nascente. Deák explica, inclusive, o porquê da enorme popularidade da teoria ricardiana no turbulento mas otimista contexto da consolidação da indústria sobre o campo na Inglaterra do início do séc. XIX. Não é fora de propósito, portanto, apontar como o fez Deák, para tais contradições para mostrar que a Teoria da Renda parte de pressupostos frágeis para ser considerada, como foi, uma base para a compreensão do espaço urbano nos dias de hoje.
Como dito na primeira parte, falamos essencialmente em preço da terra urbana, sendo esta uma mercadoria como outra qualquer no mercado capitalista (com peculiaridades eventuais, como o fato de ser escassa ou mesmo única em determinadas situações). Porém, a composição do capital “terra” é tal e tão complexa, a associação de agentes antes separados tornou-se tão indefinida (proprietário x capitalista x trabalhador > proprietário x empreendedor x incorporador x construtor x trabalhador x usuário), a natureza da atividade sobre a terra tão diferente (agricultura x construção civil), a s atividades realizadas sobre ela tão diversas (não produtivas, produtivas, produtivas industriais, produtivas de serviço, cada qual gerando um tipo de mais-valia), que a proporção relativa à renda da “terra-matéria” original em Marx torna-se cada vez mais difícil de ser isolada. Apesar disso, intelectuais marxistas da década de 60 e 70 tentaram fazer uma transposição, mais ou menos complexa, das categorias que definem a renda da terra de Marx para a realidade urbana atual. Como coloca Fisette (1984), houve um intenso esforço por parte desses autores para, no contexto da economia urbana atual, tentar “isolar a renda da terra de categorias mais gerais como o valor e o lucro ”. Alguns deles, como, David Harvey, desenvolveram essa discussão de maneira extremamente complexa e sólida, com grande domínio sobre a teoria da renda em Marx, como é sem dúvida o caso de Limits to Capital , e em especial o capítulo que trata da renda da terra. Como dito, para Marx a questão da renda da terra surge face à dificuldade de definir a composição do valor da terra, enquanto mercadoria, se esta não é fruto do trabalho humano, mas sim um dom da natureza, de onde vem, como vimos a natureza da confusão, já que a mercadoria “terra” é na verdade a mercadoria “localização”, esta sim fruto do trabalho. Mas a questão era importante em uma época em que a “localização urbana” não era ainda significativa, para a economia política e sobretudo para Marx, pois este estava preocupado em categorizar as diferentes formas como se compunha o capital e como se dava a geração de valor, e consequentemente de mais-valia e de lucro. Como aponta Harvey, “a teoria da renda da terra resolve [para Marx] o problema de como a terra, que não é um produto do trabalho humano, pode ter um preço e ser trocada como mercadoria. A renda da terra, capitalizada como o juro sobre algum capital imaginário, constitui o “valor” da terra. O que se compra e se vende não é a terra, mas o direito à renda que esta produz ”. (Harvey, 1982). Mas antes de explicar melhor essa renda da terra à qual os pensadores marxistas se referem, vale retomar alguns conceitos básicos da economia política marxista: •
Renda (na denição econômica clássica, que Marx em parte adota): sobrelucro que advém da
inelasticidade decorrente do caráter limitado (naturais ou em função das leis da oferta e procura) de certos fatores de produção (especialmente a terra) (Sandroni). •
Valor da mercadoria é dado pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção. 73
•
A força de trabalho é mercadoria. Quando se consegue um valor da mercadoria superior ao valor da
força de trabalho tem-se a mais-valia (trabalho não pago). •
A mais valia se transforma em lucro na realização da mercadoria – Diferença entre preço de venda
e custos de distribuição e de produção. O lucro é composto também pela mais valia, como parte da composição orgânica do capital (COC). •
Composição Orgânica do Capital (COC) = razão entre o capital constante e o capital variável.
- K constante: investimento nos meios de produção - K variável: pagamento da força de trabalho (de onde vem a mais-valia) Quanto mais cara a força de trabalho, ou menor o investimento nos meios de produção =mais baixa a COC Quanto mais barata a FdeT, e maiores os investimentos nos meios de produção, mais alta a COC. Lembrando que “renda” para a economia política e na concepção ricardiana que Marx adota é o sobrelucro obtido por outras formas que as relações de produção e a força de trabalho, Fisette aponta que “tradicionalmente, a economia política representa a renda fundiária como os ganhos de uma classe social específica, a classe dos proprietários fundiários. Essa classe capta uma determinada parte do valor produzido na terra que ela possui sem ter investido na produção (capitalista) e sem contribuir para essa produção com seu próprio trabalho (proletariado). A renda fundiária agrícola se constitui em uma “punção” sobre as riquezas sociais por uma classe que em nada contribui ao desenvolvimento das riquezas sociais, mas participa na sua distribuição na sociedade (retendo para si parte dela). Esse poder de exigir parte das riquezas sociais vem do fato dela exercer o poder de propriedade sobre uma das condições essenciais a toda produção, a terra”. Expliquemos então de forma a mais sucinta possível o que são os componentes da renda da terra em Marx (explicado de maneira cristalina por Harvey em Limits to Capital ): a) A dificuldade de implementar avanços tecnológicos na agricultura faz com que a COC da produção agrícola é mais baixa que a média social (mais propensa aos avanços tecnológicos e um maior capital constante) > preços agrícolas estão assim geralmente abaixo do seu valor (o trabalho é mais importante na composição do valor), i.e, têm uma COC baixa. b) Todos os setores contribuem para a mais valia social (média social) com o trabalho que empregam, mas recebem mais valia em função do capital investido. Como na agricultura essa relação é pior (muito T para pouco capital constante), é natural buscar-se uma compensação na taxa de lucratividade, por exemplo com a expansão da atividade, e não deveria haver barreiras para isso. c) Não se distribui a mais-valia excedente da agricultura em decorrência da intensidade do T empregado a outros setores mais competitivos e composição de valor mais alto que a média social, pois há um obstáculo para isso na questão da terra. Na agricultura, a PROPRIEDADE DA TERRA (que é diferente de ter capital constante para investimento em outras atividades produtivas) é um obstáculo a essa expansão/compensação, pois ela é única, em razão do preço pago pelo uso da terra as senhores de terra (proprietários), A RENDA DA TERRA. Os produtos agrícolas não são “socializados” com outros setores e se vendem acima de seu preço de produção (porque se deve compensar). A RENDA ABSOLUTA é esse “impedimento” à realização do lucro, que ocorre em função de existir PROPRIEDADE DA TERRA e esta ser um bem único que não é fruto do trabalho. Em outros termos, para Marx a renda da terra é definida da seguinte forma (Fisette):
74
- Algumas condições sociais permitem em um determinado setor a retenção de parte da mais valia produzida (aumento de valor da produção do setor em razão de uma COC do capital mais baixa que a média social). No setor agrícola, segundo Marx, haveria um lucro sobre o valor obtido sobretudo da mais-valia (força de trabalho), mas cuja perequação, que deveria contribuir para a formação do lucro médio (a mais valia social, definida por todos os setores), é IMPEDIDA pela propriedade da terra. Todo proprietário de terra, assim, obtém um ganho pelo simples fato de ter a terra. Essa é a RENDA ABSOLUTA para Marx. - Algumas condições de produção relativas ao solo permitem uma melhor produtividade “individual”, melhor que a média do setor, ou ao menos melhor do que aquela que serve de base à determinação do preço da produção em todo o setor. Trata-se da RENDA DIFERENCIAL - Por fim, a RENDA DIFERENCIAL 2 é decorrente da “intervenção do capitalista explorando a terra do proprietário fundiário”, que permite ao capitalista (não o proprietário) um ganho sobre a condição original da terra-matéria, e que será melhor caso a terra seja mais fértil. Essa diferença de ganho possibilitada pela melhor terra permitira que o capitalista retenha para si também parte do sobrelucro. Vimos acima que Deák apresenta um questionamento mais estrutural dessas categorias, que se baseia na fragilidade de seus pressupostos, que o próprio Harvey também chega a admitir, como mostramos. Vejamos um claro resumo de Deák sobre sua interpretação: “Vimos que espaço urbano é um produto do trabalho. Isso não signi�ca tanto que espaço urbano perca seu conteúdo ‘natural’ – certamente ele é formado por materiais encontrados na natureza. Signi�ca, antes, que quaisquer que tenham sido as transformações que a natureza tenha sofrido até qualquer dado momento particular, ela – natureza, e o produto do trabalho realizado (past labour)– podem ser transformados novamente, de forma a não sobrar nela nenhum elemento permanente. É por isso que é infrutífero tentar descobrir o componente natural do espaço – como no caso da teoria da renda – ou tentar determinar a quantidade de trabalho ‘contido’ no espaço em algum período histórico específico, com vistas a mensurar seu valor – como é o caso da teoria do trabalho incorporado (embodied labour). Ambas essas abordagens, que buscam determinar o que é ao invés de o que está se tornando (no sentido de devir), implicam o conceito de equilíbrio – como se um equilíbrio (dos processos produtivos, da distribuição espacial das atividades, etc.) pudesse surgir instantaneamente sobre a base de uma determinada estrutura concreta – apenas para ser rompido no instante seguinte. Nosso enfoque se volta, ao invés disso, às transformações impostas ao espaço pelo trabalho, em consequência do desenvolvimento das forças produtivas que necessariamente acompanha o processo de acumulação”. Uma segunda maneira de discutir a abordagem marxista da renda da terra urbana é a que faz outro autor, Jacques Fisette. Sua proposta é a de “aceitar” a priori as categorias marxistas, verificando passo a passo como estas se comportam na sua “transposição” para o contexto urbano contemporâneo. Fisette analisa e critica passo a passo o raciocínio dos intelectuais franceses, mostrando as incongruências com o urbano hoje. Fisette mostra como Alquier e Lojkine se propuseram a realizar um exercício básico, de estabelecer analogias simples entre as atividades agrícolas que sustentavam a análise marxista e as atividades industriais típicas da era urbana. Ocorre que, como ressalta Fisette, e na mesma linha da evolução dos meios de produção apontada por Deák, que “ os agentes econômicos urbanos não são manifestadamente os mesmos que aqueles do meio agrícola do século XIX, e o lucro sobre a renda fundiária toma novas formas: o capital hoje torna-se proprietário fundiário, o lucro da propriedade fundiária se dá muitas vezes pelo aluguel de imóveis, pela especulação fundiária e imobiliária, etc. ”. Na desconstrução da abordagem de Alquier, Fisette mostra como este último transfere o conceito de fertilidade natural do solo urbano para o de “construtibilidade” do solo urbano. Esta seria não um “dom” da natureza (como seria a fertilidade da terra), mas sim das regras de zoneamento que permitem mais 75
ou menos potencial construtivo. Uma espécie de fertilidade criada pelo poder público. Cria-se então uma “construtibilidade diferencial do solo urbano” que permitiria uma renda diferencial da qual se apropriariam os proprietários fundiários que têm acesso aos terrenos com maior potencial construtivo. Quem seria então, para Alquier, o “fazendeiro urbano”, o capitalista que ganha com a exploração da terra mas tem de pagar, no caso urbano, essa “renda” para poder “explorar” a terra? O incorporadorconstrutor, que pode eventualmente ter mais ganhos do que outros ao utilizar um terreno com maior potencial construtivo, capturando para si uma renda diferencial 2. Fisette chama a atenção para a fragilidade dessas transposições, e mais ainda da que Alquier propõe para a renda absoluta da terra, que seria o “aluguel pago ao proprietário fundiário para ter o direito de morar nele em uma habitação qualquer”. Uma ideia muito longínqua da complexa definição marxista da renda absoluta, que mostramos anteriormente neste texto. Para nós, o simples fato de Alquier conceber a renda diferencial como decorrente da ação do Estado, ou seja, completamente determinada não pela natureza, mas por relações políticas, econômicas e sociais e socialmente produzida, já inviabiliza o argumento. Fisette analisa também a conceituação de Lojkine, mais ampla do que a de Alquier, pois tenta incorporar um maior número de atividades urbanas, como a produção de imóveis de escritórios, de imóveis industriais, etc. Lojkine também faz a relação de Alquier entre proprietário da terra e construtor (pagamento de uma renda pela terra durante o tempo de construção, até a realização da venda e a transferência da propriedade), mas considerando esta um caso marginal de renda fundiária urbana, ele amplia sua análise para três outras relações capazes de gerar uma “renda”. Aquela entre proprietário da terra e inquilino não capitalista (para uso próprio), outra entre o proprietário e ocupantes inquilinos capitalistas (que fazem uso econômico do imóvel), e a relação entre proprietários e locatários de uso industrial. Como destaca Fisette, é este último caso que permite maior aproximação entre a figura proposta por Marx de proprietário da terra e o explorador da mesma para fins agrícolas (agora industriais), implicando um capital produtivo e um agente “parasita” que captura parte dos ganhos por ser simplesmente o proprietário da terra. Mas, diz Fisette, deve-se lembrar aqui o que Marx aponta como condições necessárias para a existência de uma renda da terra, a saber uma COC do capital que usa o solo menor do que a média dos setores econômicos e a existência de um obstáculo (a propriedade da terra) que acapara a possibilidade do ganho no setor agrícola. Assim, a primeira relação (do locatário não capitalista) fica por princípio excluída da possibilidade de produzir renda, já que não se pode falar em COC em uma situação em que não há a produção capitalista. A terceira relação, entre a propriedade e o uso industrial, também se vê excluído da possibilidade de produzir renda, fato apontado pelo próprio Lojkine, já que a atividade industrial se caracteriza por uma COC alta e portanto que não gerará o sobrelucro (de um terreno em relação a outro pela renda diferencial) que seria “acaparado” pela propriedade da terra, já que outros fatores – como o avanço tecnológico, o marketing, etc – podem ser capazes de gerar, em qualquer terreno, uma alta COC. Resta a segunda relação, do inquilino capitalista não industrial, ou seja não produtivo (bancos, comércios), o que em si já se mostra frágil no atual capitalismo financeiro, em que o “produtivo” ganhou novas e diversas formas. Segundo Fisette, Lojkine propõe justamente de ampliar o sentido de “produtividade” para todos os setores em que haja circulação de capital, o que se mostra uma adaptação mais atenta à evolução do sistema capitalista. Podendo-se então falar de uma COC relativa a essas atividades, podese admitir eventualmente a existência de diferentes níveis de produção, de sobrelucros diferenciais e, portanto, de renda. Porém, para justificar que neste setor de circulação de capital (terciário) a COC seja mais baixa que a média social, Lojkine argumenta que isso é plausível, já que, citando o próprio autor (apud Fisette) “no comércio, nos serviços, nos escritórios, o capital investido permite a seu possuidor de se apropriar de uma maior ou menor mais-valia”, com uma COC baixa em razão do “emprego de mão de obra feminina sub-remunerada e da introdução ainda muito limitada da mecanização”. O proprietário fundiário 76
poderia então obstaculizar a perequação desses sobrelucros ao pedir um valor de aluguel equivalente ao volume desses sobrelucros. O argumento evidentemente torna-se insustentável face ao papel que o setor terciário hoje tem, ao seu altíssimo grau de mecanização graças ao advento da informática, à mudança radical nos perfis salariais desse setor (o mais bem pago provavelmente), que tornam altíssima a COC. Assim, das três relações criadas por Lojkine para tentar “encontrar” a formação de renda na economia urbana atual, nenhum deles se sustentaria conceitualmente, pelos princípios da renda da terra colocados por Marx. Fisette não para nos dois autores até aqui analisados, mas vai também verificar a lógica proposta por Topalov, segundo ele a mais sofisticada delas. Não iremos adentrar aqui nas explicações detalhadas que faz Fisette. Apenas vale observar que Topalov amplia as atividades econômicas urbanas estudadas, de tal forma que podem aparecer com mais probabilidade sobrelucros diferenciais, na construção civil, no comércio, etc. Mas para isso Topalov também se vê obrigado a tentar identificar de que forma os custos de construção poderiam ser mais ou menos capazes de gerar uma COC baixa, e em que a renda diferencial poderia ser captada pela propriedade da terra. Como diz Fisette, uma ideia plausível “se a densidade da construção civil tivesse custos de construção vantajosos para um produto homogêneo tendo (excluindo-se a terra) um mesmo preço”. Assim, Topalov caminha ele também para o papel substancial não da terra em si, mas da sua localização, esta sendo capaz de criar situações diferenciais entre as diferentes atividades econômicas. Por exemplo, um prédio de escritórios ou de comércio bem localizado pode, em relação a outro, dar margem a sobrelucros, mas só se poderia falar em renda, ou seja em sobrelucro diferencial, caso se pudesse definir um preço de produção social médio desse serviço ou comércio, e um produto relativamente homogêneo (seria possível pensar isso na economia terciária atual?), com condições de produção – exceto a localização – idênticas. Como aponta Fisette, a sofisticação das relações necessárias para se obter essas condições de diferenciação parecem incompatíveis com a complexidade das variáveis da economia de serviços atual, mais uma vez. Além do mais, não se entra aqui na discussão do quanto, como apontam Villaça e Deák, a localização em si não é um “dado da natureza”, mas ela própria um produto decorrente do trabalho social. Topalov irá então diferenciar dois tipos de renda possíveis, um ligado à construção civil, e outro às atividades de circulação do capital. No primeiro caso, cai nos mesmos problemas da análise de Lojkine, que considerou essa uma situação marginal. A baixa COC no setor poderia de fato gerar renda diferencial quando o sobrelucro gerado por essa mais valia encontrasse o obstáculo do pagamento fundiário. Esta é, ao nosso ver, a situação mais plausível de ser encontrada hoje em dia, ainda mais no Brasil, onde a situação da construção civil é ainda quase manufatureira (ver sobre isso o texto de Vargas na bibliografia da disciplina). Porém, o argumento, mesmo plausível, apresenta limitações na sua transposição para os dias de hoje: primeiro porque, como Lojkine mesmo apontou, trata-se apenas de uma das múltiplas relações estabelecidas na produção do espaço construído. O modelo não poderia servir como matriz explicativa para toda a produção da cidade. Segundo, porque fora do país já se verificou, e começa-se a esboçar-se aqui, que pode haver significativa modernização tecnológica no setor, ainda que seja este, sem dúvida, o gargalo maior. Em terceiro lugar, porque a figura do “proprietário fundiário” independente quase já não mais existe no cenário da grane produção capitalista do setor da construção civil, tendo hoje uma variedade de situações mais complexas em que se confundem empreendedores, proprietários, usuários, etc., como já dito anteriormente. O segundo setor analisado por Topalov, o da circulação do capital, leva o autor a um raciocínio oposto ao de Lojkine, ainda segundo Fisette. Neste caso, Topalov aponta não a fraca COC mas o contrário, a possibilidade dela tornar-se cada vez mais alta, em razão da concentração do capital e da evolução tecnológica, característicos do capitalismo em seu estágio monopolista, quando os setores industrial e financeiro são capazes de se contrapor à livre-circulação do capital entre diversos setores. Há a 77
possibilidade de uma captação de renda a partir de uma mais-valia mal distribuída entre setores, em razão de obstáculos inerentes ao cenário monopolista. No caso fundiário, um exemplo seria o alto valor de aluguel por exemplo em áreas centrais das cidades (mais uma vez, não se considera aqui o papel da localização como espaço produzido em que a localização “pura” tem proporcionalmente pouca importância), que teria o caráter de conversão dos sobrelucros monopolistas em renda fundiária. Mas, como um proprietário teria condições de forçar a transformação de sobrelucros em renda no aluguel de grandes empresas, sobre as quais ele sequer tem informações sobre a natureza da sua atividade? A realidade é bem diferente, e proprietários teriam de ter enorem poder para poder impor a grandes empresas (Fisette cita uma IBM, por exemplo), um aluguel que estivesse no nível do sobrelucro de uma empresa desse porte. Sem contar que, nos dias de hoje, o mais comum é que empresas desse porte sejam proprietárias de seus imóveis. Mais uma vez, temos uma interpretação teórica irrealizável na prática, e que abarca apenas uma das diversas relações de produção que se estabelecem no espaço urbano. Fisette mostra como tais tentativas de adequação da teoria marxista da renda da terra, mesmo se aceitássemos seus pressupostos para a renda agrícola, são pouco convincentes para explicar o urbano hoje. É comum ver, mesmo na bibliografia brasileira, análises que partem dos mesmos pressupostos dos autores franceses, pretendendo fazer uma transposição direta das categorias da renda agrícola para o espaço urbano. Normalmente partem da renda da terra como um fato consumado, existente sem mais, pela natureza mesma da terra em sua condição de suporte único e necessário à produção. Mas, em geral, após tal afirmação, enveredam em descrições mais detalhadas da....localização, e não da terra em si. Ao falar da terra, descrevem a localização, aceitando assim, mesmo que de forma indireta e talvez sem perceber a confusão, que a formação do preço, das dinâmicas de oferta e demanda, estão sim ligadas à segunda, e não à primeira (ver, por exemplo, Singer: 1982). Para os objetivos desta disciplina, ficaremos com os argumentos expostos acima para reafirmar que a abordagem marxista da questão urbana não deve se prender a tentar responder à questão da renda da terra. Se baseia sim no conceito de “produção” do espaço, em que os valores de localização e o papel da infraestrutura são fundamentais para a formação de preços diferenciados e para a realização do lucro capitalista, em uma perspectiva de conflito de classes em que interagem agentes como o Estado, o mercado e a sociedade, em relações de ordem econômica, política, social e cultural. Isto é que define as cidades e o espaço construído como um campo ilimitado para uma análise crítica de abordagem marxista.
78
SOBRE OS IMPASSES DO ESTATUTO DA CIDADE E A IMPLEMENTAÇÃO DE SEUS INSTRUMENTOS. O caso das ZEIS e das Operações Urbanas Consorciadas.
79
A efetividade da Implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial. Com Daniela Motisuke� Capítulo do livro: BUENO, Laura Machado de Mello e CYMBALISTA, Renato (orgs).; “Planos diretores municipais: novos conceitos de planejamento”, São Paulo: Annablume, 2007; ISBN: 978-85-7419-6
Este artigo apresenta as reflexões que motivaram a montagem de uma pesquisa do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP (LabHab-FAUUSP), a respeito da efetividade das ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social como um instrumento capaz de alavancar uma produção do espaço urbano socialmente mais justa, a partir de experiências já ocorridas em algumas cidades brasileiras. A pesquisa ainda está em fase inicial, porém as discussões já ocorridas durante a montagem do projeto representam uma reflexão que já pode ser teorizada. É o que se tenta fazer neste texto, considerando dois problemas centrais e a perspectiva de sua superação: primeiramente, a dúvida sobre a eficácia dos instrumentos urbanísticos em geral face aos antagonismos estruturais da formação do Estado e da sociedade brasileiros, e em segundo lugar as dificuldades concretas - sobretudo no âmbito da gestão pública - observadas em algumas experiências reais de aplicação do instrumento das ZEIS no Brasil. Entendidas como uma categoria do zoneamento da cidade que permite um padrão urbanístico próprio, com tratamentos diferenciados, a partir de um plano específico de urbanização, as ZEIS podem ganhar várias formas, em função do contexto urbano em que são aplicadas, atendendo tanto áreas de favelas ou loteamentos que demandem urbanização, áreas vazias sujeitas à provisão de moradia de interesse social, ou ainda terrenos ou imóveis subutilizados em áreas com infraestrutura urbana, geralmente nas áreas centrais. Além de representarem uma solução potencial para a regularização fundiária em favelas e para a urbanização de favelas e loteamentos precários, se destaca face ao esvaziamento das áreas centrais nas grandes e médias cidades, que provoca um aumento de terrenos não-utilizados especialmente propícios à Reforma Urbana e à provisão habitacional de interesse social. O instrumento da ZEIS representa o reconhecimento da diversidade das ocupações existentes na cidade e a possibilidade de construção de uma legalidade dos assentamentos, tanto na qualificação e regularização das áreas periféricas quanto na democratização do acesso à cidade provida de infraestrutura, regulando a atuação do mercado imobiliário. Sua regulamentação no Estatuto da Cidade, em 2001, junto com os demais instrumentos urbanísticos lá contidos, criou uma grande expectativa quanto à possibilidade de que os municípios passem a contar com uma maior capacidade de controle sobre os processos de produção e apropriação do espaço, fazendo valer a função social da propriedade urbana. Entretanto, assim como ocorre para todos os instrumentos do Estatuto, tal expectativa só se realizará se esses instrumentos forem incluídos nos Planos Diretores municipais, e estes efetivamente implementados, o que significa dizer que este é um processo político de negociação ainda em aberto. À medida que os planos diretores de cada município forem resultado de processos participativos que incorporem de fato as demandas de todos os setores da sociedade, e em especial dos grupos sociais excluídos, pode-se esperar, principalmente em cidades pequenas e médias onde os processos de urbanização excludentes ainda não são tão arraigados, que tais instrumentos tenham alguma efetividade para controlar o desequilíbrio social urbano. Ainda assim, a expectativa de transformação dos instrumentos urbanísticos no Brasil – e das ZEIS – esbarra na necessidade de uma transformação mais ampla e estrutural da sociedade e do Estado brasileiros, sem a qual é possível que estes cumpram um papel apenas remediador de desigualdades � Daniela Motisuke, quando da redação do texto, era minha orientanda de Mestrado (área Habitat) na FAUUSP e pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP (LabHab/FAUUSP).
80
urbanas mais graves, sem entretanto promover uma real transformação no quadro estrutural da produção urbana desigual.
Origem dos Instrumentos Urbanísticos Os instrumentos urbanísticos, como os que hoje aparecem no Estatuto da Cidade, se originam na Europa, como parte do ferramental necessário para garantir a longa transição da ordem econômica feudal para a capitalista, quando o processo de expansão do sistema econômico em busca de novos mercados obrigou-o a qualificar a mão de obra, com vistas a garantir sua disponibilidade e sua reprodução, e a regulamentar cada vez mais as formas como se davam as interações sociais e, em essência, o próprio consumo. As intervenções urbanas de Haussmann em Paris, que se deram na década subsequente às revoluções liberais burguesas europeias de 1848, visavam, com o combate à insalubridade, melhorar a disciplina de vida e as condições de reprodução da classe trabalhadora, garantindo a capacidade produtiva da industrialização nascente (Topalov, 1988), e controlar os movimentos sociais, por meio da construção de avenidas nas quais as tropas pudessem manobrar com facilidade. Relatos mais precisos desse período destacam como foi nas reformas Haussmanianas que, “ pela primeira vez, o poder público investe na ordenação espacial das cidades, até então abandonada à ação dos atores privados ” (Pinon, 2002:4ªcapa). É marcante, portanto, que o urbanismo e os instrumentos urbanísticos surgem como um instrumento de controle social do espaço urbano. A crise de 1929, que foi uma crise de subconsumo, evidenciou a contradição estrutural do capitalismo, pela qual é impossível a sobrevivência sem crise de um sistema que se estruture concomitantemente em bases absolutamente antagônicas: a exploração da força de trabalho e a busca da mais-valia, por um lado, que pressiona os salários para baixo; e a necessidade de vender a produção para garantir a realização do ciclo de reprodução do capital, que depende da manutenção de níveis de salário mais altos, para dar capacidade de consumo à população. As décadas de ideologia liberal, em que valia a mão invisível do laissez-faire, associada a uma forte crise especulativa nas bolsas de valores, levaram à quebra do sistema. A saída para a crise foi a entrada em jogo do Estado, como mediador entre os interesses do capital, por um lado, e do trabalho por outro, de forma a garantir a sobrevida do sistema. O New Deal, do presidente Roosevelt, marcou no início dos 30 a intervenção maciça do Estado na criação de empregos, por meio de grandes obras públicas como barragens, linhas de ferro e rodovias, e a regulamentação de direitos trabalhistas que, em suma, garantiam os níveis de emprego e a elevação da capacidade de consumo da classe trabalhadora. Na Europa, já no entre-guerras, direitos trabalhistas como as férias anuais, o descanso semanal remunerado, a limitação da jornada de trabalho, delineavam o que viria a ser, com o atraso gerado pela Segunda Guerra, a base do sistema do Estado do Bem-Estar Social. Junto com o modo de produção Fordista-Taylorista, ambos alavancariam trinta anos de crescimento da produção capitalista, baseada em um sistema em que o Estado garantia as condições mínimas de vida – e de consumo – para sua população. Nessa época, instrumentos urbanísticos para a regulação dos direitos de construir, do uso e da ocupação do solo, da valorização imobiliária, entre outros, contribuem para o controle do Estado sobre a produção do espaço urbano, somando-se aos esforços de construção de um capitalismo altamente industrializado, mas “socializante”, à medida que mantinha razoavelmente alto o nível de vida da classe trabalhadora, que era também a massa consumidora.
Se era necessário dar condições de vida e de consumo à população, era consequentemente importante garantir-lhe moradia digna em um ambiente urbano adequado, o que pressupunha esforços para a generalização da provisão habitacional, e instrumentos de gestão urbana capazes de assegurar o acesso à moradia e a ordenação socialmente equilibrada – dentro dos limites impostos pela matriz por natureza desequilibrada do capitalismo – do território. O Movimento Moderno, começando nas reflexões e experimentações da Bauhaus e de arquitetos como Mae, Gropius e Taubt para a produção habitacional industrializada e de massa, já na década de 30, insere-se nesta mesma lógica. Neste caso, se os instrumentos urbanísticos surgiram com forte caráter de controle social no século XVIII, o período 81
da socialdemocracia europeia, cem anos depois, os transformou em instrumentos da consolidação espacial do Estado do Bem-Estar Social. O direito de preempção, as zonas definidas para urbanização especial, a desapropriação para fins de moradia, o controle dos aluguéis, são alguns entre muitos instrumentos que permitiram ao Estado coordenar com certo vigor as dinâmicas fundiárias e imobiliárias, garantindo um padrão habitacional mínimo, da mesma maneira com que a socialdemocracia garantia também o acesso universal à educaç ão e à saúde gratuitas�. Pois bem, não é difícil perceber que tal papel dos instrumentos urbanísticos não teria como ser reproduzido no Brasil. Enquanto lá os instrumentos serviam – e ainda ser vem – para que o Poder Público pudesse, no âmbito urbanístico, promover o bem estar social e mediar os interesses do capital face ao bem público urbano, no Brasil eles teriam de enfrentar modelos históricos de sociedade e de cidade frontalmente antagônicos ao do Estado burguês europeu, já que organizados estruturalmente de forma propositalmente desigual e excludente. Daí uma das prováveis razões para a ineficiência prática da maioria dos planos urbanos tecnocráticos propostos nas décadas de 60 e 70 em várias vár ias cidades brasileiras (Villaça, 2005). Os “novos” instrumentos ligados à luta pela Reforma Urbana, que dariam origem ao Estatuto da Cidade, desenhados a partir par tir da década de 80 e ligados aos objetivos da democratização das cidades e supostamente livres do ranço ran ço tecnocrático, surgem entretanto como uma tentativa tardia de reação. À reboque, historicamente, das estruturas sociais arcaicas e desiguais que pretendem combater, combater, têm seu potencial e seu possível alcance comprometidos desde sua gênese, já que dependeriam de um Estado forte e fortemente comprometido com a justiça social, o que parece a cada dia mais utópico na realidade brasileira. Ou seja, os instrumentos urbanísticos deveriam dar ao Estado a capacidade de enfrentar os privilégios urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua hegemônica atuação de 500 anos, o que significaria reverter, a posteriori , um processo histórico-estrutural de onipotência política e segregação espacial. Uma árdua missão: daí a razão de uma visão mais cética, como veremos, quanto ao potencial de transformação estrutural dos instrumentos urbanísticos no Brasil.
Questão Habitacional no Brasil: planejamento e legislação urbana O problema habitacional no Brasil é um problema estrutural, resultante das formas bastante específicas da formação da sociedade e do Estado brasileiros, que reproduzem os mecanismos de dominação das elites. O problema da falta de acesso à habitação remonta ao período da colonização, e não pode ser separado da questão do acesso à propriedade da terra. Quando é decretada a Lei de Terras em 1850, é instituída a propriedade fundiária no Brasil, tanto rural quanto urbana. Em um momento em que já se sofria e se previam as consequências da pressão inglesa pelo fim do tráfico negreiro, que iria a médio prazo jogar no mercado um importante contingente de trabalhadores, ex-escravos e imigrantes, eventualmente interessados em adquirir terras para produzir, os grandes latifundiários do país dividiram a propriedade da terra entre aqueles que já as detinham ou eram suficientemente afortunados para comprá-las (Maricato, 1997). O desequilíbrio no acesso à propriedade fundiária, que refletia a intensa divisão econômica e social do país, iria reproduzir-se sistematicamente a cada novo estágio do nosso desenvolvimento. Na transição da economia agroexportadora para a da industrialização incipiente, na passagem para o século XX, a tomada de hegemonia das forças políticas liberais e industrializantes não alterou a forma com que as cidades produziam a segregação socioespacial desde o período a nterior nterior..
� Não há bibliografia específica, no Brasil, sobre a origem de cada um desses instrumentos, instrumentos, embora seja possível encontrar citações a respeito na bibliografia urbanística europeia, em especial a francesa.
82
De fato, nas últimas décadas do século XIX, quando a economia e a política nacionais ainda eram comandadas pelos barões do café, as maiores cidades do país, Rio e São Paulo, eram objeto de planos urbanísticos que apenas embelezavam o centro das elites e ignoravam – ou mesmo incentivavam fortemente – a concentração da população pobre se dava nas casas precárias de aluguel, nos cortiços e nas favelas que já começavam a aparecer (Bonduki, 1998). Assim moravam, já nas periferias urbanas, ex-escravos e imigrantes atuando nos empregos terciários das atividades menos nobres que as cidades exigiam, assim como soldados chegando de campanhas distantes, como ocorreu nos morros do Rio após o fim do conflito de Canudos (Abreu, 1994). Segundo Bonduki (1998), a habitação h abitação das classes populares se deu, até os anos 30, através da produção privada de vilas operárias ou de moradias de aluguel, que podiam ir de casas com alguma qualidade até moradias de baixo padrão e coletivas, de tal forma que nesses casos era difícil diferenciar moradias de aluguel e cortiços. A produção das vilas foi incentivada pelo poder público através de isenções fiscais, pois eram consideradas uma solução de disciplinamento e higienização das massas. Mas essas moradias de melhor qualidade, embora populares, só eram acessíveis para segmentos da baixa classe média, como operários qualificados, funcionários públicos e comerciantes, não sendo viáveis para a população mais pobre. Os cortiços, de qualidade ainda pior, pior, eram portanto, a única forma de acesso à moradia pela maioria da população, além de se constituir num negócio muito lucrativo para seus proprietários, uma vez que investiam o mínimo na construção e cobravam altos aluguéis. Foram fortemente combatidos em nome da saúde pública, mas se proliferaram de forma significativa, o que demonstra que a demanda por habitação para grande parte da população já era importante. Quando os cortiços se tornavam obstáculos à renovação urbana das áreas mais nobres da cidade, eram demolidos e a “massa sobrante” (Villaça, 1986) deslocada para as regiões menos valorizadas pelo mercado No momento seguinte, da industrialização pioneira das primeiras décadas do século XX, da presença forte de empresas estrangeiras de serviços públicos atuando no direcionamento da produção da cidade, e quando São Paulo torna-se o principal centro econômico do país, os bairros operários do primeiro anel periférico passaram a concentrar a população pobre, reproduzindo continuadamente o padrão de acesso dificultado à terra urbana e de forte segregação socioespacial. Na era Vargas, a partir de 1930, época que coincide com a emergência do Estado de Bem Estar Social na Europa, o Governo iniciou um programa de incentivo à industrialização, através de subsídios à indústria de bens de capital, do aço, do petróleo, à construção de rodovias, etc. Paralelamente, instituiu no país um novo clima político, através do fortalecimento do Estado e de suas ações, visando a constituição de um mercado de consumo interno mais significativo. Apesar da perda de hegemonia por parte da burguesia agroexportadora, o Estado populista não interfere significativamente em seus interesses, evitando uma reforma agrária e mantendo intacta a base fundiária do país. No campo da moradia, a experiência dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, na década de 30, que se tornaram uma referência qualitativa na história da arquitetura de habitação social no Brasil, foi pouco significativa numericamente já que produziu, entre 1937 e 1964, apenas 140 mil moradias, a maioria destinada ao aluguel. Segundo Maricato (1997) a política se pautava em “ muita publicidade para uma resposta modesta dos programas públicos de habitação”. Além disso, a Lei do Inquilinato, de 1942, limitava as possibilidades de lucro para os proprietários de vilas e casas de aluguel, uma vez que congelava os preços e diminuía a segurança do negócio para os locadores. Acabou tendo como efeito o estímulo à propriedade privada do imóvel urbano, no lugar do aluguel, restringindo ainda mais o acesso à habitação (Maricato, 1997). O surto industrializante iniciado na década de 50 exacerbou esse cenário. As burguesias nacionais, como ponderou Florestan Fernandes, reiteraram sua opção pela associação com os interesses de expansão do capitalismo internacional, em detrimento da construção de uma socialdemocracia nos moldes europeus, o que lhes garantiu a manutenção de sua hegemonia interna, baseada na exploração de um modelo essencialmente concentrador da renda. Já comentamos acima como se estruturou o Estado do Bem-Estar Social nos países centrais. Ocorre que tal modelo custava caro, e obviamente reduziu drasticamente as taxas de lucratividade das empresas dos países desenvolvidos. Face a tal 83
situação, o movimento natural dessas firmas foi de voltar-se para o resto do mundo, especialmente o subdesenvolvido, em busca de uma única coisa: a possibilidade de utilização de mão de obra barata, que já não era disponível nos países centrais. Por isso, a industrialização extremamente rápida pela qual passa o Brasil a par tir da década de 50, se dá pela associação dos interesses de expansão do capitalismo internacional e da s empresas multinacionais, com os interesses das elites internas de diversificação de investimentos e de re-imposição da sua hegemonia política e econômica, agora por meio da industrialização maciça. A opção das nossas elites, que garantia assim seu poder de barganha no sistema capitalista mundial ao aliar-se a esses interesses expansionistas do capitalismo internacional, consolidou sua absoluta dominação interna, mesmo que “às custas do reforço de seu caráter anti-social, anti-social, antinacional e antidemocrático” (Sampaio Jr., 2000:418). Em suma, o momento de maior inflexão da nossa industrialização se dá com a vinda para o país de multinacionais interessadas apenas na exportação de seus produtos e de seus lucros, o que Francisco de Oliveira chamou de “ a fraude e traição mais notável à vontade popular de que se tem notícia no Brasil moderno” (Oliveira, 1977:72). Essa vinda de multinacionais ocorreu sem a ampliação de um mercado interno significativo, sem a generalização de um nível mínimo de renda para a classe trabalhadora, ao contrário do que ocorrera nos países centrais sociais-democratas, justamente porque isso significaria um aumento do custo de reprodução da classe trabalhadora. Aqui, a industrialização dos anos 50 em diante se dá justamente condicionada à manutenção dos baixos salários, em um processo – do subdesenvolvimento – já amplamente discutido por muitos intérpretes da formação nacional: Rui Mauro Marini observou a “superexploração “superexploração dos trabalhadores periféricos” periféricos” (porque explorados tanto pelo capitalismo internacional quanto pelas burguesias nacionais), Maria da Conceição Tavares identificou a “modernização conservadora” conser vadora”,, Florestan Fernandes o “desenvolvimento “desenvolvimento do subdesenvolvimento” subdesenvolvimento”, e assim por diante. Disso resultou que se o país se tornou, em duas décadas, a oitava economia do mundo, por outro lado ele assumiu a liderança mundial, sem nunca mais largar as primeiras posições, da concentração das riquezas nas mãos de poucos. Esse processo de crescimento acelerado com grande concentração da renda evidentemente se reproduziu com as mesmas características em relação ao ambiente urbano. O forte apelo populacional resultante da presença das indústrias gerou uma maciça migração rural-urbana, a população nordestina se deslocando para o sudeste, compondo a massa de mão de obra de reserva, sujeita aos baixos salários, que o sistema demandava. O exemplo de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo, é paradigmático. Periferia semi-rural da cidade, recebeu no final da década de 30 uma fábrica de fios Rayon, pré-montada, já obsoleta e abandonada nos EUA (onde já fabricavam o material sucessor, o Nylon), e trazido em um navio pelos industriais Horácio Lafer e José Ermírio de Morais. Chamaram-na de Nitroquímica, e a fábrica tornou-se da noite para o dia a mais moderna indústria petroquímica do país (embora tecnologicamente obsoleta obsoleta no cenário econômico mundial, em um exemplo explicativo do atraso estrutural da nossa indústria). Foi fechada somente na década de 90, após explosões que mataram um operário, somando aos inúmeros acidentes trabalhistas lá ocorridos na história da empresa. O bairro de São Miguel, por sua vez, passou de cerca de quatrocentos habitantes para oito mil em menos de dois anos. Evidentemente, nenhuma infraestrutura urbana, nem equipamentos públicos, nem moradia foram providenciados na região, pois não era esse o interesse dos setores dominantes. As favelas que lá surgiram mantém-se até hoje. Assim, no Brasil tivemos um “Estado do deixe-estar social ”, no qual, no campo da moradia, como já explicou Francisco de Oliveira, a “não-política” habitacional, traduzida na generalização da autoconstrução, era sem dúvida a forma mais barata de abrigar a classe trabalhadora. À “industrialização com baixos salários” se somou uma “urbanização com baixos salários” salários”,, como disse Maricato (1996). Vale lembrar que, pelo seu recorte privatista, inserido no bojo do milagre econômico, da geração de empregos mesmo que de baixíssima remuneração, e do favorecimentos às grandes empreiteiras, o Sistema Financeiro de 84
Habitação, que no regime militar produziu cerca de 4 milhões de moradias, nunca conseguiu beneficiar as famílias abaixo de 3 salários-mínimos, enquanto que o financiamento oficial da Caixa Econômica Federal favorecia os investimentos da classe média e a verticalização das cidades formais. Disso resultou um país desigual, com cidades desiguais: hoje, estima-se que cerca de 40% da população das nossas grandes metrópoles, em média, vive na informalidade urbana�. Nas cidades de todo o país, a presença da riqueza traz com ela uma enorme pobreza, antagonismo típico de uma das sociedades que mais concentra a renda no mundo. Esse quadro dramático, fruto de 500 anos de história, pode ser encontrado em qualquer das nossas cidades e regiões metropolitanas, seja em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Belém, Porto Alegre ou Belo Horizonte. Ao lado dos grandes conjuntos, a maior parte da demanda habitacional dos excluídos do sistema foi “solucionada” – e continua sendo até hoje – pela ocupação de loteamentos clandestinos na periferia, impulsionada desde a década de 70 pelo espraiamento permitido pelo transporte urbano sobre pneus e pela ação inescrupulosa de loteadores que se apropriavam indevidamente de terras, revendendo falsos títulos de propriedade, ou pela ocupação de glebas vazias, gerando um aumento significativo das favelas. Com o tempo e o progressivo avanço dessas ocupações e loteamentos, e com a falta de alternativas habitacionais para as parcelas de baixa renda na cidade legalizada, tanto por parte do Poder Público quanto do mercado, essa população mais pobre passou a ocupar as únicas áreas em que legalmente o mercado não pode agir: as áreas de proteção ambiental, como beiras de córregos, mananciais e encostas. Do ponto de vista urbanístico, as políticas públicas trataram de reforçar o caráter da dominação interna da sociedade de elite: planos tecnicistas e burocráticos, muitas vezes sem efeito, prioridade absoluta às obras viárias para o transporte individual em detrimento do transporte público, intervenções de infraestrutura que fragmentam e desestruturam o tecido urbano, investimentos públicos concentrados na cidade formal e abandono da periferia pelo Estado, são marcas comuns do planejamento urbano no Brasil.
O novo contexto da redemocratização: impasses e perspectivas Embora o contexto político pós-Constituição de 1988, com a descentralização administrativa e o fortalecimento do papel dos municípios, tenha gerado uma pequena inflexão nesse cenário, o quadro ainda é dramático. É contra este quadro que os setores progressistas travam uma árdua batalha, visando pelo menos diminuir o prejuízo, tornando nossas cidades um pouco mais dignas para todos, e não apenas para os privilegiados de sempre. Tanto a inclusão dos artigos 182 e 183 na Constituição quanto a aprovação, mais de dez anos depois, do Estatuto da Cidade, que justamente regulamentou as ZEIS, foram decorrentes da forte mobilização popular em torno da defesa de uma cidade socialmente mais justa e politicamente mais democrática, que se tornou conhecida como o movimento pelo direito à cidade. A extrema precariedade dos assentamentos periféricos, a absoluta ausência do Estado na implementação de políticas habitacionais e urbanas durante décadas, geraram um paulatino mas consistente movimento de insatisfação e de mobilização da população excluída, que se reforçou com os movimentos de organização política promovidos pela igreja católica – como a Comissão Pastoral da Terra e as Comunidades Eclesiais de Base –, pelos sindicatos, pela universidade e pelo Partido dos Trabalhadores, em especial a partir da década de 80.
� Dados de difícil estimativa. Ver a respeito números apontados por instituições como Fundação João Pinheiro, Projeto Moradia-Instituto da Cidadania, LabHab-FAUUSP. Para São Paulo, ver “Balanço qualitativo de gestão: 2001-2004”, SEHAB/PMSP. Ver ainda, entre outros, Maricato (2001) e Bueno (2000).
85
Tal dinâmica levou à formação do movimento pela Reforma Urbana, congregando um número considerável de movimentos de luta pela moradia, e que logrou encaminhar ao Congresso Constituinte a emenda popular pela Reforma Urbana, encampada pelas Federações Nacionais de Engenheiros e de Arquitetos e pelo IAB, com cerca de 130 mil assinaturas, gerando condições políticas para a inserção dos artigos acima comentados. A continuidade dessa mobilização e da atuação da Frente Nacional pela Reforma Urbana é que levaria, 13 anos depois, à consolidação constitucional da regulamentação dos instrumentos propostos nesses artigos da Constituição, e no Estatuto da Cidade. Entretanto, nesse período de mais de uma década, vários municípios, quando governados por mandatos progressistas, como Santo André, Diadema, São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, entre outros, passaram a elaborar e implementar, antes mesmo da regulamentação definitiva do Estatuto, muitos dos instrumentos urbanísticos necessários à melhoria das condições de vida das populações urbanas de mais baixa renda. Muito embora não fosse esta tarefa fácil, não só pela fragilidade jurídica de instrumentos ainda carentes de regulamentação, mas também pela dificuldade política de se enfrentar, no Brasil, estruturas de hegemonia das elites com séculos de história. O que se vê portanto é que a eficácia da ação de instrumentos urbanísticos no Brasil confronta-se à necessidade de uma mudança estrutural das formas de organização da nossa sociedade e do nosso Estado, mudança esta que se situa muito acima da abrangência e possibilidades desses instrumentos. Os próprios Planos Diretores são já bastante antigos no Brasil, mas como já mostrou Flávio Villaça (1999), acabaram servindo sobretudo para um planejamento funcionalista, autoritário e centralizador que nada contribuiu para as mudanças estruturais necessárias. Embora agora estejam sendo vistos com um novo potencial para promover algumas mudanças mais efetivas, se realizados com uma metodologia verdadeiramente participativa e em função dos novos instrumentos do Estatuto da Cidade, é fundamental observar que sua implementação municipal e seu sucesso ainda dependem de um forte embate político local, que envolve o enfrentamento da estrutura de 500 anos de poder das elites acima descrita. Em que medida tais planos ou instrumentos como as ZEIS podem ser mais do que uma medida paliativa de compensação de desigualdades urbanas gritantes? Em que medida podem resolver os aspectos estruturais da desigualdade urbana no Brasil? Como seria possível pretender que, por exemplo, uma ZEIS em área central poderia ser capaz de, sozinha, dar ao centro de uma grande cidade a geração de empregos e de renda, a estruturação, a mobilidade, a interconexão urbana necessárias para uma verdadeira transformação? Ou que uma ZEIS pudesse reverter a concentração da renda exacerbada e a exclusão socioeconômica que estão na base dos problemas urbanos? Sem uma vontade política consistente, que implicaria em políticas de governo – inclusive macroeconômicas – claramente dispostas a enfrentar os privilégios das classes dominantes, a inverter as prioridades dos investimentos públicos, a somar esforços inter-setoriais prioritariamente na cidade informal, os instrumentos urbanísticos podem servir apenas como uma maquiagem demagógica sem muito poder para mudar o quadro urbano brasileiro. Porém, a questão estrutural de que falamos até agora não deve diminuir a importância ou mesmo a luta pela implementação de políticas públicas que se proponham a inverter a lógica da prioridade dada às elites, que promovam a distribuição da renda, mesmo que de forma pontual ou efêmera. Esta é, em essência, a síntese do impasse em que se encontra a esquerda no Brasil e mesmo no mundo: a incapacidade de impor mudanças estruturais ao modelo econômico vigente, o que se reverte na retomada – pelas esquerdas mais frustradas com tal dificuldade – do anacrônico dilema da reforma ou revolução, que na prática acaba aniquilando qualquer interpretação de que políticas bem implementadas não são obrigatoriamente reformistas mas podem ser bastante transformadoras, mesmo que a longo prazo. Muitos governos progressistas eleitos após a redemocratização avançaram significativamente na implementação de políticas focadas na redução da desigualdade social. A aprovação do Estatuto da Cidade representou um enorme avanço nas possibilidades de realização da reforma urbana, que vem tendo continuidade na disputa política local por planos diretores que incorporem seus instrumentos. E 86
recentemente, a experiência de três anos de um inédito Ministério das Cidades, de forte identificação com os setores progressistas da área urbana, permitiu implementar avanços estruturais importantes como uma política nacional de habitação, o Conselho das Cidades e o Fundo Nacional de Moradia. É verdade que quase sempre essas experiências foram e ainda são abruptamente interrompidas pela reimposição permanente das regras do jogo impostas pelos setores dominantes. Assim ocorreu em São Paulo, quando uma experiência progressista entre 1988 e 1992 foi seguida por duas gestões do mais atrasado e arcaico modelo político possível. Assim ocorreu também, em 2005, com o Ministério das Cidades, com um razoável desmonte das políticas lá impetradas em razão da entrega do ministério ao balcão do jogo partidário da governabilidade, o que mostra que a implementação de políticas setoriais está também muitas vezes subordinada ao anacrônico sistema político brasileiro, estruturado para a manutenção da hegemonia das classes dominantes. Mas seria uma inconsequência defender que tais esforços não estejam se somando, a longo prazo, para permitir transformações mais profundas da nossa sociedade, embora muitos desejassem, com razão, que elas fossem mais rápidas e mais drásticas. Por isso, as ZEIS – Zona Especial de Interesse Social ou AEIS – Áreas Especiais de Interesse Social, têm sido consideradas como o mais adequado instrumento urbanístico a ser utilizado para viabilizar a regularização fundiária e urbanística de diferentes tipos de núcleos e áreas de ocupação precária da população de baixa renda, como também para facilitar e incentivar a produção de novas moradias. O significado da ZEIS como um mecanismo de ampliação do acesso à moradia e consequentemente à terra urbana, garantindo a função social da propriedade, também abre novas perspectivas em torno das possibilidades de redistribuição e maior controle da valorização fundiária e imobiliária que o instrumento possibilita.
Breve histórico da ZEIS – Zona Especial de Interesse Social Mesmo antes da Constituição de 1988, alguns municípios brasileiros já haviam implementado o instrumento das ZEIS, vinculando-o, principalmente, a programas de regularização fundiária em favelas. Se a década de 1990 marcou um período de agravamento da crise econômica e social no Brasil e em especial nas regiões mais industrializadas, intensificando-se o desemprego e a crise habitacional, antagonicamente foi também nesse momento que muitas cidades vivenciaram importantes avanços nas políticas sociais, inclusive as políticas habitacional e urbana. No bojo da chegada ao poder, com a redemocratização, de governos de alinhamento progressista e fortemente amparados pelos movimentos populares, municípios como Recife, Santo André, Diadema, Belo Horizonte e São Paulo, entre outros, passaram a ser uma referência de vanguarda na implantação de mecanismos de democratização da gestão da cidade e, consequentemente, de políticas públicas voltadas para os interesses coletivos e para a melhoria das condições de vida da população mais pobre. Recife se destaca por ter implementado, além da legislação de Planos de Regularização das ZEIS (PREZEIS), a regulamentação de um complexo sistema de gestão participativa. Miranda e Moraes (2004) destacam como “o redirecionamento das políticas de desenvolvimento urbano e habitacional, a partir da segunda metade dos anos 70, apontou para um novo padrão de intervenção pública que prioriza(va) a regularização urbanística e fundiária das favelas ”, e que se materializou na cidade já em 1980, com a criação de vinte e seis Áreas Especiais. Em 1987, a aprovação da lei do Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social – PREZEIS, resultante de um processo liderado por entidades e organizações da sociedade civil, “materializou os preceitos da Reforma Urbana, antecipando-se à constituição cidadã de 1988” (Miranda e Moraes 2004). Em Santo André, as AEIS – Áreas de Especial Interesse Social, foram aprovadas em 1991, na sequência de leis de diretrizes para a política habitacional do município e da própria Lei Orgânica, aprovada em 1990. As AEIS buscavam viabilizar a urbanização e a regularização de favelas, para “ampliar o acesso à moradia pelo incentivo à produção de moradias populares, redução de preço dos terrenos e ampliação de sua oferta ” (Denaldi, 2002). 87
As ZEIS ou AEIS marcaram, nesse cenário, uma perspectiva inovadora, no sentido de reconhecer uma grande parcela da população urbana como cidadãos, e seus locais de moradias – mesmo que informais – como parte da cidade, buscando garantir a recuperação dessas áreas, a melhoria das condições de vida através da instituição de padrões mínimos de urbanização e ocupação do solo. Outro importante objetivo do instrumento, que deve ser ressaltado, é o de garantir a reversão de áreas urbanas vazias para a provisão de Habitação de Interesse Social – HIS, em especial na cidade formal e nas áreas de mananciais. Esse seria, se não o principal, um dos principais objetivos da ZEIS / AEIS, uma vez que pode conter a especulação fundiária, restringindo o direito à propriedade através da instituição legal de sua função social. Em áreas centrais e/ou dotadas de infraestrutura urbana, o instrumento tem o potencial de conter também a valorização imobiliária, na medida em que uma área declarada ZEIS ou AEIS, na qual se obrigue a construção significativa de HIS e sejam determinadas regras edilícias restritivas, forçase os proprietários a uma negociação com o poder público a fim de viabilizar intervenções em seu imóvel ou terreno. Esse último caráter do instrumento é um dos principais pontos de disputa – no âmbito da sua regulamentação nos Planos Diretores Municipais – na determinação dessas áreas ou zonas especiais, visto que empreendedores imobiliários e proprietários muitas vezes tentam impedir a delimitação de certas áreas como ZEIS ou AEIS, ou reivindicam maior flexibilização nas restrições estabelecidas pelas normas urbanísticas, a fim de garantir as taxas de lucratividade de seus empreendimentos. A experiência de Diadema se destaca quanto à implementação de AEIS em terrenos e glebas vazias, tendo alcançado resultados significativos no que se refere aos números de unidades habitacionais produzidas nessas áreas�. No entanto, a maioria das cidades, inclusive em casos exemplares como Recife, não instituíram ZEIS em áreas vazias, e quando instituíram, não chegaram a regulamentar seus parâmetros urbanísticos através de leis ou decretos específicos, dificultando sua aplicabilidade. Desta forma, diante de algumas análises e levantamentos ainda preliminares, mas representativos das experiências de ZEIS no Brasil, pode-se ainda questionar a efetividade do instrumento. Nas experiências analisadas, constata-se que seus resultados não foram tão eficazes para a produção e melhoria habitacional. As ZEIS são realmente capazes de promover os objetivos que a elas se imputam? São elas eficazes a ponto de interferir estruturalmente na questão habitacional do país, a qual está profundamente atrelada a questão da propriedade da terra? Buscar respostas a tais perguntas faz-se necessário frente ao fato de que muitos municípios que estão tendo de elaborar seus Planos Diretores ainda não têm proximidade com o instrumento nem subsídios suficientes para sua implementação como um instrumento efetivo de política habitacional. Essa é a razão da pesquisa ora proposta, que buscará aprofundar a leitura das problemáticas observadas nas experiências de ZEIS já existentes, conforme descritas preliminarmente a seguir.
Levantamentos Preliminares: panorama de problemáticas Entre os principais limites e problemáticas identificados de forma preliminar nas experiências de implantação de ZEIS, destacam-se as seguintes questões: - Ineditismo e dificuldade de sistematização das experiências
A implementação de ZEIS é uma experiência praticamente inédita no país, e por isso mesmo não há uma expertise significativa quanto aos seus processos de elaboração e implantação. As experiências já existentes, como as citadas acima, ajudam certamente a nortear a regulamentação das ZEIS pelos � Sobre a experiência de Diadema, ver: Mourad (2000); HEREDA, Jorge Fontes et all. “O impacto das AEIS no mercado imobiliário de Diadema”. In ROLNIK, Raquel & CYMBALISTA, Renato (orgs). Instrumentos urbanísticos contra a exclusão social. Revista Pólis no 29. São Paulo: Instituto Pólis, 1997; e Mourad e Baltrusis. “10 anos de AEIS em Diadema: a propriedade cumprindo a sua função social”, VIII Seminário de História do Urbanismo e da Cidade , Niterói, 2005.
88
municípios, mas a diversidade dessas experiências, e sobretudo das realidades de cada município fazem com que ainda seja difícil sistematizar um modelo mais consistente. - Competência dos Municípios
A elaboração e implementação do instrumento foram delegadas, pelo Estatuto da Cidade, aos Governos Municipais, devendo ser regulamentados nos Planos Diretores, e podendo inclusive variar na sua formatação. Entretanto, grande parte dos municípios brasileiros, em especial de médio porte, ainda não assimilaram os procedimentos nem mesmo dos Planos Diretores. Publicações conhecidas, em especial do Instituto Polis e da CEF, e agora ações específicas do Ministério das Cidades, vêm respondendo a essa questão. Para além do Plano Diretor, entretanto, a questão específica das ZEIS ainda não teve discussão mais aprofundada, quando ela representa a necessidade de um esforço significativo de produção de conhecimento urbanístico e de gestão para os municípios, merecendo um destaque especial. - Qualidade arquitetônica e urbanística
Fica claro que nem sempre o instrumento das ZEIS garante, por si só, uma melhoria da qualidade arquitetônica, urbana e ambiental. Há casos em que a delimitação de ZEIS conseguiu regularizar a situação fundiária, mas não evitou que surgissem bairros cuja tipologia construtiva pouco se diferencia das áreas de ocupação precária como favelas e loteamentos autoconstruídos (Tsukumo, 2002). Isso significa que a ZEIS deve ser sempre acompanhada de um conjunto de instrumentos adequados de regulamentação urbanística e construtiva, o que não vem ocorrendo. A falta de integração das políticas urbanas e habitacionais, a pulverização das ações e recursos, muitas vezes escassos, ou a inexistência de parâmetros são alguns dos fatores que reforçam a precariedade construtiva. No entanto, como vimos em pesquisa realizada sobre a implementação de AEIS em Diadema (Tsukumo, 2002), considerada uma experiência importante quanto ao número de unidades produzidas, a efetivação da regulamentação de parâmetros ainda assim não conseguiu resolver a baixa qualidade arquitetônica. A institucionalização de padrões mínimos é um outro fator que, contraditoriamente ao esperado, contribui para a baixa qualidade arquitetônica, em razão de uma problemática inerente à questão habitacional brasileira: a incapacidade de pagamento das camadas de baixa renda. “ As ZEIS institucionalizam os ‘mínimos’ de bem estar produzidos pela espoliação urbana, legitimando esses parâmetros. ” (Lago, 2005). - Adequação e coerência de conceitos e parâmetros técnicos e jurídicos
A aplicação das ZEIS envolve discussões jurídicas e técnicas sobre questões como regularização fundiária, normas de uso e ocupação do solo, adensamento populacional, entre outras, que nem sempre foram equacionadas de maneira coerente nas experiências até agora verificadas. A definição mais precisa de conceitos, da quantidade e tipos de ZEIS, ou da flexibilização dos parâmetros urbanísticos são fundamentais para a qualificação dos resultados que potencialmente serão alcançados. Em alguns municípios, a delimitação das ZEIS não foi acompanhada pela definição de parâmetros urbanísticos e construtivos especiais, remetendo sua regulamentação para decretos ou leis específicas, dependendo do grau de modificação dos índices e coeficientes em relação ao entorno de cada ZEIS. Uma discussão sobre a adequação desses parâmetros especiais ainda é extremamente necessária, mesmo em municípios que já os regulamentaram, como no caso de São Paulo�. Na maioria das vezes esses parâmetros permitem índices altíssimos de ocupação e aproveitamento dos terrenos a fim de incentivar a produção de habitação social por parte do mercado imobiliário privado. No entanto, esses índices elevados, ao possibilitarem altas taxas de densidade e ocupação, podem acarretar resultados � Decreto municipal nº 44.667/04. Nesse decreto são instituídos, entre outros, os parâmetros e normas relativos a coeficientes de aproveitamento e porcentagem das áreas que devem ser obrigatoriamente destinadas a HIS.
89
urbanísticos e arquitetônicos questionáveis ou de baixa qualidade. Um coeficiente de aproveitamento 4, como o aprovado em São Paulo, pode gerar densidades de 1600 habitantes por hectare!� Assim, como utilizar os padrões e normas urbanísticas de forma a incentivar a iniciativa privada na produção habitacional, sem comprometer a qualidade final dos empreendimentos? O equilíbrio entre altos coeficientes de aproveitamento e o interesse em preservar o patrimônio histórico arquitetônico de bairros centrais é outra questão a ser discutida na aplicação das ZEIS. O enorme déficit habitacional do país, principalmente em grandes cidades, justifica a necessidade de adensamento das áreas centrais providas de infraestrutura urbana para o uso de habitação popular, a fim de reverter o histórico quadro de expansão urbana periférica e do problema habitacional. No entanto, como argumenta Maricato, “grande parte das características do Centro são dadas pelo patrimônio ‘banal’ ou comum�. Este fornece parte dos padrões de parcelamento do lote, tipologia de construção, relação dos imóveis com a rua (...). Neste caso a reciclagem de edifícios adquire relevância. (...) Dependendo dos parâmetros, uma operação urbana pode estimular mais a demolição do que a reciclagem ” (Maricato,2001). Nesse sentido, como viabilizar uma densidade relativamente alta nos empreendimentos habitacionais e, ao mesmo tempo, garantir a preservação do patrimônio construído? Em alguns municípios foram delimitadas ZEIS em regiões providas de infra-estrutura, geralmente áreas urbanas mais centrais, onde há concentração de imóveis e terrenos não edificados, não utilizados ou subutilizados. A definição do conceito de subutilizado, nesses casos, é fundamental para uma delimitação precisa das áreas. Quais os critérios para definição do grau de utilização dos imóveis? Um estacionamento na área central de uma metrópole como São Paulo, onde há grande demanda por áreas para a provisão habitacional, deve ser considerado subutilizado? - Descontinuidades de gestão
As mudanças de gestão e a tradicional – e criminosa para com o bem público e a sociedade – descontinuidade das políticas públicas por razões político-partidárias também contribuem para a não consolidação de ZEIS implementadas em uma gestão. No Município de São Paulo, por exemplo, as ZEIS e os procedimentos a elas associados (como a criação de Conselhos de ZEIS e a realização de Planos de ZEIS), muitas originadas nas experiências na área central dos PRIHs – Perímetros de Reabilitação Integrada do Habitat, e embora previstos no Plano Diretor aprovado em 2002, caíram em absoluto esquecimento por parte do Poder Público já na primeira gestão subsequente, e não parecem ter um futuro muito promissor. - Ausência de prioridade política
Muitas vezes, como no caso do Recife, a ZEIS é considerada um instrumento localizado, e não recebe a prioridade que deveria como eixo estruturador da intervenção habitacional. Em outras palavras, as ZEIS não têm muito efeito se forem apenas um anexo pontual da política habitacional, e não parte integrante dela, com a qual as outras ações se concatenam. Em estudos e análises já realizados sobre a experiência de implementação da ZEIS em Recife verificamos que “ em nenhuma gestão o PREZEIS se constituiu em um instrumento fundamental da política habitacional municipal...” (Miranda & Moraes, 2004). Mesmo sendo uma das únicas cidades que aprovou a existência de um fundo específico para a ZEIS (o Fundo Municipal � Em discussões e trabalhos da disciplina de graduação da FAUUSP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Planejamento Urbano e Regional), no ano de 2004, foram realizados estudos sobre os índices e taxas de ocupação dos terrenos, sendo que para atingir uma densidade populacional considerada adequada, não se poderia ultrapassar o coeficiente 2. � Em levantamentos realizados pelo LabHab em 2004, no âmbito da consultoria para o PRIH – Perímetro de Reabilitação Integrada do Habitat, foram detectados inúmeros conjuntos arquitetônicos de interesse de preservação do patrimônio banal dentro das áreas delimitadas como ZEIS que têm coeficientes de aproveitamento 4. O patrimônio arquitetônico banal, aquele comum, não monumental mas que caracteriza e tipifica os bairros em questão, geralmente não é tombado, mas necessitaria de instrumentos específicos para sua preservação. O termo patrimônio banal surgiu na França, na implementação dos programas de reabilitação de áreas centrais. Ver LABHAB-FAUUSP / École Nationale des Ponts et Chaussées/ Pact Arim Internacional, Documento do Curso de Programas de Reabilitação Urbana, São Paulo: novembro de 2000. Ver também LABHAB / FAUUSP / Perímetros de Reabilitação Integrada do Habitat - Programa Morar no Centro – Relatório Final / PRIH Glicério e PRIH Brás. São Paulo, 2004.
90
do PREZEIS), o processo de efetivação das intervenções de regularização foi muito lento, levando cerca de 6 anos para se consolidar a estrutura do fundo municipal. É gritante o descompasso entre os tempos de elaboração e implementação dos Planos de Regularização e das demandas reais das comunidades localizadas em ZEIS, fato decorrente, sim, do limite de recursos públicos, mas agravado pela imposição de uma concorrência com outras prioridades de aplicação dos recursos municipais. Mesmo associada a outros mecanismos jurídicos, como a CDRU – Concessão de Direito Real de Uso, a Concessão Especial de Uso para fins de Moradia ou o Usucapião Urbano, a efetivação das ZEIS fica comprometida. São raros os casos que conseguiram chegar à última das etapas de regularização fundiária: o registro no cartório da CDRU. No caso de Recife, o município possui legislação específica para regularização de ZEIS desde 1987, no entanto conseguiu efetivar a regularização em apenas 2 núcleos de favelas, do total de 66 áreas delimitadas como ZEIS. - Gestão participativa na implementação das ZEIS
A participação da população na gestão de políticas públicas tem sido fundamental para um desenvolvimento urbano menos desigual, em especial na aplicação de instrumentos urbanísticos como a ZEIS. No entanto, uma problemática que percebemos nos levantamentos das experiências é o questionamento quanto a real participação nas tomadas de decisão. No caso de Recife, onde existe regulamentação de um complexo sistema de gestão, as lideranças têm dificuldade em estabelecer uma comunicação constante com os moradores de sua comunidade, sendo que em muitas delas os moradores não conhecem ou nunca ouviram sobre a ZEIS ou o PREZEIS – Plano de Regularização das ZEIS (Miranda, 2002 e 2004). Assim, nos questionamos quanto à efetividade desse e outros sistemas de gestão vinculados as ZEIS, deve-se verificar se a participação ocorre de maneira efetiva no momento da tomada de decisão ou se ela é apenas para legitimar interesses específicos. - Disputa na aplicação das ZEIS
Por ser uma ferramenta que pode abrir caminhos para solucionar o problema habitacional brasileiro e, consequentemente, gera conflitos de interesses na produção do espaço construído, em muitos municípios o instrumento da ZEIS tem sido foco de disputas políticas entre diversos grupos da sociedade. A definição da quantidade das áreas delimitadas, dos tipos definidos, do grau de flexibilização dos parâmetros e normas urbanísticas, entre outros, são alguns dos elementos de disputa que muitas vezes dificultam a efetivação da ZEIS como um instrumento transformador da realidade urbana desigual. A delimitação de ZEIS em terrenos vazios tem o potencial de garantir um estoque de terras para a provisão habitacional e uma contenção dos valores fundiários. No entanto, como dissemos, esse tipo não foi instituído ou regulamentado em muitas das cidades que já experimentaram a aplicação do instrumento, pois geralmente, os processos de discussão e negociação política para a delimitação e determinação dos diferentes tipos das ZEIS geram pressões de setores do mercado imobiliário ou de proprietários para que não sejam demarcadas. Porto Alegre teve a aprovação, em 1999, de seu PDDUA – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, onde foram definidos 4 tipos de ZEIS, inclusive em áreas centrais dotadas de infraestrutura e em áreas vazias. No entanto, até hoje, apenas os tipos localizados em favelas e loteamentos irregulares ou clandestinos (tipos 1 e 2) foram regulamentados em decreto específico. Em São Paulo, após as discussões e aprovações dos Planos Regionais houve uma diminuição do número e redefinição de áreas delimitadas como ZEIS em relação ao Plano Diretor Estratégico do município, onde foram definidas anteriormente.
91
Encaminhamentos para a pesquisa: questões a serem analisadas Diante do levantamento preliminar das experiências de implementação de ZEIS, foram destacadas algumas problemáticas, discorridas acima. No entanto, para a apreensão correta do papel e das potencialidades das ZEIS, alguns temas e questões ainda deverão ser analisados com maior profundidade, os quais foram estruturados em 3 grandes eixos: i) Política e Regulamentação; ii) Implementação e Gestão; e iii) Parâmetros. Entre os temas do eixo de política e regulamentação podemos destacar a análise sobre o nível de inserção e integração das regulamentações e ações das ZEIS na política urbana do município, a fim de identificar se houve melhores condições de continuidade da gestão das ZEIS ou AEIS; a introdução de aspectos inovadores na aplicação do instrumento; e se houve dificuldades políticas e de efetividade devido à falta de integração. Neste eixo, faz-se necessária a apreensão e diferenciação dos critérios técnicos considerados na concepção das ZEIS, na sua delimitação, assim como a análise da regulamentação específica adotada e o grau de inserção da ZEIS na Política Urbana do Município. Já entre os temas de implementação e gestão, dois são de fundamental importância. O primeiro se relaciona à análise de como o instrumento contribuiu para uma real contenção dos processos de valorização fundiária e imobiliária e que resultados e possibilidades foram propiciados por essa contenção: ampliação da oferta de terras e empreendimentos habitacionais para baixa renda; manutenção da população moradora de baixa renda; rebaixamento de preços, tornando-os acessíveis a esse perfil da população. É muito importante identificar se há ou houve mecanismos de monitoramento dos preços dos terrenos. Outro tema relacionado à gestão é o conjunto de mecanismos de negociação entre poder público e proprietários fundiários ou imobiliários, ou iniciativa privada. Identificar quais as modalidades de integração entre esses agentes e se o instrumento da ZEIS introduziu inovações nesse sentido será muito importante; além de analisar quais os outros agentes envolvidos e seus respectivos papéis. De forma geral, quais foram as instâncias participativas de gestão da ZEIS adotadas e qual sua eficácia é um aspecto importante a verificar. Também é importante analisar, em municípios situados em Regiões Metropolitanas, como foi incorporada a questão da gestão intermunicipal. Por fim, ainda neste segundo eixo, é importante analisar quais as formas de financiamento habitacional adotadas para a implementação das ZEIS e o quanto este quesito foi ou não importante para viabilizálas, assim como deve-se observar Considerando que a ZEIS é um instrumento vinculado à regularização fundiária e imobiliária, dois temas que podemos destacar dentro do terceiro eixo, de análise de parâmetros, são aqueles relacionados tanto à urbanização de núcleos de favelas como à qualidade dos resultados arquitetônicos e urbanísticos. Desta forma, seria importante identificar como os parâmetros definidos influenciam nos resultados alcançados e se propuseram soluções inovadoras quanto à qualidade do ambiente construído, quanto aos processos e mecanismos de regularização, observando casos específicos como a ocupação de áreas de proteção ambiental. Também deve-se considerar aspectos como o tamanho da área de ZEIS e a densidade sugerida, assim como a existência de patrimônio histórico arquitetônico significativo (em especial em ZEIS em áreas central). O presente artigo procurou apresentar os principais elementos a considerar para um discussão aprofundada sobre o instrumento das ZEIS, ainda muito pouco praticado no Brasil. Com o esforço do Ministério das Cidades em difundir a implementação de Planos Diretores Participativos, e sabendo-se que estes não são uma panaceia, justamente em função do impasse estrutural sobre o qual falamos detalhadamente acima, a reflexão sobre instrumentos urbanísticos que, como as ZEIS, podem ter um forte caráter de regulação urbanística em favor da democratização das cidades, torna-se premente. Acrescente-se a isso o fato de que muitos financiamentos hoje existentes para as políticas habitacionais, 92
como o PAR, podem casar-se perfeitamente com o instrumento das ZEIS. Conhecer seu potencial transformador, seus limites e os obstáculos já encontrados em sua implementação pode ser portanto muito útil. Espera-se com este artigo ter-se iniciado uma discussão que possa subsidiar o uso do instrumento pelos municípios brasileiros.
93
Operação Urbana Consorciada: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade? Com Erminia Maricato Capítulo do livro OSORIO, Letícia Marques. “Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras”. Porto Alegre/São Paulo: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
As constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias são fenômenos correntes em toda a história da América do Sul (Holanda, 1971:137). Um ritmo que nasce da comunicação com o exterior e que, frequentemente, nos põe diante de uma história virtual (Florestan Fernandes, 1991:183).
O instrumento da Operação Urbana Consorciada não é novo, e já apareceu – sob configurações e nomenclaturas diversas e nem sempre idênticas às regulamentadas agora no Estatuto da Cidade – em Planos Diretores de muitas cidades brasileiras. Uma mostra da maleabilidade do instrumento para responder a interesses muito diversos está no fato de ele ter sido regularmente defendido e em alguns casos implementado por administrações paulistanas ideologicamente e eticamente tão diferentes quanto as de Mário Covas, Jânio Quadros, Luiza Erundina, Paulo Maluf, Celso Pitta e Marta Suplicy. Nesse período, uma dezena de operações chegaram a ser propostas, mas nem todas concretizadas. Muito da polêmica que gira em torno das operações urbanas se deve à maneira como elas foram efetivadas em São Paulo, município que levou essa experiência mais longe, alimentando lucros do capital imobiliário de ponta e ignorando, ou melhor, reproduzindo e agravando problemas sociais. Queremos verificar aqui se essas experiências definem um destino fatal a esse instrumento tão prestigiado pelos urbanistas, tanto os que compõem as equipes de planejamento nos municípios brasileiros quanto os que são contratados para as consultorias. As operações urbanas podem ir além de um conjunto de lucrativas operações imobiliárias?. Elas poderão ser utilizadas de fato para engendrar “melhorias sociais” e “valorização ambiental” como reza o Estatuto da cidade? Elas constituem essa excepcional fonte de recursos para um poder público falido como apregoam alguns? As virtudes e as mazelas atribuídas a esse instrumento urbanístico dependem de sua formulação técnica? Tentaremos verificar as inovações contidas nesse instrumento, analisando o porquê da sua grande aceitação no meio urbanístico. Em seguida iremos examinar sua aplicação perversa em relação ao interesse público e social, à luz dos exemplos de São Paulo. Outras experiências não se mostraram tão negativas mas o tempo de vigência das mesmas, sua abrangência, frequentemente pontual, e o número diminuto dificulta a análise. Desde já, o que deve ser ressaltado é o fato de que, assim como todos os outros instrumentos propostos no Estatuto da Cidade, as Operações Urbanas podem ser boas ou ruins, sob uma ótica progressista, dependendo da maneira como forem incluídas e detalhadas nos Planos Diretores. A tese defendida aqui é que não está na tecnicalidade do instrumento a fonte do seu uso fortemente regressivo, contrário ao interesse social. Ele não tem a propriedade, por si só, de ser nocivo ou benéfico na construção da cidade democrática e includente. A questão está em sua formulação e implementação no nível municipal. Dependendo delas, dificilmente sua aplicação deixará de ser antissocial. Tem portanto algo a ver com a técnica, mas é antes de mais nada uma questão política, uma vez que seu efeito progressista depende da capacidade de mobilização da sociedade civil para garantir que seja regulamentado de forma a assegurar uma implementação segundo os interesses da maioria e não apenas das classes dominantes, e que permita o controle efetivo do Estado e a possibilidade de controle social na sua aplicação.
94
A análise ou a avaliação de qualquer instrumento legal, especialmente aqueles que pretendem regulamentar as cidades brasileiras exige pelo menos duas observações preliminares. Elas estão relacionadas às duas citações acima. É fartamente admitido que a aplicação ou a interpretação das leis dependem das circunstâncias. Uma atitude de deboche tem sido mais comum do que uma reação indignada toda vez que é lembrado o fato de que no Brasil há leis que “pegam” e leis que “não pegam”. Vários estudiosos da sociedade brasileira se referem ao dinâmico tráfico de escravos, que se desenvolveu entre 1826 e 1850, financiado por personagens importantes da sociedade, apesar da proibição legal, para buscar um exemplo paradigmático dessa “flexibilidade” na aplicação da lei.. Alfredo Bosi e Roberto Schwarz vão mais longe ao lembrar as ambiguidades e contradições entre o ideário liberal e a ordem escravocrata que conviviam aparentemente sem dificuldades, o que acabava por atribuir méritos ao seu contrário (Bosi, 1992; Schwarz, 1990). Distância, e por vezes oposição, entre o discurso e a prática, essas marcas da sociedade brasileira estão presentes, especialmente na aplicação das leis. Não se trata se desenvolver aqui uma análise dos fatores que levam uma lei a “pegar” ou não, porém, sem temer exageros ou fazer conclusões apressadas, podemos dizer que os direitos, durante séculos, se referiram a uma parte da sociedade, distinguida pelo patrimônio. Os mesmos autores acima, dentre muitos outros, lembram que em 1824, a Constituição Brasileira abrigava par te da Declaração Universal dos Direitos do Homem, os mesmos direitos que após o início do século XXI estão bem longe do alcance da maior parte da população. O arbítrio na aplicação da lei, fixando privilégios e discriminações, atravessou séculos. Ele é generalizado, mas em nenhuma face da sociedade ele é tão evidente quanto na leitura que as metrópoles, com sua gigantesca ilegalidade urbanística e exclusão social, proporcionam: lei para alguns, modernidade para alguns, mercado para alguns, cidade e cidadania para alguns... (Castro e Silva, 1997; Maricato 2000,2001). Em rápidas palavras, mais do que a inadequação técnica, o que define o sucesso ou não de uma lei é o interesse dos donos do poder – o patrimonialismo, para usar a expressão de Raimundo Faoro, outro autor que muito contribuiu para a compreensão de uma outra marca profunda da sociedade brasileira. Ao analisar a história do planejamento urbano no Brasil, Villaça (1999) vai na mesma direção. A segunda observação preliminar que cabe fazer antes da análise do instrumento jurídico/urbanístico que nos coube nesta coletânea diz respeito à tradição de importar do exterior as ideias para explicar ou para conduzir nossos destinos. Nota-se uma atração especial dos urbanistas, em consonância com as elites, pelo “ dernier cri ” do planejamento europeu ou norte americano. Nos seminários acadêmicos, nas dissertações e teses defendidas nas universidades, as comparações entre São Paulo, Rio de Janeiro, Paris, Barcelona, Londres, Nova Iorque se faz, frequentemente, sem qualquer advertência. Celso Furtado, um intelectual que se envolveu intensamente com a busca de caminhos para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro, na administração pública, é insistente em apontar o mimetismo cultural que solapa as iniciativas de acúmulo do conhecimento e da construção da nação. Em trabalho anterior Maricato procurou mostrar que a análise do ideário do planejamento urbano no Brasil configura “ideias fora do lugar” (no dizer de Schwarz) enquanto há um “lugar fora das ideias”, isto é, uma parte da realidade urbana – ilegal, oculta, ignorada – que não é objeto de teorias, leis, planos e gestão (e onde predomina a relação de favor ou clientelista), ao passo que a outra – a cidade do mercado hegemônico, a cidade oficial, formal, legal – mimetiza o debate internacional. Apenas uma parte da cidade, uma verdadeira ilha de primeiro mundo, merece atenção de instrumentos urbanísticos detalhados. Dessa forma, concentrando investimentos, regulação, serviços de manutenção, a cidade se conforma ao modelo concentrador de renda, poder e propriedade que marca toda a sociedade. A matriz postiça não dá conta da realidade concreta ou, como escreve Sergio Buarque de Holanda, referindo-se ao intelectual brasileiro, as ideias vindas de fora asfixiam nossa “vida verdadeira”. (Holanda, 1971:123) De fato, Europa e Estados Unidos não apresentam realidades como o comprometimento da rede hídrica que funciona como um conjunto de canais condutores de esgotos, regra absoluta no Brasil urbano. Também não apresentam nada semelhante às favelas e à cidade ilegal. Jamais, num país do capitalismo central, o Estado faria vistas grossas para a intensa ocupação de mananciais de água potável, ou de mangues, 95
áreas “protegidas” por leis federal, estaduais e municipais. O controle sobre o uso e a ocupação do solo, no Brasil, é discriminatório: se faz apenas nas áreas que interessam aos proprietários privados, como é coerente numa sociedade patrimonialista. A importação de modelos do exterior desconhece a especificidade da sociedade e das cidades brasileiras (e latino-americanas de um modo geral). Como nó central de diferença está o acesso ao mercado – especialmente o mercado residencial legal – que não incorpora nem metade da população brasileira (Maricato, 2000), enquanto nos países do capitalismo central o acesso à moradia servida de água, esgoto e transporte, além dos serviços de educação e saúde, é praticamente universal. Essa especificidade é fundamental. Ela faz toda a diferença. Desconhecê-la significa desconhecer a realidade e manejar a ficção, ou melhor, significa tomar uma parte da cidade pelo todo: a cidade do mercado que é, em muitas metrópoles, a cidade da minoria privilegiada. A operação urbana consorciada não fugiu a essa rotina, verdadeiro destino do capitalismo periférico, como se verá adiante.
Parcerias público-privadas: uma ideia consensual? O consenso em torno das Operações Urbanas se deve à aceitação que vem ganhando a ideia de se efetivar parcerias entre o Poder Público e os diferentes agentes sociais na gestão da cidade, como forma de superação das dificuldades que o Estado enfrenta. A parceria público-privada não surge no Brasil, assim como não é originário daqui o próprio instrumento da Operação Urbana. Já na década de 70, iniciase na Europa e nos EUA um processo paulatino de déficit de arrecadação do Estado, devido a problemas como o aumento do desemprego, o alto custo de manutenção do Estado-Providência e a crise fiscal, todos relacionados com as transformações paradigmáticas geradas pela reestruturação produtiva e o esgotamento do modelo fordista-taylorista. Por essa razão, ganharam força políticas visando uma coresponsabilização da gestão das cidades por todos os agentes participantes da produção do espaço urbano�. Embora a ideia da parceria incorpore essas noções de participação da sociedade c ivil organizada, através de associações locais, por exemplo muito comuns na Europa, é inegável que no caso das operações consorciadas a iniciativa privada ganha um papel de destaque, pelo volume de capital de que dispõe, em relação a um Estado pouco ágil do ponto de vista financeiro. A lógica está na possibilidade do Estado, pelo seu poder regulador, trabalhar com incentivos que tornem a participação direta nas melhorias urbanas – através do pagamento de contrapartidas – atrativa para a iniciativa privada. Evidentemente, os instrumentos para a efetivação dessas parcerias ganharam contornos muito mais liberais nos EUA do que na Europa, onde o Estado manteve um controle significativo sobre a gestão do território. Outro fato que alimentou a recepção bem sucedida da proposta de operações urbanas está na possibilidade dela representar uma alternativa para as amarras da legislação modernista /funcionalista, uma possibilidade de flexibilização da legislação contra esse “engessamento”. Regras que pretendiam dar conta da normatização do uso do solo em todo o território urbano, desconhecendo, frequentemente, especificidades espaciais, sociais e ambientais, foram perdendo paulatinamente prestígio. O ideário do urbanismo funcionalista correspondia (estamos nos referindo, sempre, aos países do capitalismo central), ao Estado provedor, regulador, portador da razão. Esse Estado foi uma construção resultante da evolução (ou adaptação) do capitalismo em confronto com as lutas dos trabalhadores durante todo o período de industrialização. Seu desmonte em virtude do fortalecimento da ideologia neoliberal determinou também a demolição daquele ideário urbanístico.
� É daí que nasce a noção de “governança”, muito usada hoje na Europa, e que valoriza a participação da sociedade civil organizada – geralmente em nível local – nas instâncias decisórias dos processos de gestão (Ferreira, 2001).
96
Mas não foi apenas o pensamento neoliberal que determinou o fim do urbanismo modernista/ funcionalista. Críticas muito bem fundamentadas apontam os erros de uma tal concepção de controle centralizado e burocrático sobre a cidade, pelo Estado. Uma delas é formulada por Jane Jacobs em seu clássico Morte e vida das grandes cidades . A necessidade de tratamento específico a determinadas áreas ou bairros da cidade, a importância do envolvimento da sociedade na manutenção e no controle urbanístico, a flexibilização de regras muito rígidas que desconheciam rotinas diárias, a monotonia e administração impessoal, o esvaziamento e a deterioração de bairros inteiros, foram alguns dos motivos para a demanda por novos instrumentos legais e novos procedimentos na gestão urbana. No Brasil, a gravidade da crise fiscal nem precisa ser discutida, ainda mais depois da vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal. A maioria das nossas grandes cidades está imobilizada do ponto de vista financeiro. Associe-se a isso a falência do paradigma de planejamento modernista/funcionalista e a força ideológica dos argumentos neoliberais, e entende-se porque a efetivação de parcerias com a iniciativa privada passa a ser vista como uma tábua de salvação para muitas prefeituras, sejam elas conservadoras ou progressistas. As operações urbanas são justificadas por todos, como um instrumento importante para uma nova e moderna forma de gestão concertada, adaptada às contingências da nova economia. Na sua defesa, citam-se, entre outras qualidades, o seu uso com sucesso nos países industrializados, seu caráter redistributivo, seu potencial de arrecadação, as perspectivas de renovação com financiamento privado de áreas degradadas. Mas, como já dissemos, se boa parte dessas qualidades podem ser reais, sua efetivação depende muito da forma como serão detalhadas as operações. Se não forem considerados nesse processo uma série de fatores, que procuraremos discutir a seguir, pode-se acabar insuflando um instrumento muito útil para os interesses do mercado excludente.
Os “modelos” europeus e americanos de parceria público-privada. A primeira questão a ser problematizada é portanto a comparação recorrente que se faz entre as Operações Urbanas e as políticas semelhantes – mas não iguais – que as originaram, tanto nos EUA quanto na Europa. Como já foi dito, há uma diferença estrutural que impede que seja feita uma simples transposição dos resultados obtidos naqueles países para o Brasil. De fato, nos países industrializados, quando se fala em mercado, fala-se na esmagadora maioria da população. Em outros termos, o mercado, em função da pujança do crescimento da economia capitalista desenvolvida, envolve naqueles países o conjunto da sociedade, cuja diferença entre os extremos de renda é centenas de vezes mais reduzido do que no Brasil. Logo, políticas públicas que trabalhem em parceria com a iniciativa privada, garantindolhe ganhos em troca de contrapartidas que “dinamizem” o mercado, estarão atingindo, mesmo que em graus variados, o conjunto da população. Tome-se como exemplos as renovações do bairro portuário de Fells Point, em Baltimore, ou do Píer 17 em Nova York, ambas nos EUA, tidas pelos especialistas como exemplos de sucesso de operações consorciadas público-privadas (Muricy, 2000; Del Rio, 1990). Em ambos os casos, as diretrizes das intervenções objetivaram a revitalização de áreas “degradadas”, valorizando o uso do porto, alavancando oportunidades econômicas, sobretudo terciárias e voltadas para o turismo e o lazer, otimizando a arrecadação tributária na área, e permitindo sua re-ocupação com uso residencial. Pois bem, muito embora os EUA apresentem inúmeros exemplos de apropriação excludente do espaço pelo capital imobiliário (como em Battery Park, Nova York), nestes dois casos a operação consorciada resultou na criação de espaços públicos centrais bastante dinâmicos e relativamente “populares”�, guardados os desvirtuamentos estruturais inerentes ao capitalismo.
� Embora lá também, ou justamente por tratar-se do berço do capitalismo contemporâneo, as cidades tenham sido transformadas, nesta fase pós-fordista, em “máquinas urbanas de produzir renda” (Arantes, 2000), para garantir as condições de atratividade de capital e competitividade características da globalização, através do uso intenso de “revitalizações” como as citadas acima, que se valem de equipamentos culturais como motores de empreendimentos imobiliários potencializadores das “possibilidades econômicas dos lugares” (Arantes, 2000).
97
A transposição dessas experiências para o caso brasileiro não é automática, pelo simples fato de que aqui grande parte das populações de nossas grandes cidades está fora do mercado. Políticas públicas que se associem à iniciativa privada visando uma dinamização do mercado como alavanca para a revitalização urbana fatalmente atingirão somente parte da sociedade. Essa é uma questão estrutural. Não se trata de dizer que as operações consorciadas público-privadas não possam nem devam existir no Brasil. Trata-se, entretanto, de relativizar o seu papel como instrumento gerador de alguma democratização do espaço urbano, sobretudo quando elas forem entendidas apenas como uma forma de parceria e troca de contrapartidas com a iniciativa privada. Considerando a dimensão do mercado imobiliário legal entre nós, as ideias neoliberais de fortalecimento do poder do mercado e diminuição do papel do Estado mostram-se completamente deslocadas. A comparação com os modelos de operação consorciada europeus também deve ser feita com extrema cautela. Urbanistas com longa experiência na administração pública paulistana concordam que o exemplo francês, que se concretizou nas ZACs – Zônes d’Aménagement Concerté, teve alguma influência quando se iniciaram as discussões sobre as operações consorciadas no Brasil. Entretanto, as diferenças são enormes, e hoje dificilmente alguma comparação pode ser feita. Em primeiro lugar, porque assim como nos EUA, tais instrumentos envolvem a dinamização de um mercado que é muito mais includente do que o nosso. Em segundo lugar, porque a Europa e a França em especial têm longa tradição política e tecidos sociais altamente integrados, o que possibilita um efetivo engajamento da sociedade civil organizada nesses processos, contrabalançando o peso relativo da iniciativa privada. E em terceiro lugar, porque a longa tradição socialdemocrata do Estado-Providência fez com que o controle do Poder Público nessas operações se dê em níveis incomparáveis com o que ocorre nas Operações Urbanas brasileiras. As ZACs atingem diretamente a estrutura fundiária das áreas afetadas. O Estado adquire as terras em áreas “degradadas” (por direito de preempção ou por simples desapropriação), faz as melhorias de infraestrutura, e decide o uso para cada lote resultante de sua intervenção, realizando inclusive o projeto arquitetônico do edifício a ser construído no local, em alguns casos. Vende as áreas e os projetos destinados a equipamentos públicos aos respectivos órgãos responsáveis (ministério da educação para as escolas, da saúde para hospitais, setor de parques para praças, etc.), e as áreas destinadas a escritórios e outros estabelecimentos comerciais (também com os projetos prontos) à iniciativa privada. Cobrando desta última a plus-valia produzida pela valorização da intervenção, consegue recursos para amortizar financeiramente a operação como um todo e garantir a oferta de moradias. As diferenças com a realidade brasileira na qual se insere o instrumento das operações urbanas consorciadas são enormes. Fica claro que no Brasil a participação da sociedade civil organizada ainda é muito pequena, e raramente, mesmo na experiência dos orçamentos participativos, está presente uma visão para o desenvolvimento da cidade como um todo (sociedade e território). Como aqui o Estado serve historicamente aos interesses das classes dominantes, todas as leis, e não haveria de ser diferente com a das Operações Urbanas, tendem a responder aos interesses específicos dos lobbies dominantes e não a considerar as demandas generalizadas da sociedade. Por mais que essa perspectiva pessimista possa ser amenizada com o avanço da organização da sociedade civil, há de se ressaltar que uma mudança mais efetiva desse quadro dependeria de uma profunda reviravolta na própria estrutura social, política e econômica da nossa sociedade. Outra grande diferença entre os países centrais e periféricos está na tradição de investimento social do empresariado, especialmente o americano (o que não lhe tira as carac terísticas capitalistas). No Brasil a tradição é contrária, como todos sabemos: a privatização da esfera pública, tradição de muitos séculos, implicou na construção de uma cultura de privilégios, favorecimentos, ou socialização dos prejuízos. Recursos públicos sustentaram e continuam sustentando muito da atividade empresarial privada. Nas cidades, a relação entre investimento público e capital imobiliário de ponta é notável. (Maricato, 2001) Ainda que as contrapartidas recebidas pelo poder público decorrente de mudanças nos usos ou potencial construtivo das edificações possam resultar significativas, a maior parte das grandes e 98
famosas operações urbanas implicou em vultosos investimentos públicos oriundos de diversas fontes como foram os casos de Boston (ainda em implantação), Barcelona e Berlim. Os países avançados já tem uma tradição de cálculos complexos relativos à outorga onerosa para o direito de construir. No Brasil, a contribuição de melhoria, um instrumentos criado nos anos 50, apresenta até hoje dificuldade de aplicação. Parte dela decorre do desconhecimento do judiciário sobre o assunto, além da resistência generalizada à sua aplicação. Apesar dessas advertências e tomando a devida cautela contra importação de modelos, a comparação entre as realidades norte-americana, europeia (países que exercem mais atração entre os intelectuais e profissionais brasileiros) e latino-americana pode ser útil para a avaliação dos problemas e potencialidades que as operações urbanas podem eventualmente apresentar. Como vimos, mesmo entre Estados Unidos e Europa podem haver importantes diferenças nos modos de aplicação de operações consorciadas, conforme o Estado mantenha maior ou menor grau de interferência no processo.
Características da Operação Urbana Consorciada no Estatuto da Cidade. “Considera-se Operação Urbana Consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental” (Estatuto da Cidade, Seção X, Art. 32, § 1º).
Face à força com que se difundem os valores neoliberais hegemônicos do pensamento único (Arantes et aal , 2000), é fundamental ressaltar que as operações urbanas, na forma com que são apresentadas no Estatuto da Cidade, não se restringem a parcerias em megaprojetos imobiliários altamente lucrativos para a iniciativa privada. A lei determina que o poder público coordene intervenções e medidas a serem implementadas na área delimitada pela Operação Urbana e remete à lei municipal específica, baseada no Plano Diretor, a delimitação da área e a definição de um plano de operação urbana consorciada que contenha, entre outras exigências (art. 33): - programa básico de ocupação - programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação - estudo prévio de impacto de vizinhança - contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da utilização das melhorias decorrentes das modificações das normas edilícias e urbanísticas ou da regularização de imóveis - representação da sociedade civil no controle compartilhado da operação Esta última condição não garante a aplicação democrática do instrumento. Muitas leis orgânicas municipais e Planos Diretores afirmam os conselhos gestores participativos mas eles raramente foram implementados. O que se entende por “representante da sociedade civil” também pode variar numa sociedade na qual a cidadania é restrita. Digamos que a lei abre a possibilidade da participação, e a gestão democrática dependerá então da correlação local de forças. O estatuto da cidade remeteu, de fato, a resolução dos conflitos relativos à questão fundiária e imobiliária urbana à esfera municipal (no contexto do Plano Diretor) e se não garante, deixa alternativas para a mudança dos rumos da gestão urbana. Por exemplo, o item III do artigo 33, que exige um programa econômico e social para atender a população afetada pela operação constitui um exemplo mais positivo de mudança em que pese a indefinição sobre o destino (localização, condições) dessa mesma população. Para “alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”, através de operações consorciadas “com a participação dos proprietários, moradores, 99
usuários permanentes e investidores privados”, o Estatuto da Cidade, estabelece os seguintes instrumentos, entre outras medidas: 1- a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerando o impacto ambiental delas decorrentes; 2- a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente Esses benefícios têm caráter de exceção, e sua autorização deve ser feita mediante a cobrança de “contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários e investidores privados”. Esses recursos somente poderão ser aplicados na própria operação urbana consorciada (parágrafo 1, art. 33). Apesar do Estatuto da Cidade afirmar que a Política Urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, essa característica de outorga onerosa com caráter especial em uma área delimitada pode contrariá-lo naquilo que é sua essência devido às características, já mencionadas, do mercado imobiliário excludente. E o artigo 34 abre a possibilidade de tornar essa característica (excludente) inevitável. Trata-se da possível emissão de CEPACS, os certificados de potencial adicional de construção, pelos municípios, como forma de arrecadação mais rápida dos recursos oriundos da venda de benefícios. Por essa lógica, o Poder Público define um estoque edificável “a mais” na área da operação, lançando antecipadamente no mercado financeiro títulos equivalentes ao valor total desse estoque. Evidentemente, a grande vantagem desse sistema para o Poder Público é a possibilidade de antecipação da arrecadação, que passa a ser feita independentemente do ritmo de andamento da operação. Para aproveitar-se do direito adicional de construção na área, o empreendedor teria que adquirir CEPACs no mercado e restituí-los à Prefeitura para poder usufruir do benefício do solo-criado. Vamos lançar mão das palavras de Ferreira e Fix para uma leitura crítica dos CEPACs: “Um primeiro problema dos CEPACs é a desvinculação que o título cria entre a compra do potencial construtivo e a posse do lote. Como qualquer um pode comprar o título, tendo ou não lote na região, e seu valor – como com qualquer título financeiro – pode variar, gera-se um novo tipo de especulação imobiliária, “financeirizada”. Os defensores dessa idéia dizem que tal dinâmica não está à mercê do mercado, já que os CEPACs serão lançados em operações específicas, sob controle do Poder Público. Além disso, os CEPACs teriam um “forte componente social”, pois poderiam ser vendidos para alavancar a reurbanização de favelas ou recuperações de cortiços, e seus recursos poderiam ser utilizados em melhorias na cidade toda. O “controle” do Poder Público é relativo, pois os CEPACs – e consequentemente as operações urbanas em que serão lançados – são encarados apenas como uma fonte de recursos. Como a Prefeitura precisa de dinheiro, buscará, se adotar essa lógica, multiplicar ao máximo as operações urbanas. Nesse caso, institucionaliza-se a especulação imobiliária como elemento motivador da renovação urbana na cidade. A conformação de seu desenho não se dá em função da ação planejada do Poder Público e das prioridades urbanas que ele estabeleça a partir da demanda participativa da população (sobretudo dos 70% excluídos), mas se subordina ao interesse do mercado, que justificará ou não as operações. Ora, parcerias com a iniciativa privada devem ser parte de um plano maior, em que o Poder Público e a população estabeleçam as necessidades da área a ser renovada – habitações, parques públicos, passeios – e somente a partir daí se definam as contrapartidas a oferecer à iniciativa privada. Quando as áreas são escolhidas apenas pelo potencial de gerar dinheiro através dos CEPACs, esquecem-se as condicionantes urbanísticas do espaço público. 100
Quanto aos recursos arrecadados com os CEPACs, eles servirão para investimentos públicos essencialmente nas áreas de interesse do mercado, em detrimento da periferia. Essa já é a lógica das operações urbanas: fazer a iniciativa privada financiar a recuperação da própria área da operação, vendendo-lhe o direito adicional de construção. É evidente que o mercado só se interessa por áreas nas quais vislumbrem certa valorização que justifique a compra do potencial construtivo adicional. O CEPAC exacerba essa lógica, pois sendo um título, ele só funciona se for valorizado. Senão, torna-se um “mico”. Ou seja, os títulos só podem ser lançados em áreas que interessem ao mercado, ou alguém imagina que a iniciativa privada compraria CEPACs no Jd. Ângela ou em Guaianazes? Além disso, a prefeitura terá que investir pesadamente em obras que potencializem sempre mais a valorização dessas áreas, e portanto dos CEPACs a elas relacionados.(Ferreira e Fix, 2000)
Os CEPACs exacerbam portanto a características das operações urbanas nas quais as forças do mercado capturam o Estado para fazer o jogo da geração da renda diferencial num fragmento da cidade. É preciso reconhecer a dimensão das transformações ocorridas em algumas municipalidades a partir do lançamento no mercado, de títulos municipais (um parente dos CEPACs). Fort Lauderdale foi um grande sucesso empresarial do governo municipal. Apresentou uma arrecadação fantástica que alimentou e foi alimentada pelo crescimento urbano de alta renda marcado pelas mansões com seus iates nas numerosas marinas. Mas é preciso repetir: o alcance social do mercado (ainda que desigual pois os vizinhos de Fort Lauderdale não foram tão bem sucedidos) promove um processo de urbanização, nos Estados Unidos, totalmente diferente das condições da urbanização brasileira. Ele pode ter características de desigualdade mas jamais de gigantesca exclusão como é o caso do nosso. A proximidade da população de baixa renda (leia-se, a maior parte da população) é talvez o maior fator de desvalorização imobiliária nas cidades brasileiras. A valorização imobiliária é o combustível dos CEPACs, portanto, quanto mais distante a área da operação se encontra da moradia social maior a valorização dos certificados de potencial adicional de construção. Manter a “população pobre” na área da operação funciona como um verdadeiro freio ao processo de valorização, o que em alguns casos é interessante como veremos adiante, mas não quando da utilização dos CEPACs. Antes de discorrer sobre o que poderiam ser as possibilidades de operações urbanas includentes, vamos continuar a verificar seus aspectos socialmente negativos a partir da experiência de São Paulo.
Operações Urbanas como instrumentos do capital imobiliário: o caso de São Paulo.
� Nas operações urbanas realizadas em São Paulo, a ideia principal era a de parcerias público-privadas que permitissem o pagamento de contrapartidas importantes, do ponto de vista financeiro, capazes de assegurar o custeio de aberturas de avenidas que interessavam sobremaneira ao setor imobiliário. A justificativa política para essas operações é que elas permitiam que “importantes obras viárias” fossem feitas “sem custos” para o Poder Público (Fix, 2001). O exemplo paradigmático desse tipo de operação é sem dúvida a Operação Urbana Faria Lima. Essa abordagem da operação urbana já estabelece desde seu princípio alguns conceitos bastante questionáveis: Em primeiro lugar, o elemento motivador dessas operações urbanas não é um plano urbanístico mais amplo elaborado pelo Poder Público e no qual se encaixe a necessidade de uma parceria para revitalização urbana dentro de prioridades por ele estabelecidas, ou ainda um estudo das demandas urbanísticas oriundas da sociedade civil, mas simplesmente uma resposta à demandas específicas do setor imobiliário. Por isso certamente a maior mobilização social provocada por uma Operação Urbana deu-se contra ela e não a seu favor, como foi o caso dos movimentos de classe média, Pinheiros e Vila Olímpia Vivos, na Operação Urbana Faria Lima. Em outras palavras, o que motiva a operação urbana é o interesse imobiliário, que encontra respaldo do poder público. Nesse sentido, o
� Estão em vigência em São Paulo, em 2001, as operações urbanas: Faria Lima (lei municipal 11.732/95), Água Branca (lei municipal 11.774/95) e do Centro (lei municipal 12.349/97)
101
relatório de impacto ambiental (RIMA) elaborado pela Tetraplan para a Operação Urbana Faria Lima apresentava como justificativa para a operação: “esta região da cidade passou a atrair bancos e escritórios, que por sua vez propiciaram a implantação de outras unidades de comércio e serviços complementares (...). Nos últimos anos, cada vez mais esses bairros apresentam vantagens para localização de novos edifícios, comerciais e residenciais, tendo em vista situarem-se entre dois pólos geradores de emprego, já consolidados como a Faria Lima e a Berrini” (Tetraplan, 1994:12) O interesse do mercado pela região da marginal pinheiros, ao longo das avenidas Faria Lima e Água Espraiada é bem conhecido e tem relação com a movimentação da iniciativa privada na criação de uma “nova centralidade globalizada” (e segregada, evidentemente) na capital paulista (Frúgoli, 2000; Nobre, 2000). Formou-se de um forte grupo de pressão sobre o poder público, que contava inclusive com arquitetos de renome com particular interesse na operação (fizeram planos urbanísticos e projetos arquitetônicos para o local) e que exerciam, concomitantemente, funções de assessoria na prefeitura. Ou seja, a operação urbana torna-se um fim em si, apenas como elemento de alavancagem de uma mega-operação imobiliária. Perde-se o caráter urbanístico-social do instrumento. É claro que a justificativa técnica da operação não era oficialmente o interesse do mercado, mas sim a necessidade de completar um mini-anel viário (projeto de mais de uma década) que permitiria descongestionar o tráfego da região. O referido projeto continua sem finalização já que a junção entre as avenidas Faria Lima e Berrini não foi feita, e os trechos de avenida construída no contexto da operação não desafogaram em nada o pesado trânsito na área. Além disso os números da Operação Urbana Faria Lima mostram que a dupla motivação “construção de avenida”e “geração de oportunidades imobiliárias” supera em muito qualquer suposta demanda por melhorias urbanas mais diversas. Assim, dos 150 milhões de dólares previstos no custo inicial da operação, 120 milhões se destinavam exclusivamente ao pagamento das desapropriações necessárias à abertura da avenida! (PMSP, 2001). Em estudo sobre a Operação Urbana Faria Lima, Ana Claudia Barone (1994) mostra a ênfase dada à questão viária nas operações paulistanas: “ A obtenção de espaços qualificadores quase não aparece no programa de operações urbanas. Os projetos de lei, quando fazem menção a “melhorias públicas”, referem-se quase exclusivamente a projetos viários, tratando com pouca ênfase de espaços públicos de convivido que podem ser criados” (Barone,1994). Disso decorre, diga-se de passagem, um resultado sofrível quanto à qualidade do desenho urbano na região afetada pela operação. Seria de fato de se esperar que o capital arrecadado permitisse ao menos uma atenção especial quanto ao projeto dos espaços públicos incluídos na operação, tendo em vista inclusive a possibilidade do Poder Público definir, no âmbito da mesma, normas edilícias específicas. A Operação Urbana Faria Lima chega a exigir a existência de marquises em toda a frente do lote, e recuos significativos. Entretanto, a falta de uma regulamentação mais exigente fez com que o resultado comprometesse os caminhos dos pedestres e a paisagem resultante: grades, muros ou plantas espinhosas demarcando o lote privado junto à via pública, jardins elevados que dificultam o acesso, praças “de esquina” completamente cercadas e intransitáveis a não ser a partir de dentro do lote, calçadas estreitas e sem acessibilidade para deficientes ou espaço para bancas, pontos de ônibus, lixeiras e outros equipamentos, poucos ou nenhum edifício com espaços térreos públicos. Enfim, mais uma vez, vê-se que a simples menção na lei de algumas normas não garante que elas alcancem seu objetivo de democratizar o uso e a apropriação do espaço público. Uma segunda questão é que a Operação Urbana motivada exclusivamente pela possibilidade de se gerar arrecadação com a troca de benefícios que atraiam o setor privado para financiar obras viárias, “pressupõe a existência de algum interesse do mercado imobiliário” (Fix, 2000). Em outras palavras, ao elevar as trocas da parceria público-privada a altos patamares de lucratividade com a venda de solo102
criado em áreas de alta valorização, tais operações urbanas se afastam definitivamente das intervenções em pequena escala e acabam restringindo-se à setores em que haja efetivamente interesse da iniciativa privada em investir. Senão, não há como alavancar a operação. Vistas dessa forma, dificilmente se tornarão viáveis operações urbanas em áreas periféricas excluídas do mercado, pois nunca haverá interesse do setor privado em pagar por potencial construtivo adicional. Nesse sentido, operações urbanas como a da Faria Lima acabam por concentrar um alto volume de investimentos, sejam eles públicos ou privados, em áreas já altamente valorizadas e beneficiadas por infraestrutura abundante, em detrimento das periferias que de fato, deveriam ser prioridade de investimento. Inclusive, a lógica dos CEPACs, como já foi dito, exacerba ainda mais tal concentração, por vincular definitivamente a operação à áreas com potencial de “valorização” do título. Esta constatação nos leva a uma terceira questão, que é a do uso do instrumento da operação urbana por uma sociedade de matriz arcaica, que confunde interesse público com favorecimento às elites. Embora não tenha havido nenhuma transparência à respeito e não existam condições de se verificar qualquer afirmação numérica sobre os valores envolvidos na Operação Urbana Faria Lima, a Prefeitura de São Paulo, ainda na gestão Pitta, afirmava que “o custo do sistema viário implantado já foi coberto pelas receitas advindas da Operação”. Há aí uma pequena manobra que visa encobrir os verdadeiros montantes de investimentos públicos aplicados para a viabilização da operação. Como lembra Fix (2001), ao escolher uma área para efetivar uma operação urbana, o município terá de ter certeza que essa área irá de fato interessar ao capital imobiliário, sem o que a parceria se tornará impossível (ainda mais se forme lançados CEPACs). Assim, o Estado é forçado a assumir os riscos de um fracasso da operação investindo antecipadamente nas melhorias que irão atrair a iniciativa privada. Se essa atração não ocorrer, esses investimentos terão sido enterrados em áreas já beneficiadas por infraestrutura, em detrimento da cidade informal. A Operação Urbana Centro (assim como sua antecessora, a Operação Urbana Anhangabaú), tem dificuldades em “decolar” apesar dos investimentos da Prefeitura e do governo estadual na área. Há um investimento público estadual significativo em projetos “culturais” que contam com o apoio das empresas que ainda ocupam o centro, na tentativa de construir os elementos de atratividade que poderiam garantir a dinamização das parcerias ensejadas. A construção de novas centralidades urbanas, segregadas e marcadas por signos de distinção, em direção a áreas pouco ocupadas é uma forte realidade em toda grande cidade brasileira. Elas contribuem para esvaziar os esforços de recuperação dos centros históricos já que são prioridade para o investimento público e mais vantajosas para o capital privado. Isso pode ser verificado em São Luis, Fortaleza, Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, etc. Os lobbies de proprietários e promotores imobiliários influem fortemente nos investimentos públicos que acabam por dar prioridade às sempre presentes “avenidas imobiliárias”, no dizer do urbanista Cândido Malta. No entorno do Rio Pinheiros, onde se situa a Operação Urbana Faria Lima, uma série de obras “complementares”, todas no entorno imediato ou mesmo dentro da área da operação, mas que não entram oficialmente no seu custo, foram efetivadas antes ou concomitantemente à implantação da operação: a ponte Bernardo Goldfarb sobre o rio Pinheiros, e o complexo de túneis sob o mesmo rio e sob o parque do Ibirapuera. No caso da Operação Urbana Água Espraiada, o córrego do mesmo nome foi canalizado e a avenida construída antes mesmo do início da operação. Portanto o que prevalece não é a lógica da operação calcada na parceria públicoprivada, mas o procedimento arcaico de sustentar os ganhos privados com o investimento público, sem considerar qualquer retorno. Essa é a dinâmica histórica do desenvolvimento urbano no Brasil e é no seu contexto que a operação urbana é inserida: um instrumento pós-moderno em um quadro arcaico. A questão que se coloca portanto é que as operações urbanas, na forma como foram efetivadas no município de São Paulo, representam o caráter mais atrasado da sociedade brasileira: o comprometimento de dinheiro público para subsidiar a iniciativa privada. Isso mostra o quanto uma regulamentação inadequada das operações urbanas pode resultar num retrocesso conservador.
103
Investimentos aplicados na própria área. Um outro ponto polêmico das Operações Urbanas diz respeito à restrição colocada no Estatuto da Cidade, pela qual os “recursos auferidos com operações consorciadas” devem ser aplicados na própria operação urbana. A justificativa para essa restrição está justamente na defesa da ideia de que a parceria público-privada permite renovações urbanas sem ônus para o Poder Público. Essa é toda a vantagem da associação com o setor privado. Obrigando a aplicar os recursos obtidos com a venda de exceções na própria área, o Estatuto da Cidade visa garantir que as custosas revitalizações urbanas, que interessam à iniciativa privada, saiam “de graça” para o poder público. Como o Estatuto da Cidade estabelece que a Operação Urbana deve prever um “programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação” (Seção X, artigo 33), podemos entender que a restrição da aplicação dos recursos na própria operação poderá garantir a não-expulsão da população de baixa renda residente na área afetada? Na hipótese da população ser removida para uma outra área teríamos investimentos captados na operação sendo aplicados fora da área delimitada pela operação. E o Estatuto da Cidade menciona a “definição de área a ser atingida” e não de áreas a serem atingidas. Dependendo de cada caso, manter a população na área pode fazer a grande diferença especialmente se se trata de áreas servidas de toda infraestrutura como são os centros tradicionais. É importante lembrar aqui o quanto a interpretação da lei é estratégica para o interesse público e social. E essa interpretação não é exata, como se faz com a leitura de números, mas ela também é um produto social. Na Operação Urbana Faria Lima, por exemplo, previu-se que 10% dos recursos arrecadados seriam destinados à provisão de habitações de interesse social. Passados seis anos de sua aprovação, não há sombra de qualquer edifício de habitação destinado à população de baixa renda na região diretamente influenciada pela operação e certamente será difícil localizar ali qualquer moradia social. Ainda sobre a restrição da aplicação do recursos na área da operação, cabe ressaltar que por outro lado ela pode também “engessar” possibilidades de transferência da arrecadação obtida em uma área sujeita à operação urbana para outras passíveis de adensamento habitacional. A instalação de um grande shopping-center, o Cristal Shopping, em uma área ocupada por favela na Zona Sul da cidade de Porto Alegre, resultou no reassentamento da população – com seu consentimento – em um novo terreno, adquirido e urbanizado pelo empreendedor do shopping, que construiu ali um conjunto residencial e uma escola, oferecendo uma qualidade de vida infinitamente superior às condições antes vivenciadas na favela (Damasio, 2000). Poderíamos lembrar que o instrumento de parceria resultou, em última instância, na expulsão daquela população de uma “área nobre” da cidade, para um terreno mais periférico, dando continuidade ao eterno processo de transferência das populações pobres para as franjas urbanas. Mas além da melhora evidente que ocorreu nas condições de saneamento e habitação, pois se tratava de um terreno com problemas de drenagem e esgotamento, a concordância da população foi um critério central para a negociação. Nem sempre o que é valorizado por um grande empreendimento o é para uma comunidade. Ela pode preferir a segurança que está ao alcance das mãos a esperar do poder público providências num futuro incerto.
Algumas possibilidades de operações urbanas includentes A captação da valorização imobiliária decorrente do investimento público é perseguida há muitos anos no Brasil. Esse tem sido tema de muitos seminários desde os anos 1970 até os dias atuais. É notável o empenho do LILP- Lincoln Institute of Land Policy em fomentar pesquisas, estudos e debates a respeito do assunto na América Latina. Essa e outras formas de arrecadação que poderiam incrementar as receitas urbanas encontram fortes resistências à sua aplicação como demonstrou Fernanda Furtado (1999). Desses instrumentos, o IPTU é o de maior potencialidade de arrecadação além de importante 104
instrumento de justiça urbana (Smolka e Furtado, 1996). Ele que é a forma principal de composição das receitas de cidades nos paises do capitalismo central é bastante desprezado no Brasil. A pesquisa de Informações Básicas Municipais realizada pelo IBGE, em 1999, mostra que em apenas 13% dos 4.529 municípios brasileiros a arrecadação do IPTU atinge 80% ou mais dos imóveis cadastrados. O dado é mais relevante se considerarmos que na maciça maioria dos municípios o cadastro de imóveis é bastante desatualizado. A incidência do IPTU sobre terrenos é muito menor do que sobre imóveis construídos como mostra a pesquisa. Rio de Janeiro cobra IPTU sobre 57% dos terrenos, Porto Alegre, 57%; Goiânia, 40%; Salvador 25%; Recife, 17%. Manaus cobra em apenas 26% dos imóveis edificados e 18,9% dos terrenos. Fortaleza cobra em 36% dos imóveis edificados e em 27% dos terrenos. O IPTU progressivo no espaço (alíquotas diferenciadas de acordo como valor venal) foi aprovado no interior de uma emenda constitucional, de setembro de 2000, após controvérsias que geraram processos sob alegação de inconstitucionalidade, nos anos 90. Está em vigência portanto, e se presta como o instrumento, por excelência, de arrecadação e justiça urbana com mais propriedade do que o simples IPTU. A implementação desse instrumento, bem como outros já tradicionais como a contribuição de melhorias, as zonas especiais de interesse social, a própria lei de zoneamento, que pode tornar o mix de moradia uma forma compulsória, devem ter prioridade sobre outras “novidades” da agenda urbanística na medida em que dizem respeito à diminuição da extravagante desigualdade social. Essa constatação não impede o poder público de fazer com que a iniciativa privada, especialmente aquela constituída pelos setores de ponta, absorva os impactos urbanos que produz, o que significa pagar por eles. Os governos municipais estão assistindo, nas últimas duas décadas, à instalação de empreendimentos que, pelo seu porte, influenciam fortemente a orientação do crescimento urbano gerando muita demanda de novos investimentos em infraestrutura no entorno, quando não decorrentes diretamente da nova construção. São mega-intervenções que terminam por dirigir a ação do poder público mesmo quando este se esforça para não se subordinar aos interesses das corporações empreendedoras dessas grandes obras. Alguns instrumentos urbanísticos têm sido testados nas últimas décadas para dar conta desse problema. As leis de impacto de tráfego, de vizinhança e ambiental são bons exemplos de como o poder público pode defender-se (e defender o interesse público) desses problemas. Graças a elas Shoppings Centers tiveram seu projeto original modificado, em várias cidades brasileiras. Em São Paulo, o Shopping Center Aricanduva foi obrigado a: instalar dois conjuntos de semáforos, construir uma ponte sobre o córrego, duplicar dois trechos de pistas da avenida Aricanduva para acomodação do tráfego de entrada no edifício, abrir uma rua que cortava a grande área do empreendimento fazendo uma ligação viária inexistente entre dois bairros e deixar 30% da área da gleba sem pavimentação para efeito de absorção de água pluvial. Por sua própria escolha, os empreendedores optaram por construir na área institucional uma creche a ser doada para a prefeitura e podendo atender seus próprios empregados. Nessa construção o empreendimento absorveu mais uma demanda que seria fatalmente dirigida à prefeitura. Além da análise dos impactos, foi fundamental a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo (na gestão de Luiza Erundina) entender que havia um parcelamento da gleba, no projeto do empreendimento e que por isso deveria haver uma doação de área ao poder público. Foi esse mesmo princípio, ou essa mesma leitura da lei que permitiu levar o empreendimento Chácara Tangará (atualmente Projeto Panamby) a conquistar para a cidade de São Paulo um de seus mais belos parques públicos, parte dele resultante de um projeto de Burle Marx nos jardins da mansão de um playboy dos anos 60, Baby Pignatari. Ambos os projetos são do mesmo período – 1990 a 1992 – e mostram que se o interesse público tiver defensores na gestão municipal toda a cidade ganha sem dar qualquer contrapartida, bastando apenas a constatação dos impactos a serem absorvidos pelos empreendimentos. A julgar por esses experiências há uma folga na previsão dos montantes desses investimentos pois após um pequeno movimento inicial de resistência os investidores aceitaram, até mesmo com certa satisfação, dar a contrapartida. Leis não faltam e muitas delas não têm sido utilizadas em toda sua plenitude. A lei 6766/79, de parcelamento do solo, dá ao poder público primazia na definição 105
das diretrizes de loteamentos privados, no entanto, é comum verificar-se que as áreas públicas dos loteamentos estão, frequentemente, na localização mais inadequada da gleba. As operações interligadas tiveram início em 1988 em São Paulo, precedendo as operações urbanas, e resultaram em algumas negociações positivas como o caso do Shopping West Plaza que resultou em recursos suficientes para a construção de 700 moradias sociais e uma passarela sobre a avenida lindeira ao Shopping. O que foi pensado para constituir casos de exceção em relação à legislação do zoneamento mediante o pagamento de contrapartida, entretanto, tornou-se regra devido ao interesse em aumentar a arrecadação pura e simplesmente fazendo da lei do zoneamento letra morta. Por uma iniciativa do Ministério Público Estadual elas foram suspensas por inconstitucionalidade e estão de volta no texto do Estatuto da Cidade mas atreladas ao Plano Diretor. Pequenas operações resultantes de acordos formais entre o poder público e a iniciativa privada, materializados em contratos, tem sido experimentados no Rio de Janeiro, gerando recursos diretos e indiretos. A Secretaria Municipal de Urbanismo implementa pequenas operações que podem ser divididas em quatro categorias: a) obrigações relativas a grupamentos de edificações residenciais cujo objetivo é obter edifícios, terrenos ou recursos para a construção de equipamentos municipais, b) obrigações de urbanização cujo objetivo é a complementação ou extensão da infraestrutura c) operações interligadas que são os únicos contratos feitos nos quais a contrapartida financeira é mensurada e d) obrigações relativas a gestão de recuos decorrentes das normas de alinhamento (Castanheira e Palha, 2000) A Fundação de Parques e Jardins da Prefeitura do Rio de Janeiro também tem buscado, como tem acontecido em muitas cidades, parcerias com a iniciativa privada ou associações para a manutenção de praças, jardins, mobiliário. Além da ampliação dos recursos a serem utilizados na manutenção desse patrimônio os aspectos da educação ambiental, da responsabilidade coletiva sobre a paisagem construída e da participação também são importantes (Ainbinder, 2000). Se leis não faltam é forçoso reconhecer a necessidade de seu aperfeiçoamento e essas experiências têm mostrado isso. Mais do que uma ação burocrático cartorial no cumprimento da lei, os quadros técnicos das prefeituras podem ter um papel ativo em cada oportunidade de melhor aproveitar as potencialidades da paisagem, do ambiente construído, das necessidades sociais. Uma argumentação contra esse espaço de negociação ao invés de normas rígidas e detalhadas está no perigo do arbítrio do funcionário que pode ser levado ao erro ou à corrupção. Sem tirar a legitimidade desse argumento lembramos que em nossa realidade convive regulamentação exagerada com corrupção generalizada. Para insistir novamente, não há alternativa eficaz sem controle social. O espaço urbano é uma construção social e a gestão do poder público não pode se restringir a uma normatização burocrática pois nesse caso, sem dúvida a eficácia (tendo em vista o interesse público e social) ficará comprometida. Essa foi uma das grandes falhas do urbanismo funcionalista cuja operação foi excessivamente centralizada pelo Estado. A necessidade de regras gerais para as negociações entre poder público e privado foi o que motivou a prefeitura de Porto Alegre a propor Projetos Especiais e Operações Concertadas no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental aprovado em 1999. Antes dessa formulação as operações urbanas não tinham um regramento básico. Os Projetos Especiais se destinam aos empreendimentos urbanos que pelo grande impacto ou normas especiais exigem uma análise específica. Quando esse projeto envolve parcerias devido ao interesse mútuo entre promotor privado e poder público exigindo acordos programáticos ele é classificado como Operação Concertada. Quando esses projetos forem classificados como “de impacto” deverão passar pela análise deliberativa do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental, órgão composto de representantes do governo, das entidades civis e da comunidade em partes iguais. (Damásio, 2000) Como vemos, as Operações Urbanas podem ser utilizadas de tal forma a possibilitar intervenções de menor porte na cidade, visando melhorias urbanísticas com a participação não só nem obrigatoriamente do setor privado, mas também da sociedade civil organizada. A questão a ser respondida é: mas 106
eventuais benefícios a serem aplicados em áreas periféricas serão capazes de alavancar um movimento da iniciativa privada capaz de dinamizar a região? Evidentemente, tudo dependerá das contrapartidas exigidas, que devem se adequar ao perfil da iniciativa privada, onde quer que esteja sendo realizada a operação, seja em áreas nobres ou na periferia. Ainda assim, cabe ressaltar que o Plano Diretor de São Paulo de 1985, elaborado na gestão Mario Covas, já apresentava a ideia de Operações Urbanas, em moldes muito mais próximos a estes acima colocados do que aos das gestões Maluf e Pitta. Diz o texto daquele plano: [As Operações Urbanas] “são entendidas como conjuntos integrados de intervenções desenvolvidas em áreas determinadas da cidade, sob coordenação do Poder Público, visando (...) viabilizar a produção de imóveis (notadamente habitação popular), infraestrutura, equipamentos coletivos e espaços públicos, de difícil consecução nas condições correntes do processo imobiliário e da ação pública” (PMSP, 1985:196)
Em seguida, o plano arrola uma série de áreas sujeitas às operações: muitas repetem as que continuariam sendo alvo de interesse do setor imobiliário, como Pinheiros e Barra Funda. Mas cabe ressaltar que das 12 áreas propostas, 6 delas, São Miguel, Vila Matilde, Vila Maria, Santo Amaro, Vila Nova Cachoerinha e Campo Limpo eram regiões periféricas pertencentes à cidade informal. O fato é que essas operações urbanas nunca vingaram. Por falta de capacidade financeira do Estado? Por falta de interesse do mercado? Ou porque não se tentou uma concepção participativa com a realização de acordos e exigências de contrapartidas mais adequadas à iniciativa privada estabelecida nesses bairros? Instalação e construção de jardins, calçadões, praças, podem resultar da exploração de bancas, quiosques, negócios de porte pequeno ou médio. A instalação de comércio em conjuntos habitacionais (que por incrível que pareça o urbanismo funcionalista impedia) pode ser autorizada mediante contrapartidas que promovam melhorias ou a manutenção de equipamentos no local. Segundo Fix (2000) “diante do volume de recursos necessários para custear as propostas, o Plano de Covas foi acusado de absurdo, utópico e estatizante”. Fica a indagação: se a fantástica soma gasta na gestão de Paulo Maluf para construir 11 obras viárias em São Paulo, 9 das quais encontram-se próximas da nova centralidade “fashion” paulistana, fosse aplicada nas Operações Urbanas na periferia, isso não surtiria um impacto significativo? O Estatuto da Cidade não estabelece que a contrapartida deva ser necessariamente financeira, o que pode abrir margem a inúmeras outras possibilidades quando da regulamentação da operação no plano diretor. Também, embora seja esse o filão almejado pelo setor imobiliário, a concessão de direito adicional de construção não é o único benefício possível. A operação urbana consorciada abre inúmeras possibilidades interessantes para o poder público efetivar transformação urbanas necessárias de interesse ambiental e social. Um exemplo de projeto de operação urbana para o centro de uma região que tem mais da metade da população morando em favelas pode ser encontrada na operação proposta para a área central de Madureira no Rio de Janeiro mas infelizmente não é uma experiência que possa ser avaliada pois ainda se encontra no estágio da intenção(Oliveira, 2000). A proposta da urbanização específica prevista nas operações urbanas pode constituir uma condição importante nas reformas de centros urbanos desvalorizados onde se pretende conservar o mais possível o arruamento e as edificações mantendo também a população moradora dos cortiços. A Operação Urbana Centro, em São Paulo, dá um subsídio de 10% a mais no coeficiente de aproveitamento aos empreendimentos resultantes de remembramento de terrenos. Ou seja, esta operação favorece a demolição e a intervenção cirúrgica ao invés da reciclagem e da conservação das características existentes na ocupação urbana. A transformação cirúrgica tende a pressionar para cima o preço dos imóveis constituindo importante fator de expulsão da população. A reciclagem não garante a manutenção dos moradores que habitam os imóveis deteriorados mas torna a inclusão no processo mais provável. 107
O arquiteto português Felipe Lopes dirigiu a reabilitação de três bairros medievais de Lisboa, habitados por população de baixa renda, baseado no conceito de “intervenções mínimas”. O projeto deveria assegurar condições de conforto ambiental e higiene das moradias interferindo o menos possível na tipologia das casas e do bairro. Isso impediu que o preço dos imóveis subisse muito e a manutenção dos moradores também funcionou como um freio à especulação. Esse processo pode trazer muitas lições para as operações urbanas: nem sempre o melhor caminho é o da valorização decorrente de uma intervenção cirúrgica pois ela gera especulação e exclusão social. Manter a população e frear a valorização pode ser mais interessante. Mas é claro que a concepção de operação urbana nesse caso não situa a valorização imobiliária como nexo central. Mas o que fica ainda mais evidente é que todas essas possibilidades, embora estejam de acordo com a lei, dependem de uma regulamentação municipal que as favoreça. Mais uma vez, fica clara a importância que passará a ter a mobilização política da sociedade civil no momento da elaboração dos Planos Diretores Municipais e das leis complementares, que poderão incluir possibilidades do tipo, ou simplesmente “esquecê-las”. O poder dos lobbies do setor imobiliário e o alto grau de promiscuidade entre Estado e classes dominantes no Brasil nos levam a crer que não será fácil conduzir as operações urbanas para algumas das finalidades aqui descritas. Nesse sentido, os oito anos de gestão conservadora na cidade de São Paulo tem função pedagógica na hora de se analisar o que pode ser feito com esse instrumento no sentido de favorecer apenas os interesses do setor imobiliário.
108
SOBRE AS ÁREAS CENTRAIS DAS CIDADES BRASILEIRAS.
109
Prefácio do livro “A batalha pelo centro de São Paulo. Santa Ifigênia, concessão urbanística e projeto nova luz”. De Felipe Francisco de Souza, São Paulo: Paulo´s Editora, 2011. ISBN 978-85-88246-18-8.
Em nossa sofrida história, confundiu-se demasiada e reiteradamente “crescimento econômico” com “desenvolvimento”, e, mais uma vez, o discernimento necessário não está suficientemente no centro das atenções. Embora estejamos progredindo, com o festejado aumento da classe média, a chamada “classe C”, o Brasil ainda é um dos recordistas mundiais de desigualdade. Aliás, a lógica de nossa formação econômica e social – cujo símbolo principal é o “milagre econômico” dos anos 1970 – foi justamente a do crescimento econômico acelerado e, também, altamente concentrador de renda, o que gerou muitas desigualdades sociais. Esse padrão de desenvolvimento, que muitos intérpretes da formação nacional chamaram de “modernização conservadora”, afasta-se da ideia de crescimento porque, nela, exatamente, pressupõese que as riquezas geradas pela economia sejam distribuídas para o conjunto da sociedade, em uma dinâmica de construção e fortalecimento da nação e de todos os cidadãos. No nosso modelo, a modernização não se dá em benefício do fim da pobreza e da desigualdade, e sim às custas delas, isto é, alimentando-se delas. Tal matriz, claramente injusta, foi possível graças à estruturação de uma sociedade cindida, herdeira do pensamento colonial escravocrata, a partir do qual as elites exerceram – e ainda exercem – uma hegemonia política e econômica onipotente, sempre pronta a passar para trás os interesses coletivos da sociedade a fim de garantir os privilégios de seus interesses particulares. Florestan Fernandes (1975) mostrou como nossas elites, ao longo de nossa história – associando-se ao poder econômico, externo e hegemônico de cada momento histórico – reiteradamente, renunciaram ao desafio da formação da nação para consolidar, na defesa dos interesses de expansão do capitalismo internacional, seu poder interno por um viés antidemocrático e antinacional. Alimentaram, para tanto, o “mito da modernização”, legitimando junto à opinião pública os saltos modernizadores que aparentemente colocavam cada vez mais o país no “rumo certo” do desenvolvimento, quando, na verdade, aprofundavam a matriz desigual do subdesenvolvimento. Para exercer-se o poder, estruturou-se o que Raymundo Faoro denominou de “Estado Patrimonialista”, originado no estamento colonial e por meio do qual a comunidade política “conduz, comanda e supervisiona os negócios, como negócios privados seus” (Faoro, 2011:819). Dessa maneira, construiu-se permanente e sempre alimentada confusão entre o que é público e o que é privado, transformando o Estado em um eficaz instrumento da defesa dos interesses “públicos” de alguns. Para tal, a sociedade, como explicava Faoro, compreende-se apenas “no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, e a tosquiar nos casos extremos” ( id. ibidem). Se essa análise parece referir-se a um país do passado, a verdade é que poucas vezes se viu o patrimonialismo atuando tão limpidamente quanto nos processos de retomada do Centro de São Paulo, por parte dos interesses do capital imobiliário, evidentemente amparados pelo Poder Público Municipal, elementos que Felipe Francisco de Souza retrata neste livro. A contradição do momento atual é baseada no mesmo “mito da modernização”. O atual ciclo econômico virtuoso do Brasil alavanca um crescimento mais sólido em comparação a alguns países desenvolvidos, e fala-se cada vez mais do novo papel que “potências” ascendentes, como o Brasil, podem passar a ter no cenário econômico mundial. Porém, a confusão entre “crescimento econômico” e “desenvolvimento”, como sempre, nestas situações, ganha força e parecemos distantes do salto econômico com alteração significativa no equilíbrio de poder e na estrutura da desigualdade. Chico de Oliveira (2010) lembrou que, embora a pobreza absoluta no país venha lentamente diminuindo, ainda assim, a desigualdade se 110
mantém, ou até piora, pois o próprio modelo ideal que se persegue – o de uma sociedade de consumo, no padrão dos mercados desenvolvidos – é intrinsecamente excludente e desigual. O problema maior é que no âmbito urbano essa contradição ganha toda sua amplitude: enquanto o país comemora seu sucesso econômico, não percebe que esse sucesso alimenta uma urbanização semelhante a uma bomba social e ambiental, que já começa a explodir. O padrão da sociedade de consumo de massa, alcançado pelos países ditos desenvolvidos, é o do consumismo exacerbado e desnecessário, que tende a piorar, e não melhorar, as injustiças sociais e a degradação ambiental. O quadro urbano brasileiro é trágico: as grandes metrópoles têm em média quase metade de sua população vivendo em condições precárias, seja em favelas, seja em loteamentos irregulares, seja em cortiços ou até mesmo na rua. Os centros das cidades – objeto de disputa do capital imobiliário, como apontado neste livro – estão se esvaziando. Sobram imóveis desocupados, que não cumprem a função social da propriedade urbana, por mais que exista a Lei Federal do Estatuto da Cidade. O avanço modernizador exacerba as tensões urbanas: as áreas de proteção ambiental estão tomadas por ocupações precárias de alta densidade habitacional, ou por condomínios de luxo que da mesma forma driblam a legislação. A porcentagem de domicílios sem saneamento ainda é significativa: até mesmo nas metrópoles, as enchentes e desmoronamentos matam milhares a cada estação das chuvas, e a irregularidade fundiária na cidade informal parece ser insolúvel. Em inúmeros centros urbanos: continuam os processos autoritários: de expulsão da população pobre para a periferia com, quase sempre, ações capitaneadas pelas prefeituras, em sintonia com o mercado, no âmbito do patrimonialismo. Quanto mais cresce a economia: mais se acelera a verticalização extremada e descontrolada, que arrebenta bairros assobradados inteiros; mais se multiplicam os condomínios murados que renegam a rua e o espaço público; mais se reforça o predomínio absoluto do automóvel como matriz insustentável de transporte em detrimento do transporte público de massa; e mais se consolida a liberalidade absoluta na ocupação e no uso dos espaços urbanos, sempre privilegiando os segmentos de mais alta renda. No atual cenário de otimismo, tão festejado, em que se dá pouca ou nenhuma atenção às questões supracitadas, o papel daquilo que é chamado, sisudamente, de “academia”, é muitas vezes pouco compreendido. Na euforia econômica, as pós-graduações e especializações, assim como a própria formação superior, são geralmente assemelhadas à necessidade de ampliar a capacitação profissional, como parte do esforço coletivo necessário ao “salto modernizador”. Quando se confunde “desenvolvimento” com “crescimento econômico”, tudo que ajude a uma melhor inserção econômica, individual, ou do próprio país no cenário do capitalismo globalizado, é visto como louvável. Assim, à universidade parece ter cabido o papel de “formar quadros” capazes de contribuir para esse novo momento econômico. Tal papel é importante, sem dúvida. Porém, não deve ser o único. A universidade, como produtora do conhecimento científico, tem a função fundamental de desenvolver reflexão crítica. O urbanismo, como ciência social aplicada, mais do que nunca, deve buscar respostas aos impasses e às subjetividades que a cidade produz. As cidades são o reflexo espacial da sociedade, e reproduzem no território suas desigualdades e injustiças, em dinâmicas marcadas pela ideologia (Ferreira, 2007). Assim, cabe à academia e, no caso, aos urbanistas, o importante papel de descor tinar, explicar, denunciar e interpretar os fenômenos urbanos, bem como suas contradições, seus impasses, entendendo as suas causas e apontando os caminhos para superá-los. Isso não é fácil nos dias de hoje, e é preciso coragem para assumir tal papel, sobretudo em uma sociedade patrimonialista, em que a produção de conhecimento se vê muitas vezes subordinada ao pensamento dominante, o que faz sentido. Por isso, muito mais simples seria, sem dúvida, acomodar-se na reprodução desse pensamento, aquele que festeja o “sucesso econômico” sem mais questionamentos, aquele que defende a “cidade-global” paulistana como modelo a se perseguir, aquele que valoriza o impulso 111
econômico, o “crescimento urbano” e o dinamismo do mercado, e que escamoteia a verdadeira tragédia que a metrópole de fato vivencia (Arantes, Maricato e Vainer, 2000; Ferreira, 2007). Do grupo de acadêmicos que têm coragem de refletir criticamente e contra o mainstream dominante, faz parte Felipe Francisco de Souza. O Centro de São Paulo, que ele escolhe neste livro como um dos objetos de seu olhar preciso, é hoje o território de desejo das elites políticas, econômicas e imobiliárias da cidade de São Paulo. Sabe-se bem o porquê: o Centro foi devidamente abandonado por essas mesmas elites e desconsiderado dos investimentos públicos e privados por anos. De onde sua “degradação”, que hoje parece justificar tão bem o ímpeto da intervenção, foi fruto da consequência da falta de interesse, e de investimentos, por parte dos setores dominantes. Obviamente, o discurso da degradação acentuouse à medida que os mais pobres ocuparam o Centro, seja pela facilidade de acesso, que favoreceu o comércio popular, afugentando os setores de alta renda antes ali instalados para novas paragens mais “nobres”; seja quando, já há décadas abandonado, passou a receber os miseráveis excluídos da sociedade. Porém, desde a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, o Centro passou a ter uma nova vocação possível: o de abrigar, graças a uma desejável reabilitação das centenas de edifícios abandonados, moradias de baixa renda, atendendo o significativo déficit habitacional da cidade. Vale lembrar que, pelo Estatuto, edifícios vazios são ilegais, pois não cumprem a sua função social. Em uma cidade em que falta moradia, é de fato incompreensível, além de ilegal, manter vazios prédios que se beneficiam de água, esgoto, luz, coleta de lixo e outros benefícios arcados pelo conjunto da sociedade, enquanto centenas de milhares de paulistanos não têm onde morar. É justamente com esse raciocínio que os movimentos de moradia iniciaram há alguns anos ações de ocupação desses prédios, transformandoos em habitações improvisadas, para denunciar tal injustiça e forçar a sua reconversão. A cidade é, antes de tudo, o espaço das disputas sociais. Entretanto, na sociedade capitalista, e mais ainda na patrimonialista, a propriedade é sagrada, mais ainda do que o direito à moradia para todos. Mesmo que seja a propriedade de prédios vazios, sem uso, abandonados há décadas; mesmo que sejam prédios com milhões de reais em dívidas fiscais – ainda assim, o Judiciário raramente tarda mais do que algumas horas para determinar a reintegração de posse da propriedade vilipendiada –; mesmo que nos prédios ocupados estejam famílias, idosos e crianças que, de fato, não têm onde morar. Nada é mais sagrado, no Brasil, do que a propriedade imobiliária. Claro que, na lógica do patrimonialismo, a eficácia da lei geralmente tende apenas para um lado. Nunca foram vistas, que se saiba, reintegrações de posse contra condomínios fechados de luxo que ocupam terras da União, ou contra centros de convenções estabelecidos indevidamente em terras municipais, ou, ainda, contra casarões que, estranhamente, tomaram para si fatias do maior parque público da cidade. Nesses casos, a lei iria contra a propriedade, mesmo sendo as ocupações ilegais. Coisas do urbanismo “à brasileira”, sem dúvida. Ocorre que, desde que a economia brasileira entrou no seu atual ciclo vir tuoso – a cidade passou a crescer cada vez mais para todos os lados, novos terrenos vazios para investimentos imobiliários arrefeceram e, como consequência, uma bolha especulativa lançou para o espaço os preços imobiliários da cidade –, o Centro de São Paulo, antes abandonado, voltou a seduzir o mercado imobiliário, como nos tempos de sua glória. Infelizmente, com o “inconveniente” da presença de alguns moradores pobres, “noias”, prostitutas, camelôs e sem-tetos, enfim, tantos paulistanos que fizeram do Centro seu espaço de vida, mas que não condizem mais com os esforços de recuperação da região, nos moldes pretendidos pelo capital imobiliário. Era de se esperar, portanto, que os setores dominantes fizessem aquilo que fosse possível para que o Centro pudesse “revitalizar” sua nobreza perdida. Neste momento da discussão, entra em pauta outro objeto de estudo sobre o qual Felipe Francisco de Souza se debruçou. Aquele que os urbanistas chamam de “instrumentos urbanísticos”, e mais precisamente um deles, a chamada “concessão urbanística”. A expressão “instrumento urbanístico” 112
refere-se ao conjunto de ações que o Poder Público está legalmente amparado a fazer para intervir nas dinâmicas urbanas e nas formas de uso e ocupação do solo, regulamentando e controlando, ou direcionando-as. Leis de zoneamento, planos diretores, incentivos fiscais, normas edilícias e cobranças tributárias são exemplos de instrumentos. Em resumo, os instrumentos urbanísticos seriam o ferramental de que o Poder Público disporia para exercer seu papel na determinação e no controle das dinâmicas urbanas. Todavia, a eficácia de sua aplicação no Brasil enfrenta um difícil desafio. Os instrumentos urbanísticos surgiram e se consolidaram na Europa, especialmente a partir do Pós-Guerra, no âmbito do Welfare State, ou do Estado de Bem Estar Social. Quando se estruturava um Estado fortemente regulador, não só da economia – no auge do keynesianismo –, mas também das dinâmicas de ocupação e uso do solo urbano para consolidar um mercado de consumo de massa, os instrumentos serviram para incluir nas cidades um máximo possível de cidadãos, nesse caso, de consumidores em potencial. Mesmo que isso hoje seja coisa do passado, com o atual desmonte arquitetado do Estado Providência por toda a Europa – nem falemos pelos Estados Unidos da América – e uma evidente liberalização da economia, que reduz o poder do Estado e aumenta a autonomia do capital, ainda assim, o ambiente nos quais os instrumentos urbanísticos surgiram e foram no início aplicados era, e ainda é, completamente diferente da realidade muito peculiar das cidades e da sociedade brasileira. No contexto do subdesenvolvimento, utilizar-se de instrumentos urbanísticos pressupõe uma sociedade com um mínimo de equilíbrio econômico e social. Pressupõe-se, principalmente, um Estado que tenha por objetivo a causa “pública” de fato, ou seja, a defesa dos interesses de todos, acima dos de alguns. Ora, vimos que essa não é propriamente a característica do nosso Estado. No Brasil, embora técnicos da administração pública ou mesmo políticos se esforcem cada vez mais para resgatar – ou criar – esse sentido “público” do Estado, a verdade é que ainda lidamos com uma complexa máquina pública, cuja característica é a do patrimonialismo, ou seja, azeitada por séculos para funcionar em uma lógica oposta à do público “de todos”. Por isso, ainda é difícil enxergar os instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade como uma espécie de repetição tardia dos mecanismos de controle urbano típicos do Estado de Bem-Estar Social, porque tal modelo político e econômico deu-se em outro momento e em outras condições históricas. Aqui, a promoção de uma economia, que não superou sua condição de dependência e subdesenvolvimento e que se alimenta de “saltos modernizadores”, passa pela manutenção da gritante desigualdade social, o que na cidade se reflete na permanência da exacerbada exclusão sócio-espacial. Nesse cenário, os instrumentos urbanísticos parecem ter ainda um longo caminho a percorrer, que passa, antes de tudo, por uma mudança na correlação de forças para que haja realmente chamada “vontade política” em utilizá-los. A discussão de como tais instrumentos, retirados de seu contexto original, podem ou não se adaptar e servirem aos mesmos objetivos em uma realidade completamente diferente é, aliás, uma discussão central do urbanismo, e das ciências sociais em geral. Sob pena das “ideias fora do lugar” (Schwarz, 1981), essa transposição deve ser cuidadosa, para não correr o risco de ver um mesmo pensamento, transfigurado, servir a propósitos completamente diferentes – senão antagônicos – aos que o originaram. Aliás, o próprio Felipe aventurou-se por esse difícil ca minho, tentando analisar, em obra anterior, como um instrumento urbanístico de sucesso no Japão, o do land readjustment , poderia ser, eventualmente, aplicado na realidade urbana brasileira. Desta vez, o desafio dele talvez tenha sido maior, pois o objeto tratado, como já dito, está no centro das atenções do capital imobiliário e do próprio Estado. Por meio de planos, operações de desmonte, ações de desapropriações, propostas de urbanização pouco democráticas, construção de equipamentos projetados por estrelas da arquitetura mundial, e até mesmo uma nova linha de metrô que o conecta aos bairros mais nobres da cidade, o Centro vem recebendo, há uma década, toda a atenção possível do Mercado e do Estado. 113
Mercado e Estado que, aliás, vêm se associando cada vez mais, coerentes com nossa tradição, para promover o que chamei em outro texto de um “urbanismo de mercado” (Ferreira, 2010). O planejamento urbano modernista e funcionalista, que no Brasil serviu aos interesses do Estado autoritário, foi aos poucos rechaçado, devido à chegada da matriz econômica neoliberal da última década do século XX, por sua pouca “flexibilidade” face às dinâmicas do mercado. O planejamento que se buscou, a partir de então, deveria ser mais eficaz para integrar as cidades à lógica da economia financeirizada e globalizada, incorporando, inclusive, as áreas obsoletas e abandonadas de grande interesse imobiliário. Deixavase a regulação estatal do espaço público para dar livre curso à ação dos empreendedores privados, sempre associados a festejados arquitetos de renome internacional, em grandes empreendimentos de “revitalização” de qualquer área remanescente que ainda se prestasse a uma intervenção. Com fortes investimentos públicos, muitas vezes legitimados por algum grande projeto esportivo ou cultural, tais propostas de intervenção têm a marca da “gentrificação”, a saber, a invariável expulsão dos moradores originais – geralmente pobres que aceitaram viver em á reas obsoletas e abandonadas – e sua substituição por moradores de um novo e mais alto perfil econômico. No caso de São Paulo, dentre tantos artifícios para se “oferecer” ao mercado um novo Centro adequado aos negócios, encontrou-se mais um, agora travestido de instrumento urbanístico: a concessão urbanística, analisada em detalhe neste livro. Ela, talvez, na sua forma original, tivesse de fato uma intencionalidade “pública”, mas que foi tão bem trabalhada para os interesses dominantes, que hoje se tornou uma das maiores aberrações urbanísticas de que temos notícia. Por confissão, vale precisar, que faço coro e defendo a inconstitucionalidade do instrumento. Não consigo entender algo que possa ser legal ao transferir à iniciativa privada uma prerrogativa tão básica do Poder Público, a de promover desapropriações. Também não é aceitável um instrumento que sirva para dar ao mercado a iniciativa do projeto urbano, por meio de uma licitação. O planejamento do território, a ocupação democrática do espaço e o controle de seu uso devem ser ações públicas, pois afetam o espaço público. O que há de grave nesse aspecto é que o Estado tem legitimidade para isso porque é eleito para tal. Ninguém, em contrapartida, elegeu a empresa que, por critérios incertos, ganhou uma licitação que lhe permite dizer como será o Centro de São Paulo. A história contada neste livro é uma história trágica. Ela escancara as facetas do patrimonialismo e as perversas lógicas de funcionamento de um Estado que há muito perdeu sequer a discrição para atuar em defesa de interesses particulares. Como um bom acadêmico, Felipe Francisco de Souza não se furtou a tirar as conclusões necessárias, mesmo que tenha pago um preço caro por isso, após dez anos dedicados aos trabalhos na Prefeitura. Porém, isso não o impediu de contribuir de maneira incisiva para um melhor conhecimento dos meandros da ação pública em nossa maior metrópole. Mostrou como uma política pública pode ser um artifício para gerar novas frentes de ação para o mercado imobiliário. Mostrou como o Estado pode fazer a política do “quanto pior, melhor” para garantir o atendimento de determinados interesses. Mostrou quão delicada e perigosa é a imiscuição exagerada dos interesses privados na coisa pública. Assim, aponta toda a utilidade, esta sim “pública”, do seu trabalho: a de evitar, pela denúncia embasada e amparada pelo rigor da pesquisa acadêmica, que um processo político “viciado” possa tornar-se um modelo para outras cidades brasileiras, que passem a usar a concessão urbanística como mais um instrumento de expulsão de populações de lugares com potencial de valorização imobiliária. É por isso que este é um livro de leitura imprescindível para os urbanistas brasileiros preocupados com a reforma urbana, a reconstrução das nossas cidades em outros moldes e a perspectiva de termos, um dia, uma nova realidade urbana, socialmente justa e verdadeiramente democrática.
114
OS IMPASSES DA POLÍTICA URBANA: GESTÕES “DEMOCRÁTICAS E PARTICIPATIVAS” NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO.
115
Gestão democrática e participativa: um caminho para cidades socialmente justas? Publicado na Revista Democracia Viva 18 – Rio de Janeiro: Ibase, 2003 – ISSN 1415-1499.
A definitiva ascensão do Partido dos Trabalhadores (e de outros partidos de esquerda) ao Poder Executivo, fenômeno que já vem ocorrendo há alguns anos em muitos municípios, e que se completou em 2003 com a vitória de Lula nas eleições presidenciais, trouxe à tona a esperança de que as nossas metrópoles iriam, enfim, beneficiar-se de gestões democráticas e efetivamente participativas, capazes de corrigir os dramáticos níveis de desigualdade, exclusão e segregação espacial que as caracterizam. Entretanto, mais de uma década depois das primeiras vitórias em Porto Alegre, Fortaleza e São Paulo, é triste constatar que se por um lado houve com certeza muitos progressos, especialmente nos municípios que como Porto Alegre mantiveram uma gestão continuada, por outro lado os níveis de pobreza e de exclusão socioespacial, que se revertem em um cenário cada vez mais visível de fratura social e de violência urbana, ainda são lamentavelmente altos e incompatíveis com uma economia do porte da brasileira. De maneira geral, o direito à cidade socialmente justa ainda é uma reivindicação premente: as grandes metrópoles brasileiras têm em média cerca de 20% de sua população morando em favelas (chegando a 40% em Recife), e cerca de 50% excluída do chamado mercado formal. O índices de população favelada não diminuíram, mas ao contrário continuaram crescendo, assim como as periferias pobres das grandes cidades. Em quase todas elas, as áreas de proteção ambiental estão tomadas por ocupações com alta densidade habitacional, como ocorre em São Paulo, onde cerca de 1,2 milhão de pessoas moram em torno das represas Billings e Guarapiranga, em plena área de proteção aos mananciais. A porcentagem de domicílios sem saneamento ainda é altíssima, e o transporte público exige dos trabalhadores mais pobres horas e horas de paciência. Os centros urbanos brasileiros, com seus espaços públicos invariavelmente ocupados pelo comércio informal, estão se esvaziando, e sobram imóveis desocupados, que não cumprem a função social da propriedade urbana� – embora seja esta uma exigência constitucional – enquanto milhares de sem-teto constituem uma demanda por habitação que não consegue ser atendida nem pelo Estado e muito menos pelo mercado imobiliário. Enchentes e desmoronamentos são ainda comuns, e a irregularidade fundiária na cidade informal parece ser insolúvel. Em suma, pode-se dizer que, neste início de século, as nossas cidades apresentam um quadro social dramático e absolutamente inaceitável. A pergunta que vem portanto à mente é se de alguma forma as experiências de gestão mais democrática e participativa implementadas na última década e meia não deveriam ter gerado novas formas de planejamento urbano mais capazes de pelo menos começar, nessas cidades, a reverter esse quadro de intensa exclusão social. Processos de gestão muito propalados, como por exemplo os Orçamentos Participativos, ou a existência de novas leis, como o Estatuto da Cidade, não deveriam ter surtido um efeito suficiente para que os índices gerais da situação urbana brasileira começassem a mostrar uma inflexão positiva? Para que a sensação de insegurança urbana tivesse diminuído? Para que a legião de sem-teto se reduzisse, baixando o déficit de cerca de 5 milhões de moradias? A resposta é sim e não.
� Imóveis situados em áreas centrais se beneficiam de infra-estrutura urbana (esgoto, água, luz, asfalto, etc.) custeada pelo poder público e, portanto, por toda a sociedade. Mantê-los vazios representa um alto custo social. Exercer a função social da propriedade não é nada além de dar-lhes uso. Entretanto, o descompasso entre os proprietários, que mantém um mercado sobrevalorizado irreal (os edifícios ficam desocupados por anos, sem ter quem queira comprá-los ou alugá-los), e a demanda dos usuários dos centros, das faixas de renda mais pobres que não têm como acessar à oferta, gera essa situação inaceitável. A sua solução deveria passar pela criação de significativas políticas de financiamento habitacional para a população com renda inferior a 3 SM, associada à políticas de locação social por parte do Estado para atender a essa população, e à uma dinamização do mercado imobiliário e da indústria da construção civil para baixar os custos de reconversão de edifícios antigos em habitações e suprir a demanda da classe média (acima de 3 SM) por habitações no centro, desonerando o Estado dessa função.
116
“Sim” porque indubitavelmente as experiências localizadas de gestões de esquerda mais duradouras, como em Porto Alegre ou Belém, estão produzindo uma melhoria da qualidade de vida urbana e dos índices de exclusão, e uma intensificação dos processos participativos de gestão da cidade, visíveis a olho nu. E “não” porque os obstáculos que ainda existem são gigantescos, e todos os esforços feitos remam isoladamente contra uma violenta maré contrária. Muitos elementos contribuem para tornar essa constatação negativa extremamente complexa em suas causas. É sobre eles, e sobre as alternativas de planejamento urbano que se colocam, que tentaremos refletir brevemente neste artigo. O primeiro elemento a ser considerado é que o drama urbano brasileiro não data de ontem, mas tem suas origens nos 500 anos de formação de uma sociedade bipartida, e por isso não há de ser resolvido senão em um período de tempo bastante longo. Como já apontou a urbanista Ermínia Maricato�, as cidades refletem e reproduzem as dinâmicas sociais historicamente desiguais que pautaram a (não) formação� da nação brasileira. São a expressão da hegemonia capitalista de uma sociedade de elite. E, nesse contexto, o Estado, historicamente associado aos interesses das nossas classes dominantes, não só nada fez para reverter essa situação como ajudou a consolidá-la. Vale lembrar que o período mais intenso da nossa industrialização, a partir da década de 50, foi gerado graças à aliança entre as burguesias “modernas” nacionais – interessadas em diversificar a economia agrário-exportadora – e os interesses de expansão da economia-mundo capitalista no pós-guerra. A transferência para o Brasil de um parque industrial já montado – e geralmente obsoleto em seu país de origem – só seria interessante para as empresas multinacionais se elas pudessem exercer aqui a exploração de mão de obra que o Welfare State limitava nas nações industrializadas. Por isso, a não-provisão por parte do Estado de uma infraestrutura habitacional e urbana compatível com o acelerado crescimento das metrópoles, provocado pela massa de imigrantes atraídos pela industrialização, está diretamente ligada à manutenção de baixos níveis de assalariamento e de um significativo exército industrial de reserva, barateando os custos da mão de obra. Por isso, assim como alguns pensadores da formação econômica brasileira se referem a uma “industrialização com baixos salários”, é possível falar de uma “urbanização com baixos salários” (Maricato, 2000), que gerou cidades estruturalmente desiguais com periferias superpopulosas e pobres, quase totalmente desprovidas da presença do Estado (exceto, evidentemente, do poder de polícia, cuja função de resguardo da segurança pública se confunde, como já lembrou Hélio Luz�, com a de manutenção da população pobre nos guetos em que as periferias e as favelas se transformaram). O exemplo de São Miguel Paulista, na periferia de São Paulo, é exemplar. A região duplicou quase instantaneamente sua população – sem receber qualquer investimento público de urbanização – quando dois empresários de destaque na década de 30, cujos descendentes ainda hoje lideram o empresariado nacional, resolveram trazer desmontada dos EUA uma indústria completa de Rayon, uma fibra sintética moderníssima no Brasil porém já obsoleta em seu país de origem. Enquanto a joint-venture permitiu aos americanos um inesperado novo ciclo de vida para uma planta industrial já obsoleta, ela também contribuiu para a rápida e “moderna” industrialização do país, implantando em São Miguel a Nitroquímica, fábrica constantemente visada pelas más condições de saúde de seus trabalhadores, e que só recentemente foi desativada. É dessa época que remonta, o que não é uma coincidência, a formação de favelas como a do Jd. Pantanal, hoje espalhadas na região. Assim, fica claro que a dramática situação das nossas cidades está ligada à desigualdade estrutural da nossa economia. Quando, na década de 90, é implantado no Brasil o modelo neoliberal hegemônico por sobre essa matriz social arcaica que sequer havia superado as relações de desigualdade e dominação herdadas do Brasil colonial, a exclusão socioespacial nas cidades só fez acentuar-se. Evidentemente, por � Coordenadora afastada do LabHab/FAUUSP e atualmente Secretária-Executiva do Ministério das Cidades. Muitas das ideias aqui pontuadas, resultantes das reflexões feitas no âmbito das pesquisas do LabHab, foram apresentadas no livro “Brasil, Cidades: alternativas para a crise urbana”, de sua autoria (Ed. Vozes, 2001). � Ver a esse respeito Sampaio Jr., Plínio de Arruda; “Entre a nação e a barbárie: os dilemas do capitalismo depe ndente” (ed. Vozes, 1999). � Ver entrevista com Hélio Luz no documentário “Notícias de uma guerra particular ”, de João Moreira Salles e Kátia Lung (1999): “Com o objetivo de proteger o Estado, ela [a polícia] é feita para manter sob controle uma massa de dois milhões de excluídos que ganham R$ 112 mensais.”
117
mais que governos democráticos e populares começassem a tomar a frente de algumas administrações municipais, sua ação não poderia ser muito efetiva na melhoria das condições urbanas uma vez que a política macroeconômica da era FHC, pautada pelos preceitos neoliberais do Consenso de Washington, ao promover a abertura do mercado, a desregulação econômica e o desmonte do Estado só exacerbava a concentração de renda, a desindustrialização, o desemprego e a recessão. Ou seja, fica evidente o mais efetivo obstáculo para o sucesso de qualquer política urbanística no Brasil: por mais que se criem mecanismos participativos de gestão, por mais que se implementem melhorias habitacionais e urbanas, um verdadeiro avanço só ocorrerá no dia em que a população puder ter emprego e renda. Fora isso, todo o resto é paliativo. Como bem colocou Caco Barcellos�, nenhuma política pode ser eficaz (falando, no caso, da violência no Rio de Janeiro), se não se começar por um salário digno. Além disso, as gestões de esquerda se defrontavam – e ainda se defrontam – com outra enorme dificuldade: a tradição, em especial no campo do planejamento urbano, de procedimentos centralizadores, autoritários e ineficazes de um urbanismo funcionalista e burocrático que havia se consolidado durante os anos da ditadura militar. A herança do planejamento modernista inspirado em modelos importados totalmente descolados da nossa realidade, fortemente enraizado nas escolas de arquitetura e urbanismo, e a consolidação de um aparato estatal construído no intuito de fortalecer a hegemonia das elites nas cidades e não de democratizar e universalizar as políticas públicas, geraram máquinas governamentais extremamente fragmentadas, compartimentadas pelas disputas internas de poder, abaladas pela corrupção e o clientelismo, distantes da população e de suas reivindicações, e praticamente ineficazes para promover alguma transformação social mais significativa nas cidades. Some-se a isso o fato de que a pouca maturidade do eleitorado brasileiro, ainda impactado por 20 anos de falta de democracia, levou em alguns casos à recondução ao poder, após curtas gestões da esquerda, de políticos identificados com os setores mais atrasados, arcaicos e clientelistas de nossas elites, e que em pouco tempo desmantelavam todo e qualquer avanço conseguido pela gestão anterior nos procedimentos burocrático-administrativos e na democratização da gestão pública. Foi o que aconteceu por exemplo em São Paulo, quando as significativas melhorias apor tadas pela gestão petista de Luiza Erundina na área da habitação, dos transportes, da educação e da saúde foram violentamente interrompidas e desmontadas pelos oito anos da gestão Ma luf-Pitta. A ineficácia do planejamento urbano funcionalista se evidencia em inúmeras cidades, pela produção de “Planos Diretores” genéricos, tecnicistas e centralizadores, feitos em gabinetes bem longe da realidade urbana, voltados mais para a retórica eleitoral do que para serem efetivamente aplicados, e que quase sempre acabaram mofando em alguma gaveta das prefeituras�. Ermínia Maricato já elencou, em outras ocasiões, os principais problemas dessa metodologia tradicional de planejamento urbano: o descasamento entre o conteúdo regulatório e jurídico dos planos urbanísticos mais tradicionais e a realidade da gestão operacional das dinâmicas urbanas; a inversão de prioridades na alocação dos investimentos públicos, geralmente definidos segundo os interesses dos setores privados, o descontrole sobre os processos de fiscalização do aparato regulatório criado pelo próprio plano, dando margem à corrupção generalizada; a absoluta incapacidade dos planos em atingir a cidade informal; e um jargão tecnocrático e arrogante que intensifica o distanciamento do planejador da população, em especial da de baixa renda. Face à crítica realidade urbana brasileira, não há dúvidas que os Planos Diretores tradicionais pareciam (e parecem), com seu amontoado de generalidades tecnicistas, incapazes de atingir os reais problemas que assolam nossas cidades, em essência questões muito mais básicas do que se poderia imaginar. Senão uma solução, mas ao menos uma forte inflexão nesse quadro urbano crítico seria possível se os planos urbanísticos se debruçassem prioritariamente tão somente sobre quatro questões fundamentais: habitação para todos, transporte público de qualidade, saneamento ambiental, e melhoria da qualidade � Entrevista à Caros Amigos, nº76, julho de 2003. � Ver a respeito texto de autoria do urbanista Flávio Villaça, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”, in Deák e Schiffer (orgs.); “O processo de Urbanização no Brasil”, São Paulo: Fupam/Edusp, 1999.
118
urbana, em especial da cidade informal. Não é à toa, portanto, que o Ministério das Cidades estruturou suas secretarias nacionais justamente em torno dessas quatro questões. É importante notar que a criação, pela primeira vez na história do país, de um Ministério das Cidades – que traz esperanças promissoras de transformações na forma de se tratar a questão urbana no Brasil– foi resultado de uma longa luta encampada não só pelo PT mas por amplos setores da sociedade civil. Uma luta que se iniciou ainda na década de 70, desde quando a população excluída das cidades passou a organizar-se politicamente de forma mais sistematizada. Os movimentos populares de moradia, conjuntamente com entidades profissionais, ONGs e setores da universidade, consolidaram a mobilização pela reforma urbana, que teve papel fundamental para a inserção de instrumentos urbanísticos mais democráticos na Constituição de 1988. Treze anos depois, a manutenção de uma contínua pressão pela regulamentação desses instrumentos culminou com a aprovação pelo Congresso Nacional do Estatuto da Cidade, que introduz ou consolida ferramentas técnico-jurídicas capazes de dar ao Estado maior poder no controle da especulação imobiliária e na implementação de políticas urbanas com fins sociais, como por exemplo o IPTU Progressivo e as Zonas Especiais de I nteresse Social�. Entretanto, se por um lado a mobilização pela participação popular na gestão das cidades e a defesa de uma maior presença do Estado na regulação das dinâmicas urbanas ganharam força como alternativas capazes de contrapor-se à inutilidade do planejamento urbano tradicional, por outro lado a avassaladora ideologia da globalização neoliberal trouxe consigo teorias urbanas “irmãs” tão ou mais nefastas do que ela. Se a “globalização econômica” pretendeu fazer-nos acreditar, com incondicional apoio midiático, que a abertura do mercado e a desregulação econômica seriam o único, o melhor e o mais rápido caminho para nossa entrada no Primeiro Mundo, as teorias urbanas equivalentes, como a do “Planejamento Estratégico”, do “Marketing de Cidades”, ou das “Cidades-Globais”, pretendem por sua vez que a única saída para as cidades sobreviverem no “novo” contexto globalizado é a da competição entre elas, em uma disputa pela atração dos cobiçados capitais internacionais. Desta forma, além de ter que enfrentar os arcaicos mecanismos do planejamento funcionalista, com todos os obstáculos comentados acima, os defensores da reforma urbana passaram a ter de encarar a hegemonia do pensamento urbano neoliberal, que se difundiu de tal forma que até algumas administrações de esquerda caíram na crença de que o “novo” caminho para as cidades seria o da competitividade urbana. A aplicação das teorias urbanas neoliberais tem como principal inconveniente o fato de canalizar significativos fundos públicos, que poderiam ser destinados a políticas mais prementes de saneamento, habitação e transporte nos bairros pobres da periferia, na construção de “centralidades terciárias” supostamente capazes de inserir as cidades no circuitos dos fluxos globais do capital financeiro e de alavancar, por um misterioso “efeito sinérgico”, um processo de crescimento econômico que se estendesse além da centralidade em questão, beneficiando a cidade toda. Assim, sob a justificativa de que é “importante” para a cidade tornar-se uma “cidade-global”, coalizões são firmadas entre as elites fundiárias e imobiliárias e o Estado, para garantir a destinação dos fundos públicos em vistosas e supérfluas obras nos “distritos de negócios”. Assim como em São Paulo surge o badalado centro de negócios da região da avenida Berrini, em todas as grandes cidades brasileiras alguns centros escolhidos pelas elites passam a receber significativos investimentos estatais. Os empresários imobiliários, inclusive, criam uma acirrada competição entre si para assegurar-se o privilégio de ter sua “frente” de ação escolhida como “a” centralidade terciária global. Em São Paulo, apesar dos esforços dos empresários interessados em “ressuscitar” a região central�, é a região da Berrini e da Marginal Pinheiros que vem � O IPTU Progressivo no tempo permite a determinação de uso ou edificação compulsórios em terrenos vazios que não cumpram a sua função social, seguido – caso seu uso não ocorra – pelo aumento progressivo do IPTU e a desapropriação do terreno com títulos da de vida pública. As ZEIS permitem a definição de áreas específicas sujeitas à legislação especial visando a urbanização de favelas ou a provisão de habitação de interesse social. Em algumas cidades, como vem ocorrendo em São Paulo, as ZEIS serão gerenciadas por Conselhos de ZEIS com participação popular, um significativo avanço na gestão aproximada dos problemas urbanos mais prementes. � Que, diga-se de passagem, não precisa ser “ressuscitada”, nem “recuperada”, nem “requalificada”, na nomenclatura típica do mercado imobiliário, pois vem sendo intensamente usada, como nunca aliás havia sido na época em que o centro era ocupado pelas elites. Agora que o “centro” se tornou verdadeiramente o centro de toda a cidade, pois como e xplica Villaça, passou a ser usado pelo povo, as classes dominantes fogem dele para criar “seu” novo centro na Faria Lima (SP) ou na Barra (RJ ). Entretanto, alguns empresários, preocupados com o
119
ganhando indubitavelmente essa batalha�. Em pesquisa recente��, verificamos que em apenas 3 anos de governo, na passagem das gestões Maluf para Pitta, foram investidos, em um pequeno quadrilátero de cerca de 60 km², um total de 4 bilhões de reais de dinheiro público, em operações destinadas à promover a valorização fundiária da região��, sempre sob a inquestionável justificativa de que ali se construía a “cidade-global”. O discurso da “cidade-global” nunca foi tão útil para enriquecer tão poucos. E recentemente, a disputa travada entre São Paulo e Rio para ser a sede das Olimpíadas mostra que a lógica do planejamento estratégico continua a pleno vapor. Os investimentos em obras nas periferias, assim como aqueles para a implementação de mecanismos de gestão verdadeiramente democráticos e participativos, voltados para os problemas efetivos da cidade informal, têm portanto agora que competir, infelizmente, com os investimentos destinados à construção dessas “ilhas de Primeiro Mundo”. Na verdade, esse fenômeno esconde um problema bem mais profundo: o cenário ditado pela Lei de Responsabilidade Fiscal e pela busca a qualquer preço pelo superávit primário, em um contexto cerceado pelas regras macro-econômicas ditadas pelo modelo da estabilização monetária e pelos credores internacionais. Assim, a “governabilidade”, mesmo nos governos de esquerda, passa hoje no campo urbanístico pela priorização absoluta a mecanismos de parceria com o setor privado, supostamente “gratuitos” para o Estado, mas que raramente beneficiam – pois não é esse o caráter do setor privado – a cidade periférica informal. Não há dinheiro para investir no setor social nos níveis que a exclusão urbana brasileira demandaria, assim como não há para garantir as obras de infraestrutura urbana e de provisão habitacional de interesse social. Em compensação, sempre há soluções para novos túneis ou avenidas, supostamente “financiadas” pelo setor privado, em “parcerias” que na verdade acabam custando caro ao setor público��. Nesse cenário, embora sejam uma das mais importantes iniciativas de democratização do planejamento urbano, por permitirem maior transparência orçamentária e uma certa participação nas decisões das prioridades dos investimentos públicos, os Orçamentos Participativos ainda estão muito aquém de ser o instrumento que realmente se desejaria que fossem. Em primeiro lugar, porque muitas vezes acabam caindo nos vícios de estruturas de representação que não conseguem partir das escalas locais dos bairros para chegar na escala municipal sem sucumbir às disputas políticas típicas das estruturas piramidais de delegação de poder. E em segundo lugar, porque as limitações orçamentárias, no atual quadro financeiro das administrações municipais, é tão restringido pelos contingenciamentos diversos que na verdade sobra muito pouco para ser efetivamente “decidido” pela população. Ainda assim, são experiências fundamentais, que devem continuar e se aprimorar. Nesse sentido, a cidade de Belém do Pará vem dando um exemplo extremamente positivo. Lá, se ampliou a discussão do orçamento municipal para a discussão da própria cidade, e o fórum original do orçamento participativo se tornou efetivamente o Congresso da Cidade. Além disso, as propostas e experiências de gestão participativa foram e estão sendo incorporadas às estruturas fixas da administração municipal. Talvez esse seja na prática um dos maiores desafios das gestões de esquerda. Em muitas cidades hoje governadas pelo PT, é comum observar-se um descompasso ainda grande entre as demandas que chamam de “degradação” das áreas centrais, esforçam-se para atrair investimentos públicos qu e as coloquem novamente no circuito fashion da cidade globalizada. ZEIS com participação popular, um significativo avanço na gestão aproximada dos problemas urbanos mais prementes. � É interessante observar que, apesar de toda a propaganda, essa região identificada como do setor “terciário avançado” abriga apenas 3,5 do total de empresas do setor atuantes na cidade, e apenas 0,50 do total de empresas de todas as áreas. Ver a respeito Ferreira, João S. W., “São Paulo: o mito da cidade-global”, Tese de Doutorado, FAUUSP, 2003. �� Ver Ferreira, idem. �� Trata-se da Operação Urbana Faria Lima, das obras dos túneis sob o Ibirapuera e o Rio Pinheiros, da construção das avenidas Água Espraiada, Nova Faria Lima e do “boulevard” Juscelino Kubitschek, e da modernização do trem e das estações ao longo desse trecho do rio. O valor não computa o astronômico montante relativo aos precatórios das desapropriações na avenida Faria Lima, que pode chegar a mais 500 milhões. �� Em outros artigos, já mostramos como a lógica das Operações Urbanas, por exemplo, acaba resultando em importantes gastos públicos. Na Operação Faria Lima, embora os números oficiais sejam – propositalmente? – confusos, estudo recente mostrou que há um déficit de cerca de 100 milhões de Reais, sem contar os p recatórios. Ver Ferreira, op.cit, e Ferreira e Fix, “A urbanização e o falso milagre do CEPAC” , in Folha de S.Paulo, “Tendências e Debates”, 17 de abril de 2000.
120
populares e a capacidade do governo em atendê-las. Ao mesmo tempo, os movimentos populares ficam muitas vezes desorientados, não sabendo mais como reivindicar ações de governos que não raro até incorporam em seus quadros membros dos próprios movimentos. E os governos, por sua vez, parecem as vezes engessados nas dinâmicas restritivas da administração, afogados pelo ritmo alucinante das demandas emergenciais, cerceados pela falta de alternativas financeiras, obcecados pela chamada “governabilidade”, e preocupados em manter uma imagem de “bons moços” junto às classes médias e altas, mais palatável e menos radical do que a mídia e a direita haviam pintado antes de serem eleitos. Embora isso não seja uma regra, a verdade é que não raro as gestões de esquerda parecem se acomodar com um simples rótulo de “governos de esquerda”, e com o fato de que o exercício de um governo mais ético e menos comprometido com os interesses dominantes já é suficiente para garantir sua viabilidade política. O PT deve sempre provar que não veio para “radicalizar”, e a verdade é que tal preocupação é às vezes incompatível com os desafios que se impõem se a ação governamental visar, em algum momento, enfrentar os reais desequilíbrios sociais das nossas cidades. De fato, a complexidade dos problemas que se colocam certamente irá demandar um engajamento maior, em processos muito mais desgastantes politicamente junto às classes médias e altas, cuja conquista foi tão importante para o PT viabilizar sua chegada ao poder. Nesse quadro de aberta contradição política entre o discurso e a prática, pelo menos os processo participativos devem poder ser mais efetivos. A gestão participativa não pode se ater apenas ao aumento das audiências públicas ou dos fóruns de discussão com os diferentes setores da sociedade civil. Ela deve incorporar de forma estrutural e definitiva a presença decisória da população em todas as estruturas de gestão da máquina administrativa, da escala local à escala mais geral. Nesse sentido, o processo de discussão das Conferências das Cidades, implementado este ano pelo Ministério das Cidades, é uma excelente iniciativa nesse sentido, ainda mais considerando tratar-se de um processo que abarca todo o país. Também são fundamentais, por exemplo, os conselhos participativos de habitação e de política urbana, implantados na cidade de São Paulo. Porém, é certo que o grau de participação, sobretudo com algum poder de decisão, deve ir ainda muito mais longe para começar a ser eficaz em seu papel politizador e pedagógico, e como um instrumento de democratização da gestão pública. O Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP experimentou recentemente uma alternativa de planejamento urbano que pode ser uma boa contribuição nesse sentido, ao propor mecanismos de gestão da cidade descentralizados, liderados pelos governos locais, e gerenciados por uma dinâmica participativa. Trata-se da elaboração, por encomenda da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo e da Cities Alliance, de um “Plano de Ação Habitacional e Urbano para bairros em situação de risco pela exclusão socioeconômica e a violência”. A ideia de um “Plano de Ação”, inicialmente proposta pela urbanista Ermínia Maricato, era a de se contrapor justamente aos modelos tradicionais de planejamento urbano acima comentados, com uma proposta de ação local de caráter participativo. A experiência, realizada no bairro do Jardim Ângela��, procurou estabelecer um padrão de ação do poder público que se pautasse pela tentativa de superação dos obstáculos típicos do planejamento tradicional. Assim, alguns princípios norteadores foram estabelecidos, que podem ser replicados facilmente em outras experiências do tipo, em diferentes cidades brasileiras. Sem sermos exaustivos, eis alguns deles: - O princípio básico de que qualquer plano urbanístico deve ser antes de tudo o de estabelecer uma presença efetiva do Estado em bairros periféricos historicamente abandonados pelo poder público; - Tal presença deve ser transversal e intersetorial, envolvendo as diferentes esferas de poder: isso porque a presença do Estado nas periferias se dá de forma fragmentada. Uma escola ou um posto �� Sob a coordenação metodológica do LabHab, também foram realizados planos para Cidade Tiradentes e Brasilândia, sob responsabilidade dos Escritórios de Assessoria Técnica Usina e GTA, respectivamente.
121
de saúde isolados geram uma expectativa de melhoria que, sozinhos, nunca serão capazes de responder. As periferias precisam urgentemente de um “choque” de políticas Inter setoriais, e nesse sentido qualquer ação do poder público deve ser tratada como uma política de governo, respaldada pelo(a) prefeito(a) e implicando todas as secretarias. - Qualquer política para a periferia deve ser associada a programas maciços de provisão habitacional de interesse social nas áreas centrais, promovendo um início de reversão no processo contínuo e ininterrupto de periferização das nossas metrópoles; - Diante das dificuldades financeiras, é fundamental que o Plano de Ação se apoie e potencialize as redes de equipamentos e os programas públicos já existentes, unindo a administração e consolidando a concatenação das políticas setoriais; - O Plano de Ação deve ser implementado pelo próprio órgão executor da intervenção urbana, saindo dos gabinetes especializados no distante “planejamento estratégico”, e aproximando-se efetivamente da gestão local. Por isso, o Plano de Ação deve ser também assimilado, implantado e gerenciado pelos órgãos mais locais de governo (subprefeituras, etc.). Nesse sentido, pode ser um instrumento eficaz para aproximar, por cima das tradicionais disputas políticas pelo controle político do território, as esferas de governo municipais e locais (secretarias e subprefeituras, por exemplo). - O Plano de Ação deve ser verdadeiramente participativo, incorporando todos os agentes sociais locais como protagonistas de sua elaboração. A sociedade e a comunidade local não podem ser considerados como simples beneficiários – ou clientes, na terminologia em voga – mas como sujeitos dos processos de decisão e gerenciamento das políticas relativas ao ambiente construído. Nesse sentido, e agora sim, parcerias de cogestão dos equipamentos devem ser implementadas com as entidades locais, favorecendo a reconstituição do tecido social e promovendo o desenvolvimento endógeno. A participação deve se dar não só na etapa de elaboração, mas também e sobretudo nas fases de implantação e de gestão do plano. Para isso, conselhos de gestão do plano devem ser pensados, para garantir o espaço participativo de forma definitiva e ao máximo aproximada do governo local. Nas etapas iniciais, a pauta de ações do próprio plano deve ser estruturada a partir das demandas discutidas com a população. - O Plano de Ação deve ter um papel pedagógico na formação de agentes políticos locais plenos, assim como deve permitir a estruturação e a coesão de uma rede de profissionais locais diretamente envolvidos no acompanhamento das condições de vida da população, em todos seus aspectos (habitacional e urbano, de saúde, de emprego, etc.), possibilitando a retroalimentação de cadastros humanizados que possam ser utilizados pelo poder público. Cabe aqui destacar a atual rede dos Programas de Saúde Familiar – PSF, e o papel que os agentes comunitários do PSF vêm cumprindo exatamente nesse sentido; - O Plano de Ação se subdivide em pelo menos quatro etapas metodológicas: o pré-diagnóstico, que possibilita uma primeira aproximação junto às comunidades locais sem gerar demasiada expectativa, o diagnóstico, cujo caráter deve ser propositivo, para não se cair no erro da academia e do planejamento tradicional de produzir compêndios técnicos que na prática pouco propõem, um documento de “diretrizes e prioridades”, e o plano propositivo final. - A etapa do diagnóstico deve servir para disponibilizar informações, mapas e dados para as comunidades de regiões geralmente carentes desse tipo de informações sistematizadas, ainda mais espacializadas. Para além do seu uso no próprio Plano de Ação, o diagnóstico pode ter usos intensos e variados por parte das entidades locais da sociedade civil. Embora ainda enfrentem dificuldades na sua atual fase de implantação, a maioria decorrentes dos entraves político-administrativos e das limitações financeiras, acreditamos que os Planos de Ação, ao se 122
contrapor aos modelos mais tradicionais de planejamento urbano, podem ser o início de uma inflexão do planejamento das cidades para um rumo mais eficaz no seu papel transformador, conseguindo dar conta um pouco melhor da enorme variedade de problemas colocados ao longo deste artigo. Eles representam sobretudo um alento para os urbanistas, no sentido de que mostram que ainda é possível o exercício de pensar instrumentos capazes de ajudar na construção de cidades um pouco mais justas.
123
Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização das cidades no Brasil e os riscos de um “urbanismo às avessas”. Capítulo de livro: Oliveira, Francisco, Braga, Ruy, Rizek, Cibele. Hegemonia as avessas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. ISBN 9788575591.
Nesta virada para o século XXI, o urbanismo brasileiro parece viver uma nova era, afinada com o espetáculo da globalização: bairros de negócios com modernas torres, shoppings-centers cada vez mais luxuosos, sofisticados túneis e ousadas pontes, salas de espetáculo capazes de receber os grandes shows culturais globalizados, são exemplos de que nossas grandes cidades parecem ter alcançado a desejada condição de “cidades globais”, graças ao que chamaremos aqui de um “urbanismo de mercado”. Para o deleite dos empreendedores, o mercado imobiliário, em especial nas nossas maiores cidades, parece não ter freios: bairros inteiros estão sendo transfigurados e verticalizados. São Paulo e Rio de Janeiro digladiaram-se na disputa para sediar jogos olímpicos, a nova moda entre cidades que se pretendam “globais”�, até que a segunda saísse vitoriosa, em um élan de patriotismo que sacudiu a nação, para receber os jogos de 2016, com a previsão de grandes e milionários projetos urbanos. Grandes e custosos projetos também previstos para outra grande conquista, a de receber a copa do mundo de 2014. Projetos de water fronts viraram moda, de Puerto Madero, em Buenos Aires, à Estação das Docas, em Belém. A Sala São Paulo, construída na antiga estação de trem Júlio Prestes, e considerada uma das mais modernas salas de concerto do mundo, permitiu à metrópole paulistana inserir-se no seleto clube da elite da música erudita internacional, ao mesmo tempo que promoveu a valorização e elitização da área central da cidade por meio de um significativo investimento público. Aliás, o uso da cultura como alavanca para a valorização fundiária e imobiliária tornou-se nesse início de século a nova receita para a região central, que agora ganhou o projeto de uma escola de dança projetada pelo arquiteto do Ninho de Pássaro, em Pequim, orçado em nada menos que R$ 600 milhões. Na mesma direção, Rio de Janeiro, Curitiba e outras cidades disputavam o privilégio de ter, após Nova York e Bilbao, o seu Museu Guggenheim. Em muitas das nossas grandes cidades, novas parcerias público-privadas eram anunciadas para alavancar ambiciosos planos de urbanização. Alguma coisa nova estava no ar. O urbanismo tradicional, herdeiro do funcionalismo modernista, repaginado no clientelismo do regime militar, aquele dos planos tecnicistas pouco aplicados (Villaça, 1999), das grandes obras viárias e das fontes luminosas propícias a superfaturamentos, embora até hoje recorrente, cedia espaço para uma “nova” visão “moderna e globalizada” da gestão urbana. Uma visão importada das grandes cidades do mundo desenvolvido, segundo a qual a cidade devia ser gerenciada como uma empresa (Vainer, 2000). Esse modelo do urbanismo internacional havia sido gerado no bojo do avanço liberal da era Reagan/Thatcher, e apropriou-se de nomes da gestão empresarial, como o “planejamento estratégico” e o “marketing urbano” para promover a ascensão das “cidades-globais”, apresentadas pelos governos, na mídia e nas universidades como a única configuração urbana capaz de garantir a sobrevida das cidades no competitivo contexto da “globalização” econômica (Ferreira, 2007). Um modelo de submissão absoluta ao mercado, que parecia ter feito suas provas em cidades europeias e norte-americanas, e que passava a ser importado para nossa realidade, na velha tradição das “ideias fora do lugar”.
� “Wannabe world cities”, nos termos de SHORT, J. “Urban Imageneers:, in Jonas & Wilson, “The Urban Growth Machine: critical Perspectives two decades later”, New York: State University of New York Press, 1999.
124
As origens de um “urbanismo de mercado” nos moldes do liberalismo globalizado A propagação dessa receita urbana partiu dos países industrializados, e teve motivações muito pragmáticas. A partir de meados da década de 1970, no cenário de crise de superprodução e desemprego, de desconcentração industrial em muitas cidades europeias e norte-americanas, e de alta competitividade, a possibilidade de alavancar parcerias milionárias com o setor privado para a construção de pólos urbanos capazes de atrair grandes empresas e negócios globais mostrou-se uma via de salvação para prefeitos submersos em graves crises de governabilidade. É nesse contexto que surgia a já comentada receita dos investimentos culturais e esportivos como ótima oportunidade de se construir as infraestruturas necessárias para transformar áreas obsoletas e quase falidas em pólos de atração do grande capital global (Arantes, 2000), receita esta inaugurada ainda nos anos 70 pelo centro cultural Georges Pompidou�, em Paris. A partir daí, com o apelo cultural ou não, uma onda de grandes obras “revitalizadoras” de centros urbanos se propagou nos países centrais, produzindo centros de convenções e de negócios, museus e salas de espetáculos, arenas esportivas, modernos aeroportos. Tais investimentos ganhavam toda sua potencialidade lucrativa quando associados a jogos olímpicos e exposições universais. Em uma simbiose de interesses políticos e imobiliários, esse novo paradigma de urbanização transformava os espaços obsoletos e degradados decorrentes da reestruturação produtiva em fantásticas oportunidades para a realização do capital. O planejamento urbano modernista e funcionalista, tão útil no ciclo econômico anterior para organizar as cidades nos moldes da economia fordista e da sociedade de consumo de massa que se criava a partir do pós-guerra, foi aos poucos rechaçado, por sua pouca flexibilidade e seu forte caráter estatal regulador, dando espaço a um “gerenciamento” das cidades supostamente mais ágil para enfrentar os problemas de obsolescência urbana. Ou, em outras palavras, mais eficaz para integrar as cidades à lógica da economia financeirizada e globalizada. Os grandes conjuntos habitacionais do Pós-Guerra foram execrados (embora tivessem à época cumprido seu papel de provisão habitacional em massa), pelos seus vícios modernistas, Esse novo padrão de intervenção urbana, baseado em “grandes projetos” é hoje a regra na maioria dos países do capitalismo central. Na onda do liberalismo crescente e do enfraquecimento do Estado do Bem Estar Social, deixa-se para trás a regulação estatal do espaço público para dar livre curso à ação dos empreendedores privados, sempre associados a festejados arquitetos de renome internacional. São lançados ininterruptamente grandes empreendimentos de “recuperação” de qualquer área remanescente que ainda se preste a uma intervenção: resquícios de bairros operários, áreas fabris abandonadas, ou mesmo o vazio deixado pelas torres gêmeas do World Trade Center . Evidentemente, o resultado disso é um forte processo de valorização fundiária e imobiliária, que transforma esses setores das cidades em um nicho de oportunidades para o capital. Daí decorre a chamada “gentrificação” urbana, ou seja a expulsão da população originalmente moradora e sua substituição por camadas de renda muito superior. Na esteira de cidades como Baltimore, Nova York, Londres, Paris, Barcelona e muitas outras, da década de 1980 até hoje vemos a constante aplicação do modelo dos “grandes projetos de revitalização urbana” como um novo paradigma para o planejamento urbano no mundo. Em Bilbao, o projeto futurista do arquiteto Frank Gehry para o museu Guggenheim, construído em área portuária em desuso, assegurou para a cidade um lugar ao sol na rota dos fluxos globais de turistas e de capitais. Em Londres, uma das mais recentes operações foi a construção do Domo do Milênio, projeto do festejado arquiteto Richard Rogers para uma antiga e obsoleta área industrial de produção de gás, vizinha às docas, já urbanizadas por grande operação imobiliária em décadas anteriores. Em Paris, a área onde ficavam as usinas Renault, em Boulogne-Billancourt , é hoje um gigantesco canteiro de obras de um empreendimento imobiliário
� que alavancou a polêmica incorporação urbana do Quartier de L´Horloge e do bairro do antigo mercado dos Halles
125
considerado pelos críticos um verdadeiro “ parque de diversões para demiurgos, urbanistas e promotores imobiliários”�. Na maioria desses casos, os interesses privados foram alavancados por importantes investimentos públicos. Na grande operação de renovação das docas londrinas no final dos anos 90, em um processo de “revitalização” e valorização do antigo “cinturão vermelho” dos bairros operários da cidade, por exemplo, cerca de 1,3 bilhão de dólares de fundos públicos foram investidos, o que não evitou, aliás, um grande desastre imobiliário, dada a insuficiência do transporte coletivo previsto para acessar a área� (Ferreira, 2007). Somente mais de uma década depois o empreendimento se recuperou, graças à construção – pelo governo e com mais recursos públicos – de uma nova linha de metrô.servindo aquela região. Em Barcelona, foram 5,5 bilhões de dólares públicos investidos na preparação dos Jogos Olímpicos de 1992, cujas obras de urbanização se tornariam a coqueluche dos planejadores das “Cidades Globais”�. Quase sempre, essa mobilização de importantes fundos públicos para alavancar projetos de renovação urbana foi legitimada junto à população justamente com o discurso de que essa seria a porta de entrada definitiva no chamado “arquipélago das cidades-globais”, o que permitiria a atração de um volume de capital muito maior do que o investido pelo Estado. Um prognóstico arriscado, como em qualquer operação capitalista. Os balanços, aliás, nunca são muito transparentes, e além das Docklands, não raramente vêm à tona notícias de dificuldades financeiras não previstas, como no caso dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, ou da cidade de Nova York, no início deste século�.
Brasil: “Urbanismo de mercado” x reforma urbana? A expansão neoliberal gerada pela reestruturação produtiva alcançou nosso país a partir da década de 90, e os ditames do Consenso de Washington provocaram importantes transformações econômicas, hoje bastante conhecidas: a forte desregulação e o enfraquecimento do papel do Estado, as privatizações e a abertura do mercado interno para o capital internacional, a desnacionalização da indústria e a precarização absoluta das relações trabalhistas, o abandono de projetos de políticas públicas estruturais em favor de políticas de assistência social pontuais, e assim por diante (Ferreira, 2007). Embora não tenham sido imediatamente notadas, estavam também incluídas no “pacote” as novas receitas urbanísticas importadas do “Primeiro Mundo”. O que tornou o quadro mais complexo foi o fato de que a expansão neoliberal chegou ao Brasil justamente quando o país começava a redemocratizar-se e assistia à paulatina chegada ao poder de grupos políticos mais comprometidos com a democracia e as causas sociais. Ser favorável à democratização ou mesmo indignar-se – no discurso – com a pobreza são posicionamentos políticos bastante cristalinos e que n ão remetem a grande polêmicas. Ou se é, ou não é. A questão não é tão simples, entretanto, quando se trata do posicionamento econômico em um quadro de crise estrutural, e mais ainda de promover políticas públicas que eventualmente possam, de alguma forma desestabilizar a relação de forças e o poder das elites dominantes. Ou seja, o fato de termos governos democráticos não garantia em nada que estes não adeririam às receitas econômicas do neoliberalismo. A contradição daí resultante estava no fato de que governos agora “democráticos” e com discurso social adotariam, em nome da busca de uma “modernização globalizada”, o modelo econômico neoliberal cujas consequências seriam justamente o agravamento da concentração de renda e da tragédia social. Como os governos municipais ganharam, a partir da Constituição de 1988, uma inédita autonomia na condução das políticas urbanas, era muito � http://yakasolutions.typepad.com/rives_de_seine/boulogne_billancour t. Ver também, sobre o projeto: http://www.ileseguin-rivesdeseine. fr/main.htm � A canadense Olympia&York, maior incorporadora do mundo na época, faliu em decorrência do insucesso da urbanização de Canary Walf. � Os urbanistas catalães, de fato, tendo à sua frente Jordi Borja, tornaram-se assíduos consultores internacionais de governos interessados em aplicar o planejamento estratégico, como no caso de Santo André, para o Eixo Tamanduatehy. Ver por exemplo artigo de Borja para a Prefeitura de Bahia Blanca, com título dos mais explicativos: “Las ciudades en la globalización: Planificación Estratégica y Proyecto de la Ciudad”. (Borja, 1999). � Folha de SP, 2010/2002: “Nova York, a cidade mais rica e poderosa do país mais rico e pode roso do mundo, pode quebrar”.
126
provável que a contradição na condução da política econômica contaminasse, por assim dizer, o campo do urbanismo. Assim, por um lado, na década de 1990 chegaram ao poder municipal governos de alinhamento progressista e fortemente amparados pelos movimentos populares, que alavancaram importantes avanços nas políticas sociais, inclusive nos campos habitacional e urbano. Ancorando-se na nova Constituição, que trazia artigos (182 e 183) que tratavam da função social da propriedade urbana, Recife, Santo André, Porto Alegre, Diadema, Belo Horizonte e São Paulo, entre outras, passaram a ser referência de vanguarda na implantação de mecanismos de democratização da gestão da cidade e de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida da população mais pobre. Mas, por outro lado, no bojo do pensamento neoliberal, o apelo do “urbanismo de mercado” e do planejamento estratégico apresentava uma tentadora oportunidade de deixar nas cidades “marcas” de modernização para os governantes que decidissem promover a aproximação público-privada na condução de projetos de “renovação” urbana calcados nos interesses do capital. Paulatinamente, esse modelo urbano e sua receita de parcerias com o setor privado na busca de investimentos, encontrou nesse cenário um ambiente propício à sua expansão, ainda mais em um país em que o mercado imobiliário sempre teve, por assim dizer, a vida bastante fácil. Esse antagonismo entre um urbanismo conduzido pelo Estado e comprometido com a “reforma urbana” democrática e outro calcado na aproximação com o capital privado, iria acentuar-se cada vez mais. Para entendê-lo, vale retomar aqui um pouco da história da luta pela Reforma Urbana a partir da Constituição de 1988. Os artigos 182 e 183 da Constituição traziam alguns “instrumentos” supostamente capazes de dar ao Estado maiores poderes para enfrentar os desequilíbrios urbanos das nossas cidades. Eles teriam, entretanto, que esperar treze anos para serem efetivamente regulamentados no Estatuto da Cidade, em 2001. Porém até mesmo antes de 1988, alguns municípios brasileiros já haviam implementado instrumentos de controle urbano de caráter democratizante, como por exemplo o instrumento das Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS, que permitia uma legislação urbanística específica para áreas precárias, vinculando-o, principalmente, a programas de regularização fundiária em favelas. Recife aplicou Planos de Regularização das ZEIS (PREZEIS) e regulamentou um complexo sistema de gestão participativa. O Orçamento Participativo também era experimentado em algumas cidades, sendo o de Porto Alegre o mais conhecido. Em Santo André, as Áreas de Especial Interesse Social foram aprovadas em 1991, para viabilizar a urbanização de favelas (Ferreira e Motisuke, 2007). Tais iniciativas marcaram, nesse cenário, uma perspectiva inovadora, no sentido de reconhecer uma grande parcela da população urbana como cidadãos, e seus locais de moradia – mesmo que informais – como parte da cidade, buscando garantir sua recuperação e a melhoria das condições de vida. As reivindicações pela Reforma Urbana, originadas nos movimentos de moradia das periferias ainda no regime militar, pareciam ganhar uma nova e promissora perspectiva de efetivação. Com a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, parecia que essas experiências pioneiras iriam se difundir pelos municípios brasileiros. O Estatuto preconizava a gestão democrática da questão urbana, o enfrentamento da retenção de terras para fins especulativos, a regularização fundiária e a concessão de uso habitacional em terras públicas, entre outros avanços. A obrigatoriedade de elaboração de Planos Diretores para a aplicação desses instrumentos fez com que muitos municípios os discutissem e que o tema ganhasse uma nova importância no meio acadêmico do urbanismo. Porém, isso não significaria que sua aplicação fosse ser fácil, ou ainda muito efetiva. Isso por uma razão muito clara: a reforma urbana, no sentido da democratização das cidades, é uma questão essencialmente política. E a sociedade brasileira não estava aberta para romper a relação de forças pela qual as classes dominantes impuseram uma urbanização marcada pela drástica segregação sócio-espacial. Além disso, 127
o modelo tradicional e arcaico do urbanismo de grandes obras viárias – objeto de superfaturamento e instrumentos político-eleitoreiros – continuava com toda força. Nesse jogo de forças, ver o Estado atacando a retenção de terras ociosas para fins especulativos, obrigando a construção de habitações de interesse social em imóveis vazios, investindo pesadamente em infraestrutura urbana nas periferias, dando o direito de propriedade a moradores de favelas e loteamentos clandestinos, combatendo a ação desenfreada e destrutiva do mercado imobiliário, seria vê-lo atuando no sentido inverso à sua história, à sua lógica patrimonialista de defesa dos interesses dominantes. Interesses que se polarizam no extremo oposto, em torno do controle ao acesso à terra, da proteção quase sagrada da propriedade fundiária restrita às classes dominantes, da prioridade dos investimentos nos bairros mais ricos, da exclusão sócio-espacial como instrumento de dominação, questões que têm no Brasil quinhentos anos de consolidação. Assim, a um Estado “público” comprometido com os “novos” instrumentos urbanísticos e a democratização das cidades, contrapunhase o próprio Estado, por suas características patrimonialistas, pela sua instrumentalização pelas classes dominantes, pelos antagonismos da nossa formação social e pelas condicionantes históricas do nosso subdesenvolvimento. Assim, as cidades brasileiras viviam, na última década do século XX, um duplo e contraditório movimento: por um lado, dispunham de um novo instrumental legal que lhes daria condições de implementar uma reforma urbana democrática, mas por outro sofriam a pressão econômica pela adoção de novos modelos liberais de planejamento. Mas a possibilidade de aplicação desses instrumentos enfrentava sobretudo a dificuldade de que estes foram pensados dentro da lógica do Estado-Providência, e não na da urbanização subdesenvolvida e do Estado patrimonialista.
A produção do espaço urbano e os entraves do urbanismo no subdesenvolvimento O solo urbano tem seu valor determinado por sua localização ( Villaça, 2000). Uma localização é melhor do que outra em função é claro de suas condições físicas (vista, orientação, relevo...), mas principalmente da infraestrutura urbana existente, que a torna mais acessível, mais equipada, mais propícia a ser edificada. Como é o Estado quem produz a infraestrutura, a localização urbana e a sua valorização são frutos dos investimentos públicos nela realizados. Assim, como coloca Deák (2001), “ a intervenção estatal é um complemento necessário, ainda que antagônico, à regulação pelo mercado ” do acesso ao solo urbano. Uma das grandes contradições da cidade capitalista está no fato, portanto, de que enquanto a valorização de um imóvel é determinada por investimentos públicos, o lucro dela obtido é auferido individualmente pelo empreendedor ou proprietário. Foi para regular e mediar esse antagonismo entre mercado e sociedade que o keynesianismo do pós-guerra, regulador da economia, tornou-se também regulador da produção do espaço urbano, por meio dos chamados instrumentos urbanísticos. O Estado teve o papel, no contexto do Estado do Bem-Estar Social e da construção de economias de consumo de massa, a partir dos anos 50 nos países centrais, de garantir uma produção homogênea de infraestrutura em toda a cidade, evitando a exclusão das parcelas populacionais de menor renda, construindo equipamentos acessíveis por todos, e recuperando, com tributos, parte do lucro obtido pelo mercado em decorrência de investimentos públicos em infraestrutura, que os estudiosos chamam de “mais-valia urbana”. No Brasil, entretanto, os investimentos públicos em infraestrutura foram claramente direcionados e concentrados nas áreas ocupadas pelos setores de alta renda (Villaça, 2001). Pela lógica peculiar do subdesenvolvimento, o Estado, se entendido no seu sentido público importado da realidade das democracias desenvolvidas, é um “não-Estado”. Ele não planeja ações para a superação do atraso, mas confunde; não organiza, mas desestrutura; não facilita mas embaralha e burocratiza os procedimentos administrativos, não porque seja incompetente, como as vezes se propaga, mas por ser muito eficaz na produção da segregação sócio-espacial, que emperra um desenvolvimento independente, redistributivo 128
e includente, que poderia contrariar o equilíbrio de forças políticas, o poder das elites internas e os interesses externos que historicamente se alimentam desse atraso. A acelerada industrialização e urbanização “com baixos salários” das décadas de 1950 a 1970, que levou a um crescimento econômico significativo, porém condicionado à manutenção da pobreza, traduziu-se no âmbito urbano por um padrão de absoluta segregação sócio-espacial, que chamamos de “urbanização desigual”. Como coloca Maricato, “Inaugura-se assim o urbanismo que iria se consolidar durante todo o século XX no Brasil: a modernização excludente, ou seja, o investimento nas áreas que constituem o cenário da cidade hegemônica ou oficial, com a consequente segregação e diferenciação acentuada na ocupação do solo e na distribuição dos equipamentos urbanos ”. (Maricato,1997b) Nesse cenário, a “melhor” política habitacional era uma “não-política”, deixando a população que migrava para os grandes centros industriais sem alternativas habitacionais, sem condições de acessar a terra urbanizada, e à mercê de loteadores clandestinos que disseminaram a ocupação informal das periferias�. A autoconstrução tornava-se a alternativa de moradia que melhor permitia a manutenção do baixo custo da força de trabalho (Oliveira, 2003:130). Desse modelo urbano resultou um forte antagonismo entre uma parte das cidades quase exageradamente “desenvolvida”, beneficiada por constantes e importantes investimentos públicos em infraestrutura e objeto da ação do mercado, e outra sujeita a um “aparente” caos, na verdade bastante funcional do ponto de vista das necessidades da acumulação (Oliveira, 2003:59).
Avanços e impasses do urbanismo democrático Quando da ascensão de partidos de esquerda às prefeituras, no fim da década de 80, era inevitável acreditar que instrumentos urbanísticos do Estatuto das Cidades pudessem exercer a mesma função reguladora para a qual foram criados, e transformar o Estado em promotor de uma ordem inversa, de distribuição das riquezas e de justiça social. Porém, a verdade escondida era a de que dificilmente eles poderiam, por si só, alterar o equilíbrio de forças e alavancar a Reforma Urbana e a redemocratização do acesso à terra. Os treze anos, que se levou para que os artigos da constituição fossem tão somente regulamentados em uma lei definitiva – o Estatuto das Cidades – já foi um sinal inequívoco de que a esperada inversão da lógica não ocorreria tão facilmente. Porém, seria incorreto dizer que a política urbana brasileira não tenha logrado, nas últimas décadas, alguns avanços. Santo André e Porto Alegre, beneficiados pela continuidade de gestão por mais de um mandato�, experimentaram com certa efetividade alguns dos instrumentos urbanísticos, para a regularização fundiária ou a delimitação de ZEIS. No que tange à política para favelas, a ideia da erradicação total (e expulsão sistemática) deu lugar, em muitos municípios e nos programas federais, a políticas de incorporação à cidade por meio de sua urbanização. Esforços para uma regularização fundiária mais ampla foram às vezes promovidos, e equipamentos de educação e saúde foram implantados em algumas cidades, em áreas pobres de periferia. A criação do Ministério das Cidades, em 2002, e as ações dele decorrentes, como a implantação do Conselho das Cidades (com participação dos movimentos populares), a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e a estruturação de uma política de financiamento envolvendo municípios e estados, significaram outro avanço importante na luta pela reforma urbana no Brasil. Recentemente, políticas de desenvolvimento federais – mesmo que criticáveis em muitos aspectos – � Ao contrário dos países centrais, Brasil viveu uma espécie de Estado de “deixe-estar” social, não só porque deixar a população à própria sorte era a melhor forma de não encarecer os custos da força de trabalho, mas também porque se tratava de um Estado promotor do “laissez-faire” (deixe-estar), ou seja, da livre iniciativa e dos interesses empresariais. � lembrando que é quase impossível conceber políticas urbanas socialmente transformadoras em menos de 8 ou 10 anos
129
incluíram no seu rol de investimentos a questão dos assentamentos precários e da habitação social. A possibilidade de incorporação dos instrumentos do Estatuto da Cidade nos Planos Diretores municipais, mesmo que ensejando disputas políticas duras nos municípios, e mesmo que sendo as vezes vista, pelo campo de esquerda, como otimismo exagerado, ao menos trouxe a discussão da reforma urbana para a agenda política dos municípios. Mas, há de se convir que tudo isto foi, pelo menos até agora, de pouca efetividade. De maneira geral, o quadro urbano brasileiro continua ainda trágico e inalterado: as grandes metrópoles têm em média quase metade de sua população vivendo em condições precárias, seja em favelas, loteamentos irregulares, cortiços ou mesmo na rua. Essa porcentagem não diminuiu, ao contrário, as periferias pobres continuam crescendo mais do que a média. Os centros das cidades, em compensação, estão se esvaziando, e sobram imóveis desocupados, que não cumprem a função social da propriedade urbana, por mais que exista o Estatuto da Cidade. Hoje no Brasil o número de imóveis vazios chega a 6 milhões de moradias (para um déficit de 8 milhões!). Em todo o país, as áreas de proteção ambiental estão tomadas por ocupações precárias de alta densidade habitacional, já que não restam aos pobres outras alternativas face à falta de oferta de moradias, seja pelo Estado ou pelo mercado. A porcentagem de domicílios sem saneamento ainda é significativa até mesmo nas metrópoles, onde o transporte público precário consome horas e horas dos trabalhadores mais pobres. Enchentes e desmoronamentos são comuns, e a irregularidade fundiária na cidade informal parece ser insolúvel. Em inúmeras cidades, continuam os processos autoritários de expulsão da população pobre para a periferia quase sempre em ações capitaneadas pelas prefeituras, em sintonia com o mercado. Nesse cenário, as leis parecem ser de muito pouco efeito. As experiências de gestões “democráticas e participativas” das últimas décadas, utilizando-se dos instrumentos do Estatuto da Cidade poderiam ser vistas como um caminho de planejamento urbano desejado para a reversão da injustiça urbana no Brasil. Porém, elas ainda não levaram a transformações mais consistentes. Em que pese a luta dos movimentos populares e de muitos grupos organizados da sociedade civil, tais avanços parecem não ser suficientes para gerar as profundas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais necessárias para a Reforma Urbana. Uma das razões possíveis dessa dificuldade pode estar no fato de que os grupos de técnicos que participam dessas gestões com intenções absolutamente verdadeiras de promover mudanças estruturais na cidade, se defrontaram, ao assumir as prefeituras a partir dos anos 90, com uma máquina de governo afundada na tradição de procedimentos centralizadores, autoritários e ineficazes de um urbanismo funcionalista e burocrático, que havia se consolidado durante os anos da ditadura militar e que perdurava nas décadas seguintes. Uma máquina aperfeiçoada durante séculos não para ser “pública”, mas sim para desarticular e dificultar qualquer tentativa de transformação da lógica de produção do espaço urbano desigual. O aparato municipal de gestão urbana é quase sempre fragmentado, compartimentado pelas disputas internas de poder, abalado pelos projetos políticos pessoais, pela corrupção e pelo clientelismo, distante da população e de suas reivindicações, e praticamente ineficaz – quando não conivente por alimentarse da desigualdade – para promover alguma transformação social mais significativa nas cidades. Os governos de esquerda ficaram não raramente engessados nas dinâmicas restritivas da administração, afogados pelo ritmo alucinante das demandas emergenciais, cerceados pela suposta restrição financeira para investimentos sociais (que na verdade é decorrente da falta de uma decisão política de se inverter de vez as prioridades de investimentos), obcecados pela chamada “governabilidade”, e preocupados em manter uma imagem eleitoral palatável e pouco radical junto às classes médias e altas. Some-se a isso o fato de que a recondução ao poder, após curtas gestões da esquerda, de políticos identificados com os setores mais atrasados, arcaicos e clientelistas de nossas elites, desmantelava todo e qualquer avanço conseguido pelo governo anterior. Por fim, há de se lembrar que frente a problemas estruturais do capitalismo, e mais especificamente do subdesenvolvimento, é difícil esperar que apenas 130
políticas públicas mais “democráticas” sejam suficientes para resolvê-los, por mais que essa seja a vontade legítima de setores sociais progressistas.
A “solução” e a proliferação do “urbanismo de mercado” Diante disso, não é difícil entender como a solução urbanística dos “grandes projetos” e das parcerias público privadas tenha surgido, nesse complexo e contraditório quadro de transição, como uma espécie de salvação, em um pólo oposto ao da reforma urbana e da crença nos instrumentos urbanísticos democratizantes. As perspectivas de investimentos propiciadas pelas parcerias com o mercado privado, o resultado vistoso e a aura de “modernidade” desses empreendimentos eram a garantia de certa “popularidade” e portanto de sucesso (sobretudo político-eleitoral) para seus autores, na condução da política urbana. Isso com a vantagem identificá-los com uma imagem de gestão eficaz e atualizada, além de favorecer o mercado imobiliário, tradicionalmente um setor propício a engordar os caixas das campanhas eleitorais. Os modelos do “planejamento estratégico” e das “cidades-globais” passaram a ser seguidos por muitas administrações municipais, sobretudo as conser vadoras, habituadas à imiscuição sem constrangimentos do público com o privado. Se a “globalização econômica” pretendia fazer-nos acreditar que a abertura do mercado e a desregulação econômica seriam o único, o melhor e o mais rápido caminho para nossa entrada no Primeiro Mundo, essas teorias urbanas pretendiam convencer-nos que a única saída para as cidades subdesenvolvidas sobreviverem no “novo” contexto globalizado seria o da competição entre elas, em uma disputa pela atração dos cobiçados capitais internacionais (Ferreira, 2007). Assim, sob a justificativa de que era “importante” tornar-se uma “cidade-global”, coalizões� foram formadas entre o Estado, as elites fundiárias e imobiliárias, garantindo a destinação dos fundos públicos – quando não a doação de terras públicas – para vistosas e supérfluas obras nos “distritos de negócios”, para abrigar modernas torres de padrão “globalizado”. No Rio de Janeiro, implementou-se, em 1993, um “planejamento estratégico”, que montou falsos consensos para a legitimação de uma gestão moldada no “marketing de cidades”,e que a tratava como empresa para satisfazer a lógica do “rebatimento, para a cidade, do modelo de abertura e extroversão econômicas propugnado pelo receituário neoliberal para o conjunto da economia nacional” (Vainer, 2000a:80). A financeirização econômica dos anos 90 deu ainda mais impulso a esses grandes empreendimentos pois novas regras mais permissíveis transformaram os fundos de pensão, em especial os nacionais de empresas públicas, em grandes financiadores dessas “modernização”. Geralmente, os empresários imobiliários estabeleceram acirrada competição entre si – apoiados em lobbies junto ao governo – para assegurar-se o privilégio de ter sua “frente” de atuação escolhida como “a” centralidade a ser promovida pelas novas políticas urbanas. Em São Paulo, foi a região da Av. Berrini e da Marginal Pinheiros que ganhou tal batalha: em apenas 3 anos de governo, foram investidos, em um pequeno quadrilátero de cerca de 60 km², um total de 4 bilhões de reais de dinheiro público – ou a metade do orçamento municipal anual à época – em operações destinadas à promover a valorização fundiária da região��, que em decorrência teve um acréscimo de cerca de 2 milhões de m² construídos entre 1991 e 2000��, e tornou-se a área mais cara da cidade (Ferreira, 2007). Tal receita urbana criou uma espécie de “pensamento único” nas cidades��, defendido pelo mercado imobiliário (o maior beneficiado), pelo Estado (que garantia assim uma imagem de modernidade), e pela mídia. Por fim, a academia � Ver a respeito o conceito de “Urban Growth Machine”, proposto por Logan & Molotch nos EUA (1990), e detalhado em Ferreira, 2007. �� O valor não computa o astronômico montante relativo aos precatórios das desapropriações na avenida Faria Lima, e nem mesmo a ponte estaiada inaugurada somente em 2008. �� São Paulo (Cidade) – SEMPLA. O uso do solo segundo o cadastro territorial e predial. São Paulo, Sempla, 2002 �� O lançamento em 2000, por par te de Otília Arantes, Ermínia Maricato e Carlos Vainer, do livro “A cidade do pensamento único” (Vozes, 2000), sem dúvida provocou uma clara inflexão no cenário de relativa apatia acadêmica no qual o “pensamento único” liberal das “cidadesglobais” vinha se firmando.
131
alimentava o modelo, reproduzindo aqui uma teoria em voga nos grandes centros universitários do exterior, mesmo que descolada da nossa realidade. O interessante é que a observação de dados empíricos mostrou que, no caso de São Paulo, a cidade não apresentava nenhum dos atributos econômicos e físico-espaciais apontados pelos teóricos das “cidadesglobais” (Ferreira, 2007). Porém, apoiando-se nessa falsa realidade, as elites urbanas conseguiram canalizar recursos públicos para a construção dessa e de outras “ilhas globalizadas” que na verdade apenas ensejam uma rápida valorização fundiária e imobiliária, gerando lucros extraordinários. Mais do que nunca, e sem cerimônias em se tratando de administrações municipais de direita, os instrumentos do “urbanismo de mercado” se sobrepuseram aos do Estatuto da Cidade, quando não os confundiram. De fato, os setores ligados ao mercado conseguiram inserir no Estatuto um instrumento que, mesmo travestido de “interesse social”, nada mais era do que uma ferramenta de valorização imobiliária: as “Operações Urbanas Consorciadas”, cujo nome já indica a inclinação para parcerias público-privadas, e que se difundiram, por exemplo, em São Paulo. Ao vender o direito de construir acima do permitido para arrecadar recursos para financiar melhorias urbanas na própria área, ele subordina o planejamento urbano aos interesses do mercado, já que as prefeituras passaram a resumir sua política urbana à busca de “nichos” já valorizados em que o mercado pudesse ter interesse em comprar mais permissividade construtiva, em detrimento das periferias esquecidas (Ferreira e Maricato, 2002; Fix, 2000). Em 2009, sempre sob a batuta de uma gestão conservadora e fortemente identificada com o mercado imobiliário, São Paulo parece ter atingido o auge do “urbanismo de mercado”, servindo de modelo para todo o Brasil: adotou em áreas chamadas de “intervenção urbana”, o mecanismo da “Concessão Urbanística”. Por meio deste, em uma interpretação juridicamente um tanto duvidosa, a prefeitura desta vez transferiu para o mercado imobiliário nada menos que a prerrogativa de desapropriar terrenos nas áreas em que este queira investir, e tenha adquirido o “direito” para tal. No Rio de Janeiro, a prefeitura transferiu por licitação ao setor privado, no caso o grupo do empresário Eike Batista, a prerrogativa de urbanizar a Marina da Glória, dando-lhe inclusive poderes de organizar concurso público de arquitetura e urbanismo, para o qual foram convidados os mais festejados arquitetos internacionais. Um deles, aliás, viu o filão oferecido não só no Rio de Janeiro, mas também pela metrópole paulistana. Sir Norman Foster, um dos grandes nomes dos “grandes projetos urbanos” pelo mundo, “ prepara, em parceria com empresários de São Paulo, um plano de revitalização para uma ampla região degradada entre a Mooca e o Ipiranga ”��. Segundo o jornal O Estado de SP, “ para iniciar o empreendimento, o grupo conta com a aprovação do Projeto de Lei da Concessão Urbanística, que vai ser votado nesta semana na Câmara Municipal. A concessão urbanística permite à Prefeitura delegar à iniciativa privada, mediante licitação, obras de reurbanização de grandes áreas de São Paulo ”. Os lucros obtidos por tais operações são inequívocos, como mostra o próprio jornal: “Caso a Prefeitura conceda ao grupo autorização de reurbanizar a região com base no projeto de Foster, a estimativa é de que os empreendedores possam ter um lucro operacional de R$ 3 bilhões. Estão previstos 20 prédios de 200 metros, de uso misto, com espaço para escritórios, residências, bares e hotéis. O terreno onde funcionava a fábrica da Ford daria lugar a um shopping center. Esses empreendimentos permitiriam ao mercado vender 2 milhões de m² em imóveis e arrecadar R$ 9 bilhões” ��.
Claro, como em qualquer boa parceria público-privada digna do “novo” paradigma do planejamento urbano, a cidade “ganharia” muito com isso.
�� “Britânicos se inspiram em Milão para mudar área industrial de SP”, O Estado de S. Paulo, 20 de abril de 2009. �� Idem
132
“Em contrapartida, seriam construídos pelos investidores 360 mil m² de área verde: um parque central e outro ladeando a Avenida do Estado. O custo da desapropriação dos imóveis é de R$ 900 milhões. Empresários gastariam ainda R$ 75 milhões na despoluição do solo da região e mais R$ 200 milhões em infraestrutura e prédios públicos, como escola e equipamento de saúde. A Prefeitura também ganharia com a arrecadação de R$ 500 milhões em venda de títulos de potencial de construção (Cepacs) e R$ 410 milhões anuais em impostos” ��.
Como em todos esses projetos, os “cálculos” são confusos e distorcidos: os custos com desapropriações não são nenhuma “contrapartida” para a cidade, já que fazem parte dos custos do empreendimento. O mercado “gastaria” R$ 275 milhões com a despoluição do solo e equipamentos públicos, além dos custos de implantação do parque. Ou seja, cerca de 10% do lucro final e 3% da arrecadação total de R$ 9 bilhões! Na mesma direção, a Prefeitura e o Estado de São Paulo lançaram a construção de uma nova sede para a Cia Municipal de Dança, no centro da cidade, com projeto nada menos que do autor do famoso Ninho de Pássaros, o estádio de abertura dos Jogos de Pequim. Se já causam espanto os R$ 25 milhões pagos a ele pelo projeto, o que dizer dos fabulosos R$ 600 milhões em que a obra foi orçada? O que acontece, nesses dois casos, com os atuais moradores da Mooca e do Centro, face a impiedosa valorização que fatalmente os expulsará? Quanto não poderia ser feito, no centro, em melhorias urbanas, habitacionais e sociais, com 600 bilhões de Reais? Com a Copa do Mundo de 2014, para a qual a festança de construção de Estádios, cujos valores giram em torno de centenas de milhões e para os quais se fala cada vez mais em comprometimento de fundos públicos, e com os Jogos Olímpicos do Rio em 2016, que como primeira medida anunciou o comprometimento de quase R$ 9 bilhões para a construção de um metrô ligando o privilegiado bairro da Barra da Tijuca à Zona Sul, o “urbanismo de mercado” parece ter chegado ao seu apogeu. A falta de transparência, os indícios de malversação de recursos públicos, e a transformação das cidades em meros palcos para os grandes negócios imobiliários são hoje as práticas urbanas que mais se proliferam no país. E o que é mais curioso, no caso desses mega-eventos esportivos, é que se trata de projetos liderados por um governo “de esquerda”, historicamente comprometido com as demandas populares.
Um urbanismo às avessas? Talvez esteja aí a mais intrigante expressão do que poderíamos chamar de um “urbanismo às avessas”: no âmbito federal, um governo de esquerda assumiu a liderança da implementação do modelo urbano alavancados pelos Jogos e pela Copa. Mas também no âmbito municipal, como em São Paulo, o novo instrumento da Concessão Urbanística, embora tenha sido implementado por uma gestão abertamente comprometida com o mercado imobiliário, havia sido inicialmente idealizado e proposto no bojo do Plano Diretor elaborado para a cidade durante a gestão “democrática e popular” de 20002004, do Partido dos Trabalhadores. Se não é tão estranho que o “urbanismo de mercado” tenha sido amplamente adotado por governos comprometidos com os interesses do mercado imobiliário, é entretanto surpreendente ver como ele passou a ser um elemento central nas plataformas de gestão de muitos governos de esquerda. É bem verdade que a identificação no Brasil de governos “de direita” ou “de esquerda” nunca foi fácil. As características da nossa formação levaram a um embaralhamento desses conceitos, dada a tradição demagógica e populista das elites, a manutenção e manipulação da pobreza para alimentar o sistema econômico e político, o papel perverso da grande mídia, de tal sorte que as relações entre o “público” e o “privado” nunca foram claras, o acesso desigual à propriedade é pouco questionado, a desigualdade no entendimento e na aplicação das leis virou norma aceita, e qualquer política pública
�� Ibidem
133
minimamente voltada aos pobres, mesmo que insuficiente, assistencialista ou manipuladora, será faturada eleitoralmente como uma identificação de um compromisso “de esquerda”. Assim, não fica fácil para a opinião pública discernir o quanto o “urbanismo de mercado”, afinado com o sonho de acesso ao mundo globalizado, ancorado na propalada “eficiência” do setor privado, é apenas um instrumento de lucro para o grande capital e os empreendedores imobiliários, ou o quanto é um instrumento de “progresso” e de“modernidade”, além do mais porque o que se entende por esses termos é também bastante confuso. Conforme apontaram muitos intérpretes da formação nacional, no Brasil o “mito da modernização” confunde o que é apenas crescimento econômico e sofisticação para poucos com o que deveria ser desenvolvimento para toda a sociedade. Ver nas obras urbanas – mesmo que claramente superfaturadas e muitas vezes obviamente inúteis – um sinal de eficiência administrativa e política tornou-se no Brasil uma tradição de avaliação de “boas” ou “más” administrações. Tal cultura ajuda ainda mais a confusão, já que os grandes projetos urbanos “de mercado” promovem obras ainda mais modernas e vistosas. Por isso o entendimento do que seja um governo “progressista” ou “conservador”, a diferenciação de compromissos com os dominantes ou com os dominados, a manutenção ou inversão das prioridades das políticas públicas urbanas não são processos de fácil discernimento. Talvez seja para isso que os primeiros governos petistas, na passagem da década de 1980 para a de 1990, aqueles que iniciaram a tentativa de aplicação de instrumentos urbanísticos mais democráticos, adotaram uma “marca” que não deixasse dúvidas e os destacassem naquele complexo e contraditório quadro: chamavam-se de governos “democráticos e populares”. Porém, face ao difícil desafio de ter que transformar a correlação de forças na produção do espaço urbano apenas com “instrumentos urbanísticos”, não demorou muito para que os “encantos” do “urbanismo de mercado” seduzissem também setores dessas administrações “democráticas e populares”. Os mecanismos de parceria com o setor privado, supostamente “gratuitos” para o Estado, foram então revestidos de uma roupagem de “modernidade”. Mesmo que sua principal característica fosse a de não enfrentar, mas sim exacerbar a exclusão sócio-espacial urbana, o modelo passou a ser veemente defendido, por mais contraditório que pareça, por governos que se alçaram ao poder justamente pelo voto das camadas excluídas e segregadas da cidade formal. Na ideia da hegemonia às avessas, “não são mais os dominados quem consentem na sua própria exploração. São os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, à condição de que a “direção moral” não questione a forma da exploração capitalista”�� Não há dúvidas que os dominantes de Santo André devem ter visto de bom grado – e talvez com certa surpresa – a possibilidade de serem conduzidos por um governo petista que lhes propunha implantar a mais festejada “grande intervenção urbana” do final da década de 90, o chamado Projeto Eixo Tamanduatehy, de forma muito mais ousada do que qualquer administração anterior já houvera pensado em fazer. O projeto visava “revitalizar” uma extensa área industrial “obsoleta” ao longo da Av. do Estado, e tinha todos os ingredientes do “urbanismo de mercado”. Lançado em 1997, não sem uma visita do mais ilustre dos consultores internacionais do “planejamento estratégico”, o catalão Jordi Borja, o projeto se estendeu por uma década promovendo uma grande operação imobiliária para a “reconversão” da área, gerando significativa valorização fundiária e assim a sua re-introdução no circuito imobiliário e financeiro. Era a marca de um “petismo moderno”na gestão urbana, amplamente difundido pela mídia, que se alavancou graças a investimentos públicos de melhoria da infraestrutura urbana, graças à negociação para o uso e até mesmo o repasse de terras ao setor privado, graças a isenções fiscais, a processos de desapropriação muito favoráveis ao capital, a reduzidas “contrapartidas” exigidas (Alvarez, 2009). �� Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, Revista Piauí, n. 4. Rio de Janeiro-São Paulo: Ed. Alvinegra, jan. 2007.
134
Mas essa confusão conceitual alcançaria também os meios especializados, acadêmicos e técnicoadministrativos, favorecendo ainda mais a consolidação do “pensamento único”. Isto porque a construção ideológica do Planejamento Estratégico, que visa “desregular, privatizar, fragmentar e dar ao mercado um espaço absoluto” (Maricato, 2001:59), e estabelece as linhas de gestão para uma “cidade empresa” (Vainer, 2000), necessita antes de tudo criar consensos entre todos os agentes locais, visando sua legitimação. Vainer mostrou como o Planejamento Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro foi uma “ bem orquestrada farsa”, com o objetivo de legitimar “ projetos caros aos grupos dominantes da cidade”. A questão é que, nesse esforço de legitimação conceitual, e para embaralhar um pouco mais as coisas, o “urbanismo de mercado” incorporara alguns dos preceitos mais caros aos setores urbanistas de esquerda. De fato, o Planejamento Estratégico insiste fortemente em questões como a gestão participativa e a importância do “terceiro setor”, e dá ênfase ao papel dos governos locais para criar “pólos geradores” da renovação urbana competitiva. Para isso preconiza a existência de consensos entre os atores locais envolvidos, e a existência de governos “ inteligentes, decididos, honestos, eficazes ”, mesmo que isso sirva no fim para criar, nas palavras de um especialista, “ uma estratégia de desenvolvimento econômico, obviamente centrada na iniciativa empresarial privada, em torno de projetos que façam da cidade um ente competitivo” (Castells, 1999). Ora, a participação popular, a gestão democrática e descentralizada, a importância dos poderes locais honestos e decididos, o papel responsável e cidadão da sociedade civil, são todos procedimentos há muito tempo presentes na pauta dos movimentos urbanos de esquerda, dos quais o Planejamento Estratégico se apropriou. Para piorar ainda mais, as agências de financiamento internacionais, e também a ONU, passariam na década de 90 a preconizar, pelo viés camuflado do liberalismo, os mesmos conceitos “de esquerda”, financiando mundo afora a adoção pelos governos municipais de programas revestidos dessa roupagem “social”. Para o Banco Mundial, as políticas urbanas teriam que “f ormular políticas e medidas que abordem os três problemas centrais do crescimento urbano: a redução dos obstáculos à produtividade urbana, o alívio da pobreza e a ordenação do meio ambiente ” (Banco Mundial, 1991, apud Alvarez, 2009, grifo meu). Como bem explica Isabel Alvarez, “ o verniz da ‘redução da pobreza’ mal esconde o caráter intrínseco de definir políticas urbanas que pudessem ancorar o crescimento econômico e, portanto, o processo de valorização do capital ” (Alvarez, 2009:109) Em 1996, em Istambul, na conferência Habitat II, da ONU, os consultores Borja e Castells apresentaram um documento , mais bem um receituário, produzido sob encomenda da Habitat, sobre os desafios da “gestão local” em tempos de globalização. A metodologia dos organismos internacionais é de selecionar porções do território especialmente representativas das problemáticas existentes, elegendo-as para sofrer intervenções locais “exemplares”, que serão chamadas de “ best practices” e então difundidas pelo mundo em luxuosas publicações, apoiadas por textos teóricos produzidos por seus técnicos. O planejamento público de caráter universal dava oficialmente lugar a práticas de “gestão” pontuais e de eficiência quantitativa absolutamente irrisória, sem nenhum efeito estrutural de transformação. Comentando o encontro de Istambul, Maricato afirma que “Apesar da roupagem democrática e participativa, as propostas dos planos estratégicos, vendidos às municipalidades latino-americanas, combinam-se perfeitamente ao ideário neoliberal que orientou o “ajuste” das políticas econômicas nacionais por meio do Consenso de Washington (que, aliás, também vestiu uma roupagem democrática)” (Maricato, 1997b) Assim, as posições “de esquerda” aparentemente adotadas pelos organismos de financiamento tiveram um efeito importante para o fortalecimento do “urbanismo às avessas”, já que foram esses financiamentos que permitiram, a partir da década de 90, uma grande parte das políticas habitacionais e urbanas municipais no Brasil. Enfrentando a ingovernabilidade estrutural das cidades brasileiras, porém pressionados por forte expectativa de redemocratização urbana, muitos governos de esquerda perceberam nos financiamentos internacionais para a realização de “ best practices” uma bem-vinda solução para seus problemas. 135
Isso gerou, como seria de se esperar, muita ambiguidade. Pois no interior mesmo dessas gestões, posições entusiastas com tais perspectivas de financiamento e de realização de limitados projetos “sociais”, passaram a confrontar-se com aqueles que mantinham, uma vez no poder, coerência com o discurso democratizante que ali os tinha conduzido. Assim, muitas vezes, em uma mesma gestão, enquanto se promovia, por um lado, programas de “renovação” urbana baseados nos modelos de parcerias públicoprivadas, por outro implementavam-se projetos sociais pioneiros de caráter democrático e mais estruturais. Santo André, por exemplo, ao mesmo tempo que implantava seu grande projeto do Eixo Tamanduatehy, tão alinhado com os ditames do planejamento neoliberal, tornava-se, no pólo oposto, uma referência nacional pela ação de sua Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, e suas políticas de regularização de favelas, de implementação de ZEIS, de provisão habitacional e de utilização dos demais instrumentos do Estatuto da Cidade. Essa ambiguidade também marcaria, por exemplo, a gestão petista da Prefeitura de São Paulo, entre 2000 e 2004. Por um lado, ao mesmo tempo em que implementava uma política habitacional bastante variada, que melhorava consideravelmente o sistema de transporte público de massa, construía equipamentos de educação e cultura na periferia, onde promovia também importante programa de regularização fundiária, por outro lado a prefeitura adotou o discurso do “urbanismo de mercado” como principal mote de suas intervenções urbanas na cidade formal. É provável que, quando da eleição dessa gestão, especialistas do setor imobiliário tenham pensado que estivessem contados os dias da fantástica “máquina de crescimento” paulistana, promovida pelas gestões conservadoras anteriores, e responsável pela criação da “centralidade terciária e global” da Av. Berrini. Entretanto, a ideologia da “competitividade urbana” já havia se enraizado o suficiente para confundir até os técnicos e urbanistas “de esquerda” do governo, e a ideia de projetos urbanos alavancados por altos investimentos públicos em consonância com o mercado tornou-se mais forte do que nunca. O primeiro ato do governo foi a aprovação da Operação Urbana Água Espraiada, justamente na região da Av. Berrini, que iria tornar-se uma vitrine urbanística para a gestão. O discurso era de que esses recursos “sairiam da iniciativa privada” e os projetos resultantes, defendidos enfaticamente pelos “novos” urbanistas do governo, teriam um “efeito sinérgico” que beneficiaria a urbanização dos bairros pobres adjacentes. Mas essa não seria a única vitrine urbanística da gestão, que promoveria, no Plano Diretor de 2002, a proliferação de novas operações urbanas como eixo da política urbanística (subordinada à lógica do mercado). Como apontava uma reportagem da Folha de S. Paulo de 1º de julho de 2001: “ sem recursos orçamentários para tocar as obras que podem mudar a cara e a dinâmica da cidade, a Prefeitura de São Paulo aposta nas operações urbanas para conseguir fazer intervenções de maior peso urbanístico. Nas palavras da prefeita Marta Suplicy, ‘elas são a saída para os investimentos na atual situação financeira da cidade’”. O “urbanismo de mercado” entrava na agenda governamental, assumindo oficialmente seu caráter de “salvação”. Em 2002, a prefeitura lançou um concurso público para a “reconversão” do Largo da Batata, área de forte característica popular encravada no coração da Operação Urbana Faria Lima. Um artigo da revista Urbs, da Associação Viva o Centro, um think tank voltado para a “revitalização” do centro conforme os interesses empresariais, expunha o real significado daquele concurso: o da “limpeza social” de um trecho apontado como “deteriorado” cuja presença exagerada de ônibus (e, pressupõe-se, de seus usuários) parecia impedir um urbanismo de “perfil” mais “sofisticado”: “Por abrigar as conexões entre várias linhas de ônibus, não é paradoxal a presença do deteriorado Largo da Batata na ponta de uma avenida com o perfil da Avenida Brigadeiro Faria Lima, que tange o
136
bem cuidado Jardim Europa e abriga um shopping como o Iguatemi, considerado o mais sofisticado da cidade” ��
Sem ser tão direto, um dos “novos urbanistas” da gestão, e então Presidente da Empresa Municipal de Urbanização - Emurb, Maurício Faria, afirmava no mesmo artigo que “o Largo da Batata é hoje um ponto de desestruturação e, portanto, a requalificação da área interessa a todos, e mais, não pode ser entendida como excludente”��. Em um típico pensamento “às avessas”, tratava-se de promover, com o concurso, “um grande eixo terciário moderno em todos os sentidos, da arquitetura contemporânea aos processos de adição de valores, cujo efeito é irradiador ”. Os dominados assumiam de vez a ideia de que mecanismos de mercado, tão caros aos dominantes, poderiam promover a “inclusão” social graças a seu efeito “irradiador”. Sintomaticamente, entre os membros do júri do concurso estava Eduardo Leira, urbanista espanhol e consultor internacional sobre “cidades-globais”. Quem passa hoje pela região se depara com os resultados desse urbanismo arrasa-quarteirão e a “limpeza” que ele proporcionou, abrindo as portas para a valorização da área. A condução de uma política urbana claramente liberal no bojo de um governo de esquerda, quando os dominados capitaneiam uma “ revolução moral ... que se transforma, e se deforma, em capitulação ante a exploração desenfreada ”�� ganhou ainda mais sentido quando em 2004 a prefeitura lançou mais um concurso, em moldes parecidos com o do largo da Batata. Com a pergunta “como deve ser a cidade do século XXI?”, lançava-se o desafio a arquitetos e urbanistas de criar um “Bairro Novo”, desta vez na “degradada” região da Barra Funda, uma região sub-utilizada próxima ao centro, e de grande potencial imobiliário. Existia ali uma gleba vazia, de cerca de um milhão de metros quadrados, parte dela originalmente pública, de propriedade da Telesp, que havia sido transferida para a Telefônica, no bojo da sua privatização (e mantida vazia desde então). Para não deixar dúvidas sobre o interesse imobiliário, a revista Vejinha on-line de Novembro de 2005��, em artigo intitulado “Terrenos Milionário$”, apontava “ seis das mais cobiçadas áreas que restam nas melhores regiões paulistanas”. Lá estava o terreno de 251 mil metros quadrados da Telefônica, cujo preço estimado era de R$ 100 milhões. Dizia o texto, indicando claramente o papel que o concur so iria exercer: “ O espaço deve ter as suas chances de venda ampliadas com a decisão da prefeitura de criar um novo bairro na região ”. Vale lembrar que, na ótica de um governo progressista e comprometido com as mudanças sugeridas pelo Estatuto da Cidade, uma área como essa, vazia há anos à espera de sua valorização, deveria ser combatida por mau uso, e destinada à habitação de interesse social. Uma urbanização de densidade moderada indicaria um potencial para abrigar cerca de 40 mil pessoas, e uma postura governamental corajosa de enfrentamento das dinâmicas tradicionais de ocupação do espaço, condizente com o Estatuto da Cidade, poderia exigir que se destinassem habitações sociais para ao menos 25% dessa população, ou 10 mil pessoas. Porém, o edital do concurso pedia apenas 600 unidades desse tipo, para cerca de 2,5 mil pessoas apenas, ou 6% do total. Pressupunha-se, portanto, a criação de um bairro elitizado, dentro dos padrões da urbanização desigual, sem espaço para os mais pobres. O mais surpreendente é que esse aspecto do edital era tão “importante” para o governo que, na premiação, esqueceu-se dele, já que o terceiro colocado mereceu o prêmio mesmo sem ter proposto habitações de interesse social, embora não tenha deixado de sugerir um “setor tecnopolitano” bem ao gosto do “urbanismo de mercado” globalizado. No júri, vale destacar a presença de Alfred Garay, consultor internacional alinhado com o novo modelo �� Na reunião realizada, no início da gestão, para discutir essa “prioridade” urbanística, da qual este autor participo u, ficou claro o embate entre urbanistas tradicionalmente ligados à Reforma Urbana, veementemente contrários ao projeto, e os “novos gestores” alinhados com as receitas urbanas em voga. �� “O novo Largo da Batata”, in Revista Urbs, n º 27, julho/agosto de 2002 �disponível em: http://vivaocentro.org.br/publicacoes/urbs/urbs27.htm#urbanismonacional, acessado em 10/10/2009) �� Francisco de Oliveira, Op. Cit. �� Ver artigo citado em http://veja.abril.com.br/vejasp/especial_guia_imobiliario/p_146.shtml
137
urbano, e principal responsável por um dos mais paradigmáticos “grandes projetos” liberais da América Latina, o de Puerto Madero, em Buenos Aires. Essa grande intervenção urbana, entretanto, nunca foi realizada, sendo refutada pela gestão seguinte - de alinhamento conservador - por ser uma marca política por demais identificada com o governo anterior! O avesso do avesso: um governo de direita descartando uma política claramente favorável ao mercado por ser a marca de um governo...de esquerda! Mas o “insucesso” do plano urbanístico não significou um fracasso dos objetivos empresariais em jogo. Em decorrência do concurso, verificou-se uma forte valorização fundiária e imobiliária, tornando um bairro antes pouco visado em uma nova área de efervescência do mercado. Muito embora parte dos envolvidos no projeto, no governo, provavelmente não imaginassem esse desfecho, ingenuamente crentes no caráter “democrático” do concurso, o fato é que ele representou uma grande mobilização do poder público – em um governo de esquerda – para promover uma “renovação urbana” que, embora não tenha saído do papel, entregou de bandeja ao mercado um cardápio de projetos urbanísticos e realizou para ele uma significativa ação de marketing. Assim, em 2007, a área foi adquirida por uma importante construtora, por 125 milhões de Reais, mostrando uma valorização de 25% em apenas 2 anos��. A proposta era criar ali “ um grande conjunto residencial seguindo o modelo do que o mercado convencionou chamar de condomínio-clube ”��. O projeto previa a construção de cerca de 30 torres, e um Valor Global de Venda (VGV) potencial de dois bilhões de Reais. Um importante concurso público e um ambicioso “grande projeto urbano”, promovidos por uma prefeitura “democrática e popular”, resultaram assim em uma fantástica valorização fundiária e na previsão de transformação do sonhado “bairro novo” em uma das tipologias mais elitistas e segregadoras de assentamentos urbanos, a do condomínio fechado. Como devia ser a cidade do século XXI?, perguntava o edital do concurso. A marca da ambiguidade desse “urbanismo às avessas” se acentua pelo fato de que, como já dito, a prefeitura se empenhou, ao mesmo tempo, na elaboração de projetos sociais mais transformadores. E para aumentar ainda mais a confusão, as gestões seguintes, conservadoras e de direita, exacerbaram a tal ponto o urbanismo “de mercado” e o favorecimento ao setor privado, como no exemplo já comentado das “concessões urbanísticas”, que os “grandes projetos” da gestão petista acima descritos parecem agora quase insignificantes. Porém, o que se viu em São Paulo e Santo André serviu de referência, e não são poucas as prefeituras de esquerda que, desde então, reproduzem o “urbanismo de mercado” com a mesma intensidade e a mesma certeza de que esse é caminho para a modernidade e que ele tem sim um suposto caráter “democrático”. Esse modelo se consolida também pois difunde a ideia de que esses grandes empreendimentos dão “lucro” para a cidade, beneficiando-a. Jogos Olímpicos ou estádios da copa são bem vistos pois “alavancam investimentos”, sem que se questione em algum momento se essa conta, na ponta do lápis, faz realmente sentido, e se esse dinheiro considerável não seria melhor aplicado, em vez de estádios e afins, em transporte público, saneamento, habitação social, urbanização de favelas, escolas, e assim por diante. É o “mito da modernização” fazendo efeito no campo do urbanismo. Assim, duas décadas depois da Constituição de 1988, o Brasil vive, na condução das suas políticas urbanas e habitacionais, um curioso momento: por um lado, os avanços da Constituição e do Estatuto da Cidade parecem ter trazido a esperança de uma mudança possível rumo à construção de cidades democráticas. Por isso, amplos setores especializados, da academia e das administrações, alinhados com a defesa da reforma urbana, depositam nos “instrumentos urbanísticos” uma crença de transformação que as vezes até os supervaloriza. Por outro lado, o “urbanismo de mercado” e sua roupagem “democrática” traz uma falsa impressão de que podemos ter cidades “modernas” comparáveis às do Primeiro Mundo. O que é um tanto irônico, já que lá no Primeiro Mundo, a reestruturação produtiva e a decadência do Estado �� Ver artigo citado em http://veja.abril.com.br/vejasp/especial_guia_imobiliario/p _146.shtml �� Ver artigo citado em http://veja.abril.com.br/vejasp/especial_guia_imobiliario/p_146.shtml
138
Providência depois de décadas de políticas neoliberais fazem com que sejam mais aquelas cidades que estejam tornando-se parecidas com as nossas do que o contrário. Porém, as aparências de que alcançamos aqui um “novo” patamar de urbanização, fazem com que se escamoteie uma realidade preocupante: por trás desse urbanismo “modernizante”, continuam a reproduzir-se, ainda mais fortemente nos governos de direita, práticas urbanas arcaicas, clientelistas, corruptas, de expulsão dos pobres e segregação espacial, de favorecimento a grupos econômicos, em mais uma faceta da nossa “modernização conservadora”. O mais intrigante é que o planejamento urbano socialmente transformador no Brasil parece ser tão simples quanto é politicamente difícil sua realização. Tratar-se-ia “tão somente” de inverter as prioridades de investimentos públicos e realizar, em essência, cinco níveis de ações urbanísticas: a produção em massa de moradia para os pobres, a implantação de saneamento básico generalizado, a estruturação de sistemas de transporte público de massa em detrimento dos investimentos viários para os carros, e a provisão de equipamentos públicos em todas as periferias. O caminho para isso deve passar por um novo patamar de implicação da população usuária da cidade, sobretudo da “cidade informal”. O que, politicamente, também não é fácil. Enquanto parece consolidar-se a democracia, tem-se a impressão de que a participação dos usuários nas decisões de políticas urbanas é cada vez menos lembrado. A “participação” da sociedade, um processo aliás exigido pelo Estatuto da Cidade, vem se resumindo à exibição para a população de planos já prontos, lindamente apresentados, tecnicamente complexos, em “audiências públicas” em que muito se deixa falar, mas pouco se escuta (Villaça, 2005). Ora, transformações urbanas que afetam cada um dos usuários da cidade, e mais fortemente aqueles que dela são excluídos, deveriam ser discutidas por meses ou até anos em Planos Locais promovidos por gestões descentralizadas, tendo como fio condutor a preservação dos direitos adquiridos, o respeito ao direito de moradia, a inclusão dos pobres na cidade “que funciona”, a urbanização dos bairros precários, a inversão das prioridades dos investimentos públicos, e assim por diante. Esta é um enorme desafio, porém nada impossível. É evidente que não se pode menosprezar e muito menos jogar fora, com a crítica aqui apresentada, todos os avanços decorrentes dos esforços intensos de um enorme número de pessoas que se dedicam à transformação democrática das nossas cidades. Avanços estes que certamente demandarão muitos anos, ainda mais face ao peso das transformações políticas necessárias, mas que mostram ser o caminho mais consistente para a realização da chamada Reforma Urbana. Entretanto, não há como negar que o “urbanismo às avessas” pode confundir e assim atrasar ainda mais esse processo.
139
SOBRE A PROBLEMÁTICA HABITACIONAL.
140
Que cidade queremos para as gerações futuras? O trágico quadro urbano no Brasil do século XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentáveis. Capítulo 1 do livro “Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil Urbano”, LabHab/FUPAM, 2012.
Quem passeia por qualquer grande metrópole brasileira dificilmente deixar de notar que há ali algo de errado: bairros ultrassofisticados, que não deixam nada a desejar em relação às grandes cidades desenvolvidas, cotejam favelas que amontoam gente em condições indignas de vida. Caminhando para as periferias, casas e barracos se estendem em um horizonte sem fim. Seus moradores, remetidos a um exílio forçado em sua própria cidade, perdem horas do dia em ônibus apertados. Os que têm carro, por sua vez, ficam também imobilizados, tal o colapso do trânsito. Contrastando com o abandono das áreas centrais, nos bairros de classe média emergem novos prédios a cada dia, com nomes bonitos, geralmente em inglês ou francês, a oferecer o conforto relativo de apartamentos cada vez mais apertados, porém sempre mais caros. Quem passeia nas nossas cidades sente a pesada poluição do ar, e estará sempre apreensivo pela possibilidade de vê-la sucumbir, em questão de minutos, a uma tromba d’água. Definitivamente, há algo de inquietante no cenário urbano brasileiro. Por que chegamos a isso? Qual a possibilidade de termos, no Brasil, cidades menos problemáticas? O planejamento urbano, essa ciência que se propõe a organizar as cidades, teria sido no Brasil inexistente ou terrivelmente inócuo? Tais questões não são de simples resposta. As cidades são a expressão espacial das relações econômicas, políticas e culturais de uma sociedade e sua história. Por isso, são naturalmente espaço de conflitos e tensões. É verdade que a civilização humana persegue a configuração harmoniosa de seus assentamentos provavelmente desde que nos tornamos seres sedentários, e supostamente caberia aos arquitetos e urbanistas a difícil tarefa. Querer desenhar as cidades seguindo um projeto de sociedade idealizado, conforme as vontades dos arquitetos e as crenças urbanísticas de cada momento, não significa, porém, que se esteja construindo a cidade ideal: a história do pensamento urbanístico é marcada pela polêmica entre a crença de que o desenho racional seja capaz de produzir os melhores espaços para se viver e, por outro lado, a de que as cidades devem crescer “naturalmente”, conforme as dinâmicas sociais próprias, e sem a intervenção tão decisiva dos urbanistas. Decorre desse dilema a sensação de que, talvez, não seja simplesmente possível desenhar a cidade “ideal”. Sua configuração, seu desenho, sua eficácia como abrigo e local de produção e reprodução social, sua capacidade de promover qualidade de vida dependerão de cada contexto, das correlações de forças presentes, do momento histórico, das dinâmicas sociais e econômicas. E, sendo as cidades espaços de conflitos e arranjos entre os diversos atores sociais, o que é “ideal” para uns não o será, certamente, para outros. A civilização humana mostrou-se dramaticamente eficaz em gerar sociedades desiguais, e por isso sempre produziu espaços também desiguais. Da cidade antiga às metrópoles industriais, passando pelos burgos medievais ou paradisíacas cidades litorâneas, fosse por motivos religiosos, econômicos ou militares, os poderosos do momento sempre se beneficiaram, ao longo da história, dos melhores lugares para viver. E o desenho dos urbanistas pôde servir, paradoxalmente, tanto para garantir-lhes esses privilégios, em algumas épocas, como para tentar combatê-los ou remediá-los, em outras. Por isso, a primeira constatação que se pode fazer é a de que, face à trágica desigualdade que marca as cidades brasileiras, o principal objetivo do urbanismo deve ser, antes de tudo, o de garantir cidades mais justas. Em outras palavras, cidades que ofereçam, sem diferenciação, qualidade de vida para todos os habitantes, nos dias de hoje e para as gerações futuras. O equilíbrio urbano, entretanto, só será possível quando se conseguir erradicar a miséria, que se expressa nos assentamentos informais desprovidos do atendimento às necessidades mínimas para se viver com dignidade. 141
Quais os problemas urbanos a enfrentar? Quem olha para as periferias pobres brasileiras certamente constatará que seu padrão de urbanização é bastante problemático. O abandono pelo Estado e a consequente falta de políticas públicas e de alternativas habitacionais levam a população a construir informalmente sua própria casa, muitas vezes em encostas inseguras, em áreas de mananciais ou em beiras de córregos de grande fragilidade ambiental. As marcas dessa urbanização são a alta vulnerabilidade às calamidades naturais, a falta de perspectivas de trabalho próximo à residência, a ausência de transportes e de conexão com as áreas mais centrais, a falta de equipamentos de educação e saúde, e a violência, que aumenta na mesma proporção em que o Estado se faz ausente. Isso não significa, evidentemente, que se deve simplesmente passar por cima de genuínas formas de urbanidade e de morar que surgem na favela, e que às vezes se perdem nos bairros privilegiados. Mas as eventuais qualidades desaparecem face à gravidade das deficiências, dentre as quais a falta de infraestrutura mínima básica é certamente a mais gritante. Porém, a discussão sobre os problemas urbanos não se resume a observar apenas a trágica situação dos assentamentos precários como se, em contrapartida, as regiões mais ricas das cidades fossem naturalmente bem resolvidas. Nada mais falso: os bairros abastados nem sempre apresentam situação urbanística melhor, mesmo com todos os investimentos, serviços e equipamentos que recebem. Ao contrário, muitas vezes as soluções urbanas e arquitetônicas que adotam resultam em áreas de péssima qualidade, pela forma com que se isolam do restante da cidade e pelos prejuízos ambientais que causam. Além do mais, esse raciocínio esconde uma visão dicotômica da cidade, como se cada lado – o rico e o pobre – existisse por si só, independentemente do outro, quando na verdade ambos interagem e se autoalimentam, numa dinâmica de codependência, para o bem ou para o mal. Por isso, mesmo nas áreas mais privilegiadas, aquilo que vem sendo apresentado como modelo de sucesso urbano infelizmente está longe de sê-lo. Do ponto de vista das infraestruturas de transpor te, por exemplo, nossas cidades são marcadas por um padrão de urbanização que historicamente privilegiou o automóvel, seja por interesses econômicos, seja pelo fato de que o carro é, para quem pode comprá-lo, o meio de transporte aparentemente mais cômodo, e por isso mais demandado. O favorecimento ao automóvel se explicita nos bairros mais ricos, onde se multiplicam avenidas, pontes e viadutos. Os investimentos nessas obras viárias são marcadamente superiores aos investimentos em transporte público, e não é raro que nos túneis e viadutos os ônibus sejam simplesmente proibidos. Uma contradição alarmante quando vemos que, na Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, as viagens feitas pelo modo individual (carro ou táxi), embora tão privilegiadas nos investimentos, representam apenas 31% do total de viagens diárias, sendo que 36% são feitas por transportes coletivos, e impressionantes 33% são feitas a pé!� A ideia de que o automóvel é a melhor solução para o transporte, além de injusta, é falsa verdade, pois, em longo prazo, a opção pelo transporte individual promove o colapso viário e a saturação do sistema, além da altíssima poluição. Basta lembrar que, como o automóvel é, na maioria das vezes, usado por uma única pessoa, um único ônibus equivale ao espaço ocupado, nas ruas, no mínimo por cerca de 50 carros. Cidades com bons sistemas de transporte público rápido de massa oferecem, sem dúvida, qualidade de vida significativamente maior a seus moradores. Destaca-se que a poluição do ar mata por ano cerca de 11 mil pessoas de mais de 40 anos nas seis maiores cidades do país (Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo). Com isso, estima-se que 1 bilhão de dólares sejam despendidos anualmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em tratamentos de doenças associadas direta ou indiretamente à poluição. O aumento de 10 microgramas de agentes poluentes por metro cúbico de ar gera uma ampliação de 2% na taxa de mortalidade dos habitantes da zona oeste de São Paulo, enquanto na zona leste, mais pobre,
� Pesquisa OD Metrô-SP, 2007.
142
esse aumento é ainda mais trágico, atinge 12%. O menor nível socioeconômico é, portanto, um fator agravante do efeito nocivo da poluição.� Se nos bairros ricos e mais centrais não faltam avenidas, túneis e viadutos, as periferias contam geralmente com sistema viário precário, servido por transporte insuficiente, nas grandes metrópoles e nas cidades médias. A combinação do espraiamento urbano informal com a fa lta de transporte eficiente condena os moradores mais pobres a verdadeiro exílio na periferia, enquanto o aumento contínuo das frotas de automóveis leva as cidades a verdadeiro colapso viário. A opção pelo automóvel casa-se com a engenharia urbana que preferiu tamponar ou canalizar os rios e córregos das cidades para, em seu lugar, e dos parques e margens aprazíveis que poderiam oferecer, construir vias expressas de fundo de vale. A interferência nos regimes de água naturais, causada pela impermeabilização do solo, decorrente não só das obras viárias, mas também da livre construção de subsolos em edifícios comerciais e residenciais, é tão radical que, a cada ano, nos meses de chuva, vemos as cidades, dos bairros nobres às periferias, tomadas por enchentes e alagamentos descontrolados. Mas a falta de espaços verdes, parques e áreas de lazer, na prática, pouco afeta os moradores dos bairros mais ricos, pois impera o modelo de construção no qual os condomínios privados oferecem, em seu interior e de forma exclusiva, piscinas, árvores e áreas de lazer. A lógica de construir condomínios com muros e cercas que se isolam, ao invés de se abrir para a cidade, produz malha urbana segmentada, pouco fluida, e que vai aos poucos aniquilando a possibilidade de espaços públicos de qualidade. Praças, jardins e árvores por que, se é possível ter tudo isso de maneira exclusiva, no condomínio? Some-se a verticalização excessiva e não regulamentada nem planejada, por força de legislação por demais condescendente, que permite que se levantem prédios sem saber os impactos sobre a rua, ou se há capacidade de infraestrutura para eles, como suporte viário suficiente para os carros dos moradores, sistemas de esgotamento e drenagem das águas etc. O ímpeto do mercado imobiliário em construir novos bairros de edifícios residenciais muitas vezes expulsa outros usos, como o comércio local de pequeno porte, e destrói configurações antigas mais ricas, mais harmoniosas, mais vivas. O exemplo dos grandes condomínios fechados, que se tornaram moda nas últimas décadas, é mais um indicativo da forma preocupante como se resolve, no Brasil, a moradia da população mais rica, criando modelo depois reproduzido nos empreendimentos econômicos. Fogese das cidades insustentáveis que nós mesmos produzimos, desiste-se da vida de bairro na sua acepção mais tradicional, para se construir outros bairros exclusivos, isolados, segmentados, e sem nenhum dos aspectos que garantiriam riqueza e qualidade da vida urbana: diversidade de usos, comércios, níveis de renda, volumetrias, a alternância de quarteirões construídos com praças ou equipamentos acessíveis a todos, ruas públicas bem servidas pelo transporte de massa. Aspectos que trazem grande qualidade, mas que infelizmente estão sumindo das nossas cidades. Exemplo disso são justamente os bairros nobres, exclusivamente residenciais, por onde não se anda à noite sem certa preocupação: sequência de muros, cercas e guaritas, e ausência de comércios, pessoas e, portanto, de vida urbana, intimidam e afugentam o transeunte. O movimento mostra-se ainda mais incoerente quando vemos que ao mesmo tempo em que florescem os condomínios fechados distantes, e que se espalham os bairros pobres informais na periferia, o centro das cidades, ao contrário, se esvaziam. Prédios e mais prédios nas áreas centrais de todas as nossas grandes cidades são mantidos vazios, à espera de alguma valorização. Chega-se ao cúmulo de
� Todos os dados de acordo com o Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Universidade de São Paulo (SALDIVA, P. H. N. et al, 2009).
143
hoje o Brasil ter cerca de 6 milhões de domicílios residenciais vagos�, número comparável ao déficit habitacional do país, que gira em torno de 5,8 milhões de moradias.� . O resultado desse modelo de crescimento se escancara nos telejornais a cada grande chuva de verão, nas secas de inverno, na saída de feriado: nossas grandes cidades são poluídas, imobilizadas pelos congestionamentos, vulneráveis às enchentes, propícias à violência urbana pelo demasiado número de ruas ermas e isoladas por muros intermináveis de condomínios, espaços abandonados, praças esquecidas. Seus moradores têm medo de sair, têm medo da cidade. A metrópole brasileira, para ricos ou para pobres, é uma violência.
Quais os problemas urbanos a enfrentar? Ocorre que, para o bem ou para o mal, as cidades são hoje o local de vida da maioria dos brasileiros. A taxa de urbanização do país passou de 30%, em 1940, a mais de 80%, muito próxima à dos países desenvolvidos, de formação urbana muito mais antiga. Segundo o IBGE, neste início de século, as 12 regiões metropolitanas e demais cidades com mais de 350 mil habitantes abrigam cerca de 50% da população urbana e respondem por 65% do PIB nacional. Assistimos à explosão das cidades médias, que têm entre 100 mil e 2 milhões de habitantes, e cuja população pulou, em dez anos, de 36% para 40% do total de habitantes do país. Mas o fenômeno, infelizmente, ocorre segundo os dramáticos padrões de urbanização acima descritos. Ou seja, o crescimento urbano, mesmo motivado por ciclo econômico virtuoso, gera paradoxalmente a queda da qualidade de vida, quando ocorre dentro de lógica urbanisticamente nociva. Assim, tanto nas grandes metrópoles como nas cidades médias, a explosão econômica e urbana não as mudou para melhor, mas, ao contrário, parece ter piorado os efeitos negativos. Isso porque a valorização da terra nas áreas com infraestrutura, decorrente do crescimento econômico e das atividades da construção, com a retenção de lotes e a consequente dificuldade de acesso, alimenta o círculo vicioso que dificulta a moradia para os mais pobres: sobram para eles a solução dos cortiços, favelas ou loteamentos informais cada vez mais distantes, até que só lhes reste como opção a ocupação de áreas protegidas ambientalmente. Áreas onde, em suma, nem o mercado e nem o Estado podem construir, dando a essa população certa “tranquilidade”, com menos pressão para sua expulsão. Em 2006, o mercado imobiliário sofreu importantes mudanças, ampliando o papel de protagonismo nas transformações urbanas no país. Medidas institucionais de diversas naturezas contribuíram para promover segurança jurídica e financeira ao setor. A significativa ampliação do crédito e o fim de gargalos administrativos e institucionais trouxeram maior disponibilidade financeira ao mercado da construção. As grandes construtoras, a partir daquele ano, abriram capital na Bolsa de Valores, atraindo ainda mais investimentos, inclusive internacionais. A construção civil explodiu, como ocorrera na década de 1970, no auge do “milagre econômico”. A ação do mercado imobiliário privado no Brasil, entretanto, sempre se voltou preponderantemente para as camadas de mais alta renda. As políticas públicas de moradia, por sua vez, não eram desenhadas para atender efetivamente aos mais pobres, e assim as classes média e média baixa, sem oferta de moradias pelo mercado, drenaram para si os financiamentos públicos destinados à moradia social. Ao longo da segunda metade do séc. XX, a política habitacional brasileira, mesmo quando foi pouco mais significativa, nunca atendeu efetivamente à população com renda abaixo de cinco salários mínimos. Por isso, aliás, que essas faixas de renda concentram hoje cerca de 90% do déficit habitacional brasileiro�. As � IBGE, 2010. � Fundação João Pinheiro, 2008. � Fundação João Pinheiro, 2008.
144
classes médias, entretanto, acessaram os financiamentos públicos do FGTS e provocaram o impulso de verticalização ocorrido nas grandes metrópoles nas décadas de 1970 e 1980. As mudanças ocorridas a partir de 2006 alteraram o quadro. Em decorrência do aumento significativo do crédito, o mercado imobiliário, pela primeira vez, começou a deslocar de forma mais consistente a sua oferta para as chamadas classes médias, com renda mensal entre 6 e 15 salários mínimos (classe C, segundo a classificação do IBGE), até mesmo porque a disponibilidade de dinheiro para investir extrapolava o limitado universo dos empreendimentos de alto padrão. Surgiu novo perfil de mercado, denominado pelas construtoras de “segmento econômico”. Praticamente todas as grandes empresas do setor constituíram filiais específicas para atendê-lo. Em razão dos temores quanto aos efeitos no Brasil da crise econômica global de 2008, o governo federal lançou ambicioso programa para aquecer ainda mais o setor da construção civil, potencialmente capaz de dinamizar a economia nacional face à ameaça da crise. O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), plano habitacional anunciado com o objetivo de promover a construção de 1 milhão de casas, veio corroborar o novo cenário do mercado imobiliário brasileiro. O programa contempla, por um lado, o atendimento às camadas de renda abaixo de três salários mínimos, com volume inédito de subsídios públicos para essa faixa e, por outro lado, a construção, pelo mercado, de moradias para as faixas de renda acima de três salários mínimos, com mecanismos de facilitação da viabilidade financeira, que envolvem também alguns subsídios públicos. Ainda que não seja a única forma de produção habitacional para as classes de renda intermediária, o programa acabou englobando, na conjuntura atual, a quase totalidade da produção do chamado “segmento econômico”. Porém, se nas faixas de renda abaixo de três salários mínimos, a produção é bastante regulamentada, e envolve diversos agentes operadores públicos, como prefeituras, companhias de habitação e o próprio órgão financiador, a Caixa Econômica Federal, no âmbito do segmento econômico, entretanto, a construção das novas moradias ocorre com muito mais liberalidade. Se nas faixas de renda baixa as exigências de qualidade mínima já não são muito drásticas, observa-se que os padrões de qualidade estabelecidos para o segmento econômico são excessivamente brandos. Assim, observa-se que o que está sendo construído pelo país afora, e que molda a nova face das cidades brasileiras, é produção de qualidade muito duvidosa. Cenário bastante preocupante, que este livro apresenta e analisa.
De quem é a responsabilidade? Face à descrição tão dramática do cenário urbano brasileiro, cabe certamente a pergunta: de quem é a responsabilidade? A resposta não é simples e, sobretudo, não deve ser individualizada. Ela é resultado de dinâmica histórica e social, coletiva, que envolve grande número de agentes, e tem provavelmente como um de seus pontos cruciais a questão da terra. De fato, na balança do poder político e econômico, e isso desde o Brasil Colônia, o acesso à terra – rural e urbana – sempre foi controlado pelos segmentos dominantes e dificultado aos grupos sociais mais vulneráveis. Na era do Brasil urbanizado, a questão ainda é central. A retenção de terras vazias e ociosas em áreas com infraestrutura, como parte das dinâmicas de investimentos do setor imobiliário, contrasta com os enormes contingentes populacionais sem alternativas de moradia, empurrados para as periferias. Dentre os diversos atores que compõem a nossa dinâmica social, os segmentos mais pobres de nossa população talvez sejam os únicos cuja responsabilidade deve ser amenizada pelo fato de que sofrem de correlação de forças bastante injusta, embora seja a eles imputada, tantas vezes, a culpa por ocuparem áreas indevidas. Porém, em relação ao que se refere ao respeito do direito à moradia, garantido no artigo 6º da Constituição, a maior responsabilidade está na falta de alternativas de habitação oferecidas pelo mercado e Estado, que, como já se afirmou, empurram esse grupo social para os assentamentos 145
precários das periferias, justamente as áreas menos valorizadas. Excetuado esse segmento, os demais agentes sociais certamente dividem, voluntariamente ou não, em maior ou menor grau, parcela mais importante da responsabilidade. Em primeiro lugar, cabe analisar o papel do Estado. Diversos intérpretes da sociologia brasileira mostraram que no nosso país o conceito de “público” não é exatamente fiel ao significado original, “que é do povo”. O Estado “público” brasileiro construiu-se historicamente tratando o bem de todos como o bem de alguns, mais poderosos. A equação afetou dramaticamente o modelo da nossa urbanização. Ao longo de séculos, as áreas das cidades, as mais abonadas, foram claramente privilegiadas nos investimentos “públicos” urbanos, o que se deve à incorreta e injusta priorização dos gastos do Estado. Caberia a ele legislar, regular e controlar a ocupação do território de toda a cidade, das edificações formais e informais, prevenindo, fiscalizando, oferecendo alternativas de moradia ou até mesmo punindo quando necessário, mas sempre visando à organização de cidades para todos os habitantes. Mas, no âmbito urbanístico, não é o que ocorre. Não se pode dizer que não haja, no Brasil, planejamento urbano. Muito pelo contrário, temos leis e planos em abundância. Mas é fácil constatar que o planejamento foi feito privilegiando alguns grupos sociais. É o que acontece quando se constata que as políticas de transporte urbano privilegiam o automóvel individual e não o transporte público, na contramão de todas as grandes cidades desenvolvidas. O carro é opção de conforto da classe média e locomotiva econômica da indústria, mas a opção preferencial por esse meio levou, em longo prazo, ao atual colapso viário das nossas metrópoles. A ocupação do território segue a mesma lógica: quando áreas indevidas são ocupadas por anos a fio, isso ocorre geralmente sob o olhar condescendente do Estado, que não fiscaliza. Tal fenômeno acontece, sobretudo, nos bairros pobres de periferia, onde o descaso do Estado se reverte na solução da autoconstrução em áreas muitas vezes inadequadas. Mas a ocupação indevida também afeta as áreas mais ricas, nas quais existem leis e regulação urbanística em muito maior número. Áreas litorâneas preservadas são ocupadas por grandes empreendimentos hoteleiros, encostas íngremes frente ao mar recebem mansões, bairros inteiros de sobrados habitacionais são verticalizados da noite para o dia pela ação do mercado imobiliário, e assim por diante. Nesses casos, o favor, clientelismo e muitas vezes a corrupção, que ainda marcam negativamente a realidade dos nossos municípios, resultam em permissividade com dramáticos resultados urbanísticos. No que diz respeito à infraestrutura urbana, como transporte público, pavimentação das ruas, saneamento, energia elétrica, se determinados empreendimentos são construídos sem que ela exista, essa é, sem dúvida, questão que deveria competir ao Estado. De fato, não se pode culpar os empreendedores por construírem em locais sem infraestrutura urbana mínima, mas sim o poder público municipal, que autoriza a obra em locais inadequados. Porém, tais responsabilidades devem ser compartilhadas. Pois o mercado imobiliário e o da construção civil, por sua vez, fazem a “sua parte”, ao colocar quase sempre o retorno financeiro à frente de princípios básicos de boa urbanidade. Frequentemente, forçam a expansão urbana para áreas sem infraestrutura, onde a terra é mais barata para eles, porém onerosa para o Estado, que será obrigado a f azer importantes investimentos públicos. Além do mais, no caso do segmento econômico, que tratamos neste livro, há significativos fundos públicos financiando sua produção, por meio de subsídios e facilidades de crédito. Assim, repassa-se ao setor privado grande parte da responsabilidade pelo zelo do interesse público. Além disso, cabe destacar que a Constituição Federal de 1988 instituiu o princípio da função social, que indica a prevalência do interesse público sobre o particular no uso da propriedade urbana. Isso significa que a produção do espaço urbano está sujeita, em última instância, à manutenção do interesse comum, dos espaços de toda a cidade.
146
Porém, os efeitos da falta de consciência da necessidade de urbanização mais cuidadosa, para o bem das gerações futuras, são diversos e bastante impactantes. Verticalização exacerbada, movimentação e impermeabilização descontrolada do solo, entre outros exemplos, ocorrem a partir da complacência do Estado na regulação e fiscalização, é verdade, mas também porque não existe consciência por parte dos empreendedores sobre o que é “fazer a cidade com responsabilidade”. A própria legislação urbana brasileira, no que tange à ocupação do solo e ao código de obras, contribui em grande medida para a consolidação de um padrão de ocupação em lotes, com a edificação neles centrada por força da exigência de diversos recuos, que exclui possibilidades de soluções melhores do ponto de vista urbanístico, como edifícios geminados, sem recuo para a rua, mas com jardins comuns nos fundos, praças internas etc.
E a arquitetura? Nesse cenário, não há como negar que a arquitetura, ou talvez a falta dela, tem generosa parte da responsabilidade. A verdade é que, no processo de intensa urbanização, a boa arquitetura há algum tempo vem se tornando menos presente. Cada vez mais restrita a obras pontuais e individuais de uns ou outros escritórios, não aparece na fenomenal produção do chamado segmento econômico, que abordamos neste livro. Os aspectos negativos da nossa urbanização, anteriormente elencados, são evidentemente exemplos de má arquitetura. Houve um tempo em que a profissão tinha papel bem mais atuante na construção civil. Em meados do século passado, no bojo do sucesso da escola modernista brasileira, grandes nomes da arquitetura se notabilizaram pelos projetos, atuando em frentes diversas: construção de cidades inteiras, como no caso emblemático de Brasília, mas também, por todo o país, nas construtoras, em prédios residenciais para setores de mais alta renda, como se vê em bairros de São Paulo ou do Rio de Janeiro; no poder público, construindo edifícios notáveis para museus, escolas, hospitais; e até mesmo nas camadas de mais baixa renda, com profícua produção de habitações sociais, financiadas à época do Instituto de Aposentadorias e Pensões, ainda na década de 1940. Não seria correto afirmar que essa produção não tenha, de alguma maneira, contribuído para a consolidação da desigualdade social urbana brasileira, e Brasília talvez é o melhor exemplo, dividida entre o plano piloto e as cidades-satélites. Mas é inconteste, ainda assim, que nela estava presente marcante qualidade urbana e arquitetônica, trazida por profissionais que, de alguma maneira, tentavam inserir em seu projeto parte das reflexões e utopias acerca do desenho de uma desejada “cidade ideal”. Os modelos das cidades-jardins, das quadras aber tas e verdes, a ideia de térreos públicos para favorecer a fluidez urbana, a oferta de equipamentos nos conjuntos habitacionais e, na escala do edifício, pilotis, brise-soleils e áreas generosas dos apartamentos constituíam arsenal de soluções técnico-construtivas para dar conforto às construções, qualidade na sua implantação, integração à cidade, entre muitos outros atributos. O que mais impressiona, nesse momento de grande crescimento urbano, liderado pela intensa produção do segmento econômico, é que tais valores urbanísticos e construtivos, intrínsecos à boa arquitetura, parecem ter sido abandonados, embora a promoção do que se denomina “moradia digna” – para a qual a arquitetura tem papel central – é orientação programática da política urbana federal desde 2003. A boa arquitetura tem caráter emancipatório e papel fundamental na promoção da qualidade de vida e desenvolvimento humano. Casas que não permitem o convívio familiar, que não oferecem espaços para a reunião da família, brincadeiras e estudos das crianças, não criam condições de desenvolvimento pessoal, familiar e coletivo. Porém, mesmo com arquitetos atuando nas construtoras, veremos neste livro que as restrições impostas pela busca de produção em grande escala e de lucratividade impõem lógica que despreza os elementos 147
da boa arquitetura. Esse fenômeno se torna mais visível à medida que se trata de produção voltada para renda intermediária, sendo menos evidente nas faixas de alto padrão. Isso porque a disponibilidade de recursos permite, no segmento de alto padrão, soluções arquitetônicas marcadas pelo luxo, uso de materiais suntuosos, dimensões exacerbadas dos apartamentos, equipamentos de lazer sofisticados. Por isso, aparentam ser muito bem resolvidas, mesmo que sejam bastante questionáveis, sobretudo no que diz respeito ao modelo de cidade que simbolizam. Mesmo que agradem o consumo de luxo, tem uma arquitetura que favorece o status das aparências, os excessos e a individualidade, a segregação da cidade e a excessiva valorização do automóvel. É no exagerado número de suítes (às vezes seis por apartamento), de vagas na garagem (há casos de doze vagas por apartamento), nos clubes e shoppings exclusivos e nos muros eletrificados que se expressa o gosto das elites por um modelo de vida que refuta a cidade. Nos edifícios do segmento econômico verifica-se a tendência a reproduzir esse padrão como se fosse boa arquitetura, quando esta, na verdade, é esquecida. Parte-se do pressuposto, equivocadamente, que as boas soluções arquitetônicas e urbanísticas são obrigatoriamente mais caras, o que não é verdade, optando-se no seu lugar por uma produção em massa muito questionável. Reduzem-se aspectos importantes como a área dos apartamentos ou o tamanho das janelas, para manter símbolos de status como as suítes (mesmo que muito apertadas), os muros, as guaritas. Reproduz-se um modelo que, em longo prazo, é insustentável e cobrará seu preço das próximas gerações, mesmo que hoje seduzam o consumidor pela sua aparência. Da forma como vem sendo feita, a expansão urbana brasileira parece continuar a produzir o oposto de cidades sustentáveis, não só nas periferias pobres, mas também nos novos bairros para as classes médias e altas. Faz prever futuro pouco promissor para os habitantes das próximas gerações. Em suma, pode-se dizer que são insustentáveis as cidades que vêm sendo produzidas pelo segmento econômico.
Um “modelo” equivocado: busca de status e falsas soluções urbanísticas O modelo urbano de que falamos tem, pois, duas características marcantes: desigualdade social e insustentabilidade. O segundo termo deve ser tratado com atenção especial. De fato, a generalização de seu uso, em decorrência do aumento visível da degradação do meio ambiente, fez dele um conceito às vezes demais genérico e, por isso, impreciso. Aqui, entendemos por “sustentabilidade urbana”, a capacidade de equacionar, de antemão, o conjunto dos impactos da urbanização sobre a natureza e seu equilíbrio, ao longo do tempo, de tal forma que as cidades e o meio ambiente continuem a ser usufruídos, com qualidade e sem destruição, pelas próximas gerações. Pensar na condição urbana de hoje é, na prática, pensar na cidade do nosso amanhã. A sustentabilidade é, portanto, questão estrutural. Diz respeito à toda a cidade, aos distintos processos sociais e econômicos que ela desencadeia. Pelo seu fenomenal impacto sobre a natureza, a cidade é uma questão de sustentabilidade em si. Por isso, soluções pontuais de construções ecológicas são importantes, mas ainda terão pouco impacto sobre a sustentabilidade urbana enquanto não afetarem a estrutura sistêmica de funcionamento do urbano. Fica claro que, em compensação, são problemas graves de sustentabilidade urbana questões como impermeabilização do solo, deslocamentos e erosão da terra, espraiamento urbano que gera a necessidade de ampliar sempre mais a rede de infraestrutura, falta de comércio e de empregos nos novos bairros, que obriga a deslocamentos desnecessários, insuficiência de sistemas de transporte de massa, repetição infindável de casas, ruas que não são mais ruas. De forma ainda esparsa, mas cada vez mais frequente e intensa, a insustentabilidade urbana brasileira se expressa nos dramas que invadem a cada ano os telejornais: enchentes, deslizamentos, engarrafamentos monumentais, poluição, violência. 148
O cenário é ainda mais pessimista se considerarmos que as médias e pequenas cidades, ainda relativamente isentas dos problemas mais graves que assolam as grandes metrópoles, e que ainda teriam tempo de reverter sua lógica de urbanização para novo padrão, mais sustentável, reproduzem, ao contrário, em menor escala, os equívocos das nossas grandes metrópoles. Mas o boom construtivo do segmento econômico não parece trazer nenhuma perspectiva de mudança. Empreendimentos com milhares de novas moradias estão surgindo, muitas vezes em áreas de expansão urbana das cidades médias, conformando bairros inteiramente novos. Em efeito perverso, o fenômeno construtivo alimenta a especulação imobiliária e os preços explodem, o que dificulta o acesso mais generalizado à casa própria, apesar do dinamismo econômico. A questão central que surge, na discussão, é novamente o velho dilema dos urbanistas: o que é “cidade justa”, cidade “sustentável”? Embora as responsabilidades sejam tão diversas, é possível almejar uma mudança de qualidade nesse processo? Qual a contribuição para a nova “cara” das cidades que esse segmento está produzindo? Até que ponto a resposta à demanda habitacional latente do país deve sobrepor-se ao dever de se produzir um padrão urbano melhor do que o que até hoje se viu no Brasil? A dificuldade na mudança do padrão de urbanização esbarra, ainda mais, no fato de que a ideia da “cidade justa” não foi ainda assimilada pela sociedade. Ao contrário, e infelizmente, os elementos de status que caracterizam e supostamente embelezam a péssima produção habitacional do segmento econômico são razão de grande procura e satisfação, mesmo ambientalmente tão questionáveis. Em geral, os aspectos que alimentam os panfletos de vendas de imóveis e embasam o sonho da casa própria da classe média, embutem equívocos arquitetônicos e urbanísticos que parecem, à primeira vista, muito sedutores para o consumidor. Um apartamento de 40 metros quadrados para a família média brasileira é demais exíguo. Como aceitar então que unidades com essa área média estejam sendo vendidas a preços razoavelmente elevados, pouco se diferenciando em tamanho do que faziam BNH e COHABs? Como convencer que um espaço gourmet ou um fitness center no térreo, feitos para compensar as dimensões reduzidas das unidades habitacionais, e que parecem dar status ao imóvel, na prática não melhoram o desconforto da falta de espaço no apartamento e acabam muitas vezes subutilizados? Como conscientizar as pessoas que condomínios fechados por muros, cercas e guaritas, mesmo que aparentem mais segurança, na verdade segmentam o tecido urbano e acabam por gerar ainda mais insegurança? Que esses mesmos muros eliminam a vitalidade das ruas e matam seu papel de espaço de convívio, transformando-as em corredores para os carros? Que áreas verdes internas aos condomínios são insuficientes e, sobretudo, muito menores e menos agradáveis do que seriam praças públicas grandes e bem mantidas? Que muitas vagas na garagem podem significar status e conforto, mas alimentam modelo urbano de deslumbramento com o automóvel, em detrimento de políticas de transporte público muito mais eficientes, seguras e sustentáveis? Que os espaços que se reservam para estacionar os carros tiram dos moradores áreas muito mais saudáveis de lazer e descanso? Por razões que englobam liberalidade excessiva do Estado e das leis, exagerado apetite do mercado imobiliário por bons negócios, falta generalizada de consciência acerca dos impactos da urbanização e da necessidade de fazermos cidades boas para as próximas gerações, e ideal de consumo da “casa própria” que se deixa seduzir mais pelas aparências e status da residência do que pela capacidade de gerar qualidade de vida urbana, a dura verdade sobre a produção do chamado “mercado econômico” e o cenário urbano que ela gera é que, infelizmente, aproxima-se de verdadeiro desastre. Em outras palavras, o Brasil precisa, urgentemente, reinventar seu modelo urbano, em padrões que levem à democratização do acesso à cidade e à boa arquitetura.
149
Que cidade podemos almejar? Qual seria, então, o modelo urbano desejável? O que seria a “cidade justa”? Essas cidades podem ou devem ser desenhadas? Como se altera o padrão de produção maciça do segmento econômico, que estudamos neste livro, para que ele conforme modelos urbanos desejáveis, ao contrário do que ocorre? Pensar em cidades justas é falar, antes de tudo, em dinâmicas urbanas não segregadoras; é imaginar um mercado que consiga colocar a sustentabilidade como objetivo mais importante do que apenas a lucratividade; é recuperar, para isso, soluções arquitetônicas e urbanísticas de qualidade, assumindo custos imediatos em nome da preservação e qualificação do futuro; é criar modelo de consumo da “casa própria” mais harmonizado com o coletivo. Por fim, construir um novo modelo urbano no Brasil é fazer a sociedade se conscientizar que nossas cidades devem mudar drasticamente. Assim, mesmo quando não são assumidas as responsabilidades do setor público com a provisão de infraestrutura e equipamentos, deveria caber aos empreendedores a atitude de recusar empreendimentos nesses locais, em nome da qualidade urbana que estarão criando para as gerações futuras. Deveria partir da população de classe média, consumidora do “mercado econômico”, a exigência por produtos habitacionais mais sustentáveis urbanisticamente, deveria caber aos arquitetos maior participação nos processos de produção habitacional no Brasil, e deveriam partir de todos cobrança e fiscalização do poder público para exigir dele maior poder de regulamentação dos processos de ocupação do território. Apesar da complexidade dos problemas enfrentados, não é de todo impossível definir regras urbanísticas e arquitetônicas que remetam a modelos urbanos mais agradáveis, harmoniosos e sustentáveis. Muitos estão em exemplos do passado, e outros são apenas intuições naturais: que a rua era melhor quando podia ser espaço de lazer e interação social, que os bairros são mais agradáveis quando fartos em espaços públicos, abertos e acessíveis a todos, que o uso misto pode ser garantia de qualidade de vida e segurança. Não parece complicado imaginar que há mais qualidade de vida urbana quando os rios são tratados como rios, com margens arborizadas e permeáveis, e não canalizados e esquecidos por baixo de alguma avenida expressa. Parece bastante lógico que nossas ruas e bairros serão mais harmônicos se conseguirem oferecer boa e balanceada diversidade de atividades habitacionais, comerciais, produtivas, educacionais e de serviços; se conseguirem oferecer soluções de moradia adaptadas às diferentes condições sociais e de renda. Não é complicado perceber que construções que utilizam técnicas e materiais locais serão mais adequadas ao clima do que a repetição de verdadeiros e idênticos “carimbos” arquitetônicos, estejam eles no frio do Rio Grande do Sul ou no tórrido calor do Amapá. Da mesma forma, nem sempre o que a moda dita é obrigatoriamente o melhor, e edifícios sem muros, alinhados à rua, com jardins e áreas coletivas internas, podem trazer infinitamente mais qualidade de vida do que os condomínios atualmente difundidos. Apartamentos maiores, com pé-direito mais generoso, serão substancialmente mais dignos para se viver, mesmo que não ofereçam, no térreo, miniacademias de ginástica ou espaços de culinária. Andar a pé, de bicicleta ou de transporte público será sempre mais sustentável, e até mais agradável, se houver cidades que priorizem esses sistemas em detrimento do poluente automóvel. Tudo isso não significa, aliás, custo maior. Um dos desafios dos arquitetos, até aqui tão ausentes, é desenhar e produzir boas soluções de moradia dentro do desafio da economia de custos. A história das cidades já viu inúmeros exemplos de boas soluções, como algumas aqui mostradas. Não é utopia imaginar que isso possa ser resgatado, no bojo das transformações pelas quais passa o país no início do século XXI.
150
O PAPEL DO ARQUITETO-URBANISTA NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO.
151
Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profissão? Publicado no Portal Vitruvius - Arquitextos 133.07. Ano 12, julho de 2011 ISSN 1809-6298 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.133/3950.
Em sua edição de setembro de 2010, a revista AU – Arquitetura e Urbanismo, com a qualidade que sempre a caracteriza, nos apresentou 25 jovens arquitetos em destaque, que “devem ser os profissionais mais representativos do Brasil nas próximas duas décadas”. A reportagem estimula uma reflexão mais aprofundada. Não sobre a qualidade dos profissionais escolhidos, evidentemente, todos de indiscutível talento. Mas sobre a lógica que serve para parametrizar o que se considera hoje, no Brasil, um “arquiteto” e, mais ainda, um arquiteto cujo sucesso profissional sirva para representar a profissão. Não se trata aqui de questionar o excelente trabalho da revista, e menos ainda a qualidade admirável do trabalho desses jovens. A questão que coloco neste artigo é que a brilhante produção de alguns escritórios de arquitetura – cujo foco de atuação é bastante restrito ao reduzido mercado da construção civil que (ainda?) se vale da arquitetura – não deve ser o único aspecto de representatividade do que seja o “sucesso” na profissão. Há uma necessidade premente de iluminar também uma outra face da arquitetura e do urbanismo, menos vistosa, menos evidente e menos festejada, mas cuja importância é fundamental para tirar a profissão do complexo impasse em que se encontra. Em outras palavras, cabe a questão: não seria hora de revermos nossos ideais de sucesso profissional, que no Brasil parecem reduzir a questão tão somente a uma arquitetura autoral – por vezes excelente – destinada quase que invariavelmente aos estratos sociais de alta renda? Pois, em que pesem exceções�, não há como negar que é esse o perfil que aparece, nitidamente e majoritariamente, quando percorremos o que se considera a atual produção arquitetônica “de sucesso” no nosso país. O que fez um colega arquiteto europeu tecer-me o seguinte comentário, não isento de razão: “a arquitetura brasileira é fenomenal, mas aparece para nós como uma arquitetura apenas de casas chiques, e quando não, de prédios habitacionais e comerciais de luxo”. Esta espécie de endeusamento da arquitetura autoral de talento genial limita o horizonte de perspectivas dos nossos estudantes e lhes apresenta como única alternativa um mundo de alta competitividade, angustiante, no qual aparentemente alcançará o sucesso apenas um pequeno grupo de eleitos. Tal postura não é uma característica nossa, no Brasil, mas da arquitetura em geral. A glorificação de alguns grandes nomes da arquitetura mundial, que formam uma espécie de invejado jet-set da profissão, alimenta ainda mais o fenômeno. Curiosamente, grandes nomes da arquitetura nacional recentemente manifestaram publicamente seu temor face à “invasão” do nosso mercado por parte desses papas da profissão, quando na verdade essa é apenas a consequência de uma lógica que eles mesmos sempre ajudaram a alimentar. Além do mais, o festejo em torno da produção autoral, por natureza competitiva, acaba por esconder uma maioria de profissionais de escritórios, com produção significativa, que batalha arduamente para sobreviver dignamente com a profissão da arquitetura, mas que esse funil seletivo não colocou no olimpo dos “grandes arquitetos”. Por mais que se queira, a avaliação do que é digno ou não de estar nesse altar não tem como não carregar uma forte dose de subjetivismo.
� Exceções como os recentes concursos para urbanização de favelas, no Rio de Janeiro, ou de Habitação Social, em São Paulo, às quais estes mesmos jovens arquitetos muitas vezes, e felizmente, se agarram na busca salutar de conseguir alguma outra alternativa de atuação.
152
A alta competitividade e as poucas oportunidades de trabalho, decorrentes do tamanho reduzido do mercado formal da construção, associado ao grande número de profissionais (só na Grande São Paulo formam-se, provavelmente, mais de 1000 arquitetos/ano) e ao desprestígio da profissão junto às construtoras, fazem com que a vida desses escritórios não seja propriamente fácil. Como me disse outro colega, “escritório de sucesso no Brasil é aquele que não fecha”, e manter financeiramente suas estruturas funcionais não é tarefa simples. Por isso, talvez, o alto grau de informalidade que marca a profissão, tanto para os arquitetos quanto para a mão de obra de construção contratada, e o uso abusivo de estudantes estagiários de arquitetura como mão de obra barata, que não é generalizado, mas bastante recorrente. Uma bem intencionada exposição de arquitetura realizada em 2010 em São Paulo, denominada “A boa arquitetura de uma geração”�, levada aos alunos da FAU Mackenzie durante uma semana no saguão principal da escola, tinha como objetivo “estimular a reflexão sobre a importância do trabalho desenvolvido por um grupo de 18 profissionais”, arquitetos-professores de renome nacional e mundial, e sem dúvida importantes representantes de uma geração que muito construiu e transformou as paisagens urbanas brasileiras nas últimas décadas do séc. XX (embora tal geração não se limite, evidentemente, a 18 arquitetos apenas). Ora, pela proposta da mostra, era de se esperar que “estimular a reflexão” para um público de estudantes significasse esmiuçar minimamente a volumosa produção desses arquitetos, além de procurar explicar em mais detalhes seus pensamentos. Porém, o que se apresentou resumiu-se a um painel com uma única foto de uma obra, um croqui autoral, e uma frase, paramentada por uma estilosa assinatura. Claro, pode-se argumentar que o intuito da mostra era apenas o de estimular os estudantes a pesquisar mais a produção dessa geração. Ainda assim, o que se sobressai da iniciativa acaba sendo, mais uma vez, o endeusamento da arquitetura autoral, de 18 arquitetos eleitos, pela qual um croqui, uma frase e uma assinatura parecem bastar para explicar o que seja a boa arquitetura. O caminho não é esse, embora se possa entender que a geração em questão produziu em uma época em que o mercado da arquitetura, ainda muita limitado, podia talvez se resumir à produção de algumas dezenas de grandes profissionais. O problema está em reproduzir esse pensamento para as gerações futuras, cujo universo de atuação é completamente diferente, muito mais amplo, mais complexo, não cabendo mais apenas na prancheta de alguns grandes escritórios . Porém, nossos jovens continuam aprendendo que este é o modelo a seguir. Façamos uma verificação bastante simples: nas seis edições das duas mais importantes revistas de arquitetura do país, as revistas AU e Projeto, entre fevereiro e agosto de 2010, excetuando-se os números especiais sobre Brasília, dos 69 projetos brasileiros apresentados (não foram somados os oito projetos internacionais), temos dezesseis de residências de alto padrão e 28 de estabelecimentos comerciais para o mercado de alta renda, ou seja 63% do total. Fogem à regra dois estabelecimentos industriais e, bom sinal, os 28 de edifícios públicos (museus, bibliotecas, escolas, estações, etc.). Prova de que ao menos os projetos institucionais de uso público ganharam espaço, e que os concursos para os mesmos aumentaram. Porém, vemos apenas quatro referências (projetos ou textos analíticos) a questões de urbanização, e somente um projeto – 0,1% do total! – de habitação “econômica”, aquela voltada à classe média-baixa. Não há nenhum projeto de habitação social (para renda abaixo de 3 salários-mínimos), nenhum projeto no âmbito do PAC Assentamentos Precários em andamento, nenhum projeto do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), nenhum projeto de companhias públicas, de assessorias de mutirões. Esse “mundo” da habitação de interesse social, da informalidade urbana (generalizada), simplesmente parece não pertencer ao “mundo” da arquitetura. Em outras palavras, o universo em que se coloca a atuação do arquiteto no Brasil é fenomenalmente reducionista. Não seria hora de ampliá-lo?
� Exposição apresentada na Panamericana Escola de Arte e Design, e organizada pela mesma, em parceria com o Arquiteto Siegbert Zanettini.
153
Não estaríamos, ao exacerbar cada vez mais o culto à atividade profissional autoral destinada à alta renda, correndo o risco de limitar perigosamente nosso campo de atuação a um mercado que é estruturalmente reduzido? Não estaríamos nos arriscando a repetir os erros do passado que levaram nossa profissão a se distanciar da realidade urbana brasileira, uma tragédia em que quase a metade da população sequer tem acesso à casa, quanto menos à arquitetura? Pois é disso que se trata: da constatação de que a arquitetura brasileira, não obstante seu inegável sucesso internacional, fracassou no seu papel social. É a única conclusão que se pode tirar ao olhar para um país onde, em média, 40% da população urbana vive precariamente, sem arquitetura nem urbanismo. Uma tragédia, que deveria tirar o sono dos arquitetos. A arquitetura e o urbanismo, quando vistos como uma profissão central na sociedade, que reflete e propõe a organização do território e do espaço construído, tem uma vocação indiscutivelmente transformadora. Porém, para além das boas obras de autores individuais, ela indiscutivelmente não foi capaz de sustentar uma urbanização decente no nosso país. Não bastasse seu fracasso na construção de cidades mais justas, também no universo da formalidade, da cidade legal, onde funciona o mercado imobiliário de maior capitalização – e, portanto, o mercado dos arquitetos – a arquitetura parece não ter mais muito o que falar. Apesar das expectativas colocadas sobre os ombros da nova geração de escritórios de arquitetura, parece que sua força para influenciar a produção em massa do mercado da construção nas nossas cidades é extremamente limitada. Na maior parte dos casos, a arquitetura parece ter-se reduzido a um formalismo de fachada, que escamoteia por trás da falsa polêmica dos estilos adotados (neoclássicos ou outras denominações) a negação de tudo aquilo que se aprende na faculdade como sendo a “boa arquitetura”. A arquitetura que impera é a da extrema verticalização capitaneada pelo mercado imobiliário, a transfigurar sem culpa bairros tradicionais, produzindo prédios isolados no lote, cercados e murados, que renegam a rua e a cidade. A opção desenfreada pelo modelo do automóvel em detrimento de sistemas de transporte coletivos – que a arquitetura endossa alegremente – alimenta a oferta generalizada de unidades habitacionais com às vezes mais de dez vagas de garagem (!), o que leva à impermeabilização total do solo, afetando sem parcimônia a drenagem urbana e o escoamento de águas. Os apar tamentos oferecidos, por trás de algum estilo sedutor, estão cada vez menos generosos, mais apertados, menos ventilados, substituindo preciosos metros quadrados nas unidades habitacionais por espaços coletivos no térreo, bem mais econômicos (para as construtoras), sob o glamour das denominações da moda: espaços gourmets, fitness centers, etc. A lógica de construir condomínios murados com equipamentos de lazer e até comércio, ao invés de se abrir para a cidade, produz uma malha urbana segmentada, pouco fluida, e que vai aos poucos aniquilando a possibilidade de espaços públicos de qualidade. Praças, jardins e árvores para que, se é possível ter tudo isso de maneira exclusiva, nas mini-cidades, ou cidadelas fortificadas, que se tornaram os condomínios?
De quem é a culpa? Mas antes de aprofundar essa discussão, vale uma observação: não se trata aqui, de forma nenhuma, de “colocar a culpa” nos arquitetos de escritórios, menos ainda nas revistas de arquitetura. Não há nenhum problema – e é até muito positivo – que a produção arquitetônica de um país tenha uma grande participação de escritórios voltados ao mercado formal e de alta renda, com um enfoque mais autoral. O problema está em alimentar a ideia de que a arquitetura autoral “de sucesso” (por conseguir publicar projetos nas revistas), é a única faceta da profissão digna de destaque, “a” atividade de referência na arquitetura, e que o atendimento ao mercado de alto padrão é a única alternativa para trilhar um caminho profissional de reconhecimento e sucesso. Tal visão, além do mais, transforma o limitado mercado dos escritórios em um verdadeiro campo de caça de oportunidades rarefeitas. O predomínio do mercado imobiliário que pouco atenta para a arquitetura e a alta competitividade decorrente fazem com que mesmo no mundo dos escritórios, a 154
vida não seja simples. É comum ver arquitetos com anos de experiência tendo, na prática, que pagar para trabalhar. Ou aceitando remunerações pífias para poder exercitar a arquitetura. Isso não pode estar certo, e alimenta ainda mais a necessidade de uma profunda revisão da percepção do que é o nosso universo profissional. Se a “culpa” desse desvio das expectativas em torno da profissão não é (somente) dos arquitetos e da imprensa, é porque esta é uma responsabilidade coletiva. A extrema centralização em torno de um único modelo profissional é apenas o reflexo de um processo social pelo qual a profissão da arquitetura colocou-se em uma posição de elitização e de afastamento da realidade urbana, como decorrência do longo período de autoritarismo e de políticas econômicas de extrema concentração da renda. A “culpa” é de cada um e de todos nós que reproduzimos ad infinitum essa lógica social elitista e segregadora em todas as instâncias econômicas, culturais e políticas e não só no âmbito urbano/arquitetônico. A culpa é de toda a sociedade que considera “cidade” apenas a cidade do mercado, a cidade oficial e formal. Que se recusa a enxergar o caos urbano e social, o apartheid assustador dos bairros que não são “nobres”. A “culpa” é dos governos, que atentam somente par essa cidade dos mais ricos, que insistem em políticas para eles apenas, por exemplo construindo mais viadutos, túneis e vias expressas exclusivas para os carros individuais em detrimento de investimentos públicos para toda a população. A “culpa” é também das universidades, que formam arquitetos orientados para uma única perspectiva profissional e alimentam o culto à arquitetura autoral; a culpa é das entidades representativas da classe, que pouco discutem a democratização da profissão, e assim por diante. É claro, se a culpa é de todos, por outro lado não se pode generalizar: há arquitetos “autorais” que tentam de todas as formas entrar no campo de atividades mais voltadas à democratização da cidade, mas se veem frente a muros intransponíveis de burocracias, fisiologismos e impedimentos de todos os tipos. Há arquitetos que fazem arquitetura social de qualidade há muitos anos, mas não conseguem furar a força do pensamento dominante que festeja outro tipo de arquitetura e desconsidera a moradia popular como um problema dos arquitetos. Há números especiais das revistas especializadas sobre habitação popular, embora raros, que mesmo que de forma efêmera, trazem o problema à tona como para lembrar que ele é sim, ou deveria ser, objeto da arquitetura. A questão é que tais atitudes não são nem maioria, nem fáceis, porque enfrentam um pensamento dominante que, seja conscientemente (o pior), seja simplesmente por inércia (o menos pior), reproduz e divulga permanentemente a visão da sociedade de elite, exclusivista e segregadora. Em suma, o Brasil é um país exacerbadamente elitizado, que precisa urgentemente começar a mudar essa situação. Suas cidades, que são o reflexo no espaço dessa sociedade desequilibrada, também precisam urgentemente mudar. Isso porque o Brasil está se transformando. Porém, paradoxalmente, o crescimento econômico, tão festejado, muitas vezes escamoteia o acirramento das tensões econômicas e sociais. Nas cidades, se não for controlado, o crescimento acelerado significa, também paradoxalmente, o aumento da destruição ambiental e dos problemas urbanos. Pois nosso modelo de urbanização, que se intensifica neste momento de euforia de crescimento, continua sendo o da impermeabilização das cidades, da verticalização excessiva e não regulamentada nem planejada, dos grandes condomínios fechados que renegam o espaço público e a cidade, dos investimentos viários em detrimento do transporte público de massa, dos sistemas de esgotamento e drenagem insuficientes, da ocupação descontrolada das periferias, e assim por diante. O resultado desse modelo, estranhamente, ainda choca os brasileiros a cada ano, nas chuvas de verão, como se fossem novidade os desabamentos que tragicamente, mas invariavelmente, se repetem sem que nada seja verdadeiramente feito para evita-los. Nossas grandes cidades são poluídas, imobilizadas pelos congestionamentos, vulneráveis às enchentes, propícias à violência urbana pelo demasiado número de ruas ermas e isoladas por muros intermináveis de condomínios, espaços abandonados, 155
praças esquecidas. Nossas cidades inspiram medo, elas são, por si só, uma violência. Como lhes falta aquilo que chamamos de “arquitetura e urbanismo”! Neste momento estratégico, em que parecemos alcançar a modernidade, mas talvez sem perceber que talvez as cidades implodam antes dela chegar, coloca-se uma dupla e antagônica possibilidade: a de, por um lado, descobrirmos uma nova forma de fazer cidades, ou por outro, de continuar a reproduzir e exacerbar cada vez mais o caminho da barbárie urbana. Os arquitetos – como classe profissional coesa e socialmente atuante – deveriam ter sim muito que opinar sobre o assunto.
A arquitetura no novo mercado “econômico” brasileiro. Alguns estudos recentes, dentre os quais se destacam os de Tânia Bacelar, da UFPE, de Maria da Encarnação Esposito, da Unesp, e também uma importante produção dos pesquisadores do IPEA, mostram que há uma mudança ocorrendo na equação das migrações internas e na conformação das redes de cidades, com um novo papel de protagonismo regional das cidades médias, cuja população e PIB crescem mais do que as outras cidades brasileiras, inclusive as metrópoles. Esse fenômeno se relaciona, ao que tudo indica, com o crescimento substancial da chamada classe C, que teria passado entre 2005 e 2010, de 62,7 milhões para 92,8 milhões de pessoas, ou um aumento de 50% em cinco anos�. Isso faz com que a produção do espaço edificado nessas cidades esteja, por sua vez, em franco aquecimento, sendo bastante focado ao atendimento das classes média e alta. Porém, o que se publica e se difunde sobre a arquitetura brasileira mostra uma preferência inegável para o que se faz nas grandes capitais, com ênfase para São Paulo e Rio de Janeiro, e com pouca visibilidade para uma eventual produção arquitetônica mais espraiada pelo conjunto do território e nas cidades médias e pequenas. Devemos crer que o mundo da arquitetura no Brasil não existe para além das fronteiras das nossas maiores metrópoles? A realidade que se expressa na atuação crescente dos organismos de representação de classe em regiões antes menos visíveis no cenário arquitetônico, mostra que sim, a atividade arquitetônica está em desenvolvimento, acompanhando o aquecimento do mercado e o crescimento das cidades médias. Porém, ela não está conseguindo colocar-se como um ator relevante nesse processo: quem acompanha o cenário da construção pode verificar o domínio do mercado imobiliário, com pouca ou nenhuma atenção para a arquitetura, transferindo para as cidades médias as mesmas metodologias “predadoras de cidade”, verticalizantes “a qualquer custo”, focadas sobretudo no lucro e não na perspectiva de uma alternativa urbana mais humana. É comum ver em cidades médias e pequenas a chegada da “modernidade” traduzida pelo simples aparecimento de prédios, de pobre arquitetura, que não estabelece relação com os processos construtivos, pouco adequada à nossa tradição e que busca ornamentação em elementos formais importados. Ao mesmo tempo, cidades do porte de Joinville ou Guarulhos tem menos de 20% de cobertura de esgoto, a canalização de córregos e a impermeabilização do solo continuam predominando, políticas para os automóveis em detrimento do transporte público são a regra, bairros exclusivos que segregam os mais pobres ainda ditam a conformação do espaço urbano. Em suma, reproduz-se pelo país o desastre urbano e ambiental que são nossas grandes cidades. E a arquitetura, como se coloca frente a isso? Nesse processo que se intensifica, e apesar do esforço louvável de cada vez mais gente, a arquitetura, tradicionalmente bastante menosprezada pelo mercado, tem visíveis dificuldades em impor um novo padrão qualitativo de reflexão sobre o urbano. Mas este não deveria ser um novo e fértil campo de debates, de posicionamentos e de possibilidades para a profissão, inspirando uma mobilização dos profissionais para a popularização de uma produção arquitetônica generalizada e profissionalmente organizada? Que não seja reprodutora, na escala das cidades menores, de uma dinâmica já gasta e um � Cetelem/BNP Paribas, publicado emhttp://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL1558939-9356,00-CLASSE+C+GANHOU+MI LHOES+DE+PESSOAS+EM+CINCO+ANOS+DIZ+PESQUISA.html
156
tanto omissa, limitada à opção entre a “não-arquitetura”do mercado imobiliário ou a elitizada arquitetura “de grife”, quando esta consegue a duras penas “furar” o mercado, mas acaba compactuando, mesmo que involuntariamente (mas nem sempre), com esse modelo? É importante entender que o aquecimento da produção imobiliária destinada às classes médias não surgiu do nada, mas decorre de algumas transformações econômicas recentes, nas quais em regra geral os arquitetos, aliás, também pouco se implicaram, enquanto uma categoria que deveria ter o que opinar sobre o assunto. Pode-se dizer, grosso modo, que tais mudanças começaram em 2006, com a modernização da legislação para o setor de investimentos imobiliários, destravando alguns gargalos históricos, e com decisões governamentais específicas que colocaram no mercado, somente naquele ano, cerca de R$ 8 bilhões para crédito imobiliário oriundos da poupança�. Além disso, a Lei de Alienação Fiduciária, e a Lei de Incorporação Imobiliária (ou Lei de Patrimônio de Afetação), deram segurança ao mercado, que evidentemente se reaqueceu, atraindo inclusive investidores externos. Por fim, a queda na taxa de juros elevou sensivelmente a oferta de crédito imobiliário, embora esta ainda seja no Brasil extremamente tímida em relação aos patamares dos países desenvolvidos, dada a característica restritiva do nosso mercado, extremamente concentrador da renda. Em decorrência disso, o mercado imobiliário brasileiro iniciou pela primeira vez um importante movimento no sentido de ampliar sua produção para faixas de renda intermediária, já que a sua tradicional e quase que exclusiva faixa de atuação, a fatia AAA do mercado, de alta renda, tornara-se subitamente pequena para tanto crédito disponível. Muitas construtoras abriram então subsidiárias para atuar no que passaram a chamar de segmento “popular” ou “econômico”, embora ele esteja muito longe da população de baixa renda, mas se refira a uma mercado capaz de pagar entre R$ 80 mil e 120 mil por um imóvel residencial. No mesmo embalo, no ano de 2009, em resposta à crise econômica mundial, o G overno Federal lançou um programa inédito de financiamento habitacional, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), com o ambicioso objetivo de produzir um milhão de casas. O programa tinha a intenção declarada de aquecer a atividade da construção civil, e por isso foi moldado para atender preferencialmente essas construtoras privadas do mercado “popular” �. O volume de produção atual decorrente do programa é significativo. Pode-se dizer sem medo que o país há anos não via tal movimentação na construção civil, e nunca certamente tão maciçamente voltada a essas faixas de renda. Segundo alguns dados disponíveis, já são mais de 150 mil unidades habitacionais construídas. As obras contratadas ultrapassam as 500 mil unidades, repartidas entre as faixas de 0 a 3 salários-mínimos (cerca de 55%) e de 3 a 10 (os outros 45%). O que é novo é o fato de que uma boa parcela destas, cerca de 37% estão situadas na região Norte, uma proporção equivalente ao Sudeste, o que ratifica a desconcentração da produção que apontamos acima. Outro dado que corrobora a afirmação sobre o novo papel das cidades-médias é que nelas se localiza cerca de 25% dessa produção�. O Programa Minha Casa Minha Vida dá às construtoras, como dito, um papel central: acima de 3 salários mínimos, são elas que incorporam, diretamente vinculadas à instituições financeiras privadas, que acessam os créditos do programa. Nas faixas de 0 a 3, as prefeituras passam a ter um papel importante, assim como a Caixa, já que são elas que definem os empreendimentos, eventualmente (ou muitas vezes) cedem a terra, e intermedeiam os empréstimos da Caixa. Mas mesmo neste caso são as construtoras � A resolução 3177 do Banco Central, de 8 de março de 2004, obrigara as instituições financeiras a aplicar efetivamente – já que esse dinheiro costumava ficar no BC – porcentagem do Fundo de Compensação das Variações Salariais (FCVS, 2%) e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE – a caderneta de poupança) em empréstimos imobiliários. Também exigiu dessas instituições que cumprissem acordo anterior para liberar em parcelas o saldo do FCVS acumulado desde 1996. � Com significativos fundos e facilitação de crédito, o programa beneficia o mercado de renda média, mas também, pela primeira vez nessa escala, a classe de renda muito baixa, abaixo de 3 salários-mínimos, oferecendo nesse caso importantes e inéditos subsídios.). � O que revela um dos desafios que o MCMV deve enfrentar, já que é nas grandes metrópoles que se concentra a quase totalidade do déficit habitacional e da demanda por moradia de interesse social.
157
as responsáveis pela construção dos conjuntos. E a observação empírica dessa produção mostra que mais uma vez estas não parecem lembrar-se – salvo poucas exceções – da existência e da importância dos arquitetos, em qualquer que seja a faixa de renda. A qualidade arquitetônica e urbanística não foi incorporada à produção desse mercado “popular” privado, dentro ou fora do âmbito do Minha Casa Minha Vida. O que se vê são conjuntos enormes, monótonos pela repetição infinita de tipos habitacionais, com um padrão construtivo de baixa qualidade arquitetônica. Um estudo realizado pelo LabHab-FAUUSP e pela Fundação Gerdau, ainda inédito, denominado “ Produzir casas ou construir cidades: desafios para um novo Brasil urbano ”, levantou o estarrecedor cenário do boom da construção civil ligado ao novo “segmento econômico”. Nele, mostramos que nos empreendimentos verticalizados, as construtoras optam por tipologias em “H” ou outras variações trazidas da habitação social da época do BNH, com a mesma pouca qualidade construtiva e arquitetônica, dando-lhes certo “glamour” de mercado, graças à utilização de cores permitidas pelos novos materiais de revestimento, ou ainda ao uso dos mesmos equipamentos que seduzem os empreendimentos de alto padrão: espaços gourmets, fitness centers e afins. Economizam-se preciosos metros quadrados em cada unidade, para em troca gastar uns trocados em um fogão ou algumas máquinas de ginástica; erguem-se muros com cercas elétricas, colocam-se guaritas, tudo para criar um sentimento de ascensão social que dinamize as vendas. O questionável padrão urbanístico dos bairros ricos passou a servir de modelo na proliferação dos novos bairros de classe média. Assim, vendem-se apartamentos de menos de 50m² por cerca de 100 mil reais, dando à população que antes nunca imaginaria ter casa própria a realização de um sonho, a sensação de se estar vivendo “como os ricos”. O que poderia ser bom torna-se, porém, exageradamente caro, com um padrão estético mais do que questionável. Pior, a maioria das construtoras “carimba” um mesmo projeto indiscriminadamente em qualquer região, sem nenhuma preocupação com a adequação climática, topográfica, etc. Nos empreendimentos horizontais, geralmente situados em regiões menos urbanizadas ou nas periferias distantes das grandes metrópoles (pelo menor custo da terra), chama a atenção a reprodução infindável de casinhas de duas águas, aquelas que exemplificaram por décadas a má produção habitacional pública, agora realizada pelo setor privado (porém com importante financiamento público). Pouca variedade tipológica, nenhuma inventividade construtiva que possa alterar a sensação de repetição e de se morar em um pombal. Custa-se a acreditar que seja oferecida a alguém a compra de um imóvel idêntico às centenas de vizinhos, alguns a poucos metros da porta de entrada. Porém, nosso quadro habitacional ainda é tão dramático e o acesso à casa tão restrito que muitas vezes essa é, para o comprador, a realização de um sonho e a possibilidade de acesso à uma vida melhor, pela qual, aliás, paga-se bastante caro. Se ainda a questão fosse apenas a falta de diversidade e a mesmice do projeto, em uma excelente implantação, respeitosa do relevo, com praças e equipamentos, arborização abundante e facilidades de comércio, esse problema talvez impactasse menos. Porém, o que se vê é a opção por implantações com abuso de movimentação de terra (muito impactantes ambientalmente), ou em planícies infinitas e áridas, longe da cidade, com uso somente residencial, sem oferta de serviços nem de equipamentos em quantidade e qualidade necessárias e, é claro, sempre muradas. O programa Minha Casa Minha Vida também incentiva – ao menos no texto, porque na prática nada se concretizou – empreendimentos que proponham a reabilitação de edifícios vazios em áreas centrais. Uma rápida conta, já comprovada em vários exercícios de faculdade, mostra que os custos de compra e reabilitação desses edifícios cabem perfeitamente na equação de financiamento do programa, para faixas de renda entre 5 e 10 salários-mínimos. Uma proposta interessante se considerarmos que no Brasil há cerca de 5 milhões de unidades habitacionais vazias, para um déficit habitacional de cerca de 6 milhões, e mais ainda quando observamos que na Europa cerca de 50% da atividade da construção civil é de reforma e reabilitação. Lá, porém, desde o pós-guerra o mercado da construção, o que inclui os arquitetos, estabeleceu condições para que se desenvolvesse essa vertente importante da arquitetura e da construção. Uma vertente que envolve a participação dos arquitetos em questões de sustentabilidade, de adequação das técnicas construtivas, dos materiais, e assim por diante. E mais uma vez, pergunta-se: 158
qual o nosso avanço nessa discussão? O mercado refuta sistematicamente a prática de retrofit alegando seu alto custo, os arquitetos pouco se importam com uma faceta da profissão que dá pouco retorno à obra autoral, mas que poderia ser socialmente muito transformadora. Eis mais um exemplo de campo de atuação a ser aberto, e ao qual a profissão mantém-se – salvo exceções, como sempre – afastada. A pergunta que nos cabe é a seguinte: onde está arquitetura em tudo isso? Para além da festejada arquitetura brasileira dos escritórios autorais, a profissão não deveria ser parte atuante na linha de frente desse processo de urbanização que assistimos? Exigindo a realização de projetos, a discussão de qualidade, incentivando novas tecnologias, a industrialização construtiva com qualidade, etc? Porém, temos que admitir que nossa profissão, até agora, está alienada disso tudo. Saudosos tempos, quando em 1963, o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, contando com a participação de grandes arquitetos, fora capaz de pautar as políticas habitacionais e urbanas do país. Mas, hoje, o quadro é de uma profunda alienação às perspectivas desafiadoras que a atual conjuntura oferece, mesmo quando se trata de uma produção profissional de grande qualidade. Pior, a alternativa à boa arquitetura autoral é a da submissão aos ditames do mercado e seus imediatismos comerciais. Porém, mesmo a nossa escola “moderna”, supostamente herdeira e reprodutora da arquitetura “de qualidade”, talvez não tenha percebido o quanto se distanciou dos desafios que o próprio modernismo se colocou, quando do seu surgimento: o de responder à demanda maciça por moradias na Europa. Sérgio Ferro, em seu clássico artigo “Arquitetura Nova”, define a arquitetura moderna como aquela que mostre capacidade de levantar propostas para “o atendimento de um progresso esperado e de necessidade coletivas”. A arquitetura deveria então adiantar-se ao porvir da sociedade, refletindo e oferecendo soluções arquitetônicas e construtivas que respondam ao cenário futuro. Pergunta-se: é isso que se vê em face da implosão construtiva que o Brasil vive? Não foi à toa, portanto, que o modernismo europeu já nos anos vinte, e posteriormente no Pós-Guerra, elegeria a habitação social como o principal desafio para mestres da arquitetura como May, Gropius, Le Corbusier e tantos outros. Não havia vergonha nem hesitação em colocar a profissão à frente da necessidade de produzir, em uma conjuntura econômica de construção do capitalismo industrial de consumo de massa e do bem-estar social, as moradias que tal momento demandava. “De Ledoux a Le Corbusier, são constantes as sugestões que avançam sobre tempo”, aponta Ferro. O que pensariam esses mestres ao ver no nosso país, reconhecido internacionalmente por perpetuar o modernismo, a sua profissão alienada do desafio de responder a um déficit de seis milhões de moradias e a cidades com metade de sua população vivendo na informalidade? A arquitetura brasileira estaria acima de toda essa reflexão, para permitir-se ficar distante das transformações que o país passa?
E a arquitetura na cidade informal? Pois se o mercado – entenda-se aquele setor da economia capaz de contratar os ser viços de arquitetos – está se ampliando, mesmo que a arquitetura brasileira não pareça ter assimilado a importância do processo (que a indústria da construção civil e o mercado imobiliário, quanto a eles, já assimilaram), isso não quer dizer que tenhamos, na outra face da moeda, resolvido a tragédia estrutural das nossas cidades, resultante do próprio subdesenvolvimento. Florestan Fernandes defendia que o Brasil dá recorrentemente saltos “modernizantes” que nos levam a um novo patamar econômico sem que, entretanto, tenhamos superado com isso os desequilíbrios estruturais da etapa anterior. Porém, criam-se a cada salto “mitos da modernização”, que servem para legitimá-los, mesmo que, para ocorrer, tais avanços tenham que alimentar-se do aprofundamento do atraso e da miséria. Como mostrou o sociólogo Francisco de Oliveira, o moderno no Brasil alimenta-se do atraso, e assim parece ocorrer nas dinâmicas urbanas. O crescimento das cidades médias, a euforia do boom de urbanização, é uma pseudomodernidade que se alimenta da continuidade da urbanização desigual e socialmente segregadoras, que elegeu a não-democratização do solo urbano, a proliferação dos anti-urbanísticos condomínios fechados de luxo, a verticalização de forte impacto ambiental, a 159
opção preferencial pelo automóvel, ou ainda a periferização da pobreza como seus atributos principais. Muito embora, nas aparências, essa euforia do crescimento se alimente de “mitos modernizantes” como a Copa do Mundo, os Jogos Olímpicos, pontes estaiadas, escolas de dança e outras fontes luminosas, às vezes com projetos urbanos e arquitetônicos de grandes estrelas do jet-set internacional, muito vistosos como factoides eleitorais, mas pouco estruturantes da cidade e, sobretudo, raramente democráticos na sua concepção. As decisões de investimentos públicos nesses projetos são feitos em gabinetes, raramente com participação dos cidadãos, e as audiências públicas têm se tornado cada vez mais peças de teatro sem nenhum efeito. A falta de concursos públicos e a recorrência da prática de projetos urbanos e de equipamentos contratados por vias pouco claras ainda é, infelizmente, praxe, inclusive na maior cidade do país. Não podemos esquecer, portanto, que embora estejamos assistindo a uma ebulição no mercado imobiliário de classe média, nossas cidades ainda são, hoje em dia, caracterizadas pelas periferias auto-construídas e precárias. E nessas periferias, não há arquitetura, não há urbanismo. Como já dito, nesse aspecto nossa profissão, quando vista em seu conjunto e não na ação de alguns grupos tão batalhadores quanto minoritários – dentro do governo ou em pequenos escritórios –, deve aceitar seu absoluto fracasso. Mesmo que, na sua vertente autoral, sempre frequentasse as mais festejadas premiações internacionais. Mas como podemos falar em cidades “globalizadas”, por causa de seus prédios em alumínio e fachadas de vidro, em um país em que muitas delas, e das grandes, sequer têm metade da sua população servida por algo tão básico como o saneamento? Pergunta-se: esses desafios – o da construção de casas de qualidade para os que se amontoam em periferias auto-construídas, o da urbanização dessas periferias com qualidade, integrando-as à cidade “que funciona”, o da estruturação de sistemas de mobilidade urbana democráticos e eficientes, o da provisão generalizada de saneamento ambiental – não deveriam ser os temas prioritários de discussão da arquitetura brasileira?
Capa da revista Veja, edição 1684, de 24 de janeiro de 2001
Porém, a cidade informal ainda aparece mais do que tudo como um incômodo. Assim sentenciava já em 2001 a revista Veja (Edição 1684, de 24 de janeiro) ao estampar em sua capa um desenho em que um pequeno e colorido grupo de casas arborizadas e prédios “de arquitetos” (dentre os quais se reconhece o Copan e o Edifício Itália) aparecia envolto por uma massa cinzenta de ca sebres, sob um título bastante 160
revelador: “O cerco da periferia: os bairros de classe média estão sendo espremidos por um cinturão de pobreza e criminalidade que cresce seis vezes mais que os centros das metrópoles brasileiras”. A seguir o raciocínio, restaria concluir que para desfazer-se dos pobres que, na terrível visão da revista, além de se reproduzirem demais, são também criminosos ( pobreza e criminalidade aparecem na frase naturalmente associados), talvez o mais fácil fosse simplesmente mandar explodir a tal periferia. Tomando o cuidado, é claro, para não acabar com toda ela, pois senão quem iria ser vir e fazer funcionar a cidade formal colorida, verde, urbanizada e cheia de projetos arquitetônicos, e os que nela habitam por terem tido a sorte de nascer do “lado certo” da nossa sociedade cindida? Ninguém, porém, contestou o tamanho da monstruosidade estampada nessa capa. Nem mesmo os arquitetos, afinal, os principais envolvidos na discussão das cidades. Triste constatação de uma sociedade cujo “andar de cima” sequer se digna a assumir alguma responsabilidade sobre um desequilíbrio estrutural que está levando à implosão das nossas cidades. Muito pelo contrário, prefere culpar os pobres, por um cenário decorrente essencialmente de dois fenômenos: a histórica concentração da renda, por um lado, e a segregação sócio-territorial, por outro, que transpõe para o território os efeitos da desigualdade econômica. Se a primeira causa pode ser imputada a políticas econômicas mais amplas, a segunda, em compensação, é de responsabilidade dos arquitetos e urbanistas. Porém, ao invés de assistirmos a uma mobilização cidadã por parte de toda a classe de arquitetosurbanistas para erradicar tais desequilíbrios urbanos, o que se vê são prefeituras criando rampas e bancos antimendigos, arrasando favelas ou construindo muros para segregá-las. O que se vê é um padrão urbano do “andar de cima” que preconiza condomínios fechados e o isolamento atrás de muros, guaritas e cercas eletrificadas. A tranquilidade e o bem-estar da família de classe-média brasileira está na busca de soluções que exacerbam a fratura social e estimulam uma fragmentação digna do apartheid sul-africano, e que só poderá gerar – se já não tiver gerado – a barbárie em nossas cidades. O curioso é que, no bojo de tantas transformações, hoje a arquitetura social, vinculada à produção pública, historicamente desprestigiada pela profissão, é quem está dando lições sobre como avançar no campo da produção de moradia para a população de baixa renda, oferecendo alternativas – embora ainda pontuais – de melhor qualidade do que o que produz o novo “mercado econômico” privado. Por mais incrível que pareça, em um país em que “habitação social” sempre remeteu ao horror dos conjuntos habitacionais do BNH, a arquitetura pública de interesse social hoje está muito à frente do mercado, embora ainda haja longo caminho a percorrer. Isto sem dúvida decorre da corajosa insistência e do know-how adquirido pelos pequenos grupos que, há anos, tentam avançar nessa área, seja de técnicos dentro das prefeituras – com todas as dificuldades impostas por uma máquina engessada para os objetivos sociais –, seja das chamadas “assessorias técnicas de mutirão”, que desde a constituição de 88 iniciaram um lento, mas sólido trabalho de reconstituição da prática da arquitetura para os menos favorecidos. A “arquitetura social”, normalmente tão desprestigiada pelos próprios pares na profissão (quantas vezes não ouvi colegas desaconselhando alunos a fazer projetos de habitação social por isso não ser “arquitetura”), hoje foi capaz de estabelecer um padrão de produção com muito mais qualidade do que está fazendo o novo “mercado econômico”. Em São Paulo, no final da década de 1980, a realização sistemática de concursos de arquitetura para habitação social provocou uma inflexão na qualidade dessa produção, graças à entrada em cena dos arquitetos. No Rio de Janeiro, o IAB local se destacava já nessa época por promover a discussão em torno da questão da habitação social, assim como cidades como Recife, Santo André, Diadema, ou Porto Alegre, que implementavam, antecipadamente até ao Estatuto da Cidade, a prática da urbanização de seus bairros precários.
161
Assim, acumulou-se importante conhecimento, com inovações tecnológicas, como a introdução da alvenaria autoportante, da argamassa armada (que em alguns casos gerou até certa industrialização do processo construtivo, notadamente com as experiências de Lelé), do uso de estruturas metálicas. Os conjuntos Copromo, em Osasco-SP, ou União da Juta, em São Paulo, projetados pela assessoria Usina e ambos construídos em regime de mutirão com autogestão, através de convênios com a CDHU-SP, ainda na década de 1990, ou a produção da assessoria Cearah Periferia, na mesma década nas imediações de Fortaleza CE, são exemplos diversos e marcantes, entre muitos, dessa inflexão qualitativa, que todo aluno de arquitetura deveria conhecer, tanto quanto os projetos autorais nacionais ou internacionais que normalmente inundam seu repertório de estudos. É claro que algumas mudanças estruturais na política habitacional brasileira contribuíram para isso, como a criação do Ministério das Cidades e da Secretaria Nacional de Habitação, a aprovação do Estatuto da Cidade, a formação dos conselhos e fundos municipais, estaduais e federal de habitação, e assim por diante. Ainda assim, embora o Estatuto tenha dado condições para que os municípios implementassem instrumentos de combate ao déficit habitacional, à retenção especulativa da terra e à organização territorial segregadora, nossa sociedade – e nela, os arquitetos-urbanistas – ainda não soube, ou não quis, fazer frente ao desafio e hoje, passados quase dez anos, praticamente nenhum município do país aplicou de forma consistente, maciça e sistêmica um conjunto de instrumentos que tenha efetivamente alterado a equação da segregação sócio-espacial. Uma das dificuldades que se imputa recorrentemente ao Minha Casa Minha Vida vem, aliás, justamente dai: não adianta responsabilizar o programa por alavancar a ocupação de periferias distantes com mais e mais conjuntos habitacionais sofríveis, em razão do preço da terra mais barato, se a prerrogativa de gerir a ocupação do território é dos municípios e estes, desde 2001, pouco ou nada fizeram para aplicar os instrumentos do Estatuto da Cidade que poderiam, por exemplo, dar-lhes condições de fazer estoques de terra em áreas mais centrais para hoje destinar à habitação social no âmbito do Minha Casa Minha Vida. Mas se no campo do planejamento estamos ainda estagnados sobre o avanço que representou o Estatuto, no campo da arquitetura há avanços concretos, mesmo que ainda pouco expressivos quantitativamente. É inegável a melhoria de qualidade nos projetos da CDHU de São Paulo, por exemplo, que desenvolve importante discussão interna sobre a qualidade construtiva e arquitetônica. A CDHU, aliás, lançou em 2010 o “Habitação para todos”, importante concurso de tipologias para habitação social, que agora desenvolve para construir. O IAB-SP desde 2008 estabeleceu em sua premiação bi-anual a categoria “habitação de interesse social”, reconhecendo a importância da mesma para a profissão. O Rio de Janeiro destacou-se em 2011 por lançar o concurso “Morar Carioca”, para projetos de urbanização de favelas, o que a Prefeitura de São Paulo fez também, na sequencia. Aliás, é alentador que em todos estes concursos, houve uma numerosa e entusiasmada adesão dos escritórios de arquitetura, alguns até daquele promissor grupo citado no início deste texto. O que mostra que os arquitetos, mesmo aqueles preocupados com uma arquitetura de per fil mais autoral, são sensíveis a esses novos desafios impostos por nossa trágica realidade urbana. Com o advento do “PAC-Urbanização de assentamentos precários”, uma política pública federal enfrenta pela primeira vez de frente e maciçamente a questão da urbanização de favelas, como se vê no Rio, no Morro do Alemão. Em Manaus, um programa do Governo do Estado, o Prosamin, vem enfrentando também com certo sucesso e qualidade arquitetônica e urbana a situação precária dos igarapés da cidade. O avanço nesse campo da arquitetura deveria ser visto com atenção pela classe dos arquitetos-urbanistas, pois se trata justamente de uma mudança que não resultou da ação de um ou outro arquiteto, mas sim de uma mobilização institucional que envolveu governos, movimentos sociais, técnicos do funcionalismo público, e também evidentemente, engenheiros e arquitetos. Assim, vale o aler ta: não se trata de fazer 162
uma arquitetura autoral aplicada a situações de precariedade ou na periferia, acreditando que assim a “boa arquitetura” se generalizará. Mesmo porque, como já dito, foi a experiência acumulada por quem trabalha na área, à sombra do glamour da profissão, que está ditando os avanços que apontamos. Como diz a urbanista Erminia Maricato, o Brasil é hoje um dos países que mais exporta conhecimento na área da urbanização de assentamentos precários, porém o espaço que essa produção tem no nosso próprio meio acadêmico não só é mínimo, como desvalorizado. Prefere-se, de fato, buscar “soluções” de arquitetos e universidades de países centrais, que aportam por aqui com muita festa e com receitas que pouco se aplicam à nossa realidade. O que vem de fora é sempre melhor, assim dita a cultura das “ideias fora do lugar” tão acalentada por nossas elites. A questão, portanto, é repensar a forma de atuação do arquiteto, pois as demandas sociais podem mudar concepções de formas e conteúdos espaciais, e dar um novo sentido à profissão, em seu papel histórico. Há atualmente no Brasil uma nova lei, a da Assistência Técnica, que garante às famílias com renda de até 3 salários mínimos o direito à assistência técnica pública e gratuita para projeto, construção ou reforma de suas moradias, e com isso prevê a organização da atuação dos arquitetos, por parte das prefeituras, para atender de forma sistemática e organizada a demanda da cidade informal. Os arquitetos, entendase os IABs, as faculdades de arquitetura, os escritórios, deveriam estar completamente submergidos por este desafio (como vêm fazendo, vale observar, a Federação Nacional dos Arquitetos e os sindicatos estaduais) que representa uma enorme oportunidade de ampliação do mercado de atuação, sobretudo para nossos jovens recém-formados. O que dizer, então, da enorme oportunidade de mudança que se coloca com a próxima criação do CAU? Teremos um órgão que irá reproduzir, com alguma melhoria, as lógicas e preocupações historicamente sustentadas pelos CREAs, claramente voltadas quase que exclusivamente à regulação da prática profissional, ou aproveitaremos a oportunidade para repensar, de maneira tolerante, solidária e democrática, o papel da nossa profissão na construção do nosso país e fazer uma verdadeira refundação da arquitetura brasileira? Não é preciso insistir no quanto tal discussão é fundamental para nossos estudantes de arquitetura. Aqueles mesmos que se sentem angustiados em face de um mercado que às vezes lhes parece tão restrito e competitivo. Pois fica claro que a arquitetura e o urbanismo são formações complementares extremamente amplas. Cabe aos cursos de arquitetura promover essa aproximação com a realidade e, consequentemente, uma sensível ampliação do campo profissional. Um arquiteto que queira fazer frente aos desafios que o Brasil hoje lhe apresenta deve ser um bom projetista, sem dúvida, mas deve entender da história econômica e social da nossa formação nacional (para compreender as causas dos problemas que enfrentará), deve transitar pelo campo da legislação urbanística, deve conhecer aspectos básicos de engenharia ambiental, deve saber de economia urbana, e assim por diante. Deve tornar-se um cidadão, um ser político capaz de colocar-se ativamente nas discussões sobre nosso futuro, em especial no que diz respeito ao ambiente construído. Se recebessem tal formação, as perspectivas profissionais dos nossos recém-formados, não só em escritórios, mas em instituições públicas, governos, ONGs, tornar-se-iam muito mais instigantes e diversas. A arquitetura brasileira não pode conformar-se em apontar apenas dois caminhos: ou da arquitetura da “alta costura”� e grande qualidade, destinada ao mercado de alta renda, ou o da arquitetura “de mercado” conformada a uma mediocridade ditada pelos interesses imobiliários. O urbanismo brasileiro não pode continuar a ser reprodutor de práticas segregadoras e exclusivistas. O humorista norte-americano George Carlin dizia que o ímpeto ecológico de “salvar o planeta” tem um problema conceitual: a Terra, que já sobreviveu a movimentos tectônicos e cataclismas, estará muito bem por mais milhões e milhões de anos, mesmo que vire uma rocha desértica. Não serão alguns sacos plásticos e latas de alumínio que a farão desaparecer. Quem está em perigo, isto sim, somos nós, pois n ão sobreviveríamos ao desastre das nossas próprias ações. “Salvemos-nos”, deveria ser o slogan. Pois o raciocínio vale para nós, arquitetos e � Excelente nome dado pelo arquiteto Rodrigo Vicino, quando meu aluno.
163
urbanistas: “salvem as cidades”, será essa a verdadeira preocupação? Nossas urbes podem sobreviver por anos, porém em um cenário à la Blade Runner , recortadas por muralhas eletrificadas, sem saneamento, com espaços públicos abandonados à própria sorte, milícias armadas a fazer a segurança. O que aVeja aponta como um cerco está se tornando a realidade; como lembra Ermínia M aricato, a pobreza urbana não é mais exceção, mas a regra. “Salvemo-nos a nos mesmos”, esse deveria ser o caminho para o novo Brasil urbano. E os arquitetos teriam muito o que dizer a respeito, caso se conscientizem que não podem, mais uma vez, deixar passar o bonde da história.
164
SOBRE A “QUESTÃO AMBIENTAL”.
165
A Formulação de uma Nova Matriz Urbana no Brasil, Baseada na Justiça Socioambiental. Com Luciana Ferrara – Doutoranda LABHAB/FAUUSP Artigo produzido para o Ministério das Cidades, Ministério do Meio Ambiente e Onu-Habitat para Diálogos da Rio+20 e Fórum Urbano Mundial de Nápoles, versão final dez. de 2012.
Introdução: a justiça socioambiental. A questão da sustentabilidade urbana apresenta o mesmo paradoxo que permeia as discussões sobre o clima e o meio-ambiente: quanto mais as cidades crescem e se “desenvolvem”, nos padrões de urbanização que o mundo adotou desde a revolução industrial, maiores são os impactos ambientais decorrentes. Este é, portanto, o dilema dos países que vivem intenso ciclo de crescimento econômico e urbano. Apesar da forte regulação e de padrões de distribuição da renda mais equilibrados, as cidades dos países industrializados também enfrentaram tal questão no passado, ao longo de seu desenvolvimento econômico. O modelo do automóvel, da residência unifamiliar, do espraiamento urbano, da produção maciça de resíduos, mostraram-se ao longo do tempo custosos para o meio ambiente. Mesmo as experiências de “cidades novas”, ao longo das décadas passadas, não lograram trazer um modelo urbano realmente sustentável. A impossibilidade de equilibrar a equação entre, de um lado, crescimento econômico, urbanização, produção agrícola para o mercado urbano e, de outro, a sustentabilidade, tornou-se um problema central naqueles países, que nas últimas décadas passaram a considerar a questão ambiental como fundamental na agenda política. Hoje a regra é a busca por soluções alternativas que diminuam os impactos em questões sensíveis, como o lixo, a emissão de efluentes sanitários e industriais, os transportes, a impermeabilização do solo, o consumo de energia, a poluição do ar e a contaminação do solo, as ilhas de calor, a erosão da terra, a perda das fontes de água doce , a chuva ácida, a perda de fauna e flora, etc. Os países do sul, e o Brasil entre eles, enfrentam as mesmas questões, porém com um agravante de peso: o enorme passivo ambiental urbano causado por um modelo de crescimento econômico baseado em múltiplas desigualdades, que ao longo de décadas privilegiou a concentração da renda e soluções urbanas individualistas, ao mesmo tempo em que não atendeu à demanda básica por habitação para o conjunto de suas populações. Assim, eles devem olhar para a questão ambiental urbana tendo que enfrentar a necessidade de responder às demandas de seu crescimento econômico produzindo milhões de unidades habitacionais, por um lado, mas ao mesmo tempo responder, por outro lado, ao déficit acumulado por décadas em decorrência do subdesenvolvimento. A solução desse duplo desafio precisa, entretanto, ser capaz de alterar significativamente um padrão de urbanização que até hoje gerou impactos ambientais importantes. Por isso, uma reflexão critica sobre o que seja a “cidade sustentável” faz-se necessária. As especificidades do processo de urbanização brasileiro, muito semelhante entre os países marcados pelo subdesenvolvimento, constituído a partir de desigualdades econômicas e sociais e da restrição ao acesso à propriedade da terra, fazem com que o enfrentamento da precariedade habitacional, da informalidade urbana e do passivo ambiental e social, seja o desafio ambiental urbano prioritário. De certa forma, pode-se dizer que a “cidade sustentável” no Brasil deva ser, antes de tudo, a cidade da justiça socioambiental. Sabe-se que para isso será necessária, em algum momento, uma profunda e por enquanto aparentemente impossível reforma da estrutura fundiária no país, já que a disponibilidade de terra urbanizada, ou mais ainda a possibilidade de um maior controle do Estado sobre a ocupação do solo, representam talvez hoje o entrave mais importante à solução do problema habitacional. Isso é comum, diga-se na maioria dos países latino-americanos, onde as dinâmicas históricas de apropriação 166
da terra e a estrutura fundiária originada em grandes latifúndios são bastante semelhantes. Serão necessárias políticas de regularização fundiária, de urbanização das áreas urbanas precárias e de maciça provisão habitacional integrada à cidade. Entretanto, para uma mudança estrutural efetiva no quadro da desigualdade social urbana, tais políticas devem tornar-se prioridade na agenda política em todas as esferas de governo, de forma radicalmente mais significativa, assim como foi feito, já na Constituição de 1988, para as áreas de educação e de saúde. Ao mesmo tempo, como o urbano não se compõe de segmentos divididos, tais ações não serão estruturalmente eficazes para termos um cenário mais harmônico para as pessoas e a natureza, se não se promover concomitantemente uma radical revisão dos parâmetros de urbanização também nas regiões formais e economicamente privilegiadas de nossas cidades. Pois ao priorizar-se, com razão, as questões da justiça social, pode-se cair no erro de achar que a uma “má” urbanização dos assentamentos precários, muito impactante ambientalmente, contrapõe-se uma “boa” e mais sustentável urbanização nos bairros mais ricos, o que não é verdade. O problema é que a população de baixa renda está mais exposta aos riscos e impactos negativos da urbanização desigual. No entanto, como se discutirá mais adiante, o modelo urbano brasileiro em geral, mesmo nas áreas ricas das nossas cidades, se baseia em práticas ambientalmente destrutivas, e por isso não pode servir de modelo para o futuro. Essa é uma realidade em todas as grandes metrópoles dos países em desenvolvimento. O Brasil presencia nos últimos anos, um significativo crescimento da atividade da construção civil. Tal fenômeno, que hoje marca muitos países do sul, atende a uma demanda crescente da população de renda média, que acessa ao mercado habitacional com a expectativa de integrar o mesmo padrão urbano – bastante “insustentável” – que as classes mais altas sempre usufruíram, mas também corresponde a um constante aquecimento da atividade construtiva também nos segmentos de baixa renda, nos assentamentos precários de moradia informal já consolidados, onde a possibilidade de regulação pública é bastante limitada. Há evidentemente avanços no enfrentamento da injustiça socioespacial, que no Brasil se expressam na aprovação do Estatuto da Cidade, em 2011, na criação do Ministério das Cidades e em políticas e ações subsequentes, nos diversos níveis de governo. Porém, os entraves políticos, as dificuldades de gestão, os descompassos entre esferas de governo, a variedade de porte e capacidade institucional dos municípios brasileiros, o relativo empenho na promoção de políticas de democratização da cidade, mostram que, apesar de tais avanços, o desafio ainda é enorme . No que tange ao enfrentamento do modelo urbano em âmbito mais geral, por sua vez, a constatação é a de que as lógicas de mercado – quase sempre ambientalmente predatórias – e a liberalidade na sua regulação ainda imperam, as vezes até sustentadas por financiamentos públicos. A cultura urbana da nossa sociedade associa o crescimento das cidades, a verticalização descontrolada de seus bairros de classe média e alta, a ampliação ininterrupta do seu sistema viário destinado aos carros, a uma sensação eufórica de “progresso” que não assimila o quanto essa matriz urbanística pode na verdade representar, a médio e longo prazo, um verdadeiro desastre ambiental, ainda mais quando ela se reproduz, nos mesmos moldes, até mesmo nos espaços informais. No âmbito da necessidade de responder ao crescimento econômico e às demandas de novas classes médias, os países em desenvolvimento vêm optando por produzir maciçamente casas, esquecendo que deveriam, antes de tudo, construir cidades, e enfrentam, como consequência, graves problemas urbanos que são também ambientais. O exemplo da China, frequentemente visto na mídia, e suas torres de milhares de habitações produzidas em ritmo acelerado é bastante conhecido. Na América Latina, países como o Chile, inicialmente, e o México, atualmente, se destacam por terem promovido programas de produção habitacional em grande escala, chegando, no caso mexicano, a construir um milhão de casas por ano. O Brasil, com o Programa Minha Casa Minha Vida, tende a seguir o mesmo caminho. Entretanto, a solução de provisão maciça teve um preço significativo: o resultado urbanístico é sofrível e o impacto ambiental enorme. Em algumas décadas, o saldo dessa urbanização sem controle 167
cobrará um alto preço, em todos esses países. Já se verificam altas taxas de abandono de habitações no caso mexicano e, no Chile, se o déficit habitacional foi quase resolvido, a qualidade do que foi produzido gerou o que hoje se chama a questão dos “con techo”. O problema é que não existe uma formulação que defina “sustentabilidade urbana”, dando-lhe o caráter sistêmico que merece e permitindo uma fácil compreensão dos abusos sobre a natureza. A imprecisão dessa noção até ajuda, em muitos casos, à sua apropriação indevida por setores do mercado que a utilizam como estratégia de marketing, para vender empreendimentos que, antagonicamente, reforçam a insustentabilidade da matriz urbanística geral. Por outro lado, é certo que as pessoas associam cada vez mais as questões urbanas à problemática ambiental, pois a relação é cada vez mais evidente: o aumento das enchentes, a falta de árvores, o colapso do trânsito, os desabamentos frequentes, a poluição, a falta de saneamento. Ainda assim, embora o enfrentamento da questão ambiental urbana já ocorra em várias frentes, talvez pela falta de uma apreensão mais coesa do problema, ele acaba se dando de forma ainda fragmentada: há reflexões e ações avançadas sobre a questão do tratamento de moradias em áreas de mananciais, há políticas setoriais importantes de regularização fundiária, há ações específicas para melhoria das normas técnicas de construção, há recomendações para o uso de modalidades de transpor te menos impactantes, e assim por diante. São iniciativas que, cada uma delas, envolve diretamente a problemática ambiental, porém sem que ganhem um sentido de conjunto, como parte de uma agenda de ação específica e unificada sobre a questão . Para que a questão da “sustentabilidade urbana”, entendida como a busca prioritária pela justiça socioambiental, ganhe legibilidade, é necessário construir, na agenda política e social, uma matriz única de compreensão da questão. Em suma, a problemática ambiental urbana deve ser o elemento capaz de unificar todas as ações urbanísticas, nos mais diversos setores, em torno de um único desafio: construir cidades ambientalmente e socialmente justas para as nossas próximas gerações. Quais são então as perspectivas que se apresentam para responder a esse desafio? Qual a possibilidade de mudar tais paradigmas e, sobretudo, de encontrar caminhos que respondam às especificidades do nosso crescimento? Qual o papel, nesse processo, dos profissionais urbanos, dos agentes empreendedores, dos poderes públicos nas diferentes esferas de governo, da própria sociedade? São estas algumas das questões que este documento procura responder. Antes de apontarmos proposições, porém, é importante retomar. Mesmo que rapidamente, os elementos que, historicamente, constituíram a problemática ambiental urbana.
PARTE 1: ORÍGENS E CAUSAS DA INSUTENTABILIDADE URBANA 1. Urbanização e impactos ambientais: um fato antigo na história do capitalismo. Como já observamos, não é novidade que processos de urbanização estejam diretamente ligados ao aumento dos impactos ambientais. Em primeiro lugar porque, historicamente, o crescimento das cidades ocorre concomitantemente à industrialização, geralmente em territórios contíguos, e sabese dos efeitos desta última para a poluição do meio ambiente. Mas além dos setores industriais, as aglomerações urbanas por si só são também impactantes, mesmo se representam, na história da humanidade, a solução mais racional para a convivência de uma população cada vez mais numerosa no planeta. Produzem grande consumo energético, movimentações de terra e impermeabilização do solo, desflorestamento, alto nível de emissões de gases poluentes, poluição dos corpos d’água, contaminação do solo, problemas ambientais diretamente decorrentes da ur banização. O processo civilizatório, em especial a partir da revolução industrial e do crescimento inexorável do consumo dos recursos naturais, não tem resistido a um balanço geral mais minucioso: os bens da 168
natureza não só são exageradamente explorados como, além disso, são extremamente mal repartidos. Sabe-se que, no mundo, cerca de 1200 indivíduos mais ricos possuem patrimônio de 4,5 trilhões de dólares, superior ao das 4 bilhões de pessoas mais pobres , e que produzimos alimentos largamente suficientes para satisfazer a população mundial, embora estime-se que cerca de um bilhão de habitantes da terra passem fome. Este desequilíbrio no desenvolvimento é a síntese da insustentabilidade. E ele se rebate, evidentemente, nos processos de urbanização, que são o reflexo espacial das dinâmicas econômicas, culturais e políticas da nossa sociedade. Por isso, no âmbito das cidades, o balanço também é bastante negativo. Desde a Revolução Industrial, os países desenvolvidos tiveram que arcar com o pesado custo ambiental de seu crescimento econômico, que se ocorreu de mãos dadas ao processo de urbanização. Por exemplo, na França, no período em que o país viveu sua mais intensa urbanização, passando de uma taxa de 62% para mais de 75% da sua população urbana, o parque de automóveis, símbolo da indústria do séc. XX, multiplicou-se da mesma forma que aumentaram as emissões de poluentes do ar, que atingiram seus mais altos índices entre as décadas de 1960 e 1990 : o óxido de nitrogênio em ambientes urbanos, notadamente, passou de 20% para 60% do total das emissões, no período. Nenhum país que tenha promovido ou promova processos de crescimento econômico com urbanização poderá escapar de um aumento considerável dos impactos ambientais. É a realidade que atinge hoje, os chamados países “emergentes”. Na virada do Sec. XXI, os embates ambientais nesses países aumentaram justamente em decorrência da pressão urbanizadora e da falta de alternativas imediatas para conter esse conflito. Pois os países desenvolvidos, diante da constatação do agravamento da questão ambiental, conseguiram refrear as emissões poluentes a partir dos anos 1990, ampliando a conscientização com a questão ambiental, gerando acordos internacionais de redução de emissões e promovendo políticas nacionais específicas, associadas à modernização tecnológica (como a intensificação do uso da energia elétrica). Porém, isso ainda não impediu que esses países, em conjunto, ainda liderem as emissões de poluentes e enfrentem múltiplas desigualdades socioeconômicas e espaciais que se acentuam com a crise econômica e evidenciam problemáticas ambientais cada vez mais parecidas com as dos países do Sul . Mas disso não decorre que toda urbanização deva ser, obrigatoriamente, negativa. Como todo o processo de desenvolvimento da humanidade, ela se dá baseada no domínio da natureza e na permanente descoberta de tecnologias e, em teoria, deveríamos ser capazes de encontrar meios de superar a aparente impossibilidade de se promover um desenvolvimento e uma urbanização “sustentáveis”. No início do Séc. XXI, não é mais aceitável tratar da questão dos impactos ambientais urbanos a partir dos mesmos referenciais dos séculos passados, como se a única alternativa para os países do Sul fosse repetir os mesmos processos predatórios ocorridos no Norte. Todo o desafio está em repensar as lógicas urbanas em novos padrões de gestão e governança, que alavanquem urbanização e crescimento econômico, desta vez com sustentabilidade urbana ou, melhor dizendo, com justiça ambiental.
2. Nos países do Sul, um passivo socioambiental consequente. A partir de meados do século passado, alguns países marcados pelo subdesenvolvimento vivenciaram uma industrialização acelerada. Porém, o que alguns chamaram de “Fordismo periférico”, ou ainda de “modernização conservadora” , revelou-se um modelo de crescimento muito menos regulado e, sobretudo, baseado em um padrão econômico de extrema concentração das riquezas, o que certamente o tornou ainda mais impactante ambientalmente. Não são poucos os exemplos, no decorrer da industrialização dos países do Sul, ao longo da segunda metade do Séc. XX, de níveis de poluição extremados, de fenômenos como chuvas ácidas, destruição sistemática da vegetação, superexploração da força de trabalho deixada em péssimas condições de vida, com graves danos à saúde pública e ao meio ambiente . 169
Assim, tais processos de industrialização se deram concomitantemente à acelerada urbanização, devido à intensa atração de mão de obra gerada pelos polos industriais-urbanos em países com fortes desequilíbrios regionais. É por essa razão que hoje grande parte das grandes metrópoles mundiais está justamente nos países de industrialização tardia. No Brasil, São Paulo simboliza tal processo: foi no período de seu maior impulso industrial, com a duplicação de seu PIB entre 1970 e 1980, que a cidade mais cresceu, tendo aumentado sua população em 43% na mesma década . Com tal salto, vieram também os problemas ambientais típicos da urbanização acelerada, os mesmos que já haviam surgido anteriormente nos países industrializados, porém aqui agravados pela pouca regulação e fiscalização : rápida e heterogênea verticalização apenas em bairros de mais alta renda, concentração da infraestrutura nos mesmos, construção acelerada de avenidas expressas de fundo de vale associadas à canalização e tamponamento de rios e córregos, processo paulatino de impermeabilização do solo e de destruição da cobertura vegetal, crescimento substancial da frota de automóveis e ônibus, com consequente aumento das emissões de gazes, o que geraria, três décadas depois, níveis alarmantes de poluição atmosférica e de problemas de saúde . Mas, sobretudo, um crescimento descontrolado de assentamentos humanos informais e precários, nas periferias dos polos industriais. Essa foi a matriz urbana, pouco sustentável, que caracterizou as metrópoles do Sul, em todos os países de industrialização tardia. Ou seja, para além da dimensão mais “clássica” dos impactos ambientais da industrialização, que havia ocorrido nos países do Norte, os do Sul tiveram que enfrentar as consequências da acentuada desigualdade social. No Brasil, o modelo de industrialização e crescimento econômico do “desenvolvimentismo autoritário” , a partir da década de 1960, baseado na concentração da renda como geradora de poupança e nos baixos salários como garantia de baixos custos da reprodução da força de trabalho , promoveu uma matriz de urbanização marcada pela desigualdade social e o não atendimento à demanda habitacional por parte da população de baixa renda. Nossa urbanização ocorreu baseada n a diferenciação econômica dos espaços urbanos e na segregação socioespacial. A autoconstrução em loteamentos periféricos aos grandes centros econômicos passou a ser, de meados do séc. XX em diante, a forma comum de acesso à moradia pela população de baixa renda, buscando responder, na limitada medida do possível, não só à falta de teto para morar, mas também à ausência de terra urbanizada, infraestrutura, espaços coletivos e comunitários, equipamentos públicos, em resposta à inação do Estado que, infelizmente, desonerava-se assim de suas obrigações (MARICATO, 1982:73) . A generalização da precariedade habitacional, que assume a forma de favelas, cortiços, loteamentos irregulares, palafitas, tornou-se regra em todo o mundo subdesenvolvido, como mostrou Mike Davis em seu livro Planeta Favela , sendo hoje a favela a forma predominante de moradia nos países mais pobres. Ou seja, a ausência proposital do Estado ao longo da sua industrialização foi interessante para manter o baixo custo da mão de obra que sustentou o crescimento econômico dos países do Sul mas, hoje em dia, os altíssimos custos dessa não-urbanização tornaram-se um passivo urbano ambiental de difícil solução para seus governos . Informalidade da propriedade da terra, implantação imprópria no meio físico (áreas inadequadas à edificação como margens de corpos d’água e várzeas ou áreas protegidas ambientalmente), péssimas condições físicas e de salubridade da moradia, frágil relação com a malha e as infraestruturas urbanas, e distanciamento dos centros de trabalho (gerando mais custos de locomoção e mais gastos energéticos), riscos diversos, especialmente de inundação e desmoronamento, proximidade de lixões e ocupação de áreas contaminadas, são exemplos de como a urbanização desigual tornou-se, hoje, um grave problema ambiental. As frequentes tragédias que ocorrem nesses países, a cada ano, mostram o trágico preço pago por tal situação. Se até o início dos anos 1980, as grandes cidades brasileiras ainda dispunham de certa disponibilidade de terras urbanizáveis, com seu crescimento intenso, elas foram rareando. Isso resultou na ocupação cada vez mais recorrente das áreas ambientalmente frágeis, exacerbando o conflito entre urbanização e preservação ambiental. A existência de leis de proteção ambiental , que teoricamente limitariam essa 170
ocupação, mas ao mesmo tempo a constatação de sua ineficácia, mostram que o modelo tradicional baseado no binômio regulação-fiscalização não é capaz de alterar essa dinâmica, cuja solução deveria estar, mais do que na fiscalização, na mudança dos paradigmas de urbanização, com oferta adequada de moradia para todos nas áreas urbanizadas.
3. A explosão econômica e a consolidação de uma matriz urbana “insustentável” também nos bairros de alta renda. Não bastasse o desafio de enfrentar as consequências do processo intenso de urbanização do século passado, que engloba grande crescimento da precariedade habitacional, comentados acima, o Brasil vive na virada do século uma verdadeira explosão urbana, assim como muitos dos países do Hemisfério Sul em condições econômicas semelhantes. Além do crescimento sustentado das 15 regiões metropolitanas, que abrigam cerca de 50% da população e respondem por mais de 60% do PIB nacional, assiste-se também ao desenvolvimento das cidades médias (entre 100 mil e 500 mil habitantes), cuja população pulou, em dez anos, de 36% para 40% do total de habitantes do país. Alguns estudos recentes mostram que de fato há uma mudança ocorrendo na equação das migrações internas e na conformação das redes urbanas, com um novo papel de protagonismo regional dessas cidades médias, cuja população e PIB crescem mais do que as outras cidades brasileiras, inclusive as metrópoles. Esse fenômeno se relaciona, ao que tudo indica, com o crescimento substancial da chamada classe C. Segundo a FGV, 29 milhões de pessoas ingressaram nessa faixa entre 2003 e 2009, passando para 94,9 milhões em 2009 (cerca de 50,5% da população brasileira) . Tal processo vem promovendo, nos últimos anos, franco aquecimento da construção civil, sendo bastante concentrado no atendimento das classes média e alta, promovendo processos de adensamento construtivo e verticalização bastante significativos . É marcante, por exemplo, a recente transformação do skyline de capitais como Belém, Manaus, Fortaleza. Disso decorre um agravamento dos impactos ambientais da urbanização formal (para além dos impactos das milhões de moradias informais já citadas acima). Pois não é verdade que a urbanização formal das nossas cidades – ou seja, a dos bairros mais ricos – tenha seguido, em oposição às áreas precárias, padrões mais sustentáveis. Cidade formal e informal interagem, numa dinâmica de co-dependência, e longe de serem perfeitos, os bairros abastados, embora se beneficiem da enorme parte dos investimentos públicos em infraestrutura, promovem uma ocupação do território muito pouco sustentável. Ou seja, o antagonismo no Brasil, semelhante ao de muitos países “emergentes”, é o de viver um eufórico momento de crescimento econômico, mas que do ponto de vista das cidades pode revelar-se uma tragédia ambiental anunciada. Isto porque o crescimento econômico, liderado pela força do capital e a busca de lucratividade, tem uma faceta espacial e territorial, cuja marca pouco sustentável é a destruição do velho para alavancar a rentável e reconstrução permanente das cidades. O padrão de ocupação do território é dominado por empreendimentos de grande porte, com a proliferação de shopping-centers e condomínios fechados verticais isolados . O impacto urbano-ambiental desse modelo é pouco estudado, mas se traduz em aspectos bem concretos, com uma progressiva eliminação das características de riqueza e qualidade da vida urbana: condomínios baseados em padrões de uso impactantes (como por exemplo o alto consumo de água devido à tipologia de múltiplas suítes por unidade), segmentação da malha urbana por muros e recortes, segregação espacial por nível social, restrição da diversidade de usos, eliminação do comércio de proximidade, substituição do espaço público, das praças e passeios, por espaços privativos aos condomínios, impermeabilização do solo, prioridade absoluta ao automóvel como modelo de locomoção, etc. A estes novos empreendimentos imobiliários se associam muitas vezes a grandes projetos urbanos, frequentemente alavancados por mega eventos esportivos ou culturais, para promover verdadeiras 171
metamorfoses nas cidades, em nome do crescimento. Nesse processo, o mais comum é perder-se a memória urbana, ou seja a morfologia original de bairros inteiros, necessária para a perpetuação da cidade e sua cultura. Pior, o comando da urbanização é repassado sem parcimônia aos players do mercado imobiliário e seus patrocinadores (por exemplo, entidades controladoras dos grandes eventos mundiais), de tal forma que as cidades não são mais planejadas em função da busca de qualidade urbana para todos, mas tão somente em consonância com o potencial de lucratividade de cada projeto. Como resultado, imperam os fenômenos de gentrificação e valorização imobiliária, consolidando processos de expulsão dos mais pobres para as áreas periféricas, com todas as consequências ambientais-urbanas que isso significa. Porém, as mesmas “periferias”, com o crescimento econômico, passaram a ver os empreendimentos formais competir com a informalidade na disputa por terras. Há um processo de espraiamento urbano da cidade formal e rica, com a generalização dos condomínios horizontais fechados de médio e alto padrão, em uma busca por “qualidade de vida” justamente como reação – para quem pode pagar por isso – à “insustentabilidade” das áreas mais centrais . Observa-se nas regiões metropolitanas uma crescente “dispersão de núcleos e polos, a presença crescente de vazios [entre eles] e uma frequente redução de densidades de ocupação”, que caracterizam o que Nestor Goulart denominou de “urbanização dispersa” , elevando os custos com infraestrutura e as distâncias dos deslocamentos. Por fim, a caracterização dessa matriz urbana “insustentável” – que afeta também a cidade rica – passa por dimensões mais amplas, intersetoriais, que são tratadas em artigos correlatos a este , mas que não podem deixar de ser brevemente citadas aqui: a do modelo de transporte ur bano, cujos investimentos no Brasil se deram historicamente em favor do automóvel – uma das maiores fontes de emissão de poluentes –, em detrimento do transporte coletivo, muito embora este último seja o meio de transpor te usado por 70% população. Por conta disso, a engenharia urbana brasileira especializou-se em construir avenidas de fundo de vale, canalizando e tamponando rios e córregos, que já nem mais se sabe onde estão . Em dez anos, entre 2000 e 2010, a frota de veículos no Brasil cresceu 119% , e as grandes cidades sofrem com a saturação do sistema viário. Tal cenário não é exclusivo do Brasil, e se repete em grandes cidades dos países em desenvolvimento. Em 2015, 22 das 27 megalópoles mundiais estarão em economias ditas emergentes, e os países do BRIC devem representar até lá quase a metade do volume global de vendas de automóveis. Essa fronteira de expansão da indústria automotiva mundial terá sem dúvida um alto custo ambiental em longo prazo. Por isso, como se vê, assim como é o caso para a desigualdade social, de nada serve falar em cidades sustentáveis se não se falar também da matriz de mobilidade, mesmo que isso afete uma das principais atividades industriais dos países “emergentes”. A segunda dimensão é a do saneamento ambiental, que engloba os serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, drenagem e destinação dos resíduos sólidos. A sua desconexão e fragmentação, associados ao fato de que os níveis de abastecimento de água são superiores aos de coleta de esgotos, fazem com que se generalize a poluição dos corpos d’água, e que a relação entre a urbanização periférica precária e o meio ambiente se torne ainda mais evidente. Essa, mais uma vez, não é uma situação exclusiva do Brasil, mas caracteriza os países marcados pelo subdesenvolvimento. A problemática do saneamento ambiental também não é uma prerrogativa das áreas de urbanização informal, como às vezes se leva a crer, e apresenta-se como um problema generalizado, que atinge também bairros de alta renda. A disponibilidade de água apresenta hoje situação alarmante: se 95,2% dos municípios brasileiros são atendidos por redes de abastecimento de água, apenas 45% deles conseguirão manter níveis de atendimento satisfatório até 2015 . Quanto ao esgoto, em 2008, apenas 45,7% dos domicílios brasileiros estavam conectados à rede de esgoto e, mesmo quando ocorrendo a coleta, nem sempre há tratamento adequado . Sobre a drenagem, em 2010, 90% dos municípios do país declararam não ter nenhum controle sobre drenagem urbana, sendo ainda geral a prática de soluções convencionais de drenagem. É muito recente a mudança de paradigma nesse aspecto, com a incipiente adoção, em algumas cidades, de parques lineares ou de medidas compensatórias . Soma-se a isso o fenômeno de supressão de áreas verdes e de florestas, que atinge o conjunto das cidades, mas 172
em especial as regiões economicamente desfavorecidas . Além da perda das funções ambientais da vegetação, o desflorestamento gera impactos sobre a fauna promovendo a diminuição ou extinção de espécies. O tema da biodiversidade, apesar de sua reconhecida importância, não é tratado por política pública específica, menos ainda no âmbito da discussão urbana.
4. O enfrentamento de novas demandas por habitação para a classe média: uma realidade comum aos países “emergentes”. Há um último aspecto relevante na discussão sobre a matriz urbana e seus impactos ambientais nos países em desenvolvimento: o crescimento econômico e o aumento da base salarial, como ocorreu no Brasil desde a virada do século, levaram a uma forte pressão por habitações por parte dos segmentos econômicos de renda média, agora, com certa capacidade de pagamento, compondo mais uma faceta da alta demanda por moradias à qual os governos dos países “emergentes” têm que responder, além daquela das faixas mais pobres vivendo na precariedade. A complexidade da questão está no paradoxo de que quanto mais o processo de crescimento econômico for virtuoso e conseguir ser distributivo, quanto mais o tratamento da informalidade urbana for atendido, mais aumentará essa demanda por habitações de classe média. O dilema está no fato de que se trata de milhões de unidades necessárias, sabendo-se que a pouca qualidade habitacional e os impactos ambientais são geralmente diretamente proporcionais à quantidade de unidades a produzir. A questão é: como fazer para responder à demanda de produção, mantendo a qualidade urbanística e arquitetônica necessária à uma qualidade de vida digna e sustentável? Pois se, nesse processo, se reproduzir a matriz urbana dos bairros abastados, estará armado um desastre urbano-ambiental ainda maior. A discussão da cadeia de produção da habitação social também mereceu artigo específico , porém deve ser pontuada aqui como parte do entendimento da problemática ambiental-urbana. Todos os países em fase de crescimento acentuado passaram a implementar, nos últimos anos, políticas habitacionais de fôlego, que atendem as vezes os setores mais pobres, mas sobretudo se destinam às classes médias emergentes. No Brasil, o Programa Minha Casa Minha Vida responde por isso, mas são também conhecidos, por exemplo no México ou na China, os significativos empreendimentos habitacionais que abarcam milhares de unidades. Parece que, na maioria dos casos, esses programas de habitação no mundo vêm repetindo o mesmo modelo urbano praticado na cidade de alta renda, até mesmo porque é ele que permeia o ideal de moradia de grande parte da população. Com o agravante da replicabilidade gerada pela grande escala, muitas vezes piorada pela monofuncionalidade. Em todos esses países, produzem-se bairros inteiros (quando não cidades), sem a necessária urbanização, sem diversidade de usos, com implantação marcada pela monotonia, em áreas distantes dos centros (dada a dificuldade de acesso à terra urbanizada em áreas centrais pelas camadas de renda menos favorecidas). Mais do que isso, é comum que nesse processo a prerrogativa do Estado como agente organizador e regulador da ocupação do território seja passada para trás, suplantado pela “eficiência” operacional das grandes construtoras privadas. O exemplo do México é bastante representativo. A possibilidade de aquisição de financiamento público, pelos assalariados de classe média-baixa, levou à formatação de ambicioso plano de produção habitacional, alavancado por importantes construtoras, e que até hoje produziu cerca de 9 milhões de unidades em XX anos. Na cidade de Zumpango , a cerca de 70 km da capital, por exemplo, a mais importante construtora do país ergue um bairro de não menos do que 155 mil unidades habitacionais. Uma verdadeira cidade de porte médio a grande, que poderá abrigar mais de 400 mil habitantes, planejada, construída e vendida autonomamente – ou com intervenção pública quase insignificante – pelo setor privado. Não obstante o fato de que empreendimentos anteriores semelhantes, mas menores, não muito distantes dali (La Trinidad), apresentem grave problema de esvaziamento (dado 173
o distanciamento da cidade e as dificuldades decorrentes de implantações problemáticas), ou talvez em decorrência disso, a empresa tomou para si a responsabilidade de construir por conta própria em Zumpango ambicioso programa de infraestrutura e equipamentos, mas sem que sejam forçosamente pensados ou explicitados os mecanismos e as responsabilidades, pública ou privada, de sua gestão posterior. Entretanto, cerca de 60 mil unidades já foram construídas e entregues, sem que a ínfima parte desses equipamentos e da infraestrutura anunciada esteja pronta. O resultado, preocupante e de impacto ambiental incalculável, é a formação de cidades horizontais que multiplicam a perder de vista um horizonte monótono, monofuncional e sem vida de cidades-dormitórios, afastados dos centros de emprego e sem a necessária infraestrutura de transporte coletivo. Uma bomba a retardamento que mostra que não se trata, portanto, de produzir casas , mas sim de construir cidades sustentáveis, e o desafio não é pequeno.
5. No que consiste, então, a “sustentabilidade” das cidades? Se o desenvolvimento sustentável é uma noção bastante ampla, imprecisa, e dá margens a diferentes interpretações, a sustentabilidade urbana também pode ser considerada uma noção em disputa e remete a diferentes práticas sociais e espaciais . Nas últimas décadas , políticas e projetos urbanísticos tratam desse tema circunscrevendo problemas e propondo ações para seu enfrentamento, como a mudança do padrão modal de transporte para alternativas energeticamente mais sustentáveis, ou o aumento de área permeável e de coberturas verdes, o uso de materiais “ecológicos” de melhor rendimento, os edifícios inteligentes que poupem energia, ou a defesa de uma “compactação” das cidades para melhor aproveitamento da infraestrutura urbana, entre outras ações que, em resumo, expressariam a capacidade de adaptação das cidades as novas condições ambientais e metas de redução de emissões. Ainda assim, apesar do ganho qualitativo que essas intervenções possam gerar, tratam a sustentabilidade como algo que a técnica e a tecnologia “limpa” seriam, sozinhas, capazes de solucionar. Porém, no contexto de países marcados pelo subdesenvolvimento, tal representação técnico-material da problemática ambiental urbana, traduzida em edifícios ou projetos urbanos “sustentáveis” não é acessível pela maioria da população e, sobretudo, pouco interfere no complexo conjunto de fatores, de ordem política, jurídica, econômica e urbanística, que produz a desigualdade social urbana. Uma segunda vertente de discussão sobre a sustentabilidade urbana é a que defende uma mudança do paradigma de consumo como modelo de desenvolvimento econômico. Uma postura de contraponto ao modelo mais geral de consumo de massa, de mercadorias que geram poluição e toxinas, que deveria ser uma prioridade imediata, embora na contramão da lógica econômica dominante. Nos países do Sul, entretanto, o sonho modernizador é, quase sempre, o de alcançar padrões de consumo compatíveis com o das economias “desenvolvidas”, quando se sabe que, para o meio ambiente, o interessante seria talvez o contrário, ou seja refrear esse nível de produção de supérfluos a começar pelos países industrializados. Assim, o que está em jogo para promover uma nova matriz urbana “sustentável” é na verdade, a capacidade da sociedade em encontrar novos caminhos para um desenvolvimento menos pautado pelo consumo e o desperdício e mais por um ideal de justiça socioambiental. Somadas, ambas as definições sem dúvida contribuem para a compreensão da “cidade sustentável”, porém nenhuma delas traz um questionamento mais profundo – e necessário – sobre as formas de produção dos espaços e suas práticas sociais. A materialidade das cidades é politicamente construída, o que faz com que a ideia de sustentabilidade seja necessariamente relacionada às dinâmicas de reprodução do espaço, assim como às condições de legitimidade das políticas urbanas. Temos portanto, uma terceira forma de entender e enfrentar a questão: a consolidação do conceito de “sustentabilidade” deve antes de tudo incorporar uma profunda e transformadora reflexão sobre as dinâmicas com que ocorre a própria produção do espaço urbano.
174
Isso evitaria que o entendimento de cidade sustentável seja majoritariamente apropriado pelo mercado de consumo e empresas na forma de “marketing verde”, para fins comerciais, apontando para formas superficiais de “sustentabilidade” que, na prática, pouco alteram as dinâmicas de competição do mercado, e menos ainda questionam as formas de produção da cidade. A noção de sustentabilidade urbana passa, antes de tudo, pela ideia de sermos capazes de reverter os atuais padrões de urbanização rumo ao estabelecimento de uma nova matriz urbana, tanto no que diz respeito ao tratamento do passivo socioambiental herdado da industrialização tardia, quanto à capacidade de regular e organizar a urbanização em curso em parâmetros socialmente mais justos e menos impactantes, isso em especial nas cidades pequenas e médias, onde as possibilidades de mudança ainda são amplamente possíveis. A busca por “sustentabilidade urbana” poderia ser um instrumento de aglutinação em uma agenda claramente estabelecida, de todas as políticas que, de forma esparsa, tratam da questão, sem que se tenha, entretanto, sua apreensão conjunta. Tal agenda deveria permitir promover o que aqui chamamos de “justiça ambiental” , uma definição mais precisa do que a de “sustentabilidade urbana”. Porém, quais são as dificuldades, os gargalos que devem ser superados para isso?
PARTE 2: PROPOSIÇÕES PARA UMA AGENDA DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL. 1. Para pensar a agenda. O olhar diagnóstico e critico sobre os impactos negativos do modelo de urbanização desigual brasileiro nos alerta, portanto, para sua insustentabilidade. Quais poderiam ser, então, os passos para a elaboração de uma agenda de justiça socioambiental que combata esse modelo? a) Superar a dificuldade de se circunscrever o conjunto de questões que compõem a (falta) de sustentabilidade urbana: São problemas diversos, de causas variadas, que dizem respeito aos mais diferentes campos das políticas públicas, a responsabilidades e prerrogativas de todas as esferas de governo, mas que, no seu conjunto, se somam para agravar o quadro preocupante que é nosso cenário urbano-ambiental. Por isso, justamente, é tão difícil não só definir o que seja a “justiça socioambiental”, como também refletir sobre como esta pode ser promovida . Ou seja, tentar circunscrever o termo “cidade sustentável”, dando-lhe uma definição muito precisa, associando-o a modelos urbanos pré-definidos, talvez não seja um bom caminho: isso invariavelmente fará deixar de lado aspectos importantes da questão. A melhor abordagem provavelmente seja considerar a “cidade sustentável”, ou a “cidade com justiça socioambiental”, como uma condição imprescindível, a matriz urbana que se deseja para um país mais democrático, socialmente e ambientalmente justo. Para isso, torna-se necessária não a adoção de alguma receita simples de gestão, mas sim a promoção de um conjunto de profundas transformações em toda a sociedade, nos mais variados aspectos, políticos, econômicos, culturais e sociais. Por isso mesmo, tratar da questão ambiental urbana implica em repensar as próprias metodologias de gestão e governança, que ainda engessam sobremaneira o enfrentamento da questão ambiental. Esta deve fazer-se presente no dia a dia dos moradores, em um processo de assimilação da sustentabilidade na apropriação diária dos espaços da cidade, que deve partir das políticas urbanas que cheguem até eles. Isso pressupõe, portanto, questões como a gestão participativa, integrada, intersetorial, descentralizada, fluida entre as esferas de governo, isentas das pressões político-partidárias e fisiológicas que ainda existem. Mas pressupõe, sobretudo, a adoção da temática da justiça ambiental como linha de força e elemento agregador da política pública em geral, em todas as esferas de governo. b) Não associar forçosamente a urbanização à piora dos impactos ambientais: 175
Face ao processo de crescimento econômico que o país vive, a aceleração da urbanização é inexorável, e condená-la por seus impactos ambientais não será uma saída. A questão é, portanto, encontrar os caminhos para promover um modelo de urbanização que, mesmo no atual ritmo e respondendo à demanda crescente, possa alterar radicalmente a matriz urbanística e promover efetivamente a justiça socioambiental e espacial. c) Promover uma inversão radical na proporção dos investimentos públicos destinados à habitação de interesse social (HIS), de preferência localizados em áreas ur banizadas: Assim como já foi feito anteriormente para as áreas de educação e saúde, que têm destinações mínimas do orçamento municipal estabelecidas constitucionalmente. É comum termos menos de 3% dos orçamentos de metrópoles destinado ao setor habitacional, muito embora a falta de moradia atinja uma parcela considerável de suas populações, quando se destina 15 e 20% para saúde e educação. Além disso, é preciso garantir que a provisão habitacional para a população de mais baixa renda não se dê quase que exclusivamente, como ocorre hoje, em áreas periféricas, desconectadas das áreas centrais, distantes da oferta de empregos e sem infraestrutura urbana adequada. Isso remete, evidentemente, ao enfrentamento da questão fundiária, e a um questionamento mais comprometido sobre os reais efeitos das legislações relativas ao “Direito à cidade” e as razões pela sua baixa efetividade. O argumento do alto preço da terra, dificultando a aquisição da mesma para fins de moradia, embora não seja falso , perde força face ao número de terrenos ociosos muitas vezes ainda disponíveis (os terrenos de estacionamentos, por exemplo, que não sendo para moradia, ao menos deveriam abrigar edifícios de estacionamento, mais eficientes) nos centros das cidades, sem contar os imóveis vazios já construídos, que poderiam estar sujeitos a uma intervenção estatal efetiva . Embora já existam exemplos interessantes, ainda é incipiente no Brasil a reabilitação de edifícios vazios para habitação social . Ao contrário, a cultura política brasileira prioriza a defesa do direito à propriedade, antes do direito constitucional fundamental à moradia. Assim, são frequentes as decisões judiciais de reintegração de posse – muitas vezes feitas com violência e ignorando famílias em situação precária – em favor de proprietários de imóveis vazios e endividados, que não cumprem sua função social e se encontram portanto em situação de ilegalidade. O que é o legal ou o legítimo, em relação às ocupações de prédios abandonados pelos movimentos de moradia, entre o respeito ao direito constitucional básico de moradia ou à propriedade imobiliária, mesmo que precária, é uma discussão ainda incipiente no Brasil, embora fundamentalmente necessária. O recente caso do Pinheirinho, em São José dos Campos, no Estado de São Paulo, é um triste exemplo desse cenário, tendo ganhado destaque negativo até no noticiário internacional: tratava-se de uma gleba de um milhão de m² abandonada – mas em perfeitas condições de urbanização – e de propriedade precária, já que pertencente à massa falida de uma empresa com problemas judiciais, ocupada havia oito anos por 1600 famílias de movimentos organizados de moradia. A justiça preferiu proteger a propriedade em detrimento do direito à moradia, determinando a reintegração de posse à força – injustificadamente violenta – ao invés de promover soluções de urbanização e fixação das moradias, que inclusive já existiam. Além disso, no argumento do “alto preço” da terra nas áreas centrais, usado para justificar a provisão habitacional em glebas distantes, deixa-se invariavelmente de computar os custos para se levar a infraestrutura até essas áreas, que se fossem considerados em muito relativizariam essa diferença de valor. Mas o problema é que o procedimento de afastamento dos empreendimentos habitacionais de baixa renda, comum nas cidades grandes, se replica em cidades médias e até pequenas, onde as variações do preço fundiário não são tão acentuadas. Mesmo assim opta-se por situar novos conjuntos habitacionais de interesse social em áreas distantes, favorecendo o espraiamento urbano, aumentando os custos de 176
infraestrutura (em especial de saneamento e transporte), facilitando a ação especulativa do mercado (nas áreas abertas pela expansão urbana) e remetendo sempre os segmentos mais pobres da população ao que a urbanista Ermínia Maricato, da USP, denomina de exílio na periferia . Definitivamente, há uma cultura política, refletida nas políticas habitacionais municipais, aceita pelos segmentos mais ricos da sociedade, e promovida pelos municípios e o setor da construção civil, de continuar a produzir, mesmo em novos empreendimentos, a segregação espacial urbana. d) Equacionar quantidade e qualidade com parâmetros : Grandes conjuntos, por questões de custos construtivos e economia de escala, acabam propondo soluções de repetição arquitetônica e de monotonia nas implantações, que reduzem consideravelmente a sua qualidade. Como dito, isso ocorre no Brasil, no Chile, no México, na China e em muitos outros países em condições econômicas semelhantes. Porém, o gigantismo do déficit habitacional nesses países exige, do ponto de vista político e social, políticas de produção em grande escala. Assim, coloca-se uma importante discussão, que retomaremos adiante, sobre a necessidade de se consolidar parâmetros qualitativos que possam ser respeitados e fiscalizados. A questão da qualidade construtiva, e portanto da sustentabilidade associada à cadeia de produção habitacional é fundamental para a construção de uma matriz urbana ambientalmente justa . Vale notar que essa é uma questão mais política do que técnica. O México chegou a ter, no fim da primeira década do século, uma proposta de regulamentação para normatizar a aprovação de empreendimentos habitacionais com mais de 10.000 unidades de uma só vez, mas que foi derrubada pela pressão das construtoras antes mesmo de ser apresentada ao Congresso. A ideia de limitar a quantidade de unidades de moradia também faz parte da segunda etapa do Programa Minha Casa Minha Vida, no Brasil, que restreingiu o tamanho dos empreendimentos a 300 unidades . e) Mudar a matriz de transporte e ampliar a oferta de saneamento ambiental. Já foram suficientemente discutidas neste texto, e são tratadas em documentos correlatos , de forma a evidenciar que nenhuma melhoria no quadro ambiental urbano brasileiro será possível sem a mudança da matriz de mobilidade urbana para a prioridade total ao transporte coletivo de massa, em detrimento do automóvel de uso individual, como tampouco sem a generalização, no prazo mais curto possível, do atendimento adequado de saneamento ambiental. f) Promover uma melhor e mais democrática distribuição espacial dos investimentos públicos em infraestrutura urbana: As políticas públicas urbanas devem passar por forte descentralização no território. O urbanista Flávio Villaça já mostrou, há muito tempo, como os investimentos em infraestrutura são historicamente concentrados, nas cidades brasileiras, em alguns bairros economicamente privilegiados . Grandes obras ainda são sempre localizadas nas áreas mais nobres já muito equipadas, ou em áreas de expansão de interesse do mercado imobiliário, nesses casos geralmente promovendo valorização imobiliária e a expulsão da população residente. A oferta de infraestrutura acaba aquecendo o conjunto das atividades econômicas, concentrando também a oferta de emprego nessas regiões já privilegiadas, e aumentando o forte desequilíbrio econômico no território, uma das ca usas da insustentabilidade da matriz urbana. g) Fazer planejamento futuro e prever parâmetros urbanísticos ao invés de planejar para remediar. Os países em desenvolvimento sofrem um problema crônico na área do planejamento urbano: o passivo ambiental urbano tornou-se tão drástico que as políticas públicas são muito mais de contingência e remediação do que propriamente planos de organização da ocupação e organização do território a médio e longo prazo. 177
As situações de risco habitacional, as enchentes, a saturação dos sistemas de transporte, entre tantos outros problemas, tornam os governantes reféns de uma política emergencial, que lhes dá poucas alternativas de reflexão concertada a longo prazo, prejudicando também, geralmente, a prática de processos de planejamento mais participativos. Planos diretores raramente estimam níveis de densidade desejados para a cidade, raramente estabelecem parâmetros de “saturação”das infraestruturas, e essa discussão, aliás, também se faz ausente na academia. A programação, em termos de política econômica, da localização de investimentos, empregos, equipamentos e infraestrutura, a elaboração de agendas de discussão com a população sobre perspectivas de longo prazo, são métodos de gestão ainda incipientes, porém altamente desejáveis. h) Atentar para o falso milagre de “receitas” urbanas de sustentabilidade: A ideia de que seja possível ter uma “receita” de cidade sustentável, que um prefeito pudesse apenas seguir na sua gestão para garantir uma espécie de “porta para o futuro”, é relativa e pode até ser enganosa. Pode até servir, muito brevemente, para alavancar estratégias políticas e operações de marketing urbano, em nada comprometidas com uma matriz urbana diferente. Cidades não são isoladas, mas parte de sistemas complexos em rede, e mesmo que existisse uma “receita” aplicável a cada uma delas, a promoção da “sustentabilidade” só seria vislumbrável se todas as aglomerações dessa rede adotassem a tal receita. Por exemplo, de nada adianta uma cidade tratar seu esgoto se o município vizinho não o fizer, a sustentabilidade é uma questão sistêmica, não depende dos recortes territoriais administrativos. Mas, sobretudo, a ideia da “receita” elimina a noção de complexidade sistêmica e de agregação de políticas diversas que constituem a agenda para a justiça socioambiental. Além disso, ela também acaba inibindo processos de gestão participativos, ao dar uma solução pronta, que são essenciais para alcançar a justiça socioambiental. i) Relativizar o argumento da “cidade compacta” e adequá-lo à realidade da desigualdade socioespacial. O termo teve sentido no bojo do movimento modernista e, na sequencia, da reconstrução europeia do Pós-Guerra. De fato, era compreensível e positiva a argumentação da necessária racionalização da infraestrutura urbana. Nas reflexões dos arquitetos modernistas, como Walter Gropius , quanto mais espraiada fosse a cidade, mais cara a instalação de infraestrutura; por outro lado, quanto mais densa, maior a divisão dessa infraestrutura por habitante, e mais barata para a coletividade. Como a infraestrutura é um investimento público, cidades compactas, ou seja, mais densas, seriam mais democráticas, ao usar mais racionalmente e eficazmente o dinheiro público. Na realidade econômica de países com forte desigualdade socioespacial, o termo pode, porém, ter outras interpretações. A mais correta é a que reproduz a argumentação original, entendendo as “cidades compactas” como promotoras de justiça socioespacial pela racionalização do uso da infraestrutura. Representaria, neste caso, um processo de adensamento populacional efetivamente capaz de trazer para acidade formal e com infraestrutura o enorme contingente de excluídos, os cerca de 40% da população das grandes metrópoles que vive na informalidade ou em situação precária. O adensamento e a verticalização de bairros assobradados de classe média, que são as frentes de avanço do mercado da construção civil, poderiam ser eventualmente defendidos, em uma postura democrática bastante radical, caso de fato servissem para oferecer moradia à população pobre que compõe o déficit habitacional. Mas, sabe-se que a dinâmica urbana desigual não é bem assim. No caso desses bairros de classe média, a interpretação do conceito da cidade compacta é outra. Ele vem sendo usado mais como um argumento em defesa da verticalização dos bairros assobradados, pela intensa pressão do mercado imobiliário. Mas para edifícios para os mais ricos, apenas. Vale dizer, antes de tudo, que “compactar” a cidade não significa obrigatoriamente inundá-la de torres de grande altura e alto padrão, e confundir “compactação” com a defesa da verticalização, o que é cada vez mais comum, é perverter o conceito 178
original e construir uma justificativa para o avanço inexorável dos empreendimentos verticais por sobre bairros antigos de sobrados, alterando sua morfologia, eliminando as áreas verdes, isolando as ruas por muros condominiais, e impermeabilizando o solo.
2. Os caminhos para uma nova matriz urbana ambientalmente justa. O que se pode esperar, de cada um dos agentes que produzem a cidade, para efetivar a realização da agenda acima proposta?
A. O Estado.
Em todas suas esferas, deve envolver-se integralmente em torno de uma agenda para a promoção de uma matriz urbana sustentável, que como dito pode servir como mote unificador de um grande conjunto de ações na cidade, hoje tratadas de forma esparsa ou em setores de gestão pouco interligados. a) Provisão habitacional Seria a produção maciça de moradias, tão criticados pelos seus importantes impactos ambientais, a única forma de responder à demanda habitacional crescente que os países em desenvolvimento vêm enfrentando? A pergunta é sensível, e de difícil resposta. É comum, hoje em dia, vermos avaliações extremamente negativas dos grandes conjuntos habitacionais europeus construídos no Pós-Guerra. Décadas depois, o balanço não é positivo, e as razões em muitos aspectos se assemelham com as críticas por aqui feitas aos grandes conjuntos habitacionais. Para Stébé , a desilusão resultou de diversos fatores, que soam como preocupante premonição para o atual impulso construtivo que vivem os países em crescimento econômico: “primeiramente, a localização periférica dos conjuntos em áreas residuais mal conectadas ao tecido urbano dinâmico, ... teve por consequência sua marginalização e exclusão, tanto no plano físico quanto simbólico. Além disso, os grandes conjuntos, que foram resultado de uma política de construção de moradias sociais em que os objetivos de quantidade, rapidez de execução, produtividade e industrialização da cadeia produtiva se sobrepuseram à pesquisa por qualidade arquitetônica, urbanas e técnicas, não permitiram oferecer moradias adaptado às diversas exigências de seus usuários, que rapidamente se queixaram da mediocridade geral: utilização complexa de alguns espaços, concepção das unidades rapidamente obsoleta, ausência quase total de isolamento acústico e térmico, implantação precária dos espaços coletivos externos, rápida degradação dos materiais, etc” . O resultado é que hoje, em muitos países daquele continente, há políticas sistemáticas de desmonte desses conjuntos antigos, sob o argumento de que a política habitacional deve evitar promover grandes conjuntos que se tornam guetos monofuncionais distantes para, em vez disso, construir conjuntos de pequeno porte, de até 50 unidades, inseridos na malha urbana e até mesmo em bairros nobres. Na França, a Lei SRU (Solidarité et Renouvellement Urbain), de 2000, estabeleceu que todo município deve oferecer, do total de moradias, no mínimo 20% para uso social. Porém, não é evidente que os problemas apresentados pelos grandes conjuntos em tempos mais recentes (as revoltas sociais na França, na década passada, por exemplo) sejam decorrentes apenas da sua forma urbana e arquitetônica. Questões como o que o autor denomina de “desqualificação social”, com o empobrecimento econômico, o aumento do desemprego e os obstáculos à integração da população imigrante, contribuíram para a crise dos grandes conjuntos, tanto quanto seu modelo físico-territorial. 179
Por outro lado, não se pode negar que, face à enorme demanda no pós-guerra, por muitas décadas, entre 1950 e a crise dos anos 80, a produção dos grandes conjuntos resolveu de forma significativa a problemática habitacional na maioria dos países da Europa Ocidental. Assim, a solução da produção em massa de habitações sociais não pode ser desprezada em países “emergentes”, que têm déficits fenomenais. Trata-se, então de encontrar alternativas para que esta seja feita de forma menos impactante. Podemos listar algumas: - Necessidade de estabelecimento de um conjunto de parâmetros e índices: Devem ser pensados na forma de lei, e abrangentes para o conjunto dos municípios, com possibilidades de adequações à realidade de cada um, de tal forma a estabelecer um marco legal de regulação da produção de novos conjuntos habitacionais – para os diversos níveis de renda – de forma homogênea e idêntica em todo o território nacional, e acima das legislações municipais . Os índices permitiriam a constituição de uma base de informações completa e coerente, para o conjunto do território nacional, de forma a acompanhar e fazer evoluir a normatização dos parâmetros. Esses parâmetros, que deveriam unificar os Códigos de Obras municipais, devem promover a limitação do tamanho máximo dos conjuntos (incluindo os empreendimentos contíguos), e também abarcar aspectos como a densidade máxima, que hoje corriqueiramente supera de longe os 500 ou 600 habitantes por hectare condizentes com uma boa relação de escala entre o pedestre e o edifício. Deve, assegurar condições de insolação e ventilação, tendo ao mesmo tempo uma densidade aceitável, nos termos da já comentada “cidade compacta”. A limitação dos gabaritos de altura, que pode variar de uma situação a outra, pode ser ainda assim analisada e sugerida, para cada situação, mas com uma mesma lógica em todo o país. Devem também fazer parte desses padrões, na escala da inserção urbana, a exigência intransigente de infraestrutura básica. Os empreendimentos habitacionais necessitam estar providos, como condição para sua construção, de sistema de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, pavimentação, iluminação pública, energia elétrica, coleta de lixo e drenagem adequada das águas pluviais . A localização em área que já conte com infraestrutura instalada também é importante, não implicando em grande extensão das redes, assim como a proximidade a pontos de comércio, serviços básicos e equipamentos educacionais, de saúde, cultura e lazer, preferencialmente acessíveis por rota de pedestres. Na escala da implantação, os parâmetros devem exigir a adequação à topografia do terreno, a implementação de projeto paisagístico, a oferta de áreas coletivas de lazer. Por fim, na escala da unidade habitacional, os parâmetros devem garantir a qualidade construtiva e a funcionalidade dos projetos. O modelo de planta em “H”, generalizado desde a época do Banco Nacional de Habitação (BNH), é justificável apenas pelo aspecto da racionalidade construtiva e produção em escala, mas mostrou-se desastroso quanto à sua qualidade. Há hoje no Brasil exemplos de projetos desenvolvidos por escritórios de arquitetura que, com propostas de qualidade, inovadoras, diversificadas e nem por isso mais caras, saíram das tipologias quase que engessadas da produção habitacional: casas térreas de duas águas, conjuntos em “H” de quatro andares sem elevador, ou torres. É comum construtoras oferecerem exatamente o mesmo projeto arquitetônico na Baia ou do Rio Grande do Sul, como se não houvesse necessidade de adaptação dos projetos e dos materiais construtivos às diferenças regionais de clima. A ampliação do tamanho mínimo das unidades, também já comentado, deveria ser outra exigência desse marco legal. Enquanto no Brasil, a média das unidades habitacionais para renda média e baixa está abaixo de 50m² para uma moradia de dois quartos e sala, em Portugal, por exemplo, a legislação define que a unidade habitacional deve ter, no mínimo, 38m² básicos, acrescidos de 10m² para cada 180
pessoa que ela habite. Uma casa para 5 pessoas, portanto, equivalente às nossas unidades de dois quartos e sala, deve ter naquele país uma área mínima de 88m². - Incentivar a diversidade de soluções e a inovação tecnológica: A adoção de todos os procedimentos acima ainda não responde completamente, porém, à questão do início desta seção: há alternativas de provisão habitacional do que a produção de grandes conjuntos de massa? Se a resposta é que estes não podem, evidentemente e face ao ritmo de crescimento do país, serem menosprezados, mas sim regulamentados por uma legislação mais precisa, completa e rígida, ainda assim, deve-se destacar que outras possibilidades de ação são possíveis e desejáveis. De fato, a política habitacional mais sustentável será aquela que apresentar uma variedade de soluções tão ampla quanto é a variedade de problemas colocados. A solução da questão da moradia por meio de uma política única de produção de conjuntos verticais acaba sendo impositiva demais, em muitos casos em que outras soluções seriam mais apropriadas e menos traumáticas. Como por exemplo, a urbanização de favelas, baseada na melhoria das edificações existentes e sua consolidação como parte da cidade, integrada a ela como qualquer bairro. Há inúmeras situações, pelo país, de favelas com meio século ou mais de existência, inseridas na macha urbana, com habitações em alvenaria, às vezes até de vários andares. Essas áreas frequentemente continuam segregadas da cidade por um conjunto de obstáculos, o maior sendo o da irregularidade fundiária, mas em que o esforço para superá-los não é propriamente intenso e o elemento aglutinador é, na verdade, o preconceito social e a dificuldade de aceitação de integração dos segmentos mais pobres ao restante da sociedade. Há um sem-número de favelas que poderiam receber infraestrutura viária, linhas de ônibus, comércio de vizinhança, melhorias dos espaços públicos, de tal forma que deixassem de ser obstáculos urbanos dos quais tudo se desvia. Da mesma forma, alternativas de produção habitacional de menor porte, tocadas por pequenas construtoras, cooperativas ou associações de moradores, seja por mutirão ou por autogestão dos recursos, deveriam ser muito mais incentivadas. O Brasil tem enorme experiência acumulada nesse tipo de atividades, desde a popularização dos mutirões autogeridos na década de 1990, e poderia aproveitála melhor, por meio de políticas públicas específicas. Se é verdadeira a crítica de que essa modalidade de produção habitacional nunca terá a capacidade de alcançar a escala de uma política de massa, ainda assim suas vantagens em termos de contribuição para uma matriz urbana sustentável são inegáveis: reconstituição do tecido social por meio de experiências comunitárias, alta qualidade dos projetos arquitetônicos, pequena dimensões dos empreendimentos, etc. Por fim, não há no Brasil um avanço consistente na pesquisa tecnológica para a construção civil, setor que, em grande medida, ainda se apoia em procedimentos arcaicos e tecnologias ultrapassadas. Basta comparar com a indústria automobilística para se ter uma ideia dessa estagnação. Basicamente, apesar de exceções que não chegam a afetar a regra, a construção civil brasileira ainda se utiliza de técnicas usadas na primeira metade do século passado. Este assunto diz respeito ao papel do setor privado, mas ainda assim ele só poderá se alavancar com um importante envolvimento do setor público no sentido de incentivar e eventualmente cofinanciar tais pesquisas. b) Aspectos fundiários: Eis o cerne da questão. Políticas de provisão habitacional correspondentes à demanda só serão de fato possíveis – em especial nas regiões metropolitanas, onde justamente o déficit se concentra – se for enfrentada, politicamente, o que a urbanista Ermínia Maricato denomina o “nó da terra” . Já foi amplamente comentado o quanto a dificuldade do manejo fundiário por parte do Estado é um entrave para uma nova matriz urbana no país. As políticas de regularização fundiária, que alguns municípios iniciaram já há algum tempo, devem ser prioridade nas gestões municipais, e também devem constar da agenda para uma nova matriz urbana. No caso do Brasil, já comentamos acima as dificuldades de implementação dos instrumentos do Estatuto das Cidades, embora haja avanços relativos na 181
implementação de Planos Diretores, e mais recentemente dos Planos Locais de H abitação de Interesse Social, os PLHIS. O caminho é esse, porém ainda entrava em dois obstáculos principais: por um lado, a própria dificuldade política de se alterar, no cenário municipal, o equilíbrio de poder em um campo tão sensível quanto o da propriedade da terra. A regulamentação dos instrumentos do Estatuto da Cidade pode ser efetiva ou transformar-se facilmente em simples formalidade, e nunca ser cumprida. Por isso, certas questões não deveriam ficar a critério de regulamentações municipais, em que o jogo político local fala mais forte, mas sim fazer parte da agenda conjunta aqui proposta, que trate da nova matriz urbana. Por outro lado, muitas vezes municípios que querem regulamentar e efetivar instrumentos do Estatuto da Cidade encontram dificuldades nos procedimentos de gestão, na indisponibilidade de terras, em dificuldades financeiras para promover ações mais drásticas, como por exemplo desapropriações para fins de moradia social . Não é incomum, em cidades pequenas e médias, a imiscuição dos interesses públicos com os privados, típica do patrimonialismo, que emperra ainda mais a regulação fundiária. Terras retidas e vazias em áreas centrais, muitas vezes, são propriedade dos políticos locais, ou de grupos ou pessoas da elite econômica, ambos pouco interessados na eventual depreciação patrimonial que uma intervenção pública na estrutura fundiária poderia representar. O acompanhamento da implementação do Estatuto das Cidades deve, por tanto, ser alvo de um esforço político prioritário, em nível federal, estadual e municipal, concatenado, e como parte da agenda para um novo padrão de sustentabilidade urbana . Da mesma forma, os novos parcelamentos em áreas de expansão urbana devem ser regulamentados em uma lógica única, que atente para os altos custos ambientais do modelo de espraiamento contínuo, tendo, como já dito, suas dimensões limitadas a escalas de fato gerenciáveis. Do ponto de vista do manejo fundiário, deve ser obtida a reversão da formalização do condomínio horizontal fechado, de grande porte, como forma de parcelamento do solo. Ele segmenta o tecido urbano, transforma as cidades em sequencias de ruas muradas e sem vida, transferindo para dentro do condomínio a vitalidade urbana, como o uso da rua, a fluidez da malha urbana, a dispersão do comércio. São todos aspectos que ficam em grande medida sujeitos às legislações municipais mas que, mais uma vez, poderiam ter diretrizes e estabelecidas para todo o território nac ional. c) A regulação da produção imobiliária Argumentou-se aqui, repetidamente, que a dinâmica imobiliária da cidade formal, já consolidada, contribui para a insustentabilidade urbana tanto quanto a precariedade habitacional dos setores informais. Mostramos que, quando se trata de definir a “matriz urbana” atual, o que nos ser ve de modelo é justamente a dinâmica urbana dessas áreas, capitaneadas pelo mercado imobiliário, e o balanço não é muito positivo. Ocorre que grande parte da permissividade nas dinâmicas de produção imobiliária, que tanto impactam as cidades, se dá pela insuficiente regulação estatal. Os Planos Diretores em geral são bastante flexíveis, quando não condescendentes com a intensificação descontrolada da dinâmica de mercado . As leis de uso e ocupação do solo seguem uma lógica antiga, mas as cidades que experimentaram alternativas, também não lograram com isso controlar melhor as dinâmicas do mercado imobiliário. Por fim, recentes escândalos de corrupção trouxeram à luz um problema endêmico nas nossas cidades: o clientelismo e a troca de favores nos processos de aprovação de novas edificações. O impacto sobre o meio ambiente de tal anarquia regulatória e permissividade é imensurável. A própria legislação urbana brasileira, no que tange à ocupação do solo e ao código de obras, contribui em grande medida para a consolidação de um padrão de ocupação em lotes, com a edificação neles centrada por força da exigência de diversos recuos, que exclui possibilidades de soluções melhores do 182
ponto de vista urbanístico, como edifícios geminados, sem recuo para a rua, mas com jardins comuns nos fundos, praças internas etc. Em suma, a prerrogativa da regulação pública da produção e ocupação do espaço deve ser urgentemente retomada no Brasil, o que deveria passar pela revisão e possível homogeneização dos Códigos de Obra a partir de parâmetros básicos únicos iguais para todo o país. Ainda mais quando se observa que a liberalidade recorrente nas grandes cidades transfere-se, travestida de modelo de modernidade urbana, para as cidades pequenas e médias. d) Novas dinâmicas de gestão e governança Por fim, ainda no campo das ações do poder público, uma mudança na matriz urbana nunca poderá acontecer se, no bojo de uma agenda política para promovê-la, não forem inseridos aspectos de gestão e governança. A gestão do território deve ocorrer em níveis e escalas mais recor tadas e mais interligadas entre si, superando diferenças político-partidárias: intermunicipais, metropolitanos, regionais, etc., ainda mais porque os aspectos ambientais, como a questão hídrica, não se circunscrevem aos recortes administrativos. Existe sem dúvida uma defasagem expressiva entre as escalas federal e municipal. Enquanto aspectos de integração da agenda podem ocorrer no primeiro nível, isso não significa que tenhamos, e de fato estamos muito longe de ter, um amadurecimento homogêneo entre os municípios, ou ainda entre estados e municípios, que ficam ainda mais descolados pela ausência de instâncias intermediárias de gestão territorial. Há de se observar que isso constitui uma das dificuldades para a implementação do Programa Minha Casa Minha Vida. Há uma urgência por inovações das formas de governança, com a aproximação com o nível local e a descentralização, a necessária integração e intersetorialidade. As políticas ambientais muitas vezes se sustentam em ações locais, como por exemplo a agricultura urbana, ou métodos alternativos e localizados de saneamento, ainda incipientes e que necessitam, para transformarem-se em políticas de fato, de uma gestão aproximada e participativa, no nível comunitário. A gestão participativa, de fato, muito embora tenha avançado na preconização por audiências públicas do Estatuto da Cidade, ou ainda na formação dos diversos conselhos em todos os níveis de governo, deve ainda consolidar-se. Em muitos lugares, a simples realização de uma audiência pública já é suficiente para qualificar, juridicamente até, um “processo participativo”. Os projetos urbanos que geram grandes impactos, aliás, devem efetivamente passar por debate público e instâncias de decisão democráticas, que envolvam toda a comunidade atingida já nas fases de elaboração. Em tempos de Copa do Mundo, grandes obras de estádios e outros grandes projetos urbanos, tal recomendação se torna ainda mais premente. Ainda no âmbito das políticas públicas de gestão do território, faz parte da agenda ambiental urbana a formação de sistemas e bases de informações para cadastramento, interligados em nível federal, estadual e municipal. Permitem a melhoria da gestão com a unificação dos cadastros de todos os setores, ajudam na fiscalização e, no campo ambiental, permitem identificar situações de maior vulnerabilidade com o mapeamento de situações de risco físico e ambiental, bem como o reconhecimento de áreas de preservação permanente remanescentes e situação dos corpos d’água, e assim por diante.
B. A iniciativa privada e a sociedade civil. Se detalhamos acima as mudanças necessárias no âmbito da ação do Estado para a formação de uma agenda urbana sustentável, não podemos deixar de refletir, mesmo que rapidamente, sobre o papel dos dois outros importantes agentes da produção do espaço urbano, a saber: a iniciativa privada e a sociedade civil. a) O mercado: 183
O mercado tem parte da responsabilidade para a mudança do paradigma da nossa urbanização. Pois ao colocar quase sempre o retorno financeiro à frente de princípios básicos de boa urbanidade, força a expansão urbana para áreas sem infraestrutura, onde a terra é mais barata para ele, porém onerosa para o Estado. Além do mais, no caso do segmento econômico, há significativos fundos públicos financiando sua produção, por meio de subsídios e facilidades de crédito, que poderiam ensejar maiores exigências e restrições. A retenção sistemática de terras urbanizadas sem uso, por sua vez, ainda é prática demasiadamente recorrente de parte do mercado imobiliário, ferindo o princípio da função social da propriedade urbana e impedindo a regulação fundiária e um acesso mais democrático à terra. Os efeitos da falta de consciência da necessidade de urbanização mais cuidadosa, para o bem das gerações futuras são, como visto neste texto, diversos e bastante impactantes. Se a verticalização exacerbada, a movimentação e impermeabilização descontrolada do solo, entre outros exemplos, ocorrem também por certa permissividade na regulação do uso do solo, por outro lado, não é comum, por parte dos empreendedores, a preocupação em “fazer a cidade com responsabilidade”, contendo tais ímpetos de lucratividade. Também devem ser preocupação do mercado os aspectos relativos à cadeia de produção da habitação e do setor da construção civil, no sentido de alavancar um verdadeiro processo de inovação tecnológica: como já dito, no Brasil, grande parte da produção ainda é praticamente manufatureira, largamente baseada na disponibilidade de mão de obra contratada precariamente . A estagnação nos processos de industrialização da construção e de avanços tecnológicos do setor, em especial na elaboração de produtos e sistemas destinados à reabilitação de edifícios, as dificuldades em alcançar uma escala de produção mais significativa, com maior racionalização, porém com padrões urbanísticos que evitem as excessivas repetições e padronizações, são aspectos essenciais em que a iniciativa privada ainda deve avançar. b) A sociedade civil: Mas a dificuldade na mudança do padrão de urbanização esbarra também no fato de que a ideia da justiça socioambiental está ainda longe de ser assimilada como um parâmetro desejável de cidade, também por parte da sociedade. Se aumentam a cada dia no Brasil movimentos cidadãos em defesa do direito à cidade , em compensação a imagem de ascensão social e status ainda está associada à aquisição de imóveis moldados nos padrões do consumismo exacerbado. São símbolos de status e modernidade o grande número de garagens e, portanto, de carros, os edifícios em condomínios fechados, as cercas eletrificadas e os altos muros, as guaritas, as grandes torres, e assim por diante. Em pesquisa recente sobre o modelo urbano brasileiro, lançamos as seguintes questões, que dizem respeito à uma mudança cultural necessária, por parte da sociedade, para alavancar mudanças reais rumo à justiça socioambiental: “Como conscientizar as pessoas que condomínios fechados por muros, cercas e guaritas, mesmo que aparentem mais segurança, na verdade segmentam o tecido urbano e acabam por gerar ainda mais insegurança? Que esses mesmos muros eliminam a vitalidade das ruas e matam seu papel de espaço de convívio, transformando-as em corredores para os carros? Que áreas verdes internas aos condomínios são insuficientes e, sobretudo, muito menores e menos agradáveis do que seriam praças públicas grandes e bem mantidas? Que muitas vagas na garagem podem significar status e conforto, mas alimentam modelo urbano de deslumbramento com o automóvel, em detrimento de políticas de transporte público muito mais eficientes, seguras e sustentáveis? Que os espaços que se reservam para estacionar os carros tiram dos moradores áreas muito mais saudáveis de lazer e descanso?” Poderíamos acrescentar: como generalizar na sociedade a consciência de que o alcance de benefícios apenas para alguns, e a continuidade da manutenção, quase que ignorada pelos segmentos de mais 184
alta renda, de contingentes populacionais significativos vivendo na precariedade urbana, são bombas ambientais a retardamento que afetarão significativamente nossas cidades e comprometem de vez a justiça socioambiental? Todas essas ações podem permitir que, em médio e longo prazo, a compreensão da questão ambiental como um elemento aglutinador para a formação de uma nova matriz urbana possa levar de fato a um novo paradigma de cidade, pelo qual se supere a ideia de que o simples crescimento urbano, mesmo sem qualidade, é sinônimo de progresso. Pode-se esperar, sobretudo, frear o processo de transferência do modelo urbanístico vigente nas grandes cidades para as de porte médio, que atualmente reproduzem indiscriminadamente a matriz da insustentabilidade urbana. Em outras palavras, o Brasil precisa, urgentemente, reinventar seu modelo urbano, em padrões que levem à democratização do acesso à cidade e à boa arquitetura. Ou seja, em padrões que promovam a sustentabilidade urbana, ou seja, a justiça socioambiental.
PARTE 3: Novas perspectivas para as cidades com a Rio+20? A conferência Rio+20, cúpula mundial sobre o meio ambiente realizada na cidade do Rio de Janeiro duas décadas depois da Eco92, representou uma boa possibilidade de se avaliar em que medida as questões levantadas neste texto estão avançando rumo a uma nova consciência sobre o papel das cidades na discussão ambiental e as possíveis ações para enfrentar os impactos da (má) urbanização mundial. A questão não é simples. Vimos até aqui que o desafio está em construir uma agenda para a justiça ambiental que coloque efetivamente a cidade no centro da discussão ambiental, face ao ritmo acelerado de urbanização que o planeta vive e o cenário de generalização da precariedade urbana que se apresenta. Além disso, mostrou-se que tal agenda tem caráter essencialmente político, ou seja, deve ser reestruturadora não só das formas de governança, mas também das correlações de forças políticas que sistematicamente relegam a questão da desigualdade social a um segundo plano. A questão ambiental, portanto, não pode mais ser tratada como um conjunto de iniciativas, do poder público e dos atores sociais, mais ou menos técnicas, que somadas teriam o potencial de amenizar ou quiçá reverter o processo de degradação ambiental em curso. Ela deve ser o motor de uma transformação muito mais profunda do próprio modelo econômico e da matriz urbana atualmente em voga mundo afora, no bojo das sociedades de consumo de massa. Uma tarefa, portanto, bastante árdua. Na conferência Rio+20 a questão da sustentabilidade urbana foi reconhecida como problema, e incorporada à agenda da política ambiental, mesmo que de forma um tanto periférica e não com o papel central e estruturador que preconizamos, mas isso sem dúvida já é ao menos um começo. Começa a generalizar-se a constatação de que a matriz urbana mundial é ambientalmente desastrosa e dramaticamente desigual, ensejando reflexão sobre ações possíveis para sua superação. No documento oficial “O futuro que queremos” , no tema específico do “desenvolvimento sustentável” (Tema 19), há menção à necessidade premente de “eliminar as diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento” , em função de declarada preocupação com o fato de que “uma a cada cinco pessoas do planeta, ou seja mais de 1 bilhão de pessoas, continue vivendo na extrema pobreza. (...) Reconhecemos que, considerando que para 205º se projeta uma população mundial superior a 9 bilhões de pessoas e que se estima que 2/3 dessa população viverá em cidades, devemos intensificar os esforços para alcançar o desenvolvimento sustentável, e em particular a erradicação da pobreza, da fome e das doenças evitáveis”. Ainda assim, há de se constatar que a questão urbana, mesmo que pareça tão assimilada na citação acima, pouco aparece no conjunto do documento. E, sobretudo, está longe de aparecer como elemento estrutural que permeie todas as questões ambientais (já que até mesmo a dimensão rural está cada vez mais atrelada à economia urbana), aparecendo ainda como um tema específico, entre outros. A 185
mudança do tratamento da questão urbana é elemento imprescindível para alcançar as transformações que aparentemente começam a ser desejadas. Evidentemente, dentre as abordagens segmentadas da questão, alguns temas, felizmente, já têm aparente consenso, mesmo que isto não signifique, nem de longe, que ações mais significativas sejam iniciadas rapidamente. A necessidade de ampliação dos serviços de água e saneamento, de adoção de modalidades de transporte sustentáveis que garantam mobilidade urbana, de redução os riscos de desastres, são temáticas “urbanas” que aparecem no “Marco para a ação e seguimento” do documento oficial, no quesito das “esferas temáticas e questões intersetoriais”, demonstrando que, mais uma vez, a questão da sustentabilidade urbana não se constitui como uma agenda centralizadora, mas é tratada pelo viés das ações setoriais interligadas. O tema urbano, então, aparece como mais uma das questões setoriais a se pensar, sob o título de “Cidades e assentamentos humanos sustentáveis”. Sobre ela, se reconhece a necessidade de promover o planejamento “integrado” de assentamentos humanos “sustentáveis”, o que envolve, segundo o documento, ações locais de conscientização da população, de aumento da participação – “inclusive dos pobres” – nas tomadas de decisões . Os países assinantes se comprometem a “promover políticas de desenvolvimento sustentável que apoiem a prestação de serviços sociais e de moradia includentes, condições de vida seguras e saudáveis para todos (...), transporte e energia acessíveis e sustentáveis, fomento à proteção e reestabelecimento de espaços urbanos verdes e seguros, água potável e saneamento, boa qualidade do ar, geração de empregos decentes, e melhoria do planejamento urbano dos bairros marginais”. As intenções estão presentes. O texto segue com outras tantas, sempre com a mesma tônica de erradicação da pobreza, acesso aos serviços básicos, o que é sem dúvida um avanço fundamental, mas já haviam sido reconhecidos como tal desde a Rio92. Obviamente, resta saber como ultrapassar o campo das intenções, no que o documento é definitivamente pouco efetivo, e é até mesmo um tanto otimista com alguma suposta capacidade técnica milagrosa do “planejamento urbano” em poder ser o instrumento das transformações: “reconhecemos que as cidades que tenham sido bem planejadas (grifo dos autores) e desenvolvidas, inclusive aplicando enfoques integrados do planejamento e da gestão, podem fomentar sociedades sustentáveis desde os pontos de vista econômico, social e ambiental” . Mais à frente, o documento volta a citar a aplicação de “políticas de planejamento e desenho urbano sustentáveis para responder eficazmente ao crescimento da população nas próximas décadas”. Excetuado esse item específico sobre a questão das cidades, além das referências setoriais, as menções ao urbano param por aí, e não aparecem mais, exceto em um ou outro ponto, no documento, em assuntos nem sempre associados à sustentabilidade urbana, mas que sabemos, como dito anteriormente neste texto, que são elementos estruturais dessa agenda: consumo e produção sustentáveis, preservação de bosques e áreas verdes, resíduos urbanos e de produtos químicos, saúde pública, etc. Nos itens sobre os meios de execução das políticas ambientais, a questão das cidades n ão aparece de forma específica. Mas os trechos acima citados mostram que, se por um lado é importante a incorporação da questão urbana à agenda ambiental, com enfoque claro às relações desta com a desigualdade social, por outro lado é no campo das propostas mais efetivas de ação, justamente o aspecto mais complexo a enfrentar, que a fragilidade do documento se evidencia. A crença um pouco ingênua no “planejamento urbano” mostra uma visão tecnicista da questão, que se apoia na ideia de que políticas tecnicamente “bem realizadas” seriam capazes de resolver, a longo prazo, o problema da insustentabilidade urbana. Ora, viu-se anteriormente neste texto como, no caso emblemático da (não) aplicação do Estatuto da Cidade no Brasil, leis e instrumentos de gestão por si só não fazem nada sem uma transformação estrutural – e política – mais profunda.
186
O fenômeno da crise ambiental urbana ainda é analisado muito mais pela ótica de seus efeitos do que das suas causas. As problemáticas apontadas no documento partem de uma já inevitável constatação da injustiça socioespacial, e da listagem dos problemas mais visíveis: enchentes, trânsito, poluição, desigualdade habitacional, segregação espacial, etc. Porém, pouco se avança na constatação de que todos esses problemas deveriam ser vistos sob um único prisma, o da agenda ambiental urbana, e mais ainda, que eles dizem invariavelmente respeito a uma questão mais profunda, que não poderá ser resolvida apenas com a aplicação de técnicas sustentáveis ou de uma maior participação nas decisões de políticas públicas: a da inviabilidade ambiental do atual sistema de consumo de massa e da relação de forças econômicas que gera cada vez mais desigualdade no mundo. Assim, as soluções sugeridas nos textos oficiais tendem invariavelmente a certa setorialização e segmentação da problemática urbana, e a uma crença um pouco superficial nos poderes de transformação do “planejamento urbano”, sem que este seja, de fato, melhor discutido e claramente definido. “Cidades bem planejadas” é um eufemismo pouco preciso, que serve para tudo, e pode esconder diversas visões: bem planejada na ótica de quem? De que interesses? Com quais objetivos? Sabemos que as respostas a estas perguntas são infindáveis e podem ser absolutamente antagônicas. Talvez seja por esta razão que a participação dos especialistas no Painel Diálogos Cidades Sustentáveis e Inovação, proposto pelo Governo Brasileiro na Rio+20 , tenha se dividido com certa clareza em dois grupos: aqueles que tendem a propor soluções de caráter mais técnico, que seriam capazes de “corrigir” os rumos da urbanização dando-lhe uma roupagem “sustentável”, e aqueles com uma postura mais crítica, que tendem a apontar elementos estruturais do sistema econômico vigente como a causa central da problemática ambiental urbana. Antes de comentar as falas dos convidados, vale relembrar um pouco da própria dinâmica do evento Diálogos para o Desenvolvimento Sustentável, realizado no dia 18 de junho, no R iocentro. Ele foi proposto pelo governo brasileiro e recebeu suporte e apoio das Nações Unidas, com o objetivo de promover a participação de representantes da sociedade civil por meio do debate. Os Diálogos se organizaram em torno de dez temas , dentre os quais o de “Cidades sustentáveis e inovação”, supostamente voltado para a problemática urbana. A divisão dos temas já mostra o quanto uma agenda ambiental urbana única inexiste, e o quanto a setorialização da questão ambiental ainda impera. Dentre os demais temas, encontramos “Desemprego, trabalho decente e migrações”, “Energia”, “Água”, ou ainda “Economia do desenvolvimento sustentável”, todos aspectos essenciais à discussão urbana, sendo as cidades cada vez mais as protagonistas do consumo, da geração de empregos, do consumo de água, de energia, etc. Não houve um momento em que esses temas, que contém especificidades, pudessem ser debatidos em conjunto sendo a cidade o elemento motor da discussão. Para cada tema haviam sido anteriormente selecionadas 10 recomendações , feitas e escolhidas em uma plataforma on line por pessoas com interesses diversos, militantes de organizações da sociedade civil e especialistas nos temas em debate, que promoveram também a seleção. Durante a Conferência, cada tema foi palco de painéis compostos por 10 especialistas convidados e público. Pela internet, uma das recomendações foi indicada como a mais votada, e não podia ser alterada pela plenária. Além dessa, palestrantes e público presente escolheram, por sua vez, mais uma recomendação cada. Essas três recomendações foram então endereçadas aos governantes de países durante as rodadas do segmento de alto nível da Conferencia Rio+20. Apesar de contribuir para o debate e envolver o público, já se sabia desde o inicio que tais recomendações não seriam incorporadas ao documento final da Conferência, sendo esta uma de suas principais limitações. A falta de clareza sobre o engajamento e representatividade dos participantes limitou a legitimidade e representatividades dos Diálogos, diminuindo o peso político das posições da sociedade civil, ainda que essas sejam muitas vezes divergentes entre si. O resultado é que os conflitos e multiplicidade de posições que poderiam enriquecer as discussões ficaram neutralizadas sob a elaboração de recomendações demasiadamente genéricas . Mais uma vez, a dinâmica acabou favorecendo uma visão 187
segmentada da questão ambiental urbana, fato observado com precisão por Mitullah , em seu relatório síntese sobre o debate ocorrido na plataforma on-line. Para ele, embora reconhecendo a boa qualidade das contribuições dos internautas, “somente poucos participantes estavam aptos a se envolver para além dos tópicos específicos de seu interesse e expertise”, reforçando visões setoriais, específicas ou “enviesadas” do tema sustentabilidade e inovação que, segundo ele, e como insistimos neste texto, “requerem uma compreensão holística das dinâmicas das cidades” e são interdependentes. Assim, a recomendação apontada na votação das pessoas que participaram da plataforma on-line foi a de “Promover o uso de dejetos como fonte de energia renovável em ambientes urbanos”, ou seja, uma solução técnica relativa à questão das energias renováveis, um aspecto restrito dentro da discussão do desenvolvimento urbano sustentável, ainda que importante. Mas voltemos às posições avançadas pelos palestrantes do painel sobre as cidades. Como sempre, as questões já assimiladas, as consequências da falta de justiça ambiental urbana foram bastante lembradas: critica ao modelo do automóvel individual e necessidade de revisão do padrão de mobilidade urbana, a desigualdade social e espacial, as diferenças nas políticas públicas nas decisões sobre a condição de vida nas cidades, o uso não planejado dos recursos naturais, a necessidade de desenvolvimento de tecnologias para aumento de eficiência, reuso, diminuição de desperdício, etc. Muitos palestrantes alertaram que pouco se avançou na solução desses problemas. Assim, uma questão central do debate foi qual prioridade política que deve ser dada aos investimentos e projetos, sem que se avançasse na discussão sobre os conflitos e limitações que se colocam face à possibilidade de redefinir profundamente o próprio padrão atual de acumulação. Como já dito, uma clara divisão surgiu. Um primeiro grupo, composto principalmente pelos arquitetos que participaram do painel, ressaltou o caráter prático e o potencial que poderiam ter soluções de planejamento e projeto urbano associadas a soluções tecnológicas para a construção de uma “cidade sustentável”. Não foi discutido por esse grupo, em que medida tais projetos seriam capazes de alterar as lógicas estruturais do sistema econômico, da matriz urbana, das prioridades políticas, ou ainda se estariam ou não articulados a demandas e reivindicações da população mais pobre, geralmente marginalizada das decisões políticas sobre sua própria condição de vida. Quando muito, avançou-se na idéia que o projeto urbano pode representar uma síntese organizadora da intervenção na cidade, a partir da discussão e mobilização de moradores em debate com o poder público, possibilitada somente com o acesso à informação por parte da população, como defendeu Alejandro Aravena (Chile). Nesse sentido, a “sustentabilidade” é fruto de uma melhor coordenação (ou governança), e do uso do bom senso. Tal visão, se bem intencionada, parece entretanto esvaziar-se da questão política, ignorando o quanto esta pode dar ao termo “bom senso” formatações tão variadas quanto o são os interesses em jogo no território urbano. O segundo grupo de palestrantes, composto de personalidades mais engajadas na militância civil, expressou uma visão critica e mais estrutural sobre a produção desigual da sociedade, o que gera situações assimétricas de acesso à terra e aos serviços urbanos, ao “direito à cidade” e às decisões políticas, tornando a vida nas cidades insustentável. Enrique Ortiz, do México, por exemplo, enfatizou sua decepção com a votação das recomendações, pois para ele apenas tecnologia e dinheiro não resolverão os problemas reais, que são mais profundos e complexos. Para ele, é a lógica da mercadoria que orienta a produção dos espaços da cidade, e as questões políticas e sociais dela decorrentes que determinam a degradação dos recursos naturais. O brasileiro Oded Grajew ressaltou que o desenvolvimento sustentável requer mudança no modelo de desenvolvimento, e o senegalês Khalifa Sall salientou que a sustentabilidade não é possível “num mundo onde pobres se tornam mais pobres e ricos se tornam mais ricos”. No contexto dos países norteamericanos, o canadense David Cadman apelou para uma vida de paz e não de guerra, defendendo que os investimentos em armas e guerras cessem e sejam redirecionados para a promoção da justiça e da equidade social. Para ele, o lixo deve ser um ônus para quem o produz. “Nós somos o que nós consumimos”, declarou, questionando o modelo do consumo de massa exacerbado. 188
Se tais observações podem parecer mais genéricas, por não serem técnicas e setoriais, elas são, entretanto, mais políticas e mais radicais, e portanto mais próximas de um entendimento necessariamente mais radical profundo da urgência de transformações estruturais nas lógicas de funcionamento da sociedade e de produção das cidades. A adoção de uma “agenda da justiça socioambiental urbana”, ainda mais na escala mundial, deve certamente guiar-se mais por essa postura transformadora, capaz de provocar mudanças nos diferentes aspectos que destacamos anteriormente neste texto (a questão da propriedade da terra, a correlação de forças na disputa pelo espaço urbano, o controle sobre o uso do solo, a implementação de governança participativa e descentralizada, etc.). A guisa de conclusão, se parece consolidar-se a ideia que os conflitos e problemas ambientais urbanos são gerados pelas desigualdades sociais, econômicas e culturais, os pontos eleitos para serem debatidos, embora obviamente bem-intencionados, ainda são vagos e generalistas, e sobretudo reproduzem o automatismo de enxergar a questão ambiental urbana como uma somatória de problemáticas setoriais, sem entende-las como parte de um mesmo problema estrutural. As sugestões mais propositivas ainda são dispersas, misturam propostas específicas com outras muito gerais, e são sempre voltadas à conscientização da problemática ambiental muito mais como uma questão passível de solução sobretudo pelas atitudes individuais e comunitárias, pelo diálogo mais intenso entre sociedade, mercado e estado em torno da questão ambiental. Aspecto sem dúvida necessário e fundamental, mas que por si só não aponta as causas estruturais que inviabilizam a matriz urbana que predomina hoje no mundo. *
*
*
Comentários finais A verdade mais dura de admitir, no âmbito da discussão apresentada neste texto, é a de que a “sustentabilidade”, ou seja, o desenvolvimento humano em concomitância com a preservação da natureza é incompatível com o sistema de produção e consumo capitalista atual. Assim, uma verdadeira discussão transformadora será lançada quando as sociedades contemporâneas encontrarem meios alternativos e menos destrutivos para sobreviver harmonicamente no planeta. Ainda assim, dentro do sistema atualmente dominante, a extrema desigualdade nas condições econômicas certamente exacerba ainda mais o nível de depredação dos recursos da natureza. Alcançar níveis de desenvolvimento mais justos socialmente é portanto um desafio imediato que pode até servir de alavanca para um questionamento de todo nosso sistema. No âmbito das cidades, os impactos da desigualdade social sobre a natureza ganham toda visibilidade e clareza. Por essa razão, é urgente uma mudança na compreensão do que seja a questão ambiental urbana, entendendo-a antes de tudo como uma questão de justiça social, que é estruturadora de todas as dinâmicas de produção e ocupação do espaço. Enfrentá-la significa promover uma profunda mudança na matriz da urbanização em curso, mais ainda na que acontece aceleradamente nos países tidos como “emergentes”. Para isso, deve-se conseguir estabelecer a agenda da justiça socioambiental como principal eixo das políticas públicas, em todos os setores que afetem a ocupação e o uso do território. Uma agenda que vise antes de tudo políticas que permitam o atendimento básico a todos os indivíduos e à suas necessidades, compreendendo que o efeito “ambiental” desse ato terá muitos mais resultados do que medidas técnicas especificas supostamente voltadas à sustentabilidade urbana. Tal perspectiva ainda está longínqua, deve-se dizer, pois remete a um profundo questionamento do atual modelo econômico, dos atuais procedimentos de gestão e governança e, sobretudo, do preço a pagar para tais transformações.
189
Não existem “investimentos em sustentabilidade”. A noção de justiça socioambiental pressupõe que é mais eficaz para a salvaguarda do meio ambiente falar em investimentos em um conjunto de políticas públicas diversas, intersetoriais e voltadas à pessoa humana – prioritariamente os mais pobres – que, juntas, formariam a agenda da justiça socioambiental.
190
Bibliografia: ABREU, M. de A.. “Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro” in Espaços e Debates: revista de estudos urbanos e regionais. Nº 37. São Paulo, NERU, 1994. ALVAREZ, I.A.P. “A reprodução da metrópole: o projeto Eixo Tamanduatehy”. Tese de Doutorado, FFLCHUSP, Departamento de Geografia, São Paulo, 2009. AIBINDER, R. “O desafio do novo século: a gestão sustentável da paisagem carioca”. In revista Cadernos de Urbanismo: ano 1, n.3. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Urbanismo, 2000. ARANTES, O.B. “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas”. In ARANTES, O.B., MARICATO, E. e VAINER, C. O Pensamento Único das Cidades: desmanchando consensos, Petrópolis: Ed. Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 2000, p.11-74. ARANTES, O.B., MARICATO, E. e VAINER, C. “O Pensamento Único das Cidades: desmanchando consensos”, Petrópolis, Ed. Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 2000, p.121-192. AZEVEDO NETTO, D.T. “Depoimento à Cadernos de Urbanismo: ‘Operações Urbanas’: Como você avalia a realização das articulações público-privadas no Brasil?”. BARONE, A.C. “Prolongamento da Faria Lima: uma análise da proposta de intervenção e possíveis conquistas”. TGI-FAUUSP, 1994. BONDUKI, N. “Origens da Habitação Social no Brasil”. Estação Liberdade / FAPESP. São Paulo, 1998. BORJA, J. e CASTELLS, M. “Planes Estratégicos y Proyectos Metropolitanos”. In Cadernos IPPUR, Ano XI, nº 1 e 2, UFRJ, Rio de Janeiro, 1997, p.207-231. _________ e _____________ “Local & global: management of cities in the information age”. Londres: UNCHS (Habitat/ONU) e Earthscan Publications, 1997. _________ “Las ciudades en la globalización: Planificación Estratégica y Proyecto de la Ciudad”, in Ciclo de Conferências: La planificación Estratégica, un instrumento integral e integrador de desarollo, Municipalidad de Bahía Blanca, Dirección de Planificación estratégica, Argentina, dezembro de 1999. BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo, Cia das Letras, 1992. BUENO, L.M. de M. “Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização”, Tese de Doutoramento, São Paulo: FAUUSP, 2000. CASTANHEIRA, E.P. e PALHA, R.G. da P. “Obrigações e contrapartidas urbanísticas: análise das pequenas operações no Rio de Janeiro”. In revista Cadernos de Urbanismo, ano 1, n.3. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Urbanismo, 2000. CASTELLS, M. e BORJA, J. “As cidades como atores políticos”, in Novos Estudos CEBRAP, n.º 45, julho de 1996, p.152-166. ____________ “Sobreviver na globalização”, entrevista à Revista Urbs, São Paulo: Associação Viva o Centro, setembro / outubro de 1999. 191
CASTRO, M.C.P. de e SILVA, H.M.B. “A legislação, o mercado e o acesso à habitação em São Paulo”. São Paulo, Labhab/FAUUSP, 1997. Centro Josué de Castro de estudos e pesquisas, ETAPAS e FASE. “PREZEIS: O Olhar dos Moradores”. Recife, junho de 2000. DAMASIO, C. P. “Projetos especiais e operações concertadas”. In Cadernos de Urbanismo, ano 1, n.3. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Urbanismo, 2000. DEÁK, C. “Localização e espaço: valor de uso e valor” Capítulo 4 de Rent theory and the price of urban land/ Spatial organization in a capitalist economy, PhD Thesis, Cambridge University, 1985, disponível em http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/3publ/85r-thry/4loc-spac/Cap4-loc-esp. pdf ou in DEÁK, C. “À busca das categorias da produção do espaço”, Tese de Livre-docência, FAUUSP, Capítulo 5, 2001. ________, “Uma interpretação histórica da teoria de renda” Revista de Desenvolvimento Urbano e Regional 2(1):41-57, 1987; Sinopses 18:26-39, 1992, disponível http://www.usp.br/fau/docentes/ depprojeto/c_deak/CD/3publ/87tr/index.html ________, “Acumulação entravada no Brasil/ E a crise dos anos 80” Espaço & Debates 32:32-46, 1991. ________, “A busca das categorias da produção do espaço”, Tese de Livre-Docência, FAUUSP,São Paulo, 2001 DEL RIO, V. “Introdução ao desenho urbano”. Pini, São Paulo, 1990. DENALDI, R. “Políticas de Urbanização de Favelas: evolução e impasses”, Tese de Doutorado, São Paulo: FAUUSP, 2002. FERNANDES, F. “Sociedade de classes e subdesenvolvimento”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. ______________, “Universidade e desenvolvimento”. In IANNI, O. Florestan Fernandes. São Paulo, Ática, 1991. FERREIRA J.S.W. e FIX, M. “A urbanização e o falso milagre do CEPAC”, in Folha de S.Paulo, “Tendências e Debates”, 17 de abril de 2000. ________________, “Governança, um novo paradigma de gestão?Notas de uma palestra”. In Revista Pós – FAUUSP. nº 9 – 2001, no prelo. ________________, e FIX, M. A urbanização e o falso milagre do CEPAC. In Folha de S.Paulo, “Tendências e Debates”, terça 17 de abril de 2001. ________________, e MARICATO, E.; “Operação Urbana Consorciada: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade?”, in OSÓRIO Letícia Marques (org.), “Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as Cidades Brasileiras”, Porto Alegre/São Paulo: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. ________________, “Alcances e limitações dos Instrumentos Urbanísticos na construção de cidades democráticas e socialmente justas”. Texto de apoio às discussões da Mesa 1 - “Plano Diretor e Instrumentos Tributários e de Indução do Desenvolvimento”, Vª Conferência das Cidades - Câmara Federal/CDUI e Ministério das Cidades, dezembro de 2003 192
________________, e TSUKUMO, I.T.L. “A Questão Habitacional em Santo André: natureza do problema e avanços a partir da década de 1990”. LabHab FAUUSP. São Paulo. 2005. ________________, “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil, Anais do Simpósio ‘Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”’, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005. ________________, “O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano”, São Paulo: Vozes, 2007. ________________, e MOTISUKE, D. “A efetividade da implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial, Capítulo de livro, in Laura Machado de Mello Bueno e Renato Cymbalista (orgs). Planos diretores municipais: novos conceitos de planejamento”, São Paulo: Annablume, 2007, p.33-58. FIPE. “Relatório com os pareceres técnicos relativos ao EIA/RIMA da Operação Urbana Faria Lima”, FIPE/ Secretaria do Verde e do Meio Ambiente do Município de São Paulo, 1994. FISETTE, J. “ ‘Mythodologie’ de l´obstacle foncier” Cahiers de Géographie du Québec, Vo.28 nº75, dezembro, 1984. FIX, M. “A ‘fórmula mágica’ da ‘parceria’: operações urbanas em São Paulo”. In Cadernos de Urbanismo, ano 1, n º3, 2000, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Urbanismo, p.23-27. ______, “Parceiros da Exclusão: duas histórias da construção de uma nova cidade em São Paulo”. São Paulo, Editora Boitempo, 2001. FRÚGOLI JR., H. “Centralidade em São Paulo: trajetos, conflitos e negociações na metrópole”. São Paulo:Cortez/Fapesp, 2000. FURTADO, C. “Formação Econômica do Brasil”. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1995. FURTADO, F. “Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América Latina: debilidade na implementação, ambiguidades na interpretação”. Tese de Doutorado, São Paulo, FAUUSP, 1999. HARVEY, D. “The Limits to capital”, Basil Blackwell, Oxford, 1982. HOLANDA, S.B. “Raízes do Brasil”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. JOSÉ, B.K. “Políticas culturais e negócios urbanos - a instrumentalização da cultura na revitalização do centro”. São Paulo: Annablume, 2007. KOWARICK. “A espoliação urbana”, São Paulo: Paz e Terra, 1993. LABHAB / FAUUSP – “Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos. École Nationale des Ponts et Chaussees. Pact Arim Internacional. Documento do Curso de Programas de Reabilitação Urbana”. Textos para o curso. São Paulo. Novembro 2000 ________________, “Perímetros de Reabilitação Integrada do Habitat / Programa Morar no Centro – Relatório Final / PRIH Glicério (ZEIS C027 e C028) / PRIH Brás (ZEIS L010)”. São Paulo. 2004. LAGO, L.C. “Os Instrumentos da Reforma Urbana e o Ideal de Cidadania: as contradições em curso”. IPPUR. ENA – ANPUR. Salvador, 2005. 193
MARICATO, E. “Metrópole na periferia do capitalismo”, São Paulo: Hucitec,1996. ____________, “Habitação e Cidade”, São Paulo: Atual Editora, 1997. ____________, “Planejamento urbano no Brasil: As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias”. In MARICATO, E. Contradições e Avanços do Habitat II. In SOUZA, Angela G. (Org.) “Habitar Contemporâneo”, Salvador: FAUUFBA, 1997, p. 21-39. ____________, “Planejamento urbano no Brasil: As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias”. In ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. O Pensamento Único das Cidades: desmanchando consensos, Petrópolis, Ed. Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 2000. ____________, “Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana”. Editora Vozes. São Paulo, 2001. MIRANDA, L. “O PREZEIS em Recife: 15 anos da construção de uma política habitacional de interesse social no município”. Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal. FINEP. Recife, 2002. __________ e MORAES, D. “O Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (PREZEIS) do Recife: democratização da gestão e planejamento participativo”. Recife, 2004. MOTISUKI, D. “Reabilitação de áreas centrais: antagonismos e ambigüidades do programa paulistano Ação Centro”, Dissertação de Mestrado, São Paulo: FAUUSP, 2008. MOURAD, L.N. “Democratização do Acesso à Terra Urbana em Diadema”. Dissertação de Mestrado. PUCCAMP, Campinas, 2000. MURICY, C. Depoimento a Cadernos de Urbanismo: “Operações Urbanas”: Como você avalia a realização das articulações público-privadas no Brasil?, ano 1, n.3. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Urbanismo, 2000. NOBRE, E.C. “Reestruturação econômica e território: expansão recente do terciário na marginal do Rio Pinheiros”. Tese de Doutorado. São Paulo:FAUUSP, Agosto de 2000. OLIVEIRA, F. de. “A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo, 2003. _____________, “Acumulação monopolista, estado e urbanização: a nova qualidade do conflito de classes” – in Contradições urbanas e movimentos sociais. São Paulo:CEDEC/Paz e Terra, 1977, p.65-76. _____________, “O Estado e o urbano no Brasil”. Revista Espaço & Debates, n.6,1982. _____________, “Crítica à razão dualista, o ornitorrinco”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. _____________, “Hegemonia às avessas”. In: Revista Piauí, n. 4. Rio de Janeiro-São Paulo: Ed. Alvinegra, jan. 2007 (disponível em http://www.revistapiaui.com.br/edicao_4/artigo_295/ hegemonia_as_avessas. aspx, acessado em 10/10/2009). _____________, “O avesso do avesso”, in Oliveira, Braga e Risek. “Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira”, São Paulo: Boitempo, 2010. _____________, “Discutindo a operação urbana a partir do Rio de Janeiro: o caso central de Madureira”. In Cadernos de Urbanismo, ano 1, n º 3, Secretaria Municipal de Urbanismo, Rio de Janeiro, 2001.
194
PINON, P. “Atlas du Paris Haussmannien: la ville en heritage du Second Empire à nos jours”. Paris, Parigramme, 2002. POCHMANN, M. “Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira”, São Paulo: Boitempo Editorial, 2012. Prefeitura Municipal de Porto Alegre. 2005. Site oficial: http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja. PMRJ. Cadernos de Urbanismo: “Operações Urbanas”, ano 1, n º 3, Secretaria Municipal de Urbanismo, Rio de Janeiro, 2001. PMSP. “Plano Diretor do Município de são Paulo 1985-2000”, São Paulo, 1985. _____, “Cartilha da área central: operação urbana centro”. São Paulo, PMSP/EMURB, 1997. _____, “Operação Urbana Faria Lima”, São Paulo, PMSP/Sempla, 2001. SAMPAIO Jr., P. de A. “Entre a nação e a barbárie” , Petrópolis: Vozes, 1999. SANDRONI, P. “Dicionário de economia do século XXI”, Record, São Paulo, 2005. SCHWARZ, R. “Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis”. São Paulo, Duas Cidades, 1990. SINGER, P. “O uso do solo na economia capitalista”, 1982 in MARICATO, E. (org, 1982). “A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial, Alfa-Omega, São Paulo. SMOLKA, M. e FURTADO, F. “Argumentos para a reabilitação do IPTU e do ITBI como instrumento de intervenção urbana (progressista)”, Revista Espaço e Debates, Ano XVI, n. 39, 1996. TETRAPLAN. “Relatório de Impacto Ambiental – RIMA: Operação Urbana Faria Lima”. São Paulo, 1994. TOPALOV, C., “Fazer a história da pesquisa urbana: a experiência francesa desde 1965” In Espaço & Debates, n.23, 1988. ___________, “De la question sociale aux problèmes urbains: reformateurs et travailleurs à Londres, PARIS ET New Yor au début du XXe siècle”, trabalho apresentado na conferência Reestruturação Urbana: tendências e desafios, ISA. Rio de Janeiro, 1988, mímeo. Citado em Queiroz Ribeiro, Luiz César & Cardoso, Adauto Luiz. “Planejamento Urbano no Brasil: paradigmas e experiências”. In Espaços e Debates: revista de estudos urbanos e regionais. Nº 37. São Paulo, NERU, 1994. TSUKUMO, I.T.L., “Produção de Habitações em Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS): o caso do município de Diadema – SP”. TFG – Trabalho Final de Graduação. FAUUSP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. São Paulo, 2002. VAINER, C. “Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico”. In ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. “O Pensamento Único das Cidades: desmanchando consensos”, Petrópolis: Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 2000a, p.75-104. _________, “Os liberais também fazem planejamento urbano?”. In ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. “O Pensamento Único das Cidades: desmanchando consensos”, Petrópolis: Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 2000b, p.105-120.
195
VETTER, D. & MASSENA, R. “Quem se apropria dos benefícios líquidos dos investimentos do Estado em infra-estrutura? – Uma teoria da causação circular”,1981 in L. A. Machado da Silva (org.), Solo urbano – Tópicos sobre o uso da terra, Jorge Zahar, Rio de Janeiro. VILLAÇA, F. “A terra como capital (ou a Terra-localização)” Espaço e Debates n.16,1985 ou In: Villaça F., Reflexões sobre as cidades brasileiras Studio Nobel, São Paulo, 2012. __________, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”. In DEAK, C. e SCHIFFER, S. “O processo de urbanização no Brasil”. São Paulo, Edusp/Fupam, 1999. __________, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil” In DEÁK C. e SCHIFFER, S; O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp/Fupam, 1999, p.169-244. __________, “Espaço intra-urbano no Brasil”, São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/LILP, 2001. __________, “As ilusões do Plano Diretor”. Disponível apenas on-line em www.flaviovillaca.arq.br/ livros01.html, São Paulo, 2005.
196