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UMA HISTORIA EM DEFESA DA VERDADE
Alíster McGrath PRE FÁC IO D E R lC K WAR RE N
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UMA HISTORIA EM DEFESA DA VERDADE
heresia Alister McGrath
Digitalizado por: jolosa
© 2009 b v Al ist er Mc G rath Published by arrangem ent wit h Harper One, a division of Harper Collins Publishers. Portuguese edition © 2014 by Editora Hagnos Ltda Ali rights reserved. Tradução José Carlos Siqueira Revisão Simone Granconalo Jo semar de So uza Pin to Capa M aquin aria Studio Diagramação Fabrkio Galego 1" edição - Jun ho de 2014 Editor Juan Carlos M a rtin ez Coordenador de produção M aur o W. Terr cn nii
Todo? os direitos desta edição reservados para: Editora Hagnos Av. jacinto Túlio, 27 04815-160’- São Paulo - SP -Tcl. (11) 5668-5668
[email protected] - www.hagnos.com.br
Impressão e acabamento Imprensa a'a Fé
Da dos Internacionai s de Catalogação na Publica ção (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) M cG rath, Ali ste r He resia em defesa da fé / Alister M cG rat h ; [tradução José Carlos Siqueir a]. — São Paulo : Hagnos, 2014. Titulo srcinal: Hcresv : a historv of defending the truth. Bibliografia. ISBN 978-85-7742- 118-3 1. Apologctica 2. Heresias cristãs I. Título. 13-01944
C D D -273 índice s para catálogo sist emático: 1. Heresias: História da Igreja: Cristianismo 273 2. Heresiologia ; Cristianism o 273
Sumário Prefacia.....................................................................5 Introdução N osso caso de am or com a heresia ................ 7 Parte I 0 que é her esia ? ..................................................... 23 1 - A fé, os cr edos e o eva nge lho c ri s tã o ...........25 2 - As ori gen s da i de ia de h e re s ia
................. 45
Parte II As raí zes da he res ia .............................................. 55 3 - Diversi dade: o pano de fundo da heresia primitiva ...............................................57 4 - A formação ini ci al da h e re sia ................. 79 5 - Existe um a “essê nci a” da he resia? ............ 105 Parte III As heresias clássicas do cristianismo ............. 127 6 - As prim eiras heresias cláss icas: ebionismo, docetismo, valentianismo 129
7 - As he resi as clássicas tardia s: arianismo, donatismo, pelagianismo Parte IV O impacto duradouro da heresia
171
.................... 215
8 - M otivações cul turai s e intelectuais da heresia .............................. 217 9 - O rtodox ia, heresi a e poder . ........................ 243 10 - A heresia e a vi são islâ m ic a do cri st ia n is m o ...............................2 75 Conclusão O fu tu ro da h e re sia ................................................ 28 3 índice rcmissivo básico.........................................289
Prefácio \
o séc ulo X V III, o filós ofo, au tor e es\í tadista irlandês E dm un d Burke disse m uito bem : “Aq ueles que ignoram a hist ória est ão destinados a repeti-la”. E por isso que este livro é tão imprescindível. Escrita por outro grande fi lós ofo , autor e t eólogo irl andês — o meu amigo Alist er M cG rath — , es ta obr a m ost ra de f or ma brilhan te por que não podem os ignorar as lições da história da igreja. Cento e cinqüenta anos mais tarde, George Santayana retomou as palavras de Burke em seu livro A vid a da razão : “Aq ueles que não p od em recordar o passado estão condenados a repeti-lo”. Em nenhum outro lugar esse princípio tica mais óbvio do que nas heresias históricas da fé cristã. O fat o de a m aioria d os cr entes ter pouco ou n enh um conhecimento da história da igreja impede-os de reconhec er os er ros do passad o, que reaparecem em cena após já terem sido refutados e rejeitados pelas antigas gerações de cristãos ortodoxos.
Sabemos que a verdade é imutável e eterna. Mesmo isso sendo verdadeiro, não é algo novo. Mas muitas mentiras também não são no vas. Em Eclesiastes 1.9 Salomão adverte: 0 que fo i é o que há de se r; e o que se fe z, isso se torna rá a fa ze r; nada há, pois, novo debaixo do sol ( AR A). O que se passa numa geração, no final das contas, volta a apare cer em outra geração. O nome ou rótulo da heresia pode mudar, mas provavelm ente o erro é o m esm o com etid o m uitas e m uitas vezes nos últimos dois mil anos. Por exemplo, não há n ada de absolutam ente novo sobr e a f ilosof ia da N e w Age [Nova Era], A N ew Age nada mais é do que velhas mentiras em nova roupagem. A crença de que se é Deus (ou poderia ser) é tão velha quanto o Éden. Essa foi a primeira tentação. Este é um livro de extrema importância em nossos dias, especial mente porque a mídia não considera a ortodoxia digna de cobertura. Precisamos dar às pess oas o s instrum entos do co nhe cim ento histórico que elas precisam para saber que os mo dism os teológi cos e os atuais desafi os à nossa fé são meramente heresias regurgitadas do passado. Agradeço a Deus por Alister McGrath. Você também o fará quandcTacabar de ler este livro. Suas ideias e a sua escrita são claras, convincentes e abrangentes. N ão leia sim plesm ente este livro. Fortaleça sua ig re ja, d ivulgan do-o a outros.
D r. R ic k Warren Igreja Saddle back L a ke Forest, Califó rnia , E U A
Nosso caso de amor cc™. a heresia unca houve tanto interesse voltado para o que relaciona a heresia. Antigas he resias, que, pelas primeiras gerações, eram vistas como obscuras e perigosas, são hoje sàlpiçadas com pó de estrel a. A atração pe lo que é pro ibido na religião parece mais forte do que nunca. Geoffrey Chaucer sagazmente observou lá no século XIV: “Proíba m -no s um a coisa, e nó s choram os p or ela ”.' Para muitos indivíduos religiosamente alienados,
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as heresias são vistas hoje como declarações cora jo sas e ousadas de lib erdade espir itual a sere m va lorizadas, em vez de evitadas.2As heresias seriam as destemidas perdedo ras nas antigas batalhas pela ortodoxia, derrotadas pelo poder bruto do siste ma religioso. E, uma vez que a história é escrita
d e Bath, Geoffrey. Prólogo do conto da mulher Os contos de Cantuána (The Canlerbury Talen. Tradução Paulo Vizioli. TA Queiroz Editores, s.d. 2 H en ry, Patri ck. W hy Is C ontem porarv Scholar ship S o Enamored of Ancient Heresies? In: L!\~n'GSTO\k, E. A. (Org.). Proceedings o f the 8th In te rn atim al Conference on Patristic Studies. Oxford: Pergamon Press, 1980, p. 123-126. 1Chauceh,
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Heresia
pelos vencedores, as heresias têm estado inju stam ente em desvanta gem , e suas virtudes espirituais e intelectuais, abafadas por seus inimigos. A reabilitação das ideias heréticas é vista hoje como uma justa correção das injust iças do passado, pe rm itindo o renascim ento das ve rsõ es sup ri midas do cristianismo, mais sintonizadas com a cultura contemporânea do que a ortodoxia tradicional. A heresia agora é moda! Está claro que houve uma mudança no ambiente cultural, le vando a uma nova ma neira de ver e aval ia r a heresia. O historiad or da cultura, P eter Gay, da U nive rsidad e de Y ale, escreve u sobre a “ atração da heresia” — um a intriga nte fr ase de eieito que indica um dese jo devastador e sedutor de subverter, ou no mínimo desafiar, as expec tat ivas cult urai s co nv en cion ais.’ A art e m ode rna — ele argum en ta — é desse m o do caracterizad a p o r u m desejo de o fen d er a tradição. As insígnias de honra do movimento foram, assim, a perseguição, a acusação e o pavor que ele evocava. Todas as revoluções exigem um inimigo. Nesse caso, o inimigo é uma ortodoxia que seria ao mesmo tempo estúpida,e estupidificante, suprimindo as chamas vitais da srcinalidade e criatividade humanas. Atitudes como essas têm se tornado profundamente enraizadas na cultura ocidental contemporânea. A heresia é radical e inovadora, enquanto a ortodoxia é prosaica e reacionária. Como observou com m uit a pers pic áci a o escrit or jud eu W ill H erb erg (1901-1977 ), no au ge da revolta norte-americana contra Deus, nos anos 1960, momento em que a ortodoxia religiosa parecia estar esgotada e desvitalizada, enquan to a heresia parecia transpirar energia intelectual e criatividade cultural: “Hoje, as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperan do com isso se mostrarem interessantes; pois o que significa ser um herege, senão ter mente srcinal, ser um homem que pensa por si mesmo e rejeita credos e dogmas?”4 3 G ay , P eter. Modernism : The Lurc o f Heresy from Baudelmrc to Beckett and Beyond. N ew York: W . W . N orto n , 20 08. 4 H erb ert, Will. Faith Enacíed as History: Essays in Bih/ical Theology. Philadclphia: Westminster Press, 1976, p. 170-171.
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Introdução
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N ão se p o d e m e n o s p re z a r a to rç a das palav ras de H e rb e rg . Quando a ortodoxia religiosa é vista como moribunda ou opressora, a atração das rel igi ões alter nativas — incl usiv e a rej eição po r atacado da rel igi ão — cresce em intensidade. N a cultura ocidental , especial m ente dura nte o sécu lo XIX , a ond a do int eresse pel o ateísmo c mai s um a m ed i da da desi lusão com a cultura e do d esen can to com a ortod oxia reli gios a. O surgimento recente do "novo ateísmo' indica que essa interpretação das co isas con tinua im po rtante no O cide nte nest e iní cio de s écu lo X X I.’ N o en ta n to , a atração da h eresia na cultura o cid en tal c o n te m p o rân ea u ltrapassa q u alq u er sen tim en to popular, ain da que volú vel, das irreparáveis inadequações ou insuficiências morais das ortodoxias religiosas. A arraigada suspeita pós-moderna da influência corrosiva do poder muitas vezes permeia, de forma subliminar, as discussões con tem porân eas sobr e a her esia. Tod os sabem que a histó ria é escri ta pelos vencedores. A “o rto d o x ia” n ad a m ais seria do que um a heresia que po r ac aso vence u — e pron tam en te tento u su prim ir se us r ivai s e sil enc iar su as vo zes. Essa era a tese dese nvolvida pelo eru dito alemão W alter Bauer (1877 -1960), para quem a mai s primiti va e autênti ca forma da fé cristã era provavelmente a herética, não a ortodoxa. A ortodoxia teria sido um desenvolvimento posterior — sugere ele — que tentou anular os tipos de cristianismo que no princípio eram acei tos como au tênticos .1'A obra de B auer foi pub li cada srcina riamente em alemão, em 1934, e despertou pouca atenção. Em 1971, ela foi finalmente traduzida para o inglês, numa época em que a atmosfera cultural havia passado decisivamente do modernismo dos ' A expr essão “novo ateísmo” é usada com retercncia a um grupo de escrit os surgidos em 2004-2007, csp. em The E n d ofF aith: Re/igi ou, Terror, an d the Future ofR easo n , de Sam HaRRIS, New Yor k: W . W . N orto n & Co., 2004 ; Breaking the SpelL Religion as a Natu ra l Phenomerwn , de D aniel C. D e n n e t, N ew Y ork: Viking, 2006; The God Deliision, dc Richard D awkjns , Bost on: H oug hton M ifíl in Co., 2006 ; G od lsN ot Great :How Rel igion Poisons Ev ery thin g, de Ch rist opher H itc h e n , N ew Yo rk: Twe lve, 200 7. " Para a edição alemã srcinal, v., de Walter Bauer, Rechtglãubigkeit and Ketzerei i/n ãltesten Christentum (Tttbingen: Mohr, 1934). Para uma tradução em língua inglesa mais influente c muito posterior, v. Ortho doxy and Here sy in E arhes t C hristianity, de Walter B auer , Philadelphia: Fortress Press, 1971.
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anos 1930 para o pós-modernismo do final da década de 1960. As ideias de Ba uer passam en tão a ecoar a s descon fianças e os valor es de um a c ultura cada vez mais an tiautoritári a. O livr o l ogo se torno u um talismã para os críticos pós-modernos da ortodoxia. A tes e de Bau er suger e que a heresi a é, em ess ência, um a ortodox ia que foi suprimida por quem tinha poder e influência no mundo cristão — sobre tu do, a igreja d om inante de Rom a. D evem os entã o reconhecer a existência de um grupo de “cristianidades perdidas ou suprimidas”, que foi reprimido e silenciado pelos que desejavam fazer valer as pró pria s ideias, com o a orto doxia.7 N essa visão, a distinção entre heresia e ortodoxia seria arbitrária, uma questão de acaso histórico. A ortodoxia designa as idei as q ue venc eram , e a heresia , as que perderam . A autorid a de cultural dess e po nto de vist a é t al que pr ecisa de um exame d etalhad o, especialmente em relação às conexões entre ortodoxia, heresia e poder. Exploraremos esses temas ao longo deste livro. Outros pensadores, no entanto, foram ainda mais longe. Para eles, a ortodoxia não era apenas um conjunto de ideias que pre dominou por meios duvidosos. Era a invenção deliberada de tais ideias, com o objetivo de assegurar a base do poder religioso da igreja cristã no Império Romano. Esse é um dos temas dominantes do gran de sucesso de Dan Brown, O código Da Vinci, publicado em 2003, e que esteve no topo da lista dos best-sellers em todo o Ocident e d uran te um ano.8Seu fio narrativo foi influenciado por uma teoria altamente especulatiya levantada em 1982 por Michael Baigent, Richard Leigh e H ern y Linc oln.9Co m bas e no que só pod e ser descr ito como a mai s frágil evidência histórica, na obra Sangue Sagrado , Santo Gral, esses escritores sugerem que Jesus de Nazaré casou-se com Maria Madalena e que eles ■ C f . E hrman , D. Bart. Lost Chnstianittes: The B attle sfo r Scripture andFaitbs WeNe-ver Knew. N ew Yor k: Ox ford U niversity Press, 2003, p. 163 -180. 8 B rown , Dan. The Da Vinci Cod e: A No vel. [O código Da Vinci: um romance], N e w York : D o u b led a y , 2 0 0 3 . O sig n ific ativ o s u b títu lo foi ad ic io n a d o em edições posteriores. ' B a i gent , Michael; Lfjgii, Richard; L incoln Henry. Holy Grail. New York: Delacorte Press, 1982.
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Introdução
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tiveram um filho. O livro mostra as supostas tentativas feitas pela igreja católica para ocultar, desde então, ess a linhag em . O livro de B rown fic cionali za es sa teoria, chega ndo inc lus ive a incluir um personag em cham ado “sir Le igh Teab ing”, em alusã o tan to a Le igh q uan to a Ba igent ( “Te ab ing” é um an agram a de “B aig en t”).'-A importância do romance de Brown para o entendimento das pessoas so bre as origens e o significado da heresia pode ser vista na afirmação confiante de seu personagem Teabing: “quase tudo o que nossos pais nos ensin aram a respeito de C risto é tal so” . Jesus de N aza ré nunca foi considerado divino pelos cristãos — Teabing declara — até o Concilio de Niceia, em 325, quando o assunto toi levado à votação. E só foi aprovado com dificuldade. O personagem de Brown, a criptologista Sophie Neveu, fica chocada com estas palavras: “Não estou a perceber. A div in dade de Jesu s?” — M in h a querid a — disse Teabing
—, até aquele momento da
história, Jesus t in h a sido visto pelos se us s egui dore s como um p rojeta mortal [...] um grande homem homem. Um mortal.
, e. poderoso, m as ape sar de tud o um
— N ã o como o F ilho de D e u s?
— E xa tam en te. 0 est abele ciment o de Jesu s como "Filho de D eu s” f o i oficia lm ente proposto e vota do no Concilio de N ic eia .
— Esper e um mom ento. Es tá a. dize r-m e que a divin da de de Jesus result ou de um a votação ?
— E bast ante renhida, du çã o liv re ]11
po r si na l — respondeu Teabing.
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lLIE m 200 6, Leig h e Baig ent (mas n ão L inco ln) proce ssaram B row n. sem sucess o, na Suprema Corte de Londres, Argumentando que, neste c em outras momentos, ele tinh a viol ado os direitos autorais del es. A publicaçã o relacionava-se com os que tinh am inventado tais ideias e, portanto, assegurava os seus direitos de propriedade intelectual. 11B rown , D an. O código D a Vinci, p. 233 [tradução livre].
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A risível imprecisão desse diálogo (foi um a votação p or maioria, por exem plo) não é o mais grave.1 2U m a suposição trans lorm a-se na reali dade, na plausibilidade dada pela sua ressonância no ambiente cultural.
0 código D a Vinci declar a que a di vindade de C rist o foi um a fabrica ção, um estrat agem a del iberado po r parte de um a igr eja corrupta de term i nad a a assegurar o se u status soci al por qu aisquer m eios e a qualq uer preço. Teabing segue argumentando que tudo não passou de um movimento cínico e ast uto por parte do i m perador Co ns tan tino (274-33 7), cuja data de conversão ao cristianismo é incerta. Constantino decretou que o cristianismo se tornasse a crença oficial do seu império. O que poderia ser mais natural, sugere Teabing, do que Constantino elevar Jesus de um simples mortal ao eterno Filho de Deus? Constantino sabia que, para reescrever os livros de história, preci sav a de um golp e de ousadia. Fo i da qui que na sce u o m om ento m ais pro fu ndo da história, do cristianism o. [...] C onstantino enc omendo u e financiou uma nova Bíblia
, que o m itia os eva ngel hos que fa la
vam das características humanas de Cristo e dava destaque aos que fa z i a m dele um deus. Os evangelh os m ais antigos fo ra m ban idos, arrebanhados e queimados. Felizmente
[...]
[...] alguns dos evangelhos que Constantino tentou er
radicar conseguiram sobreviver, [efora
m encontrados] e m 1 94 5, em
N a g H a m m a d i \ E g ito ] . ’3
12 V., p. ex., E hrman , B art D. Truth an d Fiction m the D a Vinci Cocle: A H is to ria n R eveah W hat !!', Rea /ly Knozv A bout Jesus, M a ry M agdalene , and Conslantine (Oxíord: Oxford Univ. Press, 2004, p. 23-4): “A visão que Teabing postula está equivocada cm todos os pontos principais: os cristãos antes de Niceia já haviam aceit ado Jesus como div ino . Os Ev angelhos do N T 0 retr atam como hum ano tanto quanto divino; os evangelhos que não foram incluídos no NT o retratam como divino, tanto quanto, ou até mais, do que como humano”. Os comentários de Ehrman são ainda mais significativos, dada a sua hostilidade diante das narrativas cristãs tradicionais da ortodoxia e da heresia. u B rown Dan. O código D a Vinci , p. 234.
Te abing declara que, feli zm ente para os hist oriadores, Co nsta ntino não conseguiu erradicar t odo s os evange lhos conco rrent es. Sabemos ago ra, ele diz, que a Bíblia m od ern a foi “com pilada p or indivíduos que tinha m um objectivo político: promover a divindade do homem Jesus Cristo e usar a i nfluência dele para reforçar a própria base de p od er”. A narr at iva de Brown é um
exempl o ilum inador da m aneir a com
que a ficção molda a percepção da realidade. Sua equação de “poder” e “ortodoxia” tornou-se de tal modo influente que passou a ser a opção de falha para muitos hoje. Veremos que ela se abre a sérios desafios, par ticularmente porque a ideia da ortodoxia começou a surgir dentro das com unida des cris tãs qua ndo ainda eram grupo s m arginai s na s fr anja s da cultura imperial romana. A realidade é muito mais complexa do que a narrat iva estereotipada da história cri stã f eit a p or B rown — além de se r mais interessante e intelectualmente satisfatória. A b rilhante o bra de ficçã o de Brown ad ula a desconfi ança pó s-m oderna do poder e, em especial, o seu privilégio de certas ideias favoráveis. Da mesma forma que a série de televisão Arquiv o X , encerrada em 2002, O código Da Vinci, com a sua engenhosa construção histórica, coincidiu com um a era de descon fia nça generalizada nos governantes, i ntere sse em teorias da conspiração e na espiritualidade (em vez de religião). Mas de muitas formas ele também dá o contexto para discussões sobre a heresia. Para muitos, a heresia é vista hoje como uma vítima teológica, um conjunto de ideias nobres brutalmente esmagado e indevidamente supri mido pelas ortodoxias dominantes, e então apresentadas como se fossem desviantes, desonestas ou diabólicas. Nessa narrativa romantizada das coisas, a heresia é retratada como uma ilha de livre pensamento no meio de um letárgico oceano de ortodoxia irrefletida, impingida mais pelo poder eclesiástico despido, e não por fundações intelectuais robustas. Essa é certamente a narr ativa da heres ia que est á fir m em ente em bu tida em
O código D a Vinci de Brown. O enredo de Brown gira em torno das p ere nes tentativas da igreja pós-constantiniana de cuidar, às vezes violentamente, da sua proclamação do evangel ho, esconden do a verdade que a sub vert eria. A descoberta dessa verdade suprimida ofereceria, desse modo, um
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Heresia
equivalente pós-moderno da indagação clássica sobre o Santo Graal. O possuidor des sa verdade pode ria dest ruir o perp etrado r de um a das gran des decepções da igreja católica de todos os tempos. Naturalmente, tudo não passa de uma fantasia — contudo, é uma fantasia que angaria muito apoio e atenção popular, e é em si mesma um importante indicador das preocu pações e agendas culturais modernas. A heresia hoje tem uma nova atração, pelo surgimento de sua as sociação com a sedução do conhecimento oculto, as transgressões dos li mites do sagrado e o comer do fruto proibido/' A Bíblia cristã inicia-se com duas nar rativas de transgres são — o com er do fruto proibido ( G n 3) e a construção da torre de Babel (Gn 11). De modo significativo, ambas representam desafio aos limites fixados por Deus para a humanidade. Os limites, dizem hoje, são construídos por aqueles que têm o interesse de preservar os direitos adquiridos; ao transgredi-los, estabelecemos a nossa identidade e autoridade, e confrontamos e desafiamos uma ins tituição conservadora. Como Prometeu roubando o fogo dos deuses, a transgressão tem a ver com desafiar o poder e conquistar a liberdade. O proibido agora s e tornou enobrecido e feit o u m objet o legíti mo de des ejo. A her esi a é um Prom eteu libertador da hum anidad e da escravidão teocr ática. O resultado dess a m ud an ça signifi cati va na a tmosfera cultural é ó bvio. A heres ia não pode ser vista agora simplesmen te como u m problem a histó rico ou teológi co acadê mico. Ela se torno u um a questão cultural. Por quê? Um fator importante aqui é a ênfase crescente na esco lha. de uma característica definidora da existência humana autêntica. Veremos aqui que o termo grego hairesis , que deu o rigem ao noss o term o “heresia”, tem fortes associações com “escolher” ou “escolha”. Escolher é expressar a n oss£> liberd ade , afirm ar a no ssa c ap acidad e de cria r e co n trolar o nosso mundo. Esse evento está diretamente associado à disponibilidade de al ternativas religiosas. Não é acidental ter a atração da heresia aumentado de modo significativo na sociedade que se desenvolvia rapidamente na 14Cl. Segai., A. Robert (Ed.). The AHure of Gnosticism: The Gnostic Expenence in Jungia n Psycholo^y a nd Contemporary Cultvre. Chicago: Open Court, 1995.
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Europa do século XII. As pessoas ficavam cada vez mais conscientes da escolha disponível em bens materiais e educação, e esses horizontes mais am plos f oram refl eti dos em suas at itudes diante da rel igi ão. O m o nopó lio d o catolici smo medieval f oi corroí do qua ndo a laici dade passou a explorar opções religiosas alternativas como aquelas oferecidas pelos cátaros e valden ses.15A qu i, t an to q ua nto em qu alqu er ou tro lugar , a res posta da ig reja in stitucio nal a essa am eaça to m o u a form a da obrigação à uniform idade; desse mod o, negan do aos indi víduos o elem ento cru cial da escolha. Já o período moderno viu tanto a elevação da diversidade religiosa na maior parte do Ocidente quanto a erosão da capacidade legal da Igr eja em forçar a uniform idade. O sociólogo Peter Berger extraiu as implicações desse evento em seu marcante Heretical Im pera tive [Imperativo herético] (1979). Nele, Berger afirma que, nas culturas primitivas tradicionais, os indivíduos são expost os a apenas um ún ico con junto de cren ças fundam entais. Cad a cul tura é baseada em, e até certo po nto definida por, um “m ito” — isto é, um a narrativa fundadora e legitimadora ou um conjunto de crenças. Desafiar essa mitologia fundadora beira a heresia, e tradicionalmente levaria à morte ou banimento. Ainda agora somos confrontados com um excesso de rel igi ões, f ilosof ias e parad igm as. Nã o exi ste um a m etana rrativa ún ica, fun dam ental e dom inante. Som os li vres para e scolh er, pegar e m isturar — o que, para Berger, é a essência da heresia. E m ques tão de rel igi ão, como de fa to em outr as áre as da vid a e pensam ento hum anos , isso significa que o indivíduo moderno tem dian te de si não somen te a oportunida de , mas a nece ssidade d efa ze r escolhas sobr e as suas cr enças. Esse fato co ns titu i o im pe ra tivo heré tico na situação contemporânea. Portanto a heresia, como ocupação
, e excêntricos, tornou-se uma condição muito ma is ger al; na verdade, a he res ia tornou-se un iver sa lizad a .lp
de tipos marginais
'-v. The Devils World: Heresy and Society 1100-1300, de Andrew R oach , London: Longman, 2005. Peter L. The Heretical Imperative: Contempor ary Possihilities o f Religi ous Affirm ation. Garden City: Anchor Press, 1979, p. 30-31.
N ão nos exigem que aceitem os um a visão de m undo pré-em balada, mas somos capazes de criar uma visão daquilo que esteja de acordo com as nossas ideias sobre a forma que as coisas deveriam ter. A heresia diz respeito a sermos mestres do nosso universo, escolhendo o modo de ser das coi sas — ou pel o m eno s a m ane ira com q ue go starí am os que el as se desenrolassem. Co ntud o, talv ez a ultima atraçã o da heresi a em nosso tem po recaia em seu desafio à autorid ade .17A ortodo xia reli giosa é com parad a a reivindic ações de a utoridade absol uta, à qual se deve resistir e subverter em nome da liber dade. A heresia é vista, assim, com o a subve rsão ao au toritarismo, oferecendo a libertação a seus seguidores. De uma perspectiva histórica, é praticamente impossível levar essa história a sério, especialmente como algumas heresias foram, no mínim o, tão autoritárias qu an to as su as rivais ortodoxas. A crença de que a her esia é intelect ual e mo ralme nte libertadora diz m uito mais sobr e o clima c ultural de hoje n o O cid en te do qu e sobre as reali dades dos primeiros séculos da existê ncia cr istã. M as, co mo perm ite qualqu er ato de recepção cul tural de ideias,, a relevânci a para o p resente de q ualqu er ideia antiga tem tanto a ver com o que os seres humanos contemporâneos estão buscando quanto com o que as ideias antigas têm a oferecer^ O significado da heresia não está, portanto , d entro da própria heresia, mas é antes co nstruído dentro da relação entre a heresia srcinal e se us intérpretes co ntem po rân eo s.18 Essa desconfiança da autoridade pode ser facilmente transferida da ortodoxia em si para as suas fundamentações bíblicas. Para alguns escr itores , o cánon do N T deve s er vis to com o o endosso a utoritár io desses primeiros escritos cristãos que eram aceitáveis para a institui ção. O s do cum entos do N T são refer idos com o se foss em boletins de imprensa, pouco convincentes, de alguma fonte oficial projetada para esconder a verdade sobre as srcens do cristianismo. Qualquer coisa que ’ A esse resp eito, v . a análise de A ft er God: The Future o f Religion , de Don CüPlTT, Lond on: W eidenf eld & N icolson, 1997 . lsPara um a introdu ção ao cam po da teoria da rece pção, v. The Act o f Reading: A Theory of Aestbetic Response, de Wolfgang Iser, Baltimore: Johns Hopkins Univ. Press, 1978; Crossing Borders: Reception Theory , Poststructuralism, Deeonstruction, de Robert C. Holub, Madison: Univ. ofWisconsin Press, 1992.
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Introdução
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se assemelhe a uma versão oficial torna-se automaticamente suspeita. N essa visão, te xto s potencia lm ente subversivos — sobretu do aque les associados ao gnosticismo — foram reprimidos e marginalizados. O teólogo e observador cultural Garrett Green destacou a importância dessa questão: “Sob o olho suspeito da crítica (pós-moderna), toda a fé na autoridade bíblica afi^ura-se com a forma de falsa consciência, todo texto sagrado com o um a retórica sub -reptícia de po de r”.1'1Para sub ver ter o autoritarismo eclesiástico é necessário minar a autenticidade dos textos nos quais ele é baseado. A recen te excit ação da m ídia sobr e o Evang elho deJudas, em 2006 , ilustra essa tendência. Isso, nos foi dito, era uma alternativa aos evan gelhos cristãos tradicionais, suprimido pela igreja primitiva devido à ameaça que apresent ava à sua au torid ad e.211Ess e d oc um en to parecia ser um ajust e perfei to ao padr ão pós-m od erno de heresi a — u m a n ar rat iva proib ida das orig ens do cristianism o, delib eradam ente escondid a pelos angustiados líderes da igreja, e que foi descoberto por corajosos jorna listas determ inado s a re vel ar a verdade. U m im po rtante jor nal bri tânico declarou que essa era a “maior descoberta arqueológica de todos os tem pos”, que representa va um a “am eaça a 2.0 00 anos de ensin o cristã o”.21 A realidade parece ter sido bem mais banal. O
Evangelho de
Judas é um documento relativamente tardio, srcinário quase certa mente do interior de uma seita marginalizada dentro do cristianismo,
19G re k n , Ga rrett. Theo/ogy, Herme neuti.es an d lm agm atio n: The Case o f Interpretation at the E nd of Modernity. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2000, p. 20. jnPa ra obra s re pre se ntativas sobre esse debate , v. The Th irteenthA postle: W hat the Co spe/ o f Judas Realfa Says , dc April D. Dk Conick, London: Continuum, 2007; The Lost Gospel of Jud as Iscariot: A N ew Look a t Betrayer an d Betrayed, de Bart D. Ehrman, Oxford : O xto rd Univ. Pr ess , 2006); Reading Judas: The Gospel o f Judas and the Sha ping o f Christ iani ty, de Elaine H . P ag el s; Karcn I ... Kinc , N ew Yo rk: Vik ing, 2007);Judas an d the Gospel o f Jesus: H ave We Missed the Truth A bout C hristianity?, de N .T . WlUCHT, Grand Rapids: Baker Books, 2006. n M a il on Sun day . London, 12 de março, 2006. Para uma discussão completa sobre a mídia falaciosa e o exagero da importância desse documento, v. The Gospel of Judas: R ew ritin g Early Christianity, de Simon J G a tije rc o lk , Oxford: Oxford Uni v. Press, 2007, p. 132-149. ' ’
a qual est ava convencida de que todo o rest o tinh a in terpretad o Je sus de Nazaré de modo seriamente equivocado. Naquele tempo, na litera tura aceita como autorizada pelos cristãos, não havia nenhuma prova documental que amparasse o ponto que desejavam provar (inclusive algumas obras que nunca fizeram isso no cânon do NT). A situa ção foi remediada quando eles mesmos escreveram o seu evangelho. Som ente Judas realmente entendeu Jesus, assim dizem; os outros dis cípulos interpretaram-no erroneamente e levaram adiante narrativas desesperadamente confusas do seu significado. O Evan gelho de Judas apresenta Jesus passando para Judas um co nhecimento secreto por meio de conversas pessoais, das quais os outros discípul os e ram excluí dos. Essa retórica d a exclus ão le va a formu lar o se gu inte deba te: som ente Jud as foi incluído no círcul o m ágico dos inici ados, aos quais os verdadeiros segredos do reino foram confiados. O Evangelho deJudas retrataj esus de Nazaré na for m a de um guru espi ritual s emelhante aos mestr es gnósticos dos séc ulo s II e III, em bo ra tend o po uca relaç ão com a des cri ção de Jesus enco ntrada nos Evan gelhos Sinót icos. O cri sti anismo torna-se um tipo de culto de mistério baseado numa imensa burocracia que governa o co smo; e Jesus é retr atado explicando-o aju d as de um jeito prodig io so e inquie ta nte . É difícil não chegar à conclusão de que Jesus de Nazaré foi rein venta do com o um m estre gnóstico com ideias gnósticas. O Evan gelho de Judas tem, na verdade, a capacidade de iluminar a nossa com preensão do gnosticis mo a pa rtir da m etade do século, especial mente a sua muitas vezes observada relação parasitária com as visões existentes a res peito do m un do .22 Essa rel ação, po rém , não parece ter nad a h istori ca mente crível a nos dizer sobre as srcens do cristianismo ou a identidade de Jesus de N aza ré.23E ele ce rtame nte não representa n en hu m a “ameaça” signifi cante ao cristi anism o tradicional.
22Sob re esse asp ecto do gno sticism o, v. Gnosticism, Judaism, an d Eg yptian Christianity , dc Birgcr A. P earsox , M inneapo lis: Fortress Pr ess, 19 90. ziO Evang elho de Judas é representati vo da form a especí fic a de gnosticismo conhecida como setianismo. V. tb. TURNF.R, Sethian Gnost icism an d the Plat onic Tra dition , dc Joh n D. T urner , Louvain: Pceters, 2001.
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Introdução
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O Evangelho de Juda s nem mesmo é um documento radical. O britânico N . T. W righ t, est udioso do NT , recus a a i deia difundida de que o gnosticismo era inovador, fazendo surgir uma onda de ener gia intele ctu al criativa que am eaçava va rrer a s ideias trad icio na is.24 Se m uito, W rig h t argum enta, os gnósticos é que sã o mais vi stos como conservadores culturais, ecoando muitos dos temas das religiões de mis tério da época. Em contraste, os cristãos ortodoxos “estavam desbravan do novos terrenos”, e ao fazê-lo, encontravam oposição. Onde alguns sugerem que os evangelhos gnósticos representam alternati vas radicais ao s evangelhos can ônicos “ con servad ores” , W rig h t afirma que a verdade é totalmente o oposto. E a mensagem do NT a verdadeiramente radical. No entanto, os séculos de familiaridade cultural com o cristianismo, junto com a novidade relativa de um gnosticismo redescoberto, criaram uma percepção cultural um pouco diferente. A ortodoxia religiosa tornou-se vítima de um excesso de familiaridade que cri a um ansei o p or n ov idad e.25 Este livro é um trabalho de síntese que procura reunir im p o rtan tes estu dos re cente s na área e explo rar a re levância deles na contemporaneidade para a nossa compreensão da ideia de heresia. N ão se p reten de enco ntrar novos cam in hos em nosso en ten d im e n to do conceito d e heresi a de um a form a ger al, ou de qualqu er heresi a específ i ca em particular. Nem se trata de uma narrativa detalhada, abrangente, das muitas heresias que têm surgido dentro do cristianismo. Algumas heresias são selecionadas para uma discussão detalhada, em parte por terem por si sós uma importância particular, e em parte por ilustrarem alguns dos pri ncípios m ais gerai s que pa recem estar na o rigem e desen volvimento dos movimentos heréticos. O aumento da literatura acadêmica, que lança luz sobre a forma com que as heresias primeiramente surgiram e se desenvolveram ao longo dos séc ulos, con test a m uitos estereóti pos da heresi a. I o quad ro 24W r i ght ,
passim.
2^Para um a reflexão sobre esse po nto , v. Orthodoxy, de G . K. Ch (New York:Jof in Lane, 1908, p. 131-2). ~
que está emergindo dessa intensa pesquisa acadêmica do cristianismo prim itiv o não endossa nem a visão de alg uns escrito re s cristãos de que a here sia é um ataque fund am entalm ente maligno à ort odoxia, nem, par a aqueles que a veem como uma alternativa à ortodoxia, que a heresia era reprimida pela igreja institucional./Tentarei oferecer uma explica ção da heresia que leve muito em conta a melhor erudição moderna. Ao mesm o temp o, t entarei com preender por que tant os en tr e os prim ei ros escrit ores cris tãos mais imp orta ntes co nside raram a heresia perigosa. E pretendo fazê-lo sem demonizar aqueles que exploraram as vias de pensam en to que, no final, se m ostraram heréticas.2" [ M as o que é heres ia? A heresia pode ser vis ta, de um m odo mais direto, s ob a form a de crença crist ã que, mais p or acas o do que po r desíg nio, acaba por subverter, desestabilizar ou até mesmo destruir o núcleo da fé cr istã) T an to o processo de desestabili zação qu an to a identi ficação de su a ameaç a podem se est ender por um longo perí odo de tempo. Um m odo de r acionalizar um aspecto da fé cri stã, como a iden tidade de Jes us de Naz aré — um aspect o que p ode , de iní cio, se r bem -vind o e ac eit o de um modo geral — talvez precise, posteriormente, ser encerrado devido ao dano potencial que ele pode ser capaz de causar no futuro. Uma analogia pode ajudar a tornar mais clara essa ideia comple xa. O Partenon é largamente considerado uma das maravilhas arqui tetônicas do mundo antigo. Por volta de 1885, essa chamada gloriosa construção grega clássica estava num estado avançado de decadência e precisava de restauração. Braçadeiras e vigas de ferro foram usadas para suste ntar as grandes lajes do edifício de m árm ore bra nco, orig inariamente extraído do vizinho monte Pentélico. Os restauradores, entretanto, não conseguiram perceber que, com a mudança de tem peratura, aquele ferro se expandia e se contr aía , pressionando a cons trução de pedra. Mais importante, eles também falharam quando não tornaram inoxidável o ferro que ornamentava o Partenon. Quando o 2ÈSobre um a ten tativa válida de en volvim ento com essa questão, v . Heresies and H ow to slvo idT hem : Why I t Matters Wha t Chnstians Be lieve, Q uash , B e X; W a RD, Michael (Ed.) , Londo n: S PCK , 2007 .
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Introdução
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ferro começou a sofrer corrosão, ele se expandiu, rachando as pedras que se pretendia preservar. Na verdade, apontada para salvar o edifício, a medida acabou por acelerar a sua ruína, exigindo das gerações futu ras restauração ainda mais radical do que as inicialmente necessárias. A correção de err os crít icos é m uitas vez es cara e dem orada ; de qualq uer modo, precisa ser feita. A heresia representa alguns modos de formular os temas nucleares da fé cristã — modos que, cedo ou tarde, a igreja reconhece serem perigosamente inadequados ou mesmo destrutivos. O que uma geração pode bem considerar uma ortodoxia, outra geração pode descobrir tratar-se, afinal, de um a here sia. Embora todas as tentativas dc exprimir as verdades de Deus em palavras hum anas falh em em cum prir o seu in te nto , algumas são m uito mais seguras e confiáveis do que outras. A “ortodoxia” c a “heresia” (ou “heterodoxi a” — os t ermos são consider ados freq ue nte pe nte inter cam biáveis) são m ais b em observ adas com o a m arc a dos extrem os de um espectro teológico. Entre essas extremidades repousam visões pouco nítidas,:; que variam do adequado, sem serem definitivas, ao questio nável, sem serem destrutivas. A heresia encontra-se no reino sombrio da fé; uma tentativa filhada de ortodoxia, cujas intenções terão sido pro vavelm ente nobres, m as que, no fim, os re sultados se m ostr aram tão corrosi vos qu an to as braça deiras de ferro de N ikolaos B aiano s.2* E m bo ra o foc o aqui sej a o cris tianismo, é imp ortan te ob ser var que o conceito de heresia tem um amplo uso fora dessa corrente religiosa. Alguns conceitos funcionalmente equivalentes podem ser encontrados na esf era rel igiosa, at é m esm o nas reli giões orientais. " A lém dis so, a i deia
2'T u rn e r, I I. E. W. The Pattern o f Christi an Truth: A Sindy in the Relati ons Between Orthodoxy and Heresy m the Early Church. London: Mowbray, 1954. Turner observa que existe uma “franja ou penumbra entre ortodoxia e heresia" (p. 79); para uma anál ise mai s de talhada dessa i ma gem em relaçã o ao desenvolvimen to das doutrinas do século II, v. p. 81-94. 2g[NR ] Nikolaos Baianos fo i o arqu iteto e arqueólogo grego que orien tou a malsucedida restauração do Partenon, aqui mencionada. (N. do R.) 2'HEXDERSON, John B. The Construchon o f Orthodoxy an d Heresy: Ne o-C onfic ian , lslamic, Jewish, a nd Earíy Christian Patterns. AJbanv: State Univ. o f N ew York Press , 1998 .
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tem tido cada vez mais aceitação em c ontex tos secul ares em referência a ide ias potencialm ente peri gosas ou desestabi lizadoras, e abordagens que repres entem um a ameaç a a ort odoxi as do m inantes. Ademais, a heresia se estende além do reino das ideias. Por motivos que exploraremos neste volume, o debate entre heresia e ortodoxia é muito comumente transposto para os campos social e político. C o nsequ entem ente, qualq uer discussão so bre here sia pre cisa envolver o lado m ais som brio desse deb ate — a impo sição de idei as pela força, a supressão da liberdade e a violação de direitos. Esse tema foi de importância crucial na Europa ocidental durante a Idade Média, e adquire cada vez mais importância no mundo islâmico de hoje. Mesmo esta breve explicação da natureza da expansão da here sia suscita amplas questões. É possível observar dois exemplos claros. Quem decide o que é definitivo e o que é perigoso? De que maneira essas decisões são tomadas? Essas são questões encontradas no núcleo deste livro, e começaremos a examiná-las imediatamente. Um bom ponto de p artid a nessa via gem de explora ção é a natu reza da fé cristã em si — para a qual nos voltamo s agor a.
Parte I 0 que é heresia?
A fé, os credos e o evangelho cristão e há uma pulsação da fé crista, ela está na pura alegria e exaltação intelectual causada pela pessoa de Jesus de N azaré. Aqui est á aquele que a igreja considera intelectualmente lu m inoso, espiri tualm ente pers uasi vo e infinitam en te complacen te, t an to de forma col eti va quan to de forma individual. Embora os cristãos expressem esse júbilo e maravilhamento em seus credos, eles o fazem de forma ainda mais especial em sua de voção e adoração. A devoção proclama que a fé cristã tem o poder de captar a imaginação, não somen te persuadir a m ente, abri ndo as profund e zas da alma humana para as verdades do evange lho. Ela mantém uma chama de entusiasmo por Jesus Cristo, a qual alimenta o ofício teológico e ao mesmo tempo questiona a sua capacidade de corresponder ao brilho de seu objeto supremo. C on tud o, em bora o apelo à i maginação da v isão cristã de Jesus de Nazaré nunca deva ser negligencia do ou minimizado, continua existindo um núcleo
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intelectual para a fé cristã. Em seu ensaio The Will to Believe [O desejo de crer] (1897), o célebre psicólogo William James (1842-1910) afirma que os seres humanos estão numa posição em que precisam escolher entre opções inte lectuais que são, nas palav ras d e Jam es, “forçada s, vividas e de cisivas”. 30Todos nós pr ecisa mos de h ipótes es de func ionam ento (o termo é de James) para da r sentido à nossa experiência do mundo. Essas hipóteses de funcionamento estão mu itas vezes além da prov a total; co nu ido , elas são aceit as e influenc iam porque são capazes de oferecer p ontos de vista seguros e satisfatórios, a p ar tir dos quais podemos lidar com o mundo real. Seja o movimento religioso ou político, filosófico ou artístico, considera-se que um grupo de ideias, de crenç as, é, em prim eiro lugar, verdadeiro e, em segun do lugar, im po rta nte .31 As pessoas que usam sua mente precisam construir e habitar mundos mentais, a partir dos quais elas diferenciam a ordem e os padrões den tro d a expe riência e dão se ntid o a alguns de seus m istérios e en igm as.32 Co nform e o f ilóso fo M ichae l Polanyi (1891-19 76) propõe, uma e strut ura def ens ável de cre nças no s perm ite ouvi r um a me lodia onde de outro m odo ouviríamos apenas um ruído.3j Isso, porém, não significa dizer que o cristianismo seja sim p le sm e n te , ou m esm o fu n d a m e n ta lm e n te , u m c o n ju n to de id eias. Para muitos cristãos, uma experiência de Deus repousa no centro da din âm ica relig iosa.3 4 P or co ns eg uin te, es sa ex pe riência po de le var a f ormu lações teológicas — “O que d everia ser um a verdad e, s e isso fosse um a exp eriência gen uína d e D eu s?” — , mas tais formu lações são , •'''JAMES, W illiam . T h e W ill to Believe, The W ill to Believe an d Other Es says i n Popular Philosophy. New York: Longmans, Green, and Co., 1897, p. 1-31. 51 V., esp ., M ea nings ofL if e de Roy B a umei st er N ew York: G uil for Press, 1991. >! M c G rath , Alister E . The Open Secret; A N ew Vision fo r N at ur al The ology. Ox ford: Blackwell , 2008, p. 113-216.
British J ournal fo r the Philosophy o f Science, v. 18, p. 177-1 96, esp. p. 1 9 0 -1 9 1 ,1 9 6 7 .' ’ ' ;4Existe vasta literatura sobre o tema, como as obras: The Spirit ual Nat ure ofM an : A Stud y o f Contempora ry Rehgious Experi ence, de Alister C. H ardy , Oxford: Clarendon Press, 1980); Easter in Ordinary: Refections on Human Experience and the Kno-wledge ofGod dc Nicholas L a s h , Ch arlottesville: Univ. Press o f Virginia, 1988; Le sens du surnaturel, de Jean B oreu .a , (Genève: Edttions Ad Solem, 1996). " P olanyi
, Michael. Science and Reality.
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A fé.
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credos e o evangelho cnsl ão
no final da s con tas, secund árias à exp eriência que as prec ipitou e m oldou . D e fato, muitos argum entari am que um a experi ênci a de Deus é irr edu tível às formas verbais ou conceituais. O teól ogo americano S tanl ey H auerw as (n. 19 40) é um entre mu i tos novos escr itor es a enfa tizar que ver no crist ianismo sim plesm ente um a coleç ão de d ou trinas o u declarações de credo leva a um a séri a dist orção do seu car áter. A ntes, no crist ianismo deve se r enco ntrado um m odo disti nto de vida, que se torna possível pela ação graciosa do Espírito Santo, que orienta os seus seguidores até o Pai, por meio de Jesus Cristo. Hauerwas afirma que precisamos de uma estrutura ou lentes pelas quais possamos “ver” o mu nd o do co m po rtam en to h um ano . Is so, ele ins iste, é poss ibil ita do pela refl exão contínu a, d etalha da e vast a sobre a narrativa cr istã:
A ta refa fu n d a m e n ta l d a ética cristã envolv e um a te n ta tiv a de nos ajud ar a ver. Porque s ó podem os ag ir dentro do m und o que podemos ver, e só podem os ver o m un do corret amente sendo trei nados pa ra
, mas p o r meio de habilidades disci plinadas desen volvidas p o r ini ciação n um rel ato . ^ vê-lo. Não vamos chegar a -ver apenas olhando
Desse modo, Hauerwas enfatiza a importância da té cristã para que as coisas sejam vistas por aquilo que realmente são, e para que essa verd ade ira vi são da realidade sej a declara da e an unc iada: “ A igr eja ser ve ao mundo dando ao mundo os meios para que ele verdadeiramente veja a si m esm o”.36 j A fé cristã nos fornece, assim, um modo de “ver” o m undo, o que nos ajuda a dar-lhe sentido e agir dentro deleAO cristianismo faz sentido em
^ H auerwas
, Stanley. T he De m and s o f a Tru thíul Stor y: Ethics
and the Pastor al Task, Chicago Studies , v. 21, p. 59 -7 1,1 98 2; citação nas p. 65-6 6. O bserv ações simil ares foram feitas anteriormente em Vision and Choice in Morality, de íris MuRDOCH. In: RAMSEY, Ian T. (Org.). Christian Ethics a nd Contempor ary Phi losophy. London: SCM Press, 1966, p. 195-218. " ’ “ H auerwas , Stanley. The Peaceable Kingdo m: A Prim er in Christian Ethics. N o tr e D am e: Univ. o f N otre D am e Press, 19 83 , p. 101-1 02.
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Heresia
I
si mesmo, e ao mesmo tempo dá sentido ao mundo.^Ele nos oferece um modo de ver as coisas que ao mesmo tempo reflete e cria a coesão. C. S. Lewis deixa isso bem claro na conclusão de seu ensaio Is Theology Poetry? [A teologi a é poesi a?], qua nd o com enta: “ E u acredi to n o crist ianis mo como acredito que o sol nasceu, não somente porque o vejo, mas porque graças a ele vejo tod as as outras coisas ”. mais im por tan te nesse po nto é que a fé cristã torna possível uma transformação da mente, permitindo ver as coisas de um m od o novo, mais instigante e, acima de tudo , mais coeren te. O cristianismo faz sentido em si mesmo; e também dá sentido a todo o resto./ Nosso m odo de “ver” as coisas configura nosso com porta m ento pera nte elas. A teologia cristã te m o objetivo de dizer a verdade sobre o que ela vê — e ela vê o mu nd o d e um m odo espe cífico : com o a cri ação de Deus. Assim, Paulo aconselha seus leitores: Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente... (Rm 12.2, N V I). A m ente hum ana não é su bstitu íd a ou supla nta da pela fé; ao con trário , ela é ilum in ad a e rev igor ada p ela fé. VV. fé co ns ide rad a u m ca ráte r transformado do sábio, levando a um novo modo de pensar, permitindo o discernimento das camadas mais profundas da realidade, o que não é possível pela razão ou visão hum anas po r si sós.’8 O m undo, porta nto , adquire um novo significado. E tem sido irans-significado , passan do então a revelar algu m a coisa além de si m esm o.39 Essa ideia da transmutação do mundo, na realidade ou no sen timento, há muito tempo tem sido associada à imagem poderosa da pedra “filo so fa l”. E sta possuía a capacid ade para transm u dar pequenas coisas em algo precioso, e foi buscada ardentemente ao longo da Idade Média. Outras fontes falaram de um “elixir” — um líquido derivado dessa misteriosa pedra — que tinha o poder de trazer a regeneração C. S. Is Theology Poetry? In: Wal.MSUüY, Lesíev (Org.). C. S. Le-rcis Essay Collection: Faith , Ch ristianity a nd the Chur ch. London: Collins, 2000, p. 1-21. 53 V. neste p on to “Faith , Reaso n an d the Mind of Christ", de Alark M c I xtosh . In: Reason and the Reasons o fFaith. GRIFF1THS Paul J . ; HüTTER, Reason and the Reasans o f Faith. N ew York : T. 8cT. Clark, 2005, p . 119 -142). w M c G rath . Open Secret, p. 171-216. L f .w i s ,
A fé. os c ed o s e o evangelho cristão
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física e espiritual. Embora medieval na srcem, a imagem capturou a ima ginaçã o dos escrit ores renasc en tist as.40 Seu potenc ial para a ex plo ra ção te oló gic a fo i desenvolv id o pelo poeta inglês G eorge H e rb e rt (1593-1633) em seu poema “O elixir”. Cristo é a pedra “filosofal” que transform a o m etal bási co da ex istênci a hum ana no ouro da re denção.
Esta é a pedra fa m o sa Que transforma tudo em ouro: Por ela que Deus toca epossui N ã o pode po r men os ser d ito.41
Herbert o poder cristã sobre Deus transforman do nosso modoassinala de ver as coisas.daOvisão mundo é transmudado de um metal básico em algo que D eus “to ca e possui” q ue não pode ser “dito ” — um m od o ma is an tigo de exp ressar a ideia de “ calcular” ou “avaliar” — de qualqu er cois a m enor. ; Desse modo, a fé nos oferece um ponto de vista, um par de lentes, a partir do qual e pelo qual podemos ver as coisas de um modo cristão.. O grande filósofo da ciência, N. R. Hanson (1924-1967), de Yale, aponta que o processo de observação é sempre “carregado de teoria”: vemos as coisas por lentes teóricas que nos ajudam a colocá-las em foco.4-r N um sentido,
Tema explorado em Darke Hierogliphicks: Alchem y tn English Litcr atu re fr om Chaucer to the Restoration, de Stato n J. LlNDEN, Lexington: Univ. Press of Kentuckv, 1996, P. 156 -19 2. ’ 41 MlLLER, Clarence H. Christ as the Philosophers Stone in George Herbert 's “The Elixir”, Notes a nd Quertes, v. 45, p. 39-41, 1998. H anson , N. R. Patterns o f Discovery: A n Inq uiry into the Concep tual Fowndations of Science. Cam bridge: Cam bridge Univ . Pre ss, 1961 . H anson , de sse m odo, argume nta que Tyeho Brahe (que acredi tava nu m sistema sol ar geocêntri co) eJoh ann es Kepler (partidári o do m odelo h eliocên trieo do sistem a sol ar) “veem ” coisas mu ito diferente? ao observar um imanhecer: Tycho v ê o s ol e m movim ento cruzando um horizonte est aci onári o, enquanto Kepler vc um horizonte cm movimento descendente expondo um sol estacionário. Para uma análise detalhada, v., de Matthias Adam, Theoriebeladenheu und Objektivitàt: Z.v Rolle von Beobachtungen in den Naturwissenschafte (Frankfurt: O nto s Verlag, 2002).
o cri stão e o secular ‘Veem ” o m esm o m und o; nu m ou tro sen tido, porém , eles veem algo totalm en te diferente, poi s inte rp reta m e avaliam a s coisas de forma s m uito div ersas , Eles usam distintos p ares de lentes. A fé crist ã pode, dessa m aneira, ser consid era da, nos te rm os de W il liam Jam es, uma hipótese de funcionamento honesta e confiável, ou, nos termos de H an son , um par de lent es que nos perm ite “ver” o m undo de um a for ma seg ura e con fiável. ,■
A natureza da fé Crer em Deus é confiar em Deus. Esta não é uma definição adequada de fé, mas é um excelente ponto de partida para outras ex plo rações. D eus é aquele em quem se pode confiar em m eio à tu r bulê ncia , confusão e am bigüidades d a vid a. C o n fiar em alg uém leva ao comprometimento. Esse é um padrão encontrado ao longo das narrativas de chamado e resposta que encontramos na tradição cristã. U m dos grandes exemplos de f é é o patriarca Ab raão. Abraão confi ou em Deus, deixou a casa de sua família e seguiu para uma terra distante (Gn 15,17). Crer em Deus é acreditar que Deus é digno de confiança, oaceitação que nos efetiva leva a confiar nele. Crer em Deus vai muito merase da existência de Deus; é declarar que além nessedaDeus pod e confiar. Esse é u m tem a fam iliar e fo i explo rado pelo s m ais im p o rta n tes escritores cristã os ao longo das era s,45 De modo semelhante, crer em Cristo vai além de aceitar a sua exis tência hi stór ica. Em seu senti do extr emo, a fé em C risto tem a ver com re conh ecê-lo com o aquele em q uem se po de conf iar. Q ua nd o Jes us de Nazaré perg unto u a um hom em que ele tinha acabado de curar se ele “cria” no Filho do hom em (Jo 9.35), o hom em curado sabi a claramente que não lhe e stava sendo perguntado se ele acreditava na existência de Jesus. Ele sabia que a perg unta era se ele estava pro nto para confiar em Jesus e se entregar a ele. 4:5 Ex celen te exemplo é Tokens of Trust: An Introduction to Christian Behef, W il l i a ms , LouisviUe: W estm inste r Jo hn Knox Press, 2007.
de Rowan
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A fé. os credos e o evangelho crist ão
N ão é, pois, por acaso que os evangelh os do N T le vanta m essa questão para nos ajudar a entender por que Jesus de Na zaré é digno de nossa confiança, e que forma tal confiança assume. Neste contexto, o chamado dos primeiros discípulos é de importância especial. No relato de Marcos desse evento dramático (Mc 1.16-20), Jesus profere estas singelas palavras: “Vinde a mim”. Nenhuma explicação ou elaboração é ofer eci da. M esm o assi m, o s pescadores deixar am tudo e ime diatam ente seguir am Jes us. Ne n hu m a razão é dad a para a deci são de seguir em aquel e estranho que entrou na vida deles de forma tão dramática. Marcos nos oferece a visão de uma figura totalmente convincente, que influencia a tomada de decisão apenas com a sua presença. Eles deixaram para trás as sua s redes — a base de sua esca ssa existênci a com o p escadores — e seguiram a estranha figura rumo ao desconhecido. Ele nem mesmo lhes diz o seu nome. No entanto, eles decidiram confiar nele. E nesse ponto que começa a fé que esses homens passaram a depositar em Jesus Cristo. Não é onde ela termina. Pois os evange lhos nos permitem ver os discípulos crescendo em sua fé à medida que, gradualmente, passam a entender mais sobre a identidade e o significado de Cristo/ Em primeiro lugar, eles confiaram nele; com o passar do tempo, eles passam também a entender quem ele era e passam a recpessoal o n h ec er sua eimemp oCristo rtâ n csendo ia j Mcompletada e sm o no com N T , isso leva a uma confiança emaDeus crenças que dizem respeito à identidade deles — em outras palavras, com declar ações d ou tri nais. Po r exemplo, o Ev ange lho de João narra as coisas que Jesus disse e fez, mostrando aos seus leitores razões por que podem se entregar a ele pessoal e intelectualmente. A narrativa das palavras e ações de Jesus foi escrita de forma que que possais crer que Jesus é o Cris to , o Filho de Deus , e para que, crendo , tenhais vida em
seu nome (Jo 20.31). Essa br eve incur são na term inolog ia cri stã no s perm ite fazer um a importante distinção entre f é — ger almente com preendi da de modo -dacional — e crença — geralmente compreendida de modo cognitivo ju conceituai. A fé primeiramente descreve uma relação com Deus,
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Hcrosu
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caracterizada pela confiança, pelo compromisso e pelo amor. Ter té em D eu s é dep ositar a con fiança nele, crendo que dela e le é m erecedor. As cr enças representam um a tentativa de colocar e m pal avra s a substânci a dessa fé, reconhecendo que as palavras nem sempre são capazes de representar o que elas descrevem, mas também reconhecendo a ne cessidade de tentar confiar às palavras o que elas, no final das contas, não poderiam conter. Afinal, as palavras são de importância efetiva na comunicação, argumentação e reflexão. E simplesmente inconcebível para os cristã os não tentarem expressar em palavras aquilo em que creem. Contudo, essas formulações de credo são, de certo modo, secundárias ao at o p rimá rio de con fiança e com prom is so. As p rime iras declarações de fé cr ist ã eram m uitas veze s breve s, até m esm o co ncisas.4 4'A con fissão de qu e Jesus é o Senhor\ (Rm 10.9; lC o 12.3 ) represen ta a mais comp acta forma de credo.4 5A s declar ações de fé mais extensas incluem afirmações que claramente trazem em si os temas nucleares dos credos posteriores. Um ótimo exemplo é encontra do na correspondência coríntia:
Porque prim eiro vos entreguei o que tam
bém recebi: Cristo m orreu
pelo s nossos pecados, segundo as Esc ritura s; e fo i sepultado; e ressus citou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; e apareceu a Cefas, e depoi s aos D o ze (lC-o 15.3-5).
Até certo ponto, Paulo entrelaça aqui a narrativa histórica e a interpretação teológica que se tornou uma característica dos pri meiros credos cristãos. A narrativa histórica de Jesus de Nazaré é reafirmada, mas é interpretada de um modo particular. Por exemplo, Jesus não apenas “morreu”, o que é uma declaração puramente his tóri ca; el e “m orreu p elos nossos peca do s”, o que é um a interpre taçã o 44 Sob re o des env olv im ento his tóri co d os cre dos, v. K elly , Early Christian Creeds, d e J. N . D . K elly, 3. ed. N ew Yor k: Longm an, 1981. 45 B ajley , James L.; B roek , L y l e D. Vander. Liter ary Forms in the N ew Testament: A Handbook. Louis vil le: W estm inster Jo hn Knox Press, 1992, p. 83-84.
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A fé. os credos e o evangelho cristão
do significado do evento histórico da morte de Jesus de Nazaré.-" A história, portanto, não é negada ou deslocada; ao contrário, cia é interpretada e vista de um modo particular. Essa observação nos ajuda a entender que os cristãos fazem mais do que si m plesm ente confi ar em Deus ou em Cristo. El es tamb ém creem em certas coisas muito bem definidas sobre eles. Isso, porém, não significa que a f é cr istã pode simplesm ente ser consi derada um a checagem de cren ças. De cert o m odo, o cri sti anismo é um a ré profu nd am ente relacionai que repousa na acei taçã o confiante que o crent e tem dc um D eus que, em pri meiro lugar, provou ser merecedor dessa confiança. Assim Samuel Taylor Coleridge observou certa vez: “A fé não e uma precisão de lógica, mas um a reti dão d o cor ação” / 7C on tudo , apesar des sa ê nfa se re laci onai dentro do cristianismo, resta uma dimensão cognitiva para a fé. Os cristãos não somente creem em Jesus de Nazaré; eles também creem em certas coisas sobre e le.j O apa recim ento das noções tanto de heresi a qu an to de or to doxia durante o século II deve ser considerado contra o pano de fundo do reconhe cim ento d a imp ortância de desenvol ver e sustentar um núcle o do utrinai segur o pa ra a m anu tenção da iden tidade e coer ência cr istãs.
A consolidacão j> da fé Um dos desafios com o qual a igreja primitiva deparou foi a con soli dação de suas cr enças. A evidência histórica suger e que, inicialmente, isso não era considerado uma prioridade. Mesmo por volta da metade do século II, a maioria dos cristãos parecia contente em viver com certo grau de confusão teológica. A imprecisão teológica não era vist a como ameaça à consistência ou existência da igreja cristã. Esse julgamento
4í’Exis te um a am pla liter atu ra sobre esse tem a. V., po r ex., The A ctua hix c; Aícnem ent: A Slu dy o f Metaphor, Rationalily, and the Chrulian Tra ditio n , de Conr. E. GfNTON, Grand Rapids: Eerdmans, 1989. 'C ol eri dge , Samuel Taylor. Complete Works, 7 v. New York: Harper & Brothers, 1884, v. 5, p. 172.
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deve se r vist o com o refletindo o contex to histórico daqu ela época : a lut a pela sobreviv ência n um am bie nte cultural e político hostil m uitas vezes fazia com que outros assuntos fos sem consider ados m enos imp ortantes. N o enta nto , o aparecim ento da controvérsia levou à crescente neces sidade de definição e formulação. E com essa crescente preocupação com a exatidão lógica surgiu um inevitável estreitamento dos limites daquilo que era con siderado cristi anismo “ autê ntico ”. A periferia da co munid ade de fé, uma vez relativamente solta e porosa, chegou a ser definida e vigiada com um rigor cada vez maior. Visões que an tes eram consideradas acei táveis co m eçaram a cair po r terra quan do u m exame mais r igoroso das cont rové rsias da ép oca com eço u a expo r as suas vulnerabili dades e defi ciênci as. Os mo dos de expressar certas doutrinas que as gerações anteriores consideravam sóli dos começaram a parecer inadequados sob um exame rigoroso. Não é que necessariamente estivessem errados; não eram bons o bastante. Um bom exemplo desse desenvolvimento pode ser visto nas pri meiras reflexões cristãs sobre a doutrina da criação. Desde o início, os escritores cristãos afirmaram que Deus tinha criado o mundo. Havia, porém , vários m odos de en te nder o que im plicava a noção de criação. Muitos dos primeiros escritores cristãos assumiram as noções judaicas existentes sobre criação, as quais tendiam a ver o ato da criação divina prin cip alm ente com o a im posiç ão da o rdem sobre a m até ria preexisten te ou a derrota de for ças caót icas. Tais vi sões perm ane ceram dom inantes de ntro do judaísm o até o sécul o X V I.48 O utros te ólo gos cr istãos, no en tanto, argum entavam que o N T apresent ava claram ente a idei a de cri ação com o o c ham ado para o ser d e todas as c oisas a pa rtir do nad a — um a ideia mais t arde co nhecida como criação nihilo. Quando essa ideia adquiriu predominância, a visão mais antiga da criação como a ordenação da matéria existente chegou a ser vist a prim eiro com o de fici ente e depois co mo errada.4 9 U m a ideia ^T irosh-S ajuu iíi .son, H ava.Theo logy ofN aturc in Sixteenth-Cen tury Itali an Jewi sh Philosophy, Science in Co ntex t , v. 10, p. 529-570, 1997. 4'’M ay, G erhard. C reati o Ex Nihilo: T he D octrine of Crcation O u t of N othing " in Ear ly Christian Thought. Edinburgh:T. 6cT. Clark, 1995.
A fé, os credos e o
evangelhocristão
outrora considerada predominante passa a ser, portanto, gradualmente deixada de lado, e por fim completamente rejeitada. Processos seme lhantes podem ser vistos ocorrendo em outras áreas do pensamento cristão, especialmente em relação ao entendimento da igreja sobre a identidade e o significado de Jesus Cristo. As vezes acontece o que parecem ser mudanças bastante radicais no pensamento. Um bom exemplo disso diz respeito à questão de ser possív el d izer que D eu s conhecia o sotrim ento . A visão p red o m in an te da igreja primitiva (mas não exclusiva) era que se poderia dizer que Deus conhecia o sofrimento, mas não o experimentava pessoalmente. N o século XX, um n úm ero cada vez m aio r de cristã os chegou à conclusão de que, na verdade, Deus sofria pessoalmente, sobretudo como conseqüência da encarnação. “Nosso Deus é um Deus sofredor” (Dietrich Bonhoeffer). Em parte, o crescente interesse moderno na noção de um Deus sofredor reflete um aumento na sensibilidade pela dor e pelo sofrimento no mundo, e uma nova preocupação em rela cionar o sofrimento de Cristo à angústia do mundo, por um lado, e à natu reza de D eu s, po r out ro.-’0 Um dos exemplos mais importantes do desenvolvimento doutrinai é encontrado na doutrina cristã da encarnação, que teve expressão formal no século IV. Essa afirmação pode ser vista como o clímax de um longo, cuidadoso e exaustivo processo de reflexão e exploração teo lógicas.5 1 A igr eja semp re reco nh eceu que Jesus de N a zaré era D eu s en carn ad o , to m a n d o a sua face visív el e os seus p ro p ó sito s e c aráte r acessív eis à h u m a n id a d e. C o n tu d o , a explo ração intelectual do que isso implicava levou mais de três séculos, envol vendo o e xame crít ico de um a gam a extens iva de tr aba lho intel ectua l Existe uma literatura bastante extensa sobre esse assunto. V., esp. The Creative zu rêrin g ofGod , dc Paul Fiddk s, Oxford: C larendon Pre ss, 1 988; The Suffering o f God: Old Testament Perspective, dc Tcrcnce E. F r etuk i m , Philadclphia: Fortress Press, l-S-; The S uffering o f the Impossibl e God: The Dialect tcs o f Patristi c Thought, de Paul SivrÜvuk , Oxford: O xford Uni v. Pr ess, 2004. V.. esp. Nicaea a n d lts Legacy: A n Approach to F ourth-C entury Trin itanan Theology , de Le',v;? Ayrf.s, Oxford: Oxford Univ. Press, 2004.
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p ara d a r sen tid o ao que a ig re ja já havia d esco b erto ser verdadeir o. E m certo sentido, a igr eja já sabia o que era t ão im po rtan te sobre Jesus de Nazaré. O problema era construir um embasamento inte lectual que fizesse justiça ao que já era conhecido sobre ele. E desse m odo, i nevit avelmente, caminhos err ados fora m tomado s. O último consenso sobre o melhor modo de formular o significado de Jesus de Nazaré — o Con cili o de Nicei a — c talve z mais bem pensado como uma fórmula segura, em vez de uma teoria cabal, fazendo uso de algumas noções metafísicas gregas que eram amplamente difundidas no mundo erudito daquela época. Alguns sugeriram que esse processo de desenvolvimento repr esentava um a dist orção da simplici dade srci nal da fé cri stã . Po r que a igre ja uso u noções metafís icas gre gas para dar teste m u nho de Cristo quan do tai s noções não fazem absolutamente p art e do N T ? O teólogo anglicano Charles Gore (1853-1932) estabelece com alguma profundid ade um a teoria clássica da relação entre o te stem unho bíblico de Cr isto e as interpretaç ões m ais desenvol vidas da sua ide ntida de e o se u signifi cado, co nfo rm e apa recem nos credo s crist ãos.5R espon dend o aos que afi rmavam que o test em un ho de Cris to, em sua simplici dade, f ora com prom etido e dis torci do pel o d esenvolvimento da h istória da Igreja, em especia l nos prime iros sécul os da fé, G ore insi sti u em afirmar que essas formulações teóri cas posteriores ser ão vist as como “o desdobramento gradual” de ideias e temas que já estavam presentes, se não explicitamente formulados, dentro do pensamento e adoração cristãos/" Gore indicava que a motivação para expressar o testemunho da igreja a Cristo em condições cada vez mais teóricas encontra-se em p arte no desejo hum ano de enten d er c, em parte , no dese jo de prote ger ou sal vaguardar um m ist éri o. Para G ore, “o cri sti anismo torno u-se m e taf ísico, apenas e sim plesm ente po rque o hom em é racion al”. 5! O de sen volvimento de ideias complexas, que ultrapassam a simples linguagem '-Coki:, Charles. The Incarnation of the Son of God p. 80-1 12. * ' :Ibidem, p. 96, 101. '4lbidem, p. 21.
London: John Murr-.iv, 1922. ’
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A fc, cs credos e o evangelho c-islão
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e imagem do NT, será visto em parte como o resultado inevitável da curiosidade intelecuial humana. N o en ta n to , para o desenvolvim ento de ta is id eia s, existe cla ra m ente alg o mais do que o desejo hu m an o de s on dar ou desafiar lim ites. Um dos temas a emergir da exploração da igreja primitiva sobre a encarnação é a necessidade de desafiar as interpretações existentes de fé para assegurar que elas sejam capazes de acomodar de maneira adequada e representar o mistério de fé.jisso significa explorar opções intelectuais, não simplesmente por curiosidade, mas por uma convic ção proiunda de que a sobrevivência e a saúde da igreja dependem de ass egurar a me lhor expli cação pos sível de íe jA busca p atrí sti ca pela ortodoxia não se ateve à suposição de que essa explicação já havia sido descoberta, embora assumisse que algumas aproximações razoáveis ti nh am sido desenvol vidas . D e c ert o m odo, esc ritor es com o A tanásio de A lexa nd ria acreditaram que a ortod ox ia ainda preci sava s er de sco be rta.55 A reivindicação fundamental da ortodoxia cristã para que seja dita a verdade sobre as coisas não poderia ser mantida sem que se soubesse se a verdade estaria ou não sendo completa e corretamente articulada através de formulações doutrinais existentes. N ós já usam os a linguagem dc m is té rio em re fe rê ncia às verdades que estão no cerne da fé cristã. E claro que tal ideia precisa ser consi deravelmente ampliada se quisermos entender a sua relevância para o conceito de heresia.
"reservando os mistérios da fé O primeiro desenvolvimento doutrinai cristão pode ser comparico a uma jornada intelectual de exploração, na qual uma gama de T.j$síveis modos de formular ideias nucleares foi examinada, algumas ..ca pontos leva ntados em “Defin ing H crcsv” , de R owan W j l l ia m s In: Kricidp.r ( Org .). . O r:ç:m ct C hnstendom m the West. Edinburgh: T. &.T. Clark, 2001, p. 313-335.
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para se rem afirm adas e outras para sere m re je itadas. Esse pro cesso real mente não deveria ser pensado em termos de vencedores e perdedores; ele é mais bem com preendido como um a busc a de aut entici dade — um “conflito produ tivo sobre objet ivos e priorida des entre os cr ist ãos”56 — no qual todas as opções foram examinadas e avaliadas.’7 De qualquer modo, esse processo de exploração era natural e ne cessário. Ao entrar no século II e -além dele, o cristianismo não podia perm anecer congelado em suas form as do século I. Ele enfrentava novos desafios intelectuais que exigiam dele a prova de que era capaz de lidar com alternativas religiosas e intelectuais em relação a ele, especialmente o platonismo e o gnosticismo. Esse processo de expansão conceituai dos conteúdos da fé cristã foi executado de forma lenta e cautelosa. A crista lização fi nal desse proces so de exploração pod e ser vist a na form ação dos credos — declarações de f é autorizadas, que represen tavam o consensm fid eh u m , “o consenso dos crentes”, em vez da expressão de fé privada, ind ivid ua l.58 Essa viagem de exploração intelectual implicava a investigação de cam inhos qu e no fi nal s e mo straram est ére is ou perigosos. A lgum as vezes atalhos errados foram tomados num primeiro momento, mas depois corrigidos. É fácil entender por que muitos podem acreditar que os primeiros modelos de fé são os mais autênticos. No entanto, algum as con hec idas formas de vi sõe s que a igr eja de clararia m ais t arde como herét icas — po r exe mplo , o ebi onismo e o doceti smo — pod em ser identificadas dentro das comunidades cristãs tanto no começo quanto no final do século I. Embora muitos dos primeiros escrito res cristãos, como Tertuliano, defendessem que a antiguidade de uma
^ W il l i a ms , Row an. Doe s It J VIake Sense to S peak o f Pre -N icenc Orthod oxy? In:
____ (Org.). The M akin g o f Orthodoxy. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1989, p.
1-23; citado na p. 2. 5'G kaxt , Robert M . Heresy and Criticism: The Seareh fo r Au thenticity in Early Chrh tian Literature LouisvUle W estm inster Joh n Knox Press , 1993, p . 1-13, 89-1 13. '^J ohnson , Luke Timothv. The Creed: What Christtans Believe and Why It Ivlatten. N ew York: Doubleday, 2003.
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A fé, 05 credos e o evangelho cristão
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visão teológica era um guia confiável para a sua ortodoxia, isso sim plesm ente não procede. E rro s foram com etid os, desde o p rin cíp io , os quais tiveram de ser corrigidos pelas gerações posteriores. Então isso significa que a igreja primitiva entendeu mal ou apresentou Jesu s de Na zaré de forma inapropri ada? sobr e um po nto m uito importante: desde o princípio, os cristãos souberam o que realmente importava sobre Deus e Jesus de Nazaré. A dificuldade estava em encontrar uma base teó rica para dar sentido a isso. Era preciso desenvolver um suporte intelectual para preservar o m istério, salvaguardar o que a igreja tinha descoberto como verdadei ro — um proces so que exi ge discernimento e elab ora ção. O pon to crítico a considerar é que esse suporte intelectual não é em si totalmente descobe rto po r revelação divi na. A do utrin a é algum a coisa construída, pelo menos em p arte, em resposta à re vela ção para salvaguardar o que foi r evel ado. A controvérsi a ariana do século IV pod e ser vista como u m deba te confuso, embora algumas vezes produtivo, sobre qual de uma série dessas estruturas doutrinais construídas seria mais apropriada para assegur ar e dem on strar o mistéri o de Cristo. Q ue estrutura ofer ecia a m elhor integração do complexo testemunho bíblico com a identidade e o significado de Cristo? A igreja sabia que a natureza e os propósitos de Deus eram reve lados em Jesus de N azare, em bora o d ebate esquentass e sobr e com o dar mais sen tido a isso. Os escrit ores cri stãos estavam pe rfeitam en te cientes de que a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré haviam transfor mado a situação humana; a tarefa deles era explorar, de forma paciente e completa, todo o modo concebível de dar sentido a isso. Quando o Concilio de Niceia declarou que Jesus era '‘verdadeiramente Deus e ver da de iram en te h om em ” e que el e era “con sub stanciai” com o Pai, foi sim plesm ente assegura do aquilo que os cristãos já sabiam ser v erd adeiro. A doutrina, então, de uma vez por todas preserva os principais mistérios no cerne da fé e vida cristã, enquanto permite que sejam examinados e explorados em pro fun did ad e.59
"M cG r at h, Alister.TA? Genei ii o f Doctrine (Oxford: Blackwell,
1990, p. 1-13).
O aso do termo técnico “mistério” merece um comentário. Seu sentido fu nd am ental é de “ algum a coi sa tã o gran diosa que não p ode ser captada pela mente humana”. A mente humana é subjugada pela imensidade daquilo que experimenta de Deus — uma questão expressa, p o r exemplo , na fam osa concepção de R udolf O tto de um “trem endo m istério ”/ ’1' N u m a discussão clássi ca desse assunto, A g o stin h o p er guntou por que as pessoas se surpreendiam por não poderem entender Deus completamente. “Se ele fosse compreendido”, ele observa, “não ser ia D eu s”. 61 A go stinh o não est á suge rindo que a cr ença em D eu s se ja irraci onal; ant es, e le est á dem on strand o que a m ente h um an a luta e , no final, perde em sua contenda com a grandeza de Deus. Sendo esse o caso, a teologia sempre se revelará inadequada para fazer ju stiça às verdad es que repo u sam no cerne da fé cristã . Podemos buscar a precisão teológica, contudo, nossas tentativas de lidar com a realidade de Deus e o evangelho cristão serão sempre contrariadas pelas limitações da mente humana. Como mostra o estudioso da patrística Andrew Louth, o evangelho não pode ser reduzido a palavras ou ideias humanas:
E m sen cer ne e stá a compre ensã o de C risto co mo o m istério div ino : uma ideia central às epístolas do apóstolo Paulo. Esse segredo é um seg redo que foi contado; mas a pesar d isso co ntinu a sendo um segr e do, pois o que f o i declarado não pode ser sim ple sm ente captado, um a vez que se trata do segredo de Deus, e Deus está além de qualquer compre ens ão h um an a., ã
'■"Wark, Owen. Rudolf Ottos Ideal of the Holy: A Reappraisal,
Hevtkrop Journal,
v. 48, p. 48-60, 2007. Um trabalho recente sobre a psicologia do medo enfatizou a imp ortânc ia dessa imensidade conceituai ao criar es sa resposta . V. Approachi ng Aw e, a Moral, Spir U uala nd Aeslhetu Emotion, de Dacher K f.lt nk r Co gnit ion and Emotion, v. 17, p. 29 7-3 14 ,20 03 . ’ 1,1HlPONA, Agostinho de. Sermão 117.3.5: Si emm cornpreheiidis, non estDeus. “ LOUTH, A ndrew . Or igim o f the Christi an M ystical Tn uhtion: From Pia to to Deny s. Oxford: Oxford Univ. Press, 2007, p. 205. [
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A fé, os credos e o evang e'ho cristão
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Ob ser vação sem elhante é fei ta po r Go re, que tam bém enfat iza a incapacidade das palavras humanas na busca de fazer justiça às verdades divinas:
A linguagem h u m ana ja m a is pode expressar adequadam ente as verdades div inas . IJma tendência
constante a se desculpar pe la
fa la hum ana, um grande elemento de ag nostu m no, u m a te rrív el percepção de u m a pro fun d ida d e loiossal, m uit o alé m do pouco que é revelado , está sempre pre sen te n~. m ente dos te ólogos que sabem com o que estão lidando , ao concecer ou expressar Deus. "Nós vemos", d iz S ão Paul o, 'nu m espelho. em term os de um e nig m a'; "nós conhe cemos em parte". N ó s somos comp elidos", recl ama S anto H ilário, "a tentar o que. é inacessível
:>•o'ide não podemos chega>\ falar o
que não pod em os proferir; em vez da mera adora ção da f é, somo s compelidos a confiar as coisas fi-omr.das da religião aos riscos da expressão h um an a ”.63
Gore, no entanto, argumenta que as formulações doutrinais esta bele cem as declarações do m is té rio de C risto no N T ,‘num a nova fo rm a de proteger os propósitos, da mesma maneira que uma representação legal protege um princípio moral”. A doutrina, então, preserva os principais mistérios no cerne da f é e da vida cr is tã. Em bo ra não partam necessari am ente de um a revel ação divina, as do utrina s em qu estão sã o validadas em parte pelo seu fu n d a m e n to em tal re vela ção e, em p arte , pela su a c ap a cidade de defender e compreender a revelação. O mistério está ali e ali permanece, antes de qualquer tentativa de dar sentido a ele e expressá-lo em palavras e fórmulas. No entanto, o cue acontece se determinada doutrina volta-se para proteger esse mistério, quando na realidade acaba por solapá-lo? E se a base teórica confiada para p ro teg er e ab rig ar um a visã o cen tral da fé revela-se c o rro e n d o -a ou Goiíf.. Jncarnation.-p. 105-106. I
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distorcendo-a? Essas questões levam à essência da heresia., Uma he resia é uma doutrina que no final acaba destruindo, desestabilizando ou distorcendo um mistério , em v ez de preservá-lo. As vezes, uma doutrina que se pensava estar defendendo um mistério mostra-se, na verda de, subvertendo-o. Uma heresia é uma tentativa fracassada rumo à ortodoxia, cuja falha repousa não em sua disposição para explorar as possib ilid ades ou im p o r lim ites conceitu ais , m as em sua relutância em aceitar que, na realidade, talhou. C on form e já observam os, as estr uturas do utrinais s ur ge m, da n do sentido ao encontro cristão definitivo com a experiência de Deus, especialm ente em e por Jesus de N aza ré.64 A teologi a crist ã ten ta lançar uma rede envolvente e protetora sobre a experiência cristã fun da m en tal da r evel ação e açã o de D eus na vi da, m orte e r essurrei ção de Jesus de Nazaré. As declarações doutrinais foram desenvol vidas para p reservar e defen der o nú cleo da vi são crist ã da realidade. Esse proces so, já em cur so no N T, foi consoli dado e est en dido d u rante a er a patrís ti ca. M as, e qu and o sobr e um a declar ação do utrinai, cujo primeiro objetivo era defender e preservar — e, no princípio, acredit ava-se funcion ar assi m — , descob re-s e que, na verdade, el a enfraquece e corrompe? A ameaça que a heresia representava à comunidade cristã mui tas veze s foi e xpre ss a usa nd o-se imagen s extraí das da vida do antigo Israel, especialmente a preocupação em manter a pureza e evitar a corrupção ou “impureza”. A heresia era vista como contaminante, algum a coisa que po luía e maculava a pureza da i grej a. I sso é expres so de form a particularm en te clar a po r Jerô nim o (c. 34 7-4 20 ), q ue enfatizava a importância de manter a pureza da igreja:
Mv. The M akin g o f Chri stian Doct rine, de Maurice F. WlLES, Cambridge: Cam bri dge Univ. Press, 1967; The Genem o f Doctr ine, de Alister M cG r at h, Oxford: Blackwell, 1990, p. 1-13.
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A fé. os credos e o evangelho cristão
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Corte a carne estragada, expulse a ovelha imunda do rebanho; do contrário, tod a a casa, todo opa sto, todo o co rpo, todo o rebanho q ue i marão, perecerão, apod recerão ou morr erão. Ar io não pa ssa va de um a brasa em A lex an dr ia, mas, com o aquela brasa não f o i im edia ta m ente extinta, todo o mun do civilizado foi devas tado p or sua chama! *
Há nessa passagem claros ecos do código levítico, que exigia a exc lusão dos indivíduos co ntam inado s ou “ im pu ros” da com unidade, em razão do s eu im pac to po tenc ialm en te de strutivo.6 6 A construção h um ana de mu ros, c ercas e fo ssos pode ser vis ta como um a expre ssão da imp ortânc ia de estab elec er barr eir as pa ra proteger a ide n tidade da com unidade.6 7 Sabe- se m uno bem que a identidade de um grupo é ma ntid a pela excl usão daqueles que são considerados um a am eaça às suas ideias ou valores. Ainda que o processo pelo qual as comunidades excluem os indivíduos ou grupos considerados intelectualmente corruptores ou moralmente impuros possa ser descrito usando as categorias da psicologia social, é importante avaliar que tal exclusão resulta do julgamento de que certas i deias sã o peri gosas para a est abilidade da p rópria com unidad e. Essa breve anál ise da natureza da crença s erve com o p ano de fu n do para um a anál ise mais detalha da do renô m eno da her esi a, para o qual nos voltaremos agora.
^JerôNIMO. Commentarius in epistulam ad Gaiatas 5. Tradução _:vre. “ V. uma análi se clá ssi ca e um com entário em Purity ara Dar.ger: An Analysis of Concepts of Pollution an d Taboo, de M ary Dou glas (Lon don: R outl edge, 2003) . 67A brah am s, Dominic; H o g g , M ichael A.; M ar q u es , José A L A Social Ps ychological Framew ork for U nde rstandin g Soci al Inclusion and Exclus ion. I n : _____ (Orgs.). The Social Psychology o f Inclusion and Exclusion. N ew \'orK : Psychology Press , 2005, p . 1-23. [
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2 As srcens da ideia de heresia s conceitos morrem quando deixam de corresponder às necessidades sentidas ou a uma realidade vivida. Outros continuam a existir porque expressam ideias que permanecem com o signi ficati vas, r essoando a experiênci a de in divíduos e comunidades. A heresia pertence a essa segunda categoria de conceitos. Embora alguns a considerem corrompida e desacreditada devido às suas antigas associações com a imposição da orto doxia religiosa, a maioria reconhece que a heresia expressa uma ideia importante e essencial a todos os que refletem sobre as questões mais profundas da vida. Todo movimento baseado em ideias ou valores nucleares precisa determinar, por um lado, o seu centro e, por outro lado, os seus limites. Qual seria o foco do movimento? E quais seriam os lim ites da divers idade de ntro do m ovimento?
O
, A caracte rística essencial de um a heresia é que ela não significa incredulidade (rejeição das crenças centrais de um a visão de m und o com o o cristianismo)
H e i OS ici
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no sentido estrito do termo, mas uma forma de íé que, no final das contas, é considerada subversiva ou destrutiva, e, assim, leva indiretamente ao es tado de incredulidade. A incredulidade é o resultado, mas não a forma, da heresia. Conforme observa o historiador Fergus Miller, heresia “não é um simples relato de realidades observáv eis”;1'* antes, é um julg am en to d e que cert o co njunto de id eias apresent a um a am eaça à com unida de de f c. Heresia não é um a noção em píri ca, mas conceit uai. D e cert o m odo, trata-se de uma noção construída ; nesse sentido, é o resultado do julga m en to o u avali ação de um con junto d e idei as po r um a co munid ade — ness e caso, a igreja cristã. Considerando o que acabamos cie dizer, fica claro que não é possí vel entender o fenômeno da heresia em geral, ou as heresias individuais espec ífica s, si m plesm ente no nível das idei as heréticas. É preci so explorar como e por que tais ideias foram julgadas pela própria comunidade cristã, frequentem ente po r um longo perí odo de tem po, c omo um a ameaça à íé. Para entender a natureza da heresia, precisamos então considerar tanto as ideias tidas como heréticas quanto os processos sociais pelos quais elas foram assim definidas e condenadas. Ademais, a heresia é uma noção socialmente incorporada, designando comunidades de discurso tanto quanto de ideias, e levantando a questão da ameaça social ou política re presenta da por com unid ades heréticas às suas contraparte s ortodoxas. U m dos t em as mais persisten tes nas pri m eiras narrati vas cr ist ãs da heresia é que ela penetra clandestinamente nas narrativas da realidade concorrentes dentro da família de fé. E um cavalo de Troia, um meio de estabelecer (seja por acaso, seja por desígnio) um sistema de crenças alternati vo de ntro do seu ho spe deiro .69 A heresia parece ser cr ist ã, mas é na verdade uma inimiga da fé, que espalha a semente da destruição.™ bSC i observ ado em Rep entent Heretics in Fifth Cen tury Lydia: Id entity and Literacy , de Fergus M i l l er , Scripta Classica Israelica, v. 23, p. 11 3-1 30, 2004. "vVON HlLDEBRAKD, Dictrich. Trojan Horse in the City o f God: The Catholic Cris is Explained. Manchester: Sophia Institute Press, 1993. Hildebrand afirma que o secularismo conquistou espaço na igreja católica, na época do Concilio Vaticano II (1962-1965), levando a uma erosão dc seus valores e crenças. 70V. Summa Theologíae, de Tom ás de A quino , 2a2ae q. 11 a. 1: “A heresia é um a espécie de descrença que pertence àqueles que professam a fé cristã, mas corrompem os seus dogmas”. [
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As srcens Caide
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Ela poderia ser comparada a um vírus, que se fixa dentro de um hos pedeir o e, p o r fim , usa o sis te m a de replicação de seu hospedeir o para conseguir a dominação. Entretanto, independentemente do que esteja na srcem da heresia, a ameaça vem de dentro da comunidade de fé. Por exemplo, considere o recente debate na Indonésia sobre se a seita islâmica Al-Qiyadah Al-Islamivah deveria ser reconhecida como isl âmica ou tr atad a com o ou tra reli gião / M uitas organizações i slâmic as indonésias são hostis à Al-Qiyadah Al-Islamivah porque suas visões diver gem do isl amismo popu lar , de m aneira m ais notável qua nd o afi rma que o bajj — jejum — e as cinco orações diá rias não são com pulsórias, e em razão de sua expec tat iva do surgime nto de um novo profeta depoi s de Maomé. A questão central é se as visões da seita serão consideradas como representando zM/z/a/Xdiferenças de opinião legítimas dentro do islamismo) ou se tais visões estão fundamentalmente em conflito com as cr enças e práticas isl âm icas.72 A l-Q iya da h Al-Islam iya h refere-se a si mesma como islâmica, de forma inquestionável; e seus membros re agiri am com ho rror a qualqu er sugest ão d e que ele s são kujfar (infiéis). N o enta nto, os seus críticos d en tr o do isla m ism o indonésio argum en tam que as ideias que defendem, no final, subvertem e ferem as crenças centrais do islamismo. A heresia, portanto, representa uma ameaça à fé, possivelmente mais séria do que muitos desafios que têm srcem fora da igreja cristã. Os hereges eram os “de dentro” que ameaçavam subverter e dividir. Le ster K urtz fa la da “forte união da p roximidad e e da distância” na h e resia, em que o movimento é simultaneamente um “de dentro” e um estran ho ao seu hosp ede iro.73 Ao p rop or um a análi se sociológica do sig nificado da heresia, o teórico social Pierre Bourdieu (1930-2002) indica ^yoiiardi Bachyul Jb, Two Former Al-Qiyadah Activists Gcr Three Years for Blasphemy, Jaka rta Pcst, 3 de maio, 2008. 2U m debate simi lar sobr e o ponto de v ista d e N asr H am id A bu Zayd surgiu recentemente no Egito. Cf. Heresy or Hermeneuttcs: The Case o f Nasr H am id Abu Zayd, de Charles H iksc iikind , Stanford H um anities Rev iew, v. 5, p. 35-5 0,19 66. 'Uma análise contundente dessa questão pode ser vista em The Politics Heresy, de L es ter KüRTZ, American Journ al ofSociclogy, v. 88, p. 1085-1115, 1983. I
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o seu potencial de arruinar ou desestabilizar as concepções nucleares de um a vis ão de mu nd o, ou de identif icar al gum a instabili dade den tro dessa visão de mundo que leve á sua modificação radical. Em cada cas o, af ir m a B ourdieu, o r esult ado é o m esmo: invo luntariam en te aju da os op on en tes externos do m ov im ento .74 Toda visão de mundo, seja religiosa, seja secular, possui as suas ortodoxias e heresias.7 5E m bo ra os conceitos de heresia e ortodox ia te nh am su as or igens den tro do cris tianism o primiti vo, el es s e mo str aram úteis a outras tradições religiosas, de um lado, e a ideologias políticas e cient íficas , de outr o. O desenvo lvimento do d arw inis m o, por exemplo, testemunhou a ascensão e queda dos modos de pensar e escolas de p en sam en to , com os te rm os “h eresia” c “o rtodoxia ” sendo am p lam en te usados d en tro do ca m po p ara iden tif icar os am igos e inim igos.7 0 Por exemplo, o conceito da evolução neutra, de Motoo Kimura (pela qual as substituições aleatórias de aminoácidos nas proteínas podem explicar a maior parte das diferenças de seqüência entre espécies) foi considerado heréti co po r m uitos biólogos quan do foi apresentado pel a p rim eira vez no fin al dos anos 1960.77 H o je ele faz p a rte da ortodoxia darwinista. A apropriação da linguagem religiosa para descrever tais controvérsias é uma indicação tanto da seriedade com que todos os lados assumem suas posições quanto do sentimento de que certas po siçõe s den tro do espectro do da rwinism o são absolutam ente perigos as. Se a evol ução po de ser referida com o um a reli gião, en tão ela po ssui a s suas orto do xia s e he res ias .78 ■'Bourdif.ü, Pierre. Genesis and Structure oi the Religious Field. Comparative Social Research, v. 13, p. 1-43, 1991. /SV. os pon tos levantad os em The Constmction o f Orth odox y a nd Her esy: Neo- Confucian, N, A lbanv: State Islamic , Jewish, and Early Christian Patterns, de John B . H enderso Univ. o f N ew Y ork Pres s, 1998. "Ll/STIG, Abigail; Ricíiards, Robert J.; Rlisr;, Michael (Orgs.). D arw inia n Heresies. Cam bridge: Cam bridge Univ. Pr ess , 2004, p. 1-13. I.i.ü JH, Egbert G. Neutral Theory: A Historical Perspective Evolu tionary Biology, v. 20, p. 2 075-2 091,2 007. ' ‘ 'KSobre o fun da m en to dessa sug estão, v . Evolution as a Religion: Strange Hopes and Strang er Fears , de M ary MlUGLEY, 2.ed .( Lo ndo n: Rouded ge, 2 002. [
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As srcens dd ideia de heresia
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O mesmo padrão de desenvolvimento pode ser visto na ciên cia médica moderna. Considerada de um ponto de vista sociológico, a medicina moderna surgiu através de uma interação complexa de teo rias concorrentes sobre as srcens das doenças e como elas precisam ser tratadas. As ideologias dominantes surgem regularmente, sustentadas em pa rte p or suas credenciais científ icas e , em parte, p or fatores soci ais signifi cativos.7 9 O atual deb ate sobre a r elação do H IV com a aids , po r exemplo, é regularmente trazido à baila em termos de escolas de pensa m en to “ ortodo xas” e “heréticas”/ 11As idei as m orrem qu and o d eixam de ser útei s. A heresi a con tinua a exis tir — quer como um a noção teológi ca, quer como uma noção secular. Como o termo “heresia” passou a referir-se a formas de fé desestabilizadoras ou destrutivas? Com o passar dos anos, as palavras fluem, mudam seu significado e associações. Nossa língua oferece muitos exemplos de palavras cujo significado parece ter mudado tão radicalmente em alguns séculos que hoje significam mais ou menos o oposto do seu sentido srcinal. A palavra “urbanizar” srcinariamente significava “tomar(-se) urbano; civilizar(-se)” — em outras palavras, “torn ar (-s e) cortê s, po lid o”.SLl H oje , ela se refere à conve rsão d os po uc os espaços abertos num amontoado de cidades. A palavra, srcinalmente positiv a, foi degradada e passou a sig nificar o que é visto hoje com o o lado negativo do desenvolvimento. O mesmo processo pode ser visto no desenvolvimento da língua grega. A palavra hypocrites srcinariamente signifi cava “um ator”, e era usada com frequência no século V a.C, em
■'Cf. “T he D ynam ics o f H eresy in a Professi on”, de Paul R oo t W
ol p e
,
Socia l Sr.ence
and Medic ine , v.39, p. 1133-1148, 1994; Schism and Heresy in the Developnient oí O rthodox Medicine : T he T hreat to Medi cai Hegemony", d e R. K ennet h ÍONES. Social Science an d Me dicine , v. 58, p. 703-712, 2004. " M ar ti n , Brian. D issent and H eresy in Medicine: Mode ls, M ethod s, and Str are gic s. Social S cience an d Med icine , v. 58, p. 713-725, 2004. 1' [NT] Todas as acepções foram extraídas do Dicionário Houaus da Ungiiaportuguesa.
referência a determinado ator que tinha papel de destaque num drama." Com o passar do tempo, porém, a palavra desenvolveu gradualmente um significado mais sombrio: alguém que pretendia ser o que não era — em outras palavras, um mentiroso, ou o que hoje chamamos de “hipócrita”. Uma palavra srcinariamente neutra adquiriu, assim, um senti do fort em ente nega tivo. Uma mudança mais complexa de significado é verifica da na palavra grega hairesis , da q ual d eriva o term o “he resia ”. Originalmente, essa palavra significa “um ato de escolha”; mas, com o passar do tempo, desenvolveu gradualmente os sentidos es tendidos de “escolha”, “um curso preferido de ação”, “uma escola de p e n s a m e n to ” e “u m a se ita filo só fic a o u re lig io s a ”.s-! P o r ex e m p lo , o estoicismo é muitas vezes referido como uma hairesis (ou seja, uma “escola de pensamento”) pelos escritores gregos do final do p e río d o clá ssico, co m o fo ram as v árias escola s m éd icas d a época. Josefo, o histo riad o r jud eu do séc ul o I, refer e-se aos saduceu s, fari seus e essênios como exemplos de haireses, pelo qual ele quer dizer “p artid o s”, “escolas” ou “ag rup am en tos”.3 4D e m od o ne n hu m , Josefo insinua que algum desses grupos é não ortodoxo; ele simplesmente observa que eles constituem grupos separados, identificáveis den tro do judaísmo. O termo grego hairesis é claramente entendido como um ter m o neutro, não pejor at ivo, não im pli cand o louvor nem crítica; ele se refere a um grupo de pessoas que têm visões comuns. O termo é descritivo, não avaliativo. E nesse sentido que o termo grego hairesis é usado no NT. Se a palavra tem quaisquer associações negativas nesse período, isso parece estar relacionado ao divisionismo social e à rivalidade intelectual que tais esc olas d e pe ns am en to às veze s criava m. A form ação de fac ções er a
S2Z erb a, M ichell e. M edea Hy pokrites. Arethusa v. 35, p. 31 5-3 37 ,200 2. 8-’R unia , David T . Philo of Alexandria and the G reek Hairesis-M odel. Chris/ianae, v. 53, p. 117-147, 1999. O plural de hairesis é haireses. S4J osefo . Antiguidades judaicas, 13.171.
Vigiliae
As srcens da ideia de heresia
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vist a claram ente co mo um a am eaça à unida de das c om unid ade s cristãs.'05 C on tud o, ness e período, não h á ne nh um a suges tão de que um a “facção ” ou “gru po ” seja em si perigoso ou te nh a a capacidade subve rsiva ou destrutiva que os escrit ores crist ãos c ostum avam assoc iar a “heresia” . A preocu pação é que a divisã o em facções destrói a un idad e c rist ã e encoraja a rival idade e a ambição pessoal. O que está em causa não é o aparecimento de “gru pos” ou “partidos”, mas as conseqüências negativas dessa ocorrência para a un idad e das igr ejas, cujos líderes a dm inistram mal ess a ocorrência. Ess e po nto fi cou obscur eci do p or t raduções inf luent es do N T que criar am a imp ress ão de que a heresia er a um prob lem a roti ne ir o p ara as c o m u n id a d e s cristãs do século I. A m ais sig m fic a n te das p rim e ira s tra d u ç õ e s in g le sas do N T foi p u b lic a d a em 1526, p o r W ill iam T yndale ( c. 149 4-1536) . Tvndale dem onstr ou um a com p e tê n c ia lin g ü ístic a e u m a p ersp icác ia so cio ló g ica que estav am à frente de seu tempo. Ele traduziu o termo grego hairesis por “seita”, com isso expressando precisamente suas tendências à facção e fis são. 86 C o n tud o , a im en sam en te influe n te Versão do Rei Tiago, de 1611, muitas vezes conhecida como Versão Autorizada , e louvada p o r sua p rec isão n a tra d u ç ã o , h a b itu a lm e n te tra d u z iu o m esm o te r mo grego por “heresia”, criando, assim, a percepção historicamente incorreta de que o fenômeno posterior que passou a ser conhecido p o r esse n o m e já esta va p re se n te n o p ró p rio N T . P ara ilu stra r a imp ortância dess a questão, vamos com parar a tr adu ção de Tyn dale com a da Versão do Rei Tiago (Ver são K ing Jam es) de 2 Ped ro 2. 1, com a ortografia inglesa srcinal encontrada nessas fontes: "Cf. Secular an d Ch ristian Leader shíp in Corinth: A Soa o-H istorical an d Exegetical ifu d y o f 1 Corinthians 1 —6, de Andrew D. C.LARKE, Leiden: Brill, 1993. Embora íü simpatize com os pontos levantados por Craig Blomberg, eles se resumem a j.ma d em o n str ão de dasapresentar preocupações do mais N T específica so bre o im acto negati ensinamento, emaçvez uma ideia (e pposterior) de vo do falso -eres ia. V. “T he N ew Testam cnt D efiniti on of H eresy (o r W he n D o J esu s and ” e A postles R eally G et M ad ?)”, de Cr aig L. B LOMBF.RG ,J ourna! o f th í Eva ngélica! - hích gic al Soc iety, v. 45, p. 59-72, 2002. :T. . a tradução de Tyndale de lC or ínt io s 11. 19; Gálatas 5.20: 2Pedro 2.1. Em haeresis p or ‘‘heresia" . à :.: s 24.14, Tyndale traduziu o termo grego
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] T yn da le (1 52 6) : "T he r sha l be falce teacher s a m ong e you: - zuich prevely shal! brynge in d a m n a b k sectes even denyin ge the L o rd e”. ( “H a ve rá fal sos mest res entre vós : que pr iva d am en te trarão seitas condenávei s, a té mesmo negando
o Sen ho r' \trad. livre \ )
R e i Tia go (1611): “There sh aü be false te acher s a m on g you, who p r i v i l f 1 shal! brin g in dam nable heresies, even denyin g th e L ord". ( “H a v e rá falsos mestre s entre vós, q ue secretamen te trarão here sias conde náveis, at é mesmo negan do o Se nh or” \trad. hvre~\.)
A heresia pode não ter surgido como um assunto significante no cristianismo apostólico, embora haja sinais claros do aparecimento de visões que mais tarde seriam consideradas heréticas. Tais ideias podem ter s e srcinado du ran te a era apostólica; a naturez a heré tica del as surgiu apenas durante o século II. Ao longo desse período formativo, os escri tor es cri stãos desenvolveram um sentido m uito especí fico do term o haeresis (a ortografia latina do hairesis de trabalho grego). Ele já não tinha o sentido neutro de uma opção intelectual ou de uma escola de pensa m ento. O termo com eçou a desenvol ver acepç ões fortem ente negat iva s, designando aqueles cujas visões os forçaram a se retirar da igreja ou dela serem expulsos.ss Como enfatizamos, algumas dessas visões eram co nhecidas, fr equ entem ente em formas primiti vas, pel os escri tor es do NT. O julgamento de que tais visões eram heréticas — em vez de mera m en te ina deq uad as o u inacei távei s — refl ete a sit uação ecles iást ica d o século II, não do século I, especialmente na igreja romana. Haeresis designava agora uma “escolha”, no sentido de preferir ideias teológicas especulativas particulares (como aquelas cujo surgimento foi observado s'E m inglês a ntigo a palavra “ privil v” (Tyndale: “ prevely” ) significa “ priv ada m ente " ou “secretamente”. Sobre os debates acerca dessas clássicas traduções inglesas da Bíblia e o impacto delas sobre a formação da língua inglesa, v. William Tyndale: A Biogra phy, de David D a jMKLL, N ew H av en : Yale Univ. Press, 1994, p. 83-1 50; In the Beginning: The Story of the K ing James Bible , dc A lister M c G rath , N ew York: Dou bleday, 20 01. 8SNüRRIS, Richard. H eresy and O rthod oxy in the Late Second Century. Union Heminary Quarferly Revieiued, v. 52, p. 43059, 1998.
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As or gc ns da ideia de heresia
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pelo s escrito re s do N T ) em lu gar do pen sam ento da com unid ade cristã com o um tod o.w E m bo ra o s docum entos jur ídi cos i mp eri ais co ntin u assem a usar a palavra latina haeresis no sentido neutro até o século V (por exem plo, pa ra d esigna r um a “agrem iação” ou “ assoc iaçã o” de tra ba lhadores profissiona is), 90 o uso especificam ente cris tão do term o passa a ser associado a controvérsias religiosas e seus resultados políticos.
Heresia logo se tornou um termo pejorativo, em vez de descri tivo. Os sociólogos observam muitas vezes como certos conjuntos de “ oposi ções binárias” — com o “m ach o-fêm ea” e “branc o-p reto” — desem penham u m papel fu n d am en ta l na constr ução social da ca tegoria de “o outro”. A noção de “o outro” — regularmente usada na retórica da exclusão ou depreciação — corresponde essencialmente à metade desvalorizada ou estigmatizada de uma oposição binária, e é prin cip alm ente usada para se referir a grupos de pessoas vistas com o inferiores ou que se acredita constituírem uma ameaça. A identida de de um grupo é muitas vezes alimentada pela definição do “outro” — a exem plo do nazism o alem ão, com sua predo m inante oposição bin ária “ariano-ju daic a”. A m esm a observação é feita, de m odo d i vertido, embora seriamente, por George Orwell em A n im a l Farm [A revolução dos bichos], em que a oposição binária predominante é formu lada com o “quatro pernas, bom; duas pernas, m au ”. N o sécu lo II, a oposiç ão binária “h eresia-orto doxia ” com eçou a surgir como um modo de excluir certos grupos e indivíduos da igreja cristã. Hairesis passa, então, a significar uma escola de pensamento que desenvolvia ideias que subvertiam a fé cristã, em oposição à ortodoxia — um a versão autê ntica e norm ativa da fé cristã.'11 O te m a deste livro é esse acontecimento e as questões que ele suscita. Como aconteceu? E ^C ha dw ick, Henrv. East a nd West: The M a h n g of a R ift m the Church: From Apostolic Times Untilthe CouncilofFlorence. O xford : O xford Univ. Pres s, 2003, p .2. Cf. observado em “Citizens and Heretics: Late Roman Lawyers on Christian Heresy”, Z ell enti n , Holger (Orgs.). Heresy a nd de Caroline Huaifrkss. In: Iricixschj, Eduard; JJentily m LateA nticjuity. Tiibing en: M o h r Siebeck, 2008, p. 128-142, es p. 142. ' D esj a r di xs , Michcl. Bauer and Bcvond: On Recent Scholarly Discussions of Hairesis in the Earlv-Chureh Era. Secon d C entury, v. 8, p. 65-82, 1991.
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bem--rk:
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um acontecimen to le gít imo? Q uem deci de o que é consi derado her esi a e o que é co nsiderad o ortodoxia? E a ideia de heresia con tinua relevante para alguém? E xam in arem os esses te m as em deta lh es nos capítulo s a s e guir, começando com a questão da relação da heresia com a diversidade no cristianismo primitivo.
Parte II As raízes da heresia
3 Diversidade: o p ano d e fun d o da heresia primitiva ^)or que o cristianismo primitivo inven tou ideia de heres ia? E como — sc de algum modo for possível — fazer uma distin ção entre a diversidade que é invariavelmente encontrada dentro de qualquer visão de mun do, seja religiosa, seja secular, c a noção mais específica de heresia': Talvez o modo mais íácil de entender a natureza da heresia e seu surgi mento histórico seja refletir sobre a natureza do cristianismo ao longo do primeiro século dc sua existência; como esse movimento religioso, novo e muito mal compreendido, começou a surgir dentro do judaísmo e a se estabelecer como uma presença significativa no Império Romano. Um conjunto de ortodoxias — observe o uso intencional do plural — começou a surgir.
represe ntan do var iaç ões nos principais temas e ao sign ificad o de Jesus de N az aré .'12
rel ati vos à iden ti da de
C onform e já vi mos, no cer ne do m ovim ento cri stão en contra-se uma série de relatos e interpretações das palavras e ações de Jesus de N azaré. O sig nif ic ado de C risto foi apresen ta do tan to em term os de sua identidade quanto de sua iunção, a partir de uma gama repleta de títulos cristológicos e imagens de salvação, não raro extraídos das raí zes judaica s do c risti an ism o.’'3N o iní cio, o s grup os cris tãos parecem ter sido constituídos nos principais centros urbanos, como Jerusalém, p o r in div íd uos que havia m conhecid o Jesus de N azaré ou que co n h e cia m o seu cí rcul o mais íntim o.91 O u tras c om un idad es cris tãs s e esta bele cera m por pesso as com asso ciações m ais com ple xas com a ig re ja de Jerusa lém , de form a mais notáve l Paulo de Ta rso.05 D e aco rdo com o próprio NT, Paulo foi responsável pelo estabelecimento das igrejas cristãs em muitas partes do mundo mediterrâneo. É quase certo que no princípio o cristianismo tenha sido visto simplesmente como mais um a seit a, ou grupo, dentro de um j ud aísm o que já est ava acostum ado a uma considerável diversidade na expressão religiosa. O judaísmo es tava longe de ser mpnolítico. N o entan to, apesa r de o cristianis m o ter as suas orig ens dentr o do judaísmo , que era vist o com o um a “rel igião legal” (religio licita) pelas 92Para uma excelente coletânea de ensaios sobre esse tema, v. a obra The Incarnaiion: A n Interdisciphnary Symposium on the Incarnation of the Son ofG od , Davis, Stephen T.; K kn dai.l, Daniel; 0 ’Coi.i .ins, Gerald (Ed.). Oxford: O xford Uni v. Pr ess , 2004. "’Cí. N ew Testament Chrhtology , de Frank J. M atera , Louisville: YVestmi nstc r Jo h n Knox Press, 1999; Messiah and Exa ltation: Je wish Messianic and Visionary Traditions an d N ew Testa ment Christology, de And rew CHESTER, Tübi ngcn : M o h r S icbec k, 2007; B y the Same Word: Creation and Salvation in Hellenistic Juda ism andE arly Christia nity , de R onald R. CüX, Berlin: d e G ruvter, 2007. 94B r o w >s Raymond E. The Churches the Apostles Left Behind. New York: Paulist Press, 1984. " V:,M i:r]> hy -0’ C o n n o r, Jerom e. Paul: A Criticai Life. Oxford: Oxford Univ. Press, 1996, p. 85-89. Há também um material muito útil, esp. cm relação ao contexto romano em In Search of Paul: H o w jesus's Apostle Opposed R o m e’s Empire with Gods Kingdom , John D om inic C ro ssa x ; Jona than L. R efo , San Fra nci sco : H arperSanFrancisco, 2004 .
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D ;versidade: O pano de fjn d o da heresia prrnrt iva
autoridades rom an as,96 as com unidades cri stãs não eram reconhecidas com o legítimas. A s razões para iss o não são cla ras. Plínio , p or exem plo, enquanto foi governador da Bitínia (c. 110-112), parece ter perseguido os cristãos com base em situações anteriores, sem compreender total mente as razões para isso. As igrejas existiam, portanto, sob a constante sombra de uma possível perseguição, o que as obrigava a manter um perf il público discre to. Ela s não tin ham n en h u m acesso ao poder, ou influência social, e, com frequência, eram alvo de opressão por parte das autoridades seculares. As primeiras comunidades, cristãs simplesmente não estavam em condição de se entregar ao conformismo, mesmo se tivessem desejado fazê-lo. As comunidades cristãs se espalharam por todo o Império Romano, cada uma confrontando desafios e oportunidades locais específicos. Isso levanta duas questões, cada qual possuindo um significado im p o rtan te para o en ten d im en to das orig ens e o sig nificado da heresia. Primeiro, como essas comunidades cristãs individuais mantiveram a sua identidade em relação ao contexto cultural local? Está claro, por exemplo, que a adoração cristã primitiva serviu para enfatizar a distin ção das com unida des cris tãs , ajudand o a for jar um sentido de id en tida de com partilhada em con trast e com a soci edade em geral.9 7 Segund o, como as comunidades cristãs individuais percebiam a si mesmas como parte de um a com unid ade maior, m ais universal? D ito de outro m odo: como as comunidades locais individuais se viam como conectadas a um a co m unid ade universal maior, cada vez mais referida com o “a igrej a” nos textos posteriores? Por exemplo, existe evidência de que essas co munidades mantinham contato entre si por correspondência e mestres itinerantes que visitavam agrupamentos de igrejas, e especialmente pelo
%Sobre a situação na Palestina, v. “Jews and the Imperial Cult: From Augustus to D om itian”, d c Jam es S. Journal fo r the Study o f the N ew Testament, v. 27, p. 25 7-2 78 ,20 05 . " " ' 9' HuRTADO , Larrt. A t the Origins o f Christian Worship: The Context and Characler o f Earhest Christian Devotion. Grand Rapids: Eerdmans, 2000.
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com pa rtil ham en to de doc um entos de f undado res, alguns dos quai s (mas não todos) mais tarde incorporados no cânon do NT.*1 Sem dúvida a s primeiras comu nida des cri stãs acredit avam co mp artilhar uma fé comum que estava em processo de expansão pelo mundo civilizado. As igrejas ou congregações individuais se viam com o representan tes loc ais ou incorporações de algo maior — a igreja.J' Em bo ra seja possível argum enta r que, no início do século II, o cristianismo possuía uma unidade teológica fundamental baseada na adoração de Cristo como o Senhor ressuscitado, os primeiros cristãos expressaram e promulgaram a sua fé de maneiras variadas. Embora seja correto falar do cristianismo primitivo como uma tradição única, t alvez s eja m elho r pensar nel e com o u m a rede com plexa de grupos e indivíduos que existiam em diferentes contextos sociais, culturais e lingüísticos. Esses grupos procuravam relacionar a sua fé a esses contextos e expressá-la em termos que fizessem sentido den tro daqueles contextos. Ainda que seja potencialmente incorreto falar desses grupos como “concorrentes”, é certamente justo sugerir que eles possuía m m ais au to no m ia nessa fase in icial do que se diz norm alm ente . C om o enfati zarem os m ais adiante, o cri sti anismo primitivo não possuí a nenhuma estrutura de autoridade que permitisse a imposição de qual quer tipo de uniformidade. Na verdade, muitos pensadores patrísticos enaltecem agitação intelectual da época, no m modo pelo qual aostotal cristãos prim itiv os explo ra ra mevidenciada e expre ssara a sua fé. Contudo, essa observação histórica cm si mesma não nega a ideia de que havia um fio unificador fundamental no cristianismo primitivo. A diversidade sociológica do cristianismo primitivo não era comparada a nada que se aproximasse, mesmo remotamente, de uma anarquia teológi ca. Em um importante estudo, o britânico H. E. W. Turner, especialista em crist ianismo primitivo, argu m ento u que ser ia po ssível identifi car um
''“M e tzc b r, Bruc e M. The Canon o f the N ew Testam mt: Tt s Ortgi n, Develop ment, an d Signifamce. Oxford: Clarcndon Press, 1987. VMPar a u m a an áli se de ta lh ad a, v. The M an y Faces o f the Cktire/rA Study in N ew Testament Ecclesiology, de R avm ond F. Coi.i I NS, N ew York: Cro ssroad , 2004 .
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Div ers :oade. O ua_io de iu id o ca neresia prinrifcva
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padrã o derivado do te ste m unho apostólico c m antido ao lo ngo do te m po como o “depósito de fé” ( depositumfidei), refer ido no N T como “ a fé um a vez en tregu e aos san tos”.10"' Esse pa drã o está em bu tido , com o um código genético, nos escritos e na adoração da igreja primitiva, bem como nos textos do NT . E ntre tan to, apesar dess e nuc lear “pad rão de verd ade ” que as unia, as primeiras comunidades cristãs revelam claramente a diversidade tanto quanto a unidade. Devemos ter o cuidado para não falar apressada mente da “emergência da diversidade” como um desenvolvimento poste rior. H á razões para pensa r que ela pod e ter exi stido desd e o ini cio, mesmo se, em -algumas situações, os eventos posteriores a tenham exacerbado. Então, o que levou a essa diversidade? E possível identificar cinco fatores importantes que contribuíram para essa situação: 1. A incerteza inicial sobre que fontes seriam consideradas autoriza das por todas as comunidades cristãs. 2. A diversidade relativa aos aspectos da fé cristã nos documentos que depois seria m reunidos para fazer parte do N T. 3. As interpret açõe s divergent es des ses do cum entos, levando gimento de diferentes formas de pensar dentro da Igreja cristã.
ao sur
4. A diversidade de padrões dentro da adoração cristã primitiva. Sabe-se agora que tais padrões eram consideravelmente mais diversos do que se acreditava, com implicações importantes para o modo com que alguns aspectos centrais da fé foram compre endidos dentro do cristianismo primitivo. 5. A incapacida de de im po r a un iform idad e. E m sua f ase inici al, o cris tianismo era um grupo minoritário nas franjas da sociedade, sem uma condição legal apropriada e sem acesso ao poder, até a conver são de Constantino, no século IV. Isso impediu qualquer estorço de uniformidade até uma fase relativamente tardia, momento em que já existia um a considerável diversidade. 11,11 1 urxer . II. E. W. The Paít ern o fC h m tia n Trttih: A Study in the Rc hitions Befiiiven Ortkodoxx and He resv in the Earlv Cbtirch. London: Mowbrav, 1954, p. 239-378.
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H e:e s 3
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Vamos considerar cada um desses pontos individualmente, pois eles s ão de extrema im po rtância para o nosso tema.
A incerteza sobre as fontes autorizadas Luciano de Samósata, escritor do século II, observou que uma das características mais distintivas dos cristãos era sua propensão para es crever e interpretar livros. O cristianismo parecia-lhe uma comunidade textual cuja vida e crenças eram m old ad as p or seus texto s.101Talvez ten h a sido por esse motivo que a crítica romana pagã ao cristianismo focalizava seus escritos, bem como muitas vezes tentava eliminá-lo confiscando os seus livros.1(12 Isso n ão s ignific a nec ess aria m en te q ue os cristão s fossem mais let rados do que os s eus contem porâneos den tro do judaísmo ou da cu ltura clássica. 103Isso serve apenas p ara d em ons tra r com o os textos eram im po rtantes pa ra as comu nidades cristãs primiti vas, ainda que, no início, a repercu ssão desses textos tivess e a ver esp ecia lm ente com os seu s líderes. De qualquer modo, muitos dos primeiros manuscritos cristãos incluem mais do que os textos que foram depois reconhecidos como escritos canônicos do NT. Por exemplo, alguns dos primeiros manus critos cristãos têm a forma de coleções de textos extraídos do Antigo Testamento, textos extracanônicos antigos, como o Evangelho de Tomé e O pastor, de Hérnias, e fragmentos de outros escritos desconhecidos,
1,jl V.Books a nd Readers in the E arly Ghurch: A H isto ry o f E arly Christian Texts , de H arry Y . G am ble , New Haven: Ya le Uni v. Pr ess , 1995; GuardiansofLeiters:Literacy, Poiver, a nd the T ransmitters o f Ea rly Christian L iterature, de Kím HAINS-ElTZEN, N ew York: O xford U niv . P re ss, 2000; The Earliest Christian Arti facts: Manuscripts
and C hris tian Origms, de Larrv W . H ijrta d o , G rand Rapi ds: Eerdm ans, 200 6. 02 Co nv ém obs ervar e sp. os com entá rios de P orfírio em The Christians as the Romans Saw Them, de Ro bert L. W ilk en , 2.ed. New Haven: Ya le Uni v. Pr ess, 2003, p. 126-163. 1
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Dve rsioád e; O pano de fjn d o da here aa prrmí jva
além de tex tos lit úrg icos e teo lóg icos .114O s cristãos pa recem ter s e ap ro ximado de fontes variadas ao desenvolver a sua fé, algumas das quais p odem te r pare cid o estr anhas àqueles fa m ilia riz ados com o cànon esta belecid o da Bíblia. U m grande núm ero de texto s com petiu pela ate nção de seus leitores, inclusive os evangelhos gnósticos, as narrativas de mar tírios, as obras pa sto rais e os atos a pó crifo s.111’ E stá se torn and o cad a vez mais evidente que as comunidades cristãs dos primeiros tempos possu íam lealdades teológicas e devocionais complexas, o que fic a claram ente expresso em suas preferências de leitura. C on form e deixam clar o os es critos anti- heréticos de Ireneu de Lyon, um assunto que surgiu como importante, já no início do século II, foi a questão dos apócrifos — textos cujas srcens e proveniência são con sideradas suspeitas, faltando-lhes continuidade histórica ou teológica com a igrej a apo stólica.i ú6 C on form e Jerô nim o sinistram en te c om entou : ca-veat omnia apocrypha — cuidad o com todos os ap ócrifos.1 07 A form a ção de um cânon estabelecido da Bíblia fez parte dos esforços da igreja prim itiv a para elim in ar os escrito s de proveniência duvid osa da discus são teológ ica.103 A exigência de con tinuid ad e de uso de determ ina do livro dentro das igrejas tinha um significado particular, na medida em que isso era visto como um testemunho, ao mesmo tempo, de sua anti guidade e de sua autoridade. O ponto importante é que, ao serem lidos de modo tão amplo dentro das comunidades cristãs, os textos ofereciam visões bastante divergentes sobre a natureza e características do cristianismo, às vezes 104 B o th a , Pieter J. J. Greco-R om an Lif era cv a s Setting for N ew T estam en t W riti ngs, Neo testamen fica ,\7. 26, p. 192-215, 1992. 10' Lym an , Re becc a. L ex Orandv. Heresv, Orthodoxy, and Popular Religion. In: CoAKi.tf.Y, Sarah; P:\1LIX, David (Orgs.). The M aking and R emaking o f Chr istian Doctrine. Oxford: Clarendon Press, 1993, p. 131-141. 10,1 Ct. observado po r A lam Le Boullucc em L a notion d'hérésie dans La httérature greeque, H e-III e siècles, 2v . Par is: E tude s A ugustinienses, 1985, v.l, p. 226-229 . !0r Jerônimo, Epístola 107. lllHL e B oulluec , A lai n. L’ ccriturec om m e norm e hérésiologique dans les contr ovcrse s des IIc et Ille siccles (domaine grec). Jahrbuch fü r A ntike und Christentum, v. 23,
p. 66-75, 1996.
refletindo as preocupações de seus autores em dirigir-se a grupos sociais ou reli giosos específ icos. Ne sses escritos, havia um a clara* nece ssidad e de identificar um grupo como possuindo autoridade universal, em vez de local. Embora os cristãos fossem livres para ler aquilo de que gostassem, havia um crescente reconhecimento da necessidade de identificar as obras que possuí am um statiis norma tivo para a Igrej a como um tod o. Sem desejar impedir os cristãos de lerem os seus autores favori tos, os líderes cristãos começaram a identificar um grupo de textos que transcendiam as preferências locais. Atanásio de Alexandria desempe nhou um papel particularmente importante ao determinar os critérios de autenticidade com a finalidade de avaliação canônica."'9Esse proces so de cristalização gradualmente levou à formação do cânon do NT.u:j O cristianismo, em suas fases formativas, esteve sujeito à influen cia de uma variedade surpreendentemente ampla de fontes textuais, sem um entendimento claro, naquele momento, em relação à autenticidade e autoridade de tais fontes. Por exemplo, a literatura “apócrifa” apresentou um desafio particular para a igreja primitiva, em razão da diversidade de materiai s reconhecidos com o po tencialm ente con fiáve is em dife rente s re giõe s do m un do cri stão. A heresi a poderia, de sse m odo, surgi r embasand o uma teologia própria em fontes apócrifas/1enquanto a ortodoxia dava prio rid ade àquelas obras que fo ram, ou se riam, inclu ídas no cânon do NT.
"" Brakke, David. Canon Formation and Social Conflict in Fourth-Ccntury Egvpt: Athanasius of Alexandrias Thirty-Ninth Festal Lettcr. H arvard Tbeological Rev ieiv, v. 87, p. 395-420, 1994. Cf. Brakke corretamente observa: as preocupações de Atanásio não estavam restritas apenas à lista de livros, mas refletiam os conflitos mais fundamentais entre as visões e os paradigmas concorrentes da autoridade cristã e da organização eclesiástica. 1,(1M etzgf .R, Bruce M. The Canon o f the Ne v: Test ament : Its Oririn, Development, and Sigmficance. Oxford: 7 Clarendon Press, 1997. -> à> ' L ’ 1:1 U m a questão freq uen tem en te levan tada em relação a Prisciliano de Ávila (m. 385). Cf. The M ak in g o f a Ileretic: Ge tider, Âu lher ity, and lhe Priscillianist Cmtrovenv, dc Virginia, Burrus Berkclev: Univ. of Califórnia Press, 1995, p. 19-21. Para uma explicação mais detalhada desse assunto, v. tb. “The Disorder of Books: Priscillians Canonical D efen se o f A p oc ry ph a”, de A nd rew S. JACOBS, H arvard Tbeo logical Rev icw , v. 93, p. 135-159, 2000.
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Diversidade : O Dc -o de f..' ;Oc ca here sia prirniive
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Embora esse seja um ponto fundamental, é importante considerar a possibi lidade de enc on trar um g rau de di versi dade até m esmo na gam a limitada de textos atinai aceitos como canônicos. Devemos, portanto, considerar o si gnifi cado da di versi dade teológica do N T para qualquer explicação das srcens da heresia.
A diversidade nos documentos do NT A col eç ão de docum entos que h oje conhecemos como N T faz pressupo r, cla ram ente , a existência de alg um a unid ade básica entre e a tr a vés da s comu nidades cristãs. Co ntu do , el a apresenta uma g am a sutilmente di vers ificada d e m odos de com preensão dos temas fun dam entais da fé cristã c como eles são aplicados às questões de ordem prática. Enquanto alguns escritores oferecem uma harmonização um tanto superficial do N T , outros valorizam a im portâ ncia de id entific ar e respeitar as ênfases e nuanc es discre pan tes,1- em p articula r devido às implicações do N T para a diversidade dentro do cristianismo contemporâneo. O reconh ecim ento da polifoni a do N T é, no fina l das cont as, pouco mais que uma aceitação indireta da diversidade que existiu no seio do cris tianismo primitivo. O termo “diversidade” deve ser usado com precaução e cercado de qualificativos. Em primeiro lugar, uma concessão à diversidade não implica a noção de uma unidade fundamental. Conforme Stephen Neill demonstrou muitos anos atrás, Jesus de Nazaré é um foco central do N T; não obstante, o seu significado é articulado em term os adaptados ao público c às comunidades senid as pelos autores dos livros do N T .1!’ E, em segundo lugar, a diversidade em questão é, na verdade, totalmente limitada. Precisamos evitar f alai: de form a neg ligente, como a sugeri r que o N T oferece
Sobre uma crítica conhecida da ideia de “ortodoxia” cristã primitiva, v. Unity and Di-versiív tu íheJNew Testamcnl:An l nquir y into the Char
um a mu ltiplicid ade ilim itada de visoes da fé cristã.114É perfeita mente possível identificar um con junto “central” de ideia s de ntro do N T, c om o segue: 1. O D eus de Israel pod e ser amado e cr ido como o criador de t
udo.
2. J esus é o enviado dc D eu s, para revelar o pró prio D eu s e redim ir a humanidade. 3. A pesar do fr acas so hu m ano , pod em os confiar que a obra redentora de De us p or meio de C rist o é o cam inho para a salvaçã o do hom em , um processo iniciado nesta vida e que se completa na vida além. 4. Do salvo por Cristo, espera-se que ame o próximo, preocupe-se com ele e siga os padrões éticos estabelecidos por Jesus. 5. O corp o de crentes é um a gran de co m un hã o.115 E m bo ra crit icando a ideia d e um a p rimeira cris taliza ção da ortodoxia cristã, James Dunn, escritor britânico estudioso do NT, também defende que se pode discerni r um “fio u nificador” dentro do N T. D u n n usa a palavr a grega kerygma , mais bem traduzida por “proclamação”, para se referir às int erpr etaçõe s do N T do sig nificad o de Jes us de Nazar é. E nq uan to R ud olf B ultm an n e outros fal aram certa vez do kerygma do NT, no singular , D unn sugere que a evidência aponta para um grupo de kerygmata do NT, no p lu r a l , unificado por alg uns t em as centrais. 116 D u n n arg um en ta que “não havia nenhum padrão unificado, nenhum plano estendido da procla mação cristã” no NT, mas uma gama de tais proclamações, adaptada às circunstâncias particulares. Por exemplo, a proclamação do evangelho por Paulo “tom ou diversas fo rm as com o circunstâ ncia s dete rm inadas e dese nvo lveu -se ao l on go dos anos a lteran do a ênfase do to m ”.11T 1!J V., p. ex., as questões levantadas no clássico ensaio de Emst Kãsemann sobre os conceitos do NT a respeito da igreja. Kàsemann, Ernst. Unirv. Unitv and Multiplicitv in the New Testament Doctrinc of thc Church. Nezc Testameni Questions o f Today • Philadclphia: Fortress Press, 1969, p. 252-259. 115 H i ,'I.TGRKN, A rla nd J. The Rise o f No rma tive Christ iani tv. Minneapolis: Fortress Pre ss, 199 4, p. 86. " m Dt!N. Um tiy an d Divers ity, p. 11-32. 1L Ib id em , p. 2.
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Diversidaae- O pano de fu rd o da heresic. primitiva
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A questão é de interpretação e síntese: de permitir que a unidade ineren te do N T seja per cebida, r espeitando a sua di vers idade . Se o N T é percebido como uma cacofonia ou sinfonia, isso depende em parte de como ele é interpretado, especialmente como se permite que as suas diversas vozes se relacionem umas com as outras. Richard Hays, por exemplo, afirma que a visão multifacetada da fé cristã encontrada no N T pode ser siste m atizada em te rm os de um a narrativa com ple xa com três foco s: a co m un ida de , a cru z e a nova criaçã o.11S C o n tu d o , a qu es tão é clara: a diversidade intrínseca do NT é tal que ela praticamente dá srcem a uma diversidade correspondente de interpretações. Vamos examinar esse ponto mais detalhadamente, adiante.
As interpretações divergentes do NT A longa hist ória de interpretação crist ã do N T deixa m uito cl aro que certos textos são interpretados de modo bastante diverso por indiví duos e grupos diferent es. Isso le vanta um a questão de extrema im po rtân cia. Quem está autorizado a arbitrar entre essas interpretações do NT? O desenvolvime nto da ênfa se na i grej a cat óli ca como autoridade suprema na interpr etação do N T começou a avanç ar rapidam ente no séc ulo II , conforme é especial m ente destacado nos escr itos de Ireneu de Lyon. Para entender a importância do apelo de Ireneu à instituição da igreja, como intérprete do NT, podemos considerar algumas dificulda des na interpretação bíblica que afeta o protestantismo — movimento rel igi oso que não recon hece n en hu m a au toridad e sobre a B íblia.5 '" Considere a questão: Os cristãos tinham a intenção de evangelizar? A interpretação predominante do imperativo evangélico
Richard B. The Moral Vision of the New Testament: Community, Cross, N ew Creation, a Contemporary lntradu ction to N ew Testam ent Ethics San Francisco: HarperSanFrancísco, 1996, p. 193-205. n í Sobre essas questões, v. Christianitys Dangerous Idea: The Protestant Revolution , de Alister M cG r at h, San Franc isco: Ha rpe rO nc , 2007, p. 199- 241. "' Hays,
p a ra fa ze[ r] discípulos de todas as nações (TVlt 28.19), na primeira fase do protestantismo do século XVI, era que essa ordem tinha sido dirigida aos apóstolos, não às gerações posteriores. Assim, embora os primeiros apóstolos tivessem a obrigação de espa lhar o evangelho, essa responsabilidade estaria restrita à época deles. Somente no tardio século XVIII essa visão começou a ser desafiada de forma bem-sucedida, em particular pela influên cia cada vez maior das sociedades missionárias na Inglaterra. N o fin a l do século X IX , a m a io ria do s p ro te sta n te s c o n sid e ra va que o significado óbvio e claro da passagem era que todos os cristãos foram chamados para evangelizar e para apoiar missões. O modo predominante de interpretar um texto bíblico sofre uma mudança essencial. Mas qual das duas opções era a correta? E quem tinha autoridade para decidir? Os problemas que o protestantismo enfrentou foram bem colo cados por John Dryden (1631-1700) em seu poema satírico “Rehgio L a i a ’ [Reli gião de leigos] (1682). Ne le, D ryd en argum enta que a gran de ênfase protestante sobre a Bíblia só levava à proliferação da heresia devido à,ausência de um intérprete autorizado e universalmente reco nhecido; Dry de n afi rma que a at itude em relação à interpretação bíbli ca encontrada no protestantismo não apenas o torna impotente para resisir à heresia, como ainda encoraja o surgimento da heresia pela ingênua idei a p rote stan te de que, a o perco rrerem as páginas da B íbli a, o s cri stãos com uns ser ão c ond uzidos, de form a inequívoca e i nevit ável, à ort odoxia. O texto bíblico estaria aberto a todos. E quanto à regra pela qual ele deveri a se r interpretado? O s p rotestantes concordavam sobr e e r espeita vam um a autoridade com um, mas não comp art ilhavam a noção de um a meta-autoridade. Dryden nos convida a imaginar um protestante ortodoxo con vencido de que a Bíblia ensina claramente a divindade de Cristo, mas confrontado, de maneira perturbadora, com outro protestante que in terpreta essas mesmas passagens puramente em termos da humanidade
Dive rsidade : O pa ne de ru. ^do da her es ic . primit iva
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de C risto — a heresia so cin ian a,120 que surgiu no sécul o X VI e afir ma va que Cristo era um ser humano destituído de identidade divina. Assim, D rvd en escreve em “Religio Laici
A firm a m o s e p rovam os pela clara Escritura Que Cris to é Deus; o au da z saemiano A m esm a E scritura d iz ser ele mera criatura . M a s que se ntença po de encer ra r a im porta nte causa; A m b a s as parte s fedam ruid osamente , mas a R egra é m u d a ? [Trad. livre.]
A questão de Dryden é que a Bíblia não descobriu, de for ma clara c sem ambigüidades, a regra pela qual seria interpretada. E como não existe autoridade maior que a Bíblia, como o protes tantismo poderia discriminar entre ortodoxia e heresia? Se alguma norma ou instituição exterior ou à parte da Bíblia for reconhecida como autoritariamente determinante de seu significado, tal norma ou instituição seria, com efeito, superior à Bíblia. Essa era uma pe rigosa vulnerabilidade, que muitos acreditam continuar, na melhor das hipóteses, incompletamente resolvida dentro do protestantismo. Ireneu parece ter antecipado essa dificuldade ao discutir o papel da igreja como intérprete autorizada da Bíblia. Para alguns estudiosos, Ireneu era movido principalmente por um desejo de uniformidade, o qual, de acordo c om Elain e Pagels e Karen K ing, levava à sua i nd ica ção de que “todos os verdadeiros cristãos devem confessar as mesmas coi sa s, un indo -se na pregaçã o de um cr edo co m um que declar e aquil o em que todos creem”. A força motriz por trás do enfoque de Ireneu era uma agenda institucional que colocaria a igreja além dos indivíduos cristãos, destinada a “consolidar os grupos espalhados dos seguidores 120 E xistem óbvias con tinu ida de s histó ricas entre o socianism o e o arianism o. Mas o pri m eiro ass um iu um a fo rm a espec ífica no século X V I, no s texto s de Fau sto Paolo S o 2ZÍni (1539-1604; mais conhecido pela íorma latina de seu nome, Faustus Soctnus), fixando a sua interpretação da identidade dc Jesus de Nazaré dentro de ama visão unitária de Deus.
de Jesus naquilo que ele e alguns outros bispos pressentiram como uma organização unida, única”. A heresia poderia, então, ser enten dida como aqueles ensinamentos “contrários à consolidação da igreja sob a au to rid ad e dos b isp os ”.121 N o e n ta n to , esse é apenas u m m o d o de in te rp re ta r o p o n to de vista de Ireneu. A maioria dos teólogos cristãos argumentaria que a preo cu p ação de Iren eu não era nem com a u n ito rm id a d e ecle siá stica como um fim em si mesmo, nem com o fortalecimento do episcopado. Ireneu desejava manter a continuidade da era apostólica, assegurando que aquilo que foi ensinado naquele período formativo continuasse caracterizando a sua época. Por isso, ele enfatizava a importância da continuidade histórica entre a liderança da igreja p resen te e os apóstolos. A ig re ja rep resen tav a um a co m u n id ad e de memória, capaz de alinhar a sua interpretação da Bíblia com a lem b ran ça do te ste m u n h o e en sin o apostó lic os. M ais tarde ser ia desenvolvi da o utra tentativa de lim itar a di vers i dad e. V inc en t de L érins (m. 450), cada vez mais interessado na inovaç ão teológica, desenvolveu um a lis ta para lim itar a expansão de ideias nov as e potencialmente perigosas. Cada doutrina precisava conformar-se a três crit érios. Ela deveria m ostrar te r sido aceit a 1) em todo s os l ugares , 2) sempre e 3) por todos os crentes. Desse modo, Vincent esperava limitar o ensino cristão àqueles ensinamentos que sempre tiveram as sen tim en to u nive rsal.122 C on tu do , a evidência histórica sugere que os esforços de Vincent não tiveram êxito em controlar o crescimento da div ersid ad e d ou trin ai na ig reja da ép oca .12’
121 PAGELS, Ela in e H .; IClNG, Ka re n L. Rea ding Judas: The Gospel o f Judas and the Shaping of Ch nstiam ty. London: Allen Lane, 2007, p. 31. 122 G u ar in o , Th om as G . Trad iti on an d D octrinal Devc lopmen t: Can V incent of Lérins StilITeach the Church? Theologkal Studies,v. 67, p. 34-72, 2006. ,2> Sobre algumas importantes áreas de dificuldade a esse respeito, v. “The Forgmg of O rthodox y in L atin C hristian Liter ature: A Case Stud y”, de M ark V essey, Jo urnal o f Ear ly Christian Studie s , v. 4, p. 495-513, 1996.
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Diversidade: O p ar o de fundo ca he-esa p*'imiti^a
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N e sta se ção, vam os e n fa tiz a r a d iversid ade de in terp retaç õ es da Bíblia encontrada na tradição cristã. Enfim, quem decide qual in terpretação da Bíblia é ortodoxa e qual delas é herética? Essa é uma questão importante. Toda grande heresia dentro da fé cristã tem se apresentado como capaz de oferecer uma interpretação legítima da Bíblia, criticando os seus oponentes ortodoxos como falhos na arte da he rm en êu tica b íblica .124 R eco rrer à Bíblia não era a salvaguarda exclusiva do ortodoxo. Na verdade, posteriormente, muitas visões consideradas heréticas tiveram suas srcens numa leitura cerrada do texto b íblico .12í A co ntrov érsia aria na do século I V, que co ntrap ôs o arqu i-herege Á ri o ao s eu op on en te ortodoxo A tanásio, pode ser vi sta como fundamentalmente relacionada com a busca do melhor meio de interpretar as declarações encontradas no Evangelho de João re feren tes à ide n tida d e e ao significad o de Jesus C risto .126 A té este pon to, con sideram os vári os fator es relat ivos ao s textos cristãos que parecem ter levado à diversidade de crença cada vez m aior den tro da ig re ja . E n tretan to, é im po rtante c onsiderar q ue a d i versidade parece ter se desenvolvido, igualmente, em relação a outro aspecto da vida da igreja — sua adoração.
124 Es sa observação suscita a fascinant e q uestão — complexa dem ais para ser discutida aqui — de saber se a crítica bíblica pode ser uma fonte para provocar e corrigir a heresia. Essa visão foi proposta com cautela por Ernst Kâsemann (1906-1998). Sobre uma avaliação de tal possibilidade, v. “Docetism, Kâsemann, and Christology: Why Historical Criticism Cant Protect Christological Orthodoxy", de A. K. M . Adam , Scottisb Journ al o f Theology , v. 49, p. 391-410, 1996. Q uash, Ben ; W ar d , Mic hae l. Herestes and H ow to Avoidi Them : Why I t M atters What Chn stians Beli eve. L ondo n: S PC K, 2007, p. 2-3. ílh V. a análise em Johannin e Christology and the Early Church , de T. E. Poi.l.ARD, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2005. Uma questão semelhante aparece em rel ação a M arcião. Cf. “M arcion: Thco logien biblique ou d octeur gno stique?”, de Ugo Bianciii, Vigiliae Chrístianae, v. 21, p. 141-149, 1967.
A diversidade nos primórdios da adoração cristã A sabedoria litúrgica tradicional geralmente supõe que é possível traçar uma única e coerente linha de evolução da adoração cristã da época apostólica até o século IV. Mesmo antes do início do século II, a adoração cristã já havia se desenvolvido consideravelmente, além cio que c descrito no NT, caracterizada por uma tendência a inventar um novo simbolismo não diretamente presente nas Escrituras. Em alguns casos, a continuidade entre as primeiras liturgias cristãs e a prática da igreja do N T é ob scu ra.127 E m anos recentes, tem havido um a percep ção cada vez maior de que a adoração cristã inicial pode ter sido mais diversa e variada do que esse modelo simples sugere. -’ Por que isso é tão importante? Porque o modo com que as comu nidades cristãs adoram reflete e afeta ao mesmo tempo as suas crenças doutrinais.-”' De acordo com Próspero de Aquitânia (c. 390-c. 455), "a lei da oração determina a lei da crença \legem credendi lex statu at supphciindí]''.''VA o lema latino lex orandi, lex credendi (o modo de orar determina o modo de crer) é frequentemente citado aqui para indicar o m od o pelo qual d ou trina e adoração são interliga da s.151 Seria, po rtan to, de esperar que as diferenças na adoração aumentassem ainda mais o grau de diversidade presente nas comunidades cristãs iniciais.
12 V. a análi se de um a séri e de textos bí blicos reunido s em The Bucharist in the Nexo Tatanicnt. and in the Earlv Church, de Eugenc LaVkrdiere, Collegeville: Liturgical Press, 1996, p . 29 -1 26 . " ' " ai O reconhecimento cresccnrc do caráter essencialmente diversificado da adoração cristã primitiva é um bom exemplo. V. csp. The Seareh for the Oriçins of Christian Wonhip: So nrces and M etkod s for th e Síudy ofE arly T Jturgy, de Paul F. B ra d sh aw , 2. ed. N ew York: O xfo rd Univ. Press, 2002. E parti cula rm ente significat iva a div ersidade das prim eiras abordagens cristãs à in iciaçã o (p. 144-1 70). Essa questão é entatizada por alguns escritores, como em Doxohçy: The Praisc o f God in Worship, Dcctrine. and Life: A Systemat ic Theol ogw de Ge oftir ev W UWVRiCUT, N ew York; O xfo rd Univ. Press, 1980. ' ’IJ DK A qu itâX IA , Pró spero . Capitula Coehstini 8. 1,1 M arshall , Paul V. Reconsidering “Liturgical Theologv”: Is Therc a Lex Orandi for Ali Chnstians? Stndin Lititrgi.cn , v. 25, p. 129-151, 1995.
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Diversi dade: O pano
óefjn d o da her esi a pnrnit iva
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A ortodoxia cristã no século IV A igreja primitiva era fragmentada socialmente, dissociada da influência e do poder dentro das estruturas imperiais. Não havia pos sibilidade de nenhuma autoridade centralizada da igreja “impor” as suas visões sobre outras congregações, na medida em que o acesso ao po der político ou m ilitar era negado à igreja. N ão ex istia n en hum m e canismo para evitar a diversificação ou impor a ortodoxia. O Estado romano era geralmente hostil ao cristianismo, vendo-o muitas vezes como subvertendo as visões religiosas tradicionais. De vez em quando surgiam períodos dc repr ess ão, com o a perseguição de D écio (250-251). Até a conversão de Constantino e a emissão do Edito de Milão (313), as igrejas cri stãs não tinh am ne nh um status social significan te ou aces so ao poder. A convocação do Concilio de Niceia, por Constantino, em 325, pode ser vista como o primeiro passo na tentativa de criação de uma igreja imperial essencialmente uniforme, cujas doutrinas tossem definidas publicamente por credos. Nessa época, porém, já se havia es tabelecido um considerável grau de diversidade dentro da igreja. A comparação com o islamismo primitivo é didática. Após a morte de Maomé em 632, surgiu uma estrutura política para reger o novo Estado muçulmano. Conhecido como “o califado”, cresceu tanto em poder quanto em território durante os séculos que se seguiram à morte de Maomé, conquistando as terras do Crescente Fértil, ao norte. Dentro dessa expansão territorial, muitas vezes referida como ummah , o islamismo foi imposto como a religião estatal oficial. Durante o perío do dos primeiros dois califas, Abu Bakr (632-634) e Omar (634-644), a codificação do Alcorão foi sendo concluída, enquanto o número de indivíduos que o tinham perpetrado na memória (os “Companheiros do Profeta”) começou a diminuir. No entanto, o processo de registro do Alcorão na escrita levou a divergências textuais. De tal modo que o cód ice de A bdu ll ah ibn M as u d tornou-se o t exto padr ão para os m u çulmanos dc Kufa, no Iraque, enquanto o códice de Ubayy ibn Ka’b foi extensamente usado em Damasco, na Síria. Ciente de que tal situação
poderia levar à divisão e desuniã o d entro do E stado islâ m ic o em ergente, Omar ordenou a produção de um texto do Alcorão oficial, autorizado. Ordenou-se, por conseguinte, a destruição total ou parcial de todos os ou tros tex tos.'3 - Vem os aq ui um a estratégia inv enta da p ara alcan çar a uniformidad e d entro do isla mismo — algo que não te ve, nem poderia ter tido, paralelo dentro do cristianismo primitivo. Esse assunto, que será tratado com mais detalhes no próximo capítulo, é suficientemente importante em relação ao argumento de W alter Bauer, segundo o qual a ortodo xia surgiu pela gradati va e crescente imposição das visões da igreja romana sobre os seus vi zinhos no século II. Essa hipótese provou-se muito difícil de ser defendida, visto que a influência de Roma sobre as outras igrejas na região só com eço u a ser significativa no sécu lo II I .153 B au er pa rece ter projetado no passado a influência que a igreja romana só teria m ais tarde, qua ndo , é pe ríeitam en te cla ro, as com unidad es cris tãs em Rom a não ti nh am o pod er ou a autoridade depois al cança dos. Todos os fatores combinados revelam um grau significativo de diversidade doutrinai no seio do cristianismo primitivo, em particu lar na passagem do séc ul o I para o s écul o II. M esm o no s docu m entos do N T sã o expr ess as preoc upa ções sobre alguns dos resultados de tal diversi dade — de forma m ai s no tável , a tend ên cia de fo rm ar fa cç ões dentro das comunidades, cristãs, que eram vistas como uma ameaça à unidade das igrejas. Liberdade teológica não é o mesmo que heresia; não obstante, pode-se argumentar que ela oferece um contexto no qual po de surgir a heresi a. T ud o isso tend e a co nfirm ar a aval iação de H. E. W. Turner em seu marcante estudo, de 1954, da relação entre heresia e ortodoxia na igreja primitiva:
1 So bre a revisão ào Alcorão par O m ar, v. Perfection Ma kes Practice:Learning, Emo tion, and the Recited Quran in Indonésia, de Anna M . G a d e , Honolulu: Univ. of Hawaii Press, 2004, p. 25-27. 1" V. anál ise cm “T h e In terp reta tion of I C lem en t in W alter Bau er’s Kechtglaubigkeit undKe/zerei im áltesten Christentum", de A . I. C. H eron , Ekkleúastokos Pharos, v. 55, P. 51 7-54 5, 197 3.
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Diversid ace. O pano ce fundo da nsiesia pnmrjva
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D u ra n te o perío do form atv oo da igreja cristã, a ortodoxia se assem e lha a um a sin fonia comp osta de vártos ele mentos , em vez de um ú ni co tema melódico; ou a uma convergência de muitos afluentes numa única corre nte , em vez de um rio que busca o seu curso em direção ao mar , sem misturar-se c om outr as ág uas, j á no interior d o próprio N T existe u m a va ried ad e co nside ráve l de tradi ções teológicas .'7'4
En tretan to, apesar des sa óbv ia di vers idade nos p rimórdios da expres são cristã, a evidência histórica aponta com nitidez para um sentimento compartilhado de identidade, expresso e mantido em face da considerável distância geográfica e diferenças culturais. Os cristãos primitivos conside ravam-se claramente como pertencendo à mesma família estendida, carac terizada por um mínimo “k i t básico ” de crenças, valores e atitudes relativos à adoração .1" O s rituais ou sacram entos cris tãos nucleares de ba tism o e Eucaristia ofereciam um ponto de identidade, que era completada pelas emergentes declarações de credo.'® A diversidade geralmente surgia em relação ao que seria acresce ntado a esse “t ò básico”, ou co mo alguns de seus elementos fundamentais seriam interpretados ou aplicados. Essa identida de não era sustentada simplesmente por meios internos; agências externas, inclusive representativas do Estado romano, passaram a ver o cristianismo como um a enti dade coerent e — no ca so do Estado romano, como um a am eaç a pote nc ial — e, ao tomar- várias m edid as repres sivas , solidifi cavam seu sen tido de ide ntid ad e co m pa rtilh ad a.1-17 Ape sar de suas diversidades m T l TRNER. Pattern o f Christ ian Truth, p. 9.
Sobre a importância da imagem familiar na formação dc um sentido de identidade com pa rtilhad a pelas igre jas, v. Christian Ide nt ity in lheJe -wish and Graeco-Koman World , de Ju dith , L iku, Oxford: Ox ford U niv . Press , 2006, p . 16 4-9). 1 V. a di scus são em “ Becom ing Ch ristian’ : Soli dif ying Ch risti an Iden tity and Content”, de David G. H orrel . In: Blasi, Anthony J.; Turcotte, Paul-André; Jean (Orgs). Handbook o f E arly Chris/ianity, Walnut Creck: AltaMira Duiiaime, Press, 20 02 , p. 30 9-3 36 . ’ ” ’ l!/ Para reflexões a respeito da importância do “outro” na tormação do pensamento romano sobre a identidade cristã, v. Christian Identity, de LlEU, p. 269-297. Lieu observa como processos semelhantes levaram à classificação romana dos outros grupos étnicos e culturais — p. ex., o papel de Tácito na formação do p en sam e n to ro m ano so bre “os ale m ães ".
internas, o cri sti anismo era vi sto com o um a en tidade c ocrentc pelo s obser vadores que estavam de for a e que se sentiam ame açados pela sua crescent e força numérica. Dessa m aneira, a identidad e cristã pod e ser vista como ten do sido aumentada pelos processos de negociação social, envolvendo, pelo men os até cert o pon to, um a construção soci al que ref orçava um sentim ento cristão de ide ntidade corporat iva, que fora internam ente gerado. Essas reflexões sobre o caráter complexo do cristianismo primi tivo estabeleceram o contexto para qualquer discussão sobre a heresia. É muito difícil falar sobre a “ordoxia cristã” do final do século I e do início do século II, como mais tarde seria entendida, isto é, como uma declaração de fé “autorizada” ou “oficial”. A ortodoxia cristã era em ergente naqu ela época , caract eri zada por um a explor ação de opçõ es intel ectuais, sem n en hu m con tr ole deci sivo po r pes soa s ou inst ituições autorizadas. jE perfeitamente possível falar do início de um processo de “cristalização” da ortodoxia, quando várias formulações teológicas de fé foram propostas e examinadas; algumas se afirmando e outras sendo rejeitadas, No primeiro caso, vemos o começo da ortodoxia; no segundo, o começo da heresia. Desde o princípio, a heresia teve as suas srcens dentro da igreja, como parte de um processo contínuo de explorações do centro e fronteiras da fé. É importante saber que muitos daqueles que chegaram a ser considerados hereges eram participantes ativos e comprometidos das comunidades cristãs que estavam de fato interessadas em dei xar o evangelho ser entendido e apresentado de forma fiel e efetiva. A impressão criada por alguns e scri tores patrís ticos é que os hereges eram estranhos que queriam subverter ou destruir a igreja. As srcens desse equivocado estereótipo da heresia são agora razoavelmente bem entendidas. Nos últimos anos prestou-se cada vez mais atenção às es tratégias inventadas por Ireneu de Lyon para excluir determinados in divíduo s e ens ina m en tos da igre ja.1;s U m a n ova “ here siologia ” surg iu no 1 O exemplo hi stór ico para isso é apresentado no estudo de re fer ênci a de L a notwn d ’hér£sie d am la htté rata re greeq ue , Ile-IIIe ítèc/es, de Alain Lf. BüULLUEC, 2v. Paris: Etude s Augustiniennes, 1 985 .
Dive rsidan e: O pano de run co da nei\:Sia Dnrriitrva
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final do século 11 como um modo de retratar uma heresia que tentava mascarar o fato de que a heresia tinha suas srcens dentro da igreja, cm algumas ocasiões até mesmo permanecendo dentro dela. Fa zen do uso de formas estabelecidas de m vectiva filosóf ica , Ireneu e outros argumentaram que os hereges eram impostores, lobos em pele de ovelha, que fingiam ser membros da igreja, mas no final das contas estavam empenhados em sua destruição. Quando os heieges fund am entav am as s uas visões nu m a interpretação bíbl ica , dizia- se que a exegese deles cra somente um pretexto para desenvolver visões ori ginadas fora da tradição de Cristo e de seus apóstolos, e que tinham a intenção de subverter a igreja. Tais estudos sugerem que Iieneu queria converter a diferença cm exclusão, como um meio de isolar os hereges da comunidade de fé e de preservar a ideia de que a heresia cia um contaminante da fé, com srcem fora da igreja, contrabandeado por im posto res ou traid ore s. C o n tu d o , para enten d er a im portâ ncia da heresia, precisam os encarar o fa to de que toda grande here sia com eçou como um a explora ção da dinâm ica da fé dentro
da ig reja.
En tão, po r on de co m eçarí am os a f azer tal expl ora ção? O cam inho mais evidente é considerar de que modo o fenômeno da heresia surgiu dentro da igreja primitiva, e o seu significado potencial. Veremos isso no próxim o capítul o.
i.”' Sobre a im po rtân cia desse gênero , v. "H ow to Re ad H eresio logy ”, de A vcn l lofMedie-va/andEa rly M odem Studies, v. 33, p . 471-4 92 , 200 3. V .tb.
Q x m ír o s , Journa
sua s observaç ões posteriores cm “T h e V iolence of O rtho do xy ”. In : liíl ciNScm, E duard ; Z ellu n tin, Holger M . ( Org s. ). Heresy and Id entity m Late A n tiq m ty fi übmge n: M ohr
Siebeck, 2008, p! 102-11 4.
-4" 0\VEN, G. E. L. Ph ilosophical P. 1-25,1983.
; lnvective, Oxford Stu die s tn A n a en t Phihs opoy, v. 1,
4 A form ação inicial da heresia o verão de 144, um rico arm ado r (prop rie tário ou comerciante de navios) cristão convocou u ma reunião dos lí dere s da igre ja em Roma. A essa altura, o cristianismo já havia conquistado um número significativo de seguidores na capital imperial.”1Marcião de Sinope (c. 110-160) queria propor um a mudança fu ndam enta l do modo com que a igreja se posicionava em relação ao judaís mo, particularmente, em relação à forma com que fazia uso da Bíblia judaica.1 ' 2 M arcião acredi tava que o cristianismo não deveria ser uma continui dade do judaísmo, apelando a textos bíblicos como Lucas 5.37: £ ningué m põe vinh o novo em rec ip ie nt e d e couro velho;p orq ue o vin ho novo rom perá o recipi ente de couro e se derramará e o recipiente de couro se perderá... Sobre esse desenvolvimento, v. From Paul to Valentinus: de Peter Chnstians af Rome m the First Tino Centuries, L a mp e , M inneapo lis: Fortress Pr ess, 2003. 142 V. Marcion: Das Evangelium vom fremden Gott; E m e Monographie zur Geschichte der Grundlegung der katholischen Kirche, de Adolf von H arx ack , 2 . cd . Leipzig: Hinrich, 1924, p. 16-28.
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O cristianismo, argumentava Marcião, não deveria ter nada a ver com o Deus, as crenças e os rituais do judaísmo. Urna clara ruptura era necessária. Infelizmente, os detalhes das propostas teológicas de Marcião foram perdidos para a história; as suas visões, como tantas outras que foram enredadas em controvérsias eclesiásticas dessa época, são conhe cidas somente por meio dos escritos de seus oponentes. O relato mais detalhado do que aconteceu em Roma está nos escritos de Epifânio de Salam ina (c . 315 -4 0 3).I 4’ Fica ev idente que a prop osta de M arcião representava uma fratura radical tanto na tradição estabelecida da igreja quanto nos escritos do NT. A posição da maioria dentro da igreja, em Roma e cm outros lugares, era a de que o cristianismo representava o cumprimento da aliança entre Deus e Abraão, não a sua rejeição ou abolição. O Deus que os cristãos adoravam era o mesmo adorado por Abraão, Isaque e jacó, o Deus cuja vontade foi revelada por meio da Le i e dos p rofe tas.14" E m co ntraste m arcan te, M arcião prop ôs rom pe r com plet am ente com o judaís m o, entend end o o cr is tianis mo como um a nova fé que dizia respeito a um novo Deus. M ais adiante con si derarem os os po ntos de vis ta de M arcião com mais detalhes. Nossa preocupação neste momento, porém, tem a ver com o que relata Epifânio sobre a reação que aqueles cristãos reunidos tiveram ante as propostas de Marcião. Eles se recusaram o seguir suas visões e devolveram o presente recebido antecipadamente de 200 mil sestércios, uma soma bastante significativa para os padrões da épo ca. N ão exi ste evidência de que os líderes cris tãos em R om a fossem p articu larm en te hostis a M arcião. E le s certam en te o consid eravam Acredita-se largamente que nesre pon to o Pananon dc Epifânio bebeu na fonte de Einar T hüma SSEX, Hm-vard do Syntagma , uma obra perdida de Hipólito de Rome Tbeologica l Revie-zo, v. 97, p. 241 -25 6, esp. 242- 24 3, 2004. 144 M arcião tam bém é representado fre que ntem ente como um duali sta, argum entan do que a matéria cra fundamentalmente má. Para uma avaliação desse aspecto de seu pensam ento , v. Retb in kin g "Gnosticism": A n Argum ent for Disman tTmg a Dubious Category , dc M ichael A. W i l l i a ms , Princeton: Pri nceton Univ. Press, 1996, p. 23-26. !4í; EptfãNIO, Panarion 42.1-2.
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A fcm ^a çc O ini ci al da heresi a
errado em suas crenças. No entanto, não o expulsaram da igreja. Epifânio deixa claro que Marcião afastou-se deles, acreditando que não eram propriamente cristãos em suas crenças, e decidiu fundar a p ró p ria organiz ação. M arcião via -se com o o d efensor da verdadeir a ortodoxia e chego u à conclusão de que o úni co m odo de defen dc-la era romper com a igreja dc Roma, doutrinariamente suspeita, e encontrar a sua própria comunidade de crentes verdadeiros — uma seita, para usar a li ngua gem de um a era post eri or. Aqui, o importante é que, nesse contexto, Marcião sabia perfei tamente quem era ortodoxo e quem era herético. Ele estava bastante convencido de que as suas visões eram corretas e que, ao não endossá -las, a igr eja rom an a havia com pro m etido a sua teologia e , dess e m odo , poserd id o odad ireito de reivtinham in dic aruma ser visão a verdadeir ig re ja. N líderes igreja romana bastanteadiferente ema tu ralm en te, realção ao grupo eclesiástico que poderia ser considerado herético. Todos queriam ser um campeão em ortodoxia, inclusive Marcião. Ele não se via como um herege, mas, sim, como um ferrenho defensor daq uilo que o crist ianism o deveria s er. Tod avia, s ua receita para o que deveria ser o cristianismo não encontrou apoio significativo. !Essa observação dc que havia narrativas concorrentes sobre a orto doxia nos ajuda a perceber que a heresia não é um conceito neutro, mas é de term inad a po r interpret ações anteriores s obre o que deveri a ser o cris tianismo. E um a questão de v alo raç ão, al go que não pod e ser confir ma do ou não confirmado através de exame histórico. E esse fator que torna o estudo histórico da heresia tão difícil, visto que o historiador é obrigado a descrever aquilo que outros prescreveram. O julgamento sobre o que é herético e o que é ortodoxo não é algo que o historiador pode fazer usando os instrumentos corretos do método histórico. Em vez disso, a históri a tenta com preend er a natureza das c ren ças her éti cas e dos proces sos, motivações e critérios que levaram a um julgamento prescritivo, por parte da igreja, de que tais crenças eram antes de tu do heréticas. A expl ic açã o de E pifânio pa ra a rup tura de M arcião com a ig re ja rom ana é compatível co m m uito do que sabemos a respei to da hist ória
da igrej a e dos fat os p or ela vivenciados po r volta desse período. H avia, p o rém , outras m aneir as de tecer essa história. E xis te evid ência do surgimento de uma narrativa “oficial” sobre as srcens da heresia, localizando a sua gênese na rivalidade pessoal, na ambição e na de sonestidade no final do século II e início do século III. Tertuliano, que desem penh ou u m papel im po rtante na for m ula ção dess a narr at iva alternativa, afirma que a igreja romana expulsou Marcião em razão de seus p o n to s de v ista .14'’ T er tu lian o re tra ta as src en s da h eres ia de Marcião como repousando em ambições pessoais frustradas. De acor do com T ertuliano, M arcião era um eloqüe nte e tal entoso m est re cri s tão que dese ja va s e t om ar bi spo de Ro m a. Qu an do ou tro cand idato f oi designado, Marcião reagiu deixando a igreja e firmando a sua heresia com o um at o de pe tulânc ia.147T ertuli ano afi rma que M arcião perde u a fé e, por isso, voltou-se para a heresia. Ele “foi um desertor antes de se to rn a r um he reg e”.1^ Existe pouca evidência de que Tertuliano tivesse informação de prim eir a m ão so bre a situação em R om a. N a verd ade, a su a in terp reta ção tem um significado teológico, e não histórico; com isso ele sinaliza uma narrativa “oficiar cristalizada das srcens da heresia, que passou a do m inar um a prim eira heres iol ogia cri stã. De um m odo signif ica tivo, o caráter moral e as motivações dos hereges parecem muitas vezes assu mir, no mínimo, uma importância tão grande nessas narrativas quanto os aspectos teológicos das heresias que eles defendiam. Logo, qual é a visão “oficial” ou “aceita” das srcens da heresia? A seguir, analisaremos a interpretação da natureza e srcem da heresia que predominou no cristianismo primitivo.
14h T e rtu lia n o . Dep mescriptione haeretk onm 30.2. 1é,/ I d e m , Adversus va lentinianos 4.1. 1,)R I o KM, De praescriptwnc haereticorum 1.1.
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A forTie ção ini cial da neresia
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A "visão aceita" sobre a srcem da heresia Em meados do século III, uma narrativa da srcem da heresia foi estabelecida dentro da igreja. Suas principais características podem ser re su m ida s do se gu int e m od o:'1'4' 1. A igreja fun da da pelos ap óstolos era “pu ra e i m acu lada”, m an tend o-se firme nos ensina m entos de Jes us de Naza ré e na s trad i ções dos apóstolos. 2. A ortodoxia precedia temporalmente a heresia. Esse argumento é desenvol vido com particular vi gor po r Te rtuli ano , que insist ia em afir m ar que o prim um é o verum. Quanto mais antigo um ensina m ento , mais au têntico ele é. Assim , a heresia é considera ino vação . 3. Desse modo, a heresia será vista como um desvio deliberado de uma ortodoxia já existente. A ortodoxia veio primeiro; a decisão de rejeitá-la deliberadamente veio depois. 4. A here sia represent a o cum prim ento de pro fecias do N T sobre de ser ção e des vio den tro da igrej a, e po de ser vist a com o u m meio p ro videncial pelo qual a fé dos crentes pode ser testada e confirmada. 5. A por meio do exemplo gosto pelodenovo, ciúmeT ertulian e inveja o retr ata poheresia r partesurge dos here ges. A Valeountino, regularmente os hereges como frustrados e ambiciosos, e relacio na as suas visões a um ressentimento por não terem alcançado o reconhecimento do alto comando eclesiástico. 6. Vista de modo geral, a heresia é internamente incompatível, faltando-lhe a coerência da ortodoxia.
uí> Aqui, eu rccorro ao clássico estudo The Patter n o f Christi an T ruth: A Study in the Relations Between Orthodoxy and Heresy in the Early Church , de H . E .T u rn iír, London: Mowbrav, 1954, p. 3-8.
7. As heresias individuais são geográfica e cronologicamente restri tas, enquanto a ortodoxia se encontra espalhada pelo mundo. 8. A heresia é o resultado da “diluição da ortodoxia com a filosofia p a g a ’. M ais um a vez, T ertu liano é um defe nsor ferrenho dessa posição, arg um en ta nd o que as ideias de V ale ntino derivavam do platonismo e do estoicismo de Marcião. Ele pergunta: o que A ten as tem a ver com J eru salém ?150 Essa “visão aceita” sobre a srcem da heresia foi amplamente adm it ida d en tro do cri sti anismo até o iní cio do séc ulo XIX. A pesar de suas muitas diferenças, os teólogos protestantes e católicos afirmaram que a ortodoxia cristã — à qual ambos os grupos aspiravam — deve ria se conformar com o ensino da igreja primitiva. A heresia era um des vio p osterior dess a do utrina srci nal pura. Desse m odo, o pioneiro e inf luente t eólogo lut erano F ilipe M elàncton (1497-1560 ) argum en tou que a Reforma Protestante era um retorno ao p n m u m et •v erum , o “primeiro e o verdadeiro”, que havia sido distorcido e desordenado pela ig reja m edie val. “D o u trin a antiga, d o u trin a origin al e d o u trin a ve rda de ira s ão, p or tan to , a ún ica e me sm a coisa”. 151 A ortod oxia teoló gica é idêntica aos ensinos mais remotos da igreja. Os adversários cató licos de Melàncton concordavam com ele, afirmando que os ensinos mais antigos da -igreja eram os mais autênticos, mas eles sustentavam a opinião de que o catolicismo preservava tais ensinos, enquanto o pro te stan tism o in tro d u zia in ovações. E a in ovação não era um a das características distintivas da heresia? Essa teoria reinante começou a ser desafiada no século XIX, em grande parte devido ao crescente reconhecimento de que a dou trina cristã havia passado por desenvolvimento ou evolução. Em vez de terem permanecido estagnadas no período mais primitivo da história da igreja, as formulações doutrinais surgiram por um longo
l’° T ertu lian o . De pmescriptione haereticorum 7.9.
J-1 pRAENKEL,Peter. Testtmoma Patrum: The Functton of the Patristu Argument in the
Theology of Philip Melanchthon.
Genève: Droz,
1961, p. 162.
A 'brmação inicir.1 da heresia
p e río d o de tem p o , através de u m processo de re flexão e negocia ção. Ao que pare ce, o surgim ento da heresi a fez parte do grande pr oces so de desenvolvimento da própria doutrina cristã, no qual as sementes do N T com eçaram a bro tar num a vi sã o mais sofi st icada e ext ensa sobre a realidade, que é frequentemente designada de “ortodoxia”. Se antes as heresias eram vistas como o desprezo deliberado de um conjunto bem estabelecido de crenças, elas agora passam a ser vistas mais como atalhos abertos para exploração pelo processo do desen volvimento doutrinai. A visão clássica das srcens da heresia foi posta abaixo com uma forç a ainda m aior no séc ulo XX , quand o os hist oriadores suge riram que a relação causai de heresia e ortodoxia não era exatamente tão direta quanto se imaginava. Vamos considerar, na seqüência, esses desafios à “visão aceita” sobre a srcem da heresia, analisando as suas implicações para a nossa com preensão do conceito.
0 desen volvimento d a doutr ina Em seu importante estudo sobre a natureza da heresia, H. E. W. identificou várias forças a resultados cos.Turner Uma das mais intrigantes é o que que levaram Turner chama de herétiarcaísmo — um a r ecusa em aceitar a necessi dade de desenvolvime nto do pen sam en to cristão.1 52 A observação de T ur n er é im po rtan te, na m edid a em que cham a a at enção p ara o f ato de que a i gr eja gradu alm ente descobri u que a repeti ção de f órmu las mai s primiti vas er a inadeq uad a com o m ei o de assegurar a continuidade, a não ser que se desse a um nível puramente formal, com a igr eja apostóli ca. U m a disposição pa ra preservar a trad i ção por meio da reiteração foi gradualmente cedendo lugar à compre ensão de que a igreja devia continuar a sua história pela reafirmação e interpretação dessas tradições. O dinamismo das tradições do NT
,J T lre x e r. 1'o.iurn of Chíhiiãn Tritíb,
p. 132-141.
em rel ação a Jesus er a simp lesm ente c om prom etido p or es se proc ess o de p reservaç ão, visto que isso im plicava um a e spécie d e fo ssilização .15i A repetição tosca de fórmulas bíblicas provou ser inadequada para salvaguardar e consolidar a fé cristã quando surgiram novos desafios à sua identidad e e integri dad e. A im po rt ânc ia des sa quest ão pod e ser vis ta nu m a lei tur a co n centrada de Atanásio de Alexandria (c. 293-373). Um dos mais significantes pensamentos de Atanásio é que a lealdade à tradição cristã na verdade exige inovação. Quando ficou cada vez mais clara a insuficiência de conceitos e fórmulas tradicionais para se fazer ju stiça à a u to rrev elaçã o de D e u s, A ta n á sio d e fe n d e u a n ecessid ad e de explorar novos modos de expressar os temas fundamentais da fé. Para Atanásio, a questão central dizia respeito a formas especí ficas de inovação doutrinai que eram necessárias para preservar a inte g rid ad e da fé cristã.1 5" A rep etição ap ática e sem im ag inaç ão de fórmulas doutrinais do passado não oferecia nenhuma garantia de que a tradição viva da fé cristã estava sendo adequada ou autenti camente transmitida. N o en tan to , a questã o sobre se a d o u trin a cristã deveria se “desenvolver” provocou um desconforto bastante considerável no século XIX. O assunto era particularmente sensível aos católicos. As geraçõe s m ais antigas de t eólogos haviam afi rmado , com total co n fiança, a invariabilidade dos fundamentos da fé. Assim, o importante teól ogo cat óli co Jacq ues-B enign e B ossuet (1627 -1704 ) insist iu em que o “depósito da fé” católica continua o mesmo ontem, hoje e sempre. Iv’ Para um a análise mais com pleta desse imp orta nte po nto , v. The Genesis ofDoctrine de Alister M c G rath , Oxford: Blackwell, 1990, p. 1-8. Esse p on to foi examinado com pletam ente nos escri tos de R owan W illi am s. V ., p. ex., de sua autoria, ‘‘Baptism and the Arian Controversy”. In: B arxes , Michel; W il l ia ms D aniel (Orgs.). Aria m sm A fter Arius: Essays on the Dev elopment o f the Fourth-C entury Trinitarian Conflict. Edinb urg h: T. ô t T. Clark, 1993, p . 14 9-80; Arius: Heresy and Tradition. 2. cd. London: SCM Press, 2001, p. 235-236. . Para uma discussão desse ponto , v. th. “Dis ruptive H is to ry: Rowan W il liam s on H eresy and O rth odoxy” de Benjamin M y e RS. In: R ussell , M atheson (Org. ). On Ro w an Williams: Criticai Essays. Eug ene: Cascade B ooks, 2008, p. 47-67.
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A fo rr ra ç io irncial da heresia
As inovações dos protestan tes e hereges , af ir mava B ossuet, po deriam ser facilmente identificadas, pois representavam a mudança em um corpo de ensina m en tos até então estático e ina lterad o.1'’ U m a evidênc ia, po rém , cada vez maio r, apontava pa ra o desenvol vim ento d a do utrina — que o ensino da ig reja passar a por um a evolu ção ao longo de vários séculos antes de se cristalizar num sistema de fé mad uro, ex press o no C oncilio de C alcedôn ia (451) . D ur an te os anos d e 1830 e 1840, um grupo de teólogos cat óli cos reunidos n a Universi dade de Tübingen, inclusive johann Sebastian Drey (1777-1853) e Johann A dam M õh ler (179 6-1838 ), des envol veu um a pers pect iva or gânica par a o desenvolvimento doutrinai, que relacionava o processo ao crescimento na tural de um a sem ente biológ ica.1'" Essa simp les analogia biológica, cujas raízes estão no próprio NT, tornou-se cada vez mais popular nos círculos teológicos alemães. Ela deu margem ao desenvolvimento dou trinai, enqu anto suger ia, ao mesm o tem po, que o padrão de cresci men to era predeterminado, em vez de arbitrário ou fortuito. Admitir que a doutrina havia se desenvolvido não era, portanto, necessariamente mo tivo p ara preo cu pa ção teo lóg ica.157 Essa abordagem foi desenvolvida no mundo de língua inglesa p o r J o h n H e n ry N ew m an (1801-1890). N u m se rm ão univ ersitário em. O xford em 1843, N ew m an usou o te xto do di a — M aria ,porém , guard a va todas essas coisas, meditando sobre elas no coração (Lc 2. 19) — para tra çar um a clara distin ção en tre “nova s ve rdad es” e “ou tras pe rspec tivas”.1 58 ls’ V. esp. “D c k pe rp étu ité de la loi dans la controvcrse B ossu et-Julien (1 68 6-1 69 1)”, dc Renatc S trlmax , Revue d ’histoire ecclésiastique, v. 37, p. 145-189, 1941; “Bossuet and the Consensus of the Church”, de Richard F. C ost i ga n , TbeologicalStudies, v. 56, p. 6 52 -6 7 2 ,1 99 5 . 1'1’ A melho r análise po de ser vista em Glaube nseinbeit u nd L ehrentwicklun g bei Johann
Ada m Mõhler, de Hans GeisSk.r, Gòttingen: Vandenhoeck& Ruprecht, 197 1. 15' M aurer , Wilhem. Das Prinzip der Organischen in der evangelischen Kirehengeschichtsschreibung des 19. Jahrhunderts. Kerygma und Dogma m, v.8, p. 256-292,1962. ’ ,:,fi N ewman , John Henry. T he Th eory of Developni ents in Rel igio us Do ctr ine. In: GAFFNEY, James (Org.). Conscience, Consensus an d the De velo pm ent o f Doctrine. New York: Doubleday, 1992, p. 6-30.
A igrej a — afi rmava ele — , est ava envolvi da em um processo de re flexão pelo qual surgiam novas perspectivas. Newman assegurava que esse processo não resultara em inovação; antes, levara a um aumento do entedimento da Igreja sobre aquilo em que ela acreditava. Em 1845, Newman estabeleceu as suas idéias de maneira mais com pleta em seu cél ebre Essay on the Development oj Christian Doctrine [Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã]. Sua contribuição mais importante para o estudo do desenvolvimento da doutrina foi, possiv elm ente , não um a te oria de com o a d o utrin a se desenvolv e, m as o reconhecimento de que essa mudança de fato ocorreu.'^Talvez a carac terí sti ca distint iva e a contribuição mais imp ortan te do trabal ho seminal de N ew m an seja a insist ência sobre o fa to obser vável do desenv olvimen to doutrinai, não alguma teoria ou modelo específico desse processo. Para Newman, “desenvolvimento” ou o sucesso de “outras perspectivas” em m atér ia d e dou tri na era um a idei a com pletamen te ort odoxa.
Portanto, a partir da situação
, da história de todas as seitas re-
hgosas e da analogia e exemplo bíblicos, podemos razoavel mente concluir que a doutrina cristã admite a possibilidade de desenvo lvime ntos fo rm ais , legítimos e verdade
iros, ou s eja ,
desenvolvi mentos cont empl ados po r se u a utor d ivin o.m
A ideia de Newman não foi bem recebida nos círculos católicos mais tradicionais, que ficaram alarmados com o sinal do crescimento da secularizaçâo na Europa e consideraram anátema qualquer diluição ou dim inuição dos p on tos de vis ta tr adicionai s nu m contexto tão peri goso. O Concilio Vaticano I (1869-1870) teve pouco tempo para deliberar sobre a ideia de desenvolvimento doutrinai, reafirmando a noção da ,5V Cf. Cbange in Foais: A Study o f D octn na l Cha nge a nd Continuit y, de Nieholas L a s h , Lon don: Sheed & W ard, 1973, p. 88 ; “Ne wm an o n Revektion and Doctrinal Development”, de Hu go M f.ynm l JournalofTheologica / Studies , v. 30, p . 13 8-1 52 ,19 79 . 1nfl N ewmax , John Y ie m y .jln Ess ay on th e Development o f Chri stian Doct rine. London: Long ma ns, Green & C o ., 190 9, p. 74.
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A forma ção incial ca hcrcs a
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“im utab ilidade da do utrin a”'1'1 ao lado do con ceito da infabili dade p a pal. M as a evidência histó ric a para esse pro cesso de desenvolv im ento aumentava inexoravelmente, estabelecendo a base para uma reconside ração da noção tradicional de uma herança doutrinai estática. Talvez a f é entregue aos santos de uma vez por todas... (Jd 3) não fos se um con junto completo de dogmas, mas o k it básico para a construção desses dogmas sob a direção providencial de Deus.!”2 A ideia do “desenvolvimento da doutrina” recebeu uma nova in jeção de energ ia in te le ctu al com a publicação de Origin o f Species [A srcem das espccies] (1859), de Charles Darwin. Se alguém podia falar de evolução dentro do mundo biológico, o mesmo processo — ou pelo menos algo parecido — não poderia ser discernido dentro do mundo das ideias? D ado o im pacto cres cente do darw inismo po r todo o m und o ocidental no final do século XIX e além dele, talvez fosse inevitável que o fenômeno do desenvolvimento doutrinai começasse a ser pensado em termos darwinianos. Assim, a “fé entregue aos santos de uma vez por todas” era em si mesma um sistema de doutrina completamente desenvol vido, ou, ao co ntrário , a sem en te da qu al cresceria um tal sistema ?1'’1 Hoje, muitos escritores cristãos dariam amplo consentimento, com ine vitávei s qualifi cati vos à posi ção geral tr aça da p or C harles G ore, em 1891 . Lidando com o tema sobre a relação do testemunho dado a Cristo no N T e a elaboração e conso lidação su bse quente dessas ideias nas doutrin as da Igr eja , Go re defende um aparecime nto natural, orgâni co, da def ini ção calcedòni ca." ’ To do o processo é regido pelo surg im ento grad ual daq uilo 11,1 G \rríi;oí.'-L àC tR aso i:, Reginald. 1 ‘im m utabilitc du dogm e selon l e Concilc du Vatican, ct le relativisme. Angehcum, v. 26, p. 30 9-3 22 ,19 49 . 1,,: GUARINO, Thomas G. Tradition and Doctrin.il Developmcnt: Can Vincent of Lérins Sti ll Teach the C luirch? Theological Studies, v. 67, p. 34-72, 2006. Embora lomas de Aquino não use a expressão “desenvolvimento doutrinai”, pode-se talar, com cautel a, de ' 'desenvolvimento doutrinai ’ num sentido m ais profu ndo dentro dos t extos d e Aquino, cor no em “ Th om as A quma? on the D evelopm cnt o f D octrine”, d e Christopher KACZOR, TkeologicalStudies, v. 62, p. 283-302, 2001. !A4 Goi-ti:, C h arl es. The Incam aticn o f the Sou o f God. Lon don: John M urr ay, 18 92, p. 85-8 7.
que G ore d eno m inou de “ um a consc iênci a comum ” que es tá e m um pro cesso contínuo de “adquirir uma expressão mais clara”, usando a lingua gem e o con junto de conceitos do s eu entorno. A ideia de um desenvolvimento doutrinai é amplamente aceita p ela m aioria dos teó logo s e vista, agora, co m o co n ceito que não faz desencadear nenhum problema em particular. A maioria dos teó logos argumentaria, hoje, que a igreja cristã esteve cada vez mais engajada em um processo de autocrítica e autoavaliação, na medida em que interroga a si mesma sobre estarem seus modos de pensa m ento a r espei to da r evel açã o divi na adeq uada m ente fund am entados na realidacie dessa revelação, ou, na verdade, serem eles as melhores representações de uma autorrevelação divina, que, no final das con tas, não se dei xa red uz ir a palavras e co nc eitos h u m an o s.1''5 N ão é difícil perceber com o a exig ência de co n stan te vigilân cia teológica está estreitamente ligada à noção de desenvolvimento da doutrina, em que o diálogo interno e a autocrítica da igreja levam inevit avelm ente (mesmo que de forma lenta) a um a per cepção de que, em alguns casos, as tentativas de ontem para conceituar a csscncia da íé precisam de aprimoramento; essa necessidade talvez tenha surgido pela existê ncia d em asiad am en te próxim a das suposiç ões prevale nte s cia época, ou por estar excessivamente focalizacia em um único aspecto de uma questão complexa. O desenvolvimento doutrinai é o resulta do inevitável e adequado da vigilância teológica exigida pela igreja. Há, portanto, um sentimento no qual a ortodoxia cristã é alguma coi sa que t feita quando sucessivas gerações herdam os modos cie falar sobre Deus e Cristo, os quais acertadamente elas respeitam, embora, de forma correta, desejem submeter a exame. De modo oposto, pode acontecer de certas abordagens, mesmo aquelas outrora consideradas positiv as e úteis , te rem de ser deix adas de la do com o in aceitáveis ou at é m esmo herét icas .
1
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A fo-m ação inicial da heresi a
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Em vez de aceitar passivamente a maneira pela qual as gerações anteri ores interp retaram um a passagem bíbli ca espe cífica ou um concei to dog m áti co, a i grej a é cham ada a exam inar tud o , e conserv ar o que ébo m (lTs 5.21). De forma muito enfática, isso nâo está sendo desrespeitoso com o passado; ao contrário, trata-se de manter o diálogo então inicia do, que continua hoje, e não terminará até o fim da história. Será esse realmente o melhor modo de dizer a verdade da fé? Essa é realmente a narrativa mais abrangente sobre quem é Deus e o que Deus fez? Esse é de fato o modo menos conceitualmente extravagante de representar a identidade de Cristo? Essas perguntas devem ser feitas e respondidas como parte do “discipulado da mente” da igreja. A aceitação da ideia do desenvolvimento da doutrina tem im plic ações im p o rta n te s p ara o m o d elo clássico das orig en s da heresia. Para Tertuliano, a heresia tinha a ver com inovação, mudança ou mod ifi cação da verdade d ou tr inai pura de anti gam ente. No entanto, se levarmos em conta que a doutrina ortodoxa se desenvolve com o passar do tem p o , o m o do de T e rtu lia n o id e n tifica r e exp licar a h e resia perde o sentido. Isso apresenta claramente as dificuldades que existem para a interpretação tradicional — dificuldades srcinadas de uma percepção cada vez maior da complexidade da inter-relação ortodoxia e heresia, como veremos agora.
De fora o u de d entro7 As orige ns da heresia As explicações cristãs tradicionais das srcens da heresia geral m ente descr evem a heresi a como um a inva sor a ou contam inado ra exter na. A heresia surge quando ideias “de fora” se tornam influentes dentro da igreja. Tertuliano, por exemplo, afirmava que uma tola vontade cristã de fazer uso das ideias da Academia Platônica na reflexão teológica le vou a i grej a a se torna r vítim a de um a série dc her esias . O que Jerusalém tem a ver c om A tenas? O que a igreja cri stã tem a ve r com a Acade m ia
P latô nic a? 1''1'A heresia é o resu ltado inevitáve l da co nta m ina ça o da p u reza d a fé cri stã por influências externas. Essa explicação aceita sobre a srcem da heresia é hoje, geral mente, considerada incorreta. Embora certas formas de heresia possam representar respostas para amplos movimentos culturais e intelectuais na sociedade, a heresia parece srcinar-se dentro da igreja. O estímulo para o desenvolv im ento da here sia pode vir de fo ra da igreja; o desen volvimento da heresia ocorre dentro da comunidade de fé. Tertuliano e outros estão corretos ao sugerir que as influências culturais e intelectuais mais abrangent es podem desem pen har um papel ca tal isador no apareci m ento de uma her esi a. Ê im po rtante, porém , considerar que a s here sias em questão parecem ter sido desenvolvidas por cristãos, em particular aqueles que sentiam a necessidade de assegurar que a igr eja pe rm an ece s se culturalmente empenhada. Como ilustração desse ponto, podemos considerar o montanismo, um movimento que se srcinou na Frigia, Ásia Menor, 110 fi nal do sécul o II. O m on tanism o era notável pel o seu rigor m oral, e desenv olveu ideias a respeito da pro fecia extática, a s quais são vi stas m uitas vezes como antecipaç ões do pe nte co stalism o.1,,: D u ra n te a l gum tempo, discutiu-se que existem importantes pontos de contato entre o montanismo e o paganismo da Frigia, sugerindo que o mo vimento foi influenciado, pelo menos até certo ponto, pelo seu con text o im ed iato.1 '" C on tud o, em bora se poss a m uito bem argum entar que, desde o seu início, o montanismo exibia caracterísicas que, na época, eram mais compatíveis com aspectos das religiões pagãs que
1f,t’ THRTULl.ANO, Dípmescription e haerencorum 7.9. “Q uid ergo A then is et Hierosolvmis? et ecclesiae? quid haeretids ct christianis?"
quid academiac
ln' T rk v e tt, Chris ti ne. M ontanism: Gender, A u thcn iy , and the Neu' Prophecy. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1996, p. 77-150. V. esp. Horrenda Secta: Untersucbungen zum frühcbristUcben Monran ismus und semen Verbmdungen zurpaganm Rehgion Pbrygiens, de Vera-EIisabcdi Iíirscs-IMANN, Stuttgart: Fran z S tciner Ver lag, 2005. Sobre um estudo anterior desse assunto, v. Der M ontanismus und die phrygischen Kulte: E in e ReligionsgcscbkbtlicJx Untcrsucbunç, de W ilhelm E. ScHK,ra>; RN,Tübmgcn: J. C. B . M ohr, 1929 .
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A forma ção íncial da heresia
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p red o m in av a m na F rig ia do que com o cristian ism o co n v encio nal contemporâneo, isso não significa que o montanismo deva ser visto como uma corrupção essencialmente pagã do cristianismo. Outros p en sad o res en fatiz aram com o o m o n ta n ism o , apesar de su as ênfa ses disti ntivas, con tinu a um m ov im ento e ssenc ialm ente c ristão .1'"' O montanismo talvez seja mais bem entendido como uma forma particular de cristianismo que se adaptou ao seu ambiente cultural local, desenvolvendo ênfases que podem ser vistas como re p rese n ta n d o adaptações da da cu ltu ra frigia . E m b o ra as influências que moldaram o seu surgimento tenham se srcinado fora da igreja, o montanismo não deve ser considerado um controle pagão do cris tianismo. Ele surgiu claramente dentro de uma igreja, ou grupo de igrejas, quando alguns membros dessa igreja procuraram desenvolver o que consideravam um a form a au têntica de crist ianis m o, capaz de s e comprometer com a cultura pagã de seu tempo. N arrativas sem elhante s po dem ser apre senta das no caso da m a io ria das outras heresias clássicas da cristandade. O padrão comum é o desenvolvimento, dentro das igrejas, de movimentos que foram mais tarde considerados heréticos, mas que eram tratados pelos seus pre cursores formas de cristianismo, às suas alt ernati como vas, por ser autênticas em mais bem adap tadas superiores ao am biente cult ural, o u mais eficazes em evitar certas fraquezas vistas em seus oponentes. O fut uro dest ino de tai s abordagens de pend ia fort em ente da capaci dade desse julgamento em longo prazo.
,m Sobre uma forte declaraç ão de ssa posi ção, v.“D erM on tan ism us u nd die kleinasi arische Theo logie” , de Kurt A la n d , Zeiíschriftfür die N eulestam enlliche Wisscnscbaft, v. 46, p. 109-116,1955. ’
Relação entre ortodoxia e heresia: a tese de Bauer O século XX testemunhou a descoberta de importantes do cumentos em Nag Hammadi e outros locais, os quais deram início a novos debates sobre a interação da ortodoxia e heresia. A biblioteca de Nag Hammadi consistia numa coleção de 13 códices antigos com mais de 50 textos dentro de um jarro de vidro selado, descober ta por trabalhadores agrícolas no Alto Egito, em dezembro de 1945. A descoberta desses documentos levou à reabertura de muitas questões sobre o contexto no qual o cristianismo primitivo se desenvolveu. Uma das mais significativas dessas discussões envolveu uma revisitação às dis cuss ões l evantadas por W alter Bauer, em seu Ortho doxy an d Her esy
in Eariiest Cristianity [Ortodoxia e heresia no cristianismo primitivo] (1 93 4).17,J N essa obra, pu blica da ante s d a d esc ob erta da b ibliotec a de N ag H am m ad i, Bauer esta beleceu duas im p ortan tes teses que defin em a relação entre ortodoxia e heresia no século II. Em primeiro lugar, Bauer afirmava que o cristianismo foi, desde o seu início, uma coalizão frouxa de diferentes grupos que divergiam consideravelmente sobre a interpretação do significado de Jesus de N azaré e de sua his tória de proveniê ncia religio sa . O que mais ta rde passa ria a ser cham ado de heresias não deveria ser visto com o desvios espúrios de uma corrente que em sua srcem era unificada e ortodoxa, mas como herdeiras diretas das primeiras formas de cristianismo, as quais diferiam daquelas que deram srcem à ortodoxia do século II. Em outras palavras, o que passaria a ser intitulado de “heresia” e “orto doxia” já estava prese nte na igrej a desde o tem po mais rem oto. Em segundo lugar, Bauer defendia que, na maioria dos lugares e até o fim do século II, a forma predominante de cristianismo era heré tica, não ortodoxa. O cristianismo primitivo foi, assim, dominado pelo Rechtglãubigkeit undK etzerei im ãltesten Chnstentum . Tübingen: Mo hr, 19 34. U m a tradução inglesa foi publicada um a geração depois, s ob o título Orthodoxy an d Heresy in Earhest Cbn stianity , Philadelphia: Fortress Press, 1971. 1,0 Bauer
, W alter .
A form aç ão inicial da hereãia
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que posteriormente seria chamado pelo ortodoxo de “heresia”, mas que naquela época não er a considerado co mo tal . Bauer f az um a im po rtante exceção no caso de Roma, que ele admite ter sido dominada pela orto doxia. D o final do século I em diante, Ro m a estendeu, gradu alme nte, a s ua influência ortodoxa para o leste, até o seu domínio no final do século III. A afi rmaçã o de Bauer — é pre ciso dizer — tem confundido a m aioria dos historiadores desse período que, de modo correto, observam que as prim eir as com unid ades cristãs sim ple sm ente não estavam em condiç ão de coagir ninguém. (V. a discussão anterior nas páginas 75-77). Bauer prosseguiu defendendo que inúmeras visões que eram to leradas na igreja primitiva aos poucos se tornaram suspeitas pela igreja posterio r. E nsin os que foram aceitos nas décadas iniciais da existê n cia da igreja foram depois condenados, particularmente do final do século II em diante, quando começou a surgir um consenso ortodoxo. A hostilidade de Bauer à ideia de normas doutrinais pode ser vista de forma particularm en te clar a na sua crença de que ta is norm as foram u m desenvolvimento tardio dentro do cristianismo. Opiniões que outrora haviam sido tol eradas eram agora descar tadas com o inadequad as. Como se fazia essa distinção entre heresia e ortodoxia? Bauer afirmava que, inicialmente, o sentido de comunhão, compartilha do dentro das igrejas cristãs primitivas, não se situava no nível das doutrinas. Em lugar de ser visto como qualquer declaração formal de do utrina — com o a “ortodoxia” tend e a ser def inid,a — , enco ntrava-se p rin cip alm en te na adoração do m esm o Senhor. B auer ainda su gere que a noção de ortodoxia foi um resultado direto do crescente poder polític o de R om a, que passou a im p o r cada vez m ais as su a visões, usando o termo “heresia” para designar e tornar desacreditadas as vi sões que rejeitava ou achava ameaçadoras. A retórica da igreja romana criou um clima de hostilidade e suspeita em relação às formas iniciais de ortodoxia que a igreja considerava ameaçadoras ou incompatíveis. Para Bauer, a distinção entre ortodoxia e heresia era, portanto, essencialmente arbitrária, refletindo a predominância sociológica e po lítica de grupos de poder, em vez de alguma coisa intrínseca às ideias
em si. As ideias de Bauer foram adotadas e desenvolvidas nos textos do acadêm ico de H arv ard H elm u t Ko ester ,’7' e aproveit adas, pel o m enos adm itidas em cert o grau, dentro da com unidad e erud ita at é por volt a do final dos anos 19 60 .17: Ko ester louvou a real ização dc Bau er, declaran do que ele havia “demonstrado de forma convincente” que:
Os grup os cristãos ma is tarde chamados de her éticos predo min aram , na verd ade, nos pr im eir os dois ou três séculos, ta nto geog ráfica quanto teologicamente. Recentes descobertas, especialmente as de N a " H am rnadi, no A lto E fito , tê m deix ado m ais claro que B auer estava essencialmente. correto,
e que é necessário uma reavaliação
am pla e compl eta da hist óri a cristã p rim iti v a } 1 ’
H oje , decidid am en te, a tes e de Bau er par ece frágil.1 74 E m bo ra aceitando de um m odo gera l a dem on str ação de Bauer de qu e a or tod o xia nasc eu de um a noção m ai s fl uida e m enos rigidam ente definida do que alguns haviam suposto, seus críticos colocaram em dúvida a maior p arte de suas conclu sões, d e m o n stra n d o um a p articu lar preocupação,
1,1 V., p. and in the “Gnomai Diaphorai: deTheKOrigin Nature History ot ex.,Early Christianitv’’. oester In: ofRDiversification obinsox , Helmut. , James AL; Koi:sTi:k, Helmut (Orgs.). Trafectories Through Early Christianitv. Philadclphia: Fortress Press, 1971, p. 114-157. ' A mudança de humor pode ser verificada no cxcclente ensaio “Orthodoxy and Heresy in Primitive Christianitv: Some Criticai Rcmarks on Georg Streckers Republicati on of W alter Bauers Rechtglaubigkcit undK elz ereii m ãltestm Christentum", de H ans Diet er B c t/, In terp re lation , v. 19, p. 299-311,1965. 11 K oester . G nom ai Diapho rai, p . 114. I,_ Sobre pesquisas magistrais dessa questão, v. Heresy and Criticism: The. Search for Authenticity m Early Christian Literature , de Robert M. GRANT,Louisville: Westminster John Knox Press, 1993; The Rise o f No rma tive Christ iani ty, de Arland J. H t i;i Minneapolis: Fortress Press, 1994. v. Heresy and Criticism: The Search for Aiitben.tici.tv in Early Christian Literature, de Robert M. GRAXT, Louisville: Westminster lohn Knox Press, 1993; The Rtse of Norm ative Chris tianit y, de Arland ]. Hui.TGREN,Minneapolis: Fortress Press, 1994. Para co m entá rios sob re questõe s mais específ icas, v. “T h e Reeeption of W alt er B auers Orthodoxy an d Heresy in Earliest Ch ristia mty Durin tç the L.ast Decade”, de Daniel f. I lARRiNGTON, H arvard Theologual Re-vieic, v. 73, p. 289-298, 1980.
A ’o'maçc.o inicial da heresia
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por exem plo , sobre a sua lon ga argu m en ta ção do silên cio.17’ O arg u mento de Bauer de que o cristianismo primitivo não entendia a sua unidade em termos doutrinais logo recebeu apoio de alguns escritores, como p or exemplo, M artin E lze .’Tr C on tud o, outros argu m entavam que uma interpretação fundamentalmente doutrinai da unidade cris tã já estava presente nos escritos de Clemente de Roma, Inácio de A ntio q uia e Ju stino M ár tir.177 Além disso, a afirmação de Bauer de que, em muitas regiões geográficas, aquilo que mais tarde seria estigmatizado de “heresia” era, na verdade, uma representação mais primitiva de cristianismo, foi rebatida firmemente com base em evidências literárias e arqueológi cas.178 U m a c onsciência cada vez m aior da facil idade de com unicaç ão dentro do Império Romano levou a um crescente entendimento do quan to era relat ivam ente fá cil um a fé amp lam ente d ifundid a sustentar uma rede de comunidades interligadas e inter-relacionadas com um se ntim en to de ide ntid ad e e pro p ó sito .171' A precisão de Bauer na interpretação de certas heresias também tem sido contestada. Por exemplo, Bauer afirmou que o valentianismo era um a forma de cri stiani smo esse ncia lmente indepe nde nte da o rtod o xia qu an to a s uas ori gens. E ntre tan to, num cuidadoso estudo das font es valentianas, James McCue sugeriu que as srcens do valentianismo eram mais bem compreendidas como recaindo dentro da ortodoxia do século II. Em particular, McCue notou o seguinte: 1. O papel da ortodoxia no valentianismo é tal que parece fazer parte da autointerpretação do momento em vez de sua antítese. ]/í Hu.TORKN. Rtse of Normatvve Christiantty, p.10. E inhe it der Kirchc im 2. Jahrh und ert. Zkitsci ír if t Ri r Elze, M artin. Háresie und Theologie undKnche , v. 71, p. 389-409,1974. D AVIOS, A delbert. Irm im und Háresie: 1 C lcm .-Igna tius von A ntioch ien-Justinu s, Kairos, v. 15 p. 165-187,1973. 1,sV esp. The Bauer Thesis ExamineJ: The Geography o f Heresy in the Early Cbnsfnin Chitrch, de Th om as A. R ob ixso n, Lew ist on: Ed w in Me llcn Pr ess, 1988, p. 35-91. 1,9 Wn.KEX, Robert. Diversitv and Unitv in Early Christianity. Second Century, v. 1, p. 1 0 1 -1 1 0 ,1 9 8 1 .
2. Em vários pontos, as fontes valentianas identificam os ortodoxos, explícita e claramente, como um grupo grande, comparado com um núm ero relat ivamente pequen o de val ent ia nos. 3. Os valentianos das décadas anteriores a Ireneu e Clemente de Alex andria usavam os livros do N T ortodoxo de um m odo que é mais bem explicado supondo que o valentianismo se desenvolveu den tro de u m a m atriz ortodoxa em meados do sécul o II .'8'1 Uma conclusão semelhante foi extraída por Birger Pearson, que observou que o gnosticismo pré-valentiniano na Alexandria parecia ter surgido num contexto em que a fé e a prática ortodoxa já estavam es tabelecidas.^1O valentianismo aqui se conforma ao padrão geral que observamos a nteriorm ente, no qual a heresi a tem suas or igens den tro da comunidade de fé, em vez de tora da igreja. E m seu im po rtante estudo da relação do cr ist ianis mo com o paganis m o ness e perí odo format ivo, Ro bin La ne Fox mo stra que o enfoque históri co de Ba uer à heresi a é falho prec isam en te po r não p ossuir aquel es crit érios históricos que ele quer enfatizar como subsídio. Embora seja difícil fazer ju lgamentos históricos consistentes sobre muitas questões relativas à histó ria do cristianismo primitivo, n um a que stão é poss ível um clar o ver edict o:
N ã o há nada que comprove um a antiga visã o de que os tipos de cristianismos heréticos chegaram em muitos lugares antes da fé ortodoxa, exceto, talvez , na cidade síria de Edes sa. E m L yo n e no norte da África, não há nen hum a evidênc ia de ssa prim eira fa se herética, e todas as ori gens ma is pro váv eis contrari am essa vi são. N o E gito , o argum ento foi refutado decisivamente po r meio da evidência dos papiros . Os deta lhes
M c C u k . James F. Orthodoxy and Heresy: Walter Bauer and the Vaientinians.
Vigi/i uc C hristianae , v. 33, p. 118-130, esp. 119-121,1979. in Alexandri a. I n : ____ , (Org.). The 181 Pearson, Birger A. Prc-Valentinian Gnosticism Future o f Early Christianit y. M innea polis: Fortress Pres s, 1991, p . 455-4 66. Essa obra foi poste riorm ente ex pan dida. Cf. Gnosticism and Christianity m Roman and Coptic Egypt, de Birger A. P f .arson , Lo ndo n: T. &. T. Clark, 2004.
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A formaç ão inicial da heresia
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de prática e liderança , com efeito , diferem bastante, mas a existência posterior de ta ntas heresias não dev e ofuscar o núcleo comum da história e ensino básico ao longo do mundo cristão.™1
Ao contrário disso, houve uma avaliação renovada dos méri tos de uma visão mais tradicional que afirma que o cristianismo do século II deve ser visto essencialmente como um núcleo ortodoxo cercado por u m a penum bra dentr o da qual o lim ite entre ortodoxia e h eresia ainda era um tanto obscuro e aberto a outros esclarecimentos por meio da con trovérsia e do d eb ate .:s:’ Po de -se falar de um a “co m bin açã o dc diversidade aceitável” sem suscitar nenhum problema teológico ou histórico funda mental.’s'' Em todo caso, a observação histórica de que, em determinado local , a heresia existiu antes da o rtodo xia n ão eqü ivale a diz er que a her esia exis te em con diçõe s his toric am en te iguais à ortod ox ia.185 Para a maioria dos estudiosos, a tese de Bauer deve ser vista hoje como relat ivamen te de pouco valor hist óri co. Ela repousa n um a séri e de su posições que a crítica posterior considero u insustentável. N o entanto , h á u m ponto no qual Bauer está inquestio navelm ente correto: o cristianismo pri mitivo era muito mais complexo e diverso do que alguns de seus principais represen tantes da épo ca parecem que rer nos fazer cr er. Isso, po rém , é agor a am plam ente acei to e já não é visto com o controver so — ou problemático. O legado mais significativo da tese de Bauer é a perspectiva de que as visões heréticas do cristianismo reivindicam legitimidade tanto 132 Fo x, R ob in L ane. Paga ns an d C hrh tians in the Med iterranean World from the Second Ce ntury a.D . to the Conversion o f Con stantine. London: Penguin, 1988, p. 2 76. Fox cham a a ate nção part ic ula rm ente para a cvid cncia crític a reunid a nas Schwci ch Lectures o f the Briti sh A cademy [Conferência s Schwe ich da A cademia Britânica] de 1977. V. Manuscript, Society a n d B elief tn Early Christian Egypt, de Colin H . R o b rr ts, L ondon : Oxford Uni v. Pr ess, 1 979. IK> Ess a é a posiçã o desenv olvida no e stud o clássico The Patter n o f Christi an Truth: A Study in the Relations Betiveen Orthodoxy an d Heresy m the Early Chure h, de H . E. W . Turnkr, London: Mowbray, 1954, p. 81-94. Observe esp. a referência de Turner a um a “marge m ou p enu m bra entre ortodoxia e heresia” (p. 7 9). 1MRobinsom. Bauer Thesis E xam m ed, p. 36 u> H u ltgrew Rise o fN om ia tw e Christianttv, p. 11.
quanto as suas alternativas ortodoxas. Um exemplo dessa perspectiva é encontrado nos textos de Elaine Pagels, a começar pelo The Gnostic Gospels [Os evange lhos gn óstic os].1SíJ Pagels é um a im po rtan te teste m u nha não so m ente da longa inf luência da t ese de Bauer d entro dos grupos acadêmicos, mas da curiosa crença de que o gnosticismo oferece uma visão da realidad e m ais li be rtad ora , espec ialm ente p ara as m ulh ere s.187 A interpretação revi sionist a da heresi a po r Pagels , especial m ente a sua defesa do gnosticismo como um movimento igualitário que en corajava a particip açã o das m ulh eres n os ritos s ag rad os,1^ só po de ser sustentada por uma política de atenção seletiva às fontes, filtrando ou marginalizando aqueles aspectos da heresia que, inconvenientemente, são incompatíveis com a sua abordagem. Um exemplo óbvio tornará mais claro esse ponto. Consideremos o final do evangelho gnóstico de Tomé, o qual Pagels parece considerar um manifesto feminista pionei ro. Claramente ele não é nada disso. A conclusão dramática dessa obra estabelece a sua perspectiva de forma vigorosa e poderosa sobre as mu lheres. Vale a pen a citá-lo cm sua totalidad e. De acordo com esse documento gnóstico, Jesus termina o seu ministério com uma proclamação dc que o “reino do Pai” está espalha do por todo o mundo. Assim, quem entrará nesse reino? Quais são as condições prévias para se pertencer a tal grupo? ,R'’P agels , Elaine H. The Gnostic Gospels. New York: Random H ouse, 1979 . IS' Sobre uma primeira crítica à sua obra nesse sentido, v. “Gnosticism, Fcminism, and Elaine Pagels”, de Katbleen McVf.y, Thcologv Today, v. 37, p. 49 8-5 01 ,19 81 . O bserv e a visão de McVey dc que Pagels faz um “retrato atraen te dos crist ãos gnósticos com o um a m inoria d e pessoa s criativas cerce ada, pri vada de seu papel histórico legí timo, po r um a porç ão de bem org an izad os, mas ignora ntes, literalistas’ (p. 499). 1SÍ U m a perspecti va próxima, igualmente d epe nde nte do problem ático mo delo de Bauer das srcens c natureza da heresia, pode ser encontrada em Heretics: The Other Side o f F.arly Chrh liemity , de G erd L Cde maíw . Lond on: SC M Pre ss, 1996 ; Lost Christianities: The R a ttk for Seriptirre an d lhe Fait hs We N ev er K neia, de Bart D. Euh.vian, New York: Oxford Univ. Press, 2003. Infelizmente, o trabalho dc Lüdemann é marcado por um pre conceito tão óbv io contr a a ortodoxia qu e poss ui um valor restrito ta nto como um a análise histórica quanto como uma contribuição séria para a discussão da natureza e do significado da heresia.
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Simão Pedro disse a eles:
A formação inicial d- he res ia
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“'Ma ria dev eria deixar-no s, pois as mu lhe
res não são dignas da Vida". Jesus disse: "Veja, eu a guia rei p ara fa z e r dela homem , de modo que tam bém ela possa tornar-se um espír ito •vi vo semelhante a vocés, ho mens. Pois toda m ulh er que se torn a ho mem ent rará no rem o do céu' .-9'
O Evangelho de Tom é proclam a que a entrada para o rein o do céu é restrita aos homens e a umas poucas mulheres seletas que estão dispos tas a sacrificar a sua identidade de gênero. Igualitário? Claro que não. Como a estudiosa feminista Kathryn Greene-McC-reight corretamente observa: “O s textos gnósticos estão cheios de declarações an tifemin istas, as qua is em palidecem as pass agens problem áticas d o N T sob re a s m u lheres quando comparadas com a própria misoginia”.™ É preciso deixar claro desde o i níci o que é his toricam en te inde fen sável com parar um a h eresi a li beral, trouxa, generosa e ne utra em termos de gênero com uma ortodoxia redutora, dogmática, patriarcal e rígida. Isso l eva a um a clara e fas cinante an títese, i dealm ente afinada com o h u mor cultural contemporâneo. No entanto, ela não é compatível com os dados históricos. Apenas para mencionar algumas dificuldades óbvias: o montanismo e o pelagianismo eram firmemente heresias disciplinadoras, enquanto o mareionismo era desagradavelmente antissemita. Se quisermos tratar seriamente a heresia como um fenômeno histórico, pre cisam os aband o nar a curiosa pre sunção de que ela c vítim a de alg um tipo de opressão teológica. Designar um movimento como herético não signif ica que el e tenh a sido igualit ário ou libertár io n um a época p atriar cal e autoritária. As heresias poderiam ser até mesmo mais patriarcais e autoritárias do que as ortodoxias. As vezes, as heresias foram rejeitadas porque precisavam se r reje itadas. GUILLAIWIONT, Antoine et al (orgs>.). The GospelAccordm%to Thomm. Lciden: Brill, 2001, p. 57. Corrigi a tradução em um ponto, traduzindo o termo grego hina cm seu sen tido correto: "para qu e”, em vez dc '“qu e”. 1 G rkkxe-AIcCrfj gii t, Ka thryn. Feminisl Reconstructiom of Chrutian Doctrine: Narratrve jinafysis andA ppraisnl. N ew York : O xfo rd Univ . Press, 2000 , p. 90.
E ntão , pa ra onde essas reflexões nos l evam? O p on to fund am ental é que foi estabelecido pela sabedoria moderna que a ortodoxia é um fenômeno emergente. Ela não foi apresentada como um pacote pronto, mas cresceu, como uma semente, durante um longo período de tempo. Todos os temas fundamentais que seriam costurados no tecido da or todoxia já estavam lá desde o princípio; mas, com o passar do tempo, eles foram sendo expre ssos de um m od o qu e às vez es envol via um a m u dança além da linguagem e das imagens nos documentos que mais tarde seri am incorp orado s ao câno n do N T .’‘n U m a ortod oxia ce ntral sur giri a e seria transmitida no seio de uma cultura acostumada à transmissão oral. M esm o sem o N T funcional e autorizado , os pad rões de ensino e adoração que sabemos terem sido operacionais no cristianismo primiti vo teri am sido sufi cie ntes para cri ar o que alguns es tão agora cha m and o de proto-ortodoxia. L arry H urta do defi ne es sa noção com o se gu e:
Por ''proto-ortodoxo
”, quer o d ize r os prim eiro s exemplo s e a s p r i
meira s fases dos tipo s de crença s e pr át ic as (que, nos sécu los seguinte s, tive ra m êxito em se torn ar cara cterísticos de um cristianismo clássi co, "ortodoxo", e pas sara m a ser am pla m en te afirm ad os nos c írculos cristãos acim a de e contra, as al ter na tiv as ,192
H urta do m ostr a que um est udo do crist iani smo do sé cu lo II r eve la a sua ten dê nc ia para afi rmar, preservar, pro m ov er e desenvolver o que, até então, estavam se tornando expressões tradicionais de crenças que hav iam se src ina do nos p rim eiros ano s da igreja cristã .153 A cristalização de formulações doutrinais e daquilo que deve ser o cânon do N T é vis to, po rtanto , com o proces sos rel acionados, do is 1'11 Para um a reflexão sobre ess e assunto , v. “D oes It M ak e Sens e to S peak o f Pre N ic ene O rthodoxy?”, de Rowan W i l l i a ms . In: _______ (Org.), The Making of Orthodoxy, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1989, p. 1-23. m Hurtado, Larry W. Lord Jesus Ghnst: Dev otion to Jesus in Earliest Christian ity. Grand Rapids: Eerdmans, 2003, p. 494. 19’ Ibidem, p. 495.
A íorm aa Lo inicial da heresia
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lados da mesma moeda na solidificação de uma comunidade cristã que estava cada vez mais confiante de sua identidade, perspectiva e lugar. Assim com o as com unidad es cri stãs estavam sob um a c rescent e pr ess ão, interna e externa, para se definir e se defender contra as alternativas a elas, também havia um interesse cada vez maior em esclarecer quais eram as expressões da fé aceitáveis e inaceitáveis — sem obrigar a uma vis ão rígida, restriti va e m on oc rom ática da essência do cristian ism o.1'4 E esse programa envolvia doutrinas — tentativas de expressar em pala vras os temas centrais da visão cristã sobre a realidade. Esse foi um acontecimento altamente significativo, algo que po deria estabilizar e salv aguard ar a verdade cen tr al da fé cristã . As doutrinas eram como uma proteção, casulos intelectuais envolven te s gir ados ao r edo r d a la rva d e f é. Qu an do constr uídas a deq uad am en te, el as ti nh am o poten cial de d ar um a resil iênci a e est abilidade a mai s na vida e no pensamento cristãos. Porém, um casulo defeituoso tinha o potencial de desfigurar, distorcer e danificar a vida de fé. A heresia pode ser con siderad a com o um a conceitu alização de fé inadequad a, distorcida ou prejudicial — um cas ul o d efeit uoso que da nifi ca, em vez de proteger a sua larva. Essas reflexões sobre como a heresia deve ser naturalmente en tendida nos leva a perguntar se é possível identificar a “essência” da heresia e, nesse caso, o que poderia ser isso.
!lj4 HuLTGREN. R ise o fN o r m a tiv e C h r h tia n ity , p. 97-101.
5 Existe uma "essência" da heresia? e é possível identificá-la, qual é a ca racterística essencial da heresia? O que define uma heresia e a distingue de algo que é tão somente errado ou questionável? Já vimos que o cristianismo primitivo era caracterizado por uma diversi dade de p on tos de vis ta sobr e certos assu n tos. Essa diversidade, porém, não era vista em si mesma como uma ameaça intelectual à ideia fun damental de unidade cristã, ainda que ela possa ter ocasionalmente gerado um grau de dissensão c divisão dentro ou entre as congregações cristãs. Igualmente refletimos sobre a visão de Walter
S
Bauer de que existiram muitas visões do cristia nism o e m sua s prim eiras fas es, não raro associ adas a regiões geográficas específicas, sendo cada qual considerada ortodoxa por seus seguidores. Bauer argumenta que algumas versões iniciais do cristia nism o que , na ocas ião, eram aceitas com o ortodox as,
foram posteriormente demonizadas como heresias, à media que a igreja romana tentava impor sua versão de cristianismo a outras cida des da região. N essa pers pectiva, um a here sia é basic am ente um a antiga o rto d o xia que caiu em desgraça entre aqueles que tinham poder e influência no m und o cr istão. O que de term ina s e um conjun to de ide ias é heréti co ou não é se essas ideias são aprovadas e adotadas por aqueles que por acaso estão no poder. A ortodoxia é meramente o conjunto de ideias ve nc edo r; as heresias são a s ideias pe rd ed o ra s.1'" E m b o ra essa ideia de cristianismos perdidos ou suprimidos tenha um profundo apelo para alguns, historicamente ela é muito difícil de ser sustentada. O processo de marginalização ou negligência desses “cristianismos perdidos” geral m ente tem mais a ver com u m consens o em ergente d entro da i gr eja de que el es s ão i nadeq uados do que com q ualquer t entati va de im po r uma ort odoxia im pop ular num corpo involuntár io de crent es. Outros mostraram de forma correta que é impossível oferecer uma explicação da “essência” da heresia, visto que, necessariamente, el a representaria um a entidade con st ruída e negada den tr o da soci e dade. Tais explicações da heresia muitas vezes são escritas com base em alguma presumida posição de verdade histórica objetiva que se supõe existir à parte e independentemente da avaliação e interpre tação cristãs. Essa “visão de lugar nenhum” do fenômeno da heresia nem mesmo pode começar a abarcar a identidade distinta ou o sig nificado da heresia. A crescente ênfase dentro das primeiras críticas cristãs sobre como as identidades sociais são construídas e mantidas tem chamado a atenção para o modo pelo qual certos movimentos são designados ao mesmo tempo como heréticos e como um meio de proteger a identidade de uma comunidade. A heresia não é, p o rta n to , u m a realid ad e observável ou em p írica, m as um a e n tid a d e
11 Essa s ide ias são desen volv idas em testos com o Lost Christianities: The Ba ttles for Scripture an d the Faiths We N eve r Kneiv, de Bart D. E hr m ax , New Yo rk: O xford Un iv. Press, 2003.
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Existe urna "essência " da heresia?
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soc ialm en te co n stru ída .146 Fa lar de um a “essência” da h eresia é, dessa maneira, cometer um. erro fundamental de categorização. O que faz uma heresia não é tanto as suas ideias, mas como ela é caracterizada e ca tego rizada p elos o u tros .197 Su bjace nte a ess a abo rdag em est á um a retórica de separação semelhante àquela que serviu para enfatizar a distinção emergente, em pouco tempo transformada em fissura, en tre o ju d eu e o cristão .1W Há, sem dúvida, mérito em reconhecer a importância das estratégias e dos mecanismos pelos quais certos grupos foram designados como ou determ inado s a ser em herét icos . A ortodoxia é de fato um a “insti tuição discursiva ”,195’ in tere ssa da e m “des ig na r” o ou tro, o e str an ho e as ame aças potenciais. Todavia, esse ju lg am ento não é baseado apenas na vontade daquele que designa, mas também nas características do que é designado. Trata-se da avaliação que determinado grupo faz da importância de outro grupo para a sua indentidade e segurança. Isso implica diretamente que herético não é uma característica empírica; ela é negociada ou construída. Mas não se segue daí que essa é uma conclusão arbitrária ou inventada. Re presenta um ato de discernim ento po r parte da i greja, estabel ecendo que determinado conjunto de ideias é, no final das contas, desestabilizador ou destrutivo. É então completamente apropriado indagar sobre que padrões ou caract erí sticas ge rais são com partilhados pelos m ovim entos ou co njunto de ideias designadas como heréticas. Esse é especialmente o caso quando o assunto é enfocado de uma perspectiva cristã, como no caso desta obra.
19!’ Cf. enfatiza do cm “Re pc nte nt H eretics in F ift h C en tu ry Lydia: Id en tity a nd L itcracy”, de Fergus MlLLER, (Scripta Chmica hmel ica , v. 23, p. 113-30, 2004). 197 V. a nálise feita em M aking Christiam: Clement o f Alexandria and the Rhetoric o f Legitimacy, de Denise Kimbcr Bueu., Princcton: Princeton Univ. Press, 1999. Há também alguns comentários úteis em Th e M ahng o f a Heretic: Gender, Au tho rity, and the Priscilliamst Controversy, dc V irgínia BtJRRUS, Berkel ev: Univ. o f Califó rnia Press , 1995 ; “The Forging o f Christian Identity”, de Judith M. Líku, Mediterranean Arehaeology, v. 11, p. 71 -82 ,19 98 . m V. argumento detalhado em Neith er Je-xv nor Greek? Constructing Early Chrutianity, de Jud ith L i e u , Lo ndo nrT . &.T. Cla rk, 200 2. Tomei emprestada essa frase de A Radica l Je-w: Paul and the Politics o f Id entity , de Daniel Boyuíin, Berkelev: Univ. oi Califórnia Press, 1994, p. 29.
Qual o aspecto característico da heresia que a distingue de outras variantes do cristianismo? Por volta do século IV, o termo “heresia” era usado regularmente e de m odo ger al par a designar determ inado ensi no que, mesmo tendo surgido dentro da comunidade de fc, poderia, no fi nal das contas, destruir a fé desenvolvida ne ssa co m unidad e. O paradoxo central definitivo da heresia c que ela não éfalta de fe) antes, trata-se de uma forma vulnerável e frágil de cristianismo que prova ser incapaz de se sustentar n o longo prazo. Ta m po uco a her esi a pod e ser caract eri zada em term os de prátic as o u éticas qu estio ná ve is.2'1'1O s e scritores cristãos ortodoxos estavam perfeitamente cientes de que ambivalência e fracasso moral er am probl emas hum anos com uns e não podi am , d e m odo d efen sável, ser atribuídos exclusivamente aos hereges nem, ao mesmo tempo, ser considerados de sconhecidos entre os ort odoxos. A heresia deve, assim, ser entendida como uma visão intelectu alm en te d efeitu osa d a fé crist ã, ten do suas srcen s d en tro da igreja.2 01 Essa afirmação pode causar angústia em muitos cristãos, para os quais parece inaceitável a id eia de a here sia ter se origin ado dentr o da própria igreja. Essa c um a reação perfeitam ente compreensível . No entan to, par a en ten de r po r que a heresia é um a n oção tão perigo sa para as igr ejas cri stãs, a sua relação com a igreja deve ser tratada dc modo sério e correto. As sementes da heresia podem vir de fora da igreja, mas elas criam raízes -"0 O m ontan ism o, um m ovim ento cristão do séc ulo II n otabilizado po r seu asceticismo, põe urna ênfase particular na importância da. disciplina. Suas inovações não diziam respeito às “questões centrais da salvação, mas, sim, na forma disciplinada de viver cotidianam ente a vid a cris tã” (T r k v e tt , Ch ristine. M ontanhm : Gender, 1996, p. 215.) A uth ority , and the N evt Prophecy. Cambridge: Cambridge Univ. Press, Conforme Trcvett corretamente observou, as tendências teológicas não ortodoxas que até então não existiam, começaram a se desenvolver no interior do montanismo no início do século III, principalmente em relação à doutrina da Trindade. A preocupação co m as te ndência s heréticas nos m ovim ento s ascé tico s co ntin uou nos séculos seguintes. V. esp. Marriag e, Celtbacy and Heresy in A n á e n t Christianity, de Davi d G. H u n ter, O xford: O xford Uni v. Pr ess , 2007, p. 88-129. 201 E, desse mo do, im po rta nte obse rvar que o term o “heresia” é co rre tam en te usado para sc re fe rir a ideias, não a práticas. As ideias he ré tica s podem às vezes dar origem a práticas questionáveis; não obstante, essas práticas não podem, por si mesmas, ser decn:,;s como “heréticas”.
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Cxiste um £ essê-icia" da *ieresi£?
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em seu jardim. A heresia não é falta de fé. Também não é o termo usado para se refe rir a um siste m a de crença não cristão. N em o ateísm o nem o aristotelismo são heresias. Para usar uma analogia biológica, a here sia compartilha muito do DNA teológico da ortodoxia. Ou, para usar as categorias sociológicas de Pierre Bourdieu (1930-2002), a heresia e a ort odoxi a com part ilham um a doxa com um — as supos ições de um a época ou c om un idad e “tidas co m o verd ade iras”. 2lí2M as elas divergem em po nto s de importância crucial, apesar de possuírem tanto em comum. De uma perspectiva ortodoxa, a diverg ência cria in coerê ncia e in stabilid ade dentro da doxa como u m todo . A igreja primitiva considerava a her esia m uito perigosa, não por causa de qualquer desafio que ela representava às figuras ou estruturas de autoridade da igreja daquela época, pelas suas implicações para o futuro do próprio cristianismo. Quandomas os teólogos cristãos ortodoxos usavam, frequentemente, uma linguagem extravagante e inflamada para se referir à heresia, sem dúvida o tom estridente e o vocabulário agressi vo refletiam as suas preocupações com o potencial de sobrevivência do pró prio cristianismo se ele fosse conta m in ado ou deteriora do por aquilo que consideravam ser versões empobrecidas e flácidas do cristianismo. A heresia era uma forma falha, deficiente, anêmica e inautêntica de fé cristã, que estava inevitavelmente condenada à extinção no mundo plu ra lista e intensam ente com petitivo do final da A ntiguid ade clássica. A ortodoxia tinha um potencial maior de sobrevivência, incitando uma “busca pela au tenticida de” com o um m eio de proteg er o se u fut uro.™ P ara se compreender esse ponto, devemos considerar as ameaças à fé cristã em seu prim eiro período, que d espertaram o int eres se po r parte dos teólogos em m arginalizar o que consideravam va riant es defici entes do cri stianis mo .
202 Para uma introdução acessível a essa ideia, v. “Doxa and Common Life: In Conver sat ion ”, de Pi er re B ourdiku ; Terrv E a o le to n , J\‘ew L e ft Revie iv , v. 191, p. 111-11,1992. 203 V.Heresy anil Cnticism: The Search fo r A nth en tu ity m Ear ly Ch ristian Literature , de Robert M . G ra n t, Loui svi lle, W estminster John ivnox Pr ess, 19 93.
Ame aças a o cris tianismo prim itivo O cris tianism o e nfren tou três ameaças principai s du rante os seus prim eir os sécu los. A prim eir a foi um a ameaça física — a co nsta n te p os sibil idade de perseguição, com sua s impli cações n a opress ão de co m un i dades cristãs, e a ameaça de violência contra os seus líderes.’"4Uma vez que as autoridades romanas geralmente tinham pouco interesse em fa zer distinções teológicas precisas entre as várias formas de cristianismo, as noções de heresia e ortodoxia se mostraram relativamente de pouca importância para conlrontar esse desafio. Da perspectiva de um obser vador romano no século II, a heresia cristã e a ortodoxia cristã eram apenas for m as diferentes do crist ianismo; am bas eram d esautorizadas. A segunda ameaça foi o perigo de assimilação giosa.2"1P or exemp lo, o cristianismo havia su rgido intelectual de de ntro oudoreli jud aísm o; havia um risco du ran te as suas fases inici ais de que el e pod eria sim ples m en te voltar às suas raízes, tornando-se, com efeito, um novo grupo judaico (uma hairesis, no sentido neutro do termo). De maneira mais significativa, quando o cristianismo se tornou uma presença crescente dentro da cultura greco-romana, havia um perigo correspondente de que ele pudesse ser ab sorvido po r grupos c ulturais ou religi osos que já estavam be m estabel ecidos, ■w Sobre alguns aspectos dessas tendênc ias, v. “From t he G re at P crsccution to the Peace of Galerius”, dc Paul K eresztes , Vigiliae Christianae, v. 37, p. 379-39 9,198 3; “Two Notes on the Great Persecution”, de David WOODS ,Journal ofTheologica! Studies, v. 43, p. 128-134, 1992; “Eusebiu s’Theol ogy of Persecuti on as Seen in the Va rious Editions o f H is C hu rch History ”, de W illiam T Journal o fEarly Cbrutian Studies , v. 5, p. 319-334, 1997. Pode-se, c claro, argumentar que a perseguição serviu para aumentar um sentimento compartilhado de identidade cristã, levando a uma crescente tendência a identificar possíveis ameaças a essa iden tid ade. V. “M artyrdom and th e M akin g o f C hristianrty and Judaism”, dc Daniel Bo^VRW, Jou rnal of Ea rly Christian Stud ies, v. 6. p. 577-6 27,1998.
2(JA impo rtância assunto pode servista ao se cons iderar as pectos da história na Europa, onde a dess perdae dc uma identidade cultural e religiosa distinta cra uma ameaça judaica constante. Um ótimo exemplo disso são as dificuldades encaradas pela comunidade judaica em Viena, no começo do século XX, quando enfrentava constante pressão para assimilar a cultura viene nse. V. “Big -C ityje w s: Jewish Big-Cit_v:The Dialect ics o fjew ish Assimilation in Vienna c. 1900”, de Stephen Bki.i.kr. In: G e e , Malrolm; Kirk, Tim; Stkward, Jill (Orgs.). The City in CentralE urope: Culture a nd Soctety frorn 18 00 to the Present. Ashgate: Aldershot, 1999, p. 145-158.
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Existe uma
'essência'’ ca
hefesui?
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perd endo, desse modo, a sua id entidade distintiva. A assim ilação cultural é m uito freq uen tem ente o prime iro pass o para a ext inção ecl esiástica. E m bo ra m uitos teól ogos da igre ja prim iti va possam ter exager ado ao sugerir que a heresia representava uma forma de cristianismo que fora diluído por ideias seculares, o perigo potencial que tal processo re presenta va era claro . Se o sal da fé cris tã perdesse a sua salinid ade, o que perm aneceria ? A ig reja precisava m an ter a su a identid ade protegendo a sua distinção. Tertuliano (c. 160-c. 220) foi um escritor que expressou um a profund a preocupação de que u m a im portação não crí tica de id eias seculares poderia, no final das contas, levar à secularização da igreja e à perda de su a identid ade e inte grid ade. Pois a filosof ia oferece um a fo n te de s abedo ria m un da na , audacio samente afirmando ser a intérprete da natureza e revelação divi nas. A s pr óp ria s heres ias re cebem suas arm as da filosofia. F oi des sa fo n te que Vale ntino , que era um discípulo de Platão, extraiu suas ideias sobre os “éons ” e a “trindade da hum anidade". E fo i d a í qu e veio o deus de M ar ci ão ( m uito prefer ido, pela sua tranqü ili dade); M arciã o -veio dos estoicos. m
T ertuliano aqu i interp reta a filos ofi a não nu m sentido n eutro, como uma busca de sabedoria, mas no sentido de uma ‘‘sabedoria mundana , criando assim as condições para a secularização inevitável de ideias e valores cristãos. Para Tertuliano, a heresia tornou a igreja permeável às ideias que roubariam a estabilidade da igreja, levando a uma situação comparável a um navio que estava afundando lentamente por carregar água do mar (secular). De modo muito semelhante, Hipólito de Roma (c. 170-c. 236) com parou a igr eja a um bar co: “O m un do é um m ar no qual a igreja, com o um navio, é ata ca da pe las o nd as, m as nã o s ub m erg id a”.2117
2M TlíRTUÜANO. Depraescriptiore haereticorum 7.9. 20 H ip ó lit o . De Chnsto et Antichiisto, 59. A imagem também toi corretamente usada pelo evangelista do século X IX D. L. M oodv (1 837 -1899 ): “O luga r do navio é n o mar; mas Deus ajuda o navio se o mar entrar dentro dele”.
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O terceiro perigo foi a fragmentação do cristianismo por meio da incoerência intelectual. A medida que o cristianismo tornava-se mais profundamente imerso na cultura clássica tardia, era submetido a elevada crítica por parte de seus oponentes intelectuais e culturais. Algumas das mais formidáveis dessas críticas diziam respeito à coe rência das ideias do cristianismo. Críticos expoentes do cristianismo, como Celso [séc. II, quase nada se sabe de sua biografia] e Galeno de Pérgamo (129-200), argumentaram que as suas doutrinas principais não podiam ser levadas a sério pelas pessoas cultas.-* Qualquer forma de cri sti anism o intelectualm en te fal ho ser ia vulnerável ness e am biente crítico. As concepções heréticas de fé, dizia-se, careciam do rigor de suas equivalentes ortodoxas. Pod e-se perceber que o segund o e ter ceir o des ses f ator es sã o im po r tantes a qualquer tentativa para enten de r a noção de here sia. E óbvio , tam bém , que esses fatores agiam sob tensão entr e si. Por exemplo, Tertu liano afirmava que qualquer tentativa por parte dos teólogos cristãos dc serem intelectualm ente res pei távei s, s egund o os padrões da época, si m plesm ente os fazia ser contaminados e seduzidos pela filosofia pagã. Embora o argu mento de Tertuliano de que o vínculo com a filosofia secular leva a uma interpretação herética do cristianismo seja, de modo geral, considerado um exag ero, há um grão de verdade em suas preocupações. D e m odo sem elhant e, no sé cu lo I V, Á ri o (256-336) in terpretou a rel ação entre D eu s e a cri ação de form a con siderada fil osoficam ente rigorosa, pelos padrões da época. Mas, para os seus oponentes, como Atanásio de Alexandria (c. 293-373), a interpretação da identidade de Jesus Cristo resultante dessa abordagem, filosoficamente dirigida, era incapaz de se harmonizar com a fé ortodoxa, em especial no que dizia respeit o à adoração. A rio introd uz iu um a inconsistência radi cal no en tend im en to crist ão de s ua iden tidade central , deixan do-o, por um la do, seriame nte vulnerável à crítica intelectual e, por outro, sujeito à erosão cultural. Como Thomas Carlyle comentou certa vez: “Se os arianos ‘llS G ra n t. H eresy and Cristicism, p. 49-73. V. tb. Jesus Novi and Then de Richard B urri dgi:; Gral iam G ou ld, Grand Rapids: Eerdmans, 2004, p. 129-131.
A.
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Existe u n a "essência" d
tivessem ve nc ido, [o cristian ism o] teria sido red uz ido a um a len d a”. 21" A precisão desse juízo pode, é claro, ser contestada. No entanto, é razoável sugerir que, tivessem certas formas de arianismo levado van tagem, o cr ist ianismo po deria ter s e transform ado em algo sem elhante ao islamismo. Isto não é dito para criticar o islamismo; simplesmente é para m o strar a im p o rtâ n cia de certas id eia s fu n d am en tais p ara m old ar a vida, a adoração e o testemunho de comunidades de fé. A visão de fé apresentada pelo arianismo é muito diferente da apresentada por escritores ortodoxos como Atanásio de Alexandria.
Heresia e ortodoxia como conceitos doutrinais Embora o cristianismo tenha surgido do interior do judaísmo, logo des envol veu a próp ria identidad e d ist int iva. Um a das dif erença s m ais no táveis entre as duas formas de fé, evidente no início do século II, é que o ju daísm o te ndia a sc definir pela prática correta, enquanto o cristianism o apelava a doutrinas corretas. Muitos escritores judeus continuam defen dend o que a es sênci a do jud aísm o é a Ha laca, um a tentativa de organizar a vida humana em torno dos princípios fundamentais da Tord.1"' A ten dência dedeo judaísmo ser definido poderia, então, ser chamada ortopraxia judaica, pela em prática vez de correta ortodoxia. E nq ua nto o N T é crí ti co de cert os aspe ct os da ortopraxi a jud ai ca, como a circuncisão, a emergente resposta cristã ao judaísmo toma a for m a de um a m udan ça em dire ção à or todoxia t an to qu anto de um a rejeição da ortopraxia existente. Os cristãos se recusavam a adotar os rituais de cultos do judaísmo (como leis alimentares, a observância do sábado sagrado e a circuncisão) que serviam para identificar os ■l,LJ Fucu o f ,, James A. Thomas Carlyle: A His/ory of H is Life in Lond on , 1S34-1SS1, 2v, p. 46 2,1984. ílu Para a vis ão op on ente, baseada em M aim òn ides (1135-1204), de que se pode falar legitimamente dc dogma judaico, v. “Flexibility with a Firm Foundation: On M aintaining Jcwis h D ogm a” , dc Yitzchak Blau, Torah u-Madda Journal, v. 12, p. 179-191, 2004.
judeus d en tr o de u m a com u nidad e paga; p o r o u tro la do, a p ro p o sta de Marcião de que o cristianismo deveria ser declarado totalmente distinto d o judaísm o n ão conqu is tava a poio.2 11 H avia u m a po lari dade óbvia na relação do cristianismo com o judaísmo. Como resultado, a autodefinição cristã foi inicialmente dedicada ao esclarecimento da relação do cristianismo com o judaísmo, centrando-se na identidade de Jesus e , mais tarde, no pape l da L ei no A T.2'2 E , dess a m aneira, p e rfe itam e n te aceitável sugerir que a d o u trin a p au lin a da ju stific ação pela fé rep resen ta u m a ju stificação teó rica p ara a separação das c o m u nida des cri stãs não judaic as do jud aísm o.21’ N ã o o b stan te, as com u nidades cristã s em erg en tes viram -se obrigadas a se distinguir, do mesmo modo, de outras comunidades. A ig re ja não ser ia identificada com o judaísmo, po r um lado, nem com “o mundo”, por outro. Até mesmo no NT, pode-se ver o surgimento de uma clara distinção entre a igreja e “o mundo”. A distinção era ini cial m ente com preendida, p el o m enos em parte, em termos de sepa ração do mundo. Talvez encorajados por uma expectativa de um fim precoce de to d as as coisas, os p rim eir os cristã os p arecem ter fo rm ado as comunidades com base em lealdades e compromissos específicos compartilhados, em lugar de noções explicitamente teóricas. As primeiras comunidades cristãs não parecem ter considerado as formulações doutrinais precisas e elaboradas como essenciais para a sua autodefinição, visto que elas já eram distintas do mundo pela particip ação em suas assem bleias e pela adora ção. N as palavras de R. A. Markus, “a sua distinção doutrinai, embora definida, era reforçada, 211 ScHMlD, Ulrich. Marcion und sein Apostolos: Rekonstruktio n ttnd hutorische F.inordnung der marcionitischen Paulusbriefaitsgabe. Berlin: de Gruyter, 1995. Isso corrige o altamente influente estudo anterior Marcion - das Eva ngelium vo m fem d en Gott: E m e Mo?iographu zur Gcschichtc der Grundlegung der kathohschen Kirche, de A d o lf VOX tÍARMACK, Leipzig: Hinrichs, 1921. 212 V.,p. ex., Paul, Judai sm an d th e Gentiles: A Sociological Approac , de Francis VVATSON, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1986, p. 49-87. 213 V.Paul, Judaism and the Gentiles, de W atson , p. 178. Para um a perspectiv a mais var iada , v. The Climax of the Govenant: Chrtst and the Lave in Pauhne Theology, de N . T. W pjg iit, Edinburgh:T. & T . Cla rk , 19 91.
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Existe um a "essência" da her esia 7
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sustentada, talvez até eclipsada, pela sua distinção sociológica como gru po s isolados, li teralm en te, à pa rte do m u n d o ”.21'1A ssim , com base numa compreensão da comunidade joanina, esse grupo considerava a sua situação de afastamento do mundo como sendo explicada e legitimada pelas interpretações das palavras de Jesus Cristo e das ações transmitidas no quarto Evangelho.21j As comunidades cristãs mais antigas, embora guardassem clara mente uma “similaridade familiar” por conta de suas crenças em relação a Jesus de Nazaré e aos seus modos de adoração, não exigiam formula ções dou tri nais para se distingu irem do m undo : ess a dist inção já est ava imp ressa nelas pelo m un do , que já as isolava com o grup os soci ais visíveis e p ro n tam en te iden tificáve is.3’1'' T o rn ar -se um cristão e ra (pelo m eno s potencia lm en te ) ser responsável po r um a m udança visível no lo cal so cial, que em si mesmo era adequado ao propósito de marcar um limite dentro da sociedade. N o e n ta n to , havia lim ites nos acessos socia is e físic os à d e m a r cação. Os cristãos primitivos, diferentemente dos essênios, não se retiraram para o deserto; eles permaneceram no mundo das cidades e de suas instituições, desenvolvendo, gradualmente, meios de viver no m un do sem ser do m un d o.J17 “Nós, c ristãos”, T ertu lian o escre veu ao seu público pagão, “vivemos com vocês, desfrutamos a mesma 2IJ M arkus
, E. A. T he Problem
of Sclf-Definit
ion: From
Sect to C hu rch. I n: Jevjub a n d Christian Self- D cftm tio n, 2v. London: SCM
S anders , E. P. (Org.). Press, v. 1, p. 1-15, Í9S2. 21S Meeks , Wavne A. T he o f Bíblical Literature , v. 91,
Strangcr from Heaven in Johannine Sectarianism. Jo urn al p. 44-72, 1972. V. ainda The Soc ial History ofih e Ma tthean Com mu nity: Cross- Disci plinar yAppr oacbes , de David L. B alch . Minneapolis: Fortress
Press, 1991. Sobre uma crítica da noção de tais comunidades, v. The Gospelsfor Alt Cbristiam: R elh ink ing the Gosp elAu diences, R ich ard BAUCKHAM (Ed .), G ra n d Rapids: Eerdmans, 1998. ’11’ M eeks , Wayne A . The First Urban Cbristiam : The Social World o f the Apostl e Paul. N ew H av en : Yale U niv . Pre ss, 19S 3, p. 8 4 -1 0 7.
-1' Exceções im por tantes devem, é claro, s er observadas, como o m ovim ento monástico egípcio. Cf. The Des ert a City : A n Intr oduct ion to th e Sttuiy ofE gy ptia n and Palestmian Monasticism Underthe Christian Emprre , de Dervvas J. CHITTY, Crestwood: St. Vladimirs Seminary Press, 1995.
comida, temos o mesmo modo de viver e de vestir, e as mesmas exigências da vi da, com o vocês”. -1* E ntã o, co m o cies s e distingu iam de outras comunidades da época? A doutrina passou cada vez mais a representar um meio pelo qual os mundo indivíduos e comunidades cristãos poderiam ser asdistinguidos do ao redor deles — especialmente quando crenças, os valores e as ações da comunidade cristã passaram a convergir. A controvérsi a com os gnósticos e outras com unidad es forçou a s com u nidades cristãs a desenvolverem a sua interpretação de autodefinição e levou ao aum en to da pre ssã o p or credo s e outras declar ações autorizadas de fé. -19 E m bo ra a co ntri bu ição dc Iren eu de Ly on p ara es se proc ess o durante o final do século II tenha sido essencial, não se deve menos prezar a im p ortâ n cia de T ertu liano ao encora ja r a auto defin iç ão e a m anutençã o de um a identidade p rópria dentro das com unidades cr istãs . Parâm etros — com o o cânon do N T e a adesão à regra d e fé apostól ica — fo ra m esta belecid os, e por eles as reiv in dic ações das com unidades religi osas para serem igrej as cristãs po d iam ser avaliadas.2 20 A d o ut rin a passou a ser de extrem a im p o rtância para disting u ir a igreja da cultura secular, de modo geral, e para aumentar um sentimento de identidade e coesão dentro de suas fileiras. A doutrina, então, passou a ser um fator significativo para moldar a identidade cristã. Então, como as primeiras comunidades cristãs se definiam e se identificavam? Na primeira fase do cristia nismo, não existia nenhuma das formulações doutrinais normativas precisas — ta l com o o Credo niceno — que se tomaram tão domi nantes e influentes no final do século IV. E certamente verdadeiro que alguns escritos posteriores no NT, especialmente as Epístolas 2U: T ert ul i ano . Apologia 42.
219 Bi.um,GeorgGünter. Traditi on tmdSukzesston:StudtenztmNorm bcgriffdesApostoRscben von Paulus bis Irenaeus. Berlin: Lutherisches Verlagshaus, 1963. Sobre credos em geral, v. Early Christian Creeds, de J. N. D. Kelly , 3. ed. N ew York: L ongm an, 1981. -20 Grkk.nsi.adk, S. L. Heresy and Schism in the Latcr Roman Empire. In: Baker, D erek (Org.). Schism, Heresy andReligious Protesi. C amb ridge: C am bridge Univ . Pr ess , 1972, p . 1-20.
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Existe uma “essêncra" dc heres.a?
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Pastorais, revelam uma preocupação explícita com o perigo do “falso ensinam ento” - 1 e re conhecem a imp ort ância de des envo lver estru turas institucionais capazes de responder a essas ameaças. Contudo, em bo ra tai s textos e nfa tizem a im po rtân cia de um “en sino sólido’ ’,2” isso não é definido ou ilustrado extensivamente usando-se declara çõ es de cre d a is .223 A evidê nci a his tóri ca suger e que tanto o N T qu anto os prim ei ros escritores cri stãos ten dia m a en fatizar o cen tro da fé crist ã, em vez de focalizar a vigil ância de sua pe rif eria. Jesus C risto era am plam en te considerado como definindo e marcando o núcleo do cristianismo. Paulo prepa ra o que parec e ter si do um credo cri st ão pro totí pico, quan do faz a afi rm ação de que Jesus é o Senhor {Rm 10.9) no cerne d a confi ssão cristã.2 24 Pa ulo un e a confissão de que “ Jesus é o Se n h o r” com o ch a m ado p ara cr er que D eus ressuscitou Jesus dos m ortos (R m 10.9, 10). Aqui, como ao longo do NT, “Jesus é o Senhor” está inseparavelmente associado à ressurreição de Jesus e, assim, o identifica como “o que vive”; ele não é um morto, embora venerado, uma figura do passado, tam p o u c o a atr ação p o r ele está so m en te em se us id eais ou em sua vida i nspirado ra. Q ua nd o Paulo fa la d e C risto com o a cabe ça do co rpo,2 2’ sua lingu ag em claram en te ap on ta para um pap el central de Cristo na experiência cristã, quer na esfera comunal quer na esfera Kxigiit, George W . The Pastoral Eptstles: A Com ment ary on the Greek Text. Grand Rapids: Eerdmans, 1992, p. 11-12. Sobre o significado das cartas paulinas em nossa compreensão do surgimento da ortodoxia e da heresia, v. tb. “Doxa Heresy, and SeltCon struction: T he Pauline Ekkles iai and rhc Bound aries of Urb an Iden titics” , de W illiam E. A rn al. In: Iricinsc hi Eduar d; Z ell enti n , Ilolger M (Orgs .). Heresy a nd Ident.it): in Late Antiquity. Tübingen: Mohr Sicbcck, 2008, p. 50-101. 222 KxiGHT. PastoralEpistles, p. 88-89.
Para uni argumento típico de que o conceito de heresia c encontrado no NT e contrariado pelo ensino da ortodoxia, v. o importante artigo “The New Testament D cfinition ot H eresy (O r W he n D o Tesas and the Apostles Reall y G et M ad?) ”, de Craig L. H l o mu f .RG,Jou rna l o f the E-van gelual Theological Society, v. 45, p. 59-72, 2002. 224 HURTADO, Lairv W. Lord Jesus Christ: Dev otion to Jesus rn Earliest Chnstia nity. Grand Rapids: Eerdmans, 2003, p. 108-118. 225 Ri di j kr hu s , HcrmanN. Paul:An O utlin eo fH is Theology. G rand R api ds: Eer dm ans, 1997, p. 369-395.
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pessoal. Isso fic a e v id e n te, p o r exem plo, na oração e adoração. Jesus Cristo permanece no centro da adoração cristã primitiva como seu ag en te e ob jeto.2 -'’ D e fato, a adoração de u m a co m un idad e cris tã p o d e ser co n sid erad a su ste n tác u lo de sua capacidade de ser u m a igreja local, enquanto ao mesmo tempo participa de uma realidade mais universal.”'' C on tudo , o f oco de um a com unidade cri stã não de term ina os seus limites.2 23 O s even tos históricos logo to rna ram necessário pe rgu nta r se, de fato, havia limites para a igreja cristã; e, na medida em que essa per gun ta passou a ser respo nd ida cada vez mais de m od o afi rmati vo, el a foi segui da por duas outr as igualmente prem entes: Q ue m tinha o dir eit o de fixar tais limites? Como eles deveriam ser determinados? Cercas vivas tiveram de ser colocadas ao redor do pasto para proteger aqueles que tinh am en co n trad o ali um san tuá rio.: 2<' Essas “c ercas vi vas” pa rece m ter tomado três formas: riftial, ética e teológica. Em primeiro lugar, o cristianismo procurou se distanciar daqueles que insisti ram em práticas rit uais que pod eriam eqüi vale r a um ret roces so ao jud aísm o — com o a necessi dade de cir cunci são para os cr entes do sexo masculino e os rituais que diziam respeito aos alimentos impuros. Segundo, cristãos que se comportavam de certos modos inaceitáveis eram considerados como tendo transgredido certos limites. Terceiro, e mais importante para nossa explicação, o cristianismo voltou a dar uma ênfase crescente a algumas ideias teológicas que foram defendidas como essenciais à fé. No entanto, apesar desse reconhecimento cada vez maior da importância das demarcações do cristianismo, as comunidades cristãs
22f' HuRTADO.LordJesus C hnst, p. 605-614. 227 Um a questão enfatizad a por Joh n Zizioulas. V. , p. ex .,A fie r O ur Likeness: The Church as theímuge o f the T rinity dc Misros lav V o lf , G rand Rapi ds: Eerdm ans, 1998 , p. 73-107. 22“ V. o cuidad oso estud o “Th e C ity: B eyond Secular Pa rod ies”, de W illiam T. CwKNAUGH. In: M iuíax k, John; P ick stü ck , Catherine; W a rd , G raham (Orgs .) . R adic al Orthodoxy: A N e w Theology. London: Routledge, 1998, p. 182-200, esp. 196. esp. 196). 221 Deve-se a imagem a The Inc arnatio n o f the S on ofG od, de Charles G o re , 2. ed. Lo ndo n: Joh n M urray, 1892 , p. 96-97.
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Exjste unna “ess ência" da heresia?
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pare cem ter consid era do o seu centro como o de m aio r im portâ ncia para o bem no século II. Parece ter havido relativamente pouco interesse em vigiar o perímetro da fé; as igrejas parecem ter preferido acentuar a im portâ ncia do seu foco central, especialm ente na adoração. N o enta nto, a partir da m eta de do século II, m anter a ordem do perím etro parece te r sido considerado cada vez mais importante para que fossem mantidas a identidade e a autenticidade da fé cristã. A medida que as igrejas progressivamente se definiam usando ter mos doutrinais, elas também identificavam as ameaças à sua integridade usando as mesmas categorias. Ortodoxia e heresia eram ambas as cor rentes doutrinais concebidas em termos de “pensamento correto”, com outros pos sívei s meios de definiç ão sendo deixad os à m argem . M od os d e prese rv ar a aute nticid ade cristã, b em com o as ameaças a essa aute nticid a de, eram agora concebidos de forma doutrinária. Uma doutrina “sólida” era edificante para a igreja, da mesma forma que a doutrina corrupta ou defo rm ada era destr uti va. Então, como devemos entender a ameaça representada pela he resia? Um modelo teórico, desenvolvido no início do século XIX, tem algum po tenc ial de nos ajud ar a a val iar, po r um lado, o caráter disti
ntivo
da heresia e, por outro, a sua ameaça à fé. Na seqüência, vamos abor dar a teoria da heresia desenvolvida pelo notável teólogo protestante Fri edri ch D aniel E rnst Schlei ermacher (1768- 1834).
IJm modelo de heresia Schleiermacher é amplamente considerado um dos mais impor tantes teólogos p rotestantes liberai s. Escrevend o em respost a à ascens ão do iluminismo, Schleiermacher subverteu qualquer tentativa de reduzir a teologia à s platitudes racionalist as. H á mais n a fé cris tã, e p or c on se guinte na teologia cristã, do que o exercício da mente. A religião não é um corpo parti cular de con hecim ento nem um a vari edade espec ífica de ação; antes, é uma forma de consciência. Há uma profunda dimensão í
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experimental da fé que a razão não pode apreender completamente. As doutrinas, os credos e as outras declarações de fé devem, portanto, ser vistas como uma forma de reflexão de segunda ordem sobre a ex periê ncia im edia ta da íé, que é dc im po rtân cia prim ord ia l. E m b o ra a espe cia l aborda gem da teologia por Schleierma cher se ja interessante por si só, é o seu modelo de heresia que vamos levar cm consideração aqui. O que é heresia? Para Schleiermacher, a heresia é qualquer coisa que contradiz a identidade essencial do cristianismo, ainda que guarde a aparência exterior da doutrina cristã. Assim, a heresia deve ser pensada com o um a form a deficiente de f é cri stã que gua rda a aparência do cristi nismo enquanto contradiz a sua essência.-1’0Isso faz com que a esfera da heresia seja imediatamente identificada como estando dentro da igreja, e não fora dela. Essa definição, porém, exige que seja defmida também a “essência” da fé cristã. Sem um entendimento da “essência” do cristianis mo, mostra-se impossível definir o que é de fato a heresia. A definição de Schleierma cher põe Jesus de N azaré no centro de todas as coisas:
a
O cristianism o é um a fé m ono teísta, pertencend o ao tipo tele.ológico
de religião , e é essencialmente distinta de outros tipos âe de que nele tudo
f é pelo fa to
está rel acionado co m a redençã o consu ma da p o r
Jes us de N a za ré .2'1
Para S chlei ermacher, a rejeição ou neg ação do p rincípio de que D eus nos redimiu por meio de Cristo eqüivale à rejeição do próprio cristianismo. N egar que D eus nos re dim iu por meio de Jesus C risto c negar a afirmação da verdad e mais fu nd am en tal que a fé crist ã pod e faze r, e, po rtan to, signif ica
Sobre isso, v. Der B eg rijf der Hãresie bei Schleierrnacber, de Klaus M . B eckm vnx, p. 36-62. München: Kaiser Verlag, 1959, Sciiijíikrmaciier, F. D. E. The Christian Faith. 2. ed. Edmburgh: T. 6c T. Clark, 1928, p. 52. Para um comentário sobre essa ênfase, esp. em relação à tensão que ela apa rente m ente estabel ece entre o papel da igre ja c C risto n a redenção, v. ‘'T h e M ed iatio n of Redemption in Schleiermachers Glaubenslehre”, dc Paul T. NlMMO. Internation al Journal ofSystematic Thcology, v. 5, p. 187-199, 2003.
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E/ist~ i.in- i "eósénaa ds heresia?
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descrença. A distinção cntrc o que é cristão c o que não é, entre fé e falta de fé, encontra-se em se esse princípio é aceito; a distinção entre o que c orto doxo e o que é herético, porém , cncontra-sc em como esse princípio, um a vez concedido e aceito, é interpretado. Em outras palavras, para reiterar o ponto que abordamos anteriormente, a heresia não é uma forma de descrença; é algo que surge de ntro do co ntexto d a próp ria fé. A heresia, então, ocorre, Schleiermacher declara, quando se afir m a que “ tudo est á relaci onado com a redenção consu m ada p or Jesus de Nazaré”, mas essa afirmação é interpretada de tal modo que ela é reduzida à incoerência. Se o lugar central e fundamental de Jesus de N azaré é afirm ado e, no enta nto, in te rpretad o de m odo ta l que é negado implicitamente ou tornado estéril, o resultado é a heresia. 110 Essa abordagem pode ser encontrada período mais remoto da história do pensamento cristão. Por exemplo, o grande teólogo angli cano Richard Hooker (1554-1600) notou como uma série de heresias básicas surg iu em virtude do d e senten d im ento so bre a id entid ade de Cristo. Em seu livro Lazus ofEcclesm stical Pohty [Leis do regime eclesi ástico] (1593-1597), Hooker escreveu o seguinte:
H á apenas quatr o coisas que c ontrib uem p a ra to rn a r completa toda a condi ção de no sso Sen hor Jesus Cr isto: a sua divin da de , a sua h u m anid ade , a conjunção de ambas, e a distinção entre elas como sendo p a rle de u m a únic a cois a.''1
De acordo com Hooker, não afirmar cada uma dessas coisas, de for m a co erente e com respon sabili dad e, l ev a a uma d ist orção dos ensinamentos fundamentais da fé cristã: o arianismo, por negar a r '2 I Ioo kk r, R ich ard . Lu-ws o f Fxclesiaslkal Po/iíy 5.54.10. Sobre o ponto dc vista dc Hooker sobre a heresia, v. “The Role oí Sin in the Theologv of Richard Hooker”, dc Egil Grislis. A nglh an Tbeologica! R tvieiv, v. 84, p. 881-896, 200.2. Note que Schlciermachcr difere de Hooker, identificando duas “heresias naturais” relativas à pessoa de C ris to e duas relativ as à sua obra. H ooker co nsidera to das as quatro heresias naturais relativas à pessoa de Cristo.
Heresid
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divindade de Cristo; o apolinarianismo por “injuriar e interpretar mal” a sua humanidade; o nestorianismo, por “dividir Cristo em p a rte s ” e d iv id i-lo em d u as pessoas; e o e u tiq u ia n ism o , p o r “c o n fundir aquilo que deveria diferenciar”. Schleiermacher seguindo Hooker, identifica quatro “tipos naturais” de heresia, os quais surgem de uma interpretação incoe rente de Jesus de N azaré.
Se a e ssénaa d ist in tiv a do cris tianismo consiste no fa to de que ne le toda s as emoç ões r eligios as são relacionad as à redenç ão elabora da p o r Jesus Cristo, h a verá do is modos pelos quais a heresia pode surgir. Is to é, essa fó r m u la fu n d a m e n ta l será retida em geral [...] mas ou a natureza humana será tão hmitada que uma redenção no caso estri to não po de ser oper ada, ou o R ed en tor ser á lim itad o de tal modo que el e não po de re aliz ar a redenção ,233
Sc hleierma cher dess a forma observa com o é poss íve l afi rma r que “todas as emoções religiosas estão relacionadas à redenção realizada p o r Jesu s C risto ” e ao m esm o te m po negar que a h um anidad e pre cisa de redenção (como no pelagianismo) ou que a humanidade pode ser resgatada (como no maniqueísmo). Ou se poderia fazer essa afirmação enquanto se entende Jesus de Nazaré como sendo tão diferente de nós (docetismo) ou, ainda, tão semelhante a nós (ebionismo) que ele não nos po de tra ze r ve rda de iram en te a redenç ão.234 O modelo de heresia de Schleiermacher é um importante ins tr um en to para expl ic ar o senti do tanto da natureza da heres ia quanto 2.3 Schl ei erma cher . Chnstian Fait h, p. 98. V. ainda, Z u r L iter atu r und Geschiehte des friihen Christentums: Gesammelte Aufsátze, de H en nin g PAtJLSEN. Tü bin gc n: M oh n Siebeck, 1997, p . 73-74. 2.4 E instrutivo comparar as visões dc Schleiermacher sobre essas duas heresias com aquelas de Karl Barth. Sobre a avaliação de Barth, v. “Some Dogmatic ímplications of B arths U nderstanding of Ebionite and D ocetic C hrist ology” , de Pau l D. M olnar , In ternational Jo urn al ofSystetnatic Tbeology, v. 2, p. 151-174, 2000.
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Existe jr n a ‘ essência" cia heresia?
de sua ameaça potencial à fé cristã. Ele postula que a heresia é fun damentalmente uma teologia que preserva a aparência externa de fé enq uan to c on tr adiz ou torna incoerente a su a iden ti dad e int erna. I sso situa a heresia como surgindo dentro da comunidade de fé e, ao mes mo tempo, identifica o seu potencial perigo à identidade dessa comu nidad e. A here sia eqüivale a um a fé fals ificada, à qual falt a a coerência intelectual da ortodoxia. Existem, no entanto, alguns problemas com a perspectiva de Sch leiermach er. E m prim eiro lugar, ela restring e a heresia a área s da doutrina que estão estreitamente ligadas à identidade e ao significado de Jesus de Naza ré. C on form e veremos no próxim o c apítul o, a s heres ias podem surg ir em várias áreas da d o u trin a cristã. E n tão , o que acontece com as heresias trinitárias como o sabelianismo? Ou as heresias eclesioló gic as com o o dona tism o? E m bo ra ess a seja um a críti ca l egíti m a de Schleiermacher, sua força poderia ser ofuscada pelo argumento de que tanto o sabeli anismo qu an to o do natism o devem ser am bos reconhecidos, no fi nal das con tas, com o vi sõe s heréticas que pelo m eno s se aproxim am da identidade de Jesus de Nazaré. Por exemplo, a doutrina da Trindade é interpretada, não raro, como um meio de expressar a importância de Je sus t anto quan to a natureza de Deus. D e m odo sem elhante, se poderia argumentar que ao donatismo interessa a questão das condições sob as quais os “benefícios de Cristo” são transferidos aos crentes. Segundo, e talvez o mais importante, Schleiermacher tende a tra tar a heresia como um fenômeno puramente intelectual, não levando em co nta as suas dim ensõ es históricas e soci ais. A sua anál ise das q ua tro “heresias naturais” afasta-se de qualquer explicação de suas srcens e formas históricas específicas. Sabe-se muito bem que muitas heresias surgiram no interior de determinadas comunidades, muitas vezes em respo stas a pressões cu lturais espec íficas.2 35 P or exem plo, o do na tism o pode se r interp retad o com o u m m ovim ento cultura l representa ndo 235 V., p. ex., “To w ard a Socio logv o f H ere sy ”, de G eor ge V. V it o , 44, p. 123- 130 , 1983. V. ainda “Toward a Sociology of Heresy, Orthodoxy, and Doxa”, de Jacqucs Berlinerblau, Historv Rjtligions, v. 40, p. 327-351, 2001.
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H -
uma reação dos nativos berberes contra a presença imperial romana no n orte da Á frica.2 56 A abo rdagem um tan to a bstrata e a-histórica de Schleiermacher não se dá conta dos fatores sociais que podem estar na srcem dc ccrtas heresias, surgidas sob condições bastante específicas, tend en do , em vez disso, a apresen tar a heresia como u m a qu est ão a tem poral de in coerência in te le ctu al. D e m odo m ais significativo, as te nsões entre indivíduos poderosos ou centros eclesiásticos de poder poderiam levar facilmente a uma luta de poder, sendo, por sua vez, conceituada como um conflito entre heresia e ortodoxia. A visão de Schleiermacher das heresias individuais parece desatenta aos, e desinteressada dos, ver dadeiros movimentos históricos dos quais ele oferece um esboço teoló gico no lugar de uma imagem histórica plena. Terceiro, a interpretação que Schleiermacher fiz da heresia sugere que esta deve ser identif icada prin cipalm ente pela sua incoerência intelec tua l. N o entan to, um a acus ação de incoerência levanta quest ões que não são corretamente respondidas pelo modelo de Schleiermacher. Em que ponto a incoerência se torna herética? Quem decide que um ponto de vista é he rético? A decisão de que determinada teologia será considerada herética é corporativa, não individual, refletindo o julgamento da igreja. A heresia é uma realidade social que reflete os julgamentos de redes de indivíduos.2'7 À m edid a que os estudos da controv érsia ari ana se to rna ram claros, o século IV em part icul ar t estem unh ou imp ortantes mudanças nas est rut uras ecl esi ásticas e no s pro ces sos pelos quais a “fé co rre ta” era ava liada .2’’8 Então, quem decide o que é heresia? Schleiermacher parece supor que isso fica muito claro com base na incoerência das ideias
Sobre a questão geral, v. “Wcrc Ancicnt Heresies National or Social Movements Jo.NES, Jo urn al o f Theologlcal Sfndies , v. 10, p. 280-286, in Disguiser”, de A. H. M. 1959. V . ainda ‘‘H eresy and Schism as Social and N ation al M ov em ents”, de W . H . C. 1*re n d . In: B aker Derek (Org.). Schism , Heresy and Protest , Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1972. p. 37-49. V. tb p. 155-156 do presente estudo. 2" V. “Elite N etwo rks and Heresy Accusations: Tow ards a Soc ial D esen ption of the Orige nist Controversy”, de Elizabcth A. Cl.ARK,Semeia , v. 56, p. 81-107, 1991. AYRES, Lewis. Nicaea and Its Legacy: A n Approacb to Fourtb-Centarv Trinifarian Theology. Oxford: Oxford Univ. Press, 2004, p. 78-84.
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Existe u m s " sssêncir." d a heresia?
heréticas. No entanto, isso ainda não faz justiça à evidência histórica, a qual aponta para a importância da comunidade de fé no julgamento c declaração de certos pontos dc vista para se constituir uma heresia. C om o M alcolm L am bert corretame nte obse rv ou: “É preci so doi s par a criar uma heresia: o herege, com as suas crenças e práticas dissidentes, e a igreja, para condenar as suas visões e definir o que é a doutrina ortod ox a”. -’'' A heresia signi fica u m julgam ento po r pa rte d a igr eja de que certo conjunto de ideias é inaceitável. Qualquer explicação da heresia precisa, desse modo, levar em conta tanto as ideias centrais dc uma heresia quanto as razões e os procedimentos pelos quais elas foram consideradas perigosas e destrutivas. Desenvolvendo ainda mais essa questão, pode-se mostrar que a igreja primitiva via a heresia como perigosa e potencialmente destru tiva para a fé. Apesar de uma ameaça à coerência da fé ter sido uma im po rtante causa que con tri bu iu para es sa questão, exi stem problemas mais fundamentais em jogo. O modelo de heresia de Schleiermacher não se parecc muito adequado para lidar com a ideia de heresia como um “ca va lo de Troia” que secretam ente con traban deia os elem entos de visões de mundo alternativas para dentro da igreja. A desestabilização teológica pode de fato surgir das inconsistências internas; contudo, existem outras causas potenciais para tal instabilidade, inclusive a in tromissão dc ideias estrangeiras, que, de forma pontual, fazem surgir a incoerência dentro da visão cristã de mundo. As questões levantadas neste capítulo sugerem que é difícil c pos sivelmente até mesmo inútil tentar desenvolver uma abordagem teórica geral à heresia sem olhar com algum detalhe para as heresias históricas individuais, dando a devida atenção ao seu aparecimento histórico. Nos dois capítulos que se seguem, consideraremos algumas das grandes here sias cl ássicas do crist ianismo e ten tarem os co m pre end er as su as srcens, a s preocupações daqueles que as dese nvolveram, p or que a igreja as consid e rava perigosas, e os processos pelos quais elas foram declaradas heréticas. La.MIíF.RT,
Malcolm.M edie val Heresy: Popular Mo-vemenisfrom the Gregonan Reform
to the Reformation. Oxford: Blackvvell, 2002, p. 4-5.
r
Parte III As heresias clássicas do cri stia nismo
6 As primeiras heresias clássicas: ebionismo, docetismo, valentianismo cristianismo teve suas srcens na regi ão da Jude ia, especialm na cidade de Jerusalém. De início, os cristãos consideravam o cristianismio como uma conti nuação e desenvolvimento do judaísmo. Desse modo, a doutrina floresceu em regiões com as quais o judaísmo já estava tradicionalmente ligado, principalmente a Palestina. Contudo, o cristianismo espalhou-se rapidamente pelas
ente
áreas vizinhas, em parte devido aos esforços dos primeiros evangelistas cristãos, como Paulo de Tarso. Parece mesmo que, no final do século 1, o cristianismo firmou-se por todo o mundo
oriental, lançando significativa influência até na cidade de Roma, a cap it al do Im pé rio R om an o.2+0 N o entanto, essa expansã o foi tan to inte le ctu al q uanto geográ fica. Embora também oferecesse oportunidade para a proclamação do evangelho, quando se desenvolveu ao longo do mundo civilizado do úl timo períod o clá ssico, o cri sti anism o e nco ntrou m aneiras de pe nsar que impunham desafio a essa proclamação. Embora, no início, o cristianis mo tenha precisado defender a sua identidade em relação ao judaísmo, seus seguidores, os cristãos, logo perceberam que se defrontavam com outros movimentos culturais e intelectuais na região, como as diversas tradições gre gas , fir m em ente enrai zadas em ci dades como A ntioqu ia e Alexandria. O resultado foi uma crescente pressão intelectual que le vou à identificação de maneiras mais autênticas e seguras de articular e explicar a fé cristã. Essa ‘‘busca de autenticidade” envolvia a exploração de formas que levassem à compreensão e à expressão do evangelho, al gumas das quais mostravam scr vigorosas e elásticas. Outras, porém, revelavam -se “ becos sem saída”; sua s desv antag ens e ram excessivamen te m aiores que suas van tagens. O processo pa ra desenvo lver e avalia r essas abordagens era lento, muitas vezes estendendo-se por décadas, justa mente por ser exaustivo e extenso. Portanto, a cristalização das noções dc ortodoxia e heresia era, em geral, mensurada e cautelosa. Os primeiros cinco séculos testemunharam a cristalização das noções de ortodoxia e heresia por esse processo de exploração inte lectual. Logo ficou claro que a tarefa da teologia cristã não poderia limitar-se simplesmente à repetição fiel e não crítica de fórmulas derivadas do passado — como os versículos bíblicos. A mera repeti ção de fórmulas e ideias cristãs primitivas foi considerada inadequa da para satisfazer a demanda da igreja por declarações ponderadas, :’"1Para excelcntcs explicações rcccntes, v. The Early Christian World, ed. Philip F. Esler (2v. London: Roudedge, 2000); The Church m Ancient Society from Galilee to Gregory the Great, de Hcnry Chadwick (Oxford: Oxford Univ. Press, 2001); From Paul to Valentinus: Chrutians at Fome in the First Ta-o Ceuturies, de Petcr Lampe (M inneapolis: fortre ss Press, 2003).
As pr im e ira ne^esias c.ássicas ebio n:smo. do ce tíir .o , valeniianisrno
confiáveis, de fé. Essas declarações, que às vezes estavam em tensão um as com as outras, precis avam se r entrelaçadas nu m a tapeçaria coe rente de fé. Mas que padrão elas revelariam?
N os últim os anos tem havid o um cre scente in te re sse na in te r pre ta ção patr ís tica da Bíb lia, refle tin do a elevação da consciê ncia de que, de modo significativo, as formulações doutrinais dependem dos fund am entos bí blicos.*41 Esse con hecim ento il um inou m uit os pontos — com o o m odo pelo qual os auto re s da patrística utiliz am cada um dos li vros bíbli cos.242 C o ntu d o, pa ra os nossos objetivos, o po nto mais importante diz respeito a como as passagens bíblicas foram tecidas em declarações dogmáticas mais complexas, solucionando (ou pelo menos con tendo a tensão de ) o complexo testem un ho d o N T aos temas centr ais do e vang elho.2 43 Esse processo de in terpre taçã o foi contestad o, levando a resul tados m últi plos, cada qual exigi ndo um test e cu idadoso d iante do se ntim en to em erg en te do que co nstituía o ‘ ‘au têntico ” cristianism o.244 O que pareci a represe ntar o “ m elho r ajuste” entre as form ulações teo lógi cas e a experiência cristã de então? E preciso en fatizar que ess a viagem de expl oração co nce it uai foi empreendida com os melhores motivos e intenções. Enquanto
-A1 V. esp. o imp orta nte corpo de m aterial reunido cm Handbook o fPatris tic Exeges is: The Bible m Ancie nt Christia m ty, K annengiksser Ch arles (Ed .), 2 v. Leide n: Brill, 2003. Embora excelente de muitas formas, essa coletânea está aberta a críticas pontuais. Cf. “Bíblical Interpretation in the Patristic Era: A ‘Handbook of Patristic Exegesis’ and Some O thcr Recent Boo ks and Relat ed Proj ects ” de joah ann es V‘\N O o r t, Vigihae Christianae , v. 60, p. 80-103, 2006. 242 V., p. ex., The Bible in Athanasius o f Alexand ria de James D. ERNEST, Leiden: Brill, 2004; The Soul an d S p in t o f Scri ptur e W ithin Orige ns Ex egesis, de Elizabeth Divelv Lauro, Leiden: Brill, 2005; “What Did Ezekiel See?": Christian Exegesis of
EzekieVs Vision o f the Cha riot from Jrenae us to Gregory the G reat , de Angela Russell ChrisT.man, Leiden: Brill, 2005; Rea din g the O ld Testamen t in A n ti och , de Robcrt C. Hn 1., Leiden: Brill, 2005. 2,i M c G ra th , Ali st er E. The GenesisofDoctrine. Oxford: B lackwel l, 1990. V ^n h o o ze r, IvevinJ. The D ram a ofD octrine: A Can om cal-L m gm stic Approa ch to Christian Theology. Loui svi lle : W estm inster Jo hn Knox Press , 2005, p . 115-237. 244 G ra n t, Robert M. Heresy and Criticism: The Search fo r Auth enticity in Early Christian Literature. Louisv ill e: W estm inster Joh n Knox Pr ess , 1993.
alguns dos primeiros heresiólogos cristãos retratavam escritores como Valentino em cores escuras e sombrias, a evidência sugere que a maioria daqueles que mais tarde seriam considerados here ges empreenderam suas buscas teológicas sem uma preocupação genuína de garantir que a fé cristã fosse representada e articulada nas formas mais autênticas e robustas. A conseqüência inevitável da busca coletiva da comunidade cristã primitiva pela excelência teológica foi que uma variedade de formas de o evangelho ser concebido foi inicialmente proposta e, na seqüência, submetida a um exame rigoroso; isso tez com que algumas dessas formas fossem rejeitadas. Os problemas realmente começaram quando movimentos que, em algum momento, tinham sido considerados inadequados ou teologicamente deficientes recusaram-se a acei tar essa condição e, em vez disso, passaram a se considerar como ortodoxias suprimidas. Como já foi enfatizado, quase todas as heresias clássicas da fé cristã surgiram nos primeiros cinco séculos de fé, chamado muitas ve zes de período patrística. Embora o termo “heresia” tenha sido aplicado a muitos movimentos na Idade Média, ele era claramente usado num sentido legal ou jurídico para estigmatizar um movimento visto como um desafio à autoridade do papa. Vamos retomar medievais esse ponto de mais tarde (p. 253-257), quando examinaremos as heresias maneira m uito mai s detalhada. N o entanto, é apropri ado am pli ar um pouco mai s esses comentários nesta fase iniciaí. Está claro que os movimentos medievais como os hussitas, valdenses e lol ardos não eram vis tos com o um a am eaça para a igre ja , ta n to p o r causa de suas ideias q u a n to p o r causa de seu apelo pop ular.--' E les tin h a m p o te n c ia l p a ra se to rn a r c e n tro s a lte rn a tivos de poder e influenciar, evitando ou desafiando as estruturas La.mbeRT, Alalcolm. M edie val Heresy: Popular M ov em en ts fro m the Greçorian Reform to the Reformation. O xford: Blackwell , 2002: “ Eu escrevi com o h istoriador, não teólogo.Tratci a ‘heresia como significando qualquer coisa que o papado condenou, explícita ou im plic itam en te, no p erío do ’’ (xi).
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As primeiras heres ias díssicas: ebic nism o. doc etism o, valentianismo
centralizadas da igreja. Percebeu-se por algum tempo que não era apropriado usar o termo “heresia” para se referir a tais movi mentos. Essa observação foi feita primeiro em 1935 por Herbert G ru n d m an n ,246 para quem a noção de heresia est ava aqui definida de uma perspectiva inquisitorial, em vez dc teológica. A
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sendo
heresia estava sendo definida em termos de desafios postulados à autoridade política da igreja, não em termos das verdadeiras ideias desses movimentos. Uma explicação puramente histórica da noção de heresia na Idade M éd ia é obrigada a defi nir a ortodoxia em termos de ensino p ap a l e a heresia , em termos de dissidência desse ensino. Devido a esse contexto, a heresia seria, de modo inevitável, entendida prin cipalm ente com o um a noção legal ou juríd ica.2 47 N o po nto em que o período patrístico concebeu a heresia em termos de divergência da fé católica, os defensores da igreja dos séculos XII e XIII fo ram bem-sucedidos em redefinir a noção em termos de rejeição da autoridade eclesiástica, em especial a autoridade papal. Como afi rmo u R ob ert M oo re, a ext ensão da categori a de heres ia torno u-se um instrumento cada vez mais importante de controle social, ' p o r m eio do q u a l o p a p a d o p ô d e reiv in d ic a r a justifica ção relig io sa p ara s u p rim ir o que eram m o v im e n to s e sse n c ia lm e n te p o lítico s e soci ai s. Essa rede fi nição m ediev al de heresia si tua a s ua essência no desafio do poder papal, em lugar de divergir da ortodoxia cristã. A heresia tornou-se o meio pelo qual uma sociedade englobava as 2*’ GriíNDAIAXN, Herbert. Re/igtSse B ewegungen im M ittelalter: Vntersuchungen überdie çeschtcbtlichen Zttsammenbânge ztwtscbcn der Kctzerei, den Bettelorden und der rehgtôsen Fmuenbcwegung um 12. und 13. Jabrbundm und fíber dte gescbtchlhehen Grundlagcn Sobre essas últimas reflexões der deuHcben Mystik. Bcrlin: Emil Ebering, 1935. sobre o tema, v. Ketzergescbiebte des Mittelalter de Herbert Gruniimanx Gõttingen: Vandcnhoeck ScR upreeht, 1963. -4‘ Cf. “D er H àiesieb egriffb ei den Juristen des 12 . und 13. Jah rhu nd erts”, de Oth m ar IlAGEXEDER. In: LüURDAl \ , W .; Vf.RHELST, D . (O rg s. ). Th e Concept o f Heresy in the M id dle Ages. Louvain: Louvain Univ. Press, 1978, p. 42-103. ’4S M o o re , Ro bert I. The Formation o f a Persecuting Soetelv: Pow er an d Devian ee hi Western Eu rop e , 950-1250. Oxtord: Basil Blackwell, 1990.
suas tensões endêmicas sob uma categoria conceitualmente reli giosa. Ela deixou de ser uma noção teológica, e era agora definida de modo legal ou sociológico. Voltaremos a considerar as heresias medievais no capítulo 9. N o ssa p reo cu p ação neste cap ítu lo e no que se segue, p o rém , é com as heresias que surgiram durante as grandes viagens teológicas de descoberta e exploração que ocorreram durante a era patrística. Embora cada uma das heresias a serem consideradas tenha os pró p rio s p o n to s especia is de in teresse, em cada caso an alisarem o s com o a heresia surgiu, identificaremos as suas características distintivas e levaremos em consideração como e por que elas passaram a ser con sideradas inadequadas. No capítulo a seguir, abordaremos três das heresi as tar dias que vo lt aram a ser de im po rtânc ia para a crist ianizaçã o do Im pé rio Ro m ano: o ar ianis m o, o don atismo e o pelagiani sm o. N o p re se n te cap ítu lo , verem os três heresia s p rim itiv a s, to das as quais se desenvolveram ao longo do século II. Iniciamos nossa discussão considerando o ebionismo.
Ebionismo: um modelo judaico para Jesus de Nazaré Em sua maioria, as heresias descritas neste capítulo e no capí tulo seguinte recebem o nome de acordo com os personagens espe cialmente relacionados com elas: Ario, Marcião, Pelágio e Valentino. Contudo, a primeira heresia que veremos não é associada a nenhuma pessoa esp ecífica, mas representa a te ndên cia gera l que, no século I e início II, alguns círculos cristãos apresentavam de limitar a interpre tação da identidade de Jesus de Nazaré a categorias herdadas do juda ísmo. Os termos “ebionita” e “ebionismo” são usados com referência a esse t ipo de m odelo de Jesus, que tipicam en te o interpre ta como um
As primeiras hce sias clássicas eo iom sn o. do ce iisn o . vaJermanismo
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profeta .24' É frustrante que pouco se conheça a respeito desse m ovi mento, apesar do fato de ele representar um marco teológico tão sig nif ic at ivo. ^0 Em bo ra permaneçam inc er tezas em rel aç ão à or ige m do nome do movimento, e algumas importantes perguntas históricas ainda ag uardem esclar ecimen tos à luz d os do cum ento s de Q um ran ,-JI é amplamente aceito que as crenças dos ebionitas estejam firmemente situadas na matriz do judaísmo daquela época. A igreja primitiva reconhecia a importância de pronunciar com toda a ênfase o valor de Jesus Cristo para a mente, imaginação, emo ções e comportamento humanos. No curso de seu desenvolvimento, a igreja teve de lidar com várias interpretações da identidade de Jesus Cristo, o que foi considerado como falta de justiça ao seu significado. U m a local iz ação indevida de Jes us C ris to em u m m apa conceit uai seria fatal ao evangelismo cristão e ao discipulado. Estava claro po rém, que esse processo de determinar a melhor estrutura conceituai para , d e n tro dela, localiz ar Jesus C risto , era p ro fu n d a m e n te difíc il. A tendência inicial era tomar as categorias existentes e herdadas das
’+c' A cred ita-se que o term o “eb io nit a” derive-se do te rm o hebraico (“o pobre”), talvez em sua srcem aplicado aos cristãos, porque eles vieram de
Ebyomm
extratos s ocia is mais b aix os e em geral er am pobres (A t 11 .28-30; 24.17; lC o 1.26-29; 16.1,2). Talvez ainda possa ser extraído da oração de Jesus de Nazaré: Bem-aventurados sois vós, os pobres (Lc 6.20). Paulo parece usar o termo “pobres [boi ptochoif' para se referir especificamente às igrejas de Jerusalem e da Judeia (G1 2.10). Aparentemente baseados na suposição de que todas as heresias toram designadas segundo os seus fundadores, muitos heresiólogos da igreja primitiva, pouco familiarizados com a língua hebraica, V. Theology de Hans Joachim S c h O e p S, lübingen: und Geschichte des Judenchnstentums, J. C. B. M oh r, 1949, p. 8-9. 25ü So bre a m elh or explicação, v. “T h e O rig in o f the E bio nit es”, de R icha rd . In: T omson , Peter J.; L ambkrs - P etry , Doris (Orgs.). The Image 7 übingen: o f the Judaeo -Christians in A nci en t Jezv isb an d Christian Literature. M oh r Siebeck, 2003, p . 162-181 , qu e com plem enta e corrige o estudo anterior “Ebionite Christianitv", de Hans Joachim Sei ÍOEPS. Journal o f Theological Studies , v. 4, p. 219-224, 1953, baseado em seu trabalho prévio Theologie und Geschichte des Ju dench rh ientu ms. 231 Pa ra um a breve análise dessa questão , v. “Th e Q um ra n Scroll s, the E bio nite s, and T he ir L iteratu re” , de Joseph A. F i t zmyek , Theological Studies, v. 16, p. 335 -37 2, 1955. B auckham
m atri zes soc iais a que tinha m pe rtencido os cri stãos prim it ivos e tratá-las como apropriadas à tarefa de conceitualizar o significado de Jesus C rist o. As srcens dess a tendê nc ia pode m ser vi stas den tro do próp rio N T , em que o registr o dos E v angelh os ten ta dar um sentido de Jesu s que é extraído do judaísmo da época — como interpretar Jesus de N azaré com o um segundo E lias, u m novo p ro feta ju d eu ou um sum o sa ce rd ote de Is ra el .252 A crítica atual, embora afirme que o ebionismo represente um modo essencialmente judaico dc pensar em Jesus de Nazaré, tem le vantado algumas questões sobre o uso histórico do termo. O problema surge em parte devido ao nosso conhecimento indireto do movimento que, não raro, deriva de seus críticos, como Ireneu de Lyon e Hipólito de R om a.2” A m aiori a dos est udiosos considera que o ebionism o do iníci o do sécul o II caracterizava-se p or um a “bai xa crist olog ia” — isto é, uma compreensão de Jesus de Nazaré que o interpreta como espi ritualmente superior aos seres humanos comuns, mas não distinto de ne nh um a o utra form a.254 N essa perspect iva, Jes us de N azaré era um ser humano que foi separado para o favor divino, sendo possuído pelo Espírito Santo de um modo semelhante ao (embora mais intenso que) o cham ado de um profeta hebreu . E poss ível ai nda que, mais t arde, de al gum m od o d ifer ente c infl uenciad o em vári os níve is pelo gnosti cismo, o term o tenh a passado a s er usado em refer ência a um c onjun to de cr enças (sobr e is so retom arem os mais a dia n te).2” Po r es sa razão, focalizarem os 2,2 Para uma ótima investigação recente das questões contestadas dentro do na Judeia, v. God Crucified: Monotheism and cristianismo primitivo judaico Christology in tine New Tcstament, de Richard Bauckham, Grand Rapids: Eerdmans, 1998; Lord Jesus Christ: Devotion to Jesus in Earliest Christianity,
de
H urtado , Grand Rapi ds: Eerdm ans, 20 03, p.155-2 16. Larrv W. KM, 2” Baucki Rtcard. Origin o f the FJdonites, p. 162-171. 2M Goi.ii.DER M ichael. A Po or M a n s Christology, N e ts Testa m m t Studies , v. 45, p. 332-348, 1999. V. os pontos levantados em Micha el and Christ: Micha el Traditions and Angel Christology in Early Christianity, de Darrell D. Hannah, Tübingen: Alohr Sicbeck, 1999, p. 173-175; Messiah and the Throne: Je-ivish Merkahah Mysficism and Early Christian Exaltation Discourse, de Timo Eskola, Tübingen: Alohr Siebeck, 2001, p. 307-309.
[
As on ne ira s .leresi^ s clássicas:
eb.oni sm o. doce
ti sm o
valentianismo
]
a fase i nicial do eb ionism o, n aqu ilo que ele possui de aspectos clar os de um a cri stologia essencialmente jud aic a. Então, que problema pode ser detectado no ebionismo? Por que foi o movimento rejeitado e considerado inadequado pela igreja? Uma resposta simples seria ter-se percebido ser essa corrente de pensamento inadeq uad a para tratar , com toda a justi ça, o pleno m inistéri o de Jesus de N azaré . U m evento do Evangelh o que narra o m in is té rio de Jesu s lança algum a luz sobre esse po nto: a cura de u m paralíti co (M c 2 .1-12 ).-5f' A o ouvir que Jesus estava na vizinhança, quatro pessoas trazem o amigo pa ralítico para ser curado por ele. Todas as evidências a que temos acesso sugerem que, i nicialmente, aquel es que tetem un ha ram a at uação de Jesus tentaram interpretá-lo em termos de modelos e categorias existentes — como, po r exemplo, alguém que cur ava. 257E ra com pletam ente natural que fosse assim. Afinal de contas, o Antigo Testamento continha muitas re ferências ao modo pelo qual Deus agia no mundo. Assim, era totalmente lógico que os estudiosos tentassem aproximar Jesus de um dos padrões então conhecidos. Logo, por que não considerar Jesus como um novo Elia s que pô de curar o doent e? C o ntu d o, ao prosseguir, a narrati va sucu m be e, no f inal das contas, subverte a tentativa de aproximar Jesus dos modelos judaicos predomi nantes de confirmação ou morada divina. Q ua nd o Je sus vi u a f é daqueles h om ens, diss e ao paral ítico: os teus pecados estã o perdoa dos. Ora, a lgu ns dos escnbas esta
Filho,
va m sentados ali ,
que stiona nd o em seu c oração: Por que es se ho m em f a l a dessa m a n e ir a ? E le e stá blasf em ando! Q uem p od e perdoa r pecad os s enã o um só, que é D eus?
256 Sobre a inter pre taçã o feita po r M arc os do significado de Jesus de N azar é, v. o excelente est udo “ W ho Can Th is Be?’The Christology of M arks Go spel” , de M orna .r , Richard G. (Org.). Contou rs o f Christolog y in the N ew D. H ooker . In: L onckxkckf Testament. G rand Rapids : Eerdm ans, 2 005, p.79-98. 2:" D AVIES,Stevan L. Jesus the Healer: Possession, Trance, an d the Origins of Chrntiamty. Co ntin uu m , 1995, p . 66-77. D e man eira mais gera l, v. “Jesus from the Jewish P oin t of View” , de W . D . Da vikr; E. P. S naders . In: H orbury , William; D a v i e s , W . D.; Srui-tov, John. The Cambridge History of Judaism: The Early Rom an Penod. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1999, p . 6 18-67 6.
Seg uindo a ortodoxia j udaica, aquel es escri bas de claram que Jes us recl amava pa ra s i o po de r de perd oa r pecados, o que deve ser con sidera do u m a prerro ga tiva exclu sivam ente div ina .2511 C o n tu d o , a na rrativa do Evangelho comprime os modos tradicionais de refletir sobre a presença de Deus no mundo aos seus limites absolutos, conclamando o resultado da intervençã o de Jesus dc Na zaré: M a s, p a ra que s aib ais que o F il ho do hom em te m autorid ad e p a ra p erd oa r pec ados na te rra (dis se no paralíti co'), ea te digo : L e v a n ta -te, to m a a tu a m aca e v a i pa ra ca sa. E n tã o ele se leva nto u e, pegando logo a m aca, saiu à v ista de todas; de modo que todo s fic a r a m m aravilha do s e glo ri.fu.a vam a D eu s, diz end o: N u n ca vimos coisa igual! (Mc 2.10-12)
A cura do paralítico pode ser dramaticamente primária dentro da narrativa; não obstante, ela é teologicamente secundária. O assombro das multidões resultou principalmente da percepção que tiveram das implica ções teológicas daquilo que tinham acabado de ver e ouvir. Alguém, im plicitamente, reivindicara auto ridade para agir como Deus, e. por D eus. O result ado dessa i ntervenção parecia supor que De us acei tar a — e até m esmo endossara — a assombrosa atitude de Jesus . O s m odos tradici onais judaicos de refl etir sobr e a presença e at ivi dade de D eus no m un do parecem subver tidos quando confrontados com o ministério de Jesus de Nazaré. E importante perceber que os Evangelhos prosseguem a narrativa desse notável evento citando as palavras de Jesus de Nazaré sobre odres vel hos não pod erem conter vinho nov o (M c 2.22). A vinda de Jes us na história humana é entendida como tendo introduzido algo novo, algo dinâmico, que os modos tradicionais de pensar dentro das tradições proíéticas e sapienciais de Israel do mesmo modo eram incapazes de captar. Esse tema apar ece com espe cial imp ortância no Ev angelho de M ateus, o 2' s Para um com entário, v . The GospelAccor ding to Ma rk, de Jam es R. EnwARDS. Gr an d Rapids: Eerdman, 2002, p. 75-79.
[
/'õ pnmesras here s^s cláss'Ca$: ebion ismo , docetibm o, valentian
r.no
15
]
qual é , em geral , considerado o mais preocup ado em estabelecer um para lelo entre Isra el e a igreja.259 O fracass o inevitáve l dos trad icion ais m od os lógi cos de fé em q ue Israel tentava envolver Jesus de N aza ré forçou a busca de um a re visão dos mo delos exist entes da pres ença de D eus e da a ção di vina especifi cam ente sobre Jes us. O ebionismo p ode ser considerado um a tentativa de c on ter a ino vaçã o, insi stindo em que Jesus de N azaré dever ia ser en tend ido apenas den tro dos paradigm as tradici onais da raci onalidade teológica herdada de Israel. No fim, estes se mostraram inadequados ao desaf io que enfrentaram . A inovação era clar am ente nece ssári a. O ebionismo tem sido muito criticado por importantes teólogos ortodoxos. Por exemplo, o teól ogo p rotestan te suíç o Karl Ba rth deba teu contra qualquer explicação ebionita da identidade de Jesus que o trate essencialmente como um ser humano heroico ou como um ser humano que foi “ado tado ” po r D eu s.260 O po nto de vis ta de B arth correspond e à tendência difundida para interpretar o ebionismo como uma aborda gem de Jesus de Nazaré caracterizada por uma recusa em reconhecer sua divi ndade intrí nseca, af ir m ando apenas a su a hum anidade . E m bora isso seja em parte verdadeiro, está longe de representar uma explicação p le na do ebio nism o com o um m ovim ento histó ric o. A lé m disso , ela torna difícil distinguir o ebionismo do arianismo, que também pode ser caract eri zado com o um a negação da divi ndade de C ris to. O histori ado r do pensamento cristão concordará que o ebionismo e o arianismo ne garam a divindade essencial e intrínseca de Jesus de Nazaré; contudo, mostrará que existiam motivos significativamente diferentes para que essas correntes de pensamento assumissem essa posição. Isso revela a importância de estudar as heresias nos seus contex tos históricos, em vez de reduzi-las a um resumo teológico. Apesar de uma similaridade teológica superficial, o arianismo e o ebionismo são 259 V., p. ex., “M att he w : A po statc , Refor m cr, Rev olutio nary ?”, de D on ald A . H agner , N ew T estam en t Stu dies, v. 49, p . 193-209, csp. 200,201, 2003. 260 B arth , Karl. Church Dogmatics, 14 v. Ed inb ur gh : T. 8c T. C lark , v. 1, p. 402- 40 3, 1957-1975. V . tb. “Some Dogm atic Implicati ons o f Ba rths U nderstanding o t E bionit e and Docetic Christology”, de Paul D. Moi.NAR, (Inte rnati onal Journal o f Syste matu Theology, v. 2, p. 151-174, esp. 156-158, 2000.
hist órica e soci ologi camente dist int os. U m tem ori gem den tro do m un do da filosofia alexandrina helenística, e o outro, dentro do mundo do judaís m o. D e fato, é verd ade que o aria nis m o e o ebio nis m o negam a divindade de Jesus C rist o. M as el es o fazem po r motivos m uito diferen te s. Com o veremos, o ar iani smo ins ist e em afi rmar que, por co nta de um compromisso filosófico com a unidade absoluta de Deus, Cristo deve ser visto como um ser humano. Deus é totalmente distinto da ordem cri ada, e é inconcebível que qu alquer ser híb rido ou interm ed iário poss a exi stir. Jesus C risto dev e, po rtanto , ser vist o co m o um a criat ura, na m e dida em que as alternativas são filosoficamente incoerentes. Em comparação, o ebonismo em comparação, não surgiu como conseqüência de preocupações filosóficas. Na verdade, poderia ser dito que de fato essa corrente de pensamento negou a divindade de Cristo; os ebionitas simplesmente não viam razão para afirmá-la. O ebionis mo optou po r si tuar Jes us de N azaré den tro do c ontexto do judaísm o e interpretar a sua importância usando categorias judaicas. Dessa maneria, Jesus ser ia enten dido com o análogo aos grandes p rofet as de Israel — seres hum anos a quem o E sp írito Santo concedia , de alg um m odo, um especial discernimento ou sabedoria. Por causa do contexto judaico de ntro do qual o ebinismo surgi u, a sugest ão de que Jesus de Na zaré era divino não era realmente levada em conta. Então, por que a igreja rejeitou o ebionismo como uma heresia? O processo pelo qu al occo rreu es sa r ejei ção n ão é cl aro, em bo ra sej a cer to que, por volt a do ano 135, o sentim en to de que o eb ionismo não fosse aceitável estivesse cristalizado nos círculos cristãos romanos. As razões para esse sen tim en to não p o d e m ser esta belecid as com tota l certeza, em p arte porque os prim eir os rela to s patr ísticos refere nte s ao ebio nis m o — como aquel e ofer eci do por Ireneu — pod em com binar vá rios grupos distin tos.261 Tod avia, é possí vel iden tificar as principa is preoc upaç ões que parecem ter l evado à e xcl usã o do ebionismo.
-',l V., p. ex.,Heretics: The OtherSide of SC M Pres s, 1996 , p. 52-53.
Early Chrístianity , de Gerd LCdem ann, Lond on:
[
As Dr-Tíe: ir.5 heresias clássrcas: ebio nis mo . do ce tism o, valentia nism o
A mais im po rtante delas era a percepção de que o ebionism o co ns tit uía u m a form a de cris tianismo judaic o.2'"2 C om o passar do tem po, a posição do cristianis m o d entro de um a ig reja cre scente m ente gentílica tornou-se cada vez mais difícil, de modo especial em relação a ques tões de potencial contencioso, como circuncisão, as leis alimentares e a observação do sábado .2"1 O s c ris tãos gentios se considerav am liberados dess as regr as e cit avam Paulo em defesa de sua posição .2"4 E m bo ra al gumas explicações do desenvolvimento do cristianismo sugiram que esses assuntos e stivessem essencialme nte resolvi dos em favor dos gentios no fina l do século I, existe evidência de que eles se estenderam até o século II. Por exemplo, Diálogo com Trifão, de Justino Mártir, datado por volta do ano 150, refere -se ex plic itam en te a essas tens õe s.2"" O p roblem a que o s cristãos gentios exp erime ntaram co m o ebionis m o fo i que o mov imento interpr etava Jesus de Nazaré d entro de um con texto judaico, ref orçando a noção de que o crist ianismo era es sencial men te um a nova form a de judaísmo . Essa abord agem à cr ist ologi a não se aj ustou m uito be m ao sentimen to cresc ente de que o crist ianismo era diferent e do judaísm o, mas que a relação que existia entre eles deveria ser co m pre endid a. Os ebionitas viam Jesus de Nazaré como um profeta hebreu refor mador. Embora a visão de Marcião de que o cristianismo deveria se dissociar totalmente de suas srcens judaicas tenha conquista do poucos partidários, ela era agora uma indicação reveladora de como o cristianismo via a si próprio — como uma nova fé universal que rec onh ecia as s uas srcens d en tro do judaísm o,2"" m as que ta m bém transcendia as suas lim itações étn ic as, culturais e religiosas. O ebionis mo capturou a nov a fé dentro de u m a m atri z jud aica, tornan do -a
, p. 27-60. lbJ Sobre alguns aspectos disso, v. Heretics, d e L üdemann In the Sbado-iD o f the Teniple: Jezcnsh Influences on Early Chriítianity. Do wn crs G rovc: I nterVarsitv Pr ess , 2002, p . 147-16 2, 259-274. 21.4 Isso leva L üd em an n a suger ir que, na pr ática e nos círculos cristãos judaicos, Pau lo era considerado um herege; cf. Heretics, de Lüdemann, p. 61-103, que desenvolve um ponto orig m anam ente le van tado por W alter Bau er (p. 60). 2fr' LüDERMANN.Heretics, p. 53-56. M' H urt ado. LordJesus Christ, p. 155-214.
21.3 SKARSAUNK, Oskar.
prisio neira de sua histó ria . O futu ro do cristianism o com o um a fé in de pendente — não um a seita judaica — dependia do desenvolv im ento das novas categorias da igreja para dar sentido à figura de Jesus de Nazaré. Essas categorias reconheceriam, até mesmo valorizariam, as srcens de Cristo dentro do judaísmo, mas ao mesmo tempo articulariam o seu significado em termos que destacassem seu sentido global, até mesmo cósmic o. N o fina l, o ebionismo to rno u-se herético porque era um símb olo de paroquialismo dentro de uma fé que se mostrava clara sobre o seu sig nif icado e cha m ado univ ers al. A ind a que, em vári as formas, o ebionismo se tenha prolongado, no final, o movimento simplesmente dissipou-se. Contudo, não de modo permanente. Um dos desenvolvimentos religiosos mais intrigantes dos últimos cem anos, em geral negligenciado pelos jo rn alistas* 7 e ta m bém pelos estudio sos, é u m fluxo im porta nte de conversões do judaísmo para o cristianismo. Embora alguns convertidos ju deus tenh am assim ilado com ple ta m ente o cristianism o, abandonando a cultura judaica, outros se viram de um modo muito diferente. Como o antropólogo Juliene Lipson mostrou, o termo “cristão hebreu” é usa do amplamente nos dias de hoje para se referir a “um judeu que aceitou Cristo como o Messias e seu Salvador, mas que, no entanto, prefere pre servar a sua iden tidad e com o judeu ”.-6SE ssa id entid ad e jud aica é express a de vár ios modo s, incluindo a observ ação do sába do, mas particularm ente pelo uso do term o hebraic o Ycshua pa ra se referir a Jesus. O ressurgimen to do cristi anismo judaico n os últimos anos tem levado a um novo interesse dentro do movimento de articulação do significado de Jesus em termo s ess encialmente jud aicos. Assim com o o nom e Jesus é evitado por causa de suas raízes gregas, tam bém se considerou que muitas formas tra dicionais cristãs de explicar o significado de Jesus refletiam ideias metafísicas gregas e , po rtanto, exigi am um a reafi rmação em formas mais autenticam ente
lh' Roskn, Moishe. Y ’shua: The Jewish Way to Say Jesus. San Francisco: Purple Pomegranate Production, 1982. 2l,s L i pso n , Juliene G. Jews for Jeivs fo r Jesus: A n Anth ro pologkal Study. New York: A M S Press, 1990, p . 15. V., tb, Messianic Judaism: Its Historv , Theology, and Pohty, de David A. R ausch , Lewiston: Edwin Mellen Prcs, 1982.
As prim e ira heresias cássicas: ebionism o, doc etsm o, valertianismo
ju daicas — com o ver Jesus com o um pro fe ta . Isso tem suscitado o re ssur gim en to de um a cri stol ogia ebion ita den tro dos cír cul os cri stãos judeus. Passemos agora ao exame de outra heresia primitiva referente à identidade de Jes us de N azaré, que é ger almen te ch am ada de doceti smo.
Docetismo: a humanidade de Jesus de Nazaré As três cartas de João são consideradas por alguns estudiosos como pe rtencentes aos últ imos tr abalhos do NT , datando possi velmente p o r volta do ano 90. D e acord o com essas cartas, um a id eia nova e p o tencialm ente perigosa est ava circul ando em algumas igr ejas cr istãs — a de qu e Jesus de N aza ré nã o era de fato u m ser h um an o.2''" Jesus ap enas aparentava ser humano; na realidade, ele era divino. A sua humanidade era um espectro, uma ilusão. O termo “docetismo”, derivado do verbo grego dokein (“parecer”), logo passou a ser usado em referência a esse ensino. C on sidera-se que a prim eira pessoa a usar a palavr a “doc etismo ” ness e sen tido foi Serapi ão, bispo de A ntioq uia (19 0-203 ). De acordo com Ireneu de Lyon, escrevendo perto do final do sé cul o II, ess as i deias estavam associ adas a C erin to, que viveu na cida Efeso pela época em que as cartas de João estavam sendo escritas.
de de
Cerinto , um hom em (juefoí educ ado ti a sabedoria d os egípcios,pre ga va que o mu ndo nã ofo ife ito pelo D eus primeiro,
mas po r ce rto
p o d e r bem separa do dele , distan te daquel e Principado que ésupre mo sob re o U niverso e ign ora nte da quele que estã acim a de tudo.
369 S trecker , Georg. The Johannme Letters: Ji Commentary on 1, 2, and 3 John. Menneapolis: Fortress Press, 1996, p. 66-77. T r i . b i i .CO, Paul R. The Early Chnstuins in Ephesus fro m Paul to Ignatius. Tü bingen: M oh r Siebeck , 2004, p . 694-69 6.Observe esp. ljoão 4.1-3: [...] todo espírito que confessa que Jesus veio em corpo é de Deus. Essa pas sagem sugere que aqueles qu e neg ara m que Jesu s C ris to veio em carne, mas som ente “ pareceu” tom ar-se carne, deveria ser rej eitado.
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he- eVd
I
E le representou
Jesus c omo não nasc ido d e um a v irg em , m as
como filho de José e M a r ia , segundo o cu rso comum da g era ção hu m an a, embora el e fosse, não obst ante, ma is justo , pru de nte e sábio que outros homens. Além disso, depois do seu batismo
,
Cristo de sceu sobre ele na form a de um a po m ba do G ove rna nte Su prem o, e que el e proc lam ou o Pai desc onhe cido e ope rou m i lagre s. M as , no fina l, Cristo p a rt iu de Jesus , e que então Jesus padeceu e ressuscitou, en q u a n to C risto perm a neceu im passível, j d que ele era u m se r e s p iritu a l.2 1
De ssa forma, Ce rinto fez di sti nção e ntre um “ Jesus” hu m ano e um “Cristo” divino. Jesus só se diferenciara do restante da humanidade pelo fato de possuir certas virtudes, e uma vez que o Cristo divino descera sobre ele no batismo e o deixara na cruz. As primeiras referências explícitas àquilo que se reconhece como uma forma de docetismo são encontradas em algumas das cartas de Inácio dc Antioquia (c. 35-c. 107), bispo da Antioquia, na Síria, que foi martirizado em Roma. Inácio é lembrado principalmente devido a sete cartas, as quais tanto exerceram uma influência considerável sobre a igr ej a pr imit iva quan to deram u m im po rtante testem unh o de a lg umas dc s uas contr ovérs ias . Ess as cart as m ostram -no preoc upad o co m os ensi namentos de dois grupos, cada um dos quais claramente teve influência dentro de algumas igrejas cristãs: os judaizantes, que desejavam que o cristi anism o p erm anec esse d en tro da órb ita do jud aísm o;271 e os docetas, que afirmavam que o sofrimento de Jesus era ilusório. As suas cartas às igrejas em Trália e Esmirna indicam claramente que alguns estavam afirmando Cristo ter esofrido. Cristo, Inácio susten ta em sua que “realmente verdadeiramente sofreu, da Carta aosapenas tralianos, parecia 2'" IREXEU DE Lyon. lren eu de. Adv ersu s haer eses 1.26.1. 2,1 Inácio foi um dos mais antigos escritores cristãos conhecidos por defender que a igreja deveria guardar o “Dia do Senhor” (domingo), em vez do tradicional sábado judaico, como o dia de descanso. 144
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As çnmeirjs iteresías dássicas: enionisno. doceiisrto, valentianisrro
]
m esm a m aneira que el e realmen te e verda deiram ente ress usci tou. A sua paixão não foi um a ilusão im agin ária ”.272 A re cusa docéti ca em aceit ar a hu m anida de fund am ental de Je sus de Nazaré é expressa de várias maneiras intrigantes. Valentino adotou uma visão fortemente docetista de Cristo e a ampliou para incluir o sis tema diges tivo del e. A idei a de que Jesus de N azaré pudesse u rinar ou defecar era simplesmente inconcebível para Valentino. Esses eram aspectos degradantes do ser humano, algo que, de forma nenhuma, poderia se r aplicado a J esus. D e acord o com C lem ente de A le xandria, Valentino pregava que Jesus dc Nazaré “era continente”, visto que “ele com ia e bebia de u m m od o e special, s em ex cre tar”. 27" Apesar dessas claras indicações da influência de ideias docéticas na igreja primitiva, é difícil encontrar evidência de um movimento coe rente que pud esse ser ch am ado de doc etism o.274 As fon tes mais antigas que chegaram até nós indicam que algumas facções defendiam que Jesus só tinha parecido sofrer; mas essas fontes nunca são expli citamente consideradas “docetistas”. Por exemplo, Ireneu cita vários escritores não ortodoxos como tendo afirmado que Jesus de Nazaré “era um homem somente 11a aparência”; contudo, ele não se refere a isso como docetismo. Escrevendo no início do século III, Hipólito de R om a faz m enção a um grup o cham ado “ doce ta” , que ele associa a uma recusa de fato em aceitar que Jesus Cristo tenha sofrido. Contudo, as formas de docetismo que ele encontrou muitas vezes misturavam essas ide ias com alguns dos con ceit os de vár ias fontes gnósticas, torn an do d i fícil compreender 0 que é especificamente característico do docetismo. Mais uma vez somos confrontados com um quadro histórico complexo daquilo que o cristianismo primitivo entendeu pelo termo "'docet ismo”. Algun s est udiosos sug erir am que o m elho r mo do de de finir 1,: Inácio. Carta aos traltanos, 9 — 10; Carta aos estmrneus, 2 — 3. 2”' Clemente de Alexandria, Stromatds 3.69.3, citando a partir da correspondência perdid a de V alentino a A gath apous. ’ ‘ Ct. indicado em “‘ D ok etism us’ — eine Problem anzeige", de N orb ert Br ox, Z e its c h riftfü r Kirchen geschichte, v. 95, p. 301-314, 1984.
historicamente o docetismo seja limitá-lo à crença de que, nas palavras do estudioso da patrística Norbcrt Brox, “Jesus era diferente daquilo que pa recia ser”. 27" E possível iden tifica r doi s ti po s de do cetism o, os quais s ão claram en te relacionados, m as não idên ticos.2 76 O prim eiro diz respeito à encarnação de Cristo. De fato, Jesus não poderia ser pro p riam en te h um ano, pois não haveria n en h um m eio pelo qual o div in o e o humano pudessem coexistir em um único ser. Cristo teria de ser então de natureza totalmente espiritual. O segundo diz respeito ao seu sofrimento na cruz: mesmo que Cristo tosse verdadeiramente humano, a realidade é que ele não sofreu na cruz. Dessas duas visões, a primeira parece ter sido a m ais dif un dida d en tr o da igreja prim itiv a. Compreender as srcens do docetismo é tão problemático quan to dar sentido às suas ideias essenciais. Alguns argumentaram que o pen sam ento docético ten h a surg id o com o conseqüência de in fluência s filosóficas gregas, em particular da dificuldade de se entender como Deus poderia coexistir ao lado da “matéria”. Outros sugeriram que o doce tism o era conseq üênc ia de inf luências judaicas ou que o pe nsa m en to refletia a influência crescente de certas formas de gnosticismo no interior do crist ianismo prim iti vo .277 Re cen tem ente, po rém , surgi u outra perp ectiva, que ta lv ez possa esclarecer por que, naquele m o m ento , o docetismo mostrou-se tão atraente para tantas pessoas. Em seu estudo das srcens históricas do docetismo, Ronnie Goldstein e Guy Stroumsa observaram como a mitologia grega clássica faz referência aos heróis e heroínas que são substituídos por um “duplo” quando a sua m ort e é iminente.2 Ess e dis pos itiv o é com um na tr agédi a grega e pode ser visto na narrativa de Helena de Troia, de Eurípides,
B r o x , Do kctismu s, p . 309. V. tb. “D occtism: A Historical D efm ition”, de M ichael 2,ç Sl.USSF.R,Second Centur y,v. 1, p. 163-172, 1981.
2"' Seg uind o a exce lente análi se feita em “C h ris ts Laug hter: Do cctic O rigins Rcconsidcred”, de Gu v STROUMSA,Jo urn al ofE arly Christian Studies, v. 12, p. 267-288, esp. 268,200 4. Str oum sa , The Greek and Jewish 2/ Ronnie G ol dst ei n 8í Guy G. Origins of Docctism: A New Propo sal , ZeitschrftfiirAntik.e s Chnsten tu m , v. 10, p. 423 -4 1, 2007. 27t G o ld ste in ; Strou m sa. Origins os Docetismo, p. 430.
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As pT tner as heresi as clássicas: eoion ism o d oce tism o. va.enti amsmo
que d ata po r volta do sécul o V a .C .277 A figura de H elen a d e Troia re presenta va u m desafio consid erável aos dram atu rgos da idade clássica, visto que ela precisava ser reconhecida como alguém que seria ao mes mo tem po valori zada e m enosprezada. Por um lado, e la er a um prêmio pelo qual um núm ero incontável de hom ens estavam disposto s a luta r e m or rer — a “face qu e lan ço u m il nav es”; 25" p o r ou tro lado, ela era um a adúltera e foi, por conseguinte, fonte e objeto de profunda vergonha. Alguns dramaturgos a retrataram como cruelmente má; outros, como complacentemente punida; e outros, ainda, como sujeita a forças além do seu controle. Ainda houve uma quarta abordagem, elaborada por autor es tão dive rsos e ilustr es qu an to E stesícoro ,.H eród oto e Eurípides. Um novo mito foi construído, deslocando a narrativa histórica mais severa: Contrariando Homero, a própria Helena jamais foi a Troia. Um espectro {eidolorí) tomou o seu lugar. Para aquel es q ue não a con hece m , val e a pe na rep etir a históri a. De acordo com Platão, o poeta Estesícoro perdeu sua visão como castigo por caluniar Helena num poema no qual ele então a acu so u de ter um com po rt am en to las ci vo. -51 Estesí coro arr epe nde u-se e escreveu uma segunda versão revisada de seu poema ( Palinodia ), segundo o qual Helena realmente não foi para Troia. Isso resolvia um p ro blem a teológic o — com o p ro teg er a virtud e da H e le n a, div in izada em lu gar es ond e el a já era obj eto de cul to , enqu anto o com po rtam ento dela em Troia causava tamanha ofensa e arruinava as reivindicações de divindade. Como Helena de Troia poderia ser adorada adora da como divina, se ela possuía uma reputação tão questionável? De acordo com Goldstein e Stroumsa:
271) V., esp.,Helen o fT ro y and H er Shameless Phanto m , de Norman AlJSTiN, Ithaca: CornelI Univ. Press, 1994. A obra tem tido signifi cati vo impacto sobr e como G oldstein e Srrousma desenvolveram sua tese. 2!!u Essa frase não data da era clás sica, mas encon tra-se no dram a de C hris top hc r Marlowe, Doutor Fausto , escrito por volta de 1600: Foi est a a fac e que lan çou m il n aves ao ma r / e queimou de Troia as altas torres f . Fedro 243 a-b. J:íl P latão
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—1(-I C-y-:.|
0 eido lon é sistem aticam ente usado na literatura g rega pa ra resol v e r prob lem as teológicos r elaci onados ao m ito e sua interpr etação. Esse dispositivo simples do duplo do herói resolve o problema de um comportamento desmerecedor por parte do
(normalmente divino)
herói, o u do destino in tole rá vel dele (ou del a), s em su pr im ir a histó ria m íti ca com pleta menter*1
Esse tipo dc enfoque era encontrado no início da heresia cristã? Pode-se tomar como exemplo para sugerir que grupos cristãos judeus poderiam ter sido tentados a associar a narr ativa da cru cificação de C risto à históri a de Ab raão e I saque (G n 22), na qual a m orte de Isaque exigida como sacrifício é evitada na última hora, quando é providen ciada um a vítima su bstitu ta.283 Iren eu de Lyo n relata q ue ess a vis ão não ortodoxa esteve em circulação e a atribui aos basilidianos.
\Jesus Cristo ] não so freu. E m vez. disso, cer to Sim ão de C irene fo i forçad o a carregar a cruz p o r ele, ef o i ele que m, in v o lu n ta ria m e n te e p o r acaso, f o i cruci ficado , sendo transfor ma do pelo out ro, dejo rm a que ele sepassou p o r Jesus .2SM
Essa é claramen te um a forma de docetis um a estrut ura gnósti ca.
mo , ori ginado dentro de
A influência dessa perspectiva dentro do gnosticismo provou ser considerável, como fica evidente do corpo da literatura recuperada de Nag Hammadi. Considere este excerto do manuscrito gnóstico do Segando tratado do gran de Sete , o qual traz um a expli cação alternativa crucif icaç ão de C risto, narrada em prim eira pes soa : 292 Gol dst ei n ; S troumsa . Origins of Docetismo, p. 429. 2K’v . Bound by the Bible: Jetus, Christians and the Sacrifice
da
ojhaac , de Edward KESSLER,
Cam bridge: Ca m bridge Univ . Pre ss, 2004. 29~ I reneu d e L y o n , Adversus haereses 1.26.4. Para uma análise, I reneu d e Ly o n , Advers m haereses 1.26.4. v., de D a n h ;]. W anke , Das Kre uz Chnsti bei, L y o n Irenaeus von (Berlin: de Gruyter, 2000, p. 75-82).
A í pri
m eir as h ce sa s cl ás si ca s: ebioc.nm
o, doc eti sm o, valent
iani sm o
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E u não sucum bi a e les como - plane jara m. M a s de mod o n enh um sof ri. Aq ueles que estavam realidade, mas em aparência.
lã me cast igar am. E eu não m orri na [...] Pois minha, morte, a qual eles
pensam te r aco ntec id o, \_aconteceu\ a eles em se u erro e ceguei ra, um a v e z que e les pre ga ram o hom em del es na m orte de les. Pois suas Enoias não me viram, pois estavam surdas e cegas. M a s, ao f a z e r ta is coisas, eles co ndenaram a sip róp rio s. S im , eles me v ira m ; el es me casti garam . F oi outr o, o p a i del es , que bebeu a bil e e o vinag re; não e u. Eles m e atin gira m com a lan ça; f o i outro, Sinião, que carregou a cruz nos ombros. Foi outro sobre quem eles colocaram a coroa de espinhos
.33'
Vemos aqui um a relutânci a esmerada em ad m it ir que Jes us de N azaré te n h a so frid o a in d ig n id a d e d a m o rte , esp ecialm en te um a morte tão humilhante. As tendências cristológicas docéticas, tão características desse tipo de gnosticismo, aqui conduzem a certo in trigante revisionismo histórico. Em vários pontos em nossa discussão, referimo-nos ao gnosticis mo sem explicar o que deve ser entendido por esse termo. Então, o que foi exatamente o gnosticismo? E por que teve um impacto tão gran de na igreja primitiva? Vamos começar a responder a essas perguntas, levando em con ta o c aso de Valenti no, um a fi gura im po rtante na l uta da igreja para definir o seu centro e seus limites.
JÍO Second Treatise of the Great Seth [Segundo tratado do grande Sctc] 55:16-35. V. tb., The Sujferi ng o f the Impassible Go d: The Dialect ics o f Patristíc T hought, dc Paul G aviu lyuk , Ox tord: O xford Univ. Pre ss, 2004, p . 80-83. Sobre outros textos gnóst icos que adotam postura similar, v. Suffering o f the Impa ssible God dc GaVRILYuk., p. 79-90. Essa escola “setiana” dc gnosticism o se diferencia de vários modo s do valentianism o. [
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Valentianismo: gnosticismo e cristianismo N o fin al d o sé culo I, a cid ade de R om a era o c entr o de um vasto im pério. A in d a que R o m a ten h a dom in ado grande parte do m un do de sua época, um a forma sut il de coloniali smo inve rso criou ra íze s. M ov im ento s religiosos que tinham suas srcens na Grécia, Palestina e além desses lugares começaram a ganhar seguidores em Roma. Naturalmente, um desses movimentos foi o cristianismo, que logo encontrou o seu cami nh o no centro do I m pério R om ano. A evi dênci a sug er e cl arame nte que a igreja para a qual o apóstolo Paulo escreveu era de fato um conjunto de congregaç ões individuais que se reun iam em cas as, em vez de se r um a ún ica igr eja rom ana. Nessa fa se, a igr eja r om ana possuía pouco do m odo das autoridades ou organizações centralizadas,--0sendo talvez mais bem comparada a clubes ou sociedades (a collegia) romanos seculares, ou a sinagogas judaicas. Em cada caso, as igrejas eram essencialmente asso ciaçõ es ind epe nd en tes sem ne nh um controle centrali zado. • ' O utras igre jas derivaram-se de outras reg iõe s do Im pé rio R om ano. Os mistérios eleusinos, que tiveram as suas srcens na Grécia, conquis taram muitos adeptos em Roma. Baseavam-se nos cultos a Demétrio e Perséfone, acreditando-se que, através desses cultos, os adoradores eram un idos aos deuses , receben do recom pensas n a vida futu ra.3'” Os mistérios mitraicos também passaram a surgir por volta desse tempo, m ostrando-se particularmen te popula res den tro do exér cito romano. As srcens dess e cult o e a iden tidade de sua figura central, M itra, pe rm an e cem incertos,’ss embora seja provável que ele represente uma adaptação local de um culto da Anatólia de um culto iraniano.
m Lam pe, Peter. From Paul t o Vale ntinus: Cb ristiam a tR om e m the First Tw o Centur ies. Minneapolis: Fortrcss Press, 2003, p. 301-345. Nesse texto, Lampe aborda o “fracionamento’’ da igreja romana. 387 T ri p o lit is , A ntonia. Religions o f the Hellemstic-R om an Age. Grand Rapids: Eerd m ans, 2002, p . 16-21. "R!! Para u m a explicação rec ente, v . “Ritu al, M vt h, D oc trin e, and In itia tio n in the M ysteries of M ithras: N ew Evidence from a Cult Vess el”, de R oger Yjf.CK, Jo ur na l o f Rom an Studies, v. 90, p. 145-180, 2000.
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A s pnm ei' c: S heresi as cl ás si cas : e b ion isn o . do ce ti sm o, va lentiarism
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N o entanto, a maior parte do interesse dos estudiosos centrou-se em uma tradição amplamente conhecida como gnosticismo (termo derivado da palavra grega gnosis: ‘conhecimento”). Se alguma tradição religiosa an tiga pode ecoar particularmente bem nos modismos sociais e religiosos na América do Norte de hoje, é o gnosticismo. O que sabemos das crenças gnósticas nos sugere que eías estão em sintonia com os ideais contemporâ neos de autodescoberta, autoconsciência, autoatualização e salvação do “eu”, sem mencionar uma antipatia a qualquer tipo de autoridade, especialmente a eclesiástica. A fascinação atual com o gnosticismo por parte de segmentos da intelectuali dade am ericana m od ern a revela m uito mais sobr e os an seios e aspirações culturais de no ssos dias do que desse m ov im en to religi oso.257 Com frequência, esses movimentos usam o termo em um sen tido lasso para designar uma ênfase ao lado espiritual da vida e uma preocupação em buscar a verdade nos recô n d ito s da n atureza h u m a na, em vez de se dizer o que está correto nas figuras de autoridade. Embora esses temas sejam, de fato, encontrados no gnosticismo, eles esti veram d e ta l mo do difund idos no fi nal da A ntigu idad e clás sica que não podem ser considerados diferentes do movimento. Há uma ne cessidade de precisão histórica sobre essa questão, em particular uma tentativa de e nten de r por que a igr eja passou a ver o gno sti cismo com o constituindo uma ameaça, em vez de — como o platonismo — vê-lo como um parceiro de diálogo possível. E ntã o, o que é es se gno sti cismo? ;T radicion alm ente, considerase que o movimento diz respeito àqueles grupos no Império Romano, especialmente nos séculos I e II, que afirmavam conhecer Deus por exp eriênc ia, não pe las do utrin as form ais.29QIsso cria a im pre ssão d e que 2S'5 V. a int er ess an te co letâ ne a de ensaio s em The AUurc o f Gnosticism: T he Gnostic
Expenence in Jungian Psychology and Gontemforary Culture, ed. Robert A. S egai ,, Chicago: Open Court, 1995. 2V" H an s Jon as, cuja influ ência na m od ern a inte rpr etaç ão desse mo vim ento foi decis iva, define a essência do gnosticismo como “certo dualismo, uma alienação entre o homem e o mundo”. Hans J onas , Hans. The Gnostic Religion: The Mes sage of the Ali en God and the Begmnings of Chnstia)iity. 3. ed. Boston: Beacon Press, 2001, p. 325. Uma po siçã o sim ilar é adota da cm Gnosis: The Nature and History of Gnosticism, de Kurt R udolph , San Fr anc isco: Har per & Row, 1983.
o gnosticismo é um movimento bem definido, com um conjunto bem form ado de cr ença s. N a verd ade, essa tradiç ão religiosa tem revelado se r algo com o uma igreja ampla — tão ampla, de fato, que muitos estão questionando se ela pode ser realmente considerada uma escola bem definida de pen samento com alguma identidade específica.2-1Há um crescente consen so de que o term o “gn osticism o” seja equivocad o, um a vez que ele reún e vári os grupos bastan te d iscrepantes e os apresenta com o se representam um ún ico sistema de cr ença reli giosa. Ex ist e cada vez mais simp atia pela visão de que a ideia de gnosticismo como uma entidade coerente é em gra nd e parte invençã o dos estud iosos m od erno s da religião,2 "’ que foram influenciado s, t alvez de form a ind evida, pel os antigos escrit ores cris tãos, como Ireneu de Lvon, que tinh am as próprias ra zões para querer retratar o movimento como um grupo homogêneo — um império do mal que repre sen tava u m a am eaça real à inc ipie nte igreja cristã .2"’ Existe agora um claro consenso de que é m uito dif íci l usar a categ o ria do gno sticismo de algu m m od o significat ivo.29’ Se gu nd o K aren King, “A variedade de fenô m enos class ificados como ‘gnó sti cos’ simplesm ente não dá apoio para uma definição única, monolítica, e, de fato, nenhum dos principais do cu m en tos est abelece um a definição tipológ ica pad rão”. 2'’ Então, devemos desistir de usar os termos “gnosticismo” e “gnóstico”? N ão. Ele s apenas devem ser usa dos com cautela. U m bom exemplo disso V., csp.; Reih in km g ''Gnosticism”: A n A rg um etttfo r Dism anfltn ga Dubtous Category, de p. 43-44. Há tambem Michael A. W il l i a ms , Princeton: Princeton Univ. Press, 1996, um a dis cussão um tanto útil c m Gnosticism, Judaism , andE gyptian C hris tumit y , de B irge r A. P earson , Menneapolis: Fortress Press, 1990. 272 Para uma discussão detalhada, v. “Categorical Designations and Methodological Reductionism: Gnosticism as Case Studv”, M eth od andTbeory ir, the Study ofReH^ions, de Phillip A . T i t e , v . 13, p. 269-292, 2001. 29> V., p. ex., s,as2003. conclusões em What Is Gnosticism ? de Karen L. Kjng, Cambridge: Belkna p Pres m King, What Is Gnosticism?: ‘‘Porque o problema central é a reitieaçâo de uma entidade retórica (heresia) num fenômeno por si mesmo real (gnosticismo), toda a questão da srcem é um não assunto, cuja suposta urgência surge apenas por causa de sua função retóric a no discurso da or todo xia e her esia’’ ( p. 190). J'r' Ibidem , p. 224.
As p rm a -s s her esias clássicas- cb ion írrio . docetismo, va lero an isno
c o uso que se faz deles para se referir a uma família de doutrinas e mitos rel igi osos que flor escer am no final da A ntigu idad e e que s ustenta ou p res supõe duas coisas: 1) que o cosmo resulta da atividade de um criador mau ou ignorante; c 2) que a salvação é um processo durante o qual os crentes tomam conhecimento da sua srcem divina, de forma que podem voltar ao reino da luz depois de terem sido libertados das limitações do mundo físico em geral e do co rpo h um an o em parti cular . Tendo em mente essas advertências, voltemos às visões de Valentino, amplamente referido como o iniciador de uma forma de cristianismo gnóstico. Já temos informação suficiente para podermos dar uma explicação razoavelmente completa de suas ideias e avaliar a sua im po rtânc ia.296 Sup õe-se que Valentino ten ha cheg ado a Rom a por volta do ano 135 . E dif íci l determ ina r com preci são sua história anteri or. Tradicionalmente, ele é retratado como srcinário do Egito, tendo nascido nos arredores do Delta do Nilo e educado em Alexandria. (W alter Ba uer suger iu de mo do signif icat ivo que A lexand ria er a o p rin cipal centro do gn ostici sm o d aqu ela época. ) O s discí pulos de Valenti no afirmavam que ele tinha sido educado porTeudas, um pupilo do após tolo Pa ulo, de q uem ele extraiu os se us “ensinos secretos”. ' T am bé m presente em R om a nessa época estava o te ólo go cristã o Ju stino M ártir, que cond eno u as ide ia s de Valent ino. N o entanto, Justino não ti nh a n e nh um a posição ofi cial dentro da igr eja r om ana e parece ter exis tido à sua m argem , tend o na época u m a infl uênc ia lim itada.2 ’7 Embora a maioria das narrativas populares da vida de Valentino em g eral rel ate que ele foi co nd en ad o pe la i grej a de R om a, não exist e, na verdade, ne nh um a evidênci a hist órica dc que algum a figura de au torida de de ntro da i grej a rom an a o ten h a c on de nad o e a seu s ensin am ento s.-9íi ~'JhSeguindo Valen tmm G nosti ais? Untersuchmgen zu r vakntiiuanischen Gnosis m tt finem Konim enlar zn deu Fragmente» Vilen fins , dc C hr is to ph MAUKSCH1ES, Tübi ng en : Mohr, 1992, adoto a perspectiva dc que Valentino não detendeu algumas das doutrinas que eram características dos valentinianos posteriores. J I.A.MPE.From Paul to Valentinus, p. 376, 390-393. *** Cf. indicado em ‘‘Orthodoxy and Heresy in Second-Centurv Rome’’, dc Einat T iioma sskn , H arva rd Theological Re-vie-io, v. 97, p. 241-256, 2004.
Isso tem levado alguns a sugerirem que Valentino permaneceu ativo na igreja de Roma e outros a especular que as estruturas disciplinares da igreja romana eram mais herméticas na segunda metade do século II. C o n tu d o , quais são as i deias fun da m en tais do vale ntian ism o? 291' N ão está claro até que p on to as dou trin as cara cte rísticas do vale ntia nis m o po de m ser atri buídas ao próp rio Valenti no, uma vez que pel o m enos algumas dessas ideias foram desenvolvidas pelos seus seguidores após sua morte. A maneira mais tranqüila de compreender o valentianismo é vê-lo com o srcinário do interior do cris tianismo, ainda que in terp re tando ou desenvolvendo ideias de essência cristã de um modo gnóstico — especia lm ente em rela ção à im perfe iç ão da m atéria e à condiç ão de subordinação ao Deus criador. Acredita-se que o próprio Valentino te nha deparado com os ensinos de Basílides, um mestre alexandrino que afi rmava que o D eus, cri ador judeu , não era o mesm o D eus descobert o por Jesu s de N azaré. C o n fo rm e os seguid ore s de Basílid es costu m avam dizer, os cren tes n ão e ram “m ais judeus, m as a ind a nã o e ram cristão s”.300 A diversificação do valentianismo deve-se em parte à multi p licid ad e de seus in té rp re te s e à sua expansão geográfic a. E m geral, considera-se que os maiores intérpretes de Valentino são Ptolomeu, Teódoto e Heracleão. Contudo, tanto as primeiras fontes cristãs quanto a crítica moderna expressaram dúvidas sobre se Heracleão rea lm en te foi um rep res en tan te do v ale n tian ism o .5111Além do m ais, as prim e iras fo n te s d o cu m e n ta is fazem re íe rê n c ia a duas “escolas” d e n tro do va len tianism o: u m a fu n d ad a n a Itália e a ou tra, no “leste ”.3''Interessante notar que os textos descobertos em Nag Hammadi, em 1945, incluem vários textos valentinianos, junto com documen tos que representam outra forma de gnosticismo que é geralmente 2,9 O estudo mais detalhado ate hoje é a obra The Sp iritu al Se ed: The Church o f the "Vilen/inians", de Einar Thomassen, Leiden: Brill, 2008. m Irene u de Lyox. Adversus haeresis 1.24.6. 'm KOvler Mich ael; Bu ssière s, M arie-P ierre. Was Hc racleon a Valentí nian? A N ew Lo ok at Old Sources, Harv ard TheologicalRemesv, v. 99, p. 275 -28 9, 200 6. ’02 jo el K aev esm aki, Ita lian Vers us E aste rn V alentinianism ?, Vigiiiae Christianae, v. 62, p. 79-89, 2008.
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A r primeiras
here si as cáss icas: eb ionism o. do cetism o, va.enti a-i ismo
conh ecida po r gn ostici sm o “s etiano”.3 0’ M as, apesar dess as d ifi cu l dades, é possível traçar um panorama geral do sistema valentiniano, embora reconhecendo a existência de variações dentro da escola. O va lentianism o usou o t erm o “ple n itud e” (gr ,,ple rom a) para se referir ao lugar de habitação do verdadeiro Deus, o Pai do Universo, b em com o ao g ran d e n ú m ero de se re s ete rn o s que viv ia m em p e rfeita harmonia uns com os outros. Essa harmonia cósmica foi destruí da por um dos seres eternos, Sabedoria (gr., sophia), que não estava p re p a ra d o p ara se c o n te n ta r com a p ró p ria posiç ão, m as desejou imitar o Pai do Universo e criar algo por si mesmo. Essa tentativa fracassada de criar, por parte da Sabedoria, resultou no demiurgo (do term o grego demiurgos', “artesão”), que foi expulso do reino divi no e em seguida tentou criar mundos por si mesmo. Essa ideia de um deus criador inferior, o demiurgo, é encon trada na filosofia grega clássica e desempenha um papel importante no diálogo Timeu, de Platão. D e m odo geral, o gno sti cismo afi rmava que o demiurgo criou o mundo físico sem nenhum conhecimento do “verdadeiro Deus”, acreditando falsamente que ele era o único D eus. U m a ve z que o demiurgo agi u igno rando o verdadeir o D eus, a sua criação tinha de ser considerada imperfeita ou mesmo maligna. O gnosticismo propôs, dessa forma, uma dicotomia entre o mun do visível da experiência e o mundo espiritual do verdadeiro Deus. O gn ostici sm o setiano, que m ostra pouca infl uência crist ã, e é co nsi derado, em grande m edida, c om o deri vado do judaísmo , adotou um a visão fortemente negativa do deus criador, muitas vezes referido pelo nome semita Yaldabaoth e, às vez es, co m o “o tolo ” ou “ o d eu s c eg o”. Yaldabaoth é ti picam ente ap resent ado, em ter m os d em oníacos, como líder de outros seres espirituais e como o inimigo da humanidade. Para o gnosticismo setiano, Yaldabaoth era atormentado pelo desejo se xual, le v a n d o -o a v io len tar E va e a g erar dois filhos,
'll' A esse respe ito , v. Sethian Gnosticism a nd the Plalomc Fradition, de Jo hn D. Tuii NKR, Louvain: Peeters, 2001.
Caim e Abel. Sete é o próprio filho de Adão, e assim será visto com o um pro tótipo da "hu m an idad e esp iri tual”. 311'' E m com paração, o valentiniasmo interpretou o demiurgo em termos mais positivos do que em muitos sistemas gnósticos, afirmando que o demiurgo foi o m ediado r da Sab edoria na cr ia ção do m undo . : Q ual, porém , é o lugar d a hum anidad e d entro des sa ordem cri a da? Embora o corpo humano tenha sido criado pelo demiurgo, ele contém um espírito divino que lhe permite estabelecer uma conexão com o Deus supremo. Por essa razão, os seres humanos podem ser considerados superiores ao seu criador.'A “centelha" divina dentro da hu m anida de possui um insti nto de r etorno, um des ej o de se li bertar do corpo e alcançar o seu verdadeiro destino. O objetivo do corpo criado pelo dem iu rg o é fu n cio n ar com o um a pris ão e levar a h u m a n id a d e a reprimir ou esquecer o espírito divino em seu interior. A expressão grega soma sema (“o corpo é uma tumba”) incorpora bem essa noção. Mas essa centelha pode ser despertada se e quando um mensageiro divino desperta o indivíduo do seu sonho de esquecimento, permitin do-lhe, desse modo, iluminar a humanidade por meio desse conheci mento esotérico e se religar às suas srcens divinas. i
Para o valentianism o, C risto é ess a figura red en tora que des
p e rta a centelha divin a d en tr o da h u m an id a d e , p erm itin d o que ela encontre o caminho de volta ao verdadeiro lar. Para salvar aqueles que se tornaram prisioneiros do corpo, o salvador “deixa-se ser concebido e se dei xou na scer com o um a criança com co rpo e alma”/’ 05 T eó do to afirmava que o salvador, ou Logos, veio do plerom a para o mundo vi sível, onde ele assumiu uma “carne espiritual” para permitir que os elementos espirituais nos seres humanos terrenos voltassem a se unir às suas orig en s d iv in as. '11"
Sobre isso, v. “The Figure of Scth in Gnostic Litcrature”. de B irger A. P earson . In: Laytox, Bcntley (Org.). The Redisco-very o f Gnosticism. Leiden: Brill, 1980, p. 472-504. Essa citação foi extraída do texto valentiniano The Tripartite Tractate; p a ra u m co m entário , v. Spiritual Seed, de T homasskn , p. 50. Ibidem , p . 28-30 .
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As prime iras heresi as clássicas: ebion ismo, □ ocetisrric, valentianismo
Então, por que a igreja rejeitou essa visão? Por que sentiu que o valcntianismo lhe constituía uma ameaça? Um caminho simples para entender a rejeição da igreja ao valentianismo é que este era visto como um a tentativa, de fat o mas n ão na intenção , de subverter a igr eja a pa rtir de dentro dela. A polêmica de Ireneu de Lyon contra Valentino revela quão semelhantes eram as ideias dele e aquelas da igreja popular: os valentinianos e os adeptos da igreja popular freqüentavam as mesmas reuniões, usavam o mesmo vocabulário, liam e respeitavam as mesmas escrituras e tom av am pa rte nos m esm os ritos sacra m en tais.107 A dife rença está em como isso tudo era interpretado. O uso que Valentino fazia dos li vro s do N T é consisten te com a vis ão da m aioria da críti ca contemporânea, isto é, que o valentianismo teve sua srcem dentro da matriz da ortodoxia cristã numa época em que o cânon estava em pro cesso de sedimentação.ilK Está claro que Valentino acreditava estar enriquecendo o cristia nismo ao usar ideias gnósticas tanto como um meio de aprofundar o seu apelo na cultura de sua época quanto para dar-lhe mais profun didade intelectual. Não foram poucos os valentinianos que pensavam em si mesmos como representantes de uma versão mais profunda, mais espiri tual do cris tianismo. M as outros viam iss o com o o equivalente à conversã o do cristi anism o no gn osti cismo. E m vez de to m ar o crist ia nismo congênere aos gnósticos, alcançou-se um resultado precisamente oposto. A exegese bíblica valentiniana parecia envolver a imposição dos sentidos gnósticos sobre as palavras cristãs. Valentino propôs uma ver são do gnosticismo que parecia altamente adaptada às sensibilidades cri stãs, especialmen te quand o c om parad a com a sua con traparte seti ana. C on tudo , ainda er a um a f orma de gnost ici smo. endo a Valenti no e se u Todo círculoo,trabalho Ireneu dede salvação, Lyon argu m en tou em.Resp favorond da “economia da salvação”. desde a criação até sua consumação final, foi realizado por um mesmo -10' V. análi se feita em “O rth od ox v and I Ieresv: W alt er Ba uer an d th e V alen tinian s”, po r Jame s F. M cC ue, Vigiliae Chmttanae, v. 33, p. 118-130,1979. 5,l!'M c C u e . “O rth od ox v and I Ieresv” , p. 1 22-123.
e único D eu s.309 O D eus criador não f oi nen hu m dem iurgo, nem foi o redentor ou um simples emissário dos reinos celestiais. Ireneu destaca a imp ortância da do utrina da Trind ade que es ta va sur gindo com o, por um lado, um modo de articular a continuidade divina ao longo da história do m und o, e , por o utro l ado, como um a salva guar da da unidad e essen cial da Bíblia. A matéria não é intrinsecamente má; ela é a boa criação de Deus. Ela decaiu, mas pode ser restaurada e renovada. Para Ireneu, a doutrina da encarnação e o uso cristão dos sacramentos representam negações explícitas de qualquer noção gnóstica de uma matéria intrin secamente má. Então Deus não escolheu se tornar carne unindo-se à natureza h um ana? A igr eja não usa água , vinho e pão com o símbolos da graça e prese nça div ina s? A preocupação de Ireneu nesse momento era estabelecer uma clara distância entre a igreja e suas alternativas gnósticas. Mas pa rece que para Ireneu sublinhar as diferenças de substância era uma preocupação p ro fu n d a sobre as questõ es de m éto d o — so bretud o , a interpretação da Bíbl ia. Ao reflet ir sobre a i nterpretaç ão que V alent ino fizera dos textos sagrados, Ireneu parece ter chegado à conclusão de que os gnósticos tinham se apropriado dos documentos fundadores do cristianismo e interpretado os seus aspectos centrais de um modo gnóstico. Na visão de Ireneu, o resultado foi que Valentino transfor mou o cristianismo em gnosticismo. A resposta de Ireneu a esse desenvolvimento é considerada amplamente um marco no início do pensamento cristão.'Os hereges, ele afirmou, interpretaram a Bíblia de acordo com o próprio gosto. Os crentes ortodoxos, em contraste, interpretaram a Bíblia de um m odo que os se us autor es apostóli cos teriam aprovado. ' O que, po r meio da igreja, fora herdado dos apóstolos não eram apenas os textos bíb licos cm si m esm os, m as o m o d o pelo qual aquele s crente s liam e entendiam esses textos. 1JI'J Sobre a im po rtâ nc ia d a inte rpre taçã o bíblica de Ir ene u so bre esse assunto, v . La théologie
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As primeT& s heresias
cláss ic as: eb ion ism o, co cc tism o, vaícnt iar nsrryo
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Todo aquele q ue dese ja con hecer a verda de d eve considerar a tradição apostólica que foi revelada em cada igreja no mundo todo. Podemos en um era r qu em são os bispos designad os pelo s apóstolos, e os sem su cessores nas igrejas a té os dias de ho je, que en sina ram e na da sa bia m das coi sas que ess aspessoas im agin am [...]. Os apóstolos , como deve ria ser, depositaram essa verdade em toda a sua plenitude neste depósito , deforma que todos que desejarem podem beber dessa água da vida. Essa é a p o rt a da -vida; todos os outros sã o ladrõe s e usurpadores é""
A intenção de Ireneu é que um fluxo contínuo de ensino, vida e interpretação cristãos pudesse ser seguido desde o tempo dos apóstolos até a sua época. A igreja é capaz de apontar aqueles que mantiveram o ensino nela desenvolvido, e certos padrões públicos de credos que preparavam as linh as prin cip ais da crença cristã. A tradição é, assim, a responsável pela fidelidade ao ensino apostólico srcinal, uma proteção contra as inovações e adulterações dos textos bíbli cos por parte dos gnósticos. O N T representa o ensi no dos apóstolos, que deve ser interpretado como os apóstolos desejaram. A igreja, Irene u insis tia, r esguardava a o m esm o tem po o text o e a in terpretação, ambos para as gerações futuras. Esseeledesenvol vimento é depassando importância fundamental, na medida em que está na base do aparecim ento dos credos — declarações públicas e autorizadas dos pontos básicos da fé cristã. Esse ponto foi mais desenvolvido no iní cio do sécul o V po r Vicente de Le rins, es tava preocu pad o co m o fato de cer tas inovaç ões doutrinais estarem sendo introduzida s sem um a boa razão. Havia uma necessidade de existir padrões públicos pelos quais tais dou tri nas pud essem ser jul gadas . 310 V. a discussão completa cm A d versw haereses 2.2.1 — 4.1, dc Irkxeu de Lyon. Partes dessa discussão são reproduzidas aqui. Para uma discussão mais completa dos tópicos, v. os seguintes estudos clássicos: Tradition und Sukzession: Studien zuni Nonnbegrijfdes A postohschen von Paulus bis Irenaeui , de Georg Günter Bl.UM, Berlin: Lutherisches Vcrlagshaus, 1963; Offenbarung, Gnosis u nd gno stischer M ytho s bei Irenàus von Lyon: Z ur Chara ktenstik der Systeme, de No rbert B rox, Sal zbu rg : Puster Verlag, 1966."
■ C on tud o, o que é particularme nte interes sante sob re o a pel o de Irineu à tradição apostólica c a sua clara percepção de que a ortodoxia é cronologicamen te an teri or à her esi a. O valenti anismo é entendido como um evento recente, cuja própria novidade suscita claramente questões sobr e a sua provcniênc ia e integridade . U m argu m ento sem elhan te sob re a prioridade temporal da ortodoxia também pode ser encontrado nos text os de C lem en te de Ro m a, Inácio de A ntioq uia e Jus tino M á rtir.5 11Já observam os as dií iculdades que is so imp õe à interpretaçã o h istóri ca que W alter B auer faz d as ori gens da heres ia. Já mostramos que os últimos seguidores do escritor gnóstico Basílides afirmaram que os chamados cristãos não eram “mais judeus, m as ainda não eram c ristãos”.’ 12Vemo s aqui um a noç ão gnó stica de um a trajetória longe do judaísmo e rumo a uma forma de cristianismo mais puro . Para os seus críticos gnósticos, a igreja havia esta gnado ao lo ngo desse caminho, e ainda estava mais perto do judaísmo do que deveria estar. Na próxima parte, vamos verificar o movimento mais famoso na igreja primitiva, que procurou dissociar totalmente o cristianismo de suas raízes judaicas — o marcíonismo.
Marcionismo: o judaí smo e o evang elho Q ua l é a rel ação do crist ianismo com o judaísm o? O m odelo que predom inava no cri st ianis m o primiti vo er a o d o cu m prim ento das expectativas que pagãos e judeus tinham quanto a Cristo. Escritores com o Justino M á rtir foram firmes q ua nto à r azão de a história de Jesus de Nazaré não poder ser contada de forma isolada. Para enten der a identidade e o significado de Jesus era necessário narrar outras histórias e examinar a maneira com que elas se entrelaçavam e se re lacionavam. Uma dessas histórias diz respeito à criação do mundo por -’-1 V. os pontos levantados cm “ Irrtu m and Hàresic. 1 Ciem. — Ignatius von A ntiochien — Ju stin us’’, de A delbert D-w ms, Kairos, v. 15, p. 165-187, 1973. ,1? Ire n eu de L yon . Adversus haeresis 1.24.6.
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A õ nri me.- 'as ner ssi as d á iS !^ : eb rjm sm o. cociet ^rno. valer
ilia rnsi
Deus; outra trata do chamado de Deus a Israel; uma terceira aborda a antiga busca humana por sentido e significado. Para Justino Mártir, a história de Jesus entrecruza todas as três e, no fim, determina o seu cumprimento. Jesus é o foco pelo qual todas as outras histórias serão vistas e pa ra o qua l tod as elas con ve rgem de form a cabal e decisiva. 1 1 Esse tema fascinou os teólogos ao longo da história cristã, espe cialmente aqueles da igreja de língua grega dos primeiros cinco séculos. A grande cidade egípcia de Alexandria era notável por sua sofisticação filosófica.3 1" Vá rias esc olas de pen sa m en to, toda s fu nd am en tan d o suas ideias no grande filósofo clássico Platão, defendiam a existência de um mundo ideal existindo além do mundo das aparências. Mas como esse reino sombrio e esquivo poderia ser conhecido? Ou, dc maneira mais intrigante, como poderia ser adentrado ? Uma importância cada vez m aior pass ou a ser dad a à ideia do Logos — um termo grego mais bem traduzido por “palavra”, em referência a um mediador entre esses dois mundos muito diferentes, mas aparentemente interligados. Como esse vão poderia ser transposto? Quem poderia trazer o reino ideal para o mundo cotidiano? Ou levar as pessoas da ordem das coisas que então rei nava para o m un do ideal que s e enc ontrava além dela? Alexandria também foi lar de uma população judaica extre mamente culta, ciente da importância das questões levantadas pela filosofia grega, mas fiel ao próprio modo de ver o mundo. Para esses escritores, a ” L e i” — a Torá — era de importância fundamental. A Lei representava a vontade de Deus, o padrão de vida mais eleva do e o verdadeiro objetivo da natureza humana. No entanto, alguns dentro do judaísmo afirmavam que a Lei não representava o estado definitivo das coisas. Era uma medida intermediária, uma parada a caminho de alguma coisa ainda melhor. Eles esperavam pelo cum p rim e n to da L e i — pelo ápic e das esperan ças de Israel no u n g id o ,n V. "Logos Spcmiatikos: Christianitv and Ancient Philosophy According to St. Justiiís Apologies”, dc Ragncr Hoi.TE, Stiuiia Theologica, v. 12, p. 109-168,1958. 14 V. o es tu do clássico The Ch rLtian Plato nists of Alexa ndria, de Charles BlCC, Hildeshcim: G. Ülms, 1981.
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de Deus, o Messias. Um novo profeta era esperado, um que seria como Moisés e conheceria Deus face a face. Esperava-se um novo rei que restabeleceria a fortuna de Davi, o grande monarca de Israel. Um novo sacerdote viria, na linha de Arão, e finalmente purgaria a culpa de seu povo. Os primeiros escritores cristãos proclamavam que as expectativas de muitas eras tinham sido cumpridas com a vinda de Cristo, que trouxe à perfeição e à consumação as grandes aspirações da aparentemente infinita busca humana pela verdade. A filosofia grega e a Le i de Is rael foram igu alm ente c um pridas e transcend idas nes se úni co indivíduo: Jesus de Nazaré. A sabedoria humana e a promessa divina conver gir am.- '55 H av ia um a c on tinuidad e fun dam en tal entre as vel has e as novas crenças, com a igreja como o novo Israel. Essa ideia emergiu gradualmente como dominante dentro da igreja do final do século I e início do século II, Em suas cartas, Paulo afirmav a a i nsp iração divin a de seus “ esc ritos” ou “escritu ras ” — no sentido da Bíblia hebraica — e reconheceu a sua importância para a orie nta çã o m ora l den tro da igreja .’'11’E le rep rese nta va Jesu s de N az aré como cumprindo a Torã. Mais tarde, outros escritores começaram a desenvolver métodos para aprofundar essa compreensão da relação de Jesus de Nazaré com a história de Israel. Um excelente exem p lo dessa p ersp ectiv a é e n c o n tra d o na ideia do tipo — um evento ou pessoa que são entendidos como antecipando algum aspecto do N T , esp ecialm en te Jesus de N a z a ré .317 O u tro exem plo e n c o n tra -se em Justi no M ártir (100 -165), que interpre tou a históri a da ser pente de bronze (Nm 21.4-9) como um tipo de Cristo. Como a intenção de Deus não poderia ser a de que Moisés contruísse um ídolo, a serpente deve ter tido outro significado mais profundo. Pelo fato Sobre alguns aspectos desses temas, v. Revelation andMysterx inA ná en tJudai sm and Patdine Cbnsliamt\\ de Markus N. A. Bockmukhl, Tübingen: Mohr, 1990; “Xaturai Theology and Bíblical Tradition: The Case of Hellenistic Judaism". de John Joseph Comxs, CathohcBíblical Quarterly, v. 60, p. 1-15, 1998. '16 O bse rve esp. 2T im ót co 3.16,17. V. Essayson Typo/ogy, L a mp e , G. W . H ; W oolcombf ., K. J. (Ed.), London: SCM Press, 1957.
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de uma serpente em uma haste poder apresentar a forma de uma cr uz, Justino argum enta que a ser pente de bronze er a um sí m bolo ou “tipo” da derrota futura do Diabo pela cruz.íls Contudo, nem todos compartilharam essa visão. Alguns afirma ram que o pr ogress o de cri sti anism o foi i m ped ido pela su a conexã o com o jud aísm o e que a igr eja deveria co rtar todo s os la ços com a rel igião mais antiga-. Essa visão teve sua expressão clássica nos escritos de Marcião de Sinope, que morreu por volta de 160. Sabe-se relativamente pouco so bre ele. E le era orig inário de Sin ope, no Ponto , A sia M enor. A credita-se que s e ten ha m ud ado pa ra Rom a no iní cio dos an os 130, ond e parece ter estabelecido um negócio de navegação, tornando-se rico. Em sua che gada a Roma, talvez para assegurar a sua aceitação pela igreja romana, após t er ti do, ao que par ece, um passado um pou co q uesti onável na Asia Menor, Marcião fez à igreja romana uma doação bastante considerá vel — 200 mil sestércios — em sua chegada. De início, aparentemente Marcião foi aceito pela igreja romana. Mas, ao fracassar em persuadir a igreja a adotar suas visões radicais sobre o judaísmo, rompeu os laços e esta belece u a pró pria com unidad e religi osa alter nati va. O argum ento fund am ental de M arcião é que o “Senh or” do AT não era o mesm o do N T . Justino M ár tir ass im resum iu as visões de M arci ão:
M arcião , um homem do Ponto, tão vivo quanto antes
, ensinou
aqueles que acreditaram nele a honrar um deus diferente, maior que o criador: e esse homem motivou
, com a ajuda desses demônios,
m uit as pessoas de ca da nação a pr ofe rir blasfêmias, que fe z est e U niverso ep rofessando que outro
negand o o Deu s
, um m aior que e le, fez
coisas m aio res .r'l“
•, :s M á rt ir, Ju stino . Diálogo com Trifâo 94. Para um exame detalhado, v.
Truth, Canon, and Interpretation: Studies in Justin Martyrs Dialogue with Trypho, Craig D. A l i .h k t , Leiden: Brill, 2002. ,19J us t i no M A k t Apologia 1.26.
Revelation, dc
I
1
H m _v:
Para Marcião, o Deus do AT deveria ser visto como inferior, até mesmo defeituoso, à luz da concepção cristã de Deus. Não haveria ne nhuma relação, qualquer que fosse, entre essas divindades. . Ma rcião propôs que Jes us não tinh a ne nh um a rel ação dir eta com o deus criador judaico e que não devia ser considerado o “Messias” en viado por esse Deus judaico. Ao contrário, Jesus era o enviado de um Deus até então desconhecido, estranho, caracterizado pelo amor, não pelo ciú m e e a agre ssiv id ade.’'-'1Ireneu de Lyon descre ve M arcião com o tendo declarado que o Deus judaico é o criador de coisas malignas, e se regozi ja com as guerras , é incon stante, e s e com po rta de m aneira inco e re n te .’21Te rtulia no nos d iz que ele propô s dois deu ses “de graus diferen tes: um, o juiz duro e belicoso; o outro, gentil gentil e moderado, afável e suprem am ente b om ”.522 O deus criador da Bíbli a era um a divindade ju daic a que re presenta va a com ple ta antíte se do D eus m uito dif erente que enviou Jesus — uma visão desenvolvida com alguns detalhes por Marcião em em suas Antítese s , que hoje estão perdidas. Como Robin Lane Fox comenta:
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cria dor ; \M a rciã o \ afirm ou, era um ser in com pete nte : p o r qu e
outro motivo ele teria afligido as mulheres com as agonias do p a rto ? "D eu s" no A T era u m “bárbaro em penh ado "que favoreceu ba nd ido s e terro ristas como o rei cie Israel, D a v i. Cristo, em co m para ção, era a n o va e s eparada reve la çã o de u m D eus to ta lm e n te m ais ele vado. Á do utri na de M arcião era a de claração mais e xtre ma da renovaçã o da f é cristã.'1 '
F-ssc terna c explorado com mais profundidade por Ekkchard Alühlenberg cm M O iil íínbk r g . In: W ínsi .o w , D. (Org.). “M arcions Jc alous G o d \ de Ekkehard Disciplina Nostra: Essavs n: M em cry o f Robert F. Evans. Cambridge: Philadelphia Patristic Found ation, p . 93-113. •;;; Irf,NT.V L \O S. dversus haereses 1.25.1. TKRTUI.IANO.Adversas M am onem 1.6. ■' Fox. Robin Lane. Pagans and Christians in the Medherratiean World frorn the Second Cen/nry a.D. to the Conve rsion o f Con stantim . L.ondon: Penguin. 1988, p. 332.
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Ab pnrreiras
here sias dás sicas: ebio nísrro. ac ce tisrro , valenti amsm c
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A estr idência do tom antij udaico da teologia de M arc ião 5’4 suge re que em sua hostilidade ao AT estavam envolvidas questões mais pro fundas do que a teologia. Ex istem possí vei s conexões entre M arcião e o gnostici smo, ev iden te especialmente na avaliação fortemente negativa que Marcião tinha do m un do e daqu ele que o crio u.5- ' M arci ão con si derava o mu nd o material com grande desgosto e não tinha tempo para a ideia dc que o redentor do mundo deveria ser contaminado pela carne humana. M arcião estava incli nad o a um a crist ologia doc éti ca que dep reci ava o la do históri co e hu m ano de Jes us de Nazaré. N aturalm en te, m ini m izar ou negar a hu m anida de de Jes us correspondia a subesti m ar ou neg ar a sua juda icidad e. ' M arcião, porém , não se conten tava em afirmar a difer ença radical entre o deus dos jude us e o Deu s de Jesus de Nazaré. G ran de p arte dos docum entos que foram am plam ente acei tos como autori zados pel os cri stãos pri m itivos — os quai s seri am d epois can onica m ente com pil ados como o N T — faziam amp la r ef er ênci a às Escrit uras jud aica s.' M arciã o desenvolveu a própria coletânea de documentos autorizados, que excluía obras consideradas por ele como contaminadas por ideias e associações judaicas.'Desnecessário dizer, o cânon bíblico de Marcião excl uía po r com pleto o A T. Ele consisti a simplesm ente em dez das car tas de Paulo, junto com o Evangelho de Lucas. Além disso, Marcião pre cisou editar até m esm o essas obras para re m over in fluência s contam inad oras que sugeri am a exis tênci a de alguma conexão entre Jesus e o Deus judaico. Marcião excluiu, assim, da sua versão do Evangelho de Lucas, as narrativas da proclamação e a natividade; o batismo de Cristo, a tentação e a genealogia; além de todas as referências a Belém e ’’-4W i l son , Stcphcn G. Mardon and Christinnity.v. 2. Separaf ion and Polemic. p. 45-58. R -usànkn, H cik ki. M arc io n Temcao^v. 33, p. 121-135, 1997. •*2’ Pa ra um a per spe ctiv a alter na tiva Creati on” , de Andrcw M cG ow ax, p. 2 9 5 -3 1 1 ,2 0 0 1 .
I n : ______ , A ntt -Judam n in Farly W aterloo: W ilfred Lau rier Un iv. Press, 1986, and the Origins of Christian. Anti-Judaism, the Jews.
a esse r espe ito, v. “M ar ci on ’s Lo vc ot Journal of Eur ly C bnsltan Studtes, v. 9,
N az a ré .121' A s cartas de Paulo tam b ém exig iram alg um tr abalh o editoria l para rem over as suas associações com o ju daísmo.*-7 Assim, Marcião considerava-sc no direito de mudar os conteúdos da Bíblia? Ireneu certamente pensou a respeito e reclamou amargamente da p resu nç ão de M arc ião de o usa r “m utila r ab er tam en te as Es critu ras”. ’211 Tertuliano reclamava da alteração que Valentino fazia das Escrituras de vido a uma exposição danosa, e de Marcião, pela emenda textual. Um usava o sofi sma, e o outro, u m a faca.3-' A evidência sugere qu e M arcião nã o via o seu trabalh o editorial dessa perspectiva, ado tan do a vis ão de que o Evangelho de Lucas já tinha sido tratado por simpatizantes judeus, que também haviam alterado as epístolas de Paulo. Marcião se via, portanto, como eliminando as adições contaminadoras, restabelecendo os textos à sua condição srcinal. Para evitar mal-entendidos, Marcião parece tam bém ter acrescenta do “prólo gos” às epísto las, refo rç ando a su a m ensagem antijudaica. Por exemplo, uma atitude extremamente antagônica ao AT é facil m ente discernida em se u prólogo à cart a de Pau lo a T ito : “[Paul o] ad verte e i nstru i T ito em relação à con stit uição d o sacerdócio e à conversação espiritual, e sobre os hereges que acreditam nas escrituras judaicas e que devem ser evitados \et hereticis vitanáis qui m scriptuns Iudaicis credunt],\ ':"> En tão, por que a per spect iva de M arcião repres entava tanta a m e aça à igreja? De forma muito clara, ela tentava negar as raízes do cris tianismo no judaísmo e, acima de tudo, a linhagem judaica de Jesus de N azaré. A extirparç ão da genealo gia no E vangelh o de Lucas, feita por H e a d , Peter M. The Foreign God and the Sudden Christ: Theologv and Redaction. Tyndale Bulletin, v. 44, p. 307-321,1993. Christologv in Marcions Gospel ’2' Cl.ABEAl/X, Joh n J. A Lost E ditto n o f the T. etters ofPa id: A Reas sessment of the Text of tb i Pntdine Carpi is A ttestedbv M arcion. W ashingto n: C atholic Bíbli cal A ssoci ati on of Am eric a, 1989. Irenku df. Lyox. Adversits haereses 1.27.4. T f .r t ULlAXü, De prescriptione h er etko nim 38.7-10. "" O texto dos prólogos pode ser encontrado em Ev ide nte o fT m dit ion : Se/ected Soitrce M ate rialfor the Stu dv of the History o f the Earlv Church, Introduction and Canon o f the N ew Testanient, de Daniel J. T hkkox , Lo ndo n: Bowe s & Bowes, 1957, p. 79-8 3. Para um com entário, v . Marcion undse in Apostolos: Rek on strukticn imdhlstorische E in ord nun^ der marcionitischen Paidusbriej husgabe , de Ulrich ScilMlD,Berlim de Gruvter, 1995.
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As primeiras
heresas
clássicas:cbionisrro, docctismo, valettianiinno
Marcião, é um símbolo poderoso de sua recusa em aceitar que Jesus de N azaré era, em prim eir o lugar, u m ser h u m an o e, em segundo lugar, um ju d e u /p o d e ro so de sua recusa em aceitar que Jesus de N azaré era, em prim eir o lugar, um ser h u m an o c, em segundo lugar, um judeu. D e acor do com Marcião, o judaísmo é uma religião com uma visão corrompida de Deus. Ao lidar com tal desafio, os teólogos cristãos desenvolveram abordagens ao AT que lhes permite respeitar as suas visões morais e religiosas, neutralizando ao mesmo tempo alguns de seus aspectos mais proble m áticos — tais com o a lim peza étn ic a de C an aã.:!i' Se M arc ião tivesse conseguido o que queria, isso não teria sido um assunto a discu tir. Contudo, outros problemas teriam surgido, particularmente o total deslocam ento históri co da fé cr istã. Para M arcião, o evangelho surge do nada, sem nenhum contexto histórico. Não haveria nenhum sentido no fato de cie ser o clímax e o cumprimento da promessa de Deus com a hum anidade, que começo u com o chamado de Abraão. ' N o enta nto, é fácil ver p o r que o m arcio nism o é tã o apelati vo. God Delusion [Deus, um delírio], de Richard Dawkins, é ama das obras de apologia ateísta mais bem-sucedidas dos últimos anos. Nesse livro, D aw kin s arm a u m ata que feroz sobre a m oralid ade de D eus. O Deus em que Dawkins não acredita é “ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho; injusto e intransigente; genocida étnico e vin gativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, genocida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévo lo” .5’2 P ratica m en te todo o ma terial bíblico subjacen te às acusações de Dawkins é extraído do AT.1” N ão é difíc il perceber p o r que alg uns se p e rg u n tam se não te ria sido melhor para o cristianismo ter rompido completamente com o judaí smo. N a ver dade, o al emão A do lf von H arn ac k (185 1-1930), 531 V. Bibl ical Inte rpr etatio n, dc Ro bert MORGAN e John B a r t on , Oxford: Oxford Univ. Press, 1988; A n Introduction to the History o/Exegesis, dc Bertrand dc MARGERJK, 3 v., Petersham: St. Bcdcs Publícation, 1998. D aw ki ns , Richard. Deus, um delírio. Tradução Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 55. Para d etalhes, v . a obr a Deus, um delírio, d e D aw ki ns, p. 266-280 (ediçã o b rasileira).
famoso teólogo protestante liberal, defendeu, seguindo essa linha de p en sam en to , um a contr overs a ten tativ a de restabelecer M arcião ao seio do cristianismo alemão, em 1921.;íJ Quando Harnack se opôs às versões mais estridentes de antissemitismo que ganhou terreno dentro da Alemanha por volta de 1880, a sua atitude para com os judeus foi de scrita com o ‘‘pa tern alista’ ’.'”- T ristem en te, o m arcion ism o é um a heresia que volta com força reavivada em cada ressurgimento do an tissemitismo.'Não se trata apenas de uma heresia sobre a identidade de Jesus de Nazaré; é uma heresia sobre a dignidade e o significado histórico do povo judeu. Um último ponto precisa ser enfatizado. As narrativas popula res da vida de Marcião falam dele sendo “condenado” ou “expulso” pela igreja de Roma. Isso nunca aconteceu. Irritado com o fato de a igreja romana recusar-se a aceitar os seus pontos de vista, Marcião abando nou a igreja, a qual prontamente devolveu uma generosa doação que ele havia feito. Não é que a igreja tenha decidido que Marcião não era um cristão adequado; ao contrário, Marcião assumiu a opinião de que a igr eja rom ana não era corretam ente cri stã e pa rtiu para fun dar a própri a seita p u r a /3,: Foi M arc ião qu em excluiu a s i m esm o da igrej a.
Reflexões sobre as heresias primitivas N esta seção, a bordam os três here sias p rim itiv as, duas das quais tê m ligações particularmente fortes com as igrejas de Roma. Essas heresias
''A Cf. Marcion: D asEvangehum v o m frem d m G ott:B in e Manogra ph u zur Geschicbie der Grun dlegung der kaíholiscben Kirche , de Adolf von Harnack, 2. ed. Leipzig: Hinrich,
1924. Para uma avaliação crítica, v. Harnack: Marclon und das Jud en tum: Neb st einer kommentiert en Ed ition des Bri efvxcbsels A d o lf von H arna cks m it Ho m len Stevm rf Chamberlain , dc Wolfram Kjxzig, Leipzig: Evangelische Vcrlagsanstalt, 2004. Kin/.ic. Harna ck , Marcion und chisju dentu m , p. 200. Li oemaxx , Gerd. Zur Gcschichtedcs altesten Christentums in Rom. f. Valentin und M arcion. II. Ptolemüus undjustin. Z e its c h r ifi fiir dic Ncutc stam entlkhe ÍV isse nscbaft, p. 3 9 2 - 3 9 3 .1 iio.MASSEN. O rth o d o x v an d H eresv p. 2 42.
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A í pri m eir as her esi as ci ássi caí : cb ion isn o , dc K eh sn o. vaierrj
am sm o
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possuem alguns te m as com uns. Por exemplo , a cre nça de que a m até ria fundamentalmente má é encontrada no docetismo, marcionismo e valentianismo. Todas as três envolvem a relação entre o cristianismo e outros grupos rel igi osos — judaísmo e gn ostici sm o — que ameaçavam diluir ou distorcer a essência do cristianismo. No entanto, o que é par ticularmente interessante sobre essas tres abordagens ao cristianismo é que ela s surgir am e for am, po r fi m, con dena das com o he réti cas, antes de a igreja ter desenvolvido qualquer estrutura de autoridade permanente, antes do aparecimento dos credos como declarações de fé pessoais ou oficiais, e antes de o câno n do N T ter si do form alm ente estabel eci do; Embora muitos estudos continuem a afirmar que a igreja declarou Marcião e Valentino como hereges, a situação é muito mais complexa do que parec e, conform e já obse rvamos. N ão co m preen d em o s co m p letam en te com o se deu o pro cesso de reconhecimento dos movimentos como heréticos na igreja da primei ra metade do século II. A evidência sugere que ocorreu um processo gradual de cristalização de opinião, semelhante ao que levou ao sur gimento dos primeiros cânones do NT. O grau relativamente alto de diversidade, um traço tão característico das congregações cristãs na época, permitiu a Marcião partir e estabelecer a própria igreja, sepa rada das congregações existentes, e a Valentino continuar pregando em algumas congregações romanas. A fluidez organizacional da igreja prim itiv a era ta l que se torn ava difícil o rg an izar q ualqu er c am p an h a contra as alegadas heresias' Até onde sabemos, a primeira ação em p reg ad a pela ig re ja ro m an a co n tra o valentian ism o d ata dos anos 190, uma geração depois de o movimento passar a existir.’’7 Então, como se identificava uma heresia naquele tempo? Que pro cesso le vav a um a op inião teol ógica a se r tr an sform ad a em um a heres ia? É provável que ainda não saibamos o suficiente sobre como surgiu um consens o d entro da i gr eja pr imiti va, o que depende de um con hec im en to de suas com plexas redes sociais, da cresce nte autoridade d a Bíblia (que
:,3< Ib id em , p. 245.
começou a surgir como uma entidade coerente por volta desse período), e esp eci almente do pape l dos for m adores de op inião (como Justi no M ártir) e mem bros da hierarquia na respost a a es sa qu est ão. C on tudo , res ta po u ca dúvida de que essas opiniões se tenham cristalizado, para se tornarem a opinião assentada da igreja. C on form e já vimos, W alter Bauer retrat ou o tri unfo da ort odoxia como um incidente e sse ncial men te ide oló gi co. E ra o pod er das i nstitui ções que realmente importava; as ideias que essas instituições escolhiam prom over d entr o da div ersid ade do cristianism o prim itiv o era algo secun dário. A decisão sobre quais das prim eiras vi sõe s co nco rrentes do cristia nism o seriam d eclaradas ortodox as e quais seri am he réticas refl etia as p o líticas de po de r da época, não os mé ritos intelectuais das idei as em q uestão. Desse modo, a heresia era simplesmente urna ortodoxia primitiva que não recebeu o apoio dos corret ores do po der. Contudo, a evidência histórica realmente não se ajusta ao quadro propo sto p o r Bauer. A lé m disso, há questõ es cla ram ente te oló gic as em jogo. A rela tiva fraqueza das estr utu ras eclesiásticas in stitu cionais n a quele tempo, incluindo as de Roma, sugere que a qualidade das ideias em si tinha um papel importante na avaliação que essas sofriam — especialmente em relação à sua proveniência intelectual e às suas conse qüê ncias pa ra a iden tida d e e missão d a igr eja.-ws E as heresias que vieram depois? E as ideias que foram declaradas heréticas depois que a igreja conquistou o seu status, um tant o problemá tico, com o a rel igi ão favorec ida do Im pé rio Ro m ano , qu and o as quest ões de estabilidade imperial e política passaram a ser integradas à vida e ao pensam ento da igreja? N o capítulo seguin te , verem os algumas das gran des heresias dos séculos IV e V, incluindo aquela que muitos consideram a maior de todas — o ari anis mo. i s A resp eito das refl exões sobre os tema s teológicos levantado s p or Bauer, v . C hapman , Journal o f Ecu mên ica! “Some Theological Reflections on de G. Clarke Studies , v. 7, p. 564-574, 1970; “A Reflective Look at rhe Debate on Orthodoxv and H eres y in Earliest Ch ristianitv ”, de David J. H aw kin , Ég/ise et théologie , v. 7, P. 367-378, 1976.
7 As heresias clássicas tardias: arianismo, donatismo, pelagianismo o capítulo anterior, abordamos algumas heresias surgidas num tempo em que as igrejas cristãs existiram à margem da cultura imperial, sem estruturas dc liderança e mecanis mos sólidos, e com um sentido apenas incipiente do que constituía as normas éticas c teológicas. N o enta nto, existe um a clara evid ência de que, no final do século II, estava ocorrendo um pro cesso de cristalização, começando a surgir um entendimento dentro do mundo cristão sobre o conjunto de textos que seriam reconhecidos como o N T e com o el es ser iam in terpretado s e aplica dos. Ainda que a heresia pudesse ser considerada simplesmente resultado de incerteza ou confusão
teológica, suas causas diminuíam cada vez mais com a íorma primitiva de o rtodoxia que surgi a naquel e m om ento. Contudo, conforme enfatizamos, as raízes da heresia são muito mais profunda s do que q ualqu er confus ão ou incerteza sobr e as font es te ológicas ou sobre a forma com que elas seriam interpretadas. O processo de surgimen to da dou tri na cri stã pode ser com parado a um a viag em de explor ação, n a q ual nova s tri lhas são en con tradas — po r exemplo, para expressar o significado de Jesus de Nazaré ou a interação do divino e do hu m ano no proces so de conv er sã o. Algu ns des ses cam inhos m ostrar am se becos sem saída e foram, po r conseg uinte, declarado s além dos li m ites perm itid os pela orto doxia teoló gica. Esse pro cesso de explora ção não se encerrou com o apa recime nto da “pro to-o rtodo xia” no sécul o II, mas seguiu firme até o século V. Um novo fator, porém, entrou em jogo durante o século IV. O cristianismo deixou de ser um movimento à margem da cultura imperial, tornando-se a fé oficial do império. A ortodoxia e a heresia eram agora mais do que questões de debate teológico; elas tinham importantes conseqüências para a coesão e unidade da sociedade. A teol ogia viu- se en redada cm polí ticas imperiai s, com eçando a enfren tar pressões para as quais ela não estava inicialmente preparada.
As políticas imperiais e as heresias da época Para com preend er a i m portânc ia des se t em a, pr eci samos imaginar a dram ática m uda nça pela qual passou o status da fé cristã, nas prime iras duas décadas do século IV, dentro do Império Romano. Até esse mo mento, o cristianismo não havia desfrutado nenhuma condição favorá vel. Na verdade, o mov imento era vis to por m uit os com o u m problema social. Em particular, a recusa que os cristãos faziam do culto imperial era interpretada como um ato de desobediência civil e, portanto, vista como uma ameaça à coesão social do império. O termo latino religio , como é com frequência assinalado, deriva de uma raiz que significa
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A í heresi as cl áss ic as tarei as, arianism
o. do na tism o. pelagianism
o
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“reunir”.’’" A religião era entendida como a cola que mantinha unida a socied ade ro m an a.3'11A recusa c ristã em inte gr ar-s e ã rel igião oficial er a vista, desse modo, como subversiva. Os cristãos começaram a ser descri tos como “ateus” — em outras palavras, como pessoas que se recusavam a o be de ce r à religião oficia l.34’ Essa desconfiança do cristianismo levou a uma perseguição eventual, ainda que não contínua, muitas vezes iniciada de forma in dependente pelos governadores romanos locais. No ano 250, porém, a ascensão do imperador Décio marcou uma escalada significativa na hostili dad e ro m an a ofi cial em relação a os cristã o s/42A an tipatia do im perad or ao cris tianis m o é m uitas vezes consid erada com o ten d o surg id o da sua crença de que Roma só poderia recuperar a sua glória anterior pelo resta belecim ento de sua antiga religião pagã. Isso levou à repressã o de movimentos que eram vistos como ameaças aos valores e crenças tra dicionais rom ano s, send o o cristianism o o mais im po rtan te e ntre eles.3 4’ O cristianismo pode ter sido um aívo indireto das ações de Décio; de qualquer forma, ele foi duramente combatido. O édi to de Décio, pr om ulgado em jun ho de 250, ordenava ao s governadores e magistrados provinciais que garantissem que todos cumprissem a exigência da oferta de sacrifícios aos deuses e ao impe rador romanos. Um certificado (libellus pacis) era concedido àqueles w Esse t em a destaca-se na maior parte das interpr etações contem porâneas da religião. V., p. cx., Rehgion and Social Theory, de B ry m S. TlJRXER, 2. cd. Lo nd on : Sage Publication s, 1991: “ A relig ião pode ser definida com o u m sistem a de símbolos e valores que, por meio de seu impacto emocional, não somente reúne as pessoas numa comunidade consagrada, mas apresenta um comprometimento normativo e altruísta com os objetivos coletivos” (xi). 34,1 KlNG, Cha rles. Th e O rgan izatio n o f Rom an Rcligious Beliefs , Classical An liqm ty, v. 22, p. 275-312,2003. 341 Sc HOEL)IX, W illi am R. “A the ism ” and the Peace o f the R om an E m pire , Church H hto ry , v. 42, p. 309-319,1973. 342 Roiíimson, O livia F . Re pressionen gegen C hr iste n in der Z eit vor D ecius — noeh immer cin Rechtsproblem, Zeilsch rift der S a vig n y-S tiftu n g fü r Recbtsgeschichte. Romanistiscbe Abteilung , v. 125, p. 352-369,1995. 343 Riv es, J. B. T he Dec ree o f Decius and the Religion o f Em pire , Jo urnal o f Roman Siudies, v. 89, p. 135-154, 1999.
que faziam tais sacrifícios. O édito parece ter sido amplamente igno rado, mas, de qualquer maneira, cie foi forçado em. algumas regiões. Milhares de cristãos foram martirizados durante esse difícil período, que levou muitos outros a esmorecer ou abandonar a sua fé diante da perseguição. A perseguição deciana terminou em junho de 251, quando Décio foi morto numa expedição militar. Outra forte explosão de perseguição ocorreu em fevereiro de 303, no governo do imperador Diocleciano. Um édito foi promulga do ordenando a destruição de todos os lugares de adoração cristã, a entrega e destruição de todos os seus livros, e o fim de todos os atos de adoração cristã. Os funcionários públicos cristãos deviam perder todo s os pr ivil égios ou status do posto e ser em reduzidos à condição de escravos. Proeminentes cristãos foram forçados a oferecer sacrifício de acordo com práticas romanas tradicionais. Uma indicação do quanto o cristianismo havia se tornado influente é o fato de Diocleciano ter forçado tan to a sua esposa qu anto a s ua fi lha, reconhe cidas com o c ri s tãs , a obed ecerem a es sa ordem . A p erseguição co ntinu ou sob o regi me dos im perado res po steri ores, i nclus ive G aléri o, que g overnou a regi ão oriental do império. E m 311, Ga lério orden ou o fim d a pers egui ção. Ela havia fracas sado e apenas fo rtaleceu os crist ãos em sua res olução de resisti r à reinstit uição da religião pagã romana clássica. Galério promulgou um édito que permitia aos cris tãos voltarem a viver no rm alm en te, “m an ter as s uas assembléi as reli giosas, co ntan to que não fizess em n ada que perturbasse a ord em pública” . O édito identificava explicitamente o cristianismo como uma religião dis tinta em seu direito e lhe oferecia a proteção plena da lei. O estado jurídico do c risti anism o, que até e ntão h avia si do am bígu o, es tava ago ra re solvi do. A igreja já não precisava existir sob o espectro da perseguição. O cris tiani smo era agora um a rel igião l egal; era, porém , som ente um a entre m uitas r eligiões. Co ntu do , a morte de Ga lério precipitou uma b atalha
O texto do decreto está reproduzido em
Lactáncio
.
D e mortibm pcrsecutorum 34-35, de
As bercs.as clássicas
tareias:andnsm
o, donat
ismo , uelagarvsmo
j
feroz para a su cessão imperial, no fi m vencida po r Co ns tan tino (285-337). Para fazer frente ao ataque da força de Maxéncio na Itália e no norte da África, Constantino levou um conjunto de tropas da Europa ocidental nu m a tentativa de conq uistar autoridad e na r egião. A b atalha deci siva acon tec eu no dia 2 8 de outubro de 312, na pon te de M ílvia, ao norte de Roma. C on stantino derrotou Maxéncio, e foi proclamado im perador . Con stantino atribu iu a sua vitória ao po de r do “ D eu s dos c rist ãos” e se entreg ou à fé cri stã daí em diant e, emb ora a su a compreensão da fé c ristã naquel e m om en to p a reça ter sido um tan to super ficia l.545O E dito de Milão, prom ulgad o e m 313 por C onsta ntino e Licínio, conced eu liberd ade religiosa em todo o Im pério Romano e ordenou a restituição das propriedades confiscadas dos cristãos duran te o últi m o p eríodo de opr essão . N ã oao está co m p letam en tepareça cla roteraté que p oasn to C o n sta n tin o se converteu cristianismo. Embora valorizado virtudes pragm áticas da to lerân cia religio sa im perial, em u m p rim eir o m o m e n to, ele não demonstrou nenhuma atração particular pelo cristianismo. N o en ta n to , as im plic ações de sua convers ão fo ram consid eráveis. Tendo surgido com muita dificuldade nas margens da sociedade ro mana, passando a ser reconhecido como uma religião legítima, o cris ti an ism o er a agora eleva do ao prim eiro plan o da vi da cí vica r om ana. A con ver sã o do im perador C on stanti no prov ocou uma m udança tot al na situação do cristianismo em todo o Império Romano. Simplesmente não houve tempo para que essa corrente de pensamento religioso se acostumasse a ser uma fé legítima antes de tornar-se a religião da instituição imperial. Como resultado, era relativamente fácil que Constantino explorasse a igreja como instrumento de política impe rial, impondo sobre ela sua ideologia e privando-a de grande parte da independência que, anteriormente, era desfrutada pelos cristãos. Em 325, Constantino garantiu o controle dos domínios orientais do Im pério Ro m ano, bem como do O cidente, e se gui u para est abele cer a w-’ Pa ra análises mais apr of un da da s, v. Christianizmg the Roman Empire (a.D. 100400), de Ramsav M acM ui .len N ew H aven: Yalc Univ. Press, 19 84; Constanti ne an d the Chnstian Empire, de Charles M. Odahl, London: Routledge, 2004.
capit al do im pério em Bizâncio, cidade que, após a passou a se r co n hecida com o C o n sta n tin o p la .
sua m orte, em 337,
Para seu grande desânimo, Constantino logo percebeu que havia uma falta de unidade dentro da igreja, comprometendo potencialmen te o seu papel como uma influência imperial unificadora. Eventos na provín cia da Á fric a causa vam im edia ta dor de cabeça a C o nstantin o. As tensões ali surgiam entre dois grupos rivais de cristãos, que tomavam atit udes m uito diferentes em rel ação àquel es que ti nh am fraquejado du rante a persegui ção dioclec iana. As ord ens de D iocleciano pa ra a opressão do cristianismo tinham encontrado respostas variadas. Em cidades orientais do império, o cristianismo cra numericamente muito forte para se r in tim id ad o desse m odo. M a s no no rte da Á fric a rom ana, um a estrutura administrativa particularmente eficiente, associada a uma re lativa fraqueza da igreja, tornou a opressão da igreja relativamente fácil. M uitos sacerdot es fr aquejar am diante da ameaça de morte, entregaram os seus textos sagrados e obedeceram ao culto imperial romano. Quando Constantino declarou que o cristianismo era legal, surgiu a questão sobre o que fazer com os sacerdotes lapsos ( lapú ). Eles deve riam ser readmitidos ao ofício, talvez depois de uma desculpa e retração pública adequada? D u as posições lo go surg iram : aqueles que tin ham uma posição rigorosa sobre os lapú, e aque les que ti nh am um a posi ção mais moderada, de perdão. (Os rigoristas tornaram-se depois conheci dos como donatist as, as sim cham ados após D on ato, um berbere a quem eles elegeram bispo de Cartago em 315.) Seguindo uma disputa sobre a eleição de Ceciliano como bispo de Cartago em 312, os rigoristas pedi ram a Constantino que interviesse em favor deles. No fim, Constantino recusou-se a solucionar o problema pessoalmente, designando um sínodo de bispos para lidar com o assunto. O clima ruim que surgiu da crise d on atista arrast ou-se ao longo do séc ulo IV e estourou novam ente no final do século. Consideraremos as questões teológicas surgidas da controvérsi a d on atista mais adiante neste capítul o. Já o po nto principal a s e notar aqui é como C on stantino foi atra ído para disputas eclesiásticas. O novo status imperial do cristianismo
[
As heresias
clá ssi cas ta xli as. ari«.ni smo. do na tism o, peld gisn ism o
]
significou que sua unidade e organização eram agora questões impor tantes para o E stado. A té ess e pon to, a her esia e a ortodoxia tinh am sido conceitos importantes apenas dentro das comunidades cristãs. Agora elas haviam se tornado preocupações políticas do império, com impor tan tes imp licações legais . ’46 O significad o d isso pod e ser vis to pelo p ap el de Constantino na controvérsia ariana (da qual trataremos em breve) que ameaçava dividir a igreja na região oriental do império. O próprio Constantino citou o Conselho dc Niceia em 325 para solucionar essa controvérsia. Politicamente, o movimento falhou no curto prazo, e com isso logo começaram a surgir novamente discordância e divisão. Dada a importância do arianismo para o nosso tema, vamos considerar suas ideias de modo mais pormenorizado na próxima seção do capítulo. Contudo, mais uma vez, o importante a observar é como o Estado estava agora profundamente envolvido em discordâncias teológicas. A heresia já não era mais um assunto para a igreja; ela se tornara um assunto de importância para o império. Quando o cris tianismo se tornou uma ideologia religiosa estabelecida do Império Romano, tanto a ortodoxia quanto a heresia começaram a assumir um novo siatus como entidades políticas, quase legais. Os riscos agora eram muito mais elevados, e os problemas de lidar com a heresia eram muito maiores do que tinham sido no passado. N este capítulo , exam in arem os três here sias — arianism o, d o n atis m o e pelagianism o — , que surgiram d uran te ess a época, cada um a da s quais com potencial para criar desunião e divisão dentro do império. Vamos começar por aquela que é amplamente considerada a heresia mais signifi cativa do pe ríodo cláss ico — o ari anismo .
’4'' H umfr
and Heresy. In: luiciNSCHi, Eduard; Z ellf . nt i n , Caroline. Citizens Heresy a nd Identi ty in L ate A n tiq u ity. Tü bingen: M ohr Sie bec k, 2008,
es s ,
Holger M. p. 128-142.
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Arianismo: a idenidade de Cristo Um dos maiores desafios enfrentados pela igreja primitiva foi costurar, em uma forma teológica coerente, as linhas de abordagem da iden tidade de Jes us de Naz aré no NT . Co m o vimos no capítulo ant eri or, um a prim eira t entativa de da r senti do a Jesus de Naza ré — o ebionismo — implicava a tentativa de enq ua drá-lo nas categori as judaicas existentes. Porque tantos cristãos primitivos eram judeus, lhes parecia natu ral explorar as bases conceituais que já eram familiar es — tai s com o a categoria de profeta. Já havia ficado claro, desde um estágio muito inicial, que o vinho novo da fé cristã simplesmente não poderia estar contido nos velhos odres conceituais do judaísmo. Esses, a igreja deci diu, não captavam as possibilidades revigorantes que os cristãos sabiam que foram abertas pela vida, morte e ressurreição de Cristo. M ode los cri st ológi cos herdado s do judaí smo p areci am centrar -se na ide ia de Jes us de Nazaré como um meio de com unicação endossado p o r D eus. P o r exem plo , as cris to lo gia s docéticas p arecem m uitas vezes considera r Jes us de Nazaré com o um interme diário entre a h um an i dade e Deus, transmitindo-nos alguma comunicação assinada, selada e autori zada pelo próp rio D eus. C on tud o, ess a ê nfa se r evelatóri a pode acom oda r som ente um aspect o do signifi cado de Jesus de N azaré. E quanto a outros aspectos como, por exemplo, a sua identidade no de sempenho do papel de salvador da humanidade? Outras estruturas íoram, então, exploradas com o objetivo de verificar se poderiam ser adotadas ou adaptadas na busca da melhor maneira de dar sentido a Jesus de Nazaré, sem reduzi-lo a ester eóti pos teol ógic os. Um a ab or dagem que pareci a con ter um a promessa particular envo lvia fazer uso da no ção de Logos — term o grego, ext ensivamente usado na fil osofia da época, que é muitas vezes traduz ido simp lesm ente p or “palavr a” e que, no en tanto , possui associações muito mais ricas do que poderia sugerir essa simples tradução. O platonismo m ediano via o Logos como um pri ncí pio mediador entr e o m undo ideal e o mundo real, permitindo aos teólogos cristãos explorar o papel de Jesus de Nazaré como me diador entre De us e a hum anidad e. Justino M ártir
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As 'ier ebk '12 dá. ss icas P. vdi as: an an ^rn o . d o n o tsm o. pdag
.cr. sm o
é um excelente exemplo de escritor que considerou essa perspectiva útil para com un icar o signif icado de Jesus pa ra a c ultura he lenística se cular. "7 N o fim, a igreja reagiu decisivam en te contra qualq uer noção de Jesus de Nazaré como o comissário de Deus. Mesmo os modos mais honrosos de pensar em Cristo ness es t ermos acabar am p or desc rev ê-l o como um re pre senta nte auto rizado de um D eus que estava, não obstante, visivelmente ausente do mundo para o qual Cristo veio. Esse modo de pensar sobre Cristo si mplesmente não condi zia com o t estem unh o do N T a respe ito dele, nem com a experiência da sua igreja, especialmente na adoração. A igreja percebeu que nen hu m a analo gia ou modelo exist ent e era suficientemente adequado para satisfazer suas necessidades de expressar o signifi cado dc Jesus de Naz aré. A situação exig ia que a igre ja des envolve sse um novo modo de pensar, em vez de apenas confiar numa herança teológi ca. Assim, o conceito da encarnação começa a fi gurar como de imp ortância central para a igr eja enten der Jes us C risto .us E m bo ra a ideia tenha sido d e senvolvi da de formas ligeiram ente diferentes p or variados es crit ores, o tem a básico é D eus entrando na histó ria e assumindo a form a hum ana através de Jesus de Na zaré. Essa ideia suscitou consider áveis problem as fil osóf icos para mu itas das esc olas prevaiecentes de filosof ia helenística. M uita s delas que s tionavam como um D eus imutável pode ria entr ar na hi stóri a? C ertam ente isso impl icava que De us sofria mud ança. O s filósofos de en tão fizeram um a distinção sutil entre o reino divino imutável e a ordem criada mutável. A noção de D eus vindo e hab itand o d entro dess a ord em transitória e variável parecia inconcebível, e m ostrava ser um a barreira significativa para a adoção do cristianismo por alguns pagãos cultos. Esse processo de exploração das categorias religiosas e filosóficas ade quad o para expres sar o si gnifi cado de Jesus de N azaré fun cion ou como um divisor de águas no século IV. A controvérsia que forçou a situação 347 Edwards
, M ark J. Justirís
Logos and the Word of God
.Journal ofEarly Christian
Studies, v.3, p. 261-280, 1995. ,4!i H á um a a m pla literatura sobre ess e assunto. U m a das m elhores introduçõ es continua sendo Christ in Christian Tradition . de Aloys G r í I.LMEIKR, 2. ed. London: Mowbravs, 1975.
foi precipitada por Ario (c. 270-336), um sacerdote em uma das maio res igrejas na grande cidadc egípcia de Alexandria. Ario estabeleceu seus ponto s de vista num a obra conhecid a com o a Thalia (“banquete”) que não sobreviveu em sua totalidade. Por isso, conhecemos as ideias de Ário prin cip alm ente pelos textos de seus opositores. Isso significa que esses fragm entos de seu s tr abalhos são apresentados tora do senti do, propósito e ambiente em que foram produzidos, de forma que não entendemos to talme nte o contexto n o qual A rio desenvolveu su as i dei as. N esta seção, te nta re m os responder a quatro questões. Prim eiro, o que de fat o A rio pregou? Segundo , que fator es l evaram A rio a desen volver as suas ideias? Terceiro, por que tais ideias eram vistas como tão perigosas a ponto de serem estigmatizadas como heréticas? Quarto, que processo foi usado pa ra dec idir que a s vis ões de Á rio eram realme nte her éti cas? Os temas fundamentais dos ensinos de Ário não estão em ques tão, embora sejam conhecidos principalmente por meio de obras que os ci tam com o objet ivo de criticá -los.549 Eles são tradic ion alm en te re sum idos co m o três declar ações bási cas, e cada u m a dela s preci sa de um considerável d esd ob ram en to c on ceitua i.530 1. O Filho e o Pai não têm
a m esm a ess ência (
ousia ).
2. O Filho é um ser criado kt isma onpo tema, embora, em termos de srcem e grau, ele deva ser reconhecido em primeiro lugar entre os seres criados. 549 Sob re as interp retaç ões p adr ão d as ideias de Ár io e como se desenvolver am, v. The Search for the Christian Doctnne o f God: The Arian Controversy, 31 8-3 81, de R. P. C. H axsü N, Edinburgh: T. & 1. Clark, 1988; Anus: Heresy and Tm dition, de Rowan W i l l ia ms , 2. ed. London: SCM Press, 2001; Nicaea and Its Legacy: A n Afproach to Fourth-Century Trinilaritm Theology, de Lewis A yres , Oxford: Oxford Univ. Press, 2004. Sobre o apelo duradouro dessas interpretações, em particular pelas abordagens mais racionaüstas ao cristi anismo, w . Arcbetypal Heresy: Ariam sm Through the Centuries, de Maurice F. WlLES, Oxford: C laren don Press , 1996. V. a carta de Ario a Eusébio, bispo de Nicomédia, escrita por volta de 321. Essa carta está reproduzida, com pequenas variações, em História eclesiástica 1.5.1-4, de Teodoreto de Ciro, e em Pararion 69.6, d e Ep ifânio de Coxslanci \. V. tb. “The Arians o f .Alexandria”, Vigiliae Christianae , de Christopher Haas, v . 47, p . 234-245, 1993.
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ncresiss c
lás si ca s t are ia s* arian
isno . d era tism e, pelag ianisno
3. Embora o Filho seja o criador dos mundos, existindo, portanto, antes deles e dc qualquer coisa, houve um tempo quando o Filho não existia. U m dos resul tados da con trovérsia ariana f oi o reco nh ecim ento da futilidade, at é m esm o de u m a ilegitim idad e teológica, da “prova do tex to” bíb lico — 'a prática sim plista de acreditar que um debate te oló gic o pode ser resolvido citando algumas passagens da Bíblia.'A posição teológica de Ario foi claramente fundamentada em textos bíblicos. Por exemplo, Provérbios 8.22 fa la da S abedo ria de D eus no com eço da cri ação . Cristo também é descrito por Paulo como o “primogênito” dos redimidos (Rm 8.29) . A questão é que Á rio escolheu interp retar es ses te xtos de um modo diferente daquele com que seus oponentes os interpretavam na ortodoxia. Ambos os lados na controvérsia ariana podiam reunir textos que pareciam sustentar seus argumentos. A verdadeira questão dizia respeito ao quadro global revelado pelo NT. De fato, pode-se dizer da controvérsia ariana que ela girava em torno da maneira pela qual um co nju nto de text os bíbl icos ser ia integ rado , vis to que cada l ado não tin ha nenhuma dificuldade em evocar textos individuais que apoiassem a sua posição.''11 Id entificar o padrão glo bal revelado p o r esses texto s m ostr ou ser uma questão decisiva. A crença ariana mais fundamental era a de que Jesus Cristo não era d ivino, em ne nh um sentido signifi cante do ter m o. E le era o “p ri m eir o entre a s criat uras” — is to é, pre em inen te em grau, mas inq ues tionavelmente uma criatura, não um ser divino. Cristo, como Logos , realmente era o agente da criação do mundo, como declarado no prólo g o ao E v an g elh o de João. C o n tu d o , o Logos foi criado por Deus p a ra esse p ro p ó sito . O Pai será c o n sid e rad o , assim , com o ex is tin do antes do Filho: “Houve um tempo quando ele não era”. Esta declara ção coloca Pai e Filho em nív eis diferentes e é coere nte co m a insistência rigorosa de Ário de que o Filho é uma criatura. Somente o Pai c “não í,! Para uma excelente análise desse ponto, v. Jo hamune Cbnstology and the Church, de T. E. P o l i \ i :d, Cam bridge: Cam bridge Univ . Pre ss, 2005.
F.arly
gerado”; o Filho, como todas as outras criaturas, deriva dessa fonte de ser. De qualquer modo, como já vimos, Ario toma o cuidado de enfatizar que o Filho não é como qualquer outra criatura. Há uma distinção de grau entre o F ilho c as outras criaturas, i nclus ive o s ser es hum ano s. Ario tem algum a difi culdade em identifi car a naturez a preci sa des sa di stinção. O Filho, ele argumentava, é “uma criatura perfeita, embora não como uma entre outras criaturas; um ser gerado, embora não como um entre ou tros ser es gera do s”/" ’ A imp licação parece ser que o F ilho excede em importância as outras criaturas, embora compartilhando a sua natureza essencialmente criada e ger ada. Desse modo, Ario faz uma distinção absoluta entre Deus e a ordem criada. Não existe nenhum intermediário ou espécies híbridas. Para Ário, D eus era totalme nte transcend ente e imutáve l. En tão, como poderia ele en trar na história e se to rn a r carn e? C o m o um a cria tu ra, o Filho era mutável ( treptos ) e capaz de experimentar desenvolvimento moral ( proteptos ), e sujeito à dor, ao medo, à aflição e à fraqueza. Isso é absolutamente incompatível com a noção de um Deus imutável. A no ção de um D eus m utável par ecia heréti ca a Ário. Além disso, a noção de que D eus, o Fi lho, er a di vi no pareci a com prom eter o s temas fun dam en tais do monoteísmo e a unidade de Deus — temas que, naturalmente, reapareceriam como centrais no islamismo primitivo. Seg uindo est a li nh a de di scus são, A rio e nfati za que a trans ce n dência abso luta e a inacessibi li dad e de D eus si gnifi cam que D eus não p o d e ser c o n h e cid o p o r n e n h u m a c ria tu ra , o F ilh o será co n sid erad o uma criatura, porém elevado acima de todas as outras criaturas. Ário, p o rtanto, argum enta que o F ilho não pode conhecer o Pai. “A quele que tem um começo não pode compreender ou estar de posse daquele que não tem com eço n en h u m .”353 A distinçã o radical entre P ai e F ilho é tal que o segundo não pod e conhecer o primeiro po r si mes mo. E m com um com todas as outras criaturas, o Filho depende da graça de Deus para real izar qualquer função que lhe foi desi gnada. Citado por Alexandre de Alexandria em ^ Ibidem.
D ep oú ti o A rü 3.
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As heresias clássicas tardias, ananis mo. don atis mo , pelagiamsmo
A rio afir mou, ass im, a hu m anida de de Jes us de Nazaré, declar ando que ele era supremo entre as criaturas. Como o ebionismo, Ário recusou aceitar que s e pudesse d izer que Jesus é divino em qua lque r sen tido do ter mo. N o entan to, o ebionismo preten deu interp retar o sig nif icado de Jes us den tro das est ruturas dos m odelos judaicos existe ntes da presença divina den tro da hum anidade , particularmente a noção de um profet a ou indiví duo chei o do espír ito. E m comparação, Ário procu rou acom oda r Jes us de N azaré dentr o das estrutu ras disponib ilizadas pelos rígidos m onote ísm os filosóficos gregos de sua época, os quais impediam qualquer noção da encarnação como incompatível com a imutabilidade e transcendência de Deus. A primeira vista, o ebionismo e o arianismo parecem querer dizer coisas semelhantes; mas eles partem de lugares muito diferentes e são guiados p or supos ições signif icati vam ente dist intas . Suge re-s e com frequê ncia que Á rio desenvolveu a s ua pers pecti va sobr e a identidad e de Jesus de Naz aré com base num a posição fi losó fica preconcebida que declarava que, como uma questão de princípio, Deus não poderia tornar-se carne. Existe alguma verdade sobre isso, mas isso não é o todo da verdade. As preocupações de Ário eram em p arte apolo géticas, u m a vez que ele cla ram en te acreditava que m uitos estavam se afastando do cristianismo em razão de sua ênfase crescente em um a idei a — a encarnação — que os gr ego s cult os não po diam aceitar. Em comparação, Ário via a sua abordagem ao cristianismo como representando uma mistura calculada e sensata de sofisticação filosófica e exegese bíblica responsável. Então, por que essa abordagem tão fortemente racional à identi dade de Jesus de N azaré atraiu um a críti ca tão enérgic a? U m dos crít icos mais infatigáveis de Ario foi Atanásio de Alexandria. Para Atanásio, A rio tinh a de struído a coerênci a intern a da f é cr ist ã, rom pen do a estrei ta r elação entre fé e ado ração c ristã.'5 4 E xistem dois pon tos de pa rticular importância que subjazem à crítica de Atanásio a Ário.
:’1Para um ótimo resumo dessas questões, v. Ath anaúus: A TheologicalInlroduction, de Thomas G. W ki man dy , A ldershot: Ashg ate, 2007, p. 11-100.
! Primeiro, A tanásio defende q ue é som ente D eus que pod e salvar. Deu s, e som ente D eus, pode destruir o po der do pecado e leva r a hu m a nidade à vida et erna. A caract erí sti ca funda m ental da n atureza hum ana é que ela precisa ser redimida. Nenhuma criatura pode salvar outra cria tura. Só o criador pode redimir a criação. Se Cristo não é Deus, ele é p arte do proble m a, não da solução. • Tendo enfatizado que somente Deus pode salvar, Atanásio faz o m ovim ento lógi co a que os ar ianos acharam difícil contrapor. O N T e a tradição litúrgica cristã igualmente consideravam Jesus Cristo como Salvador. Além disso, como enfatizou Atanásio, só Deus pode salvar. Assim, como podemos dar sentido a isso? A única solução possível, Atanásio argumenta, é aceitar que Jesus é Deus encarnado. 1. N en hu m a criat ura pode redim
ir outra cr iat ura.
2. D e acordo com Á rio, Jes us é um a criat ura. 3. Log o, de acordo com . Ario, Jesus não po de redim ir a hum anidade . Ário estava firmemente comprometido com a ideia de que C rist o er a o sal vador da h um an ida de ;355 a quest ão para A taná sio não era que Á rio n egasse i sso, m as que ele fazi a a s ua afir m ação de form a incoerente. Para Atanásio, a salvação implicava intervenção divina. Atanásio, portanto, retoma João 1.14, afirmando que a “Palavra se torno u carn e”: em ou tr as palavr as, D eus assumiu nossa condição h u mana para transformá-la. A segunda observação que Atanásio faz é que os cristãos ado ravam e oravam a Jesus Cristo. A4ais uma vez, esse padrão pode ser en con tr ado no próprio N T, e é de im po rtância consi derável para es clar ecer com o os prim eiros crist ãos e nten diam o signi fi cado de Jes us
Isso é corretamente enfatizado (embora interpretado dc modo controverso) em Ea ríyA rianu m :A Vie w of Salvat ion, d e R obert C. G rkOG; Dennis G ro u , Phil adcl phia: Fo rtres Press, 1981 .
As he-'es.ab ddssio is tardias ériámsrTic. do. iatiST io. p elagianismo
de N a za re tli.5’'’ Po r vo lta do século IV, orar e ado rar a C risto eram p rática s p ad rã o da ad oração p ú b lic a cristã . A ta n á sio afirm a que, se Jesus Cristo fosse uma criatura, os cristãos seriam culpados de adorar uma criatura, em vez de adorar a Deus; dito de outro modo, eles incorreriam em idolatria. A lei do AT não proibia explicitamen te a adoração de qualquer um ou qualquer coisa, a não ser Deus? Á rio não d iscordava d a prática de ad orar Jesus, mas el e se recus ava a chegar às mesmas conclusões de Atanásio. O ponto em debate aqui tem a ver com a relação entre adora ção cristã e íé cristã. A ortodoxia preserva uma visão da identidade de Jesus Cristo que é co m pletam en te coerente com os padrões de adoração da igreja. Os cristãos, disse Atanásio, estavam corretos em ad ora r e louvar a Jesus C risto, porq ue, ao fazer is so , el es o esta vam reconhecendo por aquilo que ele era — Deus encarnado. Se C ri sto não f os se Deus, ser ia totalm en te imp rópri o ado rá-l o.' Se Ario estivesse correto, a adoração cristã teria de ser drasticamente alte rada, rompendo a ligação com os padrões mais antigos da oração e adoração cristãs. Ário parecia ser culpado de tornar incoerente o modo tradicional com que os cristãos oravam e adoravam. Mesmo afirmando a tradição dc adorar a Jesus, Ário havia arruinado a sua integridade. Se Ário estivesse correto, os cristãos não deveriam ado rar ou orar a Cristo deste modo. Cristo poderia ser louvado como o “primeiro entre as criaturas”; contudo, ele não deveria ser adorado. Percebem os aqui o que identifi cam os com o a caract erís tica fun da mental da heresia: a manutenção da aparência exterior da fé conjugada com a subversão de sua identidade interior. Para enfatizar somente os dois pontos que abordamos: Ário afirmou que Cristo era o salvador da humanidade e que a igreja deveria adorá-lo; contudo, ele interpretou a identidad e de C risto de tal m aneira que n em a sal vaçã o nem a adoraçã o 'r':' V. esses pontos levantados cm A t the Origins o f Christian Worship: T he Con text and Character ofE arlies t Christian D evotion , de Larrv H urtaix), G rand Rapi ds: Eerdm ans, 2000 [As srcens da adoração cristã: o caráter da devoção no ambi ente da igreja pr im itiv a. São Paulo: Vida Nova, 20121.
eram apropriadas. Essa tensão evidente entre teologia e prática não po dia s er sustentada por m uito tem po se m caus ar r uptura. Como o arianismo foi declarado uma heresia? Para respon der a esta pergunta, devemos voltar a um ponto levantado ante riormente: a politização do debate teológico devido ã conversão de status do cristianismo como religião imperial.”'' Constantino e o novo C o n sta n tino via ess a controvér sia como u m a ameaça à unida de da igr eja e, por conseguinte, à unidade do império. Os riscos agora eram imen samente mais elevados do que em qualquer disputa teológica anterior. Ele a queria resolvida sem demora e de forma permanente. Parecia a Constantino que, pelo fato de a própria igreja possuir vários ccntros de autoridade em disputa entre si, ela não poderia chegar a tal resolução. Constantino, então, determinou solucionar o problema de um modo que se pudesse chegar a uma conveniência e eficiência políticas que ao mesmo tempo respeitassem a integridade teológica. A evidência sugere que Constantino poderia, no final das contas, ter adotado ou a posi ção defendida por Atanásio, ou a defendida por Ario, mas ele preferiu a segunda. Constantino estava bastante consciente de seu papel; era a própria igreja que deveria decid ir o que era certo e pôr fim à disputa. O seu papel era susci tar um a c onclusão inequí voca.
O método usado por Constantino na resolução de conflito não tinha preced ente n o cris tianismo p ós-b íblico.”s Ele convocou todos os ’ÍT Para um cxcelent e estudo dessa dimensã o da controvérsia, v. At han aúu s an d Constantms: Theology and Pohtics m the Comtantmian Emptre, de Timothv D. B arnes, Cambndgc: Harvard Univ. Press, 1993. Barnes concentra-se nos eventos durante o reinado de Constâncio, filho de Constantino, lançando luz, cm particular, sobre os últimos aspectos da vida de Atanásio. N o en tanto, m uitos dos fat ores que Barnes identifica como importantes já estavam presentes no governo do próp rio Constan tino. Con siderações sobre as ações políticas c a psicologia social do conflito podem ser vistas em When Jesus Became God: The
EpicF ight o ver Ghnsts D ivim ty in theLastD ays ofRome, d e Richard E . Rl U EN STEIN, N ew York: Harcourt Brace &.Co., 1999. O N T traz um regist ro do C oncilio de Jerusalém (v . A t 15), geralmente d atado por volta do ano 50, que reuniu os primeiros líderes cristãos para decidirem se os gentios poderiam ser adm itid os na igreja. V. '‘James an d th e Je ru sa le m C hurch”, de Ric hard B aucki i a vi . In: W l NTE R, Bruce (Org.). The Book oj'Acts in Irs Palestinian Settmg. Grand Rapids: Eerdmans, 1995, p. 415-480.
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A s -iexsias clássicas tardias: ariar, smo.
donatemo.
peiagiarrsmo
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bispos da igreja para um concilio ocorrido em N ic eia , na B itínia (a tu al Iznik, na Turquia moderna), em maio de 325. Calcula-se que havia cer ca de mil bispos na igreja oriental, e 800 bispos, na igreja ocidental. Dc acordo com Eusébio de Cesareia, que estava presente no concilio, ape nas 250 bispo s co m pa rec era m .15'' O fato de o concilio ter si do con vo cad o pelo próprio im p erado r deix ou claro onde, afinal, re sid ia a auto rid ade dentro do cristianismo imperial. Isso fo i reforçado pela deci são de C on stan tino de a do tar os procedi m entos do Sena do rom an o com o m odelo p ara o concilio. 3'’0As estrut uras da igr eja est avam sutilmen te sendo a linhadas com as do E stado. N o fim, o concilio voto u decisiv am ente contra Á rio3111 e auto riz ou uma versão expandida dos credos existentes que claramente se opunham às ideias arianas. Alguns bispos queriam manter credos mais antigos, mais abertos; no fim, porém, a maioria votou a favor de rejeições mais explícitas ao ensino dc Ario. Muitos foram os debates sobre possíveis descrições da relação Pai c Filho. O termo homoiousios — “de substância similar” ou “de ser similar” — foi visto por muitos como permitindo afirmar a proximidade e intimidade entre o Pai e o Filho, sem exigir nehuma outra especulação sobre a natureza precisa da relação entre eles. Contudo, homoousios — “da m esm a substânci a” ou “do m esm o ser” — term o concorrente , acabou pre valecendo em Niceia. E m seu discurso final , no ence rram ento d o conci lio, C on stan tino mais um a ve z enfati zou a sua aver são à desagre gado ra co ntrovérsia teológica; el e qu eria que a igreja vivesse em harmonia e paz e contribuísse para a estabilidade do império. Infelizmente, essa tranqüilidade provou-se difícil, e as discordâncias da controvérsia ariana ainda se fizeram ouvir durante algum tempo, antes que se pudesse dizer que um grau de resolução havia sido alcançado. ' ^ A m bró sio
Embora o Concilio de Niceia tenha rejeitado decisivamente o arianismo, a evidência histórica sugere claramente que era essa a opção preferida de C o n sta n tin o /62 Q ue razões poderiam estar por trás dessa preferência? U m a famosa resp osta a essa perg unta foi pro posta pelo estu dioso ale mão ErikP eterso n (1890-1960) em 193 5. Em um est udo detalha do das implicações políticas do monoteísmo dentro do Império Romano, Peterson mo strou que o mo noteísmo requer um a única autoridade polí tica legítima.™' Segundo Peterson, existe uma analogia direta entre a ideia da autoridad e cosmológica total de um único D eus (um princípio m uitas vez es expresso pelo termo monarchia ) e a autoridade política total de um único governante. O ariani smo endossava a noção de monarchia di vina, ou torga n do, desse modo, amparo teológico à noção da autoridade política e religiosa sup rema de C onstantino no Imp éri o R omano. Contudo, como Peterson demonstra mais adiante, tanto a dou tri na ortodox a da i den ti dad e de Crist o qua nto a do utrina da Trindade questionaram qualquer tipo de teologia política monoteística. Por quê? Porque ambas insistiam em que não havia nenhuma analogia terrena com a au toridade divi na, privando , as sim, a noção de au torida de imperial absoluta de sua legitimação teológica. Embora a precisão e a validade da análise histórica de Peterson sirva à crítica séria dos últ imos a no s,!MM uitos teól ogos i m po rt antes — mais notavel m ente 'b2 V. o debate em Constantine and Eusebms, de Timothv D. B arnes . Cambridge: H arva rd Univ. Press , 2006. P b t j í RSON, Enk. D er Monotheismus ais poliltsehes Problem: Rirt Beitrag zur Gesthicbte der politischen Tbeol ogie im I mp eriu m R sm am m i. Leipxig: Hegner, 1935. Para um a expl anaç ão, v. “H eis The os - E in Gott? Der Monotheismus und das antike Cbristentum”, de Christoph JVIarksciiies. In: K reuürxik Mantred; van Oorschot ]ürgcn (Orgs.), Polytheisnius und Monotheismus in den Rehgtonen des -vorderen Orients. Münster: Ugarit Verlag, 2002, p. 209-234; “Monotheismus und Monarchic: Zum Zusammenhang von Heil und Herrschaft in der Antike”, de Alfons FüRST. In: S'i'iEGLEK, Stcían; S\VARAT Uwe (Orgs.), Der Monolheismns ah iòcolcgiscbes and pohtisches Problem, Leipzig: Evangelische Verlagsanstak, 2006, p. 61-81. V. esp. a coletânea de ensaios críticos cm Monotheismus ais pohtisches Problem? E rik Peterson und die Kritik der politischen Tbeologie, ed. Altred, SciHNDI.KR, Gíitersloh: Mohn, 1978.
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As he;esias clássicas tardias: a-ic.ni smo, don atism o. pelagianisirio
Jürgen M oltm ann — têm defendi do a noção de que o s m onoteí smos absolutos, como aquele proposto por Ário, proveem um fundamento teoló gico a favor de um au tor itaris m o p olític o.305 Então, o que teria se tornado o cristianismo se Ario tivesse ven cido? É preciso deixar claro que a proposta de Ário não era fazer um rearranjo secundário da mobília teológica da lé cristã, comparando-se com o ajust e da posição ou a m ud anç a da cor de um a cadeira f avorit a da sala. A interpretação que Ário fazia da ide ntidad e de C risto diferenci ava tanto daquela proposta por Atanásio e da ortodoxia que só pode ser considerada como constituindo uma religião separada. O cristianismo ari ano é mu ito m ais próximo ao isl am ismo do que ao cr ist ianismo o rto doxo, tanto em relação à sua noção de Deus quanto à sua compreensão do papel religioso de seu fundador. Seu conceito de monarchia divina absoluta tem importantes associações políticas, visto que aponta para uma analogia de autoridade absoluta na terra e no céu. A inda mais imp ortante, o ari anismo enfati zou a inescr utabi lidade de Deus. Havia um hiato ontológico absoluto entre Deus e o mundo das criaturas. Cristo, ele próprio uma criatura, não tinha conhecimento direto de D eus c era, po rtanto , incap az de m ediar um a rev elação dir eta, autorizada e confiável de Deus.'A vontade de Deus podia ser conheci da, embora de maneira prudente; a face de Deus permanecia distante e desconhecida. A noção ariana de revelação divina é semelhante àquela encontrada no islamismo, suscitando importantes questões sobre a au toridad e e com petênc ia do revel ador para desvel ar o re vel ado. A ortodoxia cristã ofereceu uma estrutura teológica que auto rizava Cristo a revelar Deus, e forneceu uma ligação segura entre o revelador e o revelado. Em poucas palavras: se Cristo for Deus, então Cristo pode revelar tanto como Deus c quanto o que Deus deseja. A face e a vontade de Deus tornam-se ambas acessíveis por conta de uma visão da encarnação de Deus e da interpretação nicena da
«o y y f o j y Wf fy aluj Kvngdom: The Doctrine o f GW, de Jftrger M ol tm ann, Mirmeapolis: Fortress Press, 1993.
identidade de jesus Cristo. Para Ario, Cristo não pode “ser” Deus em nenhum sentido significativo do termo; além disso, não se pode nem m esmo considerar que C ris to ch egou a “con hecer” D eus diret am ente. Como todas as criaturas, ele conhece Deus de forma indireta e de ouvir falar, de um modo que pode exceder o de outros seres humanos em termos de quantidade, mas não em qualidade. • A or to doxi a compreend eu C risto como o mediador en tre Deus e a humanidade e admitiu que a sua “natureza dual”, como verdadei ramente divina e verdadeiramente humana, era um meio dc garan tir que essa ponte era segura. Somente Deus poderia revelai" a face e a vontade de Deus para a humanidade; somente Deus poderia salvar a humanidade. A interpretação nicena cia identidade de Jesus Cristo salvaguardava a realidade tanto da revelação quanto da salvação. O ari anismo, no en tanto, of ere cia um a po nte que n ão se estendia sufici ente m en te p ara alcançar o seu obje tivo divino — e, ao se conectar co m D eus, era incapaz d e pe rmitir à hum anidade um conh ecimento autênt ico e c onf iável de Deus ou a salvação prometida pelo evangelho. Para Ario, Cristo não possuía um conhecim ento direto de Deus; ele mediava um conhecim ento de segunda mão de Deus, que podia ser superior em qualidade àqueles de outros s eres hum anos, mas de m odo ne nh um podia ser igual em espécie. Ario e seus seguidores deixaram claro a sua crença de que Jesus de Nazaré revelou Deus e insistiram que fosse apropriado falar do cris tianismo com o u m a rel igi ão de sal vaç ão. Ma s a estrutura co nceituai que eles propuseram para a interpretação tanto da natureza de Deus quanto da identidade de Cristo, no final das contas, tornou essas ideias inco erentes e instáveis. O arianismo subverteu alguns dos temas centrais da proclam ação cristã, oferecendo aspir ações onde a ortodox ia apresen tava verdades, uma sombra no lugar de uma realidade. A visão cristã do Cristo ressuscitado, retomada de tempos em tempos em toda a sua plenitu de, brilho e gló ria, m ostra-se m uito difícil de ser expressa com palavras certas e com as id eias certas. E as palavras e id eias usa das por Ario foram, enfim, consideradas falhas nesse sentido. Em vez disso, um novo vocabulário e um novo conjunto de ideias foram exigidos para se
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As heres ias clássicas ^ “dios. aria nisn o. dona tismo. oelagi arvsmo
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fazer justiça à realidade dc Cristo. Dorothy L. Sayers (1893-1957) fez esta observação com grande energia, e suas palavras continuam impor tantes para qualquer discussão sobre esse assunto:
O dogma central da encarnação é aquele pelo qual a relevância se sustenta ou suc umbe, Se Cristo é apenas hom em , então ele é intei ram ente irrelevan te pa ra qua lquer idei a so bre Deus; s e é somente Deus, en tã o ele é com ple ta m ente ir rele vante p a ra qualq uer experi ênc ia da -v ida hum ana. N o sentido ma is estr ito , é nece ssári o par a a salvação da relevância que o homem acredite, dejorma correta, na enc arn açã o de Nosso S en hor Je su s C?~istocmh '
Donatismo: a natureza da igreja A segunda heres ia im po rtante que consider aremos nest e capít ulo é conhecida como donatismo e diz respeito a alguns aspectos da igreja e dos sacram entos.3 67 C on form e já vimos, no tem po do imp erad or rom a no Diocleciano (284-313), a igreja cristã esteve sujeita a variados graus de molestamento e perseguição. Ainda que a evidência histórica não seja totalmente segura, existem razões para sugerir que uma “cultura do martírio” se desenvolveu dentro da igreja africana em resposta a essa onda de perseguição, com seus membros deliberadamente cortejando a perseguiç ão e execução nas m ãos das auto ridades rom anas.365 ■' ''hhSavers, Dorothy L . Creed os Chaos? London: Methuen, 1947, p. 32-35. v'~ O melhor estudo das srcens e desenvolvimento desse movimento é The Donatist Church: A M ove m ent of P roiest m Rom an North Áfri ca, de W. H. C. FREND, Oxford: Clarendon Press, 2000. Para alguns escritores, o donatismo deveria ser considerado um movimento sectário ou asmático, em vez de uma heresia. Nesta seção, adotarei a visão tradicional de que o don atismo é mais bem entendido , retrospect ivamente, como um a heresia . T illey , Maureen A . Sustaining Donatist Selt-ldentitv: From the Church of the M artyrs to the Collecta of the D esert. Journal o fE a rly Christian S/ud ies, v. 5, p .2 1 - 3 5 /l9 9 7 .
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Isso causou certa controvérsia dentro da igreja africana. Mensúrio, bispo de Carta go, e o seu vic e-b ispo Cecilia no opusera m -se firm em ente ao que e les consi derar am u m des ejo fanát ico pel o m artírio/Co ntu do , ou tros viram nisso um ato encorajador das autoridades romanas que os per seguiam. Os ânimos se inflamaram. Um assunto de importância especial dizia respeito aos líderes cris tãos que h aviam en trega do seus textos sagra dos às autoridades. De acordo com o édito de fevereiro de 303, os líderes cristãos receberam a ordem de entregar seus livros para serem queimados. Os que enfrentaram essa ação destruidora passaram a ser chamados dc traãitores (traido res), “aqu eles qu e e ntr eg ara m [seus livro s]”.1''" As te nsõ es se elevaram entre os traditores e aqu eles q ue ide aliza va m o m ar tírio .370 Mensúrio foi acusado de ser um traditor pelos seus críticos, embora ele próprio afirmasse que havia entregado algumas obras heré ticas que, por acaso, ele tinha em mãos, e jamais um texto sagrado. C om a pos se d e C onstan tino, aca bou a pe rsegui ção. M as um a ques tão sensível surgiu em seu dia seguinte: como deveriam ser tratados aque les que haviam esmorecido ou se comprometido de algum modo durante a perseguição? O problema era especialmente sério no caso de líderes cristãos que tinham fraquejado sob pressão. Alguns adotavam uma linha dura , exigi ndo q ue foss em exp ulsos. Me nsúrio, porém , adotou um a linha genero sa e branda para com os q ue ti nh am decaí do du rante o se u temp o de vida, Pelo fato de o bispo de Cartago ser amplamente aceito como bispo sênio r na Africa, os seus pontos de vista sobre o assu nto tinham grande impacto sobre a forma com que a questão era tratada. Mensúrio morreu em 311. Então, quem iria sucedê-lo? Os linhasduras, encabeçados por uma viúva rica e influente chamada Lucila, e os bispos da N um ídia queriam que ele fosse substitu íd o por um sim p atiz an te do culto do martírio, que adotaria uma linha dura com aqueles que 'll' A palavra moderna “traidor” deriva da mesma raiz. Outros termos relativos a essa perse guiçã o in clu cm mcrificati (aqueles que faziam sacrifícios aos deuses romanos), thimfuati (aqueles que queim avam incenso em altare s pagãos) e libellatki (aqueles que ass ina vam docum entos indican do sua conform idade religiosa ). ' " K rieoba um , Bernh ard. Ktrcbe der Traditorm oder Kirche der Aíãrtyrer; Die Vorgesibichte des Donatismus. Jnnsbru ck: Tyrolia-Verlag, 1986, p. 59-1 48.
As heresias clássicas tardias. ariarvsmo . don atism o. pelagiamsmo
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tinham decaído. Os númidas representavam um antigo reino berbere, ocupado pelos romanos, com aspirações nacionalistas. Aos olhos dos bispos da N um ídia, M en sú rio havia sido m u ito com passiv o com os co lonizadores rom anos. N a vi são del es, er a tem po de um núm ida to rna r -se bispo de Cartago e dar um líder moral firme à igreja. A ten ta à s ituação, a fac ção mai s m ode rada decidiu agi r rap idam en te e eleger Ceciliano com o bis po, antes da chegada da delegação nú m ida. A consagração de Ceciliano foi efetivada por três bispos, inclusive Félix, o bispo dc Aptunga — um traditor. Muitos cristãos daquele lugar mostraram-se enfurecidos por se ter permitido que aquele bis po particip asse daquele ato de consa gra ção. P or isso, decla ra ram que não poderiam aceitar a autoridade de Ceciliano. Os bispos númidas recusaram-se a reconhecer a consagração de Ceciliano, e exigiram uma nova eleição, argumentando que sua autoridade de bispo es tava comprometida pelo fato de ter tido a participação de um bispo que decaíra sob o peso da perseguição. A hierarquia da igreja ca tólica estava, portanto, maculada em conseqüência desse evento. A igr eja deveri a ser pu ra e não pe rm itir a inclusão da quelas pess oas. O s bis pos nú m idas exigir am que C ecili ano vie sse diante deles defender a sua eleição e consagração. Quando ele não o fez, os rigoristas de pu seram -no e ex com ungaram -no, desig nando M ajo rin o em seu lugar. Majorino morreu em 313, e foi substituído por Donato, o Grande, que liderou com significativo apoio local. No fim, Constantino se vau arras tado na con trovérsia e se declarou a fa vor de Ce ciliano. A igr eja do no rte da África dividiu-se em duas facções, a maior delas seguindo Donato.1 A controvérsia foi alimentada pelas ambivalências e tensões den tro da teol ogia de um a fi gura d om inan te da igre ja af ricana no séc ulo III — o m artirizad o bispo C ipria n o, de C arta go. E m seu Unidade da igreja católica (251 ), Cip ria n o havia insistid o em dois p rin cíp io s.17' ‘Prim eiro, fundamental, o cisma é total e absolutamente injustificado. A unida de da igreja não pode ser rompida, não importa sob que pretexto ou M V.
According to Cyprian of excelente análise em “Heresy and Schistn C artha gc”, dc Geolfrev D. Dunn [JournalojThcologicalSti/dies, v. 55, p. 551-74,2004). Lima
ocasião. Pisar fora dos limites da igreja é perder qualquer possibilidade de salvação. Par a C ip ria n o, “nã o h á salvação to ra d a igreja”. 17’ >' 1 Seg un do , em co ns eq üên ci a d isso, os bi spo s d ec aí do s o u c ismát ico s deveriam ser privados, pela igreja, de qualquer direito de administrar os sacramentos ou agir como ministros da igreja cristã. Ao escolher ficar de fora da esfera da igreja, eles perderam os seus dons e autoridade espirituais. Não lhes deve ser permitido, portanto, ordenar ninguém. Além disso, qualquer um que foi batizado, ordenado ou consagrado p o r eles deve ser co n sid erad o com o n ecessitan d o de reb a tis m o , reo rdenação ou reconsagração. N o enta nto, a situação que se segue de abran d am en to da persegui ção de Diocleciano causou um sério problema. O que deveria acontecer se um bispo decair sob perseguição e depois se arrepender? A teoria de Cipriano mostrava-se um tanto ambígua nesse ponto, oferecendo-se a duas linhas bastante diferentes de interpretação. Primeiro que, por seu desvio, o bispo cometera o pecado da apostasia (literalmente, “abando nar”).'Portanto, ele se colocara fora dos limites da igreja e já não podia ser considerado apto para administrar os sacramentos de forma oficial. Segu ndo que, po r se u arrep end im ento , o bispo fora r estabel ecido à gr aça e podia continuar a administrar oficialmente os sacramentos. Os donatistas ado taram a prim eira posi ção; os católi cos (como os seu s opo ne ntes passa ram a ser univ ersalm ente conhecidos), a segunda posição. ' Os donatistas acreditavam que todo o sistema sacramental da igreja catól ica tinh a sido corrom pido em razão do lapso de seu s lídere s. Co m o os sacramentos poderiam ser administrados de forma válida por pessoas que eram de tal modo corrompidas? Logo, era preciso substituir essas pessoas por líderes mais aceitáveis, que se haviam m antido firm es em sua fé dura nte a perseguição. Era necessário também rebatizar e reordenar todos os que tinham sido batizados e ordenados por aqueles que tinham decaído. ' Seri a evidente que um debate teológico legíti m o fos se transform a do em algo muito mais complexo e matizado devido a suas associações " C ipr i ano de
C artag o .
Epístola 72 : “[S] alus ext ra eedesiam
no n e st”.
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e implicações políticas no início do século IV. Os donatistas eram em geral berberes nativos, enquanto os católicos eram em geral colonos ro m anos.’ Aqueles que pregavam gene rosidade e tolerância em rel ação ao s traditores eram, portanto, geralmente apoiadores do governo imperial romano na região. Dado as complexidades étnicas da antiga África”’ e os sentimentos nacionalistas e anticolonialistas latentes na região, era inevitável que a agenda teológica encontrasse alinhamento com tensões políticas. M u itas vezes foi sugerida a relação dos m ovim ento s heré ticos com os nacionalis m os o prim ido s.17' E m bo ra pudesse ser claramen te incorreto sugerir que dada heresia seja simplesmente um movimento social ou nacional transposto para uma chave teológica, existem exce lentes razões para se afirmar que uma abordagem teológica poderia ser facil m ente ass ociada a um a a gen da soc ial ou polít ica. O assunto ainda estava vivo quase um século depois, quando Agostinho foi consagrado bispo de Hipona, 110 norte da África roma na , em 3 9 6 .’ Ag osti nho respondeu a o des afio donati st a propondo um a teoria da igreja que ele acreditava estar mais solidamente fundamentada no N T do que o ensi no donatist a. E m par ticul ar,; A gostinho enfat izou a iniqüidade dos cristãos. A igreja não tem a intenção de ser um “corpo puro”, um a sociedade de santos. E m vez disso, pretende ser um "corpo misto” [corpits permixtuni) de santos e pe ca do res .57,1 A go stin ho e nco ntr a Para uma ótima interpretação disso, v. “Vandals, Rotnans and Berbers: Understanding Late Antique Roman Africa”, de A. H. M ER Rll . LS . I n : _____ (Org.). Vandals, Ro m ans an d Berbers: Neu< Per spectives on La te A nti qu e N or tk Africa. Aldershot: Ashgate, 2004, p. 1-28. ,-J Para uma investigação proveitosa dessas questões, v. “Heresy and Schism as Social and National Movemcnts”, de W. H. C. Frknd. In: BAKER, Dcrek. Schism, Heresy and Pntesi. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1972, p. 37-49. Sobre as tensões entre as igrej as de R om a c C artago , v. Kar t bago un d Rom: D ie Stellung der nordafri kamscben Kir che zuni Apostoliscben Stu hl in Rom , de W erner M ar sha i .1, Stuttgart: Hiersemann , 197 1. A respeito das primeiras visões dc Agostinho sobre a igreja, v. Augustm és Early Tbeologv o f the Church: Emerg ence and Im phcatwn s. 38 6- 39 1, de David C. Al.KXAXDRR, N ew York: Petc r Lan g, 20 08 . Pa ra saber ma is sobre a base desse con ceito, v . Sa ints an d Stnners nt the Ea rly Church: D iffe ring and C onfluting Traditions in the First Stx Centuries, de W. H. C. F rioxd , London: D arton, Longman & To dd, 19 85 , p. 94 -11 7.
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essa im agem em duas parábolas bíblicas: a parábola da rede que pega muitos peixes, e a parábola do trigo e das ervas daninhas (ou “joio”, para usar um a palavra mais familiar a muitos leitores). E essa segunda parábola (M t 13.2430) qu e é de especi al imp ortân cia, e exi ge um a discuss ão adicional. A parábola fala de um agricultor que semeou a semente e des cobriu que a colheita resultante incluía trigo e ervas daninhas. O que poderia ser fe ito a respeito? T en tar separar o trigo e as ervas danin has enquanto ambos ainda estavam crescendo seria um convite ao desastre; pro vavelm ente im plic aria estr agar o trigo ten tan d o se livrar das ervas dan inhas. M as, na co lheit a, t odas as plant as — que r tri go que r er vas da nin ha s — seri am colhidas e cl assi ficadas , evitando , as sim, danificar o tr igo. A separaç ão do b em e do m al acontece, assi m, 110 fim dos tem pos, não n a histó ria . Para A g ostin ho , essa parábola refere -se à igreja no m undo . A igreja de ve esperar i ncluir santos e pecadores . T en tar um a se paração neste m u n d o é prem atu ro e im próprio. Essa separação aco nte cer á no devi do tem po de Deus, no f im da hi st óri a. N en hu m ser hum ano pode fazer esse julgam ento ou separa ção; isso cabe u nic am en te a D eus. U m a passagem b íbl ica rel acionada diz respeit o à pr ofeci a de João Batista: Jesus de Nazaré trará o julgamento que pode ser comparado a um a eir a (M t 3.11, 12). T an to o tri go qu an to a palha caem na ei ra e são separados. Então, como isso deve ser interpretado? Surgiram duas p erspectivas m u ito dife rentes.''" 7 P ara os d o n a tista s, a eira referia-se ao mundo como um todo, contendo tanto 0 trigo quanto a palha. O processo de separação levava ao surgimento da igreja como a comu nidade do puro; a palha permaneceria no mundo. Para Agostinho, a própria ig re ja era a eira, cujos m em bros in clu ía m tr ig o e palh a. Assim, em que sentido a igreja pode de forma significativa ser designada “santa”? Para Agostinho, a santidade em questão não é a de seus m em bros, mas a santidade de C ris to /A igr eja não pod e se r um a congregação de santos neste mundo, uma vez que seus membros são A i.fxan oe r, Ja mes S. A Note 011 the Interpretation oí the Pa rab le ofth e Threshing Floor at the Ccmfe rence o f Carth agc of A D . 411, Jo urn al ofT beo lc gual Sfudies, v. 24, p. 512-519, 1973.
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.As heresias clássicas tard ias. aria nis rro , dc na iism o. pelagianism o
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con tam inado s com o pec ado ori ginal. N o en tanto, a igr eja é santif icada e tornada santa por m ei o de C rist o — um a santidade que se rá aperf ei çoada e finalmente concretizada no juízo final. Além de oferecer essa análise teológica da santidade, Agostinho observou astutamente que os donatistas não cumpriam os padrões elevados que eles próprios ti nham de moralidade. Eles eram, sugeriu Agostinho, capazes de lapsos m orai s, tanto qu anto seu s opon entes. . Agostinho fez uma observação semelhante com relação à teologia dos sacramentos. Para os donatistas, os sacramentos — tais como o ba tism o e a eucari sti a — seri am efe tivos som ente se fos sem ad m inistr ado s p or alg uém de m ora l inquestionável e pureza doutrinai. Essa atitude pode ser vista n u m a carta escrita em 402 p o r Petilia no, o bispo d o n atis ta de Cirta, para Agostinho. A carta estabelece, em alguma medida, a insistência donatista de que a validade dos sacramentos depende total m ente do m érit o m oral daquel es que o s adm inis tr am . Respondendo a isso, Agostinho argumentou que o donatismo co locou uma ênfase excessiva nas qualidades do agente humano e deu um peso in su ficiente à graça de Jesu s Cristo . É im possível p ara os seres decaí dos — afir m ou Ag ostinh o — fazer di sti nções a respeit o de qu em é puro e quem é impuro, quem é merecedor e quem é imerecedor. Essa visão, que é totalmente coerente com a sua compreensão da igreja como um “corpo m isto” de santos e pecadores, defen de q ue a ef icá cia de u m sacramen to não est á nos m érit os do indi víduo que o ad m inist ra, mas nos m éritos daquel e que o in stiaii u em prime iro lu gar : Jesus Cristo. A validade dos sacramen tos é, portanto, independente dos méritos daqueles que os administram! Pode haver um a van tagem pastoral aos sacrame ntos que sã o adm inistr ados por alguém de re putação irrepreensível, mas não há nenh u m a exigência teológica para isso. Cristo é o último fiador da eficácia dos sacramentos; o ministro cumpre apenas um papel secundário e subordinado. Então, por que o donatismo passou a ser considerado uma heresia, não somente uma opinião equivocada? Por que não tratá-lo como um simples mal-entendido ou reação exagerada, cujas srcens p o d em ser facilm en te explicadas em term os da com plexa situação
política enfrentada pela igreja cristã no norte da África no século IV ?ir* 0 m elhor m odo de entend er a ameaça postulada pel o dona ti sm o é olhar de perto a sua compreensão da natureza da igreja e os benefícios que seus sacramentos oferecem aos crentes. Donato e seus seguidores insistiram em afirmar que a eficácia da igreja e de seu sistema sacramental dependia da pureza moral ou de culto de seus representantes. Desse modo, a graça c o poder de cura do evangelho cristão foram interpretados como dependentes da pureza da igreja e de seus ministros. Para Agostinho, isso eqüivaleria a tornar a sa lvaç ão indiretam en te d epen den te da pureza hum ana, não da gr aça de Cristo. Os ministros e sacramentos eram somente os canais, não a causa, da graça de Deus. O donatismo ameaçava tornar a salvação da humanidade dependente de agentes humanos santos, em lugar da m orte e ress urrei ção de Jesus Cristo. Crist o, po rtanto , desem pen ha um papel secundário para afiançar ou apo iar a sa lvação, en q u a n to o agente humano desempenha um papel principal, de importância crucial. Tem os aqui um te m a im po rt ante da i nter pret ação que A gosti nho faz da fé cristã: a natureza humana e decaída, ferida, frágil, permane cendo necessit ada da cura e rest auração pela graça d c D eus. D e acor do com A go sti nh o, a igr ej a deve ser com parad a mais a um ho spital do que a um clube de pess oas saudáveis. E um lug ar d c cura para pessoa s que sabem que precisam de perdão e renovação. A vida cristã é um processo cm que se é cu rado do p ecado , não em que se vive um a vid a de pureza — a cura é co m pletad a e o pa cien te é restabelecido à saúde plen a. A igre ja e um a en fe rm a ria pa ra d o e n tes e pa ra os convale scentes. E somente no céu que seremos finalmente íntegros e saudáveis. A abordagem donatista representa uma recusa baseada em p rin c íp io s, se b em que d o g m átic a, em c o n sid e rar que to d a a h u manidade (inclusive os sacerdotes e os bispos) necessita da mesma cura que o evangelho oferece. Os ministros da igreja cristã pregam a ’,s Para uma boa explicação das questões aqui apresentadas, esp. em relação à resposta política do catolicism o ao donatism o,' v.oAtm tstine and Politics 1 ' ^at Lowin<* in lhe World dc John v o n HEYKING Colum bia: Univ. of M issouri Press, 2001, p . 222-25 6.
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heresias clássicas ta* dias: ara riis m o. aon ctis rno . pela ^an ism o
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m esm a cura qu e el es próp rios preci sam . Eles devem se r considerados convalescentes espirituais, que podem administrar a outros as mes mas pomadas e remédios que os mantêm na estrada para a cura, mas que ainda preci sam ser totalm en te curados . Poderíamos dizer, assim, que, embora a heresia donatista pareça preocupar-se com o nosso enten dim en to da ig reja e dos sacra m ento s, ela está profundamente arraigada num entendimento equivocado da natureza hum ana, em vez de depen der unicam ente da gra ça di vina. U m cas o sem elhan te surgiu du rante a controvérsi a pelagiana, para a qual no s voltaremos agora.
Pelagianismo: natureza humana e graça divina N a se ção ante rior, apresenta m os A g o stin h o de H ip o n a ; é p reci so dizer um pouco mais sobre ele, cuja proeminência no debate pelagiano justi fica co nsiderá-lo nesta seç ão. A go sti nh o, fil ho de pai pagão e mãe cristã, nasceu em 354 na cidade de Tagaste, hoje conhecida como Souk-Ahras [na Argélia], no norte da África romana. Talvez cansado das tentativas feitas por sua mãe, Mônica, para convertê-lo ao cristinismo, Agostinho fugiu para Roma e buscou uma carreira na adm ini st ração im peri al r om ana. Agostinho reconta a sua peregrinação espiritual em Confissões, uma obra que mescla autobiografia com reflexão teológica. Na obra, relata como, por uma série de aparentes casualidades, ele se viu levado a um ponto no qual fora im pelido à fé cristã ;57'' O m om ento de crise, A gostinho viveu em agost o de 386, quan do est ava sentando debaixo d e u m a figuei ra no jardim de sua ca sa em M ilão, perturbado com um a suposta incapac i dad e de d om inar a sua natureza m ais bai xa. Qu an do ele ref let ia sobr e sua s fraquezas e fal has, ouviu al gumas cri anças brinc and o nu m jard im vizi nho, 579 Ex celente descrição da conv ersão dc A go stin ho c Augustin es Conversion.-A Guidc to lheA rgum cnt o f Confessions I- IX , de C olin StarXKS, W aterloo: W iltrid La urier Uni v. Press, 1990.
cantando “Pegue c leia! Pegue e leia!” Agostinho correu para dentro de casa, abriu ao acaso o seu Novo Testamento e leu os versículos que pare ciam saltar da página: [...] reves ti-vo s do S enh or Jesus Cristo; e não fiqu eis pensando em como atender aos desejos da carne (Rm 13.14). Ele íechou o livro e anunciou aos seus amigos que havia se tornado um cristão. Agostinho, porém, estava convencido de que essa conversão não tinha sido uma questão de escolha própria. A medida que ele refletia sobre a aparente casualidade que o levou a fé, ia se convencendo de que compreendia a graça de Deus que o precedeu em cada ponto, en corajando-o para o momento decisivo da conversão. Repetidas vezes Agostinho interrompe a narrativa de sua experiência em Confissões para louvar a Deus pelo modo mediante o qual a sua mão esteve agindo em sua vida. Com frequência, Agostinho expressa a sua profunda sensação de ser dependente da misericórdia de Deus: “Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que ordenais, e ordenai-me o que quiserdes”.’S0Para Agostinho, uma humanidade pecadora e fraturada era totalmente dependente de um Deus gracioso e amoroso, d a m esma form a com q ue um paciente f eri do e em sofr imento depende dos serviços de um médico competente e cuidadoso. Enquanto Agostinho meditava contente sobre a benevolência do Deus que ele havia encontrado tão tarde na vida, outros estavam achan do as suas palavras claramente incômodas, talvez até mesmo inúteis. Um dos leitores que menos apreciavam as Confissões de Agostinho era Pelágio (c. 355-c. 435), um monge britânico que havia dado início a uma cruzada reformadora dentro da igreja romana. Pelágio, é preciso dizer, é uma figura na h istória da igr eja que evoca fortes r eaçõe s. O famoso e studioso da patrística, Robert Evans, comenta: “Pelágio é uma das figuras mais malvistas na história do cristianismo. Tem sido esporte comum do teólogo e do histo riador da teol ogia atribuir-lhe o papel s imbóli co de ho m em mau e despej ar sobre ele acusações que muitas vezes dizem mais sobre a perspectiva do Confissões 10.29. “Da quod iubes, et iubc quod vis”. Vr. tb. ‘A ug usti ne , Pelagius an d the C on trov ersv on the D oc tri ne o f Gra .ce”, de Pcit F. Fransi-.n, L ouvam Studies , p. 172-181,1987. •"!D A gost
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acusad or do que sobre Pelágio”. -',1 M esm o reco nhe cen do o risco de um a estereotipia injuriosa, continua importante identificarmos as ideias centrais de Pelágio e compreender as suas srcens e motivação, bem como a reação que elas provocaram em outros. Isso não é totalmente fácil, uma vez que o pelagianismo, de c erta m aneira, ten de à imprecisão teo lógica,3 ' 2 com a ênfas e recaindo na nec essidade de renovação m oral, em v ez de incidir s obre a precisão teológica. U m a comp licação a mais diz respei to à natureza m atizada do próprio pelagianismo, isso que é mais bem considerado como um amálg am a de idei as de vários es crit ores — prim eiram en te o próp rio Pelági o, Celestino e Rufino da Síria,’8’ mas também o escritor tardio Juliano de Eclanum. O pelagianismo certam ente incluía algumas ideias e ênfases vindas de Pelágio; mas outras ideias associadas ao movimento devem suas srcens a outros. Po r exemplo, a s visões do pelag ianism o sobre a mo rtalidad e e a t ransm issão do pecado parecem dever mais a Celestino c Rufino do que a Pelágio. "'' i
Pelágio tinh a a inten ção de reform ar a igr eja , en fatizan do que todas as pessoas possuem um poder dado por Deus para melhorar a si m e s m a s.I d e ia s semelha nte s ti nh am sido ant eci padas por out ros escr i tor es por volt a dess e perí odo , incluind o Ru fino, que ch egou a R om a em 399, como o representante de Jerônimo num debate teológico relativo 381 Evans, Robert. Pelagius: Inquiries and Reappraisals. New York: Seabury Press, 1968, p. 66. m Bo.nnf.r, Gcrald. Rufinus o f Syria -and African Pelagianism, Augusfin ia n Studies , v.l, p. 31-47, 1970. T e S elle , Eugene. Rufiniusthe Syrian, Caelestius, Pelagius: Explorations in the Prehistory of the Pelagian Controversy, Ang us tinia n Studies, v. 3, p. 6.1-95, 1972. Para mais detalhes, v. csp. “Caelestius, Discipulus Pclagi”, de Guido HoNNAY, Augustmiana, v. 44, p . 27 1-3 02 ,19 91 . 584 GlRARD,Jean Michel. La mort chez S ain t Au gustin : Grandes ligues de Vevolution de
sei pensée, tellc qu elle ap parait d ans ses Lraités. Fribourg: Editions Universitaires, 1992, p. 133-1 38. Dois importantes estudos sobre Pelágio devem ser consultados a esse respeito: “Pelagius and His Supporters: Aims and Environment”, de Pcter BROWhi, Jo urual ofTheologicalStudies, v. 19, p. 83-1 14 ,196 8; “ T he Patrons ofPelagius: The Roman Aristocracv Betwccn East and West" , de Peter B rovvn , Journal of Theological Sitdies, v. 21, p. 56-72, 197U.
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às id eias de Oríg en es.’ '6 Naq uele m om ento, em R om a, e stava t am bém presente C ele stino, que defe ndeu as seguin te s ideias: 1. O pecado de Adão só prejudicou ele mesmo, não a humanidade como um todo. 2. Crianças nascem no mesmo estado de Adão antes de sua queda. 3. A Lei de Moisés é tão boa para nos guiar até o céu quanto o evangelho de Cristo. Talvez fosse inevitável ocorrer um grau dc confluência entre as ideias e perspectivas desses três escritores, produzindo o conjunto de ideias do pelagianismo, que é referido com mais acerto como um amál gama de ideias relacionadas e derivadas de diferentes fontes. A ideia de que havi a um m ovim ento coere nte cham ado pelagi anis mo, rel acionado especificamente com o escritor Pelágio, parece que se deve, em grande parte , a A go stinh o . N o en ta nto, há um a evid ência cada vez m aio r de que es sa pode ter si do um a construção retóri ca po r part e de Ag osti nho , na qual uma série de crenças e atitudes combinadas e complexas, sendo apenas algumas delas atribuídas a Pelágio, foi representada como se fos se um movimento coerente centrado no próprio Pelágio. Uma interpretação mais cautelosa da evidência histórica não apenas sugere que Pelágio não defendeu algumas das posições teológicas que tra dicionalmente são atribuídas a ele, mas também que Pelágio estava muito mais preocupado em encorajar o comportamento moral cristão exemplar do que em se envolver em especulação teológi ca. Pe lágio é mais be m visto com o um ativista reformador e pragmático, em vez de teólogo. A elaboração de um sistema teológico que poderia ter encorajado e sustentado tal comporta m en to devia-se mais a Celestino
e Rufino .3S7O resultado disso é um grau de
356 Sobre o contexto romano do movimento pelagiano, v. Roma christiana: Recherehes sur FEg/ise de Reme, son organisation, sapolitique, son idéologie de MUtiade a Sixle I I I (31 1-4 40 ), de Charles Pietrj , Rome: Ecole Française de Rome, 1976. p. 1222-1244. 3S' N u v o lo n e , F. G.; Sol iGXAC, G. Pélage et Pé lagianism e, Dictionaire de spm tualite. Paris: Beauchesne, v. 12, p. 2889-2942,1986.
.-ó h'_-'cs'as clássicas t?.rdias: ar ic- ism o, aona tism c. pelagi c.msrro
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dificuldade para distinguir as visões teológicas pessoais de Pelágio daquelas que surgiram do sistema informal que normalmente é chamado de “peiagianism o”. A suposição de q ue o “pela gian ism o” se refere às visões de Pelágio está sc torna do bem men os consist ente do que nas ger ações ant eriores . Tradicionalmente, considera-se que as srcens da controvérsia pela giana data de 4 0 5 ,^ quan d o Pelá gio leu as pala vras de A g o stin ho : “Dai-me o que ordenais, c ordenai-me o que quiserdes”. Essas pala vras , das quais já tratam os (v. p. 160), cau sou -lhe con siderável ofensa. Elas pareciam atacar diretamente o núcleo do seu programa reformis ta, negando o direito e a obrigação humanos de buscar perfeição. E assim começou a controvérsia pelagiana, embora as ideias e atitudes que estão por trás do pelagianismo tenham surgido anteriormente. Esse toi um deb ate com plexo, toca nd o em diversas qu estõe s.3^ N o entanto, para os nossos propósitos, será útil nos concentrar em dois de seus t em as pri ncipais: a dinâm ica da cond ição hu m an a e a nature za da graça divina. Em cada caso, o pelagianismo desenvolveu uma visão es sencialmente lógica da vida cristã que diferia de maneira significativa daquela proposta por Agostinho. Vamos começar considerando a quest ão da natureza hu m ana. O pela g ia nis m o insistia que os se res h u m an o s são co m p letam en te livres em todas as suas ações e afirmava que tal crença era a condição prévia essencial para a ação moral e renovação espiritual. O comportamento dos seres humanos não é intluenciado significativamente por forças ocultas, nem é restringido por poderes que, no final das contas, estão além de seu controle. "1Nós somos senhores do nosso destino. Se nos disserem para deixarmos de pecar, podemos deixar de pecar. O pe cado é algo ao qual podemos e devemos resistir. De muitas formas, o pelagianismo desenvolveu visões semelhantes àquelas expressas na ’ss Sobre a questão da data, v. “La date de ‘De nat ura’ de Pélage: Les prem ières étapes M a n a DUVAL, Revue des études de la controverse sur la nature de la gráce", de YvesAugustintennes, v. 36, p. 257-283, 1990. -w V., p. ex., Kirche bei Pelagius,de Sebastian T i 11ER, Berlin: de Gruvter, 1999. wu A m elh or investigação d esse po nto é Gnadeais konkrete Fretheit: Eme Untersuchung zur GnadenlehredesPelagius , de Gisbert GRESHAKE, Mains: Matthias Grunewald Verlag, 1972.
últim a estr ofe do po em a “Inv icto” (1875), de W ill iam E rn est Henley, um grand e favorit o na er a vit oriana:
Por ser est reita a send a — eu não declino, N e m p o r pesada a m ão que o m undo es palm a; Eu sou dono e senhor de meu destino; E u sou o comandante de
m inha alma. 'm’
, Para o pelagianis m o, D eus nos deu o s De z M an da m en tos e o exemplo de Jesus Cristo, e deveríamos viver de acordo com eles. O significado dc Cristo deve ser visto principalmente no seu ensinamen to e exemplo. Então, os seres humanos podem, de fato, viver de acordo com esses padrões elevados? De acordo com o pelagianismo, qualquer im perf eiç ão na natu reza h u m ana que nos poderia im p edir dc agir m oral mente refletiria mal em Deus. Afinal de contas, para início de conversa, foi Deus quem nos fez. Sugerir que algo está fundamentalmente errado com a natureza humana significa sugerir que Deus não criou bem a humanidade. O próprio Pelágio confirma essa ideia numa carta para D em etri a, um a m ulher da alt a soci edade r omana:
[Em vez de se referir aos mandamentos de Deus como um privi légio, ] nós clamam os a D eu s e dizem os: ‘'Isto é m u ito duro! Isto é m uito dif íci l! N ão pode mos fa zê -lo ! So mos ape nas humanos,
e
sujeit os a fraq ue za da car ne! " Q ue louc ura c ega! Q ue presunção grossei ra! A o fa z e r isso, nós acusamos o D eus do conhecime nto de uma dupla ignorância
— ignorância de sua própria criação e de
seus próp rios m an da m ento s. E como se, esqu ece ndo da fra au eza da hum anida de — ap ro pria criação — , D eu s nos tivesse im posto yn" [N T] Tradução de An dré C. S. M asini í Pequena coletânea de poesias de língua inglesa. Cascavel: Edição do autor, 2000). Original: “It matters n ot bo-w stra it the gate, / H õ -ic charged w tt b pu nis bm en l the scroll. / / am the master o fmy fa U :/I a m the captain o fm \ sout!” i
2;">4
As heres'as clássicas tardias: arianism o, co nad sm o. pelagianismo
mandamentos que fôssemos incapazes de cumprir.
]
[...] N in g u é m
conhece m elhor a dime nsã o da noss a fo rç a do qu e o D eu s que nos deu ta l força.
[...] D eu s não teve a prete nsão de ordenar nada
impossível , p o is D eus éjusto ; e nã o condenará n in g u é m p o r aquilo que não po ssa evita r.-'42
Está claro que Pelágio tinha muitos seguidores em Roma, como Demétria, que via suas reformas como pouco mais que o senso comum sant ifica do." 9" Q ua l era exatam ente o prob lem a em exi gir um ap rim ora m ento m oral das pes soa s? A idei a fo i desenvolvi da tam bé m po r Juliano de Eclanum (c. 386-c. 455), que determinou o que seria, na prática, um evangelho do autoaprimoramento adaptado às normas da cultura rom ana .3-4 O result ado foi que o pelagianism o res soou fortem en te em muitos de Roma naquele tempo, oferecendo uma sofisticada visão de autoaprimoramento com um forte núcleo espiritual. A c onso nânc ia entre o pelagiani smo e as normas culturai s romanas tamb ém da va a en tend er que A go sti nh o er a um estranho na soci edade romana. Parece ter se desenvolvido uma percepção de que Agostinho de H ipon a represent ava ant es um enfoque afri cano provinci ano à teo logia, o qual teologia mais urbana cosmopolita p ró p ria R omseria a. Ainferior c o m pàreen são de que A g o estin h o fo i u mdados m aiores p en sad o re s da c ristan d a d e p o d e se r ev id en te aos leito res m o d ern o s. Esse, porém, não foi um julgamento compartilhado por seus con temporâneos em Roma, alguns dos quais parecem ter considerado a s ua t eologi a prov inci ana — at é m esmo paroquial — , falt and o-lhe credibilidade cultural. Alguns foram ainda mais longe e sugeriram que a teologia de Agostinho era contaminada pelo fatalismo maniqueísta; outros sugeriram que ele não levava em conta as sofisticadas ’9’ Pelá gi o , Epis tul a
adDem etri adem 16. Sobre a questão da atitude dos bispos romanos em relação ao ensino de Pelágio, v. Rom und Pelagius: D ie theologische Posttion der ramischen Bischõfe im pelagianischen Streif m den Jahren 411-4 .32 , de Otto W er meli xgek , Stuttgart : H iersemann, 1975. •!V4 V. Julian von Aeclamtm : Studien z.u seinem Lebcn, seirnm Werk, seine r Lebre un d ibrer Überlieferimg, de Josef L õ SSL, Leiden: Bnll, 2001, p. 250-3 30.
riquezas teológicas da igreja oriental, que estava conquistando cada vez mais atenção e influência em Roma/-' Para Agostinho, os pontos de vista pelagianos sobre a natureza humana, longe de serem culturalmente sofisticados, eram teologica mente ingênuos e tinham pouca relação tanto com o ensinamento do NT quanto com a experiência humana. A crença fundamental de Agostinho é que a natureza humana, ainda que criada sem nenhum p roble m a, é co n tam in a d a com o pecado, com o co nsequência da q u e d a .E x is te uma fa tal , até mesmo tr ági ca , f al ha na nat ure za humana, que não é em si mesma resultado da criação divina. Agostinho usa a imagem da “queda” para designar uma deserção fundamental da humanidade da trajetória que Deus traçou para ela na criação. Em Gênesis, as narrativas da criação deixam bastante claro que Deus nos criou m uito bem . N o en tanto, de vido a es sa “qu eda ’’, A go stinho insis te, a natureza humana é caracterizada por uma propensão ao pecado e um distanciamento de Deus. Os seres humanos caídos têm, desse m odo, um a tend ência inerente a pec ar . Agostinho, portanto, confirma a liberdade humana natural, uma vez que não fazemo s coi sas apenas por faz er, mas com o u m a q uestão de liberdade. Ao m esm o tem po, porém , ele insi ste que devemos reconh ecer as no ssas lim itações de liberdade. O livre-arbítri o h um an o foi enfraqu e cido e incapacit ado — mas não eliminado ou de str uído — pel o pecado. Para que esse livre-arbítrio seja restabelecido e sanado, é preciso a ope raç ão da graça divina. Pa ra explicar ess e pon to, Ag os tinh o u sa a analogia de uma balança com dois pratos em equilíbrio. Um prato representa o bem , e o outro, o mal. Se os prato s estiv erem precis am ente equilib rados, '9' Os escritos de João C risósto m o cham avam a atenção nessa época. V. “De natura’ Pélage”, de Joã o C r i sóst omo , p . 280-281. Para um a excel ent e interpretação das visões de A gostinho , enfocando am a variante tardia da co ntrovérsia pelagiana, v . Gratia E t Certa men: The Relati onship Between Grace an dF ree W ill in the Discussion ofAug ustine w ith the So-CalledSemipelagians, de Do nato O g l i ai u , Louvain: Peeters , 2003. Para uma abordagem detalhada da dou trina da graç a de Agostinho, v. SantAgostino: Introduzione alia dottrma delia grazia, de Agostinho T r a pe , 2v., Rome: Città Nuova, 1990.
As heresias clássicas tardias: arianism o. co naa sm o, pelagianism o
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Agostinho demonstra, é possível pesar os argumentos a favor de fazer o bem ou de fazer o mal, chegando-se a uma conclusão apropriada. O paralelo com o livre -a rb ítrio hum ano é óbvio: nós pesam os os arg um ento s a favor de fazer o bem e de fazer o mal e agimos da forma adequada. E se os pratos forem adulterados? - Agostinho pergunta. O que ocorre se •alguém colocar vários pesos no prato do lado do mal? A balança ainda funcionará, mas tenderá seriamente para uma decisão má. A gostinho afi rma que o l ivr e-arbí tr io h um ano é agor a predispos to para o mal. O equilíbri o do livre-arbítrio realm ente exi ste e realme nte pode to m a r decisões — exata m ente com o a bala nça adulterada ain da funciona. Mas, em vez de resultar num julgamento equilibrado, surge uma séria tendência para o mal. Usando essa e outras analogias próxi mas, Agostinho afirma que, na verdade, o livre-arbítrio humano existe nos pecadores, mas é comprometido pelo pecado. Agostinho declara que não temos controle sobre a nossa iniqüidade. E algo que contamina a nossa vida desde o nascim ento e daí em dian te nos dom ina. A go stinho acredita que, como parte da própria natureza humana, a humanidade nasce com uma disposição para pecar, com uma tendência inerente para os atos pecam in osos. E m outras palavras, pecado causa pecados: o estado de iniqüida de causa os at os individuais de pecado. Agostinho desenvolve esse ponto usando uma série de analogias — o pecado o riginal com o u m a “doen ça”, com o u m “p o d e r” e com o “culpa”. O pecado é como uma doença hereditária que é passada de uma geração a outra. Ele debilita a humanidade, e não pode ser cura do pela ação humana. Cristo é entendido como o médico divino, por cujos ferimentos fom os sarados (Is 53.5), e a salvação é compreendida em termos essencialmente curativos ou médicos. Somos curados pela graça de Deus, de forma que nossa mente possa reconhecê-lo e nossa vontade possa responder à divina oferta de graça. Ou, reiterando, o pecado é com o u m p o d er que nos m an té m cativos e de cujas am arras não nos podemos libertar por nós mesmos. O livre-arbítrio humano é feito cativo pelo poder do pecado e só pode ser libertado pela graça. Cristo é visto assim como o libertador, a fonte da graça que rompe o
po d er de pecado. O u , em te rceir o lu gar, o pecado é u m tipo de culp a ou impureza moral que são passadas de uma geração a outra. Cristo, p o rta n to , vem tra zer absolv iç ão e perdão. Para o pelagianismo, no en tanto, o pecado deveria ser en tend ido sob um ângulo muito diferente.*A ideia de uma disposição humana para o p ecado não te m lugar no pela gia nism o, o qual afirm ava que era sempre possível aos humanos cumprirem suas obrigações para com Deus e seus semelhantes. Falhar nesse propósito não poderia ser, de maneira nenhuma, desculpado. O pelagianismo parece às vezes chegar a uma forma bastante rígida de autoritarismo moral — a insistência em que a humanidade tem a obrigação de ser pura, e a rejeição abso luta de qualquer culpa por falhar em sê-lo. A humanidade nasce sem pecado, e só peca p o r ações delibera das. Pelágio in sis tia em afirm ar que, na verdade, muitas figuras do AT permaneceram sem pecado. Para ele, somente aqueles que eram moralmente elevados poderiam ser adm it idos n a igrej a — observe aqui os paral elos imp ortan tes com o donatismo — , enq uan to Ago sti nho , com o s eu concei to da nature za humana decaída, contentava-se em considerar a igreja como um hospital, onde a humanidade decaída poderia se recuperar e crescer gradu alm ente em santi dade, por meio da g raça . N a visão de A go stin ho , a n atu reza hu m an a é delicada, fraca c perd ida, e precisa da ajuda e do cuid ado div in os para ser re sta bele cid a e renovada. De acordo com Agostinho, a graça é a generosa e muito imerecida atenção de Deus com a humanidade, por meio da qual esse pro cesso de cura pode com eçar. A natureza h u m an a precisa de tran sfo r mação pel a gra ça de D eus, tã o generosam ente conced ida :
A n a tu re za h u m a n a fo i cr iada inocen te em m a origem e sem ne nhuma fa lh a ; m as a na tu re za h u m a n a com a q u a l nascemos agora, vind os de Ad ão, preci sa de um méd ico, porq ue não é saudável. Todas as coisas boas que ela tem em sua concepção
— -vida, sentimentos e
consciência — ve m de D eus, se u criador eprodutor. M as a fra q u e za
[
As heresias clássicas tardias: arianism o. don atis mo . pelagianismo
que obscurece e incapacita essas qualidades naturais boas
]
, motivo
dessa n atu re za precisar de ilum inação e cura, não vem do pr od uto r p erfeito , ma s do pec ado ori gi na l. 'L'7
O pelagianismo interpretou o termo “graça” de um modo muito diferente. ‘E m prim eiro lugar, a graça é ente nd ida com o se referindo às faculdades naturais humanas. Para Pelágio, essas faculdades não são, de modo nenhum, corrompidas ou incapacitadas ou comprometidas.-''-* Elas foram dadas à humanidade por Deus, e se destinam a serem usa das. Quando Pelágio afirmou que a humanidade poderia, por meio da graça, escolher não ter p ecado, o qu e el e quis d izer foi que as faculdades humanas naturais da razão e vontade deveriam permitir à humanidade escolher evitar o pecado. Como Agostinho foi rápido em demonstrar, não é essa a interpretação do termo no NT. Além disso, por que os cri stãos o rariam a Deu s, s e não reco nhecessem que de pe nd em delc?-w Em segundo lugar, precisamos considerar a natureza da gra ça divina. O pelagianismo entende a graça como sendo principal mente uma orientação ou esclarecimento exterior concedido por Deus à humanidade. Quando Deus ordena que sejamos perfei tos, ele não nos deixa no escuro sobre o que pretende que façamos. A graça refere-se à orientação de Deus sobre o que devemos fazer e ser. Pelágio d eu vários exemplos dessa orien tação — po r exem plo, os Dez Mandamentos e o exemplo moral de Jesus Cristo. A graça nos revela quais são os nossos deveres morais (de outro modo, não sabería mos quais seriam eles); essa graça, porém, não nos ajuda a cumpri-los. Somos capacitados para evitar o pecado pelo ensinamento e exemplo de Cristo. Deus não apenas ordena que os seres humanos sejam per feitos; Deus oferece um tipo de orientação específica sobre a forma de
-‘9:
A go stinho dk Hipo na. D e na tvra et gra tia 3.3. V. esp. o tratado de Pelágio De induratione cordís Pharaoms.
w> Para uma discussão mais detalhada, v. “St Augustines Theology oí Prayer”, de Timothv M asci -ik e . In: L i emi a r d Joseph T.; M uller Earl C.; T eskk ., Roland J. (Orgs.). Augustine: Presbyter Factus Sutn. New York: Peter Lang, 1993, p. 431-436.
H p-i-p '.-'--)
I
perf eiç ão que ele exige de nós — com o, por exem plo , o cum p rim en to do s D ez M andam entos e o no s t ornarmos semelhant es a Cri st o. Com o um estudioso moderno resumiu a perspectiva pelagiana:
D eu s "ajuda " r evela ndo na B íb lia a sa bedoria p e r tin e n te à n a tu reza h um an a e sua s obr igações pa ra com Deus. A rev ela ção ilu m i na a mente , mexe com a vontade
, desse modo erguendo o véu da
ignorância e a pa ralis ia m oral in fligid a pelos hábitos prolongados do c oração pecador. Podemos
resu m ir dize nd o que , pa ra Pelág io ,
a graça significa o seguinte: {!) o dom srcinal do livre-arbítrio, pelo q u a l é p o s s ív e l v iv e r sem pe cado ; (2) a lei m oral de M oisés; (3 ) o perdão de pecados conse guido pe la m orte redentora de Cristo e mediado pelo batismo; (4) o exemplo de Cristo; e (5) o ensina mento de Cristo, como uma nova lei e como uma sabedoria que diz respeito à natureza humana e à salvação. Pelágio não tem nen hum a do utrina da gra ça alé m dessa .40u
Agostinho afirmou que o pelagianismo foi obrigado a “situar a graça de Deus na Lei e no ensinamento”. O NT, segundo Agostinho, concebia a graça como ajuda divina para a humanidade, em vez de ape nas com o um guia moral. Para Pelágio, a graça er a al go externo e pa ssi vo, algo for a de nós. A go stinho en tend eu a graça com o a presença real e redentor a de Deus em Crist o d entro de n ós, tr ansform ando-no s — um a coisa que era interna e ativa. ' Para A gostinho, Deu s cri ou o ho m em bom , mas es te com eçou a se afast ar del e. E m um ato de graça, D eus veio , ent ão, sal var a h um an i dade decaída de sua sit uação difícil. D eu s nos ajuda cura nd o-n os, il um i nando-nos, fortalecendo-nos e trabalhando continuamente dentro de nós pa ra nos rest abel ecer . Para P elági o, a hum anid ad e preci sava apenas ser orientada sobre o que fazer, e ser, então, deixada livre para proceder The Dynamics ofGrace: Perspectives in Theological Anthropology. Collegeville: Liturgical Press, 1993, p. 89.
400 DtJFFY, Stephen J.
A í here^ès class:cas tard ia:
? .r iam
. oor -at ismo. pe ^g ian im o
sem nenhuma ajuda;'para Agostinho, a humanidade precisava saber o que fazer e então ser delicadamente ajudada em cada situação para, ao menos, se aproximar desse objetivo, quanto mais para o cumprir. As diferenças entre Agostinho e Pelágio dizem respeito, por um lado, à situação humana e, por outro, à natureza da salvação divina. Para Agostinho, a humanidade é deteriorada, ferida e seriamente doente. N ão faz n en h u m sentido exigir que a h u m anidad e se aprim ore quando a essência de sua condição é a de estar presa em sua difícil situação. Agostinho adotou a perspectiva de que Pelágio caía cm contradição a re spei to da condi ção hu m ana .1Em bo ra i nquest ionavel m ente be m -in tencionado, o enfoque ingênuo de Pelágio poderia ser comparado a uma orde m dada pa ra que um cego vej a as coisas corret am ente. O neces sár io é a cura espiritual, não a orientação moral. , A compreensão agostiniana dessa situação mostra-se clara, por exemplo, em seu comentário sobre a ordem de Cristo ao paralítico no tanque de Betesda: Levanta -te , toma o teu leito e anda (Jo 5.6-9, A R A ). A go sti nh o in terpreta o text o como: “Levanta-t e! Tom a o teu lei to e an da ”. 11'1U m a d eclaraçã o da realida de da cura (“Le va n ta- te!”) é, po rtan to, seguida por duas ordens que teriam sido impossíveis antes da cura do para lítico, m as que agora dem o nstram public am ente a re alidade da sua cura e t ransform açã o. Se o paralít ico, porém , não tivess e sido curado , ele não p ode ria ter tom ad o o se u lei to e andad o. Pelá gio ord ena ao pa ralíti co que tom e o se u lei to e ande, mas não ofer ece ne nh um meio pelo qual essas ordens p ossam p en etrar nos limites da possibi lidade hu m ana. Isso eqüivale a ordenar a uma pessoa cega que enxergue. O evangelho pelagiano exige a perfeição e orienta sobre a forma que esta deveria atingir. N o entanto, A g ostinh o in siste em afir m ar que Pelágio fracassa tanto em demonstrar a realidade da condição humana quanto o potencial de transformação interna da graça divina. Por isso, Agostinho afirma que o pelagianismo não é de fato nenhum evangelho. O pelagianismo é es sencialmente um moralismo teologicamente ingênuo.
A h o
d e
H i po
na
.
Tratado sobre o Ev an gel ho de São João 27. 7
[
H ríd
N o enta nto, o pela gia nism o continua a ter um a in fluência profunda sobre a cultura ocidental, mesmo que seu nome pouco tenha a dizer para a maioria das pessoas. Ele articula um dos mais naturais pensamentos hum anos: o de que somos capazes d e ter controle sobr e nós m esmo s e de nos transformar naquilo que deveríamos ser." - Há uma clara ligação, que m uitas veze s passa despercebida, ^ e ntre a v isão pelagiana da h um anid ade e a vis ão don atista da i greja. A m bas repou sam na crença de que pode m os nos tornar aquilo que achamos que devemos ser. Não há lugar para fra casso ou fraqueza, muito menos para as outras características humanas que indicam a nossa fragilidade. Ambas as visões apontam para a busca de um a hu m anid ade ideali zada — e, por consegu inte, de crent es cri stãos ideal izados — que simp lesmen te não pod e ser al cançada na práti ca. "O pela gia nism o afirm a que podem os ser perfeitos. O donatism o afirm a que os verdadeir os crentes jamais sucu m biriam d iante d a pers egui ção! O NT , no entan to, parece sugeri r um a vi são mais real ista da natureza hu m ana: O espírito , na verdade, está pro nto , mas a carne éfraca (ARA). De que forma a atit ude de Pedro, ao negar Jes us no pátio do sumo sace rdot e (M cl4 .27 31,66-72) seria vista: ela se encaixaria numa visão pelagiana da natureza humana ou numa visão donatista da capacidade dos líderes cristãos? Não por acaso, A gostinho preferiu com bate r tan to o donatism o quanto o pe lagianismo, afirmando corretamente que eram os dois lados da mesma m oed a teol ógica . N este capítulo , exam inam os alg uns dos tem as das tr ês m aio res heres ias do fi nal da era pa trí sti ca.! N en hu m a del as pode se r con sidera da racionalmente como o resultado de má intenção, egoísmo ou algum tipo de deprav ação teológica pessoal .' O arianism o, o do na tism o e o pelagianism o baseiam -se em ten tativ as sérias de em p regar im p o rta n tes p o n to s de valo r re ligio so e espiritu al. T o d o s refletem m otivos nobres de quem se preocupa em defender a fé cristã, cada um conforme seu Jlli Esse ponto foi enfatizado em The Rise o f the Imperia l Se lf Américas Cu/tu re Wars in Augustinian Perspective, de Ronald W . DwORKIN, Lanham : Row man & Litt lef iel d, 1996. V., em especial, seus comentários sobre o pelagianismo (p. 39-58). w D w orkin obser vou i sso no cita do Rise o fthe Imperial Self, p. 59-73.
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A* heres ias clássica Uira:as: arianismo. dona tismo, pelagiani smo
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entendimento. Tampouco podem ser simplesmente renegados como adulterações perversas da Bíblia ou da tradição cristã. Todos os três se fund am entaram na Bí bli a — ainda que abertam ente ele gendo um “ cánon dentro do cânon”, um grupo de textos que se adaptavam melhor que outros a seus interesses e objetivos. Cada grupo propôs questões importantes, muitas vezes como resposta às fraquezas ou insuficiências dos padrões prevalecentes da ortodoxia cristã. Contudo, tais propostas eram indicações da necessida de de uma possível correção pontual da ortodoxia, não de sua rejeição. Com o John H enry Newm an m os tro u em seu Ess ay on t he De velopm ent o f D oct rine [Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina], de 1846, o debate e a crítica são catalisadores que levam à cristalização da orto doxia em torn o de seu s tem as nucleares . O problema não está nas motivações de um Ário, de um Donato ou de um Pelágio. Está, sim, nos resultados de suas viagens de explora ção teológica. Embora empreendidas com a melhor das intenções, essas viagens, conform e a igre ja concluiu, hav iam se revelado becos sem versões empobrecidas e distorcidas da fé cristã, as quais não poderiam ser endossadas de modo geral pela comunidade de fé.
saí da,
N o en tan to , esse tip o de explo ra ção te oló gic a não se lim itou à era patrística; ela continuo u ao lo ngo da história cristã, chegando até os dias de hoje , à med ida que teólogos e l íder es da igre ja prosseguem buscando os meios mais autênticos de expressar o evangelho, especialmente à luz das mudanças culturais locais e globais. Algumas das novas abordagens se mostrarão frutíferas e persuasivas, e serão de valor para as igrejas no longo p razo; outras se mo strarão becos se m saí da. A s questões ex plora das nestes dois capítulos não devem ser vistas como parte da história da igreja primitiva que não mais possui nenhuma relevância hoje. Longe disso, a jornada continua. Tudo isso significa que precisamos refletir com muito cuidado sobre as motivações intelectuais e culturais da heresia. Semelhantes pressões, evid ente s na era patr ís tica, perm anecem la te nte s na igreja co n tem porâne a. Vamos tratar del as com mais detal hes no capítulo segui nte.
Parte IV 0 im pact o du rado ur o da heresia
8 Motivações cu ltura is e intelectuais da heresia
D
e que modo se deve compreender as srcens da heresia? Que questões motivaram o seu surgimento? Os primeiros es critores cristãos apresentaram uma variedade de explicações a respeito das srcens da heresia: os hereges eram guiados por ambições pessoais, in vejas eclesiásticas, um entusiasmo ingênuo pela especulação filosófica ou um sentimento infla mado do próprio gênio teológico. Mas, apesar das sérias acusações de alguns dos primeiros hcresiólogos cristãos, como Tertuliano, não existem bases reais para supor que a h eresia te n h a sido resultado de apóstatas malévolos c arrogantes que conspiraram para destruir o cristianismo pela in te rp retaçã o bíblica im p ru d en te, excêntric a e diri gida po r um a agenda paganist a. '
Esse antigo estereótipo c encontrado na maioria das interpreta ções da heresia do século XIX escritas por apoiadores incondicionais da ortodoxia. Para John Henry Newman (1801-1890), a heresia era um fenômeno cujas srcens se encontram fora da igreja. O arianismo, p o r exem plo , era u m su b p ro d u to ím pio de seu am bien te , co m binan do os piores elementos da cultura pagã, particularmente o judaísmo e a filosof ia sincrética.4 04 Para H . M . G w atk in (1 84 4-1 91 6), o arianismo era “um acordo ilógico” entre cristianismo e paganismo, com a balan ça tendendo em favor do paganismo. Era “uma massa de teorização presunçosa”, “to talm e n te ilógic a e não esp iritu al”.4'1' A crític a po sterio r levantou graves problemas sobre tais afirmações, especialmente em relação à motivação daqueles considerados hereges. Embora haja uma dificuldade incontornável em se analisar a psicologia dos mortos, a ideia de que a essênci a da “ descrição pe ssoal” de um herege seja a obs ti nação e a arr ogância, acom panhadas de alguma incapacidade m ental e infidelidade institucional, parece ter pouca relação com aquilo que sabemos sobre os primeiros hereges. A evidência histórica, embora não seja totalmente segura nes se ponto, sugere que devamos pensar as heresias como o resultado de caminhos de investigação que, na sua srcem, tinham a pretensão de possib ilitar ao cris tianis m o um m elh o r posic ionam ento na cultura con temporânea. A heresia surgiu de um desejo de preservar, não destruir, o evangelho.' Neste capítulo,'proponho deixar de lado a ideia de que os m ovim entos então identifi cado s como heresi as ten ha m se srci nado, em especial, graças à perversão ou malevolência, e explorar a noção mais
4u A resp eito das i deias de Newm an, v. N ewm ans Arians and the Question o f M etho d in WlUJAMS. In: K kr, Ian; Hl LL, Alan G. (Orgs. ). New tnan Doctrinal Historv”, de Rowan After a Hun drcd Years. Oxford: Clarendon Press, 1990, p. 263-285; "The Enthralling Power: Historv and Heresy in John Henrv Newman”, de Thomas Fkrccsox, Anglicnn Tbcolotpca/Revievi, v. 85, p. 641 -66 2,20 03. 4IS G w a tk in , H. M. Studies in Arianism. 2. ed. Cambridge: Deighton Bell & Co., 1900, p. 17 -21 ,27 4. Para uma crític a de pes o contra G w atkin , que algun s consideram como a srcem dos estudos m ode rnos sobre A rio, v. “In D efence o f A rius ", Jo ur na l oj" TheologtcnlStudi.es, de Maurice F. W iles, v . 13, p. 339-347, 1962.
Moiiva çoes culturais e iniei ecruais ca heresia
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pertu rb ad ora de que as here sias ta lv ez haja m surg id o de m otivações naturais, bem-intencionadas e essencialmente boas. ' Caso esta análise esteja ao menos próxima da verdade, ela apre senta um im po rtante corolár io, isto é, que a heresi a não po de ser pensa da como um problem a pass ado, já resol vi do c dom est icado. O cam inho da exploração teológica e espiritual continua. Cada nova via que se abre para a in vestigação é p otencialm en te tan to um a curv a err ada e um beco sem saída quan to um canal navegáv el para a f é. Para se enten de r por que isso perma nece sendo um a questão atual, não apenas um tem a hist óri co, precis am os conhecer um pouco de um a nova discip lina, a “ciê ncia cog nitiva da religião”, que oferece importantes insights a respeito de como alguns tipos de heresia surgem.
A heresia e a ciência cognitiva da religião N os ú lti m os anos, um novo m odo de ch eg ar às orig ens da h e re sia tornou-se possível graças ao desenvolvimento da ciência cognitiva da rel igi ão. '"'’ Essa abo rdagem pe rm ite eluci dar a m aneira com que são formadas e desenvolvidas as convicções religiosas, evitando os enfoques reducionistas que conduzem a afirmações sensacionalistas, fac ilm en te de sac red itad as , pa ra “ex plic ar” as crenç as re ligio sa s.1117A ci ência cognitiva da religião tem o objetivo de explorar a estrutura cog nitiva básica das crenças que poderiam ser chamadas de “religiosas”. Sua hipótese de base é que as estruturas conceituais humanas não são
m U m a im po rta nt e e precoce descrição dessa abord agem foi feita por B OVGR, Pacal . The Naturaln ess o f Re/igioits IJea s: A C og nitiw Tòeo ry o f Reli gion. Berkelev: Univ. o f Ca lifórnia Pres s, 1994. Para um pan oram a geral m ais recente, v . “Exp lom ig the N atu ral Foundations o f R eligio n”, de Ju stin I... B arrett , Trends in Cognitivc Sciences, v. 4, p . 29-34, 2000. 4Ü' U m bom exem plo disso vem os n a obr a Brcak ing the SpeU: Religion as a N atu ra l Phenomenon, dc D fan f. tt , Daniel C. New York: Viking Penguin, 2006. Para uma críti ca, v. “Is the Spcll Rcallv Broken? B io-Psych ological E xplan ations ot Religio n and Thcistie Beliel ” , de lustin L. B arrktt , Thcology a nd Science, v. 5, p. 5 7 -/ 2,2 00 7.
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co ntingênc ias íorj adas pela cultura ou história, mas refl etem padrões mais profundos da mente humana. Assim, as estruturas conceituais humanas, que podem ser investigadas de modo experimental, tanto formam quanto limitam a expressão cultural. D e q ue m odo esses est udos p od em se r rel evantes a respeit o da s srcens da heresia? Um dos resultados mais interessantes da ciência co gn iti va d a reli gião refere -se à “n a tu ra lid ad e ” de certas cren ça s.40* Certos hábitos “não refletidos” têm um impacto significativo no modo em que as ideias são desenvolvidas e avaliadas. Uma questão crítica é resposta com frequência: qual das várias opções tem maior apel o n atural ? U m a com preensão do qu e vem a se r “na tura l”, é claro, deriva de uma variedade de fontes, incluindo a observação pessoal e influências culturais. N o caso do cristian ism o , a h eresia é m u itas vezes — m as não invariavelmente — o resultado do que poderíamos chamar dc “na turalização” da fé cristã, ou seja, a assimilação da ortodoxia pelos modos mais “naturais” de pensar. Por exemplo, uma análise histó rica detalhada das srcens e do desenvolvimento da doutrina das “duas naturezas” na cristologia e da doutrina da Trindade nos per mite identificar os argumentos intelectuais que levaram ao surgi m ento des sa s i deias que parecem pro fun da m en te con trai ntuitivas.- 09 Mas não importa quão bons esses argumentos possam ser, tais ideias — de que Jesus C risto é ta n to divino q u a n to h u m a n o , e que D eu s são três pessoas — permanecem contraintuitivas, causando dificul dade para os acostumados a modos mais “naturais” de pensar. A ciência cognitiva da religião oferece uma base que nos permite entender por que alguns convertem essas ideias “não naturais” em equivalentes mais “naturais”. E muito mais “natural” pensar em Jesus Cristo como
Nesse ponto , sigo “T h e N atu raln ess of R eligion an d the U nnatu raln ess o f Science", de R ob ert N . M cC aim xy . In: K f.1i , F.; VVu.sox,R. (Orgs.). Expl an ati on an d CoçrnUion. Cambridge; M IT Press, 2000, p. 61-85. P ex., The Searchfor lhe Christian D octrine o f God: The Ar ian Controversy, 3 18 -3 81 , de R. P. C. H anson , Edinburgh: T. &T. Clark, 1988.
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Motivaçõ es culturais e intelect uais da heresi a
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simplesmente um ser humano, ou em Deus como apenas urna fonte sup rem a de au to rid a d e .110 Que modos “naturais” de pensar podemos identificar como tendo tido papel significativo na catalisação do surgimento da heresia5 Uma possibilidade óbvia é uma longa familiaridade cultural com certas ideias, dando a impressão de que essas maneiras de pensar são “naturais”, quando na verdade foram apenas culturalmente dominan tes por certo período de tempo. Um ótimo exemplo disso encontrase nas várias formas de platonismo que estiveram presentes no Império Romano oriental da era cristã primitiva, especialmente na cidade cos mopolita de Alexandria. Tais movimentos conduziram um conjunto de princípios metafísicos que deve ser visto como autoevidentemente verdadeiro ou “natural”, abrindo a porta para a conversão metafísica das doutrinas cristãs em direção ao que era visto por alguns como maneiras mais “naturais” dc pensar. Entretanto, esse processo de assimiliação não era visto neces sariamente como prejudicial pela maioria dos escritores cristãos dos prim eir os tem pos. Q u a n d o subm etido a controle s e lim ites cuid adosos, ele podia estabelecer uma ponte importante entre o cristianismo e os outros grupos. O cristianismo poderia se adaptar taticamente a esses modos mais “naturais” de pensar, sem perder a sua identidade distintiva. U m bo m exemp lo d ess e pr ocesso pode ser en con trado no uso que Justino M ár tir fez da s cat egorias e do vocabulário do m édio platonism o d uran te o século II. Fazendo uma correlação entre a fé cristã e as categorias do plato nis m o, Ju stino parece te r possib ilitado ao cristianis m o atr air para si um sentimento não desfavorável do mundo helenístico mediterrâneo du rante o sécul o II. Justino ten ha observado como a noção platônica de
logos oferecia importantes possibilidades apologéticas. O tema cristão _K' A se gunda id eia c conhecida co m o “monarq uia nism o” e desem penhou um pap el importante no pensamento cristão dos séculos II e ITT. Por sua relevância nesta discussão, v. “Monarchianism and Photinus of Sirmium as the Persistcnt Heretical Wtl.UAMS, Face ot the Fourth Centurv”, de D. H. H arv ardTbeolo gita!Revte w , v. 99, p. 187-2 06, 20 06.
fundam ental d e Crist o com o m ediador ent re a hum anidade e Deus po deria ser desenvolvido e explicado a um público platônico por meio do uso perspicaz dessa noção.4n A aborda gem de jus tino ilus tra o potencial e o s risco s de tal proce dimento. Ao traduzir de maneira ponderada alguns dos principais temas da fé cristã para o vernáculo intelectual da região, Justino tornou-os mais acessíveis à sua elite culta do que teria sido possível de outro modo. Além disso, o rigor intelectual dessas formas de platonismo era um estímulo ao desenvolvi mento de u m a prec isão sem elhante den tro da teologi a. Co ntudo , havia um aspecto negat ivo. Justino arriscava- se a dei xar erodir de m aneira sensível as noções cristãs em seus equivalentes platônicos. Uma estratégia planejada para perm itir a expansão da influência cristã d entro da com unid a de platônica poderia ter um contraefei to, levando ao aum ento da infl uência platônica dentro da com unid ade cristã. A correlação do ev angelho cristão com a cul tur a contem porâne a é, portanto, um a rua de m ão dupla . O problema pode ser formulado segundo a análise clássica de A go stinh o de H ip o n a sobre a rel ação da fé com a fil osofia s ecular .412 Ao explorar esse tema, Agostinho usa a narrativa do êxodo israelita do Egito para dar sentido à atitude da igreja quanto às riquezas intelectu ais e culturais da cultura clássica. Israel deixou para trás os “ídolos e as cargas” do Egito, embora levando consigo uma “riqueza em ouro, prata e roupas”. Israel deixava para trás o que considerava teologicamente perig oso ou opressivo, en q uanto se apro pria va do que era excele nte e valioso. Assim, Agostinho declara que a igreja deveria se aproximar das riquezas da cultura contemporânea — apropriando-se do que é bom e útil e desconsiderando o que é perigoso e opressivo. A analogi a de Ago sti nh o é im pressi onante e geralmente úti l. M as levant a um a quest ão fun dam ental em qualquer t entati va de dar sent ido ao fenômeno da heresia. Como a comunidade cristã chega à conclusão 411 EnWARDS, M ark J. Ju stin s Logos and the Word of Go à, Journal ofEa riy Chr istian Stiuiks,v. 3, p. 26 1- 28 0,1 99 5. Este estudo corrige alguns dos mais .i nfluentes e antigos m al-entend idos a res peito da abordagem de Justino. Sobre a dou trina cris tã 2.40.60-61. J |‘ A g o sti n h o dl : H i po na ,
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Mo iivaçõ es cukurais e intelect uais da heresia
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sobre que abordagens e formulações doutrinais são consideradas positi vas e apropriad as, e quai s delas sã o co nsiderada s n egativas e im próp rias? O que acontece se alguma coisa for inicialmente considerada boa e útil, mas se mostrar, no final das contas, perigosa e opressiva? Os primeiros escritores cristãos estavam profundamente preocupados sobre a possi bilidade de um a conta m in ação e degencração inte le ctu al irreversíveis: pod eriam alg um as ideias, um a vez apropria das pela igreja, se re vela re m fermento ou mofo, infectando ou danificando permanentemente o seu receptor? O próprio Agostinho acreditava que havia uma linguagem distintamente cristã, o que ele chamou de “o modo de falar da igreja” \ecdesiastva loquendi consuetude\.iU O que acontece se isso se perde, ou se corrompe, pela im portaçã o de o utros m odos de f alar?
, dc Leonard Robert
2. N o rm a s, ra cio na is. A crença de que certas ideias cristãs são contrá rias ao ‘pensamento correto” leva, muitas vezes, à sua eliminação ou modificação, a fim de torná-las conformes aos critérios prevalecentes de racionalidade. 3. I d e n tid a d e so cia l. Todos os grupos sociais precisam estabelecer a sua ide ntida de , al go que com frequê ncia envolve noçõe s rel igi osas . A h eres ia sur ge muitas v eze s com o um m od o de autoidentifi cação religiosa de grupos sociais marginalizados. A coexistência do cristianismo com grupos religiosos concorrentes levam frequentemente a uma p ressão p a ra m o d ific a r certo s a sp ec to s da fé cristã com o o b jetivo de fa c ilita r a c o e x istên c ia ou de d esen v o lv e r u m a a p o -
4. Aco m oda ção
rel igi osa.
logética convincente. 5. Preocupações éticas. Muitas vezes a heresia surge da percepção de que a ortodoxia religiosa é, de forma excessiva, moralmente per missiva e anárquica, ou restritiva e opressiva. Consideraremos neste capítulo cada uma dessas cinco questões, observando a maneira pela qual afetam as heresias clássicas da era patristica, bem como os debates mais recentes.
Heresia e normas sociais contemporâneas O cristianismo tem existido numa ampla variedade de contextos sociais, cada qual caracterizado por certas normas culturais. Algumas ecoam os valores cristãos, e outras entram em tensão com eles. Com fre quência, os apologistas cristãos se concentram no primeiro caso, usando a ressonância entre a fé cristã e certas crenças e valores culturais como pontes para a com unicação e p reconização da fé. E o que ocorr e com as áreas de tensão?
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Mo tivaçõ es cuHurais e irr.eic aua is da heresia
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Muitos teólogos cristãos têm se contentado em conviver com a tensão. Outros, no entanto, acreditam que as tensões constituem uma importante barreira para a fé. Alguns aspectos da fé cristã, argumen tam eles, são responsabilidades apologéticas. Por que não eliminá-los? Ou assimilá-los às normas culturais contemporâneas? O processo de assimilação às normas culturais, não raro, leva a formas de heresia. Ilustraremos isso considerando um aspecto da controvérsia pelagiana, antes de passarmos a algumas observações mais amplas. U m tem a cen tral do N T é que os cri stãos são s alvos não p or obras , mas pela graça (E f 2.5,8 ,9). As noções de “ sal vaçã o pe la graça” e “ju sti ficação pela fé” são firmemente costuradas no tecido do NT, especial m en te nas epístolas pau linas.4 14C o ntu do , es sas ideias est avam em tensão com alguns valores fundamentais da cultura romana imperial do final do século IV. Como, àquela altura, o cristianimso era a religião oficial do império Romano, certa tensão entre as normas culturais romanas e o cr ist ianismo era quest ão de alguma rel evânci a. M u ito s rom an os cristãos — inclusive Pelágio (c. 355-c. 435) e Juliano de Eclanum (c. 386-c. 455) — que determinadas formas de interpretar a fé cristã (em especial, o de Agostinho de Hipona) precisavam de modificação para que fossem culturalm ente aceitáveis. C o m o essas id eias te oló gicas pro vin cia nas poderiam se m ostrar úte is na m etrópole ? Havia um ponto central relacionado a essa questão: o que sig nifica dizer que Deus é “justo” \justu s\} O pensamento romano clás sico sobre esse assunto havia sido moldado por Marco Túlio Cícero (106-143 a.C.), que havia estabelecido que a essência da “retidão” ou “justiça” — duas pal avr as com um ente u sadas para tradu zir o termo latino jm titia — é da r a alguém o que lhe é dev ido.415A plica do a D eu s, 411 Sobre o des env olvim ento da com preen são cristã d a justificação, v . Iustiha Dei: A Hisfo ry o f lhe Christia n Doc trme o f Justtftcation, de Alister McGuATII, 3. ed., Cam bridge: Cam bridge Univ. Pres s, 2005. 415 C íc e ro , D a retórica, Livro 2, 253: “lustitia virtus est, communi utilitate servata, C f. , de Justimano, suam cuique tribuens digmtatcm”. Institu ía 1.1: “lustitia est constans et perpetua voluntas suum unicuique tribuens”. V. ainda Justice atu i E quity in Cícero, de D. H . v a n Z y l , Pretória: Acadêmica Press, 1991,
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He-:,
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isso si gnifica que D eu s trata as pessoas de ac ordo com os seus dir eitos, recompensando o bom e pu nindo o mau. ' ' Certamente esse foi o modo pelo qual a ideia de justiça divina foi interpre tado po r Juliano de Ec lanu m , tal vez o mais culturalm sofisticado dos escritores pelagianos, notável pela sua exaustiva inte
ente
gração do evangelho cristão às normas sociais e civis da sociedade ro m an a. 4<' Pa ra Ju lian o, era p ate n te que a ideia da “ justiça de D e u s” devia ser integrada às normas culturais predominantes. Deus deu a cada um o que era o seu direito. A justificação, portanto, tinha a ver com Deus recompensando o justo e punindo o mau. N o enta nto, se m elh ante ideia de ju stiça div in a ajusta-se de form a m uito incôm oda à noção de just iça div ina do AT. E m bo ra enfati ze a im portâ ncia da justiça social para preserv ar a virtu de e desencora ja r o vício, o AT associa a ideia de “justiça de Deus” à salvação. Um apelo à justiça divina é fundamentalmente uma súplica por salvação e libertação, como fica evidente nesta passagem clássica de Salmo 31: S e n h o r , eu me refugio em ti; que e u não m e fr u s tr e ; liv r a - m e p e la tu a ju s tiç a .J1~ Em seus textos exegéticos e sistemáticos, Agostinho de Hipona enfatizou que as noções seculares de justiça não eram satisfatórias para descrever a maneira com que Deus lidava com a humanidade A “justiça de D eu s” era m uit o dif erente da jus tiça hu m ana .'Pa ra Ag ostinho, qu al quer integração da “justiça de Deus” à ideia ciceroniana de “dar a cada um o seu direito” é posta em questão por muitas passagens bíblicas in dic ati vas de qu e essa noção cultural de justiça não p od eria ser usada sem um a adaptação signi ficat iv a.' C on trariando Jul iano, A go stinh o recor re à parábol a dos tr abalhadores da vinha (M t 20.1-16) para dem onstrar que a ideia da “justiça de Deus” refere-se, primeiramente, à fidelidade 4U> Sobre sua vida e pen samento, v. Jidia n von Ac danum: Stu dim zu seinem Leben, seinem WerL seiner Lehre und ihrer Übertiefenmg, de Joseí LõSSI., Leiden: Brill, 2001. E m especial, v. ‘‘D as E nd e der an tikcn A nthr opo log ie ais Bcwii hrun gsfaU kontextu alistischer Philosophiegeschichtsschreibung: Julian von Eclanum und Augustin von Hippo”, dc Andrcas Urs Sommer Zeitschrift ftir Re ligion s-un d Geistesgeschichte, v. 57, p. 1-28, 2005. 41‘ SI31.1 (grifo do autor). Para uma análise desse importante ponto, v., de minha autoria, v. lusútia Dei, dc Alister McGrath, p. 6-21.
de Deus às promessas de graça do evangelho, independentemente dos méritos daqueles a quem a promessa foi feita.1Conforme a definição cicer oniana de jus tiça, a cada trabalh ad or estari am desti nad as difer entes recompensas, na medida em que cada um trabalhou durante períodos diferentes. No entanto, todos haviam recebido a promessa da mesma recompensa, em vários casos bem mais do que a rígida justiça exigiria. A justiça divina diz respeito à fidelidade de Deus às suas promessas gene rosas e graciosas . Portanto, um dos temas centrais do debate entre Agostinho e juliano de E clanum dizia re sp eito precis am ente a qual das ideias a "justiça de D eu s” devia d e fa to se aplicar.4 1" Ju lian o de fen dia a justiça divina em term os de D eus conc ede ndo a cada individuo o seu direi to, sem fr aude ou graça, de forma a se esperar de Deus a justificação daqueles que mereces sem a graça por suas realizações morais. produziria umaque a doutrina da justificação do santo , ao Essa passoperspectiva que Agostinho afirmava essência do evangelho era a justificação dos não san tos." 1 A pre oc up aç ão de Jul ian o e ra s em dú vi da ap ol og ét ica . O s eu ob jetiv o era explicar a fé cristã de u m m odo que estivesse em consonância com as noções prevalecentes de justiça e direito ao final da Antiguidade clássica. A ideia de que pessoas indignas poderiam receber aprovação divina era culturalmente desagradável e poderia, na visão de Juliano, simplesmente af ast ar m uit as pes soa s im p o rtan tes.' Esse único estudo de ca so i lust ra o po nto mais geral , ilum ina n do as dificuldades que surgem quando se constata que um tema ou valor cristão central encontra-se em tensão com as normas culturais. Outros exemplos que ilustram o mesmo problema podem ser facil m ent e encontr ados.
*1S Para um a discuss ão co m pleta, v. “Divine Justice and D ivine E qu ity m the o í Eclanum”, de Alister McGliATII, Controversy Between Augustine and Julian D ownside R evie vj, v. 101, p. 312-319, 1983; “Justice de Dieu et justice humaine selon Sain t A ug ustin ”, de F. J. T i i onn a r d , A ugustin us, p . 387-402, 1967.
Heresia e acomodação à razão secular N a seção ante rio r, vim os com o as te nsões entr e o cris tianis m o e as normas culturais deram srcem à heresia. Uma tensão semelhante diz respeito às noções comuns de razão. Cada contexto social tem a própria id eia quanto àquilo que consid era ra cio nal. C o m en tan d o so bre o sucesso de C. S. Lewis (1898-1963) como apologista, Austin Farrer (1904-1968), teólogo de Oxford, estudioso do NT, demonstra como a racionalidade da fé era importante para a sua aceitação cultural.
E m bo ra o arg um ent o não cr ie convicção, a falt a dele des trôi a fé . O que parec e ser pr ov ad o po de não ser abr açado ; mas o que nin guém mostr a a hab ili dade de def ender é pro nta m en te abandonado. A rg u m en to ra cio nal não cria crença , mas ele m antém um am biente em q ue a fé possa florescer. {A us tin F arre r em C. S. L ew is. ) +n
O suces so de Lew is, diss e Farrer, refl ete sua ha bilidad e em ofe recer “uma mostra positiva da força das ideias cristãs de um modo moral, criativo e racional”. Os inteligentes comentários de Farrer indicam um perigo signi ficativo para a teologia cristã: alguns de seus temas centrais parecem indefensáveis à luz das ideias contemporâneas sobre o que é “racional”. Os escritores da patrística estavam muito atentos a essa questão, uma vez que certos po nto s centrais da fé cris tã, de fat o, pareciam “irracion ais” à luz das no rm as da filosof ia grega clássi ca.420 U m bo m exem plo e o da encarnação, que foi amplamente ridicularizada pelos escritores pagãos, que a consideraram incoerente. 'As srcens do arianismo são atribuídas
A ustin,T he Christian Apologis t. In: G i b b , Jocelvn (Org.). Lig hto n C. S. Lewis. Lo ndo n: Geoffrev Bles s, 1965, p. 23-43. A citaç ão se encontra na p. 26. L’11V. alguns ex em plos em “Pa uline Exegesis, M am ch aeis m , and Ph ilos op hv in thc Earlv Augustine”, de Caroline P. B am m el . Tn: W i ckha m , Lionel R.; BíLMMEL, Caroline P. (Orgs.). Christian Faith and Greek Philosophy in Late Antiquity. Leiden: Brill, 1993, p. 1-25. 41v F
arrer
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Motivaç ões cukurais e intelect uais da heresia
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frequentemente a uma preocupação com o fato de o cristianismo estar se revelando intelectualmente risível numa cultura dominada pela filo sofia grega. < Preocupações semelhantes foram expressas sobre a doutrina da Trindade durante a era patrística. Mas as críticas mais importantes da Trindade surgiram ao longo do século XVI, quando a ala radical da Reforma começou a pressionar pelo abandono de certos ensinos tra dicionais, em parte, porque pareciam irracionais e, em parte, porque se afirmava que não eram bem fundamentados na Bíblia. Os grupos radi cais , irri tados com o que consideravam ser conces sões de M artin h o Lutero e Ulrico Zwinglio, exigiram mudanças gerais mais extensas.,j’ As doutrinas tradicionais que Lutero e Zwinglio haviam considerado com pletam ente ortodoxas e que não careciam de revi são passaram a ser posta s em questã o de form a aberta. M u ito s ra dic ais argum entavam que a doutrina da Trindade não estava explicitamente registrada na Bíblia. Longe de ser uma autêntica doutrina cristã, ela refletiria as especulações e elaborações tardias de teólogos equivocados. O antitr initari sm o, j á evident e no final de 1520 , tornou -se m ar ca ofi cial da R efo rm a radical nos anos 15 50 ,42~c ausa ndo um a grand e preocupação ta n to nos círculo s p ro te sta n tes q u a n to nos círculo s cató licos. O movimento recebeu um impulso intelectual significativo nos escritos de seu nome: Fausto Socino. (1539-1604), mais conhecido pela fo rm a latin a de seu no m e, F au sto Socin o. O a n titrin ita rism o , que chegou a ser conhecido como “socinianismo”, começou a se tornar um desafio para a ortodoxia protestante e católica no final do século XVI. Embora os escritos de Socino tenham obtido grande alcance, contestando muitos aspectos das crenças cristãs tradicionais, ele é es pecia lm ente associa do ao a n titrin ita rism o . A b a n d o n a n d o as d o u trin as da encarnação e da Trindade, as quais corretamente declarou estarem 121 O m elh or e stud o é The Radical Reformation, de George H. WÍLIJAMS, 3. cd. KirksviUe: Sixteenth Century Journal Publishers, 1992. 422 V., p. ex., Early Transylvanian Antitrimtariamsm (1566-1571): From Servel to Palaeologus, de Mihálv BalAzs, Baden-Baden: Valentin Koerner, 1996.
inter-rel acion ada s, el e defend eu um a fé r eli gios a mais generalizada em Jes us de Nazaré com o um a pess oa diviname nte inspir ada, co m hab il i dades excepcionais para cu m prir os m an da m en tos d e De us.~23 ' Em parte, a motivação para essa crítica à doutrina da Trindade cra bíblica, mas predom inantem ente racional. D ito de form a simples: a dou trina parecia e scandalosam ente irraci onal e, dess e mo do, am eaçava causar danos à reputação do cristianismo. Conforme o racionalismo começou a obter maior influência cultural em muitas partes da Europa Ocidental nos sécu los X V II e X V III, passou a haver um a pres são crescent e para que o cristianismo abandonasse o que era visto como irracional e se voltasse para um a noção mais razoável a re sp eito de D eus, com o a que era defe n dida pelo deísm o.424 O ressurgim ento da d ou trina da T rinda de no século XX, principalmente como resultado da obra de Karl Barth (1886-1968) e Karl Rah ner (19 04-198 4), pode ser visto em parte com o conseqüência da erosão do racionalismo que predominou no início do iluminismo, à m ed ida que as suas fraquezas e dificuldades fi cavam cada vez mais óbvi as. N esse p o n to , tam b ém devem os observar que im p o rta n tes cien tistas muitas vezes sustentam crenças religiosas heterodoxas — algo que vale tanto para o islamismo e judaísmo quanto para o cristianis mo.4’5Por exemplo, a tentativa de Isaac Newton de aplicar os métodos científ icos à s ua f é cri stã l evo u-o a rejeitar a d ou trina da T rind ad e, em b o ra ele ten h a tido o cuidado de não ch am a r a ate nção para essa d e c i são du ran te seu tem po de vida.4 2*V emos aqui a m esm a tensão entre a ií o o t, “ L an t it ri nitar ism e soci nie n”, Etudes théohgiaws et relmeuses, v. 61, p. 51-6 1, 1986, ~2~ Babcock, William S .ACha nging of thc Ch ristian God :The Doctrine o f thcTrinitr m the Sevcnteenth Century . In terfrelation , v. 45, p. 133-146, 1991. 421 Consulte a importante coleção de estudos Hetcrodoxy in Earlv M odem Science
413 A rt de G
B r o ü KE, John Hedlcy; M a c i ,e a \ t, and (Ed.). em Oxford: Oxford Press,ReHgion. 2005). Um estudo precedente também de valor seIan encontra “Science and Univ. Hcterodoxy: An Earlv Modem Problem", de Michacl H uxter . Tn: L i x d i j er g , Davi d C.; WESTMAN, Robert S. (Orgs.). Reappraisah o f the Scientific Revolution. C ambridge: Cam bridge Univ. Pr ess , 1990, p. 437-460. "2" V. ‘‘N ew ton , Her etic: T h e Strategies o f a N icod em ite N icod em ite”, de Step hen D . SxOBKLEN, Brifish Journal fo r the H isto ry o f Science, v. 32, p. 381-419, 1999.
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Motivaç ões cultur ais e intelect uais da heresia
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crença rel igi osa ortodoxa e o s m étodo s de um a co m unidad e parti cular . Enquanto alguns cientistas sustentam perfeitamente as suas crenças religiosas ortodoxas, outros acham que o conceito de “racionalidade” prevalecente em sua co m u nidad e os obrig a a tirar conclu sões b astante diferentes. Em seu bem documentado estudo sobre o arianismo no início da era moderna, Maurice Wiles observa um particular predo m ínio dessa heresia entre m uitos dos prim eiros c ientistas m od ern os .427 ' O modo pelo qual as idcias culturais de racionalidade predomi nantes podem levar a noções de Deus distorcidas ou inautênticas suscita / algumas questões problem áticas p ara o s apologistas cri stãos. Por ex emplo, a di sciplina tradicion al da “ teologia n atur al” tem o objet ivo de d efen der a existência de Deus, invocando a razão humana ou a ordem da natureza. O filósofo americano William Alston define a teologia natural como “a iniciat iva de ofer ecer sustentaçã o às cr enças r eligios as partin do da prem is sa de qu e ela s nã o são nem pre ssu põe m qu aisq uer crenças religiosas”.1 2" Mas, historicamente, a aplicação da teologia natural tende a levar a um De us deí stico que g uarda pouca re lação com o com pletamen te abrangente Deus tri nit ári o da t radi ção c ri s tã .C o n tin u a exi stindo um a si gnificativa lacuna entre a noção de Deus que pode ser inferida do reino natural ou de du zida pela razão, po r um lado, e a visão cristã de De us, de outro lado.
A heresia e a formação da identidade social A impo rtância da rel igião na aut odefmição de grupo tem sido obser vada com f req uê nc ia.'’" Para q ue as com unid ades sobrevi vam com o passar A n b e ty fa l Meresy: A ría nism Through the Ages. Oxford: Oxford Univ. Press, 1996, p. 62-134. 42- A lston , W illiam P. P m riv in g GcJ : The Epbtemol ogv o f Reli gtous Experh nce. Ithaca: Corncll Univ. Press, 1991, p. 289. 4-'11Pont o en fa tiz ad o em The Open Secret: A N ew Vision for Na tur al Thcclogy , de A listcr M c G ra tii, O xíor d: Bl ackwe ll, 200 8. f . l u , Emily A.; F. Rcligions Social Identity as an 4;|J G r eknki M arks , N adi ne Explanatorv Factor for Associations Between More Frequent Formal Religious Participation and Psychological Well-Being, In tern ational Journ alfo r the Psychology oj 427 W l LES , M au rice .
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do tem po , é preciso definir os centros e vigiar as fronteiras. A religião m uitas vezes oferece um a m arca de identidade de grupo — não necessariamente a única marc a, ma s frequentem ente um a da s mais importantes. De m anei ra mais específica, as crenças religiosas servem, não raro, como um meio de criar um sentido de identidade social, moldando a perspectiva de uma comunidade e justificando a sua existência srcinal e contínua diante de comunidades rivais com reivindicações semelhantes. Isso ajuda a definir tanto os limites dessa comunidade quanto as condições para se íazer parte dela. Uma coesão social efetiva requer a fixação de limites e o estímulo a um senso de identidade comunit ári a.'1'1 U m disti nto co mp rom etimento religioso é um a das muitas opções para m arcar a identidade de um a com unidad eJE ntão, nu m a situaçã o d om inada pelo cri sti anis mo — por exemp lo, a Eu ropa O cidental durante a I dade M édia — , algumas comunidades poderiam adota r visões religiosas heréticas como marcadores de sua id enti dade? A percepçã o da necess idade de um a identidad e d istint a pod eria le var com unida des a adotare m crenças het erodoxas?4 52 / A evidência está longe de ser definitiva, e o melhor seria sugerir que isso representa uma possibilidade interessante capaz de, pelo me nos, lançar alguma luz sobre as srcens e a força atrativa da heresia. Para analisar esse pon to, pode m os co nsiderar o don atism o de um m odo mai s detalhado. Já vi mos o surgim ento históri co dessa heresi a e observamos alguns aspectos de sua teologia (p. 152-159). A observação de que os colonos romanos no norte da África tendiam a adotar a posição cató lica, enquanto os berberes cristãos nativos tendiam para o donatismo é ce rtam ente indicativo de alguma li gação entre a identidade de grupo e a teologia, seja o rtodoxa , se ja het erodo xa.
4,1 Um padrão examinado e avaliado no excelente estudo de Wavne Meeks sobre as reali dades soci ais das com unidad es paulinas no N ovo Testam ento. V. The First Urban Cbristm m: Th e Soc ial Wor ld o f the Aposfle Paul, de Wavne A. Mkkks, New Haven: Yale Univ. Press, 1983, p. 84-103. Ii2 V. “W erc A ncie nt Iler esies N ational or Social M ove m cnts in Disguise?” , de A. H. M . J oxes , Journal ofTheologica l Studies, v. 10, p. 280-286, 1959; “Heresy and Schism as Social and National Movements”, de W. H. C. F r e nd . In: B aker , Derck (Org.). Schism , Heresy an dProtest. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1972, p. 37-49.
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M onv açõe s cuit^rais
c int e.ec.uai s da neresi a
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Os partidários dessa concepção argumentam que o donatismo estava particularmente associado à população rural das áreas menos povoadas por colo nos rom anos e com as classes mais pobres nas ci da de s.41'' A N um ídia, po r exemplo, era a pr ovíncia m enos rom an izad a do norte da Airica. Foi ali que o donatismo ganhou maior força. Além disso, há um considerável grau de intersecção entre as áreas do norte da África cm que os donatistas eram dominantes e os territórios em que a língua dos berberes é fal ada ainda hoje. E m comparação, o crist ianis m o católico era a religião das classes superiores romanizadas.-’; Contudo, há problemas com semelhante concepção. Por exemplo, é relativamente tácil demonstrar que muitos líderes donatistas eram na verdade bastante ricos e socialmente influentes. Agostinho de Hipona se queixava de ricos proprietários donatistas de terras comprando cam pos e forçando o rebatism o dos seus em pregados.4'11D e m odo mais sig nificativo, estudos recentes têm enfatizado a importância dos fatores religiosos, em vez de sociais ou econômicos, na causa e manutenção do donatismo.4" A visão de que o donatismo era essencialmente um mo vimento socioeconômico com uma associação acidental ou superficial com as ideias religiosas não se coaduna facilmente com o que se sabe do m ovimen to. A evidênci a parece s e ajust ar m elho r a um a perspect iva mais tradicional, afirmando que o donatismo era, no fundo, um movi mento religioso essencialmente livre que passou a ter um apelo especial aos grupos socialmente alienados, mas que não era por si só constituído por questõ es dessa ordem . Uma conclusão semelhante parece ser exigida cm relação a ou tr os m ovim entos d issi dentes li gados i heterod oxia — p or exemplo, o catar is m o e hussi ti sm o. M as,' em bo ra es ses mo vimentos pareçam ter 4r' A formulação clássica dessa visão se enc on tra em The Dana tist Church: A Movc me nt of Proiesl in Roman NorlhAfrica, de H. í i. C. Fuenp, Oxford:C!arencioii Press, 2000. r’! M akk vs, Robert A . Christi anitv and Dissent in Roman X orth A tnca, Studics tn Church Historv, v. 9, p. 21-36, 1972. 4Í: Leia, p. ex., dc Agostinho de Hipona, Epístola 66.1. 4V TlLIX Y, M au re en A. The Hi/ilc m Chrkimn North África: The Donutist World. Minneapolis: Fortress Press, 1997, esp. a p.19.
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tido uma base essencialmente religiosa, deve-se levar em considera ção que agendas políticas e sociais podem ter ajudado a consolidar o seu sentido de identidade, ou levaram esses movimentos a serem vistos com particular cautela em certas regiões. Tais ideias religio sas, contudo, não parecem ter surgido por acaso como marcas da identidade de movimentos já existentes, e muitas vezes dirigidos a objetivos socioeconômicos. Ao contrário, elas parecem ter sido in corporadas à identidade dos movimentos, em geral sendo um fator importante para, sobretudo, fazer com que eles existissem!
Contextualização religiosa e heresia . Desde o seu período mais inicial, o cristianismo viu-se mergulha do numa situação religiosa complexa. Por um lado, ele havia surgido do ju daísm o com o um siste m a de crenças distinto , afirm ando a co ntin ui dade com o seu passado (a visão de Marcião sobre esse assunto não pre vale ceu) ; por ou tro lado, ele fo i ao m esm o tem po forçado a pa rticipar de outras vis ões de m und o, secul ares e reli gios as, à me dida que se expan dia em novas regiões geográficas. O impulso fortemente evangelista impe liu o cristianismo a construir pontes para essas regiões — por exemplo, retomando determinadas ideias cristãs centrais em termos já familiares a essas comunidades. A maneira pela qual os apologistas cristãos se re lacionaram com as audiências platônicas em Alexandria é amplamente considerada um exemplo clássico desse tipo de estratégia. Contudo, essa é uma estratégia profundamente arriscada. O que poderia ter sido encarado inicialm ente com o um a reto m ad a tática de algumas idei as cri stãs bás icas par ece ter s e torna do um fator de term i nante para uma reconceitualização a longo prazo do próprio cristia nismo. Não existe nenhuma dúvida de que essa era uma preocupação séria dentro da comunidade cristã primitiva, levando Tertuliano a declarar um verdadeiro embargo ao diálogo sério entre o cristianismo e a filosofia devido ao risco de contaminação a ele associado.
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Mot'.'vd'võe^> cJturais e inielect-
ais da ne resia
A investigação sobre como o cristianismo se relacionou com ou tros grupos religiosos foi um grande estímulo à reflexão teológica no prim eiro período cristã o e é associa do a duas heresias fundam entais. O ebionismo pode ser considerado como a assimilação cristã ao juda ísmo, e o marcionismo, como uma rejeição cristã da herança judaica do cristianismo. Essas duas heresias definem os extremos de um espectro de possibilidades, com a ortodoxia navegando entre elas. N o enta nto , o judaísmo pode ser visto correta m ente como um caso especial, já que ele definiu a matriz religiosa da qual o cristianismo emergiu. E quanto aos outros movimentos religiosos do último período clássico? Alguns escritores cristãos primitivos acreditaram na importância do movimento autônomo e multifacetado frequentemente chamado de gnosticismo. Conforme já vimos, as srcens desse grupo permanecem obscuras, e é provável que investigações futuras possam revelar as múl tiplas srcens de uma entidade complexa, refletindo um movimento es sencialmente diverso e com uma considerável variação. Nosso atual nível de conhecimento do gnosticismo simplesmente não é suficiente para nos perm itir responder de form a confiável a 'algumas das pergunta s mais fun damentais concernentes às suas srcens e ao seu desenvolvimento. Feita essa observação, não resta dúvida de que muitos escritores cristãos importantes dos primeiros tempos depararam com o gnosticis mo, especialmente no Egito, e passaram a considerá-lo um movimento que exigia aceitação. Valentino, por exemplo, parece ter encontrado o gnosti cismo em A lexandr ia. Ao em igr ar para R om a — obser ve-s e como a facilidade de viajar se mostrou importante para a troca de ideias por toda a cost a m editerrân ea — , Va lent ino procurou m ante r ess a ace itação , acreditando nitidam en te que tal atitude era de int eresse da ig reja. Q ue for m a, porém, tom ou sem elhante ace itação ? As evi dên ci as são insuficientes para nos permitir decidir se Valentino era da opinião de que o cristianismo poderia reformular suas ideias fundamentais em termos essencialmente gnósticos, a fim de levar adiante a evangelização daquele movimento, ou se ele considerava as ideias gnósticas tão robustas que o cristianismo se beneficiaria em incorporá-las ao
seu modo de pensar, fazendo alguns adequados ajustes conceituais. Q ua isque r que tenha m si do a s su as i ntenções, o resul tado da estratégi a de Valentino toi visto como uma distorção do cristianismo e a conta m inação de al gumas de s uas i dei as nuclear es — como a identida de de Deus na antiga e na nova alianças.
Insatisfação ética e as srcens da heresia A fé cris tã of erece um a perspecti va m oral que perm ite ve r o mun do da r eali dade social de certo mo do, le vando a uma corres pond ente form a de ação .457A ética c ristã e a ação po lítica exigem um a visão que to rn e a açã o intel igíve l. N o en tanto ,'sen tindo -se insat isf eit os co m a perspect iva moral a presentada pelas formas de crist ianismo que a históri a lhe s p os sibilitou conhecer, muitos procuraram alternativas para essa perspectiva moral. O sentimento de descontentamento moral levou muitas vezes a conclusões heréticas. 1 N arrativ as populares da heresia sugerem freq u en tem en te que o cristianismo ortodoxo era eticamente restritivo e autoritário, levando os indivíduos esclarecidos a buscarem modos de vida e pensamento mais libertários..Parece ter se tornado axiomático nos últimos anos que. a heresia é moral c intelectualmente libertária, enquanto a orto doxia é sufocante.'Isso nos diz muito sobre o humor cultural da pósmodernidade e os compromissos de alguns daqueles que consideram a heresia atraente. Contudo, é preciso salientar que a história nos proíbe totalmente de chegar a tal conclusão simplista, por mais atraente que ela possa ser por quaisquer razões. Como aos que se afastam da ortodoxia religiosa veremos,1certas heresias consideraram de tato a ortodoxia cristã como d g crnã ;oi sa sev era e repr essi va. ü n í ras , p r. rí m . r: í er:- '. m à o rt o d o xia como pe rigosam ente fr ouxa e permis siv a, e procu raram im por um maior
V. análise p orm enoriz ada em The D cs ire o f the N altom : R tJi scovering Po líti ca! T heology, de Olivcr 0 ’D onov\ n, Cambridge: Cambri^e Univ. Press,
the R o o ts 1996.
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Mo tvóçõ es c jltu ra ii e r.tclec tua s aa he ies1?,
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rigor moral sobre a comunidade cristã. Sugerir que a liberação moral ou intelectual seja uma característica essencial da heresia é algo inde fensável. Há uma variação nitidamente considerável entre as heresias: algumas não tiveram nenhum problema com as perspectivas éticas or todoxas predominantes, outras as viram como puritanas e mão de ferro, e outras ainda as consideraram lassas e degeneradas. U m exemplo clar o de um a heresia que consi derava a ort odoxia cris tã moralmente descuidada e indolente foi o pelagianismo. Conforme já observamos (p. 159-170), as srcens do movimento estão no embate de Pelágio contra a degeneração moral que ele encontrou na igreja romana em sua chegada da Inglaterra. E ra um a reaç ão bastante comum : Ben to de N úrsia (480-5 47) sentiu-se do m esm o m odo sobre a igreja ro m ana em sua chegada na cidade um século mais tarde. O asceticismo de Pelágio nem era particularm ente srci nal. O que realmen te imp ortava era a ênfase que ele colocava no asceticismo e as conclusões teológicas que tirou disso. Pelágio e s eu cí rcul o desenv olveram um a teologia que au torizava a ênfa se sobr e a busca cr ist ã da perfei ção m oral, arg um entan do que a m e lh or solução para a fal ta de visão m oral de ntro da igr eja rom an a era fazer algumas adaptações ao consenso teológico prevalecente. Pelágio e seu círculo defendiam que a humanidade tinha uma intrínseca capacidade para a perfeiç ão dada por D eus, a qual precisava se realizar por meio do cuidado moral. Para se r justo com Pel ági o, não exi ste ne nh um a base para sugerir que ele ten h a tido a intenção de subverte r intencio nalm ente o cristianismo. O seu moralismo rígido era mais uma reação à frouxidão ética e espiritual que ele via por toda parte ao seu redor. No início, é pro vável que Pelágio tenha sc visto como simplesmente tentando oferecer algumas palavras de exortação, muito necessárias. Contudo, sua análise de que pressupostos teológicos eram necessários para fortalecer as suas exortações morais levou-o, na visão de Agostinho, a desenvolver alguns oentos de vista comoSetamenre nã o cristão s.4-* M es m o c on ce de nd o al_L gurn grau de interpenetração entre os objetivos teológicos do próprio 1
4’í: Bonn F.R, G era ld. Pelag ianism an d Au gu stin c , u s t i m a n Stu dies, v. 23, p . 33 -5 1,1 99 2.
Pelágio e os de outros ativistas da moral em Roma (notavelmente. Celestino e Rufino da Síria), é difícil não concluir que a ênfase moral do pelagianismo estimulou a formulação de alguns princípi os teol ógico s próprios a esse fim , mas que entr aram em choque com as perspectivas do N T sobr e o pecado, a graça e a natureza hum ana. Conforme já observamos, tanto Pelágio quanto Bento de Núrsia afli giram-se com a frouxi dão m oral da igr eja rom ana — ser ia ins trut ivo, portan to , com parar as respostas bastante diferentes de am bos. E nq uanto Pelágio e seu círculo alteraram a estrutura teológica, controlando c ins truindo a mo ral idade cr istã, Be nto cri ou um novo amb iente funda m en tado num a concep ção ortodoxa d a natureza hum ana, embora apropriado ao enco rajame nto da m orali dade. Se era dif ícil para a hu m anid ade lidar com as complexidades num mundo decaído, a situação poderia ser curada, pelo menosdaatévida certo ponto, transferindo-se essas comple xidades para um contexto no qual tais fraquezas fossem reconhecidas e verbal izadas . Para B ento, a resposta ser ia en con trada n um a com unidade m onástica, com um a form a de vida caracterizada pela aspi ração ao s se us objetivos, mas realista em suas concepções. O pelagi anis mo faz parte de um grupo de her esi as que considera vam o cristianismo ortodoxo moralmente deficiente. Outro exemplo é o mon tanism o, que a trai u teólogos da estatura de Tertuliano. E le surgi u durante o século III e enfatizava a santidade de Deus e suas implicações para o co m po rtam en to humano."-5- E m b o ra se ten h a dedic ado grande atenção teológica às vis ões do m on tanis m o sobre a profecia e o papel do Espírito Santo (que parecem antecipar alguns aspectos do pentecostalismo moderno), seu rigor moral também merece atenção. A decisão de Tertuliano de se converter ao montanismo parece ter sido pelo menos em parte motivada pelo seu moralismo estrito e estridente. De modo interessante, o pelagianismo provocou algumas rea ções extremas que eram em si mesmas consideradas heresias. Alguns
4,9 V. M onta nhm : Gender , Authority, and the Netu Prcphecy, de Chr ist ine T re v e tt, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1996.
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M otivaçõe
s eu turais
e intel ectuais
da heresi a
reagiram ao asceticismo pelagiano com tal força que acabaram sendo considerados heréticos devido a suas visões antiascéticas. Um óti mo exemplo desse fenômeno encontra-se em Joviniano (405 d.C.), que era, de início, um de fen sor e strid en te do asce ticism o m on ás tico .4411 E m 390, em um sín odo convocado por Am brósio de Leão, Jovi niano fo i excom ungado com o herege, por raz ões teológi cas, em bora seja pos sível que o verdadeiro prob lem a fos se que e le se tinha tornad o algo escando loso por causa do seu amor à boa v ida. Em bo ra alguns aspect os da situ ação permaneçam obscuros, é possível que Joviniano fosse visto como tendo “oscilado” de um extremo ao outro, abandonando a renúncia e abraçando o hedonism o. Para A m brósio, dever ia hav er um cam inho do meio entre essas duas posições morais extremas. N o enta nto , outros m ovim ento s heré ticos adota ram enfo ques m ui to mais libertários em relação á moralidade. O exemplo clássico disso é um grupo de indivíduos no fina) da Idade Média que frequentemente se reunia m com o rep resen tantes da “H ere sia do E sp írito Livre”. '141 Esse movimento pouco organizado, que em geral se acredita ter florescido no >écuío XIV, com frequência é caracterizado pela hostilidade ao autorita rismo eclesiástico e por sua subversão da moralidade tradicional. Muitas vezes é difíci l dete rm ina r a confiabilidade de algum as interpre taçõ es sobre suas crenças e at ividades , visto que elas estão s ujeitas ao s exageros po r pa r te dos interessados em desacreditá-las. Cinqüenta anos atrás, Condorme N orm an C oh n dem onstrou que o surgim ento das in terpre ta ções contem porâneas dessa heresia é “um quadro com ple ta m ente convincente de um erotismo que, longe de em anar de um a sensual idade despreocupada, ti nha , sob retud o, um v alor simbó lico com o sinal de e m anc ipaç ão e spir itual”.442 ** Y. M arriage, Celibacy, and Heresy in A ncient Cbristianity: The Jo vin ia n ist \ «Ecr:r'sversy, de David G . H u n te r, O xford: Ox ford Un iv . Pr ess , 2007. A aná lise d e H kr.te r sobr e a complexa interação en tre heresia e as ceti cismo (p. 87-17 0) merecc 'Bine2 cuidado sa ate nção. !"* \ o clássico estudo The Her esy of the Free Sf ir it in the La ter Mtd dle Age s, de Robcrt Berkeley: Univ. o f Ca lifórn ia Press . 1972, es p. p. 10-13 . E . . C . HN N or m an . The Pursui i o f the Millenm uni: Revoluti onary M dlen an ans and l: r/ Anarch ists o f the M idd le Ages. Ed. rev. e ampl. New York: Oxford Univ. Press,
O breve panorama histórico apresentado nesta seção deixa claro que a insatisfação moral com a ortodoxia não faz parte da essência da heresia. Pode ser uma de suas características, mas necessariamente não é de importância central. No entanto, a noção de que a heresia é intrinsecamente libertária não pode ser mantida. Tal noção representa uma projeção na história de ideais e aspirações daqueles in dis posto s com a religião convencional em virtude de um suposto “autoritarismo” das for mas de ortodoxia. Essa noção de heresia é em parte imaginada e inven tada, e guarda pouca semelhança com a realidade histórica da heresia. ’O material que exploramos neste capítulo aponta para várias situações que, mesmo não sendo heréticas em si mesmas, podem ter como conseqüência a heresia. O tema comum aqui é o da adaptação da ortodoxia a um ambiente cultural específico, que pode — mas não necessariamente — levar à heresia.'Essa observação ajusta-se bem à análise quíntupla da heresia apresentada pelo estudioso da patrística, o britânico H . E. W . Turner, que sugere que a heresia pode ser concebid a como o resultado de cinco processos relacionados, embora distintos: dil uiç ão, tr un cam en to, dist orção, arca ísmo e esvaziamen to.4'-’ C om o já observ am os ante riorm ente, o quarto desses pro cessos pode ser visto como representando uma recusa em admitir que a teologia cristã deva desenvol ver — não som ente reiterar — as idéi as do N T (p. 66-67). N o entanto, ficará claro que as quatro cate gorias resta nte s de T urner apontam para a possibilidade de assimilação cultural e intelectual da fé cristã, ou pela incorporação de ideias estrangeiras ou pelo abandono das ideias cristãs, em resposta às pressões culturais. E, assim, claramente necessário e apropriado ao cristianismo envolver-se com seu am bie nte c ultur al. A histó ria da igrej a indica que es se processo de envolv im ento lo i parte inte grante do lo ngo pro cesso de ex pansão c consolidação cristã ao longo das eras.' Sugerir que esse pro cesso poderia levar a atalh os heréticos não sig nifica in validar o pro cesso, mas simplesmente exigir um cuidado teológico em sua execução. '*•' ÍURNER, H . E. W . The Patíem of Cb nstum Trutb: A Stitdy in the Reíntions Betvxen Orlbodoxy and Heres y m the Ear/y Church. London: Alowbrav, 1954, p. 97-163.
Mo tivações
cuít urai s c irnslcdu ais da heresia
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Todavia, permanece uma questão que precisa dc toda a aten ção: até que ponto a heresia e a ortodoxia são resultados de lutas de poder? D ad a a im p o rtâ n cia deste assu nto em especulações recentes sobre as srcens e a natureza da heresia, ele claramente merece uma O
anál is e m ai s profun da.
9 Ortodoxia, neresia e poder A
heresia é a ortodoxia dos perdedores da história. Semelhante concepção, que expressa e oferece uma justificativa histórica um tanto inadequada nos escritos de Walter Bauer (p. 73-77 ), aponta para a imp ortância fun dam en tal do poder na determinação do que é ortodoxo. Para Bauer e seus seguidores mais recentes, a heresia é apenas uma ortodoxia que teve o azar de se misturar com as pessoas erradas. O outro lado venceu e impôs suas ideias como ortodoxia reinante. A vitória teológica ficou com os que tinha m pod er para im por os seus pontos de vi sta. Tal desenvolvimento é de considerável im portân cia, em especi al porque ajuda a exp licar o crescente interesse cultural — sem mencionar a simpatia — pelas heresias. Nessa leitura das coisas, a heresia é a ortodoxia do corajoso desfa vorecido, a voz dos grupos culturais reprimidos e oprimidos. A crítica especializada pode inverter o julgamento da história, que é invariavelmente
escrito pelos vencedores, e restabelecer as ideias e os valores daqueles que foram culturalmente vencidos em seu espaço. A reabilitação da heresia pode ser vista, assim, como uma ação profundamente moral. E preciso admitir que é muito difícil defender essa interpretação da história. Para os seus críticos, ela parece representar uma tentativa de interpretar determinados juízos ou preconceitos culturais na história, em vez de tentar fazer uma análise histórica crítica do surgimento e do caráter da “heresia”. D e um a perspecti va c ri st ã, porém , a heresia tem um si gnif icado b a sta n te d ife ren te .444 O term o passou a se referir a um c o n ju n to de crenças que mantêm a forma externa do evangelho, mas, no final das contas, subverte a sua essência. A heresia torna a fé cristã incoerente e instável, e assim diminui as suas chances de sobreviver ao longo do tempo em um mundo ideias grandemente competitivas. Para usar uma conhecida imagem darwiniana: se o mais apto deve sobreviver, então a forma mais apta de cristianismo deve ser identificada e pro m ovida — ist o é, a ortodox ia crist ã. N este livro , explorei ess a a bo r dagem cristã a respeito da heresia, tentando identificar o que havia de po tenc ialm ente tão subvers iv o ou destruti vo sobre o s mo vime ntos clássicos dentro da igreja primitiva que, por fim, fizeram com que eles fossem declarados heréticos. Contudo, a crítica erudita da heresia tem passado por mudan ças significativas nos últimos anos. A heresia já não é mais vista como uma noção especificamente cristã, mas como um fenômeno social mais amplo, chegando a refletir questões de poder e de influência. A heresia é um conceito encontrado em outras religiões do mundo (às vezes, sob outros nomes) bem como no cristianismo,^' refletindo, por fim, o fato de que se trata de movimentos sociais relacionados com questões de p od er e inf luênci a. Rowan. Defining Heresv. In: Krkidf.r, Alan (Org.). The Origim o f Christendom inthe West, Edinburgh:T. & T . Clark, 20 01, p . 313- 335.
444 'W illia
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44' V. The Comtructi on o f Orthodoxy an d Heresy: Neo-Confucian , hktmk, Je^ish, and Early Albanv: State Univ. of N ew York Pre ss, 1998. Chrh tnm Patterns, dc John B. Henderson,
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O itodo xia.
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Esses fatores serão abordados no presente estudo, algo que pode scr considerado uma proposta de explicação “realista crítica” sobre a he resia.441’ O realism o crítico te m co nq uista do um espaço cada vez m aio r nas ciências sociais de hoje, e se caracteriza particularmente pela explo ração da interação das ideias com os seus contextos sociais. O realismo crítico recon hec e qu e as i deias surge m de seu con texto social e são por el e m oduladas, desem penh ando em geral um papel d e crít ica s ocial — por exemplo, definindo os limites das comunidades. Neste capítulo, vamos explorar alguns dos temas sociológicos que dizem respeito às srcens e ao desenvolvimento da heresia, focalizando especialmente a complexa infl uência m útua entre heresia, ortodoxia e poder .
Abordagens sociológicas da heresia A srcem de uma explicação essencialmente social da heresia pode ser lo calizada nas orig ens do m arxism o. Karl M arx (1818-1883) propôs um a explicação sobre a origem das id eolo gias (a “produção de ideias, de concepções, de consciência”, uma noção que poderia hoje ser tradu zida por “ visão de m un do ”) que afi rmava que el as eram fun da m en talmente expressões de fatores econômicos c sociais. A ideologia age como a superestrutura de uma civilização ou cultura, uma vez que ela define as convenções e as crenças que compõem as ideias dominantes de um a soci edade. As “id eias reina ntes” de de term inada época histórica são, desse modo, aquelas da classe dirigente:
A s ideias da classe d o m in a n te são , em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja , a cl asse que é o po der m ater ial do m ina nte da sociedade e, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante.
Para uma apresentação do realismo critico, v. Criti cai Reahsm: A n íntrodueti on to Roy Bhaskars Philosophy, CotJ.IKR, An drew (Ed .j, Lo ndo n: Ve rso, 1 994 ; Transcmdence: Criticai Realum and Godal Reahsm and God, A r che r Margaret; CoLLIER, Andrew;
A classe que te m à su a disposição os meios p a ra a produção m a teria l dis põe as sim, ao mesmo tempo, dos meio s pa ra a produção esp iritua l , pelo que lhe estão assim , ao mesmo tempo, subm etidas em m édia as ide ias daque les a quem fa lt a m os mei os pa ra a produção espiri tual . A s ideias d om inante s não são m ais do que a expressão id eal [ideell\ das r elações mater iais do m inan tes, as relações m ater iais do m ina nte s conce bida s como idei as; po rta nt o, das rel ações que pre cisa m ente tor na m do m ina nte um a classe, portan to, as ide ias do seu dom ínio:"
Tal abordagem leva à heresia que é vista como a ideologia de um grupo derrotado ou oprimido, enquanto a ortodoxia é a ideologia da classe dirigente. Embora essa perspectiva da heresia tenha óbvias aplicações à instituição da igreja, ela não se limita a ela. Com efeito, a heresia passou a ser, desse modo, concebida em termos sociais ou teológicos. Friedrich Engels (182 institucionais, em vez de 0-1895) fez A s guerras camponesas na A lem anha essa conexão em seu importante (1850). Ao escrever esse livro, o objetivo de Engels era principal mente oferecer consolo àqueles desanimados pelo fracasso da ati vidade revolucionária tentada em 1848-1849, traçando um paralelo com o fracasso anterior da revolta dos camponeses alemães, em 15 25 .44,5 C on tud o, a obra tam bé m pa rtia da ide ia de que as heresi as são manifestações de conflito de classes. Na verdade, as diferenças te ol ógi cas entr e M artinho Lu ter o e o lí der ra di cal Th om as M ün tzer fundamentavam-se em temas sociais e políticos. Em eras dominadas pelos conceitos e linguagem da igreja cristã, os movimentos sociais alternativos tinham pouca opção, a não ser usar Karl; ENGELS Friedrich. A ideologia alem ã: teses sobre Feuerbach. São Paulo: Moraes, 1984, p. 56 (gritos dos autores). Para uma análise sobre essa concepção, v. Wahrheit. and Ideologie, de Hans B a r th , N ew York: Amo Press, 19/5, p. 73-190. 44F A análise feita po r Eng els da Rev olta dos Ca m pon eses, com o sendo fundamentalmente baseada na luta de classes, teve urn impacto significativo nos posteriore s es tu dos histó ricos so bre o m ovim ento . V., p. cx., “C om m u nal R efo rm ation and Peasant Pi ety: T he Peasant Reform ation in Its Late M edieval Origin s”, de Per er v. 20 . 216- 228 1987. B uckle , Cent ral Eur o ean His tor 44, M
a r x
f
On cdox ia, her esi a e pod er
]
a linguagem religiosa como um meio de expressar a sua identidade. N o enta nto , o cern e de tais m ovim ento s, nessa in terpre ta ção, não é re ligioso — apesar de externamente aparentar preocupações religiosas — mas político, social ou econômico. E studos recentes da sociologia da heresi a têm enfatizado ess e ponto. G eorge Zito, por exemplo, observa q ue a heresi a não é princip alm ente “ um fenôm eno reli gioso , ma s um fenôm e no institucional”. Ele se desenvolve inicialmente dentro de contextos de rel igiosos “ som ente po r causa da posição c entral da instituição religiosa na dom inaç ão dos discursos de u m m om en to histórico partic ular”. '449 Conforme a heresia e a ortodoxia comecem a se diferenciar, é inevitável o surgimento de uma divergência intelectual entre elas. Mas nessa interpretação sociológica da heresia, o tipo de di vergência possui, no final das contas, um significado limitado. O verdadeiro ponto em questão subjaz às ideias e não é diretamen te expr ess o p or el a. O ortodoxo e o heré ti co devem ser distingu idos ideias heréticas são a social, institucional ou economicamente. As superestrutura erigida sobre uma base sociológica e não são, em si mesmas, d e f und am ental i m port ância. Esse importante desenvolvimento conduz diretamente a um dos traços mais característicos textosdecontemporâneos sobre a heresia. Enquanto as primeiras dos gerações heresiólogos louvavam a ortodoxia e castigavam a heresia, os escritos mais recentes da área parecem te r sim p lesm en te in v ertid o o ju lg am en to . Se a distinção entre heresia e ortodoxia está no poder e na dominação, a ahnidade agora par ece estar , dec ididam ente, do lado do herege. A que stão não é o “certo” e o “errado”, mas, sim, quem tem o poder capaz de forçar a aceitação de seu modo de ver as coisas. A ortodoxia de hoje pode, dessa maneira, facilmente transformar-se na heresia de amanhã. Tudo o que se precisa é de uma mudança radical na relação social das partes envolvidas.
l4'; Z i t
o
, George V. Toward a Sociologv of Heresy.
p. 1 2 3 -1 3 0 , 1983; a cita ção se en c o n tra n a p. 126.
Sociological An aly ses , v. 44,
Até que ponto, portanto, a discussão da igreja sobre a heresia foi moldada por interesses e relações de poder? Devemos começar, então, pela era patrística, focalizando em particular as seis heresias clássicas que estudamos nos capítulos 6 e 7.
Poder, heresia e a era patrística Para começar, preci samos reiterar um a questão abo rdada a nte rior mente: a igreja cristã nos séculos I e II não possuía um poder político rel evante, e parece não ter tido n en hu m meio à sua dis posição para im p or a orto doxia . N ão existe nen hu m a prova convin cente para sugerir que as primeiras heresias do século II — como o valentianismo e o marcionismo — estivessem sujeitas a qualquer forma de coerção por parte dos líderes da igreja rom ana, forçando-os a se adequarem às n or mas teológicas romanas. Marcião e Valentino, contrariados pela falta de aceit ação d entro da igr eja, fun dara m as próprias c om unidades. Eles não foram violentamente expulsos contra a sua vontade. Tem-se observado com frequência a importância dos jogos de p o d er na definição do cristianism o prim itiv o. Por exem plo , o soció logo Max Weber (1864-1920) propôs que o processo de formação de qualquer cânon de textos seria no final das contas uma luta pelo poder. D esse m odo, W eb er arg um entou que “ a m aiori a, em bora não todas, a s compilações sagradas canônicas se tornaram oficialmente refratárias a indesejáveis acréscimos seculares ou religiosos como conseqüência de um a luta e ntre vár ios grupos e pr ofeci as conc orrentes pelo controle da com un idad e”. 4111 D e m odo nada surpree nde nte, W eb er e nten de o processo de conclu são dos cânones bíb licos cristã os e hebraicos em termos de lutas pelo poder entre grupos rivais, com o resultado de terminando qual deles dominaria o formato da instituição regida por
W ebkr, Max,
The Sociology ofReligion.
Boston: Beacon Press, 1993, p. 68.
O rt odo xia, her esi a e po de r
]
tai s text os. "51 A heresia pode ser inter pre tad a, então, com o tend o sua srcem na decisão de reconhecer um cànon alternativo das Escrituras, com suas ideias distintivas surgindo principalmente do uso de fontes difer entes daquelas usada s p ela ortodoxia, não devido a interpretações diferentes das m esm as fon tes usadas pela próp ria or tod ox ia.152 N o entanto, é questionável se ta l análise baseada no poder pode ser aplicada de forma convincente ao período da “proto-ortodoxia”. W alte r Bauer, cuja perspe ctiva ref lete as idei as de W ebe r, par ece q uerer status que a igrej a rom ana só retroceder ao século II o poder político e o atingiria mais tarde. Mas tal anacronismo não é defensável. Somente a partir da conversão de Constantino, no início do século IV, é que se pode considerar que o cristianismo teve alguma verdadeira influência política em Roma. No século II, o cristianis mo era uma religião ilegal, à margem da sociedade, sem acesso ao p o d e r p o lític o ou social, e m u ito m eno s capaz de im p o r seu p o n to de vista de alguma forma. O que não significa que a igreja não se preocupasse com as ameaças à autenticidad e cri st ã, ou não est iv ess e aten ta ao m odo com que as expressões ou representações mais autênticas da fé poderiam ser identificadas e mantidas. Por exemplo, os textos de Orígenes po dem ser considerados uma tentativa de definir a “ortodoxia” como a interpretação mais coerente das Escrituras, especialmente em termos dos pad rões de açã o d ivina revelados p or elas.4 '3 Se é certo q ue a s redes informais de bispos e teólogos se preocupavam em esclarecer a natureza da ortodoxia, muitas vezes por meio de correspondências j;i Para um a inves tigaçã o um ta n to espec ulativa desse te m a, v. “C an o n and Social Control ", d e M eerten B . ter Borg. In: van di :R Kooij, A.; VAX d k rT oo rn K. (Orgs.). Canonization and Decanonization. Leiden: Brill, 1998, p. 411-423. 4,2 Par a um a inv estigação sobre o as sun to, v. The M a ki n g o f a Heretic: Gertder, Au thority, and the Prisállianíst Controversy , dc Virgínia B uurí JS, Berkeley: Univ. of Califórnia Press, 1995, p. 19-21. 4r> W n .i ja ms , Rowan. Origen: Between Orthodoxy and Heresy. In: A.; Bienkrt Ongemana Septima: Orígenes in den Ausemandersetzung des KüHNEWKG, Uwe (Orgs.). 4. Jahrhun derts. Louvam: Peeters, 1999, p. 3-14.
p essoais,4;- esse processo, no e n ta n to , esta va fu n d am e n ta lm e n te in te ressado na consolidação do entendimento dentro da igreja, não com a imposição dc alguma conclusão predeterminada. N o e n ta n to , tu d o isso m u d o u com a ascensão de C o n sta n tin o
status social e político do cristianis e a transformação gradual do mo, que passou de um movimento religioso marginal para a religião oficial do Império Romano. As desavenças dentro do cristianismo imperial tinham agora o potencial de causar divisão e instabilida de dentro do império. Constantino parecia ter pouco interesse nas questões teológicas que estavam na base desse debate. Suas decisões sugerem uma determinação pragmática para resolver os assuntos de forma rápida, embora civilizada. Constantino foi arrastado para a controvérsia donatista numa fase inicial, em parte por causa das implicações do movimento na polític a colo nial ro m ana no n o rte da A fric a. Inicialm en te, seu m o vimento tomou a forma de firmes sugestões para que as respectivas partes resolv essem o prob lem a entre si, e depois pela im posição de um mecanismo para resolução do conflito. Após tudo ter fracassado, o própri o C on stan tino julgou o assunt o, deci dindo em favor d a parte católica. Está claro, porém, que seu envolvimento nessas tarefas era relutante. Seu modo básico de agir era permitir que a igreja resolvesse as próprias disputas. Uma situação semelhante surgiu com a controvérsia ariana, em que Constantino, novamente de forma relutante, viu-se enredado em um debate teológico para o qual ele se considerava mal preparado. Mais uma vez, a preocupação de Constantino foi a de restabelecer a unidade dentro da igreja, ele Npropôs mecanismo paracom base a resol ução do confli to.eOnovamente C oncilio de iceia um (325), forma do nos precedentes clássicos do Senado romano, não tinha a pretensão de
4MV. “Does It Make Sense to Speak of Pre-Niccne Orthodoxy?”, de Rowan W l Ll.lAMS. I n : ____ (Orgj. The M aking o f Ort hodoxy. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1989, p. 1-23.
Or todo xi a, heresia e pod ei 1
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impor as concepções de Constantino sobre a cristologia; na verdade, há indicações de que sua preferência recaísse sobre a cristologia ariana.^ O seu principal objetivo ao se envolver nas disputas parece ter sido o estabelecimento da união e do entendimento dentro da igreja. Embora Constantino aparentasse satisfação em permitir que a igr eja r esol vess e os próp rios deba tes teológicos, el e não hesitou em usar a torça do E stad o para im po r a un iform idade ass im que a solu ção ti vesse sido alcançada. Constantino impôs a ortodoxia nicena, exilando aque les qu e se recusavam a aceitá-la — incl usive o pró prio A rio, o diácono Eu zoios e os bispos l íbios Tc ona de M arm arica e Segundo dc Ptolemais. Ele tam bém orden ou q ue fos sem queim adas todas as cópi as de Thalia , o livro no qual Á rio havia regi strado seus ensinam entos. O E stad o podia não definir a ortodoxia, no entan to el e certame nte est ava prepa rado para im pô-la. U m a vez que tal conclu são fos se acei ta, ela teria implicações importantes para a tese de Bauer, isto é, de que a imposição da ortodoxia, considerada repugnante por muitos discípulos de Bauer, teria acontecido do mesmo modo se os movimentos, agora tidos como heréticos, tivessem sido declarados ortodoxos. Se a força m otriz para a supres são da diversidade era a unid ade imperial, qualquer que fosse a visão designada como “ortodoxia” seria imposta. Isso tem claras implicações para o curioso sentimento moderno de que a heresia é intrinsecamente libertadora e a ortodoxia repressora. A íunção social desses movimentos não parece ser determinada pelas ideias em si, mas pela sua adoção e endosso por parte do E stado. Se o do natism o ti ves se conqu istado a a prova ção de C on stan tino, em vez da posição católica, ele teria sido imposto como uma questão de polít ica imp erial , para o bem da coes ão soci al do im pério. Dc m odo semelhante, se Niceia tivesse endossado o arianismo, ele seria imposto da mesma forma e pela mesma razão. A estabilidade imperial exigia uniformidade e conformidade eclesiástica. Esse é um tema recorrente ao longo da história da relação igreja-Estado — veja, por exemplo, o 413 C on su lte a discu ssão em Constantme and Eusebtus, Cambridge: Harvard Univ. Press, 2006.
de
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D.
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,
“A to da U nifo rm idad e” (155 9) de E lisabeth I, projetado para estabili zar a s ituação rel igi osa e polít ica na Ing laterra du rante u m período de ten sã o na cion al e in te rn aci o n al .4?I' Os acontecimentos que se seguiram à morte de Constantino, em 337, dão mostra de que tudo isso não é, de modo nenhum, uma especu lação extravagante. O filho dele, Constâncio, reabriu os debates nicenos com uma perspectiva de reversão do julgamento srcinal do arianismo. Aconselhado pelo ariano Eusébio de Nicomédia, Constâncio inverteu a ort odoxia nicena, decl arando A tanás io de Alexandria com o heterodoxo e Ário, ortodoxo. Constâncio usou em defesa do arianismo o mesmo poder imperial que C on stan tino usara para im por a p osi ção de Atanásio. Es te fo i exilado, be m com o outro s a poiad ores da teolog ia estabe lecida cm N ice ia.457 A situação inverteu-se em 381, quando o Concilio de Constantinopla reafirm ou e cons olidou as i dei as fu nd am enta is do C on cilio de N iceia.4 5A declaração de Constâncio da ortodoxia do arianismo e da heterodoxia da doutrina das “duas naturezas” parece confirmar a visão de que a ortodoxia é simplesmente uma ideologia religiosa favorecida por aqueles em posições de poder. Uma mudança no poder, portanto, le varia a uma mudança correspondente na ortodoxia: o arianismo, tendo sido declarado herético em 325, foi a ortodoxia reinante vinte anos mais tarde. Co ntu do , um exame mais próximo dos event os e ntre os co ncí lios de Niceia (325) e de Constantinopla (381) sugere que, na verdade, eles põem abaixo a id eia de que a heresia e a orto doxia são essencia lm ente um a que stão de polít icas de poder . J:,l: Para uma introdução convencional sobre o assunto, v. Elizabeth and the Englhk Reformation: The Stri/gglefor a Stable Sett/emen t ofR eligion, de W ill ia m P. HArGAARD, Cambridge; Cambridge Univ. Press, 1970. 4,; v, bhcaea and Its Legacy: An Approach to Fourth-Century Trinttanan Theology , de Lewis A yres Oxford: Oxford Univ. Press, 2004, p. 100-104. Há indicações de que o próprio C on stantino não ficou com ple ta m ente sa tisfeito co m o re su ltad o de N iceia , esp. com o tratamento dado aos partidários de Ario. 453 O Co ncilio de C on stan tino pla foi convocad o po r Te odó sio 1 , cuja autorid ade se restringia à parte oriental do império. Para entender seu significado, v. East and West: The M ak m g oj a R ift in the Churc bfr om Ap ostohc Ti me'. U ntd the Counc il ofFloren a, de Henry C hadw i ck , Ox ford: O xford Univ. Pres s, 2003, p . 20-26.
Ortodcxia, "-eresia e poder
A decisão política de que o arianismo era ortodoxo e seus rivais, heréticos provocou um exame intelectual detalhado sobre as referên cias das opções teológicas disponíveis à igreja. Escritores como Basílio de Cesareia e Gregório de Nazianzo propuseram uma análise teoló gica que causou uma significativa tensão entre os méritos intelectuais de uma teologia e a sua conveniência política. O arianismo poderia ter sido imposto à igreja por um ato de autoridade imperial, no entanto foi se tomando claro que essa não era a melhor opção intelectual.^ N o fim, a influência política provou-se inadequada para suste nta r um a visão deficiente da fé cristã. Embora o arianismo continuasse influen ciando regiões periféricas da igreja durante algum tempo, seus centros de infl uência tinha m sid o conquistados novam ente pela visão nicena de fé .
Poder, heresia e a Idade Média O declínio gradativo do Império Romano conduziu a uma série de reestruturaç ões tan to na igrej a orie ntal q ua nto na igrej a ocidental. -'’0 N o O cidente, a igreja foi se torn and o aos poucos a g a ra n tid o ra da ordem soci al estabeleci da. E sse a co ntec im en to refl ete vári os fatores, inc lusi ve a fraqueza das estruturas alternativas de autoridade. Como a única insti tuição a possuir alguma credibilidade ou influência importante durante a Idade Média, a igreja desempenhou um papel decisivo na solução de disputas inte rnac iona is.4'’1 Sob o m an da to de Inoc ênc io III (papa de 1198 a 1216), o papado medieval alcançou um nível de autoridade polític a na E uropa O cidental até então sem precedente s.-'0 A lg o que foi determinante para a justificação teológica, em 1198, do princípio básico da subordinação do E stado à igreja, im posto por Inocêncio III. 4<,‘1 Par a u m a avaliaçã o dessa análise, v. Nic aea and lts Legacy, d c Ayrf.S, p.167-260. 4fl'' V. a exposição em The Formaiion of Chrislendom, de Judith HeRRIN, Princeton: Priceton Univ. Press, 1987. ‘ M CU SH I N G , Kathleen. Papacy and Lazv in the Gregorian Revolution. Oxford: Oxford Univ. Press, 1998. Saykrs, Jane. Inm centIII, Leader o fEurope, 1198-1216. Ne w York: Long m an, 199 4.
Da mesma forma que Deus estabeleceu “mais" e ‘menos” luz no céu para governar o dia e a noite — um a referê ncia ao Sol e à L ua — , assim também Deus determinou que o poder do papa excedia o de qualquer monarca. Era parte da ordem das coisas, além de qualquer contestação. A autoridade da igreja foi muitas vezes reconhecida com grande relu tância, mas não havia outra instituição na Europa Ocidental com algo remotamente semelhante à sua influência. E importante reconhecer que a igreja medieval permaneceu no centro da vida social, espiritual e intelectual da Europa Ocidental ao longo da Idade M édia. A esperança de sa lvação de um indiví duo est ava em sua pa rticipação na c om un idad e dos sa ntos, cuj a expres são v isível era a instituição da igreja. A igreja não podia ser evitada ou marginalizada quando o assunto era redenção. Como Cipriano de Cartago havia ar gumentado de modo tão convincente no século III, não havia salvação fora d a igreja.*'-* Tr ata va -se de um a que stão tang ível expressa e reforçad a na arquitetura das igrejas. U m a excel ente il ustr ação desse po nto pode ser observada na igr eja frances a do Pri orado B ened it ino de St.-M arcel-les-Sauz e, que f oi fun dada cm 985 e exten sam en te am pliada du ran te o s écul o X II .4'’4N a ins cri ção acima da po rta princip al da igr eja l ê-se: “Vo cê que entra, você que vem expiar o s seu s pecados, pass e p or m im , pois eu sou a po rta da vida” . Aqueles que estavam procurando a consolação dos céus ou o perdão dos pecados não podiam assegurar esses benefícios sem a intervenção c interpo sição da instituiçã o da i greja e s eus m inistros auto rizad os.4"5A sal vação havi a sido institucion alizada . Com esses processos, a heresia passou a ter um novo significado. Quando os movimentos heréticos foram formalmente declarados ‘‘fora da igreja”, eles foram considerados form alm ente incapazes de levar à sa lvação. 461 Carto GO, Cipriano de. Epístola 72: “[S]alus extra ecclesiam non cst”. 464 RoUQUFTTK, Jcan-Maurice. Pro venc e rom ane:L a Provence r hodamenne. 2.
ed. La
Picrre-qui-Vire: Zodiaque, 1980, p. 50. 41:5 S ul i j va n , Francis. Salv ation Outsid e tbe Church ? Tracing t he History of the Catbo hc
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Ortod oxia , here sia e pod er
]
Mas, talvez o mais importante para o tema deste capítulo, eles também foram vistos como contestadores da autoridade da igreja, oferecendo um sistema de crenças, uma narrativa mestra ou uma interpretação bíblica alternativa. Os movimentos heréticos, embora baseados cm certas ideias essencialmente religiosas, no final das contas representavam visões al ternativas de igreja e de sociedade, o que representava uma importante am eaça ao m ono pó lio qu e a igreja estava em vias de est abel ecer . A heresia começou a se transformar num problema significativo no séc ulo XI, depois de ter sido um a questão de m édia express ão nos três séculos anterio res.'4Í"’ A lg un s religiosos su ge rira m q ue o ano 1000 fosse vis to com o possuindo u m signif icado míst ico, despertando um a on da de especulação he rética d ura nte a “geração m ilenarista” (1 00 0-1 03 3).467 O est udo da her esi a na Eu ropa O ciden tal durante a Idade M éd ia s usc ita alguma s im po rtan tes q uestões de definição:4 08 certos mo vim entos que foram declarados heréticos parecem representar a renovação ou mo dificação de heresias antigas. Um excelente exemplo disso é oferecido pelo s cátaro s, um a seita religiosa que apare ceu na região de L anguedoc, França, no século XI, e floresceu no sul da França nos dois séculos se guintes .469A sei ta ad otou do utrinas recon hec idam ente gnósticas, tal vez com srcem na Europa Oriental, como a noção de que a matéria é intri nsecam ente má e um a dial éti ca entre um a divi ndade cri adora inf eri or e uma divindade redentora superior.
4M’ Cf. i ndicado em The O ngins o f Euro pea n Dissent , d e R. 1. MOORE, Lo ndo n: AUen Lane, 1977. 4ü7 V. os debates cm “The Birth of Heresy: A MiUennial Phenomcnon”, dc Richard Landes ,Journal o f Rehgious H isio ry, v. 24, p. 26 -4 3, 2 000; "The B irth oj Popular He resy: MüORE, v.24, p. A M iU en nia l Phenomenon?", Journal of Religious Historv, de R. I. 8-25, 2000. 468 FlCHTENAl.i, Heretus and Scholars m the H ig h M id dle Ages, 1000-1200. University Park: Pennsylvania State Univ. Press, p. 105-126. ^ O s cáta ros também são conhecidos como albi gens es, da cid ade de Albi (nom e latino: Albiga), a nordeste de Toulouse. Para uma acessível introdução, v. The Pertect Heresy: The Rev olutionary L ife and Death o f the M edie val Cathars, de Step hen 0 ’SlIEA, N ew York: W alk er Sc Co., 2000. O termo “cátaro” deriva da palavra grega katharos (“pu ro”) , em referên cia à sua ênfase na excelência moral.
Outros, no entanto, parecem incorrer em uma categoria mais política, sendo m ovim entos que representavam um a am eaça à a u to ridade da igreja. O confronto poderia tomar a forma de uma visão alternativa da sociedade ou do lugar privilegiado da igreja na interpre tação das Escrituras. Um exemplo desses movimentos é o vaidismo, um movimento de reforma surgido no sul da França por volta do ano 1170, como resultado da ação de um rico comerciante de Lyon, cha m ado Pedro Valdo. 470 Esse ho m em ini ciou um m inist ério reform ado r baseado n u m a leitura literal da Bíblia, focada em p articular nos p rin c í pios de pobreza e na pregação b ib licam en te em basada na língua local. Semelhante éthos contrastou nitidamente com a moralidade um tanto liberal do cl er o naq uele m om ento, e conqu istou um considerável apoi o no sul da França e na Lombardia. Embora não passasse de apenas um movimento popular em defesa de uma reforma, ele foi considerado status da igreja. uma importante ameaça ao poder e A politização da noção de heresia talvez fique mais nítida na rea ção d a igre ja a Jo hn W yclif fe (c. 1320 -1381 ), um teólogo ingl ês a quem m uitas veze s é atribuída a inspi ração para a prim eira tradução ingl esa da Bíblia. A questão determinante para Wycliffe era quem tinha o direito de ler e interpretar um texto: todos os crentes ou uma elite espiritual? C om o K antik G ho sh d em onstrou, W ycli ff e trata a Bíbl ia a cima d e tud o com o u m “conc eito id eo log icam en te in ves tido”.471 Há aqui uma questão fundamental de poder. Ao insistir que a Bíblia deveria ser traduzida para o inglês, Wycliffe estava ampliando o círculo daqueles que teriam acesso ao texto e dos que acreditavam ter o direito de interpretá-lo. Os que resistiram às demandas de Wycliffe pela dem ocratização da inte rpretação bíblica fornecia m um a defesa teo lógi ca tradicionalista da sua concepção e lit ista do direito de inte rpre tar
Gabriel. The Waldensian Dissent: Perseaition and Survi-val, 1170-c. 1570. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1999. 4,1 G h o sh , Kantik. The W ydijflte Here sy: Au tho rity an d the Interpre tai um of Tex ts. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2002, p. 22.
*' ° A líDlSlO,
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Orto dox ia, heresia c Dodcr
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a Bíblia.4 7’ D e qua lquer m odo , a m otivação das questões de pod er e status quo dificilmente podem ser negligenciados. o fortalecimento do A conseqüência da “heresia” de Wycliffite foi o enfraquecimento da força da igreja no controle de como a Bíblia deveria ser interpretada. Existe um padrão aqui que pr eci sa ser obser vado. E m bo ra a Idade Média de fato tenha testemunhado a revivificação, muitas vezes com alterações locais, de heresias mais antigas, diversos movimentos foram estigmatizados como heréticos por motivos políticos. O estabeleci mento da Inquisição pode ser visto como marcando a confirmação do crescente significado político e institucional das heresias, consideradas uma ameaça à autoridade papal.4" Isso representa um importante mo vim ento de afastam ento das tentati vas da patríst ica dc captar a e ssê ncia da heresia, que se con cen trava n a amea ça que ela representav a à fé crist ã como um todo, não aos indivíduos ou às instituições cristãos. O uso do term o “heresia” para d en ota r um a am eaça à igr eja passa a s er vist o com o inquisitorial, em vez de teológico. Conforme Herbert Grundmann in dicou em 1935, muitos dos movimentos religiosos da Idade Média que foram condenados como heréticos, na verdade não eram nada disso. H av ia uma q uestão sér ia a se r considerada em fav or do a ban don o do uso da p alav ra “he res ia” em refe rên cia a m uito s dele s.47i A importância do assunto fica evidente quando se considera a resposta da igreja católica ao surgimento do protestantismo, para o qual nos voltamos agora.
4 - Tbiíleni, p. 67-85. o f Inquisition and Medieval Heresy: The |T: Ki er ck i i í -.FKR, Richard. The Office iransition Irom Personal to lnstitutional Jurisdiction,_/o»? 7m/ oj Ecclesiastical ílislory, v. 46, p. 36-61,1995. " ' Para uma das primeiras análises desse caso, v. Rehgiõse Bewegimgen im Mittelaller: Untersucbunaen üher die veschuhtlichen Zmammenhãme z.v:nchen der Ketzeret, den Bettelorden un d der religiõsen Frauenbewegung um 12. und 13. Jahrh undert un d ãber dte geschichtlichen Gnmdhgen derdeutschen Mystik, de H erbert G r undm an n , Berlin: Emil F.benny;, 1935.
Protestantismo — uma nova heresia7 Uma onda de reflexão religiosa radical começou a ocorrer a sério na Europa Ocidental durante os anos 1510. Movimentos reformadores haviam surgido ao longo da Europa, exigindo a renovação e a reforma da i grej a a pa rtir de seu i nterio r.47' Q ua nd o M ar tin h o L ute ro suscitou algumas questões fund am entais sobr e a vend a de indulgênci as, fei ta em parte com o objetivo de le vanta r fundos para a reconstrução da Basílica de São Pedro, em Roma, as coisas começaram a sair do controle. A s famosas “ N ov en ta e Cin co Teses’ ’ de L utero , pregada s na p orta do Ca stel o em W itt en be rg, em outubro de 1517 , tiver am como con seqüên Exsur ge Dom ine (“Levanta-te, cia a emissã o, por Leã o X , da bula papal Senhor”) que condenou Lutero, como herege, em 1520. A base teoló gica da condenação era seriamente deficiente. Mas a teologia não era o ponto principal aqui. A verdadeira preocupação era a contestação da influência e autoridade papais, então postulada por Lutero. Lutero não tinha nenhuma intenção de retratar-se de suas ideias. De fato, no ano de sua condenação como herege, ele publicou três obras de divulgação em rápida seqüência, firm and o a sua vis ão sobre a reform a da igreja. O seu Apelo à nobreza cristã da nação alemã , considerada am plam ente com o a mais im po rtan te dessas obras, estabelecia o m odelo para a reform a da igreja e afirm ava que os nobres alemães tinh am todo o direito de exigir a mudança. O cativeiro babilômco da igreja criticava o A liberdade de um ensino nela desenvolvido em relação aos sacramentos. cristão explicava a perspectiva de Lutero sobre a justificação em termos facilmente acessíveis. Embora as três obras representassem uma ameaça Apelo. à autoridade papal, a provocação mais séria estava no O ítica argu emdas entodec m entral obra é quema uralhas igr eja separa prosua te gia da cr andasdep Lorutero refor ness mas aerguendo defesa. Em primeiro lugar, ela fazia uma distinção fundamental entre ordem “temporal” e ordem “espiritual” — em outras palavras, entre o
4,1 V.M artin Luth er , de M artin B recht
, 3v . Minneapolis: Fortress Press,
1990-1994.
Or tod ox ia, heresia c oocle; '
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mundo laico e o clero. O governo da igreja era então considerado um assunto do clero, não do público leigo, visto como subordinado em as suntos da fé. Segundo, o direito de interpretar a Bíblia era negado ao leigo e, no final das contas, cabia ao papa realizá-lo. Terceiro, apenas o papa podia convocar um concilio reform ador. C om o os m uro s de Jericó, Lutero afirmava, tudo isso devia ser derrubado. O ribombar da trombeta m etafóric a que L u tero dirig e contra tais m ura lh as sin tetiza alguns do s temas fund am entais da R efor m a, temas que fix ara m um padrão que aos poucos se tornaria normativo para muitos no protestantismo. Lutero iniciou a sua crítica à igreja propondo um dos maiores temas da Reforma — a democratização da fé. Lutero usa o termo alemão Gemeinde (“comunidade”) em referência à igreja, ansioso para enfatizar que ela é fundamentalmente uma assembleia de crentes, não uma instituição divinamente ordenada com poderes sagrados e autori dade garantida exclusivamente ao seu clero. Todos os crentes, homens e mulheres, em virtude do seu batismo, são sacerdotes. Lutero observou um importante corolário dessa doutrina: o clero deveria ser livre para se casar, como todos os outros cristãos. Esse direito ao casamento clerical log o se tornaria um a caracterí sti ca d efinidora do protestantism o. Lutero baseou a sua doutrina do “sacerdócio de todos os crentes” no c onc eito de igreja do N T , como um corp o dc “ sacerdócio real”. 4" C on form e L utero argu m entou , não havi a bas e para afir m ar q ue o clero era superior ao mundo leigo, como se fosse algum tipo de elite espi ritual, ou que a sua ordenação lhe conferia algum “indelével caráter” especial. Os clérigos são simplesmente leigos que foram reconhecidos po r outros leigos dentro da com unidade da igreja com o tendo dons especiais e foram comissionados por seus pares para exercerem um mi nistério pastoral ou de ensino entre eles. A autoridade para tomar tais decisões, no entanto, encontra-se em todos os cristãos, não em uma elite autocrática ou em u m a suposta arist ocraci a espiri tual .
E. L uthe r and the Priesthoo d oí Ali Bcl ievcr s Concordiu Theological Quarterly , v. 61, p. 277-298,1997.
47u N .AO FL ,No rm an
Lutero desenvolveu esse ponto com uma analogia civil, tão aces sível hoje como era quinhentos anos atrás. Os clérigos são “ocupantes de um cargo ’- e eleitos pelos nã o clérigos com o seus rep res en tan tes, mestres e líderes. Não há nenhuma diferença fundamental entre o clero e o mundo laico em termos de status; a diferença encontra-se to talm en te no fato de o prim eiro ser eleit o p ara o “ ofício” de sacerdote. status em razão do batismo. Essa eleição Todos os crentes já têm esse para o ofício é reversível, aqueles que são, p o rtan to , escolhid os podem ser destituídos se a ocasião assim exigir. C om base na dou trina do sacer dóci o unive rsal dos cr entes, Lu tero insistiu que todo cristão tem o direito de interpretar a Bíblia e levantar questões sobre qualquer aspecto do ensino ou da prática da igreja que pareça in com patível comdistinta a Bíblia. ão existe a possib ilid ade ade n en h u ma autoridade “espiritual”, dosNcristãos comuns ou superior eles, impor determinadas interpretações da Bíblia à igreja. O direito de ler e interpretar a Bíblia é um direito fundamental de todos os cristãos. N essa fase, L u tero acreditava nitidam ente que a Bíblia é clara o basta nte para que os cristãos com uns possam ler e com preendê-la . C o n tin u an d o o seu programa democratizante, Lutero insiste em que todos os cren tes têm o direito de ler a Bíblia numa língua que possam entender e interpretar o seu significado por si mesmos. A igreja, portanto, deveria prestar conta s a seus m em bros da in terpreta ção que faz de seu texto sagrado, estando sujeita à contestação em cada ponto. O significado da intenção de Lutero dificilmente poderia ser ig norado. Ao insistir que detinha um monopólio divinamente ordenado da interpretação bíblica, a igreja medieval declarava-se estar acima de qualquer crítica em relação aos fundamentos bíblicos. Nenhum crítico externo tinha autoridade para interpretar a Bíblia, e assim usá-la para criticar a s do utrin as ou práticas da igr eja. A resp osta de L ute ro fo i ca pa citar os leigos como intérpretes da Bíblia e fazer a igreja prestar contas ao seupo-vo daquilo que ensinava. E se não ficassem satisfeitos com os resultados, c ies, como lei gos, tinha m o direito de exi gir q ue um conselho reformador fosse convocado para tratar de suas preocupações.
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Orto dox ia, here sia e pode:'
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O último p on to talv ez f oss e o mais per igoso de todos, na med ida em que Lutero parecia ter um importante precedente histórico do seu lado. Ironicamente, Lutero lembrou os seus leitores de que foi o imperador rom ano C on sta ntin o o r esponsá vel po r reunir o Con cili o de N iceia ( 325), um dos pôde mais convocar importantes cristã.porSeque umos governante secular umconcílios concilio da tãohistória importante, príncipes alemães não deveriam fazer a mesma coisa mil e duzentos anos depois? Lutero e outros protestantes foram violentamente acusados de heresia pela igreja. Para muitos apologistas católicos, o luteranismo era apenas o ressurgimento de heresias anteriores. Condenando como heréticas ou heterodoxas as primeiras teses teológicas de Lutero no sécul o XV I, a Universidade de Pari s tentava estabel ecer a co ntin uid a de essencial entre heresias mais antigas e as ideias agora expostas por L u te ro r77A s id eia s de L utero não deviam ser, po rtan to, consideradas srcinais, mas essencialmente a reedição de heresias mais antigas. Assim , Lu tero er a um hussita em sua teologia da contrição, um wiclefista em sua doutrina da confissão, e um maniqueísta em sua teologia da graça e do livre-arbítrio. De acordo com a Universidade de Paris, a Reforma representava pouco mais que o ressurgimento das heresias mais antigas, já então conhecidas e condenadas. N o en tan to , o leitor im parcial de L u tero fica im pressionado mais por sua continuidade com a tradição patrística do que por seu distanciamento dela. Julgado nos termos das grandes heresias clássicas do cristianismo, Lutero seria de modo geral considerado um orto doxo em cada ponto, salvo possivelmente em relação à sua doutrina da igreja. Em conformidade com a situação política dos anos 1520, Lutero acreditava que era necessário romper com a igreja, de prefe rênci a tem po rariam en te, a fim de se ret er a pureza da fc cri st ã. Lu tero estava convencido de ;,ue a igreja de seu tempo havia comprometido r,?. verdade a visão pelagiana de que a doutrina cL: grr.ça, -\pc:àr.dí; a salvação era uma coisa conquistada ou merecida (um juízo que a 47: V.a discussão cm The Intelk ctu al Origi ns o f the F.uropean R eform aticn , de Alistcr M c G ra tu , 2. ed. Oxford: B lackwe ll, 2003 .
maioria dos estudiosos discute hoje). Para Lutero, as circunstâncias históricas da época o forçavam a escolher entre a doutrina ortodoxa da igreja, de um lado, e a doutrina da graça, por outro lado. De acordo com o grande teólogo protestante americano do século XIX, B. B. Warfield, “A Reforma, intimamente considerada, foi simplesmente o triunfo definitivo da doutrina da graça de Agostinho sobre a doutrina da i greja de A g o stin h o ”.478N esse p on to específico, L u tero se pos iciona mais ao lado do donatismo do que das concepções de Agostinho de Hipona. Mas, cm outros pontos, a doutrina dc Lutero sobre a igreja é completamente antidonatista. Além disso, tanto L utero qu anto a corr ente da Reforma, como um todo, respeitavam o alinhamento com as formas clássicas do cristianis mo da era patrística, consideradas essenciais para a sua autocompreensão. Quando os movimentos protestantes mais radicais abandonaram as práticas tradicionais com o o batism o infantil e crenças com o a dou trin a da Trindade, tanto Lutero quanto Calvino insistiram que seus progra mas reforma dores eram um a extensão direta da per specti va da patrí sti ca clássica. O protestantismo endossaria o entendimento de Atanásio e A go stin ho sobre o que era ortod oxo e o que era he rétic o.479 E ntão Lutero era realmente um hereg e? E o protest antismo como um todo? Com o passar do tempo, assistiu-se a uma visível suavização das atitudes católicas em relação a Lutero e às igrejas da Reforma. O Concilio Vaticano II (1962-1965), por exemplo, afirmou que o Espírito Santo estava ativo cm comunidades cristãs não católicas. Todos os que forem batizados e justificados pela fé podem ser perfeitamente considerados “membros do corpo de Cristo” e ter o direito de ser cha m ad o “cr is tã os ” c “irm ão s1’ pe la igreja ca tólica. J's W ar fjk i.d , B. B. Calvi n and Angustme. Philadelphia: Presbvterian and Reformed Publishing Company, 1956, p. 322. 4''g V. a im po rtan te coleção de materiais reun idos cm Ãucto rita sp atrum: Z nr R exep tion der Kirchenváter im 15. und 16. Jahrhimdertne, GlMNt., Leif; SciIINDl.F.R, Alfred; W ri kdt M arkus (Ed.), M ainz: Verlag Philipp von Zabern, 1993; A uctcrkaspatrnm II: Neue Beitráge zit r Reze phon der Kirchenviifer r/n 15. und 16. Jahrhimdert, G r ane Leif; S cii i nd l i cr , Alíred; YVr i edt M arkus (Ed.), M ainz: Ve rlag Phili pp von Z abern, 1998.
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Ortodo xia, her esi a e pode r
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Contudo, nossa preocupação aqui não é com as relações ecumê nicas entre o protestantismo e o catolicismo, que melhoraram subs tancialmente nos últimos cinqüenta anos, mas em saber se o conceito de heresia foi usado com objetivos diferentes depois da era patristica. Durante a era clássica, o conceito tinha um significado firmemente teológico, denotando uma forma de articular ou conceituar a fé cristã que, no fim, a t ornava incoerente ou indef ensável . Já n a Idad e M édia, o term o passa cada vez mais a si gnificar um m ovim ento soci al ou reli gios o que é en tend ido como um a am eaça pelo papa ou ao papado. A m eu v er, Herbert Grundmann está correto ao afirmar que é inapropriado usar o termo “heresia” desse modo, visto que ele passa a ser definido pelas contingências históricas das políticas eclesiásticas da época, em vez das ideias centrais dos movimentos em questão.
0 pr ote sta ntis mo e o problem a da heresia Conforme verificamos, o protestantismo foi rapidamente alcu nha do de her esia pel a igrej a cató lica. Os p rotestan tes respo nderam com indignação, replicando que eles tinham recuperado a ortodoxia de suas distorções medievais. O que era o protestantismo, senão a recuperação da fé ortod oxa d a igr eja prim itiva?4 *0 N o e nta nto , os católicos ti vera m pouca dificuld ade em afirm ar que, ain da que o protestantism o pudesse ser perfeitamente capaz de recuperar as interpretações bíblicas primiti vas, faltavam-lhe os meios para determinar se o que tinha recuperado era ortodoxo ou heterodoxo. E, carecendo da capacidade para discrimi nar tais interpretações, os protestantes eram obrigados a repetir os juí zos da igreja católica sobre essas questões. Em resposta, os protestantes argumentaram que, uma vez que estavam empenhados em restabelecer 4Í"' Para a im po rta nt e defesa dessa posição te ita po r M elân cto n, v. o cláss ico estud o Testi monia Patru m: The Function o f the Patrist ic Ar gu m en t in the Thcol ogy of Philip Melancbthon, de Petcr Fraí.XKFI., Genève: Droz, 1961. A análise foi ampliada em Historical M eth od and Confessional Id entity in the Era o f the Reform alion (1378-1615f de Irena B.U krs, Leiden: Brill, 2003.
o verdadeiro ensinamento da igreja primitiva, isso se estendia, natural mente, às concepções da igreja sobre ortodoxia e heresia. A perspectiva protestante sobre a heresia funcionou bem, res tringindo-se à reafirmação da condenação da igreja contra as heresias existentes ou sua renovação em novos formatos. Um bom exemplo dessa reformulação de heresias mais antigas em formas modernas pode ser visto na aparição do an titrin itarism o nos círculo s p ro te s tantes ital ianos, que rap ida m en te alcançou o norte da E u ro pa .481 Para Juan de Valdés e outros, a doutrina da Trindade simplesmente não era encontrada na Bíblia, nem poderia ser defendida com base nela. Os protestantes que fossem fiéis à Bíblia tinham, portanto, não somente a obrigação de não aceitar essa doutrina, mas a responsabili dade de contestá-la como uma distorção da verdade bíblica. Forçados pela Inquisição a deix ar a Itá lia , m uitos se instala ram na república independente de Grisons, no sudeste da Suíça, onde sua influência sobr e o pro testantism o reform ador começava a c rescer. Nesse caso, o prote sta ntism o foi capaz de lidar com tais tendências heterodoxas com um apelo ao consenso de fé da igreja, conforme fora estabelecido nos concílios de Efeso e Calcedônia. O cristianismo como um todo havia declarado tais ensinos como heréticos, e o protestan tismo, então, endossou esse padrão de ensino tradicional e, ao fazê-lo, rejeitou o antitrinitarismo como herético. Essas ideias surgidas dentro do protestantism o for am de um modo rel ati vam ente fá ci l desa creditadas como novas formas de heresias antigas. E quanto aos novos ensinos religiosos surgidos especificamente dentro do protestantis mo, mas sem real precedente na história primitiva? Eles poderiam ser descritos como heréticos, caso fossem considerados inaceitáveis? Um excelente exemplo dessa questão encontra-se na controvér sia arminiana, surgida com os ensinos de Jacó Armínio (1560-1609)
41,1 Par a de ta lh es , v. '‘Th e Ttaüan Refo rm atio n an d Ju an de Valdes", dc ALissimo ElRPO, Sixteentb Cen hiry Journal, v. 27, p. 353-364, 1996.
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Orto do xia, here sia e pod er
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sobre a p red es tina çã o.4*'- Essa im p o rta n te co ntrov érsia de ntro do calvinismo surgiu acerca da doutrina da predestinação e levou a uma bifurcação fundamental entre o calvinismo e o arminianismo. A ortodoxia calvinista no século XVII afirmava que o destino eter no de um indivíduo era totalmente uma questão da soberania divina. O arminianismo afirmava que os seres humanos estavam, ainda que num nível limitado, comprometidos com a sua eleição, tendo a capa cidade de resistir ao chamado de Deus. Um lado acusava o outro de ser herético. Mas, na realidade, cada um poderia afirmar do mesmo modo representar interpretações coerentes da Bíblia, interpretações que por acaso diferiam substancialmente em termos tanto das suas ideias básicas quanto das implicações para a vida cristã. A dificuldade do protestantismo estava em que ele se viu des tituído de qualquer autoridade superior para declarar que um ou outro estivesse certo. Se a Bíblia é a regra suprema da íé, nenhuma autoridade interpretativa poderia se sobrepor a ela. No fim, o único meio prático de decidir a questão era pelo voto em um colegiado p ro te sta n te — com o, p or exem plo, no S ino do de D o rt (1 6 1 8 -1 6 1 9 ), que estabeleceu os limites da ortodoxia calvinista. Assim, a ortodoxia corria risco de ser definida como a teologia quee contasse com a maioriao dos votos dentro de determinado colegiado, a heterodoxia como a voz minoritária. O prob lem a aqui é que a “heresia” é, em suma, um ensino co nsid e rado inaceitável por toda a igreja. Logo, o termo não seria corretamente empregado nem em relação ao calvinismo nem ao arminianismo, que
48-’ O spreocupaç d etalh es hãoistór ico s da com con trov n ão são foram dire tam en te relev antespro aqutestan i, já que nossa é verifacar o as érsia dificuldades en frenta das pelos tes quando eles depararam com novas ideias que não podiam ser facilmente reduzidas a antigas heresias. Quem desejar se aprofundar nas questões históricas e teológicas deve consultar A n ti-C a lvh m h : The R h e ofE nglisbA rm in ia nis m , c. 1590-1640, de Nicholas (E d .), Ox ford: O xfor d Univ . Press , 1990; Soamantsm and Armniianum: Tyacke A n titn m tu rm m , Calvinista, and Cultural Exchange m Sseventeenfh-Ccnfiirv Europe , M arti n MULSOYV; Ja n R ohls (Ed.), I.eiden: Brill, 2005; Aítllons Theology of Freedom, Ben iamin M yk rs (E d.), N ew Y ork: W alter de Gruyter, 2006 .
representavam divisões dentro de um colegiado do protestantismo, ou seja, da igreja reformada. E certo que a heresia surge dentro do protes tantismo, como, por exemplo, o renascimento do arianismo no anglicanism o du ran te os sécul os X V II e X V II I.4S3 Ne sse caso, ideias que tod a a igreja considerava heréticas fizeram sua reaparição. A própria natureza do protestantismo torna muito difícil usar o termo “heresia” em refe rência às escolas de pensamento divergentes dentro do movimento e limitadas a ele, a menos. que elas reproduzam ideias que a igreja como um todo já havia concordado não serem ortodoxas. Encontramos aqui um conjunto de ortodoxias protestantes concorrentes, cada uma com a própria fundamentação na Bíblia, com o próprio entendimento da dinâmica interna da fé e com os próprios parâmetros para decretar o queque é aceitável o que não podeplesm ser aceito. evitar a conclusão de o term oe “heresi a” sim ente nãE odifícil é apropriado nessa si tuação . Uma heresia é um ensino que toda a igreja cristã, não uma parte dentro dela, considera inaceit ável. Ainda existem vozes importantes dentro do protestantismo que convocar am — e conti nuam convocando — um a recons ider ação da relação entre ortodoxia e poder, especialmente à luz do direito dos indi víduos de interpretar a Bíblia como eles consideram correto. O grande teólogo e poeta puritano ing lês Jo h n M ilton (1608-1674), por exempl o, defendia que a liberdade de consciência religiosa era de importância central em qu alquer ten tativa de definir a ortodoxia. A pró pria ideia de imposição da ortodoxia contrariava as inclinações teológicas e culturais mais profunda s de M ilton .484A ortodoxia designa um a interpretação da Bíblia que parece correta à consciência protestante individual. Vemos aqui uma reação contra o autoritarismo, estruturada em termos de um 48 ’ V. Archetypal Heresy: Arianis m Tbrough the Centumes, de Maurice Wtí.ES, Oxford: Clarendon Press, 1996. 484 V. em especial “Following th e W ay W h ic h Is Ca lled He resv: M ilto n and th e Heretical l m perative” , de Bcnjamin M ye rs, Jo urnal o f History ofldeas , v. 69, p. 375393, 2008. Sobre o libertarismo de Milton cm geral, v. “ M ilto n , Righ ts, andLib erties'' de Hugh W i l son . In: T ocknu , Christophe; F orsyth , N eil (O rgs.), M ilto n, Rights, an d Libertie s, Ne w Yor k: Petcr Lan g, 2007, p. 21-30.
(
O ilodo xia. heresia e poc er
apelo ao juízo teológico e integrid ad e ex egética do indivíduo. Pois o que é a igreja, senão um a coleti vidade de indivíduos, todos te nta nd o enc on trar o sentido da mesma Bíblia como melhor lhes parece? Para Milton, uma “opinião herética” é qualquer opinião religiosa que se baseia na autorida de externa, em vez de na consciênci a indi vidua l:
Entendendo-se, portanto, que nenhum homem nenhuma assembleia de homem
, nenhum sínodo,
[...] pode ju lg a r d efin itiva m en te
o sentido das Es critura s p ar a a con sciênc ia de outro hom em , conclui -se claramente que aquele
que sustente na
[...]
rel igião um a cren
ça ou opinião que , p a ra a su a consciência e entendim ento últim os, se encontra [...] nas Escrituras, emb
ora a outros pareça erra da , esse
homem não pode ser ju sta m e n te censurado como herege m ais do qu e seus pr óp rio s censores , que não fa z e m senão a m esma coisa que c en suram aque le de assi m ofa ze r.
A análi se de M ilton real ça, dessa m aneira, a s dificuldades em que o protestantismo se encontrou ao tentar lidar com a noção de he resia. O p rotestan tism o põe a interpretaçã o da Bíbl ia no centro de sua teol ogia e não reconh ece n enhu m a autoridade aci ma d e la /Sh Sendo esse o caso, ele foi obrigado a reconhecer que as múltiplas interpreta çõ es da Bíbl ia acabari am sem meios autorizados de de term inar o que é “ortod ox o” e o que é “heré tico”. A d ifi culda de pod e ser am eniza da, m as não resolvida, apelando para o julgamento da Antiguidade em relação a que concepções eram heréticas ou ortodoxas. Contudo, no final das contas, o protestantismo desejava manter essas questões em aberto, pelo m enos teoricam ente m an ten d o a possibilidade de ta is ju lg am en tos patrísticos poderem vir a ser revisados à luz da contínua interpre tação bíblica. Desse modo, o protestantismo vê-se emaranhando em WOLFE, D o n M . et al (O rgs.) , Comple te Prose Wo rks ofjo hn M ilto n , 8v. N ew Hav en: Yàle Univ. Press, v. 7, p. 247-248, .1953-1982. 4S6 O p on to é des env olvi do em Ch ristian itys Dangero us Idea: The Protest anl Revo lution, de Alister M c G rath , San Fran cisco: H arpe rO ne , 2007.
algumas dificuldades teológicas para lidar com as noções vinculadas de “heresia” e “ortodoxia”. Voltaremos a considerar essa questão mais adiante neste capítulo.
Pós-modemismo, heresia e a desconfiança do poder N este capítulo , explo ram os alguns aspecto s da relação entr e h e resia, ortodoxia e poder. Embora possa restar pouca dúvida de que o conceito de heresia esteja associado a questões de poder, isso não sig nifica que a heresia seja definida por aqueles que detêm o poder ou que não haja uma essência intelectual ou característica da heresia. As heresias cl ássi cas da fé cri stã, surgidas todas de jorna das de exploraç ão teol ógica da era patrísti ca, podem m uito bem ter impli cações políti cas e sociais. Co nt ud o, ela s não são, no final da s c ontas, construçõe s políti cas ou sociais, sendo mais bem compreendidas como impasses teológicos. Há outro ponto que deve ser um pouco mais explorado no encer ramento deste capítulo. Já observamos que a cultura ocidental contem porânea consid era a h ere sia atr aente. O s valores da cultura pó s-m oderna são de t al ordem que oferecem razões im plícit as pa ra sc preferir a heresia à ortodoxia — tal como a cr ença dom inan te de que a heresi a é menos moralista e autoritária que a ortodoxia, que a heresia é intelectualmente mais instigante do que sua apática rival ortodoxa, ou que a ortodoxia suprimiu a verdade acerca da heresia, na tentativa de encobrir suas de ficiências intelectuais e históricas. Todas essas percepções são difíceis de defender historicamente; contudo, elas ressoam o humor cultural. A história da cultura ocidental sugere que tais percepções rapidamente se transformam em realidades. Além disso, a história indica que muitas heresias, como o montanismo, eram muito mais autoritárias e moralmente rigorosas do que a ortodoxia. L on ge de serem “i nova dora s” ou “radicais”, m uitas heresias eram na verdade bastante conservadoras, tentando se agarrar a ideias
[
Orioü oxia . heresia c pode r
tradicionais que estavam sendo questionadas pelas ideias mais radicais do cristianismo primitivo. Por exemplo, as ideias do gnosticismo pare cem um tanto estúpidas e cansativas quando comparadas com a noção cri stã transform ado ra da encar nação. E a nova on da de int eresse histó ri co pelo m un do crist ão prim iti vo, incl usive pelas ori gens da heresia, p ou co tem oferecido de munição aos teóricos da conspiração. O código Da Vinci, de Dan Brown (2003), chama mais a atenção pela manipulação sel eti va que faz da histó ria do que p or q ualqu er crítica s éri a, histórica ou intelectual da ortodoxia cristã. O sucesso do romance em parte reflete a sua ressonância com o hu m or cultu ral . De qualquer modo, dois aspectos da atitude pós-moderna um tanto vaga em reação à heresia merecem uma atenção mais centrada. A nova fascinação cultural com a heresia no Ocidente deve-se, em par te, a duas crenças características da pós-modernidade: primeiro, que as ortodoxias predominantes são meramente conseqüências do poder; e, segundo, que qualquer tentativa de se “encerrar” os debates é imprópria. Vamos analisar isso li ge iram ente e perceber o seu signif icado. Primeiro, precisamos observar a profunda desconfiança da or todoxi a ocultada no interi or da pós-m ode rnidade . A ortodoxi a, num a interpretação pós-moderna das coisas, não tem a ver com o triunfo merecido de ideias que eram claramente superiores às suas rivais. Mas tem a ver com a imposição de tais ideias por aqueles que detêm o poder, com o um m odo de expressar e sustentar as suas posições sociais. A ort odoxia é , desse modo, um a ideologia co ntroladora, planejada para establhhment. Para usar aumentar e defender os interesses pessoais do “pan op tic o ", a famosa imagem de Michel Foucault, a ortodoxia era o o “local de visão geral”, do qual tudo poderia ser controlado e manipu status
4B7 F o lc h i m;i , M ic he l. Vigiar c pu nir : nascimento da prisão. Tradu ção Raquel Ram alhet e. 37. cd. Petropolis: Vozes, 2009.
conceitos de “verdade” são facilmente subvertidos em favor do poder. O s lei tores familiar izados com a história da Un ião Soviét ica r ecordarão Pravda, termo russo para o título do periódico do Partido Comunista, “verdade”. O ponto levantado por Foucault tem força ao lidar com o uso da noção de heresia na Idade Média, em que a ideia era muitas vez es usada para a desautorizar e dar u m a justi ficati va intelectual para a eliminação de indivíduos ou grupos que eram considerados uma ame aça ao papado. Por isso, entre outros, sou inclinado a limitar o uso do termo “heresia” ao período clássico, terminando com as formulações do Con cil io da C alcedônia em 451. N o período clássico, as evidências aponta m fo rtem en te para o surgim ento consensual da ideia de heres ia. O term o era ocasionalm ente usado por alguns escritores da patrística numa tentativa de difamar os seus rivais e opo nentes, em especial qua nd o estavam envolvi das qu es tões de políticas eclesiásticas. Essas acusações pessoais de heresia, entretanto, estavam sujeitas à avaliação e recepção pela igreja como um to d o .J8? O conce ito de heresia era um assun to da igrej a, não de indivíduos poderosos ou grupos de interesses. É, contudo, importante observar que o exercício do poder eclesiástico pelos imperadores no sé culo IV tendia a favorecer o arianismo, não a ortodoxia, sugerindo que, nesse caso , as posi ções heréticas eram privil egiadas pelo uso desse poder. E m segund o lugar , al guns se referem à noção de “ ortod oxia” com desconfiança devido ao seu sentido de fechamento. Questões como es sas não deveriam permanecer abertas à discussão? Não seria a ortodoxia uma noção condicionada, algo que precisa ser mantido sob constante revisão? Essa é certamente a visão da escritora pós-moderna Hilary Law son, cuj a críti ca à ideia de fecham ento merece ser considerada aqui . Para Lawson, “o fechamento pode ser entendido como a imposição de fixidez sobre a abertura”. Isso representa uma conclusão imprópria
4Sí Esse ponto também se aplica à ortodoxia. Sobre o conceito de “doejma” como uma crença qu e é form alm ente aceita pel a com unidad e de fé como um todo, v . The Genesis ofDoctrme, d e Alister M c G rath , Oxford: Blackwell, 1990, p. 8-13.
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OL oco xia, her esi a e pode r
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de “fec ha m en to da quilo qu e está ab erto ”.48* T odo s os cam inh os de ex plo ra ção in telectual são contínuos e não chegam a um destino fixo ou perm anente. L aw son, desse m odo, defende um esta do perm anente de abertura em relação à realidade. Não chegamos a um destino em nossa viage m in telec tual, mas ap enas n um “p o nt o de des canso tem po rá rio ”.4'10 A de fesa de Lawson por um a susp ens ão perm anente de julgam en to, uma constante abertura de todas as opções intelectuais, é válida por enfatizar a im po rtânc ia da con stante vigi lân cia t eológ ica. No entan to, é questionável se ela tem algum mérito além de afirmar a importância de se evitar a complacência e reexaminar regularmente as opções intelec tuais. A posição de Lawson é a de que a realidade é totalmente aberta e que os observadores humanos a “fecham” de um modo falso e inapropria do por suas teoria s, as quais in evitavelm ente lim itam e distorcem o no sso entend im ento das c oisas. D e acord o com Law son, o único m odo de ev itar ess a distorção é evitar fechar-se. H á um m érit o nes se pon to, mas t alv ez n ão como Law son o af ir ma. Como alguém que está muito feliz em identificar-se como um representante do protestantismo clássico, estou comprometido com a noção da interrogação e revisão constantes das fórmulas existentes de fé, sempre desejando assegurar que a igreja use somente os melhores e mais autênticos meios de expressar os temas fundamentais de sua fé. Isso si gnif ica que a ort odox ia é enten did a com o um po nto de vi sta suficientemente robusto e coerente e que esse tipo de processo de in terrogação só pode levar à sua confirmação e justificação. A ortodoxia não exige ser dogmaticamente imposta; antes, ela clama por ser reco nhecida pelas suas virtudes intrínsecas. Em todo caso, seria um erro falar, por exemplo, do Concilio da Calcedõnia como tendo defendido o total fechamento das questões da identidade de Jesus de Nazaré. Os pronunciamentos do concilio são mais bem com preen didos como ind icand o algumas regr as bas ilares para
Hilary. Closure:A Slory ofE vcry thing . L ondo n: Roudedge, 2001, p. 4. 490 Ib id em , p. 327 .
4S" L awson
,
[
1presis
se refletir sobre a pessoa de Cristo, assinalando algumas opções como inadequadas e legitimando uma gama de possibilidades como ortodo xas. Se. a gama de possíveis interpretações da identidade e significado cie Cristo é um campo, Calcedônía simplesmente colocou uma cerca viva ao redor dos bons pastos. Como o notável teólogo Karl Rahner demonstrou, o Concilio da Calcedônia na verdade marcou um novo começo da reflexão cristã sobre a identidade de Cristo, não o fim de algum tipo de processo.4'1 Contudo, subjacente a essas questões está uma coisa que é fre quentemente negligenciada, isto é, que a ortodoxia cristã é tanto um processo contínuo quanto um conju nto fixo de resultados. C om o pro testante clássico, eu, por exemplo, acredito ter toda a razão para supor que certo conjunto de crenças constitui uma “ortodoxia”, mas ao mesmo tempo estou comprometido com o seu constante questionamento, caso essas crenças se mostrem, de algum modo, inadequadas ou inautênticas. inacabada , vist o que repres enta A ortodoxia est á então, em certo sentido, a mente da igreja sobre a melhor maneira de formular a sua fé viva em determinado momento. Os conflitos e tensões do passado e do presente podem aju dar a crista lizar novos pontos de vista e a desenvolv er novos modos de expressar ideias tradicionais, ou podem levar à percepção de que certos modos de talar e pensar, outrora considerados adequados, devam agora se r considerados problem áti cos. A história do pe nsa m en to crist ão prim iti vo dei xa cl aro os peri gos do desvanecimento teológico. Ideias tidas em dado momento como or tod oxas m ostraram-se, e m exa me mais atento — em gera l um período long o de temp o — inadequadas. Realm ente, é pos sível argum entar que Ario era de fato um tradicionalista teológico que não reconhecia que o seu “rearranjo” da tradição cristã na verdade a empobrecia e prejudica va severamente sua capacidade conceituai e lingüística de acomodar as
4Vl Esse c ura tem a explorado era “Chalk cdo n — E nd e oder A nfa ng r” de Karl R ah n k r. In: GlíILLMEir.R, Alois; Bacht, Heinrich (Orgs.). Das Konxilvon Chalkedon: Geschichíe urtâ G egemvari, 3v. Würzburg: Echfer-Vcrlag, v. 1, p. 3-49,1951-1954.
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Ortodo xia, heresia e poc er
]
realidades da fé.4- Paradoxalmente, aquele que, de maneira grosseira, definem a ortodoxia com o a repetição verbal de fórmulas teol ógicas d o passado correm o risco de fo ssilizar a fé cristã, encurralando-a em um a de suas formas históricas específicas, sem lhe dar amplitude conceituai e verbal para que permaneça em real conformidade com o mistério que ela ten ta expres sar e tran sm itir .49"
N este capítulo, abordam os a in teração entre orto doxia e heresia, de um lado, e po de r polí tico, d e outro. Em bo ra haja, sem dúvida, um a rel ação dinâ m ica e ntre eles, ficou cla ro que não é possí vel de fend er a ideia de que a ortodoxia cristã represente simplesmente as preferências e os interesses do establishment durante a era patrística, quando muitas doutrinas cristãs se consolidaram nas formas atuais. No entanto, quando o cristianismo deix ou de ser um m ovim ento reli gioso fora do establishment para se tran s formar num importante elemento do jogo político, culminando com o aparecimento da cristandade, a ideia de heresia desenvolveu, de modo inevi tável , no vas associ açõe s. A politização da ortodox ia exigiu fatalme nte um a c orrespon dente p olit ização de sua ant íte se, a he res ia. O resultado social disso talvez fosse inevitável. Enquanto uma ortodoxia po li tizada do m inan te er a vi sta com o privi legi ada, r epr ess iv a ou desinteressada, os movimentos heréticos ofereciam aos indivíduos uma visão e estrutura religiosa alternativas. Eles tinham a capaci dade de se tornar movimentos efetivos de protesto social em razão de seu contexto político, que criava espaço para essa função social. Considerando-se o contexto, não é difícil entender como a heresia chegou a ser tingida com as aspirações libertárias no início da era mo derna na Europa. De fato, a fascinação pós-moderna com a heresia
4V- E ssa c a co nc ep çã o exp ress a em Arius: Heresy and Tra dition , de Rowan WILLIAMS, 2. ed., L ond on: SC M Pres s, 2001. Cf . ainda seu en sai o “W h a tls C atholic Orthodo xy?” In: Lrkcii, Kenneth; W i i .i .i a ms , Rowan (Orgs.). Essays Catholi c an d Radica l. London: SPCK, 1983, p.11-25. V. tb. The Genesis ofDo ctrin e , de Alister M c G rath , Oxford: Blackwell, 1990, p. 1-8.
é fundamentada em grande parte no prolongamento dessa memória cultural. As realidades sociais podem ter mudado, mas a sua memória e associações se mantêm vivas.
10 A heresia e a visão islâmica do cristianismo tendência da análise apresentada neste livro foi a de focalizar o passado, em vez do presente. Mas uma compreensão do passado pode, de qualq uer m odo, ser útil para dar sentido ao presen te e cham ar a atenção para algumas ques tões contemporâneas. Um exemplo bastante im p ortante pode ser p erc ebid o, em bora sua discussão plena esteja alé m da extensão deste trabalh o. U m a das relações mais importantes e difíceis no mundo contem porâneo é a dinâm ica nada tranqüila e s us peita entr e o cristianis m o e o islamismo. A m bos estão se expandindo e, no curso de suas expansões,
A
eles têm o potencial para encontrar um ao outro como os potenciais rivais e combatentes. Embora um diálogo respeitoso entre o cris tianismo e o islamismo tenha muito a oferecer, em parte reduzin do a tensão entre as duas fés, e em parte porq ue as suas diferenças ajudam a ilu m inar as
suas distintas identidades. Um exemplo clássico diz respeito ao modo pelo qual as duas crenças tratam da questão da revelação divina. Como Richard Martin e Mark Woodward assinalaram: “Como pode o divino transcen dente e eterno existir no contexto histórico, humano? Para os cristãos, o problema im plica um a pessoa: Jesus Cristo. Para os muçulm anos, im plica um livro: o Alcorão:''" E m bo ra haja formas de cristi anismo que sc apr oximam da ênfase que o islamismo confere à autoridade suprema de um texto — de m od o mais notáve l, certas form as de p ro tes tan tism o41'' — , o cristianismo tradicionalmente outorga a Cristo a posição que o islamismo outorga ao Alcorão. O estudi oso da rel igião W ilfred Ca ntw ell S m ith esc reve:
Os m uçulm ano s e os cristãos têm se afast ado em p a rte pelo fa to de ambo s compr eende rem m a l af é um do out ro, tentando ajustá-la aos pró pri os padrões. 0 erro m ais com um é su por (de ambos os lados) que o s pap éis de Jesus Crist o no crist ianismo e de M a o m é no isl a mism o sã o comparáveis
[...]. Se a comparação êfeita em termos da
estrutura das duas religiões, o que corresponde, no esquema cristão, ao Alcorão não é a Bíbh a, mas a pess oa de Cristo
— p a ra os cristãos,
Cristo é que é a reve laç ão de D eu s .4%
Então, como a nossa análise e caracterização da heresia cristã se rel acionam com a representação de Jes us de ntro do isl amismo, especial mente dentro do A lc o rã o ? E se as críticas e representações do A lco rã o sobre a interpretação da pessoa e lugar de Jesus no cristianismo refleti rem familiaridade com as suas formas heréticas, em vez das ortodoxas? Um das questões mais problemáticas que pairam sobre a super fície das tentativas de amenizar essa relação difícil é a representação do 4,4 M art
Mark R. Defenders o f Reason in Islam:M iita zilism fr om M ed ieva l Schoollo M odem Symbol. Oxford: Oneworld, 1997, p. 202, 203. 49’ V. os po nto s estu da do s no livro Ch nstia nitys Danger ousIdea: The ProtestantRevolution, de Alister M cG r at h, San Fra ncisco : H arpe rO ne, 2007, p. 474-476. Islam m M odem H isto r\. Princeton: Princcton Univ. 4% S m ith , Wilfred Cantwell. Press, 1957, p. 17-18. in, Richard C.; Woodward,
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A heresi a e a vsão'$lâm;ca do cnsli anisrno
]
islamism o sobre as idei as crist ãs cen trais, com o a dou trina da Trin da de e a divindade de Cristo. A m aioria do s cris tãos considera que a represen tação que o Alcorão faz desses conceitos tem pouca relação com as suas expressões ortodoxas. Os muçulmanos, cujo conhecimento das crenças
Alcorão, cristãs baseia-se apenas no que muitas vezes veem aflitos tensão manifesta entre aquilo foram levados a suporseser o que os pela cristãos acreditam sobre Jesus e aquilo que, dc fato, descobrem em con ver sas com cris tãos. Existe algum m odo pe lo qual essa situação possa s er solucionada com honestidade para ambos os lados? As ideias apresentadas neste livro propõem a base para uma solução que é tanto histórica quanto teologicamente plausível. A pro blem ática representa ção do cristianis m o no Alcorão pode ser debatida para refle tir um conhecim ento, seja direto , seja in dir eto , das versões heréticas do cristianismo que, como se sabe, estiveram presentes na re gião. Conforme insistimos ao longo deste trabalho, as heresias devem ser consideradas como tendo surgido dentro da igreja e, dessa maneira, podem ser consid eradas “cris tã s”, em bora num sentido fraco do te rm o. N ão obstante, elas não podem ser consid eradas autenticamente cristãs. O Alcorão , portanto, critica ideias que estão na margem da fé cristã — e que na prática todos os cristãos também concordariam serem falhas. Ilustraremos isso com base na consideração de dois pontos em Alcorão suscita preocupações: que a apresentação das ideias cristãs no a doutrina da Trind ade e a dou trina da divindade de Crist o.
Alcorão tem cau A representação da doutrina da Trindade no sado uma certa perplexidade nos cristãos. Mesmo permitindo al Alcorão parece representar os gum grau de ambigüidade textual, o cristãos como adoradores de uma trindade de três pessoas distintas: D eus, Jesus e M aria .4''7 E m bo ra inúm eros erud itos i sl âmicos tenham sido cu idad oso s em e xpo r o que de fato os cristãos cre em,™ essa curiosa Sura 4:167-170; 5:77. Isso poderia ser facilmente interpretado, em termos quase pag ão s, co m o os divinos Pai, Filho e M ãe. 4gs Para alguns exemplos, v. “The Doctrine ot the Trinity in the Early Abbasid Era”, de David TnOMAS.In: RlDGEüN,Lloyd (Org.). h la m k hilerpr etati ons o f Chrhham ty.
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Ht>rebi3
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representação triteísta do cristianismo continua confusamente disse minada dentro do islamismo popular. Tal concepção simplesmente não pode ser sustentada por nen hu m a com paração c om o cr is ti anismo ortodoxo. Assim, como podemos explicar as suas srcens? Por que o
Alcorão atribui essa visão aos cristãos quando ela é tão claramente es tranha ao fio condutor da ortodoxia cristã? A perspecti va do Alcorão a respeito da T rind ad e parece revelar pelo menos algum grau de familiaridade com uma escola herética dentro do cristianismo que ficou conhecida por ter sido influente na região da Arábia naquele momento. A heresia em questão é a da seita do coliridianism o que fl ores ceu na regi ão hoje cham ada de O rien te M éd io.-9" Uma de suas características distintivas é tratar Maria como uma deusa> oferecendo-lhe adoração e honra comparável ao que poderia ser esperado para o pró prio D eu s.500 E signifi cativo que os espaços ge o gráficos nos quais o coliridianismo parece ter florescido no século V coincidiam com aquel es já relaci onados com a adoração de divindades femininas como Deméter e Reia. O movimento é uma das oitenta “her esias” identi ficadas po r Ep ifânio de S alamina (c. 31 0-40 3) em seu Panarion. O fato de ser classificada em septuagésimo oitavo lugar, na lista de oitenta seitas heterodoxas de Epifânio, sugere que este não a consi derava c om o sendo particularm en te im po rtante; não obstante, ela parece ter sid o influ en te na região que se to rn aria o cadinho d en tro do Alcorão sobre a Trindade qual surgiu o islamismo. Os comentários do refletiriam familiaridade com essa heresia árabe local? A mesma questão aparece como relevante ao considerar a visão do Alcorão sobre Jesus de Nazaré. O local geográfico e cultural do isla mismo primitivo teve um impacto significativo em sua compreensão e ava liaçã o do crist ianis m o. A ortodoxia calcedônica parece ter dem
orado
O nome dessa seita deriva da palavra grega kollyris , “pedaç o de pão ” — um a referênci a à su a prática de oferecer pão a M aria como um a deus a. ■ü0 Pa ra u m estu do de talh ad o desses assu nto s, ’v. D ivin e Heiress: The Virrin M arv and o the Creahon o f Christian Constantinople, de Vasiliki LlMRRRlS, N ew York: Routledge, 1994, p. 114-121.
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A heresia e a vrsao islâmica do oistranfsm o
]
a enc on trar o seu cam inho na península Arabe, mais ai nda em conseguir aprov ação geral naquela rem ota regi ão. As vi sões heréticas da ide ntida de de Jesus d e Na zaré parecem ter t ido um ím peto im po rtante na r egião. N a ausência de um a alternativa, as cristolo gias heréticas pare cem ter tido u m a influência notáv el, especial m ente ao nível popula r. O Alcorão representa o s cri stãos com o e nten de ndo e adorand o Jes us como uma figura fisicamente divina, o que é equivalente ao paganismo, idolatria ou politeísmo. Dificilmente essa crítica pode ser sustentada diante do pen sam ento cri stão ortodoxo,’ 01 consideran do-se em espe cia l que a relação entre Deus Pai e Deus Filho não pode ser compreendida de m odo físico /02N o e ntanto, a represent ação de Jesus de Naz aré no Alcorão faz sentido quando vista no contexto do docetismo intrínseco de muitas cristologias gnósticas, que são conhecidas por ter sido influentes em tal região da A rá bia na épo ca.50-5A suges tão de que a críti ca do Alcorão so bre a cristolo gia tenha sido evocada por cristologias locais influenciadas pelo gnosticism o setiano não dim inui a validade das criticas que oferece. Trata-se de notar simplesmente que uma versão local inautêntica da fé cristã está sendo criticada, não a sua forma ortodoxa definitiva. Por exemplo, vamos considerar outra vez uma passagem vista anteriormente (v. p. 116), extraída de uma obra significativa do gnos Segundo tratado do grande Sete. ticismo setiano, o Essa obra, que se Schwager. Christologie und Islam. In: DorÉ, Joseph; Theobald, Christoph (Orgs.). Penser la foi: Recherches ett théologte aujourd'hin: Mélanges offerts à Joseph Moingt. Paris: Éditions du Ccri, 1993, p. 203-215; Th om as, David. Explanations o f t he Incarnation i n Early A bbasid Isl am . In: van G ink el, J . J.; den B rr c, H . L . Murrevao; van Lix t, Theo Maarten (Orgs.). R edefim ng Chnsttan Identity : Cultura l Interaction in the M id dle E ast Sm ce lhe Rise o f Islam. Louvam: Peeters, 2005, p. 127-149.
M)1 R ay m u x d ,
Para um a cxcelent e explanaç ão dess e pon to, v. The Fatherhood ofG od frorn Origen to Athíinasius, de Peter WlDDiCOMBf;, Oxford: C larendo n Pre ss, 1994. Gnosticismo e nestorianismo são frequentemente mencionados como possíveis influências sobre o Alcorão. P. ex\, este livro parece se referir a uma história de Jesus dan do vida a páss aros f eitos de barro (S ura 3:4 9;5 :11 0) que s c enco ntra no Evangelho da infância de Tome (4.2) de srcem gnóstica. Também podem scr observadas influências sírias. Cf. ainda The Quran in Its Histórica/ Context , Reynolds, Gabriel Said (Ed.), N ew York: R outledgc, 20 07 .
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heres,
acredita datar do século IV, é um testemunho importante das inter pretações gnósticas sobre Jesus de N azaré que prevale ceram no E g ito e na Arábia. Na obra, está incluída a recusa à aceitação de que Jesus foi crucificado, com a oferta de uma interpretação alternativa para os eventos de Sexta-feira Santa, escrita em primeira pessoa.
E u não s ucumbi a e les como planejaram . M as de modo nen hum so f r i . A queles que esta vam lá me castigaram. E eu não m orri na re ali dade, mas em ap arência. [...] Pois min ha mort e, a qu al eles pen sam ter acontecido, [aconteceu ] a eles em seu er ro e cegueira, u m a v e z que eles pre ga ram o hom em deles na mo rte d eles. P ois s uas E no ias não me v ira m , po is es tava m surdas e cegas. M a s ao fa ze r tais co isas, el es cond enaram a si próprios. Sim , eles me v ira m ; eles me castigar am. Foi outro, o p a i deles, que bebeu a bile e o vin ag re; não eu . E les me atingiram com a lança; foi outro, Simão, que carregou a cruz nos ombros. F oi outro sobre que m eles colocar am a coroa de es pin ho s.'04
Fica claro que este ensino guarda uma semelhança notável com os ensinos islâmicos sobre Jesus de Nazaré, que reflete uma relutância semelhante em aceitar que Jesus sofreu e morreu na cruz. A passagem central no Alcorão pune os filhos de Israel por matarem os profetas de Deus, por difamarem Maria e por afirmarem ter matado Cristo.
Eles diz em : “N ós certam ente m ata m os o Cristo, Je sus, filh o de M a ria , o men sa geiro de Deu s". E le s não o m ata ram , nem o cruci fica ra m ; ao co ntrário, so m ente f o i fe ito pare cer assim p a ra eles [...] Eles não o m ataram
[...] A o contrário, D eus o le vou a ele, pois D eus
épo dero so e sábio.: 0:
:'ü4Segund o tratado do grand e Sete 55:16-35. V. ainda T he Sufiering ot the Impdssi ble God: The D ialectics o f Patristi c Thought, de Paul G avr i lt ok , Oxford: Oxford Univ. Press, 2004, p. 79-90. 5U? Sura 4 :1 57-5 8.
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A heres ia e a visa o lilámica do cn;tianis- no
]
Embora haja algumas questões gramaticais sobre como essa passagem deva ser traduzida, a m aio ria dos exegetas do Alcorão tem se referido a ela como o equivalente a uma negação explícita da morte e cruci ficação de C risto nas m ãos de seu s inimigos. M uitos com entarist as islâmicos adotaram uma linha semelhante, argumentando que o NT incl ui ma terial que dim inui a divindade ou a hon ra de Jesus. Por exem plo, o escrito r Ib n al-Juw ayni (1028-1085) do século X I afir m ou que os escritores dos Evangelhos deveriam ter omitido as referências aos eventos como o açoitamento de Jesus e o coroamento com espinhos, pois, segundo ele, essas re fe rências h um ilham Jesus.?l>>D e m odo similar, Abu Hamid al-Ghazali (1058-1111) fez reparos à descrição da paixão de C risto no E vang elho de M ateus , em particular à s pal avra s atribuí das a Cristo como “ passa de m im este cáli ce” e “Pai, por que m e ab an do nas te?”. Ele argumenta que essas passagens apontam para Jesus como um ser humano, não como uma figura divina. Alguns est udi oso s, co mo M ah m ou d M ustafa Ayoub (19 38) , su geri Alcorão , embora superficialmente ram que a visão de Jesus apresentada no docética, é na verd ade apenas sub stituc ionís ta.507 Isso, po rém , significa li mitar o docetismo a somente uma de suas formas históricas específicas. Ayoub parece desconhecer a complexidade do docetismo, em particular a tendência que algumas formas dessa corrente de pensamento tem de negar a mo rte de Jesus de Naz aré p or cruc ificação, con siderando -a d egradan te ou hum ilhante, com prom etendo ass im a di vind ade de Cris to. Nessa p erspec tiva, conform e já vimos , considera-se que Jesus não m orreu na cruz , mas foi trocado por um substi tut o com o Simão de C ire ne.
Alcorão em relação a esse Portanto, quais teriam sido as iontes do assunto? Parece cada vez mais claro que a representação das ideias fun Alcorão foi moldada por um encontro damentais do cristianismo pelo com as formas de cr isti anism o preval ecentes na península Arabe . Estas, Para esse e outros exemplos, v. “Images of Christ in Arabic Literaturc”, de David PlNAULT,D ic Welt des Islams , v. 27, p. 1 03 -12 5, 1 98 /. só- Ayoub, Mahmoud Mustafa. Towards an Islamic Christology, II: The Death of Jesus, Realit y or D elusion? M uslim World, v. 70, p. 91-121, 1980.
ao que pa rece, podem ter s ido pred om inantem ente herét icas, em vez d e ortodoxas. O problem a não é tan to a visão em si do Alcorão sobre Jesus, mas as suas font es. D e ond e M ao m é extraiu tais po nto s de vi st a? A presença dessas ideias na coletânea de textos do Nag Hammadi é sugestiva, dada a sua proximidade geográfica com a península Árabe. A caracterização problemática do cristianismo pelo islamismo tem toda a aparência de ter sido moldada por fontes influenciadas pelo gnosticismo setiano, não pela ortodoxia calcedônica. Se estiver correta, essa visão abre caminho para um grau signifi cativo de reaproximação teológica entre o cristianismo e o islamismo. Uma vez que as heresias cristãs são formas de cristianismo — inde p e n d en te m en te de serem defeitu osas, deform adas ou dis torcidas — , o fato de o Alcorão conhecer, e criticar, as formas heréticas de cristianismo permite aos muçulmanos afirmarem que aquilo que está sendo criticado é de fato uma forma de cristianismo, e possibilita que autênticas os cristãos respondam mostrando que elas não sâo formas ou representativas do cristianismo. Na verdade, os cristãos concorda riam com a forma com que tais crenças são apresentadas no Alcorão. M ao m é est ava m uito certo ao iden tifi car perspect ivas cri stãs i nacei táve is sohre Deus —e omas inadequação dessas perspectivas deveria ser aceita Jesus pelos ecristãos seua caráter representativo posto em questão. Outras investigações a respeito desse ponto serão importantes para as relações m uçulm ano-cristã s. Se o Alcorão demonstra familiari dade principalmente com as visões heréticas sobre a Trindade e a cris tologia, as quais poderiam ser extrapoladas em generalizações sobre o próprio cristianism o, não há dúvida de que a relação frequentem ente tensa entre essas crenças poderia ser melhorada com uma análise mais de talhada des ses t emas.
Conclusão O futuro da heresia A m o ra lid a d e , com o a a r te , significa traçar um a linh a em a lgum lug ar .
Oscar Wilde ste íivro investigou a ideia de heresia dentro da tradição cristã, tentando com
E
preender pelo m enos alg um a coisa de sua n a tu reza e srcem — sobre como as linhas teológicas precisaram ser tra çadas, e fo ram traçadas, entr e os reinos da ortodoxia e da heresia. Não tivemos a intenção de oferecer nenhuma perspectiva nova particularm ente sobre cada um a das heresias co m entadas, mas tentar ref inar e com parar um corp o significativo de pesquisa acadêmica sobre o fenô meno de cada uma delas, usando-as como estudo de caso para ilustrar pontos importantes. Embora ess a abordagem seja indub itavelm ente de in ter esse acadêmico, o seu verdadeiro significado esrá em
Hrl^Slü
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suas implicações para a vida da igreja. Ao concluir este livro, devemos nos afastar, então, das grandes questões intelectuais sobre a natureza e as srcens da heresia, para considerar, ainda que brevemente, o seu significado contemporâneo para as comunidades cristãs. Alguns têm sugerido que a heresia é essencialmente uma ideia fora de moda, com pouca ou nenhuma relevância para a vida da igreja m o d e r n a . M e s m o uma l eit ura sup er fici al de textos re cent es s ob re a igreja primitiva indica que tem havido uma persistente intensificação de suposições céticas a respeito da legitimidade e utilidade da noção de here sia na contem poraneidade . E am plam ente afi rmado que el a reflete as preocupações e os interesses de eras muito remotas na história da igreja, e certamente pode ser deixada de lado. Contudo, a análise ofe recida neste trabalho indica que, de forma nenhuma, isso está correto, prin cipalm ente pelas duas razões apresenta das a seguir. Prim eiro, a busca da ortodoxia é essencialmente a busca da aute nti cidade cris tã. A tentativa inexorável de enc on trar as m elhores formulações da verdade cristã reflete o discernimento de que o cristianismo é capaz de express ar e en ten de r as suas ideias de form a inadeq uad a e inautê ntica. Em um contexto religioso e cultural grandemente competitivo, a existência e prosperid ade fu tu ras do cristianismo dependerão de sua apresentação em suas formas m ais au têntica s.’0" Po nd o iss o de m od o u m tan to a bru pto e pragm ático, as fo rm as defeituosas e prejudiciais à fé cristã — em outras palavras, as heresias — lim itarã o as suas chances de sobrevivência. A bus ca da ortodoxia é acima de tudo um a busca de autenti cidade. Em segundo lugar, as heresias, como a história, têm o hábito de se repet ir. O histori ador pode tratar o gnost ici smo como um m ovimento in telectual e cultural complexo do fim da Antiguidade clássica, levantando
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ConcJusac
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algumas questões interessantes para os histori adores acadêmicos e, quem sabe, para ningucm mais. No entanto, aqueles que se preocupam com a relação entre o cristianismo e a cultura moderna veem um quadro um pouco diferente. O gnosticism o continua vivo hoje, não necessariam ente rev elan do- se com o seu ve rdad eiro no m e ou m esm o a sua histó ria.31*1M as o seu rastro é inconfundível. Seu eco é ouvido hoje por meio daqueles que interpreta m o crist ianismo com o um a reli gião de autod escobrim ento, não de redenção. A religião é a busca pela verdadeira identidade interior, o “eu verdadeiro”, a chama interna da vida divina, ou o ouro na lama. O desafio enfrentado pelas igrejas é o de conseguirem se contrapor a tais estereótipos culturais, em vez de inadvertidamente reforçá-los. O novo interesse na heresia, tão característico do final do século X X e iníci o do século X X I, vai m uito além da r enovaçã o do interesse in te lec tual num fenôm eno negligenci ado ou m al-entend ido do p ass ado . De fat o, cer tos est udiosos têm sugerido que a crí tica m odern a ness a áre a não apenas está “enamorada” das antigas heresias, como pratica uma “defesa his tóric a” às custas da “im pa rcia lida de ” histórica."1 1 N ão há dú vida, por exemplo, que muitos pesquisadores contemporâneos defendem o gnos ticismo como uma alternativa plausível ao que eles consideram falhas e vícios do cristianismo tradicional. Por exemplo, Elaine Pagels clara m ente considera o gnosti cismo (ou pelo m enos certas for mas del e) mais iguali tári o do que a ortodox ia cri stã. C om o vimos, es sa é um a leitura al tam en te problem ática da qu estão. A ssim, em bora es ses est ereótipos pos sam ser desaf iados pela críti ca histórica, o se ntim en to básico perma nece. N a verdade, para m uitos o senti m ento transform ou-se em realidade e precisa ser desafiado e corr ig id o. 1,0 Seg ai., Ro be rt A. (O rg.). The AU ure o f Gnotticism: Th e Gnostic Experien.ee in Jun gia n Psychology an d G onlemporary Culture. Chicago: Open Cüurt, 1995. 511 H f.n ry , Patrick. Why Is Contemporary Scholarship So Enamored o f Ancient Heresies? In: LlVINGSTONE, E. A. (Org .). Proceedings o f the Sth In tern atio na l Conference on Patristic Studies. Oxford: Pergamon Press, 1980, p. 123-126. As considerações dc Hcnry divergem do tipo de anál ise encon trada no li vro TheMakmg of aHeretic: Gcnden Auth oritw and the Prncillianist Confroversy, de Virgínia BlJRRUS, Berkeley: Univ. of Califórnia Press, 1995, p. 1-2.
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A sedução do que é proibido 11a religião pode ser explicada, pelo m eno s até ce rto po nto, em bases psicológi cas sociais. 512 N o en tanto , a sua atração não se deve apenas à psicologia de tormas de experiên cia social proibida; ela reflete um sentimento perturbador dentro da cultura ocidental de que a ortodoxia cristã é sombria e danosa, o que encoraja o surgimento de um sentimento contrário de que a heresia é intelectualmente excitante e espiritualmente libertadora. Tal senti m en to po de ser discern ido d en tro da c ha m ad a cr ise da f é vitori ana" 11 e continua uma forte ameaça ao apelo popular da ortodoxia em nos sos dias. Conforme um comentarista inglês disse num debate sobre a “morte de Deus”, nos anos 1960:
A p esa r de a m aior p a rte da literatura filosófica e teo lógica 'Vincula da à “mo rte de D e u s”par ecer m esmo de segun da categor ia ou pior, é muito necessário refletir sobre quão absolutamente mortal deve ter sido a experiência que
os escritores d essa l iteratu ra tive ra m tan to da
ador ação qu an to da -vi da t eol ógi ca em suas igrejas"ru
Seria de fato tão surpreendente que as pessoas chegassem à con clusão de que Deus estava morto quando as supostas comunidades de suas localidades eram tão tristes e desinteressantes? N o entanto, o verdadeir o desafio enfrentado pelas igrejas não pode ser neutr alizado pela dem onstração de que a orto doxia teoló gic a é tão necessária quanto apropriada para o bem-estar das comunidades
12 Cf. “T h e Psychol ogy o f the Un thinkable: Taboo Tra de-O ffs, Forbidden Bas e Rates , T etlock .; O rie V. K wstf .l ; S. Beth E lson ; and Herctical Counterfactuals”, de Philip E. M elai ne C. G r e f .X; je n n iíe r S. 'L ers er, Jo urn al ofPersonali ty an d Social Psychology, v. 78, p. 853-870,2 000. 313 Para uma análise crítica desse fenômeno, v. a investigação revisionista Crtsis c f Doubt: Honest Faith in Nin ete enth -Centu ry E ngla nd , de Tímothv L arsf .X, Oxford: O xfor d Univ. Pre ss, 2006. ' 14 Ramsey , Arthur Michacl. The Christian Pnest Today. London: SPCK, 1972, p. 21.
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Conclusão
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cris tãs. '15A ortod oxia po de ria ser mais um a vez revestida de brilho? Se o cristianismo pretende recuperar o predomínio criativo, ele precisa redescobrir o que G. K. Chesterton (1874-1936) designou de “o romance da ortodo xia”. 516 Não basta m ostra r que a ortodoxia represen ta a forma de fé cristã mais intelectual e espiritualmente autêntica, ou que foi expe rimentada e testada contra as suas alternativas intelectuais. O problema é muito mais profundo, no nível da imaginação e dos sentimentos. Se Cristo é realmente o “Se nho r da Im aginaç ão”,' 17 a distinção entre o r todoxia e heresia deveria ter implicações criativas importantes. O real desafio é que as igrejas demonstrem que a ortodoxia é criativamente convincente, emocionalmente cativante, esteticamente enaltecedora e pessoalmente libertadora. Esperamos com ansiosa expectativa que a igreja aceite esse desafio.
^ U m caso típico da ne cessidade de decla rações dou trinais, inclu indo um a críti ca à noção de uma “fé n-ão dogmática”, pode ser encontrado em A Scientific Theology, de Alister M cG kant h, v . 3, Theor y, London: T &.T Clark, 2003, p. 3-76. 1959, p. 129-147. M" C hesterton , G . K. Orthodoxy. New York: Doubleday, E im portante notar que Ch esterton fundam enta se u caso de f é não tanto com base n a verdade do cristianismo e sim cm sua capacidade de responder à nossa necessidade de “uma vida ativa e criativa, pitoresca e chcia de curiosidade poética” (3). M' Tom ei essa fr ase em pre stad a de Christ an d Apollo: The Dim ensiom o f the Ltterary Imagination, de W ill iam L ynch , N otre Dame: Univ . of N otre D am e Pre ss, 1960 , p. 157.
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ínc ce remissivo básico
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índice remissivo básico A amor com a heresia: 7 arianismo: 5, 77,119,135,148,146, 148, 170, 181, 191, 197, 200,202, 204, 219, 238, 241, 242, 258, 260,2 62,286, 29 4 As primeiras heresias clássicas: 129
c ................................................... crist ão: 10, 22 ,33, 35,36 , 39, 44, 57, 59, 69, 75, 78, 89, 94,105,107,109,110,112,118,123,125, 130, 132,138. 142,154, 161,169, 171, 210, 214, 225, 233, 245, 270, 272, 286, 291, 277, 283 cristianismo: 4, 5, 9, 12, 20, 22,24, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 33, 35, 37, 40, 46, 51, 56, 57,59,61,63,65, 67, 72, 73, 75, 83, 85, 87, 89, 91, 92, 93, 98, 100, 102,105,107,109,110,111,114,116,120,122, 124, 122, 124, 125, 127,128,129, 130, 131, 133, 159, 142, 144,146, 148, 150, 154, 155, 159, .161, 163,164, 170, 172, 173, 174, 175,176, 178, 179,
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1l-í o id
181,183,188,189,192, 195,197,199,214,221, 223, 227, 229, 229, 230, 231, 234, 235, 236, 239, 241, 244, 244, 245, 237, 249,251,253,254,255, 256, 273,275,277, 274, 279, 281, 285, 286, 287, 290.292
diversidade: 18, 45,57, 59, 63, 65, 66, 69, 71, 74, 77, 78,81,83,85, 87,105, 170, 171 257 docetismo: 4,40,122,129,144,146,148,150,153, 171,283,285 donatismo: 5, 124,137, 197, 205, 207, 208, 223, 228, 239,241,257,275
Ebionismo: 138 essência da heresia: 18, 44, 255, 268 evangelho cristão: 3,25 , 42,20 7,227 , 232
heresia: 3,5, 6, 7, 9 , 10,12,14,16,18,20,22,23,26, 18, 30,33,39 ,44,45 ,46,47 ,48,49 ,51, 52,5 3,54, 55,56,57,59, 60,61,69,71,75, 76,78,79, 83, 85, 86, 88,89,91 ,93,96,101,103,105,106,107,109, 11.2,105,107,109,110,111,112,114,116,118, 122,124,125,126,128,130,131,132,134,135, 137,143,144,153,164 169,170,171, 172,181, 190,191,197,108,202,205,209,217,219,221, 223,227,229,230,231,232,234,237,239,243, 245,247,249,250, 250,253,254,255, 257,259, 261,263,264,266,268,270,273,275,276,277, 278,280,281, 283,284,285,286,287, 288,289, 290,292
índice remissivo básico
ideia de heresia: 3, 45, 57, 59, 128, 288, 292
fé: 3,5,7,9,21 ,22,2 5,2 7,29 , 31,33,35,37,41, 43,45, 46,4 7,48 ,59,51 ,52,61 ,63,67 , 70, 72, 74,80, 84, 86,88,90,91,92, 93,94, 98,100,102,104, 110, 113,116,118,119,121,124,125,126,127,128, 129,130,131,132,133,134,135,136,142,143, 146,14 9,157,172,176,178,183,191,195, 200, 210,218, 219,220,221,223, 225,227,229,231, 232,236,238,24 1,242,245 ,250,255,256 , 262, 269,273, 276,277,278,280, 281,282,284,286, 287,289,290,295,296,298,300
motivações intelectuais: 242
o que é heresia? 27, 126 srcens da heresia: 70, 84, 90, 91, 168, 217, 223, 250,292, 284 ortodoxia: 7, 8, 9,10,11,12,13, 19,22, 25, 27,29, 43, 47, 50, 53, 60, 62, 68, 70, 72, 75, 76, 82, 83, 85, 86, 88, 90, 91, 96, 98, 99,100,102,105,106, 108, 109, 111, 112, 114, 119,124, 126, 127, 130, 136,145,155,164,108,170,172,181,187,195, 202, 204, 219, 223, 231, 240, 242, 243, 245, 247, 249, 250, 251,252,253, 255, 256, 257, 258, 260, 280,2862 283,284,285, 286, 287, 289,290, 291,292,294,295,296, 298, 300 os credos: 3,25,130
pela gianism o: 5,109,1 22,1 37, 181, 212, 214, 216, 218, 219,223, 224, 226, 227, 228, 229, 249, 251 poder: 5, 7, 9, 10, 14, 16, 22, 25, 31, 33, 61, 65, 83, 85,98, 99,107,126,135,141,144,164, 163, 170,177, 189, 207, 212, 222, 223, 243, 245, 247, 250,252,254, 257, 259, 263, 266, 268, 281, 284, 286,288,292
R
............................................................................................................................
raízes da heresia: 3, 63,172
V........................................................................ valentianismo: 4, 101,103,129, 149, 155, 157, 158, 159,164,171,252
a ser hum ano tem verd ade ira fas ci nação po r tem as r elac io-
O
nado s a um crist ianism o alternat ivo. Isso s e reve la quand o é pub li cado u m texto do evangelho tradici
ona l mesclado
com idei as ext ravaga ntes , qua ndo oco rrem nov as descobert as a rque o lógicas sobre Jesus, ou quando alguma obra de ficção é publicada e chega a desafiar os fu nd am en tos da igr ej a. A tr avés da h istória da reli gião, A li ster M cG rath expõe a surpre
en de nte traj etória da heresi
a ao
long o do tem po. M cG rath e xpl ica, tam bém , po rque as heres ia s nunc a foram erradi
cadas -
elas pod em desaparecer
em d eterm inad a épo ca ,
mas reaparecer com roupagem diferente, em outra. Por outro lado, o autor aprese
nta um a ortodox ia poderosa, c ompas si va, e pro fun da
m en te atrat iv a, que eq uipará a i grej a para que possa sias at uais, em suas mais difere
en fren tar a s he re
nte s form as.
Categoria: Teologia/Apologética